Revista Caravela

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América Latina EDIÇÃO 00 1º TRIMESTRE 2012 O sensível olhar de uma jornalista mochileira Viajar é preciso. O escritor Antonio Lino fala sobre suas andanças de Kombi pelo Brasil Eterna São Paulo. A metrópole insana, que se reinventa todo dia porque “navegar é preciso” Imagem: Willyan Noltng

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Revista Caravela - Edição 00

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América Latina

EDIÇÃO

001º TRIMESTRE

2012

O sensível olhar de uma jornalista mochileira

Viajar é preciso. O escritor Antonio Lino fala sobre suas andanças de Kombi pelo Brasil

Eterna São Paulo. A metrópole insana, que se reinventa todo dia

porque “navegar é preciso”

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Mande seus textos, ilustrações, ensaios, comentários e sugestões de pauta para:[email protected]. E acesse nosso blog: www.revistacaravela.com

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Sejam todos bem-vindos a bordo desta Caravela, que nasceu de um desejodespretensioso aliado à boa vontade de uma tripulação de colaboradoresque, sem ganhar nada em troca, resolveu embarcar comigo nesta viagem!

A nossa proposta é tão somente inspirar com textos que sejam maisque informações objetivas, afinal, o que é objetivo em um mundo comdiversas realidades e uma multiplicidade de verdades?

Não queremos ser mais uma revista com mais notí-cias e reportagens especiais. Queremos navegar pormares pouco explorados pelos veículos de comunicação:a literatura, a arte, a sensibilidade... Por que não aliar a subje-tividade à qualidade de informação?

A equipe de colaboradores da revista é constituída por jor-nalistas, blogueiros, escritores, artistas, designers, músicos eeducadores, aos quais agradeço imensamente pela disposi-ção e comprometimento.

Mais do que padrão editorial, buscamosnos envolver com os temas e lugares quevisitamos. E mais que apresentar informa-ções, queremos fazer com que você, leitor,agora passageiro desta embarcação, aprecie a viagem e o marde possibilidades que humildemente apresentamos a você.

“Navegar é preciso” é uma frase do poeta português Fer-nando Pessoa que muito me inspira. Acredito que novas pro-postas contribuem para uma sociedade mais diversa, livre edemocrática. E é por isso que a Caravela está aí, pronta parainiciar sua primeira viagem!

Espero que você goste!

Bruno Ferreira

Editor

Um mar de possibilidades

Tripulaçao

Editor

Bruno Ferreira

Projeto gráfico

Manuela Ribeiro

Arte

Manuela Ribeiro

Colaboradores

desta edição

Andrício de SouzaCarolina Lemos Coimbra

Elis LuaGabriela PessoaGisella Hiche

Hugo PazJuliana Olivieri

NovaesRafael Martini

Vanessa BalsanelliWan Leone

Werner Garbers

Jornalista

Responsá vel

Bruno Ferreira(MTb 62552/SP)

-

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06. Papo na Proa. Escritor relembra as alegrias da viagem quefez pelo Brasil por mais de um ano abordo de uma Kombi

12. Conheça a arte vibrante do artista Wan Leone

15. E as tiradas de Andrício de Souza

16. Rafael Martini relaciona Rock in Rio com o fim do regimemilitar brasileiro

17. MOCHILÃO PELA AMÉRICAJuliana Olivieri relata com emoção a experiência do contato comterras e hermanos latinos.

24. Gabriela Pessoa aborda os desafios da reinvenção de SãoPaulo, uma metrópole desmemoriada

26. Cidade, de Gisella Hiche, onde vive O mendigo, de Hugo Paz

27. São Paulo é caos e insanidade, para Werner Garbers

29. Carolina Lemos faz uma reflexão sobre responsabilidade epoder de escolha

32. Vanessa Balsanelli trata de uma Moda fora do circuito

34. Bruno Ferreira apresenta a todos o seu Amigo de Infância

35. E Elis Lua mostra como é amar intensamente.

Serviço de Bordo

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Ponto de Partida

Registrar ou esquecer?

O historiador francês especialista em livro e leitura Roger Chartier remonta opercurso da escrita e os meios nos quais as palavras eram inscritas, recorrendo afatos históricos e relatos literários na obra Inscrever e Apagar, da Editora Unesp.Chartier trata da relação entre o registro de acontecimentos e a opção de seus autoresem renegá-los ao esquecimento. O estudo aborda aspectos de Dom Quixote e outrasobras escritas entre os séculos 9 e 18, além da relação entre as inscrições e os mate-riais disponíveis para a escrita durante esse período.

Liberdade de expressão

O documentário produzido pelo Coletivo Intervozes Levante sua voz trata didaticamente do direitohumano à comunicação, prevista na Declaração Universal dos Direitos Humanos. O vídeo aborda a relaçãoentre poder, riqueza e meios de comunicação de massa, influência da mídia sobre a cultura e comportamentoda sociedade, além de esclarecer sobre a importância do exercício da liberdade de opinião e expressão, oque significa receber e emitir ideias sem restrições. Mas no Brasil a realidade ainda não é essa. O documen-tário de aproximadamente 16 minutos pode ser visto no site Youtube.

Poder nas redes

Com as redes sociais, é possível obter maior visibilidade na internet, mas nemsempre pensamos em maneiras eficientes de manifestação para aproveitar melhoros instrumentos oferecidos pelo Twitter, Facebook, Orkut etc. Tara Hunt abordaestratégias para potencializar a reputação e o valor individual dos usuários no mundodigital no livro O Poder das Redes Sociais, publicado pela Editora Gente. Ela uti-liza a palavra “whuffie” para designar o capital social e a reputação dos usuários nainternet. (Revista Viração, edição nº 76)

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Em 2007, a bordo de umaKombi, o paulistano Antonio Linoiniciou um processo de autoconhe-cimento. Inspirado pela obra Au-

tonautas da Cosmopista, doescritor argentino Júlio Cortázar,fez do veículo seu meio de trans-porte e moradia por um ano e três

meses, tempo que percorreu maisde 100 cidades brasileiras em buscade inspiração e novas experiências.O diário da grande viagem deAntonio Lino, que ultrapassa asfronteiras do Oiapoque, foi trans-formado em livro, de nome umtanto incomum, mas bastante

apropriado: Encaramujado. Oestilo do jovem escritor paulis-tano, formado em publicidade eativista desde a adolescência, re-vela mais que sensibilidade. Seusrelatos são repletos de sabedoria,qualidade talvez rara em homensde apenas 33 anos.

Viajar para dentroENTREVISTA: BRUNO FERREIRA | IMAGENS: ARQUIVO PESSOAL DE ANTONIO LINO

Papo na Proa

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Eu vi no site do livro uma cita-

ção sua bastante interessante,

que diz: “viajar é sair para den-

tro”. Essa citação justifica o tí-

tulo da obra “Encaramujado”?

Exatamente. A palavra "encara-mujado" faz alusão ao caramujo,molusco que carrega a sua pró-pria "casa" nas costas e, aomesmo tempo, tem esse sentidode se "encaramujar", ou seja, dese voltar para si mesmo. No livro,eu procurei revelar com os textosas minhas próprias paisagens in-ternas, digamos assim. Além deser uma viagem de Kombi peloBrasil, eu costumo dizer que foitambém uma viagem "pelos ca-fundós de mim".

Para fazer um exercício de au-

toconhecimento é necessário

viajar para outros lugares e ficar

tanto tempo fora?

Tem uma passagem do livroA Arte de Viajar, do Alain deBotton, que eu inclusive cito noEncaramujado, e diz assim:“Não é necessariamente em casao melhor lugar para encontrarnosso verdadeiro eu. A mobíliainsiste em que não podemosmudar porque ela não muda; ocenário doméstico mantém-nos

atrelados à pessoa que somos navida comum, mas que pode nãoser quem somos na essência”. Aviagem nos tira do lugar comum,literalmente. Viajar certamente fa-vorece o autoconhecimento. Paramim, funciona bem. Mas nãocreio que pegar a estrada seja aúnica forma de "encontrar nossoverdadeiro eu", pra usar a expres-são do Botton. Às vezes, não épreciso ir tão longe. Acho quemesmo entre os móveis da casa,dá pra manter a vida em cons-tante movimento. Talvez seja umpouco mais difícil. Mas não é im-possível. Cabe a cada um, viajanteou não, encontrar os atalhos paraa sua própria essência.

O que você descobriu sobre

você mesmo ao fazer essa via-

gem pelo Brasil?

Numa viagem longa como a queeu fiz, sem lugar certo para ir nemhora marcada pra voltar, a liber-dade exige muito do viajante. Aspossibilidades são todas. A todomomento, é preciso fazer escolhas.O que quero comer? Onde vouestacionar para dormir? Fico aquiou sigo para a próxima cidade?Quero conhecer gente ou ficar so-zinho no meio do mato? Enfim,

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era preciso decidir a todo instante,porque nada estava pré-definido,não havia uma rotina estabelecidaque me permitisse ligar o pilotoautomático e pronto. Então, pararealizar essas pequenas escolhas, atodo momento eu ficava me per-guntando: o que eu quero agora?O que é mais importante paramim nesse momento? E acho quepor conta disso, como eu viajei amaior parte do tempo sozinho,um dos meus maiores aprendiza-dos foi ter aprimorado esse meudiálogo interno. E isso eu trouxecomigo quando voltei para SãoPaulo: sinto que agora é um poucomais difícil esquecer de mimmesmo e me deixar levar pela con-fusão da cidade grande.

Por que viajar numa Kombi?

Durante os preparativos para aviagem, eu buscava um carro queme servisse ao mesmo tempocomo transporte e hospedagem.Além disso, sou um grande admi-rador do Júlio Cortázar, um escri-

tor argentino. E ele tem um livri-nho muito divertido chamado osAutonautas da Cosmopista emque ele narra uma viagem que elefez com a esposa, na França,numa Kombi vermelha. Depoisde conhecer essa aventura doCortázar, todos os outros carrosme pareceram menos interessan-tes. E eu acabei decidindo viajarde Kombi mesmo.

Você dormia sempre na Kombi

ou às vezes se hospedava em

algum hotel ou pensão?

Eu sempre preferia dormir naKombi. A não ser nos lugares emque fiquei mais tempo como, porexemplo, em Rio Branco, no Acre,em que me hospedei na casa deamigos. Ou então em casos extre-mos, como quando eu voltava deum dia de trilha na natureza e che-gava no carro muito sujo de lama,à noite. Aí eu apelava para umpensãozinha pra usar o chuveiro.Mas fora isso, em geral, a Kombiera o meu dormitório.

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Você conseguia descansar

numa boa dentro da Kombi?

Eu fui aprimorando a minha téc-nica para dormir dentro daKombi. A escolha do lugar eraimportante. Eu tentava sempreestacionar em algum canto quefosse ao mesmo tempo sosse-gado, mas que também não fossemuito isolado e nem muito es-curo, para preservar a minha se-gurança. Eu também geralmenteemparelhava a Kombi com algumterreno baldio, pro caso de preci-sar de banheiro numa emergência.Com um ano e três meses de ex-periência, posso dizer que fiqueiespecialista em estacionar aKombi para pernoitar.

Eu vi que no site que você foi

além do Oiapoque e chegou ao

Suriname e Guiana. O que te

levou a avançar a fronteira?

Naquele momento, se você meperguntasse qual era a capital daGuiana ou do Suriname, eu ficariaconstrangido e não saberia te res-

ponder. Em relação a outros paí-ses da América do Sul, eu tenhomelhores referências. Mas especi-ficamente sobre nossos vizinhos láde cima, para além do Oiapoque,minha ignorância era vergonhosa.Então decidi ir até lá, para apren-der na prática.

Por que a preferência pelo

Norte do país?

Eu já havia feito algumas via-gens pelo Brasil antes, nunca tãolongas como essa, mas já conhe-cia bem uma parte do Nordeste,um tanto do Centro-Oeste ebastante do Sul e Sudeste. ONorte ainda era para mim, na-quele momento, o canto do paísde que eu dispunha de menosreferências. Foi essa curiosidadeirresistível pelo desconhecidoque me motivou a viajar cincomeses pela Amazônia.

Você visitou 33 pontos do Brasil

ao longo de um ano e três

meses, certo? Você sentiu sau-

dade das pessoas do seu conví-

vio, teve algum momento que

quis parar com tudo e voltar

correndo pra São Paulo?

Pelas minhas contas, eu visiteicerca de 100 municípios em 15 es-tados brasileiros. Os 33 pontosque estão no site são apenas umaamostra. A saudade foi minhacompanheira constante durante aviagem. Especialmente aos do-mingos, no interior, quando aspessoas estão mais recolhidas, eusentia falta da minha família e dosmeus amigos. Mas a saudadenunca alcançou um ponto que mefizesse questionar a viagem e nemme fazia pensar em voltar. Erauma saudade saudável que, na ver-dade, me ajudou a valorizar maiscertos aspectos da minha vida que,enquanto eu vivia em São Paulo,nem sempre eu tratava com a de-vida importância.

Em entrevista ao programa Em

Pauta, da Globo News, você

disse que não é possível estabe-

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lecer um ranking dos melhores

momentos da viagem, e eu en-

tendo que todo o contexto da

viagem tenha valido a pena.

Mas entre as mais diversas for-

mas de cultura com as quais

você teve contato, quais situa-

ções mais te surpreenderam?

De fato, eu não consigo fazer umalista de lugares preferidos. Eusempre costumo dizer que cadacanto tem seu encanto. Mas emalguns lugares eu pude ficar maistempo e assim consegui experi-mentar com maior intensidade a

cultura local. Nesse sentido, oAcre me surpreendeu muito. Fuiacolhido de maneira bastante ge-nerosa em Rio Branco e pudeaprender mais sobre a história e astradições deste estado sobre oqual nós aqui em São Paulo, infe-lizmente, ainda conhecemos tãopouco. O contato com os povosindígenas, em especial o povo Ya-wanawa, me rendeu experiênciasprofundamente marcantes.

Você planejou o roteiro da

viagem ou preferiu seguir a

sua intuição?

Eu tinha alguns amigos que euplanejei visitar durante a viagem.E eu também me interessomuito pela cultura popular brasi-leira e sabia que, em determina-das regiões, em certos períodosdo ano, estariam acontecendocertas festas tradicionais. Então,em alguns momentos, eu moldeiminha rota ao meu interessepelo folclore. Mas em geral, euseguia mais a minha intuiçãomesmo.E apontava para ondeo vento estivesse soprando.

Conheça Encaramujado pelo site www.en-caramujado.com.br e textos de AntonioLino em www.dizquefuiporai.blogspot.com

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WAn LEOnE

“Comecei a desenhar na es-cola, sempre tive proble-mas de concentração. Aprofessora começava a darsua aula normalmente, e eucomeçava a rabiscar. E issonão me impedia de apren-der. na verdade, era aminha forma de me con-centrar para entendê-la.Rabiscava todas as folhasdo meu caderno, cada es-paço em branco que so-brava. Meus colegas diziamque eu tinha um traço ba-cana, mas nunca procureiguardar meus desenhos. Euos achava feios.

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1.

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Às vezes eu acho que vou pirar. Fico com as ima-gens na cabeça por dias martelando, pedindo queeu pegue o lápis e as desenhe. E quando finalizoum desenho sinto um misto de alívio e um leve can-saço, já que quando começo, fico ansioso para vero resultado, e acabo passando horas tendo opapel, o lápis e uma garrafa de café como compa-nhia. nunca fiz um curso sequer de desenho. Tudoo que sei aprendi observando os outros. Tenho háalguns anos como inspiração os desenhos de Eu-gênio Colonnese, e hoje em dia, nanda Corrêa.”

2.

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Wan Leone é editorador da cidade de São Mateus (ES). Assim

como o desenho, aprendeu sua profissão na base da observação

3.

Legendas: 1. Rafael | 2. Água Contida | 3. Eva

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No dia 15 de janeiro de 1985, TancredoNeves foi eleito, por meio de eleição in-direta, presidente da república, encer-

rando um ciclo de cinco presidentes militares. A eleição estava intimamente ligada ao movimentocivil que ficou famoso como “Diretas Já” - um dosmaiores apelos político-sociais da história do Brasil.As Diretas deram origem à emenda constitucionalDante de Oliveira, cuja reivindicação por uma elei-ção direta à presidência da república era, segundoo IBOPE, a vontade de 84% da população.

Mesmo rejeitada na Câmara dos Deputados, asmanobras populares deram força a articula-ções de oposição ao regime mi-litar, que culminou na vitória dopolítico mineiro Tancredo Neves.

E foi no começo deste mesmoano, entre os dias 10 e 21 de ja-neiro, que aconteceu a primeiraedição do Rock in Rio, umevento criado pelo empresárioRoberto Medina com o intuito de con-vidar o povo brasileiro a celebrar a liberdade.Após mais de duas décadas de repressão, o fes-tival colocaria o Brasil, enfim, como passagemobrigatória das grandes turnês internacionais.

Em um terreno de 250 mil m², oRock in Rio recebeu um público demais de 1,3 milhão de pessoas e con-tou com a presença de atrações inter-nacionalmente famosas como Queen,Iron Maden, Yes, Scorpions e AC/DC.

Ficou combinado que cada convidado faria duasapresentações no festival. O show mais esperadopelo público era o da banda Queen, que nos dias12 e 19 se apresentou para cerca de meio milhãode pessoas. Mais tarde, o show foi transmitido pelaTV Globo para toda a América do Sul.

A apresentação, com direito a abertura dosrockeiros do Iron Maden, teve seu momentoapoteótico na música Love of My Life. FredMercury foi obrigado a parar de cantar no meioda música para reger o coro entusiasmado com

mais de 300 mil vozes.Outro momento me-

morável foi quandoKlaus Meine, vocalista do

Scorpions, ergueu a ban-deira nacional em uma demons-

tração de respeito e admiraçãopelo povo brasileiro.

Não distante disso, em 8 de maiode 1985, o Congresso Nacional apro-

varia a emenda constitucional que davafim ao que restava do regime militar, ini-

ciado em 1964. Era então aprovada a elei-ção direta para presidente da república.

Em 2011, o Rock in Rio fez suaquarta edição no Brasil e a décima

pelo mundo, contando com festi-vais realizados em Lisboa e Madri.

Rafael Martini é jornalista e músico

Rock in Rio:a celebração do fim do Regime Militar

RAFAEL MARTINI

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Sem limites

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O aprendizado infinito e as inesquecíveisemoções de um mochilão na América Latina

Sentar num banco da pracinha de San Pedro de Atacama etomar um sorvete enquanto o Sol de 30 graus arde na paisa-gem seca do deserto. Provar uma empanada de camarão fres-

quinho no mercado central de Santiago. Tomar café numa dasvarandas da Plaza de Armas de Cuzco. Emocionar-se com a gran-diosidade de Macchu Picchu. Encarar um passeio de 4X4 por trêsdias no congelante Salar de Uyuni. Aprender a lidar com o ar rare-feito, os 14 quilos da mochila, o desconhecido dia seguinte, as dife-renças dos colegas e o cansaço do corpo. Despedir-se da Cordilheirados Andes da janelinha do avião.

Um sonho que aos poucos ganhou formas de realidades diferen-tes e inesquecíveis. Essa talvez seria a descrição mais fiel, se não fosseinjusto descrever impressões que ainda se transformam diariamente.Em setembro de 2011, com mais dois amigos, viajei para meu pri-meiro mochilão. No roteiro, Bolívia, Peru e Chile. Na bagagem, trêscalças, um par de botas, disposição aos montes e muita vontade dedescobrir e descobrir-me.

Entre o primeiro e o vigésimo dias, começo e final da viagem,dois trechos de avião: de São Paulo até Campo Grande na ida e deSantiago até São Paulo na volta. O restante foi feito de ônibus e trem,para tornar a viagem o mais barata e aventureira possível. Entre essescaminhos, fronteiras, encontros e imprevistos, vivi experiências in-críveis. Com prazer, relembro e compartilho algumas agora.

JULIANA OLIVIERI

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Jeitinho bolivianoDe Campo Grande até Corumbá são seis horas

de ônibus. Dormimos num albergue de simpáticoscontadores de histórias do Pantanal e seguimos,logo cedo, para a primeira de muitas fronteiras queencontraríamos dali pra frente. Atravessar a fron-teira se resume a entrar numa fila, às vezes demo-rada, carimbar o visto do país do qual está saindo,caminhar alguns metros até a imigração do outropaís e carimbar o visto de entrada. Simples. E paraviajar pela América Latina apenas carteira de iden-tidade basta. Comprovado!

Não foi ao atravessar, mas um pouco depois,que comecei a sentir a mudança de país. Nemtanto pela pobreza e as ruas de terra mal plane-jadas, costumeiras no Brasil e logo avistadas emPuerto Quijarro, a quinze minutos da fronteira,mas muito mais pelo semblante dos moradoresdali, impressão que me acompanhou em todas ascidades da Bolívia visitadas depois.

É uma expressão sofrida, mistura de descon-tentamento com impotência e descrédito. Des-cendentes de índios, com a pele escura e bastantemanchada pelo sol, trocam poucas palavras,abrem mínimos sorrisos, são desconfiados. Dá aimpressão de que pressa é mais dinheiro, e quemais dinheiro ainda é muito pouco para sustentar

uma vida digna. Não há tempo a perder com hi-giene ou atenção ao turista. O rolo compressorque parece passar pela sociedade boliviana, pelomenos nas ruas, onde tive mais contato, deixanos rostos marcas tristes, desesperançosas, semexpectativa e força pra enxergar algo melhorpara o futuro.

De Puerto Quijarro, embarcamos no famoso“trem da morte” rumo a Santa Cruz de La Sierra.Foram 13 horas a passo quase de tartaruga e comuma paisagem sem graça pra fora da janela. Valea experiência e as pessoas que cruzam os corre-dores estreitos do trem. Tinha vontade de pergun-tar a cada uma de onde vinha, como era ocotiadiano na Bolívia, para onde estava indo. Doalto de meu portunhol muito sem-vergonha, fi-quei só na observação.

De Santa Cruz, depois de um banho gelado de1 boliviano (R$ 0,25) na rodoviária, mais 13 horasaté La Paz, onde chegamos debaixo de chuva, ter-mômetro marcando zero grau e taxis fora de circu-lação por problema de abastecimento decombustível, comum no país. Talvez tenha sido omeu primeiro contato com o “se vira” de um mo-chilão. Apesar do cansaço de dois dias sem cama, ojeito foi respirar fundo e pensar em soluções, semperder o bom humor. Não foi fácil!

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A ilha mágicaUm lugar especial, onde a única lei é o poder da

natureza. Assim é a Isla Del Sol. Abraçada pelaságuas transparentes do Titicaca, ali vivem dois po-voados descendentes de indígenas. Em meio amontanhas e paisagens espetaculares, é possível vi-sitar interessantes ruínas do período inca. Essa at-mosfera secular se junta a simples pousadas,agradáveis moradores e um modo impensado de seviver, imprimindo à Isla Del Sol uma característicasingular, quase inacreditável, serenamente bela.

Em La Paz, inúmeros imprevistos com agênciase albergues. Acionamos a polícia turística três vezes,avistada facilmente patrulhando as ruas próximas àCalle Sagarnaga, a mais famosa do centro. É precisoter extrema cautela com valores, descontos, itensrealmente inclusos nos passeios, horários. Os boli-vianos, infelizmente, têm o péssimo hábito de men-tir para tirar proveito e, por mais sensitiva que eufosse, sempre acreditava e era pega de surpresa denovo lá na frente.

Uma visão comum e curiosa por toda a Bolívia,são as cholas carregando suas proles nas costas.Cholas são senhoras, na maior parte das vezes gor-dinhas, com os cabelos negros e um chapeuzinhomuito particular na cabeça, parecido com o do Cha-plin, mas um pouco menor. Elas dobram aquelespanos coloridos vistos em todas as esquinas de talforma que suportam um peso incrível. E lá vão elas,pra cima e pra baixo com as crianças sacudindo.Nunca caem. A maioria das cholas usa pedaços deouro encapando alguns dentes. Descobrimos comum taxista que é uma forma de chamar a atenção,sentem-se mais atraentes e, por isso, muitas bolivia-nas (e também os homens) guardam dinheiro paraalcançarem esse diferencial.

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Para chegar a esse paraíso pouco descoberto(ainda bem), partimos de La Paz rumo à cidadede Copacabana, norte da Bolívia. Viagem de qua-tro horinhas que mais parece um leve passeio re-pleto de vegetação por todos os lados. As curvastiram a impressão do quanto estamos ganhandoem altitude desde La Paz: de 3660 para 3840 me-tros. Dá-lhe tontura.

De repente, um inquietamento toma conta detodos no ônibus, recheado de nacionalidades domundo inteiro. Suspiros incrédulos, máquinas apostos, brilhos nos olhos. É o Lago Titicaca quecomeça a se mostrar pelas janelas. Não dá pra al-cançar onde termina, comprovei que o segundomaior lago do mundo é realmente de uma imen-sidão escandalosa.

Com a companhia do Titicaca até o fim da via-gem, a ansiedade é grande para conhecê-lo maisde perto. E duas horas de barco partindo de Co-pacabana nos levaram, nas águas calmas do lago,até o norte da Isla Del Sol.

Esqueça trânsito, barulho, celular, internet, de-predação e tantos outros “ares” dessa vida loucadas grandes cidades. Pisar na Isla Del Sol é se dis-por a viver naquele outro mundo que, me parece,deveria ser o normal.

Converse com as pessoas. Elas não estão tris-tes clamando por desenvolvimento e tecnologias.O único apego, ali, é com a Pachamama. Do que-chua Pacha (universo) e Mama (mãe), Pachamamapara os povos latinos é a natureza, a mãe sagradaque permite a existência e a sobrevivência dequalquer forma de vida e que, portanto, deve servenerada acima de tudo. O respeito que eles car-regam pelas leis da natureza é de cutucar qualquerum por dentro, faz a alma refletir. E imprimiu emmim um sentimento de gratidão pela Isla Del Sol.

Sonho de criançaOs lugares que meus pés conheceram no Peru

são mágicos. O país abriu meu coração pra sentirde fato o legado deixado pela ainda misteriosa civi-lização inca. E é um mistério sentido de perto,construções inexplicáveis que intrigam o mais des-crente visitante.

De Copacabana para Cuzco, 12 horas. Mais umanoite para enfrentar de ônibus. Apesar de chegar àscinco da manhã no albergue, oferecido entre tantosoutros na rodoviária, a primeira impressão da cidadefoi encantadora e me lembrou Paraty, no litoral nortede São Paulo. Ruas estreitas de pedras largas, cons-truções baixas e antigas, um céu azul espetacular.Clima histórico e boêmio. Foi paixão à primeira vista.

A paixão só veio a crescer, fosse pela aconche-gante Plaza de Armas, rodeada por varandas decafés e restaurantes e uma catedral imponente, de1536, ou pela atmosfera intimista das baladas eclé-ticas, frequentadas por estrangeiros do Japão à Lu-xemburgo e regadas a pisco sour, uma bebida abase de pisco (aguardente da região), suco de limãoe clara de ovo batida.

No terceiro dia em Cuzco, eu acordava para par-tir rumo a um sonho. Até Ollantaytambo, duashoras de carro com muitas lhamas e alpacas. De lá,um trem panorâmico sobe uma hora e meia porentre montanhas e chega numa estação de trem emÁguas Calientes, cidadezinha aos pés de Machu

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gumas incrédulas por estarem diante de algo im-pensado, surreal.

Fui embora grata ao universo por essa sensaçãoúnica de pertencer ao mundo. Estar em MachuPicchu é compreender que nem tudo pode ou deveser compreendido, mas pode ou deve ser sentido.

Três dias pelo deserto“Fechem os olhos e abram apenas quando eu

deixar”. A frase, dita pelo guia nos primeiros mo-mentos do passeio, não poderia ser mais opor-tuna. Juanito brinca com os turistas porque sabeque quando disser “podem abrir”, a reação serásempre a mesma: “aaaaaaaaahhhhhhh”. Estar nomeio do Salar de Uyuni, o maior de sal do planeta,faz perder o fôlego. É uma paisagem que os olhosdesconhecem. A outra recomendação é não tirar

Picchu, onde obrigatoriamente todos que queremir ao parque arqueológico fazem parada.

Apesar da estrutura impecável para receber pordia mais de 1500 turistas, Águas Calientes preservaa intimidade de ser praticamente um vale, encrus-tado em montanhas milenares com histórias emais histórias, contadas sem descanso por sorri-dentes e tranquilos moradores. Basta estar lá, res-pirar o ar, para se sentir na casa dos incas. Apoucos metros, mais pra cima ainda, dez minutosde ônibus, a entrada para o sonho.

O coração disparou e nada que quisessefalar faria sentido algum. Só o sentir imperava.E eu entendi o que é estar em paz. Foi umchoro de criança que veio umas três vezes, du-rante as seis horas que caminhei pelas ruínasde Machu Picchu. Lágrimas com sabor de feli-cidade, realização e contentamento simples, al-

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os óculos escuros pra nada durante o dia. São tan-tos quilômetros de chão branco que a claridadeameaça as retinas.

O infinito branco é o começo do passeio de trêsdias com dezesseis pessoas: seis turistas, dois moto-ristas, um guia e uma cozinheira se acomodam emduas caminhonetes 4X4, o único jeito de atravessaro deserto, localizado no sudoeste da Bolívia.

Partimos da pequenina e pacata cidade deUyuni, onde estrangeiros apreciam um té de mate(chá local) enquanto tentam se esquentar, às dezda manhã. No nosso carro, um australiano, umaamericana e uma canadense muito animados can-tam e falam o tempo todo, enquanto sacudimosrumo ao nada – por muitas vezes, me perguntocomo o motorista pode saber qual direção seguir,já que não há bússola, marcas, pontos de referên-cia... Nada. Apenas a imensidão do deserto.

Para quem faltou nessa aula de história, o guiaJuanito responde todas as perguntas sem nempensar. São nove primaveras pisando naquelechão, que há aproximadamente 40 mil anos for-mava um enorme lago. Paramos para almoçar naIsla Del Pescado, uma enorme formação mon-tanhosa no “meio do nada”, literalmente. Enfei-tam a ilha milhares de cactus, que crescem ummetro a cada ano. Fica o gostinho de voltar noverão, quando a água das fortes chuvas escorrepelos andes e inunda o salar, reluzindo paisagenscinematográficas.

Cai a tarde e a sensação térmica acompanha,causando em mim um tremendo mal estar. Esta-mos hospedados num hotel de sal, muito curioso,mas não consigo aproveitar tanto. Além de nãome acostumar bem ao frio desde criança, vinhade uma recuperação de dias com febre e resfriado.

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lhar sem querer sair. É um bálsamo depois de trêsdias com mais de três blusas, duas calças, meias, ca-checois e luvas e, mesmo assim, sentindo frio.

..........Apesar da primeira tentativa, “mochilar” ainda

é um verbo desconhecido. Talvez seja pra sempre,pois não há viagem mais dinâmica do que vestiruma mochila nas costas e partir. Rever as mais demil fotos mexem com meu coração viajante, queaprendeu nessa aventura uma lição dura, mas maissimples do que parece: aproveitar cada segundo enão se apegar.

O mundo está aí, colorido, vivo, pulsante, nuncapronto, mas sempre aberto para transformações.Pode existir algo mais humano do que viver outrasformas de se viver? Novos gostos, sons, olhares,vozes, gramas, moedas, medos, emoções? No mo-mento, desconfio.

Nada mais justo do que terminar essa matériacom minhas meias coloridas de lã de alpaca, to-mando um té de mate e em plena sintonia com a lá-grima de felicidade que escorre. Até a próxima!

Juliana Olivieri é jornalista e escreve crônicas para o

blog 20 e tantos ganchos: www.20tantos.wordpress.com

É preciso respirar fundo e encarar o segundo mo-mento “se vira” com paciência. Não há médicosnem hospitais por perto. Começo a refletir comoa vida é frágil e quanto o ser humano é capaz deaguentar situações extremas. Não é pouco.

No segundo dia, a caminhonete passa a rodar emcima de terra firme. Marrom. Árida. Seca. Poeira. Apaisagem é muito semelhante a cada vez que acordo,entre um cochilo e outro. São horas de quilômetrosrodados e poucas paradas, para apreciar lindíssimaslagunas, flamingos, vulcões e montanhas. Longe detudo o que é tão cotidiano, me sinto abraçada pelanatureza em suas distintas formas.

Na segunda noite, dorme-se num abrigo simplese muito frio. Sem abastecimento de água, utilizamoslencinhos umedecidos para a higiene. Luz elétricatambém é parcial: temos duas horas pra carregar asbaterias das câmeras e organizar a mala, pois às4h30 acordaremos para a infelicidade do meucorpo, que reclama ininterruptamente do frioabaixo de zero.

Apenas nas madrugadas é possível apreciar osgeysers, gases que emanam de buracos no chão dodeserto, fenômeno causado pela atividade vulcânicado local. É uma experiência rara e congelante. Acompensação vem na próxima e última parada,uma incrível terma de águas a 40 graus. A coragempermite arrancar a roupa em meio ao frio e mergu-

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Legendas: 1. Lhama em Machu Picchu (Juliana Olivieri) | 2 e 3..Cholas (Anderson de Souza Pinto) | 4. Crianças em IslaDel Sol (Juliana Olivieri) | 5. Vista da Isla Del Sol (Willyan Nolting) | 6. Catedral na Plaza de Armas, em Cuzco (WillyanNolting) | 7. Vista de Machu Picchu (Willyan Nolting) | 8. Hotel de Sal (Juliana Olivieri) | 9. Salar de Uyuni (Juliana Olivieri)

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Há alguns anos, São Paulo ganhou o rótulode cidade veloz. A velocidade impressio-nante da cidade remetia às atividades co-

merciais, industriais, aos carros, ao transporte e, deum modo geral, à movimentação das pessoas. Essefato ainda hoje é facilmente verificável se observar-mos a entrada e saída dos metrôs em horário depico, ou se andarmos em centros financeiros da ci-dade, como a Avenida Paulista. De qualquer ma-neira, hoje podemos questionar a velocidade dacidade se tivermos como pano de fundo o trans-porte urbano e o trânsito. Mas São Paulo tambémdetém esse título por conta da velocidade com quemuda de “cara”. A facilidade com que ela se rein-venta diariamente, aos sabores das especulaçõesimobiliárias ou aos investimentos em infraestrutura.

Se deixarmos de passar por algum tempo em de-terminada rua ou bairro, podemos nos espantar. Sãotantos edifícios erguidos, alguns outros demolidos,uma loja pode ter dado lugar aos tapumes da cons-trução do metrô e uma casa antiga pode ter sidovendida e demolida para ceder lugar a algum edifíciode alto padrão.

Sim, podemos pensar que mudanças podemser boas e podem trazer melhorias para a cidade.Por outro lado, podemos pensar que a avalanchede novos edifícios e construções só servem para

inflar mais a cidade e, nesse caso, não há infra-estrutura que dê conta do número de pessoas. Masesse texto pretende trazer uma pequena reflexãosobre a nossa vivência em uma cidade que tododia acorda diferente, com uma nova configuraçãoda paisagem. Prédios demolidos rapidamente,outros tantos erguidos, locais onde anteshavia movimento, hoje há abandono.

Essa constante reinvenção urbana não é umfato atual. Desde que São Paulo deixou de ser umapacata vila, para se transformar em centro econô-mico, impulsionado pela produção do café, auto-ridades públicas investem para que a cidade sejaconstantemente reinventada, e que todo o passadoassociado ao atraso “colonial”, seja apagado. Hojea lógica é a mesma, mas com um fator agravante,a especulação imobiliária. Se uma região começaa indicar sinais de valorização, os preços dos imó-veis disparam. Se outra região está degradada, logoiniciam os planos de revitalização, que muitasvezes incluem demolições e desapropriações. Paraos imóveis históricos é pior ainda. Sabe-se que émuito mais fácil e rápido investir na demolição doque no tombamento e, sendo assim, poucas casasde época sobraram na cidade.

A questão urbana segue a lógica da velocidadeda cidade, da velocidade das transações econômi-

São Paulosem passado?Desafios da reinvenção da metrópole

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GABRIELA PESSOA

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E apesar de toda essa velocidade, ainda hojetemos o privilégio de andar por regiões de certomodo resistentes. Algumas fachadas de casinhasantigas entre o Brás e o Parque D. Pedro, as ruasda República com suas galerias, a casa que servede sede à Casa das Rosas, o prédio que sedia oCentro Cultural Banco do Brasil, e outros edifíciosque hoje sediam espaços culturais são importanteslocais em que podemos olhar as paredes e muitasvezes conhecer um tempo que já passou. E é im-portante conservarmos esse locais, e atravésdeles conservarmos o processo histórico da ci-dade, pois muitos dos problemas de planeja-mento urbano que vivemos hoje são resultadodas escolhas do passado. E poderíamos acrescen-tar que de um passado não tão distante assim.

Gabriela Pessoa é historiadora, formada

pela Universidade de São Paulo (USP)

cas. Em poucosmeses podemos en-

contrar mudanças con-sideráveis em diferentes

lugares. Se falarmos de anosentão, a situação é ainda mais

impressionante. Se lembrarmos quehá pouco mais de cem anos as pessoas

nadavam, pescavam e praticavam esportesno rio Tietê, podemos nos surpreender. O

centro da cidade, formado pela região doAnhangabaú e República, hoje alvos de revitaliza-ção, reuniam os centros de compras mais frequen-tados pela elite paulistana no início do século 20.A região da estação da Luz, com movimento fre-quente de trens que levavam o café para Santos,hoje é um pólo cultural com museus e espaços decultura, apesar da ainda grave questão do consumode crack na região. A Avenida Paulista, coração fi-nanceiro e cartão postal da cidade, em 1900, con-centrava os casarões de pessoas ricas em uma viatoda arborizada.

Difícil de acreditar? É porque São Paulo conse-gue mudar tão rápido em pouco tempo que algu-mas vezes perdemos esses vestígios. As mudançassão cotidianas, e são tantas que fica difícil percebê-las, ou lembrar como era antes.

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Adensado de gente, uma morando em cima da outra, todas precisando, odiando, cansadas, modernas,antigas, com pressa, entediadas, vigaristas, religiosas, vindas de cima, de baixo, do lado do mapa, urgentes,móveis, soturnas, irritantes, interessantes. Cidade que insiste em tornar-se profícuo território, forma inson-dável. Palavra que já vem com demolições, vidas inteiras, preconceitos, tempos. Palavra pegajosa a intro-meter-se nos sussurros dos casais, nas negociações dos empresários, na descoberta das crianças, nasdiscussões no bar. Território demandante de atenção, de escritas, de estudos, de intervenções, de governo,de protesto, de indiferença, de ficar nela, empanturrar-se dela, dissipar-se, já não conseguir distinguir ocorpo das vias, dos cheiros, dos helicópteros e dos ratos. O pensamento inesgotável e inapreensível é cidade.Eu corro atrás dele, anotando o que posso, como posso, sem querer parar, sem poder apertar o stand bypara esperar que a terra se assente, que a humanidade se decida. Uma, duas, três xícaras de café (…)

http://teias.wordpress.com/

CidadeGISELLA HIcHE

O caldo da tristezaEstava plantado na mente vazia.O mendigo não tinha fé!Seus olhos eram geladosComo a neve.

As raízes de sua almaPerdiam o sulco da essênciaNo rastro da poeira sinistraDado pela falsa espécie!O mendigo não tinha cançãoSeu alimento era a oração.

A sarjeta mudaEra sua fiel companheira.O mendigo não tinha morada.O consumoDo absurdoEngoliu suas vontades.

O canto que brotavaEu teu semblanteEra de raivaContra os dragões Do sistema.

Seus olhos vomitavamO desgostoPela carneSem rosto.

O mendigo,Guiou seu rumo sem fala.Seus passos...Não davam sentidoA lugar algum.

Hugo Paz é escritor

O mendigoHUGO PAz

Manuela Ribeiro

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WERNER GARBERS

P/ o paulistano, o materialbruto d trabalho, a tal vida,é sempre vista como caos cidadesco

Qdo c coloca o termômetro nessa cidade doente, daídizem q ela reflete os problemas do país!Q drama minha filha!Vc sempre entrou num clube pequeno burguês p/ se sarar,pq ñ o faz nessas horas?

S/ praças,C/veiasentupidas,

(((o)))ooo simplesruralpuroñ existe/é só conto da

carochinhaTrabalha-se c/ idéias,mas ñhá sonhos,nem os +loucos delírios,desejos.Kem nasceaki já nasce c/ o corpo decepado!É só cabeça!corpo só naacademia, seja qual for,onde c vegeta decorpo inteiro,

Manuela Ribeiro

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A poesia c desmancha, c dissolve no gás carbônico, no trânsito, na sombra dos edifícios. Valetas, postes,caçambas, descargas, chafarizes-banheiras, td que temos em excesso é sólido, claro, direto, preciso. 1 prédiosó reflete ao outro a sua frente! Falta pontuação e sentido

Este lugar é ond a publi/cidade usa rostos dos falsos conhecidos, os famosos. Onde ñ c identificanem c conversa

Real ñ é o campo, nem os pampas, os alimentos, o sertão, nem a espera ou o sentir a garoa,nem o litoral, nem perceber a luz, a bruma e o dourado da cidade Ñ é o interior o estar sozinhoSão os infindos patamares, anti ou poéticos?, de estacionamentos subterrâneos...

É o produto, o caos solitário e insensível, a descomunhão.Ter as 24h ocupadas, s/ fé ou esperança.

Ñ o belo e o livre É o quadradão e o aparecer Ñ o caos criativo do ser.É ond ñ existe carona e a única constante o fluxo dos carros.

Ñ é como Machu Pitchu, mesclada à natureza. Só há fragmentos d culturas d outros lugares! Sampaprodígio e pródigo, s/ pátria mãe à qual retornar.

São Paulo dá td (q é merda) p/ o Homem, só ñ dá o genérico “Brasil” e o brasileiro (talvez mostre umad suas representações e a vende) Ela transforma qq 1 q nela chega em paulistano, metropolitano, cidadãodo mundo, anônimo, desmemorizado e esquecido, no máximo poeta concreto

Assim, essa cidade nos traz a necessidade d ser artista e se buscar. E qdo o paulistano, q só fala sozinho,abusa do poema, sua poesia fica como aqui: seca, c/ um quê d caos semi-ordenado em sua raiz, racional.Ñ cria um ambiente poético ou até agradável c/ as palavras p/ dps falar o q lhe interessa, é incisivo, direto,pragmático, começa um texto longo e pró-lixo (como td em Sampa) Ele apenas tenta controlar as palavrassoltas, duras, rudes, s/ rimas ou metáforas, sei lá se c/ vida ou ñ (como tds lá)

No início até busca o poema, mas dps ñ pára d escrever d tanto ver a solidão em q está, e é em prosa q eleacaba c esprimindo e decide caber num concurso/publicação. Como aqui, nada rima nem c poetiza, c pesquisa,busca-c, desesperadamente, significados (qsq) p/ suportar a cidade desvairada...e c contenta c/ a propaganda!

C/ o apego ao material e ao trabalho, queremos compensar a falta de afeição às memórias do lugar... Tb édessa forma q aki qq coisa vira relíquia e indulgência, e c criam, hj e sempre, fatos/falsos históricos - bandeirantes!

Lugares d tds lugares desse país! Brasil, c real// existem, libertemos-nos dessa pequena e repetitivacidade, desse tirano empresário q nos vende e explora.

trechos de “São Paulo’, Werner Garbers

Ilustração: Novaes

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Um dia desses fui ao cinema com uma amiga.Eu não assisti ao filme e a “questão” queme fez não assisti-lo talvez seja assunto para

outro texto. O que quero aqui é contar a conversa quetive para tentar assistir ao filme e que ficou muito maisinteressante para mim que assistir ao próprio filme.

Em certo momento me percebi conversandocom o cara que trabalha na bilheteria e ele me disseque não podia fazer nada em relação à minha situa-ção e eu perguntei: “Quem pode, então?” Então,ele chamou o Vitor.

Depois de uns cinco minutos, Vitor sai da bilhe-teria por uma porta lateral e me pergunta: “Qual oproblema?”. Eu lhe explico a minha situação e ele mediz: “Eu não posso fazer nada, não posso abrir umaexceção para a senhora”. Eu lhe digo que estou cu-riosa em saber o que lhe impede de abrir uma exceçãopara mim e ele me diz: “São ordens superiores”.

Então, seguiu-se a seguinte conversa:— Vitor, quero falar então com essa pessoa que

tem poder de decisão, que pode me ajudar.— Eu sou essa pessoa. Não podemos abrir ne-

nhuma exceção.— Ok, Vitor, então eu quero saber seu nome

completo. Quero saber quem tomou esta decisãoque afeta minha vida e a de outras pessoas. Qual oseu nome completo?

Desculpe, sãoordens superiores

cAROLINA LEMOS cOIMBRA

Quero um mundo onde cada um se responsabilize por suasações. Como viver sem perceber nosso poder de escolha?

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Desculpe,são ordenssuperiores.

Desculpa, maso que eu podia

fazer, já fiz.

SÓ VITOR

SÓ CELINA

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— Meu nome é Vitor. Não vou te dizer meunome completo. Se não está satisfeita, você podeligar na reclamação.

— Eu não estou satisfeita mesmo, Vitor. Queroentender como funciona este sistema em que nin-guém é responsável. Quem decide as coisas por aqui?

— Tem a Celina, que é a gerente.— Ok. Qual o nome completo da Celina?— Eu não posso dizer.— Chama a Celina aqui para eu conversar com

ela, por favor?Depois de uns quinze minutos chega a Celina.— Qual o seu problema?Eu explico a minha situação e ela me diz que

pode abrir uma exceção.— Celina, para mim é importante saber quem

está tomando decisões que afetam a minha vida.Você poderia me dizer seu nome completo?

— Não posso te dizer. É Celina e pronto. É issoque está no crachá, veja.

— Tem alguém aqui além de você que é respon-sável por este cinema e pelas decisões que são to-madas aqui?

— Sim, mas não está hoje.— Quem é essa pessoa e quando estará?— Hoje sou eu a responsável. Desculpa, mas o

que eu podia fazer, já fiz. Casos como o seu passam

por aqui diversas vezes por dia. Preciso cuidar deoutras situações que estão acontecendo. Não possote dizer o meu nome completo.

E saiu para cuidar de outros clientes.Fui procurar uma mesa para sentar e papear com

a minha amiga (que durante esse tempo ficou aomeu lado acompanhando a discussão). Indo em di-reção à mesa, me percebi triste e com indignação. Euquero viver em um mundo no qual cada um de nósse responsabiliza por suas ações e atitudes. Se são“ordens superiores”, se “não posso fazer nada”,“não posso te dizer isso ou aquilo”, quem pode?Como vamos viver e nos empoderar de nós mesmose de nossas atitudes e ações no mundo se não per-cebemos nossa responsabilidade e poder de escolha?

Se não é o Vitor nem a Celina quem decide pelocinema, quem é? O cinema? E quem está sendo ocinema? Penso ser gente, pessoas como eu e você, anão ser que o cinema tenha virado uma entidadeviva. É… uma estrutura. Estrutura que não está maisnos servindo e que passamos a servir sem nos darconta. E sinto muito medo, medo por não confiar(por experiência própria) que uma sociedade comsistemas assim possibilite com que eu viva como serhumano e me conecte com outros seres humanos.

Será que o Vitor e a Celina se veem como hu-manos? Que têm responsabilidade e escolha? Me

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Carolina Lemos Coimbra está investigando as rela-

ções entre Educação, Comunicação e Não-Violência, es-

pecialmente em si mesma. Pode ser encontrada pelo

e-mail [email protected], em seu blog Ato

Vivo, nas ruas e nesses textos. (Texto publicado original-

mente no site Outras Palavras: www.outraspalavras.net)

parece que nesse momento eles se sentem insegu-ros de tomar qualquer decisão em nome próprio ese responsabilizar por elas. Talvez porque “o sis-tema”, quer dizer, “o cinema” os possa punir.

E eu nesta história toda? Me responsabilizei porcuidar de mim e cuidar da Celina, do Vitor, daminha amiga e do cara da bilheteria? O que eu fiz?Quando decidi pedir o nome completo foi na ten-tativa de mostrar para eles que para mim é impor-tante que cada um de nós se responsabilize peloque faz, por suas decisões e escolhas. Foi a estra-tégia que encontrei naquele momento para isso.

Agora, em um ponto da conversa eu faleipara o Vitor que ia escrever uma matéria sobreessa situação, e por isso, precisava do seu nomepara colocar como o responsável por aquela de-cisão. Em outro momento, disse para ele que iachamar, então, a polícia para resolver a situação.Sinto tristeza e decepção porque nos momentosem que fiquei desesperada e sem saber o quefazer, precisando de ajuda, usei também depoder sobre ele (sou jornalista e posso te ferrar)e quase permiti que usassem de poder sobremim mesma (a polícia consegue decidir e cuidardisso, não eu, nem você. Olha eu aqui terceiri-zando minha responsabilidade e escolha, entre-gando o poder de ação que tenho).

Meu aprendizado: continuar prestandoatenção para investigar formas de poder come para me libertar do poder sobre ou sob.

Eu sou jornalista!Eu chamo a polícia!

Quem é responsável?

Quem é responsável?

?

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Fora do circuito fashionista paulista, conhe-cido como São Paulo Fashion Week e Casados Criadores, acontecem apresentações pú-

blicas de moda pela cidade. Seja em centros comer-ciais, por universidades de moda, ou realizaçãoindependente de grupos, a intenção de aproximara moda do grande público vem se tornando cadavez mais presente.

Com oportunidade de exibirem seus trabalhos,as designers de moda Andiara Pires (22), CarolinaCampos (25) e Tabata Resende (24) participaramde alguns desfiles propostos em ambientes fora dousualmente apresentado, onde puderam experi-mentar as diversas funções necessárias para viabili-zar um desfile.

A motivação para participar dessas apresenta-ções, segundo Tabata, seria “promover o nome edivulgar o trabalho em maior escala”. Ela e Carolinapropuseram uma coleção inspirada nas obras do es-critor Edgar Allan Poe. Andiara uniu-se a duplacom a coleção sobre navegações portuguesas dosséculos 15 e 16, que desenvolveu com colaboraçãoda coleção de sapatos de Ana Paula de Andrade. Arealização desse desfile conceitual, no qual as ves-timentas não têm caráter comercial, recebeu onome Por Mares Nunca Dantes Navegados, eaconteceu pela coordenação da produtora e mes-tranda Jô Souza.

Modaalém docircuito

VANESSA BALSANELLI

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Os desfiles ocorreram em meses espaçados doano de 2011. Em janeiro foi na Mostra de Cinemada Moda, no Centro Cultural Banco do Brasil,ponto inicial do desfile, que passou pelas ruas docentro de São Paulo. E em julho aconteceu du-rante o 1° Confirbecom (Congresso MundialIbero-americano de Comunicação), no MASP,desfile que fez da Avenida Paulista sua passarela.

As vestimentas foram ricamente desenvolvidasem texturas e detalhes, com modelagem única emformas rígidas nos casacos, que contrastavam comas formas fluídas dos vestidos e camisas. A palhetade cores em tons pálidos, com toques de preto evinho, permearam a coleção propondo contrasteentre leveza e austeridade.

A produção de um desfile mostra a necessi-dade do envolvimento de vários grupos que seresponsabilizarão por cada parte da realização doevento. Quando o orçamento é curto para contra-tar diversos profissionais, é preciso disposição etempo para organizar todos os detalhes. Carolinaressalta que “A falta de estrutura prejudica a pro-dução do desfile. “É preciso correr atrás de orça-mento para araras (suportes onde as roupas sãocolocadas para facilitar a troca das modelos, alémde acessórios e sapatos). Foi preciso até mesmofazer o papel de assessoria de imprensa, confec-cionar e distribuir convites.”

Em um desfile de imprensa, feito para exposiçãona mídia, na primeira fila constam jornalistas demoda e figurinhas do circuito fashionista. A intera-

ção entre expectador e coleção acontece através doolhar e das palmas. Já o desfile de performance, denarrativa teatral, permeia a roupa e marca o ritmona passarela e a interação é diferente.

Para Andiara, o desfile que ocorreu no centroda cidade, onde as modelos saíram do Centro Cul-tural Banco do Brasil e percorreram as calçadasdo centro, provocou o público. “As pessoas inte-ragiram acompanhando o desfile como uma pro-cissão, havia pessoas que achavam que era ocapítulo de alguma novela. Foi incrível!”. Para Ta-bata também foi o lugar onde a coleção mais in-teragiu com o ambiente, com os prédios antigos.Embora seja de aprovação geral, de acordo comsuas idealizadoras, o evento que aconteceu noMASP foi onde houve maior percepção do pú-blico a um desfile de moda.

Carolina considera importante que a modaseja feita fora do circuito fashionista como formade torná-la mais cotidiana e, talvez, mais demo-crática. Ela diz que o objetivo é “abranger esse pú-blico que não tem contato com o mundo damoda, que não teria acesso a um desfile.” Sur-preender a rotina daqueles que passam, emocionare marcar a memória com algo tão incomum sãopapeis da moda. E àqueles que se entusiasmarame querem se aventurar é importante saber: muitadeterminação e informação são necessárias.

Vanessa Balsanelli é designer de moda

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Foto

s: Dan

iel Malva

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Ainda na infância ele me visitava com fre-quência. Aparecia sem mais nem menos,como se fosse outra criança em busca de

uma companhia para brincar. E eu, na minha ino-cência e fragilidade o acolhia. E sofria além do nor-mal para um menino da minha idade. Não foi umconvívio fácil, tampouco agradável, mas passáva-mos horas juntos. A única companhia que restavapara mim.

Ele não me incomodada tanto. Pelo menos nãoera o que eu sentia. Ao contrário disso, dava-me se-gurança, preferia ficar quietinho comigo, sem fazeralardes, mas me protegia excessivamente. E eu gos-tava disso. Mas chegava a me sufocar com o seuciúme quando notava situações em que eu, prova-velmente, me sentiria liberto de sua presença, aomenos por um instante.

Nessas ocasiões, agredia-me com violência.Não tinha dó. Não permitia a minha rela-ção com outras crianças e quandome via tentado a uma aproximaçãojogava sujo: subestimava o meuporte físico, dizia-me ridículo,motivo de chacota. Eu, mais umavez, acolhia as ofensas como umamáxima e amuava-me num canto.Triste, limitando-me a espectadorda alegria alheia.

Sentia amargor intenso na boca,o que ainda acontece quando a irae a desolação me fazem morada.Amarrava a cara e não me permitia se-

quer o esboço de um sorriso. Até mesmo o sorrisode criança, espontâneo e belo como o de qualqueroutra da mais tenra idade, me era impedido peloamigo carrasco. Anulava-me. Era mal visto pelasoutras crianças.

A situação era frequente. Confesso que até hojeele me procura, embora menos incisivo. Mas eu,frágil, raramente deixo de recepcionar o velhoamigo de infância. Ainda hoje, levo em conta suascrises de ciúme, suas opiniões agressivas, quemuito me ofendem e desanimam. E ainda sofropor tê-lo por perto. Faltam-me forças para encará-lo com firmeza, chamá-lo pelo nome e dizer rispi-damente: MEDO, nossa relação acaba aqui.

www.desabafosnefelibatas.com

Amigo de infânciaBRUNO FERREIRA

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Novaes

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À noite ela me abraçaSimples, mas profunda para o momento.A solidão faz um tempo.O silêncio, um frio.As carícias flutuamPelos corpos calados,Abertos e pequenos.São momentos levesOnde me aproximo delaE descanso na varanda da alma.Às vezes me causa espantoTanto canto, mas não me assustoCom tudo que desnudoEntre eu e ela,Pois o ausente se faz presente ao tê-laE o amor é uma doçura.E ao céu agradeço por recebê-la,Tão humana,Entre sorrisos e choros,Mulheres e meninas.Medos, incertezas, coragem, sonhos, flor, dor, certeza.Na madrugada ela me beija,Envolve-me com um sorriso,Cala minhas queixas,Deixa-me solta, leve e serena.Bebe-me.Puro sonho.Puro amor.Caminhos sem limites, sem lençol, sem fronha, sem cobertor.Entre mapas, globos terrestres, celestes, a gente se encontra e emerge.No mar, na chuva, no frio, na praia, no Sol a tocar o infinito.Corpos adormecidos são lidos.São livres, ao vento, para semear toda delícia do amor.

ELIS LUA

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