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Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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Revista Cabo-verdiana
Ciências Sociais ano 1, n.1
de
ISSN 2309-9712
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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EDITOR RESPONSÁVEL
Nardi Sousa
CONSELHO EDITORIAL
António Gonçalves Emanuel Semedo Fernando Jorge Tavares Maria de Fátima Alves
REVISÃO DE TEXTOS
Luís Rodrigues
EDIÇÃO & DIAGRAMAÇÃO Ana Daniele Maciel Micael Fernandes
Gabinete de Comunicação, Imagem e Relações Internacionais da Universidade de Santiago
REDACÇÃO E ASSINATURAS Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais Universidade de Santiago Rua 5 de Julho, Cidade de Assomada - CP 4, Ilha de Santiago, Cabo Verde Tlf.: (+238) 265 42 00 Fax: (+238) 265 24 79 [email protected]
ISSN 2309-9712
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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ÍNDICE Apontamentos para uma sociologia da juventude Nilson Weisheimer .......................................................................................... 9
A outra face do Janus cabo-verdiano: uma análise crítica da violência juvenil em Cabo Verde Nardi Sousa ..................................................................................................... 27
Entre a marginalização e a securitização: jovens e violências em Cabo Verde e na Guiné-Bissau Sílvia Roque; Kátia Cardoso ........................................................................ 61
A justiça restaurativa em contexto escolar: uma cultura para a prevenção da delinquência? Joana Maduro; Nídia Azevedo ................................................................... 85
As mortes e a vida de jovens no “mundo do crime” no Brasil: homicídios, comensurabilidade e “vida loka” Danielli Vieira ................................................................................................. 99
Da in/visibilidade da representação e sentido de pertencimento nos colectivos periféricos de jovens em São Paulo e Lisboa Rosana Martins; Miguel de Barros ........................................................... 113
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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“Bigamia” en el Río de la Plata. Migración y militancia política transnacional entre las/os jóvenes uruguayas/os en Buenos Aires Silvina Merenson ......................................................................................... 133
Coletivos juvenis, cidade e identidades: etnografia do estranhamento Valéria Silva .................................................................................................. 147
Existir no tráfico: vivências de jovens no tráfico de drogas de uma favela no norte do Rio de Janeiro Wania Amélia Belchior Mesquita; Suellen André de Souza ............. 167
Las moralidades de la vulnerabilidad adolescente en la zona céntrica de Montevideo Ricardo Fraiman; Marcelo Rossal ............................................................ 183
Espaço Com’Arte A Arte do Batuque: de ‘offensivo da boa moral’ (edital de 1866) ao reconhecimento da força terapêutica e arma na prevenção da violência (doméstica) Greet Wielemans ......................................................................................... 205
Espaço d’Entrevista Entrevista a Karl Monsma Nardi Sousa ................................................................................................... 211
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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APRESENTAÇÃO
Juventude: entre a criatividade e criminalização
Tem-se registado na sociedade cabo-verdiana, de algum tempo para cá,
um aumento considerável de violência juvenil urbana. Algumas zonas
das cidades da Praia e do Mindelo transformaram-se em arenas de mal-
estar e confrontação juvenil.
Tornou-se comum ver imagens, e notícias veiculadas pelos
media, sobre esse mal-estar: violência gratuita, confrontação e
homicídios perpetrados por jovens de bairros ‘a evitar’, usando uma
expressão cara a Loic Wacquant (2008) que nos leva a recorrer, por sua
vez, a léxicos topográficos como bairros periféricos, ghetto, periferia
para designar bairros e comunidades estigmatizadas, residências dos
párias, daqueles que começam a ser indesejados, desprezados pela
sociedade.
Corre-se o risco de atribuir todos os mal-estares aos jovens de
comunidades pobres e marginalizadas, que começam a ser
transformados em novos bodes expiatórios dos problemas sociais, e o
mais grave ainda é o perigo de caírem nas malhas de grupos criminais
organizados.
Existem questões que não foram respondidas ainda e que a RCS
procura responder através de contribuições de vários especialistas na
área de juventude, delinquência, violência. Por exemplo, de que forma
esta realidade do senso comum pode ser influenciada pelas construções
teóricas dos intelectuais e da academia? Como levar a academia a forjar
um debate sobre fenómenos que todos dão palpites, mas que continuam
por explicar, como diriam Berger e Luckmann (2004).
Consideramos necessário uma análise sociológica dessa
realidade, da vida quotidiana, assim como do conhecimento que orienta
essa conduta na vida diária. A universidade, como locus de saber e
discussão, tem um interesse especial em conhecer como essa realidade
se apresenta nas várias perspectivas teóricas. É preciso um
esclarecimento dessa realidade, tal como é acessível ao senso comum
dos cidadãos.
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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O mundo da vida quotidiana e o seu carácter intrínseco, entre as
múltiplas realidades, é a que se apresenta como sendo a realidade por
excelência. A vida quotidiana é uma realidade interpretada pelos
homens e, de modo subjectivo, dotada de sentido para eles, na medida
em que forma um mundo coerente.
Pelo facto de as pessoas apreenderem a realidade da vida diária
como uma realidade ordenada, esta aparece já objectivada, i.e.,
constituída por uma ordem de objectos. O mundo da vida quotidiana
proclama-se a si mesmo e, se queremos contestar esta proclamação,
temos de realizar um esforço deliberado e nada fácil.
A tríade exteriorização/objectivação/interiorização reforça essa
construção da realidade social que, em certas ocasiões, precisa ser
desmontada, mormente a visão existente que diz que certos grupos de
jovens de bairros periféricos são violentos, viciosos e caóticos.
Convém realçar que os discursos mediáticos também contribuem
para essa visão, assim como o desemprego, a desocupação, a
informalização da economia, as desigualdades sociais, a inexistência de
políticas públicas e a sensação de abandono e perseguição policial. Tudo
isso pode reforçar os sentimentos de marginalização social e
estigmatização territorial.
As desordens sociais provocadas por estas situações, e que têm
vindo a reforçar a marginalização e coesão de grupos de jovens
periféricos, estão a fazer com que Cabo Verde, tal como alguns países,
entre na onda de políticas penais. A questão é que a penalização só
agrava a situação da pobreza urbana.
As várias contribuições teóricas, de países como Portugal, Brasil,
Uruguai, Argentina, Cabo Verde e Guiné-Bissau, numa perspetiva
crítica, obrigam-nos a forjar, em Cabo Verde e não só, novos
paradigmas que suportem os campos teórico-práticos das Ciências
Sociais emergentes, num país que se quer afirmar como produtor de
conhecimento e contribuir para a revisão da Divisão Internacional do
Trabalho (Científico e Intelectual).
Nardi Sousa Editor
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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Apontamentos para uma Sociologia da Juventude*
Nilson Weisheimer**
Resumo: O presente ensaio aborda a juventude como categoria sociológica. Discorre sobre o advento da
juventude no contexto da modernidade; aponta as mudanças em diferentes âmbitos da existência humana que
marcam a entrada na fase juvenil e suas fronteiras; discute a abordagem da juventude como faixa etária que
permite definir subgrupos de idade; apresenta resumidamente o enfoque teórico geracional; abordamos a
juventude como representação social. Ao final propõem definições para as categorias juventude(s), jovens,
condição juvenil e situação juvenil.
Palavras-chave: juventude(s), jovens, condição juvenil e situação juvenil.
Abstract: This essay focuses on youth as a sociological category. Discusses the advent of youth in the context of
modernity; indicates changes in different spheres of human existence that mark the entry into the juvenile phase
and its borders; discusses how to approach the youth age group that is defined subgroups of age; summarizes the
focus generational theory; addressed the youth as social representation. At the end propose definitions for the
categories youth (s), young, juvenile condition and situation juvenile.
Keyword: youth (s), young, juvenile condition and situation juvenile.
Introdução
Toda ciência tem sua especificidade definida por seu objeto. No caso da Sociologia da
Juventude podemos dizer que este objeto é constituído por diversos processos sociais
protagonizados por sujeitos jovens. Definimos a Sociologia da Juventude como uma área
especializada da Sociologia que se dedica ao estudo da juventude como um fenômeno social,
cultural e histórico. Isto implica em reconhecer que a juventude não é um dado natural, mas
sim, uma construção social. Todavia as dificuldades de uma Sociologia “específica” que
toma como objeto a juventude, suas relações sociais, processos de estruturação e suas ações
sociais, reside justamente nas dificuldades de conceituação deste objeto. Neste sentido, um
dos principais desafios a que se propõem estudar tais fenômenos é dotar sua categoria central
– a juventude – de maior precisão conceitual e analítica. Apesar da complexidade dos
processos sociais que envolvem este objeto, no presente ensaio aventuramo-nos a tentar
contribuir para sua reconstrução analítica como categoria sociológica. A linha argumentativa
inicia pelo advento da juventude no contexto da modernidade; prossegue apontando as
mudanças em diferentes âmbitos da existência humana que marcam a entrada na fase juvenil e
suas fronteiras; recorremos as abordagens da juventude a partir do critério etário que permite
definir subgrupos de idade; discorremos sinteticamente sobre enfoque teórico geracional;
abordamos a juventude como representação social e; finalmente proporemos algumas
* Artigo recebido em Janeiro de 2013 e aceite em Fevereiro de 2013.
** Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Professor Adjunto da Universidade
Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), Professor Permanente do Programa de Pós-Graduaçao em Ciências Sociais:
Cultura, Desigualdade e Desenvolvimento (PPGCS/UFRB).
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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categorias presentes nos estudos deste campo buscando desfazer possíveis confusões entre os
termos juventude(s), jovens, condição juvenil e situação juvenil.
1. Juventude e modernidade
A juventude é uma categoria social que passa a se constituir e adquire o sentido atual a
partir do advento da modernidade. Deste modo, cabe salientar que as percepções correntes
sobre ela são, necessariamente, sociais, culturais e historicamente determinadas. Isto implica
reconhecer que, mesmo que já existissem jovens nos períodos históricos anteriores, seus
significados, características e papeis sociais eram bastante diversos do que se atribuem
recentemente.
A modernidade corresponde ao período histórico inaugurado pelo desenvolvimento do
capitalismo e a ascensão política da burguesia, que rompeu, definitivamente, com os laços do
tradicionalismo. Entre as principais características da modernidade, destacam-se as contínuas,
rápidas e intensas transformações sociais, culturais e econômicas; a ampliação da
diferenciação social; da especialização e da relativa autonomia das instituições; assim como a
crescente racionalização, burocratização e secularização da vida. Estas características
encontram-se relacionadas com o surgimento da juventude. Nota-se que não é sem
justificativas que os jovens são frequentemente adjetivados como modernos, como diferentes
ou inovadores.
Partindo de uma abordagem histórica, o francês Philippe Ariès (1981) relacionou a
emergência da categoria juventude com o desenvolvimento do capitalismo e as novas relações
sociais daí resultantes. Em sua obra, demonstrou que as noções de infância e juventude foram
longamente construídas social e historicamente. Para este autor, a juventude é uma noção que
emerge na modernidade com base em dois processos fundamentais, distintos, simultâneos e
inter-relacionados. Vejamos cada um deles.
Conforme Ariès (1981), o primeiro corresponde às mudanças ocorridas nas formas da
organização familiar a partir do século XII. Nesse período, processa-se uma diferenciação
entre as esferas pública e privada que se institucionalizariam com a tomada do poder político
pela burguesia. Remonta a essa época uma mudança de orientação no âmbito do grupo
doméstico. A família passa a voltar-se cada vez mais para si mesma, passando a organizar-se
em torno da criança e erguendo entre ela mesma e a sociedade o muro da sociedade privada.
Isto se reflete, também, na composição do grupo doméstico que vai deixando de ser
caracterizado por laços amplos e voltando-se ao convívio mais estreito e intimo. Passa a ser
processada uma importante transformação na forma de organização do grupo parental da
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família extensa à família nuclear – esta última formada pelo casal e seus filhos. “A família
tornou-se um lugar de uma afeição necessária entre cônjuges e entre pais e filhos, algo que
não era antes” (ARIÈS, 1989, p. 11). A juventude assume então, no interior de uma família
nuclear, um novo e diferenciado papel social, uma vez que passa a ser responsabilidade dos
pais a preparação das condições de existência e sobrevivência futura dos filhos.
O segundo processo, não menos importante, apontado por Ariès (1989), consiste no
surgimento da juventude como um fenômeno social moderno basicamente entre os setores da
burguesia e da aristocracia. Estas classes sociais podiam manter seus filhos longe da vida
produtiva e social enviando-os para escolas e liceus para prepará-los para funções futuras. Foi
justamente esta segregação das novas gerações nas instituições educacionais que substituiu a
aprendizagem privada da família por um sistema de educação via escolarização que acaba por
conferir visibilidade ao fenômeno juvenil.
Posteriormente, com a institucionalização e universalização do processo educacional,
como etapa preparatória para a inserção das novas gerações no mundo do trabalho, tornou-se
cada vez mais visível a especificidade da etapa intermediaria entre a infância e a fase adulta,
configurada pela adolescência e a juventude (ARIÈS, 1981). Este é um processo típico da
modernização que cria instituições de novo tipo, a instituição burocrática, como expressão dos
processos de racionalização das práticas sociais. Tal como a industrialização do processo de
trabalho tem em vista os objetivos da atividade econômica capitalista, a escolarização como
forma de educação das novas gerações orienta-se pelo mesmo princípio. Por meio da
institucionalização burocrática do ensino, é possibilitada a reprodução das hierarquias socais
formando os gestores da indústria capitalista e do Estado burguês.
Em síntese, pode-se dizer que o aparecimento da noção de juventude – como a
conhecemos hoje – resulta de processos iniciados pela modernidade e que implicaram uma
crescente racionalização e individualização das práticas sociais, promovendo a distinção entre
a esfera privada (família) da pública (escola). A modernidade ocidental que corresponde ao
período de ascensão do modo de produção capitalista resultou numa crescente
institucionalização das fases da vida humana promovida sob a perspectiva dos interesses da
classe burguesa e de sua direção sobre o Estado, a escolarização e a industrialização
capitalista. Deste modo, a juventude, que se diferencia dos demais grupos etários,
inicialmente no âmbito das elites entre os séculos XVII e XVIII, expandiu-se como fenômeno
social via nuclearização das famílias e universalização do ensino para todas as classes sociais.
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2. Fronteiras e características do processo juvenil
A juventude representa uma fase da vida situada entre a infância e vida adulta. Seu
marco inicial coincide com a conclusão do desenvolvimento cognitivo da criança. Conforme a
psicologia genética de Jean Piaget (2007), isto corresponde à capacidade de realizar operações
formais cujo processo de estruturação se conclui por volta dos 15 anos de idade e confere ao
indivíduo uma nova capacidade, a execução de operações mentais próprias do pensamento
abstrato e hipotético-dedutivo.1
Do ponto de vista das práticas sociais o início da juventude é representado pelo
surgimento da puberdade. Esta é marcada pelo desenvolvimento de um novo porte físico e por
novas exigências de disciplinamento dos corpos. Estas mudanças biológicas são
acompanhadas pela incorporação de novos papéis sociais que acentuam, entre outras coisas,
as distinções entre os sexos. De modo geral, podemos dizer que a entrada na fase juvenil da
vida é marcada por múltiplos critérios que expressam as transformações vividas pelos
indivíduos no plano biológico, psicológico, cognitivo, cultural e social.
Por sua vez, o término da juventude é definido por critérios eminentemente
sociológicos. O fim da juventude aparece relacionado à progressiva autonomia nos planos
cívico (maioridade civil) e ligado à conjugação de responsabilidades produtivas (um status
profissional estável); conjugais (um parceiro sexual estável assumido como cônjuge);
domésticas (sustento de um domicílio autônomo); e paternal (designação de uma prole
dependente). Desta forma, as fronteiras que demarcam o início e o término do período do
ciclo de vida caracterizado como “juventude” envolve um conjunto de fenômenos objetivos e
subjetivos, sociais e individuais que tendem a variar de sociedade para sociedade.
Podemos compreender o processo juvenil enquanto um conjunto de mudanças em
diferentes âmbitos da existência humana. Estas diferentes alterações foram descritas pelo
antropólogo chileno John Durston (1997) e sistematizadas no Quadro 4.
Quadro 1 - Características do Processo Juvenil
Âmbito Processo
Biológico – Fisiológico Inicia-se e desenvolvem-se mudanças fisiológicas da puberdade e se
adquire capacidade reprodutiva.
Psicossexual Há o desenvolvimento da aprendizagem do cortejo e do descobrimento
sexual.
Cognitivo O processo de aprendizagem formal e informal chega a seu auge.
As pessoas definem sua identidade juvenil diante de seus pares de idade.
1 Segundo o modelo do equilíbrio proposto por Piaget (2007), o desenvolvimento cognitivo humano é marcado por um
processo contínuo de equilibração (passagem da gênese à estrutura) que dá origem a estados de equilíbrios sucessivos e
essencialmente descontínuos, ou seja, de sistemas de ações organizadas que marcam os diferentes estágios do
desenvolvimento cognitivo: sensório-motor; pré-operatório; operatório concreto; operatório formal que marcam as etapas
cada vez superiores de adaptação via interação entre sujeito e mundo exterior.
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Interpessoal Alcançam certo grau de autonomia em relação às figuras paternas, tão
importantes na infância.
Social
Aumenta progressivamente a presença do trabalho produtivo em sua vida
cotidiana. A pessoa desenvolve gradualmente sua subjetividade social
como um novo adulto, assumindo uma maior responsabilidade econômica
e autoridade de voz na sociedade. Fonte: WEISHEIMER, 2004, adaptado de DURSTON, 1997.
No âmbito biológico-fisiológico, são produzidos processos descritos como puberdade
que marca o início da capacidade reprodutiva. Dá-se o nome de puberdade às modificações
biológicas e à maturação sexual. Conforme os estudos no campo da endocrinologia pediátrica,
este processo ocorre entre as meninas cerca de dois anos antes do que entre os meninos
(SETIAN, 2002).
No âmbito psicossexual, surgem as primeiras descobertas dos jogos sexuais, as
práticas do cortejo, a atração e o desejo sexual. Este processo não é vivido sem angústia e
inquietação por jovens adolescentes, gerando sentimentos ambíguos e comportamentos
pendulares manifestados hora pelo desejo de voltar à pureza das relações infantis, hora pelo
desejo da experimentação sexual diante da dúvida se este é o momento adequado, ou ainda, se
está com o parceiro(a) certo(a) para viver esta experiência.
No âmbito do desenvolvimento cognitivo, como mencionamos anteriormente, o
processo de aprendizagem formal e informal chega a seu auge. Isto se deve ao
amadurecimento do córtex pré-frontal e de outras regiões corticais. Possibilita tanto a
evolução da memória quanto o aprofundamento do raciocínio abstrato, a maior capacidade de
atenção e gerenciamento das emoções (IZQUIERDO, 2002).
No âmbito interpessoal, os sujeitos passam a construir suas identidades na interação
com seus pares de idade, produzindo e incorporando uma identidade tipicamente juvenil. Esta
construção social das identidades (DUBAR, 2005) sintetiza atos de pertencimento a novas
esferas de ação social ao mesmo tempo em que expressa certo grau de autonomia em relação
às figuras paternas, tão importantes na infância.
No âmbito social, o processo juvenil vai ser caracterizado por uma progressiva
inserção nas esferas produtivas que passam a compor parte significativa do tempo cotidiano
dos jovens. Simultaneamente, eles buscam construir, via ingresso no mercado de trabalho, as
condições necessárias para a conquista de autonomia em relação aos pais, principalmente no
quesito financeiro, mesmo que de modo parcial. Esta inserção no mercado de trabalho parece
ser a chave para o reconhecimento social de que o jovem está incorporando uma nova
subjetividade, tida como típica dos adultos, que é frequentemente atribuída à maior
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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responsabilidade econômica e completada com maior direito de opinião e voz na família e na
sociedade.
Novamente chamamos a atenção para a complexidade do processo juvenil no qual as
maturidades físicas, sexuais, intelectuais, civis e profissionais não necessariamente coincidem.
Destaca-se que, nesta fase, as potencialidades humanas encontram-se plenamente
desenvolvidas. O indivíduo, como um ser social, passa a ser mais reflexivo do que em etapas
anteriores, sua concepção de mundo e sua própria identidade vão se consolidando, e suas
projeções em direção ao futuro tornam-se mais realistas. Neste processo, a afirmação social de
sua individualidade é vivenciada na busca de autonomia por meio da progressiva inserção no
trabalho, passando a incorporar novas responsabilidades no âmbito jurídico, familiar e social.
3. A juventude como faixa etária
A noção de juventude está intimamente ligada a um critério de medição cronológica
da existência individual, o que permite o estabelecimento de diferentes faixas etárias. Esta
abordagem frequentemente recorre a indicadores demográficos, critérios normativos ou
padrões estabelecidos pelos organismos internacionais para definir os limites de quem é ou
não considerado jovem.
Conforme a Organização Mundial da Saúde (OMS), a adolescência é definida como
um processo fundamentalmente biológico, abrange as etapas da pré-adolescência (10-14 anos)
e a adolescência (15-19 anos); a juventude se iniciaria nessa faixa etária como uma categoria
essencialmente sociológica e “indicaria o processo de preparação para os indivíduos
assumirem o papel adulto na sociedade, tanto no plano familiar quanto no profissional,
estendendo-se dos 15 aos 24 anos”. (WAISELFISZ, 2002, p. 18). Por sua vez, a Organização
Ibero-americana de Juventude trabalha com a faixa entre os 14 e os 30 anos de idade. Na
pesquisa espanhola Informe Juventude em Espanha e na pesquisa realizada pelo Instituto
Mexicano de La Juventud intitulada Encuesta nacional de Juventud 2000, foi utilizado o
intervalo entre 15 a 29 anos de idade (UNESCO, 2006). Alguns países, como o Japão,
classificam como jovens os indivíduos com idades até 35 anos (WAISELFISZ, 2002). No
Brasil, a abordagem demográfica do IBGE classifica o “grupo jovem” entre 15 a 24 anos, em
três recortes etários: 15-17 anos como jovens adolescentes; 18-20 anos como jovens; e 21-24
anos como jovens adultos (BAENINGER, 1998, p. 26). Estes exemplos demonstram que há
vários critérios para se definir a faixa etária que compreende a juventude, sendo esta uma
construção social.
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A definição de faixas etárias é, obviamente, arbitrária e não dá conta das diferenças
entre idade biológica e idade social.2 Seguindo a proposta de Emile Durkheim, considera-se
indispensável ao método sociológico estabelecer, de modo sistemático, rupturas com as pré-
noções, não apenas as originadas no senso comum, mas também, aquelas presentes nas
instituições oficiais. Desta maneira, a juventude não pode ser tratada como uma unidade
social relacionada apenas com estes critérios de enquadramento. É neste sentido que Pierre
Bourdieu enfatiza que a juventude é apenas uma palavra, lembrando que “[...] a juventude e a
velhice não são dados, mas construídos socialmente na luta entre os jovens e os velhos. As
relações entre a idade social e a idade biológica são muito complexas” (BOURDIEU, 1983, p.
113). O autor chama a atenção para o fato de que esta demarcação etária corresponde,
necessariamente, a um jogo de lutas pela imposição de sentido que demarca quem é incluído e
quem é excluído da categoria. Com efeito, deve-se estar atento ao jogo de manipulações
destas construções normativas, visto que as divisões entre idades são arbitrárias e a fronteira
que separa a juventude e a velhice é um objeto de disputa que envolve a dimensão das
relações de poder (BOURDIEU, 1983). Logo, buscam-se evidenciar as associações
cronológicas simplistas como manipulações de linguagem que encobrem, sob uma mesma
categoria, realidades sociais que conservam pouca similaridade.
Para o processo de pesquisa, é mais instigante à imaginação sociológica ir além da
aparência do fenômeno e buscar compreender como as faixas etárias são socialmente
constituídas; como estas podem constituir-se em parâmetros para posicionar os sujeitos num
espaço de relações sociais. O que está em jogo aqui é a noção de estratificação etária
associada à atribuição de papeis sociais específicos, implicando certa escala de posição na
hierarquia social. Tendo isto em conta, poder-se-á identificar que esses padrões etários, tal
como propõe o sociólogo José Mauricio Domingues (2004), são sempre mediados pela
dimensão hermenêutica da vida social, o que se torna importante à definição geral do universo
simbólico, assim como, à mediação entre as diversas perspectivas que constituem os diversos
grupos etários e suas diferentes situações de geração. Este posicionamento apresenta a
vantagem de superar a imprecisão dos limites que demarcam as gerações.
A abordagem cronológica que estabelece as faixas etárias torna-se importante para a
pesquisa social empírica, principalmente para a definição precisa dos critérios de inclusão e
exclusão de indivíduos na categoria juventude. Isto exige do pesquisador, como qualquer
outra forma de classificação, a explicitação dos parâmetros teóricos que definem a construção
2 Van Gennep (1977), em seu texto clássico sobre os ritos de passagem, demonstra que a puberdade social não coincide,
necessariamente, com a identidade biológica.
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operacional da categoria analítica. Levando-se em consideração os diferentes processos de
maturação social que envolve o processo juvenil, assume-se, neste estudo, a faixa etária dos
15 aos 29 anos de idade para demarcar, operacionalmente, a juventude, estabelecendo-se
ainda, com base na análise psico-social desenvolvida pelo cubano Lucio Domingues (2003), a
seguinte estratificação etária interna:
a) Jovens adolescentes (de 15 a 19 anos): Nesta etapa, juventude e adolescência se
interpõem na superação progressiva da primeira pela segunda, uma vez que as mudanças
fisiológicas se completam, suas capacidades cognitivas encontram-se plenamente
desenvolvidas. O processo de socialização os leva a uma constante interação social
possibilitando a incorporação de atividades diversas. Estabelecem-se condutas mais
autônomas, assumem-se novos papeis e novas responsabilidades desenvolvendo-se
habilidades produtivas e o futuro passa a ocupar um lugar mais importante. O presente passa a
ser cada vez mais influenciado por objetivos conscientemente planejados. Neste sentido, o
começar a pensar sobre o que se deseja ser no futuro, a escolha da profissão e a projeção geral
da vida tomam o centro dos interesses e das ações fundamentais que se realizam nesta etapa,
informando a construção reflexiva da autoidentificação dos sujeitos.
b) Jovens (de 20 a 24 anos): Este grupo se caracteriza pela maturidade biológica, que
geralmente não está acompanhada ainda da maturidade social. Desenvolvem e adquirem
categorias que lhes permite refletir sobre realidades sociais mais amplas e seus juízos de valor
tornam-se mais críticos e objetivos. Em geral, gozam de mais liberdade e menor dependência
em relação aos pais. Ao mesmo tempo, a imposição social de assumir novos papeis de adulto
muitas vezes torna-se conflitiva, porque os jovens nesta fase tendem a não se identificar com
eles. A definição de um projeto profissional mais do que uma possibilidade passa a ser uma
exigência social. Nesta fase, a personalidade já se encontra consolidada e as decisões sobre a
carreira profissional impõem-se com todo o peso da coerção social. Trata-se de um período
em que a inserção profissional se generaliza, a partir das experiências acumuladas, da sua
concepção de mundo e da consolidação que vai adquirindo sua auto-avaliação.
c) Jovens adultos (de 25 a 29 anos): Nesta fase, os jovens já alcançaram seu nível de
plena maturidade psicológica. Consolida-se a formação profissional. Amplia-se o desempenho
social e os papéis na sociedade passam a serem mais diversificados. O âmbito profissional
adquire importância central na vida social, servindo de suporte à consolidação identitária.
Verifica-se um distanciamento dos grupos de idade e a tendência para estabelecimento de uma
relação conjugal mais estável e uma nova família passa a ser construída. Nesta idade, a
maioria já assumiu responsabilidades familiares, e os que se encontram na condição de pai ou
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mãe passam a desempenhar papeis mais complexos. Nesta etapa, os jovens tendem a refletir
mais intensamente sobre seus sucessos e avanços pessoais. A auto-avaliação é mais profunda
e efetiva. Busca-se corrigir os rumos com a tendência de procura de alternativas que
favoreçam a reorientação dos planos futuros que se tornam mais objetivos e complexos e em
relação mais estreita com as esferas profissionais e familiares.
Estas características gerais das faixas etárias juvenis não são homogêneas a toda a
juventude nem mesmo ocorrem simultaneamente dentro da mesma faixa etária. Teoricamente,
é possível suscitar a hipótese de que os jovens agricultores familiares, em certos aspectos,
amadureçam socialmente mais cedo do que outros jovens que se inserem em atividades
produtivas mais tardiamente, devido à incorporação de certas responsabilidades vinculadas ao
processo de trabalho que realizam. Porém, por outro lado, tendem a ter postergado suas
condições de autonomia social, por conta do caráter patriarcal que marca esta atividade. Estes
aspectos inscrevem-se como pistas para explicar as diferenças em relação à construção dos
projetos entre as faixas etárias, ou mesmo, à ampliação temporal da transição da dependência
à autonomia.
Assume-se a posição de que a abordagem da juventude como um recorte etário deve
ser utilizada com cautela, evitando-se a naturalização de um fenômeno eminentemente
sociológico. Além disto, esta abordagem marcadamente empírica não é suficiente para forjar
uma categoria teórica; entretanto, esta posição não implica negligenciar a importância desta
variável pra a compreensão do fenômeno juvenil e para a delimitação do universo de
pesquisa.
4. O enfoque geracional
A questão das gerações figura como um dos dilemas centrais da vida social ganhando
força nas pesquisas e nos debates das Ciências Sociais. Como enfoque teórico constituiu-se,
principalmente, a partir das formulações do sociólogo Karl Mannheim (1968, 1982). Ele parte
das características fundamentais da sociedade que são: a) o surgimento contínuo de novos
participantes no processo cultural, enquanto; b) antigos participantes daquele processo estão
continuamente desaparecendo; c) os membros de quaisquer gerações podem participar de uma
sessão temporalmente limitada do processo histórico; d) é necessário, portanto, transmitir
continuamente a herança cultural acumulada; e) a transição de uma para outra geração é um
processo contínuo através da série ininterrupta das gerações (MANNHEIM, 1982, p. 74). Tais
aspectos impõem-se como condições estruturantes das relações entre indivíduo e sociedade
assim como a transmissão e adaptação da herança cultural nas sociedades. Como a criação e a
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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acumulação cultural nunca são realizadas pelos mesmos indivíduos, cada geração tem, a seu
tempo, um contato original com a herança cultural acumulada (MANNHEIM, 1982). Este
aspecto é absolutamente central para a compreensão do conceito de geração e de sua
relevância à compreensão dos impasses atuais na reprodução social da agricultura familiar.
O conceito sociológico de geração busca romper com resquícios naturalistas da
explicação do fenômeno, definindo-o como uma condição situacional frente ao processo
histórico e social. Assim, uma geração é constituída por aqueles que vivem uma “situação”
comum perante as dimensões históricas do processo social, o que caracteriza uma “situação
de geração”. De acordo com Mannheim, “para se participar da mesma situação de geração,
isto é, para que seja possível a submissão passiva ou o uso ativo das vantagens e dos
privilégios inerentes a uma situação de geração, é preciso nascer dentro da mesma região
histórica e cultural” (MANNHEIM, 1982, p. 85). A situação de geração corresponderia a
certos locais geracionais que estruturam posições sociais compartilhadas por indivíduos de um
mesmo grupo etário, mas que não se reduz à idade dos mesmos. Deste modo, compreende-se
que geração é um conceito situacional.
Sucedendo-se no tempo, as gerações se apresentam como a não-simultaneidade do
simultâneo, o que significa que cada ponto do tempo é um espaço de tempo que não se reduz
a uma única e homogênea relação com o tempo histórico. Ou seja, indivíduos de gerações
diferentes experienciam de modos diferenciados os processos históricos simultâneos. Os
membros de uma mesma geração também podem atribuir significados distintos ao mesmo
contexto histórico. Com efeito, a geração, assim como a classe social, apresenta-se mais como
uma potencialidade do que um grupo concreto que resultaria da transformação dialética do
grupo em si em um grupo para si. Mannheim (1982) produz então uma importante distinção
entre geração enquanto realidade e unidade de geração.
Pode-se dizer que os jovens que experienciam os mesmos problemas históricos concretos
fazem parte da mesma geração real; enquanto aqueles grupos dentro da mesma geração real,
que elaboram o material de suas experiências comuns através de diferentes modos específicos,
constituem unidades de geração separadas (MANNHEIM, 1968, p. 87).
A geração enquanto realidade implica algo mais que co-presença em uma tal região
histórica e social, implica a criação de um vínculo concreto entre os membros de uma
geração, através da exposição deles aos mesmos sintomas sociais e intelectuais de um
processo de desestabilização dinâmica. Por sua vez, a unidade de geração implica um vínculo
ainda mais concreto do que o verificado na geração enquanto realidade, ela se refere a um
compartilhar de experiências comuns que lhe confere unidade. Esta unidade de geração ocorre
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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quando os jovens compartilham conteúdos mais concretos e específicos formados por uma
socialização similar e desenvolvem, em função disso, laços mais estreitos, levando à
identificação e ao reconhecimento mútuo devido às similaridades das situações e das
experiências constituindo uma comunidade de destino (MANNHEIM, 1968).
Uma unidade de geração não é um grupo concreto, embora possa ser acompanhada de
grupos concretos nos quais a similaridade de situação possibilita atividades integradoras que
provocam a participação e capacita-os a expressarem exigências desta situação comum. Os
grupos concretos das novas gerações encontrariam no movimento juvenil a expressão de sua
localização na configuração histórica prevalecente (MANNHEIM, 1968).
Percebe-se que esta abordagem confere importância central às experiências dos jovens,
apontadas como fator propulsor da dinâmica da sociedade e identificadas como importantes
veios de mudanças e transformações culturais e de relações sociais. Isto porque uma nova
geração “não esta completamente enredada no status quo da sociedade”, (MANNHEIM,
1968, p. 73). Sob este aspecto, os jovens de uma época estão sujeitos a contradições próprias
frente ao estágio referente do desenvolvimento capitalista. Emergem conflitos dos jovens com
a ordem social já estabelecida; estes revelam as contradições mais agudas da própria
organização social, uma vez que, do ponto de vista sociológico, a juventude e a sociedade
encontram-se em reciprocidade total (MANNHEIM, 1968). Conforme o autor:
O fato relevante é que a juventude chega aos conflitos de nossa sociedade moderna vinda de
fora. É esse fato que faz da juventude o pioneiro predestinado de qualquer mudança da
sociedade. [...] Na linguagem sociológica, ser jovem significa, sobretudo, ser um homem
marginal, em muitos aspectos um estranho ao grupo (MANNHEIM, 1968, p. 74-5).
Este estranhamento, possibilitado pelo contato original das sucessivas gerações com a
cultura criada e acumulada socialmente permite que novos valores e comportamentos sejam
facilmente incorporados pela juventude. Deste fato, podem ser obtidas duas possibilidades de
equação das relações intergeracionais.
A primeira tenderá a enfatizar o potencial conflito entre as gerações, entre os jovens e
a ordem social estabelecida ou mesmo entre os próprios jovens. A partir desta perspectiva,
podem ser extraídos dois tipos de posicionamentos sobre a juventude: um, de caráter
voluntarista, baseia-se na ideia ingênua de que os jovens são inerentemente contestadores;
outro, num pólo mais conservador, apresenta uma postura cética de que esta “rebeldia” é
necessariamente transitória como a juventude.
Na segunda, a juventude passa a ser vista a partir de seu potencial de mudança,
enfatizando-se sua capacidade criadora e inventiva. Ela passa a ser percebida como parte dos
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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recursos latentes de que a sociedade dispõe e de seu engajamento depende a vitalidade da
própria sociedade. Como destaca Mannheim a este respeito, “a juventude não é progressista
nem conservadora por índole, porém é uma potencialidade pronta para qualquer nova
oportunidade” (MANNHEIM, 1968, p. 74-5). Nesta última abordagem, o maior ou o menor
grau deste potencial de mudança é atribuído às sociedades dinâmicas, enquanto as que
buscam conter a juventude podem ser entendidas como sociedades estáticas (MANNHEIM,
1968).
Os jovens, como parte dos “recursos latentes” de que dispõem as sociedades,
aparecem como grupo estratégico não apenas na reprodução das relações sociais como
também para a sua transformação. Como mencionado, as gerações são ainda “uma
potencialidade”, sem que a elas corresponda uma consciência, tal qual às classes que não se
tornam para si. O potencial transformador da juventude, para ser exercido em toda sua
potencialidade, necessita que ela se constitua em “geração para si”, com alto nível de
identidade e capacidade de organização. Isto só ocorre quando a juventude se encontra ciente
de si mesma, percebendo sua unidade de geração e avançando na direção da construção de
grupos concretos. Mannheim (1982, p. 71), em uma nota de rodapé, sugere que uma questão
para a pesquisa social possa ser identificar em quais condições os membros individuais de
uma geração se tornam conscientes de sua situação comum e fazem desta consciência a base
da solidariedade grupal.3
A abordagem das gerações, por sua dimensão dialética, permite perceber que,
sociologicamente, a juventude é um veículo de ligação entre o passado e o futuro; por meio
dela, a sociedade se renova permanentemente. O instigante é que este processo de transição
ininterrupto das gerações estabelece-se por meio das interações constantes entre jovens e
adultos. Por conta dessas interações intergeracionais, os mais velhos se tornam cada vez mais
receptivos às influências dos mais novos, resultante da dialética entre as gerações a partir do
caráter dinâmico da própria sociedade.4 Além disso, o caráter experimental do “contato
original” dos jovens permite a atribuição de novos sentidos às práticas sociais e o surgimento
de um novo quadro de antecipações. Devido a isto, as juventudes não são suscetíveis de
comparação, pois, ao viverem épocas históricas diferentes, têm definidos seus conflitos e sua
3 No Brasil, o principal esforço para responder à questão proposta por Mannheim foi desenvolvido por Maria Alice Foracchi
(1965, 1972 e 1982). 4 Isto se evidencia através da mudança de paradigma que coloca a centralidade do conhecimento como motor do crescimento
o que faz dos jovens agentes de propagação de novos saberes uma vez que possuem maior facilidade para o aprendizado e
disposição para inovação. Como exemplo, atualmente os mais jovens passam a ensinar os mais velhos como fazerem uso das
novas tecnologias e dos recursos informacionais, como no uso de caixas eletrônicos, da telefonia móvel e da Internet, que
estão cada vez mais presentes na vida cotidianos dos agricultores familiares.
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vivência social de maneiras também diferentes (SOUSA, 2006). Logo, não é de estranhar-se a
tendência ao distanciamento de projetos entre as gerações.
Entende-se que o enfoque geracional aporta questões importantes à análise dos
processos de reprodução e transformação do processo de trabalho familiar agrícola por
chamar atenção às alterações na situação dos padrões históricos e culturais que diferem pais e
filhos neste contexto. Para compreender em profundidade o impasse atual da reprodução
social da agricultura familiar, é necessário analisá-la no quadro das transformações de
referências históricas, sociais, culturais e econômicas a partir das quais recebem sua forma e
informam seu conteúdo. As formas socialmente estabelecidas para interpretar tais conteúdos
serão sempre e necessariamente reapropriadadas e resiginificadas pelo contato original da
nova geração. Entende-se que os impasses na reprodução social da agricultura familiar
apresentam-se como objeto de estudo que requer esta abordagem por serem justamente as
relações familiares e de parentesco os elementos decisivos para se pensar a conformação e
sucessão das gerações. Estas só se configuram através das vivências individuais e coletivas
dos agentes e dos processos reflexivos associados a essas vivências, às experiências que
constituem a própria vida social (DOMINGUES, 2004).
5. Juventude como representação social
O enfoque centrado nas representações enfatiza que a noção de “juventude” aparece
como uma expressão discursiva de uma realidade objetiva. O termo designa um conjunto de
relações sociais específicas, vividas por elementos classificados como jovens em uma dada
sociedade. Deste modo, a categorização desloca-se da faixa etária para enfatizar as relações
sociais de poder e dominação que configuram a condição juvenil, ou seja, esta posição na
hierarquia social que dá sentido às representações sociais. Busca-se apreender os significados
que são acionados na definição de quem é e quem não é considerado jovem em um dado
contexto sócio cultural, abrindo-se, assim, a possibilidade de relativização entre os diversos
sentidos atribuídos a esta categoria. Estes critérios de inclusão e exclusão são socialmente
construídos, tornando-se móveis suas fronteiras. Um exemplo deste enfoque encontra-se na
publicação intitulada História Social dos Jovens, organizada por Levi e Schmitt (1996).
Conforme salientam estes autores:
Na juventude encontra-se ainda um conjunto de imagens fortes, de modos de pensar, de
representações de si própria e também da sociedade como um todo. Estas imagens constituem
um dos grandes campos de batalha do simbólico. A sociedade plasma uma imagem dos jovens,
atribui-lhes caracteres e papeis, trata de impor-lhes regras e valores e constata com angústia os
elementos de desagregação associados a esse período de mudança, os elementos de conflito e
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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as resistências inseridas nos processos de integração e reprodução social. Portanto, para além
das taxinomias mais consolidadas (as referentes à época da vida, da maioridade do ponto de
vista dos direitos civis ou políticos, ou da responsabilidade penal), vamos então interrogar-nos
sobre as representações mais vagas, e quem sabe mais esclarecedoras, dos papeis sociais da
juventude (LEVI; SCHMITT, 1996, p. 12).
Percebe-se que esta abordagem retém a ideia de que os jovens estariam sujeitos à
incorporação de uma série de papéis sociais, ou funções socialmente atribuídas através dos
processos de socialização. A alternância de papéis sociais e de processos de socialização que
marcam a condição juvenil está voltada a assegurar a reprodução ou a continuidade social.
Esta abordagem permite entender a constituição de diferentes culturas juvenis, uma vez que
percebe a juventude enquanto realidades múltiplas, fundadas em representações sociais
diferenciadas.
Entre as diferentes representações acerca da juventude, aparecem aquelas elaboradas
pelos próprios jovens. Nas sociedades contemporâneas, há uma crescente diferenciação e
diversificação das experiências dos jovens, o que resulta em suas múltiplas filiações
identitárias e que corresponde à necessidade de dar sentidos às vivências numa multiplicidade
de mundos sociais. A singularização das experiências colabora para a emergência de
representações, próprias dos contextos de interação social e oportunidades de
individualização. Assim, os jovens tendem a perceber a juventude como um tempo de relativa
liberdade de escolhas e experimentação, de vivência do presente mais plenamente possível, e
com importância em si mesmo. Percebe-se que esta forma de categorizar torna-se importante
por dar ênfase às experiências dos próprios jovens, para os quais a experimentação é o
elemento definidor da sua condição social e formadora de suas identidades, sejam elas
coletivas ou individuais.
Com efeito, a juventude como uma representação científica, não poderia ser construída
a partir de uma substantividade inerente aos atores; ao contrário, propõem-se compreendê-la
relacionalmente, ou seja, por meio da análise dos processos interacionais nos quais os
sentidos atribuídos à juventude são construídos e suas fronteiras são demarcadas. Dito de
outro modo, a abordagem das representações enfatiza a determinação sociocultural da
juventude, superando-se as abordagens pautadas por uma natureza biológica. Ou seja, o
significado da juventude e do que é ser jovem é relacional a outras categorias e não se
restringe a uma faixa etária ou período de transição.
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6. Algumas categorias teórico-operacionais da Sociologia da Juventude
É possível perceber neste debate que a juventude como categoria social é uma
construção social, cultural e histórica bastante complexa. Em termos sociológicos, podemos
dizer que ela reflete os processos de individualização e racionalização crescentes iniciados na
modernidade. O fundamental para sua construção como categoria sociológica é ter presente
que a juventude não se constitui, e nem se explica, simplesmente por meio de princípios
naturais ou determinações biológicas.
Como expressão da vida social, a juventude aparece como uma categoria complexa
que não pode ser definida em função de um único aspecto ou característica. Podemos recorrer
às observações de François Dubet (1996) que considera a própria categoria juventude como
portadora de uma ambiguidade intrínseca, pois seria, ao mesmo tempo, um momento no ciclo
de vida, experimentando as características socioculturais de uma determinada historicidade;
simultaneamente, um processo de inserção social ou ainda uma experiência delimitada pela
estrutura social.
Reconhecer a complexidade de um fenômeno sociológico não equivale a negar sua
possibilidade de compreensão e sistematização por meio de conceitos gerais e válidos para
múltiplas realidades. Deste modo, não podemos nos furtar de sistematizar as categorias de
análise necessárias ao estudo dos fenômenos juvenis. Para tanto, um primeiro procedimento
necessário é considerar que a juventude é uma categoria sociológica; por isto mesmo, seu
significado é necessariamente relacional, de tal modo que, assim como afirmou o sociólogo
Pierre Bourdieu (1983), sempre somos jovens ou velhos em relação a alguém. Neste sentido,
devemos pensar os sentidos da juventude como algo que é produzido em determinados
contextos de interação social. Ou seja, tal como propõe Bourdieu, (1998 a, p. 28) para
conceber a juventude como categoria sociológica é importante “pensá-la como forma de um
espaço de relações sociais”. Busca-se imprimir contornos nítidos no campo teórico-
operacional a esta tomada de posição epistemológica com o estabelecimento de definições
sintéticas para as categorias: Juventude, Jovens, Condição Juvenil; Situação Juvenil.
Entende-se por juventude uma categoria relacional fundada em representações sociais,
tais como as que conferem sentidos ao pertencimento a uma faixa etária, que posiciona os
sujeitos na hierarquia social a fim de promover a incorporação de papéis sociais através dos
diferentes processos de socialização que configuram as transições da infância à vida adulta.
Parafraseando Mannheim (1982), podemos dizer que a juventude é antes de tudo um signo
das relações que a sociedade estabelece, simultaneamente, com seu passado e seu futuro.
Entre as características dessa categoria, destaca-se a ambivalência típica de sua situação
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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liminar e transitória; a posição subalterna aos adultos na hierarquia social; a conflitividade
originada pelo processo de individualização nesta situação liminar e subalterna; a criatividade
e capacidade de inovação própria do contato original das novas gerações com a cultura pré-
estabelecida.
Por jovens são designados os indivíduos concretos que vivem os processos de
socialização específicos. Constituem-se em sujeitos históricos cujas trajetórias implicam a
transição da condição social de criança à vida adulta. Em outras palavras, os jovens
constituem a unidade de análise por excelência dos estudos da sociologia da juventude. Estes
podem ser definidos como “agentes”, isto é, como indivíduos socialmente constituídos na
totalidade de suas determinações e dotados de poder de produzir impactos significativos na
ordem social, quanto como “atores”, ou seja, aqueles que desempenham papeis específicos e
pré-estabelecidos.
Além das categorias já citadas, outras duas se impõem. Seguindo a trilha de Miguel
Abad (2002) e Marília Sposito (2003), buscamos explicitar as diferenças entre condição e
situação juvenil.
A condição juvenil corresponde ao modo como a sociedade constitui e atribui
significados às juventudes em determinadas estruturas sociais, históricas e culturais,
implicado um modo de ser jovem determinado por estruturas sociais mais amplas. Desta
maneira, busca-se destacar que, mais do que uma faixa etária, a condição juvenil é uma
posição na hierarquia social. No caso dos jovens, corresponde a uma posição subordinada aos
adultos. Lembrando que esta é, por definição, uma condição transitória que se perde com a
passagem dos anos, os pesquisadores da UNESCO como WAISELFISZ (2004) argumentam
que a superação da subordinação e a conquista de autonomia constituem o eixo central da
trajetória que os jovens deverão percorrer.
Por sua vez, “a situação juvenil” diz respeito aos diversos percursos experimentados
pela condição juvenil, ou seja, traduz as suas diversas configurações. Esta última categoria é
utilizada então para referir-se aos variados processos empíricos, condições conjunturais e
particularizadas das múltiplas juventudes.
Estes dois últimos conceitos nos remetem ao fato de que estas primeiras definições
seriam incompletas se não incorporassem a multiplicidade destas representações sociais. Isto
é, implicam a necessidade de pensarmos mais em termos de juventudes no plural do que no
singular, uma vez que estas vivem realidades sociais diversas, construindo experiências e
identidades juvenis distintas (WEISHEIMER, 2005). “Ou seja, a juventude só pode ser
entendida em sua especificidade, em termos de segmentos de grupos sociais mais amplos”
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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(CARDOSO; SAMPAIO, 1995, p. 18). Esta postura conduz à necessidade de qualificá-la,
percebendo-a como uma categoria social complexa e heterogênea, na tentativa de evitar
simplificações e esquematismos (VELHO, 2006).
Para efeito de análise, entende-se que a especificidade das juventudes pode ser
estabelecida através do exame dos processos de socialização nos quais os jovens estão
inseridos (WEISHEIMER, 2004, 2009). Ao serem consideradas, por exemplo, as diferenças
de classe social, etnia e gênero, percebem-se distinções relativas às posições ocupadas nos
espaços sociais por estes jovens e consequentemente distinções relativas aos respectivos
processos de socialização. Ou seja, para conferir maior precisão analítica à juventude como
categoria sociológica é necessário relacioná-la aos processos de socialização predominantes
entre os jovens estudados.
Este posicionamento rompe com as definições de caráter substancialista sobre a
juventude, possibilitando construir a categoria analítica de modo relacional, isto é, em termos
de sua posição num espaço de relações (BOURDIEU, 1989) sociais. Com efeito, a
reconstrução sociológica da condição juvenil, com base no processo de socialização confere
maior coerência à proposta de privilegiar as noções de juventudes (representações) e jovens
(sujeitos/atores/agentes) no plural.
Assumindo-se as consequências do debate teórico proposto neste capítulo, torna-se
necessário buscar estabelecer com precisão o que marca diferencialmente a socialização dos
jovens agricultores familiares. Para isto, é necessário enfrentar o debate conceitual sobre a
agricultura familiar e identificar a participação juvenil nesta ocupação. Este é o tema do
próximo capítulo.
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Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
27
A outra face do janus cabo-verdiano: uma análise crítica da violência juvenil em Cabo Verde*
Nardi Sousa**
Resumo: A sociedade cabo-verdiana tem enfrentado, nos últimos tempos, uma crescente onda de criminalidade
e violência urbana juvenil nos principais centros urbanos do país. A situação é muito confusa, dado que às vezes
condena-se os jovens dos bairros periféricos, outras vezes os agentes ligados ao narcotráfico. Isso tem provocado
um pânico geral e alerta para que se tomem medidas preventivas e punitivas. Tem-se verificado também uma
certa desilusão dos jovens das comunidades pobres, que apresentam características de pessoas disempowered:
desiludidas, desconfiadas com comportamentos passivos e agressivos como raiva e pessimismo. O artigo
pretende fazer uma reflexão crítica sobre a problemática da delinquência juvenil em Cabo Verde, partindo de
alguns estudos e contribuições teóricas disponíveis sobre o fenómeno, assim como ‘desmontar’ o PESI-20091, no
que concerne ao espaço reservado à questão da delinquência/criminalidade juvenil. A revisitação de alguns
estudos sobre a violência juvenil dá-se num diálogo entre Sociologia, Antropologia (simétrica) e Etnografia, da
necessidade de se conhecer a questão da violência em Cabo Verde, assim como novos paradigmas que ajudem a
compreender fenómenos tais como exclusão social e violência juvenil.
Palavras-chave: Jovens, Violência, Delinquência Juvenil, Thug, PESI-2009, Segurança Interna, Cabo Verde.
Abstract: The cape-verdean society has faced in recent times, a growing wave of juvenile crime and urban
violence in major urban centers of the country. The situation is very confusing, because sometimes it condemns
youth of the suburbs, sometimes agents linked to drug trafficking. This has caused widespread panic and alert to
take preventive and punitive measures. There has been also a certain disillusionment of young people in poor
communities, which have characteristics of disempowered people: disillusioned, distrustful with passive and
aggressive behaviors such as anger and pessimism. The article aims to make a critical reflection on the problem
of juvenile delinquency in Cape Verde, departing from some studies and theoretical contributions available on
the phenomenon and ' dismantle ' the PESI-2009, regarding the priority that has been given to the issue of
delinquency/juvenile crime . A revision of some studies on youth violence occurs on a dialogue between
sociology, (symmetric) anthropology and Ethnography, the need to know the issue of violence in Cape Verde, as
well as new paradigms that help to understand the phenomena such as social exclusion and youth violence.
Key-words: Youth, Violence, Juvenile Delinquency, Thug, PESI-2009, Internal Security, Cape Verde.
Introdução
Cabo Verde é um país que soube adaptar-se, ao longo dos anos, a um mundo dinâmico
e assimétrico. Aproveitou bem os parcos recursos naturais, os da diáspora e da comunidade
internacional, o que tem permitido um crescimento razoável, reconhecido nacional e
internacionalmente, anestesiando a estrutura geradora do subdesenvolvimento2 herdado com
a independência (Renato Cardoso, 1987:45).
* Artigo recebido em Dezembro de 2012 e aceite em Janeiro de 2013.
** Sociólogo, professor na Universidade de Santiago – Cabo Verde. Mestre em Estudos Africanos. Doutorando em Ciências
Sociais. Chefe do Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais na Universidade de Santiago. Email: [email protected] 1 PESI-2009 (Plano Estratégico de Segurança Interna) do Ministério da Administração Interna (MAI). 2 Cabo Verde teve que enfrentar e gerir, após a sua independência, um sistema político e económico que configurava uma
verdadeira estrutura geradora do subdesenvolvimento (crise política, social, económica e ecológica) dinâmica, que engendra,
cria e reproduz o subdesenvolvimento. A sociedade que se herdou, a estrutura política e administrativa que, inclusivamente,
os africanos ajudaram a erguer, o sistema social e económico em que os mesmos se encontravam enredados e não destruíram
com a conquista da independência, constituem elementos geradores do subdesenvolvimento e partes de um sistema
vocacionado à partida para fracassar na luta pelo desenvolvimento. A estrutura contém valores, normas, factos e criaturas que
só se justificam se compreendidos como continuidade, decorrência e corolário do passado. Em termos políticos, muitos dos
regimes saídos do processo colonial surgem como cópia e continuidade desse mesmo processo.
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
28
Apesar das vulnerabilidades, pobreza estrutural, problemas ambientais, recursos
escassos, excessiva dependência da comunidade internacional, o país soube investir na
educação e saúde, atraindo poupanças da diáspora e IDE (Investimento Direto Estrangeiro).
Porém, o problema é que este avanço parece ser um falso desenvolvimento, i.e., Cabo Verde
está longe de ganhar a sua sustentabilidade económica, continua vulnerável e dependente da
comunidade internacional. Mesmo assim, nos últimos anos, tem atraído milhares de cidadãos
dos países da África Ocidental, sendo que a grande maioria se encontra numa situação ilegal.
Muitos entram no país com base nos Protocolos da Livre Circulação entre os países da
CEDEAO.3
A procura de Cabo Verde deve-se ao facto de o país granjear de liberdade, paz social,
estabilidade política e um certo crescimento económico.4
Cabo Verde, um pequeno Estado insular, é, de acordo com a política de crédito do
Banco Africano de Desenvolvimento (BAfD), um país de rendimento médio baixo (PRMB).
O Produto Nacional Bruto (PNB) per capita cabo-verdiano, em 2010, rondou os 3.270 USD,
bem acima do patamar de 1.175 USD de PNB per capita dos PRMB. Apesar dos progressos
significativos alcançados nas últimas duas décadas, o país continua a enfrentar alguns
constrangimentos e desafios significativos ao seu desenvolvimento.
Para responder ao declínio da atividade económica, fruto da crise económica
internacional (dívida pública da zona euro), o Governo adotou um programa de investimento
público (PIP) contra-cíclico para o período 2010-2011. Como resultado, o crescimento do
Produto Interno Bruto (PIB) acelerou para os 5.4%, em 2010, abrandando posteriormente para
os 5%, em 2011. Os especialistas consideram que os estímulos fiscais compensaram a
contração do investimento privado e mantiveram um nível adequado de desenvolvimento
infraestrutural. O turismo manteve a trajetória de recuperação em 2011, mas a balança de
transações correntes continuou a deteriorar-se, sobretudo devido à subida das importações de
bens de investimento, reflexo dos estímulos fiscais governamentais. Para 2012-2013, o
cenário de base das autoridades assume uma contração da política fiscal e políticas monetárias
prudentes. O crescimento real do PIB deverá rondar os 5%, permitindo que as reservas
externas garantam acima de três meses de cobertura das importações de bens e serviços, para
salvaguardar a taxa de câmbio fixa com o euro. Neste período, a inflação deverá situar-se nos
3% abaixo dos valores registados em 2011 (4.5%).5
3 CEDEAO – Comunidade dos Países da África Ocidental (16 países). 4 PESI-2009, p. 29 5 Economic Outlook Cabo Verde 2012, p. 2.
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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Este período de alguma efervescência económico-cultural e de patologias sociais, tem
criado um senso comum, partilhado por muita gente de que os jovens de bairros pobres e
problemáticos, da capital, suscitam desconfiança, preocupações, medos. Há o temor de que
podem criar pânico social, pôr em causa a tal paz social cabo-verdiana e aumentar a
criminalidade. Esses jovens correm o risco de se transformar numa figura a quem é dada a
responsabilidade da delinquência difundida, e se esquece que a violência/delinquência juvenil
“tem um fenómeno espelho interessante, porque faz transparecer os problemas internos da
sociedade” (Nardi Sousa, 2003:23).
Sendo assim, não podia deixar de trazer para a discussão uma série de questões sobre a
problemática da delinquência/criminalidade juvenil. Muita gente, inclusive os investigadores
têm apontado fatores que se relacionam com a problemática da delinquência/criminalidade
juvenil: pobreza, desemprego, exclusão social, clivagens e desigualdades sociais, ausência de
medidas de prevenção, falhanço das políticas públicas, o fenómeno dos bairros pobres e
periféricos, acesso a armas e consumo de estupefacientes, uma certa propensão e influência
para a cultura de gangue, influência dos deportados, fragilidade do sistema jurídico, etc.
1. Pensar a juventude como construção social
Autores como Pierre Bourdieu (1983) não veem os jovens como uma unidade social,
um grupo constituído, dotado de interesses comuns, e nem relacionam esses interesses a uma
faixa etária. Não existe uma juventude, mas uma multiplicidade delas.
Entretanto, se o conceito é de difícil apreensão, não quer dizer que a juventude não
exista, de facto a categoria “juventude” enquanto objeto específico da pesquisa social decorre
da própria transformação da sociedade e dos problemas daí decorrentes. Aspectos
sociológicos, psicológicos, estatísticos, jurídicos, filosóficos e antropológicos devem ser
levados em consideração para uma melhor compreensão dessa categoria tão rica quanto
heterogénea”. A ambiguidade e a indefinição sobre o conceito de jovem seriam algumas das
características dessa situação de complexidade.
A juventude é também um estilo de vida que vai para além da definição da idade,
evocando a transgressão, o anticonformismo a procura do risco e do prazer, a omnipotência, a
irreverência, a contestação, a solidariedade e os esforços para mudar os padrões estabelecidos.
Muitas vezes, os jovens é que apresentam as novas propostas.
Muitos investigadores têm privilegiado a abordagem do conceito da juventude numa
perspectiva de comportamentos desviantes, analisando as sociabilidades e os comportamentos
dos jovens como consequência de uma fraca integração num contexto visto como
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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desorganizado. Os media tendem a passar uma imagem estigmatizada dos jovens de bairros
periféricos (guetto, gangues, droga e marginalização) que os ‘molda’ como responsáveis pelos
males sociais (insegurança, violência).
Como diz António Sérgio Spagnol (2005:277),
As notícias que geram maiores polêmicas são as de crime praticados por adolescentes oriundos
da periferia, principalmente se forem cometidos contra a classe média. Quanto mais violento,
sangrento e espetacular o crime, melhor para a mídia, pois ele funciona como um forte atrativo.
A violência, apresentada sobretudo como algo perturbador e descontrolado, pode detonar uma
crise em relação ao Estado (…), que se apressa a presentar inúmeros projetos visando á
reintrodução do jovem infrator à sociedade. (…) o papel da mídia, segundo Thompson (1999),
é provocar o medo, principalmente na classe média, insistindo que a violência é oriunda das
classes baixas. A intenção é aleardar constantemente que a violência está em todas as partes, a
todos os momentos (…)”.
É uma visão redutora da realidade que acaba por corresponder a vida e trajetórias de
vida dos jovens a patologias, transformando-os em “bodes expiatórios” e culpados pela
situação de miséria e oportunidades mal aproveitadas. Essa visão não enxerga a complexidade
e heterogeneidade da realidade juvenil, assim como da riqueza de estilos, de sociabilidades e
das manifestações culturais que os jovens criam entre si. (Raposo, 2007:7-8).
É importante compreender as dinâmicas de interação e de sociabilidade das camadas
juvenis, sobretudo no plano das representações, de forma a podermos interpretar os processos
de construção de identidades culturais e territoriais.
Outras visões limitadas consideram a juventude uma etapa obrigatória e inevitável da
vida humana, uma transição entre a infância e a vida adulta, que pode ser atribulada devido a
situações de crise e conflitos. É uma visão muito influenciada pelo darwinismo social (do
início do século XX).
Após a Segunda Guerra mundial, o jovem deixa de ser um sujeito passivo para se
tornar num sujeito ativo, um protagonista do espaço público. O Estado de Bem-Estar (Welfare
State) cria condições e possibilidades educativas e de ócio para o jovem. A liberdade juvenil
coincidiu e contribuiu para a crise da autoridade patriarcal. As indústrias culturais criaram um
mercado de consumo para os jovens, devido à sua nova liberdade económica e poder
aquisitivo. Da mesma forma, os media impulsionaram o aparecimento daquilo que muitos
autores designam de culturas e estilos juvenis transnacionais. Vários estilos surgiram após os
30 gloriosos anos de crescimento económico, no pós-Segunda Guerra: beatnicks, teddy boys,
rockers, punks e hippies. O que veio criar mais interesse na juventude como objeto de estudo.6
6 Esses estilos foram estudados em Birmingham na Inglaterra, nos anos de 1960. A Inglaterra conservadora teve de enfrentar
o novo ‘pesadelo’ criado por estas ‘contraculturas’ que indicavam uma mudança estrutural na sociedade, que punham em
causa os valores puritanos das elites burguesas. Aqui também toda esta mudança era canalizada para os jovens, considerados
‘bodes expiatórios’ (Raposo, Idem p. 28).
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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É lógico que devemos falar de juventudes e de culturas juvenis no plural, dado que
vários fatores indicam essa diversidade: a classe social, o espaço de residência, formas de
sociabilidade, etc.
Segundo Raposo, sociabilidade, como conceito, faz referência a relações sociais que se
formam independentemente de outras necessidades, orientações ou interesses (sexuais ou
culturais, residenciais ou alimentares, religiosos ou militares, económicos ou políticos), é
mais numa perspetiva relacional em se que pode verificar, em simultâneo, conteúdos
substantivos diversificados.
Quer isto dizer que nas suas interações as juventudes colocam ‘à disposição’ vários
símbolos e elementos materiais e imateriais típicas dessas culturas juvenis, onde se podem
visualizar fronteiras e espaços comuns de interação. Vários estilos se combinam: a linguagem,
as preferências musicais, a estética, a ornamentação corporal.
Com a Escola de Chicago, houve a desmistificação do desvio juvenil, através do
método de pesquisa empírica (observação participante e entrevistas qualitativas), o que levou
à transformação do espaço urbano em “laboratório de experiências”. É que Chicago recebia
anualmente centenas de milhares de imigrantes e os investigadores consideraram normal
certos comportamentos numa amálgama de culturas, com muita pobreza e marginalidade,
típicas incubadoras para a violência juvenil.
Autores como Machado Pais (1990:151), enfatizam o facto de nas Ciências Sociais
haver duas correntes principais na abordagem da juventude: i) a geracional e ii) a classista. A
diferença entre elas tem a ver com o facto de uma ser homogeneizante e outra
heterogeneizante. A corrente geracional analisa a juventude como uma fase de vida, realçando
os aspetos culturas juvenis homogéneas e valores comuns. As diferenças entre as gerações
dariam o suporte teórico para definir as culturas juvenis em termos etários. Aqui os jovens são
uma geração social em interação com o mundo. Esta conceção articula-se bem com as teorias
de socialização e das gerações.
Já a teoria classista pensa a reprodução social sob a perspetiva das classes sociais. A
juventude é vista como um conjunto social diversificado. As diferenças de classe originam
habitus7 juvenis diferentes. As relações antagónicas de classes produziriam culturas juvenis
diferentes.
7 Habitus é um sistema de disposições, modos de perceber, sentir, fazer, pensar, que nos levam a agir de determinada forma
em uma circunstância dada. As disposições não são nem mecânicas, nem determinísticas. São plásticas, flexíveis. Podem ser
fortes ou fracas. Refletem o exercício da faculdade de ser condicionável, como capacidade natural de adquirir capacidades
não-naturais, arbitrárias. São adquiridas pela interiorização das estruturas sociais. Portadoras da história individual e coletiva,
são de tal forma internalizadas que chegamos a ignorar que existem. São as rotinas corporais e mentais inconscientes, que nos
permitem agir sem pensar (Bourdieu, 2005:186-188).
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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Entre as várias terminologias para designar o estudo sobre a juventude, subcultura,
tribos urbanas e culturas juvenis, Raposo afirma que há uma certa preferência pelo termo
“culturas juvenis” por ser uma perspetiva pluralista de ver a juventude, que não menospreza
um conjunto de valores e representações atribuídos aos jovens enquanto conjunto social
etário. Ligado às culturas juvenis estão os modos de vida específicos, que expressam certas
práticas do quotidiano. 8
Por isso, vendo a juventude como algo em movimento, e para se compreender as
culturas juvenis é preciso conhecer o quotidiano dos jovens, assim como os significados,
valores e representações que dão aos vários espaços, instituições e simbologias. Não há
espaços para apriorismos.
2. População e juventude cabo-verdiana
A população de Cabo Verde tem sofrido um aumento significativo nas últimas
décadas, mantendo no entanto a sua estrutura essencialmente jovem. Os dados do Censo 2010
situam a população residente em 491.875 habitantes, sendo 49,5% do sexo masculino e 50,5
% do sexo feminino, concentrando-se a maioria no meio urbano (61,8%) contra 38,2% no
meio rural. A taxa média de crescimento anual 2000-2010 foi de 1,2%, contra 2,1% no
período anterior. A idade média dos cabo-verdianos é de 26,8 anos e a mediana, de 22 anos. A
esperança de vida é 72,7 anos (76,4 para as mulheres e 68,7 para os homens).9 A taxa bruta de
natalidade tem vindo a diminuir ao logo dos anos, passando de 29,2 por cem mil em 2000
para 25,7 em 2009, um valor ainda considerado alto (Conceição Fortes, 2011:13).
Os jovens representam uma franja significativa da população, sendo que o grupo de
idade na faixa etária entre os 0 e os 24 anos é de 267.639, ou seja, 54,4% da população do
país e 63,4% tem menos de 30 anos. Os dados mostram que a faixa etária da população entre
15-19 anos constitui a principal componente no universo da população cabo-verdiana
(59.079), sendo que os rapazes constituem a maioria (29.679) contra 29.400 raparigas. No
intervalo dos 25-29 anos, os resultados indicam a existência de 23.357 homens contra 21.002
mulheres.
O conjunto da população dos 15-29 anos é de 156.363 habitantes, o que representa
31,7% do total da população do país, sendo que destes 51,5% são do sexo masculino e 48,6%
do sexo feminino, residindo a maioria no meio urbano, com maior peso nas cidades da Praia,
Mindelo e Assomada e Sal.
8 Culturas juvenis podem ser definidas como um sistema de valores socialmente atribuídos à juventude (fase de vida) que
orientam as práticas quotidianas que exteriorizam valores institucionais e do dia-a-dia. 9 INE – Censo 2010
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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Em termos de distribuição de jovens por ilha, Santiago concentra a maioria dos jovens
de Cabo Verde (58%), seguida de São Vicente (15%) e Santo Antão com 8%.
Segundo Conceição Fortes (2011), o peso da população jovem acaba por exercer uma
forte pressão sobre os recursos e estruturas sociais do país, o que exige uma nova abordagem,
bem como novas políticas sociais focalizadas sobretudo nos campos da educação, emprego,
formação profissional e saúde. Existe ainda a população cabo-verdiana emigrada, mormente a
população juvenil residente na diáspora, que constitui uma parte integrante da nação cabo-
verdiana. Embora não se disponha de dados sobre a juventude cabo-verdiana nos países de
acolhimento, o Censo de 2010 mostra que de um total de 18.522 que emigraram nesse ano,
19,5% situava-se na faixa etária entre os 0-16 anos, 46,9 % entre 17-24 anos e 14,9 entre 25 e
34 anos.10
Por outro lado, sendo Cabo Verde um país também de imigração, muitos são os
estrangeiros residentes (2,9%) correspondentes a 14.373 pessoas, a maioria do continente
africano, incluindo os PALOP (71,7%).
A característica jovem da população alerta para a criação de novas políticas sociais
que devem visar a educação, o emprego e a formação profissional, a saúde, e inserção
socioeconómica deste grupo.
3. Revisitando o PESI-2009
Mottos como terrorismo, tráfico de droga/seres humanos/armas ligeiras, criminalidade
organizada e transnacional e ainda a questão da imigração ilegal já fazem parte do léxico (e da
consciência colectiva) dos cabo-verdianos. A questão da segurança interna parece estar
conectada com a da segurança internacional.
Em Cabo Verde é a Polícia Nacional, conforme o artigo 240º da Constituição da
República, quem tem por missão defender a legalidade democrática, prevenir a criminalidade,
garantir a segurança interna, tranquilidade pública e o exercício dos direitos civis dos
cidadãos. A noção que se tem da segurança nacional, baseia-se no artigo 242º da Constituição
da República, que estabelece o conceito da defesa nacional, como:
A disposição, integração e acção coordenadas de todas as energias e forças morais e materiais
da Nação, face a qualquer forma de ameaça ou agressão, tendo por finalidade garantir, de modo
permanente a unidade, a soberania, a integridade territorial e a independência de Cabo Verde, a
liberdade e a segurança da sua população bem como o ordenamento constitucional
democraticamente estabelecido.
A elaboração do PESI-2009 visou dotar o país de um instrumento que vai apoiasse o
Governo na implementação de um modelo misto, entre aquilo que Loic Wacquant (2000:22)
10 INE: Censo 2010 citado por C. Fortes, 2001.
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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designa de (mundialização da) tolerância zero11
e medidas de prevenção e integração. Nesta
perspetiva, o PESI-2009 definiu alguns Eixos Estratégicos de Acção, visando criar um
sistema nacional de segurança que garantisse a tranquilidade e ordem pública, destacando três
pilares fundamentais: i) Forças Policiais (Polícia Nacional e Polícia Judiciária); ii) SIR
(Sistema de Informação da República), e iii) Forças Armadas, que deverão funcionar de forma
articulada e coordenada, e poder desmantelar as redes do crime organizado.
Os eixos principais procuram destacar: a) o desenvolvimento e implementação de um
Sistema Integrado de Segurança Interna e Nacional; b) Revisão e modernização de
instrumentos legislativos e orgânicos estruturantes e participação no reforço da capacidade
institucional de segurança do país; c) Modernização ou reforma das estruturas e serviços sob
tutela do MAI (Ministério de Administração Interna); d) Reafirmação da autoridade do
Estado e reforço da segurança, em torno do princípio de que a liberdade é indissociável da
segurança dos cidadãos12
; e) Combate à criminalidade violenta e luta contra ameaças
emergentes (com base em estudos, intervenção precoce, discussão das causas, e redução da
reincidência); f) Redução da sinistralidade rodoviária; g) Dinamização e fortalecimento da
segurança cooperativa e parcerias, com particular incidência na Parceria Especial com a U.E;
h) Promoção de uma política de imigração integradora.
De todos os eixos, interessa-nos destacar o da delinquência juvenil e a sua redução.
Neste eixo (D) pode-se também realçar algumas estratégias definidas: (E.D.1.) “promover
uma abordagem multi-sectorial do fenómeno de segurança, e (E.D.2.) “colocação em prática
do modelo de policiamento pró-activo, privilegiando a prevenção e aumentando a confiança
na PN”.
Falta ainda um longo caminho a percorrer de modo que alguns objetivos imediatos e
produtos/resultados sejam alcançados. São os casos da coordenação efetiva entre as forças
policiais e o sistema judicial, no sentido de melhorar as respostas sobre questões criminais;
aumentar e melhorar as parcerias entre câmaras municipais, associações comunitárias,
associações juvenis, associações de imigrantes, instituições de solidariedade social; reduzir
práticas de comportamentos antissociais através de sensibilização dos agentes,
responsabilidade social das empresas, campanhas educativas, realização de estudos
aprofundados; prevenção e combate à delinquência juvenil; reduzir a delinquência juvenil
revendo a legislação pra o efeito, envolvendo cada vez mais as entidades públicas no combate
a realidades potenciadoras da delinquência juvenil, mormente o abandono escolar, atos de
11 Gestão policial e judicial da pobreza incómoda, a causa de incidentes e perturbações no espaço público, e portanto alimenta
um sentimento difuso de insegurança, ou simplesmente de mal-estar tenaz e de incongruência. 12 Itálico nosso.
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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vandalismo, presença de menores desacompanhados de adulto na via pública ou em locais de
diversão a horas noturnas, assim como normas que visem a implementação de mecanismos de
justiça restaurativa; levar a polícia a mudar de postura e práticas, reforçando o diálogo e ações
preventivas com as comunidades e suas organizações, envolvendo a comunidade na luta
contra a criminalidade.
Parece haver uma intenção de superar a ‘tolerância zero’, trabalhando,
preventivamente, mais perto das comunidades, Escola, Igrejas, etc., numa visão mais holista
do problema, de forma a não pôr em causa a visão do PESI-2009 que é «Instituir um sistema
de segurança interna integrado, articulado e cooperativo para manter Cabo Verde como um
dos países mais seguros do mundo com base em padrões mais elevados de segurança
interna».
Caso os implementadores do PESI-2009 não levarem em conta todo o trabalho que
está a ser feito nos bairros/comunidades, aquilo que designo de agendas periféricas de
intervenção, reconhecendo os curricula social dos jovens, todo esse esforço poderá ter um
efeito limitado. Nota-se que a partir de 2012 essas agendas começaram a ter um um impacto
positivo na diminuição da violência e na restauração de um clima de paz e confiança.13
4. Sobre a evolução do quadro de segurança interna em Cabo Verde
O PESI-2009 foi confrontado com uma realidade nova, que se traduz no surgimento e
intensificação de novos tipos criminais, no envolvimento de muitos jovens em actividades
ilícitas e no incremento de um clima de insegurança. A articulação entre as forças policiais
(PN e PJ, o SIR – Sistema de Informações da República) e as Forças Armadas visa melhorar o
sistema de coordenação e articulação dessas forças, de forma a desmantelar redes de crime
organizado e reforço da segurança nacional. Isto tem levado o Governo a modernizar as forças
e serviços de segurança, adaptar os instrumentos legais aplicáveis, capacitar os recursos
humanos, combater a criminalidade organizada e transnacional, investir na segurança
aeroportuária, portuária, marítima, prisional, prevenção do terrorismo, gestão da imigração
ilegal. Parece-nos que a modernização dos serviços de segurança tem consumido mais
recursos que a prevenção da criminalidade; recursos que poderiam ser utilizados para
investigação nos bairros desfavorecidos, no reforço da participação e da democracia
comunitária.
13 Defino Curriculum Social como intervenção comunitária dos jovens dos bairros periféricos com base numa agenda própria
(formação, cultura, apoio escolar, atividades tempos livres, artesanato, desporto, etc), com ou sem diplomas, sendo que a
maioria não os têm, estando, muitas vezes longe das agendas públicas e dos media. Essas agendas periféricas têm dado uma
grande contribuição na resolução dos problemas, mormente da violência juvenil, devido a um trabalho positivo de
consciencialização e pacificação dos jovens de bairros pobres.
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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Quadro 1 - Evolução do conceito e práticas de segurança interna em Cabo Verde
Ano Iniciativa
Início anos de
1980
Coexistência da POP (Polícia de Ordem Pública) e Segurança do Estado (protecção dos
dirigentes), a Direcção Nacional de Segurança e Ordem Pública (DNSOP) que dependia do
Ministério da Defesa e Segurança Nacional.
Pós-
Independência
A Guarda Fiscal foi integrada no Ministério das Finanças e a PMar (Polícia Marítima) no
Ministério de Agricultura e Pescas
1981
Após o golpe de Estado na Guiné-Bissau, surge o Ministério do Interior, departamento
governamental que passou a controlar a POP e a Segurança do Estado, denominando-se
Forças de Segurança e Ordem Pública (FSOP).
Meados anos
1980
Passou a Ministério das Forças Armadas e Segurança. Em 1991 passou a ser Ministério da
Administração Interna (regime democrático multipartidário).
Segunda
República
A POP foi tutelada pela Secretaria do Estado, e foi criado o Sistema de Informações da
República (Lei nº 70/VI/05).
1993 Foi criada a Polícia Judiciária (PJ), dependente do Ministério da Justiça.
1996
O Decreto-Lei nº15/96, de 20 de Maio, cria o Conselho Nacional de Segurança (CONSEG),
órgão consultivo de coordenação e articulação na organização do sistema nacional de
segurança.
2005 Cria-se a Polícia Nacional (PN)
14, o Serviço Nacional de Protecção Civil e a Direcção-Geral
dos Transportes rodoviários, sob a dependência do MAI.
27 Junho 2005 Aprovada a Lei nº70/VI/2005 que cria o Sistema de Informações da República (não
confundir com Serviços de Informação da República –SIR).
2008 Criação do BIC (Brigada de Investigação Criminal) e o BAC (Brigada Anti-Crime), no
sentido de combater os grupos considerados thugs.
2012 Criação de um Corpo Especial da Polícia (em motorizada) com apoio de Angola.
Fonte: PESI-2009, p.15.
O país, com todo este aparato, parece não dispor ainda de um verdadeiro sistema de
segurança. Observa-se mais tecnologias e força, como diria Foucault em Vigiar e Punir
(1999:5) «O castigo passou de uma arte das sensações insuportáveis a uma economia dos
direitos suspensos».15
Segundo Michel Foucault:
Prisão e polícia formam um dispositivo geminado; sozinhas elas realizam em todo o campo das
ilegalidades a diferenciação, o isolamento e a utilização de uma delinquência. Nas ilegalidades,
o sistema polícia-prisão corresponde a uma delinquência manejável. Esta, com sua
especificidade, é um efeito do sistema; mas torna-se também uma engrenagem e um
instrumento daquele. De maneira que se deveria falar de um conjunto cujos três termos
(polícia-prisão-delinquência) se apoiam uns sobre os outros e formam um circuito que nunca é
interrompido. A vigilância policial fornece à prisão os infratores que esta transforma em
delinquentes, alvo e auxiliares dos controles policiais que regularmente mandam alguns deles
de volta à prisão.
5. Contribuições socio-antropológicas para o debate
Até que ponto a abordagem que se tem utilizado em Cabo Verde na prevenção e
combate à criminalidade, sobretudo, a juvenil, é conservadora/funcionalista? Se assim for, faz
sentido então recorrer a Roy Wagner (1974:96) que defende, assim como uma boa parte de
14 A criação da PN visou reforçar a capacidade operacional e racionalizar os recursos materiais e humanos, com mais
coordenação e articulação entre as partes. 15 Idem p. 301.
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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cientistas sociais, que Durkheim influenciou em muitos aspectos o legado da antropologia
social, quando procurou compreender a moral social/colectiva, aquilo que une as pessoas e faz
uma sociedade sentir-se ‘coesa’. Durkheim fundou a ciência da integração, o que leva as
pessoas a se associarem. Esta questão de integração foi a base natural em que se fundou a
Antropologia. Durkheim é considerado o pai do funcionalismo clássico (perspetiva que
influenciou autores como Radcliffe-Brown). Ele está mais preocupado em conhecer ou
explicar como funciona as instituições e como conseguem manter uma sociedade unida.
Em Cabo Verde, os políticos e alguns investigadores, assim como os media têm
seguido esta linha de análise que tende a ver os conflitos sociais (criminalidade incluída)
como patologia, anomia e não como necessidade de renegociação permanente do poder entre
grupos, ou seja, não se dá importância às funções sociais do conflito numa perspectiva que
Lewis Coser nos habituou, como evolução da mudança social. A perspectiva conservadora
tem pautado por revelar os músculos e aparato policiais (tolerância zero).
Lewis Coser (1956:151) reconhece que o objeto principal do seu estudo se prende
mais com as funções do que com as disfunções do conflito social. O autor sente que o
conflito, longe de ser um fator meramente negativo, pode cumprir uma série de funções
sociais determinantes. É uma forma de socialização”, nenhum grupo pode ser completamente
harmonioso, o que equivaleria a ser destituído de dinâmica e de estrutura. Os grupos requerem
tanto a harmonia como a desarmonia, a associação quanto a dissociação. Nestas condições, o
conflito dentro dum grupo pode ajudar a estabelecer ou restabelecer a unidade e coesão onde e
quando tenham sido ameaçadas por sentimentos hostis ou antagonistas entre os seus
membros. É evidente que nem todos os tipos de conflito beneficiam a estrutura do grupo, o
que depende das razões que os determinam bem como do tipo de sociedade em que ocorrem.16
Coser considera ainda os conflitos classificáveis em dois grandes grupos quanto aos
seus objectivos: realistas e não realistas. São realistas aqueles que pretendem atingir
resultados concretos, não tendo os contendores qualquer interesse em prossegui-los uma vez
que os mesmos tenham sido alcançados. Os não realistas, por outro lado, decorrem da
existência de tensões que têm que ser libertadas, são um fim em si mesmos e assim apenas
dispõem de alternativas funcionais quanto à escolha dos antagonistas.17
De notar, entretanto, que as referidas associações de indivíduos ou coligações de
grupos resistem normalmente a outras formas de unificação, prolongando desse modo a sua
16 O conflito social será provisoriamente tomado como significando uma luta por valores e reclamação por “status”, poder ou
recursos escassos, em que os objetivos dos oponentes são neutralizar, ferir ou eliminar os seus rivais. As atitudes hostis são
apenas uma predisposição para entrar em conflito enquanto este, ao contrário, é sempre uma transação. 17 Coser op cit, p. 156.
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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vigência como mecanismo dinâmico de regulação social. Pode ainda acrescentar-se que a
multiplicidade dos conflitos está na razão inversa da sua intensidade. A frequência com que os
mais diversos líderes fomentam conflitos artificiais com grupos exteriores corresponde
exactamente a uma procura de unidade no seio do próprio grupo. As inimizades e
antagonismos recíprocos padronizados conservam, por outro lado, as divisões sociais e os
sistemas de estratificação, evitando o gradual desaparecimento das fronteiras entre os
subgrupos do sistema social e atribuindo-lhes dentro de tal sistema a posição que lhes
compete. Coser considera também que a frequência de ocasiões para o conflito varia no
mesmo sentido do grau de estreitamento de relações.
Mas, quaisquer que sejam os objectivos das partes em conflito, o poder, que Coser
define como a oportunidade de influenciar o comportamento dos outros de acordo com o
nosso próprio desejo, são necessários para a sua concretização. Como o conflito consiste num
teste de poder entre as partes antagónicas, a acomodação entre elas apenas é possível se cada
uma estiver ciente da sua força relativa, mas tal conhecimento, na maior parte das vezes,
apenas pode ocorrer através do próprio conflito (idem p.121).
Coser sublinha que o próprio acto de entrar em conflito, significa que tenha sido
estabelecida uma relação com a outra parte. O conflito para Coser traz consigo a necessidade
de aplicação de regras que, na sua ausência, poderiam ficar adormecidas.
6. Contribuições teóricas recentes sobre violência juvenil em Cabo Verde
Kátia Cardoso e Sílvia Roque (2008:5), relacionam a violência dos jovens na Cidade
da Praia, numa fase inicial, ao repatriamento dos jovens emigrantes cabo-verdianos expulsos,
que cometeram crimes nos Estados Unidos de América.
Vão mais longe ainda, procurando também relacionar a questão da violência com as
identidades construídas e estimuladas, assim como compreender os mecanismos de controlo
social. Neste sentido, procuram perceber se existem oportunidades de superação da condição
de marginalização: estratégias individuais (emigração, economia informal, prostituição) ou
colectivas (remessas de familiares no estrangeiro ou apoio de familiares alargados).
Para elas, é evidente que uma urbanização descontrolada pode levar à anomia social, o
que permite o surgimento de gangues. Neste processo, a própria estigmatização dos jovens faz
com que assumem estereótipos e rótulos e agir de acordo com eles. Realçam três aspectos que
têm a ver com a formação de gangues como modelos de inserção e coesão comunitária: (i) a
questão da masculinidade como forma de obter bens, dinheiro, respeito e mulheres (que pode
ser violento ou não); (ii) a questão da globalização como (mecanismo) e mercado de obtenção
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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de armas ligeiras e drogas (via marítima e aérea); (iii) e uma pobre abordagem da violência
em Cabo Verde, feita pelos media de forma superficial e enviesada.
Lorenzo Bordonaro (2010:170), tem tido uma postura mais crítica em relação à forma
como o Governo de Cabo Verde vem lidando com a questão da violência juvenil. Defende
que as medidas repressivas têm sido a via que Cabo Verde tem usado para enfrentar o
fenómeno da delinquência juvenil. A ideia subjacente do autor é que os jovens envolvidos na
criminalidade não aceitam passivamente a sua vitimização estrutural. Estes envolvem-se,
orgulhosamente18 na economia subterrânea e na cultura de rua.
O autor defende ainda que «esses jovens e crianças desses bairros são alvo de
agências sociais do governo, e da repressão violenta das forças policiais e repressivas do
Estado». Recorrendo aos dados do INE, o autor, identifica e bem o desemprego como um
problema muito sério em Cabo Verde:
A situação da população juvenil nas áreas urbanas é, de facto, particularmente crítica. As taxas
de desemprego nas áreas urbanas são assustadoras, chegando a um valor de 57% entre os
indivíduos do sexo masculino com 15 a 24 anos (Bordonaro, 2010:171).
Em Cabo Verde, a questão dos dados estatísticos parecem ter criado certas confusões
na produção/interpretação dos mesmos. Quando confrontamos os dados do INE (2007)
utilizados por Bordonaro e os usados pelo PESI (2009), que diz que «Em 2008, a taxa de
desemprego era considerada de 17,8%, sendo que 31% dos desempregados são jovens (15-24
anos)»19 fica-se com algum ‘receio’ na utilização dos dados estatísticos. Os dados recentes do
INE (2013) apontam para 27% a taxa de desemprego jovem.
Fonte: INE (2012).
18 Itálico nosso. O autor quase que entra em contradição quando afirma que os jovens abraçam ‘orgulhosamente’ esse modus
vivendi marginal, porque procuram fugir à sua marginalização. Na nossa perspetiva, esse ‘orgulho’, por falta de alternativas,
com o tempo pode se transformar em habitus criminal, que será difícil fazer desaparecer. 19 Ver PESI-2009, p. 21.
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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Outra questão que o autor deve estar atento tem a ver com uma certa ‘generalização’,
quando lê o continente africano numa perspectiva horizontal com base em estudos vários:
Nas áreas urbanas em todo o continente, os jovens parecem constrangidos a permanecer
jovens (dependentes, carentes, celibatários) com dificuldades no acesso a salários, ao
casamento ou a uma residência autónoma, numa situação (…) de moratória social (idem
p172).20
O autor, com base em dados recolhidos na Cadeia Central da Praia, diz-nos por
exemplo, que muitos jovens aprendem mais sobre o crime quando entram na prisão. Para
além disso, os jovens têm uma perceção de que em Cabo Verde, o modus operandi para
combater/resolver o problema da criminalidade é mete-los na prisão. As prisões para além de
não servir para melhorar pedagogicamente’ o delituoso, acaba por dar azo à aquisição de
novos vícios e acesso à droga, mantendo a toxicodependência. Como diz, existe uma ligação
entre pequenos crimes e consumo de drogas: «Na verdade, os jovens criminosos são, na sua
maioria, toxicodependentes».21
Para o autor, o acesso a símbolos materiais definidores de status e o anseio por uma
certa mobilidade social ascendente, e a percepção que possuem de que é difícil ter acesso ao
poder e privilégio, assim como a pobreza e miséria, são os motores para o consumo de droga e
aumento da criminalidade em Cabo Verde:
O crime, a violência, os flashes da cocaína são, (mais do que satisfação das necessidades
básicas), instrumentos para aumentar o seu poder, a sua presença social, para ampliar o seu self
e proclamar a sua identidade (…) são instrumentos daquele empoderamento (social, pessoal,
económico) que ambicionam e que teriam dificuldades em alcançar de outra forma (Bordonaro,
2010:177).
Discordo em parte do autor, apesar de reconhecer que muitos jovens têm dificuldades
em ter acesso a tudo o que desejam e que são penalizados pela sua origem social. Porém, o
autor continua a generalizar e não se apercebe que grande parte dos cabo-verdianos sempre
teve grandes dificuldades na vida. Se essa visão fosse a norma, a maioria dos jovens cabo-
verdianos enveredaria para o consumo de droga e criminalidade, e deixaria de ver a escola
como um dos pilares para uma certa mobilidade social ascendente. O problema transcende
esta visão meio redutora do fenómeno. Seria interessante que o autor abordasse a questão da
responsabilidade pessoal e social. É que os jovens como seres reflexivos têm a capacidade de
fazer opções. E cada opção acarreta consequências.
20 Convém salientar que a situação de Cabo Verde, apesar de problemática, não é comparável à da Guiné-Bissau. Também é
bom lembrar que na Europa, países como Itália, Espanha, Portugal, o desemprego tem estado acima dos 17%. No caso da
Itália, nos últimos 4 anos, emigraram cerca de 1 milhão de jovens e quadros (Brain Drain). E desse um milhão de novos
emigrantes, 1,3% está em África (Vide artigo de Vladmiro Polchi, “Gli italiani continuano a emigrare un milione in fuga
negli ultimi 4 anni” no Jornal La Repubblica de 2 de Dezembro de 2010). 21 Bordonaro, op cit, p. 175.
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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Contudo, o autor parece querer resolver esse problema, dizendo que esses actos
etiquetados como violentos e realizados pelos jovens em Cabo Verde, são actos produtores de
significados, que reconstroem e reordenam o mundo social e a posição do actor nele,
procurando articular-se com a estrutura.
Bordonaro considera que a polícia ainda não aprendeu a lidar com o fenómeno da
delinquência juvenil, o que traz uma tripla pressão: i) da parte dos jovens, combater o crime e
fazer a prevenção; ii) do lado da sociedade (ineficácia e morosidade e insatisfação pelos
serviços prestados); iii) e da parte do governo, dar resposta e serenidade à sociedade. Esta
incapacidade e pressão têm levado a polícia a cometer actos de violação dos direitos humanos
desses jovens (feridas, cicatrizes, espancamento, etc.). Diz e bem que a atitude do sistema
prisional em Cabo Verde é punitiva (pouca reabilitação, formação profissional e educação). A
prisão é punição pelo crime que cometeu. São espaços sem condições, sobrelotados (idem
p184).
Outro trabalho recente sobre este fenómeno em análise é o de Redy Lima (2010:194).
O autor refuta com convicção a ideia de que a escola e a família não têm peso nessa ‘crise’
actual da juventude cabo-verdiana. É pouco claro quando considera os anos de 1990 como a
década de libertação juvenil e da consolidação da visão da camada juvenil, como sendo uma
categoria social mais problemática, e ainda o ano das políticas públicas para esse segmento.
Não diz que tipo de liberdades e políticas públicas foram ‘inventadas’. Considera os jovens de
bairros periféricos:
(…) desafiliados ou em processo de desafiliação, expostos a uma série de situações
discriminatórias, em parte, por habitarem esses bairros – bairros estigmatizados e
criminalizados (…) o conceito casteliano de desafiliação para designar um conjunto de
indivíduos entregues a si próprios (…) em situação de pobreza, falta de emprego, sociabilidade
restrita, riscos (…) em condição de vulnerabilidade.
Consideramos que esses jovens não são discriminados por pertencerem/viverem
nesses bairros, mas pelo facto de terem começado a praticar um tipo de violência que vai
crescendo e tomando proporções preocupantes, mesmo para os habitantes desses bairros
miseráveis. É um tipo de violência quase sádica que prejudica os próprios moradores e não é
praticada somente contra os centros. Quem mais sofre violência são os grupos de pares e
moradores dos bairros.
Ao tentar condenar o papel da escola em Cabo Verde, o autor, talvez sem querer, vê a
escola cabo-verdiana como um instrumento e representação das classes dominantes. Na nossa
perspetiva, durante muito tempo a escola tem sido mais democrática que o sistema político
implementado em 1991. A escola em Cabo Verde, bem ou mal, tem sido um dos principais
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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agentes que tem permitido a mobilidade social ascendente de uma boa parte da juventude
cabo-verdiana, dotando-lhes de competências e ferramentas necessárias.22 A escola não é vista
como prisão, muito pelo contrário, tem servido como libertação da prisão, uma janela para o
mundo, e não um espaço de violência simbólica e física tout court. Este cenário aplica-se mais
nos casos da diáspora cabo-verdiana na Europa e nos Estados Unidos. O abandono escolar
não se deve à fuga por causa da violência simbólica e física, mas a vários factores (pobreza,
vulnerabilidades, desemprego, trabalho infantil, desresponsabilização familiar/paterna. etc).
Os jovens não são discriminados somente pelo facto de pertencerem aos bairros
miseráveis, aquilo que denomino de societas miserabilis23, mas sim pelo facto de praticarem
atividades delituosas, que têm deixado marcas profundas nas comunidades e nos corpos dos
seus habitantes (feridas por bala, faca, pancadas, etc).
Consideramos que a violência tem vindo a assumir algumas características para certos
jovens que vivem este fenómeno de mal-estar juvenil: i) Violência (gratuita) como
afirmação de identidade e legitimação do poder (Existir como indivíduo/grupo e pôr em
prática o estilo de vida. Neste sentido, tudo o que põe em causa este desiderato e status pode
levar à violência com grupos/bairros rivais, polícia, símbolos do Estado, etc.); ii) Violência
como afirmação da Masculinidade (Ethos guerreiro, ser duro, macho, impressionar as
raparigas pela coragem, bravura e disposições corporais - tatuagens, músculos); iii) Violência
como moda e virada para o Consumo (Cultura do imediato, dinheiro, festa, hedonismo,
consumismo, prazer através dos produtos da indústria cultural).
Outra reflexão interessante sobre a violência juvenil em Cabo Verde é a do sociólogo
João José Tavares Monteiro (2010). O autor, um pouco à Foucault24, procura fazer uma
genealogia desse processo. Esta investigação para além de inovadora, interactiva e intensa,
usa a metodologia de análise de conteúdo para estudar as representações negativas nos jornais
Voz Di Povo (de 1986-1990), A Semana e Expresso das Ilhas (de 1999 a 2006). Para além dos
jornais, o autor analisou também as letras musicais (rap), estudou/conviveu (com) dois grupos
rivais dos bairros de Achada Grande Frente e Lém-Ferreira, com idade compreendida entre os
16 e 24 anos, durante mais de 12 meses.
22 Não podemos esquecer a merenda escolar que permitiu que a maioria dos jovens tivesse uma refeição quente; do ICASE
(FICASE), etc. Como país de fracos recursos, a educação tem sido, a par com a saúde, duas grandes apostas ganhas por Cabo
Verde. 23 Societas misarabilis «(…) as pessoas vivem de uma forma desumana, (…) barracas construídas à pressa, sem acabamento,
fedores, ruas sujas, animais com mau aspecto, crianças ‘mal educadas’, ‘violentas’, brincando constantemente em porcarias;
uma degradação humana, onde o ambiente envolvente tenta erradicar a própria dignidade humana. (Nardi Sousa, 2003:23). 24 No papel de um arqueólogo do saber com maior interesse nas práticas/camadas discursivas que dão origem a um tipo de
saber numa determinada época (Ver Arqueologia do Saber, pp 158-159).
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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Tavares Monteiro considera que o fenómeno thug se enquadra num conjunto de
processos sociais que se desenvolveram na sociedade praiense e que se estruturaram, com
forte influência mediática, a partir do ano de 2004, criando pânico social, e transformando-se
num problema social, político e sociológico (com representações positivas e negativas). Se
por um lado, procura compreender se as representações sociais positivas do fenómeno thug,
mediadas pelas influências da cultura hip hop, e pela valorização da mesma por uma parte da
camada juvenil feminina, reforçaram a adesão de muitos jovens a este movimento; por outro
lado, foca no papel dos media (sobretudo a imprensa escrita), que, juntamente com a Escola,
criou representações sociais negativas com base na estigmatização, marginalização e
condenação desses jovens, ‘contribuindo’, com essa exclusão, para a coesão de muitos jovens
de bairros desfavorecidos a este movimento
Esta imagem negativa criada pelos media, para além de ter provocado coesão (dos
jovens) e pânico social, deu azo à (re) pressão policial sobre os jovens, criada e forjada
‘negativamente’, recalcada através da música beef, pode ter reforçado a falsa identidade thug.
Isto tem vindo a reforçar a coesão do grupo, que se verifica através do grau de lealdade,
competição e rivalidade, ‘espírito’ de vingança e tentativa de protecção dos grupos (João
Monteiro, 2010:28).
7. Sobre a problemática juvenil
Não há dúvidas que se está a dar uma certa propensão de crianças e
adolescentes/jovens à criminalidade e violência. Alguns autores consideram que as situações
de maiores riscos estão estritamente associados à precariedade socioeconómica. Tanto nos
problemas da pequena infância, das crianças em risco no mundo do trabalho, das crianças em
situação de risco na rua, como na exploração sexual e maus tratos. Verificam-se dificuldades
tanto da família, da comunidade, assim como do sistema escolar em reter de forma protectora
as crianças oriundas de famílias seriamente atingidas pela pobreza. (J. C. Anjos e F.
Rodrigues, 2009:7).
Nesse estudo, a principal preocupação das crianças e adolescentes reunidos é com
recrudescimento da violência juvenil:
A emergência de um ethos que associa violência, honra e identidades territoriais, transforma os
bairros da capital em fortificações visíveis e intransponíveis apenas para os jovens que
mergulham nessa cultura de rua. Num espaço geográfico relativamente pequeno a livre
circulação dos adolescentes que vivem em situação de rua se vê hoje seriamente prejudicada.
Um regime de codificação de acessos bloqueia passagens e torna perigosa a circulação pelos
bairros periféricos da capital. A formação de gangues e o uso de armas de fogo (geralmente de
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
44
fabricação artesanal) transformou a capital do país no palco de uma cultura juvenil da violência
em meio a uma expansão das redes do narcotráfico.25
Segundo os autores, entre os adolescentes existe um certo pessimismo generalizado
em relação às possibilidades de controlo da violência crescente. Entre as crianças em situação
de rua é percetível uma auto-culpabilização e uma projeção pessimista em relação ao futuro
de modo geral. A violência policial, a falta de equipamentos que ofereçam alternativas aos
atrativos das ruas e a inconsistência ou ausência de propostas de formação profissional podem
ser percebidos como factores subjacentes a essas perspectivas negativas. Na rua, essas
crianças e adolescentes deparam-se com um quotidiano que associa exposição ao abuso e
exploração sexual e violência.
A nossa reflexão sobre o mal-estar da juventude começou a partir de 1997 nos bairros
de Lisboa e Amadora, sobretudo Venda Nova, Fontaínhas, Estrela de África, Buraca,
mormente em 2002, ao trabalhar no Programa Escolhas, do Governo português, programa de
Prevenção da Criminalidade e Inserção dos Jovens dos Bairros Vulneráveis dos Distritos de
Lisboa, Porto e Setúbal.26
Nessa altura, já chamava atenção que cidades com forte segregação urbana e
residencial e as más políticas de realojamento poderiam aumentar os problemas de
marginalização e criminalidade (Nardi Sousa, 2002:163-164):
Esses lugares onde só existem pobreza funcional, casas degradadas, equipamentos
insuficientes, delinquência, crime, desemprego, fraca mobilidade, pouca informação, insucesso
escolar, não convém menosprezar o desenvolvimento do partenariado e da solidariedade que
conduzem à integração e congregação. A participação de todos é uma força determinante não
só na preservação da herança como na rejeição de projectos que não respeitam essa lógica.
O estudo dos jovens nos bairros degradados ou periféricos, ou em locais que os
próprios jovens chamam de gueto, é de extrema importância. Loic Wacquant (2002), já dizia
que as ciências sociais falharam por não terem desenvolvido um conceito analítico e robusto
de gueto, e que em vez disso contentaram-se em emprestar um conceito folclórico aos
discursos político e popular de cada época. Isso gerou confusão e o gueto passou a ser visto
como um espaço segregado, uma comunidade etnicamente homogénea, um território de
grande pobreza ou de casas abarracadas, onde existe o mito/crescimento de uma ‘underclass’,
uma mera acumulação de patologias urbanas e comportamentos antissociais.
O gueto, na perspetiva do autor, é uma invenção socio-espacial que permite que um
grupo dominante da área urbana oprima e explore simultaneamente um grupo subordinado
25 Anjos et all op cit, p. 35. 26 Resolução do Conselho de Ministros nº 4/2001 – Governo Português.
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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caracterizado por um capital simbólico negativo. Neste sentido, verifica-se uma relação de
controlo etno-racial e de fechamento construído por quatro elementos: (i) estigma; ii)
constrangimento; (iii) fronteiras territoriais; (iv) fechamento institucional. Surge um espaço
distinto, com uma população banida, com estilos de vida e estratégias específicas. O gueto
torna-se numa prisão que alberga uma categoria desonrada com oportunidades limitadas para
os seus membros.
Muitas vezes, as populações dos bairros fingem que ignoram o que lhes tenta camuflar.
Bloqueados, paralisados por este décalage entre o ressentido e o que projectam para o exterior,
não tardam em desenvolver uma raiva surda, sufocada (…) até uma certa agressividade. Uma
frustração que os conduz inexoravelmente em direcção a um estado de insatisfação
permanente, tornando-os vulneráveis. (…) é assim que se instala o mal-estar. As pessoas
chegam à conclusão que de que se vive em duas velocidades, dado que o todo o pensamento de
outros lhes escapam e que os delas são estranhos aos outros. Nesta caça, onde a classe
dominante é sempre o caçador, os oprimidos contentem-se com o papel de presas. (…)
desenvolvem, muitas vezes, uma contracultura oposta à erudita e passam da lógica académica à
comercial em que o lazer se torna num produto a consumir(…)».27
Os jovens que habitam os bairros degradados, ou guetos, podem se transformar em
presas fáceis da delinquência juvenil, do tráfico de droga e do consumismo desenfreado.
Nesses bairros existem poucas ofertas de participação, de formação profissional adequada que
colmate o défice crónico de cidadania, de socialização académica e problemas familiares.
À semelhança do que aconteceu com os bairros de imigrantes cabo-verdianos no início
do ano 2000, os bairros desfavorecidos poderão se transformar em ‘corredores’ ou a ponte
com a prisão. Esses jovens correm o risco de deixarem a escola e ir parar à prisão.
Muitos desses jovens, pertencentes a estas famílias, encontram-se numa trama de
relações que fazem brotar um húmus propício para a aventura da delinquência juvenil,
decorrente de uma certa fragilização da autoridade e de ambivalência dos referenciais de
conduta e identidade, conforme um estudo sobre Jovens em Conflito com a Lei, que inquiriu
cerca de 101 jovens na tentativa de elucidar a problemática da conflitualidade dos jovens com
a lei e na adopção de medidas e estratégias apropriadas e aptas a possibilitar uma intervenção
articulada (Gabriel Fernandes e José P. Delgado, 2008:81):
Quando questionados sobre a razão da infracção, 40% dos inquiridos responderam
“influência”, 5,7% alegaram “efeito da droga” e 11,4%, “brio de corpo”. Da mesma forma,
quanto aos motivos de agressão, 30,8% responderam “a mando de amigos”, 7,7%, a mando de
alguém, 7,7%, para exibir perante os outros e 15,4%, por prazer/diversão. Dados enfatizam o
facto de que a vivência social dos jovens em conflito com a lei tende a decorrer na rua, um
espaço alternativo ao lar, e que garante pão, aprendizado e castigo. A droga desponta como o
principal factor de encaminhamento dos jovens para o delito, tendo sido apontado como móbil
por 87,3% dos jovens do grupo dos 16 aos 21 anos. Os delitos de maior ocorrência são: roubo,
furto e assalto, cerca de 80%, homicídio, cerca de 14%, e tráfico de drogas, cerca de 6,5%.
27 Nardi Sousa, 2003, p. 160.
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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Caso os jovens assumirem um ethos/praxis e criminalidade e atos delituosos como
forma de interação com a sociedade podem cair no aforismo de William Thomas da Escola de
Chicago (década de 20 do século passado) «Se as pessoas definem a situação como real, ela
será real nas suas consequências».
Alguns autores são de opinião que nos bairros periféricos da Praia, grupos “semi-
organizados” de jovens proliferaram-se, os denominados “thugs”, “grupos” rivais que se
confrontam, resultando, algumas vezes, em morte prematura (Tavares Monteiro, 20010:39):
São jovens desempregados, que usam drogas leves, de famílias monoparentais,
‘enclausurados’, expulsos da escola, sem projecto de vida. Esses jovens têm uma opinião muito
negativa sobre a polícia (considerada como ladrões, bandidos, torturadores, mentirosos,
corruptos, etc). A partir do ano de 2008, começam a denunciar os abusos e maus-tratos sofridos
nas mãos dos polícias. Já não são vistos somente como delinquentes, são também vítimas.
Muitos são reincidentes.
8. Revisão do conceito/Genealogia Thug
Parece que em Setembro de 2009, segundo um inquérito do Ministério de Justiça,
havia na Cadeia Central da Praia cerca de 127 jovens dos 16 a 21 anos de vários bairros da
cidade. Consta que nos anos de 2005 e 2006, os jovens nessa faixa etária foram parar em
massa à prisão, tentando reorganizar-se no interior da mesma.
Tavares Monteiro ao querer ‘desenhar’ a génese e trajetória thug, acabou por cair um
pouco na armadilha da concetualização inglesa da palavra thug, assumida pela Standard
Dictionary of the English Language de 1962, como uma forma de organização religiosa,
assassinos profissionais do norte da Índia. Porém, consegue fugir dessa definição, dado que
também vê o fenómeno como moda (forma de ser e estar na sociedade, valorizada por jovens
que adoptaram a subcultura hip hop), e ainda “como comportamentos antissociais
(delinquência juvenil). Vê os thugs como um movimento que congrega expressões de novas
identidades juvenis que acompanham as dinâmicas sociais globais e locais:
Aos poucos foi associado às representações sociais dos crimes kasubodi aos repatriados dos
EUA, até tomar a dimensão dum fenómeno propriamente sociológico. (…) Com efeito, através
de uma imagem estereotipada, estes ‘grupos juvenis» emergentes ficaram a ser conhecidos nos
meios jornalísticos como jovens delinquentes em conflito com a lei, entre outras expressões até
a designação do termo “thug”. (João Monteiro, 2010: 11-12).
O termo thug passou a ser visto não como símbolo de delinquência juvenil, mas
também como um estilo de vida com características específicas. Receberam o rótulo de
delinquentes, antissociais e incapazes, vêm violados os seus direitos de cidadania (falta de
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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oportunidades e barreiras para o desenvolvimento pessoal e humano), reagem negativamente,
ocultando as suas competências (positivas) que poderiam disponibilizar à sociedade.
Pode-se considerar que os media, a partir de 2004, ajudaram na adesão e coesão de
jovens masculinos, da maioria dos bairros degradados da Praia, a grupos rebeldes e
‘americanizados’ (que se encontravam na fronteira entre a permanência e o abandono
escolar). É a partir dos anos 2006 e 2007, que este fenómeno sociológico ganhou contornos
preocupantes, transformando-se numa questão social e política.
Tavares Monteiro considera ainda que os deportados encabeçaram os primeiros grupos
thugs, verificando-se paulatinamente a adesão dos jovens dos bairros pobres. No início, esses
jovens faziam assaltos (kasu bodi) fora dos seus bairros, em todas as zonas da cidade da Praia,
para obter algum dinheiro para casa e para diversões noturnas. Com o tempo, esta praxis
propagou-se, levando a maior adesão e coesão para uma melhor proteção e controlo do
território de pertença (autodefesa) contra grupos rivais. O que provocou “enclausuramento”
dos jovens nos bairros (limitação de circulação), daí o aumento de conflitos entre bairros, com
as suas regras próprias de grupos (defesa/proteção/controlo do território/impedimento de
assaltos/invasão de grupos rivais na área de residência), o que aumentou a proliferação de
armas de fogo e intensificação dos conflitos. O enclausuramento e rivalidades, assim como os
assaltos, criaram ambiente para o surgimento de primeiros homicídios entre grupos rivais.
E é nesse período que os novos-entrantes, jovens com idade compreendida entre os 16
e 24 anos de idade (que frequentavam entre a 6ª classe e o 12º ano), procuram criar novas
formas de sociabilidade. Os conflitos rivais obrigam muitos a abandonar as escolas,
bloqueando a trajetória académica, adiando perspetivas profissionais, fazendo com que os
jovens vagueiam pelos bairros que não oferecem nenhuma alternativa para a ocupação dos
tempos livres. Dessa forma, esses jovens criam e recriam (des) ordem social periférica com
base nas suas próprias leis e valores simbólicos, onde as instituições como a família ou o
Estado, entre outras, tendem a perder significado. É assim que o hedonismo, o imediatismo
tout court, assim como o sexo, o álcool e as drogas se tornaram comum entre os grupos,
provocando depressão, processos judiciais, inimigos, tristeza às famílias das vítimas, pressão
social, estigma, assim como o consumo de droga, tiroteios nos bairros, kasu bodi, ajustes de
conta, extorsão, vingança, torturas de grupos sobre indivíduos:
O trabalho de pesquisa de João Tavares Monteiro, de que fui orientador da
monografia, trouxe informações interessantes, como por exemplo, nos finais da década de
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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1980, o grupo mais conhecido era, segundo o Jornal Voz di Povo os “netinho de vovó”28
,
composto por adolescentes que cedo começaram a “vida na rua”. Nos finais dos anos de 1990
e inícios do ano 2000 surge o fenómeno dos deportados no jornal A Semana, e nos finais de
2004 a questão dos grupos de adolescentes designados “thug” no Jornal Expresso das Ilhas.
Outro momento interessante dessa pesquisa é quando o autor pede os jovens para
autodefinirem thug:
Thug são pessoas normais, que gostam de vestir roupas largas, que adoptaram uma nova forma
de andar, gesticular e falar. Andam em grupos de amigos e são unidos. Organizam festas e
gostam de estar bem vestidos (moda hip hop). O thug está inserido no grupo que o defende e ao
qual deve fidelidade. São pessoas com vida difícil e convivem muito com amigos. (…) Thug é
diferente de gangs (considerados mais violentos). É um revoltado com a sociedade e não aceita
abusos. Os que não podem comprar roupas e acessórios (brinco, chapéu, ténis, botas, calças, t-
shirt), dão kasu bodi. Thug gosta de festas, bebidas, mulheres e discotecas. Adoram a cultura
hip hop. Usam o rap para criticar a sociedade e reenviar mensagens de revolta para outros
grupos rivais (beef) e chamar atenção das raparigas (”rap romântico”) (João Monteiro,
2010:105).
Nessa perspetiva, podemos ver que os thugs estão entre a revolta e a criminalidade,
adoram o rap e hip hop. São jovens que tinham por hábito agrupar-se para festas, jogos ou
danças, e que são amigos desde infância. No início era mais a influência do hip hop, sem
brigas, roupas largas, etc. Os conflitos vieram reforçar o enclausuramento e complicar a vida
deles. É interessante notar que esses jovens vêm no rap um estilo, forma de expressão e
manifestação que critica os alicerces do poder, as desigualdades social, a política, económica.
É o estilo musical mais apreciado por esses jovens. Serve tanto de combustível para revoltas juvenis, como para
criar momentos positivos.
Numa perspetiva mais crítica, podemos ver que a categoria thug surge, como já foi
enfatizado, juntamente com o aumento considerável da violência juvenil urbana, sobretudo
nalgumas zonas das cidades da Praia e do Mindelo que se transformaram em arenas de mal-
estar e confrontação juvenil. Os media enfatizam imagens e notícias sobre esse mal-estar:
violência gratuita, confrontação e homicídios perpetrados por jovens de bairros ‘a evitar’,
usando uma expressão cara a Loic Wacquant (2008:1) que nos leva a recorrer, por sua vez, a
léxicos topográficos como bairros periféricos, ghetto, periferia para designar bairros e
comunidades estigmatizados, residências dos párias, daqueles que começam a ser indesejados,
desprezados pela sociedade (Nardi Sousa, Jornal Asemana nº1055, p6, 27 de Julho de 2012)
28 Expressões usadas nos Jornais - Jornal Voz di Povo (1986-1990): Assaltos, Ladrão, Roubos, Mascarados, Intrusos,
Furtos, Larápios, Bandos, Meliantes, Quadrilha, Pequenos Ladrões, Grupos de Gatunos, Assaltantes, Grupos de
Assaltantes./Jornal A semana (1999-2003): Repatriados Americanos, Terror, Deportado, Marginais, Vândalos, Gangs,
Homicidas, Assassinos, Matadores./Expresso das Ilhas (2004-2007): “Caço-Body”, Assaltos, “Thugs”, Esfaqueamento,
Grupos Rivais, Marginais, Grupos delinquentes, “Ataques”, Agressões, Venda de drogas, Assassinos, Espancamentos,
Bandos de thug, Grupos organizados./A Semana (2005-2006): Gangs, Assaltantes, Incapuçados, Grupos de thugs, Bando
rivais, Facadas, Grupos de kasu bodi, Grupos de jovens marginais, Jovens delinquentes, “Grupo X”, “Grupo y”. (João
Monteiro, 2010:98).
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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A grande limitação desta rotulagem thug tem a ver com o facto de este termo atribuir
per se todos os mal-estares aos jovens de comunidades pobres e marginalizadas, que
começam a ser transformados em novos bodes expiatórios dos problemas sociais. O termo
não serve para explicar a amálgama de problemas que esses jovens enfrentam como vítimas e
agentes (abandono escolar, pobreza urbana, consumo de álcool e estupefaciente, assaltos,
crimes, confrontos, desemprego, acesso a armas de fogo, desigualdades sociais, perseguição
policial, etc.).
Se os investigadores e a sociedade focarem neste rótulo, para além de reforçar a
identidade desses mal-amados, incompreendidos e indesejados, provocam a sua coesão
grupal, propositadamente vai-se apostando paulatinamente na tríade:
Polícia/Repressão/Prisão. Mas, se a sociedade começa a enxergar o efeito espelho que esse
mal-estar juvenil provoca, pode-se chegar à conclusão, sem dizer que o fenómeno não existe,
que são categorias sociais inventadas e forjadas, fruto da inexistência de políticas públicas e
estratégias sérias que procuram diminuir os problemas sociais e juvenis. Esses jovens
precisam ser mais envolvidos na procura de soluções e responsabilizados pelos problemas
criados, conscientemente.
Por isso, a rejeição desta categoria social inventada, thug ou thug life, em Cabo Verde,
e inclusivamente a rejeição desses grupos como associações juvenis comunitárias. Para já
cria-se um falso problema sociológico, dado que designar os jovens de bairros pobres de thug,
sobretudo quando assumido como bandidos (ou vida bandida), é desconhecer a realidade da
juventude cabo-verdiana e o peso ou a percentagem daqueles que de facto cometem delitos
graves, inclusive assassinatos. É um erro rotular todos os jovens que vivem este mal-estar
num único conceito que foi compreendido e utilizado erroneamente para designar assassinos
ou vida bandida. É preciso contextualizar os conceitos:
Thug é uma palavra tornada popular pelo rapper 2Pac (Tupac Shakur), que rapidamente foi
confundida com criminoso. Thug Life é o oposto de alguém que teve tudo o que precisava para
suceder na vida, é a situação daqueles que não têm nada, e vence na vida, quando ultrapassa
todos os obstáculos para alcançar os seus objetivos. Thug life continha muitos códigos, de
forma a pôr ordem no aumento de gangues e tráfico de droga. Thug é um acrónimo para "The
Hate U Give Little Infants Fucks Everyone".29
Thug Life foi um grupo de rap formado por
2Pac com mais 4 outros membros: Mopreme, Macadoshis, Big Syke, and The Rated R. Após a
prisão de 2Pac por alegada violação, o grupo desfez-se. (…) Thug life tem cerca de 21 códigos,
sendo que o primeiro diz que todos os novatos no jogo devem saber que podem ficar rico, ir
para a cadeia ou morrer (Bruce Poinsette, 2011).
Para Poinsette, poucos sabem de facto o que 2Pac quis dizer com a expressão Thug
life. Thug life foi um movimento criado por Tupac, o padrasto dele Mutulu Shakur e o
29 «O ódio que crias nas crianças, lixa todo o mundo» (tradução nossa).
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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padrinho Geronimo Pratt para politizar os gangues. Todos tinham ligação com o Partido Black
Panther e viram que a energia revolucionária dos jovens estava a ser desperdiçada na
opressão da comunidade negra em vez de a defender. Este autor diz ainda que o conceito de
gangue não é completamente negativo. É um grupo de pessoas que estão juntos, com
interesses comuns de proteção e ganho económico, o que não quer dizer que tem de ser com
base no crime e na violência. Porém, quando se vive na pobreza, no desemprego e uma certa
dependência do mercado da droga, que não tem regras para prevenir o uso de violência para
resolver problemas, existe aí uma receita para o desastre.
De facto, inicialmente, os gangues não aterrorizavam as comunidades, mas protegiam-
nas. É o caso do The Crips, que no início protegia a comunidade do abuso policial. Para Bruce
Poinsette, os Crips e outros gangues foram introduzidos na droga pela CIA (Central
Intelligence Agency – EUA) e produtores de drogas parceiros da CIA. É assim que os
membros dos gangues se transformaram de soldados em terroristas das comunidades.
O autor considera que sem atacar o problema, que é económico, não se vai resolver
este ciclo de desemprego e desunião. Basta lembrar que Tupac, Mutulu e Pratt eram
estudiosos de Malcolm X, que pregava o Nacionalismo Negro, que incitava a comunidade a
tomar conta da sua economia. Atualmente, os homens e mulheres de negócios que dominam a
economia não vivem nas comunidades e reinvestem o seu dinheiro noutro sítio, sem se
importar com a pobreza e o desemprego. Não investem em escolas, infraestruturas, etc. É o
caso dos armazéns dos chineses, libaneses, portugueses e cabo-verdianos em Achada Grande
Frente e Trás, que não se preocupa com essas comunidades, só se preocupam com lucros.
A proposta do autor é trazer os gangues para o campo político, de proteção dos seus
interesses económicos e comunitários. Uma espécie de máfia, mas mais positiva, dado que a
italiana conseguiu fazer isso. A violência poderá ser travada com alternativas económicas. O
aprisionamento dos jovens pobres (e negros) não irá resolver o problema. Poderá haver muita
reincidência. A proposta é transformar os jovens presos em empreendedores.30
9. Sobre a situação criminal em Cabo Verde: espaço urbano/criminalidade urbana
Em Cabo Verde, tem-se verificado mais criminalidade nas zonas urbanas com mais
peso populacional, S. Tiago representa 56% dos crimes nacionais. Quanto à criminalidade per
capita, as ilhas do Sal, Boa Vista e Brava apresentam um maior número de ocorrência. A
30 O termo “Thug Life”, segundo Poinsette, é uma referência subtil à Revolução americana e táticas que puseram fim à
colonização britânica, “liberdade ou a morte” como diria Patrick Henry. Hoje, quem é revolucionário é visto como
extremista. Revolução não tem de ser necessariamente violento, mas deve haver determinação e união, começando por
combater a pobreza económica, controlar os meios da produção da economia.
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
51
partir do ano 2000, o número de crimes registados tem vindo a aumentar de ano para ano, com
exceção de 2004 e 2007 em que se verificou uma ligeira descida. Em 2008, a criminalidade
aumentou 11%.31
A Polícia Nacional disponibiliza mais dados que a Polícia Judiciária. O PESI-2009 só
contém dados, da PJ, relativo aos anos de 2004, 2005 e 2006, Santiago, Sal e S. Vicente.
Nesse estudo, os problemas que mais preocupam os cabo-verdianos são os de
segurança e da criminalidade. Esta preocupação é ascendente desde 2002, o seu grau
aumentou de 4 para 11.32
Quadro 2 - Dados sobre a Criminalidade Registada (Polícia Nacional)
Ano Crime
contra
pessoa
Crime
contra
propriedade
Total Variação em
relação ao
ano anterior
%
Variação
% Crimes
contra
pessoas/Total
% Crime contra
propriedade/Total
1996 6.385 4.492 10.877 58,70% 41,30%
1997 7.411 5.338 12.749 1.872 17,20% 58,13% 41,87%
1998 8.892 5.633 14.525 1.776 13,90% 61,22% 38,78%
1999 8.181 4.954 13.135 -1.390 -9,60% 62,28% 37,72%
2000 9.219 4.936 14.155 1.020 7,80% 65,13% 34,87%
2001 9.420 5.451 14.871 716 5,10% 63,34% 36,66%
2002 9.549 6.427 15.976 1.105 7,40% 59,77% 40,23%
2003 10.003 7.487 17.490 1.514 9,50% 51,19% 42,81%
2004 9.478 7.291 16.769 -721 -4,10% 56,52% 43,48%
2005 9.550 7.861 17.411 642 3,80% 54,85% 45,15%
2006 10.624 8.630 19.254 1.843 10,60% 55,18% 44,82%
2007 9.854 8.942 18.796 461 -3% 52,43% 47,57%
2008 10.537 10.270 20.807 2.011 11% 50,64% 49,36%
Fonte: PESI-2009, p. 27.
Em 2007, o número de crimes por 1.000 habitantes foi de 38,2% e em 2008 de 41,5%.
Em 2008, o número de crimes contra as pessoas e contra propriedades correspondeu a valores
quase idênticos (50,64% e 49,36%). De facto, 42% dos cabo-verdianos, inquiridos no Estudo
sobre a Criminalidade em Cabo Verde da ONUDC/CCCD, consideram que a perceção de
insegurança aumentou.33
É interessante também notar que em 2007 a criminalidade surgia em 7º lugar como o
maior problema em Cabo Verde. Em 2008 passou a ocupar a 3ª posição.34 Segundo dados
nacionais, metade dos crimes praticados em Cabo Verde não é participada (devido à falta de
provas, incapacidade e negligência da polícia). A polícia é mal vista no que concerne à
eficácia. O seu trabalho, na capital, é vista de forma negativa por cerca de 56% dos inquiridos
(ONUDOC 2007).
31 Dados do PESI-2009 informam que em 1996 registou-se 10.877 crimes; em 2006, 19.254. 32 PESI-2009, p. 3. 33 PESI-2009 (p29), dos crimes mais temidos Homicídio (40%); Roubos/furtos em residências (33%); Ofensas corporais
(29%); Tráfico de droga (28%); Roubo/furto (16%). 34 ver Resultados Afrobarómetro, 2008, sobre a Qualidade da Democracia.
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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Neste cenário criminal, as desigualdades sociais fizeram surgir novos fenómenos
criminais, mormente a juvenil. Dados do Estudo Socioeconómico sobre as Armas Ligeiras e
de Pequeno Calibre em Cabo Verde (Novembro de 2008), informam que, dos crimes contra as
pessoas e contra o património, 80% são praticados por jovens com idade compreendida entre
os 16 e os 21 anos e cerca de 19% com idade entre os 12 e os 16 anos.35 Crimes de rua,
praticados por crianças e adolescentes, normalmente, são vistos como pequena criminalidade.
Mas, só nos últimos tempos, a circulação de armas de fogo, e a sua utilização pelos jovens
designados thugs (para ajustes de conta: homicídios, ferimentos, inclusivamente dentro de
escolas), começa a preocupar a população, que tende a ser cada vez menos tolerantes com este
modus vivendi dos jovens. Essas armas advêm do tráfico internacional, enviadas por
emigrantes (em bidões), do continente africano (Guiné-Bissau), do período da guerra de
libertação e ainda de fabricação artesanal local (boca bedju).36
Os dados recolhidos nos últimos dois anos indicam que a cidade da Praia tem mais de
80% dos bairros com origem espontânea e/ou clandestina. São cometidos, em média, em
Cabo Verde 76 crimes por dia e desses 43 são crimes contra o património. Dos 76 crimes
diários, 24,5 foram cometidos na Praia, 7,5 em S. Vicente, 4,6 no Sal, 3,3 em São Filipe e 2,7
em Santa Catarina, ou seja 42,6 crimes (ONUHABITAT, 2011:90).
A violência urbana constitui um problema social. Com efeito, cerca de 73% dos
inquiridos se mostram sempre preocupados com a violência e 12,8% estão muitas vezes
preocupados, perfazendo um total de 85,8% dos residentes dos centros urbanos.37
Com efeito, para 49,2% dos inquiridos existem grupos/bandos de jovens nos seus
bairros de residência que provocam conflito, sendo 79% na Praia, 39,7% em Mindelo e 40%
em Sal Rei. Os jovens reclusos entrevistados imputam a entrada na violência como resultado
de clivagens sociais e económicas, espacialmente, traduzidas numa ocupação diferenciada de
indivíduos, grupos, classes e categoriais sociais. O facto de querer ter o mesmo padrão de
consumo, constituiu para alguns a razão de assaltos, roubos e furtos. De igual modo, a falta de
emprego e rendimentos, a inexistência de infraestruturas nos bairros para ocupação dos
tempos livres ou, quando existem, são de difícil acesso aos jovens, a luta por demarcação de
territórios constituem outros factores aduzidos.
35 PESI-2009, p. 26. 36 A PN, até o ano de 2008, apreendeu e armazenou cerca de 1.961 armas, sendo 1.283 pistolas, 488 revólveres e 190
espingardas, dos quais 8% são boca bedju. 37 ONUHABITAT, p. 62.
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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A nível nacional, cerca de 73% dos inquiridos se mostram sempre preocupados com a
violência nos centros urbanos e 12,8% estão muitas vezes preocupados. 21,4% dos inquiridos
foram, em 2010, vítimas de crimes violentos.
Na verdade, 71,7% dos inquiridos apontam os jovens como os responsáveis pela
violência. Resulta também do estudo que as ações de violência tendem a acontecer em grupo
e no período da noite. Da mesma forma, 74,6% dos inquiridos consideram que o tráfico de
drogas nos seus respetivos bairros tem tido uma influência no aumento e no cometimento de
atos de violência. Para os inquiridos da Praia (50%), de S. Filipe (33,3%) e do Mindelo
(30%), a inexistência de proteção policial também deve ser considerada como um fator
importante de facilitação da violência (ONUHABITAT, 2011).
Estudos ainda mais recentes têm tratado, mesmo que superficialmente, o tema da
violência e criminalidade, perceção de insegurança, mal-estar social. É o caso do estudo
encomendado pelo Ministério da Administração Interna, que procura conhecer a perceção das
populações quanto ao fenómeno da violência e criminalidade, sua dinâmica e impactos na
vida quotidiana dos cidadãos, suas manifestações, perceções, tipologia, distribuição espacial e
seus principais determinantes sociais e económicos.38
Os bairros em que as famílias residentes (mais de 1/3) mais sofreram assaltos no
último ano são os de Fazenda/Sucupira (37,3%), do Castelão/Coqueiro (34,9%) e da Achada
Grande Frente (33,3%). A situação ainda é complicada, acima da média do concelho, nos
bairros de Achada Mato/Covão Mendes/Achadinha Pires (30,5%), da Calabaceira (30%) de
Achada Santo António (29,3%) de Lém Cachorro (27,6%) da Achada Grande Trás (27,2%) e
da Vila Nova (26,4%). Ainda no Bairro de Eugénio Lima e do Plateau, 1 em cada 4 agregado
familiar, experimentou algum tipo de violência/criminalidade no mesmo período.39
O tipo de violência/criminalidade mais sofrida segundo as vítimas é o assalto (51,3%).
Os resultados indicam que 1 em cada 5 agregado no Concelho foi vítima de algum tipo de
assalto. A violência interpessoal surge em terceiro plano, com 1 em cada 4 agregado.
Os assaltos acontecem em todos os bairros, com exceção do Bairro de S. Martinho
Pequeno onde os roubos (62,5%) são mais frequentes que os assaltos (12,5%). Os bairros que
38 Este estudo da Afrosondagem (Relatório sobre a Violência e Criminalidade na Cidade da Praia, 2012), teve por base um
inquérito de auscultação das populações quanto aos fenómenos da violência, grau de vitimização e sua distribuição por
bairros da capital, tipologia dos crimes e frequência da sua ocorrência, pontos de maior incidência da criminalidade e
insegurança, etc. 39 Afrosondagem, 2012, p. 13.
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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mais assaltos sofrem são Fazenda, Plateau e Várzea, sendo que mais de 2/3 dos agregados
familiares sofreram assaltos.40
Os bairros onde os agregados mais sofrem a violência interpessoal são os de Safendi
(39,7%), S. Felipe (38,9%) e Achada Grande Frente (37,8%). No que concerne a distribuição
espacial da violência/criminalidade, ela teve lugar na rua (47,2%) ou em casa (45,1%).
Convém realçar que a grande maioria (82,5%) dos casos de violência e criminalidade tiveram
lugar no bairro de residência da vítima.41
Este estudo conclui que a maioria dos atos de violência e criminalidade sofrida pelos
agregados tem como perpetrador um indivíduo armado sem arma de fogo (23,3%), assim
como uma figura como perpetrador da violência/criminalidade, também um indivíduo isolado,
porém armado com arma de fogo (18,8%). Os grupos de indivíduos armados com armas de
fogo constituem 13,8% do universo dos agressores.42
Cerca de 2/4 das vítimas da violência e criminalidade que reportaram a ocorrência às
forças policiais têm a perceção que não resultou em nada, mormente os residentes dos bairros
de Tira Chapéu (71,4%), Terra Branca/Belavista (64,7%) e do Palmarejo (58,3%).
Provavelmente, isto tem aumentado o sentimento ou propensão de resistir ou ripostar com
violência (1.1%). Em caso de repetição cerca de 12% das vítimas mostra-se predisposta a
resistir/enfrentar o criminoso. Para além desses 12% que querem fazer justiça com as próprias mãos, 2,7%
dos agregados demonstraram propensão à vingança.43
Quanto à perceção sobre o aumento da violência/criminalidade, cerca de 54,2% da
população concorda que a violência e a criminalidade têm aumentado no seu bairro, nos
últimos 5 anos. Sendo que essa perceção sobre a diminuição da criminalidade é mais
favorável nos bairros de Lém-Ferreira (54,4%), Achada Grande Trás (36,6%) e Achada
Grande Frente (32,6%).
O estudo conclui ainda que a maioria das populações dos bairros da capital (70%)
partilha a opinião que os principais responsáveis pela onda de violência e criminalidade têm
como responsáveis os jovens de idade superior a 16 anos. Quanto ao conhecimento de grupos
de delinquentes nos bairros, 8 em cada 10 entrevistados dizem conhece-los, sobretudo nos
40 Roubo foi definido pelos autores como situações em que não há uma interação entre o criminoso e a vítima. Os bairros de
Achada Grande Trás (38,8%), do Palmarejo (32,7%) e da Achada Grande Frente (32,7%) têm sofrido de forma preocupante
com os roubos. Mesmo assim, a situação é melhor que os bairros do interior do Concelho, S.Tomé/Portete (41,7%) e de S.
Martinho (62,5%). 41 Grande parte dos crimes acontece no horário e período pós-laboral, quando a maioria das populações estão em casa ou nas
imediações. Grande parte das vítimas não conhece os criminosos, o que quer dizer estes não pertencem às comunidades onde
atua. O conhecimento entre a vítima e o agressor é mais acentuado nos residentes dos bairros de Palmarejo (87,8%), de S.
Tomé (83,3%), da Fazenda (82,9%) e da Prainha (81,3%). No bairro de Achada Grande 30% das vítimas identificam os seus
agressores como sendo vizinho. (p. 20). 42 Idem p. 23. 43 Idem p. 34.
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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bairros de Achada Mato, Achada Grande Frente e Ponta de Água, todos a ultrapassar os 96%.
E cerca de 55% das populações dos bairros da Praia já presenciaram briga de grupos
delinquentes no seu bairro, sobretudo os dos bairros de Castelão/Coqueiro, Achada Grande
Frente e Achada Grande Trás.
Uma boa parte da população da Praia (73%) mudou alguns hábitos de rotina, como
sair à noite (60,6%), por exemplo, sendo os bairros de Achada Santo António, Tira Chapéu e
Terra Branca. Cerca de 88% dos entrevistados manifestaram vontade de colaborar
voluntariamente com a polícia e as autoridades no combate ao fenómeno da violência e
criminalidade. Para além do assalto às pessoas na rua, a briga entre grupos delinquentes,
assim como assaltos a casas e residências são os crimes mais comuns e identificados pelos
inquiridos. As causas identificadas têm a ver com o uso e tráfico de drogas, o desemprego,
falta de oportunidade para ocupação dos tempos livres, alcoolismo, pobreza e falta de
policiamento
Dados recentes da Direcção Geral dos Serviços Penitenciários e de Reinserção Social
(Julho 2012), apontam que existem na Cadeia central da Praia cerca de 810 presos e na
Cadeia Central de S. Vicente cerca de 323 presos.
Na CCP, destacam-se, quanto à natureza do delito, o crime contra pessoas (40,1%), o
que corresponde a 325 pessoas, sendo 318 homens; Crime contra propriedades (26,7%), que
corresponde a 216 pessoas, sendo 215 homens; e Crimes Sexuais (13,1%), o que corresponde
a 106 homens.
Quanto à situação do recluso, dos 810 presos, 278 (34%) são preventivos, sendo 265
homens, e 532 (66%) são condenados, o que corresponde a 503 homens.
Quadro 3 - Balanço estatístico referente à Faixa etária dos reclusos no mês de Julho de 2012, na cadeia
Central da Praia
Idade Homem Mulher Total %
(16 a 21) anos 203 3 206 25%
(22 a 30) anos 288 25 313 39%
(31 a 40) anos 189 9 198 24%
(41 a 50) anos 69 6 75 9%
(51 a 60) anos 19 1 20 2%
(60 e +) anos NR -2 -2 -0,2%
Total 768 42 810 100% Fonte: Direcção dos Serviços da Reinserção Social - 2012
Na CCSV, destacam-se, quanto à natureza do delito, o crime contra pessoas (30%), o
que corresponde a 96 pessoas, sendo 90 homens; Crime contra propriedades (42%), que
corresponde a 137 pessoas, sendo 136 homens; e Crimes Sexuais (11,1%), o que corresponde
a 36 homens.
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
56
Quanto à situação do recluso, dos 323 presos, 40 (12,4%) são preventivos, sendo 39
homens, e 283 (87,6%) são condenados, sendo 273 homens.
Quadro 4 - Balanço estatístico referente à Faixa etária dos reclusos no mês de Julho de 2012, na Cadeia
Central de S. Vicente
Idade Homem Mulher Total %
(16 a 21) anos 39 2 40 12%
(22 a 30) anos 144 2 147 46%
(31 a 40) anos 77 5 85 26%
(41 a 50) anos 48 2 50 15%
(51 a 60) anos 1 NR 1 0,3%
(60 e +) anos 3 NR 3 1%
Total 312 11 323 100% Fonte: Direcção dos Serviços da Reinserção Social
Quanto à faixa etária, o que mais nos interessa, tal como os quadros acima indicam
verifica-se uma crescente tendência para o encarceramento dos jovens (16-21 anos) e (22-30
anos), o que corresponde a 64% do total dos presos na cadeia Central da Praia e 57% na
cadeia Central de S. Vicente44. Este encarceramento maciço da população jovem e pobre
inquieta os investigadores.
10. Considerações Finais
De facto, o desvio dos jovens é um tema delicado, difícil e embaraçante. Os dados
confirmam um ligeiro aumento dos jovens na área da criminalidade, e fraca ligação familiares
e académicas. Apesar de ter surgido nos últimos tempos um interesse em conhecer o
fenómeno, existe ainda um conhecimento escasso nesta área. Tem-se verificado, através dos
media, uma cada vez maior presença de jovens em conflito com a lei. Este aumento de jovens
na criminalidade requer uma reflexão séria sobre a situação socioeconómica dos pobres e
excluídos, e ainda sobre as alternativas para a juventude em Cabo Verde. É que o fenómeno
das crianças na rua explodiu nos últimos anos na forma da cultura de gangs, um tipo de
violência juvenil fortemente enraizada nas estruturas de desigualdades sociais, que só poderá
ser minimizada com reforço de intervenção comunitária, luta contra a pobreza e através da
construção de um tecido menos esgarçado de organizações da sociedade civil.
Pode-se facilmente dizer que as medidas coercitivas/repressivas aplicadas pela polícia
não têm melhorado o fenómeno, apesar desta aparente anestesia ou estancamento; isso tem
44 Dados do mês de março de 2013, dizem que «o índice de criminalidade aumentou 10,35% em 2012, comparado com o
período homólogo de 2011 onde se registaram 22 mil 152 casos reportados, contra 24 mil do ano passado. (…) Quanto a
homicídios, Praia continua no topo com 29 crimes cometidos, menos 4 que em 2011 (33 casos). Ainda na praia houve 4.652
crimes contra a propriedade, contra 4.370 em 2011. (…) em 2101, a nível nacional foram cometidos 11.228 crimes contra
propriedade, mas apenas 6.682 foram esclarecidos.. os dados da evolução da criminalidade de 1996 a 2012 apontam para um
aumento na ordem dos 86% a uma média anual de 5,4%.» Vide Jornal A Nação, nº289, de 14 a 20 de março de 2013 folha
policial A6).
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
57
contribuído para aumentar a revolta juvenil, ‘obrigando’ os jovens a reagirem e
reorganizarem. É que o fenómeno parece mais um movimento que vai-se metamorfoseando,
do que existência de ‘grupos thug’ totalmente organizados, estáticos e homogéneos. É claro
que isto não quer dizer que estejam completamente desorganizados, ou que no passado não
houve grupos organizados. É importante notar que os grupos são abertos, sujeitos a mudanças.
Os media só tem abordado uma parte do problema (a desordem provocada pelos jovens), não
têm mostrado interesse pela vida dos jovens (dimensão do colectivo, emoções, amizade, hip
hop, desporto, entreajuda) e nem pelos problemas sociais por que passam (desemprego,
pobreza, abandono escolar, exclusão social).
No último ano, 2012, houve a nosso ver, uma forte intervenção comunitária de jovens
com curriculum social, intensificando a intervenção para reduzir os males da juventude;
verificou-se também uma tendência dos jovens de procurarem a paz, como moda. Denota-se
uma ligeira diminuição da violência. Por outro lado, a polícia tem aumentado a sua ação nos
bairros, dando caça aos criminosos e procurando implementar o Policiamento de
Proximidade. Porém, é preciso mais recursos e investimentos nos bairros, assim como mais
trabalho, compreensão e responsabilização dos jovens.
Referências
ANJOS, José Carlos; RODRIGUES, Francisco. Vulnerabilidade das Crianças e Adolescentes
em Cabo Verde, ICCA, Abril de 2009.
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Entre a marginalização e a securitização: jovens e violências em Cabo Verde e na Guiné-Bissau*
Sílvia Roque; Kátia Cardoso**
Resumo: A progressiva crença na obsolescência da guerra no contexto pós Guerra Fria tem contribuído para a
ocultação dos processos estruturais que se perpetuam e que reproduzem as desigualdades e a marginalização ao
nível global e que se constituem como e provocam violência. Ignora-se frequentemente que, perante a ausência
de guerra, os meios e instrumentos de promoção e materialização da violência se trasladam para outras
expressões, escalas ou actores. A partir dos casos da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, este artigo pretende colocar
em causa a separação estanque entre a guerra e a paz e sugerir que esta última pode ser um projecto igualmente
violento, que se manifesta nomeadamente através do controlo dos jovens, quer através do poder exercido pelas
elites em Estados periféricos, quer pelo mercado da pobreza e da insegurança à escala global. Defendemos que o
grau de aceitação ou rejeição da marginalização e dependência como destino social, pelos jovens, é um factor
essencial para a contenção ou promoção da violência colectiva. Ora, num contexto de consolidação de um
conjunto de políticas e instituições internacionais destinadas a manter a segurança das elites globais, parecem
cada vez mais reduzidas as possibilidades não violentas de reivindicação de um estatuto valorizado pelos jovens.
Palavras-chave: jovens, violências, marginalização, securitização.
Abstract: The growing belief in war’s obsolescence in the post Cold War context favoured the occultation of
remaining structural processes that reproduce inequalities and marginalisation at the global level. These
processes constitute themselves as violence as they also produce violence. It is though frequently ignored that in
the absence of war, the means and instruments that promote and consubstantiate violence are transferred to other
manifestations, scales, and actors. Taking in to consideration the cases of Guinea Bissau and Cape Verde, this
article intends to question the strict distinction between war and peace, suggesting that peace can also be an
equally violent project, expressed through the control of youth, be that through the power exercised by elites in
peripheral states, or through the poverty and insecurity market at a global scale. We argue that the degree in
which marginalisation and dependency are accepted or contested by the youth as social destiny is a crucial
determinant in containing or promoting collective violence. In the context of consolidation of a bulk of
international policies and institutions aimed at keeping global elite’s security, it seems that the possibilities for
non violent forms of youth’s vindication for a valued social status are less and less reduced.
Key-words: youth, violences, marginalisation, securitisation.
Introdução: jovens, violências e relações internacionais?
Este artigo parte de algumas reflexões originadas pelo trabalho de mapeamento das
violências praticadas por e contra os jovens em Bissau e na Praia1, assumindo como
problemática fundamental a contradição entre a visibilidade das práticas violentas dos jovens,
por oposição à ocultação das estruturas que exercem violência sobre os mesmos e das suas
resistências à violência.
* Artigo recebido em Julho de 2012 e aceite em Novembro de 2012.
** Investigadoras do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra; [email protected] / [email protected]
1 Projecto de investigação “Trajectórias de disseminação e contenção da violência: um estudo comparativo entre Bissau e
Praia”, coordenado por José Manuel Pureza, financiado pela FCT – PTDC/AFR/71908/2006. Projectos de dissertação de
doutoramento: “Construir o colapso: percursos da violência em contextos de pós-guerra. Os casos de El Salvador e Guiné-
Bissau” de Sílvia Roque, orientada por José Manuel Pureza e financiada pela FCT - SFRH / BD / 36589 / 2007 e “Violência
urbana em Cabo Verde: o papel dos deportados” de Katia Cardoso, orientada por António Sousa Ribeiro e José Manuel
Pureza e financiada pela FCT – SFRH/BD/44906/2008. Este artigo baseia-se ainda numa comunicação apresentada no
âmbito to 7º Congresso Ibérico de Estudos Africanos, o qual decorreu entre 9 e 11 de Setembro de 2010 no ISCTE, Lisboa.
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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Não se pretende aqui analisar exaustivamente as causas da violência juvenil colectiva,
como já fizemos noutros trabalhos (Roque e Cardoso, 2008; Roque e Cardoso 2010), mas sim
contribuir para repensar estas causas enquadrando-as num paradigma mais vasto de análise.
Perante a (quase) ausência nas Relações Internacionais de reflexões que analisem as
violências praticadas por e contra os jovens em contextos nacionais e em tempos de paz
(formal), pretendemos, assim, começar por explorar a ocultação das violências como um
processo que serve o propósito de esconder as “falhas” de um modelo de paz liberal. Com
efeito, as violências são remetidas, por este modelo, para as insuficiências das periferias no
cumprimento de uma agenda de paz violenta, agenda esta que se baseia num conjunto de
medidas cada vez mais securitárias que se reproduzem à escala internacional de forma
estandardizada e que pretendem controlar as populações consideradas ameaçadoras. Estas
medidas têm, muitas vezes, os jovens de países periféricos ou das periferias das sociedades
centrais como o seu primeiro alvo. Isto porque, tal como veremos através dos casos de Bissau
e da Praia, o controlo dos jovens é a expressão mais eficaz do controlo do Sul e das periferias.
1. Retomar as violências da paz nas relações internacionais
Apesar de aparentemente singela, a ideia de que a violência, e não o conflito ou a
guerra, é o oposto de paz e que esta última, no limite, apenas pode ser alcançada mediante a
abolição de todas as violências que se alimentam mutuamente – directas, estruturais e
culturais – representa uma transformação radical nas análises das Relações Internacionais
operada designadamente pela escola dos Estudos para a Paz (Galtung, 1990; Pureza e Cravo,
2005). Também os Estudos Feministas relacionados com esta disciplina romperam com as
definições tradicionais dos sujeitos e dos espaços das Relações Internacionais e do que é
considerado político, introduzindo a análise das culturas de violência e de um sistema de
guerra baseado na hierarquização dos sexos e na naturalização das relações de poder que
produzem e legitimam a violência, a várias escalas, e tornam artificial a separação entre
guerra e paz (Reardon, 1985; Enloe, 2000; Moura, 2009; Santos et al, 2010). Situando-nos,
assim, no seguimento dos avanços dos Estudos para a Paz e dos Estudos Feministas críticos, e
tendo em conta que estas correntes permanecem relativamente marginais na disciplina,
pretendemos contribuir para a consolidação das críticas à ocultação das violências da paz2 nas
Relações Internacionais.
2 Por violências da paz entendemos a vivência das violências microlocalizadas presentes em contextos de paz formal,
alimentadas em continuum por culturas, estruturas e mecanismos de facilitação que actuam ao nível local, nacional como
global, os quais, associados a objectivos vistos como políticos e noutros contextos, estão também na origem de processos de
guerra. Neste caso, partimos das experiências de violência exercida por e contra os jovens, entendendo estas vivências de
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Os lugares – tanto geográficos como conceptuais – para os quais são remetidos pelos
quadros teóricos tradicionais os actores e as causas da violência juvenil – considerados um
assunto interno aos Estados, de cariz social e económico ou criminal, mas não internacional
ou político – exprimem uma visão que descarta a marginalização como forma de violência em
si, que produz mais violência em espiral ou continuum (Scheper-Hugues e Bourgois, 2004).
Pelo contrário, o nosso ponto de partida consiste em considerar que a guerra pode ser vista
como um projecto social entre outros (Richards, 2005), igualmente violentos, os quais são
objecto de processos de ocultação que não são neutros e têm consequências.
Os processos de ocultação a que nos referimos são produto dos lugares para os quais é
remetido o conflito violento, particularmente desde os anos 90 do século XX: as periferias, a
irracionalidade, a barbárie (Duffield, 2001). Esta ocultação tornou-se mais dissimulada com o
fim da Guerra Fria e o triunfo “anunciado” do neo-liberalismo e das democracias de mercado
enquanto modelo de organização das sociedades. As periferias do ‘sistema mundo’,
nomeadamente o continente africano, passaram a ser encaradas sobretudo como uma fonte de
“problemas” para o sistema internacional, onde imperam “ameaças” como o
subdesenvolvimento crónico e a corrupção, os conflitos armados e os refugiados, ou ainda os
chamados Estados “falhados” ou o terrorismo, imperfeições contra natura que “devem ser
normalizadas”.
Os conflitos “internos” cada vez mais visíveis3 são assumidos como as brechas de uma
simulação quase perfeita de ordenação e controlo ao nível internacional. Procede-se então à
consolidação de uma indústria de “produção” da paz e da ordem que contraria a promessa
crítica e emancipadora inicial dos Estudos para a Paz (Pureza e Cravo, 2005: 11). Para
colmatar as falhas deste simulacro, a ocultação das violências opera-se através de três
processos dominantes:
a) A naturalização da violência: produz-se através da desconsideração das formas de
violência estrutural e simbólica ou de interiorização da dominação social (Bourdieu, 2002
[1998]; Martín-Baró, 1998: 95) que explicam essencialmente o não reconhecimento das
fontes da violência e levam à sua normalização e reificação como uma violência “natural aos
pobres e excluídos”. É neste sentido que a violência passa a ser vista como condição normal
violência como resultado de expressões de poder baseadas no estatuto social dos jovens em dois contextos africanos que
consideramos periféricos. 3 A suposta mudança dos conflitos tornou-se um lema repetido vezes sem conta partindo do trabalho de Kaldor (2001) sobre
“novas guerras”. Neste sentido, defende-se que assistimos não tanto a uma mudança na natureza dos conflitos mas sim a uma
deslegitimação das lideranças em conflito. O confronto da Guerra Fria dava legitimidade aos líderes dos movimentos em
confronto. Com o fim dessa camuflagem ideológica e estratégica, o conflito violento passou a ser visto como ilegítimo. Além
disso a guerra interna e os seus efeitos internacionalizaram-se e ganharam maior visibilidade, com a intervenção crescente de
actores internacionais em contextos de guerra (Duffield e Waddell, 2006: 5-6).
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das periferias, as quais nunca são suficientemente modernas e liberais para conter as “suas”
turbulências.
b) A despolitização e consequente deslegitimação e criminalização da violência: a
violência não considerada como guerra é essencialmente vista como criminal, como é o caso
da existência de gangs juvenis. Outras vezes, deixa-se de falar de violência política para se
passar a falar de violência social (Moser e Rogers, 2005). No entanto, esta diferenciação entre
violência social e política é, em nosso entender, artificial. Assenta na progressiva estranheza
que remete para a irracionalidade e ilegitimidade do conflito violento nas Relações
Internacionais e ainda na estreiteza de definição do que pode ser considerado político (Scott in
Schouten, 2009).
c) A internalização das causas e actores da violência e a externalização das respostas:
ignora-se o papel das políticas e instituições internacionais na manutenção e acentuação dos
processos de diferenciação e desigualdade ao nível global que, por um lado, produzem
exclusão e exercem violência contra boa parte da humanidade, e, por outro lado, produzem,
muitas vezes, fenómenos de violência directa significativos. A violência é vista, neste sentido,
como produto do fracasso das entidades políticas nacionais (ou “locais”) na regulação da
mesma, ou seja, como uma falha na governação.
Estes processos de ocultação alimentam a emergência de um modelo institucional e
politicamente demarcado de paz global dirigido à resolução dos problemas “das periferias”
que assenta na indiferença que vota à necessidade de transformação de estruturas de
desigualdade, sejam elas de cariz cultural e social ou económico, ao nível nacional como
internacional, e ao qual se tem chamado projecto de paz liberal.
2. A paz como projecto violento e securitário
O projecto ou modelo de paz liberal consiste num conjunto de prescrições com vista à
liberalização económica e à globalização de um modelo particular de governação interna
(Paris, 2004). Actua sobretudo através da aplicação de receitas repetidas ad nauseum com os
objectivos da “construção” ou “consolidação da paz” – peacebuilding – ou ainda da
“construção” ou “consolidação dos Estados” – statebuilding. São ingredientes destas receitas:
a abertura económica dos países periféricos, o credo da iniciativa privada, da privatização e da
austeridade; a transferência das funções de protecção social para as redes formais e informais
fora do Estado; a replicação de instituições formais e aparentemente funcionais de Estados; e
uma democracia de baixa intensidade (Sogge, 2010; Pureza et al, 2007).
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Embora esta proposta surja sobretudo mencionada para fazer face às situações dos
países pós-guerra, como tem sido o caso da Guiné-Bissau, ela vai muito além disso e aplica-se
também aos países considerados em paz, como poderemos ver pelo caso de Cabo Verde,
através da insistência na despolitização e burocratização da política (Bickerton, 2009) e no
esvaziamento das funções sociais do Estado. Trata-se de uma aplicação internacional do que
Wacquant (2001 [1999]: 4) descreve em termos nacionais como “o paradoxo penal do
neoliberalismo”, que pretende implementar “mais Estado” nas áreas policial, judicial e
prisional “para solucionar o aumento generalizado da insegurança objectiva e subjectiva”
quando “ela mesma é causada por menos Estado” nas dimensões económica e social nos
países avançados.
Trata-se, assim, de um conjunto de mecanismos de controlo e reprodução de
estruturas de poder ao nível internacional, que assume a dimensão securitária dos Estados e
das organizações internacionais como prioridade e que se baseia na regulação de populações
marginais e julgadas como ameaças. Neste sentido, a descolonização pode ser vista apenas
como uma retirada imperial face a um modelo de exploração e domínio territorial que já não
compensava, podendo ter emergido um novo modelo de domínio – o da biopolítica aplicada
às relações internacionais, cujo princípio dominante é o do controlo e normalização das
periferias (Duffield, 2001; Duffield e Wadell, 2006)4. Já para Chandler (2006), assistimos ao
desenvolvimento de um “império em negação”, que se baseia na regulação das periferias, não
por interesses imperiais clássicos, mas por via da negação da responsabilidade dos países e
grupos centrais no que aí acontece, não querendo arriscar intervir segundo a lógica assumida
de controlo e da dominação mas através dos discursos do “empowerment” e da “capacity
building”.
O projecto de paz liberal actua assim tanto por via de programas de reconstrução pós-
guerra, como através de políticas de controlo de fluxos considerados ilegais e da reordenação
das sociedades centrais, expulsando os “marginais”, sendo ilustrativas, neste sentido, as
políticas de deportação. Como consequência, a hierarquização estabelecida entre os Estados
de sucesso e falhados, “bons” e “maus alunos”, não representa, na prática, uma diferença
significativa nas formas de produção ou reforço da violência à escala internacional e local.
Apesar da sua “promessa” transformadora, o que realmente está em causa, em última
análise, neste modelo de paz, é garantir a segurança dos centros do sistema da forma menos
4 Segundo estes autores o desenvolvimento tem cada vez mais como objectivo a manutenção dos humanos, das suas funções
bióticas (homeostasis) e menos o crescimento económico. O conflito é visto como “o reverso do desenvolvimento” e o
desenvolvimento é visto como uma condição bipolítica da homeostasis sócio-económica, facilitado pelos processos de
centralização e coordenação da ajuda ao nível global.
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transformadora ou emancipadora possível, tal como se pretende pelo tipo de pensamento
sobre a segurança conhecido como liddism5, formulado em think tanks, em Wasghington
desde os anos 90, e replicado através das estratégias das elites por todo o mundo, com o
objectivo de manter o status quo, através de intensos esforços para desenvolver novas tácticas
e tecnologias com o objectivo fundamental de perpetuar o controlo das classes abastadas
(Rogers, 2010).
3. Os jovens como alvo da securitização
Apesar da complexidade da definição do que significa ser jovem6, o binómio jovens-e-
violência tem sido explorado sobretudo a partir de uma definição de jovens como alguém do
sexo masculino, pobre e localizado geográfica e socialmente “nas margens” (Bordonaro,
2007). Isto porque se considera que neste binómio o sujeito jovens é sobretudo praticante de
violência, agressor ou potencial agressor, e não vítima. A universalização da ameaça à ordem,
interna como internacional, e a necessidade de criação de bodes expiatórios para as falhas do
projecto de paz liberal, quer ao nível dos Estados quer ao nível internacional, resultaram na
expansão da imagem do que se chamou “o jovem [homem] do bairro marginal [periférico]”
(Briceño-Léon e Zubillaga, 2002), cujas oportunidades de sobrevivência ou afirmação se
limitam à emigração e à realização de actividades de geração de rendimentos rápidos (e
ilegais), e levou à criação de políticas standardizadas de contenção do potencial (de) e da
violência dos jovens, baseadas nos três processos de ocultação das violências mencionados
(naturalização, despolitização, internalização das causas e externalização das respostas).
Dividimos estas políticas em duas grandes tendências: as de securitização aberta e
encerramento ou distanciamento geográfico – de que fazem parte as políticas de deportação
ou o aumento do encarceramento penitenciário; e as de controlo menos óbvio dos jovens, ou
securitização disfarçada, através da absorção pelo sistema de ajuda, reproduzindo modelos
associativos ocos, promovendo o auto-controlo dos jovens (projectos sem conta contra a
5 “Liddism foi um termo forjado nos finais dos anos noventa para identificar a tendência, pós Guerra Fria, dos Estados
ocidentais, para controlar as ameaças à segurança internacional através de meios militares, em lugar de procurar entender a
natureza das ameaças e enfrentá-las nas suas raízes/causas. A analogia que transporta é a de uma panela ao lume face à qual
se tenta manter a tampa fechada sem apagar o lume, o que implica que o liddism é na sua essência auto-derrotista”, tradução
nossa, ver Rogers, The dictionary of Ethical Politics. 6 A operacionalização do conceito “jovem” é um exercício complexo em qualquer parte do mundo. Destacamos aqui dois dos
problemas mais recorrentes. Por um lado, a abordagem biológica, definida pela idade, é limitada e não se aplica a todas as
culturas e sociedades da mesma forma. Durham (2000:116) propõe o conceito de social shifter para destacar o carácter
volátil, relacional e variável da categoria “jovem”. Por outro lado, a ideia de jovem enquanto uma categoria homogénea,
consolidada, ignorando-se as diversidades e dimensões como género, classe, etnia, religião, etc. deve ser contrariada. O
jovem, e neste caso concreto, os jovens possuem identidades fragmentadas, são actores de fronteira, ambíguos, híbridos –
“entre o local e o global, o rural e o urbano, a tradição e a modernidade” (De Boeck e Honwana, 2000, Ebo, 2005). No
entanto, não entraremos em profundidade neste debate, partiremos da imagem corrente dos jovens que mencionamos, não
concordando com ela, mas na tentativa de a desconstruir.
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SIDA ou ainda de promoção de “cultura da paz” são exemplo disto) ou sacralizando
fenómenos de “organização espontânea” e “estratégias de sobrevivência individual” da
economia informal, aceitando a demissão dos Estados e das organizações que se ocupam do
“desenvolvimento” na promoção de emprego e de estabilidade dos recursos (Sévédé-Bardem,
1997: 156), medidas estas consideradas muitas vezes como mecanismos de prevenção da
violência, que surgem normalmente após as críticas a uma abordagem securitária.
Qualquer uma desta propostas faz parte do projecto de paz liberal e os seus resultados
são duvidosos na contenção das violências que afectam os jovens – quer como vítimas, quer
como particantes de violência - como procuraremos ilustrar através da análise dos casos de
Cabo Verde e da Guiné-Bissau.
4. Thugs, deportados, jovens violentos: criações do ‘desenvolvimento’ cabo-verdiano?
As características sócio-demográficas de Cabo Verde7 desde cedo levaram o país a
declarar ser a juventude um dos motores de desenvolvimento. Tendo desempenhado um papel
preponderante na oposição e luta contra o domínio colonial português e posteriormente na
construção de Cabo Verde enquanto nação independente, os jovens continuam, na
actualidade, a estar (pelo menos ao nível dos documentos e discursos oficiais) “no centro do
desenvolvimento económico e social” (Programa de Governo, 2006-2011: 51)8. É notória uma
preocupação crescente das entidades públicas, com a definição de políticas, medidas, planos
estratégicos dirigidos aos jovens. Por parte das organizações não-governamentais9 é também
visível o número de projectos de intervenção social, nomeadamente dirigidos aos chamados
“jovens em risco”.
Importa perceber que tais preocupações se inscrevem no quadro geral do desempenho
do país e do cumprimento de objectivos e propósitos estabelecidos pelos doadores e
instituições internacionais, designadamente no âmbito dos Objectivos de Desenvolvimento do
Milénio e dos requisitos da passagem para país de rendimento médio. Ou seja, enquadra-se no
propósito geral de manter a boa imagem internacional de Cabo Verde.
A concretização destas preocupações está, porém, longe de ser total. Os jovens
continuam a ser especialmente atingidos pela pobreza e exclusão social que, a despeito da
prestação económica de Cabo Verde nos últimos anos, continuam a atingir de forma marcada
7 A faixa etária abaixo dos 25 anos representa 62% da população total, segundo dados dos censos de 2000, do Instituto
Nacional de Estatística 8 O que passa pela criação de programas e linhas de apoio específico no campo empresarial (linhas de crédito e incentivos
fiscais; programa de inserção e emprego jovem), profissional (acções de formação; lei do mecenato juvenil), e político-
cultural (incentivo ao associativismo, voluntariado, centros de juventude) (Programa de Governo 2006-2011). 9 Vide por exemplo, o trabalho desenvolvido pela Fundação Infância Feliz, pela ACRIDES e outras.
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o país. Os números do desemprego, por exemplo, continuam a afectar de maneira incisiva a
camada juvenil.10
Ao mesmo tempo, os jovens urbanos são os mais influenciados pelas
expectativas induzidas pela promessa do progresso económico, que vêem, na maior dos casos,
não cumpridas.
Na realidade, a recente intensificação da preocupação com os jovens em Cabo Verde é
reflexo de uma abordagem securitária que pretende responder a uma dupla preocupação das
elites: a manutenção do investimento estrangeiro – ‘seguro’ – e o controlo de uma camada
juvenil que se constrói como fonte de insegurança – objectiva e subjectiva – das classes mais
favorecidas (Lima, 2010).
Assim, as análises das causas da violência juvenil têm sido marcadas por algumas
lacunas que dificultam a compreensão do fenómeno e que exploraremos em seguida.
Em primeiro lugar, queremos realçar a tensão entre local/global e interno/externo, nem
sempre analisada da melhor forma. Se é verdade que, no que diz respeito à sua construção
identitária, o surgimento de grupos juvenis denominados thugs11
tem na sua origem
inspirações inicialmente de carácter quase exclusivamente exógeno/global (cultura hip hop,
por exemplo), é também verdade que estes passaram por um processo de ‘nacionalização’ e
apropriação. Na realidade, estas influências não são necessariamente violentas, o que está em
causa é a transformação da imagem social dos jovens, sendo a “modernização” da sua
imagem e atitude de rebeldia vistas à partida como negativas, o que pode ter contribuído para
um fechamento identitário e surgimento de relações violentas:
Acho que devemos ver os thugs em dois sentidos. Num sentido negativo, as confusões, as
paranóias e os vandalismos que fazem e no sentido positivo, as danças, os espectáculos que
dão. O governo deve olhar também para o sentido positivo. O governo não apoia em nada
(Entrevista colectiva, Associação Black Panthers).
Ao contrário do que sugere a citação, a construção da imagem social do thugs ou
qualquer jovem que, não o sendo, se vista ou comporte como tal, tem sido fundamentalmente
negativa. No fundo, o surgimento desses grupos trouxe um novo olhar sobre a imagem do
jovem cabo-verdiano tido como bom aluno, bem comportado, esforçado, trabalhador, capaz
de superar as inúmeras dificuldades impostas pelas vulnerabilidades estratégicas do país,
levando a que estes fossem construídos como ameaças e bodes expiatórios de qualquer mal
estar na sociedade cabo-verdiana.
10 Cerca de 57% dos homens com a idade compreendida entre os 15 e os 24 anos são afectados pelo desemprego, que é
claramente um fenómeno com expressão urbana (INE 2007). 11 Identificados com determinados bairros, cujo modus operandi a par de furtos e pequenos assaltos, passou a incluir
homicídios com armas de fogo.
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Por outro lado, apesar de uma potencial contribuição para a alteração do modus
operandi dos grupos de jovens, a identificação dos jovens deportados dos países de
acolhimento da emigração cabo-verdiana – principalmente dos EUA – que nos últimos anos
têm chegado em número crescente ao arquipélago, como os impulsionadores do surgimento
desses grupos é muitas vezes apresentada de forma exagerada, estereotipada e criminalizante
destes jovens, sem se questionar o mecanismo regulatório global que origina estes fluxos.
Esta associação tem a ver, em grande medida, com o facto de, por um lado, na origem
da deportação muitas vezes se encontrar a prática de crimes, e, por outro lado, de os
deportados enfrentarem situações de exclusão no processo de (re)integração no país. Ora,
concomitantemente com as histórias de sucesso dos emigrantes cabo-verdianos (as remessas
dos emigrantes constituem um dos principais sustentáculos da viabilidade do país), logo a
seguir à independência surgem os primeiros casos de deportados. O fenómeno ganhou alguma
expressão a partir da década de 80, existindo actualmente um número significativo de
deportados (cerca de 844, em 2007, segundo dados do Instituto das Comunidades de Cabo
Verde). Muito mais importante do que centrar aqui a nossa atenção na análise da relação entre
os deportados a violência colectiva juvenil em Cabo Verde e na percepção do papel que
possam ter desempenhado/desempenhar enquanto reprodutores de formas de organização
criminosa “aprendidas” nos países de acolhimento, gostaríamos de sublinhar a importância de
um olhar sobre a deportação que a considere um mecanismo regulatório global, de controlo
social, parte da agenda da paz liberal.
A nosso ver, essa ligação é visível quer a montante quer a jusante do processo. Ou
seja, nos países de acolhimento assiste-se à simplificação dos procedimentos, do quadro
jurídico-político, facilitando a deportação e vulnerabilizando os “deportáveis”; nos (supostos)
países de origem, os deportados são alvo de estigma social e contam, em muitos casos, com
programas de (re)integração que acabam por não contribuir para alterar essa rotulagem,
devido ao seu forte pendor assistencialista:
Os deportados tinham muita influência só no início. Eles agora só ficaram com a fama. Agora
thugs na Praia são os que ficam na rua para bater, são os jovens que não tem nada que fazer
(Entrevista colectiva, Associação Black Panthers).
Há também essa questão que é recorrente na análise da criminalidade na Praia que é a questão
dos retornados. Também acho que nunca foi convenientemente tratado entre nós, nem sob o
ponto de vista político, nem sob o ponto de vista do acolhimento. Há uns anos atrás os EUA
limitam-se a colocar a pessoa no avião e enviá-la até ao Sal. E nem cuidavam de informar o
governo de Cabo Verde que tipo de crime essa pessoa cometeu nos EUA (Ex.Ministro da
Administração Interna).
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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O Estado só ajuda se fizermos muita pressão (…) gasta-se muito mais dinheiro nos
telefonemas e a lisonjeá-los do que a ajuda que efectivamente te dão (Deportada entrevistada
na prisão de São Martinho).
Consideramos, portanto, que a deportação na sua versão mais actual contém elementos
que nos permitem identificar um núcleo comum com as deportações históricas. Tal como
acontecia no passado, continua a ser motivada por uma lógica de punição e de depuração da
sociedade. No passado, a expulsão e o banimento tinham como alvo preferencial os opositores
políticos e ideológicos dos regimes; na actualidade, os candidatos “escolhidos” para deportar
são os membros da sociedade que, pela sua origem ou outro factor mais circunstancial, não se
encaixam no padrão de cidadão ideal definido pelos Estados, em determinados contextos
sócio-políticos. Num contexto marcado pela procura incessante de bodes expiatórios, convém
chamar a atenção para os processos de incrustação social e política da oposição entre amigo e
inimigo, da desumanização, da marginalização e criminalização dos jovens, processos estes
extravasam para a sociedade, em muitos casos, mais violência do que aquela que se atribui
aos grupos de jovens.
Na verdade, é de sublinhar aqui o papel que a comunicação social desempenhou na
exacerbação deste fenómeno social, designadamente na fase inicial do seu surgimento,
quando se desconhecia quase completamente as suas características, consequências e factores
impulsionadores, contribuindo para “criar pânico moral” na sociedade cabo-verdiana
(Bordonaro, 2009). O tema da criminalidade e delinquência juvenil passou, desde 2000, a ser
frequentemente matéria de inúmeras notícias e crónicas jornalísticas, tendo alterado alguns
hábitos sociais e a percepção de segurança dos cabo-verdianos, particularmente dos habitantes
da cidade da Praia. Numa breve leitura dos comentários às notícias sobre violência juvenil nos
jornais online percebe-se o sentimento de insegurança vivido pela população, bem como a
legitimação de opções de justiça popular (violentas), sugeridas como solução para o
problema. Esses comentários representam, na nossa opinião, uma fonte de análise privilegiada
dessa problemática12
. A circulação de emails, em Junho de 2006 e em Janeiro de 2010, com
fotografias de alegados thugs, reforçam igualmente esse apelo à resolução da violência pela
via não institucional e oficial:
(…) Na minha opinião devia ter uma página completa ou mesmo um sítio inteiro na internet
apenas para a divulgação de imagens, cadastro policial e informações úteis sobre os thugs, pois
isso ajuda a sociedade e a própria a lidar com esses criminoso13
.
12 O livro (em elaboração) que resulta do projecto de investigação no qual se insere este artigo incluirá um estudo
exploratório do discurso mediático sobre violência, onde serão analisados alguns comentários online. 13 In http://liberal.sapo.cv/noticia.asp?idEdicao=64&id=26595&idSeccao=525&Action=noticia
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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Qual THUG? Qual líder? Líder do quê? Essas designações chiques fazem-nos pensar que são
galãs de cinema. Dão-lhes certos estatutos e pensam que o crime compensa. Chamem-lhes
pelos nomes que se chamava antes na nossa terra: PIRATAS, PIRATINHAS E PIRATÕES14
.
Identificados assim os ‘inimigos’ ou os ‘maus elementos’ da sociedade15
, através da
ênfase colocada nas variáveis individuais, descuraram-se, quase por completo, as alterações
estruturais ocorridas em Cabo Verde nos últimos anos: desigualdade, sociedade
individualizada e de consumo, exclusão social, desemprego, abandono escolar, descrédito das
instituições. Não resta, assim, margem às políticas de combate à violência senão o
alinhamento com a lógica global vigente, que se tem pautado pela repressão, pela
securitização, “tolerância zero” (Bordonaro, 2009) e “criminalização dos pobres e excluídos”
(Wacquant, 2001 [1999]):
Há muitos gangsters filhos de ricos; filhos de advogados. Quando são presos saem mais
depressa, recebem apoio da família e continuam na mesma vida. Vê-se claramente a diferença
entre um pobre e um rico. Vê-se esse efeito. Se forem presos juntos, o rico sai e o pobre fica
(Entrevista colectiva, Espaço Aberto Safendi).
Há esse preconceito. Mesmo sendo inocente és maltratado só por causa da roupa (Entrevista
colectiva, Espaço Aberto Safendi).
Reforço policial, presença de polícia militar nas ruas, nomeadamente nos bairros
periféricos, sistema prisional mais punitivo que reintegrador tornam-se, assim, ingredientes da
receita para o combate à violência urbana. Estas medidas têm revelado, porém, pouca atenção
às condições micro e macrossociais que contextualizam a violência e são criticadas por vários
sectores sociais:
Penso que, sem menosprezar a Polícia nacional, que a Polícia nacional anexada à Polícia
militar poderia atenuar um pouco a situação, mas só isso também não é o suficiente. Apenas ir
e amedrontar a pessoa na rua, para a fazer ficar dentro de casa, uma hora ou outra ela acaba por
sair. E se guardar o rancor por mais tempo, quando o extravasar, acaba por extravasá-lo com
mais força. Acompanhado disso o governo deve oferecer ocupação porque acredito que, sem
ocupação podemos trabalhar, podemos até conseguir frutos mas, será em menor quantidade
(Entrevista com representante da OMCV).
Porque temos de trabalhar esses dois sectores, família e educação, penso que ai, com políticas,
a direccionar para a família. Politicas governamentais juntamente com a implementação das
ONGs para tentar minimizar este problema da delinquência juvenil, mas eu ainda volto à
questão do neoliberalismo, grande oferta generalizada e pouco poder de compra (Entrevista
com presidente do ICCA).
Seria necessário recentrar o debate sobre a violência juvenil na discussão sobre os
modelos económicos e de Estado que se pretendem implementar. Um dos primeiros passos
consiste em retirar a ênfase colocada na pobreza (e não nas desigualdades) e na estrutura 14 In http://liberal.sapo.cv/noticia.asp?idEdicao=64&id=26595&idSeccao=525&Action=noticia 15 A este propósito ver, no caso de El Salvador, as mesmas dinâmicas de construção da insegurança real e imaginada através
da disseminação da ameaça e do inimigo sob a forma da imagem do “marero” [membro de gang] que já antes tinha existido
sob a forma de “indígena” ou do “guerrilheiro comunista” (Martel, 2006: 958), aqueles considerados indesejáveis pelas elites.
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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familiar como causas fundamentais da violência juvenil que originam respostas meramente
moralistas, que dividem os jovens ‘de bem’ dos jovens delinquentes. A sociedade cabo-
verdiana sempre conviveu com a pobreza e modelos familiares amplos (Lima, 2010: 205) sem
que isso levasse às manifestações de violência juvenil agora conhecidas. Em segundo lugar,
haveria que compreender esta procura de um estatuto social reconhecido analisando, por um
lado, as reacções às desigualdades produzidas pelos modelos de desenvolvimento e, por outro
lado, a legitimação da violência num contexto mais amplo de violências históricas (Lima,
2010) e de afirmação de masculinidades violentas e hegemónicas16
, não esquecendo que o
envolvimento violento dos jovens não é exclusivo dos pobres e excluídos.
5. Violências (i)legítimas e miragens securitárias na Guiné-Bissau
A imagem dos jovens como “moléculas perdidas” (Kaplan, 1994) em contextos de
pobreza extrema, manipulados para integrar grupos violentos, não parece adequar-se a Bissau,
onde mesmo a criminalidade dispersa não apresenta características de extrema violência ou de
existência de actuação em grupos, salvo raras excepções17
. Este tipo de organização e
afirmação violenta não faz parte das possibilidades apresentadas como existência social ou
estratégia de sobrevivência e afirmação18
da grande maioria dos jovens. Entre as várias
justificações para desmistificar a associação imediata entre jovens e agressores, encontram-se
formas de controlo social baseadas sobretudo nas relações de proximidade:
Há rivalidade mas não há aquele rancor…porque nós aqui, a maioria, são famílias. (…) eu sou
teu amigo, mas para já estamos a tratar como um irmão. A tua família é a minha família, a
minha família é a tua família, pronto, ficamos assim. Assim é difícil ter aquele rancor (P., 33
anos, Bissau).
Na Guiné-Bissau, o binómio jovens-violência parece reverter sobretudo para o
imaginário dos jovens como vítimas da violência estrutural: desemprego, pobreza – 80% da
população “pobre” da Guiné-Bissau tem entre 18 e 35 anos (PNUD, 2006: 11) – ausência de
acesso a educação de qualidade e obrigações familiares nem sempre aceites vão-se
acumulando com abnegação. O facto de não existirem formas de violência juvenil colectiva
directa mais visíveis e julgadas como ameaçadoras tem como explicação parcial, no entanto,
16 Segundo estudo do Ministério da Justiça com a UNDOC (2007) a percentagem das vítimas das ofensas sexual que
consideraram o incidente como uma violação, uma violação tentada, um assalto indecente ou um comportamento ofensivo é
de 53%, contratando com uma média de 37% em cidades da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC). 17 Resultados dos inquéritos realizados pelas autoras, com o Instituto Promundo, em Bissau, a jovens entre os 15 e os 24 anos
indicam que 41% reconhece a existência de bandos nos bairros mas 51% nunca viu nenhum acto de violência e 68% não se
lembra há quanto tempo existem. A identificação da existência de gangs ou bandos não tem necessariamente a ver com
violência mas com a forma de vestir, a aparência, o facto de consumirem drogas – visto, por muitos jovens como uma
violência em si. 18 Embora já o tenha sido em momentos excepcionais como a guerra de independência ou o conflito de 1998-1999.
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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algumas formas de violência difusa sofridas pelos jovens: o estatuto de submissão na família e
na sociedade, a sua dependência económica, o controlo religioso, mas também a aceitação do
destino e a ausência de revolta, espelho da inexistência de quadros de referência colectivos e
da ausência da ideia de cidadania – e que constitui uma forma de controlo político da
sociedade. De certa forma, a ausência de violência relacionada com grupos violentos juvenis
está relacionada com o grau extremo de normalização e aceitação da violência estrutural e
quotidiana, que se apresenta muitas vezes como uma aceitação fatal do destino: “Eu
conformo-me com a minha pobreza… Há pessoas que se sentem marginalizadas, mas eu não”
(R. 24 anos, Bissau).
Noutro trabalho (Roque e Cardoso, 2008) apontámos como possibilidade explicativa
da resistência dos jovens à socialização violenta a existência de formas de integração e
afirmação social e da masculinidade que substituem a necessidade de afirmação violenta
colectiva (para além das classes de idades e rituais de iniciação): as bancadas, grupos de
jovens baseados na solidariedade entre pares, maioritariamente masculinos. Estas são formas
de associação juvenil, tal com os gangs juvenis, sem as actividades criminais e o grau de
violência que caracterizam os últimos. Apesar de serem formas de “ocupação” dos jovens, de
aprendizagem com os mais velhos e ainda de controlo social – quase sempre localizadas em
frente às casas ou no meio delas, onde os mais velhos podem controlar – são vistas, no
entanto, pelos mais velhos sobretudo, como potenciais desestabilizadores, fonte de
manipulação política e militar. Também alguns jovens as consideram suspeitas, o que os leva
a fazer a distinção entre “bancadas do bem” – dedicadas a organizar campeonatos de futebol,
limpeza das ruas, festas e concursos de misses – e “bancadas do mal”, que seriam utilizadas
para tráfico droga ou organizar furtos e roubos ou simplesmente que se dedicam a actividades
mal vistas como o consumo de álcool e drogas.
Defendemos, no entanto, que a existirem preocupações com os propósitos e
actividades destes grupos e o seu potencial de violência, não são tanto as antes apontadas. Os
jovens entrevistados reconhecem como formas de aquisição de estatuto social a participação
em redes de clientela e de acesso a recursos do Estado ou a emigração e, apesar de alguns
referirem o tráfico de droga como um actividade que não recusariam à partida, consideram
que esse tipo de actividades ilícitas são também “monopólio” de outros grupos e recusam-na
quando considerados os riscos da violência associada. Não sendo pois esta a fonte geradora da
violência juvenil na Guiné-Bissau, sugerimos que ela está antes situada na tendência para
transformar formas de associação não violenta em reprodutores da violência gerada pela
omissão do Estado.
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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Apesar da omnipresença da violência estrutural e simbólica que afecta toda a
sociedade, as faces mais visíveis da violência na Guiné-Bissau são as dos conflitos político-
militares e das sistemáticas eliminações físicas nas lutas pelo acesso ao poder e recursos que a
ocupação do Estado oferece. Foi indirectamente por esta via que a Guiné-Bissau se tornou
uma periferia “perigosa” e alvo de controlo das intervenções internacionais. Os actores a
controlar estão claros nos discursos políticos e estratégicos: os militares.
Esta tentativa de controlo é tudo menos desinteressada. A lógica de intervenção deixou
há muito tempo de se basear no desenvolvimento – na diminuição da violência estrutural –
para dar lugar apenas a considerações de segurança. Apesar da manutenção do discurso sobre
o nexo entre segurança e desenvolvimento como lógica de “construção da paz”, na prática, as
únicas políticas que ganharam concretização são as que dizem respeito às questões de
segurança, agora retiradas da esfera da soberania nacional e equacionadas cada vez mais
como respostas necessárias às ameaças à segurança internacional. As questões centrais para
todas as agências e doadores internacionais e condições sine qua non para a manutenção da
ajuda passaram a ser a Reforma do Sector de Segurança (RSS) e o combate ao tráfico de
droga, com o objectivo de “proteger” os países do centro do sistema da penetração de
produtos ilegais19
, paralelamente à intervenção já existente que tem como objectivo
“protegerem-se” da emigração. A segurança em causa não é a da população do país: essa
mantém-se sob a responsabilidade da sociedade, face à omissão do Estado.
Isto significa, na prática, o adiamento sucessivo de programas de longo prazo que
visem o desenvolvimento socio-económico do país, já que os objectivos primordiais se
concentram na tentativa de implementar um Estado policial e penal num contexto em que o
Estado foi progressivamente desmantelado nas últimas décadas: reforma da segurança,
formação policial para controlo de fronteiras ou ainda a insistência na necessidade de
construção de prisões. À miragem do Estado acrescem as miragens securitárias, as quais não
alteram necessariamente as estruturas e o exercício do poder político e económico nem das
hierarquias sociais: permanece a impunidade e a manutenção do medo e da desconfiança por
parte das populações, em relação às instituições político-militares, impedindo uma postura
reivindicativa da sua parte, sustentando a conformação com o destino e a marginalização,
perante a impossibilidade de mudança.
19 A este propósito ver uma notícia baseada numa entrevista ao Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e Cooperação
português, em que este afirma que “a comunidade internacional precisa de uma Guiné-Bissau estável para conseguir
enfrentar o problema do narcotráfico”, assumindo-se indirectamente que apenas os interesses de autoprotecção face ao tráfico
internacional de cocaína, podem garantir o interesse dos países europeus pela Guiné-Bissau
http://www.noticiaslusofonas.com/view.php?load=arcview&article=27455&catogory=Guin%E9%20Bissau
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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Não se alterando necessariamente o funcionamento da justiça nem das forças de
segurança, reforçam-se os mecanismos sociais violentos para auto-protecção. Perante a
impossibilidade de um Estado penal - já para não falar do Estado social - ressurge a sociedade
penal, reforçada por grupos de jovens que assumem e reproduzem as funções das autoridades
policiais e judiciais e até das autoridades ditas “tradicionais”, sob a forma de “justiça popular”
desorganizada (perseguições e linchamentos), muitas vezes dirigidas a “bodes expiatórios”,
sem julgamento, formação de culpa ou possibilidade de defesa. Os grupos de “vigilantes” nos
bairros de Bissau, que ocupam várias dezenas de jovens nomeadamente reunidos em
bancadas, encontram apoio em versões globalizadas da luta contra o crime em outras partes
do mundo e a chancela de organizações internacionais e nacionais20
nem sempre utilizando os
métodos menos violentos:
Às vezes, alguns jovens estão lá à espera que alguém venha e assaltam-nos e roubam-lhes tudo
o que têm. Nós achamos que este crime não é bom. Sentimos que devemos ir a quem de direito
[polícia], mas se lá formos não nos dão aquele apoio porque não nos vêm como uma grande
organização. Só que ultimamente criou-se uma associação que os apanhava, os amarrava e
agredia, e isso [criminalidade] diminuiu… Só que depois deixou de funcionar porque eles
apanhavam uns e deixavam escapar outros que conheciam e com os quais tinham relações
familiares. Alguns acharam que não valia a pena fazê-lo porque eles faziam isso pelo bem do
Bairro mas outros levavam-se pelo conhecimento [das pessoas apanhadas] e acabaram por
abandonar (…) Se agredires alguém ou esfaqueares, nós é que te apanhamos, damos-te à
medida. Se der para resolvermos o teu problema aqui, resolvemos logo, mas se não
conseguirmos, encaminhamos-te directamente à polícia. Eles também te agridem e deixam-te
aí (Entrevista com líder de bancada, Bissau, 2009).
Apesar do reconhecimento da autoridade formal no combate à criminalidade, estes
jovens actuam por mimetismo da acção da polícia e da sociedade. No entanto, este mesmo
discurso revela ainda uma relação paradoxal com a polícia, a qual, por um lado, é conivente
com os métodos, e, por outro lado, tem dos jovens uma imagem negativa por se reunirem em
bancada e por terem comportamentos considerados negativos, como fumar. A acção destes
jovens citados baseia-se, não apenas na necessidade fundamental de assumirem a segurança
do bairro, mas também como forma do reconhecimento social que lhes é negado, à partida,
pela imagem dominante do jovem desocupado, preguiçoso, delinquente:
Porque, a quem vamos pedir apoio para nos proteger? Á polícia??? Mas eles não nos vão ver
como deve ser, vão-nos ver como umas simples pessoas que se sentam [nas bancadas] e
costumam chamar-nos bandidos que costumam ficar nas bancadas. Enfim, não sabem qual é a
nossa inteligência, o que pensamos, que dantes, na era deles, eles nem faziam. Dizemos só que
as pessoas não vejam as bancadas como locais onde os ladrões estão. É normal, porque dizem
que as pessoas das bancadas fumam, há pessoas que fumam, é normal fumar e fazer crimes,
mas não é aquele fumar de fumar droga, é fumar normal. Apesar de na nossa bancada não
permitirmos que as pessoas fumem, se sentar lá não pode fumar, pedimos à pessoa para ir
20 Ver por exemplo a versão nacional da organização Norte-Americana Youth Crime Watch em:
http://www.ycwa.org/world/gbissau/index.html
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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fumar noutro lugar para não estragarem o nosso nome (Entrevista com líder de bancada,
Bissau, 2009).
Ao agirem de forma violenta, estes grupos de jovens são um espelho da sociedade e do
poder político baseados na lógica do castigo imediato, aceite pela sociedade e pelas
autoridades. A invisibilidade deste tipo de envolvimento violento dos jovens justifica-se por
ser fundamentalmente uma violência de pobres contra pobres – ao contrário do que acontece
quando a violência começa a atingir as classes médias e altas, como em Cabo Verde,
transformando-se assim num problema social e político a ter em conta.
Por outro lado, se existem violências julgadas legítimas, outras não o são. É
paradigmático o exemplo citado abaixo:
M: Na Guiné, há muita briga nas ruas, pancadas, bebidas alcoólicas, os jovens na discoteca, às
vezes muitas brigas acontecem nas discotecas, nos bairros, as crianças mesmo. Pode haver nas
escolas…Há poucos dias havia uma violência ali no Bairro Militar porque os alunos atacaram a
escola porque não havia iluminação na escola, a escola não tinha providenciado a necessidade
para os alunos do curso nocturno. O que originou uma greve. Posso dizer que não é uma greve
mas uma violência porque alguns atiraram as pedras à escola e isso é uma violência, estás a
ver?
S: Mas também é uma luta pelos direitos deles…?
M: Sim, direitos deles, claro. Mas, pronto, deve haver outra maneira porque nós temos de
manter uma boa atitude, nós jovens, de bom comportamento. A solução pode vir a ser
encontrada sem violência, através do diálogo muito forte evolvendo outros parceiros
(Entrevista com líder de organização contra a “delinquência” juvenil, Bissau, 2009).
Como podemos ver pelo excerto, um movimento espontâneo de protesto ou revolta
dos jovens é rejeitado, ainda que não tenha vítimas, sendo necessária a chancela de
organizações formais (parceiros) para dar credibilidade às acções dos jovens, já que eles “não
sabem” como reivindicar. Esta análise da greve como violência não acontece por acaso. Não
só revela a (não) aceitação social do protesto e autonomia dos jovens, como também, o que
antes referimos como o processo de repúdio da violência que se transformou em repúdio por
qualquer tipo de conflito (não violento), veiculado por programas que buscam o consenso
social e a “cultura da paz”.
Assim, ao mesmo tempo, no contexto de securitização global, os jovens guineenses
passam a ser encarados pelo seu potencial de traficantes de droga, tal como já o eram em
relação à disseminação da SIDA, à emigração ou como fileiras dos exércitos privados. Apesar
da delinquência juvenil não ser um fenómeno significativo, o seu fantasma e riscos iminentes
de criminalização da juventude rondam as políticas internacionais de “construção da paz” –
onde se inclui o combate ao tráfico de droga. Se a violência nem sempre conduz à
insegurança, a insegurança nem sempre significa que exista violência directa, mas, antes, que
esta é, muitas vezes, criada. A percepção de aumento da criminalidade herdeira da noção
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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também exagerada de narco-estado21
e do pânico social face a pessoas e comportamentos
diferentes – desejos e hábitos de consumo globalizados (roupas, música, linguagem, etc.),
bem como a extrema valorização de poucos casos tornados míticos de violência juvenil, leva a
que, mais uma vez, na tentativa de manterem uma boa imagem social – que os
comportamentos e aparências vistos como modernos não garantem – os jovens acabem por ser
transformados em peões passivos da lógica do mercado da ajuda internacional. Os discursos
populares identificados sobre os jovens e a sua potencial violência estão quase sempre
associados com questões de propriedade (assaltos, roubos) ou ainda o consumo de drogas e
álcool, que é visto como violência em si. A culpabilização e responsabilização dos jovens pela
violência revela o quão a violência estrutural é naturalizada. Ao mesmo tempo, reforçam-se os
mecanismos normativos e morais que regem quase todas as abordagens internacionais em
relação aos jovens.
Os jovens começam a ganhar maior relevo nas políticas internacionais na Guiné-
Bissau por via da dimensão da segurança, aumentando o grau de desconfiança que já lhes é
dedicada pela sociedade. Analisemos alguns dos exemplos do que chamámos antes políticas
de securitização disfarçada e dos seus efeitos perversos:
Em 2009, uma ONG juvenil conseguiu apoios nacionais e internacionais para
“controlar as armas”, através de uma campanha de sensibilização e recolha de armas, num
bairro de Bissau. Ora, o problema das armas ligeiras em posse civil, definido por agendas
construídas artificialmente nas grandes ONG do Norte (Stavrianakis, 2010), não é um
problema que tenha sido alvo de estudos sérios para determinar o seu relevo ou linhas de
acção na Guiné-Bissau, por um lado, e, por outro, os jovens não têm qualquer possibilidade
de influenciar acções nesse sentido uma vez que não possuem estatuto social que lhes permita
aconselhar os mais velhos. Ao mesmo tempo, cada vez mais associações juvenis dirigem os
seus interesses para o combate à “delinquência juvenil”, definida quase sempre como
consumo de drogas e prática de roubos, sem, no entanto, terem qualquer tipo de conhecimento
sobre os diferentes tipos de droga, seus efeitos, etc. Encontramos neste casos uma clara
instrumentalização, pelos jovens, da captação de fundos do mercado da pobreza e da
insegurança, com agendas que se distanciam da realidade e que, muitas vezes, criam ainda
mais confusão sobre as causas dos problemas – de resto identificados de forma aleatória – e
geram a necessidade de manter uma imagem problemática da juventude para captação desses
fundos.
21 Ver Marco Vernaschi, “Guinea Bissau: World's First Narco-State”, 10.2009,
http://www.time.com/time/photogallery/0,29307,1933291,00.html
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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Já em 2008, foi levada a cabo uma série de eventos para “promover a cultura de paz”,
financiada pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, na qual os
jovens eram incentivados a “construir a paz”, considerando-se os jovens capacitados após
“receberem 40 horas aulas de formação em temas relacionados a paz, como a reconciliação,
terminologia da paz, comunicação, género e paz, construção de consensos, mediação e
diálogo” e “uma pequena quantia de dinheiro - 5 mil dólares para cada grupo - para pagar os
gastos essenciais de projectos”22
, sendo as actividades mais mediatizadas as iniciativas de
associações para “tentar convencer” líderes tradicionais e militares a não entrarem em
conflito. Os problemas fundamentais deste tipo de projectos consistem, em primeiro lugar, em
garantir aos jovens que após 40 horas de formação estão aptos a “multiplicar” a sua
experiência; em segundo lugar, no facto de reivindicarem resultados tão ambiciosos como “a
criação de capital social na Guiné-Bissau”23
em resultado de um programa com a duração de
um ano, baseado sobretudo na reprodução de eventos culturais esporádicos; em terceiro lugar,
em colocar os jovens no estatuto de responsáveis pela moralização da política e dos militares,
produzindo simulacros de sensibilização dos mesmos.
Um último exemplo: com a integração da Guiné-Bissau na agenda da Comissão de
Peacebuilding das Nações Unidas, graças à potencial ameaça do tráfico de cocaína, foi
planeado um programa de “emprego” para os jovens, administrado pelo PNUD. Este
programa destina-se fundamentalmente à ocupação dos jovens através de programas de
formação e micro-crédito motivando os jovens “empreendedores e dinâmicos” a auto-
responsabilizarem-se pela sua situação de precariedade! Se não vejamos o grupo-alvo do
projecto: “ os beneficários serão escolhidos de acordo com o nível de precariedade da sua
situações, o seu nível de exclusão do mercado de trabalho, mas também, com a sua
determinação em tornar-se mais autónomo (self-dependent) e adquirir uma posição que lhe
permite melhorar o seu próprio desenvolvimento”24
. Mas os objectivos são ainda mais
ambiciosos: pretende-se que os jovens sejam “multiplicadores de paz”, fugindo das situações
precárias em que se encontram e servindo de “exemplo” para os outros jovens - os bandidos,
delinquentes, desocupados. Não será de estranhar que, num contexto em que as redes
familiares de solidariedade e sobrevivência ainda vão possibilitando a manutenção dos jovens,
estes não procurem um trabalho que pouco mais lhes garante economicamente, e ainda lhes
22 PNUD (2009), “Iniciativa Juvenil”, Relatório Final, Fevereiro. 23 No documento antes citado, afirma-se como primeiro resultado e impacto geral: “capital social de Guiné-Bissau foi
fortalecido com a formação de 10 grupos juvenis em 40 horas de capacitação em temas de paz e a aquisição de experiência
prática na protagonização de iniciativas de engajamento cívico”. 24 Documento do projecto “Youth Professional Training and Employment” do PNUD, financiado pelo Peacebuilding Fund,
versão de Julho 2008.
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confere um menor estatuto. Não são empregos estáveis e bem pagos, nem formação
universitária que se oferece aos jovens dos países da África subsariana, em geral, mas sim
projectos de criação de emprego próprio pouco qualificado em mercados quase inexistentes e
votados, na sua maioria, ao fracasso.
Este imperativo de ocupação dos jovens e a rejeição de movimentos espontâneos dos
mesmos, vistos como ameaçadores, faz também com que se procurem reproduzir as
associações formais onde elas não são forçosamente necessárias. As bancadas e outros grupos
do género, que poderiam ter uma existência com objectivos simples de lazer,
confraternização, etc. são continuamente incentivadas a dedicarem-se a tarefas “mais nobres”
(limpeza, campanhas de sensibilização, etc.) e a formalizarem-se em associações. O resultado
destas intervenções é a reiteração e conformação do pensamento e da realidade sobre jovens e
violência, conduzindo à polarização entre jovens dinâmicos e empreendedores e os jovens
delinquentes que têm (quase) toda a responsabilidade pelas situação em que se encontram.
6. Questionar as políticas para repensar as causas: algumas conclusões
Ordenar, disciplinar, controlar os jovens que se encontram nas margens das sociedades
centrais ou das periferias é um dos imperativos de um projecto de paz global que pretende
ocultar a marginalização e as desigualdades que veicula como violência. O objectivo é o de
afastar os medos e as ameaças das sociedades centrais e das elites nas periferias. Este tipo de
políticas é, além disso, complementado por políticas julgadas fundamentalmente boas, de um
“império em negação” que reproduzem as falhas e vícios da indústria desenvolvimentista e de
promoção da paz. As questões fundamentais das desigualdades sustentadas pelo tipo de
Estado induzido pelo modelo de paz liberal ou ainda as cada vez mais reduzidas
possibilidades (não) violentas de reivindicação de um estatuto valorizado pelos jovens são
descuradas e, no entanto, estas são cruciais enquanto elementos ou mecanismos de mediação
entre a violência estrutural e a existência (ou não) de violência colectiva juvenil.
São três as razões que, a nosso ver, sustentam estas conclusões e podem ajudar a
recentrar o debate sobre as causas da violência colectiva juvenil, muitas vezes dominado pela
confusão e incerteza que suscitam análises multifactoriais que colocam ao mesmo nível a
desiguldade social ou o consumo de drogas.
Em primeiro lugar, este projecto de paz liberal não resolve – pelo contrário, acentua –
as condições de surgimento da violência directa através das opções políticas e económicas
antes elencadas. Este projecto baseia-se na criação de poucos e maus empregos ao nível
global (Sogge, 2010) e na manutenção de desigualdades, bem como na demissão do Estado da
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garantia de segurança e assistências dos e aos pobres para se dedicar apenas às suas elites25
.
Pretendemos, assim, chamar a atenção para a violência estrutural e simbólica veiculada pela
contradição entre a promessa modernizadora e de consumo da paz liberal e o facto de não ser
nunca alcançada por grande parte da humanidade, apesar das expectativas que produz,
sobretudo nos jovens. Assim, tal como já apontado por outros estudos, os conflitos e a
violência não emergem de questões meramente económicas mas também da vontade de
reivindicação política de um estatuto melhorado e de afirmação, de possibilidades de social
becoming ou existência/destino social (Richards, 1996; Barker, 2005; Vigh, 2006) que a
aposta na criação empregos mal pagos e de formação sem possibilidade de ascensão social ou
reconhecimento não pode garantir e onde interferem, não só questões económicas, mas
também a reprodução de modelos de comportamento e valorização associadas com a
construção de identidades género violentas ou não.
Em segundo lugar, a não participação dos jovens em grupos ou actividades violentas é
normalmente assumida como um “não-facto”. Há que precisar que as dificuldades de
“existência social” não provocam necessariamente reacções violentas e que a maior parte dos
jovens assume comportamentos não violentos, podendo as razões dessa não violência situar-
se na eficácia do controlo social ou na satisfação com a sua existência social ou estatuto, com
o seu destino social. O que não significa que não possam essas mesmas razões constituir-se
como violência em si, produzindo, em lugar de reacções violentas, alienação, passividade e
desesperança, como é evidente no caso da Guiné-Bissau.
Por último, este tipo de intervenções, justificando-se muitas vezes com o argumento
do respeito pela cultura local, não coloca em questão as hierarquias que caracterizam os
jovens africanos pela “exclusão face ao poder e a dependência em relação aos ‘homens’,
‘pais’ e ‘mais velhos’” (Argenti, 2007: 7), sustentando uma recusa das transformações sociais
conotadas com a decadência de valores e costumes – ou, por outras palavras, o que é
entendido como modernização. A inclusão dos jovens nas políticas é instrumentalizada e,
apesar de abrir caminho a esquemas de apropriação individual ou colectiva dos meios
financeiros colocados ao dispor, os incentivos dados aos jovens não vão ao encontro de
objectivos emancipatórios, tal como acontece em grande parte das intervenções a propósito da
“igualdade de género”. Esta manutenção do status quo revela-se ainda na “alergia” ao conflito
que tantos programas e formações em cultura da paz e mediação de conflitos produziram,
25 Não se pretende aqui relacionar directamente a pobreza ou as desigualdades económicas com a violência e o conflito, como
algumas teorias fazem ao olhar para o desenvolvimento económico como condição sine qua non da paz e o
subdesenvolvimento como razão de conflito (Collier et al. 2003). A este pensamento subjaz a ideia de que os pobres,
particularmente os jovens são naturalmente mais facilmente atraídos pela violência através de líderes sem escrúpulos.
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procurando-se consensos e recusando-se a mobilização espontânea e a compreensão das
estruturas e culturas violentas.
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A justiça restaurativa em contexto escolar: uma cultura para a prevenção da delinquência?*
Joana Maduro**; Nídia Azevedo***
Resumo: O presente artigo analisa o papel da escola enquanto espaço privilegiado para a prevenção de
comportamentos antissociais. O desafio lançado às escolas convoca um conjunto de respostas que se situam num
largo espectro entre a exclusão (tolerância zero) e a inclusão (justiça restaurativa). Em face das consequências
perversas da aplicação de medidas disciplinares repressivas, torna-se fundamental explorar a conceção de
estratégias alternativas que reconheçam as virtualidades de uma abordagem construtiva aos problemas de
comportamento, nos planos da prevenção e da reação. Não obstante as dificuldades de implementação que as
práticas restaurativas enfrentam, os resultados descritos na literatura são encorajadores e renovam a promessa de
criação de uma cultura para a prevenção da delinquência.
Palavras-chave: justiça restaurativa; tolerância zero; delinquência juvenil; contexto escolar
Abstract: This article examines the role of school as a privileged setting to prevent antisocial behavior. The
challenge faced by schools demands answers that range between exclusion (zero tolerance) and inclusion
(restorative justice). Due to the negative consequences of punitive measures, it has become important to explore
the conception of alternative strategies that recognize the virtues of a constructive approach to behavior
problems, on both levels of prevention and reaction. Despite the implementation difficulties faced by restorative
practices, the results described in the literature are encouraging and renew the promise of creating a culture for
the prevention of delinquency.
Key words: restorative justice; zero tolerance; juvenile delinquency; school setting
Introdução
Na qualidade de espaço de socialização, por excelência, a escola desempenha um
papel fundamental no estabelecimento de padrões normativos e na formação do caráter das
crianças e dos jovens (Karp & Breslin, 2001: 249).
As suas valências pedagógicas conheceram um maior alcance nos últimos 40 anos,
quando professores e investigadores começaram a perceber que o contexto escolar poderia
funcionar como fator de proteção, mas também como fator de risco. Um clima escolar
positivo, que promove relações normativas entre os alunos, baseadas na entreajuda e na
responsabilidade, sentimento de pertença, oportunidades para o sucesso escolar e o
reconhecimento das regras escolares, pode inibir ou atenuar o aparecimento de
comportamentos desviantes. Mas, pelo contrário, o fraco desempenho escolar, a rejeição de
pares e a indisciplina constituem fatores de risco reconhecidos da delinquência (Gilmore,
1999: 138).
* Artigo recebido em Janeiro de 2013 e aceite em Fevereiro de 2013.
** Joana Maduro ([email protected]). Mestre em Criminologia pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto,
Portugal. Doutoranda no programa “Direito, Justiça e Cidadania no Século XXI” do Centro de Estudos Sociais, Universidade
de Coimbra, Portugal. Docente do Mestrado em Criminologia do Instituto Superior Bissaya Barreto, Coimbra. ***
Nídia Azevedo ([email protected]). Licenciada e pós-graduada em Criminologia pela Faculdade de Direito da
Universidade do Porto, Portugal. Doutoranda em Criminologia na mesma instituição. Colaboradora num projeto de
investigação na área da Violência Conjugal na Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais. Co-autora do projeto de
prevenção da indisciplina em contexto escolar “Educar Mais”, em parceria com a Associação Portuguesa de Criminologia.
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Na década de 90, estes comportamentos problemáticos começaram a reunir uma maior
atenção por parte dos agentes educativos. Para além disso, a evidência científica demonstra
que os programas de sucesso são aqueles que se inscrevem nos contextos de vida naturais e,
nesse sentido, a escola assume-se como um local privilegiado para a prevenção de
comportamentos de risco das crianças e jovens.
Sendo certo que a escola deve prever respostas para estas condutas, é de ressalvar que
a natureza dos mecanismos disciplinares a aplicar deve ser ponderada. Em resultado, as
escolas acolheram um conjunto de programas que pretende promover as competências sociais
dos alunos, por forma a reduzir os seus comportamentos disruptivos. Contudo, apesar dos
esforços, a resposta mais frequente a estes comportamentos não é a promoção antecipada de
competências sociais, mas a aplicação de medidas de tolerância zero (Stinchcomb, Bazemore
& Riestenberg, 2006: 124), que engloba sanções disciplinares graves, como as suspensões ou
mesmo expulsões, que removem o ofensor do ambiente escolar e, em alguns casos, a
intervenção policial (Ashley & Burke, 2009: 9).
Porém, em face das consequências perversas da aplicação destas medidas
disciplinares, o recurso às práticas inspiradas na justiça restaurativa tem ganho popularidade
na comunidade educativa (Drewery & Winslade, 2005: 16). Esta popularidade reside na
ampla margem de criatividade na sua utilização.
1. A justiça restaurativa: aproximação ao conceito
Em termos gerais, a justiça restaurativa constitui uma abordagem inovadora à prática
de ofensas, na medida em que privilegia a finalidade de reparação do(s) dano(s) causado(s)
em detrimento da necessidade de atribuir a culpa e aplicar uma punição (Van Wormer, 2003:
441). Trata-se, portanto, de uma conceção da justiça que desafia noções que se encontram
profundamente enraizadas nas instituições de socialização da cultura ocidental (Hopkins,
2004: 30).
A definição mais consensual pertence a Tony Marshall (1999: 5): “justiça restaurativa
é um processo através do qual as partes envolvidas e/ou que possuem interesse numa ofensa
em particular, decidem, em conjunto, como lidar com as suas consequências imediatas e com
as suas repercussões no futuro”.
Segundo os termos desta definição, a justiça restaurativa aborda o crime como um
conflito interpessoal entre a vítima e o ofensor, cujas consequências requerem uma resposta.
Os proponentes da justiça restaurativa defendem que esta resposta – que surge sob a
designação de “acordo” – deve ter lugar onde o problema ocorre, isto é, nas próprias relações.
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E, nesse sentido, a sua construção deve pertencer exclusivamente às partes envolvidas no
conflito, com a ajuda de um facilitador. A justiça restaurativa não só se foca nas necessidades
das vítimas, dos ofensores e da comunidade, como atribui a cada um destes elementos um
papel ativo determinante na resolução dos seus conflitos.
Na sua aplicação prática, a justiça restaurativa desdobra-se em diversas faces, na
medida em que pode assumir uma variedade de programas, práticas e formatos (Rodríguez,
2007: 357), entre os quais se destacam a mediação vítima-ofensor, as conferências e os
círculos (Bazemore & Umbreit, 2001: 1). Apesar das diferentes designações que as práticas
de justiça restaurativa conhecem, elas partilham objetivos e valores comuns, pelo que as
diferenças se verificam essencialmente ao nível prático.
A mediação entre vítima e ofensor – a expressão mais visível da justiça restaurativa –
constitui um processo pelo qual a vítima e o ofensor, apoiados por um facilitador imparcial,
comunicam sobre a ofensa e as suas consequências e procuram desenvolver uma solução
mutuamente satisfatória (Umbreit, 2001: 38).
Os círculos apresentam uma dimensão mais abrangente, na medida em que procuram
incluir a vítima, o ofensor, os amigos, a família e membros da comunidade. Esta modalidade é
fundamentada na premissa de que todos estes participantes partilham a responsabilidade pela
ofensa cometida (Immarigeon & Daly, 1997: 6). Os círculos distinguem-se pela
particularidade de introduzirem no modelo de comunicação um objeto, comummente
designado por “talking piece”, que pretende facilitar o diálogo sem interrupções, pois quem
detém o objeto detém também a palavra, enquanto os restantes participantes escutam com
atenção (Umbreit, 2003: 1).
As conferências, apropriadas e privilegiadas nos casos de delinquência juvenil, na
Nova Zelândia, na Austrália e, mais recentemente, na Bélgica, para além de membros da
comunidade e agentes do sistema de justiça, incluem os familiares enquanto parte integrante
da resolução do conflito (Immarigeon & Daly, 1997: 5).
Deste modo, através de um processo de resolução informal de conflitos, a justiça
restaurativa mobiliza o suporte de uma rede de controlo (Stinchcomb, Bazemore &
Riestenberg, 2006: 131), reforçando a participação da(s) vítima(s), a responsabilização do(s)
ofensor(es) e o envolvimento comunitário na prevenção de incidentes semelhantes no futuro.
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2. A justiça restaurativa como processo criativo
2.1. Tolerância zero versus justiça restaurativa
As primeiras respostas dirigidas à problemática da violência escolar seguiram a reação
tradicional ao crime pelo sistema de justiça, refletindo uma tendência retributiva, cujas
estratégias são, vulgarmente, designadas por tolerância zero (Stinchcomb, Bazemore &
Riestenberg, 2006: 124).
Em termos gerais, as instituições educativas procuravam responsabilizar os alunos
através de uma resposta punitiva que prevê, em função do grau de gravidade da ofensa
cometida, a sua exclusão do contexto escolar. Contudo, nas últimas duas décadas, esta linha
de reação formal e as suas consequências começaram a ser questionadas por estudos
empíricos que demonstram uma relação entre determinadas medidas disciplinares (e.g.,
suspensão) e o abandono escolar, com todos os custos pessoais e sociais que essa
circunstância acarreta (Stinchcomb, Bazemore & Riestenberg, 2006: 130). Subsequentemente,
tornou-se necessário encontrar alternativas mais eficazes para controlar os comportamentos
antissociais nas escolas.
Atualmente, o quadro da justiça restaurativa tem sido apontado por políticos,
investigadores e profissionais do terreno como uma resposta construtiva aos problemas de
comportamento dos estudantes. Muitas vezes, as crianças não têm consciência do impacto do
seu comportamento nos outros. Uma experiência restaurativa visa, precisamente, construir
essa consciência (Skager, 2007: 13).
Reconhecendo que as relações entre os elementos da comunidade escolar afetam
profundamente o processo de aprendizagem, as práticas restaurativas oferecem uma
abordagem ética dirigida aos aspetos relacionais entre os membros dessa comunidade. As
estratégias restaurativas focam a sua atenção no comportamento que originou o conflito,
desenvolvendo uma intervenção pedagógica que visa promover: i) as relações sociais
positivas na comunidade escolar; ii) a responsabilidade pelas ações praticadas; iii) o respeito
pelos outros e pelos seus sentimentos; iv) a empatia; v) a justiça; vi) a participação ativa da
comunidade escolar; e vii) a criação de oportunidades para refletir sobre a mudança
(McCluskey et al., 2008: 407).
Às vítimas, a justiça restaurativa oferece: i) uma escolha relativa ao modo de resolução
do conflito; ii) uma oportunidade de dialogar sobre os acontecimentos; e iii) segurança. Aos
ofensores, as medidas restaurativas oferecem uma oportunidade para: i) reconhecer a
responsabilidade pelas ações praticadas; ii) compreender o impacto do seu comportamento e,
consequentemente, desenvolver uma atitude empática; iii) reparar os danos provocados e iv)
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desenvolver competências alternativas que os ajudem a prevenir comportamentos idênticos no
futuro (Hopkins, 2002: 146).
Independentemente da modalidade que o programa privilegie – mediação vítima-
ofensor, conferência ou círculo –, o processo partilha uma estrutura comum que exige um
investimento de tempo muito superior às ações disciplinares tradicionais. Este processo
conhece o seu início no encaminhamento do conflito ao serviço ou elemento responsável pela
sua promoção – o facilitador – e termina com a monitorização do acordo atingido pelos
participantes (Kidde & Alfred, 2011: 26).
Deste modo, após a sinalização do incidente, cabe ao facilitador, num momento
inicial, abordar separadamente cada um dos intervenientes no conflito. Nesta primeira fase, o
facilitador deve: i) explicar aos participantes em que consiste o processo restaurativo, as suas
finalidades, os seus princípios (e.g., voluntariedade, confidencialidade) e as consequências da
sua participação; ii) ouvir a versão pessoal das circunstâncias que envolveram o incidente e
iii) avaliar a adequação do processo ao conflito e às caraterísticas dos participantes.
Na etapa central do processo – o encontro entre os participantes e, quando se trata de
conferências e círculos também com a comunidade escolar –, fazem parte do leque de funções
do facilitador as seguintes: i) rever os objetivos e a estrutura do encontro; ii) garantir que as
regras do encontro são compreendidas e respeitadas por todos os participantes; iii) permitir
que os principais intervenientes no conflito comuniquem sem serem interrompidos e
desrespeitados; iv) apoiar os participantes na obtenção de um acordo satisfatório para ambos e
v) garantir a monitorização do acordo.
O momento da obtenção do acordo pode constituir um apelo central à criatividade.
Quando se trata de desenvolver um processo de justiça restaurativa entre crianças, procurar
criar soluções construtivas, integradoras e satisfatórias para todos os participantes pode
tornar-se uma tarefa que se reveste de intensa criatividade.
Não obstante o caráter multifacetado da justiça restaurativa, a estrutura comum do
processo permite apontar elementos comuns às diversas práticas: o envolvimento da
comunidade, a responsabilização individual, a reparação do dano e a participação ativa das
partes na resolução do conflito (Pranis, 1998: 29). À partilha de valores e objetivos comuns,
alinha-se um conjunto de caraterísticas que consagra a justiça restaurativa como uma opção
alternativa, válida e empiricamente sustentada à aplicação de medidas punitivas, em contextos
que transpõem o sistema de justiça. A sua forte capacidade de adaptação tem contribuído
decisivamente para a sua dispersão e penetração na regulação de conflitos nas escolas, na
comunidade, no trabalho, nos negócios e ainda na política internacional (Roche, 2006: 217).
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O caráter adaptável da justiça restaurativa a contextos vastos e distintos é indissociável
da flexibilidade que pode assumir a sua implementação prática, mediante os objetivos
estruturantes definidos. Antes, porém, da definição dos objetivos de um programa baseado no
núcleo de valores da justiça restaurativa – respeito, responsabilização e apoio – privilegiam-se
as finalidades perseguidas pelos próprios contextos ou instituições.
Segundo Hopkins (2004: 32), a flexibilidade constitui indubitavelmente a chave do
sucesso da justiça restaurativa em contexto escolar. É essa flexibilidade que viabiliza uma
aplicação criativa dos seus princípios e valores aos agentes educativos, aos facilitadores e aos
participantes no processo restaurativo.
Ainda que os processos restaurativos (e.g., mediação) assumam a face mais visível da
justiça restaurativa, esta deriva de um conjunto de valores que transmitem confiança, respeito
mútuo e tolerância e reconhecem a importância dos sentimentos, das necessidades e dos
direitos. É esta a base de valores que sustenta a multiplicidade das intervenções restaurativas.
Neste sentido, as experiências promovidas sob o signo da justiça restaurativa têm confirmado,
efetivamente, a necessidade de incutir uma filosofia restaurativa ao sistema disciplinar escolar
(Thorsborne & Cameron, 2001: 180).
2.2. A justiça restaurativa como estratégia de promoção de competências sociais
A exigência de uma filosofia restaurativa em contexto escolar tem encontrado
ressonância a um nível muito precoce do processo de educação. A adoção de medidas
restaurativas tem sido reclamada pelo ensino pré-escolar, onde as competências emocionais e
sociais começam a ser, desde logo, promovidas e modeladas. Estes desenvolvimentos
constituem um resultado direto da afirmação da justiça restaurativa enquanto estratégia de
promoção de competências sociais em contexto educativo, promovendo, numa base
relacional, o cuidado e a justiça, o respeito e a responsabilidade. Esta função tem sido
igualmente desempenhada por programas de prevenção universal, que integram estratégias de
resolução de conflitos nas suas unidades de intervenção. Sherman (2003: 7) defende
inclusivamente a oferta, aos contextos educativos, de uma justiça emocionalmente inteligente
que compreenda os seguintes elementos: i) aumento da consciência das emoções, ii)
reconhecimento das emoções das vítimas e ofensores, e iii) gestão das emoções.
O PATHS – Promoting Alternative Thinking Strategies constitui um exemplo
paradigmático da articulação destas componentes, numa lógica pedagógica, promovendo
competências fundamentais para a implementação de uma cultura restaurativa. Trata-se de um
programa de prevenção universal dirigido a crianças em idade pré-escolar, em contexto de
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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sala de aula, que visa desenvolver as suas competências sociais (e.g., empatia) e reduzir os
problemas de comportamento, promovendo alterações no clima da sala de aula. O cerne da
intervenção emerge na componente emocional, que enfatiza a consciência afetiva sobre si
próprio e o outro. O currículo do PATHS contém 60 sessões conduzidas uma vez por semana
pelos educadores. O programa divide-se em três unidades temáticas: a) sentimentos básicos e
avançados, b) estratégias de autocontrolo e c) resolução de problemas. Os principais objetivos
do programa consistem em: i) promover a consciência das crianças relativamente às suas
próprias emoções e às emoções dos outros, ii) promover o autocontrolo; iii) promover
relações interpessoais positivas; iv) desenvolver a resolução de problemas, pela adoção do
autocontrolo, o reconhecimento dos afetos e as competências de comunicação e v) criar uma
atmosfera positiva na sala de aula que suporta a aprendizagem socioemocional (Domitrovich,
Cortes & Greenberg, 2007: 70).
A justiça restaurativa viabiliza o treino destas competências, uma vez que que encoraja
o seu emprego à resolução dos conflitos. Neste sentido, a partilha de elementos emocionais e
cognitivos entre os programas de prevenção universal da delinquência e os programas de
justiça restaurativa permite-nos reconhecer a necessidade de uma abordagem proativa da
justiça restaurativa em contexto escolar (Morrison, 2005: 153). Esta abordagem parte de uma
conceção preventiva, na medida em que visa promover competências sociais dos alunos que
lhes permitam desenvolver um estilo de comunicação assertiva e, consequentemente,
minimizar os conflitos escolares. Pelo contrário, a ocorrência desses conflitos obtém resposta
da dimensão reativa, cuja intervenção se destina à resolução dos mesmos e à reparação do
dano provocado.
As intervenções mais eficazes e sistémicas são aquelas que adotam uma abordagem
integrada de ambas as dimensões (preventiva e reativa), prevendo uma aplicação da filosofia
restaurativa num contínuo ininterrupto de práticas.
3. O contexto escolar e os desafios à implementação
Tendo em consideração que a abordagem restaurativa constitui um desafio às práticas
disciplinares tradicionais, exige-se, num primeiro momento, a oferta de mecanismos de
sensibilização do próprio programa, da sua filosofia e dos seus termos de aplicação a toda a
comunidade escolar. Para o efeito, Howard (2009: 22) recomenda que a publicidade do
programa seja realizada através das seguintes vias: i) reuniões de docentes, pais, funcionários;
ii) folhetos e cartazes e iii) transmissão pessoal informal. A ação de sensibilização deve ser
acrescida de uma ação formativa dirigida, em particular, aos profissionais técnicos (e.g.,
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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psicólogos, assistentes sociais), aos professores e aos auxiliares de ação educativa, com vista a
harmonizar os princípios teóricos da justiça restaurativa com as práticas desenvolvidas.
O facilitador desempenha um papel fundamental na dinamização destas estratégias.
Para além das competências técnicas necessárias que deve dominar para conduzir um
processo restaurativo, o facilitador assume-se, na maioria dos programas, como um agente
educativo cuja ação deve ser exemplar na promoção dos valores restaurativos.
As particularidades do contexto exigem que o facilitador encontre um equilíbrio entre
a imparcialidade naturalmente inerente ao seu papel e a dimensão pedagógica exigida pelo
desempenho de funções num espaço de socialização. Por esse motivo, em contexto educativo,
o facilitador deve calibrar a sua intervenção de acordo com a idade, o desenvolvimento
emocional, cognitivo (nomeadamente ao nível verbal) e moral das crianças envolvidas no
conflito. Casella (2000: 339) concretiza, referindo que, quando as crianças não forem capazes
de reconhecer de que modo o conflito as afeta, cabe ao facilitador ajudá-las explorar a
amplitude e o impacto do conflito.
4. Avaliação
No que diz respeito à avaliação das práticas restaurativas em contexto escolar, torna-se
imprescindível referir a primeira experiência que recorreu às conferências em resposta à
prática de condutas desviantes (e.g., furtos, destruição de propriedade) nas escolas de
Queensland, Austrália, em 1994 (Thorsborne & Cameron, 2001: 181).
A partir desta experiência, a avaliação revelou uma elevada satisfação dos
participantes no processo restaurativo e nos seus resultados, uma elevada taxa de
cumprimento dos acordos pelos ofensores, assim como um baixo nível de reincidência.
A maioria dos ofensores revelou sentir-se mais integrada na comunidade escolar e
mais preocupada com os seus membros através da conferência. As vítimas, por sua vez,
sentiram-se mais seguras e mais capazes de gerir incidentes semelhantes após a conferência.
Na perspetiva dos participantes na conferência, o processo contribuiu para o estabelecimento
de relações mais próximas com os outros elementos da comunidade escolar. A visão dos
administradores da escola também foi prevista na avaliação, revelando um reforço dos valores
da escola. Assim, todas as escolas envolvidas alteraram o seu modelo de gestão do
comportamento, transitando de uma perspetiva punitiva para uma perspetiva restaurativa
(Thorsborne & Cameron, 2001: 182).
Verificou-se, ainda, por parte dos ofensores, um reconhecimento dos danos
psicológicos resultantes de agressões físicas e, consequentemente, um compromisso face à
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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garantia de segurança no futuro, que representou por si só, para as vítimas, como reparação
do(s) dano(s).
A experiência australiana foi seguida de uma implementação massiva de programas de
resolução de conflitos em contexto escolar nos EUA, sob a alçada de centros de mediação
comunitária (Crawford & Bodine, 1996: 13).
No final da década de 90, no Minnesota, foi implementado um projeto de resolução de
conflitos em contexto educativo, que privilegiou como modalidade de intervenção os círculos.
O espectro de ofensas consideradas compreendeu desde pequenos incidentes disciplinares na
sala de aula até ofensas mais sérias e graves (e.g., agressões físicas, destruição de propriedade,
furtos). Em termos gerais, avaliação do projeto, que incidiu sobre parâmetros disciplinares
(e.g., registos de suspensões e de absentismo) e académicos (e.g., sucesso escolar), revelou
resultados positivos (Stinchcomb, Bazemore & Riestenberg, 2006: 138).
Não obstante a diversidade de práticas restaurativas, a mediação de pares constitui a
modalidade mais representativa da aplicação da mediação de conflitos em contexto escolar.
Porém, os resultados da implementação desta prática revelam-se ainda controversos, o que se
deve, fundamentalmente, à ausência de rigor metodológico dos estudos avaliativos,
designadamente, grupos de controlo (Haft & Weisst, 1998: 218). Para Burrell, Zirbel e Allen
(2003: 12), a observação do registo das suspensões e de medidas disciplinares sugere que a
mediação de pares tem efeitos positivos nos comportamentos e nas atitudes dos alunos. Por
sua vez, Bell e colaboradores (2000: 513) concluíram que o programa de mediação de pares
avaliado revelou eficácia apenas na diminuição de conflitos menos graves, tais como insultos.
A literatura mais recente tende a avaliar os efeitos da justiça restaurativa na cultura
organizacional e no desenvolvimento de capital social e eficácia coletiva (Morrison, Blood &
Thorsborne, 2006: 338). Contudo, e mais uma vez, a avaliação do impacto da mediação de
pares, baseada sobretudo na observação informal e na autoavaliação, demonstra que esta
prática não teve efeitos significativos no clima escolar (Haft & Weiss, 1998: 217).
5. Escola, justiça e sociedade
Os dias que correm assistem a uma urgência em conciliar a relação entre justiça e
sociedade. O desafio que esta missão encerra tem convocado uma multiplicidade de atores e
estratégias a intervir sobre um palco de conflitos, intolerâncias e frustrações. Na qualidade de
espaço de socialização primária, a escola enfrenta uma acrescida responsabilidade na
modelagem dos comportamentos de crianças e jovens.
Assim, e de acordo com a evidência científica, esta micro-comunidade – espelho de
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relações sociais mais vastas – surge como um espaço particularmente propício ao
desenvolvimento de competências sociais promovidas por estratégias de resolução de
conflitos interpessoais em idades muito precoces (McWilliam, 2010: 305). Os preceitos
teóricos que a justiça restaurativa suporta, promovendo um equilíbrio fundamental entre a
responsabilidade do ofensor e a sua reintegração, são decisivos para a criação de uma cultura
genuinamente pedagógica, formadora de cidadãos mais conscientes, responsáveis, tolerantes e
sociáveis.
Esta concepção alcança ressonância nos efeitos reportados pelos participantes nos
programas inspirados na filosofia da justiça restaurativa: i) aumento da empatia; ii) aumento
das competências sociais, de gestão da raiva e de comunicação e iii) generalização das
competências de resolução de conflitos ao contexto escolar e familiar (McWilliam, 2010:
302).
Em face destes resultados, McWilliam (2010: 293) critica a fraca consideração que o
sistema de justiça tem prestado à resolução de conflitos em contexto escolar, enquanto
mecanismo de prevenção da delinquência.
Esta crítica tem sido sustentada por investigadores que têm procurado conhecer os
resultados da aplicação de políticas de tolerância zero e que, em face dos mesmos,
reconhecem que estas conflituam com as expectativas e práticas recomendadas à intervenção
em contexto escolar. A missão educativa da escola só sucederá se a escola souber preservar a
segurança e a integridade dos seus membros. E ainda que, aparentemente, a remoção dos
estudantes disruptivos do espaço escolar torne a escola um local mais seguro, a evidência
empírica não tem corroborado estas hipóteses, reclamando a implementação de medidas
alternativas que promovam uma melhoria efetiva do clima escolar e do sentido de pertença à
comunidade escolar (Skiba et al., 2006: 112).
A sua aplicação não deve, em qualquer momento, ser negligenciada, na medida em
que a escola, enquanto espelho social, exige o exercício da justiça na dupla vertente da
formação e da transformação. Os desafios económicos e sociais lançados à escola
promoveram uma reconfiguração da sua missão educativa que, atualmente, ultrapassa o
desenvolvimento das crianças assente apenas no conhecimento. Atualmente, a proposta
política e social, nos termos da Estratégia Europa 20201, é no desenvolvimento baseado, quer
conhecimento, quer na inovação. Esta proposta, que prioriza um crescimento inteligente,
sustentável e inclusivo, reforça o papel da escola enquanto fonte da resolução criativa dos
1 Europa 2020 designa a estratégia de crescimento para a União Europeia de 2010 a 2020, orientada para um crescimento
inteligente, sustentável e inclusivo.
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problemas sociais, políticos e culturais, em sociedades complexas e turbulentas. É na
promoção destes intercâmbios entre a sociedade e as instituições educativas que se alcançará
uma harmonização plena entre a justiça e a sociedade.
6. Conclusão
Frequentemente contraposta às políticas de tolerância zero, a justiça restaurativa
constitui uma abordagem complexa, que permite a oferta de respostas integradoras aos
problemas de comportamento dos estudantes, apelando ao consenso no seio da comunidade
escolar, em detrimento das tradicionais respostas que optam por castigar os alunos ofensores
ou removê-los do contexto escolar. A justiça restaurativa distingue-se da tolerância zero, na
medida em que pressupõe um processo voluntário, ou seja, a decisão de participação decorre
da vontade de todos os intervenientes no conflito. Este traço distintivo viabiliza a introdução
de procedimentos criativos nas políticas e nas práticas educativas, ao contrário das políticas
de tolerância zero, que limitam a intervenção, com sanções pré-definidas.
A partir da revisão elaborada, é possível concluir que o processo de implementação
das práticas de justiça restaurativa é exigente, na medida em que impõe um grande esforço e
investimento de tempo e dedicação por parte de todos os agentes educativos. A justiça
restaurativa constitui um processo analítico, prolongado e integrador. E nessa medida, uma
política exclusivamente restaurativa torna-se difícil de implementar nas escolas, tendo em
consideração a sua preferência pelos meios disciplinares tradicionais.
Apesar da crescente popularidade e aplicação da justiça restaurativa em contexto
educativo, o recurso à combinação entre medidas restaurativas e medidas retributivas torna-se
uma abordagem mais flexível, praticável e viável para responder aos casos de conflitualidade.
Braithwaite (2002: 7) recomenda mesmo, para os comportamentos mais graves (que
representam uma minoria dos casos), a aplicação de medidas sancionatórias conjugadas com
medidas restaurativas.
As dificuldades apontadas à implementação das práticas restaurativas têm encontrado
equilíbrio nos resultados encorajadores que as raras avaliações têm demonstrado a curto e a
longo-prazo. A redução da reincidência, a satisfação dos participantes relativamente aos
resultados do processo, a integração do ofensor na comunidade e a formação da consciência
comunitária sugerem que a justiça restaurativa se encontra no caminho para se assumir como
uma verdadeira cultura para a prevenção da delinquência.
Contudo, torna-se ainda necessário investir mais na avaliação dos programas de justiça
restaurativa nas escolas, optando por métodos mais rigorosos, que prevejam a constituição de
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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um grupo experimental e de um grupo de controlo, pois só desse modo se tornará possível
aferir a eficácia destas práticas.
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99
As mortes e a vida de jovens no “mundo do crime” no Brasil: homicídios, comensurabilidade e “vida loka”*
Danielli Vieira**
Resumo: O artigo discute o tema dos “adolescentes em conflito com a lei” no Brasil a partir de dados
etnográficos de duas pesquisas realizadas no âmbito de instituições em que os adolescentes cumpriam medidas
socioeducativas de internação e de semiliberdade. Em uma das pesquisas foram ouvidas narrativas sobre
homicídios e na outra as histórias de vida e da “vida no crime” dos jovens. O texto é composto por reflexões
sobre juventude e criminalização; “mundo do crime” e comensurabilidade entre mundos; a vida loka. O
argumento central é o de que a “vida no crime”, a “vida loka” não é autônoma em relação a outros domínios de
nossa sociedade e, ao mesmo tempo constitui um modo de vida que ultrapassa a questão da infração penal: nesse
mundo entram em cena processos de subjetivação, moralidades, códigos de conduta, politicidade.
Palavras-chave: Juventude. Violência. Criminalização.
Abstract:The article discusses the topic of "adolescents in conflict with the law" in Brazil based on ethnographic
data from two fieldworks conducted in institutions of "deprivation of liberty" or “semiliberty” for the fulfillment
of social and educational measures. In one study were heard stories about homicides and in the other the life
stories and the "life in crime" of young people. The text consists of reflections on youth and criminalization;
"criminal world" and commensurability between worlds; vida loka (“thug life”). The central argument is that the
"life in crime" is not autonomous in relation to other areas of our society and at the same time is a way of life
that goes beyond the issue of criminal offense: this world come into play subjective processes, morals, codes of
conduct, politicity.
Keywords: Youth. Violence. Criminalization.
Introdução
Neste artigo são apresentadas algumas reflexões que têm por base dados etnográficos
dos trabalhos de campo realizados para o desenvolvimento de minha dissertação de mestrado
(Vieira, 2009) e da tese de doutorado que está em construção. As pesquisas foram realizadas
junto a adolescentes (de 13 a 18 anos) que cumpriam “medidas socioeducativas” de
internação e de semiliberdade por conta de infrações penais.1 No primeiro campo (em 2009)
ouvi histórias sobre homicídios entre jovens e no segundo procurei alargar o foco da pesquisa
para conhecer outras dimensões da experiência desses jovens institucionalizados a partir da
escuta de suas histórias de vida e da convivência com eles em uma Casa de Semiliberdade.
No Brasil, no campo das ciências jurídicas e das sociais tem-se denominado esses
sujeitos como “adolescentes em conflito com a lei”. Os adolescentes
, por sua vez, dizem que são
* Artigo recebido em Janeiro de 2013 e aceite em Março de 2013.
** Danielli Vieira é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa
Catarina, Brasil. Mestre em Antropologia Social pelo mesmo Programa. Bacharel e licenciada em Ciências Sociais também
pela UFSC. É integrante do Laboratório de Estudos das Violências LEVIS/UFSC desde 2003. [email protected] 1No Brasil, as pessoas com menos de 18 anos são penalmente inimputáveis e sujeitas às “medidas socioeducativas” previstas
pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990), quando se verifica a prática de “ato infracional”. De acordo
com o artigo 112 do mesmo Estatuto, as diferentes medidas são aplicadas de acordo com a capacidade de cumpri-las, as
circunstâncias e a gravidade da infração. São elas: advertência; obrigação de reparar o dano; prestação de serviços à
comunidade; liberdade assistida; inserção em regime de semiliberdade; internação em estabelecimento educacional; medidas
específicas de proteção.
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
100
“do crime”, “do mundo do crime”, da vida loka 2. Em uma tentativa de aproximação
etnográfica, é possível dizer que os jovens brasileiros da “vida loka” possuem um modo de
vida semelhante ao dos “thugs” (LIMA, 2010) de Cabo Verde. Falo em “tentativa” e em
“aproximação”, pois são contextos socioculturais diferentes. Mesmo no Brasil a
heterogeneidade é grande: as experiências dos adolescentes “no crime” possuem algumas
características compartilhadas, mas há uma série de especificidades locais. Sabemos,
entretanto que há processos sociais abrangentes, alguns em escala global, que atuam na
produção das vidas e mortes desses sujeitos. A partir de oportunidades como a proporcionada
por essa revista podemos conhecer pesquisas realizadas em contextos diversos e abrir frentes
de diálogo que estendam nossa compreensão sobre o tema.
Na primeira parte do artigo há uma discussão sobre a categoria juventude e a relação
entre essa última e processos criminalização de jovens; em seguida um tópico sobre a questão
do “mundo do crime” e uma proposta de comensurabilidade entre mundos. Os dois primeiros
tópicos estão fundamentados, em grande parte, na pesquisa sobre homicídios. Já o último
tópico – sobre a vida loka - se refere à pesquisa para a tese e os argumentos nele esboçados
estão em fase de elaboração.
1. Juventudes, homicídios, criminalização
Tanto “violência” como “juventude” são constituídas como representativas de uma
ideia mais geral de “crise social”, de “problema”. Tais noções funcionam também como
“ícones” sociais, na medida em que traduzem uma série de percepções sobre o mundo
contemporâneo, mas que pouco dizem sobre si mesmas como categorias analíticas.
De acordo com o Mapa da Violência dos Municípios Brasileiros (Waiselfisz, 2007) O
universo de jovens com idades de 15 a 24 anos concentra a maior parte de vítimas nas
situações de homicídio no Brasil. Desde a década de 80 o número de jovens assassinados a
cada ano cresceu vertiginosamente. Com maior intensidade do que na população total, 96,7%
das vítimas entre os jovens são homens. Além disso, da mesma forma que no total de
homicídios, mas com maior intensidade ainda, existem entre os jovens 83,1% a mais de
vítimas negras do que de vítimas brancas. De acordo com Luiz Eduardo Soares (Athayde;
Bill; Soares, 2005), dados como esses indicam uma situação alarmante que já vem marcando
2 As categorias “envolvimento”, “crime”, “no crime” aparecerão entre aspas, pois se referem aos usos nativos. Elas são mais
abrangentes e polissêmicas que, por exemplo, as noções jurídicas de “adolescente em conflito com a lei” e “infração penal” e
implicam experiências que não se restringem à questão legal/ilegal ou ao cometimento de certas práticas. Expressam, mais do
que isso, uma “maneira de viver”, um “mundo” possível.
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
101
a própria estrutura demográfica do país: há um déficit de jovens na sociedade brasileira –
fenômeno só verificado nas estruturas demográficas de sociedades que estão em guerra.
Além de constituírem o grupo mais atingido por homicídios, muitos jovens também
estão matando outros jovens. Entretanto, a maioria dos crimes contra a vida são perpetrados
por pessoas com mais de 18 anos. Quais mecanismos atuam na “invisibilização” dessa
situação de genocídio no país e, ao mesmo tempo, na “visibilização” do jovem pobre como
“perigoso”, “delinquente”? Como tem sido abordada a temática da juventude e sua relação
com situações de conflito social e violências na produção de conhecimento sócio-
antropológico? Como pensar as especificidades da condição juvenil vivenciada pelos
adolescentes em situação de internamento? Essas questões, dentre outras, permeiam a
discussão realizada nesta seção.
2. Juventude: considerações teóricas e dados etnográficos
De acordo com Helena Wendel Abramo (1994), a noção de juventude aparece como
categoria especialmente destacada nas sociedades industriais ocidentais modernas, pois surge
como um problema da modernidade. A autora mostra que o interesse pela juventude se deu na
medida em que certos setores juvenis pareciam problematizar o processo de transmissão das
normas sociais. No início do século XX, a visibilidade da juventude e sua problematização
teórica constroem-se através do surgimento de comportamentos considerados, na época, como
“desviantes” - o foco eram grupos de jovens denominados delinquentes, excêntricos ou
contestadores. Nesse contexto, a própria juventude como condição apareceu como um
problema social. Durante todo o século XX, as questões da delinquência, da rebeldia e da
revolta permaneceram chaves na problematização acerca da juventude. Paralelamente foi se
estruturando uma caracterização da “juventude normal”, mas que não deixa de conter
elementos que a definem como uma condição que guarda, sempre, em potência,
descontinuidade e ruptura das regras sociais. Seguindo esse argumento, Abramo aponta então
algumas características que seriam próprias da condição da juventude: transitoriedade
(preparação para o ingresso na vida social adulta); definição, marcada, sobretudo, pela
negatividade (vir a ser) ou pela indeterminação, e não por um conteúdo preciso; transição que
inclui a ideia de suspensão da vida social (liminaridade), dada principalmente pela
necessidade de um período escolar prolongado (os jovens estão fora do sistema produtivo e da
ordem de interesses constituídos); processo de elaboração de identidades.
Por serem muito gerais, algumas dessas características devem ser problematizadas.
Primeiramente, vale ressaltar a importante observação de Regina Novaes (2007) sobre a
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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variabilidade da condição juvenil no interior de uma mesma sociedade, em função, por
exemplo, da origem social e dos níveis de renda. Além disso, uma condição também
diferenciada em relação a desigualdades de gênero, de preconceitos e discriminações que
atingem diversas etnias, e também em termos de orientações sexuais, gostos musicais e outras
formas de pertencimento.
No caso dos interlocutores das pesquisas que em questão nesse artigo, as noções de
transitoriedade e de suspensão da vida social, por exemplo, devem ser repensadas. Os jovens
contatados, assim como outros jovens de “classes populares”, apresentam vivências
associadas em geral com a condição de vida adulta: necessidade de trabalhar, paternidade e
constituição de família. Muitos deles decidem ou precisam romper os laços de dependência
financeira e emocional com a família de origem por volta dos 13 anos de idade. A maioria
deixou a escola antes de completar o quarto ano do Ensino Fundamental. Entretanto,
mantinham experiências que são consideradas como características da condição juvenil: gosto
por música e expressão de identidades via estilo musical (no caso, o rap e o funk); processos
de subjetivação e identificação a partir da relação com os pares; consumo como principal
fonte de distinção e reconhecimento social. Ao que parece, eles não deixam de compartilhar
muitas das características de sua geração, mas têm demandas, condições e experiências
diferentes em relação aos jovens pertencentes a outras classes sociais.
Além da saída da casa dos pais com pouca idade, da baixa escolaridade, da inserção no
mercado de trabalho legal ou ilegal, da paternidade na adolescência também chamou a
atenção a centralidade da relação com os pares, com o grupo de “camaradas”, de “irmãos”. A
fala de Ângelo3 (16 anos) sintetiza bem a concepção de “irmão”: “E é sempre assim, um
irmão protege o outro, um ajuda o outro, um guarda as costas do outro, e talvez seja até muito
mais do que um irmão”. Muitos desses jovens passam a maior parte de seu tempo junto ao
grupo de “irmãos”. Em geral, trabalham juntos no tráfico de drogas, em assaltos, etc. Alguns
passam a morar na mesma casa. Assim, a referência das pessoas consideradas como parte da
família estende-se para o grupo de pares. A relação que constroem com o grupo de pares e a
sua centralidade deve ser levada em conta quando pensamos as especificidades dos processos
de subjetivação desses jovens.
Os jovens com quem trabalhei na pesquisa sobre homicídios estavam internados em
uma instituição de privação de liberdade. Alguns dados nacionais a respeito desse universo
nos ajudam a pensar sobre o processo de criminalização de jovens no Brasil.
3 Todos os nomes de interlocutores são fictícios e foram escolhidos pelos próprios jovens.
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3. Jovens em situação de privação de liberdade: dados nacionais
O Levantamento estatístico da Subsecretaria de Promoção dos Direitos da Criança e
do Adolescente da Secretaria Especial dos Direitos Humanos (2004)4 identificou que existiam
no Brasil cerca de 39.578 adolescentes no sistema socioeducativo. Esse quantitativo
representava 0,2% do total de adolescentes na idade de 12 a 18 anos, existentes no Brasil. Tal
levantamento informa também que 73,8% do total de atos infracionais são contra o
patrimônio, dos quais mais de 50% são furtos. Como indica o Estatuto da Criança e do
Adolescente, o simples furto não deveria ser penalizado com privação de liberdade, mas
representa quase 15% das internações do país. De acordo com dados do IPEA (2003)5, 12,7%
dos adolescentes privados de liberdade no país vivia em famílias sem nenhuma renda mensal
e 66% em famílias com renda mensal de até dois salários mínimos. Além disso, 62% do total
era de não brancos.
Esses dados trazem alguns aspectos importantes a se refletir. Um deles é a expressiva
presença de jovens não brancos e de famílias de baixa renda no sistema socioeducativo. A
partir daí, o que se pode afirmar não é que os jovens pobres e negros cometem mais atos
infracionais e sim que eles compõem a maioria dos jovens “penalizados”, de forma especial,
com a privação de liberdade. Nesse sentido, o que vem à tona é o processo de “criminalização
da pobreza”.6 O Brasil possui uma longa tradição de institucionalização de crianças e jovens
das camadas populares. Tal tendência foi crescente e criou muitas instituições ao longo de
nossa história. Mesmo com as novas diretrizes nacionais que estabelecem o cunho pedagógico
das medidas socioeducativas, na maioria dos estados do país prevalecem os investimentos nas
instituições privativas de liberdade, em detrimento das medidas de prestação de serviço à
comunidade e de liberdade assistida.
Assim como são escassas pesquisas que contabilizem e descrevam os crimes “de
colarinho branco” no Brasil, há poucas informações sobre as infrações cometidas por
adolescentes das classes médias e altas. Tais situações aparecem nos meios de comunicação
quando se trata de violações muito graves, como parricídio, espancamento de uma empregada
doméstica ou ateamento de fogo a um indígena. São apresentadas como paradigmáticas pela
falta de “explicação”, de inteligibilidade, o que dá a impressão de raridade e
excepcionalidade. Entretanto, quantas infrações graves e menos graves são cometidas por
jovens não pobres e não são publicizadas? Quantos casos não chegam ao conhecimento das
4 Disponível em meio digital: http://www.mj.gov.br/sedh/ct/spdca/sinase/Sinase.pdf 5 Ver: http://www.ipea.gov.br/pub/td/2003/td_0979.pdf 6 Sobre esse processo, a obra fundamental é a de Loïc Wacquant (2001). Ver também os apontamentos de Z. Bauman (2005),
que dialoga com Wacquant ao pensar as prisões como uma das formas de depósito do “refugo humano”.
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autoridades policiais e judiciais? E nos casos em que chegam, quantas vezes as medidas
socioeducativas aplicadas são as mais leves?
4. Juventude pobre e criminalidade
Em relação aos jovens de estratos mais pobres que aderem ao “mundo do crime”, em
especial aqueles com experiências em tráfico de drogas com os quais dialoguei, o que se pode
afirmar é que não há uma única explicação para a inscrição no tráfico, mas um encadeamento
de acontecimentos nas suas trajetórias que desemboca na opção pelo “envolvimento”. O caso
de Ângelo é paradigmático nesse sentido: ele enfatizou a dimensão de um cenário de
dificuldades pelas quais passava (abandono da mãe viciada em crack, prisão do pai);
mencionou que recebeu propostas, inclusive de parentes, para trabalhar no tráfico; falou
também sobre os “aliados”, os “moleques” mais velhos que cresceram com ele e incentivaram
sua entrada; ressaltou ainda os ganhos materiais e simbólicos (dinheiro, “fama”, mulheres)
como os principais chamarizes.
Dessa forma, nas narrativas de meus interlocutores (em ambas as pesquisas) a questão
dos problemas financeiros na família nunca apareceu como fator único para a inserção no
“crime”. Muitos deles relataram situações nas quais tiveram que assumir a responsabilidade
por si próprios e por suas vidas com pouquíssima idade. Trata-se de situações de perdas de
genitores e de desamparo, não apenas financeiro, mas afetivo. Não há uma relação direta entre
pobreza e criminalidade no Brasil: os pobres não são potencialmente criminosos. Entretanto,
como descrevi anteriormente há processos de criminalização nos quais apenas certas ações
ilegais (como furtos e tráfico de drogas) efetuadas por certos agentes (jovens, pobres, negros)
tendem a ser preferencialmente criminalizadas. E, além disso, há, como bem descreveu Luiz
Eduardo Soares (Athayde; Bill e Soares, 2005) uma maior exposição das famílias pobres a
situações de dificuldades materiais que desembocam em problemas emocionais: pouca
permanência dos pais em casa; menores oportunidades de acessar apoio terapêutico nos
momentos de crise; menores recursos para mobilizar especialistas quando se constatam
problemas de aprendizagem; maior exposição à angústia e a insegurança do desemprego. Tal
exposição configura um quadro que aumenta as probabilidades de que o jovem experimente a
degradação da autoestima. Assim, entre os jovens pobres é mais provável o envolvimento
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com o uso e tráfico de drogas, pois suas trajetórias de vida apresentam mais elementos de um
quadro de dificuldades que limita seu “campo de possibilidades”7 (Velho, 1994).
Como pensar, então, a experiência desses jovens no “mundo do crime”?
5. “Mundo do crime” e comensurabilidade
Os interlocutores das histórias sobre mortes falaram também sobre suas próprias vidas,
especialmente sobre suas trajetórias no contexto do tráfico de drogas. Narraram situações de
homicídios nas quais estavam diretamente envolvidos, bem como histórias sobre a morte de
amigos (“irmãos”); sobre “malucões” que matavam sem pudor; sobre trocas de tiro e
execuções praticadas por policiais. Contaram sobre a vida “no mundão”: os altos e baixos -
aquilo que se ganha e aquilo que se perde -; as situações de guerra; o “veneno”; as decisões
sobre as punições daqueles que “não corriam pelo certo”; a disposição a matar e a morrer
assassinado.
Conversei com jovens liminares em vários sentidos a respeito de um tema também
liminar. A violência letal e seus agentes são atravessados pela ideia de fronteira social, de
limite de sociabilidade, de alteridade radical, e, às vezes, de negação do social. O importante a
se dizer é que mesmo os meninos que não enfatizaram a questão da “vontade de mudança”
expressaram avaliações morais em relação aos casos narrados e aos personagens envolvidos.
Buscaram também situar, dar explicações para o próprio envolvimento com o crime e se
distanciaram de sujeitos que denominaram como malucos, sanguinários, psicopatas – que
matavam qualquer pessoa sem motivos e parâmetros aparentes. Eles não queriam ser
identificados como aqueles que cometeram crimes para o resto de suas vidas, e sim como
pessoas capazes de se posicionar em outros lugares sociais/ identitários.
Assim, na experiência de campo para a dissertação, emergiu a questão da
comensurabilidade entre mundos. No campo de estudo das violências, esse aspecto se mostra
importante tanto na dimensão teórica – ao estabelecer as violências como modalidades de
relação social8 – quanto na dimensão política – ao inserir os agentes das violências na
condição de sujeitos sociais e morais. Como descreverei a seguir, o uso nativo da categoria
“mundo do crime”, bem como etnografias recentes sobre o tema, remetem a uma noção de
7 De acordo com Gilberto Velho (1994) os projetos individuais estão circunscritos às regras e padrões determinados por
fronteiras simbólicas do universo sociocultural a que o indivíduo pertence. Assim, há uma margem relativa de escolha já que
os sujeitos traçam suas trajetórias de vida dentro de um determinado “campo de possibilidades”. 8 Ver, por exemplo, Rifiotis (1997; 2006).
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fronteira porosa entre mundos: há sim especificidades, mas há trânsitos de valores, de
moralidades, de objetos, de sujeitos, daí pensar em termos de comensurabilidade.9
Ao analisar as histórias a mim contadas, foi possível identificar dois cenários para os
homicídios: um no qual havia justificações, “motivos”; e outro no qual os perpetradores das
mortes (“malucos”, “psicopatas”) agiam fora dos modelos explicativos dos sujeitos. As
situações de punição com a morte ao descumprimento de regras compartilhadas foram vistas
pelos interlocutores, como, em certos casos, algo inevitável, inegociável: “Safado não tem
vez”, “Quem não corre pelo certo passa mal”. Em outros, havia uma margem de negociação,
um espaço para debater a aplicação da pena, dependendo da circunstância e da categoria de
sujeito envolvida.
Algo que chamou atenção foram essas negociações, o debate entre os membros do
grupo e o “voto da maioria” a respeito da punição com a pena capital. A não centralização das
decisões parece acarretar uma maleabilidade em relação às punições. Nos casos narrados, tal
maleabilidade implicava questões técnicas, instrumentais – matar alguém pode causar
problemas com a polícia –, mas também avaliações morais. Muitos meninos não
consideravam “certo” punir com a morte pessoas que deviam dinheiro, usuários. Dessa forma,
nem sempre prevaleciam os interesses comerciais, da busca desenfreada pelo dinheiro, mas
avaliações em relação a categorias de sujeitos considerados mais ou menos “inocentes”.
Como explicou Julio, “não é por qualquer motivo que... que vai e mata alguém”. Esse
parâmetro era compartilhado pela maioria dos jovens ouvidos. Vejamos um trecho da
narrativa contada por esse jovem sobre um caso de morte justificável:
É... Tipo... Tem caso assim... Tipo... Tipo um caso que aconteceu: O cara pega, deve um
monte de dinheiro pra um traficante. Aí... Tipo... O cara vendia droga pro cara e aí, em
vez de vender a droga, ele cheirou tudo, usou tudo a droga. E daí o cara ficou no
veneno: “Eu vou matar esse bicho”. Daí, pegamu, nós conversamu só nós, tipo os mais,
né? Que faz o negócio crescer, né?
Os chefes, os patrões?
É, vamu dizer isso, mais patrão, só que a gente era tudo junto, tudo unido. Só que
sempre tem uns que são mais, que dá a voz, né? Falei: “Não, não vamu matar esse cara,
vamu deixar, ele vai pagar, vamu fazer com que ele pague. Se a gente matar ele, vai vir
polícia, a gente vai se incomodar. (...) É, daí o cara que tava devendo, né? Queria uma
arma emprestada pra matar um desses grandes.
Ele veio pedir pra um de vocês?
Ele veio pedir pra um deles, um dos grandes. O guri que tava devendo foi pedir pra um
dos grandes pra matar outro grande (...) e daí o quê que os caras fizeram? Mataram o
cara, né? Porque eles já livraram ele de morrer, né? Por causa da dívida dele. Já era um
motivo pra ele, pra eles ter matado ele. Só que daí o cara vai querer matar o outro ainda
por causa de dinheiro, por causa de 100 real... O cara tava devendo 3 mil. Tava devendo
9 Uma discussão mais completa sobre a comensurabilidade entre mundos em relação ao “mundo do crime” pode ser
encontrada em Vieira, 2011a.
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3 mil e queria cobrar 100 pila. Não mataram ele por causa de 3 mil real. Daí agora foi...
Daí mataram ele, né?10
Algo a se pontuar sobre essa história é que o devedor, o “casqueiro” (usuário de
crack), não foi morto por conta de suas dívidas, e sim por causa da sua intenção de matar um
dos “grandes”, um líder. Assim, na prática, há muito mais nuances, e as situações não
correspondem linearmente às regras compartilhadas - como a que prevê punição com a morte
no caso do não pagamento de dívidas.
Nas avaliações dos jovens sobre o que é o “certo” (essa categoria aproxima-se tanto da
noção de bem como da noção de verdadeiro), apareceram ideias mais gerais sobre justiça,
honestidade, humildade. Uma fala chave, nesse sentido, foi a de Julio: “Eles roubaram junto e,
em vez de dividir o dinheiro certinho, ser honesto... Por mais que esteja no mundo do crime,
certo é certo, né?” Na descrição valorada positivamente do “sujeito-homem”, a força de
concepções morais gerais ficou bem clara. O “sujeito-homem” não apenas segue as regras
compartilhadas, não é somente um sujeito moral, mas um sujeito ético, reflexivo, que busca
tomar decisões justas, que cumpre o que promete, que respeita os pares e a comunidade à qual
pertence. É “humilde”, não mata ninguém antes de ter certeza de que é necessário. Em síntese,
“é o cara certo do lado errado” (Joe). É o modelo para os interlocutores da pesquisa, o tipo de
pessoa que demonstraram admirar, não o “sanguinário”, o “maluco”, o que mata sem
necessidade. Pontuo ainda que, nas nossas conversas, muitos falaram valorativamente dos
estudos e do trabalho formal, bem como do desejo de “mudar de vida”.
O “mundo do crime” parece incompatível com o da religião, com o “caminho de
Deus”. Entretanto, ao menos entre os jovens institucionalizados com os quais tive contato, o
sentimento religioso, as referências a Deus, à sua proteção, ao seu poder de interferência,
mostraram-se significativos. Paulo, por exemplo, me disse o seguinte: “Deus pode ter me
dado uma oportunidade de estar aqui e não morto, né?”. De forma análoga, muitos explicaram
as atitudes dos “malucos” e “sanguinários” como consequências de pactos com o diabo.
Até aqui, foram enfatizados os valores que os jovens compartilham com a sociedade
mais abrangente. Entretanto, é inegável que eles apresentam uma postura em que há uma
naturalização da possibilidade de matar alguém, bem como de ser morto. Acredito que a
peculiaridade nesse caso esteja muito mais na admissão da possibilidade de uma morte trágica
do que na de matar.
10 É preciso salientar que decidi manter o estilo coloquial das falas dos jovens para não descaracterizar seu modo de
expressão oral na passagem para o registro escrito.
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Jovens pobres que matam uns aos outros, como coloca Bauman (2005), são parte de
um processo de resolução local para o problema global da produção de pessoas “refugadas”,
“excedentes” nas sociedades de “modernização retardatária”. Esses jovens são os que fazem o
trabalho “sujo”. Não são somente eles que naturalizam as mortes de seus iguais, mas a
sociedade “asséptica” como um todo, que não se espanta, que não fica indignada diante de um
quadro de genocídio. Em geral, se as situações de violências ficam retidas no gueto, não
causam preocupação, pois não se reconhece dignidade nas vidas que se vão. Elas são, nos
termos de Agamben (2007), “vidas nuas”, “vidas matáveis”, “vidas que não merecem viver”.
No ponto da admissão e da naturalização do assassinato de jovens – pobres, inscritos no
tráfico, homicidas –, não há nada de específico, de próprio, de particular, na postura dos
interlocutores. Ao contrário, como procurei desenvolver na dissertação, essa perspectiva se
insere em um contexto geral de produção social de “vidas nuas”. Nesse sentido, as fronteiras
entre mundos, no plano legalidade versus ilegalidade, também são muito permeáveis.11
A partir dessas considerações, a questão que fica é a seguinte: o problema social dos
“meninos em armas” (ATHAYDE; BILL e SOARES, 2005) constitui-se, na medida em que
se forma um “mundo do crime”, em um “Estado paralelo” ou situa-se no próprio Estado, que
funda sua soberania pelo direito de excluir, de distinguir cidadão e “homo sacer”
(AGAMBEN, 2007)?
6. A “vida loka”
Na pesquisa para a tese desloquei o foco das histórias sobre mortes para as histórias de
vida de adolescentes com experiências no “crime”. Como o campo se deu em uma Casa de
Semiliberdade – na qual moravam meninos e meninas que receberam medidas de
semiliberdade ou proteção – foi possível passar mais tempo com eles, realizar observação
participante além da escuta de narrativas. Nesse artigo me deterei em algumas considerações
sobre a vida loka que estão em fase de elaboração.
Vejamos primeiramente algumas falas dos jovens a respeito:
“Vida loka é tá no crime, fazer as ‘contenção’ de droga e arma, e roubar, matar. Isso
que é vida loka pra mim. E eu aprendi também muito de, de conviver muito com as pessoas,
sabe, os tipos que falam com as outras pessoas, [...]. Não aceita, caguetagem, nem talarico,
11 Bauman (2005, p. 81) fala sobre isso em termos de “criminalização do globo e globalização do crime”, situação na qual há
uma anulação da diferença entre legal e ilegal (livre circulação de dinheiro independentemente de sua origem). Para o autor,
diante desse contexto, o conceito de lei só pode ser empregado “sous rupture” (DERRIDA apud BAUMAN, 2005).
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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talarico morre”12
Eduarda citou uma série de dimensões que parecem compor a vida loka: as
atividades e suas possíveis implicações; uma linguagem compartilhada e regras de conduta e
suas punições.
Luis Paulo, por sua vez, enfatizou as condições de instabilidade, de risco, de sujeição à
violência policial à que estão submetidos os que estão “nessa vida”: “O crime é a vida loka,
né. Por que, igual a minha mãe mesmo disse, eu não dormia sossegado. Ela abria a porta do
meu quarto eu já acordava... De escutar um passo. Que eu já apanhei muito já de policia, já,
né. A policia já queimou a minha perna, já quebrou as minhas costelas já”.
Felipe ao ser perguntado sobre o que significa “essa vida” discorreu sobre os motivos
de sua entrada e descreveu elementos que remetem a ideia de aprendizado e de carreira: “Vida
loka pra mim significa vida do crime, né. A vida loka, uma vida diferente. Eu entrei nessa
vida porque eu perdi a minha vó... Ela que me criava. Aí meu pai começou no crime eu
comecei junto com ele. Daí ele abandonou meu irmão, daí eu não gostei, daí eu comecei
sozinho. Daí quando eu vi eu já tava preso”. Para esse jovem, ainda, na vida loka não há nada
que valha a pena, mas “quem nasceu pra essa vida vai morrer nessa vida. Como é que se diz:
quem tá destinado a seguir esse caminho, segue até o fim.” Disse ainda: “Eu sou pelo certo
desde que eu entrei no mundo do crime... Vou morrer pelo certo.” E eu questionei, então, o
que é “correr pelo certo” pra ele: “Correr pelo certo é não pisar13
.... Ser humilde, não querer
ser maior que os outros, isso aí”.
A partir dos dados etnográficos de minhas pesquisas elaborei um primeiro esboço,
uma primeira tentativa de síntese das dimensões implicadas na vida loka, na vida “no crime”.
As teorias sociológicas clássicas sobre “delinquência juvenil” têm se dedicado a
explicar as motivações e causas da delinquência, do desvio, do problema. As explicações
12 Caguetagem se refere à delação e talarico é aquele que se envolve com mulher alheia. É preciso salientar que decidi
manter o estilo coloquial das falas dos jovens para não descaracterizar seu modo de expressão oral na passagem para o
registro escrito. 13 Não pisar tem a ver com não cometer erros, seguir as regras de conduta compartilhadas no grupo.
Por que; pelo que: ruptura, problemas com a família e/ou com a
escola; sociabilidade/reconhecimento (pares,
gênero); limites/emoções (adrenalina); ganhos
materiais e simbólicos (dinheiro e o que ele
proporciona)
Como: “correr pelo certo” (o que fazer e o que não fazer,
maneira de ser e de se comportar, moral/ética)
Apesar de que; consequências: riscos/perdas: “hospital, cadeia, caixão”
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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variam de acordo com as escolas, com as linhas teóricas e são acionadas categorias como
desorganização, sub-cultura, reação social e anomia.14
Tais teorias fornecem chaves de leitura,
de compreensão e explicação para a primeira dimensão apontada no esboço acima. Trata-se
de abordagens diversas e que, muitas vezes, se contrapõe. No entanto, na maior parte delas a
questão é colocada em termos de problema social, e, por conseguinte, estão implicados em
cada teoria caminhos de intervenção com vistas à normatização, ao controle dos agentes e das
condutas. A perspectiva dessas teorias, ainda, insere-se em uma métrica em que há um único
padrão pressuposto e legítimo – um modelo de sociedade pautado pelo contrato social.
Aquilo que escapa a esse padrão é, então, “lido” como delinquência (infrações em relação à
lei penal) ou como desvio (condutas fora da norma).
No trabalho de dissertação (Vieira, 2009) o tema da pesquisa proporcionou que fosse
abordada com mais profundidade a questão das consequências da vida “no crime”,
sintetizadas na fala nativa: “hospital, cadeia, caixão”. As narrativas sobre homicídios
proporcionaram também a reflexão sobre comensurabilidade entre mundos. Nesse primeiro
momento, houve um movimento de trazer esse “mundo” para perto, demonstrar a produção
social dessas mortes e dessas vidas. O desafio agora parece ser o de trabalhar as
especificidades dessa “vida loka”, o que ela constitui, mas sem perder de vista que está
intrincada com outros domínios da realidade. Falta descrever a dimensão de “como” se dá e se
sustenta essa vida. “É preciso correr pelo certo” dizem os meninos e meninas da “vida loka”,
e nessa assertiva mais do que um conjunto de normas, há referenciais éticos que produzem
uma maneira de viver, um mundo possível.
Como argumenta Gabriel de Santis Fetran (2011) na apresentação do Dossiê “Jovens
em conflito com a lei” o foco não está na pergunta de como resolver ou administrar o
problema do “menor infrator” e a fratura que interessa compreender na vida dos jovens
estudados não está fundada no desvio em relação à lei oficial. Isso porque para os autores15
a
insistência na citada pergunta quase sempre oculta o fato de que tal “problema” não existe
autonomamente, nem da mesma forma para os nele implicados ou nas diferentes esferas da
vida em que aparece. Já a fratura não se refere à desvio frente à lei, mas nas disputas que se
dão em torno mesmo da definição dessa lei.
14 Uma boa sistematização de tais teorias pode ser encontrada em Mauger, 2009. 15 Apresento nesse dossiê os principais resultados de minha pesquisa de dissertação de mestrado. Ver Vieira, 2011b.
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
111
7. Considerações Finais
Compartilho da postura teórica citada acima. É importante salientar, entretanto, que o
posicionamento de não partir da pergunta de como resolver o “problema” e de procurar pensar
as experiências desses jovens fora das ideias de desvio, de delinquência, não implica
abstenção em relação à crítica e às tentativas de transformação social. Dizer que a vida loka é
uma maneira possível de se viver, dizer que o “mundo crime” é uma instância entre outras que
disputam legitimidade no mundo contemporâneo não é dizer que essa vida é uma boa
alternativa para os jovens. Eles mesmos, como discorri na dissertação, dizem que “vivem no
veneno”, que nada “nessa vida” vale a pena. Mas se, para eles, há sofrimento na “vida do
crime” e, ainda assim, ela se mostra como um caminho, às vezes como único caminho, é
porque ela permite acessar coisas valiosas para eles (bens materiais e simbólicos).
Acredito que a antropologia – e as outras ciências sociais - e seus encontros atuam não
apenas na mediação, na tradução entre mundos, mas na “invenção” (no sentido de Roy
Wagner, 1981) deles e também em sua potencial transformação. A partir de “experiências
próximas” desses e com esses jovens podemos passar da criminalização à “criatividade” de
outros mundos possíveis.
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Da in/visibilidade da representação e sentido de pertencimento nos coletivos periféricos de jovens em São Paulo e Lisboa*
Rosana Martins**; Miguel de Barros***
Resumo: O presente ensaio segue no âmbito do estudo que vem sendo realizado na Universidade Nova de
Lisboa, Portugal, Centro de Investigação de Media e Jornalismo (CIMJ) sobre agrupamentos juvenis periféricos
e a cultura hip-hop, sendo esta pesquisa inserida no programa de pós-doutoramento da Fundação para Ciência e
Tecnologia (FCT) em articulação com o projecto “Missões Exploratórias sobre Juventudes no contexto
transnacional dos países da CPLP: processos de identificação, expressões culturais e mediações”, financiado pelo
CNPq alojado na Universidade Federal de Sergipe – UFS, Brasil, em parceria com o CEA-ISCTE e outras
instituições de pesquisa dos Países Africanos da Língua Oficial Portuguesa (PALOPs). Do ponto de vista da
episteme, este debate está inserido no campo da Comunicação e Ciências Sociais e, desenvolve-se tendo como
referencial teórico-metodológico os estudos ancorados na perspectiva dos Cultural Studies, no tocante às
concepções de cultura e identidade, sobretudo na abordagem sobre o entendimento do espaço público enquanto
arena de argumentação discursiva e terreno de visibilidade e legitimidade. Nesta perspectiva, pretendemos
também rever o conceito de lusofonia, como um espaço fragmentado a prova dos contextos e não como algo
assumido a priori. Visamos identificar ações ligadas a cultura hip-hop e as formas estabelecidas pelos jovens
periféricos luso-afro-brasileiros, em relação aos espaços de sociabilidade e às formas de representação coletivas.
Ou seja, de que forma os membros expressam as saídas para os diversos conflitos presentes no cotidiano e, os
diversos elementos que influenciam na constituição das identidades partilhadas.
Abstract: This paper is a product of what has been studied at Universidade Nova de Lisboa, Portugal, at
Media and Journalism Research Centre (CIMJ) on peripherals juvenile groups and hip-hop culture, inserted in
the postdoctoral program Foundation for Science and Technology (FCT) in articulation with the project "Youth
Missions Exploration on the transnational context of the CPLP countries: processes of identification, cultural
expressions and mediations”, funded by CNPq at the Federal University of Sergipe – UFS- Brazil, in partnership
with CEA - ISCTE and other research institutions of African Countries of Portuguese Official Language
(PALOPs). From the point of view of episteme, this debate is inserted in the field of Communication and Social
Sciences in dialogue with Cultural Studies. In this perspective, we also intend to revisit the concept of lusofonia
as a fragmented space and not as something assumed a priori. We try to identify actions related to hip-hop
culture and the ways established by young african - peripheral Luso- Brazilians, in relation to social spaces and
forms of collective representation. How they express the solutions to the various conflicts in the everyday life
and the various elements that influence the formation of shared identities.
Key-words: Hip-Hop; Cultural Studies, Lusofonia; Globalization; Urbanity.
Introdução
Pode-se conceituar lusofonia como um “sistema de comunicação lingüístico e cultural
na língua portuguesa e suas variedades lingüísticas, geográficas e sociais, pertencentes a
vários povos de que dela é instrumento de expressão materna ou oficial” (Cristóvão, 1999,
* Artigo recebido em Janeiro de 2013 e aceite em Março de 2013.
** Cientista Social pela Universidade de São Paulo- USP. Mestre e Doutora em Ciências da Comunicação pela Escola de
Comunicações e Artes/USP. Pós-doutoranda e pesquisadora do CIMJ – Centro de Investigação Media e Jornalismo,
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, e pesquisadora do Centro de Estudos Cibernética
Pedagógica - Laboratório de Linguagens Digitais -Universidade de São Paulo/Escola de Comunicações e Artes - São
Paulo/Brasil. Visiting Fellow for the Centre for Cultural Studies, Goldsmiths University of London, UK. E-mail:
[email protected], [email protected] ***
É investigador associado ao Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas - INEP (Guiné-Bissau) e do Centro de Estudos
Africanos do Instituto Superior de Ciências de Trabalho e da Empresa – CEA/ISCTE-IUL (Portugal). Membro do Conselho
para o Desenvolvimento de Pesquisa em Ciências Sociais em África - CODESRIA (Senegal). Desempenha funções de
Encarregado do Programa no âmbito da ONG guineense Tiniguena e é Assistente de Sociologia da Comunicação na
Universidade Colinas de Boé (Guiné-Bissau). E-mail: [email protected]
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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p.10). Sendo uma comunidade pluralizada, é importante considerar estes espaços
diferenciados e que podem ser contraditórios.
É nesta base que a nossa abordagem da ‘juventude’ é assumida conscientemente como
conceito/categoria hyper mediatizado e politizado, sendo o processo de construção da
representação desta categoria social com tendência a produzir um retrato da ‘juventude’ no
singular. Daí que ao assumirmos falar das “juventudes”, no plural, o nosso propósito vai no
sentido de superar o minimalismo teórico do conceito, por um lado, e por outro, os
estereótipos negativos, a preferência para o ‘masculino’ e o desleixo com a questão do género,
e as representações homogeneizantes (Skelton e Valentine, 1998; Seekings, 2006).
Assim, as escolha desses dois contextos (São Paulo e Lisboa) enquanto espaços e
territórios de encontros dos povos onde a luso-fonia ganha novas identidades e
(re)configurações, sendo os jovens um dos agentes mais dinâmicos desses processos, em
particular os rappers pela criatividade discursiva (lírico e musical) com efeitos narrativos e
impactos reflexivos da representação de um “eu/nós” transportando as suas experiências e as
suas convicções, torna uma fórmula acessível de prática intensiva das identidades (Martins,
2005; Pardue, em prelo) estabelecendo assim, lógicas de autodefinição e automanutenção que
garantam a subsistência ideológico-identitária sobre a relação que os indivíduos e grupos
sociais estabelecem com o territórios. Daí que torna-se relevante compreender as dinâmicas
desencadeadas em termos da imagem linguístico-identitário num contexto globalizado, onde
segundo Martins (2008, p. 35) as relações de negociação dos significados dos processos
interativos e das relações sociais entre os sujeitos da situação social desencadeia um processo
inevitável da visualidade.
1. Considerações sobre identidades e diferença na contemporaneidade
A contemporaneidade inaugura uma cultura (ou sua incultura) indiferente aos valores
transcendentes do universal, ao proporcionar a mesclagem de todos os signos, a supremacia
da positividade mercadológica e eficiência técnica, com a intensificação do processo de
mecanização e fragmentação. Segundo Baudrillard (1998), estaríamos vivendo os múltiplos
efeitos de um mundo cada vez mais complexo, com avanços tecnológicos, mas também com
tensões e antagonismos. Fala-se de uma realidade estetizada, com o acúmulo de signos,
imagens e simulações por meio do consumismo, levando a uma “desordem cultural” e a uma
“indiferença por excesso”. Nesse cenário, descrito por Baudrillard, temos uma busca
incessante de novas e efêmeras experiências e valores fluídos face a opções múltiplas,
gerando ansiedade e alienação nos indivíduos.
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Na busca de entender essa contemporaneidade, Bauman (2000) aponta para o estagio
de liquefação que nos encontramos; um estado de fluidez que não é apenas econômico (que
transfere em questões de segundo volumes de capital de um canto do mundo a outro, ou de
uma empresa que se instala em um país e dele migra tão rápido quanto entrou), ou político
(mudanças contínuas de legislação, leis de patentes, fim dos direitos adquiridos dos
trabalhadores, crise dos partidos tradicionais de esquerda e de direita, etc.), ela também se
reproduz nas demais áreas da vida humana: nas relações pessoais e na vida cotidiana.
Quase todos os materiais têm sido experimentados, e o que não foi tentado acabará sendo – e o
mercado de consumo se rejubila, enchendo galpões e prateleiras com novos símbolos de
identidade, originais e tentadores, já que não foram aprovados nem testados. Há também um
outro fenômeno a observar: a expectativa de vida cada vez menor da maioria das identidades
simuladas, conjugadas à crescente velocidade da renovação de seus estoques. (Bauman, 2005,
p. 88).
Nesse cenário, o mercado e o consumo surgem como os novos parâmetros e
norteadores da contemporaneidade. Essas mudanças de comportamento são os reflexos de
uma sociedade consumista, a qual busca incessantemente o prazer e a satisfação instantânea,
fazendo das relações sociais o mesmo que se faz com os produtos de vitrines que estão à
disposição para serem consumidos e descartados imediatamente e substituídos por outros
quando estes já não satisfazem mais as nossas necessidades de prazer momentâneo. Canclini
(1999) vincula consumo e cidadania salientando que a cidadania hoje se faz mais pelo
consumo do que eminentemente pelos velhos agentes como partidos, sindicatos. Isso, em
parte, porque estes foram um pouco substituídos pelos midia e depois porque devido a tais
meios houve uma reestruturação geral das articulações entre o público e o privado.
Se a marca da dinâmica cultural contemporânea é a heterogeneidade e a da sociedade a
fragmentação, logo será na obra Diferentes, Desiguales y Desconectados: Mapas de La
Interculturalidad que Canclini (2004), ao tratar da questão da identidade cultural, passará a
assumir uma mudança de conceitos, isto é, a troca do termo multicultural pelo de intercultural.
Para o autor é na interculturalidade que presenciamos os diversos tensionamentos e espaços
de negociação e conflito aos quais as culturas estão colocadas, e não um espaço multicultural
onde simplesmente supõe-se aceitação do heterogéneo. Ser cidadão hoje, segundo o autor, não
tem a ver apenas com os direitos reconhecidos pelos aparelhos estatais para os que nasceram
num determinado território, mas também com as práticas sociais e culturais que dão o sentido
de pertencimento a um mesmo grupo e, que se constrói e que muda em relação a práticas e
discursos.
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Assim como Canclini, Martín-Barbero (1987) propõe um resgate da ação dos sujeitos
- o reconhecimento destes agentes sociais e suas vivências, práticas populares, nos processos
de comunicação. Martín-Barbero fala de sujeitos e de hegemonia, de contraposição e de
resistências. Fala-se de um espaço contraditório, de um espçao de negociações, de um espaço
onde se busca significações e de produções de sentido na vida cotidiana. Portanto, torna-se
necessário precisamente possibilitar o reconhecimento e visualização desses agentes sociais
enquanto sujeitos históricos, produtores de saberes e conhecimentos.
No âmbito da visão multidisciplinar dos Estudos Culturais o embate entre “localização
da cultura” - para usar livremente a expressão de Bhabha - e a questão da desterritorialização,
introduzida pelos fluxos globais, (teorizada também por Hall), desencadeia uma lógica que
não exige o fim das referências locais, mas as reinscreve num terreno em que estas não mais
podem se definir pelo isolamento nem tampouco pela territorialidade.
Hall (2006), ao fazer menção ao Laclau, acentua os aspectos negativos, mas também
positivos do espaço-tempo contemporâneo. Diante do quadro das identidades na
contemporaneidade, o autor afirmará que ao desarticular as identidades fixas e estáveis do
passado, temos aqui também perspectivas para novas articulações que permitem a criação de
novas identidades e a produção de novos sujeitos. Se de um lado a nova contextualização
social tende a gerar processos de perda das referências tradicionais na construção de
identidades, por outro, o atual cenário social da globalização do consumo e da sociabilidade,
ao propiciar formatos comuns com que se organizam os serviços e demais instituições do
mundo urbano não apagam totalmente as particularidades do local, do cotidiano, mas estes
passam por uma tradução. No que tange ao conceito de tradução cultural presente no processo
da hibridização, Bhabha destaca:
[...] o presente não pode mais ser encarado simplesmente como uma ruptura ou um vínculo com
o passado e o futuro, não mais uma presença sincrônica: nossa autopresença mais imediata,
nossa imagem pública, vem a ser revelada por suas descontinuidades, suas desigualdades, suas
minorias. (1994, p. 23).
Tradução é um instrumento usado em espaços intersticiais, que são sempre regiões de
negociação. É esse o espaço em que as formas e códigos criados por um grupo são desafiados
e modificados, jogando por terra a pretensão de uma pureza cultural. Traduzir é colocar povos
em contato, é abordar o outro, aproximar-se e deixar-se tocar pelo desconhecido, resgatar e
promover a visibilidade de vozes apagadas. A Tradução Cultural é também entendida como
um termo lógico para que se perceba as diásporas multiculturais do mundo pós-colonial e,
uma das razões da preferência em utilizá-lo, reside no fato de que seus participantes têm um
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sentimento de estar dentro/estar fora,‟ pois implica um processo interminável de apropriação,
assimilação, adaptação, acomodação, além de, talvez o mais difícil, o processo de negociação
das diferenças do outro. Em lugar de reificação e submissão imediata à uniformidade dos
sentidos, temos o dialogismo e a apropriação reflexiva.
Deste ponto de vista do espaço concreto da lusofonia, não podemos falar de uma
identidade lusófona efetivamente existente entre os povos que adotam a língua portuguesa
como o seu idioma oficial (ou como um dos seus idiomas oficiais). Falar de lusofonia evoca,
igualmente, a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), definida como “foro
multilateral privilegiado para o aprofundamento da amizade mútua, para a concentração
político-diplomática e da cooperação entre os seus membros”, com o intuito de reunir os
países da comunidade a fim de uniformizar e difundir a língua e aumentar o intercâmbio
cultural entre eles. É nesse contexto que assistimos à emergência da promoção das relações
dos países lusófonos na contemporaneidade, em que a preferência pelo hibridismo, pela
mistura, pelo cruzamento de fronteiras culturais e identitárias, pela celebração da
contingência e da não-permanência apresentam-se como campo de análise numa perspetiva
do Pós-Modernismo.
Ela é, por excelência, um local simbólico de encontro de identidades espirituais e
culturais que têm,em algum momento, uma herança ou aproximação à cultura portuguesa.
Contudo, na sua prática, o discurso lusófono quase não ressoa em sociedades como a
brasileira e as africanas, essencialmente multiculturais, onde a contribuição portuguesa é mais
uma – e em alguns casos, nem é a mais importante – entre as várias presentes na formação das
identidades culturais locais. O conceito de lusofonia é um atributo marcado pela
ambiguidade.
O termo lusofonia surge associado a uma constelação de outros conceitos (nação,
identidade, cultura, comunidade…), cuja articulação ao suporte língua parece pressupor uma
relação contígua com categorias da percepção que procuram tornar coerentes relações entre
dimensões ambivalentes (nações/comunidades/povos; identidade/cultura; língua
materna/língua oficial).
Devemos assumir que o espaço da lusofonia – ou o espaço onde “também” se fala o
português – só pode existir na medida em que o compreendemos como um espaço de cultura
e, em decorrência disso, como constituído por nações que carregam, na língua e na cultura,
uma maneira de ser equivalente que merece (e precisa) ser redefinida e atualizada a todo o
momento, de modo partilhado e compartilhado, procurando revelar não só nossas
semelhanças, mas, sobretudo, nossas diferenças - como acentua Martins:
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[...] o espaço cultural da lusofonia é um espaço necessariamente fragmentado. E a comunidade
e a confraternidade de sentido e de partilha comuns só podem realizar-se pela assunção dessa
pluralidade e dessa diferença e pelo conhecimento aprofundado de uns e de outros. (2006,
pp.82-4).
Nesta nossa proposta analítica, o enfoque sobre juventudes se dá no contexto e no
âmbito de dois países que fazem parte da CPLP, relacionado às mútuas e múltiplas
implicações que emergem destes contextos transnacionais específicos, que parecem gerar
novas questões em contextos de novas realidades sociais, de novos direitos; de formas de
proclamar identidades e diferenças; bem como de distintas expressões culturais, interesses e
expectativas. A capacidade de agência destes mesmos actores, sublinham as novas identidades
e (re)criativas e os produtos culturais inovadores potenciando o que Diouf e Collignin (2001)
designam de ‘intersecção do local e do global’ explorando deste modo também a forma como
essas novas identidades emergem com base em novas formas culturais que combinam
criativamente elementos do capitalismo global, do transnacionalismo, e das culturas locais,
enfatizando as práticas culturais e sociais através das quais os jovens moldam e (re)atribuem
significado aos seus mundos.
Baseado nesses pressupostos, a lusofonia exprime essa totalidade de olhares, de
expressividades, e de expressões linguísticas que confere visualizações, sentidos e sons
inteligíveis e intermutáveis nas conecções entre sujeitos, quer na emissão, quer na recepção,
sons e sentidos que, sendo diferentes, são também, objetiva e simbolicamente falando,
equivalentes.
No contexto africano, por exemplo, o português não é a lingua materna, nem
maioritária e disputa um espaço de confluência com várias outras linguas nacionais e locais.
Como decorrência, o debate, na África, sobre a CPLP, projetou-se em relação à língua do
colonizador, em relação ao antigo colonizador propriamente, mas também e, sobretudo, um
debate intra-africano. Tratava-se claramente de sociedades africanas invadidas, exploradas,
oprimidas, parcialmente aculturadas pelo colonizador que, na atualidade, o contexto
globalização económica e política concorre para com que a CPLP assume uma condição
regional e geoestratégica de cumplicidades identitárias de estados (e povos?) a volta de uma
memória de histórica de colonização comum e da prtilha de um património linguístico tendo
em vista a não absorção por outras comunidades geoestratégicas (como a CEDEAO -
Comunidade Económica da África Ocidental, maioritáriamente francófona, SADC -
Comunidade de Desenvolvimento da África Austral - maioritáriamente anglófona, e
MERCOSUL - Mercado do Sul maioritáriamente hispánico).
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Na sua teorização sobre esses assuntos, Sousa Santos (2001) identifica corretamente
tais problemas. Infelizmente, sua proposta de "calibanização da lusofonia" acaba por de-
historicisar o processo, levando à formulação de uma espécie de destino lusofônico que é
inevitavelmente utópico.
No novo milênio, após assistirmos ao fenômeno da globalização e às alianças de
grandes blocos econômicos, como definir identidade nacional e cultural? Que identidades
culturais partilham estes países para além da especificidade da língua portuguesa (nas suas
diversas variantes) ? E de que se trata quando se pretende fortalecer a “nossa forma de estar
no mundo”? Que olhar é esse nosso olhar? Quem é este nós? Estas interrogações suscitam a
passagem da reflexão de se ver as comunidade periféricas do mundo lusófono do ponto de
vista do hibridismo cultural, como um processo que permite trocas, disseminação, um lugar
de fusão e antagonismos, uma mistura de vozes diferentes que lutam para serem ouvidas.
2. Hip-Hop, culturas e identidades
Os processos de internacionalização da cultura hip-hop celebram a abertura para o
diálogo entre as diversidades culturais, hibridas, transculturais. Com a circulação de ideias,
sons, pessoas, a cultura hip-hop no espaço luso-afro-brasileiro refletirá sobre a memória e o
sentimento de lugar. Ao falar de um lugar específico, acaba por “falar de todos” à medida em
que alcança a esfera da cultura global.
Com forte influência dos movimentos negros da década de 1960 e da cultura de rua, o
hip-hop construiu ética e estética inovadoras para a juventude pobre moradora das periferias
dos grandes centros urbanos, com o intuito de se colocar como alternativa ao modo de vida
dos jovens, valorizar a cultura popular e as diferenças étnico-raciais. Trata-se de um
empreendimento coletivo, e abarca manifestações artísticas nos campos da música (rap, sigla
derivada de rhythm and poetry – uma espécie de canto falado ou fala rítmica); das artes
visuais (grafite); da dança (break); dj (disc-joquei), e o quinto elemento - utilização do hip-
hop para o movimento político, não partidário.
Ao ocupar o espaço público com suas expressões artísticas, esses sujeitos inflexionam
a relação periferia-centro, trazem à tona as relações de poder implícitas nessa polaridade, que
circunscreve não apenas a ocupação do espaço urbano, mas implica o acesso diferenciado aos
bens materiais e simbólicos (Martins, 2005). A consciência negra, a auto estima, a união da
classe marginalizada da periferia toma forma nas letras, coreografias, nos grafites e discursos
dos integrantes da cultura. Além desta nova consciência, outro aspecto do hip-hop, um de
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seus mais elementares, é mostrar a realidade da periferia, suas dificuldades dentro do pequeno
espaço conquistado dentro da grande mídia.
As identidades associativas a cultura hip-hop nada mais são que sistemas de forças e
conflitos, cuja participação envolve na intensa busca pelo esclarecimento na superação do
indivíduo supérfluo. A participação do cidadão no ambiente social é o que define a cidadania.
E, acrescentaríamos: a questão da cidadania deve estar atrelada a participação do ator social e
a pluralidade de seus interesses, na ampliação das oportunidades e a maximização da
liberdade individual.
É nessa articulação que atores da sociedade civil se metamorfoseiam em
intermediadores de interesses políticos, constituindo-se em corresponsáveis pela tradução e
transmissão para a dimensão político-institucional de reivindicações as mais diversas
produzidas no interior do tecido social, contribuindo, dessa forma, para o enraizamento de
valores democráticos nas “práticas cotidianas” (Costa, 2002). Na perspetiva de Barros e Lima
(em prelo), este protagonismo juvenil vai além da perspetiva minimalista da democracia,
refletida no funcionamento das instituições e/ou realização de eleições, colocando particular
ênfase no coletivismo social através de um novo contrato social.
Ao reivindicarem sua integração na sociedade enquanto sujeitos coletivos de direitos,
os jovens vinculados a cultura hip-hop se orientam em torno de um sentimento de NÓS que é
construído ou por compartilharem a mesma categorização social (jovens pertencentes as
periferias das grandes metrópoles, na sua maioria negra ou mestiça) e, ou por estabelecerem
um projeto coletivo de futuro para si e para a sociedade como um todo (Melucci, 1996). A
identidade coletiva, nesses termos, também estabelece um conflito com um adversário, um
ELES, politizando, assim, os espaços de lutas sociais para a transformação das relações de
opressão em princípios de justiça e solidariedade.
A luta pelo reconhecimento social é um debate atualíssimo na contemporaneidade,
sendo que os grupos que são denominados de minoritários passaram a reivindicar o direito de
ter a liberdade de escolher a sua própria identidade social, não aceitando a identidade que lhes
foram impostas arraigadas de preconceitos e estigmas sociais. A protagonização de jovens,
moradores das periferias dos grandes centros urbanos, em torno de ações na busca por
reconhecimento na esfera da estima social, como definido por Honneth (1996), assim como a
auto-realização, e o encorajamento mútuo da individualidade, perpassa alguns dos tópicos que
pretendemos discutir na tentativa de propor um entendimento sobre que tipo de
reconhecimento social é almejado pelas agremiações juvenis ligadas ao hip-hop.
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Neste sentido, a questão da luso-fonia, torna-se algo desajustado (Lourenço, 1999),
quer para a real construção de um espaço simbólico-efectivo vivido e partilhado ao nível dos
territórios que compõem hoje o espaço CPLP, na medida que este conceito apresenta o
binómio da pluralidade e da diferença. Numa abordagem mais radical, Barros e Lima (no
prelo) argumentam de que, partindo do pressuposto segundo o qual a língua é o principal fator
de identidade, a reivindicação do crioulo como língua materna, no caso dos guineenses e
cabo-verdianos não pode ser sem significação identitária apesar dessa identidade poder ser
posta em causa em situação de bi-ou plurilinguismo, na qual o indivíduo não poder
identificar-se com uma só e mesma língua. O que faz com que, ter o crioulo como língua
materna no contexto diaspórico pode ser revelador de um certo processo de interação, de
integração e de harmonização social.
No caso da utilização do crioulo na música rap por jovens no contexto de diáspora,
pode ser simultaneamente um recurso de resistência a uma certa aculturação, ocidental e
também da valorização de um referencial africano, através de um emblema junto de uma
camada da população excluída nas zonas urbanas periféricas destes dois países de língua
oficial portuguesa. É nesta base que no contexto lisboeta, deparamo-nos com muitos jovens
famintos de conhecimento sobre a sua origem africana, olhando os nacionalistas, sobretudo
Amílcar Cabral, mas também Malcolm X e as demais figuras de luta anti-sistema racial norte-
americano. Esse espírito é hoje incorporado sobretudo pelos rappers, poetas de rua e novos
“guerreiros pela liberdade”, que segundo Barros e Lima (em prelo), tal influência é
encontrada mais na esteira de um pan-africanismo cultural do que político, transportado aos
novos palcos de opressão, de injustiça e desigualdade social.
3. Construindo e desconstruindo “identidades” - Associação Posse Hausa
“HIP HOP com responsabilidade racial”
Posse Hausa
“Posse” define-se como grupos coletivos que se organizam localmente, em seus
bairros ou regiões, com o objetivo de resgatar a auto-estima da juventude local e promover a
conscientização política. Nas posses os jovens marginalizados se transformam em autores e
interventores de suas realidades, uma atuação que vai além das discussões. Busca-se o
conhecimento através de reuniões de formação, leituras de livros e vivenciando a realidade
como ela é; são detentores de um senso crítico, construindo um discurso contra-hegemônico
da sociedade.
[...] o hip-hop faz com que as pessoas sejam vistas como cidadãos pelo fato de entenderem as
leis e conquistarem um maior espaço partindo da formação de cidadania [...] posse não é
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sentimento, mas um movimento, social podemos dizer, pois é por meio da cultura e do
entendimento da história que fazemos com que o nosso crescimento pessoal seja alcançado e,
com isso, tomamos posse da historia, da verdade. (Mateus Martins, 37, membro da Associação
Posse Haussa. Entrevista realizada em São Paulo, 05 de junho de 2012)
Ser um hip-hopper na Posse Hausa significa ter responsabilidade com um movimento político-
cultural que serve como instrumento de atuação nas comunidades, tanto para diversão como
para a mudança social, é um dever utilizar-se dos cinco elementos desse movimento para
transformar a vida das pessoas. Ser hip-hopper é falar o que vive, o que sente, expressando
com seu jeito particular como você enxerga o mundo que o cerca”. (Oadq citado por Santos,
2007)1.
Portanto, a importância de uma coletividade como “posse” segue daí: ela evidencia
um “nós” necessário para a constituição de cada ser humano individual, processo que dá
testemunho ao fato de que vidas individuais não se formam apenas de dentro das estruturas
burocráticas institucionais, mas principalmente de fora, ou seja, das arenas interacionais, das
arenas públicas de diálogo cujo indivíduo conversando com os outros atualiza sua crítica ao
mundo, cria outra lógica fora da normalidade social.
Posse Hausa, é uma entidade civil sem fins lucrativos de jovens ligados a cultura hip-
hop localizada na cidade de São Bernardo do Campo, um município brasileiro na região
Metropolitana de São Paulo, e que funciona desde 26 de junho de 1993 como associação de
jovens sem fins lucrativos. O reconhecimento formal do grupo é visto como um passo
positivo no sentido da incorporação política nos processos de decisão na comunidade local –
uma forma mais eficaz de representação e de pressão política e social.
A Posse Hausa vêm estimulando a parceria, o diálogo local e solidariedade entre os
diferentes segmentos sociais, ao participar em conjunto com outras entidades de atividades
que objetivem interesses comuns, visando desenvolver trabalhos de parceria com órgãos
públicos e entidades civis. A Hausa, com sede provisoriamente localizada na residência de um
membro do grupo, vem sobrevivendo em grande parte através do esforço próprio dos seus
integrantes, sobrevivendo muitas das vezes de doações dos próprios membros, sendo que
grande parcela dos componentes possuem um outro emprego, geralmente, fixo.
[...] temos nossos empregos fixos e fazemos algo para melhorar a sociedade em que
estamos inseridos, pois somos, enquanto maioria negra, que participa deste
movimento, os mais afetados pela discriminação, por ser periferia, pobre e negro.
(Mateus Martins. Entrevista realizada em São Paulo, 05 de junho de 2012).
Organizar-se através de uma posse significa constituir um laço familiar de
solidariedade entre os seus membros, através de valores que visem melhorar suas condições
de vida e a do próximo. A juventude local se identifica com a cultura hip-hop e encontra uma
alternativa de expressão, como forma de protestar contra a injustiça social que os afeta
1 Honerê Al-amin Oadq, é membro da Associação Posse Hausa de São Bernardo do Campo, São Paulo.
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diretamente. A atuação da Posse Hausa caracteriza pela participação de jovens que atuam
como arte-educadores propagando a cidadania através dos cinco elementos do hip-hop, e
imbutidos de espírito público por relações políticas igualitárias e por uma estrutura social
assentada na colaboração.
O grau mais alto de participação é a autogestão, na qual o grupo determina seus
objetivos, escolhe seus meios e estabelece os controles pertinentes, sem referência a uma
autoridade externa. Na autogestão desaparece a diferença entre administradores e
administrados, visto que nela ocorre a autoadministração, com estruturas não burocráticas e
até informais, e com formas coletivas de tomada de decisões, praticadas com um certo
distanciamento social relativamente pequeno, entre liderança e demais participantes (Melucci,
1996).
Com o objetivo de difundir a cultura hip-hop e afro-brasileira, a Associação Posse
Hausa participa ativamente de fóruns nacionais e internacionais, tanto enquanto palestrantes,
ouvintes e rappers. A Hausa vem proporcionando atividades educacionais e sócio-culturais,
realizando conferências, seminários, cursos, treinamentos, palestras nos temas voltados ao
meio ambiente, gênero, raça, classe, o que é racismo e suas manifestações discriminatórias e
preconceituosas. As principais bandeiras da Posse Hausa é a expansão do hip-hop nas ruas,
onde ele nasceu, sem perder suas características, promovendo a luta contra o racismo,
genocídio da juventude negra periférica, pelos direitos das mulheres negras e toda forma de
exclusão. Outra característica sempre presente é o combate as drogas, vistas como uma das
principais armas de extermínio da população negra periférica.
O hip-hop enquanto manifestação cultural associada a origem africana-diaspórica
encontra-se vinculada naquele espaço denominado por Gilroy de Black Atlantic. Por meio
desse conceito, Gilroy (1995) confrontou as posturas comuns entre os pensadores da condição
negra, argumentando, de modo convincente, contra os discursos de inspiração nacionalista e
romântica que têm a África como origem de uma cultura negra pura. Foi, pois, com a
metáfora do “Atlântico Negro” que este autor remete ao sentimento de desterritorialização da
cultura em oposição à idéia de uma cultura territorial fechada e codificada no corpo, e busca
explorar as relações entre raça, nação, nacionalidade e etnia, para colocar em xeque o mito da
identidade étnica e da unidade nacional, para pensar em novas bases a cultura e a(s)
identidade(s) negra(s), enfatizando, sobretudo, o problema e os limites da identidade étnica e
racial. O autor demonstra como as culturas africanas, na África e na diáspora, nunca viveram
hermeticamente fechadas em si mesmas e nem são vistas no campo unidirecional, mas
compondo um espaço de profundas trocas culturais e identitárias.
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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Desse modo, ao transgridir as imagens homogeneizadoras, os membros da Hausa
constroem sua noção de “negritude” e de hip-hop racial sob a chave da interação entre
sistemas comunicativos e contextos que elas não só incorporam, mas também modificam e
transcendem; isto é, a partir da identificação de elementos comuns encontrados na história da
diáspora africana e das experiências singulares de discriminação e de segregação vivenciados
pelos componentes do grupo na comunidade local. Nesse processo, a história de luta e
resistência de seus antepassados, é projetada na história vivida, e resignificada.
A associação participou da criação do Acervo Especial de Culturas Africanas e Afro-
Americanas em parceria com o Movimento Negro Unificado, na Biblioteca Jardim Paineiras,
em Diadema, (região industrial da parte metropolitana de São Paulo), sendo esta a única
referência para leitores e pesquisadores da temática na região do ABC. Este acervo, também,
surge no centro das discussões acerca de políticas públicas para a população negra (s). O
grupo participou também do encaminhamento de minutas de projetos de lei, que inclui nos
currículos escolares da rede municipal de Diadema e Mauá, assuntos realacionados a África e
a contribuição sócio-econômica e político-cutural dos afro-brasileiros na sociedade brasileira
– leis estas que foram aprovadas.
Dos seus trabalhos à comunidade destacamos trabalhos desenvolvidos sobre a questão
racial na área da educação e cultura com o Movimento Negro Unificado e Departamento de
Cultura de São Bernardo do Campo; participação na organização juntamente com o
Movimento Negro Unificado e Projeto Meninos e Meninas de Rua, da primeira passeata da
Juventude Negra Periférica em São Bernardo do Campo; efetuou trabalhos para recuperação
de jovens na Febem de Tatuapé e, palestras dentro do projeto DST/AIDS; além de eventos na
esfera do cultural. E, pela expressiva importância política e cultural no hip-hop de São Paulo,
a posse foi instrumento de estudo de tese de Mestrado na Universidade de São Paulo.
A educação é fundamental para o grupo, porque é ela que possibilita o acesso ao
conhecimento, as novas formas de leitura da história e, exerce um papel central nessa nova
construção da cidadania.
As ações políticas e sociais do hip-hop se realizam através do seu quinto elemento: o
conhecimento. Sem o conhecimento o rap, o break e o grafite não teriam esse caráter
informativo e conscientizador das questões sociais. Ser um hip-hopper exige a busca de um
conhecimento que vai além daquele ensinado nos livros didáticos. (Alexandre dos Santos, 26, é
membro da Associação Posse Haussa. Entrevista realizada no dia 17 de junho de 2012 em São
Paulo).
A educação transformadora, popular, crítica, que dialoga com a realidade dos sujeitos
envolvidos, nos remete aos ideais introduzidos pelo educador Paulo Freire, cujos princípios da
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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educação popular estão relacionados à mudança da realidade opressora, o reconhecimento, a
valorização e a emancipação dos diversos sujeitos individuais e coletivos. A conscientização,
a prática e a reflexão sobre a prática formam a categoria de organização da educação popular
e, são elementos básicos para a transformação social.
A vivência grupal e a prática social dos jovens na Posse Hausa apontam para um
crescente e significativo ato educativo, no qual a participação comunitária e a formulação de
questões vão garantindo a consciência política de cada componente (Andrade, 1996). A
articulação dos agentes propicia a luta pela produção de novos discursos, de novas verdades e
de outros saberes. Aprender a falar, opinar e formular questões, são os atributos encontrados
na dinâmica ou prática social da Hausa.
4. Visões Periféricas, participação e reconhecimento - Associação Dialogo e Acção/Zulu
Nation Portugal
Os zulus estão unidos em todos os capítulos do mundo para juntos com outros com convicções
semelhantes, possam trabalhar para o mesmo fim, para substituir a negatividade [...]
incentivar os jovens a nascerem de novo, crescerem pessoalmente, baseado no respeito mútuo
e no incentivo do conhecimento e na auto-estima. PEACE!!!!
Zulu Queen Ana Rita
Em diversos países, a cultura hip-hop tem servido de veículo de expressam para jovens
que passam por situações de opressão ou discriminação. Nesse âmbito, a cultura hip-hop em
Portugal tornou-se a senha para a definição de novas formas de localidades-identitárias
(locais, regionais, nacionais) e de novas globalidades - identitárias – que chegam a atravessar
fronteiras. Desse modo, o poder de aglutinação vem exatamente de sua capacidade de
tradução e ampliação do sentimento de injustiça presente entre populações que vivem a
margem da efetivação de justiça social, ou seja, da inclusão e do reconhecimento dos
princípios de igualdade.
Nos bairros sociais e degradados de Lisboa, Portugal, o hip-hop vem servindo como
ferramenta de integração e inclusão social. O que se nota como constante são as condições
insuficientes de infra-estrutura, resultando condições degradadas de vivência e existência
cotidiana. As imagens produzidas pelos meios de comunicação social estabelecem diferenças
e reforçaram formas de classificação ao estigmatizar territorialmente os bairros sociais como
espaços degradados, publicamente etiquitetado como uma zona de «não-direito», para usar o
termo de Wacquant (2001), espaços marginalizados e indiferentes, associados a guetos de
jovens negros ligados a criminalidade. O não-reconhecimento do outro como sujeito de
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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interesses e aspirações representa nada mais do que uma forma de sociabilidade que por hora
não se completa, porque regida por uma lógica de anulação do outro como identidade.
A discriminação de fora para permite identificar-se ao lugar por meio de redes de
vizinhança ou em grupos organizados. A Associação Dialogo e Acção, entidade que
representa a Zulu Nation em Portugal, sem sede própria, vem desenvolvendo suas atividades
provisoriamente nas dependências de uma igreja na localidades do bairro social da Reboleira,
freguesia do concelho da Amadora, pertencente ao Distrito de Lisboa. Dentre suas ações vem
aparando, orientando e defendendo os direitos dos jovens e das mulheres, imigrantes
residentes em bairros sociais, com ações diretas, trabalhando sempre com o diálogo de paz,
cidadania, a auto-estima e a valorização das suas potencialidades artísticas, capacitando,
assim, agentes culturais mediadores e multiplicadores da mensagem.
Através de suas ações a associação vem exercitando o que diríamos de
“descentramento do olhar colonizador”, a partir do argumento de que o indivíduo constrói sua
alteridade a partir do momento em que começa a contestar o olhar do colonizador sobre si. O
ponto central que está por trás desse olhar pós-colonial é lutar, como diz Mignolo (2000), por
um deslocamento do locus de enunciação. O interesse é de relocação. Não se trata apenas de
devolver o olhar, mas de tentar mudar a origem do olhar, exercitando assim a hermenêutica
pluritópica. Dito de outra forma, criar espaços de possibilidades do subalterno se subjetivar
autonomamente.
Visando a expansão das redes sociais para além das fronteiras do bairro, a associação
vem participando em redes internacionais de hip-hop buscando parcerias com outros
coletivos, que partilham da mesma filosofia do grupo, buscando o alargamento das áreas de
intervenção. Em 2010, por exemplo, com o apoio Fundação Gulbenkian, Dialogo e Acção,
recebeu apoio para o projeto “Hip Hop de Batom”, que através das várias vertentes do hip-
hop – canto, dança, dj e graffiti - e num meio ainda vincadamente masculino, pretendeu dar
espaço à voz as mulheres e promover a igualdade de género e o exercício dos direitos de
cidadania das mulheres, com vista ao decréscimo da violência pública e privada que submete
muitas mulheres a constrangimentos, a discriminações, a desigualdades de oportunidades de
acesso ao emprego ou que as atira para a prostituição, tornando-as vitimas dos traficantes da
indústria do sexo entre outras tantas agressão ainda exercida contra elas.
No âmbito deste projeto, foram desenvolvidas diversas atividades, visando a troca de
experiências entre as mulheres envolvidas no projeto “Hip Hop de Batom”. Mostras de filmes
e documentários sobre a importância da mulher e da cultura hip-hop, exposições e
espectáculos ao vivo com especial apelo às mulheres artistas de zonas urbanas periféricas ou
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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participação das jovens do grupo Hip Hop de Batom em seminários sobre o tema Violência
Contra as Mulheres, são exemplos de algumas iniciativas realizadas. E um dos resultados
obtidos através de um curso frequentado pelas rappers foi a realização de uma letra escrita
pelas integrantes falando da mutilação genital feminina e a ilustração visual feito pela
grafiteira do grupo.
Dar visibilidade às mulheres do hip-hop e às suas obras através da exposição e
apresentação dos seus trabalhos artísticos, é também dar voz às excluídas dos bairros sociais,
divulgar e promover as mulheres do hip-hop nos meios de comunicação social e a arte do hip-
hop também como expressão pública da denúncia da violência contra as mulheres.
[...] Até quando se irá ignorar?/People da tuga [tuga é uma expressão utilizada para designar
o(s) portugues(es). Tuga é uma abreviatura de Portuga que, por sua vez, é
uma derivação regressiva de português] não vamos vassilar/Aqui perto e longe como se não
fosse nada/A mutilação continua a ser praticada/Quem sabe e não denuncia pratica
cumplicidade/Passando a fazer parte desta atrocidade/Num mundo dito moderno cheio de
informação/Será que chega a todos? Parece-me que não/O esforço e contributo de muitos perde
o efeito/Se não houver denuncias pouco oh nada será feito/Uns imitam outros sem nenhuma
justificação/Ninguém conhece a origem cara ou religião [...] Crianças pequenas dor nos seus
olhares/Sofrimento magoas dificeis de explicar/Até quando se irá ignorar/O que a mutilação
está a causar/Todos os dias doenças transmitidas/Muitos ferimento e graves feridas [...] Cést
Plus que triste de voir/ des situacion comme celle ci/ cest comme une bombe sur ma mentalité
que me fais pleurer et crier/ quand je regard la rialite/ la Mutilation Genital cest un crime
Fatal siecle vint-un pour les developés/ cette pratique elle est encore vivant/ chez elle, chez elle
toujours elle/ il a des gens que avance/et des gens que vis la ignorance/ il faut changer
l'atitude de la tuer/ mes freres mes soeurs Pitié. (Hip Hop de Batom, 2009).
A letra “Mutilação Genital” do grupo de rap “Hip Hop de Batom”, escrita no idioma
português (lingua oficial das integrantes) e francês (aqui a intenção foi denunciar a existência
em alguns países de língua oficial francesa, que praticam a mutilação genital), relata
exatamente que a violência contra as mulheres é um mal presente em todo o mundo. Faz-se
aqui uma denúncia à luz de um quadro mais amplo.
Em 2010 foi realizado o primeiro encontro de hip-hop feminino em Lisboa, Portugal, e
realizou-se um encontro de três fins-de-semana. O fio condutor do projeto foi a sensibilização
e capacitação de jovens mulheres, não só como agentes culturais para a inclusão de outras
jovens mulheres, a partir de uma linguagem artística aceite nos bairros de onde são
provenientes, mas também como agentes de mediação e diálogo para a paz e para a resolução
de conflitos.
A formação destas jovens teve como objetivo preparar e transformar as participantes
em agentes multiplicadoras, habilitando-as para trabalhar nas suas comunidades. Tendo em
conta que os bairros nos quais a associação trabalha têm um alto índice de portadoras de
HIV/SIDA, foi também nessa área que insistiram a nível da formação. Com mais segurança e
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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conhecimento estas jovens ajudariam na prevenção de HIV/SIDA e das doenças sexualmente
transmissíveis, na prevenção da gravidez na adolescência, no estímulo da auto-estima das
mulheres do seu bairro, passando também informações úteis para o dia-a-dia delas,
fortalecendo a rede de mulheres e criando alternativas e dando respostas às suas dúvidas.
“Hip Hop pela Paz” é outro projeto que atualmente é realizado pela Associação
Dialogo e Acção/Zulu Nation Portugal, tendo como objetivo o desenvolvimento pessoal e
social, de integrar e de educar para a cidadania, através do hip-hop enquanto veículo de
informação cultural. O projeto integra jovens de bairros sociais de Lisboa - Sta Filomena,
Cruz Vermelha (Cascais), Amadora, Queluz, Sintra, Apelação (Loures), Quinta da Princesa
(Seixal), Estoril, Chelas e Fim do Mundo -, num total de 20 jovens, dos 14 aos 28 anos,
envolvidos na multiplicação de ações de paz e não-violência. O projeto vem fortalecendo os
talentos, qualidades e competências dos jovens envolvidos, contribiundo, com isso, para o
processo de inclusão social dos jovens no quotidiano cultural do seu bairro.
No dia 10 de Setembro de 2011, o anfiteatro ao “Ar Livre” da Fundação Calouste
Gulbenkian, acolheu o concerto de lançamento do cd Hip Hop Pela Paz, que visou a
promoção da não-violência e do diálogo, no sentido de potenciar a criatividade rítmica e
musical, num contexto de interação sociocultural e de inclusão social.
Quero sempre ser original e me manter dentro de uma filosofia com referência na Zulu Nation.
Trazer a ideologia inicial do hip-hop, a unificação dos povos, a paz! Quero alertar a todos
através de informações, que o pessoal não tem conhecimento com palavras que possam nos
fazer crescer!”. (Jack Pot, rapper, é membro da Zulu Nation Portugal. Entrevista realizada em
Lisboa, Portugal, no dia 24 de julho de 2012).
Não se trata de uma vontade temporária, não se trata de uma moda, não se trata de um passa-
tempo. Trata-se de procurar, com as nossas capacidades e ou dons, melhorar o mundo à luz do
5º Elemento - a que designamos como Conhecimento. (Nicandro Francisco de Barros Mendes,
24, rapper,l membro da Zulu Nation Portugal. Entrevista realizada em Cacém, Portugal no dia
05 de julho de 2012).
Subjacente à vontade de participar encontra-se um sentido cívico, uma preocupação
social, um sentimento de bem-estar por realizar algo que é positivo para um outro,
nomeadamente o grupo a quem a atividade se destina. À luz disto, o simples fato de participar
implica forte apelo na criação e experimentação de formas diferentes de relações sociais
cotidianas no exercício de espaços de relações mais solidárias, de consciência menos dirigida
pelo mercado, de manifestações culturais menos alienadas em reação às várias deficiências da
esfera social que se manifestam na periferia do sistema.
Quando você está participando de um coletivo você se sente mais importante até mesmo para
você, tanto a sua auto-estima, quando da importância que você se dá para si. Eu consigo
exercitar o que eu gosto, o que eu sei fazer. Quando você está no coletivo, quando nos unimos
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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torna mais forte. (Cátia Andrade, Gata, 28, rapper do grupo Hip-Hop de Batom. Entrevista
realizada em Lisboa dia 22 de Julho de 2012).
Um dos termos-chave utilizados por estas associações é protagonismo juvenil, que se
traduz pela participação dos jovens nos contextos em que estão inseridos, no sentido de
proposição de caminhos para a concretização da condição de cidadania. Nestes agrupamentos
juvenis, ligados ao hip-hop, os sujeitos sociais se comunicam e tomam conhecimento de seus
direitos e deveres e, a partir deste momento, tomam decisões sobre suas vidas, seja de forma
individual, seja de forma coletiva. A identidade de pertencimento se reforça como estratégia
simbólica de busca de inclusão frente a contextos de fragmentação derivados de processos de
desigualdade cada vez mais intensos.
6. Considerações Finais
A relação entre jovens e espaço urbano, pressupõe a necessidade de propor uma
abordagem que reconheça o ‘habitar’ como algo que se faz, que se produz activamente. Trata-
se de explorar a forma como os jovens navegam, circulam e habitam o espaço urbano, sempre
tendo em conta as diferenças de género e a forma como a estratificação social reflecte-se quer
na própria estrutura urbanística quer nos circuitos que os jovens inventam nela reproduzindo e
recriando processos de significação dos lugares, as suas formas diferenciadas de ‘circular’ a
cidade, como o que Certeau (1980) designa de ‘mapas’ e ‘circuitos’. Assim, a auto-encenação
da cidade como espaço de diversidade desses “outros espaços”, mapas e circuitos está sendo
cada vez mais documentada no hip-hop, o que leva a questionar o modo com o território luso
brasileiro se auto-representa.
No caso da sociedade portuguesa, o rap acaba por constituir não só a afirmação da
condição negra mas também o caminho de pertencimento a uma determinada negritude.
Segundo Gusmão (2006) este processo é influenciado por movimentos mais globalizantes,
chegando a própria condição da africanidade ser ambígua (e não homogénea) para os jovens
negros, na medida que a africanidade para os jovens descendentes de imigrantes que vive num
bairro africano de Lisboa, de falar uma língua africana, nomeadamente o crioulo, expressa as
origens, espaço, a condição de ator.
Construídas nas interações sociais, as representações sociais juvenis urbanas acabam
por se constituir, em mediações entre os sujeitos e o mundo, interpenetrando sentimentos,
idéias, biografias, ideologias, fundindo as histórias dos sujeitos no local e global; e
apropriadas para dar sentido às suas ações no cotidiano. Estas agremiações foram potenciadas
pela disseminação da democracia que deu aos grupos excluídos maior espaço de
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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representação política e reivindicação, associado ao progresso na comunicação que permitiu
articulações de luta novas em entes espistêmicos antes isolados e ainda a aceleração dos
fluxos migratórios, criando fora do contexto de origem diásporas que apoiam exigências de
reconhecimento cultural, fornecem aos jovens periféricos novos modelos de atuação,
aquisição de novos saberes e protagonismo social, assim como novos espaços de pertença.
Emerge aqui uma preocupação com a identidade, tanto dos grupos quanto dos
indivíduos inseridos neste contexto. Rever a identidade, questionar a identidade, reafirmar a
identidade tornam-se exigências correntes. Pertencer a um movimento, a uma rede, a um
campo ético-político, situar-se num campo discursivo, enfim, implica em experimentar o
desafio da alteridade, inserir-se em lutas pelo reconhecimento ou pela reparação de injustiças
e desigualdades.
É possível identificar uma diversidade de motivações que pode estar na base do
estímulo sentido pelo/a jovem para dar os primeiros passos dentro desses coletivos ligados ao
hip-hop, assim sintetizadas: afinidades simbólicas e afetivas face às atividades às quais se
adere; necessidade ou desejo de expressar-se em termos identitários, em ligação com as raízes
culturais africanas; acesso a formação e/ou oportunidade de emprego, conjugando gostos
pessoais; oportunidade de conhecer pessoas e conviver, podendo interligar-se com laços de
amizade, familiares ou comunitários, com forte peso das sociabilidades juvenis; resolução de
problemas concretos que afetam o indivíduo ou o bairro onde reside, aliando o interesse
individual a um sentido cívico de contribuir para o bem-estar coletivo.
Sintetizando, a leitura feita destes agrupamentos implementam ações que acabam por
contribuir à possibilidade de construção da cidadania, em respeito as suas diferenças e
direitos. Os agrupamentos dos jovens vinculados ao hip-hop no espaço urbano lusofono
acabam por remeter a um território tanto de encontro como de conflito e medo. São, portanto,
um campo de pesquisa privilegiado para a compreensão e a decodificação dos significados e
dos papéis sociais que se atribuem à juventude. Suas atividades viabilizam um canal
permanente de diálogo entre o poder público e a sociedade civil, no que diz respeito ao
controle democrático na configuração das políticas públicas endereçadas a jovens periféricos.
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“Bigamia” en el Río de la Plata. Migración y militancia política transnacional entre las/os jóvenes uruguayas/os en Buenos Aires*
Silvina Merenson**
Resumen: A partir de una etnografía multi-situada, este artículo analiza un aspecto específico de la vida
transnacional de un grupo de jóvenes uruguayos en Buenos Aires: los diálogos intergeneracionales en que
traman sus militancias en fuerzas políticas de uno y otro país. A partir de las metáforas que proponen para pensar
sus trayectorias migratorias y políticas, el artículo discute tres cuestiones relacionadas entre sí: las producción de
reterritorializaciones o geografías alternas para elaborar los vínculos entre ambos países limítrofes y el carácter
innovador/transformador de sus prácticas; los vínculos entre juventud, migración y modernidad; y las
particularidades que en ello pueden observarse para los flujos migratorios Sur-Sur, a veces opacadas por la
trascendencia que cobra en la literatura los procesos migratorios Sur-Norte.
Palabras clave: juventud - migración – militancia política transnacional.
Abstract: From a multi-sited ethnography, this article analyzes a specific aspect of transnational life of a group
of young Uruguayans in Buenos Aires: the intergenerational dialogues where they plot their militancy on
political forces of both countries. From the metaphors they proposed for thinking their own migratory trajectory
and policies, this article discusses three interrelated issues: the production of alternative reterritorializations or
geographies to develop links between the two bordering countries and the innovative/transformer of their
practices; the links established among youth, migration and modernity, and the particularities that can be
observed from the South-South migration, sometimes overshadowed by the significance in literature of the
South-North migration processes.
Keywords: youth - Migration - transnational political militancy.
Introducción
Somos bígamos1: tenemos dos países, dos casas, dos militancias. Somos peronistas y
frenteamplistas. Sergio, 25 años, músico.2
Estos pibes son una cosa que… Van, vienen, militan acá, militan allá, votan acá, votan allá.
¡Así no se puede! Adela, 68 años, empleada estatal.
¿Y por qué no vas a hacer política en los dos lados? Pobres los que están en España, en
Australia. Acá, somos rioplatenses. Uruguay está a 5 minutos de Buenos Aires. Tardás menos
en ir de Buenos Aires a Montevideo que en ir de Buenos Aires a Jujuy3. Pablo, 27 años, músico
y albañil.
A modo de viñetas, las palabras de Sergio, Adela y Pablo, introducen tres formas
frecuentes de pensar la militancia política transnacional entre las y los migrantes uruguayos en
Argentina, los vínculos entre ambos países limítrofes y las geografías alternas o
reterritorializaciones que emergen de ello. Desde la segunda parte del siglo XX la emigración
en Uruguay se tornó un fenómeno estructural con un alto impacto demográfico en el país
* Artigo recebido em Janeiro de 2013 e aceite em Março de 2013.
** Silvina Merenson. Instituto de Desarrollo Económico y Social, Universidad Nacional de Gral. San Martin (UNSAM),
CONICET – Argentina. E-mail: [email protected] 1 El subrayado me pertenece en todos los casos salvo indicación en lo contrario. Las cursivas indican palabras y frases
correspondientes a las y los entrevistados recogidas en el trabajo de campo. 2 Los nombres de los y las entrevistadas no responde a los reales. 3 Jujuy es una provincia situada a 1.654 kilómetros de Buenos Aires, que limita al norte con Bolivia y al oeste con Chile.
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“cuya secuela es la instalación de una cultura emigratoria (…) y la imagen interiorizada en la
población, particularmente entre los jóvenes, de que las posibilidades de prosperar están fuera
de [las] fronteras” (Pellegrino, 2003: 23). Entre los destinos posibles, la Argentina, y
particularmente la ciudad de Buenos Aires, ha sido históricamente aquella en la que el stock
de uruguayos fuera del país fue y es el mayor. Como correlato de esto último, Uruguay es uno
de los países más envejecidos del hemisferio occidental.
Sergio, Pablo y el resto de las y los jóvenes que voy a referir en este artículo dejaron
Uruguay –un país de viejos- para instalarse en Buenos Aires. Aún cuando difiere el período,
la edad o los motivos por los que se encuentran en la capital argentina (ya que algunos
llegaron de pequeños, como parte de una estrategia familiar migratoria, otros como resultado
de una decisión autónoma y otros integran la segunda generación), comparten su pertenencia
a las denominadas familias transnacionales, sus dudas a la hora de considerarse migrantes y
la militancia intermitente en fuerzas políticas de ambos países: en el Frente Amplio4 (FA)
uruguayo y en la Corriente Peronista5 (CP) argentina. Como veremos en estas páginas, se trata
de una combinación que resulta motivo de conflictos y tensiones con la generación de
migrantes que los preceden (sintetizada al comienzo en las palabras de Adela), pero también
de una forma innovadora de pensar y experimentar la política, los vínculos históricos que
unen a ambos países y las territorializaciones habilitadas por ambas cuestiones.
Pero lo mencionado hasta aquí no es lo único que comparten estos jóvenes.
Pertenecientes a las amplias y heterogéneas clases medias capitalinas, aunque con una
inserción inestable en el mercado laboral muy semejante a la que presentan sus pares
generacionales argentinos, son personas sumamente activas y emprendedoras. La mayoría
tiene pareja pero no hijos/as, pasan buena parte del día fuera de casa y sus teléfonos celulares
(con los que leen diarios y blogs argentinos y uruguayos, se enteran de las próximas fechas de
los conciertos de sus grupos de música preferidos y de las convocatorias a reuniones, actos y
asambleas) son fundamentales a la hora de organizar sus agendas y elaborar sus referencias,
posiciones y evaluaciones políticas. Si bien están muy lejos de la apatía y el desencanto con
que la literatura caracterizó el vínculo entre juventud y política en lo que fue la larga década
4 El Frente Amplio es una coalición que reúne organizaciones y partidos ubicados en el centro y la izquierda del arco político
uruguayo, fundado en 1971. Luego de su proscripción (1973) y tras la dictadura cívico-militar en Uruguay (1973-1985) el FA
fue consolidándose como la tercera fuerza política del país hasta llegar al Poder Ejecutivo en 2005, con la candidatura de
Tabaré Vázquez y, en 2009, con la de José Mujica, actual presidente. 5 La Corriente Peronista, una de las múltiples agrupaciones que acompaña a la presidenta Cristina F. de Kirchner, nació en
2010 como producto de la fusión de varias organizaciones del Peronismo Revolucionario, tributario de la “tendencia
peronista” que en los años setenta protagonizó la lucha armada en Argentina. El peronismo, que toma su nombre del de su
máximo referente y fundador, el Gral. Juan Domingo Perón (1895-1974), es un movimiento de masas surgido a mediados de
los años 1940. Desde entonces es uno de los principales protagonistas de la vida política del país y ha sido objeto de diversos
estudios, interpretaciones y caracterizaciones. Véase: Halperin Donghi (1994), Sidicaro (2002) y Torre (2002)
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neoliberal6 en la región, tampoco se trata de personas que viven hiperconectadas o pendientes
de lo que sucede en el planeta; aunque sí de aquello que las involucra directamente. Antes que
“sujetos cosmopolitas” o “ciudadanos del mundo”, tal como podrían indicar los estudios
culturales y transnacionales7, estos jóvenes se sienten rioplatenses, en palabras de Pablo, o
bígamos, en la definición que ofreció Sergio y que el resto de sus compañeros vio con suma
simpatía.
A partir de una etnografía multi-situada, es decir siguiendo a las personas, las
metáforas, la trama/relato/alegoría, la vida/biografía y el conflicto, tal como sugiere Marcus
(1995), este artículo aborda un aspecto específico de la vida transnacional de un grupo de
jóvenes uruguayos/as en Buenos Aires: los modos y diálogos intergeneracionales en que
traman sus militancias en fuerzas políticas de uno y otro país. En los tres apartados que
siguen, presentamos una breve reseña del asociacionismo político uruguayo en Argentina, las
tensiones que en la actualidad enfrentan a dos generaciones de migrantes (sintetizadas en una
serie de metáforas y nominaciones) y las consecuencias prácticas de las trayectorias bígamas.
Todo ello para analizar y discutir, en las palabras finales, tres cuestiones relacionadas entre sí:
la producción de territorializaciones y el carácter innovador/transformador de las prácticas
políticas de estos jóvenes; los vínculos entre juventud, migración y modernidad; y las
particularidades que pueden observarse para los flujos migratorios Sur-Sur, a veces opacadas
por la trascendencia que cobra en la literatura los procesos migratorios Sur-Norte.
1. Asociacionismo político uruguayo en Argentina
Las prácticas políticas trasnacionales de los/as uruguayos en Argentina resultan un
rasgo distintivo de esta colectividad (Crosa, 2010). En el marco de la larga tradición de asilo
político bilateral que se remonta al siglo XIX, cómo mínimo podemos remitirnos a la intensa
actividad desarrollada por los exiliados políticos que llegaron al país en los años anteriores y
posteriores al golpe de Estado cívico-militar en Uruguay (1973-1985).
Pertenecientes a distintos sectores de la izquierda uruguaya, incorporados al naciente
FA, los exiliados se organizaron según la estructura del Comité de Base (CB) determinada por
esta coalición de izquierda, respondiendo de ese modo a los lineamientos que en 1977 dio el
Comité Coordinador del Frente Amplio en el Exterior con sede en Berlín. En plena transición
hacia la democracia, en 1984, el Gral. Liber Seregni, uno de sus fundadores y máximo
referente, definía al FA como un movimiento político transnacional, “físicamente
6 Al respecto de esta caracterización que abarca la década de 1990, véase los artículos compilados por Balardini (2000). 7 Específicamente, me refiero a los análisis de Rosaldo (1989), Kearney (2003) y Hannerz (2008). También a la perspectiva
de Deleuze y Guattari (1998).
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fragmentado, con sede política en territorio uruguayo, y buena parte de sus miembros
dispersos por el mundo” (Aguirre Bayley, 2000: 49). En este contexto, desde comienzos de la
década de 1970, la militancia frenteamplista en el exterior denunció las violaciones a los
derechos humanos de la dictadura, informó a gobiernos extranjeros y organismos
internacionales sobre la situación política en Uruguay, impulsó campañas de solidaridad con
los y las presas políticas y, ya en los años 1980, preparó el regreso al país de sus militantes.8
Sin embargo, no todos los exiliados retornaron y, en la actualidad, funcionan más de
30 CB (unos 10 en la ciudad de Buenos Aires) reunidos en el Frente Amplio de Uruguay en
Argentina (FAUA). Aún cuando en su gran mayoría llevan más de 3 décadas de actividad, ni
los CB ni el FAUA, tienen un marco político-legal de reconocimiento que los contenga ni en
Argentina ni en Uruguay. A pesar de que votan en todos los niveles en las elecciones internas9
y, en varios casos, integran las listas consignando como sus domicilios en territorio uruguayo
los de sus familiares, los delegados elegidos por Argentina tienen voz pero no voto en las
instancias resolutivas del FA.
Actualmente, cada CB reúne más de 100 inscriptos entre militantes y adherentes, pero
en cada uno participa activamente un promedio de entre 20 y 25 personas. Se trata en su gran
mayoría hombres de entre 50 y 60 años de edad que, tal como dicen, vivimos y militamos de
cara al Uruguay. Es por ello que en sus reuniones semanales hay muy pocas fisuras por las
que puedan colarse comentarios o breves intercambios de opiniones sobre la agenda política
argentina. Para esta generación, las reuniones en los CB, resultan instancias de encuentro en
los que la reterritorialización funciona suturando el tiempo histórico que media entre el
contexto político uruguayo que los expulsó del país y un presente que los autoriza (parcial o
selectivamente) a intervenir en él. En los CB conviven entonces dos dimensiones espacio-
temporales. La primera asociada a la nostalgia y los recuerdos de sus juventudes
montevideanas en los años 1970, que hoy implica narrar cómo simulaban ser una doña de
barrio para trasladar en plena dictadura materiales políticos o entablar duras críticas hacia
Montoneros10
, y así señalar la dificultad que siempre tuvo la izquierda argentina para crecer,
en virtud del peronismo que lo capta todo. La segunda temporalidad, tramada entre el
esfuerzo realizado por mantener vivo el FAUA y el orgullo con que afirman que, con el voto
Buquebus11
, fue el frenteamplismo argentino el que permitió llegar al gobierno. En virtud de
8 Sobre el activismo transnacional en materia de Derechos Humanos del exilio uruguayo véase Markarian (2006) 9 El 27 de mayo de 2012 el FA realizó las cuartas elecciones internas con padrón abierto y adhesión simultánea. En dicha
oportunidad votaron en Argentina cerca de 3.000 frenteamplistas. 10 Montoneros fue la organización revolucionaria armada peronista más importante en los años 1970. 11 Buquebus es el nombre de la empresa de transporte fluvial que une Buenos Aires con distintos puntos del Uruguay que,
mayoritariamente, utilizan los uruguayos en Argentina para trasladarse a los actos electorales.
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esto último es que esta generación, no sólo milita para que el FA se consolide como fuerza
política, sino también para demostrarle a Montevideo que no puede seguir excluyéndonos de
los ámbitos de toma de decisión.
Esta exclusividad en la vida política en el país de origen por parte de las y los
integrantes de esta generación autodenominados dinosaurios12
, enmarca una de las tensiones
que enfrenta la juventud recientemente sumada al FAUA. Sergio, Pablo y el resto de sus
compañeros/as que comparten militancias políticas en ambos países, amplían sus horizontes
creativos de intervención, extendiéndolos a los modos de pensar la membresía y el ejercicio
de la ciudadanía. Ante comentarios críticos como el expresado por Adela, citado al comienzo
de este texto, Paula, que nació en 1982 y llegó a Buenos Aires con tres meses de vida, decía:
acá en Argentina está lleno de uruguayos que no están empadronados, que van y votan en
Uruguay nada más. El uruguayo de toda la vida va y vota allá. Acá votan sus hijos, sus
nietos, pero ellos no, ¿viste? Ellos son uruguayos.
Con esta observación, Paula interpela lo que es la posición, entre otros migrantes, de
su tía Marta, residente en Buenos Aires desde hace 37 años, quien nos explicaba
taxativamente su opción personal más allá de los derechos consagrados por las leyes
migratorias:
Yo elegí ser ciudadana uruguaya, yo estoy eligiendo conservar mis derechos uruguayos y
entonces no puedo pretender tener, hacer uso de los derechos argentinos. Yo con eso estoy
haciendo una elección, la de no ser argentina. Yo estoy acá como residente y no quiero ser
argentina, por eso no voto acá y sí voto allá. Por más que pueda votar acá y la ley me lo
permita: ¿por qué voy a votar y a tener derechos acá que yo estoy eligiendo no tener?
En términos simbólicos, subjetivos, pero fundamentalmente en términos de lealtades y
membresías, las definiciones en torno a quiénes integran la nación, quiénes son y quiénes se
consideran sujetos de derecho es materia de múltiples luchas y disputas. En este terreno, tanto
el activismo político como el Estado-nación, tienden a promover lazos duraderos anclados en
que cierta exclusividad visible, por ejemplo, en la implementación de "políticas nacionales
globales" (Glick Schiller et al., 1997: 124). Esto, que rápidamente podría ser cuestionado si
pensamos en los acuerdos y marcos internacionales que permiten la existencia de la doble
ciudadanía o en las expresiones que en términos nativos aluden a las dos patrias, no
necesariamente encuentra traductibilidad política entre la militancia transnacional. Lo
sucedido en torno al activismo uruguayo en el exterior en post de la extensión extraterritorial
12 Con “dinosaurios” la generación fundadora del FAUA alude al largo tiempo que llevan en Argentina involucrados en la
vida política del Uruguay.
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de los derechos políticos de los migrantes es un claro ejemplo de ello.13
Se trata de un caso
que demuestra, tal como sugiere Benhabib (2004), que la membresía cívica a la comunidad en
la que se ha nacido ya no es una cosa dada y, la pertenencia a ésta, no siempre es una cuestión
de libre elección al modo de Marta.
Por oposición a esta exclusividad -¿o monogamia?- que observan críticamente para la
generación política que los precede, y con todas las precauciones del caso, los bígamos reúnen
diversas instancias de presentación, adscripción y participación en ámbitos y experiencias
políticas y ciudadanas. Además de desestabilizar la asociación entre nación y Estado, cuando
enfrentan la lógica una patria – un voto – un derecho, son militantes peronistas y
frenteamplistas, subvirtiendo de este modo los linajes políticos que componen la gran familia
frenteamplista, forjada en una larga historia de eventos críticos que se remontan a lo que fue
prácticamente la ruptura de las relaciones entre Argentina y Uruguay durante lo que se conoce
como primer peronismo (1946-1952).
2. Monogamia, bigamia e hibridación: metáforas, clasificaciones y diálogos
intergeneracionales en el frenteamplismo uruguayo en Buenos Aires
A diferencia de bígamo, rioplatense es una categoría de (auto) adscripción que, con
distintos significados, recorre la historia argentina y uruguaya desde los tiempos de la
Colonia. Muy brevemente digamos que alude a una percepción sumamente extendida acerca
de una serie de rasgos diacríticos -básicamente culturales- compartidos por los habitantes de
ambos márgenes del Río de la Plata.14
Rioplatense, entonces, es la categoría que permite
afirmar que los uruguayos (por los montevideanos) en Argentina (por Buenos Aires) pasan
desapercibidos, se mimetizan o se camuflan fácilmente entre la población nativa, permitiendo
esquivar la estigmatización que supone ser considerados “migrantes limítrofes”15
y superar las
metáforas e imágenes de “ruptura” o “pérdida” que suele acompañar la experiencia migratoria
En el caso de Sergio esta superación se sitúa en sus 16 años, cuando experimentó un fuerte
enojo con sus padres en virtud de haber decidido por él el lugar en el que iba a vivir. En el
caso de Pablo, en cambio, remite a la diferencia con lo que fueron sus primeros tiempos en
Buenos Aires, ciudad a la que llegó en 2000 “por necesidad”, cuando no encontraba trabajo en
13 En 2007 el poder legislativo rechazó el proyecto de ley referido a los derechos políticos de los uruguayos en el exterior y,
pocos años después, en el plebiscito realizado junto a las elecciones presidenciales de 2009, sólo el 37, 4% del electorado se
expresó a favor de habilitar la enmienda constitucional para incorporar el voto en el exterior. 14 Entre estos rasgos se incluye la proximidad territorial, las costumbres y consumos culturales semejantes, la similitud
fenotípica estereotipada ligada al carácter mayoritariamente “blanco” de la población, una misma modulación del español,
etc. 15 No podremos detenernos en esto, pero digamos que “rioplatense” opera como desmarcación de la condición de “migrante
limítrofe” y de toda la carga estigmatizadora que porta esta definición en Argentina, particularmente en el caso de la
comunidad boliviana, paraguaya y chilena.
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Montevideo y odiaba estar acá. Distinta, en cambio, es la situación de Paula, para quien su
condición de uruguaya es un misterio a revelar.
Desde la perspectiva de estos jóvenes, la condición de rioplatense implica el
desplazamiento de las relaciones imaginadas entre la “distancia física” y la “distancia
estructural” (Evans- Pritchard, 1997) hacia otros lugares. Por ejemplo hacia Jujuy, tal como se
desprende de las palabras de Pablo con las que iniciamos este artículo, una provincia
argentina que sintomáticamente es frontera con Chile y Bolivia. Este modo de tematizar las
identificaciones, resulta una condición de posibilidad necesaria para producir un espacio –el
rioplatense- que lejos de borrar las fronteras territoriales, las hiperrealiza en los márgenes
políticos y cívicos que suponen. Ser rioplatenses para poder pensarse como bígamos, resulta
crucial en la medida en que habilita una serie de prácticas y resignificaciones territoriales
tácticas, parciales e intermitentes en función del curso que siguen los diálogos
intergeneracionales sostenidos entre la militancia frenteamplista en Buenos Aires. En estas
nominaciones, entonces, podemos hallar la voluntad de producir geografías alternas cuyos
sentidos impactan fuertemente sobre las formas creativas e innovadoras de practicar la
política y la militancia transnacional.
Sin embargo, en lo que estos jóvenes llaman bigamia, la generación del exilio político
encuentra una hibridación. Éstos jóvenes, dirán los dinosaurios, son peroamplistas, jugando
en la combinación de las dos identidades políticas (peronista y frenteamplista) una expresión
resignada que atribuyen a la confusión que acarrea la corta edad, la poca experiencia militante
y la particular coyuntura política que abrió la muerte del ex presidente argentino Néstor
Kirchner. De ahí que algunos desconozcan o invisibilicen su existencia, afirmando que en el
FAUA no hay jóvenes porque ya no quedan uruguayos jóvenes; les demanden definiciones,
tal como señalaba Adela a quien citamos al comienzo de este artículo o, en el mejor de los
casos, asuman el peso de la “condena”, como puede desprenderse del discurso pronunciado en
Buenos Aires por uno de los referentes más importantes del FA en plena campaña electoral:
A ustedes les debe pasar lo mismo acá [en Buenos Aires]: ‘los gurises [jóvenes] están para otra
cosa’. Eso nos parece a nosotros, pero ¿los gurises no quieren la justicia? ¿No quieren la
libertad? (…) No puede ser que una fuerza política de izquierda que se plantea una
transformación profunda de la sociedad esté dirigida por una generación anterior. Estamos
condenados a que sea dirigida por los jóvenes.
Tal como veremos a continuación, contra la hibridación que sugiere la nominación
peroamplista, las y los bígamos sostienen militancias circunscriptas, intermitentes y
prioritarias, delimitadas por redes familiares y de amistad, por gustos e intereses comunes que
distinguen agendas políticas para uno y otro país. En este último sentido sus militancias y
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proyectos colectivos no son reductibles a los de los mayores. Ser peronistas y frenteamplistas
no implica confundirlo o mezclarlo todo, sino explicitar las diferencias, saber arbitrar saberes,
propiciar contactos y sacar provecho de ello sin borrar los márgenes entre una y otra
adscripción pues, cuando ello sucede, sobrevienen conflictos que impactan fuerte y
especialmente sobre las redes entabladas y las territorializaciones propuestas.
3. La bigamia como práctica de la política
El recorrido político de Luli, nacida en Montevideo hace 21 años, de los cuales lleva
casi una década y media en Buenos Aires, expresa paradigmáticamente algunos aspectos de
las trayectorias de sus compañeros y puede ayudarnos a comprender los modos en que se
fragua la bigamia. Desde que tiene 17 años Luli va y viene entre Buenos Aires y Montevideo
todo lo que sus estudios y su empleo en Buenos Aires se lo permite, conformando con estos
viajes y estadías redes familiares y de amistad que nutren sus lecturas y posicionamientos
políticos a partir de largas conversaciones, reuniones e intercambios de ideas, pero también a
partir de la lectura crítica tanto de libros como de la prensa escrita, de programas de
televisión, blogs y foros de internet. De este entramado de interlocuciones diversas surgen los
espacios que habilitan la militancia. En el caso de Luli el compromiso político comenzó hace
poco más de dos años, cuando:
[en] el profesorado [en historia] me enganché mucho con Perón, Evita y con todo lo que es el
peronismo. Cuando murió Néstor yo ya estaba militando en la agrupación [la CP], dos
compañeras de estudio me habían invitado a una reunión y me sumé. Después también me
sumé al comité [Comité de Base del Frente Amplio en Buenos Aires] en el que estaba mi papá.
No sé, no me alcanzaba, sentí que si de verdad estaba la posibilidad de hacer algo grande, yo
podía aportar en los dos lados.
Entre las y los bígamos, comprometerse y aportar son dos ideas rectoras de la acción
política en tanto ordenan las tareas específicas que deciden asumir, generalmente activadas en
períodos electorales en el FAUA y deliberativas en la CP. Si en el caso del FAUA parecen
motivados por los consensos, pero fundamentalmente por las actividades (especialmente
pintadas callejeras, actos y festivales artísticos) que organizan apelando a sus contactos con
artistas del circuito alternativo; en el caso de la CP parecen alentados por el debate y la
discusión de posiciones y estrategias. En este último espacio, más homogéneo en términos
socioepocales, asumen la jerarquía partidaria sintiéndose protagonistas del trasvasamiento o
el recambio generacional que desde sus orígenes postuló el peronismo, arbitrando lecturas de
la historia política de ambos países que les permiten comprender y dar sentido a las
disonancias que implican sus opciones políticas para otros compatriotas y compañeros.
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Haciéndose eco de esto último, Sergio decía: para los frenteamplistas y los uruguayos en
general entender el peronismo es muy difícil, enseguida lo asocian al fascismo. Pero para los
peronistas tampoco es fácil, más de una vez discutimos duro en la agrupación, los
compañeros te dicen: ‘todo bien, pero acordáte que los aviones de la Libertadora16
aterrizaron en Uruguay’.
Sin embargo, entre ambas experiencias políticas existe un denominador común dado
por la racionalización de la militancia. No es desde el “imperio de los sentimientos” (Sigaud,
2004) que se suman ella, sino desde sus propios modos de ponderar los tiempos, recursos y
proyectos. Mediando un café, horas antes de sumarse a una reunión del CB, Pablo explicaba
esta perspectiva que contrasta fuertemente con la concepción militante que impera en la
generación que los precede en el FAUA: sí, acá [en el CB] es como que después de las
elecciones [internas en el FA] me bajé un poco. Pero tampoco es que soy Jesús de Nazaret,
¿viste? No es que voy a salir a predicar y a cambiarle la cabeza a todo el mundo. Hago lo
que puedo.
En la tradición de la generación fundadora del FAUA, la militancia implica sacrificio,
disciplina, jerarquía y altos valores morales fraguados en la participación en las
organizaciones revolucionarias políticamente activas en los años sesenta y en el horror de las
experiencias dictatoriales después. En cambio, las y los bígamos –que integran la primera
generación criada en un contexto totalmente democrático- sostienen una relación con la
política alivianada de este peso. Para ellos la militancia no se presenta asociada a grandes
riesgos (como en su momento lo fue la clandestinidad o la lucha armada) sino al
ensanchamiento de las posibilidades de creer, crear e intervenir en el espacio público
priorizando el presente y la capacidad de gestión. Lejos de los grandes objetivos y más
centrados en las metas concretas en el corto plazo, los repertorios políticos bígamos incluyen
desde lecturas de documentos partidarios a performances artísticas callejeras. Esta forma de
militar está asociada a la alegría y el encuentro, pondera particularmente la eficacia en los
hechos y los logros concretos que varían según las diferencias que trazan entre los espacios
políticos en los que participan. Se trata de un activismo, que además de diferenciar las
agendas políticamente posibles en uno y otro país, se dinamiza en torno a propuestas y leyes
concretas. En el caso de la CP en Argentina, la campaña para la sanción de la ley de
matrimonio igualitario o el voto opcional a partir de los 16 años. En el caso de FA en
Uruguay, la ley de educación sexual y reproductiva y la despenalización de la tenencia de
16 El 16 de septiembre de 1955, la autodenominada “Revolución Libertadora” derrocó al presidente argentino Juan Domingo
Perón instaurando una dictadura militar que se prolongó hasta el 1 de Mayo de 1958.
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marihuana. Menos movidos por grandes ideales radicalmente transformadores, los bígamos
militan en el orden legislativo y jurídico aquellas causas que ven realizables en uno y otro
país. En este sentido, y con total seguridad, Sergio afirmaba: en Uruguay se va a despenalizar
el consumo de marihuana, eso es un hecho. Acá [en Argentina] no va a pasar. Acá se puede
lograr otra cosa, como el voto a los 16. Si vos no tenés en claro eso, qué es lo que se puede
lograr en cada lado, porque son 2 países distintos, estás frito. Te frustrás y te quedás en tu
casa.
Entender cada país como un campo de posibilidad diferente implica, a su vez,
diferenciar los espacios políticos en los que militan. Cuando Paula, Pablo y Luli se refieren a
estas distinciones, lo hacen destacando lo que sigue:
Paula: Es otra forma de militar, es otra cabeza. Los frenteamplistas nos relacionamos con
todos, ¿no? Estás obligado a ponerte de acuerdo.
Luli: Sí. ¡Que ni se te ocurra levantar la voz! Nada que ver con lo que te podés encontrar en
la agrupación, donde todo el mundo opina, se enoja y casi terminamos a las piñas.
Pablo: Sí, son dos cosas diferentes. Vos estás en los dos, con mucho cuidado de no mezclar las
cosas, y te quedás con lo mejor.
Habitualmente, lo mejor, no necesariamente remite a la conquista de una posición de
poder como paso previo a la transformación de la estructura o la organización partidaria. Más
bien alude al aprendizaje en el que las y los bígamos se sienten embarcados. Si bien sus
experiencias políticas no ocurren aisladas unas de otras y operan ampliando sus repertorios,
no les resulta sencillo enfrentar las tensiones –especialmente las familiares- que ello supone,
por lo que sus prácticas quedan orientadas al mantenimiento del orden y los códigos propios
de cada espacio que, como veremos a continuación, sólo ellos comparten en las referencias y
estilos generacionales.
En la reunión del CB para cerrar las listas de cargos para las elecciones internas del
FA, Sergio postuló a Luli, pero su candidatura no encontró ningún apoyo. A ello se sumó que,
en la siguiente reunión del Comando Electoral del FAUA, el CB del que participan quedó al
borde de la impugnación, según se expuso, por no haber cumplido en tiempo y forma con el
envío de la información necesaria a la Comisión de Asuntos Internacionales del FA, en
Montevideo. En esa reunión, de la que participan todos los CB de Buenos Aires y Gran
Buenos Aires y a la que no asisten estos jóvenes, pudo escucharse lo siguiente: hay comités en
los que se quieren presentar candidatos que nunca vimos, cuando acá hay militancia de 40
años. Son comités que entraron anoche por la ventana, que no nos representan.
Cuando las listas de los candidatos estuvieron impresas, Luli la posteó en su página de
Facebook con un comentario que disparó varios otros. El comentario en cuestión decía:
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¡Compañer@s, a votar! ¡Las calles son nuestras, aunque el tiempo diga lo contrario!. Al
posteo respondieron “me gusta” varios de los integrantes del CB, pero sólo Sergio y Pablo
comprendieron qué estaba diciendo Luli. Sergio posteó: Y los sueños no soñados ya se
amargan la garganta y se callan. Y eso, casi siempre (o siempre), les encanta. El siguiente
posteo fue de Pablo: ¡Vamos compañeros! ‘Los sentimientos vuelven con el día’. De este
modo, en las sucesivas citas a una de las canciones más conocidas de la banda de rock
argentina “Callejeros”, hallaron las claves para elaborar y evaluar lo sucedido con la
candidatura frustrada de Luli y, en ella, la tajante condena hacia la bigamia que se impuso
entre los dinosaurios.
4. Palabras finales
Como es sabido, el concepto más difundido -y criticado- de “juventud” remite a uno
de los íconos de la modernidad y es heredero de la visión parsoniana de ésta (Urteaga, 2011 y
Suárez Navaz, 2006, entre otros). Cuando este concepto de juventud -leído en la línea de la
dicotomía tradición/modernidad como oposición de “cultura de los adultos”/“cultura juvenil”-
es analizado en el contexto de la experiencia migratoria, incorpora otra dicotomía, como lo es
la distinción entre “sociedad emisora”/“sociedad de destino”. En esta mecánica superposición
de binomios, la modernidad, como lugar de liberación de las formas tradicionales de la
autoridad, ubicaría a los y las jóvenes del lado de las sociedades de “destino” y el territorio
que ésta supone. Así, la esta noción de juventud gana una dimensión más en la complejidad
que supone su definición asociada a la idea de “transición” que, a su vez, explicaría para esta
perspectiva la inestabilidad y el caos con que se caracteriza la condición juvenil.
Al igual que esta noción de juventud, que en este artículo nos propusimos discutir, la
conformación del Estados-nación resulta otro de los íconos asociados a la modernidad que
encuentra uno de sus ápices de realización en la promulgación de los corpus jurídicos. Desde
la promulgación de los códigos penales uruguayo y argentino en el siglo XIX, la “bigamia” es
una figura jurídica penalizada. En el primer caso es considerada entre los “delitos contra las
buenas costumbres y el orden de la familia” y castigada con un año de prisión a cinco de
penitenciaría. En el segundo caso, es contemplada entre los “delitos contra el estado civil” y la
pena va de 1 a 4 años de prisión. Mientras en el caso uruguayo, la bigamia subvierte el orden
de la familia que, como es sabido, constituye la metáfora por excelencia de la nación; en el
caso argentino desestabiliza una dimensión de la ciudadanía, puntualmente la referida a los
derechos y obligaciones cívicas.
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Como podrá inferirse de este texto, las sedimentaciones de las configuraciones de la
modernidad señaladas hasta aquí están en la base de los contratos con los que disputan
autoridad y legitimidad las afiliaciones políticas simultáneas que sugieren las y los bígamos.
Tramados en un campo político estructurado por posiciones generadas en las relaciones de
poder entre actores, organizaciones e instituciones de dos países, estos jóvenes
reterritorializan la militancia política y, en ese proceso, adquieren un nombre propio: bígamos
o peroamplistas son nominaciones que, en este caso, expresan dicho proceso y un rango
peculiar de los vínculos entre migración, activismo y ciudadanía política. En otras palabras:
como metáfora innovadora, la bigamia, leída en la hibridación peroamplista subvierte las
formas modernas y generacionales de imaginar la nación, el Estado y la membresía entre las y
los migrantes uruguayos en Buenos Aires.
Habitualmente, los estudios sobre las prácticas políticas transnacionales, que como es
sabido abarcan “las diversas formas de participación directa transfronteriza en la política del
país de origen (por ejemplo, la participación en actos electorales, la militancia en los partidos
políticos, la participación en los debates en la prensa, etc.), así como su participación indirecta
en las instancias políticas en el país de acogida (o en organizaciones internacionales)”
(Østergaard-Nielsen, 2003: 762) toman dos caminos estrechamente ligados a las
características de los flujos migratorios Sur-Norte. O bien hacen foco en las relaciones entre
partidos políticos y políticas de gobierno o, en menor grado, se centran en las prácticas y las
trayectorias biográficas de los migrantes/militantes. Esto último, en el contexto de las
migraciones Sur-Sur, tiene una importancia crucial. En principio porque, al menos en el Cono
Sur de América Latina, “la creciente politización de la migración” no es un fenómeno nuevo
ligado al 11-S (Castles y Miller, 2003), sino que se encuentra tramada en los avatares
políticos, económicos y sociales en la región desde fines del siglo XIX. Segundo, porque a
diferencia de lo constatado en los circuitos migratorios Sur-Norte, el transnacionalismo
político pareciera ser parte de la transmisión y el diálogo intergeneracional entre los y las
migrantes. Lejos del “rápido proceso de aculturación” observado para la segunda generación
de jóvenes mexicanos en EE.UU (Portes y Rumbaut, 2001 y Kearney, 1991), los jóvenes
migrantes en el Cono Sur de América Latina desarrollan sus propias formas de participación
política que, si bien entran en tensión con las practicadas por las generaciones que los
preceden, no pueden disociarse de ellas. Así lo indican las trayectorias bígamas, pero también
el activismo de la juventud paraguaya en Buenos Aires en la lucha por el voto epistolar en
Paraguay (Gerbaudo Suárez, 2012) y la militancia partidaria de los jóvenes uruguayos en el
sur de Brasil (Moraes, 2010). De ahí que, una vez más, se haga necesario señalar la necesidad
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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de contemplar los procesos propios de las migraciones Sur-Sur, aún cuando las apuestas
explicativas elevadas a la teoría en este campo, sean las originadas en las implacables
asimetrías que manifiestan las migraciones Sur-Norte.
Finalmente, vale explicitar aquello que espero haya logrado exponer en términos
etnográficos. Quienes practican la bigamia, con los consabidos conflictos y contradicciones
que expusimos hasta aquí, indican para lo rioplatense geografías alternas a las que no
necesariamente les siguen prácticas políticas que impacten sobre las posiciones o estructuras
organizacionales generando transformaciones en ellas. Contra lo que suele indicar el sentido
común y las representaciones mediáticas de lo juvenil, creatividad, innovación y
transformación no son sinónimos en materia de participación y prácticas de la política. Es en
este sentido que debe leerse el cuidado que apuntaba Pablo para las intervenciones en cada
uno de los espacios políticos, lo sucedido con la candidatura frustrada de Luli en el FAUA y
el modo cifrado de interpretar este evento. En términos generacionales, la bigamia en el Río
de la Plata puede resultar innovadora pero no necesariamente es transformadora.
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Coletivos juvenis, cidade e identidades: etnografia do estranhamento*
Valéria Silva**
Resumo: Pesquisa desenvolvida junto a jovens residentes em periferias da cidade de Teresina-Piauí-Brasil,
membros do CBMX-PI. Trata das interlocuções produzidas inter-grupo e deste com a cidade, interpretando
como essas interações delineiam os atributos identitários que vão marcando os jovens e o grupo, tanto nos
espaços de treinos do BMX quanto num deslocamento do grupo entre o bairro Dirceu Arcoverde e a cidade
contígua de Timon-Maranhão. A etnografia e a entrevista trazem as relações intersubjetivas grupais, os
movimentos-rituais e a relação com “o outro”, buscando evidenciar os sentidos construídos pelos jovens e pela
sociedade sobre os mesmos e sobre o BMX. É possível apontar que a cidade os vê com estranhamento,
admiração, medo, aprovação e intolerância. Para os jovens, o grupo e o BMX aparecem como ancoragem,
criação, desafio, amizade, autoria, espaço de construção positiva de si mesmos e dos territórios que partilham.
Palavras-chave: Coletivos juvenis. BMX. Culturas e sociabilidades urbanas. Identidades.
Abstract: Research developed with young people from the periphery of the city of Teresina-Piauí- Brazil, all of
them members of CBMX-PI. It focuses the group’s interaction and the youth’s sociability with the city. Analyze
how these interactions delineate attributes of identity that will mark the young people and the group in both
spaces workouts of BMX as during the displacement of the group from the neighborhood Dirceu Arcoverde until
the contiguous city Timon-Maranhão. The ethnography and interview bring their interpersonal relations group,
the ritual-movements and the relationship with "the other" evidencing the meanings construction by the youth
and the society about them and about BMX. The city sees them with strangeness, amazement, fear, approval and
intolerance. For young people the group and BMX appear as anchoring, creation, challenge, friendship,
authorship, positive space construction of themselves, of the shared territories.
Keywords: Youth’s Collective. BMX. Urban culture and sociability. Identities.
Introdução
Ao trabalhar com as identidades constituídas no âmbito dos grupos juvenis parto do
entendimento de que no contexto das sociedades complexas, onde as referências
socioculturais mudam de lugar constante e rapidamente (BAUMAN, 2001), os coletivos de
jovens têm adquirido um papel de destaque nas sociabilidades e nos processos de formação
identitária juvenis. A partida, material e/ou simbólica, do ambiente familiar, por razões várias,
marcam o momento de individuação juvenil, da separação de meninos e meninas de um
coletivo primário, impondo-os a busca de suas próprias respostas aos desafios novos que a
vida lhes trará permanentemente. Nesse percurso incerto à adultez, a despeito das mudanças
hoje colocadas - seja no tocante à classe, ao gênero, à etnia, à moratória acessada
(MARGULIS, 2000) aos territórios partilhados, às culturas onde estão inseridas etc - que
impõem à categoria juventudes uma condição nômade, os grupos se constituem em ambientes
de fomento e geração dos sentidos novos e de formulação de algumas respostas à necessidade
* Trabalho apresentado na 27ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 1 e 4 de agosto de 2010, em
Belém-Pará-Brasil, readequado para esta publicação. Pesquisa apoiada pelo CNPq e FAPEPI. Recebido em Janeiro de 2013 e
aceite em Março de 2013. **
Dra. em Sociologia Política. Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do
Piauí, UFPI-Brasil. E-mail: [email protected]
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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de inserção e trânsito dos jovens nas esferas várias e fluidas do mundo vida a fora1 (SILVA,
2012a; SILVA, 2012b).
É, especialmente, a partir da ótica dos grupos que os jovens experimentam as questões
que lhes são colocadas pela realidade, vivenciam as relações sociais e conformam uma dada
intervenção juvenil no mundo; dialogando com o ‘exterior’, e, desse modo, experimentando,
por assim dizer, alguns ritos de passagem para a vida adulta. Nesse novo modo de estar no
mundo, no grupo, com seus iguais, os jovens encontram o conforto da partilha, da
receptividade em relação ao que pensam, sentem e desejam. Vivem a identificação com os
gostos, princípios, interesses, visões de mundo, frustrações, medos e inseguranças -
potencializados em contextos de amadurecimento-, como também a construção das formas e
alternativas de vivência desses e outros aspectos da experiência humana, cada vez mais
descolados da suposta assunção de uma vida adulta, como até então entendida (SILVA,
2012b).
A partir dessa perspectiva compreendo que os coletivos juvenis podem se afigurar
como um importante veículo de intervenção no mundo e de forte atuação dos jovens; lugares
de produção de sociabilidades, de geração profícua de sentidos, de experimentação subjetiva,
de constituição identitária (CARRANO, 2002). Lugares atravessados que são pela imprecisão
e complexidade do mundo, as possibilidades identitárias ali gestadas submetem-se ao
movimento do real que não mais se dobra a uma só enunciação, mas ao discurso polissêmico
orientado pela diversidade das posições e relações possíveis à elaboração do outro, a partir da
ausência de fronteiras, pluralidade de experiências, olhares disponíveis e possibilidades de
escolha (BAUMAN, 2005; BAUMAN, 2000; VELHO, 1999).
Tal configuração dos coletivos se mostra de maior intensidade e relevância quando a
própria família muda de lugar e já não consegue se constituir como espaço de proteção, de
cuidado coletivo e afetividade, seja forçada pelos movimentos de crise da civilização
ocidental contemporânea, seja vitimada pelos limites sócio-econômicos-culturais ainda
impostos aos povos do chamado terceiro mundo, materializados na pobreza, na segregação e
desigualdade social, violência urbana, na discriminação racial, na violação dos direitos de
segmentos vulneráveis.
1 Embora não desconheça o fenômeno do alargamento da adolescência e da juventude, representado – grosso modo - pela
permanência na casa materna, pela dependência material e até simbólica, pela continuação de sociabilidades tidas como
juvenis por um tempo mais elástico, os estudos no campo das juventudes evidenciam que esses fenômenos vão surgindo
entrelaçados a práticas que, no passado, evidenciavam a passagem para a vida adulta, como o agrupamento dos jovens fora
do ambiente familiar. Contemporaneamente essas realidades são simultâneas, retirando a precisão de “marcadores da vida
adulta”, com que lidávamos no passado (SILVA, 2007).
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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De um modo geral, como esse entendimento teórico se revela nas vivências de grupos
juvenis? Como tensionam suas culturas e identidades? Que respostas os jovens oferecem
nesses contextos? É o que passo a expor, referenciando-me nos praticantes de BMX em
Teresina-PI.
1. O Clube de BMX do Piauí –CBMXPI: recriando práticas e superando impossibilidades
O BMX (Bicycle Moto Cross ou Bicicleta de Modalidade Extrema) é um esporte que
tem como principal equipamento a bicicleta pequena, de aro 20”. Implica na execução de
corridas, saltos e manobras em rampas ou no solo; mais especificamente em half-pipes,
rampas, nas ruas ou circuitos fechados. Possui estilos variados, sendo os dois principais o
Racing (corrida) e o Freestyle (estilo livre). O estilo livre, por sua vez, se apresenta sob cinco
modalidades de prática: o Street, Vertical, Mini Ramp, Dirt Jumping e Flatland, sendo
diferenciados pelo local e pela forma que são praticados. O primeiro é praticado nas ruas ou
em pistas que simulem os obstáculos encontrados ao ar livre, como degraus, corrimãos,
rampas, declives etc, combinando manobras de estilos diversos, a partir da criatividade do
piloto. O Vertical implica em manobras aéreas a partir de pistas de concreto, os halfs, de
tamanho superior. O Mini Ramp, apesar de praticado nos halfs, limita-se às manobras com
apoio de borda, normalmente de halfs de tamanhos e alturas menores. O Dirt Jumping tem
lugar nas pistas de terra, onde os pilotos realizam manobras aéreas a partir de uma única
rampa ou de uma sequência delas, o que se denomina de trail. No geral, as manobras são
conhecidas como back flip e 360º backflip, back fli, tail, whip entre outras. Por fim, o
Flatland, executa manobras no solo, sem investidas aéreas, explorando a capacidade de
equilíbrio e a criatividade pessoal do esportista. Somente este estilo pode ser praticado com
bicicleta de aro 20” ou em bicicletas maiores. (http://www.clanbmx.blogspot.com;
http://www.abbmx.com.br/bmxo% 20que%20e.htm e Diário de Campo).
Organizados em várias equipes os jovens pilotos teresinenses estão presentes por toda
a cidade. Na Zona Sudeste, nos bairros Dirceu Arcoverde e Renascença; na Zona Sul, bairros
Saci, Parque Piauí e Monte Castelo; Zona Leste, bairros Satélite e Santa Bárbara e Zona
Norte, mais fortemente no bairro Santa Maria da Codipe. O que se revela de comum entre
esses locais é o fato de se constituírem – em maior ou menor grau – em bairros periféricos, se
mantivermos aqui, meramente para efeito de localização, aquela acepção de que há um centro
que congrega as práticas socioculturais das populações citadinas. O trabalho de campo
apontou, entretanto, que foi no bairro Dirceu Arcoverde que surgiram os primeiros
praticantes, como demonstrarei a seguir. Durante a pesquisa partilhei de treinos e fiz
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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abordagens às equipes Atitude BMX, Cangaço BMX, Do Inferno BMX, Atentado BMX, Pajé
Bike, ADR BMX e Pro-Art BMX que praticam estilos variados. Acompanhei de perto e de
modo prioritário o estilo Dirt Jump, junto às equipes que treinavam na rampa do bairro
Renascença, em torno do CBMXPI.
Os praticantes de Teresina possuem faixa etária bastante elástica, variando de 10 a 45
anos, muito embora haja importante diferença no tipo de inserção que as pessoas têm nas
práticas em função da idade que possuem. No trabalho de campo pude observar que os mais
novos estão inseridos na condição de aprendizes, iniciantes. Os mais velhos, dispondo de
menor vigor físico – condição sine qua non à prática do esporte - nele permanecem porque
gostam do BMX e do grupo. Os jovens que se envolvem de modo mais regular nas atividades
grupais, colocando-se como esportistas, pilotos competidores, situam-se entre 20 e 26 anos.
Na sua expressiva maioria, os praticantes dizem adotar o BMX pela afinidade com o tipo de
atividade que o esporte possibilita realizar, mas especialmente como experiência lúdica, de
convivência com os amigos.
Dos jovens entrevistados, o maior nível de instrução encontrado é o ensino médio
completo, quando a metade dos entrevistados não concluiu o ensino fundamental, tendo
abandonado os estudos. Todos pertencem aos segmentos com baixa renda, exercem atividades
profissionais como metalúrgico, motorista, mecânico, ajudante de pedreiro etc. Um deles
trabalha como designer de serigrafia. Os jovens provêm de famílias onde o pai e a mãe
exercem profissões similares, como pintor, costureira, borracheiro, pedreiro, eletricista,
vendedora autônoma etc. Esse perfil implica em maiores dificuldades a enfrentar em relação à
escolha do BMX. A ausência de apoio público e provado interfere diretamente também na
disponibilidade de tempo para o treinamento, visto que a grande maioria dos jovens que
participa do grupo tem de conciliar o esporte com trabalho e estudo:
[...] é, o cara quer andar [de bicicleta], sem trabalhar não dá, né, porque as peças são caras...
que, no mínimo, pra montar uma bicicleta gasta um mil, dois mil reais. E tem que trabalhar e
estudar e, no caso, se eu tivesse mais tempo de andar, no caso, se eu não trabalhasse, eu
acredito que eu era melhor. [...] eu desenvolvia mais manobra, mas como eu trabalho durante a
semana, só posso andar no domingo e no sábado pela tarde. (Piloto 3).
As entrevistas recuperaram que o BMX surgiu em Teresina com Arnaldo Tremilique,
no bairro Dirceu Arcoverde, na década de 1990, possivelmente entre 1994-96, não havendo
registro de uma data precisa. Arnaldo foi o responsável pela construção da primeira rampa,
ainda de madeira, na Praça Cultural do Dirceu Arcoverde, e com essa iniciativa outros jovens
manifestaram interesse pelo esporte, aumentando sua presença na cidade em número de
participantes do grupo e no grau de dificuldade das manobras executadas. Foi nesse período
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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que John, que atualmente ocupa o cargo de vice-presidente do Clube, começou a treinar,
juntamente com outros membros do grupo, como Joelson, Tarso e Espanto.
Os encontros regulares entre os jovens, o conhecimento de outras experiências do
BMX, via navegação na internet e viagens feitas, as discussões que empreenderam e a
limitação das rampas improvisadas fizeram surgir no grupo a ideia de construção de rampas
de barro, apropriadas aos treinos, em terrenos baldios da cidade: “... depois da [rampa] de
madeira, a gente foi assistindo fita, fita de vídeo... começamo pegar e fazer rampa de barro.
Chegava nos terreno baldio e fazia rampa de barro...” (Piloto 2). Esse momento imprimiu o
trabalho coletivo e a persistência como características importantes das novas práticas juvenis
consolidadas no interior do grupo para o enfrentamento das muitas dificuldades, pois os
proprietários, ao descobrir o uso dos terrenos, não aceitavam ali os jovens e suas bicicletas,
obrigavam a busca de outro local e uma nova construção. Além disso, as rampas de barro,
porque a céu aberto, durante o inverno exigiam reparo cotidiano, esforço empreendido
unicamente pelo grupo.
Em suas tentativas os jovens localizaram uma faixa de terreno abandonado, localizado
entre o CAIC Renascença a Delegacia de Polícia daquele bairro, no Grande Dirceu.
Imediatamente decidiram construir novas rampas ali. Até então o espaço era utilizado pela
população como depósito de lixo: “... nós fizemo rampa aqui onde é a nossa sede2, que era só
lixo. Nós fizemo a rampa” (Piloto 2). O novo espaço permitiu certa regularidade nos treinos,
chamando a atenção de outros jovens e assim se juntaram ao grupo inicial o Morto, Pajé,
Espanto, Braz e Kelson, mobilizados especialmente pela curiosidade, pela mídia local e pelo
prazer das práticas:
A adrenalina e a curiosidade. A gente cai, levanta... aí, o pessoal olha assim pra gente e vê
aquelas marmotas em cima: um com o cabelozão grande, um de calça apertada, assim meio
esquisito. É, tudo chama a atenção das pessoas que passam. Vê as manobras difícil e diz: “Eita,
aquele ali é louco, mas vou tentar também!”. Fica curioso! E a adrenalina que dá? É bom
demais, menino! (Piloto1).
[...] eu via muito na TV muitos caras fazendo altas manobras radicais, foi que eu fiquei
interessado em praticar aquele esporte. Aí foi quando eu conheci os meninos lá de perto de
casa, a gente começou a andar junto, pegava altas quedas em calçadas, caía era muito mesmo!
Aí, foi quando eu conheci a rapaziada mesmo do Dirceu. Aí, a gente começou a treinar junto,
fazer as rampas e tal... (Piloto 5).
A permanência dos treinos chamou a atenção de um funcionário do CAIC, Jussiê
Ramos e da Associação Comunitária do bairro. Jussiê, a partir dos contatos iniciais, passou a
2 Ao referir-se à sede o jovem toma o símbolo pela materialidade: no local não existe casa, arquibancadas, tendas ou qualquer
suporte físico que lembre uma sede, conforme normalmente entendida. Somente as rampas de barro.
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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frequentar os treinos3, a ajudar cuidar das rampas, consolidando uma relação de proximidade
com os jovens do grupo:
[...]ele se mobilizou porque a gente treinava aqui no terreno, aqui no lixo, a gente ajeitava a
rampa de manhã, quando era horário de meio-dia a população do bairro jogava lixo... Quando a
gente vinha à tarde pra treinar, tava as rampas quebrada e cheia de lixo. Aí, ele era vigia do
CAIC, aqui da escola, aí ele se mobilizou, ficou assim meio com pena da gente, porque a gente
tinha tanto trabalho no sol quente pra chegar o pessoal e bagunçar? Aí, ele começou a proibir
jogar lixo, aí com isso ele foi tomando gosto e foi ajeitando... (Piloto 2).
No convívio mais estreito e reconhecendo o potencial de alguns jovens, Jussiê
manifestou o interesse em colaborar com os jovens, também no sentido de potencializá-los
enquanto grupo de esporte radical competitivo: “[...] ele foi a única pessoa que falou assim:
“Eu vou fazer um campeonato.”. Todos chegavam aqui e diziam que queriam fazer um
campeonato. Aí, ele pegou e fez o campeonato. Conseguiu registrar a Associação, conseguiu
o dinheiro pra gente registrar a Associação e até hoje ele tá com a gente...” (Piloto 1).
Quanto à Associação Comunitária, o grupo experimentou muitas dificuldades, em face
da disputa que se estabeleceu pela posse do terreno. Após algum tempo, vários desafios – até
enfrentamento de tratores -, alguns desentendimentos e a firme decisão de permanecer no
local, os jovens – com a ajuda de Jussiê – buscaram conhecer a situação real de propriedade
do terreno junto à Empresa de Gestão de Recursos do Piauí-EMGERPI. Constatada a
propriedade pública, reivindicaram-na para a construção da quadra de BMX e outras
estruturas poliesportivas, o que acreditam ter conseguido. Segundo os jovens, na atualidade a
EMGERPI já regularizou a propriedade em nome do Clube, solucionando a disputa que havia
com a Associação de Moradores, e se comprometeu em construir um espaço para esportes
radicais, ainda inexistente na cidade. Este se constitui no atual e maior investimento dos
jovens envolvidos com a organização formal do grupo, visto que as condições do local onde
treinam são inadequadas, não havendo infraestrutura mínima para a prática, seja quanto a
rampas adequadas, proteção contra o sol, arquibancadas, seja a disponibilidade de água
potável para o consumo de todos. Durante os treinos os jovens consomem a água de uma
torneira da Delegacia de Polícia, instalada ao lado do terreno. Mas as dificuldades se
estendem a outros itens: os atletas também não dispõem de kits de primeiros socorros, item
extremamente necessário, em face do risco de quedas e machucaduras decorrentes das
manobras de alto risco que realizam. Para eles, fica claro que a precariedade das condições
influencia diretamente nas possibilidades do esporte, a despeito da qualidade dos atletas:
3 Atualmente os treinos acontecem as terças e quintas-feiras, além do sábado e domingo à tarde.
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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[importância de ter] um local, uma pista adequada pra gente treinar, porque é chato a gente
chegar em outros estados - como nos já tamo com cinco anos viajando pra Fortaleza, agora
vamos pra Natal, no próximo mês - e chegar lá e ter rampas diferentes e muitos da gente não
andar por causa da estrutura deles. A gente não vai se adaptar a rampa deles, porque a nossa
aqui é diferente, porque a gente não tem estrutura... (Piloto 2).
É também em relação a esse aspecto que reiteram a importância de Jussiê no grupo.
Para participar dos campeonatos os atletas precisam estar inseridos em rankings em nível
local, regional, nacional e mundial e o registro no ranking só se torna válido se efetivado por
uma organização legal. Os depoimentos dos jovens apontam que foi Jussiê quem desencadeou
a preocupação com a organização formal do grupo, com a criação de uma associação de
pilotos que, posteriormente, foi denominado de CBMXPI, sendo devidamente registrado. A
existência formal, portanto, viabilizou a organização dos campeonatos que se seguiram na
cidade e a participação dos atletas nos rankings estaduais e nacional, oferecendo visibilidade
maior ao esporte, abrindo possibilidades de apoios da iniciativa privada – embora incipiente –
e das instituições públicas.
Dentro desse novo contexto foi que o grupo, antes consolidado e conservando apenas
sua dimensão lúdica para todos que dele participavam, incorporou a dimensão competitiva e
os jovens que desejavam conquistar uma possível profissionalização no BMX passaram a
encontrar espaço para projetos mais ambiciosos. Assim, o grupo diversificou-se, abrindo
espaço para interesses diferenciados:
[...] tem os dois públicos: aquele que acompanha a gente porque acha massa e tem aquele que
quer evoluir junto com a gente, que fica tentando. Vê a gente tentando a manobra e [...] quer
fazer também, então eles permanecem com a gente. Porque a gente não desiste, aí se inspira:
“Porra, o cara caiu, se cortou, ponteou e nunca desistiu! Então, eu vou continuar também! Se
ele vai conseguir, também posso conseguir!”. Aí, a gente vai estimular ele. E tem aqueles que
anda de bike só porque acha bonito as manobras, tudim. (Piloto 2).
O espaço dos treinos reúne esses dois públicos juvenis, além dos expectadores, em
quantidade considerável a cada fim-de-semana. Para aqueles que tomaram os encontros
enquanto treinos esportivos com vista a competições, os desdobramentos são considerados
satisfatórios. Há cinco anos participam de um campeonato que acontece em Fortaleza-CE, o
Kamikase, conseguindo bons resultados em premiação. Neste ano participaram do Natal
Games (Natal-RN), conseguindo o primeiro e segundo lugares da categoria iniciante. Em
âmbito local, organizam vários campeonatos – municipal, estadual – e outros de iniciativa dos
jovens, como o que batizaram de Piratinha.
Não obstante a performance do esporte e do desempenho dos pilotos dentro e fora da
cidade de Teresina, o maior problema é a falta de apoio dos gestores municipais e estaduais.
Há no grupo grande insatisfação com o descaso que o poder público tem para com o BMX:
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“[...] Eu acho que o prefeito de Teresina devia olhar mais pro esporte radical do que pro
futebol, porque hoje em dia o Brasil só pensa em futebol, só é futebol, só é futebol... hoje em
dia, pra você construir um campo de futebol, só passa o trator e bota uns pau e pronto! Gasta
pouco...” (Piloto 1);
Que a gente também tem outros esportes! [...] Aí, as pessoas sai pra criminalidade, anda na rua,
anda brigando, vai pra cachaça porque não tem outra coisa, não tem incentivo, só tem o
futebol... Mostrar aí pra esse povo aí, político aí, que eu odeio de coração, é que a gente precisa
de um local adequado pra treinar, porque se não tiver, nós vamos andar na rua, nós vamos
pular banco, nós vamos deslizar banco, nós vamos meter BMX! (Piloto 2).
A reclamação dos jovens se avoluma pelo fato de já assumirem todo o custo da
prática, e com certo sacrifício, e ainda vivenciarem o esporte sob condições extremamente
precárias, inclusive quanto ao que o poder público poderia apoiá-los, como o faz com outros
esportes, no caso, construindo as estruturas para os treinos. Para custear bicicletas, viagens,
equipamentos, roupas apropriadas etc. a maioria do investimento é pessoal e familiar. Para os
jovens essa realidade é um empecilho que traz consequências irreparáveis ao BMX: “[...]se
não tiver incentivo nós vamos ficar véi e ninguém vai conhecer o BMX do Piauí [...] onde tem
um bocado de piloto bom que [...]traz troféu de Fortaleza...” (Piloto 2).
Embora enfrentando dificuldades variadas, os projetos grupais para o futuro
transbordam o restrito universo de possibilidades desenhado no presente. Os jovens têm por
expectativa não apenas potencializar o que já fazem na atualidade, mas criar condições para a
permanência do BMX para as novas gerações: “[...] Tem uns vizinhos meus que vê, quer
andar, mas não tem local! Aí, eu penso assim: se um dia, como eu vou ficar velho, eu quero
ver, pelo menos, muitas pistas construídas pra que o esporte não pare. Sempre crescendo,
mais evolução”. (Piloto 3);
A gente quer provar que aqui [no Piauí] tem piloto bom e é o que nós estamos provando!
Estamos chegando lá e tamo trazendo tudo, tamo ganhando segundo, terceiro. [...] ...é só
continuar incentivando porque é... muita gente parou, voltou, parou de novo. Então, a ação,
enquanto não sai essas pistas, é o incentivo. Vamo... vamo andar, vamo incentivar, vamo
assistir vídeo, vamo brincar, vamo falar com o pessoal de fora e tal... pra ficar sempre ligado,
enquanto a pista não sai. (Piloto 2).
Até aqui, animados pelo prazer do esporte, das amizades, das partilhas, das conquistas
e dos desafios a enfrentar, os jovens do CBMXPI seguem se encontrando com regularidade na
rampa do Renascença. A alegria do ambiente dos treinos se intensifica quando algum exibe
um aprendizado novo ou mostra uma maior perfeição em manobra já ensaiada. Gritos,
palmas, assovios, frases de estímulo, emoções extravasadas ao limite. Uma vez no chão, o
piloto dirige-se ao fim da fila de bikes e aguarda sua vez para outras arriscadas aventuras.
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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Acertando ou errando, a persistência e a determinação se mostram como os traços marcantes
da atitude dos jovens frente ao desafio imposto pelas rampas.
Num misto de desafio, medo, superação, coragem, limite, desejo, afirmação, parceria,
conquista, confiança, dificuldade, brincadeira, alegria e dor – “[...]o BMX é isso, não é só
vento na cara não; tem que ter uma terrazinha no olho, senão não tem graça.” (Piloto 3) - os
jovens consolidam o grupo num ambiente de referência, que muito interfere no modo como
vivenciam o cotidiano e subjetividades juvenis. Para muitos dos jovens envolvidos - pilotos
experientes, competitivos ou não – a prática constitui-se no diferencial dos percursos que têm
feito na vida, inclusive quanto a mudanças positivas que sofreram, como apontam os
depoimentos:
...eu vim aprender a andar de bicicleta praticamente quando eu tinha uns 13 anos; [...] Aí, eu saí
da malandragem mesmo. O esporte me trouxe várias oportunidades, eu conheci essa rapaziada
aqui que até hoje eu tô com eles. [...] é bom andar de bike. Te dá prazer, dá a sensação de um
bocado de oportunidade que nunca teve, né. A gente brinca, se conhece, viaja... [...] já fui preso
uma vez, quero nunca mais. Graças a Deus, conheci o BMX! [...] (Piloto 1).
A [...] interferência boa que o BMX tá me fazendo até hoje, graças a Deus, é que eu não ando
mais em festa e não ando bebendo, que nem eu bebia antigamente. Deixei de beber por causa
do BMX, porque eu chegava em casa bêbado de manhã, tava de ressaca e não ia treinar. Ia ver
a galera treinando e ficava lá, cansadão, e meus amigos só mangando da minha cara: “E aí,
abestado? Vai beber, gastar dinheiro... não tem uma bicicleta que preste só por causa da
cachaça!”. Então, o BMX interferiu nisso aí, uma coisa boa porque ele me tirou dessa vida da
cachaça, do álcool, pra mim investir mais na minha bike e nos meus treinamentos. [...]. A
filosofia da gente é o incentivo que um dá pro outro, tirar aquela ideia da pessoa tá na rua:
“Rapaz, sai da rua, vem andar de BMX que é bom”. (Piloto 2).
Como evidente, são jovens imersos em realidades pessoais desafiadoras e a
centralidade do esporte em suas vidas e nas mudanças que nelas operam é inegável. Dentro
dos contextos extremos desses jovens, possivelmente, apenas um esporte que os desafie ao
limite possa lhes desviar o olhar para além do imediato exigente, que disputa a atenção de
parte importante dos jovens e os leva para outras experiências juvenis ‘radicais’, muito
comuns no cotidiano das periferias da cidade, como a violência, o tráfico de drogas. Em
várias oportunidades, ganha o BMX e iniciativas similares, mas em outras, permanecem
vencendo alternativas que, combinadas com a complexidade social, a desproteção, a miséria e
a insuficiência, ineficácia e ineficiência de políticas públicas, contribuem significativamente
para a conformação do estado de genocídio do qual é vítima atualmente a juventude
brasileira:
[...] teve até amigo nosso que teve... veio a óbito. Andava de BMX e a família falava: “menino,
tu só fica andando com esses trombadinha! Vai procurar um trabalho!” Aí, ele pegou... um
certo dia, no dia do aniversário dele, ele foi roubar um cara lá no São João (...) ele enquadrou o
cara, assaltou, aí na hora que ele foi sair... o cara era policial do RONE. Na hora que ele virou
as costas, o policial alvejou ele com dois tiros. Aí, chegou a óbito. Aí, teve outro aqui, o finado
T..., que chegou a falecer também por causa de envolvimento com droga. Aí, teve um amigo
nosso, por causa de moto, entendeu? Quebrou a perna em dois locais. Aí, teve um outro amigo
nosso também o M..., por causa da cachaça, se acabou. A bike dele se acabou e ele não teve
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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condição de montar outra. Ele era um dos melhores, praticamente, a bike dele se acabou e ele
não teve condição de comprar outra [...]. (Piloto 1).
Interessante é que, muito embora os jovens anunciem mudanças provocadas pelo
BMX em suas vidas, conforme explicitado nas narrativas, a ação do grupo em si não tem
como objetivo confesso a modificação dos jovens, a atuação no sentido da inclusão social etc.
O objetivo maior é a intervenção esportiva, que traz como acréscimo a vivência no grupo
como espaço da amizade, da partilha, do empoderamento, da identificação, da diferenciação.
As mudanças que cada um tem produzido nas suas escolhas aparecem como um subproduto
da empatia e das sociabilidades originadas do convívio grupal, confirmando aquilo que aponto
como características marcantes dos coletivos juvenis.
Além dos treinos nas rampas de barro, na atualidade os jovens têm diversificado esses
momentos de encontro, povoando também a quadra de skate da Praça Ocílio Lago, no Bairro
de Fátima e a rampa de Dirt e quadra de esportes radicais da cidade vizinha de Timon-MA.
Apesar da considerável distância, os percursos para esses outros locais são feitos de bike. O
trajeto, por si próprio, se constitui num momento de publicização do grupo, de trocas com a
cidade, de transbordamento de limites territoriais que os retém às periferias, de construção de
outros marcadores identitários dos jovens. Pela relevância que os passeios encerram na
dinâmica grupal e na sua relação com a cidade, destaco um deles para esta abordagem.
2. Identidades cambiantes: do Piauí pro Maranhão
Peguei o trem em Teresina
Pra São Luís do Maranhão
Atravessei o Parnaíba
Ai, ai... que dor no coração!
Desde o século passado Luiz Gonzaga, o grande Rei do Baião, já cantava a
movimentação das pessoas entre esses dois estados do Nordeste Brasileiro. O tempo passou e
muito mudou, inclusive quanto às formas de deslocamentos disponíveis nessas terras. O trem,
figura rara no cenário das duas capitais, já não leva pessoas, nem alimentos, como outrora,
mas óleo diesel e gasolina para encher tanques de carros. As pessoas transitam entre o Piauí e
o Maranhão e, especialmente, atravessam as fronteiras entre Teresina e Timon, de ônibus, de
carro, de motocicleta, a pé e de bicicleta. Dentre essas últimas, existe uma especial: a de
modelo BMX, pilotada por jovens que praticam esportes radicais. O trajeto é algo especial
que mobiliza não um jovem, mas equipes inteiras. O volume em deslocamento em cada rua
mobiliza a atenção das pessoas comuns, construindo um evento particular numa tarde de
domingo das duas cidades. Por ter se mostrado como um momento especial de vivência
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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juvenil, incidindo fortemente sobre o grupo e as identidades em trânsito naquele espaço,
decidi etnografá-lo, como faço a seguir.
2.1 O ponto de encontro
Os termômetros passavam dos 35º. Esse fato e o já considerável atraso dos jovens
aumentaram a minha incredulidade acerca da possibilidade de realização do deslocamento
programado, via Orkut e celulares, para as 13 horas. Seriam 10 km sob o sol escaldante, tal
qual aquele que se abatia sobre o mini ramp do Bairro Dirceu Arcoverde, situado no Ginásio
Poliesportivo Edimilson Jorge. Este foi o ponto combinado para partida, visto grande parte
dos pilotos do CBMXPI morar no entorno do local. A música alta, vinda de bares e carros de
som, preenchia todo o ambiente da minha espera na Avenida Joaquim Nelson.
Para os jovens deslocar-se na BMX não é incomum e isso me incentivava a esperá-los.
No cotidiano cruzam o próprio bairro e ‘pedalam’ para locais outros de maior e menor
distância. Mas fazer o trajeto numa bicicleta de aro 20” – pequena - exigirá preparo físico e
aeróbico irretocáveis e disposição para enfrentar o desafio do trânsito, da distância, do sol, da
sede...
Enquanto esperava, abordei algumas pessoas no local para buscar apreender como
viam o fenômeno BMX. O dono de um bar vizinho manifestou-se indiferente: “Eu só vejo é
eles aí, mas não sei o que é, não. O que é que eles faz?”. O desconhecimento deste senhor, no
caso, não provocou repulsa ou medo, mas curiosidade, interesse. Um taxista de um ponto
vizinho ao mini ramp opinou: “Aqueles que andam ali? [aponta para o mini ramp]. Não vejo
nada de desvantagem, não. Pode ser bom, né? Fazer exercício, assim, esporte é bom, né?
Menino assim tem muita energia, é bom gastar, né. Eu acho é muito difícil e perigoso, se cair.
Mas não cai, não. Nunca vi.”. Impressão similar tinha uma dona de casa que morava perto
dali: [...] esses aí que anda aqui tão melhor do que outros que eu vejo fazendo coisa errada.
Nesse bairro tem muita gente nova errada e ninguém toma de conta! É melhor tá aqui, né?
Aqui a gente vê eles e não vê coisa errada, porque eles ficam pulando de bicicleta, andando
por aí. Tem gente que não gosta e coisa... mas eu mesmo, acho bom. Não vejo nada de ruim,
não.
Nas impressões que os moradores formularam a imagem dos jovens se lhes aparecia
como desportistas habilidosos, dedicados a executar algo difícil e arriscado, sendo suas
imagens – bem como a da própria juventude em geral - associadas à correteza, energia; a
vivência favorável às juventudes e compatível com as regras sociais comuns a todos. O
território mais específico partilhado pelos jovens também aparecia como algo aprovado. Na
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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forma como falaram, olharam e gesticularam, apontando o mini ramp, identificaram-no como
local de prática desportiva, como ponto de encontro legítimo de vivências juvenis desejáveis,
positivas.
Reflito que opiniões similares encontrei dentre os espectadores entrevistados nas
rampas de Dirt, do Bairro Renascença. As pessoas contatadas se empenharam em discorrer
sobre a coragem dos jovens, sobre a dificuldade das manobras, a beleza dos movimentos e a
tranquilidade que resultava em ter os jovens praticando esporte:
Todo pai e toda mãe devia conhecer isso aqui. Aqui não tem bagunça, como muita gente pensa,
né? Porque o pessoal grita, ri e tudo, mas é brincadeira. [...] Aqui é coragem, é não ter medo!
Precisa é de apoio de quem puder ajudar, isso sim. Aqui é grudado na Delegacia de Polícia e
não tem problema. Não é melhor os menino tarem aqui andando de bike, do que dentro da
Delegacia, virando bandido? Duvido se até o soldado, o delegado não vai concordar com isso.
Duvido. Mas ninguém ajuda... (Senhora 1).
Na relação que mantêm como o cotidiano dos treinos e as vivências juvenis,
conhecendo o esporte e os praticantes, os espectadores do BMX constroem a possibilidade de
ver os jovens pilotos de outra maneira, definindo novos lugares identitários para os jovens:
corajosos, audazes, alegres, brincalhões... Talvez esses adjetivos desenhem um retrato do que
costumamos pensar sobre juventude: vida, força, alegria, comunidade. Ali nas rampas outro
aspecto presente é a sintonia dos espectadores com as demandas juvenis: “Precisa é de apoio
de quem puder ajudar...”. Sem conseguir localizar a figura do Estado como responsável pela
implantação de políticas públicas de esporte e lazer, a espectadora lança no vazio uma
demanda que é também do CBMXPI: a construção de um complexo de lazer no Bairro
Renascença para os pilotos e todos os outros jovens. Na relação estabelecida essas pessoas da
comunidade se colocam como apoiadoras do grupo, admiradoras do esporte escolhido pelos
jovens, co-construtoras de novos atributos identitários.
A chegada dos primeiros jovens me reteve à cena local. Piloto 2 comentou sobre sua
ex-namorada e dos desacertos na tentativa de co-habitação que fizeram. Falou do seu
trabalho, relatando quão intensa tem sido a rotina: “tô trabalhando de manhã, de tarde e,
quando chego, trabalho de noite na minha casa, fazendo meus lance...”. Mostrou-me, no
celular, orgulhosamente, as fotos das artes que tem produzido para silkscreen e do grafite que
fez na parede de sua casa. Comentou que seus colegas de trabalho ficam admirados com sua
capacidade de criação. “E é porque nunca fiz nenhum curso! Não nasci para estudo, não. Não
tenho paciência. Fiz lá a escola só pra dizer que tenho o ensino médio, mas não sei de nada.
Não vou mentir! Meu negócio é trabalhar”.
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Chegaram outros jovens e, juntos, as brincadeiras e conversas grupais se instalaram,
nublando a minha presença. Contaram das festas que foram no sábado, dos carros que
andaram, da música, da dança. Dos encontros que tiveram, dos ficas, dos sucessos e fracassos
das conquistas. Fizeram gozações com um e outro sobre as recusas das meninas, das
frustrações e alegrias noturnas. Os casados presentes se abstiveram da conversa e apenas
participaram das gargalhadas. Outros participaram, mas sempre sobre a bike, fazendo
pequenos círculos e outros movimentos em torno do grupo que se formara. Saltaram o meio
fio, andaram no asfalto, subiram na calçada, saltaram contra um muro próximo... enquanto
isso, chegaram mais dois jovens. Um a um foram conformando o grupo de sete jovens do
Dirceu que seguiria no passeio, membros das equipes ADR e Cangaço BMX. No local, não
beberam, nem comeram, não obstante o desgaste físico que enfrentariam em seguida. Após
um “vamos” repetido daqui e dali, o grupo decidiu fazer um trajeto mais cuidadoso quanto à
mão e contramão das vias, visto que eu teria de acompanhá-los de carro. Era hora de partir.
2.2 O trajeto
Em movimento, desceram pela Av. Joaquim Nelson, uma das principais vias do bairro
e do seu centro comercial, com a velocidade aumentando à medida que se afastaram. A
bicicleta exige perícia especial para uso, uma vez que não tem freios. Dividiram a rua com
carros e motos num tráfego razoavelmente tranquilo, visto ser domingo, à tarde. Seguiram
falando uns com os outros, sorrindo, saltando aqui e ali um meio-fio, calçada, esgoto, um ou
outro obstáculo. Um pequeno tombo do Piloto 6, nada demais. Andaram mais juntos, mas
também se afastaram uns dos outros, fazendo duplas ou trios, até atingirem a rotatória que
permite acessar a próxima avenida, deixando para trás o Grande Dirceu.
Cruzaram a rotatória diminuindo distâncias e seguiram pela próxima via com algum
tráfego, raras construções ou transeuntes. Esperei atingir um próximo núcleo mais afastado do
bairro de origem para fazer novas abordagens. Considerei interessante conhecer a impressão
que os jovens suscitavam naqueles com quem não mantinham convivência. O Piloto 6 tombou
novamente e se levantou mancando. Subiu na bicicleta e seguiu caminho.
Num certo posto de gasolina passaram quase todos juntos, conferindo impacto visual
às suas presenças. Um transeunte jovem me disse: “tipo assim, a gente tem medo [do grupo].
É um esporte deles, assim... mas a gente tem medo. Já tomaram [roubaram] uma bicicleta
minha, mas acho que porque era igual à deles.”. Um misto de conhecimento e suposição sobre
os ciclistas caracteriza a opinião deste jovem que observava o grupo passar. Objetivamente,
não os conhecia, mas generalizara um evento ocorrido como ação possível aos pilotos que
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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passavam. Nessa apreciação, o esporte ensejou a atribuição de atributos identitários negativos
aos jovens, muito embora a prática viesse a figurar como esporte também na fala do frentista
do posto.
Através da Av. dos Expedicionários alcançaram o Bairro Recanto das Palmeiras, por
volta de cinco km de distância do ponto de partida. Abandonando-a em seguida, iniciaram a
entrada no Bairro São João. Uma senhora sentada à porta da sua casa expressa com
veemência: “Não vou mentir, não. A gente pensa que é trombadinha. Ainda mais um grupo
assim?! A gente fica é com medo.”. A fala supera a anterior dubiedade de interpretação do
jovem transeunte sobre as identidades que se deslocam sobre as rodas: são trombadinhas. Há
cinco km do bairro morrem os desportistas, os corajosos, os alegres, os brincalhões; nascem
os trombadinhas. Por estarem em grupo, são temidos, certamente por oferecerem o perigo
encerrado na nova identidade ganha.
Calçadas, rampas de acessibilidade, declives e aclives vários iam sendo superados
pelas rodas que avançavam no trajeto, ‘fazendo’ uma estrada imaginária, paralela à via oficial
e desenhada pela mente do jovem que pilota uma BMX obediente à força das suas pedaladas e
à habilidade de suas manobras. O espaço já era menos confortável nas ruas e a disputa com os
carros passou a ser mais importante. O sol castigava muito, também o calor que subia do
asfalto. O suor molhava as camisas, mas os jovens mantiveram o ritmo, sem aparentar
cansaço. Mantiveram também a sistemática: hora em grupo e a maior parte do tempo em trios,
em duplas ou sozinhos.
Cruzaram o Bairro São João e na entrada da Av. João XXIII, já no Bairro São
Cristóvão, um motorista abordado, que baixa o vidro do seu carro para falar comigo,
desabafa: “É um bando de desocupados. É muito atrevimento também. Um deles ali ia sendo
atropelado e era bem-feito”. A reação dos pilotos apareceu pronta: “os motoristas pensa que a
rua é só pra eles; não respeitam ciclistas, não. Um bando de ignorante aí!”. (Piloto 6).
A que se deveria o ‘atrevimento’ denunciado? O sinal abriu, o motorista partiu e eu
fiquei sem a resposta, mas poderíamos pensar que andar nas ruas de Teresina em grupos de
bikes, dificultando a passagem de carros, pode ser visto como um atrevimento, de fato. Aqui
não existem ciclovias que viabilizem o tráfego, embora seja uma cidade de topografia plana.
Não obstante, a bicicleta é ostensivamente usada, mas especialmente por trabalhadores de
inserção socioeconômica vulnerável. São pedreiros, jardineiros, pintores, diaristas,
carpinteiros, serralheiros etc que as utilizam no deslocamento para o trabalho. Assim, está
associada a essas categorias profissionais e seus pilotos, invisíveis que são enquanto sujeitos
com direito de trafegar na via pública em segurança. O uso de carros é algo crescente na
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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cidade4 e novo perfil do trânsito impõe ao contexto urbano a vigência de uma lógica que
privilegia os automóveis, tornando-os os atores principais das ruas e avenidas. Nada estranho
que um motorista considere, portanto, um atrevimento que jovens negros, de aparência pobre
e, além disso, suja (em função das roupas típicas do Dirt) utilizem as ruas livre e
massivamente com suas bicicletas.
Estranhos, atrevidos ou não, adentraram a Av. João XXIII. O trânsito permanecia
razoavelmente calmo, facilitando o tráfego dos ciclistas. Mesmo assim, tomaram a pista
auxiliar e por ela seguiram até desembocarem na Ponte Juscelino Kubitschek, sobre o Rio
Poty, ali trafegando pela via dos ciclistas.
Seguiram pela citada ponte objetivando alcançar a Av. Frei Serafim, do outro lado do
Rio Poty. É a principal via, a qual leva ao centro da cidade e a divide em Zonas Norte e Sul.
Passaram à frente do 2° Batalhão de Engenharia de Construção-BEC, do Exército Brasileiro e
o soldado que guarda a entrada opinou: “Eu sei... já fiz esse esporte. Mas ali tem uns que tá ali
pelo esporte e muitos são por vandalismo.”. Com essa interpretação o grupo retorna à
condição de hibridismo identitário. Possivelmente, a dúvida instalada na opinião emitida
tenha surgido mais para salvaguardar o próprio soldado, implicado que se colocou – pois,
segundo disse, praticou o esporte - do que para identificar o grupo. Uns e muitos. Uns,
esportista, muitos vândalos. Nessa configuração, muitos são quem, na verdade, dão o tom do
grupo, que é de vândalos.
Parada para descanso. Dirigiram-se a um posto de gasolina. “A gente sempre para aqui
neste posto. Foram os outros que disseram pra gente e aqui eles deixam a gente beber,
descansar. São chatos, não. São gente boa.” (Piloto 1). O frentista assume postura empática:
“Pra eles é bom, né? É um esporte e eles gostam. É por prazer, né? Gostam tanto que vêm,
mesmo com esse solzão todo. E é só no domingo, que tem menos trânsito. É um lazer, né? É
muito bom. E sempre eles bebem aqui. Tem outros também”. Bikes ao chão, sentados nos
quadros das mesmas, os pilotos descansaram à sombra, no regaço da água gelada do
bebedouro e no bálsamo gerado pela manifestação do frentista. Uma trégua merecida para
realimentarem forças físicas e a auto-estima: ali voltaram a ouvir que eram esportistas
4 Ratificando esta realidade, Teresina, em 2008, já possuía uma frota de 239.302 veículos, conforme estatísticas do DETRAN
(http://180graus.brasilportais.com.br/geral/teresina-ganha-frota-de-29-mil-veiculos-novos-no-1osemestre-242622.html).
Mantendo o seu mercado em expansão, em 2010 era a terceira capital do Nordeste que mais vendia carro zero quilômetro e já
em 2011 a cidade tinha a quarta maior frota de veículos do Nordeste (http://guaraciabadonorte-
ce.blogspot.com.br/2011/09/maiores-frotas-de-veiculos-do-nordeste.html), embora no Brasil se comercialize o carro novo
mais caro do mundo (http://www.noticiasautomotivas.com.br/lucro-brasil-faz-o-consumidor-pagar-o-carro-mais-caro-do-
mundo/). Outro aspecto importante: nesse mesmo período Teresina era a sexta capital nordestina em tamanho de população e
detinha o quarto maior índice de incidência de pobreza na região (CENSO, 2010). Neste quesito perde apenas para Maceió,
São Luís e João Pessoa (http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?).
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cuidadosos, que pedalavam por prazer. Ofereci-lhes um refrigerante, tomado com parcimônia
para “não encher a barriga, porque pesa”.
O momento era de descontração, relaxamento, manifestação de potência e de alguma
lamentação ante o cansaço. “Eu fui dormir foi cinco horas, doido! Olha o olho roxo aqui! Mas
tô andando!”; (Piloto 3). “Eu já tô velho, tia. Não aguento mais isso, não!” (Piloto 2). Forças
recompostas, hora de partir mais uma vez. Agora, rumo à Praça do 25º Batalhão de
Caçadores-BC, ao norte-centro da cidade, onde esperavam outras equipes de BMX. Ali
encontraram a Infer Bike e a Caveira BMX, compostas por sete jovens no total. A partir
daquele local, 14 pilotos de BMX passariam a fazer o trajeto.
Muitos abraços, sorrisos, tapinhas... cumprimentos diversos que sinalizavam a alegria
do encontro. As conversas seguiram tratando das bikes. Falavam de quadros novos
adquiridos, raios repostos, reparos “feras” feitos recentemente, marcas boas e ruins, melhorias
X e Y... Refeitos, mais uma vez retomaram as ruas. Recomendaram-me não mais segui-los,
pois serpenteariam por ruas pequenas e outras mais, sem observância estrita dos sentidos do
trânsito, a fim de encurtar distâncias. De fato, antes haviam combinado que fariam um
percurso “certinho”, para tornar possível o meu percurso, seguindo-os de carro. Isso
demonstrara que o grupo nem sempre observava as regras do trânsito nos seus deslocamentos.
Respeitando a decisão do grupo, marcamos o reencontro no “pé da ponte”, a mais ou menos
três quilômetros dali. Lá, uma vez reunidos novamente, iniciamos a ultrapassagem da Ponte
Metálica João Luís Ferreira, sobre o Rio Parnaíba, repetindo o mesmo caminho do trem – do
Piauí pro Maranhão. Diferentemente do trem, saltavam por sobre os trilhos aqui, mudavam de
faixa acolá, ‘cruzando’ o movimento das águas que embaixo seguiam o sentido norte-sul, sem
ocupar-se com a presença dos animados ciclistas.
Deixando a ponte para trás, alcançaram as residências maranhenses, quase ribeirinhas.
Na primeira padaria que encontraram, pararam novamente para beber. Sentados às suas
portas, um senhor e uma moça – pai e filha - a quem abordei confrontaram as impressões que
os rapazes lhes causaram: “Olha, eu acho muito bom ter como esporte esse daí, é melhor do
que fazer coisa errada. Querer drogas, essas coisas... É importante jovem fazer esporte”; “Pra
mim, eles deviam procurar outra coisa pra fazer. Ficar andando pra lá e pra cá não tem
nenhum futuro, não. Deviam arranjar outra coisa, trabalhar que dá mais resultado. Isso aí, eu
não concordo, não”. De algum modo, o híbrido voltava a qualificar o grupo, pontuando dois
limites de interpretação e introduzindo um aspecto racionalizador/instrumentalista/disciplinador
na análise da jovem: trabalhar dá mais resultado. Entretanto, a suposição de vagabundagem de
algum modo inscrita na fala não faz eco com a realidade. Como referido antes, a grande
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maioria dos jovens trabalha para se manter e para manter o esporte que pratica. Ademais,
parte dos meninos é campeã nos torneios dos quais participam. Este BMX, ao contrário do
que pode despertar, é disciplinado e produz resultados (embora não renda dinheiro). Para
alcançar a condição de bom piloto, a prática exige muito de cada jovem, realidade que fica
apartada da imagem do grupo capturada nas ruas. No desconhecimento, por vezes, a prática
grupal encontra dificuldade de surgir coadunada com a ideia de criação, esforço, competência,
disciplina, coragem, esporte, trabalho, amizade. No desconhecimento, a pré-noção
socialmente instalada ratifica a opinião costurada no olhar que segue o rastro dos pneus pelas
ruas: jovens em grupo, de pele escura, “mal-vestidos”5, de aparência pobre, assemelham-se a
desocupação, a hedonismo, a perigo, a vandalismo.
Novamente em percurso, entraram na Avenida Pres. Médici, já se aproximando do
destino final. Nessa via seguiram por volta de um quilômetro e, adentrando na próxima rua
transversal, chegaram ao Centro Educacional Esportivo e Cultural da Juventude Mauro
Bezerra, em Timon-MA. Ali se encontram instalados um ginásio poliesportivo, uma quadra
de skate/BMX e rampas de Dirt Jumping, além de outros espaços esportivos. O primeiro
gesto foi a busca por água. Depois, seguiram a interação, as brincadeiras, o relaxamento e a
algazarra alegre da chegada. Bikes ao chão, passaram ao descanso da longa e exigente
travessia do Piauí ao Maranhão, enquanto esperavam o sol “baixar” para iniciarem as
manobras na quadra de Vertical. Ali, saltando obstáculos de concreto, descendo velozmente
as rampas, voando sobre corrimãos, girando na horizontal, por algumas horas,
experimentaram a plenitude. Corridas, manobras, saltos, erros, acertos, sorrisos, quedas,
apoios, gritos, palmas, comemorações pelos feitos... alegria... criação... parceria...
construção... autoria.
A presença do grupo chamou a atenção de uns poucos transeuntes que passavam. Um
deles se aproximou e perguntou: “como é que faz para se matricular para aprender um pouco
desse esporte? É que meu irmão aqui quer aprender.”. A interpelação os recolocava na
condição de esportistas e os jovens responderam enquanto tais. Explicações, combinações,
instruções... esperança. Novos matizes identitários em curso em novos territórios.
A noite dava seus primeiros anúncios. Hora do retorno. Seriam mais 10 km a vencer. E
também pontes, ladeiras, descidas, automóveis e preconceitos arraigados sobre a presença
juvenil e sobre o BMX nas ruas da cidade.
5 As roupas escolhidas são as de cor escura, pois demonstram menos as manchas adquiridas no barro das rampas. Por vezes,
se rasgam nas quedas. Sujas de barro e rasgadas, adquirem aspecto menos plácido à visão dos observadores.
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Considerações Finais
Territórios fluidos, equipamentos móveis, relações em trânsito, fronteiras borradas,
alteridades híbridas, identidades cambiantes. (CANCLI, 2009; CANCLINI, 1997; HALL,
2003). Essa é a moldura geral que contorna o convívio do grupo juvenil no Bairro
Renascença, bem como no trajeto dos pilotos de BMX pelas ruas piauienses e maranhenses. A
meu ver, as distâncias e proximidades entre os jovens e seus interlocutores - provocadas pelo
conhecimento/desconhecimento do esporte, maior/menor aceitação do diferente,
filiação/distanciamento dos estereótipos etc - vão marcando as possibilidades identitárias
disponíveis, acionadas por um ou outro personagem que estabelece relação com o grupo e
suas bikes em movimento nas cidades.
Parece correto dizer que a interação jovensXcidade surge como locus incerto de
territorialização/desterritorialização/reterritorialização, de construção identitária, exposto às
contingências das relações em curso. Assim, os territórios das quadras, rampas e ramps
ancoram impressões mais próximas da realidade vivenciada no grupo de BMX. Ali, o
convívio mais perene entre os jovens e a comunidade possibilita a desconstrução das pré-
noções negativadas e a formulação de representações positivadas acerca dos jovens e suas
práticas.
Nesse movimento, à medida que os jovens se distanciam da rampa, do mini ramp de
origem, despedem-se de algumas identidades consolidadas a partir do que constitui também o
BMX, inscritas na inter-relação com os circunstantes próximos ou transeuntes que conhecem
o esporte de algum modo, ou são atraídos pela sua beleza e dificuldade de execução dos
movimentos. Piloto, corajoso, maluco, doido6, alguém em quem se ‘bota fé’ é aquele que,
sobre uma bicicleta, voa aos ares em cambalhotas de efeito visual impressionante. É aquele
que corre risco, cai, levanta, se machuca ou não, e segue buscando fazer o movimento
perfeito. Os jovens, naqueles espaços, municiam-se dos atributos identitários da coragem, da
perícia, do talento, da persistência, da masculinidade, da força, da alegria, da brincadeira, da
visibilidade positiva.
Os marcadores aludidos vão, entretanto, se esmaecendo na medida em que se
distanciam dos seus territórios e das partilhas locais, ao transbordarem fronteiras e ocuparem
o espaço desconhecido. Ali, os atributos se inscrevem no estranhamento que experimentam
com outros sujeitos circulantes pelas vias públicas, e trançados às interpretações
preestabelecidas sobre os jovens, os negros, os pobres. Ladrão, atrevido, perigoso, vândalo,
6 Maluco e doido são elogios feitos a alguém que surpreende, que faz algo extraordinário. Na gíria, que “arrasa”. No caso do
BMX, que executa uma manobra com perfeição, cria novos movimentos ou se aventura numa manobra muito exigente ou
perigosa.
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vagabundo... são os atributos que vão surgindo nos novos cenários, nos novos territórios,
marcando novas identidades que apresentam os jovens e suas bikes como indesejáveis ao
convívio.
Na próxima rampa, re-territorializados, são lançados em outros movimentos
identitários: “É que meu irmão aqui quer aprender”. Experts, instrutores. Certamente, os
jovens também quererão ensinar enquanto também aprenderão. Sobre o esporte. Sobre ser
jovem. Sobre a arte de reinvertar-se, quando tudo acena para a reprodução ad infinitum dos
lugares sociais. Sobre construir as identidades juvenis em territórios móveis, contextos
relacionais que as definem muito mais como um eterno refazer-se do que por um fixo existir
(SILVA, 2007).
Entendo que em contexto assim experimentados os coletivos juvenis e seus ambientes
podem atuar como espaço de construção dos jovens, suas sociabilidades e vivências como
manifestações juvenis legítimas. Podem, assim, romper as lógicas estabelecidas, as fronteiras
impostas e o modo mais comum de como são vistos pelo outro. É nesse cenário que, vivendo
a contingência das identidades abertas - marca das sociedades complexas - os jovens poderão
encontrar terreno fértil para adensar os atributos que os afirmarão enquanto sujeitos criativos,
ativos e propositivos, co-responsáveis também pela oxigenação da vida nas cidades.
Referências
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CANCLINI, Nestor. Diferentes, desiguais e desconectados. 3ª. ed. Rio de Janeiro, Editora da
UFRJ, 2009. (Coleção Ensaios Latino-americanos).
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CARRANO, Paulo C. 2002, Os jovens e a cidade: identidades e práticas culturais em Angra
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HALL, STUART, 2003, A identidade cultural na pós-modernidade, 7ª ed, Rio de Janeiro,
DP&A Editora.
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Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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Existir no tráfico: vivências de jovens no tráfico de drogas de uma favela no norte do Rio de Janeiro*
Wania Amélia Belchior Mesquita**; Suellen André de Souza***
Resumo: Este trabalho versa sobre as percepções e vivências de jovens traficantes de drogas moradores da
Baleeira, favela localizada na cidade de Campos dos Goytacazes – RJ. A partir de um estudo etnográfico
realizado nos anos de 2006 a 2010, busca-se compreender suas sociabilidades, meios de vida e formas de acesso
e circulações na cidade onde residem.
Palavras-chave: Juventude, criminalidade, sociabilidade, favela.
Abstract: This paper describes the perceptions and experiences of young drug dealers residents of Baleeira, a
slum located in the city of Campos dos Goytacazes - RJ. From an ethnographic study realized in the years 2006
to 2010, we tried to understand their sociability, livelihood and means of access and circulation in the city where
they live.
Keywords: Youth, criminality, sociability, slum.
Introdução
Com o objetivo de identificar as especificidades da socialização dos jovens que
desenvolvem atividades ligadas ao tráfico de drogas em uma favela da cidade de Campos dos
Goytacazes1, localizada no interior do Estado do Rio de Janeiro, suas percepções e vivências
neste território, realizamos ao longo dos anos de 2006 e 2010, pesquisa etnográfica com
realização de entrevistas e conversas com jovens residentes na localidade da pesquisa.
O lugar das vivências cotidianas desses jovens é central para a compreensão de suas
sociabilidades em um “lugar praticado” no qual atuam cotidianamente. (CERTEAU, 2008) e
pensar a favela nos remete a um termo polissêmico, relacionado a uma realidade plural e
multifacetada. A polissemia do termo expressa muito mais do que as categorias utilizadas
pelo IBGE2 e relaciona-se à diversidade presente neste território da cidade a partir de sua
* Este artigo é parte da dissertação de mestrado intitulada Existir no Tráfico: percepções e vivências dos jovens traficantes de
drogas da favela Baleeira, defendida no ano de 2010 no Programa de Pós-graduação em Sociologia Política da Universidade
Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro – UENF. Fou recebido em Janeiro de 2013 e aceite em Fevereiro de 2013. **
Professora Associada da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro/UENF. ***
Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Sociologia Política da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy
Ribeiro/UENF. 1 A região onde está situado o município de Campos era habitada por índios Goitacás, Guarulhos e Puris. Sua colonização foi
iniciada por Miguel Aires Maldonado, na primeira metade do século XVII. Primeiramente desenvolveu-se a atividade
pecuária, seguida pela atividade açucareira, que se consolidou a partir do século XVIII, em grandes latifúndios e em
pequenas propriedades, expandindo-se, no século XIX, inicialmente nos engenhos e, mais tarde, em usinas. Através desta
atividade adquiriu grande importância nacional no século XIX, influindo enormemente na política e no poder do Império. Foi
elevada à Cidade em 1835. Em 1974, foi descoberto amplo lençol petrolífero no campo de Garoupa, na plataforma
continental da Bacia de Campos, o que contribui significativamente, com pagamento de royalties, para a receita municipal.
De acordo com estimativas do IBGE, o município possuía 434.008 mil habitantes em 2009, distribuídos numa área de 4.032
km². Em divisão territorial de 1991, que permanece até os dias atuais, o município é constituído por 14 distritos (IBGE,
2010). 2 Para definir a favela, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) leva em consideração três fatores: 1)
edificação em terreno invadido; 2) construção rústica e simples; 3) morador não apresenta termo de posse do domicílio ou em
sua maioria não possui saneamento básico (IBGE, 2000).
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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realidade física, social e espacial. Não há homogeneidade, nem especificidade, mas sim uma
grande heterogeneidade entre elas e até mesmo dentro delas (VALLADARES, 2005). Neste
trabalho focalizamos a categoria favela a partir de uma definição empírica produzida pelos
seus próprios moradores, principalmente os jovens que atuam na “atividade”3 do tráfico de
drogas. Assim, buscamos investigar as percepções dos jovens que atuam no tráfico sobre os
espaços onde vivem.
A escolha da favela Baleeira, dentre as 32 da cidade de Campos dos Goytacazes – RJ,
contabilizadas no censo demográfico (IBGE, 2000) e, ao mesmo tempo, a forma de trabalhar
esta no contexto da pesquisa decorre da aproximação de uma das autoras do artigo com o
objeto de pesquisa ao longo dos últimos anos. Num primeiro plano, como moradora desta
favela e, posteriormente, como pesquisadora.
A origem da ocupação das favelas no Brasil se deu de diferentes formas, resultando ou
não de ações planejadas e de apropriações territoriais (VALADARES, 1983). A bibliografia
sobre Campos dos Goytacazes focaliza as dinâmicas socioeconômicas associadas à
agroindústria açucareira como elemento importante no processo de surgimento das favelas no
espaço urbano. Observou-se de forma acentuada a concentração de terras e capital pelas
grandes usinas devido à falência de algumas propriedades fornecedoras, o que implicou na
expulsão do homem do campo para o centro urbano. Além disso, o processo de modernização
e mecanização da agricultura, na década de 1930, veio a se constituir num dos fatores
responsáveis pelo fechamento de algumas usinas de açúcar (GUIMARÃES; PÓVOA, 2005,
p. 9). A isto se atribui o surgimento das primeiras favelas da cidade, que em 1940
contabilizavam 28 no município.
A ocupação da área onde está localizada a favela Baleeira ocorreu por volta de 1948.
Esta se localiza no perímetro urbano entre os bairros Caju e Parque Leopoldina e possui cerca
de 430 moradores e 123 domicílios ocupados (IBGE, 2000). O nome Baleeira advém de uma
planta típica da Mata Atlântica que ocupava a área (GUIMARÃES; PÓVOA, 2005). Seus
primeiros moradores ocuparam uma área urbana próxima à linha de trem. No início da
ocupação os moradores enfrentaram muitos problemas devido ao terreno ser alagado e a
vegetação difícil de ser retirada (SOUZA, 2007; SOUZA, 2010). Toda a região possui baixo
valor imobiliário, devido à grande proximidade com o Cemitério do Caju, o maior da cidade,
que apresenta grande foco de poluição advindo do necrochorume produzido pela
decomposição dos corpos, que contamina o lençol freático. O cemitério se localiza na quadra
3 A “atividade” na favela Baleeira corresponde ao trabalho de venda de drogas.
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contrária a favela, bem próximo da favela vizinha, a Oriente4 (GUIMARÃES; PÓVOA,
2005).
Como a cidade de Campos está localizada em uma planície, inexistem morros na
cidade e as favelas são todas planas, crescendo apenas através de novas construções
horizontais ou mesmo verticais.
Em uma das esquinas da favela localiza-se a “boca de fumo”5, onde os jovens
embalam, distribuem e vendem drogas6. A partir da pesquisa realizada com alguns jovens que
participam destas atividades, definidas como tráfico de drogas, apresentaremos alguns
elementos de suas socializações como um esquema de referência ao entendimento destas
práticas.
Compreendemos neste trabalho os jovens não como categoria de análise com
classificação etária específica, e sim como uma fase da vida expressa por sentimentos e
valores atribuídos pelos sujeitos, fruto de referências culturais presentes de forma e
intensidade diferentes em cada sociedade, onde o casamento não seria mais capaz de
interrompê-la (ARIÈS, 1981). Todos os jovens entrevistados disseram que se consideram
jovens por diferentes motivos: porque é “novo ainda para aprender muita coisa na vida”;
porque não tem família constituída, com filhos e esposa; ou porque faz coisas que considera
de jovem, como soltar pipa, jogar bola e ir a shows.
1. Juventude, tráfico de drogas e relações sociais na favela
A favela Baleeira forma um triângulo em pontos equidistantes da cidade com outras
favelas (Parque Prazeres e Tira Gosto), estabelecendo-se como ponto de referência para o
tráfico de drogas e armas na cidade de Campos dos Goytacazes (PESSANHA, 2001, p. 22).
Muitos moradores desconhecem a origem das “atividades do tráfico” na favela Baleeira,
outros remetem ao período do final da década de 80, quando a atual família que está no
comando do tráfico saiu da cidade do Rio de Janeiro e veio morar em Campos dos
Goytacazes. Segundo os jovens, na ocasião já havia tráfico de drogas na favela, com venda de
4 A favela Oriente possui 535 moradores (IBGE). As duas favelas são separadas por uma linha de trem pouco utilizada
atualmente, mas que, segundo relatos dos moradores, já foi responsável pelo escoamento da produção de cana-de-açúcar da
cidade de Campos nas décadas de 70 e 80. Disseram ainda que algumas pessoas já morreram no local no momento da
passagem do trem, entre elas uma criança. 5 Ponto de venda de drogas. 6 Durante a pesquisa observamos que a atividade do tráfico de drogas era desenvolvida por jovens negros, ou adultos negros.
Mas, no último ano de trabalho de campo identificamos dois homens brancos, um jovem e um adulto, envolvidos em tal
atividade. O jovem foi entrevistado para a pesquisa e disse ter sofrido algumas situações constrangedoras dentro da favela no
início de suas atividades porque o consideravam um “playboy”, mas que isso acabou. Sua cor também contribuiu para
chamar mais a atenção das mulheres do local, e por isso foi avisado diversas vezes sobre o envolvimento com mulheres
comprometidas, conforme relatado anteriormente. Estas impressões não foram foco da pesquisa ainda que considere a
pertinência de se problematizar estas informações.
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maconha, mas não souberam dizer quem exercia o comando. A cocaína foi introduzida por
um dos homens desta família, que assumiu a “chefia” do tráfico na favela Baleeira e na favela
Tira-Gosto.
Este chefe contava com um “braço direito”7 na Tira Gosto. Conta-se que tempos
depois este traficante considerado o “braço direito”, que não era membro da família,
assassinou o seu “chefe” assumindo o comando do tráfico na Tira Gosto. O tráfico na Baleeira
ficou sob o comando do irmão deste “chefe”, baseado na relação de confiança estabelecida
entre eles. Este veio para Campos antes do assassinato do irmão e após cumprir pena por
tráfico de drogas na cidade do Rio de Janeiro. Segundo os jovens traficantes, a rixa entre as
favelas Baleeira e Tira-Gosto foi iniciada após o assassinato do “chefe” pelo seu “braço
direito”, quando os traficantes da Baleeira buscaram vingar a sua morte e localizar o seu
“corpo” para o sepultamento, o que não aconteceu.
Os relatos dos moradores afirmam que o tráfico sempre esteve sob a liderança da
família migrada do Rio de Janeiro que distribui os cargos de confiança entre os homens mais
velhos na escala de parentesco com o chefe: irmãos, primos, cunhados e amigos. Quando
questionados sobre a possibilidade de rompimento deste vínculo, os jovens consideraram o
fato impossível (... vai de geração para geração. Não chega a ir os poderes para a mão de
outra pessoa entendeu? Vai passando). As outras “atividades” na “boca” são desenvolvidas
por qualquer homem que tenha “responsabilidade, seja rato, sagaz”, independente da idade.
Os entrevistados enfatizaram que até crianças realizam os trabalhos influenciados pelo
dinheiro e pelos exemplos que encontram nas ruas da favela.
“Aí o cara chega e vai ali, os traficantes muitas vezes não quer, mas infelizmente tem um ou
outro que não pensa nas crianças não. Não é filho dele. Amanhã, depois se morrer novinho não
quer nem saber. Aí deixa a criança ali, ai chega e fala assim: “vai ali comprar um lanche para
mim”. Aí o menino vai ali comprar um lanche, vai lá da uns 20 reais a criança de uns 10, 12
anos pra comprar um lanche dez horas da noite. Daqui a pouco o menino acha que aquela
pessoa é amigo dele por aquilo, tá do lado dele meia noite, uma hora da manha. Ai daqui a
poco ó, “leva essa maconha para mim na casa de fulano que fulano ta aguardando”. Ai a pessoa
vai ganhando 20 molinho aqui, mais 10 molinho ali, ele vai ver que amanha ou depois se ele
trabalhar na boca vai valer à pena... mas por causa de que, de uma influência, de um trabalho.”
Quando tentamos esclarecer a diferença entre “movimento” e “atividade do tráfico”, os
jovens explicaram que o termo “movimento” designa toda atividade de compra, embalo e
distribuição da droga para as “bocas de fumo” da favela Baleeira e todas as outras a ela
submetidas. O termo “atividade” refere-se à venda da droga na “boca de fumo”. Desta forma,
todos os jovens que trabalham na venda de drogas estão na “atividade” e todos os “gerentes”
7 Homem de maior confiança do chefe.
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fazem parte do “movimento”. Durante a “atividade” na “boca” os jovens portam armas
fornecidas pelo “chefe”. Segundo um “vapor”, usar em outros contextos pode significar
afrontar a “chefia”, desta forma, os “chefes” não permitem que outros moradores possuam
armas no local.
De modo geral, todos os jovens consideraram que a venda de drogas na favela “rende
muito dinheiro”. Um “vapor” disse que somente o “chefe” enriquece com a “atividade”.
Contudo, o “gerente” considera que o dinheiro não é o que move o desenvolvimento da
“atividade do tráfico” no local, pois o lucro também é destinado a ajudar as pessoas.
Os jovens, ao falarem da relação estabelecida com a facção do tráfico Amigo dos
Amigos – ADA8, destacaram a influência deste grupo na hora de alocar traficantes em
presídios no Rio de Janeiro, mas que esta associação não exerce nenhuma influência na
“atividade do tráfico” na favela. As marcas desta associação podem ser observadas nas
pichações em muros de algumas casas da favela.
Além das inscrições referentes às facções, observa-se nos muros pichações do CB1,
que se referem à posição da favela no “Complexo Baleeira”. A divisão em Complexos
permite a organização e distribuição das drogas entre as favelas sob domínio da favela
Baleeira, que ocupa a primeira posição nesta divisão por ser a matriz. A sequencia segue uma
ordem baseada no tempo em que as outras favelas se associaram a favela Baleeira.
Ao longo do tempo que permanecemos na Baleeira acompanhamos diversos
comentários sobre um lugar onde os traficantes aplicavam os castigos e praticavam
assassinatos na favela, chamado de “beco da morte”. Neste corredor anteriormente havia um
terreiro de umbanda que foi fechado9. No terreno em frente ao beco foi fundada uma igreja
evangélica. Segundo os jovens traficantes, desde então não ocorreram mais punições do
tráfico no local. Um jovem mencionou ter presenciado seu tio e três de seus amigos levarem
8 Segundo o jornal Folha de São Paulo, “a facção ADA (Amigo dos Amigos) foi fundada por Eraldo Pinto de Medeiros, o
Uê, e por Celsinho da Vila Vintém por volta de 1998. Uê foi expulso do Comando Vermelho em 94, após tramar a morte de
Orlando Jogador, um dos líderes da principal organização criminosa do Rio de Janeiro. Principal rival do traficante Luiz
Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar (ligado ao CV), Uê foi morto em 2002, durante rebelião liderada pelo
Comando Vermelho no presídio de Bangu 1. Com a morte de Uê e a prisão de Celsinho da Vila Vintém, o TC e a ADA se
uniram. Dissidentes das duas facções formaram o TCP (Terceiro Comando Puro)”. Fonte:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/especial/2004/traficonorio/faccoes.shtml 9 Os moradores e os jovens entrevistados relataram esta prática religiosa sofria grande preconceito, pois muitos moradores do
local são evangélicos e consideravam que todas as práticas realizadas neste terreiro “chamavam o demônio”. A fala de um
jovem expressa claramente este sentimento: “Eu não gosto dessa parada não, eu tenho pesadelo. Na moral, sou cria da
favela, mas nunca comi um pedaço de bolo de macumba, Cosme e Damião.” A antiga dona do local não quis falar sobre o
assunto e me disse que os outros moradores já fizeram muita maldade com ela por causa disso, que hoje ela não realiza mais
estas “atividades”.
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uma “surra” por terem estuprado uma moça deficiente auditiva: Conforme disse: “Foi quatro
pro paiol10
. Eles botaram maluco de cabeça para baixo e era só maderada”.
Ainda que o “beco” tenha deixado de existir, as punições do tráfico continuam. Hoje
as torturas são feitas fora da favela, com uma frequência menor devido a maior aceitação das
regras e a relação mais tranquila estabelecida entre os moradores e os traficantes. Os jovens
descreveram também as diversas leis impostas pelos traficantes, reforçando as já identificadas
em momento anterior (SOUZA, 2007), que, se desrespeitadas, implicam em ações violentas
que vão de castigos até a morte. De acordo com depoimento de um deles: “A lei da favela é
foda po. É a lei do silêncio. Às vezes mata um aqui, a polícia chega e pergunta quem matou,
vagabundo às vezes viu, mas ninguém fala. Tem que respeitar a lei da favela.” As regras
gerais de convivência são: não delatar; não roubar a “comunidade”11
ou nas proximidades
dela; não estuprar; não matar as pessoas sem um motivo sério; não desmoralizar morador,
fazendo com que passem vergonha na frente de outras pessoas sem um motivo aparente ou
mesmo que sofram qualquer discriminação devido a sua condição de pobre ou negro; saber
entrar e sair na “comunidade”, sem querer se impor, e sim ser humilde; e não se envolver com
mulher que esteja compromissada com outro morador da favela.
Um dos jovens descreveu a penalização que recebeu por quebrar as regras imposta
pelos traficantes. A punição teve como origem o seu envolvimento com a mulher do
“gerente”. Ele disse que não resistia ao encanto das mulheres e que, como os “gerentes”
possuem muitas mulheres, “não ia sentir falta dessa”. Sabia do risco, mas não se importava.
Só não deixava sua mãe descobrir porque ela o enviaria para um lugar bem longe. Certo dia o
gerente descobriu e foi “acertar as contas” com ele durante um baile funk na favela. Eles
“caíram na mão”12
no local. O chefe decidiu pelo castigo. Por isto, ficou três meses em casa,
“sem poder colocar sequer a cara no portão”. O entrevistado também falou que na ocasião do
“castigo” jovens evangélicos foram a sua casa e incentivaram a deixar o vício e “entrar para a
igreja”. Após o período do castigo, deixou as “atividades do tráfico”, foi morar na B2 (favela
10 O “paiol” era um quintal localizado dentro de uma casa em um dos becos da rua Lacerda Filho, onde eram aplicadas as
penas as pessoas que desobedecessem as ordens impostas pelos traficantes de drogas. 11 O termo “comunidade” pode ser compreendido como uma forma que os moradores de favela utilizam em seu favor, para
ressaltar as qualidades morais ali existentes, comprovadas pelo modo de vida e cultura que possuem (BIRMAN, 2008). Os
jovens entrevistados utilizaram este termo com referência à humildade com que todos se tratam no local, “como iguais”. Isto
em contraposição ao que encontram nos outros territórios da cidade, onde são alvos de preconceitos. As manifestações de
preconceito entre os jovens homens e mulheres foram seguidas de reações de positivação do lugar de moradia, como o
território onde se pode estar em casa, sentir-se em casa, apesar dos níveis de violência e morte. Neste sentido, o território
apresenta-se como um lugar imprescindível de sociabilidade juvenil (CECCHETTO; MONTEIRO, 2009). 12 Brigaram.
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Oriente) com a mãe de seu filho e trabalha atualmente como ajudante de pedreiro. Ele disse
ser evangélico, mas já não frequenta mais a igreja como no período que saiu do castigo13
.
Dadas as referências anteriores, pode-se afirmar que as ações dos traficantes locais
conformam práticas que envolvem estratégias de controle do território, estabelecendo neste a
“sociabilidade violenta” (MACHADO DA SILVA, 2008).
O envolvimento com a “atividade do tráfico” proporciona a estes jovens o acesso a
grandes quantidades de diferentes tipos de drogas. Este fato influencia o consumo de drogas
pelos jovens, seja no sentido de afastá-los dela ou de aproximá-los. A possibilidade de o
consumo de drogas atrapalhar o desenvolvimento do trabalho foi o argumento utilizado pelo
gerente para afirmar que não o faz neste momento. Entretanto, a posse da mesma e a
possibilidade de retirar o pagamento do plantão em drogas foi o argumento utilizado por
outros jovens para afirmarem que consomem mais quando estão na “atividade”. De acordo
com os relatos dos jovens, quando o vício atrapalha o trabalho, eles são afastados e punidos.
Em sua maioria expressaram também o desejo de não consumirem mais drogas, pois estas
podem vir a prejudicá-los futuramente na aquisição de um emprego formal.
Durante os plantões, os jovens “vapores” afirmaram receber entre R$20,00 e R$30,00
reais por plantão. Um jovem relatou que este quantia equivale à uma hora de trabalho. “Você
pode vender muito ou nada, vendendo ou não vendendo você ganha a mesma coisa. Quando
não vende e não tem dinheiro você recebe em droga e pode passar depois ou tenta vender ali
na outra favela com o vapor”. Durante o “trabalho” também devem estar atentos a presença
do “alemão”, seja ele o inimigo de outra favela ou a polícia.
Os entrevistados, quando indagados sobre o envolvimento dos jovens de um modo
geral com tráfico de drogas, se distanciaram de suas experiências pessoais. As explicações
utilizadas culpabilizavam os pais por não darem atenção a seus filhos, principalmente as
mães, vistas como as grandes responsáveis pelo cuidado dos filhos e por serem muitas vezes
as únicas responsáveis pela criação dos mesmos devido ao abandono do pai. As mães que se
envolvem com muitos homens são vistas como as que mais influenciam o envolvimento dos
filhos com o tráfico, pois deixam de se importar com estes para “dar mais valor as relações
amorosas”14
. Outro argumento utilizado foi a convivência com os traficantes nas ruas da
13 No período em que este jovem sofreu o castigo eu não estava realizando trabalhos na favela, mas quando da conversão
preferi o afastamento, pois meu irmão fazia parte do grupo de jovens que realizava este trabalho de evangelização na favela.
Acredito que esta atitude foi válida porque nesta pesquisa o que me interessa é a percepção desses jovens sobre suas
vivências. Se eu participasse deste processo poderia confundir o discurso dele com as minhas observações, o que implicaria
uma maior dificuldade de estranhamento de meu objeto, visto ser este um dos grandes problemas para a realização do
trabalho. 14 Aqui se confirma o papel social da mãe, baseado num modelo de família patriarcal, em que a esta é atribuída a função de
cuidar do lar e dos filhos (LIMA, 2007; LIMA, 2009; LIMA; SOUZA, 2009).
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favela no dia-a-dia, que gera encantamentos relacionados à possibilidade de adquirirem bens
materiais com o dinheiro recebido através do tráfico e que se inicia através de pequenos
favores prestados aos traficantes. Por outro lado, alguns relatos reproduziram um discurso que
atribui o envolvimento de jovens da favela com o tráfico a fatores considerados externos a
“atividade”, como o preconceito relacionado a sua cor e local de moradia15
. Entretanto, o
envolvimento de todos esses jovens se deu por motivos que não estão relacionados aos que
eles relataram anteriormente. As razões envolvem, em sua maioria, a revolta pela morte de
algum parente ou a proximidade e amizade com outros traficantes.
Observamos, ao longo dos anos de realização de pesquisas nesta favela, uma crescente
participação de integrantes cada vez mais jovens na estrutura do tráfico, devido às constantes
mudanças na escala de poder, influenciadas pela prisão de outros traficantes do local,
principalmente aqueles que possuíam cargos de chefia. Isso fez com que homens cada vez
mais jovens assumissem cargos e funções no tráfico de drogas da favela.
Os jovens expressaram arrependimento e vontade de sair desta “atividade” e da
consequente rede de relacionamentos. Um deles relatou que todos “querem uma vida melhor,
que ninguém quer ficar virando noite e dia, ficar vigiando, andar vigiando na rua”.
Entretanto, a vontade de sair não possui uma referência efetiva, muitos deles possuem
parentes envolvidos com a “atividade do tráfico” que nunca conseguiram sair, o que
corresponde a uma interrupção da relação com o universo que envolve as drogas ilegais, em
comum acordo com o desligamento do grupo ou do ambiente associado a esta prática
(CECCHETTO, 2004).
O jovem que assumiu a função de “gerente do branco” disse que largou a primeira vez
a “atividade” porque presenciou um fato em sua casa que o fez pensar se compensaria
participar do tráfico. O tio de sua mulher chegou a casa dele e subiu no telhado para pegar
“uma coisa” (droga). Quando estava subindo, caiu uma fagulha do cigarro de maconha no
colchão onde estava seu filho. Quando este viu o colchão queimado começou a imitar tiros no
local. Naquele momento ele percebeu que seu filho já estava sabendo coisa demais sobre
drogas e tráfico e ele não deveria continuar. Mas devido à prisão de muitas pessoas de
confiança na favela, ele teve que voltar a trabalhar no tráfico.
Os círculos de relacionamentos dos jovens entrevistados resumem-se à família,
entendendo esta como as pessoas do mesmo sangue em quem se pode confiar (SARTI, 1996)
15 Alba Zaluar (1985), em estudo realizado na favela Cidade de Deus no Rio de Janeiro, identificou na fala dos jovens que a
grande maioria atribui ao preconceito e a imagem negativa dos moradores de locais considerados antros de marginais e
bandidos os fatores que mais criam obstáculos à obtenção de um emprego formal e que influenciam a inclinação para o
crime.
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
175
e os amigos. De acordo com estudos realizados por Feital (1999), a família nuclear, composta
pelo pai, a mãe e os filhos, não é mais a base fundamental para o desenvolvimento dos jovens,
pois a própria construção da família tem sido bem diversificada. Isto não implica uma
inferiorização do poder de influência da família, nem de sua importância na vida dos jovens,
pois esta se define em torno de um eixo moral e de uma rede de obrigações que se estabelece
com os indivíduos considerados como pertencentes à família. Conforme já observado em
pesquisa anterior (SOUZA, 2007), a família não significa para esses jovens morar com os pais
biológicos e sim estabelecer relações que envolvem carinho e atenção, e ultrapassam as
restrições em relação às atividades as quais estão envolvidos, que pode vir da relação com
outros familiares ou responsáveis e não somente dos pais.
O contato com os outros parentes é raro entre os jovens. Isso ocorre porque muitos não
aceitam a realidade vivida por eles e não querem contato com traficantes de drogas. O que
limita este contato é também o território onde estes jovens podem circular. Alguns possuem
parentes em outros bairros, mas por este motivo, não o visitam.
Eu vou falar para você, alguns têm muito preconceito comigo, por eu ter escolhido viver dentro
de uma comunidade carente. Hoje em dia minha família até aceita eu viver aqui dentro, mas eu
não tenho visita de parente.
(...) Ai na outra rua tinha esse primo. Eu fui na casa dele quarta feira passada. Ele ta casado. Ai
eu tava lá conversando com ele porque ele trabalha, conseguiu se estruturar na vida,
trabalhando, essas coisas. Ai ele tava conversando comigo para me ajudar. Até ele tá me dando
muita força pra mim poder eu arrumar um serviço. Tava conversando com ele para ele me
ajudar. Quando nós descemos do apartamento dele, que nós chegamos no portão que eu falei
com ele que ia vir pra cá, ele foi e me perguntou: Você mora lá dentro mesmo negão? Você
mora lá dentro mesmo? Eu falei: moro. É porque falaram para mim que você mora fora. Ai eu
falei não cara, eu moro lá.
Entrevistadora: E aqui em Campos, tem parente em outro lugar? Entrevistado: Na Codim.
Entrevistadora: E você vai lá? Entrevistado: Não. Aquele povo de lá, eu não gosto daquele
povo de lá. Entrevistadora: Por quê? Entrevistado: Porque eu não gosto pô. São inimigos.
A relação conflituosa com o pai ou a ausência deste parece implicar a falta de
referência daquele que deveria ser o “dono da casa”, o provedor do lar. Um deles não sabe
quem é seu pai, e quando questionado sobre o fato, disse somente que não o conhece e nem
faz ideia de quem seja, e que sua mãe nunca conversou sobre isso com ele. Outro jovem teve
o pai assassinado quando tinha seis anos de idade e só se lembra de alguns momentos em que
o pai brincava dentro de casa com ele. Outro ainda só tem lembranças de um pai que não era
presente em casa e quando se separou de sua mãe não manteve uma relação muito próxima,
apesar de visitá-lo esporadicamente. Neste sentido, a representação do papel de pai como
provedor do lar, símbolo de poder e exemplo de masculinidade, e o não cumprimento deste
papel pelos pais destes jovens faz com que o assunto incomode a todos. As respostas foram
dadas em tom de revolta e raiva, com alteração do volume da voz.
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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Dois jovens entrevistados já têm filhos e estão morando com as mães destes,
constituindo o que eles chamam de “minha família”, em que ele deve ser o provedor. Um
deles mora com a esposa e o filho em uma casa. O outro mora com outros familiares na
mesma casa em que está com a esposa e o filho. Todos os dois têm filhos homens, o que
contribui para o desejo de constituição de um modelo de pai que seja exemplo para estes
futuros homens. Além disso, receiam não poder criar os filhos pelo iminente perigo de
morrerem e não vê-los crescer.
Eu considero, na minha visão, uma relação muito boa, mas eu acho que eu posso melhorar
ainda muito mais como pai. Eu sempre pensei assim, eu quero ser um pai como eu não tive.
Entrevistadora: Você tem medo de alguma coisa? Entrevistado: De amanhã ou depois não
conseguir criar meu filho. Entrevistadora: Você acha que não poderia criar ele por quê?
Entrevistado: Sei lá, ocasiões da vida. Sei lá, acidente, morte morrida.
Relacionado à criação dos filhos está o desejo destes jovens pais de sair da favela para
que os mesmos não sejam influenciados pelo local de moradia e o contato com os traficantes,
muitos familiares próximos.
A referência às mulheres, chamadas de “minas”, sejam elas namoradas ou esposas, é
marcada pela frieza e desconfiança. Isto porque relataram que a maior parte das brigas na
favela ocorre por causa de mulher, de traições motivadas pelo descaso das mesmas com os
seus parceiros. Neste sentido, tomam extremo cuidado para não se envolverem com mulheres
comprometidas, principalmente com bandidos, e não confiam naquelas com as quais possuem
compromisso. Disseram que muitas delas se envolvem com outros homens porque sabem que
seus companheiros a traem, principalmente os traficantes que, devido ao poder que possuem,
atraem diversas mulheres, inclusive “patricinhas”16
. Um deles relatou que quando chegou à
favela foi avisado que qualquer envolvimento com mulher comprometida o levaria a morte.
Isto fez com que ele se afastasse das mulheres da favela, vindo a ter uma relação com a atual
esposa muito tempo depois. Além disso, as mulheres são atribuídas os papéis de
“inconsequentes” e “abusadas”, que querem levar o homem para o “buraco” porque não
pensam nas consequências de seus atos, além de quererem se envolver com traficantes pelo
poder que possuem e representam, além de serem desqualificadas como feias, através de uma
expressão local muito utilizada para descrever esta característica: “cabeça de chuteira”.
As relações mais íntimas estabelecidas pelos jovens são com os amigos considerados
“parceiros”. Todos relataram que seus melhores amigos estão na Baleeira e apenas um disse
que chegou a ter amigos fora da favela, mas que estes o abandonaram quando ele entrou para
o tráfico. 16 Mulheres jovens de classe média alta.
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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Ao falarem da amizade com traficantes mais velhos acionam um repertório de
sistemas de valores relacionados à masculinidade e virilidade, sendo estes considerados “os
fodões”, “os caras”, “os homens de respeito”. Consideraram que “eles não têm medo de
nada”, apesar de estarem repensando a “vida” e não matarem mais por qualquer coisa, sendo
referência de “homem inteligentes”. Criados sem pai, os jovens acabam por adotar os amigos
de rua, principalmente estes homens mais velhos, como tal, exemplificado: “Ele é meu
amigão, é como um pai pra mim”. A amizade com jovens moradores está associada ao
sentimento de pertença ao território e a formas de relações estabelecidas.
Os jovens positivam o seu território como forma de suavização de constrangimentos
sociais e das limitações à circulação na cidade. Para os entrevistados, morar nesta favela “é
tudo de bom”17
, pois é nela que eles têm a liberdade de fazer as coisas que consideram de
jovens, como soltar pipa, colocar galo para brigar18
e jogar bola, apesar da qualidade dos
serviços e dos equipamentos públicos a eles oferecidos serem consideradas muito ruins.
Além disso, consideram que as relações interpessoais estabelecidas no local têm um
caráter intersticial na manutenção de um ambiente familiar baseado na lealdade e confiança,
ainda que submetida as regras do tráfico: “Aqui tem família, os parceros, todo mundo mano.
Gosto de tudo aqui. Tipo, geral me conhece.”. É também neste lugar que eles se sentem mais
protegidos de perigos que podem vir do “alemão” ou de outros moradores da cidade, que
manifestam preconceitos em relação aos moradores de favela.
Na escola, os jovens não estabelecem relação de proximidade com os outros jovens
que não conhecem, conforme relatado por um deles: “Lá ninguém sabe onde eu moro, o que
eu faço, só os parcero da minha sala que moram aqui.” Neste espaço, as relações são
estabelecidas com as pessoas já conhecidas e mantém-se a discrição quanto ao envolvimento
com o tráfico, por mais que nas escolas do local os alunos sejam, em sua maioria, moradores
dos bairros próximos e mesmo das favelas. Outro fato é a pouca frequência às aulas. Os que
estudam disseram que frequentemente vão à escola, mas não assistem às aulas ficando pelo
pátio da escola “de olho nas meninas ou conversando com os amigos”, pois consideram as
aulas “chatas”.
17 Explorando as realidades, complexidades e dificuldades dos jovens do sexo masculino de baixa renda no Brasil, Barker
(2008) demonstrou como, diante das complexidades da vida destes jovens, a favela representa o lugar por excelência de
socialização, produção cultural, esportiva e de convívio com outros jovens. 18 Esta prática, também denominada de “rinha de galo”, é uma atividade ilícita, proibida no país desde 1934, que consiste na
promoção de lutas entre dois galos em um espaço físico delimitado (DIAS, 2004). Em alguns locais são feitas apostas em
dinheiro, mas nesta favela os jovens praticam esta atividade somente como forma de diversão. Muitos criam galinhas e galos
em suas residências ou na casa de parentes e a posse de um galo “bom de briga” representa um determinado poder entre os
pares que realizam a mesma atividade.
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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Os jovens traficantes orientam as suas práticas de sociabilidades cotidianas pelas ações
do tráfico em lugares da cidade. Os entrevistados falaram das configurações dos bandos de
traficantes que percorrem e demarcam determinadas localidades. Trata-se das dinâmicas
sociais, que envolvem relações familiares, profissionais, de consumo e presença no espaço
público, que são fundamentais no estabelecimento de uma classificação para os locais da
cidade.
As favelas Baleeira e Tira Gosto são consideradas as que desenvolvem a “atividade do
tráfico” de drogas de forma mais intensa, pois exercem o domínio e distribuição dos produtos
para diversas favelas e concentram grande parte das ocorrências de apreensão de drogas da
cidade. Neste sentido, estas duas favelas disputam a venda de drogas e domínio da cidade,
dividindo-a em dois territórios principais, lado A e Lado B, este pertencente à favela Baleeira
e aquele pertencente à favela Tira Gosto. As brigas entre os traficantes se iniciaram sob a
orientação de compensação pela morte do chefe, recuperação do corpo e domínio da
preferência dos consumidores da cidade, que se estende até os dias atuais, sem êxito na
recuperação do corpo.
A partir dessa divisão (lado A X lado B), marcada pelo canal Campos-Macaé,
conhecido como beira-valão, que corta a cidade de Campos, os jovens disseram que diversos
moradores das favelas, principalmente aqueles envolvidos com o tráfico de drogas, são
impedidos de circular no território “inimigo”. Entretanto, encontramos nestes territórios dois
lugares de intensas relações sociais: o centro da cidade, sob domínio do lado A, e a Fundação
Rural de Campos, espaço de realização da maior parte das grandes festas e shows da cidade,
destinados principalmente aos jovens, pertencente ao lado B.
Cabe destacar que os jovens não atribuem a sua condição de traficantes como
acentuação negativa da sua condição de favelado, isto ocorre por considerarem que esta se
restringe a sua conduta na favela e não a outros lugares da cidade. Por temerem confrontos
com os traficantes de outras favelas, os jovens afirmam restringir-se no seu cotidiano á favela.
Para “brincar” de bola, de pipa, de “baleba”19
, frequentam, além das ruas da favela, as
quadras das favelas próximas, em companhia de outros jovens, principalmente aqueles
traficantes como eles, com quem estabelecem relações mais próximas. A relação com os
outros jovens da favela que não fazem parte do tráfico também ocorre e, segundo relato dos
jovens, “se dá de forma normal”, no sentido de não ser diferente das relações com os que
traficam. Além disso, os jovens frequentam, na maioria das vezes sozinhos, algumas lan
houses do bairro para jogar nos computadores. Para shows vão à Pecuária, Usina do
19 Também conhecida como bola de gude.
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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Queimado e Folha Seca. Participam dos bailes funk que acontecem na Baleeira ou nas favelas
vizinhas. Somente um dos jovens disse não gostar de ir a shows devido ao seu próprio jeito de
ser e não ao envolvimento com o tráfico.
Entrevistadora: Quando você sai, quer se divertir, quais lugares você frequenta? Entrevistado:
Pecuária, Usina e Folha Seca. Entrevistadora: Porque esses lugares? Entrevistado: Porque são
perto de onde eu moro. Entrevistadora: Porque não frequenta lugares mais longe? Porque não
gosto. Entrevistadora: Não gosta? Entrevistado: Dá problema. Entrevistadora: Com quem?
Entrevistado: Com o alemão.
De acordo com estes jovens, a provável presença do tráfico em determinados
territórios dificulta a aquisição e permanência nos empregos20. Alguns relataram que só
imaginam conseguir um trabalho fora da cidade, em um lugar que ninguém os conheça.
Diante disto observamos que a forma de organização e atuação dos bandos de traficantes aos
quais os jovens entrevistados estão vinculados ultrapassa os limites geográficos da favela.
A cidade se expressa através dos efeitos que um território pode promover nos
indivíduos, observável através do estilo de vida adquirido a partir da vivência em um
determinado território (SIMMEL, 1979). Para os jovens entrevistados, a rivalidade entre os
traficantes localizados em favelas de Campos do Goytacazes impede a circulação pela cidade.
Os jovens expressam o sentimento quando relataram a circulam por territórios da cidade fora
do domínio da favela Baleeira.
Considerando que a extensão da cidade ultrapassa seus limites imediatos (SIMMEL,
1979) e se expressa através dos efeitos totais que um território pode promover nos
indivíduos, “coisas e poderes” podem promover a diferenciação entre os indivíduos e limitar
o acesso a determinados espaços. Em Campos esta rivalidade inibe a livre circulação dos
jovens envolvidos com o tráfico pela cidade, devido ao medo de serem pegos pelo inimigo,
mas perpassa também as relações estabelecidas no próprio território de domínio.
2. Considerações finais
Pensar as práticas dos sujeitos das favelas a partir de diferentes categorias, observando
suas possibilidades materiais e anseios, abandonando o preconceito e a generalização, faz-se
pertinente para toda pesquisa desenvolvida sobre a cidade. Este trabalho, ao focalizar os
jovens em ato, ou seja, em suas atividades práticas de venda de drogas numa favela da cidade
20 De acordo com as percepções de alguns jovens que moram no local, mas não “trabalham” para o tráfico, ser morador de
favela “atrapalha” a obtenção de empregos na cidade. Por este motivo, disseram ter que tentar a todo instante se diferenciar
do estereótipo de “favelado”, mesmo que o endereço revele o vínculo com o local e atrapalhe a aquisição da vaga. Alguns
relataram que preferem os empregos próximos à favela, pois os empregadores já sabem quem eles são, e aceitam contratá-los,
o que muitas vezes está associado a salários mais baixos devido a esta condição. Para os jovens, os donos dos
estabelecimentos imaginam que “empregar um favelado quer dizer que ele vai gastar menos dinheiro com o pagamento,
apesar de poder ter mais problemas porque desconfia a todo tempo que vai ser roubado”.
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
180
de Campos dos Goytacazes, torna-se de extrema relevância para a compreensão das
especificidades das vivências destes jovens e suas opções de sociabilidade diante das
condições locais as quais estão expostos.
Para os jovens entrevistados, o tráfico apresenta-se como uma importante rede de
sociabilidade, além de trazer outros benefícios como o dinheiro imediato e a possibilidade de
consumo de alguns bens antes inacessíveis. Mais do que isso, ao assumirem importantes
papéis na escala do tráfico, expresso principalmente através da autorização de uso de arma de
fogo no momento de trabalho na “boca”, fato impensável para outros moradores da favela,
estes jovens adquirem reconhecimento e prestígio, ainda que somente no território sob
domínio de seu grupo. Essas atividades permitem estar no mundo e, mais do que isso, existir.
As entrevistas e conversas com os jovens traficantes de drogas da favela Baleeira
evidenciaram ainda as limitações quanto ao uso dos diferentes espaços públicos que
conformam o cenário citadino por parte destes jovens, que limitam sua participação e domínio
a territórios mais restritos, sob domínio da favela da qual fazem parte (SIERRA, 2004).
Este trabalho expressa, para além dos objetivos aos quais ele se destina, um árduo
trabalho de estranhamento de um campo multidimensional. O discurso presente no senso
comum considerava como impossível a realização de tal trabalho por mulheres devido à maior
possibilidade de sofrer qualquer tipo de violência por ser mais “frágil” ou por me tornar
“objeto de desejo” dos jovens. Entretanto, ser homem poderia implicar em outras limitações
que não vivenciamos. O que objetivamos demonstrar é que, mesmo na condição de mulher e
todas as limitações derivadas disto, o trabalho pôde se realizar. Neste sentido, faz-se
pertinente a continuidade de estudos sobre a temática para o aprofundamento dos estudos
sobre criminalidade e formas de sociabilidade na cidade, enquanto questões sócio-
antropológicas de extrema relevância.
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183
Las moralidades de la vulnerabilidad adolescente en Montevideo*
Ricardo Fraiman**; Marcelo Rossal***
Resumen: El siguiente artículo presenta algunas trayectorias de adolescentes producto de una investigación
etnográfica realizada en la zona céntrica de la ciudad de Montevideo1 y en Hogares y Centros de Rehabilitación
del Instituto del Niño y el Adolescente del Uruguay (INAU), lugar de los “hijos del Estado” (Morás, 2012).
Palavras-clave: Adolescentes y jóvenes, Centros de Rehabilitación, violencia, Montevideo.
Abstract: This article presents some trajectories of adolescents and youngsters; in the same way is a product of
ethnographic research conducted in the downtown area of Montevideo city and in Homes and Rehabilitation
Centers Institute for Children and Adolescents of Uruguay (INAU), places for the "sons of the State "(Morás,
2012).
Key words: Adolescents and youth rehabilitation centers, violence, Montevideo.
Introducion
En estas trayectorias pueden apreciarse distintas formas del continuo de violencia
(Bourgois, 2009, 2010; Bourgois y Scheper-Hughes, 2004) que lleva de la violencia
estructural a una violencia interpersonal más o menos cotidiana. Asimismo, se examinan
moralidades distintas (Vianna, 2010) en relación a la familia, la niñez, la adolescencia y la
juventud que se ponen en juego desde los distintos dispositivos estatales y paraestatales
(policía, campo de la protección de niñas/os y adolescentes, poder judicial y campo
educativo), así como desde las propias concepciones de los adolescentes y jóvenes que
entrevistamos en el transcurso de nuestra etnografía.2 En tal sentido, aparecen en el texto
entrevistas a -además de los adolescentes y jóvenes que sobreviven en la calle- educadores del
Instituto del Niño y el Adolescente del Uruguay (INAU), policías y funcionarios de
Organizaciones No Gubernamentales.
1. Continuos de violencia y lugares de transición: la familia, el hogar, la calle
El continuo de trayectorias que implican calle, hogares para adolescentes infractores y,
luego de los 18 años, cárcel señala un círculo vicioso que parece muy difícil quebrar. Las
* Artigo recebido em Fevereiro de 2013 e aceite em Março de 2013.
** Facultad de Ciencias Económicas, Universidad de Buenos Aires, [email protected]
*** Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación, Universidad de la República, [email protected]
1 De esta etnografía se publicó el libro De calles, trancas y botones. Una etnografía sobre violencia, solidaridad y pobreza
urbana y se presentaron resultados en la IX Reunión de Antropología del MERCOSUR, Grupo de Trabalho 40: Fronteiras
entre o legal/ilegal: mercados informais, dinâmicas criminais e dispositivos de controle, con la comunicación: “La
‘infracción’ y la informalidad: estrategias de sobrevivencia de jóvenes en el espacio público”, UFPR, Curitiba. 2 Lejos de encontrar en el terreno una homogeneidad en cuanto a las concepciones morales sobre la relación entre las
generaciones y sobre los dones que deben padres a hijos y viceversa, entre los adolescentes y jóvenes sobreviviendo en la
calle hay distintas concepciones que son producto de trayectorias distintas, aunque siempre signadas por distintas formas de
precariedad muchas veces asociadas: abandono familiar, violencia doméstica, adicciones, situación postcarcelaria, problemas
de violencia en la localidad de origen.
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
184
condiciones de los lugares de transición3, como el Centro de Derivación del INAU
4, adonde
van los gurises cuando quieren salir de la calle, serían inadecuadas y violentas; al igual que
los refugios para personas mayores, también lugares de transición, son señalados como
violentos y peligrosos por los propios jóvenes que viven en la calle.
Un educador del INAU sostiene la misma idea:
“Centro de Estudios y Derivación, que debería ser un lugar ameno, tiene rejas y hay
educadores conocidos míos que trabajan ahí que han hecho denuncias sobre cosas que pasan
ahí adentro; no es un lugar digno donde un gurí que diga ‘no quiero estar en la calle’ quiera
estar ahí; es un lugar muy violento”.
El otro lugar de transición que identificamos es el refugio para adultos “sin techo”.
Estos dos lugares son paradójicos espacios de ciudadanía, pues hay ciudadanos reclamando su
derecho a la vivienda: en la calle Fernández Crespo dos adolescentes vivían frente al Centro
de Estudios y Derivación del INAU; allí pedían agua, comida y reclamaban entrar. Frente al
Centro de Derivación de Refugios también hay, en este caso mayores de edad casi todos ellos,
ciudadanos que pretenden ser asistidos en sus derechos. En ambos casos, los uruguayos más
vulnerables –también señalados como los más peligrosos (Fraiman y Rossal, 2009) – quedan
afuera, lo que aumenta la violencia de su situación.
Hacia las 16.30 llegamos al Centro de Diagnóstico de INAU, y aunque en la página web del
MIDES se lee que está abierto hasta las 18 horas, la puerta está cerrada; el funcionario,
amablemente, nos señala que el director llega sobre el mediodía y que es con él con quien debemos
hablar.
Doblamos la esquina, hay varios edificios de INAU en la manzana. El mejor, el más cuidado e
importante, donde aún puede leerse Casa del Niño, está hoy destinado a oficinas administrativas y
contables de la institución. Avanzando por la cuadra, una vieja casa deteriorada –donde podemos
“encontrar técnicos”, según nos dijo una funcionaria administrativa– está destinada a la atención de
niños y adolescentes. Su puerta verde es especialmente inapropiada5: sucia, con golpes y rayones, no
produce el sentido del marmóreo templo del niño que hoy es oficina administrativa. Allí ingresarán,
3 Estos lugares de transición juegan un papel fundamental en la consolidación de un estigma o, por el contrario, podrían ser
verdaderos espacios de desarrollo de la ciudadanía. Cuando logran jugar ese papel son recordados con agradecimiento por sus
beneficiarios, lo cual demuestra que son excepcionales en tanto que espacios de ciudadanía, de consolidación de derechos. El
calabozo de una comisaría, la antesala de un refugio, el propio refugio en el que se pasa una noche o una temporada; todos
ellos son lugares de transición que deberían ser tratados por los dispositivos estatales con un cuidado especial, puesto que si
sirven a la consolidación de un estigma servirán a la reproducción de la violencia que se querría contrarrestar. 4 “El Centro de Estudio y Derivación (CED) del Instituto del Niño y el adolescente del Uruguay (INAU) brinda atención
psicológica y social a niños, niñas y familias. Cumple con la función fundamental del estudio y la derivación de casos
derivados desde otras instituciones públicas o privadas, hacia los recursos disponibles en convenio con INAU, para la
atención, prevención o protección planteadas por cada situación. protección planteadas por cada situación. la atención,
prevención o protección planteadas por cada situación. con INAU, para la atención, prevención o protección planteadas por
cada situación. “ (Fuente: Ministerio de Desarrollo Social, http://www.mides.gub.uy/mides/text.jsp?contentid=4344&site=1&channel=blog) 5 Entendemos que los espacios de transición no deben ser sórdidos; la puerta de acceso y la antesala no deben significar
suciedad y desidia sino cuidado y respeto. Las puertas significan: Per me si va ne la città dolente,/ per me si va ne l’etterno
dolore…
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en tanto que espacio de transición, los niños y adolescentes que las autoridades pertinentes
dispongan.
Hay un patrullero de la Seccional 8ª en la puerta, en el móvil policial se encuentran dos
chicas adolescentes (de unos 16 o 17 años) y el chofer; el otro agente está por ingresar en la vieja
casa deteriorada de puerta verde. La puerta se abre de improviso, un funcionario con gesto amable y
cómplice y una funcionaria un poco menos tranquila expulsan a un adolescente de unos 16 o 17 años
a la calle. El adolescente se topa con el policía al salir, con quien no es amable: “la concha de tu
madre”, le espeta, luego cruza raudamente la calle y se dirige hacia la explanada de La Trastienda.
Cruzamos la calle con discreción pero lo perdemos de vista; sin embargo, lo que vemos allí también
nos llama la atención: dos adolescentes de no más de 17 años duermen en la vereda, sobre viejas
colchonetas. Los adolescentes, impertérritos, son como un mudo reclamo de atención ante la
institución que debería ampararlos. Decidimos dar la vuelta a la manzana; hay muchos niños y
jóvenes que no sabemos si viven en la calle, si trabajan o simplemente son adolescentes pobres de
paseo por una zona deprimida del área central de Montevideo. Los estacionamientos de Salud
Pública, los quioscos, el antiguo control de ómnibus interdepartamentales, la Escuela de
Construcción de UTU, la zona comercial de Fernández Crespo, los muchos vendedores ambulantes
(algunos adolescentes); toda la zona se encuentra permanentemente agitada y la presencia de
adolescentes que bien podrían provenir del INAU obliga a afinar la mirada en grado sumo. La
presencia interpelante de los gurises durmiendo en la vereda se cruza con los muchos niños,
adolescentes y jóvenes que andan por la zona y parecen sólo un poco menos desamparados (todo
joven que podría para algunos parecer “peligroso” permite otear, de inmediato, vulnerabilidad, al
menos en cuanto a lo que el estigma refiere: el estigma es un factor de peso en su vulnerabilidad).
Vuelta manzana larga, demorada en casi 20 minutos. Al volver preguntamos en la casa de puerta
verde si está un conocido nuestro, técnico de la institución. No sabemos a ciencia cierta si trabaja
allí, pero el acercamiento parece relevante para entender buena parte de la dinámica que
observamos. Un hombre de unos cuarenta años en la puerta, amable pero con actitud de estar
cuidándola, dialoga con un gurí de unos 16, uno de los dos adolescentes que dormían enfrente una
hora antes. Está pidiendo un vaso de agua (eso que no se le niega a nadie). Preguntamos por nuestro
conocido (funcionario técnico de INAU) y el chico, antes que el propio funcionario, responde: “el
pelado”. “Sí, es pelado”, contestamos. El muchacho avisa a la funcionaria que viene con el vaso de
agua: “Vienen a buscar al pelado”. La funcionaria le da el vaso de agua y ordena que se vaya. El
chico acata, con cierto gesto de resistencia. Preguntamos al funcionario de la puerta sobre los
chiquilines que viven enfrente: “Son medio bravos”, advierte, sin agregar más palabras.
En la breve estadía en la puerta verde confirmamos el reclamo que portan esos muchachos
durmiendo en la vereda: “agua, pan, afecto, pertenencia”, eso parece pedir el chico de gorrito y
remera roja al intervenir en nuestra conversación con el funcionario de INAU y demostrar
conocimiento de los técnicos que allí trabajan.
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Los que están afuera parecen querer entrar, mientras que una chica que está adentro se
aproxima a la puerta y el hombre de la seguridad la toma del brazo con firmeza y la empuja hacia
adentro.
—¿Es bravo? —preguntamos devolviéndole sus actos.
— Es siempre así — contesta.
Una cotidianidad tal vez propia de la adolescencia: si estoy adentro quiero salir y si estoy
afuera quiero entrar. Pero a las dinámicas propias de la adolescencia se suma que el afuera es la
vulnerabilidad total y el adentro es el encierro. La trama que totaliza o desarma parece ser
dominante. No hay opciones intermedias, al menos en ese hogar: estar en el Centro, tener en la calle
un espacio donde obtener el sustento y también el afecto (todo ello, suponemos, con suerte dudosa),
pero sobre todo la libertad; o estar dentro del “Centro” y no poder salir a pasear por la vereda,
encontrarse con pares, coquetear, construir relaciones libres o, al menos, realizadas en la ilusión de
la libertad. Mientras tanto, el patrullero sigue en la puerta. El policía, finalmente, baja a las dos
chicas, que entran al “Centro” para no salir. Los dos funcionarios policiales se van en la camioneta.
Al irnos, el joven de camiseta roja sigue recostado en la pared del comercio que linda con La
Trastienda; su reclamo, a quién le cabe duda, es urgente, pero, asordinado por la cotidianidad,
seguirá sin ser atendido.
Situaciones de elusión6 institucional, como las descriptas, forman parte de las
mediaciones necesarias para construir trayectorias delictivas. En los márgenes del Estado (o
en el centro de sus dispositivos represivos), en esos lugares de transición, en las posibilidades
que ellos ofrecen, parece jugarse la suerte de cientos de niños, adolescentes y jóvenes
uruguayos.
La tardanza de la burocracia judicial, las oportunidades de reclutamiento espurio que
ofrece la saturación de los Hogares del INAU (permitiendo elegir entre aquellos gurises que
no son de la “Berro” ni de “calle”), las complementariedades para una mínima subsistencia
que se obtienen orillando distintos Centros de Atención que proveen los dispositivos estatales
(a veces un plato de comida, un vaso de agua, un baño, o, mucho menos, una cama bajo
techo), la atención estatal en emergencias o situaciones límites (sea policial, judicial, o de
soluciones prácticas por funcionarios de INAU, MIDES o alguna ONG), las condiciones de
algunos hogares (incluso el mero etiquetamiento: “hogar de líos”); todo ello confluye para
producir las violencias institucionales necesarias para transformar la violencia estructural en
violencia delictiva.
Toda esa violencia estructural es consolidada en el marco de dispositivos estatales, en
los lugares de transición que produce, a veces incluso explícitamente, para “luchar contra” la 6La palabra clave no parece ser la exclusión sino la elusión. Adherimos a la crítica del concepto de exclusión social que hace
Castel (2004).
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violencia delictiva. Son, de esta forma, muchas las violencias institucionales que sirven para
consolidar la violencia estructural que será verificada como violencia física, interpersonal,
delictiva (sea doméstica o para obtener recursos mediante rapiñas), la que, a su vez, vendrá a
obliterar la violencia estructural mediante su hiperexposición.
Esto podría ejemplificarse en el caso de los championes7: los costosos calzados
deportivos del “delincuente” pobre vendrán a obliterar una vida entera a orillas de un arroyo
insalubre, con una casa que se inunda y con todas las dificultades cotidianas y prácticas que
encierra la pobreza extrema. Muchos creerán que esos costosos championes son producto del
“consumismo” del chiquilín. Sin embargo, diversos estudios (Douglas e Isherwood, 1979;
Miller, 1999) han demostrado que en el consumo se construyen identidades y que estas suelen
definirse en los años adolescentes y ser muy radicales en ese momento de la vida.
Uno de nuestros entrevistados robó para comprarse ropa pero también para ayudar a su
madre, como lo hacía cuando mendigaba o cuando vendía caramelos en los ómnibus.
2. Adolescentes trancados
Singulares espacios de transición son las “trancas”8 del INAU
9, espacios ambiguos en
los cuales se puede ver cabalmente la importancia de estas transiciones en las trayectorias
adolescentes. Veremos en las entrevistas el lugar que pueden llegar a ocupar en sus vidas.
Dispositivos de encierro dignos de los tiempos “tutelares” (Beloff, 2004) cuando los jueces
ejercían sus potestades en base a la “doctrina de la situación irregular”, en los cuales los
adolescentes sometidos a ellos tienen pocos derechos a ejercer. En ellos están sometidos a un
encierro severo producto de cometer infracciones gravísimas.
Se trata, en suma, de lugares de encierro en los cuales los derechos del niño y del
adolescente se encuentran con escasas posibilidades de ejercicio y donde se mantienen
prácticas propias de la antigua doctrina tutelar. Al mismo tiempo, son lugares necesariamente
transitorios en los cuales se tensionan moralidades y se configuran prácticas; y donde el
tiempo puede rendir mucho. Así, podrán ser lugares de consolidación de una “moralidad
carcelaria”, cuando impere la violencia entre pares o funcionarios o, en cambio, de
allegamiento a una moralidad basada en los derechos de los niños y los adolescentes, a cuyo
ejercicio podrán verse obligados producto de la irregular situación de encierro: “estar
7 Championes: calzado deportivo en Uruguay. Referimos al discurso mediático que explica los hechos delictivos de los
adolescentes en base a una “pérdida de valores producto del consumismo” basados en las declaraciones de adolescentes que
dicen robar para comprarse ropas y calzados deportivos caros. 8 Así nos designaron los adolescentes sometidos a medidas de seguridad a los Centros donde se encuentran detenidos:
“trancas”, estar “trancados”. 9 Todos nuestros entrevistados en centros de detención han tenido experiencias de calle.
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limpios”; “estudiar”, “jugar”, son algunos de estos derechos que nos mencionaron, siempre
positivamente, nuestros entrevistados.
También aparece la familia en las entrevistas con adolescentes trancados, menciones
ambiguas, familias añoradas, en las que desarrollaron sus afectos y en las que sufrieron sus
primeras y sostenidas violencias. Moralidades puestas en pugna en relación a las cuales no
todos los agentes estatales parecieran jugar en el mismo sentido.
Llegamos al Centro Desafío10
a las 13.45. El edificio es algo así como un viejo convento, pero
con alambrados y casetas policiales. Su aspecto exterior actual es el de una cárcel. Tiene dos
entradas, la principal da a la calle Chimborazo pero se encuentra cerrada. Vamos hacia el portón del
fondo y nos encontramos con dos policías que ya saben que venimos del ministerio. Rápidamente nos
cuentan sus desventuras cotidianas; el policía más veterano habla y el más joven se limita a acotar:
“Estas casetas son inadecuadas, ahora en verano te morís de calor… ¿nunca picaste11
en una de
estas? Además, si a alguno se le ocurre atentar contra nosotros, ahí dentro somos un blanco muy
fácil”, dice, y nos muestra una construcción elevada que contiene una caseta de plástico sobre una
plataforma de metal y techo también metálico. El alistado nos señala la necesidad de tener una
guardia de seguridad del propio INAU formada especialmente para tratar con los gurises… y repasa
sus credenciales al respecto: “Estuve en una comisión de derechos humanos en el PIT-CNT”. Ernesto
nos da su celular y pide que lo llamemos, que está dispuesto a colaborar con el ministerio con lo que
sea necesario. Terminan el turno a las 14 horas, Ernesto se va y nos deja con su compañero, que nos
acompaña hasta la entrada principal del Hogar.
Del otro lado de los muros del hogar hay dos chiquilinas de unos quince años, mal vestidas
pero en actitud provocativa, que nos dirigen miradas entre insinuantes y agresivas; se acercan al
portón por donde entramos y salen corriendo, luego van hacia el lugar donde estacionamos el auto,
sobre la puerta principal, e intercambian palabras a los gritos con los internos.
Ya adentro del lugar encontramos un funcionario, muy simpático, que trabaja junto con una
policía jovencita y bien arreglada. Ambos se dedican a sacar las galletitas que traen los familiares de
los internos de los envases para ponerlas en bolsas transparentes. No hay maltrato ni agresividad
hacia los familiares que están ahí (aunque la violencia simbólica es inevitable). Un policía del
GEPP12
, de unos 22 años, tiene una actitud muy adusta en la puerta; tan serio está que contrasta con
los comentarios, entre jocosos y serios, de los otros funcionarios (ahora también hay una mujer de
INAU, además de la policía jovencita). El funcionario más veterano se pone serio y reflexiona,
10 Centro de detención de adolescentes menores de quince años, perteneciente al SEMEJI del INAU. 11 Los policías, enterados de que venimos del Ministerio del Interior, enseguida suponen nuestra pertenencia a la Policía
Nacional. En Uruguay, policías y no policías siguen pensando en el Ministerio del Interior como un “ministerio de la
policía”; así también nos vieron educadores del INAU y otros actores de distintos dispositivos estatales. Picar es cumplir
funciones de vigilancia cubriendo un punto de facción; dicho punto puede ser una garita, una esquina de la ciudad o un
quiosco policial. Actividad no particularmente grata, suele ser considerada propia de “reclutas” (Moreira, Nardone, Rossal y
Vila, 2010). 12 Grupo Especial de Patrullaje Preventivo (GEPP).
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cuando se da cuenta de que venimos del Ministerio del Interior: “Está mal que luego de que pasaron
por el COMCAR13
vuelvan para nosotros [INAU]… si entraste en la Universidad no vas a retornar al
liceo”. Y nos explica: “Ocurre a veces que agarran a un chiquilín de 18 años fugado nuestro que se
manda una macana y va para el COMCAR, pero luego de que cumple en el COMCAR nos lo
devuelven para que pague acá lo que le faltó de INAU; eso no tiene sentido, además distorsiona
todo”.
Luego de unos diez minutos nos recibe la directora en su escritorio. Nos cuenta sus ideas y su
proyecto. Hace un mes y medio que está y tiene algunas ideas que contrastan fuertemente con la
actitud que hacia nosotros había en los proyectos Calle: “entrevisten a todos los que quieran”.
Rápidamente nos cuenta versiones bastante precisas acerca de los gurises con los que nos queremos
entrevistar. Cuando se los mencionamos habla de ellos con cariño evidente: Roni y Miguel. Le
contamos de nuestro interés por las formas de sobrevivir de niños y adolescentes en las calles
céntricas.
Nos cede su escritorio para entrevistar al primero, Miguel. Lo llama por su apellido y lo
califica como “muy bravo, se agarra todo lo que encuentra”. Le pide a una educadora que nos cuente
la historia que recogió en la casa del chiquilín cuando fue a visitar a su familia para evaluar su
egreso: “porque no les encontrás hogar luego a estos chicos y vuelven a vivir en la calle”. El otro,
Roni, es una incógnita para ella: “No tiene a nadie y cuando llegó quiso armar un motín y sus
compañeros se lo impidieron; también se armó con unos cortes y se los sacamos… pero no hay caso…
no sabemos nada de él ni de su familia”.
La educadora y la directora juntan todas las cosas que Miguel podría tomar o usar para
agredirnos o agredirse y ordena que luego de la entrevista lo requisen.
Al minuto viene con el chiquilín: medirá un metro cuarenta, la camiseta le queda grande al igual que
el short. Sus bracitos finitos están cortados. Da ganas de abrazarlo de sólo verlo. Se nota una
necesidad inmensa de afecto. Lo entrevistamos y habla de su vida, del Centro, de su familia.
E: —En el Centro, en las casas pedís comida y no te dan.
P: —¿En los hogares decís que pedís comida y no te dan?
E: —No, en el Centro.
P: —Ah, en las casas de los vecinos... ¿No hay gente que ayuda también?
E: —Unas sí y otras no. Una vuelta me dieron mil pesos.
P: —¿Y a qué edad empezaste a andar por el Centro?
E: —Doce.
P: —¿A los doce te fuiste de tu barrio, del Cerro, para el Centro, con algún hermano o algún familiar?
E: —No, yo solo…
P: —¿Y dónde vivías en el Centro?
E: —Me quedaba por ahí, me quedaba toda la noche.
P: —¿De la Ciudad Vieja al Centro, todo 18 de Julio....?
E: —No, era... de Diagnóstico14
. ¿Sabés dónde queda?
13 Se trata del Complejo Carcelario Santiago Vazquez, que hoy depende del Instituto Nacional de Rehabilitación. 14 Se refiere a la dependencia específica del INAU en la cual se establecen los estudios diagnósticos sobre los niños y
adolescentes, oficia también como “puerta de entrada” a la institución. En la calle Fernández Crespo tiene una suerte de
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P: —Sí, ahí en Fernández Crespo.
E: —Sí, hasta la Plaza del Entrevero, o me iba hasta la Ciudad Vieja.
P: —¿Y ahí cómo vivías, qué hacías para vivir?
E: —Fui a Diagnóstico… y entraba a los bares a comer.
P: —¿Te daban de comer en los bares?
E: —Sí.
P: —Tanta mala gente en el Centro no había...
E: —Hay mucha gente que roba en el Centro y eso.
P: —¿Gurises o gente grande?
E: —Gurises chicos, entran a los locales, a los súper y se llevan de todo... y roban a mujeres en el
Centro, la mochila…
P: —¿A vos te robaron algo alguna vez?
E: —Qué me van a robar si yo andaba robando, los daba vuelta al toque.
P: —Claro, vos sacabas cómo eran las cosas en el Centro... ¿Hiciste amigos?
E: —Unos cuantos, uno que se fue de acá hace dos días.
P: —Claro, amigos de verdad en los que podías confiar. ¿Te ayudaron?
E: —Estábamos todo el día juntos.
P: —¿Cómo se cuidan entre ustedes en la calle? ¿Es jodida la calle?
E: —Uno al otro, le viene a pegar uno a mi compañero y saltamos todos.
P: —¿A veces hay viejos que van de vivos, gente así?
E: —Viejos ratas, les hacemos pumba en la cara.
P: —Ah, mirá vos.
E: —Gringos, de todo.
P: —¿Gringos en la Ciudad Vieja?
E: —No, en la Plaza Cagancha.
P: —¿En la Plaza Cagancha también? ¿Qué tal los muchachos de la Plaza Cagancha? Porque yo tengo
algún amigo ahí.
E: —Hay mucha gente, a veces vas y ya no.
P: —¿Querés que le mandemos saludos a alguien?
E: —No.
P: —A un cuidacoches de ahí.
E: —No, con los cuidacoches…, ah, tengo uno en Tres Cruces.
P: —¿Allí en Tres Cruces? Ahí hay buenos pibes que la pelean todos los días también haciendo la
moneda y que trabajan, ¿no? ¿Fuman pasta?
E: —No, todos no, algunos no. ¡Ah! Si ve a uno que se llama Andrés, uno morochito, mándele saludos
del Curita, que me dicen así.
P: —¿Por qué te dicen Curita?
E: —Porque andaba vendiendo arriba de los bondis.
P: —Claro, ¿y en los bondis cómo es la cosa, te dejan los guardas?
E: —Algunos sí, otros no. Hay plata arriba de los bondis, yo me llevaba ocho o nueve mil pesos por
mes.
P: —¿Y dormías en la calle nomás, o en una pensión?
E: —No, dormía en la calle.
P: —¿Cómo te fue ahí en el Cerro? ¿Te quedaste en el Cerro? ¿Tenés familia ahí?
E: —Tengo amigos recontra importantes que venden porro, pasta.
P: —¿No están en una situación peligrosa, no es peligroso para ellos ese trabajo?
E: No, porque la hacen rica y venden en la casa, y la pasta y todo lo guardan abajo de una piedra15
.
P: —¿Y allá en el Cerro tenés a tu mamá, tu abuela, tu papá?
E: —Mi madre, mi abuela, mis tíos, y nadie más.
Hogar transitorio. En el entorno de “Diagnóstico” suele haber niños y adolescentes muy vulnerables que piden agua, comida
y techo en ocasiones. 15 El adolescente entiende la pregunta con un sentido más amplio que el que nosotros le dimos y su respuesta es sintética y
precisa: los vendedores de drogas amigos de él no están en peligro porque la “hacen rica”, es decir, no estafan a los
consumidores, lo cual los podría poner en riesgo, y tienen un buen escondite en el cual ocultar tanto la droga como el dinero
que les da como beneficio.
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P: —¿Hermanos no tenés?
E: —Dos, uno está en un Centro para dejar de fumar pasta, y mi hermana…
P: —¿Tu hermana es más chiquita que vos?.
E: —Siete.
P: —¿Tu hermano sí es mayor? ¿Y en qué Centro está él?
E: —No sé, yo qué sé.
P: —Así que tu hermano tuvo problemas con la pasta. ¿Qué onda con eso? ¿Estuvo muy embromado?
E: —Él estuvo un año y dejó.
P: —¿Ah, dejó, pudo dejar? Está mejor entonces…
E: —Ahora está en un Centro.
P: —¿Vos nunca tuviste problema con eso?
E: —Fumaba sólo porro.
P: —¿Tan chiquito? ¿Y quién te daba porro?
E: —Ah, eso no se dice.
P: —Ja ja ja. Ya sé que no se dice, nunca se dice. Pero... yo soy más grande, yo me acuerdo, no le
daban porro a alguien tan chico.
E: —Antes era otra cosa…
P: —¿Por Calle del INAU has tenido algún contacto con educadores?
E: —Sí, El Abrojo.
P: —¿Pero eso te gustaba o no? ¿Qué es lo que te parece que se podría hacer para que sea mejor esa
ayuda de ese programa, Calle? ¿Cómo está?
E: —Te llevan a bañar y todo, te dan ropa…
P: —¿Y vos por qué terminaste acá?
E: —Yo caí dos veces.
P: —¿La primera qué hiciste?
E: —Una rapiña de calle.
P: —¿Estabas armado con algo?
E: —No, tenía una sola [arma].
P: —¿Estabas vos solo?
E: —No, éramos cuatro.
P: —¿Cuatro gurises?
E: —Yo le lastimé la cabeza.
P: —El tipo se habrá pegado un susto.
E: —Era una cosa así… [abre sus pequeños brazos con una suerte de admiración]
P: —¿Un gordo?
A: —No, la 3.57 [refiere a un revólver de ese calibre de caño largo].
P: —El arma es un arma de este tamaño.
E: —Sí, más o menos, la 3.57 es… [y vuelve a abrir sus bracitos].
P: —¿Y de dónde salió esa arma?
E: —No se dice...16
P: —No, pero no te digo de quién, sino de dónde, de qué vuelta, no te estoy diciendo quién.
E: —La conseguí…
P: —¿Pero es fácil conseguir un arma hoy?
E: —Sí, si sabés dónde conseguirla, ¿no?
P: —¿Y es caro? ¿Cuánto vale por ejemplo una 3.57?
E: —Yo no pegué, le di plata a un pibe y me alquiló.
P: —Ah, te la alquiló. ¿Y cuánto vale alquilarla, ponele?
E: —Un palo, dos palos.
P: —¿Un palo sale? Ah, no es barato el alquiler, tenés que hacer un buen atraco para descontar ese
pago.
E: —Esa era una 3.57.
P: —¿Y cómo fue eso? A ver, entraron...
16 En otras circunstancias etnográficas nos han dicho que hay personas que les alquilan armas a quienes van a cometer una
rapiña, lo cual nos lo ratifica este púber de no más de 1,40 de estatura.
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E: —¿No me da un alfajor amigo? No, no te puedo dar, me dice. ¿Ah no?, entonces entré y se lo puse
así, quedate quietito y dame todo. Me dio diez palos, veinte cajas de cigarros Coronado y nada más,
me le llevé un par de alfajores que iba comiendo.
P: —¿Y a qué hora fue esto?
E: —A las dos de la mañana.
P: —Ah, tarde.
E: —Estaba justo contando la plata cuando entramos.
P: —Ya se estaba yendo el gordo. ¿Y cómo lo planearon? ¿Lo planearon días antes?
E: —Un día antes, fuimos a jugar al cyber.
P: —¿Y dijeron “a este gordo se la damos”?
E: —No, junamos. Tenía cámaras, me paré a ver si en la caja tenía algún fierro, algún chumbo, no
tenía ni una navaja, tenía solo una trincheta.
P: —Una trincheta y no tenía cámaras el cyber.
E: —Tenía cámaras.
P: —¿Cómo fueron a asaltar un negocio con cámaras?
E: —Ah, estábamos grabados, no le hace.
P: —Pero te agarran enseguida si quedás grabado, ¿o no?
E: —Pero el fierro fui enseguida y se lo di al pibe.
P: —Claro, se lo devolviste, ¿y ahí?
E: —La plata y los cigarros los guardamos abajo de una baldosa.
P: —¿Pero no pensaste en el peligro que puede tener para vos?
E: —No, ya había junado, yo primero lo juno17
.
P: —Ahora la plata la guardaron, nadie la usó todavía. ¿Los agarraron a todos?
E: —A todos.
P: —La cana es brava, ¿eh?
E: —Grupo GEO, la Segunda, la Tercera, bajaron los perros y nos apuntaron.
P: —¿Dónde los agarraron?
E: —En la Plaza Cagancha.
P: —¿Quién los reconoció? ¿El propio muchacho este?
E: —No sé, el loco que estaba.
P: —Deben haber visto las cámaras.
E: —Y sí.
P: —Miraron las cámaras, conocen a todos.
E: —Sí, además ya nos tenían junados.
Nos cuenta la rapiña exagerando e inventando sus circunstancias, no sabremos a ciencia
cierta si alguno usó el arma, aunque podríamos preguntarle a la víctima o a la policía. Pero las
circunstancias precisas no son lo relevante aquí, sino la moralidad que porta la descripción y las
fantasías aún infantiles del chiquilín. Como veremos, Miguel admitirá que no le gustaría arruinar una
familia y que no le tiraría al pecho a alguien. Queda claro, eso sí, que estos niños negocian con
adultos capaces de alquilarles armas y venderles drogas y que la protección integral a la infancia y la
adolescencia debería incluir la investigación y represión de estas actividades delictivas de efectos
muy dolorosos sobre los niños y adolescentes más vulnerables.
Terminamos la entrevista y el chico toca algunos objetos que hay en la oficina de la directora,
se los sacamos con amabilidad y le explicamos para qué servían. Este chiquilín que con sus poquitos
años ya ha cometido graves infracciones, ha tenido armas en la mano y ha trabajado arriba de los
ómnibus no deja de ser un niño curioso y activo que está en manos de los dispositivos estatales; en
17 Junar es una antigua palabra del lunfardo rioplatense y significa mirar atentamente, observar.
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buena medida, de ellos depende no seguir alimentando un estigma y no consolidar una trayectoria
delictiva.
Algunos chicos ya salieron al patio, donde hay una gran piscina y un ping pong, otros están
volviendo. Subimos con un educador pelilargo, con aspecto de caballero del Ochocientos; al sabernos
antropólogos nos comenta su admiración por Daniel Vidart18
. Ahí conocemos a otros chicos. Dos más
quieren ser entrevistados, cuando les decimos lo que estamos estudiando nos cuentan que ahí está
Ricardito. “¡El Chiquito!”, decimos a coro, y recordamos a aquella “mascotita” de la Plaza
Cagancha, aquel con el que Gerardo (un muchacho de la plaza) había dicho que estaba “quemado”
porque había hablado mal de los cuidacoches y lo había insultado, traicionando su lealtad y su
afecto, y haciéndole temer por su suerte entre los chorros.
Nos sorprende saber que el Chiquito está ahí. Quien nos lo menciona quiere ser entrevistado
y pasamos al acto de inmediato. Están en sus celdas arriba –llamarlas habitación sería un eufemismo
que traicionaría nuestro lenguaje y nuestro oficio etnográfico–. Lo mismo ocurre con el hogar, que es
una cárcel de púberes, un edificio lleno de “trancas”. Una “tranca”, como la llaman los gurises,
igualándola a la cárcel de mayores.
Entrevistamos al muchachito. Tiene un gesto que quiere ser firme. Su acné juvenil se mezcla
con una nariz de boxeador y una mirada siempre a los ojos. Intenta sostener un discurso coherente,
afirma que en el atraco en el que participó no llevaron armas, pero luego nos dice que está ahí por el
homicidio de un hombre que quería sacarle la casa a su familia. Su “casa” era un pedazo de piso en
el achique19
de Mercedes y Tristán Narvaja. Habría matado a un hombre para defender a su familia y
también sería capaz de matar a alguien que no “quiera dejarse robar”, según sostiene con impostada
convicción. Se esfuerza para que su carita coincida con sus dichos, pero no lo logra. Veamos aspectos
de su entrevista:
P: —¿Rapiñabas de caño?
E: —Con un revólver.
P: —¿Solo o acompañado?
E: —Solo.
P: —¿O con unos amigos?
E: —Con un amigo mío, Milton.
P: —¿Y en cuál te agarraron?
E: —Me agarraron, me metí pa adentro de un local y le metí el fierro en la frente y me llevé sesenta y
cinco palos20
. Me agarraron y a mi compañero no, ahora me contrataron un abogado y me va a sacar.
Cuando salga me van a dar plata, porque es mi compañero.
P: —Se portó bien contigo.
E: —Se portó mucho bien conmigo y yo me porté mucho bien con él. Pagó un abogado, ahora me voy
el mes que viene, eran seis meses y me bajaron a cuatro, por el abogado.
P: —¿Y él cómo está?
E: —Está bien.
18 Escritor y antropólogo uruguayo. 19 En este caso se trata de un edificio sin terminar usado como vivienda por decenas de familias y también lugar de refugio de
personas que han cometido delitos. 20 65000 pesos uruguayos, unos 3500 dólares americanos.
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P: —¿Está bien? ¿Él no estaba enganchado con la pasta?
E: —Está fumando pasta21
, consumía con él y todo, compartíamos todo.
P: —Ahora yo te pregunto una cosa, vos estuviste en un proyecto de Calle. Si te hubiésemos agarrado
hace unos meses, cuando tenías relación con ellos, ¿vos me estarías diciendo “yo no quiero fumar
más”?
E: —Le dije una vez, estuve un mes sin fumar, dejé y volví de vuelta. No, a mí no me gusta estar
encerrado, a nadie le gusta estar encerrado, con rejas.
P: —No, claro, a nadie, pero vos decís ahora que realmente querés cambiar y no tener que estar nunca
más en una situación así.
E: —Y sí, claro, no quiero volver más a la droga, porque volver es empezar de vuelta, robando para
consumir pasta, para dejarles la plata a los giles, a los de la boca22
. Porque vas a robar y lo vendés en
lo de la boca, y no ganás nada, ganás para consumirte todo, antes de vestirte, comer, alimentarte. No,
todo para la droga.
P: —Claro, se la lleva el vivo que la trae y que la pasa.
E: —Que la vende. Algún día lo van a agarrar, a la banda del Peto, la de Tristán Narvaja.
P: —Acá, claro, perdés siempre, porque todos nos conocemos, es muy chico, los botones conocen a
todo el mundo. Ahora, ¿qué precisás para salir de esto?
E: —Tu casa.
P: —Un lugar donde poder estudiar, volver, bañarte.
E: —Un lugar donde poder vivir. Acá se puede vivir, yo cuatro meses voy a hacer acá adentro, no
pensé estar encerrado.
P: —¿Estás mejor?
E: —Sí, estoy mejor, prefiero estar encerrado ahora, antes que estar fumando lata en la calle y todo el
mundo te mira cómo estás, sucio, todo mugriento. Cuando estuve un mes sin fumar estuve con una
chica.
P: —Claro.
E: —Después volví porque me enganché de vuelta.
P: —¿Y no estuviste en algún programa de estos tipo Remar o Portal Amarillo?
E: —Estuve en “el sueño del pibe”.
P: —¿Y qué pasaba ahí, cómo era la cosa?
E: —No me gusta estar encerrado, me gusta estar en un hogar abierto, tipo refugio.
P: —Ah, los refugios. ¿Allá en Posada de Belén?
E: —Sí, yo estuve un año y medio ahí.
P: —Claro, cuando era refugio, en el Barrio Sur.
E: —En el Barrio Sur.
P: —Ahora es hogar
E: —En ese hogar yo estuve.
El gurí nos hace saber todas sus ambigüedades: estar “trancado” pero bien, sin
consumir y con un techo y una comida a diferencia de estar sucio en la calle y consumiendo
PBC; al tiempo que lo tensiona una moralidad carcelaria: el gil que vende la pasta que está en
oposición al chorro que roba23
, el compañero virtuoso que le es leal y le contrata un abogado
y le va a dar la plata que es de él, al tiempo que está fumando pasta y arruinado en la calle.
Más allá de la precisión o no de estas palabras, lo que es relevante es la moralidad que expone
y tensiona.
21 Pasta base de cocaína. 22 Lugar de venta de drogas ilícitas. 23 Míguez (2008) señala que el vendedor de estupefacientes es una suerte de enemigo del chorro, es una de las tantas especies
de “gil”, no delincuente; confluyendo con la moralidad carcelaria argentina, en boca de uno de nuestros entrevistados, el
transa (traficante de estupefacientes) es un “arruina chorro; afuera manda él, pero adentro mandamos nosotros”.
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Luego viene el Chiquito, el chiquilín que conocimos en la plaza. Nos recuerda bien. Nos pide
por Miguel (el de la primera entrevista de este apartado) porque no lo vienen a ver: “Pobrecito, nadie
lo viene a ver y su madre está muy mal por lo que sé; estaría bien que hicieran algo por él”.
Hablamos de la macana que se mandó, de su familia, de sus ganas de irse a un hogar del INAU.
Manda saludos para sus conocidos de la plaza y parece muy sincero acerca de tener un cambio de
vida. También nos deja ver su trayectoria vinculada a la calle, su familia, el INAU y la Policía:
P: —¿Por qué fuiste a robar?
E: —Porque estaba… re sucio, re mal, y me invitaron y dije sí, vamos, laburamos algo y me voy a
comprar ropa.
P: —¿Cómo fue eso? Contame.
E: —Fue así, estábamos caminando, éramos como diez, a ver si encontrábamos algo para llevarnos y
como vimos un cyber nos metimos para adentro, le pedimos algo para comer, unas galletitas, para
todos unas pastillas, con todo respeto. Y yo digo: –el botija te vino a pedir algo para comer–, y el loco
me vino a hablar de vivo y mi compañero le pegó, y ahí cuando le pegó yo crucé para el otro lado del
mostrador, le chapé24
la plata y nos fuimos.
P: —¿Pero por qué les dieron rapiña?
E: —No sé, eso me dijeron en la comisaría: –¿sabés lo que hiciste?- Le digo no, no sé. –Es una rapiña
lo que hiciste.
P: —¿Pero estaban armados?
E: —No, nosotros estábamos limpios.
P: —Vos me estás chamuyando25
como si fuera la audiencia, mirá que acá no hay audiencia ninguna.
E: —Nooo.
P: —Ya está hecho.
E: —Ya está, la cagada ya está hecha, no se puede volver para atrás.
P: —No, sí, se puede volver para atrás, no mataste a nadie.
E: —No.
P: —Entonces se puede volver para atrás; no se puede volver para atrás cuando uno mata a alguien,
cuando uno mata a alguien ya está, ese no vuelve más. ¿Cuánto vas a estar acá?
E: —Dos meses.
P: —Por eso, te ponés fuerte y podés cambiar la pisada, salís con otra cosa, porque está buena la vida
acá, o más o menos, ¿o es muy complicado?
E: —De última está bien, aunque el hogar abierto es otra cosa.
P: —Sí, pero yo he visto hogares abiertos que no tienen piscina, eso está bueno, porque sé lo que es
pasar calor y no tener agua.
E: —Está buena la playa.
P: —Eso sí, está mejor ir a la playa.
E: —Está mejor ir a la playa, porque te podés tirar para lo hondo.
P: —¿Cómo es la cosa acá?
E: —La tenés que llevar tranqui, donde falte algo ya te saltan todos los gurises arriba, yo hace un mes
y algo cuando llegué…
P: —Vos sos un tipo querido, te deben extrañar bastante a vos, eso es importante. ¿Y la gente del
programa de Calle? Porque vos andabas con la gente de Revuelos, ¿no era?
E: —Sí.
P: —¿Y la gente de Revuelos vino a darse una vuelta?
E: —Vienen, sí.
P: —¿Vienen? ¿Quedaste bien con ellos? Se deben haber quemado un poco la cabeza, ¿no?, con lo
que pasó. Porque ellos también intentan que las cosas sean de otro modo y trabajan, y bueno, la cosa
es que lograron poco, ¿no?, pero siguen viniendo, no se quemaron.
24 Agarré. 25 Conversando, en el sentido de engañar.
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E: —Me están buscando un hogar para cuando salga y achicar un poco, ahora estaba muy pasado.
P: —¿Estabas con mucha pasta?
E: —Pasta no fumaba.
P: —Vas para un hogar. ¿Vos eras muy amigo de la gente de ahí de la plaza del cine? Nos habían
dicho que vos trabajabas en los ómnibus y eso.
E: —Ta, en un momento que ya no quise trabajar más arriba de los bondis me pintó para andar en la
joda, y ahí ya aprendí a andar robando en la calle y todo.
P: —¿Robando? ¿Pero decís un descuido o un arrebato, o algo así?
E: —Rapiña.
P: —¿Siempre rapiña?
E: —Todo rapiña, nunca fue arrebato ni nada, todo rapiña, y aparte me saltó cuatro rapiñas más.
P: —¿Por qué?
E: —Me quedaron del pasado.
P: —Ah, ¿te quedaron como antecedentes decís? ¿Y te habían agarrado?
E: —No.
P: —¿Y por qué te agarraron?
E: —La computadora, vos das tu nombre falso, te fichan, llaman para el INAU y salta tu nombre, salta
todo en la computadora.
P: —¿Y no te habían agarrado otra vez ya?
E: —Me agarraron sí, nunca me saltó así.
P: —Pero no te llevaban para ningún lado, te agarraban, te tenían un rato.
E: —Yo me hacía el loco y al rato me iba, en cualquier momento me agarraban y me pasaban para el
juzgado.
P: —Seguro… Ahora, cuando nosotros te conocimos, que fue hace unos meses, vos en la calle no
andabas, es decir, no vivías, no dormías en la calle.
E: —No, dormía en mi casa…
P: —¿Y ahí en tu casa quién está?
E: —Mi mamá.
P: —¿Y por qué saliste a hacer la plata?
E: —Para ayudar a mi mamá.
P: —¿Sí? ¿Y eras vos solo o alguno de tus hermanos también salía?
E: —Yo solo, y a veces cuando veía que no tenía mercadería salía a robar para ayudar.
P: —¿Tu vieja viene para acá a verte?
E: —Viene sí, mañana viene de nuevo.
P: —Mirá qué bueno. ¿Cómo está la vieja26
?
E: —Bien mal.
P: —Debe estar medio preocupada.
E: —Mal, mal, sí.
P: —Preocupada, pero vos los ayudabas también con la casa ¿cómo se están manejando con eso?
E: —Ahora se está manejando, mañana voy a preguntarle a mi padre si consiguió trabajo.
P: —¿Tu mamá hace algo también, trabaja en algo?
E: —Mi madre no, mi madre cuida a mis hermanos.
P: —¿Y siempre viviste en el Centro? ¿Siempre en la misma zona?
E: —La tenés que pilotear en la calle.
P: —¿Pero a vos te gusta la calle?
E: —Sí, ahora estoy cambiando, capaz que salgo de acá y ya no vuelvo a la calle.
P: —¿Y vos tenés doce, ya cumpliste los trece?
E: —Sí, si no acá no estoy.
P: —Ah, es verdad, ja ja ja, tenés razón, claro, claro.
Chiquito sabe bien que si tuviese doce años no estaría allí. Conoce las leyes en ese nivel
práctico. Ya había cometido varias infracciones antes de los trece, pero en ese momento era
26 Referido a su madre.
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inimputable. Al volverse a la zona de celdas, Chiquito nos recuerda a Maicol, el otro chiquilín que
quería ser entrevistado. Le dejamos el recado por la educadora de que volveremos para entrevistarlo.
Pasamos al otro sector, ahí son mayores de quince. Llegamos hasta un espacio con celdas,
más oscuro aún que los otros. Nos conduce el “coordinador”, un hombre de unos 40 años, de baja
estatura y muy fornido, de gesto serio y actitud firme con los chiquilines. Es la representación que
siempre imaginamos del llamado “brazo gordo”27
. También hay educadoras, pues siempre andan en
parejas mixtas los educadores.
Pasó la hora de las visitas. Roni nunca las tiene. Sus dos compañeros son distintos a él,
tienen entre ellos mucha camaradería –“son primarios”28
, nos dice Roni– y también se llevan
bien con los educadores. Él ahora se está adaptando, pero ya estuvo y se escapó de un hogar
de la Colonia Berro: “no me asusta la tranca”, dice. Cuando llegó acá quiso comportarse
según criterios “carcelarios”: hacer un corte, intentar un motín, y fue frenado por sus
compañeros “primarios”, “que no quieren problemas”. Se trata de un adolescente más grande
que los anteriores y con un discurso en el cual la moralidad carcelaria está muy presente.
Roni anda en la calle desde los seis años. Vivió con su madre hasta que lo abandonó.
Según nos cuenta, su madre estuvo muy mal cuando murió su padre, un ladrón a quien mató
la Policía argentina, y no quiso “que la viera así”. Así que lo internó en el Centro Cuatro29
, a
donde lo fue a buscar su tía. La trayectoria de este adolescente está muy vinculada a los
dispositivos del INAU. Conoce muy bien la institucionalidad del INAU, aunque,
paradójicamente, la funcionaria que nos recibió nos habló de él como de un completo
desconocido. Sin embargo, Roni estuvo toda su vida vinculado, desde muy niño, a la
institución.
P: —¿Dónde estuviste de chiquito, en el INAU?
E: —En el INAME, estuve en Centro Cuatro, que era para chiquitos. Después estuve en otro hogar,
Capitanes de la Arena, en ¿cómo es?, en Revuelos… No, Revuelos no.
P: —¿Cómo fue esa experiencia, de chiquito digo, cómo fue el INAME30
?
E: —Y a mí no… no sé cómo decir, porque era chico y no sabía [el Centro 4 es para menores de
cuatro años].
P: —Claro.
E: —No sabía nada, entonces me fui rescatando, cuando me llevaron para un hogar más grande tenía
lío con los pibes y a veces nos peleábamos, después bueno, te empezás a pelear con los pibes.
Su tía fue a buscarlo y vivió un tiempo con ella, aunque pronto terminó nuevamente en
un hogar. Ya más grande, lo “encerraron”, según cuenta, aunque rápidamente se fugó y
27 Funcionarios dedicados a la contención de los adolescentes encerrados con medidas de seguridad. 28 Están recluidos por primera vez. 29 Hogar de amparo para niños menores de 4 años. 30 Hasta el cambio del Código del Niño, en el año 2004, la institución de protección a la infancia y la adolescencia se llamaba
Instituto Nacional del Menor, no mucho antes, hasta los años ochenta, se llamaba Consejo del Niño.
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comenzó a “estar para la joda”. Comenzó a “parar” en Piedras Blancas31
, pero hace un año
que está en el Centro. Dejó el barrio porque en el cante32
“se colgaban mucho con la pasta”,
aunque al Centro vino para “seguir con la joda”.
De su madre no guarda gratos recuerdos; de su padre, en cambio, tiene una imagen
idealizada. Roni parece seguir las huellas de su padre y apropiarse, además, de cierta
moralidad. No robaba en Piedras Blancas porque en el barrio “no se roba”: “voy para la
rambla o Pocitos33”. En el Centro vivía en un achique, en un edificio incendiado. Allí podría
haber intentado el oficio de cuidacoches, pero cuando se lo insinuamos reacciona de modo
tajante. Su modo puede provenir del discurso de origen carcelario que indica que los
cuidacoches deben ser despreciados por los delincuentes y que, por tanto, no “caminan en el
penal”. Muchas veces son considerados “buchones” o “alcahuetes”, por servir de informantes
a la Policía o por ceder a sus aprietes34
; también se los desprecia cuando siendo consumidores
de PBC terminan en la cárcel por alguna “gilada”35
.
Roni fuma porro, pero lo que le gusta de verdad es “tomar merca”. Un “veinticuatro”36
se “tomó” una moto “legal” y cuatro “fierros”37
. Empezó a tomar y tomar. Eso después de
fugarse del Puertas, el hogar de la Colonia Berro38
, y pasar por la casa de la madre, en el
cante, donde no fue bienvenido. Su madre le dijo clarito: “no te quiero acá”. La joda parece
perderlo y de ella es difícil escapar:
P: —Claro, ¿y cómo se sale de la joda?
E: —¿De la Colonia?
P: —De la joda.
E: —¿De la joda? Y yo qué sé. Yo estuve en un año en un hogar que fue el que me enseñó
todo, ahí en Diagnóstico, en Fernández Crespo. Y quise volver para ese hogar, me dijeron:
“sí, esperá”. Estuve un mes, tres meses ahí y nunca me llevaron, me calenté y me fui.
P: —Claro ¿Y cuál era ese hogar?
E: —Capitanes de la Arena, que fue el que más me gustó.
P: —En el que te sentiste más a gusto.
E: —Claro, un año estuve.
P: —¿Por qué no te dejan mucho tiempo en los hogares?
E: —No, según la conducta.
P: —Claro, si vos te vas después ya no entrás.
E: —Me portaba mal, claro, yo ahí tuve tres fugas, cuatro fugas.
31 Barrio montevideano con bolsones de pobreza y zonas fuertemente estigmatizadas. 32 Asentamiento irregular. 33 Zonas ricas de la ciudad de Montevideo. 34 Amenazas o golpes de los policías u otros agentes con poder. 35 Hecho delictivo menor. 36 24 de diciembre, Nochebuena. 37 Las bocas de venta de drogas suelen cambiar objetos por drogas, tomando esos objetos a un valor fuertemente
menospreciado. 38 Complejo de rehabilitación de adolescentes que cometieron infracciones a la ley penal.
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P: —¿Por qué te fugabas?
E: —Y porque quería conocer la joda, porque ahí fue cuando empecé, empecé a fumar porro,
cigarro, después a los diez años empecé a tomar merca.
Todos nuestros entrevistados han construido una taxonomía de los hogares del INAU.
Los criterios de clasificación parecen reducirse a una jerarquización entre buenos y malos.
Los “buenos” hogares serían aquellos donde los educadores tienen una actitud comprensiva y
de diálogo con los adolescentes. Suelen ser hogares abiertos y, con menor frecuencia, mixtos.
En ellos, las relaciones entre los adolescentes suelen ser de compañerismo y de bajo conflicto
en comparación con los hogares “malos”. En estos últimos, los funcionarios suelen ser
arbitrarios, muchas veces violentos, y las relaciones entre los adolescentes son altamente
conflictivas. Para complicar aún más las cosas, el propio INAU llama –no sin cierta
perversidad institucional– hogares a centros de detención donde los adolescentes pasan la
mayor parte de su tiempo “trancados”. Roni parece un experto a la hora de calificar los
programas del INAU. Los conoce por propia experiencia, pero también por las circunstancias
de amigos y viejos compañeros.
3. La moralidad carcelaria
E: —Conseguí un nombre para un compañero que estaba fugado de la Colonia y le dice [un
policía] –¡Ey! ¿Cómo te llamás vos?– Y él se hacía el mudo, yo le digo: –Él se llama Adrián
Jorge Gómez Medina–. Me salió, no sé cómo. –¿Él estaba en el robo?– me dice. –No, él no–. Y
nos llevaron hasta el local y no estaba, éramos cuatro nomás y él zafó.
P: —Claro, pero vos no, te debe una. ¿Es jodida la calle, hay códigos o no hay más códigos
como se dice?
E: —En la calle no hay tanto código porque estás durmiendo y si están drogados o algo te
rastrillan, te sacan los championes, yo te digo porque unas cuantas veces me pasó, estaba
durmiendo así y tenía unos championes Nike [aparece una funcionaria que le deja una taza de
leche muy grande]. Y fui, busqué, busqué, busqué y llegué hasta él, la paliza le di, le digo,
“ahora rescatame mis championes”, sí, al otro día me los trajo, en una boca los tenía.
La calle adquiere dos significados distintos, el primero –el nuestro– remite a una
noción que va desde la experiencia laboral, la madurez y la “viveza” hasta admitir, en sus
extremos, las moralidades de los “viejos” ladrones y estafadores; el segundo se relaciona con
las “nuevas” circunstancias de la calle. Nosotros preguntamos por el primero, que asociamos
naturalmente con el relato de Roni sobre la lealtad entre compañeros; Roni, en cambio,
responde orientado por las situaciones que se suceden a diario en situaciones de calle y, sobre
todo, entre adictos a la PBC. El rastrillo, justamente, es el sujeto que quebraría aquellas
moralidades tradicionales del chorro39
: en el barrio no se roba; a un compañero, mucho
39 Ladrón en Argentina y Uruguay.
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
200
menos. En adolescentes como Roni conviven ambas moralidades y no hay que suponer que él
mismo no se comporte como rastrillo alguna vez.
P: —¿Eso qué es, fisura40
?
E: —Y sí, si estamos todos en la misma, ¿qué me vas a rastrillar?
P: —Sí, claro.
E: —Sí, pero la pasta base es así.
P: —Ah, sí, pero vos por eso no fumás pasta.
E: —Fumé, una vez sola fumé pipa y me gustó, no te voy a decir que no, pero no, dije me voy a
arruinar, ya perdí a mi familia.
P: —¿Cómo es el pegue41
?
E: —Y el pegue, quedás así para todos lados quedás [mueve su cabeza como paranoico], así para
todos lados; sí, si fumás abundante quedás con la mandíbula todo esto duro así, todo esto te queda
duro [se toca el mentón].
P: —¿Es como tomarse un montón de merca?
E: —Claro, como tomarse abundante merca, quedás todo duro así no, quedás así.
P: —Medio paranoico.
E: —Claro, y querés más y más y más, y yo digo no, yo no quiero más, me fumé un porro, me acosté a
dormir, si no iba a seguir fumando.
P: —Claro, claro, ¿y cómo se sale de no tener que robar más? Porque llega un momento que si robás te
agarran siempre, más temprano o más tarde, no hay uno que haya zafado…
E: —Eso según, porque a mí no me gustan los hogares, pero aguanto la tranca, ¿no?
P: —Claro.
E: —Si la tengo que aguantar, la aguanto, pero no me gusta. Pero para salir, al menos para mí, el
mejor hogar es el que yo estuve, Capitanes de la Arena.
P: —¿Y cómo es? Porque nos decían, yo no sé si era cierto, pero nos decían algunos educadores que
algunos hogares por ejemplo… Prendele cartucho42
que se te enfría [el adolescente dialogaba con
nosotros con respeto y consideración sin tomar su merienda].
E: [Toma su merienda]
…
P: —¿Qué te parece que hay que hacer para tener una vida distinta, para poder laburar tranquilo?
E: —A mí me gustaría laburar.
P: —¿De qué te gustaría laburar?
E: —Y… conseguir algún laburo. A mí una de las cosas que más me gustaría es la construcción.
P: —La construcción. ¿Y qué posibilidades hay de tener cursos de eso, de aprender un oficio? ¿No
creés en esa oportunidad?
E: —Sí, pero tenés que estar demasiado tiempo en un hogar, ¿no? Un pibe en el Capitán Arena, yo
tenía cuatro o cinco años, el más grande tenía veinte años, estaba trabajando en una estación de
servicio, ya cuando tuvo que dejar ahí, mirá que fumaba pasta también a cara de perro.
No es casual que las dos ocupaciones (“construcción”, “estación de servicio”) que
Roni menciona como salida de vida hacia el mundo del trabajo sean empleos calificados
como insalubres por el Estado uruguayo. Lamentablemente, los oficios para salir de la
pobreza extrema, que otorgan provisión económica sin exigir una capacitación formal
extensa, son los que están vedados para los menores de 18 años (INE-OIT, 2010).
40 Deseo irrefrenable de consumir algún estupefaciente determinado. 41Pegue significa efecto. El pegue de la droga es su efecto, tanto el buscado como el indeseable: un “mal pegue” o “mal
viaje”. 42 Hazlo ya. Para el caso: toma ya tu merienda.
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P: —Mirá...
E: —Salió.
P: —¿Salió del hogar y quedó trabajando en la estación de servicio?
E: —Yo el otro día pasé por el Centro, no sé en qué parte era, pasé por ahí por la estación y me dice: –
¿en qué andás, Roni?–. Y yo miro así, –¿quién es?–, voy hasta ahí –¿quién sos vos, [dice su nombre],
en qué andás?– era él, estaba trabajando ahí.
P: —¿Y de acá existen posibilidades de salir al laburo?
E: —Sí, eso si vos querés cambiar, está en tu cabeza.
P: —Claro.
E: —Está en la cabeza tuya.
El concepto moral de la voluntad tiene una fuerza asfixiante en aquellos más
vulnerables, para los cuales ejercerla comporta grandes dificultades. El reconocer al igual -un
joven pobre bajo “cuidado” estatal- que se ha transformado en un trabajador, con uniforme y
todo, se torna difícil. Sin embargo, el sujeto considera que es un asunto de voluntad lograr ese
estado: transformarse en un trabajador formal. De esta forma, estar preso será producto de su
falta de voluntad, o peor, de su voluntad torcida, perversa, psicopatologizable. Todo lo
moverá a terminar como su padre. De esta forma, el estigma, también “novela familiar” en
este caso, es la única identidad posible, la única que despedirá una imagen reconocible, la que
será refrendada en la mirada superficial, que no podrá avanzar en el diálogo con el sujeto, que
no lo mirará a los ojos, que no compartirá con él un espacio de respeto.
“Sin rencor”: aprendiendo a ser un preso
P: —¿Qué tal son tus compañeros?
E: —Y… más o menos.
P: —La van llevando.
E: —Ya me peleé con los dos.
P: —¿Pero se amigaron de nuevo?
E: —No, quedaron con rencor.
P: —¿Con los funcionarios? ¿Cómo te llevás con los funcionarios?
E: —Yo a lo primero, cuando estaba solo con estos de acá, tenía una punta porque me querían
patotear43
, yo me quería defender, salía para el baño con ella, y ellos no salían, ellos agitaban baño y
yo agitaba baño -estoy en el baño- y no me sacaban, pero un día hicieron requisa y me sacaron la
punta, y vino un funcionario y nos hizo pelear mano a mano, ta, me rompió todo, no te voy a decir que
no porque me rompió todo.
P: —Y sí, lógico.
E: —Perdí, tranqui, sin rencor le dije, ta, después viene el compañero.
P: —Pero ya después de que te diste una, mejor que no...
E: —No, si hay que seguir la sigo.
P: —No, ya sé, es así la vida, pero es como vos decís, se gana y se pierde.
E: —Y ta, y después agarré alcohol en gel de ahí, lo puse en una botella, puse licuado y ahí empecé a
tomar, ¿sabés cómo estaba adentro de la pieza?
Roni relata situaciones típicamente carcelarias, similares incluso a lo narrado para
Argentina por Míguez (2008) y también a situaciones narradas por funcionarios del sistema
43 Golpear o amenazar en grupo.
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202
penitenciario uruguayo. Luego de una pelea, incluso con un guardia, el “sin rencor” significa
un intercambio que no generará mayores consecuencias para el recluso que la golpiza que
lleve en el curso de la pelea; claro está que entre un educador de “brazos gordos” y un
adolescente que viene de una situación de calle la asimetría no resulta muy caballeresca;
generalmente “gana” el funcionario del Estado. Lo mismo ocurre cuando un funcionario hace
pelear a dos reclusos que tienen asimetría, pero que, por la propia moralidad carcelaria, aquél
que lleva las de perder no podrá rehusar el envite. También el adolescente relata cómo
preparó un escabio carcelario a base de alcohol en gel.
Los reclusos adolescentes que le impidieron hacer el motín, además de primarios, son
notoriamente pertenecientes a un sector de las clases medias trabajadoras y no provienen de la
situación de calle, como es el caso de todos nuestros entrevistados. También están mejor
cuidados y sus familias se ocupan de ellos.
P: —¿No será que tienen razón? Pensándolo, digo, porque te aumenta el riesgo, si salís están los
botones afuera...
E: —No, no, a mí me entró un… después me llevaron de nuevo pa aquella pieza y si ellos empiezan a
provocarme, iban por la pieza y me escupían, y yo tranqui, y ta, y después vino la funcionaria, vino y
le dijo: “dejate de putearlo”. “No, que yo no lo estoy puteando, porque él me escupe y no le decían
nada”. Y ta, después vino el otro funcionario el… [describe sus rasgos físicos] y ese nos hizo pelear.
Bueno, nos peleamos.
P: —Claro, hay posibilidad de hablar también, ¿no?
E: —Sí.
P: —Lo bueno sería que de última si tenés que estar acá un año, ponele…
P: —¿Te vas para Berro?
E: —Claro, acá es hasta el 8 de marzo nomás.
P: —¿Y cómo está allá, está mejor, peor, cómo lo ves?
E: — Y… según el hogar que te toque. En la Casona al menos, está abierto, muy abierto.
P: —O sea, de ahí salís en cinco minutos.
E: —Claro, yo lo hice en tres horas.
P: —Después salís…
E: —Todo por el campo.
P: —Sí, por el campo.
E: —Un campo solo corrí yo.
P: —¿Cómo salís de ahí?
E: —Yo ahí corrí un campo solo porque no sabía cómo era, porque el que sabe cómo es se corre tres
campos, son tres campos grandotes, y te van corriendo de atrás a caballo, y si te agarran te rompen la
ropa todo, te atan en la pata y en la cola del caballo y te arrastran por el campo.
M: —¡Pa!
E: —Son tremendos judíos44
.
Al terminar la entrevista con Roni le damos un fuerte apretón de manos. Este gurí, a
diferencia de los otros entrevistados, ya ha pegado su estirón, no es un niño ya, y reflexiona sobre las
44 Judiar se utiliza en el sentido antiguo de ser afrentado y castigado sin otro motivo que la diversión o la maldad pura. El
sentido se invierte y, como ocurre con cualquier estigma, el judío pasa a ser el que porta la maldad y no el, como era el caso,
la sufre.
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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moralidades y prácticas corporales aprendidas en una trayectoria de vida muy dura, determinada en
buena medida por dispositivos estatales. Su familia tampoco parece ofrecer una salida. Nos vamos
afectados de esta entrevista; nuestro entrevistado resulta por momentos reflexivo e inteligente, pero
las “salidas” no parecen estar pensadas para él.
4. A modo de conclusión
En estas páginas pudimos apreciar distintos aspectos de las trayectorias de
adolescentes y jóvenes que sobreviven o han sobrevivido en situación de calle en la zona
céntrica de Montevideo. La transición a la juventud de estos adolescentes se da en
circunstancias extremas, sin embargo, en la conversación con ellos se puede imaginar un
futuro, unas moralidades se tensionan y otras posibilidades emergen. Cuando desde la prensa
y la demagogia represiva (Fraiman y Rossal, 2012) se piensa a estos adolescentes como
“marginales culturales” perdidos, sin valores y, por tanto, sujetos inevitablemente peligrosos;
apreciamos en sus trayectorias continuos de violencia que implican a distintos dispositivos del
Estado, a violencias domésticas, a una precariedad social a la que las distintas políticas
sociales no han podido atender e, incluso, han, en cierto sentido, afectado, como es el caso de
la mejor fiscalización del trabajo informal en el país -esos trabajos de escasa calidad en los
que se hiperexplotaban, y aún hiperexplotan, adolescentes y jóvenes- han resultado en
mayores dificultades a la hora de evitar trayectorias delictivas.
Asimismo, pudimos apreciar moralidades en tensión, que, aunque el ordenamiento
legal marque una serie de derechos de niños y adolescentes (hasta los 18 años) y una política
de juventud en el país (hasta los 29 años), buena parte de las familias y los adolescentes
uruguayos son interpelados por una moralidad que los obliga a prácticas de provisión
económica desde edades muy tempranas.
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Desassossegar com Arte A Arte do Batuque: De ‘offensivo da boa moral’ (Edital de 1866) ao
reconhecimento da força terapeutica e arma na prevenção da violência (doméstica)*
Greet Wielemans**
Resumo: Esta comunicação foi preparada para uma intervenção na Semana da Cultura e das Comunidades, 18-
10-2012, Cidade da Praia, Santiago, Cabo Verde. Procura conhecer os efeitos do som transcultural e da Música
na terapia, educação e construção da comunidade.
Palavras-chave: Batuque, terapia, arte, música, Cabo Verde.
Abstract: This paper was prepared for an intervention in the Week of Culture and Communities, 10.18.2012, in
Praia, Santiago, Capital of Cape Verde. It tries to know the effects of cross-cultural sound and music in therapy,
education and community building.
Key-words: Batuque, therapy, art, music, Cape Verde.
Introdução
Fui apresentada ao mundo do Batuque em 1999. Fiquei particularmente impressionada
com a forte energia das mulheres e com a força da sua música. E, como tinha acabado de
completar uma formação em EMDR, um tratamento de trauma psicológico, reconheci que
todos os ingredientes desta técnica terapêutica se encontravam representados na técnica de
canto das mulheres.
Dessensibilização e Reprocessamento através do Movimento Ocular (EMDR)1 é um
tratamento do stress pós-traumático (SPT). No EMDR, o paciente traz à mente imagens e
crenças emocionalmente desagradáveis sobre si, relacionadas com o evento traumático. Com
estes pensamentos e imagens em mente, os pacientes são convidados a prestar também
atenção a um estímulo externo, tal como os movimentos dos olhos (da esquerda para a direita)
ou o estalar dos dedos (esquerda, direita) guiados pelo terapeuta.
Em seguida, o paciente respira profundamente e fala sobre o que emergiu durante o
exercício. O que quer que tenha vindo à luz pode ser utilizado para um outro exercício
”revelador”. Este ciclo continua até o distúrbio do paciente ser atenuado. A Dessensibilização
e Reprocessamento através do Movimento Ocular (EMDR) é uma abordagem
* Recebido em Fevereiro de 2013 e aceite em Março de 2013.
** Greet Wielemans (nascida na Bélgica, 1968) estudou Educação Especial na Universidade de Louvaina/Belgium
(Katholieke Universiteit Leuven). Como cantora, a sua atenção foi atraída para o poder do som e da música. Aprendeu a
trabalhar com os Pratos Tibetanos, e estudou "Aplicações terapêuticas transculturais de Som e Música na Cura", com Pat
Moffit Cook, Ph.D. Trabalha como musicoterapeuta numa instituição para adultos com deficiências graves. Fundou a
organização sem fins lucrativos "Polyfante ', onde organiza programas de canto para comunidades e grupos especiais.
[email protected] 1 www.emdria.org
Espaço Com’Arte
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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psicoterapeutica integrada, que tem sido pesquisada intensivamente e que se comprovou ser
eficaz para o tratamento do trauma.
Quando as mulheres do Finka Pé cantam as suas canções sobre as suas vidas em
Lisboa, contam partes da história, depois aceleram e começam a tocar o batuque com as mãos
(esquerda, direita) e, em seguida, cantam a parte seguinte da história. Quando partilhei a
minha experiência com as mulheres, lembro-me de como cada uma delas focou como o
Batuque tinha mudado as suas vidas de forma positiva: menos stress, menos dor, mais
energia. Praticam efectivamente a técnica de EMDR "estimulação bilateral”: provou-se que
esta técnica tem um efeito imediato sobre o estado da alma, agindo como um poderoso e
quase instantâneo relaxante. É fácil de a aplicar em nós próprios.
Encontrar as mulheres do Finka Pé foi um momento de grande significado para mim.
Neste grupo de mulheres que cantam, vi também um forte exemplo de como a música pode
construir e manter uma comunidade. E hoje sinto-me muito feliz e orgulhosa de poder estar
aqui como terapeuta de som e música e fazer mais uma vez parte da celebração do batuque.
1. Diferentes níveis nos quais o som e a música podem afetar nossas vidas
Nível 4: cura e terapia
Nível 3: prevenção específica
Nível 2: prevenção em geral
Nível 1: construção comunitária
No círculo de cima: Resolução de problemas
No círculo de baixo: Construção comunitária
Quando queremos trabalhar a prevenção da doença, do mal-estar ou da violência no
seio de uma comunidade, podemos organizar a nossa abordagem em diferentes níveis. Esta
pirâmide de prevenção mostra-nos muito sucintamente estes níveis básicos.
No topo da pirâmide temos o nível da cura e da terapia. A música provou ser
extremamente poderosa na cura, especialmente na cura de problemas relacionados com o
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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stress. Musicoterapeutas e terapeutas do som aprendem cada vez mais a integrar a música nas
suas sessões. Antigos curandeiros têm sido estudados, e com as modernas técnicas de TACs
cerebrais e de Eletroencefalografia, o mundo ocidental pode agora medir alguns dos efeitos da
música sobre o cérebro e sobre o corpo.
Quando queremos prevenir o stress e a violência no seio de grupos como em escolas
ou bairros, fazer música pode ser uma maneira rápida de (re)conectar as pessoas de uma
forma positiva. Em grupos, a música demonstrou ser uma forma de evitar conflitos, ou de
apoiar pessoas em conflito para expressarem os seus pensamentos e emoções de uma forma
aceitável e construtiva.
E onde a comunidade precisa de ser construída, entre outras atividades culturais, a
música e o canto são formas muito rápidas para conectar pessoas com formações muito
diferentes. Enquanto maestra de coros em lugares muito especiais, tais como numa prisão,
num abrigo para mulheres ou numa escola de línguas para imigrantes, surpreendi-me muitas
vezes com a velocidade com que pessoas de culturas completamente diferentes conseguem
encontrar uma maneira de se conectar.
2. Ingredientes na música que providenciam efeitos terapêuticos positivos
O que é que, exatamente, torna a música uma ferramenta tão poderosa e eficaz?
Muitos livros foram escritos sobre os ingredientes eficazes na música. O batuque pode ser
encarado como uma ilustração de alguns destes ingredientes curativos.
O ritmo pode ser visto como uma forma de estimulação bilateral, a qual foi provada
ser um componente eficaz da EMDR. O ritmo, quando produzido na dose certa, relaxa o
cérebro e altera as suas frequências de uma forma positiva (para ondas cerebrais alfa). Quando
as pessoas enquanto grupo criam um ritmo, elas conectam-se.
Quando usamos a nossa voz, regulamos a nossa respiração, criamos um campo
vibracional no qual informações não-verbais podem ser trocadas. E algumas histórias não
podem ser contadas com palavras, mas podem ser expressas pelo som da voz. Quando as
pessoas cantam enquanto grupo, elas conectam-se.
Numa canção, uma história é contada com palavras. As palavras expressam a história
de uma forma contida, de uma forma compreensível. Quando as pessoas contam histórias e
ouvem as histórias uns dos outros, elas conectam-se.
Na dança e no movimento, o corpo lembra-se da história e encontra outra forma única
de se expressar. Tensão física pode ser libertada. Quando as pessoas dançam juntas enquanto
grupo, elas conectam-se.
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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No Batuque o posicionamento do grupo é importante. Num círculo ou numa meia-
lua, o som está contido de uma forma de certa maneira mágica. Os Pratos Tibetanos podem
demostrar como um círculo facilmente produz harmonias terapêuticas. Um (semi-) círculo de
canto é uma forma muito poderosa de apoiar os que se encontram colocados no meio deste.
Ao compor a música, ao expressar a história, ao partilhar as esperanças e crenças
positivas, as mulheres começam a transformar as suas vidas. No campo vibracional do som e
da música, um novo mundo é partilhado. É onde a criação de novas formas de
comportamento e de relação, começam.
3. Os elementos básicos no corpo, alimentados pela música
Segundo a Medicina Chinesa, a saúde de uma pessoa depende do equilíbrio dos 5
elementos básicos no corpo: terra, água, madeira, fogo e metal. Na música podemos
frequentemente distinguir um ou mais destes 5 elementos, e, assim sendo, a música pode
ajudar a manter ou a restabelecer o equilíbrio no corpo.
No batuque, cada elemento é estimulado de uma maneira particular, a maneira do
"batuque".
O elemento terra enraiza-nos, e "Finka Pé" significa "pés no chão". Quando o elemento água é
equilibrado, as emoções podem fluir e não ficam presas no corpo. O útero é a casa básica para
este elemento, e na dança, movimentar os quadris favorece este equilíbrio.
Quando nutrimos o elemento madeira, estimulamos a criatividade e a capacidade de
absorver (o positivo e negativo) do nosso meio ambiente.
O elemento fogo relaciona-se com a paixão e situa-se no coração. Especialmente
quando as mulheres aceleram o ritmo, todos nós podemos sentir o nosso coração a bater mais
rápido. Sentimos um entusiasmo pela vida.
O elemento metal encontra-se presente no campo invisível vibracional no qual a
transmissão e a transformação ocorrem. Este campo ajuda-nos a movermo-nos de um lugar
para outro, como um grupo (da morte à vida, da perda à abundância, do conflito à paz...)
4. A música como forma de prevenir o stress e a agressividade e de construir uma
comunidade
No meu próprio trabalho enquanto cantora e maestra de coro, inspiro-me nos
princípios básicos da “Rede de Voz Natural "2. Os praticantes de Voz Natural acreditam que
cantar é um direito de nascença de todos. Durante milhares de anos em todo o mundo, as
2 www.naturalvoice.net
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pessoas têm cantado - para expressar alegria, celebração e tristeza, para ajudar a cura, para
acompanhar o trabalho, a devoção e os rituais de vida - sem se preocuparem se têm uma voz
"boa" ou em "fazer da maneira certa". Cantar tem sido uma parte da vida, uma forma de ligar
as comunidades.
A voz de cada pessoa é tão única como a sua impressão digital: a voz com que
nascemos é capaz de expressar livremente uma gama completa de emoções, pensamentos e
experiências - é isto que queremos dizer com "voz natural".
Criar uma comunidade acolhedora é um elemento essencial desta abordagem: uma
comunidade onde cantar juntos é uma experiência natural, aberta e acessível para todos.
Este movimento da “voz natural” reconhece a força de comunidades cantantes como o
Batuque Finka Pé, e apoia projetos que ajudam as pessoas a lembrarem-se da sua capacidade
de fazer som e de fazer música. Especialmente porque na cultura ocidental, muitos se
esqueceram.
E muitos ficam surpreendidos quando a magia da música ganha vida. Eu cantei com
prisioneiros na prisão, com mulheres que procuram refúgio num abrigo, com imigrantes numa
escola de educação básica. Onde quer que eu cante com grupos especiais, convido sempre
coros belgas de fora destes locais, para cantarem juntos e partilharem músicas. E sempre que
isto acontece, pessoas de origens muito diferentes encontram-se realmente e os preconceitos
desvanecem. Histórias mais autênticas podem ser partilhadas quando a música está no ar.
5. A música como alimento para a alma
O momento mais difícil que já vivi, foi quando comecei um coro numa prisão. Alguns
dos homens sabiam que provavelmente nunca sairiam em liberdade. E houve momentos em
que eu me perguntei “o que estou aqui a fazer? ". Esta velha história Cherokee ajudou-me a
lembrar-me o que é que eu estava lá a fazer.
Um avô velhinho disse ao seu neto, que veio ter com ele cheio de raiva por causa de um amigo
que lhe tinha feito uma injustiça:
"Deixa-me contar-te uma história.
Eu também, por vezes, senti grande ódio por aqueles que tiraram tanto, sem qualquer
arrependimento em relação àquilo que fizeram. Todavia, o ódio corroi-nos mas não fere o
nosso inimigo. É como tomar veneno e desejar que o nosso inimigo morra. Lutei contra estes
sentimentos muitas vezes. Ele continuou:" É como se existissem dois lobos dentro de mim. Um
é bom e não faz mal nenhum. Vive em harmonia com todos os que o rodeiam e não se ofende
quando a ofensa não foi intencional. Ele só lutará quando for certo fazê-lo, e fá-lo-á da
maneira certa.
Mas, o outro lobo, ah! Ele está cheio de raiva. A mais pequena coisa vai despoletar um ataque
de raiva. Ele luta com todos, o tempo todo, sem qualquer motivo. Está impedido de pensar
porque a sua raiva e ódio são enormes. É uma raiva inútil, pois sua raiva não irá mudar nada.
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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Por vezes, é difícil conviver com estes dois lobos dentro de mim, pois ambos tentam dominar o
meu espírito ".
O miúdo olhou intensamente nos olhos do seu avô e perguntou: "E qual deles é que vence,
avô?
"O avô sorriu e respondeu baixinho:" Aquele que eu alimentar. "
E no dia da nossa performance, cantar com os prisioneiros na prisão, foi um momento
muito mágico, cheio de esperança e de honestidade. Encontro-me por vezes em lugares onde
se vê muito pouca comida para a alma e espero com a música contribuir com uma pequena
parte para aqueles que possam estar à espera disto.
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
211
Entrevista a Karl Monsma*
Nardi Sousa: Quem é Karl Monsma?
Karl Monsma: Sou formado nos Estados Unidos, formação universitária e pós-graduação na
área de Sociologia Histórica, faço um diálogo muito forte com a História.
Na pós-graduação foquei questões de Sociologia Política, as dificuldades de formação
do Estado na Argentina depois da independência, e me mudei para o Brasil por motivos
totalmente pessoais; passei num concurso, fui dar aulas de Sociologia na Universidade
Federal de São Carlos, no interior do estado de São Paulo e a partir daí comecei a interessar-
me mais por questões raciais no Brasil, que mexe um pouco com a minha história pessoal. Eu
cresci em África (na Nigéria), e os Estados Unidos é um país que sempre teve conflitos
raciais, desigualdades, racismo, etc.
Bom, dando aulas em São Carlos eu comecei a pesquisar. Na verdade o projeto, no
início, era mais sobre os imigrantes que sobre a escravatura, negros, ou pós-abolição. Sempre
me interessaram as fontes da polícia, que dizem respeito mais ao quotidiano. Comecei a
pesquisar os processos criminais nessa localidade do interior de São Paulo que historicamente
estava no meio da principal região de produção do café e onde importaram muitos imigrantes
para trabalhar nas fazendas de café, sobretudo imigrantes italianos.
Ao longo das pesquisas, eu comecei a reparar em conflitos entre os imigrantes e os
negros, e aí a minha pesquisa foi noutro sentido, comecei a me interessar muito mais com o
que aconteceu com a população negra depois do fim da escravatura.
É uma região, ao contrário do resto do Brasil, onde a maior parte da população negra
estava escravizada até o fim do regime escravocrata porque a produção do café era tão
lucrativa que eles eram comprados em outras regiões, enquanto no Nordeste brasileiro a
maioria dos negros já era livre bem antes da abolição. Mas, em São Paulo concentrava-se uma
boa parte da escravatura brasileira, e concentrava-se também muita da rebeldia dos escravos
nos últimos anos da escravidão. Era uma situação quase de revolução social, com fugas em
massa, rebeliões, assassinatos de capatazes.
Comecei a focalizar nisso, acrescentei outros aspectos da pesquisa que são os negros,
os imigrantes, as relações entre eles, as relações deles com os fazendeiros, relações de
trabalho e contratos.
* Universidade de Michigan – EUA; Sociólogo e historiador, mestre e doutor em Sociologia; Atualmente é Professor
Associado de Sociologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde também é professor permanente no Programa
de Pós-Graduação em Sociologia e professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural. Tem
experiência nas áreas de sociologia histórica, teoria social e métodos de pesquisa, abordando principalmente os seguintes
temas: imigração, racismo, identidades étnicas e violência, história agrária; [email protected]
Espaço d’Entrevista
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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Antes disso, durante o Doutoramento, estudei os fazendeiros de gado da Argentina –
na Argentina e no Sul do Brasil são chamados de estancieiros – a organização das suas
fazendas, ou estâncias, e seu papel político. Eu já havia feito certo trabalho comparativo com
o extremo sul do Brasil e no Rio Grande do Sul; acabei me mudando para o Sul do Brasil,
novamente por motivos pessoais, mas sempre gostei do Sul do Brasil, sobretudo do arquivo
que tem em Porto Alegre, um dos mais completos para fontes judiciais no Brasil. Reuniram as
fontes de todo o Estado no início do século XX. Em outros pontos do Brasil essas fontes estão
dispersas. A centralização facilita a pesquisa. Então, estando no Sul, comecei a pesquisar
temas parecidos com o que já havia pesquisado em São Paulo. O Sul é uma região de
imigração muito importante, só que é outro tipo de imigração, são europeus de novo, mas são
imigrantes que viraram colonos agrícolas, agricultores familiares, enquanto no Estado de São
Paulo o destino inicial da grande maioria foi o trabalho nas fazendas de café. Depois muitos
deles foram embora, fugindo no meio do contrato ou mudando para as cidades no fim dos
contratos anuais. A história da urbanização e industrialização de São Paulo tem muito a ver
com a imigração em massa, que é parte essencial da explicação do porquê ser um estado
brasileiro tão importante hoje. No Sul, são menos imigrantes, mas recebem tratamento
melhor, porque podem ganhar terras próprias, ou, mais tarde, comprá-las em prestações e se
estabelecerem como agricultores familiares.
Nos dois estados – São Paulo e Rio Grande do Sul – trabalho com fontes parecidas,
principalmente os processos criminais, a correspondência da polícia, os jornais locais e a
correspondência de alguns fazendeiros. Em São Paulo também tem entrevistas feitas nos anos
80 com os netos dos últimos escravos que trazem os percursos de famílias negras – as
migrações (voluntárias ou forçadas), os empregos, os casamentos, as mortes.
Em São Paulo, juntei várias fontes para fazer uma triangulação e entender os eventos
de vários pontos de vista e estou a começar a fazer isso no Sul do Brasil. Lá, os conflitos são
outros, tem muito mais a ver com questões de terras. No Sul até agora estou a estudar mais a
natureza da escravatura. Tem questões específicas porque há muitos escravos envolvidos na
produção de gado e são escravos que têm este trabalho de cowboy, como se diz em inglês - no
português brasileiro se diz campeiro - e que estavam armados. Os senhores tentavam controlar
os escravos, mas muitos deles fugiram, inclusive porque a fronteira com o Uruguai é próxima
- a principal região de produção de gado é no sul, o extremo sul, junto à fronteira. Tinha
muitas fugas, mas os senhores também tratavam os campeiros melhor para desestimular as
fugas, e castigavam serveramente aqueles que fugiram e foram recapturados. Tenho
trabalhado isso e publicado sobre questões de escravatura e fronteiras entre Brasil e Uruguai.
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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Para além das fugas de escravos para o Uruguay, tem muitos donos de escravos
brasileiros que se estabelecem no Uruguai e que levam os seus escravos para lá; quando se dá
a abolição no Uruguai nos anos de 1840, o Brasil continua ainda um país escravocrata. Os
brasileiros não aceitam a abolição no Uruguai e querem trazer os escravos de volta e
reescravizá-los. Eles sequestravam os ex-escravos e os reescravizavam no Brasil, e como isso
era ilegal deu vários processos, com diversas ambiguidades e interpretações na Justiça. Dá
para entender um pouco o jogo do poder local e as diferenças entre o Estado Nacional, que
tem um entendimento, e a elite local, que é mais favorável à escravatura. O Estado Nacional
quer evitar problemas com o Uruguai, mas ao mesmo tempo é um país gigantesco e que está
sempre a meter-se nos assuntos internos do pequeno Uruguai, ajudando nas guerras civis.
Abordo estas questões que são de uma complexidade incrível.
Nardi Sousa: Que conclusões tem chegado com as suas pesquisas?
Karl Monsma: A conclusão principal da pesquisa em São Paulo tem a ver com o tema geral
da pesquisa, como acontece a reprodução do racismo em épocas de mudanças institucionais
importantes, como o fim da escravatura. É uma enorme mudança, mas depois se verifica o
ressurgimento do racismo. Não é de um dia para outro que todo o mundo é tratado como
igual. E anterior a isso tem outra época de mudança que é o fim do tráfico internacional de
escravos que aconteceu quase quarenta anos antes da abolição da escravidão. Em São Paulo,
os escravocratas ficaram muito ressentidos, tinham até ódio dos escravos por causa da
rebeldia dos últimos anos da escravidão. Na visão deles, o escravo que antes era dócil,
submisso virou um monstro, traiçoeiro, violento, selvagem. As elites mostravam uma
tendência de generalizar a respeito dos negros ou de dividir em duas categorias, aqueles que
são bonzinhos e outros que são maus. Havia muito medo dos negros, especialmente dos
africanos velhos, porque eram vistos como tendo acesso a poderes ocultos, ou magia negra
especial. Nessa altura, os únicos africanos eram os mais velhos.
Os brancos tinham muito medo, queriam aproveitar esses poderes às vezes, recorrendo
aos curandeiros, ou até para fazer mal aos inimigos. Tinham muitas histórias que circulavam
depois da abolição, por exemplo, sobre uma senhora negra que estava matando crianças,
cozinhando e servindo em petiscos que vendia na praça pública e os brancos estavam a comer.
Inventavam histórias macabras sobre os negros e muitos brancos estavam dispostos a
acreditar nelas.
A polícia estava muito preocupada com os distúrbios dos libertos; os fazendeiros de
café, que é o grupo que mais me interessa, empregavam os negros, precisavam de mão-de-
Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.
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obra, mas dá para notar a tendência para partir para a violência contra os negros por qualquer
desacato ou provocação. São os fazendeiros dando pancadas nos negros ou até matando às
vezes com armas de fogo, facas. Ficam muito irritados com negros que exigem os seus
direitos, os negros diziam «eu sou tão cidadão como você», e às vezes os negros também
estão a matar os fazendeiros, temos casos destes. Nesse ambiente houve alguns linchamentos
dos negros, é um facto pouco conhecido no Brasil. Havia uma onda muito maior de
linchamentos dos negros nos Estados Unidos, mais ou menos na mesma época, no final do
século XIX, e parece que os brasileiros imitavam essa forma de violência racial.
Em relação aos imigrantes, pesquiso principalmente as fontes da vida quotidiana. A
imprensa dos imigrantes tendia a falar mal dos negros, desde sempre, mas aqueles que
escreviam eram da classe média ou da elite. É importante tentar descobrir também como
pensava o camponês chegado do norte da Itália, que nunca tinha visto um negro na vida.
Talvez tivesse alguma noção dos negros que circulava no norte da Itália. Eu li algumas cartas
que mandaram para a Itália, escritas por eles mesmos ou com a ajuda de outros (já que a
maioria era analfabeta). Nos primeiros anos da imigração, suas opiniões sobre os negros são
muito variadas: alguns gostam dos negros, achando que são alegres, festeiros; outros têm
horror e acham que a escravatura é como uma doença que se pega com a proximidade.
Querem evitar o contato com um grupo tão estigmatizado e tratam os negros como leprosos.
Isso mesmo depois do fim da escravidão, quando alguns deles se confundem e chamam os
negros de escravos. Mas estas são as primeiras cartas.
Os processos criminais, que são de facto as fontes mais ricas, evidenciam muita
ambiguidade. Têm bastante amizade, muito contacto quotidiano, tem muitos namoros porque
havia um excesso de homens entre os imigrantes. Se eles iam namorar alguém ou casar tinha
que ser com brasileira, e a maior parte não era branca. Antes de chegar os imigrantes nesses
locais do interior, três quartos da população eram negros, mulatos ou caboclos, que são os
indígenas aculturados.
Os grupos que tinham maiores excedentes de homens eram os italianos do sul e
portugueses, e esses grupos ficam mais evidentes nas brigas também porque o homem solteiro
sem família fica mais tempo nos bares bebendo, na rua. Se tiver mulher e filhos, fica mais em
casa e se envolve menos em confusões. Tem relações sexuais passageiras, mas muitos estão
plenamente apaixonados, dá para perceber, tem um pouco de tudo. A parte masculina como
chega sozinho, a família não tem como controlar, mas muitos deles não querem casar, querem
namorar porque têm o sonho de voltar para Itália.
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E a comunidade italiana começa a reprimir os casamentos com não brancos, era mal
visto, então esses homens não querem assumir publicamente suas uniões com brasileiras,
apesar de querer namorar. Os controles sobre as moças europeias eram bem mais fortes, pais
ficam histéricos quando se apaixonam pelos negros. Muitas vezes o jovem casal foge para
efectuar o defloramento, desvirginamento, mas depois volta porque é uma maneira de forçar
os pais a aceitar o casamento. Na época se ela não era mais virgem, seria difícil arrumar outro
marido. E em geral os pais acabam aceitando, tem pressão do delegado da polícia. Às vezes o
pai demora uns dias até aceitar, mas acaba aceitando. E, hoje - encontrei isto entre os meus
alunos - existe bastante gente no interior de São Paulo que é de ascendência mista. Nas
histórias de família, aparecem relatos como «minha avó fugiu da fazenda com um negro e
acabaram casando». Entretano, as pessoas mistas não são aceitas nas comunidades dos
italianos e dos portugueses. Até hoje a ideia de que pode haver um italiano negro é difícil para
os italianos aceitar. Recentemente, houve um concurso de “Miss Itália no Exterior” e ganhou
uma negra. Causou consternação na Itália. Como é que uma negra pode ganhar? Causa
dissonância.
Hoje, as coisas podem estar a mudar, mas durante muito tempo a comunidade italiana
era organizada, tinha clubes. Aquele que casasse com um negro não iria ser aceite na
comunidade, seria expulso. Por outro lado, alega-se que a italiana preferia casar com um
brasileiro, porque a tratava melhor e os italianos têm a família grande e vivem com os sogros.
Há uma ideia de que a mulher fica como a escrava da sogra. E por outro lado, os italianos
sempre alegam que os brasileiros são maridos ruins porque têm várias mulheres, abandonam a
família, são bêbados, etc.
Para resumir, penso que havia muita ambiguidade no início, vê-se um fenómeno que é
típico do Brasil, até hoje. «Ah eu não gosto de negros, mas o meu amigo é uma excepção».
Há brancos racistas que ao mesmo tempo têm amigos negros e eles (ou elas) até casam com
negros, pensam que seu cônjuge negro não tem todas as qualidades negativas, não são
preguiçosos, bêbados: «Os outros negros são vagabundos, mas o meu marido não, é uma
excepção. É quase branco, só tem aparência de negro.»
Desde o início, verificam-se conflitos fortes entre indivíduos brancos e negros,
sobretudo entre os migrantes brancos e os ex-escravos. Parece que isto tem tudo a ver com
situações em que os negros estão a exigir os seus direitos, de tratamento digno e a igualdade,
ou até dizer «olha eu sou cidadão e você não, é estrangeiro». Os imigrantes geralmente
reivindicam uma posição superior. E isso se evidencia em pequenas coisas, como por
exemplo, o imigrante não diz bom dia quando se cruza com o negro, e este fica ofendido, etc.
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E aí dá briga e o imigrante começa a xingar o negro de macaco. Também brigavam quando os
imigrnates insistiam em ser servidos primeiro nos bares – que no interior eles chamavam de
vendas e onde os grandes divertimentos eram beber chachaça, grogue de cana, jogar e contar
casos.
O principal motivo do racismo dos imigrantes parece ser o desejo de se distinguir dos
negros. São muito maltratados pelos fazendeiros, e eles logo se dão conta que são substitutos
dos escravos. Eles não querem ser tratados como escravos, eles fazem de tudo para se
distinguirem dos negros: «Olha a gente não é negra, vocês não podem tratar a gente assim».
Também tem ambiguidades, porque às vezes verifica-se também solidariedade de imigrantes
e negros contra os fazendeiros. E outras vezes saem brigando entre eles. Mas com o passar do
tempo o lado da desconfiança e do racismo fica mais forte nas comunidades imigrantes.
Ficam mais organizados, em parte porque há uma elite imigrante que influencia e lidera seus
compatriotas. Então com o passar dos anos o racismo fica mais evidente, e o controlo da
comunidade imigrante sobre seus integrantes fica mais forte, dá-se maior separação dos
negros, por exemplo, nas moradias. As colônias, que eram onde os trabalhadores moravam
nas fazendas, no início da grande imigração eram mistas, com negro, italiano espanhol,
português moravam lado a lado, mas depois vêm tantos imigrantes que começam a formar
colónias que são puramente de italianos, outras de negros e outros brasileiros, e se separam
ainda mais.
No início, eu pensava que poderia haver diferença entre as nacionalidades europeias,
porque Gilberto Freire alega que os portugueses são mais tolerantes, mas não vejo grandes
diferenças nas suas relações com negros. A situação é muito parecida entre italianos e
portugueses. As diferenças principais têm a ver com a demografia. Há mais portugueses e
italianos de sul envolvidos em brigas porque há mais homens desses grupos que imigram
sozinhos. Outra diferença interessante é que os italianos do Sul tendem a ser mais bem
armados que os outros imigrantes. Logo as elites começam a ter maiores preocupações com os
italianos, mais do que com os negros. Os italianos estavam presentes em maior número.
Faziam tumultos nas cidades e às vezes se rebelavam nas fazendas.
Com o tempo o racismo fica mais firme entre a comunidade imigrante. A elite
imigrante tem um papel chave na industrialização do Estado de São Paulo, e eles quase
sempre favorecem os compatriotas no emprego. Eles praticam uma discriminação evidente
contra os negros.
Questões contrafactuais são interessantes para sociologia histórica, mas são frustrantes
porque é difícil avaliar o que poderia ter acontecido. Com relação à história dos imigrantes e
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negros em São Paulo, há tendências contraditórias. A posição relativa dos negros certamente
piorou em função da imigração, mas por outro lado a riqueza da industrialização foi
viabilizada pela imigração, que além de fornecer boa parte dos empresários contribuiu muito
para a formação do mercado interno e do proletariado urbano. É bem possível que sem a
imigração São Paulo hoje seria mais parecido com o Nordeste brasileiro. No Nordeste a
situação dos negros relativa à dos brancos tende a ser melhor; na Bahia, por exemplo, a
grande maioria é negra, o que ameniza a discriminação racial, mas a população em geral é
mais pobre.
Há uma tragédia que tem a ver com o facto de que para a elite da época não era
prioritária a plena integração e cidadania dos negros. Para falar a verdade, eles só podiam
imaginar os negros em posições subalternas. Mesmo as elites abolicionistas pensavam que
seria bom se os negros fossem embora, voltassem para a África; não tinham um plano para
compensar e promover o negro depois da escravidão. Isso teria feito toda a diferença. No
sector agrícola, por exemplo, eles eram perfeitamente capazes de competir com os imigrantes,
mas os negros foram excluídos de quase todos os projetos de colonização de terras públicas
ou privadas com agricultores familiares.
Nardi Sousa: Pode esclarecer sobre o racismo e o movimento negro na atualidade?
Karl Monsma: Faz muito tempo que vigora no Brasil o mito da democracia racial, segundo o
qual é um país mestiço, pela mistura de europeus, africanos e indígenas, em que todos se dão
bem. Se os negros e os indígenas estão em posições piores, na média, que os brancos, isso se
deve, alega-se, à herança da escravidão, às diferenças regionais ou às desigualdades de classe,
tudo menos a discriminação racial. Muitos acreditam que foi o Gilberto Freyre que “inventou”
o mito da democracia racial na década de 1930, mas encontro discursos parecidos sobre a
brandura das relações raciais brasileiras já na época da abolição da escravidão e os positivistas
ortodoxos, que tinham bastante influência política no final do século XIX, já tinham sua
própria versão do “mito das três raças”, como é chamado hoje. Freyre sistematizou elementos
já comuns na cultura e no pensamento dos brancos, e ascresceu a exaltação do mestiço, que
anteriormente incomodava muitos intelectuais brasileiros, que preferiam a eliminação gradual
dos traços africanos pelo branqueamento da população, a ser realizado pela imigração de
grande número de europeus e o casamento destes com brasileiros. Com a noção de que o
Brasil é um país mestiço, encontrou-se uma maneira mais sofisticada de negar a existência do
racismo brasileiro. Essa virou a ideologia oficial do Estado Novo (1937-1945) de Getúlio
Vargas, que reprimiu as manifestações políticas e jornalísticas dos diversos grupos étnicos no
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país, inclusive dos negros. Mais tarde, a ditadura militar (1964-1985) também adotou a ideia
da democracia racial como ideologia oficial, e Freyre virou uma espécie de ideólogo oficial
do regime.
O movimento negro ressurgiu mais forte com a redemocratização e com a influência
dos movimentos negros dos EUA, do Caribe e da Europa, além de certa influência dos
movimentos anticoloniais africanos. O movimento questionou duramente a noção da
democracia racial. Isso foi ajudado pelas pesquisas sociológicas que mostraram claramente o
abismo que separa os negros e os brancos no Brasil, com os mulatos mais próximos aos
pretos, em termos de renda e condições de vida, que aos brancos. As principais reivindicações
políticas do movimento têm sido pelo reconhecimento oficial da existência do racismo no
Brasil e por políticas públicas, geralmente conhecidas como ações afirmativas, para
compensar pela discriminação racial e promover os negros. As demandas específicas são
principalmente a reserva de vagas para negros nas universidades públicas e nos concursos
públicos. Outra demanda, com menos ressonância entre os militantes urbanos, é pela titulação
das terras das comunidades negras rurais tradicionais, conhecidas como comunidades
quilombolas. A luta pelas ações afirmativas ganhou o apoio do presidente Fernando Henrique
Cardoso, um sociólogo que estudou questões raciais no passado e critivou o mito da
democracia racial.
Até agora o único aspecto do programa de ações afirmativas realmente implantado no
Brasil é a reserva de vagas para negros nas universidades públicas e um sistema de bolsas
para pobres e negros nas universidades particulares. Muitas universidades públicas já
implantaram algum sistema de cotas, e uma nova lei federal exige que todas as universidades
federais reservem a metade das vagas em cada curso para egressos de escolas públicas. Essas
vagas reservadas devem ser distribuídas entre brancos, pretos e pardos conforme as
proporções de cada grupo no estado onde a universidade se localiza. Poucos concursos
públicos incluem a reserva de vagas para negros e, embora muitas comunidades quilombolas
já ganharam o reconhecimento simbólico da sua existência, pouquíssimos deles ganharam os
títulos das suas terras, em função da oposição ferrenho dos latifundiários e do descaso da
burocracia do Estado.
Alguns críticos apontam que a reserva de vagas nas universidades públicas rende
lucros simbólicos e políticos para o Estado e para o movimento negro, que podem dizer que
estão agindo para melhorar a condição da população negra, mas ao mesmo tempo essa política
é relativamente barata, muito mais barata que o investimento massivo (em educação,
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empregos e infraestrutura urbana) que seria necessário para realmente igualar as condições de
vida e as oportunidades abertas a negros e brancos.
O movimento negro também tem dificuldades em atrair o apoio dos mulatos, ou
pardos. Como Kabengele Munanga mostra, muitos mestiços rejeitam a identidade negra
porque gozam alguns privilégios relativos aos pretos. Os pardos sofrem racismo, mas também
há o racismo de pardos contra os mais pretos, o que mina a unidade dos negros e enfraquece
suas tentativas de mobilização política. Muitos pretos também internalizam aspectos do
racismo, por exemplo, o preconceito contra o cabelo tipicamente africano, considerado
“cabelo ruim”. Os mais escolarizados e polizados rejeitam esses preconceitos e se orgulham
das suas raizes africanas, mas até agora constituem uma minoria relativamente pequena,
embora com tendência para crescer.
No Brasil o racismo toma uma forma cordial, negam-se os bons empregos aos negros
inventando outros motivos, sem mencionar a cor. Desde a independência não existe lei que
discrimina os negros livres, mas na prática existem formas de racismo e exclusão. O branco
está habituado a negros serviçais, a mandar em negros; como, por exemplo, empregadas de
limpeza ou contínuos dos escritórios. Desta forma, muitos negros têm relações pessoais com a
classe média e podem ganhar algumas coisas com isso. É uma relação de dependência e
lealdade.
Desde a escravidão assim é a dominação dos brancos da elite, sobretudo do Rio de
Janeiro para o norte. No Sul, onde a grande maioria da população é branca, a hostilidade aos
negros é mais aberta. Existem comunidades de brancos separados sem ligação com os negros.
Os negros sofrem maior exclusão do mercado de trabalho, porque é mais fácil contratar
trabalhadores brancos. O grau de exclusão dos negros tende a aumentar quando a população
branca é maior.
O racismo é mais forte na classe média, cujos integrantes raramente encontram pares
negros e por isso suas relações com negros são quase todas com subalternos. Entretanto,
muitos brancos, inclusive da classe média, frequentam cultos das religiões de matriz africana.
O Candomblé, no Nordeste brasileiro, e o Batuque, no Sul, são religiões mais puramente
africanas em origem, enquanto a Umbanda é mais sincrética, com elementos católicos e
espiritistas, e tende a atrair mais brancos, inclusive em posições de liderança.
Nardi Sousa: Como estão as Ciências Sociais no Brasil?
Karl Monsma: Apesar da repressão da ditadura e da cassação de muitos professores, o
regime militar investiu no ensino superior de qualidade, com ênfase nas engenharias e nas
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ciências exactas. Com a redemocratização, as ciências sociais também se beneficiaram do
investimento nas universidades e nas agências de pesquisa. Entre 1980 e 2000, mais ou
menos, deu-se um processo de institucionalização das ciências sociais. Nos últimos 10 anos
verificam-se mais qualidade e internacionalização, o que ainda não está totalmente definido.
No que concerne à internacionalização, no passado o Brasil dava muitas bolsas para a pós-
graduação no exterior. Agora nas ciências sociais só se faz estágio no exterior, um semestre
ou um ano durante o doutorado, ou estágios de pós-doutoramento. Verifica-se agora um
fenómeno em que muitos alunos estrangeiros vêm estudar no Brasil, sobretudo os da África
portuguesa e da América Latina.
Está-se numa procura de qualidade, que às vezes implica processos dolorosos de
avaliação. Existe uma velha geração de professores que não gostam de ser avaliados em
termos de produtividade na pesquisa. A carreira dos professores universitários no Brasil não é
muito meritocrático, porque as promoções são definidas principalmente por tempo de serviço,
não por produtividade científica ou qualidade do ensino. Será muito difícil mudar isso, porque
os sindicatos dos professores são poderosos e favorecem a promoção por antiguidade. No
Brasil existe um sistema burocrático e centralizado de avaliação. Tudo passa pelo Estado, com
certa participação e influência da comunidade científica. O governo premia professores que
pesquisam mais com uma bolsa, que aumenta o salário. Existe também o sistema de avaliação
de revistas científicas, mas ainda não há um sistema coerente para avaliar os livros. Com isso,
os livros ficam desvalorizados. Não dá para fazer a ciência somente com revistas e artigos,
especialmente nas ciências sociais e humanas, porque os livros são mais aprofundados.
Nardi Sousa: Que recomendações faria para as Ciências Sociais em Cabo Verde?
Karl Monsma: O Brasil é grande, e há muitas possibilidades para o diálogo interno, mas
Cabo Verde é muito menor. Por isso, o diálogo com pesquisadores de outros países é mais
importante ainda para Cabo Verde, que deve privilegiar o diálogo com a CPLP e com a África
Ocidental. São duas frentes de integração.
Para termos ciências sociais fortes em Cabo Verde, os alunos e professores devem
aprender inglês e francês, de forma a poderem interagir, frequentar congressos, etc. A
qualidade e o bom planejamento são mais importantes que a quantidade de congressos e
publicações. Por exemplo, acho que seria interessante realizar um congresso caboverdeano de
ciências Sociais a cada dois ou três anos, abrindo espaço para os estrangeiros, sobretudo os
africanos, apresentarem trabalhos em francês ou inglês. Alguns brasileiros certamente
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participariam também, mas existe um entrave importante à participação brasileira, que é o
custo das passagens do Brasil, caríssimas.
Ainda outra frente de internacionalização, potencialmente muito importante no caso de
Cabo Verde, seria o aproveitamento de pesquisadores e professores da diáspora. Um bom
número de cabo-verdianos já completaram cursos de pós-graduação na Europa ou nos Estados
Unidos e está lecionando ou desenvolvendo outras atividades nesses países. Acredito que
muitos deles estariam dispostos a participar em eventos ou atuar como professores visitantes
em Cabo Verde. Para isso, seria interessante instituir um cadastro de pesquisadores
caboverdeanos no exterior e um sistema de bolsas para eles atuarem como professores ou
pesquisadores visitantes. Também é importante tentar atrair alguns desses pesquisadores para
atuarem permanentemente em Cabo Verde, mas para isso seria necessário melhorar as
condiçòes de trabalho nas universidades cabo-verdianas. Não estou falando tanto dos salários,
embora estes sejam uma consideração também; acho mais importante garantir a estabilidade
no emprego e limitar o número de disciplinas que os professores-pesquisadores precisam
lecionar por semestre, para eles terem tempo para se dedicar à pesquisa. Além disso, é preciso
haver financiamentos para os projetos de pesquisa.