Revista Ciência Dinâmica - 2ª Edição

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Revista Científica Eletrônica da Faculdade Dinâmica

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Apresentação

A Revista Ciência Dinâmica é um periódico semestral editado pela Faculdade

Dinâmica do Vale do Piranga, em Ponte Nova/MG.

Aberta aos professores, convidados e, principalmente, aos acadêmicos da

Faculdade Dinâmica, a revista tem por finalidade precípua a publicação dos primeiros

trabalhos elaborados pelos alunos, contribuindo para incentivo à iniciação científica e a

expansão do conhecimento nas áreas das Ciências Jurídicas, Biológicas e Sociais.

A revista está disponível no endereço eletrônico www.faculdadedinamica.com.br

e, em breve, também em meio impresso.

A opção inicial pelo meio eletrônico constituiu alternativa viável para a

manutenção de um periódico regular, em detrimento dos elevados custos da publicação

impressa. Além do mais, o acesso amplo e irrestrito, proporcionado pela utilização da

Internet, é um fator de relevância para a democratização do conhecimento científico. Não

obstante, já é chegada a hora de buscarmos outros meios de divulgação do periódico e já é

estudada, pelo Conselho Editorial, a sua publicação também por meio impresso.

Desta forma, a Revista Ciência Dinâmica tem a missão de constituir-se em um

periódico qualificado, fomentado preferencialmente por artigos elaborados pelos acadêmicos

do Curso de Direito da Faculdade Dinâmica, propiciando, através do estímulo à reflexão

científica, o amadurecimento, a ampliação do conhecimento e a consolidação dos

ensinamentos teóricos absorvidos na Faculdade, contando, ainda, com a valorosa contribuição

de professores da Instituição e de professores convidados que só vem enriquecer o conteúdo

da publicação.

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Revista Ciência Dinâmica®

Editora: Faculdade Dinâmica

Ano I, n° 2, 2° Semestre 2009

ISSN – 2176-6509

________________________

Conselho Editorial: Prof. Dr.

José Luiz Quadros de

Magalhães, Prof. Leilson Soares

Viana, Prof. Mestre Bernardo

Gomes Barbosa Nogueira, Prof.

Mestre José Carlos Henriques,

Prof. Ramon Mapa da Silva,

Prof. Ernane Salles.

________________________

Revista Ciência Dinâmica.

Faculdade Dinâmica do Vale

do Piranga. Rua G, n° 205,

Bairro Paraíso. Ponte Nova-MG.

Contato: (31) 3817-2010

[email protected]

www.faculdadedinâmica.com.br

________________________

É proibida e reprodução, no todo

ou em parte, dos artigos

publicados nessa Revista sem

prévia autorização dos seus

autores, resguardado o direito de

citações com expressa referência

à sua fonte.

Copyright© Todos os Direitos Reservados

Ponte Nova – 2009/2

________________________

Formando Pessoas!

Editorial

A pesquisa acadêmica tem, nos dias de hoje, sua importância

subestimada. Infelizmente, devido à insistência na falsa separação

entre teoria e prática, com larga vantagem para a exaltação da última,

a produção intelectual e a reflexão abstrata são vistas como um luxo a

que um mundo cada vez mais técnico e informatizado não pode se

render. De fato, pouco se produz em termos de reflexão porque

vivemos num mundo que desistiu de pensar sobre si mesmo. Em tal

realidade, o papel da pesquisa acadêmica é reduzido, sua importância

subestimada, mas sua necessidade é cada vez mais premente. A

reflexão intelectual tem como escopo principal situar o homem na sua

temporalidade ou, em outras palavras, preparar o sujeito para o

mundo. Sem a devida compreensão da própria realidade o indivíduo

se encontra à mercê de forças que não pode controlar, é vítima de

poderes que não consegue compreender, é, em suma, presa inerme da

própria mundaneidade.

Essa edição da Revista Dinâmica é um pequeno contributo para a

compreensão do mundo contemporâneo. Reflexões das mais atuais

formam seu corpo e pretendem fomentar a discussão não só no

espaço reduzido do universo acadêmico, mas no horizonte amplo da

comunidade civil. A questão ambiental é debatida de forma

contundente, bem como a formação do sujeito de direito, desde as

teorias gregas sobre a justiça até o moderno sujeito constitucional.

Circulando pelas fronteiras da ética, do saber filosófico, das

considerações de base sociológica e política, as obras que aqui

entregamos à curiosidade do leitor são mais um esforço na edificação

de uma sociedade mais justa e igualitária.

É com orgulho que a Faculdade Dinâmica apresenta as próximas

páginas. As mesmas são o fruto de reflexões sérias, metódicas, mas

profundamente contextualizadas em questões do mundo atual, sem se

afastar um milímetro dos problemas que enfrentamos. Agradecemos a

todos os colaboradores, e desejamos aos leitores mais que uma boa

leitura, uma porta para novos e fundamentais questionamentos acerca

de sua própria vida.

PROF. RAMON MAPA DA SILVA Coordenador do NAP – Núcleo Acadêmico de Pesquisa

Faculdade Dinâmica

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SUMÁRIO

Apresentação ............................................................................................................................... 2

Editorial ....................................................................................................................................... 3

Índice de Autores ........................................................................................................................ 5

1. Democracia e Constituição: a alternativa do Estado plurinacional. ................................. 6

2. Utilização de mecanismos econômicos para efetivação das áreas de preservação

permanente e reserva legal .................................................................................................. 31

3. Teoria da Justiça em “A República” de Platão .................................................................. 42

4. Medidas Provisórias e Democracia. .................................................................................... 58

5. Evolução Histórica do Direito de Águas Brasileiro .......................................................... 68

6. A inconstitucionalidade da regulamentação dos organismos geneticamente modificados

pela lei 11.105/05 ................................................................................................................... 79

7. Anencefalia e interrupção da gravidez ............................................................................. 102

8. A formação da identidade do sujeito constitucional ....................................................... 106

9. Linguagem escrita e falada: os instrumentos de trabalho do profissional do Direito . 124

10. Aplicação das cláusulas especiais do contrato de compra e venda ao contrato de

permuta ............................................................................................................................... 126

11. Pena de Morte e seu debate atual .................................................................................... 130

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Índice de Autores José Luiz Quadros de Magalhães – Professor Doutor da Universidade Federal de Minas Gerais; da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e Universidade Presidente Antonio Carlos – Juiz de Fora.

Iglesias Fernanda de Azevedo Rabelo – Graduada em Direito. Mestre em Economia Familiar. Advogada e professora.

Ramon Mapa da Silva – Mestrando em Teoria do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), Professor do Curso de Direito da Universidade Presidente Antônio Carlos (UNIPAC-Itabirito), Professor do Curso de Direito da Faculdade Dinâmica.

Audrey Gonçalves de Castro Chalfun – Mestranda em Direito Internacional pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), Advogada e Professora.

Bruno Franco Alves – Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Viçosa (UFV). Mestrando em Teoria do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professor da Faculdade Dinâmica Vale do Piranga.

Alcione Adame – Bacharel em Turismo e Direito pela Pontificia Universidade Católica de MG (PUC-MG), Especialista em Direito Processual pela PUC-MG, Mestre em Direito Ambiental pela Universidade Católica de Santos (UNISANTOS) e Doutoranda pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra – Portugal.

Angélica Costa Mesquita – Especialista em Direito, Advogada e Professora.

Adriano Marteleto Godinho - Advogado, Professor Universitário, Mestre em Direito Civil pela UFMG, Doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade em Lisboa.

Henrique Weil Afonso – Graduado em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Estudante visitante do Colorado College (EUA, 2005) e da University of Westminster (Inglaterra, 2007). Mestrando em Direito Público Internacional pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Ingrid Freire Haas – Advogada. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2007) e Graduada em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (2003). Mestranda em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Marcela A. Toledo Milagres Duarte – Professora de Português Instrumental da Faculdade Dinâmica

Elianderson Marçal Viana – Acadêmico do Curso de Direito da Faculdade Dinâmica

Alexandre de Sousa Melo – Acadêmico do Curso de Direito da Faculdade Dinâmica

Helimar Fialho Guimarães – Acadêmica do Curso de Direito da Faculdade Dinâmica

Mirene Aparecida Soares – Acadêmica do Curso de Direito da Faculdade Dinâmica

Aline Fialho Martins – Acadêmica do Curso de Direito da Faculdade Dinâmica

Cláudia Aparecida dos Anjos – Acadêmica do Curso de Direito da Faculdade Dinâmica

Flaviana Maria da Silva – Acadêmica do Curso de Direito da Faculdade Dinâmica

Jefferson Russo Miranda – Acadêmico do Curso de Direito da Faculdade Dinâmica

José Genebaldo de Miranda Sampaio – Acadêmico do Curso de Direito da Faculdade Dinâmica

Ravena Moreira Gomes – Acadêmica do Curso de Direito da Faculdade Dinâmica

Suely Vidal José – Acadêmica do Curso de Direito da Faculdade Dinâmica

Walace Marçal Viana – Acadêmico do Curso de Direito da Faculdade Dinâmica

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Democracia e Constituição: a alternativa do Estado plurinacional.

José Luiz Quadros de Magalhães1

RESUMO: O objetivo desse artigo é a explicar a relação entre democracia e

constitucionalismo na história moderna, bem como proceder à uma análise dos atuais Estados

Plurinacionais.

Palavras-chaves: democracia, história, plurinacional

ABSTRACT: The aim of this paper is to explain the relationship between democracy and

constitutionalism in modern history, and carry out an analysis of the current Multi-national

countries.

Keywords: democracy, history, multi-national.

Introdução

Alguns teóricos do Direito constitucional afirmam que o constitucionalismo moderno

começa a ser formado no processo que se inicia com a Magna Carta na Inglaterra em 1215.

Entretanto ali não está presente a idéia de uma Assembléia Nacional Constituinte que,

elaborando o texto de uma Constituição, dará início a uma nova realidade constitucional, fruto

da vontade de um poder soberano e baseado na vontade popular. Temos, portanto, duas

realidades constitucionais que hoje parecem, lentamente, gradualmente, se fundirem, mas que

ainda são muito distintas.

Embora o Brasil tenha sofrido influência do Direito estadunidense a partir da

Constituição de 1891, que copiou diversas instituições dos Estados Unidos da América como

o federalismo, o presidencialismo, o seu modelo bicameral, o modelo de suprema corte e o

modelo de controle difuso de constitucionalidade, nossa tradição constitucional é construída a

partir do modelo continental europeu, transformando o nosso constitucionalismo em um dos

mais ricos do mundo, pois promove a construção de um processo de síntese, ainda inicial, dos

1 Professor Doutor da Universidade Federal de Minas Gerais; da Pontifícia Universidade Católica de Minas

Gerais e Universidade Presidente Antonio Carlos – Juiz de Fora.

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dois grandes sistemas jurídicos modernos, o que pode ser expresso no nosso controle misto de

constitucionalidade das leis e na importante idéia de jurisdição constitucional difusa.

Entretanto, há algo em comum entre o modelo estadunidense e o europeu continental,

não compartilhado pela Inglaterra: a existência de um poder constituinte originário, inicial,

soberano e de primeiro grau capaz de romper com a ordem anterior e iniciar uma nova vida

jurídica constitucional com a nova Constituição.

A teoria do poder constituinte atualizada pela análise da relação entre democracia e

constituição é uma contribuição importante para pensarmos esta permanente conexão e tensão

entre Constituição, como pretensão de segurança, permanência e garantia de direitos, e

Democracia como transformação social e conquista de novos direitos históricos. O poder

constituinte originário, como ligação extrema entre democracia e segurança, é o

reconhecimento da possibilidade/necessidade de revolução. O Direito democrático não pode

ficar distante, ou ignorar a possibilidade de revolução como processo radical e democrático de

transformação social. O Direito deve estar próximo, permanentemente, à democracia. A

Constituição significa a segurança de que a democracia, enquanto processo criador de

transformação, não se perderá em lutas incessantes de poder, e logo no risco do autoritarismo

ou totalitarismo. Neste sentido o poder constituinte originário deve ser este elo entre

democracia e constituição no momento mais radical de transformação social: a ruptura

revolucionária com a constituição para a construção de uma nova ordem democrática.

Neste ensaio buscaremos explicar esta ligação entre democracia e constituição na

história moderna; revisitaremos a teoria do poder constituinte; para então vislumbrarmos os

novos caminhos do estado plurinacional na América Latina, especialmente nas novas

constituições democráticas e plurais da Boliva e Equador.

Democracia e Constituição

Importante neste momento lembrar a importante relação entre democracia e

constituição.

O Constitucionalismo não nasceu democrático. Nascido na forma liberal, o

constitucionalismo visava a construção de um espaço de segurança jurídica e de proteção da

esfera de decisão individual. Segurança, propriedade privada e privacidade são as palavras

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que identificam o constitucionalismo liberal. Este não nasceu democrático e os direitos

fundamentais, nas suas constituições protegidos, eram para poucos. Os direitos políticos eram

assegurados apenas para homens, proprietários e ricos.

Dentro do conceito da época, a constituição seria incompatível com a democracia

majoritária uma vez que aquela visava proteger o direito e a vontade de cada indivíduo,

enquanto esta representaria a vontade do coletivo majoritário sobre o minoritário e logo sobre

a vontade individual.

A fusão entre democracia e constituição ocorreu apenas na segunda metade do século

XIX, quando então, por força dos movimentos operários e dos partidos de esquerda

conquistou-se primeiramente o voto igualitário masculino, para depois de algum tempo,

gradualmente, conquistar-se o sufrágio universal com o voto igualitário e o fim da

discriminação de gênero. Esta fusão entre democracia e constituição trouxe a importante

noção de “democracia com segurança” que se transformou com o tempo, na idéia de que, a

vontade da maioria tem limites de decisão, estabelecidos na obrigatoriedade de respeitar os

direitos das minorias e no núcleo duro de qualquer constituição: os direitos fundamentais.

Entretanto a tensão entre constituição e democracia não acabou, e nem poderia:

constituição ainda significa segurança e pretensão de permanência, enquanto democracia

significa mudança e, portanto, risco. Democracia é risco pois é expressão de vontade das

pessoas em sociedade. Nós somos seres históricos, em permanente processo de

transformação. Transformamos nossas sociedades permanentemente, como fruto de nossa

busca incessante. Só uma ditadura (mesmo que travestida de outros sistemas) pode ter

pretensão de permanência.

Logo é fácil concluir que, mesmo democráticas, as constituições como limitadoras e

conformadoras, mesmo sofrendo mutações interpretativas e mudanças formais de seu texto,

serão sempre, em algum momento, superadas pela dinâmica social. Daí a existência do poder

constituinte originário como poder de ruptura democrática. Este é o momento onde a

democracia rompe com uma ordem que não mais responde socialmente, para então,

democraticamente, estabelecer outro sistema constitucional. Este é sempre um momento de

risco, pois é o momento onde a democracia se desprende do direito, se desprende dos limites

jurídicos para logo estabelecer novos limites, diante do medo de que, a falta de limites,

transforme esta vontade criadora livre em uma ditadura da maioria.

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O Poder Constituinte

A diferenciação entre Poder Constituinte e Poder Legislativo ordinário ganhou ênfase e

concretização na Revolução Francesa, quando os Estados Gerais, por solicitação do Terceiro

Estado, se proclamaram como Assembléia Nacional Constituinte, sem nenhuma convocação

formal.

Na França revolucionária (1789) foram superadas as velhas teorias que determinavam a

origem divina do poder, afirmando a partir de então que a nação, o povo (seja diretamente ou

através de uma assembléia representativa), era o titular da soberania, e, por isso, titular do

Poder Constituinte. Entendia-se então que a Constituição deveria ser a expressão da vontade

do povo nacional, a expressão da soberania popular. Idéias que podem parecer um pouco

românticas ou artificiais em uma construção teórica transdisciplinar contemporânea. Podemos

dizer que as dificuldades (ou impossibilidade) contemporâneas para afirmar a existência de

uma (única) vontade popular, em sociedades de extrema complexidade, é bem maior hoje que

no passado, entretanto, sempre estiveram presentes no Estado moderno. Por mais democrático

que tenha sido qualquer poder constituinte vamos encontrar no complexo jogo de poder por

traz da constituinte aqueles que têm a capacidade ou possibilidade de impor seus interesses

com mais força do que outros.

Podemos dizer que a elaboração geral da teoria do Poder Constituinte nasceu, na

cultura européia, com SIÉYÈS, pensador e revolucionário francês do século XVIII. A

concepção de soberania nacional na época, assim como a distinção entre poder constituinte e

poderes constituídos como poderes derivados do primeiro, são contribuições do pensador..

SIÉYÈS afirmava que objetivo ou o fim da Assembléia representativa de uma nação (a

idéia de nação aí aparece como algo maior que o povo, diferente da idéia de povo como

aqueles que se sentem parte do Estado nacional desenvolvida em outro momento) não pode

ser outro do que aquele que ocorreria se a própria população pudesse se reunir e deliberar no

mesmo lugar. Ele acreditava que não poderia haver tanta insensatez a ponto de alguém, ou um

grupo, na Assembléia geral, afirmar que os que ali estão reunidos devem tratar dos assuntos

particulares de uma pessoa ou de um determinado grupo.[1]

A escola clássica francesa entende a Constituição como um certificado da vontade

política do povo nacional e, portanto, produto de uma Assembléia Constituinte representativa

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da vontade deste povo. Hans Kelsen se opõe a esta idéia afirmando que a Constituição

provém de uma norma fundamental.[2] Importante ressaltar neste ponto que os conceitos dos

diversos autores serão influenciados pela compreensão da natureza do Poder Constituinte: seja

um poder de fato ou um poder de Direito.

Um outro aspecto que devemos estudar sobre o Poder Constituinte é relativo a sua

amplitude. Alguns autores entendem que o poder constituinte se limita a criação originária do

Direito enquanto outros compreendem que este poder constituinte é bem mais amplo

incluindo uma criação derivada do Direito por meio da reforma do texto constitucional,

adaptando-o aos processos de mudança sociocultural[3], e ainda o poder constituinte

decorrente, característica essencial de uma federação, quando os entes federados recebem (ou

permanecem com) parcelas de soberania expressas na competência legislativa constitucional.

Finalmente, um terceiro aspecto a ser estudado, e sobre o qual também existem

divergências, diz respeito à titularidade do Poder Constituinte.

Para uma melhor compreensão desta matéria e de suas diversas compreensões, é

necessário estudar separadamente cada um destes elementos. Não se pode vincular, como

pretenderam alguns, o posicionamento com relação à natureza do Poder Constituinte com a

sua amplitude, e mesmo com sua titularidade em determinados casos.

A amplitude do Poder Constituinte

Vamos encontrar em diversas obras clássicas do constitucionalismo nacional e

estrangeiro como, por exemplo, em PINTO FERREIRA, a afirmativa de que o Poder

Constituinte é o poder de criar, emendar e revisar a Constituição.[4] Entre muitos clássicos

podemos destacar WALTER DODD, KELSEN, HAURIOU e REW BARBOSA entre muitos,

os que concordam com a afirmativa anterior. Entre os que discordam, afirmando que o Poder

constituinte será apenas aquele que cria a Constituição encontramos SCHMITT, HELLER,

RECASÉNS SICHES, CARL FRIEDRICH e DNEZ.

A importância desta discussão teórica, aparentemente de menor valor, reside no fato

das fundamentações teóricas da força do poder de reforma (através de emenda e revisão).

Alguns autores tendem admitir força igual ao poder originário, em algumas circunstâncias,

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fazendo com que os limites materiais, circunstanciais, formais e temporais, praticamente

desapareçam.

O problema central desta discussão é a segurança que a Constituição deve oferecer às

relações jurídicas. Se admitirmos a compreensão de que o poder de reforma pode tudo,

chegaríamos a uma situação de insegurança grande, pois maiorias qualificadas no parlamento

poderiam quase tudo. É obvio que o simples fato de chamarmos o poder de reforma de poder

constituinte derivado, não é o bastante para lhe oferecer tal força, mas é importante que isto

fique bem claro.

Retornamos pois a antiga discussão para compreendermos o perigo que reside nos

rótulos, que são teorias que ao oferecer muita força ao legislativo ordinário para mudar a

Constituição, pode retirar o que de há de essencial no constitucionalismo moderno, ou seja, a

busca da segurança, inclusive contra maiorias qualificadas no parlamento, que podem

estabelecer uma espécie de absolutismo da maioria, ou ditadura da maioria, que como um rolo

compressor desmonta a Constituição. Esta discussão é ainda especialmente importante quando

assistimos os problemas vividos pela democracia representativa, onde o financiamento

privado de campanha, o poder econômico concentrado, inclusive na mídia, além de outros

mecanismo de controle, constroem maiorias parlamentares que muitas vezes defendem

interesses de poucos, em detrimento de muitos, mas que se legitimam em aparentes

democracias representativas.

Importante notar que muitos dos autores clássicos acima citados, ao negar a amplitude

maior do poder constituinte, incluindo o poder de reforma como poder constituinte derivado,

não tinham sempre a intenção de preservar a Constituição, preservando com isto a segurança

jurídica e os direitos fundamentais diante de maiorias autoritárias ou sem limites. Esta é a

questão central que nos interessa.

Lembrando as palavras de IVO DANTAS:

O Poder Constituinte interessa à sociologia, especificamente a sociologia do Direito e a Sociologia Política, em virtude de ser um Poder de Fato, e não um Poder de Direito, espécie em que se enquadram os poderes constituídos, inclusive o chamado Poder de Reforma, erroneamente denominado Poder constituinte derivado. [5]

Seguindo esta linha de raciocínio, e buscando na sociologia elementos essenciais para

a compreensão do fenômeno constituinte, podemos afirmar que embora o poder constituinte

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originário não tenha limites no ordenamento jurídico positivo com o qual ele está rompendo,

este poder sofre, de maneira clara e inegável, limitações de caráter social, cultural e forte

influência do jogo de forças econômicas, sociais e políticas no momento da elaboração da

Constituição.

Talvez seja necessária neste ponto uma diferenciação importante: o que são os limites

legítimos de ação da assembléia constituinte decorrentes das influências dos diversos grupos

de interesse presentes numa sociedade complexa e que são elementos legitimadores e

democráticos do processo constituinte desde que manifestos de forma livre e dialógica na

relação entre sociedade e representantes constituintes, e os limites ilegítimos, não

democráticos, decorrentes de influências do poder econômico no processo eleitoral de escolha

dos representantes através do abuso do poder econômico e de pressão econômica ou outras

formas não democráticas puramente corporativas sobre o processo de votação na assembléia

constituinte. Convém lembrar que estas formas ilegítimas sempre estiveram presentes nos

Estados de economia capitalista com maior ou menor influência, pois são decorrentes da

própria lógica do jogo capitalista, inerente a este sistema econômico. O que resta fazer é

desenvolver mecanismos que permitam diminuir as influências que SIÉYÈS já mencionava

como ilegítimas (e improváveis) pois decorrentes de pequenos grupos egoístas que querem

impor seus interesses perante a maioria e perante todos os outros grupos de interesse de

maneira não equilibrada e ilegítima (não vamos também acreditar nesta inocência de Siéyès).

O poder constituinte derivado, ou de reforma, portanto se divide em dois: o poder de

emenda e o poder de revisão. Enquanto o poder originário como poder de ruptura pertence a

uma assembléia eleita com finalidade de elaborar a Constituição, deixando de existir quando

cumprida sua função, sendo um poder temporário. O poder de reforma é um poder latente,

que pode se manifestar a qualquer momento, desde que cumpridos os requisitos formais e

observados os seus limites materiais.

O poder de reforma por meio de emendas pode em geral se manifestar a qualquer

tempo, sofrendo limites materiais, circunstanciais, formais e algumas vezes temporais. Este

poder consiste em alterar pontualmente uma determinada matéria constitucional, adicionando,

suprimindo, modificando alínea(s), inciso(s), artigo(s) da Constituição.

O poder de revisão em geral tem limites temporais, além dos limites circunstanciais,

formais e materiais, ocorrendo, em algumas Constituições, sua manifestação periódica, como

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na Constituição portuguesa de 5 em 5 anos. Na nossa Constituição, houve a previsão de

manifestação de poder uma única vez não podendo ocorrer de novo pois estava prevista no

Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. A revisão é mais ampla que a emenda.

Como sugere o nome trata-se de uma revisão sistêmica do texto, respeitados os limites do

poder de reforma. No Brasil, a nossa revisão foi atípica, se manifestando por meio de

emendas de revisão.

Esta discussão não é nova e encontramos nos clássicos do Direito Constitucional

nacional e estrangeiro varias referencias a amplitude do poder constituinte e o poder de

reforma.

NELSON DE SOUZA SAMPAIO, afirmava que o poder reformador está abaixo do

Poder Constituinte e jamais poderá ser ilimitado como este. Seja como se queira chamar este

poder reformador, seja de Poder constituinte constituído como faz SANCHES AGESTA;

poder constituinte derivado como faz PELAYO e BARACHO, ou poder constituinte

instituído segundo BURDEAU, devemos encará-lo como faz PONTES de MIRANDA, como

uma atividade constituidora diferida ou um poder constituinte de segundo grau como faz

também ROSAH RUSSOMANO.[6]

Outro aspecto referente a amplitude do Poder Constituinte diz respeito ao Poder

Constituinte decorrente, ou seja, o poder constituinte dos entes federados, no nosso caso,

Estados membros e Municípios. Já estudamos no nosso livro Direito Constitucional, tomo II,

da Editora Mandamentos, as características principais do Estado Federal. Naquele momento,

deixamos claro que o que difere o Estado Federal de outras formas descentralizadas de

organização territorial do Estado contemporâneo é a existência de um poder constituinte

decorrente, ou seja, a descentralização de competências legislativas constitucionais, onde o

ente federado elabora sua própria Constituição e a promulga, sem que seja possível ou

necessário uma intervenção ou a aprovação desta Constituição por outra esfera de poder

federal. Isto caracteriza a essência da Federação, a inexistência de hierarquia entre os entes

federados (União, Estado e Municípios no caso brasileiro), pois cada uma das esferas de

poder federal nos três níveis brasileiros, participa da soberania, ou seja, detém parcelas de

soberania, expressas nas suas competências legislativas constitucionais, ou seja, no exercício

do poder constituinte derivado.

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Não estamos afirmando que os estados membros, a União e os municípios são

soberanos, pois soberano é o Estado Federal, a expressão unitária da soberania, ou seja, sua

manifestação integral, só ocorre no Poder Constituinte Originário. O que afirmamos, é que no

Estado Federal, além de uma repartição de competências legislativas ordinárias,

administrativas e jurisdicionais, há também, e isto só ocorre no Estado Federal, uma

repartição de competências legislativas constitucionais. Esta repartição de competências

constitucionais implica na participação dos entes federados na soberania do Estado, que se

fragmenta nas suas manifestações.

Entretanto, este poder constituinte decorrente, embora represente a manifestação de

parcela de soberania, não é soberano, e por este motivo deve ser um poder com limites

jurídicos bem claros, limites estes que podem ser materiais, formais, temporais e

circunstanciais. No caso da Constituição de 1988, esta estabelece limites materiais expressos e

obviamente implícitos, deixando para o poder constituinte decorrente, que é temporário

(assim como o originário), prever o seu funcionamento, e o funcionamento do seu próprio

poder de reforma e seus limites formais, materiais, circunstanciais e temporais. O poder

constituinte decorrente é de segundo grau (se dos Estados membros) e terceiro grau (se dos

municípios), subordinados a vontade do poder constituinte originário, expressa na

Constituição Federal.

A natureza do Poder Constituinte

Alguns autores entendem que o poder constituinte originário é o momento de

passagem do poder ao Direito. É inegável que o poder constituinte originário é o momento

maior de ruptura da ordem constitucional, onde o poder de fato que se instala, forte o

suficiente para romper com a ordem estabelecida, é capaz de construir uma nova ordem sem

nenhum tipo de limite jurídico positivo na ordem com a qual está rompendo. Se entendermos

o Direito como sendo sinônimo de lei positiva, posto pelo Estado, o poder constituinte

originário será apenas um poder de fato. E é justamente neste ponto que reside sua força. É

claro que não reduzimos o Direito nesta perspectiva legalista já ultrapassada, que reduz o

Direito à regra, transformando a construção do Direito em uma simples aplicação da receita

pronta da lei ao caso concreto.

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Importante entender a força do poder constituinte originário como poder de fato, capaz de

romper com a ordem vigente, e, portanto, um poder ilegal e inconstitucional em relação a

ordem com a qual este poder rompe, e pela qual não se limita.

Esta afirmativa contém a essência da segurança que busca o constitucionalismo

moderno: a Constituição na sua essência deve ser tão forte e perene que nenhum poder

constituído pode romper com seus fundamentos e estrutura. Somente um poder social mais

forte, porque representando a força democrática da vontade histórica do povo, pode romper

com a Constituição para então criar uma nova Constituição. O poder originário nasce da

revolução e nem mesmo a Constituição poderá segurá-lo pois é o poder de transformação

social da própria história.

Neste recurso do Direito Constitucional ao poder social, ao poder de fato,

transformador e histórico, reside sua própria segurança, contra maiorias temporárias

parlamentares que queiram transformar toda a Constituição, escrevendo uma nova,

procurando se legitimar no voto que elegeu os representantes. A proteção contra o

autoritarismo da maioria reside na exigência de poder social irresistível, única justificativa

para a ruptura constitucional. Defensores de tese contraria procuram desenvolver mecanismos

meramente representativos e consultivos (plebiscitos e referendos) para legitimar uma

alteração radical do texto constitucional, que afete seus princípios fundamentais, criando na

verdade uma nova Constituição. Estes mecanismos são verdadeiros golpes contra a segurança

jurídica, que como disse, só pode ser rompida pela força social irresistível que não se expressa

em meras representações, pois quinhentos não podem o que só milhões poderão.

Pode-se afirmar entretanto que estes milhões podem ser ouvidos em plebiscitos, mas

como proteger estes milhões da força de manipulação da propaganda na construção de uma

falsa vontade popular. Por isto nada pode substituir a mobilização popular fundada em uma

democracia dialógica permanente, única justificativa para rupturas constitucionais profundas.

Retornando a discussão inicial, podemos dizer, ao contrário, que, se entendermos que

o Direito não se resume ao direito positivo, mas que está essencialmente ligado a idéia do

justo, do correto, do direito, estaremos no campo das várias correntes do pensamento do

Direito natural. Neste sentido o Direito é sinônimo de justo, e logo a lei positiva pode ou não

conter o Direito, pois só será Direito se conter uma norma justa. O conceito do que é justo

muda em cada corrente do Direito natural, mas o que há em comum nas várias teorias é a

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compreensão de que Direito é diferente de lei. Seguindo esta hipótese, o poder constituinte

originário será um poder de Direito se representar o justo, o correto, o direito, e ao contrário,

será um mero poder fato, ilegítimo, contra o Direito, se não representar a idéia do justo, do

correto, do direito.

Este pensamento é elitista uma vez que ao reconhecer que existe um direito justo

anterior e superior ao Direito produzido pelo Estado, quem será a pessoa ou pessoas que dirão

o justo? Quem terá o discurso legitimado? Se o justo está na vontade divina, quem será o

interprete desta vontade? Se o justo está na razão do filósofo, qual será o filosofo que nos dirá

o justo?

Apenas os processos democráticos dialógicos com ampla mobilização popular podem

justificar uma ruptura, que sendo fato irresistível se afirma com força, mas não de forma

ilimitada. O Direito não se encontra apenas no texto positivado, ou na decisão judicial, mas

latente na idéia de justiça dialogicamente compartilhada em processos democráticos de

transformação social, e será esta compreensão dialogicamente compartilhada em uma

sociedade, em um determinado momento histórico, capaz de legitimar o Direito, sua

transformação, incluindo as rupturas constitucionais.

O Poder constituinte originário só será legitimo se sustentado por amplo processo

democrático dialógico que ultrapasse os estreitos limites da representação parlamentar e

penetre nos diversos fluxos comunicativos da complexa sociedade nacional.

Portanto podemos concluir que este poder de fato será também de Direito, se

efetivamente democrático, entendendo-se democrático, como um processo dialógico amplo

que envolva o debate dos mais variados interesses e valores da sociedade nacional.

A titularidade do poder constituinte

Acredito que a resposta para a pergunta sobre quem deve ser o titular do poder

constituinte já ficou clara no tópico anterior. Entretanto devemos responder a pergunta sobre

quem é o titular deste poder nas suas várias manifestações históricas.

Retornando a visão dos ´clássicos` da teoria constitucional, encontramos em SIÈYES a

afirmação de que ´a nação existe antes de tudo – é a origem de tudo. Sua vontade é

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17

invariavelmente legal – é a própria lei`. Uma visão idealista importante como construção do

discurso do estado constitucional mas que obviamente não resiste a uma análise histórica.

Podemos mesmo perceber que a construção conceitual da idéia de nação para SIÉYES se

constitui numa forma de legitimar a vontade do grupo no poder que atua em nome da vontade

da nação. De forma diferente, a idéia de nação como estudada no Tomo II[7], constitui-se em

numa construção histórica recente e não algo que existe antes de tudo, mas uma criação do

próprio absolutismo.

Como vimos, foi com SIEYES que surge a idéia de poder constituinte, diferenciando

este poder constituído, que não pode, na sua ação autônoma, atingir as leis fundamentais

contidas na Constituição, criada por um poder constituinte, que, por sua vez, é produto da

vontade da nação.

No Direito Constitucional brasileiro um autor importante é PINTO FERREIRA, que

afirma que somente o povo tem a competência para exercer os poderes de soberania. Quando

analisa os termos `Convenção Constitucional´ ,´Assembléia Constituinte´ e ´Convenção

Nacional Constituinte´ afirma que a assembléia constituinte é o corpo representativo

escolhido a fim de criar a Constituição. Existem para o autor dois tipos principais de

organização do poder constituinte. Um será o modelo da convenção constitucional, que é o

tipo primitivo onde existe uma assembléia eleita pelo povo para elaborar a Constituição, e não

há necessidade de ratificação popular. O segundo modelo é o sistema popular direto, onde a

Constituição é votada pela convenção nacional e posteriormente é submetida à aprovação

popular através do referendo. Para o autor, este segundo modelo está mais próximo do espírito

democrático. [8]

Na história do Estado constitucional, o sujeito do poder constituinte, o seu titular, pode

ser individual ou coletivo, capacitado para criar ou revisar a Constituição. Desta forma

encontramos na história distorções graves da teoria democrática, onde o titular é um Rei, um

ditador, uma classe, um grupo (o que obvio está por detrás do titular individual), todos em

nome do povo ou legitimados por poderes outros que o poder que efetivamente os sustenta. O

discurso esconde a real fonte do poder, ou mais, o discurso constitui uma fonte do poder ao

disfarçar, encobrir sua origem. Entretanto encontramos também, exemplos que poderes

constituintes que de formas diferentes, em graus diferentes, expressam a vontade de parcelas

expressivas do povo nacional.

Page 18: Revista Ciência Dinâmica - 2ª Edição

18

Não há dúvida que a vontade do poder constituinte deve emanar de mecanismos

democráticos, que permitam que o processo de elaboração da constituição assim como de sua

reforma, seja aberto a ampla participação popular, não apenas através de diálogo com os

representantes eleitos, mas através de legitima pressão da sociedade civil organizada.

Este poder será democrático na medida em que o processo constituinte sirva como

arena privilegiada de demonstração dos grandes temas nacionais, para que, a partir daí, seja

possível que as manifestações do jogo de forças sociais seja legitimamente exercido. É

fundamental para isto que o poder de manipulação do marketing político, da propaganda, o

poder de pressão econômica seja minado ao máximo. Não pode uma minoria nos bastidores se

sobrepor a vontade presente nas ruas e no campo.

Este poder constituinte originário democrático se manifestou na América do Sul em

2008 e 2009 na Bolívia e no Equador.

O novo constitucionalismo sul-americano e o estado plurinacional.

A América Latina vem sofrendo um processo de transformação social democrática

importante e surpreendente. Da Argentina ao México os movimentos sociais vêm se

mobilizando e conquistando importantes vitórias eleitorais. Direitos históricamente negados

às populações indígenas agora são reconhecidos. Em meio a estes variados processos de

transformação social, percebemos que cada país, diante de suas peculiaridades históricas, vem

trilhando caminhos diferentes, mas nenhum abandonou o caminho institucional da democracia

representativa, somando a está uma forte democracia dialógica participativa.

Assim, em 2009 assistimos o Uruguai de Tabaré Vasquez buscar a reconstrução dos direitos

sociais; a Argentina de Cristina Kirchner reformar as forças armadas introduzindo o ensino

dos Direitos Humanos; o Paraguai de Lugo na busca de um resgate de uma divida centenária

de humilhação e exclusão dos pobres e das populações indígenas; o Chile de Michelle

Bachelet tentando quebrar a resistência de uma classe média conservadora e machista; a

Venezuela de Hugo Chaves caminhando para o socialismo; o povo de El Salvador elegendo

um governo comprometido com os direitos democráticos e sociais; e especialmente a Bolívia

e o Equador, onde governos eleitos com o forte apoio popular promulgaram suas novas

Constituições, e com estas um conceito totalmente inovador para o mundo jurídico: o Estado

plurinacional.

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19

Vamos apenas introduzir este conceito como fruto de um processo democrático que se

iniciou com revoluções pacíficas, onde os povos indígenas, finalmente, após 500 anos de

exclusão radical, reconquistam gradualmente sua liberdade e dignidade.

A formação dos estados nacionais na América Latina ocorreu de maneira bastante

diferente do processo Europeu.

A formação do Estado moderno a partir do século XV ocorre após lutas internas onde

o poder do Rei se afirma perante os poderes dos senhores feudais, unificando o poder interno,

unificando os exércitos e a economia, para então afirmar este mesmo poder perante os poderes

externos, os impérios e a Igreja. Trata-se de um poder unificador numa esfera intermediária,

pois cria um poder organizado e hierarquizado internamente, sobre os conflitos regionais, as

identidades existentes anteriormente a formação do Reino e do Estado nacional que surge

neste momento e de outro lado se afirma perante o poder da Igreja e dos Impérios. Este é o

processo que ocorre em Portugal, Espanha, França e Inglaterra.[9]

Destes fatos históricos decorre o surgimento do conceito de uma soberania em duplo

sentido: a soberania interna a partir da unificação do Reino sobre os grupos de poder

representados pelos nobres (senhores feudais), com a adoção de um único exército

subordinado a uma única vontade; a soberania externa a partir da não submissão automática à

vontade do papa e ao poder imperial (multi-étnico e descentralizado).

Um problema importante surge neste momento, fundamental para o reconhecimento

do poder do Estado, pelos súditos inicialmente, mas que permanece para os cidadãos no

futuro estado constitucional: para que o poder do Rei (ou do Estado) seja reconhecido, este

Rei não pode se identificar particularmente com nenhum grupo étnico interno. Os diversos

grupos de identificação pré-existentes ao Estado nacional não podem criar conflitos ou

barreiras intransponíveis de comunicação, pois ameaçarão a continuidade do reconhecimento

do poder e do território deste novo Estado soberano. Assim a construção de uma identidade

nacional se torna fundamental para o exercício do poder soberano.

Desta forma, se o Rei pertence a uma região do Estado, que tem uma cultura própria,

identificações comuns com a qual ele claramente se identifica, dificilmente um outro grupo,

com outras identificações, reconhecerá o seu poder. Assim a tarefa principal deste novo

Estado é criar uma nacionalidade (conjunto de valores de identidade) por sobre as identidades

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(ou podemos falar mesmo em nacionalidades) pré-existentes.[10] A unidade da Espanha ainda

hoje está, entre outras razões, na capacidade do poder do Estado em manter uma

nacionalidade espanhola por sobre as nacionalidades pré-existentes (galegos, bascos, catalães,

andaluzes, castelhanos, entre outros). O dia que estas identidades regionais prevalecerem

sobre a identidade espanhola, os Estado espanhol estará condenado a dissolução. Como

exemplo recente, podemos citar a fragmentação da Iugoslávia entre vários pequenos estados

independentes (estados étnicos) como a Macedônia, Sérvia, Croácia, Montenegro, Bósnia,

Eslovênia e em 2008 o impasse com Kosovo.

Portanto a tarefa de construção do Estado nacional (do Estado moderno) dependia da

construção de uma identidade nacional, ou em outras palavras, da imposição de valores

comuns que deveriam ser compartilhados pelos diversos grupos étnicos, pelos diversos grupos

sociais para que assim todos reconhecessem o poder do Estado, do soberano. Assim, na

Espanha, o rei castelhano agora era espanhol, e todos os grupos internos também deveriam se

sentir espanhóis, reconhecendo assim a autoridade do soberano.

Este processo de criação de uma nacionalidade dependia da imposição e aceitação pela

população, de valores comuns. Quais foram inicialmente estes valores? Um inimigo comum

(na Espanha do século XV os mouros, o império estrangeiro), uma luta comum, um projeto

comum, e naquele momento, o fator fundamental unificador: uma religião comum. Assim a

Espanha nasce com a expulsão dos muçulmanos e posteriormente judeus. É criada na época

uma polícia da nacionalidade: a santa inquisição. Ser espanhol era ser católico e quem não se

comportasse como um bom católico era excluído.

A formação do Estado moderno está, portanto, intimamente relacionado com a

intolerância religiosa, cultural, a negação da diversidade fora de determinados padrões e

limites. O Estado moderno nasce da intolerância com o diferente, e dependia de políticas de

intolerância para sua afirmação. Até hoje assistimos o fundamental papel da religião nos

conflitos internacionais, a intolerância com o diferente. Mesmo estados que

constitucionalmente aceitam a condição de estados laicos têm na religião, uma base forte de

seu poder: o caso mais assustador é o dos Estados Unidos, divididos entre evangélicos

fundamentalistas de um lado e protestantes liberais de outro lado. Isto repercute diretamente

na política do Estado, nas relações internacionais e nas eleições internas. A mesma vinculação

religiosa com a política dos Estados podemos perceber em uma União Européia cristã que

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resiste a aceitação da Turquia e convive com o crescimento da população muçulmana

européia.

O Estado moderno foi a grande criação da modernidade, somada mais tarde, no século

XVIII, com a afirmação do Estado constitucional.

Na América Latina os Estados nacionais se formam a partir das lutas pela

independência no decorrer do século XIX. Um fator comum nestes Estados é o fato de que,

quase invariavelmente, foram Estados construídos para uma parcela minoritária da população,

onde não interessava para as elites econômicas e militares, que a maior parte da população se

sentisse integrante, se sentisse parte de Estado. Desta forma, em proporções diferentes em

toda a América, milhões de povos originários (de grupos indígenas os mais distintos) assim

como milhões de imigrantes forçados africanos, foram radicalmente excluídos de qualquer

idéia de nacionalidade. O direito não era para estas maiorias, a nacionalidade não era para

estas pessoas. Não interessava às elites que indígenas e africanos se sentissem nacionais.

De forma diferente da Europa onde foram construídos estados nacionais para todos

que se enquadrassem ao comportamento religioso imposto pelos estados, na América não se

esperava que os povos originários (chamados pelo invasor de indígenas) e negros se

comportassem como iguais, era melhor que permanecessem à margem, ou mesmo, no caso

dos indígenas, que não existissem: milhões foram mortos.

Neste sentido, as revoluções da Bolívia e do Equador, seus poderes constituintes

democráticos, fundam um novo Estado, capaz de superar a brutalidade dos estados nacionais

nas Américas: o Estado plurinacional, democrático e popular.

Nunca na América, tivemos tantos governos democráticos populares como neste

surpreendente século XXI. O importante é que estes governos não são apenas democráticos

representativos, mas, fortemente participativos, dialógicos.

Uma idéia nova, neste processo chama a atenção: o Estado Plurinacional das

Constituições do Equador e da Bolívia.

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O Estado Plurinacional

A idéia de Estado Plurinacional pode superar as bases uniformizadoras e intolerantes

do Estado nacional, onde todos os grupos sociais devem se conformar aos valores

determinados na constituição nacional em termos de direito de família, direito de propriedade

e sistema econômico entre outros aspectos importantes da vida social. Como vimos

anteriormente o Estado nacional nasce a partir da uniformização de valores com a intolerância

religiosa.

A partir da constitucionalização e sua lenta democratização (em geral, ainda de bases

liberais meramente representativas) não se poderia mais admitir a construção da identidade

nacional com base em uma única religião que uniformizasse o comportamento no plano

econômico (direito de propriedade) e no plano familiar. Tornou-se necessário construir uma

outra justificativa e um outro fator agregador que permitisse que os diversos grupos sociais

presentes no Estado moderno pudessem se reconhecer e a partir daí reconhecer o poder do

Estado como legitimo.

A Constituição irá cumprir está função. Inicialmente não democrático, o

constitucionalismo irá uniformizar (junto com o direito civil) as bases valorativas desta

sociedade nacional, criando um único direito de família e um único regime de propriedade

que sustentaria o sistema econômico. Isto ocorreu em qualquer dos tipos constitucionais:

liberal; social ou socialista.

A uniformização de valores e comportamentos, especialmente na família e na forma

de propriedade exclui radicalmente grupos sociais (étnicos e culturais) distintos que, ou se

enquadram ou são jogados, aos milhões, para fora desta sociedade constitucionalizada

(uniformizada). O destino destes povos é a alienação, o aculturamento e perda de raízes ou

então a miséria, os presídios ou ainda os manicômios.

A lógica do Estado nacional agora constitucionalizado e mesmo “democratizado”

sustenta esta uniformização. A ideologia que justifica tudo isto é a existência de um suposto

“pacto social” ou “contrato social”, ou qualquer outra idéia que procura identificar nas bases

destas sociedades americanas um suposto acordo uniformizador, como se as populações

originarias tivessem aberto mão de sua história e cultura para assumir o direito de família e o

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direito de propriedade do invasor europeu, que continuou no poder com seus descendentes

brancos a partir dos processos de independência no século XIX.

A grande revolução do Estado Plurinacional é o fato que este Estado constitucional,

democrático participativo e dialógico pode finalmente romper com as bases teóricas e sociais

do Estado nacional constitucional e democrático representativo (pouco democrático e nada

representativo dos grupos não uniformizados), uniformizador de valores e logo radicalmente

excludente.

O Estado plurinacional reconhece a democracia participativa como base da

democracia representativa e garante a existência de formas de constituição da família e da

economia segundo os valores tradicionais dos diversos grupos sociais (étnicos e culturais)

existentes.

Nas palavras de Ileana Almeida[11] sobre o processo de construção do Estado

Plurinacional no Equador:

Sin embargo, no se toma en cuenta que los gruos étnicos no luchan simplemente por parcelas de tierras cultivables, sino por un derecho histórico. Por lo mismo se defienden las tierras comunales y se trata de preservar las zonas de significado ecológico-cultural.

Certamente este Estado joga por terra o projeto uniformizador do Estado moderno que

sustenta a sociedade capitalista como sistema único fundado na falsa naturalização da família

e da propriedade e mais tarde da economia liberal.

Nas palavras de Ileana Almeida:

Al funcionar el Estado como representación de uma nacion única cumple también su papel en el plano ideológico. La privación de derechos políticos a las nacionalidades no hispanizadas lleva al desconocimiento de la existência misma de otros pueblos y convierte al indígena em vitima del racismo. La ideología de la discriminación, aunque no es oficial, de hecho está generalizada em los diferentes estratos étnicos. Esto empuja a muchos indígenas a abandonar su identidad y pasar a forma filas de la nación ecuatoriana aunque, pó lo general, en su sectores más explotados.12]

A Constituição da Bolívia, na mesma linha de criação de um Estado Plurinacional

dispõe sobre a questão indígena em cerca de 80 dos 411 artigos. Pelo texto, os 36 “povos

originários” (aqueles que viviam na Bolívia antes da invasão dos europeus), passam a ter

participação ampla efetiva em todos os níveis do poder estatal e na economia. Com a

aprovação da nova Constituição, a Bolívia passou a ter uma cota para parlamentares oriundos

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dos povos indígenas, que também passarão a ter propriedade exclusiva sobre os recursos

florestais e direitos sobre a terra e os recursos hídricos de suas comunidades. A Constituição

estabelece a equivalência entre a justiça tradicional indígena e a justiça ordinária do país.

Cada comunidade indígena poderá ter seu próprio “tribunal”, com juízes eleitos entre os

moradores. As decisões destes tribunais não poderão ser revisadas pela Justiça comum.

Outro aspecto importante é o fato da descentralização das normas eleitorais. Assim os

representantes dos povos indígenas poderão ser eleitos a partir das normas eleitorais de suas

comunidades.

A Constituição ainda prevê a criação de um Tribunal Constitucional plurinacional,

com membros eleitos pelo sistema ordinário e pelo sistema indígena.

A nova Constituição democrática transforma a organização territorial do país. O novo

texto prevê a divisão em quatro níveis de autonomia: o departamental (equivalente aos

Estados brasileiros), o regional, o municipal e o indígena. Pelo projeto, cada uma dessas

regiões autônomas poderá promover eleições diretas de seus governantes e administrar seus

recursos econômicos.

O projeto constitucional avança ainda na construção do Estado Plurinacional ao acabar

com a vinculação do estado com a religião (a religião católica ainda era oficial)

transformando a Bolívia em um Estado laico (o que o Brasil é desde 1891).

Outro aspecto importante é o reconhecimento de várias formas de constituição da

família.

Além de importante instrumento de transformação social, garantia de direitos

democráticos, sociais, econômicos plurais, e pessoais diversos, a Constituição da Bolívia é um

modelo de construção de uma nova ordem política, econômica e social internacional. É o

caminho para se pensar em um Estado democrático e social de direito internacional.

Citando novamente Ileana Almeida:

En contra de los que podría pensarse, el reconocimiento de la especificidad étinica no fracciona la unidad de las fuerzas democráticas que se alinean en contra del imperialismo. Todo lo contrario, mientras más se robustezca la conciencia nacional de los diferentes grupos, más firme será la resitencia al imperialismo bajo cualquiera de sus formas (genocídio, imposición política,, religiosa o cultural) y, sobre todo, la explotación econômica.

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A América Latina (melhor agora a América Plural), que nasce renovada nestas

democracias dialógicas populares, se redescobre também indígena, democrática,

economicamente igualitária e socialmente e culturalmente diversa, plural. Em meio à crise

econômica e ambiental global, que anuncia o fim de uma época de violências, fundada no

egoísmo e na competição a nossa América anuncia finalmente algo de novo, democrático e

tolerante, capaz de romper com a intolerância unificadora e violenta de quinhentos anos de

Estado nacional.

Conclusões

Para a compreensão da grande contribuição do Estado Plurinacional e do

constitucionalismo boliviano e equatoriano para a construção de um novo paradigma

democrático de Estado que supere os 500 anos de estado nacional precisamos pontuar

algumas questões:

a) Vimos que o estado moderno surge a partir da afirmação de uma esfera territorial

intermediária de poder: o poder dos reis entre o poder dos impérios (multi-étnico e

descentralizado) e o poder dos senhores feudais (local e fragmentado);

b) Para que o poder deste novo estado fosse reconhecido foi necessário construir uma

nacionalidade por sobre as nacionalidades pré-existentes. Assim foi inventado o

espanhol como uma identidade por sobre as identidades anteriores de castelhanos,

galegos, bascos, catalães e outros, processo que se repetiu em escalas diferentes na

França, Portugal, Reino Unido e vários outros estados nacionais que se formaram

nos últimos quinhentos anos;

c) Este estado nacional uniformiza valores por meio, inicialmente, da religião. A

partir daí e gradualmente construído todo um aparato burocrático que permitirá o

desenvolvimento do capitalismo: o povo nacional, a moeda nacional, os bancos

nacionais, os exércitos nacionais (fundamental para a expansão européia a busca

de recursos para o desenvolvimento de sua economia) e a polícia (fundamental

para o controle e repressão dos pobres excluídos do sistema econômico desigual);

d) Desde então, este modelo uniformizador vem se reproduzindo, até mesmo nas

novas formas descentralizadas de estado como os estados federais, os estados

regionais e o estado autonômico espanhol. Nestes estados, mesmo reconhecendo a

diversidade cultural, lingüística, a base uniformizadora do direito de propriedade

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(que sustenta um sistema econômico único) e o direitos de família (que sustenta os

valores deste sistema econômico) permanecem mais ou menos intactas, mas

sólidas;

e) A uniformização econômica fundada na uniformização do direito de família e do

direito de propriedade permanece também em novas formas jurídicas como, por

exemplo, o direito comunitário europeu;

f) Nas Américas os estados nacionais tiveram um processo de formação diferenciado:

enquanto na Europa os mais diferentes foram excluídos fisicamente (muçulmanos

e judeus) e os menos diferentes foram uniformizados (os grupos étnicos internos),

na América os estados formados que se tornaram independentes nos séculos XVIII

e XIX, foram construídos pelos descendentes dos europeus para os homens

brancos descendentes dos europeus. Os povos originários, chamados de índios

pelos perdidos invasores europeus, foram radicalmente excluídos da ordem

jurídica constitucional nascente, assim como os imigrantes forçados da África que

tiveram suas vidas escravizadas;

g) Assim surgiram nas Américas, estados nacionais para 20% (este é um número

simbólico uma vez que encontramos estados que até hoje a exclusão supera este

número). Nos Estados Unidos a população carcerária já atinge 2.750.000 pessoas

(dois milhões setecentos e cinqüenta mil pessoas) sendo que destes, 80% são

negros e hispânicos. Só de homens negros são 800 mil presos e mulheres negras 75

mil presas.2 Este fenômeno se repete em toda a América. No Brasil só os pobre são

presos. A maioria dos povos originários na Bolívia, Equador e Chile foram

radicalmente excluídos e só agora com governos democráticos finalmente eleitos

(Evo Morales na Bolívia; Rafael Correa no Equador e Michelle Bachelet no Chile)

a situação começa a mudar;

h) A onda democrática na América Latina trouxe uma importante novidade: a

previsão de um estado plurinacional, onde cada grupo étnico poderá manter o seu

próprio direito de família e o seu próprio direito de propriedade, mantendo ainda

tribunais para resolver as questões nestas esferas;

i) Esta novidade pode finalmente representar uma ruptura com 500 anos de

hegemonia do paradigma do estado nacional que representa a hegemonia européia;

2 WACQUANT, Loïc. As duas faces do gueto, Editora Boitempo, São Paulo, 2008.

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j) Este novo constitucionalismo plurinacional pode fundamentar uma nova ordem

internacional democrática e logo igualitária exige a coragem de se romper com o

universalismo europeu3 que gerou os direitos humanos “universais” europeus e

uma ordem desigual cultural, econômica e social favorável aos estados do norte

(Europa ocidental, EUA e Canadá) reproduzidos nos textos preconceituosos de

suposta superioridade européia presentes no Tratado de Versalhes e com fortes

resquícios na Carta das Nações Unidas (como, por exemplo, no sistema de tutela)

Um novo estado constitucional democrático plurinacional é possível assim como uma

nova ordem mundial e a construção de um direito internacional (talvez mundial) democrático

deve partir da superação das pretensões hegemônicas; das falsas declarações ou suposições

disfarçadas de superioridade cultural. Uma nova ordem constitucional pode fundamentar a

construção de uma nova ordem mundial democrática o que exige a construção de espaços

permanentes de diálogo em condições reais de igualdade de manifestação, de igualdade de

fala e de igualdade de voto nas deliberações. Este novo constitucionalismo latino-americano

deve fundamentar uma nova ordem mundial democrática o que exige o reconhecimento dos

novos atores das relações mundiais; de novos sujeitos de um direito internacional que, talvez,

a partir daí, seja finalmente democrático e deixe de ser meramente internacional, mas

efetivamente mundial: um constitucionalismo mundial.

NOTAS E REFERÊNCIAS

[1] SIÉYES, Emmanuel Joseph. A constituinte burguesa. (Qui est-ce que le tiers Etat)

organização e introdução de Aurélio Wander Bastos, tradução Norma Azeredo, Rio de

Janeiro, Editora Líber Juris, 1986, pp. 141-142.

[2] KELSEN, Hans. Teoria Geral da Normas (Allgemeine Theorie der Normen), tradução e

revisão de José Florentino Duarte, Editora Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, RS,

1986.

[3] DANTAS, Ivo. Poder Constituinte e Revolução, Rio de Janeiro, Editora Rio sociedade

cultural Ltda., 1978, p.33.

3 WALLERNSTEIN, Immanuel. O universalismo europeu – a retórica do poder, Editora Boitempo, São Paulo, 2007.

Page 28: Revista Ciência Dinâmica - 2ª Edição

28

[4] PINTO FERREIRA, Luis. Princípios Gerais de Direito Constitucional Moderno, Volume

1, 6 edição, São Paulo, Editora Saraiva, 1983, p.51.

[5] DANTAS, Ivo. Poder Constituinte e Revolução. Ob.cit. pp.40-41.

[6] Entre as publicações consideradas clássicas do Direito Constitucional e da Teoria da

Constituição que tratam do assunto podemos citar: HAURIOU, André. Droit Constitutionnel

et Institutions Politiques. Editions Montchrestien, 4eme edition, Paris, 1970. SAMPAIO,

Nelson de Souza. O Poder de Reforma Constitucional, Livraria Progresso Editora, Salvador,

1954. BARACHO, José Alfredo de Oliveira, Teoria Geral do Poder Constituinte, separata do

n.52 da Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, 1981. RUSSOMANO,

Rosah. Curso de Direito Constitucional, 3 edição revista e ampliada, Rio de Janeiro, Freitas

Bastos, 1978. VERDU, Pablo Lucas. Curso de Derecho Político. Volume I e II, Madrid,

Editora Tecnos. 1980. LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la constitucion, 2 ed., Barcelona,

Editora Nacional, 1982. SCHIMITT, Carl. Teoria de la Constitución, México, Editora

Nacional, 1973. BONAVIDES, Paulo. Direito Constitucional, Editora Forense, Rios de

Janeiro, 1980. VIAMONTE, Carlos Sanchez. Derecho Constitucional, Tomo I, Poder

Constituyente, Editorial Kapelusz & Cia. Buenos Aires, Argentina, 1945.

[7] MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Direito Constitucional Tomo II, Editora

Mandamentos, Belo Horizonte, 2006.

[8] PINTO FERREIRA, Luis. Princípios Gerais do Direito Constitucional Moderno, 6 edição,

revista e ampliada e atualizada, São Paulo, Editora Saraiva, 1983.

[9] CREVELD, Martin van Creveld. Ascensão e declínio do Estado, Editora Martins Fontes,

São Paulo, 2004 e CUEVA, Mario de la. La idea del Estado, Fondo de Cultura Econômica,

Universidad Autônoma de México, Quinta Edição, México, D.F., 1996.

[10] Utilizamos neste texto as palavras identidade e identificações quase com sinônimos, ou

seja, uma identidade se constrói a partir da identificação de um grupo com determinados

valores. Importante lembrar que o sentido destas palavras é múltiplo em autores diferentes.

Podemos adotar o sentido de identidade como um conjunto de características que uma pessoa

tem e que permitem múltiplas identificações sendo dinâmicas e mutáveis. Já a idéia de

identificação se refere ao conjunto de valores, características e práticas culturais com as quais

um grupo social se identifica. Nesse sentido não poderíamos falar em uma identidade nacional

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29

ou uma identidade constitucional mas sim em identificações que permitem a coesão de um

grupo. Identificação com um sistema de valores ou com um sistema de direitos e valores que

o sustentam, por exemplo.

[11] ALMEIDA, Ileana. El Estado Plurinacional – valor histórico e libertad política para los

indígenas ecuatorianos. Editora Abya Yala, Quito, Ecuador, 2008, pág.21.

[12] ALMEIDA, Ileana. El Estado Plurinacional – valor histórico e libertad política para los

indígenas ecuatorianos. Ob. Cit., pág.19.

BIBLIOGRAFIA

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Page 31: Revista Ciência Dinâmica - 2ª Edição

31

Utilização de mecanismos econômicos para efetivação das áreas de

preservação permanente e reserva legal

Iglesias Fernanda de Azevedo Rabelo1

RESUMO: A necessidade de preservação do meio ambiente e a necessidade de um desenvolvimento social justo são desafios enfrentados pela sociedade na busca de uma melhor qualidade de vida. Diante disto, pretende-se apresentar quais são as áreas definidas por lei como áreas de preservação permanente e de reserva legal; contextualizar o problema da efetivação destas áreas e o impacto ambiental/social/econômico; apresentar alternativas para a efetivação destas áreas; discorrer sobre a utilização de instrumentos econômicos que incentivem o produtor a conservar estas áreas; identificar a origem dos recursos para o pagamento dos produtores; bem como apresentar as formas de sustentação dos incentivos ao longo do tempo.

Palavras chaves: mecanismos econômicos; áreas de preservação permanente; reserva legal

ABSTRACT: The need to preserve the environment and the need for equitable social development are challenges faced by society in search of a better quality of life. Given this, we intend to present what are the areas defined by law as permanent preservation areas and legal reserves; contextualize the problem of realization of these areas and the environmental / social / economic impact; present alternatives for the realization of these areas, discuss the use of economic instruments to encourage farmers to conserve these areas, identifying the source of funds for the payment of producers, as well as provide ways to support the incentives over time. Keywords: economic instruments, permanent preservation areas, legal reserves

1. Introdução

A necessidade de preservação do meio ambiente e a necessidade de um

desenvolvimento social justo são desafios enfrentados pela sociedade na busca de uma melhor

qualidade de vida. E, muitas vezes, com o objetivo de alcançar desenvolvimento econômico, a

preservação do meio ambiente tem sido preterida.

A Constituição da República de 1988 assegura em seu artigo 225 que todos tem

direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial

à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo

e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

1 Graduada em Direito. Mestre em Economia Familiar. Advogada e professora.

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32

Todavia, mesmo antes do advento da CR/88, a sociedade já reclamava a

necessidade de uma legislação voltada para a preservação das florestas, como forma de

assegurar a conservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado. Assim, foi

sancionado em 15 de setembro de 1965, o Código Florestal, a lei nº 4.771. Esse código

estabelece que as florestas existentes no território nacional e as demais formas de vegetação,

reconhecidas de utilidade às terras que revestem, são bens de interesse comum a todos os

habitantes do País, exercendo-se os direitos de propriedade, com as limitações que a

legislação em geral e especialmente esta Lei estabelecem.

Assim, no referido Código foram criadas as áreas de preservação permanente e de

reserva legal, como limitações ao direito de propriedade, antes tido por ilimitado, posto que o

proprietário podia fazer uso do seu bem a seu talante, destruí-lo, deixá-lo improdutivo,

esbanjá-lo desarrazoadamente, sem ter de se preocupar com outra coisa a não ser com seus

interesses individuais ou com seu capricho.

A Constituição, por sua vez, assegura que "todos são iguais perante a lei, sem

distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros (...) direito (...) à

propriedade..." (art. 5º, caput), desde que atenda a sua função social (art. 5º, XXII e XXIII).

Esse conjunto de normas denota que a propriedade deveria ser olhada somente como uma

instituição de ordem e relações econômicas (art. 170, II e III), porque os princípios gerais da

atividade econômica são preordenados para o fim de "assegurar a todos existência digna,

conforme os ditames da justiça social" (art. 170, caput). (BRASIL, 2008)

Todavia, em que pese haver disciplina legal visando proteger determinadas áreas

das propriedades que são importantes em decorrência da função ambiental de preservar os

recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico de

fauna e flora, além de proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas e

também de certos percentuais necessários para a manutenção de um ambiente sustentável,

essas áreas não são respeitadas pelos proprietários.

A significação econômica, política e social destes institutos jurídicos derivam da

preocupação com o desequilíbrio ecológico causado pela ação predatória ao meio ambiente,

em função da influência exercida na estrutura das sociedades.

Não se discute que os recursos naturais, assim como o equilíbrio ambiental são

fatores fundamentais para o desenvolvimento das atividades produtivas no espaço rural.

Entretanto, a sustentabilidade no que tange ao manejo das propriedades rurais ainda é um

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desafio e, a legislação ambiental aplicável, ainda não atingiu um nível satisfatório de

efetividade.

Diante desse quadro fático, pretende-se apresentar quais são as áreas definidas por

lei como áreas de preservação permanente e de reserva legal; contextualizar o problema da

efetivação destas áreas e o impacto ambiental/social/econômico; apresentar alternativas para a

efetivação destas áreas; discorrer sobre a utilização de instrumentos econômicos que

incentivem o produtor a conservar estas áreas; identificar a origem dos recursos para o

pagamento dos produtores; bem como apresentar as formas de sustentação dos incentivos ao

longo do tempo.

2. Procedimentos metodológicos

Primeiramente, averiguou-se, através de pesquisas realizadas, a não efetivação das

áreas de preservação permanente e de reserva legal, em que pese a imposição legal.

E, para a consecução de uma base de estudos sólida e apta a fundamentar toda a

argumentação necessária para discorrer sobre os objetivos propostos, realizou-se uma

pesquisa bibliográfica em doutrinas acerca das áreas de preservação permanente e de reserva

legal, sobre o problema da efetivação dessas áreas, os impactos decorrentes da efetivação ou

não, dos instrumentos econômicos existentes que incentivem os proprietários a conservar

essas áreas, a origem dos recursos para o pagamento e a forma de sustentação a longo prazo.

Concomitantemente, realizou-se uma pesquisa legislativa, onde adquiriu-se conhecimento das

leis aplicáveis ao tema. Uma vez obtidas as informações necessárias e realizado o processo

intelectivo de depuração, passou-se ao trabalho de demonstração da relevância do problema e

a pertinência da abordagem.

3. Resultados e discussão

a. Conceito de Área de Preservação Permanente e de Reserva Legal

O Código Florestal Brasileiro, lei 4.771,de 15 de setembro de 1965, em seu artigo

1º , § 2o , inciso II, define área de preservação permanente como a área protegida, coberta ou

não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a

paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico de fauna e flora, proteger

o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas.

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A resolução n.º 303 de março de 2002 do CONAMA dispõe sobre os parâmetros,

definições e limites dessas áreas.

No inciso III, § 2o, do artigo 1º do referido Código Florestal, consta a definiçao de

reserva legal como a área localizada no interior de uma propriedade ou posse rural, excetuada

a de preservação permanente, necessária ao uso sustentável dos recursos naturais, à

conservação e reabilitação dos processos ecológicos, à conservação da biodiversidade e ao

abrigo e proteção de fauna e flora nativas. Trata-se de porcentagem variável do domínio de

cada propriedade rural cuja manutenção é obrigatória e na qual deve ser conservada a

vegetação nativa.

A Reserva Legal não se confunde com as Áreas de Preservação Permanente, uma

vez que nela é permitida a exploração econômica de forma sustentável, sendo vedado, no

entanto, o corte raso da vegetação.

O Código Florestal prevê os seguintes percentuais para fins de reserva legal nas

propriedades rurais: oitenta por cento, na propriedade rural situada em área de floresta

localizada na Amazônia Legal; trinta e cinco por cento, na propriedade rural situada em área

de cerrado localizada na Amazônia Legal, sendo no mínimo vinte por cento na propriedade e

quinze por cento na forma de compensação em outra área, desde que esteja localizada na

mesma microbacia, e seja averbada perante a matrícula do imóvel; vinte por cento, na

propriedade rural situada em área de floresta ou outras formas de vegetação nativa localizada

nas demais regiões do País; e vinte por cento, na propriedade rural em área de campos gerais

localizada em qualquer região do País.

Em Minas gerais, é a lei 14.309 de 19 de maio de 2002 que dispõe sobre as

políticas florestais e de proteção à biodiversidade no Estado, sendo que repete as disposições

do Código Florestal, com algumas alterações. Por exemplo, o art. 12, §4º da referida lei, prevê

que na propriedade rural, com relevo predominantemente acidentado, impróprio para a

pecuária e agricultura, permite-se a utilização da faixa ciliar dos cursos d’água, em uma das

margens, em até um quarto da largura prevista nesta lei, mediante autorização do órgão

competente, compensando essa redução com a ampliação proporcional da referida faixa na

margem oposta quando esta comprovadamente pertencer ao mesmo proprietário. Esta lei

ainda prevê a possibilidade de computo das áreas de vegetação nativa nas áreas de

preservação permanente para fins de alcance do percentual destinado à reserva legal, desde

que a propriedade preencha determinados requisitos nela estabelecidos.

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b. O problema da efetivação das áreas de preservação permanente e de

reserva legal e os impactos ambiental, econômico e social decorrentes da

efetivação ou não

Atualmente, depara-se com um conflito entre a existência de uma lei impondo

uma limitação ao direito de propriedade visando a proteção do meio ambiente e um problema

econômico e social decorrentes das conseqüências para se exigir a sua efetivação,

especialmente se forem consideradas as pequenas propriedades rurais.

Corrêa (2006) realizou uma pesquisa que teve como objetivo principal avaliar o

impacto econômico da efetivação das áreas de preservação permanente (APPs) e de reserva

legal (ARLs) em propriedades da sub-bacia do Rio Pomba, Zona da Mata Mineira, no

município de Rio Pomba. Da área total das 47 propriedades estudadas (1854,35ha), 811,35ha

são APPs e ARL, o que corresponde a 43,79% da área total, segundo a legislação vigente.

Desse total de APPs e ARL exigido (811,35ha), apenas 171,17ha, ou 21,09% estão de acordo

com a legislação, permanecendo um déficit de 640,18ha, equivalente às APPs e ARL a serem

efetivadas.

Diante desta constatação deduz-se que a não efetivação das áreas em questão

provoca um significativo impacto ambiental, na medida em que a conservação das mesmas

contribuiria para um meio ambiente ecologicamente sustentável. Essa não efetivação reflete o

descumprimento da legislação, sendo apurado na pesquisa que boa parte dos proprietários

entrevistados não sabiam o que era Área de Preservação Permanente e de Reserva Legal.

Salienta-se que a obrigação de preservar as áreas APPs e ARL persiste mesmo

com a transferência da propriedade, por se tratar de uma obrigação real. Dessa maneira, a não

efetivação das mesmas representa um passivo ambiental da propriedade, o que gera uma

depreciação no seu preço no momento da venda. Assim, conforme decisões já proferidas

pelos nossos Tribunais2, os proprietários podem ser compelidos à reflorestarem essas áreas

desmatadas, bem como averbarem nas matrículas dos imóveis os percentuais destinados à

reserva legal.

2 AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DEGREDAÇÃO AMBIENTAL. REPARAÇÃO DA ÁREA. INDENIZAÇÃO. CUMULAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. Reserva Legal. Averbação. Dever. A ação civil pública ambiental, cujo fim precípuo é a recuperação do meio ambiente, não pode ter como objeto a condenação cumulativa em dinheiro e cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer. Pela necessidade de se implementar o direito que a coletividade tem ao ambiente ecologicamente equilibrado, juntamente com a função social exigida da propriedade, é que a obrigação de se instituir a ""reserva legal"", conforme previsto no art. 16, do Código Florestal, é perfeitamente legítimo e somente vem atender o que reza a Constituição Federal. Súmula: DERAM PROVIMENTO PARCIAL. (TJMG. Número do processo: 1.0183.08.146233-9/001Relator: ANTÔNIO SÉRVULO Data do Julgamento: 27/04/2009 Data da Publicação: 29/05/2009)

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O §8°, do art. 16, do Código Florestal, disciplina que:

§ 8º A área de reserva legal deve ser averbada à margem da inscrição de matrícula do imóvel, no registro de imóveis competente, sendo vedada a alteração de sua destinação, nos casos de transmissão, a qualquer título, de desmembramento ou de retificação da área, com as exceções previstas neste Código.

Por outro lado, segundo Corrêa (2006), caso os proprietários envolvidos na

pesquisa fossem compelidos à cumprirem a lei no tocante à preservação das APPs e ARL,

para uma receita líquida anual de R$633.880,75, a efetivação das APPs e ARL promove um

impacto de R$240.238,14, equivalente a 38,08% da receita líquida total. O custo médio de

oportunidade obtido com base nas atividades econômicas desenvolvidas nestas propriedades é

de R$ 341,83.ha-1.ano-1, representando o valor da receita líquida que o produtor deixa de

auferir para cada hectare em que for efetivado a APP ou ARL.

Além das perdas financeiras pelo não uso das áreas, o produtor também teria

gastos para a efetiva proteção dessas áreas, como por exemplo, promover o cercamento das

áreas de preservação permanente para evitar o acesso do gado às mesmas. E, segundo o

levantamento feito por Corrêa (2006) boa parte dos produtores não tinha condições de custear

essas despesas.

Diante da inviabilidade econômica, extraem-se as conseqüências sociais da

efetivação forçada dessas áreas, ou seja, o pequeno produtor não teria condições de continuar

retirando a renda necessária para sua sobrevivência. Nesse sentido, Corrêa (2006) aponta que:

Os resultados obtidos mostram que a partir da efetivação das APPs e ARL, a pecuária como atividade principal desta região torna-se inviável, já que estas áreas ocupam elevado percentual destas propriedades, principalmente as áreas de várzeas, consideradas como as mais importantes na geração de renda neste tipo de atividade.

Em decorrência, ocorreria o êxodo rural, que é considerado um dos maiores

responsáveis pelo crescimento desordenado, principalmente dos grandes centros urbanos,

onde estes agricultores saem do campo sem ter a menor capacidade de competir no mercado

de trabalho, se tornando na maioria das vezes, marginalizados pela sociedade, e

conseqüentemente fazendo inchar cada vez mais as periferias e os problemas sociais das

cidades.

c. Alternativas para efetivação destas áreas

Diante do confronto de impactos, faz-se necessária a busca por alternativas para a

efetivação dessas áreas.

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Sá (2009) aponta três situações que condicionam o pagamento por serviços

ambientais no sistema jurídico brasileiro, para os espaços especialmente protegidos, sendo as

seguintes:

a) Se a hipótese recai sobre áreas onde não existe uma obrigação legal, administrativa ou voluntária de manutenção do bem ambiental, tem-se a possibilidade de identificar uma remuneração, que ocorre pela substituição do uso da área para outras atividades, que a partir da proteção ambiental do bem se tornam incompatíveis. É o caso das áreas de uso alternativo do solo previstas para propriedades privadas segundo a legislação florestal;

b) Se a hipótese afetar áreas onde existe uma obrigação expressa, mas mitigada, tem-se a possibilidade de identificar tanto uma remuneração como uma compensação, a partir da decisão de tornar a proteção do bem ambiental absoluta. É o caso das unidades de conservação de uso sustentável e das áreas de reserva legal, também previstas para propriedades privadas segundo a legislação florestal;

c) Se a hipótese recai sobre áreas onde já existe uma obrigação legal ou administrativa de manutenção do bem ambiental, a única possibilidade é o pagamento em forma de compensação. É o caso das áreas de áreas de preservação permanente e das unidades de conservação de proteção integral.

Portanto, tanto para as APPs quanto para as ARL existe a possibilidade jurídica

para que o Poder Público custeie as despesas para proteção dessas áreas e sua recuperação.

Assim, o pagamento pelos serviços de conservação da floresta se apresenta como

uma alternativa viável para não inviabilizar a permanência do pequeno produtor na zona rural,

de forma a compensar as perdas econômicas pelo não uso da propriedade e, por outro lado,

cumprir com a obrigação de disponibilizar um meio ambiente saudável para a população.

Além do pagamento pelos serviços de proteção da floresta, outras medidas

também podem ser adotadas para que ocorra a preservação dessas áreas legalmente tuteladas,

como a desburocratização para a aprovação de projetos de exploração sustentável das áreas de

reserva legal, bem como a autorização legal para exploração sustentável das áreas de

preservação permanente de acordo com as condições específicas de cada área e região na qual

está inserida.

Conforme apontam Valverde et. al. (2001), que fizeram um estudo comparativo

entre as legislações do Canadá, do Brasil, dos Estados Unidos, da Finlândia e da Suécia,

somente a legislação brasileira proíbe o uso de áreas de preservação permanente, sendo que as

demais legislações permitem o uso sustentável dessas áreas. Além disso, o tamanho das áreas

é mais extenso do que nos demais países, sendo estipulados 500 metros de distancia de cada

margem, enquanto que nos demais não atinge 100 metros. E, por fim, enquanto aqui, somente

se concede a isenção do pagamento de Imposto Territorial Rural, nos demais países

mencionados há os subsídios e incentivos para o uso racional dessas áreas.

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A proibição irrestrita, nos moldes da legislação pátria, pode acabar desencadeando

o efeito reverso do escopo da lei, na medida em que a decisão de cortar a floresta em área de

preservação será tomada de acordo com a vantagem e o risco dessa conduta, o que significa

dizer que, quando o proprietário decide cortar, optará pela extração do máximo de árvores,

posto que o lucro deve compensar o risco das sanções decorrentes do não respeito à lei.

d. Utilização de instrumentos econômicos que incentivem o produtor a

conservar as APPs e ARL

A remuneração pela prestação de serviços ambientais representando a mudança do

paradigma do poluidor-pagador para o conservador-recebedor é um instrumento econômico

que incentiva o produtor a conservar as APPs e ARL.

Como regulamentação pioneira no Brasil, tem-se a Lei Municipal de Extrema/MG

nº 2.100/2005, e os Decretos Municipais nos. 1.703/2006 e 1.801/2006, que criam e

regulamentam o projeto “Conservador das Águas”, autorizam o poder executivo a prestar

apoio financeiro aos proprietários rurais e estabelecem os critérios para sua implantação. Esse

projeto tem influenciados outros Municípios que estão implantando a mesma legislação.

O Programa de Desenvolvimento Socioambiental da Produção Familiar Rural

(PROAMBIENTE), por sua vez, tem como uma de suas propostas a de compensação por

desmatamento evitado, por meio de um incentivo econômico anual aos beneficiários para

manterem em pé as florestas primárias de suas propriedades familiares (desde que adicionais

às áreas de preservação permanente e de reserva legal) e/ou reservas extrativistas (em toda a

área).

O Estado do Amazonas sancionou a lei sobre Mudanças Climáticas e Preservação

Ambiental que cria um mecanismo inédito para manter as Unidades de Conservação da

Floresta Amazônica no Estado preservadas: o Bolsa Floresta. O objetivo é remunerar cada

uma das 8.500 famílias cadastradas que hoje vivem dentro das Unidades de Conservação pela

quantia de R$ 50 por mês para não derrubar a floresta. (JANSEN, 2007)

Outros instrumentos econômicos que podem ser apontados para a finalidade em

questão é o sistema de reembolso, no qual o produtor é incentivado a destinar de forma

correta as embalagens dos insumos agrícolas de modo a não afetar o meio ambiente.

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Além disso, pode-se pensar em alterações no crédito rural do Programa Nacional

de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), considerando critérios de existência

das áreas de reserva legal, das APPs, de outras áreas com vegetação nativa e do próprio estado

de conservação ambiental das propriedades rurais.

E, por fim, incentivar a aplicação do conceito de redução compensada, ou seja,

estimular a constituição de servidões florestais, nos termos previstos no art. 44-A do Código

Florestal, que prevê um valor pecuniário por cada hectare de servidão estabelecido.

e. Origem dos recursos para pagamento dos produtores e formas de

sustentação dos incentivos ao longo do tempo

Os recursos para o pagamento dos produtores podem advir de recursos públicos,

na medida em que o Estado tem também a obrigação de garantir um meio ambiente saudável,

sendo essa obrigação prevista na Constituição da República de 1988. O Estado obtém receita

através de taxas, impostos e contribuições, sendo que já tem receita específica de cobrança

pelo uso dos recursos ambientais, como é o caso da cobrança pelo uso da água.

O ICMS ecológico, idealizado como alternativa para estimular ações ambientais

no âmbito das municipalidades, ao mesmo tempo em que possibilita o incremento de suas

receitas tributárias, com base em critérios de preservação ambiental e de melhoria da

qualidade de vida, é um tipo de recurso, cuja destinação não está vinculada3, mas pode ser

destinado para esse tipo de pagamento.

No Caso do Projeto “Conservador das Águas”, os recursos originam se da

Cobrança pelo Uso da Água, do Fundo Estadual de Recursos Hídricos, de convênios com a

ANA; IEF; IGAM, de recursos da SABESP, de créditos de carbono e créditos para produção

de água.

3 Dispõe o artigo 167, IV da Constituição Federal: Art. 167. São Vedados: (...) IV – a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, ressalvadas a repartição do produto da arrecadação dos impostos a que se referem os arts. 158 1 159, a destinação de recursos para a manutenção e desenvolvimento do ensino, como determinado pelo art. 212 e a prestação de garantias às operações de crédito por antecipação de receita, previstas no art. 165, § 8º, bem assim o disposto no § 4º, deste artigo. Por sua vez, estabelece o § 4º do mesmo dispositivo: § 4º - É permitida a vinculação de receitas próprias geradas pelos impostos a que se referem os arts. 155 e 156, e dos recursos e que tratam os arts. 157, 158 e 159, I, a e b, e II, para a prestação de garantia ou contragarantia à União e para pagamento de débitos para com esta. (BRASIL, 2008)

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A destinação de receita oriunda de impostos para o pagamento pela conservação e

preservação das florestas também representa a contribuição da coletividade para a preservação

do meio ambiente, nos moldes do dever constitucional.

No que diz respeito às formas de sustentação dos incentivos ao longo do tempo,

destaca-se a necessidade da criação de um aparato legal específico, bem como, o

desenvolvimento de propostas metodológicas visando um contínuo aperfeiçoamento que

envolve a implantação desse tipo de instrumento econômico de incentivo.

4. Conclusões

Mesmo que o conceito de proteção integral seja trabalhado a partir do pressuposto

de que a noção de meio ambiente definida no artigo 225 da CR/88 é insuscetível de valoração

monetária, uma abordagem econômica pode ser desenvolvida sem retirar o qualificativo

reducionista que o viés econômico possa representar.

A adoção do princípio do provedor recebedor demonstra essa compatibilidade,

pois neste caso, o usuário paga não só pela conservação (pelo uso sustentável) como pela

preservação (proteção integral) do meio ambiente.

Conclui-se, portanto, que não pode haver dissociação entre desenvolvimento

econômico e preservação do meio ambiente e, para conquistar a necessária harmonia, é

necessária a intervenção do Estado. Todavia, essa intervenção não pode ser apenas do plano

abstrato da lei, mas de forma efetiva, no sentido de tornar a proteção efetiva.

Apontam-se como medidas necessárias: a criação de um aparato legal específico

para implementação do princípio do provedor recebedor, a realização de pesquisas e estudos

destinados à correta confecção e interpretação das leis; o desenvolvimento de uma gestão

ambiental efetiva, com a conscientização da população e dotação orçamentária suficiente para

atender a real demanda de recursos para essa finalidade.

5. Referências Bibliográficas

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Teoria da Justiça em “A República” de Platão

Ramon Mapa da Silva1 Audrey Gonçalves de Castro Chalfun2

RESUMO: O objetivo desse texto é apresentar a teoria da justiça no livro “A República” do filósofo grego Platão. A obra trata de questões políticas, como a legitimidade do poder político, a ética do poder e as estruturas sociais. Palavras-chaves: justiça, política, poder ABSTRACT: The aim of this paper is to present a theory of justice in the book “A República” of the Greek philosopher Plato. The work focuses on policy issues, such as the legitimacy of political power, the ethics of power and social structures. Keywords: justice, politics, power

Introdução

O texto de A República (Πολιτεία) é provavelmente a obra mais famosa do

filósofo grego Platão3 (Atenas, 428/27 a.C.) e uma das obras de filosofia jurídico-política

mais importantes de toda história. Construída como um diálogo socrático, A República

apresenta as noções de ética, política e justiça de Platão, bem como suas idéias sobre

educação e organização familiar e estatal, expostas pela fala em primeira pessoa de Sócrates.

A República é dividida em dez livros, em que o tema principal é a justiça,

debatido por Sócrates com vários interlocutores, entre eles o sofista4 Trasímaco. O diálogo

tem início durante a descida ao Pireu, onde se realizava uma festa em homenagem à Deusa

Bendis (ou Selene, ou Lua) e onde Sócrates havia ido com Glauco, filho de Arfston e um de

seus debatedores, para orar à Deusa, cujo culto foi instituído e era muito popular na Trácia. A

descida ao Pireu é conhecida como a representação de um momento de amadurecimento

filosófico.

1 Mestrando em Teoria do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), Professor do Curso de Direito da Universidade Presidente Antônio Carlos (UNIPAC-Itabirito), Professor do Curso de Direito da Faculdade Dinâmica. 2 Mestranda em Direito Internacional pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), Advogada e Professora. 3 Platão viveu nos bastidores da política de Atenas desde cedo, pois sua família descendia de pessoas importantes politicamente. Foi discípulo de Sócrates. 4 Os sofistas se compunham de grupos de mestres gregos que viajavam de cidade em cidade realizando aparições públicas para atrair pessoas de quem cobravam taxas para oferecer-lhes educação. Eles se concentravam em estratégias de argumentação. Dizem que os sofistas foram os primeiros advogados do mundo.

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O conceito do justo

No retorno para a cidade, Sócrates e Gláucio são chamados por Polemarco, filho

de Céfalo, que o convence a permanecer para as festividades em honra da Deusa. Dirigem-se

à casa de Polemarco onde encontram Céfalo, com quem começam o diálogo. Céfalo defende

um conceito de justo condizente com as idéias dos gregos mais antigos. Tal conceito se

prende às formas iniciais da organização civil grega, formada por fatrias muitas vezes hostis

entre si e cuja prática da vendeta, a vingança familiar, ainda era muito comum. Podem-se ver

exemplos dessa organização nos textos das tragédias gregas que, apesar de serem peças quase

contemporâneas de Platão (foram escritas no séc. V), retratam esse período da formação do

povo grego. Devido a essa organização, a justiça era vista como justa medida da ação e

auxílio aos amigos.

Polemarco invoca o Poeta Simônides (331e) para citar uma concepção de justiça

que se consubstancia em: por ser justo, dar a cada um o que lhe é devido. Esse princípio de

direito é consolidado na máxima romana unicuique suum tribuere e surge como a marca de

um povo ainda muito em contato com ideais de vingança privada e de castigo violento contra

os inimigos. A defesa de Céfalo, da justiça enquanto sinceridade e a dar a cada um o que lhe é

devido é rebatida por Sócrates com exemplos de momentos onde, devolver algo para alguém

seria errado. Como quando devolvemos a um néscio algo que nos foi confiado quando o

mesmo ainda era são. PLATÃO (1997:9).

Sócrates assevera que o entendimento de Céfalo é vago, pois pressupõe uma

justiça sem um objeto específico, ao contrário da medicina, por exemplo, que tem por objeto

as doenças do corpo. Nessa parte do diálogo Platão já inicia sua tese de que a justiça tem um

valor como algo em si mesmo e não pode ser reduzida a uma utilidade ou a uma ideia prática.

Segue a conversa, tendo como interlocutor Polemarco, filho de Céfalo, que defende a justiça

em se fazer bem aos amigos e mal aos inimigos. Após um longo debate Sócrates demonstra a

impossibilidade de se identificar a justiça com esse princípio, uma vez que, identificando-se o

inimigo com os maus, é muito difícil identificar quem realmente é mau, podendo as pessoas

se confundir no momento de fazê-lo. Sócrates ainda explica que “fazer mal não é a ação do

homem justo, quer seja a um amigo, quer seja a qualquer outra pessoa, mas, pelo contrário, é

a ação de um homem injusto.” (335a-e). Portanto, Sócrates entende que, se assim o fosse,

haveria a possibilidade de uma pessoa justa utilizar tanto a justiça quanto a injustiça para

realizar seus fins.

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Esse momento no texto da República tem duas funções: a primeira é introduzir o

leitor à forma dialética socrático/platônica, a maiêutica. No diálogo com Polemarco a tensão

entre teses opostas constrói o caminho para as conclusões que Platão nos apresenta. A outra

função é servir como um gancho poético para o diálogo com o sofista Trasímaco, um dos

pontos altos da obra.

Sócrates e Trasímaco

Platão dramatiza a entrada em cena de Trasímaco, revoltado com a retórica

socrática, acusada por ele de ser demasiadamente circular e voltada para o engodo. Nesse

sentido, segundo relata Sócrates (336b), Trasímaco começou sua argumentação lançando-se

nos presentes como uma fera a fim de dilacerar os seus argumentos e o método socrático.

— Que tagarelice é essa, Sócrates, e por que agis como tolos, inclinando-vos alternadamente um diante do outro? Se queres mesmo saber o que é justo, não te limites a indagar e não teimes em refutar aquele que responde, mas, tendo reconhecido que é mais fácil indagar do que responder, responde tu mesmo e diz como defines a justiça. E abstém-te de pretender ensinar o que se deve fazer, o que é o útil, proveitoso, lucrativo ou vantajoso; exprime-te com clareza e precisão, pois eu não admitirei tais banalidades. PLATÃO (1997: pág 17)

Trasímaco fala com violência, acusando de tolos os que se deixam encantar pelos

questionamentos constantes de Sócrates e o exortando a responder com objetividade o que

seria a justiça. Sócrates assume não ter certeza, e diz que a conversa é uma forma de

investigação. Trasímaco diz então ter uma versão para a justiça melhor do que todas as

apresentadas até o momento.

O sofista alega ser a justiça nada mais que o interesse do mais forte. Diz que o

mais forte da Pólis é aquele que governa e promulga leis. Por conseguinte, as leis

promulgadas devem estar de acordo com os interesses do governante. Portanto, segundo

Trasímaco, o justo é o que é sancionado pela lei, devendo ser punidos os seus transgressores.

Na mesma linha, as leis tiranas são justas em uma tirania e as leis democráticas são justas em

uma democracia. Além disso, entende Trasímaco que o governo, para ser forte deve ser

formado pelos melhores (aristói) da Pólis. Com esse entendimento, seria correto tirar

vantagem de toda sorte, indistintamente e em demasia, em qualquer assunto, o que pode ser

chamado de pleonexia. Posição semelhante a esta tiveram vários pensadores históricos que

basearam a aplicação da justiça no uso do poder. Exemplo pode ser dado com o Positivismo

Jurídico da Escola da Exegese ou de Hobbes, o qual considera justo tudo o que está de acordo

com a vontade do legislador. Deste modo, a justiça nada mais seria do que a aplicação da lei,

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independente do governo que a estabeleça. E, assim, justos seriam os seguidores da lei e

injustos aqueles que assim não procedessem.

Platão inaugura aqui um questionamento que se tornaria muito comum na

modernidade, base das idéias sobre a justiça política. Tal questionamento seria sobre a

legitimidade de uma dominação baseada unicamente na força. De Hobbes a Marx, passando

por Nietzsche, Kelsen e Schmitt, o problema da legitimidade da dominação pela força é uma

constante na problematização da justiça política:

Na definição de Trasímaco a pólis se converte numa espécide de sindicato do poder, que pode oprimir e explorar os mais fracos e ainda se pode alegrar com uma boa consciência. A objeção predileta contra a justiça política, respectivamente contra o direito e o Estado, de que são um instrumento da exploração na mão dos dominadores, não tem sua origem, por exemplo, em Marx, Mas na imagem dos sofistas gregos, respectivamente, e Platão. HÖFFE (2006, pág: 200)

Sócrates se utiliza de uma relação entre justiça e utilidade para desbancar a

afirmação de Trasímaco. Se a justiça é o interesse do mais forte consolidado em leis, o uso

dessas leis devem representar uma vantagem para os fortes. Mas, e se por um erro os

governantes fizessem leis que não lhe fossem vantajosas? Ainda assim essas leis seriam

obedecidas e seriam consideradas justas.

Interessante ressaltar que tal postura é extremamente condizente com a postura

que Sócrates esposou durante sua vida. Condenado à morte por lapidação devido a uma falsa

acusação de corromper a juventude ateniense, Sócrates teve a oportunidade de fugir, auxiliado

por amigos, mas para não ver a justiça que tanto defendeu ser maculada, ele preferiu tomar

cicuta e morrer no cárcere. As leis eram justas, segundo Sócrates, mas foram utilizadas por

homens injustos. PLATÃO (2001)

Trasímaco retruca Sócrates argumentando que quando se erra no exercício do

governo, não se pode ser considerado governante, nem forte. A que Sócrates conclama que

Trasímaco dê uma definição precisa de governante. Nesse momento o diálogo passa sobre a

quem o bom governante visa com seu governo. Trasímaco insiste que o governante governa

em seu próprio interesse, enquanto Sócrates argumenta que o governo é uma obrigação, uma

arte que tem como objetivo beneficiar o mais fraco. Tenta comprovar isso comparando com

várias artes como a pilotagem e a medicina. Se o forte se beneficia do governo, quer dizer que

o forte precisa desse benefício, como o doente precisa do benefício do tratamento médico.

Mas se o forte precisa da arte de governar pra ser forte, isso demonstra que ele não é forte.

Sendo assim, Trasímaco, nenhum governante, seja qual for a natureza da sua autoridade, na medida em que é governante, não objetiva e não ordena a sua

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própria vantagem, mas a do indivíduo que governa e para quem exerce a sua arte; é com vista ao que é vantajoso e conveniente para esse indivíduo que diz tudo o que diz e faz tudo o que faz. PLATÃO (1997, pág. 25)

Platão, em verdade, concorda com Trasímaco em um ponto: o governo deve estar

a cargo dos melhores. Alega Platão que somente um incompetente, sem o domínio da arte, se

tornaria injusto e enganaria alguém. Nesse raciocínio, injusto é o ignorante, que não

reconhece a justa medida a que deve se ater. O governo ideal para Platão é aquele em que os

governantes, se utilizando da razão para frear apetites pessoais, governam para o bem da

Pólis.

Devido a isso, os homens de bem não querem governar nem pelas riquezas nem pela honra; porque não querem ser considerados mercenários, exigindo abertamente o salário correspondente à sua função, nem ladrões, tirando dessa função lucros secretos; também não trabalham pela honra, porque não são ambiciosos. Portanto, é preciso que haja obrigação e castigo para que aceitem governar — é por isso que tomar o poder de livre vontade, sem que a necessidade a isso obrigue, pode ser considerado vergonha — e o maior castigo consiste em ser governado por alguém ainda pior do que nós, quando não queremos ser nós a governar; é com este receio que me parecem agir, quando governàm, as pessoas honradas, e então assumem o poder não como um bem a ser usufruído, mas como uma tarefa necessária, que não podem confiar a outras melhores que elas nem a iguais. Se surgisse uma cidade de homens bons, é provável que nela se lutasse para fugir do poder, como agora se luta para obtê-lo, e tornar-se-ia evidente que, na verdade, o governante autêntico não deve visar ao seu próprio interesse, mas ao do governado; de modo que todo homem sensato preferiria ser obrigado por outro do que preocupar-se em obrigar outros. PLATÃO (1997, pág: 30)

Mais a frente, verifica-se uma mudança no método refutativo socrático, que dá

lugar a um discurso mais fluente, no qual Sócrates é porta-voz da teoria platônica e

Trasímaco, antes combativo e debatedor, torna-se um espectador, passivo e aberto aos

ensinamentos de Sócrates.

Platão desenvolve sua teoria sobre a cidade ideal, identificada por alguns como

uma cidade baseada em um modo “de vida social natural” (POPPER, apud MORRISON,

2006, pág: 42) em que todos ocupariam lugares bem determinados na organização social.

Voltaremos ao assunto no momento oportuno para explicar como, na concepção

de Platão, a Pólis nasce e se desenvolve. Na continuação do texto Sócrates aproveita a fala

sobre vantagem e desvantagem da justiça e inquire os convivas, em particular Glauco, sobre

qual vida é mais vantajosa, a de um homem justo ou a de um homem injusto.

Na concepção de Trasímaco o injusto leva uma vida mais vantajosa e é mais feliz,

considerando o amor pela justiça uma “nobre simplicidade de caráter” (PLATÃO, 1997, pág:

31). Mas essa vantagem só beneficia aqueles que conseguem atingir tal perfeição no ato

injusto que dominam cidades inteiras sem serem questionados. Sócrates faz Trasímaco

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concordar que a justiça é uma forma de sabedoria e que seria impossível conquistar algo sem

ser sábio, logo, justo.

Aqui transparece outra característica do pensamento socrático que Platão

incorpora: a necessidade da sabedoria para ser justo. O injusto age de forma injusta por

ignorar a natureza do seu ato e as consequências do agir justo. A vida do injusto é infeliz,

ainda que ele não tenha consciência disso. Segundo Platão somente uma vida pautada pela

justiça leva a felicidade.

Com Glauco essa discussão prosegue de forma muito interessante. Não totalmente

convencido pelos argumentos de Sócrates, Glauco o questiona sobre a vantagem de se levar

uma vida justa, mas que a todos pareceria injusta, e que levaria o homem justo a sofrer os

castigos que se destinam aos injustos. Da mesma forma, Glauco levanta a possibilidade de um

homem injusto continuar comentendo suas injustiças e parecer aos demais um homem

perfeitamente justo. Segundo ele, tal forma de vida seria mais vantajosa do que ser justo mas

parecer o contrário.

Glauco, aparentemente inconformado com uma suposta “vitória” de Sócrates,

obtida com o silêncio de Trasímaco continua a discussão e dá a Sócrates três alternativas para

se encontrar a justiça, pedindo que ele escolha uma, dentre elas, (a) bens que almejamos

possuir por eles próprios e não por suas consequências, exemplo: alegrias, prazeres inocentes;

(b) bens que almejamos tanto por sua essência quanto por suas consequências, exemplo:

conhecimento, saúde; (c) bens que não desejamos por si, mas pelas suas consequências,

exemplo: bens financeiros e vantagens deles decorrentes. Sócrates opina pela segunda

proposição e diz que a justiça não pode ser almejada meramente como uma consequência de

algo, mas deve ser consebida como um bem em si, o que Glauco discorda.

Glauco, Sócrates e o Anel de Giges

Ainda advogando a idéia de que a justiça não é um bem em si, Glauco recorre a

um conto sobre um antepassado de um tal Giges da Lídia, na passagem do livro que ficou

conhecida como a alegoria do Anel de Giges, apesar do personagem da alegoria não ser

propriamente Giges, mas esse seu ascendente. O diálogo passa para a questão do porquê de se

fazer o justo. Glauco narra a história do indigitado personagem que, caído em uma caverna

que se abre por um terremoto, encontra no fundo dela um cavalo de bronze oco, onde

encontrou um anel que, ao ter seu engaste movido para dentro da mão, tornava o seu portador

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invisível perante o olhar dos seus semelhantes, donde extraía a seguinte conclusão (360d):

“ninguém é justo por livre iniciativa, mas por coação”.5 Enfeitiçado pelo poder do Anel, nosso

personagem comete adultério com a esposa do Rei e a convence das vantagens do regicídio

que ele leva a cabo. Manteve o poder e governou por muitos anos.

Glauco argumenta que vantajoso é cometer injustiça e nunca ser castigado por

isso. Não existiria, dessa forma, uma vantagem própria da justiça ou da injustiça, o que

existiria é a clara vantagem de se fazer o que se quer sem ser punido. Nas palavras de Glauco:

Se existissem dois anéis desta natureza e o justo recebesse um, o injusto outro, é provável que nenhum fosse de caráter tão firme para perseverar na justiça e para ter a coragem de não se apoderar dos bens de outrem, sendo que poderia tirar sem receio o que quisesse da ágora, introduzir-se nas casas para se unir a quem lhe agradasse, matar uns, romper os grilhôes a outros e fazer o que lhe aprouvesse, tornando-se igual a um deus entre os homens. Agindo assim, nada o diferenciaria do mau: ambos tenderiam para o mesmo fim. E citar-se-ia isso como uma grande prova de que ninguém é justo por vontade própria, mas por obrigação, não sendo a justiça um bem individual, visto que aquele que se julga capaz de cometer a injustiça comete-a. Com efeito, todo homem pensa que a injustiça é individualmente mais proveitosa que a justiça, e pensa isto com razão, segundo os partidários desta doutrina. Pois, se alguém recebesse a permissão de que falei e jamais quisesse cometer a injustiça nem tocar no bem de outrem, pareceria omais infeliz dos homens e o mais insensato àqueles que soubessem da sua conduta; em presença uns dos outros, elogiá-lo-iam, mas para se enganarem mutuamente e por causa do medode se tomarem vítimas da injustiça. PLATÃO (1997, pág: 44)

A partir das ilações de Trasímaco, Glauco e Adimanto, a resposta de Platão e a

consequente apresentação da sua teoria sobre a justiça se desenvolve por todo o restante do

livro. Partindo da questão do porquê ser justo, Platão desenvolve uma teorização profunda

sobre as qualidades da alma do indivídio, a importância do conhecimento, sobre a formação e

organização da Pólis, sobre o viver bem.

A justiça termina identificada a uma forma de saúde da alma, o que veremos mais

a frente. Importante agora é mostrar a resposta de Platão para a alegoria de Glauco e como ela

se encaixa na sua teorização sobre o justo.

A justiça e a Pólis

A concepção platônica da justiça se relaciona intimamente com a interação do

indivíduo com a Pólis, afinal “a cidade não é maior que o indivíduo?” (Platão, 1997, pág: 53).

Ao contrário de Aristóteles (2007), que via uma natureza de associação na formação das

5 Deixando de lado as questões jurídicas é interessante mencionar que o autor de o Senhor dos Anéis, J. R.R. Tolkien, foi um classicista de uma erudição profunda e que pode ter baseado sua gigantesca obra na história narrado por Glauco e nas conseqüências morais que ela trabalha.

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cidades, em que cada politês não só mantinha sua posição de cidadão, mas cultivava uma

espécie de amizade e desejo de associar-se aos demais, Platão pensava a Pólis quase como

uma reunião de pessoas. Um concepção quase tribal, baseada em um alívio das carências e

necessidades a que o indíviduo está sujeito durante sua vida. No pensamento aristotélico, a

formação da Pólis é uma realização da potência social inerente ao homem. O homem

aristotélico é zoon politikon, animal (ser) social, incapaz de viver só. Platão, ao contrário,

trabalha o nascimento da Pólis como forma de suprir as necessidades vitais, pois o homem,

considerado isolado, dificilmente se bastaria. Entretanto, Platão não descarta a possibilidade

do indivíduo viver isolado. A formação da Pólis visa uma alívio no fardo das necessidades

materiais, mas não é uma condição ontológica como em Aristóteles:

No quadro da segunda etapa da normatividade, Platão parte, primeiro, de uma grandeza visada que tem ligação com a natureza da carência e é do mesmo modo incontroversa, do interesse já animal de (sobre)viver (tou zen heneka). Mas somente o interesse pela vida não esclarece ainda a cooperação. O que facilmente se vê: a dependência que ele afirma não deve ser compreendida como absoluta mas como relativa. Platão não considera, como Aristóteles, o ser-sozinho como “antropologicamente impossível” e introduz, por isso, adicionalmente, o interesse em um alívio da vida (ameinon, melhor). Já a etapa elementar não visa apenas à vida, mas à vida agradável.

Para ter tais comodidades nos trabalhos necessários para a satisfação das necessidades, mais homens vêm a se juntar e moram juntos; o simples morar juntos (synoikia) Platão já denomina uma Pólis. Nisto, ele deixa em aberto, se, do ponto de vista histórico, o vir a se juntar foi conscientemente planejado, se se deve isto a instintos ou impulsos semlhantes a instintos ou mecanismos de uma mão invisível. O que lhe importa é uma legitimação básica e esta ele procura, como dissemos, numa ligação de argumentos antropológicos e éticos. HÖFFE (2006, 203-204)

A justiça representa uma legitimação da união em Pólis, desde seu momento

elementar, como união para a satisfação de necessidades materiais de primeira ordem até o

momento em que passa a buscar o não necessário, o luxo. A argumentação platônica se fixa

então em um interesse comum distributivo, em que a comunidade não é vista como uma

coletividade em si, mas como um corpo de indivíduos dirigidos ao fim determinado de

satisfação de necessidades e interesses comuns. Mesmo que a princípio Platão pareça retomar

a posição de Céfalo, já refutada por Sócrates no Livro I, da justiça enquanto o princípio

distributivo de dar a cada um o que é devido, em verdade, ele defende a justiça como uma

relação ética que envolve muito mais do que o interesse ou o direito de indivíduos

considerados isoladamente. Apesar do simples morar junto configurar a formação da Pólis

para Platão, sem a consciência de que o que se visa com a cidade é a satisfação de

necessidades comuns, a vida em sociedade se torna impossível eticamente.

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A fase elementar da Pólis é facilmente concebida por Platão, que coloca na boca

de Sócrates as justificativas para a união de homens aptos nas mais diferentes funções, de

lavradores a comerciantes. Importante ressaltar, já nesse momento, que a cidade que Platão

concebe só leva em consideração os cidadãos de direito. Homens, nascidos na cidade, aptos

ao trabalho e à vida social. Como na Pólis grega real, não entra no cômputo da Pólis platônica

os escravos, estrangeiros, mulheres e crianças:

A época estipula, por exemplo, que no seio da pólis apenas uma parte dos habitantes tem direitos de cidadania; os outros são co-habitantes (metecos, aproximadamente: estrangeiros residentes) ou escravos (antes do início da guerra do Peloponeso, Atenas tinha mais ou menos 315.000 habitantes, dos quais 172.000 cidadãos , 28.000 estrangeiros residentes e 115.000 escravos; segundo Vogt 1953, 163). Mesmo entre os cidadãos, muitos não tomam, do mesmo modo, parte nos negócios do estado; os comerciantes, artífices e assalariados deixam a iniciativa política, via de regra, para os nobres; de todos os modos, as mulheres não são admitidas. HÖFFE (2006, 196)

Como Platão defende o estágio elementar da Pólis como uma formação social que

objetiva satisfazer necessidades materiais, é compreensível que sua cidade ideal reproduza a

organização da cidade da época, mesmo ele desprezando sua época como uma época de

degradação dos homens e das cidades.

Isso se explica também pelo segundo momento de formação da Pólis, em que se

passa da busca pelo necessário para a busca do não necessário, do luxo. Sócrates diz a Glauco

que uma cidade perfeita tende a buscar também o luxo, o que exige especialização do trabalho

e aumento do território da Pólis. Contudo, Platão vê com desconfiança esse “progresso”,

porque o mesmo poderia trazer guerra e instabilidade. Ao mesmo tempo que a Pólis necessita

de mais víveres para manter uma população crescente e acostumada ao luxo, ela tem que se

expandir e isso muitas às vezes só é possível mediante a guerra com cidades vizinhas.

Ademais, em caso de ataque, uma cidade muito grande fica vulnerável.

Nesse momento Platão começa a explicar a organização da Pólis ideal. Com a

necessidade maior de proteção é natural que se desenvolva uma classe cuja obrigação social

seja justamente proteger os interesses da Pólis. Essa classe de Guardiões seria beneficiada

com alguns privilégios como pagamento por exercer tão dura obrigação. Dentro dessa classe,

os melhores seriam escolhidos para governar a cidade. Tais homens deveriam usar da razão

para frear seus apetites pessoais e buscar o melhor para a Pólis. Seu número deveria ser bem

reduzido, porque segundo Platão, quanto maior a quantidade de homens maior a chance de

desrazão.

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Em verdade, apesar de serem esses homens, magistrados e governantes, os

melhores entre os melhores, sua capacidade de governar a Pólis ainda não é a mais perfeita.

Falta-lhes a sabedoria das verdadeiras formas para governar de acordo com a reta razão. É

aqui que o símile da caverna, momento mais famoso do pensamento de Platão, ganha

contornos éticos notáveis.

Segundo o símile, nós homens estaríamos atados a correntes dentro de uma

caverna e tudo que vemos são sombras do mundo exterior projetadas na parede a nossa frente.

Um, ou alguns de nós, consegue se soltar e fugir para fora da caverna. Quando vislumbra as

formas reais, volta para contar aos demais a verdade, mas é duramente reprimido e duvidam

de sua sanidade. Entretanto, ele não desiste.

O que sai da caverna é o filósofo, o que distingue as formas reais. O sair da

caverna é uma metáfora para a evolução da alma, tema constante no pensamento platônico.

Ao usar a razão e apreender as verdadeiras formas, a alma humana se eleva. Mas para Platão,

somente um tipo especial de homem estaria apto a fazer isso: o filósofo. Pois é da natureza do

filósofo se utilizar da razão. Contudo, justamente por ser mais nobre sua natureza, é mais dura

a obrigação que cabe ao filósofo. Contra a resitência da turba ele deve tentar demonstrar o

mundo da razão e da verdade. Daí decorre que o filósofo não tem somente um direito

decorrente de sua própria composição, de governar, mas também uma obrigação para com a

Pólis de levá-la ao seu melhor.

Dessa forma, uma Pólis só chegará a ser realmente bem governada, quando os

filósofos se tornarem os magistrados e governantes, ou quando esses últimos tomarem o

pensamento filosófico a sério. A figura do rei filósofo mostra que, para Platão, o progresso da

Pólis leva a uma elitização crescente de sua organização, e que tal elitização deve ser mantida

para o bem da Pólis.

As virtudes e a alma

Em 427a, Sócrates retoma às quatro virtudes cardinais estudadas nos diálogos

jovens platônicos. Sabedoria, Coragem, Temperança e Justiça. As classes das cidades são

relacionadas com cada uma das virtudes cardinais, sendo a temperança pertencente aos

produtores, a coragem e a temperança aos guardiões, a a coragem, a temperança e a sabedoria

aos governantes. Já a justiça pertenceria a todos. Assim, a justiça reside em cada um cuidar do

que lhe diz respeito e, dessa forma, seria partilhada por todos, cada um zelando por suas

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atribuições. Essa é a razão que nos leva a crer que a cidade e a alma foram divididas em três

partes.

De fato, a cada virtude cardinal, Platão ligou um tipo de motivação, ou parte da

alma. Nesse prisma, os temperantes (produtores) possuem o que podemos chamar de apetite,

desejo irracional, ou epitimia; os corajosos (guardiões) estão ligados ao thimós, ou parte

irascível, irritável da alma; os sábios (governantes) estão conectados ao logos, ou parte

racional da alma.

Em 439c, Platão trabalha um conflito da alma relacionado à bebida. O indivíduo

sabe que não pode beber, mas quer beber. Para Platão, não importa se a pessoa bebe ou não,

mas que, a partir dessa idéia, podem surgir conflitos morais. Para Platão, o filósofo deve

sempre se guiar pela razão, ou logos, pois acredita que aquele que tem o conhecimento, por

ser tão grandioso, jamais deixaria que partes não tão fortes da sua alma prevalecessem. Assim,

um sábio jamais beberia, sabendo que isso lhe faria mal, ou não valeria a pena. Para Platão, o

jurista também deve se balizar pela razão.

Percebe-se que o logos deve ser o fio condutor do thimós e da a epitimia. Platão,

portanto, acredita na Teoria da Tripartição da Alma, havendo uma harmonia entre seus três

elementos. Sendo assim, a alma é harmônica por causa da justiça.

Assim, fazendo uma ligação entre as classes das cidades (produtores, guardiães e

governantes), as virtudes cardinais (temperança, coragem, sabedoria e justiça) e os elementos

da alma6 (logos, thimós e epitimia), caso algum indivíduo queira exercer alguma função para

a qual não tem aptidão, haverá uma cidade injusta, pois todos deverão agir de acordo com os

seus papéis sociais.

A educação na Pólis

A educação é uma forma de perpetuar essa organização, e Platão se mostra bem

duro em relação a ela. Sócrates, no livro, passa a condenar a poesia e a música7 como

6 Platão acreditava em uma alma imortal, que já existia no Mundo das Idéias (um mundo transcendente, de existência autônoma, que está por trás do mundo sensível) antes de habitar o nosso corpo. Entende Platão que, assim que a alma passa a habitar o corpo humano, ela se esquece das idéias perfeitas e, assim, o mundo se apresenta a partir de uma vaga lembrança. 7 Há análises da obra A República as quais relatam que, para Platão, uma sociedade ideal deve prezar pelos bons hábitos, contrabalançando as atividades físicas com a música, pois esta última aperfeiçoa o espírito, cria um requinte de sentimento e molda o caráter do indivíduo. Nesse sentido, por exemplo, a formação cultural dos guardiões da cidade deve ser praticada por meio da música, que alimenta a alma.

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corruptoras da juventude, sobretudo aquelas que expressam ideais de igualdade e de

participação. Defende que tanto a música quanto a poesia sejam abolidas da educação formal

das crianças e que, em contraponto, a sua formação seja direcionada para endurecer seu

caráter para suportar com alegria a organização social da Pólis. Sócrates até ensaia uma fábula

sobre isso:

Concordo contigo que eu tinha muitos bons motivos; mas ouve o resto da fábula: “Na cidade sois todos irmãos”, dir-lhe-emos, prosseguindo nesta ficção, “mas o deus que vos formou misturou ouro na composição daqueles de entre vós que são capazes de comandar: por isso são os mais preciosos. Misturou prata na composição dos auxiliares; ferro e bronze na dos Lavradores e na dos outros artesãos. Em geraL procriareis filhos semelhantes a vós; mas, visto que sois todos parentes, pode suceder que do ouro nasça um rebento de prata, da prata um rebento de ouro e que as mesmas transmutações se produzam entre os outros metais. Por isso, acima de tudo e principalmente, o deus ordena aos magistrados que zelem atentamente pelas crianças, que atentem no metal que se encontra misturado à sua alma e, se nos seus próprios filhos houver mistura de bronze ou feno, que sejam impiedosos para com eles e lhes reservem o tipo de honra devida à sua natureza, relegando-os para a dasse dos artesãos e lavradores; mas, se destes últimos nascer uma criança cuja alma contenha ouro ou prata, o deus quer que seja honrada, elevando-a à categoria de guarda ou à de auxiliar, porque um oráculo afirma que a cidade perecerá quando for guardada pelo feno ou o bronze. PLATÃO (1997, pág. 111)

Cabe aos pais e governantes serem duros e impiedosos para direcionar os filhos de

acordo com sua composição ao nascer8. POPPER chama atenção para o perigo que essa

concepção platônica representa. Para ele Platão é perigoso por:

(...)apresentar o cosmo como se existisse um domínio das essências puras ou de certezas ontológicas que as elites podem vir a conhecer. O direito natural seria, então, a obediência do homem às leis criadas de acordo com esse conhecimento. A sociedade justa é aquela que seria governada por tal conhecimento, motivo pelo qual a pólis se torna sóbria e racional. Na pólis devidamente organizada, todo homem encontraria a felicidade no desempenho de suas tarefas naturais. O governante retorna de seu encontro com a verdade para dominar o caos político da pólis e criar o Estado justo. O governante tem a garantia de excercer legitimamente seu poder não por meio de uma legitimidade política – por exemplo, o consenso democrático - , mas através de seu entendimento da natureza matemática da ontologia do cosmo e de sua concepção dessa ontologia. MORRISON (2006, pág. 49)

Caberia à educação, coordenada pelo Estado e pelos sábios, criar uma tradição

capaz de legitimar essa organização elitista e a dominação de todos pela classe dos filósofos

governantes. Schmitt ao analisar a obra de Weber, destaca a importância da tradição como

forma de legitimar a soberania.9 Interessante notar que também Schmitt, assim como Platão,

concebe um governo para alguns, não para todos. A legitimidade do soberano para Schmitt,

8 Há análises da obra A República onde se menciona que, para Platão, no começo da sociedade ideal, devem-se tirar os filhos dos pais para protegê-los dos maus hábitos. Nesse sentido, a base moral de cada um seria dada pela crença em Deus e, nos primeiros dez anos de idade, a educação seria predominantemente física. 9 Weber coloca o carisma e a tradição como formas fundamentais de legitimação da dominação, que, a partir do iluminismo foram sendo substituídas pela legitimidade legal.

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não decorre da participação democrática, sobretudo aquela expressa na qualidade do voto,

mas da tradição de mando e da construção da identidade através da tradição, entre soberano e

súditos.

Em Platão, a educação e a tradição visam naturalizar a ordem existente e manter

as pessoas satisfeitas dentro das posições sociais que ocupam. É importante notar que, além

desse momento, e do símile da caverna, poucas vezes Platão se utiliza de linguagem

mitológica, ou divina, para explicar suas concepções políticas. Platão e Aristóteles

representam senão o fim, pelo menos o primeiro sinal real de abandono da linguagem

mitológica na filosofia.

Até esse momento, a parataxe, a linguagem vertical dos deuses e reis era o

legitimador único das ações. Linguagem fria, distante e oracular, substituída pela hipotaxe, a

linguagem horizontal dos homens, que substitui o oráculo pela palavra e permite o debate e a

criação da ágora.10Platão só recorre a parataxe para legitimar cosmicamente a formação

elitista de sua Pólis, mas ele precisa da educação e da tradição para que essa cosmologia se

transforme em legitimidade real, daí o duro tratamento em relação à poesia e a música.

A coerção

Por Platão conceber sua Pólis ideal como uma ordem ontológica natural, a

coerção e a construção de pré-condições de aceitação dessa organização, são também parte

naturais dessa ordem. Citamos Schmitt na explicação sobre a legitimidade da dominação,

evocamos agora as lições de Gellner sobre o papel da coerção para a formação das

sociedades:

(...)há muio boas razões pelas quais somente a coerção pode formar a base de qualquer ordem social. Qualquer sistema em operação deve ter alternativas possíveis, tanto da organização em si quanto da distribuição dos cargos nessa organização estável. Para uma parte significativa da população essas alternativas pareceriam sempre preferíveis e não se pode pressupor que todas essas pessoas sejam tolas. É preciso pressupor, então, que elas tentariam pôr em execução a alternativa mais favorável (a elas), a menos que se vissem coibidas pelo medo. Infelizmente, para mim, o argumento é irrefutável: as condições bastante especiais que podem induzir as pessoas a aceitar a ordem social, inclusive sem medo, voluntariamente, são de fato as precondições da sociedade civil, mas estas não surgem com facilidade ou frequência. A maioria só pode ter interesse em conformar-se, inclusive sem intimidação, em condições de desenvolvimento geral em que a vida social se caracterize muito mais por ganhos do que por perdas.

10 Para mais informações STEIN, Ernildo, Breves considerações históricas sobre as origens da filosofia no direito, Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, nº 5, Porto Alegre, RS: 2007, págs. 97-110.

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A razão pela qual a sociedade deve basear-se na falsidade é igualmente óbvia. A verdade independe da ordem social, não está a serviço de ninguém e, quando não obstruída, terminará por destruir o respeito por qualquer estrutura de autoridade. Só as ideias pré-selecionadas ou pré-inventadas, e em seguida congeladas pelo ritual e pela santificação são passíveis de manter uma estrutura organizacional específica. O livre questionamento irá destruí-la. Além do mais as teorias, como os filósofos gostam de nos lembrar, são subdeterminadas pelos fatos. Em outras palavras, por si só a razão não irá e não poderá engendrar aquele consenso que está na base da ordem social. As circunstâncias de um caso, ainda que não ambíguas (o que raramente acontece) não vão engendrar uma imagem comum da situação muito menos de objetivos comuns. (apud MORRISON, 2006, pág. 46)

Se a ordem social é a forma de se atingir a justiça, e se essa ordem depende, em

última instância, da coerção, existe uma ligação nem sempre admitida, entre a concepção

ocidental de justiça e a violência organizada. Contudo, tal relação, comumente estabelecida na

contemporaneidade não corresponde à defesa platônica da justiça.

Segundo Platão a justiça real independe de coerção. Ela é um valor desejável por

si mesmo e condição fundamental para o equilíbrio e a felicidade. Platão concebe a alma num

processo de evolução em busca de uma espécie de saúde. A recompensa do justo é uma

felicidade e boa consciência que o injusto, por mais vantagens que usufrua em ser assim, não

consegue obter.

Tal argumento, a princípio, poderia ser facilmente rebatido, uma vez que, nada

mais comum do que vermos pessoas justas padecendo de necessidades, angústias e

sofrimentos, enquanto assistimos à pessoas injustas felizes e em total paz consigo mesmas.

Mas na concepção que Platão desenvolve essa felicidade dos injustos nunca é uma felicidade

completa, vez que a injustiça é uma forma de ignorância e que a iluminação da alma,

condição fundamental para a felicidade, só acontece com a plena sabedoria.

Ensina-se que a coerção não é fundamental, mas simplesmente parte da natureza

da organização social. Platão reafirma o elitismo de sua ideial ético social, uma vez que

somente o filósofo reúne naturalmente todas as condições necessárias para a autosuficiência e,

portanto, para a felicidade. Mas, justamente por isso, no exercício de sua obrigação de

governar de acordo com a reta razão, o rei filósofo conseguiria estabelecer leis e diretrizes que

garantiriam o máximo de felicidade possível a todos os cidadãos.

Conclusão

Tal concepção, absoluta em A República, é relativizada por Platão em sua última

obra, As Leis. Aqui, as condições reais da sociedade não são inteiramente repudiadas, como

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em A República, mas compõem um meio-termo com os ideais do filósofo sobre a organização

social, de uma forma mais direta e pragmática. Mas, alguns princípios se mantém inalterados.

A existência de critérios morais absolutos, ontologicamente ligados à própria natureza e ao

cosmos, a possibilidade, de através da legislação, incorporar tais critérios à vida em

sociedade, e o monopólio da iniciativa política reservado aos filósofos, restando aos demais a

obediência incondicional às regras e preceitos imutáveis criados pelo legislador.

É sempre importante lembrar que Platão pensa em um Estado pequeno e

autosuficiente em termos materiais onde inexistam diferenças gritantes de riqueza e que as

pessoas entendam e aceitem sua colocação social. A legitimidade da dominação deve ser

garantida pela razão e pela tradição, cabendo ao legislador preambular da melhor forma

possível as leis para convencer as pessoas de sua necessidade. Jaeger defende a similitude de

status entre o legislador o poeta na Grécia, por volta dos séculos V e IV. Ambos exerciam a

função de, através das palavras, ensinar a melhor forma de viver. Como vimos, para Platão a

atividade do poeta deve ser restringida com bastante vigor, caso o contrário, o monopólio da

iniciativa política poderia ser ameaçado por idéias de igualdade.

O pensamento platônico sobre a justiça ainda hoje é revisitado, mas, em

sociedades plurais, como as que vivemos, a aplicação desse pensamento pode ser perigosa,

como bem demonstrou Popper. De Santo Agostinho a Rosseau, a organização social

concebida por Platão encontrou entusiasmados defensores, sendo o ideal republicano

iluminista tributário direto de muitas concepções platônicas sobre o governo da razão e a

necessidade de uma organização social cujos papéis de cada um fossem exercidos da melhor

forma.

BIBLIOGRAFIA:

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GONZAGA, ÁLVARO LUIZ TRAVASSOS. A Justiça em Platão e a Filosofia do Direito.

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Medidas Provisórias e Democracia.1

Bruno Franco Alves2

RESUMO: O objetivo desse texto é discutir a teoria da separação de poderes como um dos pilares da democracia constitucional. Palavras-chaves: separação de poderes, democracia, constituição ABSTRACT: The aim of this paper is to discuss the theory of separation of powers as a pillar of constitutional democracy. Keywords: separation of powers, democracy, constitution

Introdução

O estudo da teoria da divisão dos poderes3, apesar de ter propiciado uma vasta

produção bibliográfica, ainda reserva muita importância, vez que os debates e polêmicas daí

advindos são capazes de contribuir para o aperfeiçoamento das instituições políticas,

sobretudo no Brasil, onde a Constituição e a democracia ainda são relativamente jovens.

Estudar a natureza do poder e os seus desdobramentos é uma tarefa árdua a que os

antigos se dedicaram e que os contemporâneos continuam a fazê-lo. O esforço de Platão em A

República para desenhar como seria uma organização política ideal se mostra atual, já que

ainda nos dias de hoje nos questionamos e debatemos sobre qual a melhor forma possível de

organização política da sociedade.

Neste ínterim, o presente trabalho propõe uma análise da teoria clássica do

princípio da divisão entre os poderes. Este se encontra consagrado no artigo segundo da

Constituição da República e informa toda a organização política do Estado brasileiro. É a

partir dele que se desenvolvem as perspectivas deste estudo, cujo objetivo central está na

análise da relação entre o Poder Executivo e o Poder Legislativo, principalmente no que tange

à atividade legiferante daquele.

1 Texto produzido a partir da comunicação apresentada pelo autor ao Congresso Internacional de Legística - Qualidade da lei e desenvolvimento, promovido pela Assembléia Legislativa de Minas Gerais entre 10 e 12 de setembro de 2007. 2 Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Viçosa (UFV). Mestrando em Teoria do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professor da Faculdade Dinâmica Vale do Piranga 3 Alguns autores preferem utilizar a expressão separação de poderes. Aqui, preferiu-se adotar divisão de poderes por acreditar que ela seja mais apropriada à natureza una e indivisível do poder estatal, que não comporta qualquer tipo de separação.

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Incisiva exceção à tripartição dos poderes, a delegação legislativa ao Executivo

tornou-se um instrumento recorrente e necessário ao exercício das atividades administrativas e

de governo desempenhadas pelos órgãos deste Poder. Os contornos desta delegação coloca-se

como uma problemática atual a ser equacionada, vez que a usurpação das funções legislativas

pelo Executivo tem colocado em risco a harmonia entre os Poderes e contribuído para o

desprestígio do parlamento brasileiro.

Em um sistema de governo presidencialista como é o brasileiro, faz-se necessárias

medidas capazes de fortalecer o parlamento frente à presença e o poderio do Executivo. A

mais importante dessas medidas não é, senão, a construção de uma cultura democrática capaz

de permitir a concretização dos ideais orientadores do Estado Democrático de Direito.

A teoria da divisão de poderes e o sistema de freios e contrapesos

A concepção moderna da teoria da divisão dos poderes estatais foi construída e

sistematizada ao longo da história e reflete as diversas transformações econômicas, políticas e

sociais que a humanidade atravessou.

No processo de concretização do Estado Moderno é que os contornos dessa teoria

são definidos, sendo que as obras Defensor Pacis, de Marcílio de Pádua; O Príncipe, de

Maquiavel, e Segundo Tratado sobre o Governo Civil, de John Locke são exemplos

importantes da contribuição téorica deste período.

Estas obras manifestaram perspectivas diferentes sobre a temática, destacando-se

o fato de ter sido Locke o primeiro a apresentar de maneira sistematizada quais seriam as

funções estatais e os órgãos responsáveis por exercê-las.

Não obstante ao esforço intelectual empreendido por estes teóricos, pode-se a

atribuir a Montesquieu a responsabilidade pela definição e ampla divulgação conferida à

teoria da divisão dos poderes.

Em De L’Esprit des Lois (1748), o filósofo francês identificou a existência de três

funções estatais distintas e inconfundíveis, quais sejam, executiva, legislativa e judiciária e

preconizou a existência de três poderes harmônicos e independentes entre si, cada qual

responsável pelo exercício de uma função. Assim, o poder legislativo seria o responsável por

elaborar normas abstratas de caráter geral e impessoal. Ao poder executivo caberiam os atos

voltados à resolução dos problemas concretos e individualizados, encerrando atribuições de

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ordem política, co-legislativa, de decisão e da administração pública em geral. Por fim, ao

poder judiciário seria conferida a atribuição de interpretar e aplicar a lei de modo a dirimir os

conflitos específicos porventura surgidos.

O argumento central do modelo proposto por Montesquieu reside na liberdade e

visa evitar o despotismo. Segundo este filósofo

Também não haverá liberdade se o Poder de Julgar não estiver separado do Legislativo e do Executivo. Se estivesse junto com o Legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário: pois o Juiz seria Legislador. Se estivesse junto com o Executivo, o Juiz poderia ter força de um opressor.

Estaria tudo perdido se um mesmo homem, ou um mesmo corpo de principais ou de nobres, ou do Povo, exercesse estes três poderes: o de fazer as leis; o de executar as resoluções públicas; e o de julgar os crimes ou as demandas dos particulares. (MONTESQUIEU, 1987, p. 164-165).

O modelo tripartido de poder ganhou força a partir da necessidade de se garantir

as liberdades individuais frente ao Estado. “Esta estratégia nasce ligada a um momento

histórico em que se pretende uma minimização dos poderes do Estado, por influência direta

do poder liberal vigorante, sem que, com ela, ocorra quebra na unidade do poder”. (STRECK

& MORAIS, 2001. p. 164).

Este modelo acabou por ser positivado em importantes diplomas legais, tais como

a Constituição dos Estados Unidos (1787) e a Declaração dos Direitos do Homem e do

Cidadão (1789) e, posteriormente, foi consagrado nas Constituições de quase todos os países

ocidentais, passando a ser associado à idéia de Estado Democrático de Direito.

O modelo de tripartição dos poderes passou a ser associado a um sistema de freios

e contrapesos (checks and balances) que submete os três poderes ao controle recíproco, de

forma que a atividade do executivo é limitada pelos atos gerais do legislativo e as atividades

de ambos estão submetidas à ação jurisdicional do judiciário.

Entretanto, esse esquema tradicional de divisão do poder estatal não está imune a

críticas. DALLARI (1995. p. 185) afirma que o referido modelo é “meramente formalista,

jamais tendo sido praticado”. Isto porque para o autor, mesmo nas Constituições que

consagraram enfaticamente o princípio da divisão de poderes, a prática revela a existência de

uma intensa interpenetração destes. Além disso, existem fatores extralegais que acabam por

determinar a preponderância de um dos poderes sobre os demais.

O decurso da história até a contemporaneidade consolidou um contexto em que é

exigido do Estado que intensificasse sua esfera de ação, seja no âmbito da execução de

políticas públicas, seja na necessidade oferecer respostas às inúmeras questões e conflitos

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surgidos. Tudo isso colocou em xeque o tradicional esquema de divisão de poderes e orientou

o Estado rumo a um processo de compartilhamento de atribuições entre seus órgãos, com a

quebra da rigidez na divisão dos Poderes.

Pode-se apontar como tentativa de suplantar as ineficiências do tradicional

modelo de tripartição dos Poderes a redistribuição das competências constitucionalmente

atribuídas a cada Poder, delegando-se funções de um Poder a outro. Esta redefinição de

competência não significa o fim da tripartição dos poderes, todavia acaba por redefinir o

conteúdo e as possibilidades de atuação de cada órgão estatal na tentativa de que estes possam

cumprir e otimizar seu funcionamento sem os entraves que uma divisão de poderes deveras

rígida impõe.

A organização dos poderes na Constituição da República de 1988 e as prerrogativas

legiferantes do Poder Executivo.

A divisão entre os poderes como parte da organização formal do Estado se

revelou por muito tempo o fio condutor dos estudos constitucionais. 4 Apesar do giro dado

pela matéria, ainda hoje o tema mantém o seu vigor, principalmente no Brasil, país cujas

instituições políticas são relativamente novas.

As três distintas funções – executiva, legislativa e jurisdicional – desempenhadas

pelo Estado podem estar concentradas em apenas um órgão ou serem atribuídas a órgãos

específicos que se responsabilizarão pelo exercício de cada uma delas.

A Constituição da República Federativa do Brasil consagrou a república

presidencialista como forma de governo. Em seu texto, estabeleceu como um de seus

princípios fundamentais a divisão das funções estatais em três distintos órgãos: o Poder

Legislativo, a ser exercido pelo Congresso Nacional; o Poder Executivo, a cargo da

Presidência da República e o Poder Judiciário, atribuído aos tribunais e aos magistrados

federais e estaduais, variando a competência de cada juízo conforme o determinado em lei.

Apregoa ainda a Constituição que estes devem se relacionar entre si de forma

harmônica e independente.

4 Paulo Bonavides adverte que a queda do positivismo jurídico conjugado ao advento da teoria material da Constituição transportou o centro de gravidade dos estudos constitucionais da parte organizacional da Lei Magna para a parte substantiva da Constituição em que estão compreendidos os direitos fundamentais e as garantias processuais de liberdade. (BONAVIDES, 2004. p. 584.)

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62

JOSÉ AFONSO DA SILVA sistematiza o significado da independência entre os

poderes consubstanciada na Constituição asseverando que ela pressupõe:

(a) que a investidura e a permanência das pessoas num dos órgãos do governo não dependem da confiança nem da vontade dos outros; (b) que, no exercício das atribuições que lhes sejam próprias, não precisam os titulares consultar os outros nem necessitam de sua autorização; (c) que, na organização dos respectivos serviços, cada um é livre, observadas apenas as disposições constitucionais e legais. (SILVA, 1997. p. 111).

A harmonia no exercício dos Poderes estatais nada mais é que o respeito mútuo às

prerrogativas atribuídas a cada Poder, com colaboração e controle recíprocos, no sentido de

construir as finalidades da República. Insta destacar que os Poderes se relacionam de forma

tal que há interferências previstas e necessárias ao estabelecimento de um equilíbrio entre

eles, na busca de evitar todas as formas possíveis de desmando.

É neste sentido que ao lado da edição de normas de caráter geral e impessoal, cabe

ao Legislativo aprovar a escolha feita pelo Executivo para ocupar determinados cargos

públicos, como o de Presidente e diretores do Banco Central; autorizar medidas do Executivo

atinentes às atividades nucleares, bem como inúmeras outras atividades que interferem

diretamente no exercício das funções administrativas e de governo. Ao Judiciário é delegada a

responsabilidade de decidir pela constitucionalidade ou não das leis, ao passo que a Corte

Constitucional tem seus ministros nomeados pelo Presidente da República após a aprovação

do Senado Federal.

Como se constata, o sistema de freios e contrapesos encontra-se insculpido na

Constituição pátria, não sendo exagero afirmar que seu objetivo maior é evitar uma possível

concentração de funções e os arbítrios que porventura venham a surgir daí.

Não obstante a Lei Maior brasileira ter adotado o tradicional esquema de

tripartição dos poderes, com o sistema de freios e contrapesos dele decorrente, pode-se

afirmar que sua rigidez foi materialmente abandonada, vez que a Constituição delegou

competência legislativa ao Executivo em limites bem definidos, conferindo a este Poder

prerrogativa de propor projetos de lei e emendas constitucionais; sancionar e vetar, total ou

parcialmente, as leis aprovadas pelo Legislativo, além de iniciativa exclusiva no que concerne

a algumas matérias, e.g. o orçamento anual. Ademais, o chefe do Executivo pode exercer

diretamente a atividade legiferante por meio de medidas provisórias 5.

5 A inclusão das medidas provisórias dentre as possibilidades de delegação legislativa ao Poder Executivo não pressupõe que elas sejam consideradas como lei, no sentido estrito do termo, mas reside no fato de elas

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A edição de medidas provisórias e a usurpação das funções legislativas pelo Poder

Executivo

Mais que a garantir liberdade individuais, ao Estado foi conferida uma gama de

outras atribuições de forma tal que o Poder Executivo, fundamentalmente, precisa dar

respostas céleres a problemas imediatos, muitas das vezes dependendo de regulamentos para

isso.

Visando suprir essa necessidade é que o ordenamento jurídico pátrio prevê no

artigo 62 do texto constitucional as medidas provisórias. Não se pretende aqui esgotar a

discussão sobre a natureza destes atos normativos, mas refletir quais são os impactos causados

por estes na democracia brasileira.

A Constituição da República condicionou expressamente as medidas provisórias

ao atendimento de certos pressupostos formais e materiais, além de estabelecer regras para o

procedimento legislativo às quais elas se submetem.

Quanto aos pressupostos materiais, a Constituição elenca em seu texto quais

conteúdos têm negada a possibilidade de regulamentação via medida provisória.6 Em relação

aos pressupostos formais, deve a medida provisória atender a três requisitos. O primeiro

ligado à competência para adotá-las, que é atribuída exclusivamente ao Presidente da

República. Os outros dois estão ligados à relevância e à urgência da medida.

Entende-se que a relevância da matéria reside na imprescindibilidade de seu

tratamento prioritário, que submetida aos ritos estatuídos para a confecção de uma lei

ordinária traria grave prejuízo à coletividade. Quanto à urgência, significa que a medida

provisória deve regular uma situação que demande solução imediata, que não suporte

aguardar o decurso de prolongado tempo. Estes são os elementos que justificam a decisão do

Constituinte de deslocar em caráter excepcional a atividade legislativa para a órbita do Poder

Executivo.

Segundo o Carlos Roberto Ramos

A relevância da matéria, a ser objeto da deliberação governamental, deve ser de tal forma que açambarque um interesse público fundamental, superior, inconfundível, inigualável, cuja regulação mereça prioridade. Dentre vários interesses deve o governo acercar-se de que o que se cogita disciplinar é o mais

vincularem os sujeitos com a mesma força destas, podendo-se afirmar que, materialmente, estes atos normativos podem ser considerados como se leis fossem. 6 As matérias que não podem ser reguladas por medida provisória estão listadas no artigo 62, §1º, da Constituição da República.

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importante. Não deve aguardar, não pode esperar uma lista, mas será o primeiro, porque diz mais com os anseios coletivos. Não é qualquer assunto que merece um tratamento excepcional, mas aquele que se insere nas necessidades prementes. A relevância da matéria há de ser de tal monta que a omissão governamental implique em prejuízos irrecuperáveis para a Nação. (RAMOS, 1994. p. 142).

A premência e relevância da medida devem ser significativas a ponto de justificar

o afastamento do rito convencional do processo legislativo e a conseguinte adoção de uma

providência excepcional, neste caso o deslocamento da competência legiferante para o

Executivo. Atender a estes dois pressupostos constitui condição sine quae non para que as

medidas provisórias possam se adequar à finalidade pela qual foram previstas sem ameaçar a

harmonia entre os Poderes da República.

Destaca-se que as medidas provisórias estão sujeitas a um juízo prévio de

admissibilidade por parte das Casas Legislativas do Congresso Nacional correspondente à

avaliação da observância ou não dos pressupostos constitucionais, numa nítida tentativa de se

evitar a preponderância de um Poder sobre o outro.

Não obstante a edição das medidas provisórias estar submetida a esse sofisticado

sistema, a prática política tem revelado excessos na utilização deste instrumento normativo,

que em muitas vezes regulam matérias às quais lhes são vedadas e não obedecem aos

requisitos de relevância e urgência.

A iniciativa exclusiva do Presidente da República para algumas matérias, aliada à

edição das medidas provisórias tem contribuído para que chefe do Executivo açambarque a

função legislativa do Estado. A consultoria legislativa da Câmara dos Deputados

confeccionou estudo onde aponta que entre os anos de 2001 e 2007 o Poder Executivo federal

produziu 869 medidas provisórias (originárias e reeditadas) e iniciou 1077 leis ordinárias e 3

leis complementares. No mesmo período, o Congresso Nacional iniciou 361 leis ordinárias e

21 leis complementares postas em vigor.

Agrava esta situação o fato de a medida provisória trancar a pauta da Casa em que

estiver tramitando, caso sua votação no Congresso não seja concluída no interregno de 45

dias. Desta forma, “as medidas provisórias se tornaram um poderoso instrumento decisório

nas mãos do Poder Executivo porque permitem que este mude o status quo legal do país de

forma unilateral”. (AVELAR & CINTRA, 2004. p. 130).

Sobre os riscos deste processo, alertou Celso Mello em voto proferido na ADI

2.213-MC/DF

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65

[...] a crescente apropriação institucional do poder de legislar por parte dos sucessivos presidentes da República tem despertado gravíssimas preocupações de ordem jurídica em razão do fato de a utilização excessiva das medidas provisórias causar profundas distorções que se projetam no plano das relações políticas entre os poderes Executivo e Legislativo [...]

Esse comportamento dos vários chefes do Poder Executivo da União, além de concentrar indevidamente na Presidência da República o foco e o eixo das decisões legislativas, tornou instável o ordenamento normativo do estado brasileiro que passou, em conseqüência, a viver sob o signo do efêmero. [...]

Arrematou o voto afirmando que

A expansão do poder presidencial, em tema de desempenho da função normativa primária, além de viabilizar a possibilidade de uma preocupante ingerência do Chefe do Poder Executivo da União no tratamento unilateral de questões que, historicamente, sempre pertenceram a esfera de atuação institucional dos corpos legislativos, introduz fator de desequilíbrio sistêmico que atinge, afeta e desconsidera a essência da ordem democrática, cujos fundamentos – apoiados em razão de garantia política e de segurança jurídica dos cidadãos – conferem justificação teórica ao princípio da reserva de Parlamento e ao postulado da separação de poderes.

Impende alertar que, além das medidas provisórias, o Poder Executivo vale-se de

outras formas de cooptação parlamentar, como a liberação de emendas orçamentárias

individuais e nomeações para a ocupação de cargos públicos, o que acaba por possibilitar o

seu controle sobre o tempo e o conteúdo da agenda legislativa.

Reflexões a guisa de conclusão

Em tempos hodiernos é atribuído um número crescente de responsabilidades ao

Estado, com o alargamento das demandas e tarefas a serem cumpridas por este. Tudo isto

impõe uma nova lógica no exercício do poder, que clama pela redistribuição das funções entre

os diversos órgãos do Estado.

Como sabido, nem mesmo Montesquieu imaginou uma rígida divisão entre os

poderes do Estado. Antes, defendeu que estes trabalhassem de maneira conjunta e harmônica.

Assim, não é adequado interpretar este modesto estudo como a defesa de algo que a evolução

histórica e a prática política demonstram indefensável, qual seja, que os poderes estatais

possam ser exercidos dentro de limites rigidamente fixados, sem qualquer tipo de

tangenciamento.

A delegação constitucional de competência legislativa ao Chefe do Poder

Executivo não constitui, como querem alguns, obstáculo ao processo de construção do Estado

Democrático de Direito. Antes é um artifício prático utilizado para responder à exigência de

celeridade no exercício do poder, possibilitando a efetividade da atuação estatal.

Page 66: Revista Ciência Dinâmica - 2ª Edição

66

Em um país como o Brasil, onde se adota o sistema presidencialista, constata-se

que a força do Executivo é bastante acentuada, principalmente por este concentrar muitas e

importantes atribuições na mão de uma única pessoa, o Presidente.

Destarte, o rechaço aos desvios cometidos pelo Executivo no uso de suas

prerrogativas e atribuições, invadindo a esfera de competência dos outros Poderes, é uma

tarefa republicana, só possível com o fortalecimento e a independência efetiva dos outros

órgãos de Poder.

Esta independência entre os Poderes não nasce da mera vontade ou especulação

humana, mas pressupõe que o povo seja capaz de se emancipar e lutar pela construção de uma

democracia material. Só assim será possível um parlamento que funcione preservando a sua

independência e que toda a organização política do Estado esteja vinculada às demandas

populares.

O mais importante é trabalhar na construção de uma cultura democrática calcada

na participação política, requisito indispensável para que se pense a concretização dos ideais

orientadores do Estado Democrático de Direito.

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Page 68: Revista Ciência Dinâmica - 2ª Edição

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Evolução Histórica do Direito de Águas Brasileiro

Alcione Adame1 RESUMO: O Brasil, assim como boa parte do mundo, só editou leis especificas de proteção ambiental, sem visar os fins econômicos pós anos 70, até então as leis existentes nesse âmbito eram direcionadas aos interesses finaceiros. No campo das águas não foi diferente, o Código de Águas de 1934 não tinha como fim a proteção dos recursos hidricos e sim o interesse economico-finaceiro das hidroelétricas. Após a Conferência de Estocolmo e a edição da lei 6938/81 o país começa a dar a devida importância aos bens ambientais. Assim o objetivo do presente artigo é o levantamento das leis de proteção ambiental referentes a águas, seus institutos e seus orgãos até os dias atuais. Palavras-chaves: águas, proteção, ambiente ABSTRACT: Brazil, like much of the world, only issued specific laws of environmental protection, without targeting the economic gain after 70’s. Until then the existing laws in this field were directed to the financial interests. In the field of water was not different, the Water Code of 1934 had as its goal the protection of water resources but the economic-interest of hydroelectricity enterprises. After the Stockholm Conference and the issue of the Law 6938/81 the country begins to give due importance to environmental goods. So the goal of this paper is a survey of environmental protection laws relating to water, its institutes and its organs to the present day. Keywords: water, protection, environment

Introdução

O direito ambiental brasileiro, como em boa parte do mundo pode ser analisado

pré e pós década de 1970. Na Conferência de Estocolmo, o Brasil visava o crescimento

econômico a qualquer custo2. E as leis de até então demonstram realmente isso, ou seja, as

leis existentes acerca do meio ambiente não tinham como fim principal a preservação, a

utilização sustentável desses bens, e sim o valor econômico agregado a eles.

Isso fica evidente com as primeiras Conservatórias, criadas em 1635, que tinham

por objetivo a proteção do pau-brasil como propriedade real. Em 1797, é assinada a primeira

1ADAME, Alcione. Bacharel em Turismo e Direito pela Pontificia Universidade Católica de MG (PUC-MG), Especialista em Direito Processual pela PUC-MG, Mestre em Direito Ambiental pela Universidade Católica de Santos (UNISANTOS) e Doutoranda pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra – Portugal.

2 As posições defendidas pelo Governo brasileiro na Conferência de Estocolmo sofreram muitas críticas da comunidade internacional. Assim foi porque o projeto de desenvolvimento nacional então vigente não levava em consideração a proteção ambiental. A posição brasileira oficial era de que as agressões à natureza eram secundárias, sendo mais importante o desenvolvimento econômico. Apesar da incompreensão das teses sustentadas pelo governo brasileiro na Conferência, o Brasil, em resposta às pressões internacionais, instituiu a Secretaria Especial do Meio Ambiente. (Cf. ANTUNES, Paulo de Bessa. p. 95)

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Carta Régia sobre a conservação das florestas e madeiras. E em 1808, Dom João VI cria o

Jardim Botânico. Especificamente, no que se refere a águas, em 1861, Dom Pedro II manda

plantar a Floresta da Tijuca, para garantir o suprimento de água para o Rio de Janeiro,

ameaçado pelo desmatamento das encostas dos morros3.

Avançando na história da legislação brasileira, encontram-se no Código Civil de

1916 normas sobre a proteção da iniciativa privada, na composição do direito de vizinhança,

estabelecendo regras reveladoras da preocupação com a relação entre poluição e saúde

pública, bem como sobre o uso privado das águas, descritas nos artigos 554 (correspondente

ao art. 1277, no Código Civil vigente, Lei n°10.406/2002), 563 a 568 (arts.1288 a 1296 atual

CC), 584 (art. 1309), 585 (art. 1310) e 587 (art. 1313).

No mesmo sentido, baixou-se o Decreto 16.300, de 31/12/1923, que estabelecia o

Regulamento da Saúde Pública e criava a Inspetoria de Higiene Industrial e Profissional4.

Em 1933 é criado o Ministério da Agricultura, da Diretoria de Águas, logo após

transformada em Serviço de Águas. Em 1934 é editado o Código Florestal, através do Decreto

n° 23.793. Inspirado no modelo norte-americano, criou os parques nacionais, que depois

evoluíram para as Unidades de Conservação, com papel fundamental na proteção das águas.

Cuidou também do que hoje denomina-se Área de Preservação Permanente, ou seja, da

preservação das nascentes e das matas ciliares (art. 22, b)5.

Em 1934 o Serviço de Águas passou a fazer parte do Departamento Nacional de

Produção Mineral (DNPM). É também em 1934 que surge a primeira lei a tratar

especificamente a matéria água: o Código de Água.

Código de Águas de 1934

Considerando que o uso das águas do país estava regido por legislação arcaica e

antiquada e em desacordo com as necessidades e os interesses que a coletividade exigia

naquele momento, cabia uma legislação adequada que permitisse o controle e o incentivo do

3 SILVA. Geraldo Eulálio do Nascimento e. Direito Ambiental Internacional: meio-ambiente,

desenvolvimento sustentável e os desafios da nova ordem mundial: uma reconstituição da Conferência do Rio de Janeiro sobre Meio-Ambiente e Desenvolvimento. p.25

4 SILVA. José Afonso da. Ob cit. p. 35 5 Art. 22. É proibido mesmo aos proprietários: b) derrubar, nas regiões de vegetação escassa, para transformar

em lenha, ou carvão, matas ainda existentes às margens dos cursos d’água, lagos e estradas de qualquer natureza entregues à serventia pública.

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aproveitamento industrial das águas, em particular relativo à energia hidráulica, garantindo o

seu aproveitamento racional.

Considerando ainda que, com a reforma por que haviam passado os serviços

afetos ao Ministério da Agricultura, o Governo estava aparelhado, por seus órgãos

competentes, a ministrar assistência técnica e material, indispensáveis à consecução daqueles

objetivos, o Governo Provisório decretou o Código de Águas, em 10 de julho de 1934,

publicado no dia 20 do mesmo mês.

Em 16 de julho de 1934, foi promulgada a Constituição, com a qual era

compatível, o Código de Água, sendo por ela recepcionado. Em seguida, foi alterado e

mantido por decreto-lei 852/1938, adaptando-se suas normas aos objetivos definidos na

Constituição Federal de 19376.

O Código previa a existência de águas públicas e particulares. Sendo águas

comuns o mar territorial, correntes, canais, lagos, lagoas navegáveis ou flutuáveis, as

correntes dessas águas, fontes e reservatórios públicos, as nascentes quando fossem de tal

modo que, por si sós constituíssem o caput fluminis e os braços de quaisquer correntes

públicas.. Comuns eram ainda consideradas as águas não navegáveis ou flutuáveis e que

assim não se tornassem. As águas particulares eram todas as águas e nascentes situadas em

terrenos que também o fossem, quando as mesmas não estivessem classificadas entre as águas

comuns de todos, águas públicas ou simplesmente comuns7.

O Código de Água estabelecia que as águas públicas pertenciam à União, aos

Estados e Municípios (art. 29); assegurava ainda o uso gratuito de qualquer corrente ou

nascente de água para as primeiras necessidades da vida, se houvesse caminho público que a

tornasse acessível (art. 34), e se não houvesse esse caminho, os proprietários marginais não

poderiam impedir que os seus vizinhos se aproveitassem das mesmas para aquele fim,

contanto que fossem indenizados do prejuízo que sofressem com o trânsito pelos seus prédios

(art. 35). Permitia também a todos usar de quaisquer águas públicas, desde que em acordo

com os regulamentos administrativos (art. 36).

Em se tratando de águas públicas não podiam ser derivadas para as aplicações da

agricultura, da indústria e da higiene sem a existência de concessão administrativa (art. 43),

mas os donos ou possuidores de prédios atravessados ou banhado pelas correntes podiam usar

6 POMPEU, Cid Tomanik. Ob cit. p. 151 7 Art. 1°a 8° Código de Águas

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delas em proveito dos mesmos prédios, e com aplicação tanto para a agricultura como para a

indústria, contanto que do refluxo das mesmas águas não resultasse prejuízo aos prédios que

ficassem superiormente situados, e que inferiormente não se alterasse o ponto de saída das

águas remanescentes (art. 71).

Quanto às águas subterrâneas, o dono de qualquer terreno poderia apropriar-se por

meio de poços, galerias, das águas que existissem debaixo da superfície de seu prédio,

contanto que não prejudicasse aproveitamentos existentes nem derivasse ou desviasse de seu

curso natural águas públicas dominicais, públicas, de uso comum ou particulares. Se a

utilização dessas águas fosse prejudicial, competiria à administração suspender as obras de

aproveitamento (art. 96).

Como supra citado, o Código de Águas foi editado dias antes da Constituição

Federal de 1934, mas foi por ela recepcionado integramente. As Constituições Federais

anteriores à de 1934 não trataram especificamente de matéria relativa às águas.

Normas Correlatas aos Recursos Hídricos

Em 1938, o Código de Pesca, Decreto Lei n° 794, de 19 de outubro de 1938,

posteriormente substituído pelo Decreto Lei n° 221, de 28 de fevereiro de 1967, também

dispôs sobre normas protetora das águas, nos artigos 37 e 38.

Essa lei traz o conceito de poluição (art. 37, § 1º), sendo a primeira norma legal a

conceituá-lo no ordenamento jurídico brasileiro: “considera-se poluição qualquer alteração

das propriedades físicas, químicas ou biológicas das águas, que possa constituir prejuízo,

direta ou indiretamente, à fauna e à flora aquática”.

Em 1940 é editado o Decreto n.º 6.402/40, onde o Serviço de Águas tornou-se

Divisão de Águas. O Código Penal de 1940, em seus artigos 270 e 271, tipificou as condutas

de “envenenar água potável, de uso comum ou particular, ou substância alimentícia ou

medicinal destinada a consumo” e “corromper ou poluir água potável, de uso comum ou

particular, tornando-a imprópria para consumo ou nociva à saúde”.

Em 1965, com a Lei n.º 4.904/65, a Divisão de Águas foi transformada no

Departamento Nacional de Águas e Energia – DNAE.

Já no ano de 1967, o Decreto-lei n° 248 instituiu a Política Nacional de

Saneamento Básico, determinando um conjunto de diretrizes para um programa

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governamental para os setores de abastecimento de água e de esgoto sanitário. O mesmo

decreto-lei criou o Conselho Nacional de Saneamento Básico, a quem competia, além da

implementação da Política Nacional, a elaboração do Plano Nacional de Abastecimento de

Água e Esgoto, dentre outras atribuições necessárias à efetiva satisfação de suas missões8.

Em 1968, com a edição do Decreto n.º 63.951/68, é alterada a denominação do

Departamento Nacional de Águas e Energia para Departamento Nacional de Águas e Energia

Elétrica – DNAEE.

O DNAEE consistia no Órgão Central de Direção Superior responsável pelo

planejamento, coordenação e execução dos estudos hidrológicos em todo o território nacional;

pela supervisão, fiscalização e controle dos aproveitamentos das águas que alteram o seu

regime; bem como pela supervisão, fiscalização e controle dos serviços de eletricidade.

O Decreto n° 73.030, de 30 de outubro 1973, criou a Secretaria Especial do Meio

Ambiente (SEMA), no âmbito do Ministério do Interior, que tinha como orientação a

conservação do meio ambiente e o uso racional dos recursos ambientais, e funcionava junto

com o Conselho Consultivo do Meio Ambiente - CCMA.

Esse decreto ainda trouxe uma nova definição de poluição (art. 13, § 1.°), sendo

ela: “qualquer alteração de suas propriedades físicas, químicas ou biológicas, que possam

importar em prejuízo à saúde, à segurança e ao bem estar das populações, causar dano à flora

e à fauna, ou comprometer seu uso para fins sociais e econômicos”. Porém, a SEMA não

tratava de assuntos relacionados à matéria de água, pois essa função estava centralizada no

DNAEE.

Em seqüência, foram editados o Decreto Lei n° 1413, de 14 de agosto 1975, que

dispunha sobre o controle da poluição provocada pela atividade industrial; o Decreto n°

76.398, de 03 de outubro 1975, que dispunha sobre medidas de prevenção e controle da

poluição industrial; e a Portaria n° 13, do Ministério do Interior, de 15 janeiro 1976, que

fixava parâmetros para a classificação das águas interiores nacionais, de acordo com as

alternativas de consumo, e dispunha sobre o controle de sua poluição.

8 SILVA. José Afonso. Ob cit. p. 37

Page 73: Revista Ciência Dinâmica - 2ª Edição

73

Política Nacional de Meio Ambiente – Lei n.° 6.938/81

A Lei n.° 6.938 de 31 de agosto de 1981 dispôs sobre a Política Nacional do Meio

Ambiente. Essa lei teve origem principalmente após a Conferência de Estocolmo, mas esse foi

apenas um dos motivos, já que outros fatores contribuíram para a sua criação, como a pressão

internacional decorrente de agressões ambientais de muita relevância, não só ao ambiente,

mas também às pessoas, a exemplo dos casos da operação do pólo industrial de Cubatão, onde

até o nascimento de crianças sem cérebro foi registrado, como conseqüência dos níveis de

poluição local9.

A Política Nacional de Meio Ambiente (PNMA) balizou a nova situação brasileira

na gestão do meio ambiente. Ao criar uma política para a questão, reconheceu que o assunto,

até então, recebia tratamento compartimentado por tipo de recurso (fauna, flora etc.) e sem o

caráter específico de proteção, mas visando ao aproveitamento econômico.

Assim, essa lei trata do meio ambiente como um todo, trazendo em sua estrutura

objetivos, princípios, conceitos e instrumentos orientadores para a preservação do meio

ambiente e dos recursos naturais.

O artigo 3° da PNMA conceitua meio ambiente como “o conjunto de condições,

leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a

vida em todas as suas formas”.

A PNMA trouxe também a arquitetura do Sistema Nacional de Meio Ambiente –

SISNAMA (art. 6.º), designando um capítulo específico para explicar seu funcionamento,

integrado ao Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) órgão consultivo e

deliberativo.

A Lei n.° 6.938/81 foi regulamentada pelos Decretos n° 99.274, de 06 de junho de

1990, que dispõe sobre a criação de Estações Ecológicas e Áreas de Proteção Ambiental, e

Decreto n° 4297, de 10 de julho de 2002, que estabelece critérios para o Zoneamento

Ecológico-Econômico do Brasil – ZEE.

Foi através dessa lei que o Brasil mudou o enfoque das leis até então existentes e

passou a proteger o meio ambiente, sem visar aos fins lucrativos decorrentes desses recursos.

9 MELE, João Leonardo. Derani, Cristiane. Sola, Fernanda. ADAME, Alcione. LEI DE POLÍTICA

NACIONAL DO MEIO AMBIENTE – PNUMA E A AUTONOMIA DO DIREITO AMBIENTAL BRASILEIRO. Anais do XV Congresso Nacional do CONPEDI. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2007.p. 7.

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74

Ao estabelecer o que é meio ambiente, isso antes do art. 225 da Constituição

Federal, pela primeira vez estabelece uma possibilidade concreta de enxergar que direitos

materiais não se esgotam no indivíduo, mas que são extremamente importantes para a

coletividade como um todo. Essa lei, ao ser estabelecida, define, pela primeira vez no

ordenamento jurídico, o que significa meio ambiente e, ao defini-lo, deixa claro que a tutela

do meio ambiente diz respeito a toda e qualquer vida10.

Assim, essa lei surge visando à correta utilização dos bens ambientais, como o ar,

a água, a flora, a fauna, o solo, o subsolo, o controle de poluição ambiental. E a partir dela,

começam a surgir as leis específicas para a proteção dos bens ambientais.

Especificamente sobre águas, entende-se que a lei 6.938/81, abriu caminho, para a

lei 9.433/97, tratando efetivamente das águas, como bem ambiental a ser protegido e

resguardado.

A Constituição Federal de 1988

No ano de 1988 é editada a Constituição Federal, que traz questões não tratadas

pelas Constituições anteriores. A Constituição Federal alçou o meio ambiente à cláusula

pétrea, abarcando todos os seus aspectos e criando a responsabilização penal, civil e

administrativa do poluidor, ainda que pessoa jurídica.

Normas de tutela ambiental encontram-se esparsas ao longo do texto da

Constituição, muito embora a matéria esteja concentrada na Capitulo VI, do Título VIII,

versando sobre a ordem social, em seu artigo 225, que consagra em direito social autônomo

ao meio ambiente sadio, distinto dos poderes e direitos exercitáveis em relação aos elementos

materiais que o compõem11.

As águas em especial foram objeto de reiterada preocupação na Constituição

Federal de 1988. Também, distribuídos, nos mais diversos títulos, estão os contornos

constitucionais da tutela jurídica das águas, em seus múltiplos aspectos: como elemento

natural, como fonte geradora de energia, como via de transporte, como elemento essencial ao

saneamento e saúde públicas, bem como fator de integração e equilíbrio ambiental. Tutelou,

dessa forma, o bem água em toda a sua amplitude.

10 SOUZA, Luciana Cordeiro de. Ob cit. p. 81 11 BARROSO, Luis Roberto. A Proteção do Meio Ambiente na Constituição Brasileira. Revista Forense,

Volume 317, Jan/Mar 1988, Editora Forense, p.164.

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75

Normas editadas pós Constituição Federal de 1988

No ano de 1989, foi criado o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos

Recursos Renováveis – IBAMA, autarquia federal, ligada ao Ministério do Meio Ambiente,

com a finalidade de executar as políticas nacionais de meio ambiente referentes às atribuições

federais permanentes relativas à preservação, à conservação e ao uso sustentável dos recursos

ambientais e sua fiscalização e controle. Ao IBAMA foram dadas as competências de uma

série de órgãos extintos para a sua criação, como a SEMA, o IBDF e a SUDEPE.

Em 17 de janeiro de 1991, foi instituída a Lei n° 8.171, a Política Agrícola, que

também prevê tratamento em matéria de águas, no Capítulo VI, art. 19, que trata da Proteção

ao Meio Ambiente e da Conservação dos Recursos Naturais, onde são especificados os

deveres do Poder Público. Aí estão inseridas a disciplina e a fiscalização do uso racional do

solo, da água, da fauna e da flora (art. 19, II), assim como a coordenação de programas de

estímulo e incentivo à preservação das nascentes dos cursos d’água e do meio ambiente (art.

19 VII). No mesmo capítulo, o art. 23 trata das empresas que exploram economicamente

águas represadas e as concessionárias de energia elétrica que serão responsabilizadas pelas

alterações ambientais por elas provocadas; são obrigadas a recuperar o meio ambiente, na área

de abrangência de suas respectivas bacias hidrográficas.

No ano de 1995 é criada a Secretaria de Recursos Hídricos do Ministério do Meio

Ambiente – SRH/MMA, através da Medida Provisória n.º 813, de 01/01/95. Cabe à

SRH/MMA prover os serviços de Secretaria-Executiva do CNRH, incumbindo-lhe prestar

apoio administrativo, técnico e financeiro ao Conselho; instruir os expedientes provenientes

dos Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos e dos Comitês de Bacia Hidrográfica; e

elaborar seu programa de trabalho e respectiva proposta orçamentária anual, submetendo-os à

aprovação do Conselho12.

Em 26 de dezembro de 1996, a Lei n.º 9.427/96 promulga a Agência Nacional de

Energia Elétrica – ANEEL, autarquia sob regime especial, vinculada ao Ministério das Minas

e Energia, com sede e foro no Distrito Federal, com a finalidade de regular e fiscalizar a

produção, transmissão e comercialização de energia elétrica, em conformidade com as

Políticas e Diretrizes do Governo Federal. Extingue-se, dessa forma, o Departamento

Nacional de Águas e Energia Elétrica - DNAEE.

12 Decreto 4.613/2003.

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Cabe à ANEEL, relativamente às águas: implementar as políticas e diretrizes do

governo federal para a exploração e o aproveitamento dos potenciais hidráulicos, expedindo

os atos regulamentares necessários ao cumprimento das normas estabelecidas pela Lei

9.074/199513, incluindo as Leis 10.848, de 15.03.2004, e 11.488, de 15.06.2007. Com a

extinção do DNAEE, o seu acervo técnico e patrimonial, as obrigações, os direitos e as

receitas foram transferidos para a ANEEL.

Em janeiro de 1997 foi instituída a Lei n° 9.433, Política Nacional de Recursos

Hídricos, criando o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos,

regulamentando o inciso XIX do artigo 21 da Constituição Federal e alterando o artigo 1º da

Lei nº 8.001, de 13 de março de 1990, que modificou a Lei nº 7.990, de 28 de dezembro de

1989.

A Lei n.° 9.605, de 12 de fevereiro de 1998 - Lei de Crimes Ambientais, dispõe

sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio

ambiente e, no seu artigo 54, prevê a criminalização no caso de poluição de qualquer natureza

em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, e com hipótese do

aumento de pena em caso de poluição hídrica que torne necessária a interrupção do

abastecimento público de água de uma comunidade (art. 54, III).

Em 28 de abril de 2000, é promulgada a Lei n.° 9.966, que dispõe sobre a

prevenção, o controle e a fiscalização da poluição causada por lançamento de óleo e outras

substâncias nocivas ou perigosas em águas sob jurisdição nacional.

Em 17 de julho de 2000 foi publicada a Lei n.° 9.984, que cria a Agência

Nacional de Águas – ANA, entidade federal de implementação da Política Nacional de

Recursos Hídricos e da Coordenação Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. É de

competência da ANA promover a articulação dos planejamentos nacional, regionais, estaduais

e dos setores usuários elaborados pelas entidades que integram o Sistema Nacional de

Gerenciamento de Recursos Hídricos e formular a Política Nacional de Recursos Hídricos

(art. 1°).

No Brasil, é garantido o direito de água potável a toda a população, através da

Portaria n.° 518/GM, de 25 de março de 2004, do Ministério da Saúde: “toda água destinada

ao consumo humano deve obedecer ao padrão de potabilidade e está sujeita à vigilância da

13 Lei 9.074/95 Art. 4º As concessões, permissões e autorizações de exploração de serviços e instalações de

energia elétrica e de aproveitamento energético dos cursos de água serão contratadas, prorrogadas ou outorgadas nos termos desta e da Lei nº 8.987, de 1995, e das demais.

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qualidade da água14”, sendo a distribuição de água potável obrigatória pelo Sistema de

Abastecimento de Água para Consumo Humano.

Sobre esse tema, Paulo Afonso Leme Machado escreve que “a União, os Estados

e os Municípios estão obrigados a seguir os parâmetros da mencionada portaria e a adotar as

medidas necessárias para isso. A distribuição de água potável no Brasil é ato administrativo

vinculado, excluindo a discricionariedade”15.

A Medida Provisória 2.166-67, de 24 de agosto de 2001, que alterou alguns

artigos do Código Florestal Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965, traz em seu art. 1°, II, o

conceito de área de preservação permanente (APP), tendo como uma de suas funções a

preservação dos recursos hídricos. Em 05 de janeiro de 2007, foi promulgada a Lei n°.

11.445/07, que estabelece as diretrizes nacionais para o saneamento básico.

Conclusão

Essas são as normas de proteção do meio ambiente, direta ou indiretamente

relacionadas às águas, regulamentadas pelo Brasil. Como pode-se observar, são várias as

normas que tratam do assunto água, de forma especifica ou genérica, mas sempre procurando

sua proteção legal e efetiva.

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14 Portaria no 1.469, Controle e Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano e seuPadrão de

Potabilidade Disponível em < http://dtr2001.saude.gov.br/sas/PORTARIAS/Port2004/GM/GM-518.htm>. Consulta realizada em 20/10/2007.

15 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Recursos Hídricos. 2002. p. 16.

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79

A inconstitucionalidade da regulamentação dos organismos geneticamente

modificados pela lei 11.105/05

Angélica Costa Mesquita1

RESUMO: O presente trabalho trata da discussão acerca da constitucionalidade da regulamentação dos organismos geneticamente modificados pela Lei 11.105/05. Tomando como base central a doutrina do Professor Paulo Affonso Leme Machado, analisaremos o princípio da precaução, sua aplicabilidade no Ordenamento Jurídico Brasileiro e sua inobservância por parte do poder público. Em um segundo momento será feita uma análise do sistema de controle de constitucionalidade existente no Brasil e sua aplicação à Lei de Biossegurança, mencionando as ações diretas de inconstitucionalidade ajuizadas face à mencionada lei. Por fim, pugnaremos pela inconstitucionalidade da Lei 11.105/05, pela afronta gritante aos princípios constitucionais de proteção ao meio ambiente.

Palavras chave: transgênicos; inconstitucionalidade; biossegurança; precaução.

ABSTRACT: This paper deals with the discussion of the constitutionality of the regulation of genetically modified by Law 11.105/05. Based on the central doctrine of Professor Paulo Affonso Leme Machado, analyze the precautionary principle, its applicability in the Brazilian legal and failures by the government. The second stage will be an analysis of the system of judicial review exists in Brazil and its application to the Biosafety Law, citing the direct actions of unconstitutionality filed against the aforementioned law. Finally, we want the unconstitutionality of Law 11.105/05, the blatant affront to the constitutional principles of environmental protection. Keywords: transgenics, unconstitutionality, biosafety, precautionary

Introdução

Nos termos da norma inserida no Título VIII do capítulo VI da CR/88, todo ser

humano tem direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, para que seja

assegurado o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana. E para tanto, cabe ao

Poder Público, dentre outras coisas, controlar a produção, a comercialização e o emprego de

técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o

meio ambiente.

1 Especialista em Direito, Advogada e Professora

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Pretendemos com a presente pesquisa analisar o caso dos organismos

geneticamente modificados (OGMs) - sobretudo os alimentos transgênicos - no que tange à

análise dos riscos que estes oferecem ao meio ambiente.

Os alimentos transgênicos são produzidos a partir de modificação genética de um

ou mais de seus componentes. Há modificação em seu DNA. Com isso, o organismo adquire

características diversas das naturalmente existentes, e podem ter efeitos colaterais perigosos

(RODRIGUES, 2002). Em verdade o que há é uma dúvida constante sobre o real potencial

ofensivo dos organismos geneticamente modificados.

Os princípios basilares do Direito Ambiental Brasileiro, sobretudo o da

Prevenção, estabelecem a responsabilidade objetiva nos danos causados ao meio ambiente.

Prevenir é agir antecipadamente diante do risco.

Em se tratando de OGMs, mesmo que incertos, os riscos existem: ao equilíbrio

ecológico e à saúde humana. Por este motivo, a regulamentação de alimentos transgênicos

deve ser analisada minuciosamente, sob pena de ferir os princípios adotados pela Carta

Magna, e comprometer os direitos e garantias fundamentais inerentes a todo ser humano.

Tendo em vista que os princípios devem ser observados antes e acima de normas

inferiores, chega-se ao tema do presente estudo, qual seja, o questionamento da

constitucionalidade das normas regulamentam a liberação de organismos oriundos de

modificação genética. Para tanto, analisaremos a situação da legislação sobre biotecnologia no

Brasil, bem como o controle de constitucionalidade exercido sobre essas normas.

Direito Fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Conceito de meio ambiente ecologicamente equilibrado

Um dos objetivos da Lei 6.938/81 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente) é

tornar compatível o desenvolvimento econômico e a preservação ambiental. Para atingir tal

objetivo, criou-se o instrumento de avaliação de impactos ambientais, que visa medir os

prováveis impactos decorrentes das diversas atividades humanas e criar alternativas de forma

a minimizá-los.

No entanto, a lei 6938/81 é anterior à CR/88. Naquele momento, o Brasil não

havia introduzido ainda em sua Carta Magna, a tutela específica ao meio ambiente.

Page 81: Revista Ciência Dinâmica - 2ª Edição

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Um dos fatores responsáveis pela inserção do tema no texto constitucional foi sem

dúvida o interesse internacional pelo tema, sobretudo a partir da Declaração do Meio

Ambiente, adotada pela Conferência das Nações Unidas, em Estocolmo, em junho de 1972.

Naquele contexto, afirmou-se o direito fundamental do homem à sadia qualidade de vida:

Princípio 1 - O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequadas, em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna, gozar de bem-estar e é portador solene de obrigação de proteger e melhorar o meio ambiente, para as gerações presentes e futuras. A esse respeito, as políticas que promovem ou perpetuam o “apartheid”, a segregação racial, a discriminação, a opressão colonial e outras formas de opressão e de dominação estrangeira permanecem condenadas e devem ser eliminadas. (grifo nosso) (NAÇÕES UNIDAS, 1972)

Advém destas normas de proteção ambiental o direito fundamental ao meio

ambiente ecologicamente equilibrado, conforme o enunciado do caput do art. 225 da CR/88:

Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. (BRASIL, 1988a)

O art. 225 constitui a base para as políticas públicas ambientais, tanto preventivas

como reparatórias, constituindo o meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito

fundamental de todos. (ALONSO, 2006)

Os direitos fundamentais são prerrogativas constitucionais do cidadão, inerentes à

sua condição enquanto ser humano. Reunidos, eles formam a base de todo ordenamento

jurídico.

Ao arrolar o meio ambiente como direito fundamental, a Constituição o elege

como um dos preceitos essenciais à dignidade da pessoa humana. Em verdade, decorre disso

que não é possível uma concepção de vida digna sem que haja condições ambientais que

permitam sua fruição. (FERREIRA, 2008a)

A idéia de meio ambiente “ecologicamente equilibrado” nos remete a uma

concepção dinâmica. O direito que se quer garantir ao cidadão não se restringe meramente ao

direito de fruição do meio ambiente. Ora, se os recursos naturais são esgotáveis, uma

permissão de uso desenfreado levaria à sua extinção, com a consequente extinção da vida. É

dever de todos usar com cautela os recursos naturais, de modo a permitir que estes se renovem

e garantam o equilíbrio entre o desenvolvimento da sociedade e a preservação do ambiente

natural.

Ao qualificar o meio ambiente como bem de uso comum do povo, o legislador

afastou a idéia de bem público, pertencente à União, aos Estados, ao Distrito Federal ou aos

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Municípios. Trata-se de um bem de interesse público, atuando o Estado como mero gestor,

não como seu proprietário. Nesse sentido, todo o processo de tomada de decisões deve ser

norteado pelo interesse difuso, de forma a preservar o meio ambiente que se quer garantir à

sociedade.

Não obstante haja competência legislativa em matéria ambiental previamente

definida pela Constituição, o dever de preservar e defender o meio ambiente foi imposto

simultaneamente ao Poder Público e à coletividade, de forma que ambos são solidários no

tocante à sua garantia. Nesse contexto, além da atividade legislativa e do controle através do

judiciário, o Estado deve usar suas prerrogativas administrativas para garantir que esse direito

fundamental seja preservado, regulamentando as atividades privadas através de seu poder de

polícia.

A forma mais comum de atuação do executivo na fiscalização das atividades que

podem comprometer o meio ambiente é o processo de licenciamento ambiental, regulado pela

Resolução CONAMA 01/86, que será objeto de posterior análise.

O princípio da precaução no direito ambiental brasileiro

Ao adotar a concepção de desenvolvimento sustentável, o legislador quis garantir

que as futuras gerações possam ter acesso ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,

essencial à sadia qualidade de vida . Criou mecanismos de contenção, para evitar que os

recursos naturais se esgotem pelo mau uso no presente. Afasta-se a idéia de desenvolvimento

a qualquer custo. O limite para o desenvolvimento passa a ser a probabilidade de que ele

cause algum dano irreversível, prejudicial à preservação do meio.

Apesar da incerteza, o risco futuro possui uma premissa concreta: resulta das

decisões tomadas no presente. A partir do momento que se permite a implantação de

determinada atividade poluidora, assume-se os riscos que dela advêm. Se futuramente essa

atividade vier a causar prejuízos ambientais, estes são decorrentes da decisão que permitiu sua

implantação.

Por este motivo, todas as deliberações que envolvam questões ambientais devem

ser tratadas com muito cuidado. Um descuido, que muitas vezes poderia ter sido evitado, pode

ser a causa de danos irreversíveis.

Page 83: Revista Ciência Dinâmica - 2ª Edição

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Em verdade, por tratar-se de risco, trabalha-se com a realidade de que estes não

podem ser completamente excluídos, pois sempre haverá a possibilidade de algum dano. E

tentar excluir essa possibilidade de dano por completo seria engessar o desenvolvimento, com

medo de que qualquer atitude tomada, qualquer atividade liberada cause sério impacto

ambiental. Assim, os riscos devem ser minimizados, de modo a possibilitar o

desenvolvimento da atividade sem causar danos irreversíveis ao meio ambiente.

Para efetivar o sistema de gestão de riscos, o Estado de Direito Ambiental adotou

como um de seus pilares o princípio da Precaução, consagrado pela Conferência das Nações

Unidas para o Meio ambiente, na Declaração do Rio de Janeiro.

Precaução significa, de um modo geral, agir antecipadamente diante do risco.

Observa-se um risco, e não se tem certeza do dano que dele pode advir. Diante de situações

assim, age-se antecipadamente, de modo a diminuir os riscos e minimizar os danos. E mais,

na incerteza sobre os danos que a atividade pode causar, deve a sociedade abster-se da prática

do ato. In dubio, pro nature: essa é a regra.

Cuidando-se de atividades potencialmente poluidoras, a questão não é a existência

de riscos, que são inevitáveis. A questão é a real necessidade de correr esse risco. Se não há

necessidade, e se não há absoluta certeza de que se conseguirá neutralizá-lo, a atividade

deverá ser evitada. Agir de outro modo significaria afastar a responsabilidade causada por

danos que não foram detectados à época da implantação da atividade, e que por esse motivo

optou-se pela sua execução, em detrimento da prevenção.

O princípio da precaução funciona como dosador das intervenções humanas no

meio ambiente. Em um impasse acerca da implantação de certa atividade que poderá

modificar negativamente o meio, o princípio funcionará como um freio à concretização desta

ação até que se comprove a neutralização do dano.

Por óbvio, o controle de todas as atividades, uma a uma, por parte do Poder

Público, é inviável. Assim, fez-se necessária a criação de mecanismos para facilitar a gestão

de riscos ambientais.

E é no contexto da real necessidade de tornar efetivo o princípio da precaução,

que a Lei Maior instituiu como essencial à implantação de atividades potencialmente

poluidoras o Estudo de Impacto Ambiental.

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O estudo de impacto ambiental como instrumento de gestão de risco

O EIA é o principal instrumento de realização do princípio da precaução. Através

dele pode-se pugnar ou não pela liberação da atividade, de acordo com o resultado do estudo e

o diagnóstico do risco.

Um de seus principais objetivos é determinar o grau de risco da atividade, a

dimensão do possível impacto, analisando-se sua viabilidade ambiental.

Por se tratar de instrumento de natureza preventiva, o EIA deve ser feito no

momento certo, devendo ser pressuposto para o início do licenciamento ambiental. Aliás, o

termo “prévio” adotado pela Constituição já indica o momento em que deve ser realizado.

O licenciamento ambiental é um procedimento administrativo dividido em três

fases: a licença prévia, que atesta a viabilidade ambiental do empreendimento, a licença de

instalação, que autoriza sua implementação e a licença de operação, que autoriza o

funcionamento da atividade, quando verificado o cumprimento dos requisitos de todas as

fases do processo.

É o EIA que embasa todo esse processo de licenciamento. Logo, não faz sentido

que seja realizado após a concessão da licença, ainda que prévia. E mesmo que seja feito o

estudo antes da concessão da licença, isso não impede que uma nova avaliação de riscos seja

necessária em quaisquer das fases.

São os órgãos ambientais estaduais os responsáveis pelo licenciamento ambiental,

e eles estão desprovidos de discricionariedade quanto ao momento da exigência do EIA. Não

há que se falar aqui em conveniência e oportunidade, uma vez que o Poder Público está

vinculado às normas de licenciamento ambiental. O ato administrativo de concessão da

licença está ligado à probabilidade de ocorrência da degradação advinda da atividade, e esta

análise independe da vontade pública ou dos interesses do Estado.

O inciso IV do §10 do art. 225 da CR/88 diz que o EIA será exigido pelo Poder

Público na forma da lei. Em verdade, não existe discricionariedade para especificar em quais

hipóteses o instrumento será necessário e em quais será dispensado. Essas hipóteses já se

encontram descritas na Constituição: serão precedidos de EIA os empreendimentos capazes

de causar dano significativo ao meio ambiente. Aqui a única faculdade que o legislador tem é

estabelecer o procedimento para a elaboração do EIA.

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Os organismos geneticamente modificados no Estado de Direito Ambiental

Conceito de organismos geneticamente modificados

Organismos geneticamente modificados são aqueles obtidos a partir da técnica do

DNA recombinante, na qual insere-se no organismo genes de outra espécie.

A estrutura do DNA foi descoberta na década de 50, por Watson e Crick, gerando

uma brusca mudança no paradigma biológico da comunidade científica do século 20. Tal

descoberta foi considerada tão importante, que em 1962, os dois foram congratulados com o

Prêmio Nobel de Medicina.

Após decifrar o DNA e o código genético, a comunidade científica continuou as

pesquisas que objetivavam sua manipulação e modificação, interferindo na formação dos

seres vivos.

A técnica da engenharia genética é tão avançada, que consegue suprimir

atividades dos genes de uma determinada espécie e transferi-los para outra, alterando sua

estrutura e produzindo reações diversas, as quais são uma incógnita para os cientistas, que não

possuem ainda condições de avaliar as possíveis conseqüências dessas modificações para o

meio ambiente.

Por métodos artificiais, são manipulados genes de espécies que jamais se

cruzariam naturalmente. Por esta razão, são criados organismos modificados em sua estrutura

celular, tendo em vista que passam a carregar componentes que não lhe pertenciam

originariamente. (RODRIGUES, 2002a)

O verdadeiro problema é que, ao manipular o DNA de um organismo vivo, os

pesquisadores não sabem ao certo quais serão as conseqüências para a qualidade de vida.

Nossa discussão é acerca dos limites que devem ser impostos ao desenvolvimento

desenfreado dessas atividades. Preocupação maior surge na área de alimentos, uma vez que

aquilo que é consumido pelo ser humano provoca reações no seu organismo. Na maioria das

vezes, essas reações só são percebidas depois de um longo período de tempo. (RODRIGUES,

2002b)

Note-se que, embora as expressões “organismos geneticamente modificados” e

“organismos transgênicos” sejam empregadas como sinônimas, elas são diferentes.

Considera-se como geneticamente modificados todos aqueles organismos cujo material

Page 86: Revista Ciência Dinâmica - 2ª Edição

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genético foi alterado pela transferência de genes provenientes de outros organismos, sejam da

mesma espécie ou de espécie diferente do receptor. Por outro lado, são considerados

transgênicos somente os organismos que tiveram sua informação genética modificada pela

introdução de genes pertencentes a uma outra espécie. (FERREIRA, 2008b)

Maria Rafaela Junqueira Bruno Rodrigues define alimentos transgênicos como

sendo

[...] aqueles oriundos de uma planta transgênica ou de frutos, cereais ou vegetais delas extraídos, que são consumidos diretamente pelos seres humanos ou indiretamente, através dos produtos alimentares produzidos ou elaborados a partir da mencionada meteria prima. [...] Os transgênicos podem ser utilizados para consumo direto ou como insumo ou ingrediente na cadeia de produção de alimentos. (RODRIGUES, 2002c)

Numa análise sob a égide do Estado de Direito Ambiental, preconizador do

Princípio da Precaução, a biossegurança requer o conhecimento da ameaça que os OGMs

possam representar ao meio ambiente.

Riscos associados aos organismos geneticamente modificados

Um dos principais objetivos dos cientistas ao manipular geneticamente

determinada planta é que ela se torne resistente às espécies locais, tidas como “predadoras”

(ervas daninhas, insetos, pássaros).

O risco provável é que essas plantas transgênicas causem um desequilíbrio

ecológico, uma vez que os OGMs podem se reproduzir, migrar ou sofrer mutações, de modo a

desestruturar o meio natural. Ainda mais grave, os genes modificados carregados por pólen,

vento ou insetos, se chegarem a florescer outra vez modificados, de uma forma diferente,

podem tornar-se pragas cada vez mais resistentes, impossíveis de serem controladas pelo

próprio meio. (ARANTES, 2007a; RODRIGUES, 2007a)

Essas plantas, tornadas “daninhas”, possuem uma grande capacidade de adaptação

e disseminação, e acabam impondo obstáculos ao desenvolvimento de outras espécies

vegetais, o que pode resultar em modificações nas relações ecológicas estabelecidas entres as

espécies e no funcionamento do próprio ecossistema do qual fazem parte. Assim,

necessitariam a cada dia de agrotóxicos mais fortes para combatê-las e evitar sua propagação.

Outro aspecto a ser considerado é o impacto que as plantas transgênicas podem

causar na composição do solo. A liberação da soja transgênica RR no meio ambiente vem

acompanhada por um aumento do uso do glifosato. Tanto a utilização excessiva de herbicidas

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como a produção de novas toxinas por plantas geneticamente modificadas constituem fatores

capazes de alterar as propriedades do solo e, consequentemente, provocar a morte de

microorganismos que vivem no solo.

Um terceiro risco diretamente associado aos OGMs, mais especificamente aos

alimentos transgênicos, é o fato de o ser humano consumir diariamente esses alimentos sem

conhecimento efetivo de suas consequencias, uma vez ser sabido que toda substância externa

ao corpo humano pode provocar reações adversas, desde alergias a mutações celulares que

provocam insuficiências nos órgãos, prejudicando o sistema imunológico. Os alimentos

transgênicos podem ser tóxicos, dependendo do tipo de organismo que os consomem.

(ARANTES, 2007b; RODRIGUES, 2007b)

Além disso, a liberação de transgênicos no meio ambiente tem sido uma das

principais causas dos impactos provocados sobre a diversidade biológica. Muito embora a

princípio esses impactos sejam sentidos nos ecossistemas agrícolas, como mencionado

anteriormente, há a possibilidade de que alcancem também comunidades de plantas silvestres

e provoquem redução ou perda da diversidade biológica ali existente.

A regulamentação dos organismos geneticamente modificados no ordenamento jurídico

brasileiro

Protocolo de Cartagena sobre biossegurança

A Convenção sobre Diversidade Biológica de 1992, dispõe, nos parágrafos 3º e

4º do art. 19, e na alínea “g” do art. 8º e no art. 17, as diretrizes a serem adotadas na

administração dos riscos relacionados aos OGMs, com a previsão da elaboração de um

protocolo para estabelecer procedimentos adequados para sua utilização. Este documento

internacional é o Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança (PCB).

O PCB é um acordo internacional que trata do movimento de organismos

transgênicos entre países. Sua assinatura significa o reconhecimento de que a engenharia

genética pode trazer danos ao meio ambiente e à saúde humana e necessita, portanto, ser

controlada.

Page 88: Revista Ciência Dinâmica - 2ª Edição

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O acordo foi assinado no ano de 2000, mas o Brasil só aderiu ao Protocolo no ano

de 2003, com aprovação pelo Decreto Legislativo nº 908/2003 e promulgação pelo Decreto nº

5.705/2006.

Desde 1995 havia legislação interna regulando a liberação de transgênicos no

meio ambiente, podendo-se citar a lei 8974/95 que criou o Sistema Nacional da

Biossegurança. A lei reconheceu que a presença de atividades de biotecnologia tornava

necessária a adoção de medidas de segurança para gerir os riscos ambientais eventualmente

decorrentes dessas atividades.

Não obstante a existência de tal legislação, o país precisava inovar, adequando sua

legislação interna aos parâmetros internacionais.

A proteção da diversidade biológica contra possíveis efeitos associados aos

OGMs foi o principal motivo justificante da elaboração do PCB.

É importante ressaltar que o PCB define Organismos Geneticamente Modificados,

no art. 3º, g, como qualquer organismo vivo que tenha uma combinação inédita de material

genético obtida através do emprego da biotecnologia moderna. Assim, o PCB engloba não

somente os organismos transgênicos, mas todos aqueles que foram geneticamente alterados

através de técnicas da engenharia genética.

O PCB regula, em seus arts. 15 e 16, a avaliação e o manejo de riscos

relacionados aos OGMs. Esses riscos são a probabilidade de que a introdução de OGMs no

meio ambiente venha a causar danos capazes de afetar a sadia qualidade de vida dos seres

vivos.

Ocorre que o texto do Protocolo não indica quais seriam esses mecanismos de

gestão de risco. Não menciona-se diretamente o princípio da precaução, o EIA ou

instrumentos de controle já existente, permitindo uma enorme discricionariedade das partes

acordantes quanto à forma de avaliação de riscos. Não há limites estabelecidos para a

liberação ou não de OGMs no ambiente. Cabe a cada país estipular suas normas de precaução.

Quando da elaboração do texto do PCB, discutiu-se a possibilidade de mencionar

o princípio da precaução no corpo do texto ou somente no preâmbulo. O Brasil foi um dos

países que se posicionou contra a inclusão do princípio da precaução na parte operacional do

PCB: alegava que essa abordagem poderia frear o comércio internacional, sendo considerada

com excessivamente protecionista.

Page 89: Revista Ciência Dinâmica - 2ª Edição

89

Por fim, o princípio da precaução foi colocado no preâmbulo, e de forma

suavizada, quando do estabelecimento dos objetivos do Protocolo. O fato é que, por ter sido

colocado somente nessas partes, o princípio da Precaução não gerou nenhuma obrigação

concreta que vinculasse as partes acordantes.

Afastando ainda mais a responsabilidade no uso dos OGMs, o art. 10 do PCB

autoriza a tomada de decisões mesmo que não haja certeza com relação aos riscos potenciais:

A ausência de certeza científica devida à insuficiência das informações e dos conhecimentos científicos relevantes sobre a dimensão dos efeitos adversos potenciais de um organismo vivo modificado na conservação e no uso sustentável da diversidade biológica na Parte importadora, levando também em conta os riscos para a saúde humana, não impedirá esta Parte, a fim de evitar ou minimizar esses efeitos adversos potenciais, de tomar uma decisão, conforme o caso, sobre a importação do organismo vivo modificado em questão como se indica no parágrafo 3º acima. (BRASIL, 2006b)

Deste modo, a parte poderá adotar ou não as medidas de precaução mencionadas

na parte inicial do documento. Contrariando o disposto no Princípio 15 da Declaração das

Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, o PCB não impõe às partes o dever

de agir de acordo com o Princípio da Precaução, limitando-se a reconhecer o direito que elas

têm de adotar tais medidas.

A lei 11.105/05

Como dito anteriormente, o Brasil possui legislação interna sobre a

regulamentação de transgênicos desde o ano de 1995. Com a adoção do Protocolo de

Cartagena, houve a necessidade de adequação da legislação nacional sobre o tema. Após dez

anos de vigência, e antes mesmo da promulgação do PCB no país, a lei nº 8.974/95 foi

revogada, dando lugar à famigerada lei nº 11.105/05 (Lei de Biossegurança).

A edição dessa lei foi fruto de uma série de discussões desencadeadas ao longo de

um processo de liberação de organismos transgênicos em território brasileiro.

A discussão teve início em 1998, quando a CTNBio autorizou a empresa

Monsanto a plantar em escala comercial a soja transgênica RR sem a realização de Estudo

Prévio de Impacto Ambiental, considerado obrigatório pela Constituição da República. A

discussão foi para a esfera judicial, e através da Medida Provisória (MP) nº 113/03, o plantio

foi autorizado. Mais tarde, a MP foi convertida na Lei 10.688/03. (BRASIL, 2003a)

Page 90: Revista Ciência Dinâmica - 2ª Edição

90

Sobre a MP 113/03, é de suma importância ressaltar o modo brusco com que ela

fere os princípios constitucionais de proteção ao meio ambiente (FERREIRA, 2008c). Com

sua edição, o Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva agiu unilateralmente, numa

decisão unicamente política, tendente a observar interesses essencialmente econômicos,

cancelando a eficácia dos instrumentos de gestão de risco existentes no país, ao estabelecer

em seu art. 1º que “a comercialização da safra de soja 2003 não estará sujeita às exigências

pertinentes da Lei nº 8.974/95, com as alterações da Medida Provisória nº 2.191-9 de 23 de

agosto de 2001”.(BRASIL, 2003b)

Não bastando tal desrespeito, o mesmo texto foi reproduzido no art. 1º da Lei nº

10.688/03. Pouco tempo depois, a Medida Provisória 131/03 regulou o plantio da safra de

soja transgênica do ano de 2004 nos mesmos moldes da anterior. Essa medida tornou ineficaz

o regime de biossegurança implantado pela então vigente Lei nº 8.974/95.

Além disso, cancelou outros dispositivos da política ambiental brasileira, como se

observa no texto do seu art. 1º:

Art. 1º - Às sementes da safra de soja de 2003, reservadas pelos agricultores para uso próprio, consoante os termos do art. 2º, inciso XLIII, da Lei no 10.711, de 5 de agosto de 2003, e que sejam utilizadas para plantio até 31 de dezembro de 2003, não se aplicam as disposições dos incisos I e II do art. 8º, do caput do art. 10 da Lei no 6.938, de 31 de agosto de 1981, relativamente às espécies geneticamente modificadas previstas no código 20 do seu Anexo VIII; da Lei no 8.974, de 5 de janeiro de 1995, com as alterações da Medida Provisória no 2.191-9, de 23 de agosto de 2001; do 3º do art. 1º e do art. 5º da Lei no 10.688, de 13 de junho de 2003. (BRASIL, 2003c)

Os dispositivos mencionados da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente

(incisos I e II do art. 8º e art. 10 da lei 6.938/81) dizem respeito ao licenciamento ambiental e

ao Estudo Prévio de Impacto Ambiental.

No mesmo ano da edição dessas medidas provisórias, foi enviado ao Congresso

um projeto de lei que visava regulamentar atividades com OGMs no país sob uma ótica

diferente daquela então vigente. A proposta era que a lei fosse promulgada a tempo de regular

a safra de soja transgênica de 2005. Como era de se esperar, a discussão se arrastou no

Congresso, e a safra de 2005 foi autorizada pela Medida Provisória nº 223/04.

Deste modo, embalada pelas inúmeras e controversas discussões sobre a soja

transgênica, a lei 11.105/05 foi aprovada com um texto nada favorável ao atendimento da

política de gestão de riscos e ao princípio da precaução, como se verá adiante, embora tenha

adotado como diretrizes, além do estímulo ao avanço científico nas áreas de biotecnologia e

biossegurança, a proteção da vida, da saúde dos seres vivos e do meio ambiente.

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O projeto de lei proibia a liberação de OGMs no meio ambiente sem aprovação da

CTNBio. A lei nº 11.105/05, ao contrário, estabeleceu condições bem mais brandas,

observando-se a natureza da atividade. Questiona-se com isso a verdadeira intenção do

legislador: proteger o meio ambiente ou facilitar a liberação dos organismos transgênicos.

Os incisos V, VI do art. 6º da Lei de Biossegurança estabelecem as proibições

relacionadas à liberação de OGMs no meio ambiente:

Art. 6o Fica proibido:

[...]

V – destruição ou descarte no meio ambiente de OGM e seus derivados em desacordo com as normas estabelecidas pela CTNBio, pelos órgãos e entidades de registro e fiscalização, referidos no art. 16 desta Lei, e as constantes desta Lei e de sua regulamentação;

VI – liberação no meio ambiente de OGM ou seus derivados, no âmbito de atividades de pesquisa, sem a decisão técnica favorável da CTNBio e, nos casos de liberação comercial, sem o parecer técnico favorável da CTNBio, ou sem o licenciamento do órgão ou entidade ambiental responsável, quando a CTNBio considerar a atividade como potencialmente causadora de degradação ambiental, ou sem a aprovação do Conselho Nacional de Biossegurança – CNBS, quando o processo tenha sido por ele avocado, na forma desta Lei e de sua regulamentação;

[...]

Como se pode observar pelo texto legal acima, o licenciamento ambiental não é

colocado como requisito para a liberação de organismos geneticamente modificados no meio

ambiente, ao contrário do que se previa no Projeto de Lei nº 2401/03.

Ao regulamentar as competências administrativas, a lei 11.105/05 vedou a

possibilidade de reapreciação das decisões da CTNBio, ferindo bruscamente os direitos de

contraditório e ampla defesa., que a CR/88 garante aos litigantes em processo judicial ou

administrativo. Disso decorre o princípio do devido processo legal, que a lei

infraconstitucional em questão insiste em ferir.

A decisão em instância única fere igualmente o direito de interposição de recurso

na esfera administrativa, garantido pela Lei nº 9784/99 (lei do processo administrativo

federal). Entende-se que a Lei 9784/99 deve prevalecer sobre a lei 11.105/05, considerando-se

que esta última não tem o propósito de regular matéria processual. Assim, não se deve utilizar

a regra da especialidade no tocante ao conflito de normas, porque as duas leis versam sobre

matérias completamente distintas. (FERREIRA, 2008d).

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92

A comissão técnica nacional sobre segurança

O art. 10 da Lei de Biossegurança define a CTNBio como instância colegiada de

caráter consultivo e deliberativo, para prestar apoio técnico e de assessoramento ao Governo

na implementação da Política Nacional de Biossegurança, bem como no estabelecimento de

normas de segurança e de pareceres referentes à autorização para atividades que envolvam

pesquisa e uso comercial de OGM e seus derivados, com base na avaliação de risco.

(BRASIL, 2005a)

A CTNBio é o principal órgão de deliberação sobre biossegurança no país. Suas

decisões vinculam os demais órgãos da Administração Pública, tornando ineficaz a

competência dos entes da Administração para proteger o meio ambiente. Com isso, retirou-se

qualquer possibilidade de que o Ministério do Meio Ambiente (MMA) participasse dos

processos decisórios envolvendo pesquisa e uso comercial de OGMs, exceto nos casos em

que a CTNBio permitisse.

O MMA propôs que fosse incluído na Lei nº 11.105/05, uma possibilidade de veto

às decisões da CTNBio, mas os poderes exclusivos para deliberar sobre a matéria foram

mantidos. Ora, uma decisão tomada pela CTNBio que autorize a liberação de um certo OGM

jamais poderá ser contrariada por exemplo, pelos municípios, ainda que estes considerem a

atividade prejudicial ao meio ambiente de sua esfera de competência.

Cumpre observar que a composição dos membros da CTNBio é totalmente

desproporcional. Dentre seus vinte e sete membros, somente três são especialistas em meio

ambiente. Seus membros são em maioria especialistas em biotecnologia, com interesse direto

no desenvolvimento da área.

Poucos são aqueles especializados em biossegurança, preocupados com a

avaliação de riscos decorrentes do desenvolvimento das atividades de engenharia genética.

Desse modo, a deliberação e tomada de decisões favoráveis à liberação de OGMs no meio

ambiente se torna muito fácil. O grupo desenvolvimentista da Comissão obtém com

tranquilidade a maioria de votos.

Há uma predominância incontestável a favor do desenvolvimento a qualquer custo

dentro da CTNBio. Os poucos membros com uma visão de biossegurança encontram

dificuldades para atuar em meio a tantos tecnicistas. Ficam impossibilitados de tomar decisões

que respeitem verdadeiramente os princípios constitucionais de proteção ao meio ambiente e

garantia à sadia qualidade de vida.

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93

O princípio da precaução na lei de biossegurança: a regulamentação do estudo prévio de

impacto ambiental

A Lei de Biossegurança se propõe, dentre outras coisas, a regulamentar o inciso

IV § 1º do art. 225 da CR/88, como se pode observar em seu preâmbulo. O mencionado

dispositivo legal diz respeito à obrigatoriedade da realização de Estudo Prévio de Impacto

Ambiental para atividades potencialmente poluidoras.

Embora tenha se proposto a regulamentar o EIA nos casos relacionados aos

OGMs, em momento algum a lei 11.105/05 faz menção ao instrumento. Dispõe apenas que a

CTNBio será responsável por avaliar caso a caso a necessidade da realização de

licenciamento ambiental. Caso a Comissão entenda que a liberação de determinado OGM não

traz riscos, o EIA é simplesmente desconsiderado.

Segundo a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, o EIA é obrigatório,

instrumento condicionante para a implantação de atividades potencialmente poluidoras, que

devem passar pelo processo de licenciamento ambiental. Entretanto, de acordo com a lei de

biossegurança, basta um parecer técnico da CTNBio para que o Estudo seja dispensado.

Em último caso, se a CTNBio pugnar pela potencialidade poluidora da atividade,

caberá ao Ministério do Meio Ambiente, mais precisamente ao CONAMA, proceder o

respectivo licenciamento. Mais que isso, as decisões da CTNBio são irrecorríveis, como

mencionado anteriormente. Isso impede qualquer tipo de argumentação por parte dos demais

órgãos envolvidos nos processos relacionados ao tema.

Ora, em se tratando de OGMs, e tendo-se que os riscos advindos de sua liberação

no meio ambiente são incertos e seus efeitos ainda desconhecidos, o estudo prévio de impacto

deveria ser obrigatório para todas as atividades que os envolvem. Essa seria a única maneira

de se atender ao princípio da precaução, colocado no preâmbulo da Lei de Biossegurança

como uma de suas diretrizes.

A impressão é que o legislador fez menção ao princípio tão somente para cumprir

formalidades. A verdade é que em nenhum momento do texto legal o princípio da precaução

aparece de forma vinculante, de observação obrigatória para qualquer dos procedimentos que

a lei regula.

O legislador instituiu um regime que permite a não aplicação dos instrumentos de

gestão de risco, visando facilitar o processo de implantação das técnicas da engenharia

Page 94: Revista Ciência Dinâmica - 2ª Edição

94

genética. A Lei de Biossegurança, propositalmente escrita de forma genérica e cheia de

lacunas, foi feita descaradamente em dissonância com a CR/88.

Nas palavras da professora Heline Silvini Ferreira:

A despeito das prováveis e incertas agressões ao meio ambiente e, conseqüentemente, ao direito fundamental de desfrutá-lo e usufruí-lo em condições ecologicamente equilibradas, o Poder Executivo cumpre as disposições contidas na Lei n. 11.105/05, muitas vezes revestindo-as de interpretações restritivas, como se sua constitucionalidade não fosse prerrogativa para sua própria validade. (FERREIRA, 2008e, p. 257).

Nesse sentido, não somente o legislador desrespeitou a Carta Magna, ao editar a

lei 11.105/05. Também o poder executivo age contrariando a Constituição, tendo em vista que

ao aplicar a lei, ele deve agir de acordo com os princípios constitucionais, realizando um filtro

daquilo que extrapola o poder o legislador e passa a ser uma verdadeira afronta à

Constituição.

Da inconstitucionalidade da Lei de Biossegurança

O controle de constitucionalidade no ordenamento jurídico brasileiro

Quando falamos em controle de constitucionalidade, devemos ter em mente a

idéia de que a Constituição da República é superior a qualquer outra norma existente no

Ordenamento Jurídico. Em verdade, a Constituição é o pressuposto de validade de todas as

outras normas jurídicas presentes em um ordenamento.

No Brasil, o sistema constitucional é considerado rígido. A Carta Magna é dotada

de supralegalidade, e necessita de procedimentos especiais para ser modificada. Em defesa da

Constituição, foram criados por ela mesma, mecanismos que fiscalizem a compatibilidade das

normas inferiores ao seu conteúdo.

Segundo Alexandre de Moraes, “controlar a constitucionalidade significa verificar

a adequação (compatibilidade) de uma lei ou de um ato normativo com a Constituição,

verificando seus requisitos formais e materiais.” (MORAES, 2005a, p.627)

O principal objetivo do controle de constitucionalidade é garantir que os direitos

elegidos pelo Poder Constituinte Originário sejam respeitados.

Page 95: Revista Ciência Dinâmica - 2ª Edição

95

Uma norma editada em dissonância com a vontade do Legislador Constituinte

Originário é nula, e não produz efeitos no plano jurídico. Qualquer ato que tenha sido regido

com base em norma inconstitucional não terá validade. (MORAES, 2005b)

O exercício do controle de constitucionalidade no Brasil

No Brasil, o sistema de controle de constitucionalidade adotado é o repressivo,

feito por meio do Poder Judiciário. Pode vir sob duas formas: o controle concentrado (via

ação) ou o controle difuso (via exceção, no caso concreto). Trata-se de um sistema misto de

controle de constitucionalidade.

O controle difuso surge constitucionalizado na Constituição de 1891 e é realizado

sempre à luz de um caso concreto. A análise sobre a constitucionalidade da norma jurídica

coloca-se como questão prejudicial à solução do caso.

O controle concentrado surgiu no Brasil com a Constituição de 1934, com a Ação

Direita de Inconstitucionalidade (ADIn) interventiva. A ADIn genérica surgiu em 1965, com

a Emenda Constitucional nº 16 à Constituição de 1946. (MORAES, 2005c). A competência

para exercer o controle concentrado é do Supremo Tribunal Federal.

A ação direta de inconstitucionalidade é a principal via de ação direta para que o

Judiciário declare que uma determinada lei ou ato normativo é incompatível com a

Constituição Federal. Para que seja ajuizada, não é necessário que haja um caso concreto a ser

discutido. A ADIn é bastante em si só, sendo seu objeto principal a própria declaração de

inconstitucionalidade. Sua finalidade é retirar do Ordenamento Jurídico a lei ou o ato

normativo que se mostrar incompatível com a ordem constitucional.

Ao julgar a ADIn, de acordo com o princípio da causa de pedir aberta, o STF não

fica preso aos fundamentos jurídicos do pedido. O Supremo pode declarar a

inconstitucionalidade da lei por outros fundamentos que não aqueles descritos na inicial.

Da afronta à Constituição pela Lei 11.105/05

Desde a edição da Lei de Biossegurança, em 2005, várias discussões foram

levantadas acerca de sua constitucionalidade.

Page 96: Revista Ciência Dinâmica - 2ª Edição

96

A primeira Ação Direta de Inconstitucionalidade ajuizada pela Procuradoria Geral

da República, através do Procurador Cláudio Fonteles (ADIn nº 3510), impugnava o art. 5º da

lei, que trata da utilização de células tronco-embrionárias humanas para fins de pesquisa e

terapia.

A argüição de inconstitucionalidade do referido artigo, deve-se ao desrespeito ao

princípio da dignidade humana, decorrente do direito à vida. Entende-se que o embrião é um

organismo vivo, e que, portanto, não pode ser destruído e suas células serem utilizadas em

pesquisas científicas. Além do pedido de declaração de inconstitucionalidade, solicitou-se na

ADIn que fosse realizada uma audiência pública para debate do tema. A audiência foi

realizada em abril de 2007. A ADIn ainda aguarda decisão do STF.

Após o ajuizamento da ADIn nº 3510, a Procuradoria Geral da República

ingressou com outra ADIn, dessa vez contestando diversos dispositivos da Lei 11.105/05. A

ação foi ajuizada após representação do PV (Partido Verde) e do IDEC (Instituto Brasileiro de

Defesa do Consumidor), além da recomendação da 4ª Câmara de Coordenação e Revisão do

MPF (Ministério Público Federal), que trata dos assuntos relacionados ao meio ambiente.

A ADIn nº 3526 foi proposta com pedido liminar para suspender a eficácia do

inciso VI do artigo 6º; do artigo 10; incisos IV, VIII, XX e os parágrafos 1º, 2º, 3º, 4º, 5º e 6º

do artigo 14; parágrafo 1º, inciso III e parágrafos 2º, 3º, 4º, 5º, 6º e 7º do artigo 16; e os artigos

30, 34, 35, 36, 37 e 39, da Lei de Biossegurança, e a declaração de inconstitucionalidade de

todos os dispositivos relacionados.

O pedido baseia-se no fato de os dispositivos acima mencionados contrariarem o

inciso VI do artigo 23, o artigo 225, caput e inciso IV, da CR/88.

O principal questionamento da ADIn, é o fato de a Lei 11.05/05 ter atribuído à

CTNBio uma séria de competências no tocante aos organismos transgênicos. Segundo a lei,

cabe à comissão "deliberar, em última e definitiva instância, sobre os casos em que a

atividade é potencial ou efetivamente causadora de degradação ambiental, bem como sobre a

necessidade do licenciamento ambiental".

Para a Procuradoria Geral da República, essa competência fere o artigo 23 da

Constituição, segundo o qual é competência comum da União, dos Estados, do Distrito

Federal e dos municípios proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de

suas formas.

Page 97: Revista Ciência Dinâmica - 2ª Edição

97

Pela interpretação da CR/88, os Estados e Municípios não precisam pedir

autorização à União para aplicar os instrumentos de gestão de risco presentes na lei 6938/81.

Atribuindo à CTNBio a competência para analisar quando a liberação de um

determinado OGM no meio ambiente necessitará de Estudo Prévio de Impacto Ambiental, a

Lei de Biossegurança condiciona o Poder Público às decisões da comissão. Estando vinculado

a essas decisões, há um desrespeito à competência comum atribuída pela CR/88. Ora, as

competências constitucionais outorgadas aos entes federativos não podem ser alteradas por lei

ordinária.

Assim ensina o professor Paulo Affonso Leme Machado:

As atribuições e obrigações dos Estados e dos Municípios só a Constituição Federal pode estabelecer. O arcabouço do país tem que estar estruturado na lei maior que é a Constituição. Se leis ordinárias, se decretos, portarias e resoluções, por mais bem intencionados que sejam, começarem a criar direitos e obrigações para os entes federados, subvertem-se totalmente os fundamentos da Federação. (MACHADO, 2007a, p. 110)

É evidente a inconstitucionalidade desses dispositivos. A Lei de Biossegurança

não tem o condão de suprimir a competência comum dos entes federados, atribuindo a um

órgão administrativo a discricionariedade acerca da exigência ou não de Estudo Prévio de

Impacto Ambiental.

Além disso, a Lei de Biossegurança estaria fragmentando o Sistema Nacional do

Meio Ambiente (SISNAMA) e o processo de licenciamento ambiental, já que a dispensa do

EIA fica a cargo de um órgão administrativo alheio ao SISNAMA. A CTNBio está vinculada

ao Ministério da Ciência e Tecnologia. Com a competência privativa da CTNBio, a lei retira

do IBAMA a competência para analisar as implicações da liberação de OGMs, condicionando

o licenciamento a um parecer da CTNBio.

A Procuradoria Geral da República argumenta ainda que a lei suspende a eficácia

da Lei de Política Nacional do Meio Ambiente e anula a competência normativa do Conselho

Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), ao condicionar o EIA a parecer da CTNBio.

O segundo ponto combatido pela ADIn 3526 refere-se à não aplicação do

princípio da precaução. A Lei 11.05/05 desconsidera o princípio e dispensa, em decisão

unilateral em última e única instância a realização de Estudo Prévio de Impacto Ambiental.

Na verdade, o que deve nortear a decisão do Poder Público sobre a necessidade do

EIA é a natureza da atividade. Se for potencialmente poluidora, não há qualquer

discricionariedade. A realização do Estudo é obrigatória, conforme disposição constitucional.

Page 98: Revista Ciência Dinâmica - 2ª Edição

98

A ADIn menciona também o desrespeito ao princípio democrático. A Lei de

Biossegurança exclui a participação da sociedade civil de todo o processo decisório com

relação aos OGMs. Seria imprescindível a realização de audiências públicas para garantir a

efetivação da democracia participativa.

Por fim, a ADIn alega que a Lei 11.105/05 viola a coisa julgada e desrespeita o

princípio da independência e harmonia entre os poderes. Ao entrar em vigor, a lei previu que

os OGMs até então autorizados pela CTNBio poderiam ser comercializados normalmente.

Com isso, desrespeitou as decisões judiciais proferidas à época sobre a matéria, por exemplo

aqueles que proibiram o plantio da soja RR sem a realização de EIA.

Tanto o pedido liminar quanto o mérito aguardam julgamento do Supremo.

Em outubro de 2009, o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, enviou ao

STF parecer na ADIn (PG nº 127719/2009). O parecer, que será analisado pelo ministro Celso

de Mello, relator da ação no STF, foi feito pela vice-procuradora-geral da República, Deborah

Duprat, reiterando os fundamentos da ação, pugnando por seu conhecimento e posterior

procedência. Para Duprat, a natureza da atividade desenvolvida é que seria capaz de definir a

obrigatoriedade do EIA e não o arbítrio do poder público.

Se ela é potencialmente causadora de significativo impacto ambiental, a sua realização é obrigatória, não podendo, de nenhuma maneira, ser afastada a competência do órgão ambiental, de exigir do empreendedor ou potencial poluidor o EIA, como instrumento de controle preventivo de danos ambientais em larga escala, declarou. (NETLEGIS, 2009)

O julgamento da ADIn 3526 será fundamental para definir o rumo da

engenharia genética no Brasil. É inadmissível uma legislação cheia de lacunas sobre um

assunto tão importante. Mais ainda, é absolutamente intolerável o desrespeito à Constituição

por motivos meramente políticos e econômicos.

Conclusão

Conforme se pôde analisar na presente pesquisa, a influência política na legislação

brasileira é latente. A sociedade perdeu a capacidade de controlar os efeitos do seu próprio

desenvolvimento. As normas de biossegurança estabelecidas pela lei 11.105/05 contrariam de

forma brusca a proposta constitucional da construção de um Estado de Direito Ambiental.

Essas normas, criadas propositalmente para serem facilmente contornadas,

impedem não só a efetiva proteção do meio ambiente, mas também retiram qualquer

Page 99: Revista Ciência Dinâmica - 2ª Edição

99

possibilidade de democratização do processo decisório em relação à gestão de riscos

ambientais.

Os riscos passaram a ser simplesmente desconsiderados, justificados pelo

argumento da necessária continuidade do “progresso”. A normatização passou a ser

meramente simbólica.

Em verdade, um dos grandes desafios do Direito Brasileiro no século XXI é

regulamentar de forma correta os processos tecnológicos que vêm ocorrendo e se

intensificando a cada dia. Não somente considerando a incerteza de seus resultados como um

empecilho ao seu regramento, mas devido à cultura da sociedade em desejar um

desenvolvimento a qualquer custo, sem se preocupar com as consequencias para o meio

ambiente e sobretudo para as futuras gerações.

É visível que a discussão acerca da obrigatoriedade da realização do EIA quando

se trata de organismos geneticamente modificados não se trata de uma discussão meramente

jurídica, na busca de interpretar o art. 225, §1º, IV da CR/88. Trata-se de uma guerra travada

em âmbito político, entre grupos econômicos de forte influência no país.

Diante desse tipo de pressão: do sistema capitalista, da ordem científica e da

sociedade irracional, cabe ao jurista ser audacioso o suficiente para assegurar acima de tudo, a

soberania da Constituição Federal, norteadora de toda a ordem jurídica e política brasileira.

Não se deixar amedrontar pela tendência à desordem a que a sociedade está adstrita, numa

ansiedade desenfreada. Pelo contrário, ter a destreza necessária para controlar esses impulsos,

em defesa da Ordem Constitucional.

No entanto, para que esse processo seja efetivo, é necessária a mobilização de

todos os segmentos sociais, embutindo de forma eficiente uma consciência ecológica, que

permita a compreensão do verdadeiro significado do famigerado desenvolvimento

sustentável.

Essa consciência deve partir da premissa de que a Constituição Federal, lei maior

do ordenamento jurídico brasileiro, impôs aos cidadãos e ao poder público direitos e deveres

relacionados à preservação do meio ambiente, e instituiu princípios que devem nortear

qualquer tipo de processo decisório, para que se possa chegar a um desenvolvimento mais

consciente e menos capitalista.

Não precisamos lutar contra a tecnologia. Devemos apenas cuidar para que seus

impactos sejam atenuados.

Page 100: Revista Ciência Dinâmica - 2ª Edição

100

Referências

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alterações adotadas pelas Emendas Constitucionais n. 1/1992 a 30/2000 e Emendas

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sobre Biossegurança da Convenção sobre Diversidade Biológica. Disponível em <

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Decreto/D5705.htm >.

BRASIL. Decreto n. 4680, de 24 de abril de 2003. Regulamenta o direito à informação,

assegurado pela Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990, quanto aos alimentos e ingredientes

alimentares destinados ao consumo humano ou animal que contenham ou sejam produzidos a

partir de organismos geneticamente modificados, sem prejuízo do cumprimento das demais

normas aplicáveis. Disponível em <

http://www.planalto.gov.br/ccIVIL_03/decreto/2003/D4680.htm>.

BRASIL. Lei n. 11.105 de 24 de março de 2005. Regulamenta os incisos II, IV e V do § 1o do

art. 225 da Constituição Federal, estabelece normas de segurança e mecanismos de

fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados – OGM e

seus derivados, cria o Conselho Nacional de Biossegurança – CNBS, reestrutura a Comissão

Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio, dispõe sobre a Política Nacional de

Biossegurança – PNB, revoga a Lei no 8.974, de 5 de janeiro de 1995, e a Medida Provisória

no 2.191-9, de 23 de agosto de 2001, e os arts. 5o, 6o, 7o, 8o, 9o, 10 e 16 da Lei no 10.814, de

15 de dezembro de 2003, e dá outras providências. Disponível em <

http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/_Ato2004-2006/2005/Lei/L11105.htm>.

BRASIL. Lei n. 6.938 de 31 de agosto de 1981. Dispõe sobre a Política Nacional do Meio

Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências.

Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6938.htm >.

BRASIL. MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. Resolução CONAMA Nº 001, de 23 de

janeiro de 1986. Disponível em <

http://www.mma.gov.br/port/conama/res/res86/res0186.html >.

BRASIL, Lei 8.974 de 5 de janeiro de 1995. Regulamenta os incisos II e V do § 1º do art. 225

da Constituição Federal, estabelece normas para o uso das técnicas de engenharia genética e

liberação no meio ambiente de organismos geneticamente modificados, autoriza o Poder

Executivo a criar, no âmbito da Presidência da República, a Comissão Técnica Nacional de

Biossegurança, e dá outras providências. Disponível em <

http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/LEIS/L8974.htm >.

Page 101: Revista Ciência Dinâmica - 2ª Edição

101

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http://www.leidireto.com.br/lei-10688.html>.

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Page 102: Revista Ciência Dinâmica - 2ª Edição

102

Anencefalia e interrupção da gravidez

Adriano Marteleto Godinho1 RESUMO: O presente artigo pretende explorar questão da interrupção terapeutica da gestação de feto anencéfalo em seus aspectos constitucionais e processuais. Palavras chave: anencéfalo, constituição, processo ABSTRACT: This article aims to explore the issue of therapeutic interruption of pregnancy of an anencephalic fetus in its constitutional and procedural aspects. Keywords: anencephalic, constitution, procedure

Em breve, o Supremo Tribunal Federal (STF) terá de decidir uma das mais

polêmicas matérias já submetidas ao crivo do Poder Judiciário brasileiro. Trata-se da ação de

Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 54, promovida em 2004

pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), com o objetivo de ver

reconhecida a legalidade da interrupção da gravidez nos casos em que ficar constatada a

anencefalia do embrião, independentemente da necessidade de autorização judicial ou de

qualquer outra forma de permissão específica do Estado.

Segundo indica a própria petição inicial, a anencefalia é definida na literatura

médica como a má-formação fetal congênita por defeito do fechamento do tubo neural

durante a gestação, de modo que o feto não apresenta os hemisférios cerebrais e o córtex,

havendo apenas resíduo do tronco encefálico. Em outros termos, a anencefalia implica grave

comprometimento da atividade cerebral, o que inviabiliza a vida extra-uterina. Embora haja

relatos esparsos sobre seres humanos anencefálicos que sobreviveram alguns dias fora do

útero materno, o prognóstico nessas hipóteses é de sobrevida de algumas horas após o parto,

se se chegar a tanto.

A proposta da CNTS, que conta com a adesão de certos setores da sociedade e que

já vem sendo aceita por maciça jurisprudência, embora não uniforme, consiste em ampliar o

rol das circunstâncias que permitem à gestante interromper voluntariamente a gravidez, hoje

restrito a duas hipóteses: quando a gestação decorrer de estupro (aborto sentimental ou

humanitário) ou quando gerar graves riscos à vida da própria mãe (aborto terapêutico). Na

1 Advogado, Professor Universitário, Mestre em Direito Civil pela UFMG, Doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade em Lisboa.

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103

primeira situação, protege-se a integridade psíquica da mãe; na derradeira, tutela-se sua

integridade física, o que justifica a excepcional permissão para a prática abortiva nessas

circunstâncias.

Precisamente porque a lei brasileira não contempla a possibilidade de haver a

interrupção voluntária da gravidez em casos de anencefalia fetal, atualmente a prática somente

é admitida se houver prévia autorização judicial, sendo exatamente este o ponto crítico da

questão: enquanto não for proferida a decisão de mérito nos autos da ADPF n. 54, os

interessados deverão promover ações judiciais específicas, cujas decisões podem caminhar no

sentido de permitir ou de recusar o pedido. A incerteza que prepondera sobre a matéria é

tamanha que, no próprio STF, o ministro Marco Aurélio chegou a conceder liminar para

permitir a operação terapêutica do parto de fetos anencefálicos, mas, pouco depois, os demais

ministros da Corte, por maioria, decidiram revogar a medida, tendo sido determinada a

suspensão de processos e decisões relacionadas ao caso ainda não transitadas em julgado.

É certo que a questão enseja profundas discussões na sociedade, havendo também

dissensões, inclusive entre grupos religiosos. Alguns deles, como a Conferência Nacional dos

Bispos do Brasil (CNBB), a Igreja Universal do Reino de Deus, a Associação Pró-Vida e Pró-

Família, o grupo Católicas pelo Direito de Decidir e a Associação Médico-Espírita do Brasil,

chegaram a se manifestar nas audiências públicas promovidas pelo STF sobre o tema. Entre as

vozes que se pronunciam contra a medida, destaca-se o parecer do padre Luiz Antônio Bento,

da Comissão de Bioética da CNBB, que defende que “a criança, mesmo com anencefalia, não

perde a sua dignidade, é um ser humano, é como se fosse um paciente que precisa de

cuidados”. Além disso, o padre afirmou que a defesa da continuidade da gestação não

significa que a CNBB seja insensível ao sofrimento da mãe, “mas o sofrimento de um não

pode ser motivo para a eliminação da vida de outro”. Também se pronunciaram profissionais

da saúde, destacando-se o parecer do médico Everton Neves Pettersen, da Sociedade

Brasileira de Medicina Fetal, que afirmou existir capacidade técnica para diagnosticar a

anencefalia com 100% de segurança, já no primeiro trimestre de gestação, mais precisamente

a partir da 8ª semana.

Por sua vez, a Procuradoria Geral da República já manifestou parecer favorável à

constitucionalidade da interrupção voluntária da gravidez no caso de anencefalia fetal,

sugerindo que o STF dê interpretação conforme a Constituição aos artigos 124, 126, caput, e

128, I e II, do Código Penal, para declarar que tais dispositivos não criminalizam ou não

impedem a medida. Segundo os termos do parecer, se a doença for diagnosticada por médico

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104

habilitado, deve ser reconhecido à gestante o direito de se submeter ao procedimento, sem a

necessidade de prévia autorização judicial.

Entre os argumentos lançados na peça que inaugurou o processo, compete

destacar aqueles que formam o núcleo da discussão. Para os defensores da tese suscitada pela

entidade promovente, o alto índice de óbitos intra-útero dos fetos anencefálicos é

potencialmente perigoso, podendo gerar danos à saúde da gestante e até risco de vida. Além

disso, manifestou-se que a anencefalia é incompatível com a vida extra-uterina, que pode

durar, quando muito, por um curto período, sendo inevitavelmente fatal em 100% dos casos.

Exatamente em função disso, a cessação da gestação nesses casos não configuraria uma

espécie de aborto, tal como tipificado no Código Penal, pois este ato se caracteriza pela

interrupção da gravidez com a conseqüente morte do feto. Somente cabe falar em aborto,

portanto, nos casos em que a morte deriva diretamente da intervenção médica, sendo

imprescindível tanto a comprovação da relação causal como a potencialidade de vida extra-

uterina do feto. Não é, pois, o que ocorre na antecipação do parto de um feto anencefálico, já

que a inviabilidade do nascituro decorre da sua própria condição, e não exatamente da

intervenção médica, que, por isso, vem sendo denominada interrupção terapêutica do parto.

Num primeiro momento, todo ato que seja capaz de atentar contra a vida humana,

seja em relação aos nascituros ou às pessoas já nascidas, deve ser proclamado ilícito. Mas há

que empreender particular discussão quanto à gestação de nascituros anencefálicos. Como já

se disse, a lei penal brasileira apenas deixa de punir a interrupção da gravidez em hipóteses de

estupro ou de risco à própria vida da mãe. Não há na lei permissão ao aborto por

malformações do feto, embora se tenha admitido, embora ainda com notável resistência, como

já visto, a tese de que o anencefálico, por sua inviabilidade, poderia ser suprimido pela

antecipação terapêutica do parto.

De fato, há valorosas razões que permitem crer que a interrupção da gestação de

nascituros anencefálicos possa ser considerada lícita. Em primeiro lugar, veja-se que, nesta

hipótese, a exemplo do que se passa no aborto terapêutico, tem-se em mira a preservação da

vida e da integridade física e psíquica da mãe, não se configurando qualquer abertura à

excessiva permissividade de se deixar ao livre critério da gestante optar caprichosamente pela

cessação da gravidez. Além disso, devem ser exigidas provas da inviabilidade da vida extra-

uterina, o que exige a constatação médica de que é mesmo irreversível o quadro de

anencefalia.

Page 105: Revista Ciência Dinâmica - 2ª Edição

105

Também não pode passar à margem destas condiderações o fato de a Lei n.

9.434/97, que regulamenta os transplantes de órgãos no Brasil, prever a retirada post mortem

de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano quando restar diagnosticada a morte encefálica

do paciente2. Daí decorre que o legislador considera que a falência cerebral é sinônimo de

morte biológica. Se é permitida a retirada de órgãos da pessoa acometida de morte encefálica,

tal parece reforçar a defesa da legitimidade da interrupção da gravidez em casos de

anencefalia, uma vez que o feto já se apresenta desprovido de atividade cerebral.

Exatamente por ser excessivo impor à mulher ter de levar adiante a gestação,

mesmo quando se tenha provas da anencefalia do nascituro, defende-se que se conceda a ela e

também ao pai a prerrogativa de optar pela interrupção da gravidez, o que, à falta de previsão

legal e de pronunciamento jurisprudencial uniforme, somente é viável, nos dias que correm,

mediante prévia e específica autorização judicial. Registre-se, entretanto: apenas se cogita

desta hipótese quando for constatada a inviabilidade do feto, não se colocando a questão

quando estiverem em causa deformações físicas ou mentais que não comprometam a

existência extra-uterina do nascituro, sob pena de se consagrar a execrável noção da eugenia,

isto é, do “melhoramento genético” das pessoas, que supostamente conduziria ao

“aperfeiçoamento da raça humana”. Nestas situações, não cabe conferir a quem quer que seja

o direito à cessação da gestação, por inexistir pretensão digna de tutela e apta a justificar o

ato.

Em 31 de julho de 2009, o STF noticiou que o ministro Marco Aurélio, relator da

ADPF 54, preparou seu voto e o tema deve ser incluído em pauta para julgamento ainda neste

segundo semestre deste ano. Como atualmente o procedimento só pode ser legítimo se

decorrer de prévia autorização judicial, subsiste certa instabilidade, já que não há consenso

jurisprudencial sobre a matéria. Por isso, é primordial que a questão receba a devida atenção e

que não tarde a decisão. Enquanto não há regulamentação sobre o tema, continua aberto o

debate, que envolve não apenas juristas, médicos e religiosos, mas a sociedade como um todo.

2 Eis os precisos termos do art. 3º da Lei n. 9.434/97: “A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina”.

Page 106: Revista Ciência Dinâmica - 2ª Edição

106

A formação da identidade do sujeito constitucional

Henrique Weil Afonso1

Ingrid Freire Haas2

RESUMO: O objetivo deste trabalho é apresentar as principais características da formação da identidade do sujeito constitucional. Compreendida como uma nova forma de abordagem do constitucionalismo contemporâneo, a construção da referida identidade busca conciliar as diferentes identidades presentes no meio sócio-político para forjar uma identidade constitucional cara à história constitucional de cada povo. Para tanto, faz-se necessária a compreensão dos mecanismos de formação do sujeito constitucional: a negação, a metáfora e a metonímia. A interação destes elementos confere ao sujeito constitucional formatação única, porém mutável e nunca completa, devendo ser ampla para contemplar as peculiaridades das sociedades multiculturais. Os desafios da ordem jurídica internacional contemporânea também são considerados, uma vez que a identidade do sujeito constitucional transcende as fronteiras nacionais e se projeta em nível transnacional. Palavras-chave: identidade; constitucionalismo; multiculturalismo. ABSTRACT: The aim of this essay is to present the main features of the formation of the constitutional subject. Taken as a new way of approaching contemporary constitutionalism, the construction of the mentioned identity seeks to reconcile the varying identities within the social-political environment in order to forge a constitutional identity that reflects the constitutional history of a given people. This undertaking requires the understanding of the mechanisms of the formation of the constitutional subject: negation, metaphor and metonymy. The interaction of these elements renders constitutional subject a unique formation, albeit mutable and incomplete. It should be ample enough as to contemplate the peculiarities of multicultural societies. The challenges of the contemporary international legal order are also considered, for the constitutional identity transcends national borders and projects itself in transnational level. Keywords: identity; constitutionalism; multiculturalism.

Introdução

A análise do discurso desconstrutivo da negação, da metáfora e da metonímia

proporciona aos estudiosos da ciência do Direito novas perspectivas de abordagem sobre o

constitucionalismo. Esta tarefa é desempenhada através da reapropriação crítica da história

1 Graduado em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Estudante visitante do Colorado College (EUA, 2005) e da University of Westminster (Inglaterra, 2007). Mestrando em Direito Público Internacional pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. 2 Advogada. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2007) e Graduada em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (2003). Mestranda em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

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constitucional de um povo para a contextualização concretizante do Direito Constitucional

desse mesmo povo.

Não há espaço público sem respeito aos direitos privados à diferença, nem direitos

privados que não sejam, em si mesmos, destinados a preservar o respeito público às

diferenças individuais e coletivas na vida social. De forma semelhante, não há democracia –

soberania popular – sem a observância dos limites constitucionais à vontade da maioria, pois

aí há, na verdade, ditadura; nem constitucionalismo sem legitimidade popular, pois aí, há

autoritarismo.

A Igualdade e a Liberdade de modo constitucional só podem significar a

igualdade do respeito às diferenças, pois embora tenhamos diferentes condições sociais, cor

de pele, credos, opções sexuais, etc., nós nos respeitamos como se iguais fôssemos, não

importando as diferenças. Cidadania significa a permanente reconstrução do que se entende

por direitos fundamentais, uma vez que somente o exercício da cidadania produz cidadãos.

É no contexto dos desafios do constitucionalismo contemporâneo – e do

pluralismo que lhe é inerente – que se dá a formação da identidade do sujeito constitucional.

Por um lado, a identidade constitucional de um povo deve ser fiel à tradição político-cultural e

aos objetivos da comunidade constitucional. Por outro lado, o processo de intensificação das

relações entre os povos e indivíduos experimentados nas últimas décadas introduziu novos

elementos para a formação desta identidade: a sociedade internacional busca a realização de

objetivos comuns e diversos, impondo ao constitucionalismo novos desafios.

A natureza evasiva do sujeito e da identidade constitucionais

A identidade do sujeito constitucional (constitucional subject) é ambígua, visto

que no inglês o termo subject tanto pode se referir àqueles que se sujeitam à Constituição,

enquanto súditos, quanto aos elaboradores da Constituição – aqueles que a fizeram – como

ainda à matéria que é objeto da Constituição.

Há ainda outros problemas relativos ao conceito desta identidade, que pode ser

sempre reinterpretada ou reconstruída, visto que além da natural alteração com o tempo, há as

relações com as outras identidades, como as nacionais, as étnicas e as culturais. Este encontro

Page 108: Revista Ciência Dinâmica - 2ª Edição

108

torna-se inevitável pela tensão entre o pluralismo inerente ao constitucionalismo3

contemporâneo e a tradição. Deste modo, tomando-se um país de forte compromisso

constitucional com o pluralismo religioso, a identidade constitucional deve se discernir de

qualquer identidade religiosa bem como tornar-se subserviente aos dogmas fundamentais de

qualquer religião:

A identidade constitucional é problemática porque além de permanecer distinta e oposta a outras identidades relevantes, é inevitavelmente forçada a incorporá-las parcialmente para que possa adquirir sentido suficiente determinado ou determinável. (ROSENFELD, 2003, p. 22)

Além disso, os intérpretes constitucionais não podem se despir completamente de

sua identidade nacional ou cultural:

Assim, é que a questão chave passa a ser de como a identidade constitucional pode se distanciar o suficiente das outras identidades relevantes contra as quais ela precisa forjar sua própria imagem, enquanto, ao mesmo tempo, incorpora elementos suficientes dessas identidades para continuar viável no interior de seu próprio ambiente sociopolítico. (ROSENFELD, 2003, p. 23)

Conclui-se que a identidade constitucional é o produto de um processo dinâmico

sempre aberto à elaboração e à revisão, sendo fragmentada e parcial, condenada a permanecer

incompleta e suscetível de uma maior definição. O processo de criação de uma nova

identidade constitucional requer ainda a introdução de medidas que a diferenciem da

identidade constitucional anterior, mas também projetando em direção ao futuro uma

identidade que seja capaz de ser reconhecida pelas gerações por vir (ROSENFELD, 1994).

Em síntese, a identidade constitucional só é suscetível de determinação parcial

mediante um processo de reconstrução orientado no sentido de se alcançar um equilíbrio entre

a assimilação e a rejeição das demais identidades expressas acima, ou seja, deve-se buscar

alcançar um equilíbrio em um cenário sociopolítico sempre mutante.

A posição do sujeito constitucional e a necessidade de reconstrução

O constitucionalismo moderno reconhece o contraste entre o “eu” (self) e o

“outro” em face do pluralismo que lhe é inerente. O “outro”, em um nível, pode ser a tradição

que se mantém integrada à sua ordem sociopolítica pré-moderna – o qual seria um “outro

externo”. Há ainda outro nível, que requer que um grupo que se constitua em um “eu”

3 Cabe ressaltar ainda em que ponto as emendas à Constituição ameaçam destruir a identidade constitucional, visto que varia de acordo com a experiência constitucional de cada Estado.

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coletivo reconheça grupos similares, e/ou que cada “eu” individual trate os demais indivíduos

como outros “eu”, como outras pessoas (selves), sendo considerado o “outro interno”.

O sujeito compreende que o desejo não pode ser satisfeito por objetos. O desejo

do sujeito, portanto, impulsiona o “eu” a buscar o “outro”. Assim, Rosenfeld analisa as

similaridades do sujeito e do outro a partir da teoria psicanalítica:

As avaliações da relação entre sujeito e objeto revelam o sujeito como uma carência em dois sentidos: primeiramente, na medida em que o sujeito precisa de objetos, ele é caracterizado por uma carência no sentido de ser incompleto. Em segundo lugar, o sujeito ainda não reconhecido é uma carência no sentido de não ser nada senão a negação de seus objetos. Assim, ao se separar do objeto, o sujeito surge como consciência da carência e da incompletude. (2003, p.31)

Para Hegel, ao compreender que a via para a realização não passa pelos objetos do

desejo, o “eu” volta-se para o “outro” em busca de reconhecimento4. Já segundo Lacan, a

busca da criança por sua identidade como sujeito pode ser vista como uma alienação ou

sujeição ao “outro”, a qual se dará através da linguagem que é uma imposição externa do

“outro”: “A linguagem aliena a criança ao torná-la submissa a um código imposto por outros,

um pré-requisito para se adquirir a própria identidade enquanto sujeito”. (ROSENFELD,

2003, p. 31)

Na medida em que o constitucionalismo deve se articular com o pluralismo, ele precisa levar o outro na devida conta, o que significa que os constituintes devem forjar uma identidade que transcenda os limites de sua própria subjetividade. Assim, do ponto de vista dos constituintes, a identidade do sujeito constitucional surge como um vazio, uma ausência, gerado pela distância que separa a auto-imagem própria dos constituintes daquela da comunidade política constitucional pluralista. A elaboração da Constituição pode ser considerada como uma tentativa de preencher este vazio, mediante o alcance do outro para forjar uma identidade comum enraizada em um texto constitucional compartilhado. (2003, p. 36)

Rosenfeld demonstra o exemplo dos Estados Unidos, no qual a divisão de poderes

constitui a identidade do todo dependente dos confrontos entre as identidades das várias

partes: “O federalismo deve fazer a mediação entre a identidade nacional moldada pelos

interesses federais e as várias identidades estaduais.” (ROSENFELD, 2003, p. 38)

4 Hegel lança mão da metáfora do conflito senhor-escravo para explicar o recurso do “eu” ao “outro” como forma de reconhecimento de sua própria identidade. O senhor apenas reconhece-se como “superior” ao colocar o escravo em uma posição “inferior”. Caso o escravo venha a libertar-se ou atingir uma condição de igualdade com o senhor, este não mais se reconhecerá como “superior”, perdendo parcialmente sua identidade. Em suma, o senhor – “eu” – encontra no escravo – “outro” – sua própria identidade: “[...] o senhor, sujeito ‘superior’, desvencilha-se da desagradável idéia de igualdade ao atribuir ao ‘outro’ um status inferior e usar o indivíduo ‘inferior’ como um meio para ser bem-sucedido. O escravo é forçado a trabalhar a fim de conferir liberdade à subjetividade ‘superior’ de seu senhor.” (MORRISON, 2006, p. 204)

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Ao contrário de buscarem uma auto-identidade do todo, tanto a identidade

nacional quanto a dos estados federados devem lutar por sua auto-identidade específica,

porém coerente com a comunidade política constitucionalmente estruturada no todo.

Já a Constituição Francesa de 1793, investida na supremacia do legislativo

nacional, ao contrário da Norte-Americana, promovendo a idéia de que os valores

democráticos são mais bem instituídos mediante um único poder estatal. Essa idéia segue a

concepção de Rousseau de vontade geral.

Assim, enquanto nos EUA a construção da identidade do “eu” constitucional, por

meio do governo limitado, deve respeitar as divisões entre os vários estados, na França a

unidade da auto-identidade deve se valer da vontade geral. De qualquer forma, a auto-

identidade do sujeito constitucional francês, mesmo produzido na unidade e não na divisão,

ainda requer, como no caso norte-americano, o respeito ao outro.5

Como o texto constitucional6 está sujeito a um contexto variável e passível de

constantes transformações, “[...] o sujeito constitucional precisa recorrer ao discurso

constitucional para inventar e reinventar sua identidade” (ROSENFELD, 2003, p. 40).

Contudo, é necessário ressaltar que a personificação do sujeito constitucional deve ser

evitada, ou seja, nem os constituintes e nem os intérpretes são propriamente o sujeito

constitucional.

Destarte, a identidade constitucional circula em torno das antinomias entre a

facticidade e validade, entre fatos e normas, entre real e ideal; pois o real deve ser

suplementado pelo ideal, ou seja, os fatos devem ser enriquecidos pela imaginação

contrafactual. Por isso, deve-se valer de uma construção bem como de uma reconstrução.

Rosenfeld (2003) descreve que a antinomia entre fato e norma manifesta-se pela

justaposição das normas constitucionais e os fatos sociopolíticos e históricos, bem como por

5 A respeito das mudanças nos cenários constitucionais dos EUA e da França, o autor explica a existência de “[...] um intricado processo de interação dialética entre as identidades constitucionais, os elementos estruturais constitucionais, e os vários estágios de desenvolvimento sociopolítico. Portanto, as identidades constitucionais parecem aptas a contribuir para a definição de elementos estruturais particulares e a imprimir sua marca no ambiente sociopolítico que se deparam. Igualmente, importantes mudanças no ambiente sociopolítico podem muito bem requerer ajustes ou substituições de elementos constitucionais estruturais existentes, assim como uma correspondente adaptação, transformação, ou remodelação das identidades constitucionais relevantes”. Tradução livre (ROSENFELD, 1994, p. 13) 6 O texto constitucional em questão não tem que ser necessariamente uma constituição escrita. De fato, uma constituição não escrita pode funcionar igual a uma constituição escrita desde que ambas possam ser vistas como textos que dependem de contextos para ganhar significado. (ROSENFELD, 2003, p. 40)

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meio do conflito entre uma Constituição efetivamente vigente e os requisitos normativos do

constitucionalismo.

A construção da identidade seria, por exemplo, realizada por meio das decisões

constitucionais, que devem ser justificadas e que, portanto, produzem impacto na identidade

constitucional. Exemplificando, a decisão da Suprema Corte dos EUA que em 1973

reconheceu o direito constitucional ao aborto: este ato de construção judicial resultou num

significativo impacto sobre a identidade constitucional dos Estados Unidos.

Já a reconstrução se dá pela tarefa de harmonizar os novos elementos com os

anteriores. Rosenfeld faz uso da noção de interpretação judicial reconstrutiva sugerida por

Ronald Dworkin em O Império do Direito7: a aceitação de certos princípios deontológicos –

tal como o direito de cada pessoa a igual respeito e consideração – deve se aliar aos limites

normativos inerentes ao constitucionalismo (WALKER, 2008). Tais limites normativos – o

governo limitado, o princípio do Estado de Direito e a proteção dos direitos fundamentais –

atuam na promoção do reconhecimento recíproco entre o “eu” e o “outro”, mantendo o “eu” e

o “outro” no mesmo patamar de dignidade.

O instrumental reconstrutivo do discurso constitucional: a negação, a metáfora e a metonímia

A narrativa contrafactual desempenha um duplo papel na formação da identidade

constitucional: por um lado, ela deve preencher o hiato que ilide o sujeito constitucional no

“eu” e no “outro”; por outro lado, deve dar vida ao sujeito constitucional, conferindo-lhe uma

identidade própria. A negação, a metáfora e a metonímia têm a função de selecionar, separar e

organizar os elementos pertinentes de modo a produzir um discurso constitucional dentro do

qual o sujeito constitucional possa construir sua identidade. A interação equilibrada destes três

elementos confere ao discurso constitucional um sentido determinado.

A Negação

Rosenfeld (2003) refere-se a Hegel para explicar o uso da negação na formação da

identidade do sujeito constitucional:

7 No entanto, a noção última de integridade do Direito é rejeitada por Rosenfeld, uma vez que entende que o conceito de direito como integridade é “[...] por demais amorfo para fornecer uma estrutura suficiente à imaginação contrafactual.” (2003, p. 47)

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Segundo a lógica dialética de Hegel, o sujeito primeiramente adquire a sua própria identidade mediante a negação dela não ser redutível aos objetos de seu desejo. Essa identidade inicial do sujeito, no entanto, é puramente negativa e oposicional na medida em que enfoca aquilo que o sujeito não é, sem revelar o que ele é. (2003, p. 51)

Após a etapa da negação, o sujeito passa então ao próximo estágio de evolução: a

busca de sua identidade positiva. Entretanto, a busca por uma identificação positiva resulta na

perda de sua unidade, e o sujeito “[...] aliena-se de si mesmo” (ROSENFELD, 2003, p.52). Da

negação da negação emergirá o sujeito hegeliano, “[...] tomando para si o que ele é em si”

(2003, p. 52).

Assim como o sujeito hegeliano, o estabelecimento da identidade do sujeito

constitucional é reconstruída por um processo de três estágios. No primeiro estágio, a

identidade do sujeito constitucional é a pura negação, porque se busca uma identidade

distinta, diferenciada do sujeito pré-constitucional. São características desse primeiro estágio

o repúdio ao passado pré-revolucionário; a rejeição das identidades tradicionais; a repressão à

necessidade de acolhimento de uma identidade positiva; e a exclusão de tendências agressivas

e antipluralistas (ROSENFELD, 2003, pp. 52-53).

O sujeito constitucional experimenta a si próprio como uma ausência, um hiato, e

busca preencher esse vazio mediante o desenvolvimento de uma identidade positiva. Tem-se,

assim, o segundo estágio, que é, em seu turno, marcado pela “[...] incorporação seletiva das

identidades descartadas e não por um retorno em larga escala às identidades pré-

constitucionais” (ROSENFELD, 2003, p. 53). As tradições incorporadas ao sujeito

constitucional só são invocadas na medida em que sirvam aos interesses do

constitucionalismo.

Rosenfeld (2003; 2005) concebe o processo de implementação do pluralismo8-9

como análoga ao processo de desenvolvimento do sujeito constitucional. Como o pluralismo

8 O autor analisa a doutrina liberal em oposição ao pluralismo. O liberalismo situa a igualdade como ponto central da realização do ser individualmente concebido. O pluralismo, por sua vez, enfatiza a igualdade em termos de identidades de grupos no contexto de sociedades pluralistas, mudando o foco do indivíduo para a “[...] promoção do respeito e acomodação mútuos entre tantos proponentes de concepções competitivas de bem quantos possíveis”. Tradução livre. (ROSENFELD, 2005, p. 16). 9 Na obra Just Interpretations: Law between Ethics and Politics, Rosenfeld desenvolve a tese entitulada comprehensive pluralism (pluralismo abrangente). A teoria distingue o fato de se uma determinada comunidade política é “pluralista de fato” (pluralism-in-fact), isto é, se os diferentes indivíduos ou grupos dentro desta comunidade realmente abraçam a multiplicidade de concepções de bem pelos quais competem, do fato de se nesta comunidade política deveria existir obrigação afirmativa de acomodar tantas concepções de bem presentes nesta comunidade quantas podem ser compatíveis com o princípio da igual acomodação, sendo assim definido o “pluralismo como norma” (pluralism-as-norm) (1998, pp. 200-201). A partir destas distinções, são desenvolvidas formas de interação entre as diferentes concepções de bem no interior da comunidade política, pretendendo-se fomentar, no maior alcance possível, a relação dialética entre igualdade e diferença.

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“[...] busca promover a maior diversidade possível de concepções de bem como meio para a

maximização da autonomia e dignidade [...]” (2003, p. 54), o primeiro estágio do pluralismo

deve ser um momento negativo.10 Em seguida, para evitar a autodestruição11, o pluralismo

precisa suplementar o seu momento negativo com um positivo. Neste momento, as

concepções porventura excluídas de bem serão readmitidas no universo pluralista, com a

ressalva de que as últimas não poderão ocupar a mesma posição que tinham ocupado

anteriormente à sua expulsão.

Seguindo-se a lógica da dialética hegeliana,

O sujeito constitucional, no processo de incorporação das identidades parciais que o habilitam a projetar uma imagem positiva de si próprio, certamente se alienará. Em razão de sua carência inicial de identidade positiva, o sujeito constitucional encontra-se forçado a se voltar para as outras identidades. Mas à medida que o processo de incorporação dessas últimas se desenvolve, o sujeito constitucional torna-se presa das influências externas que parecem estar além de seu controle. Assim é que a própria necessidade de adquirir uma identidade positiva leva o sujeito constitucional a um confronto entre a sobrevivência e a perda da subjetividade. Como um resultado dos ditames da lógica dialética, o sujeito constitucional deve negar a sua subjetividade para manter uma identidade. (ROSENFELD, 2003, p. 56)

Neste momento tem-se a negação da negação, isto é, nega-se a proposição de que

a busca da identidade envolve a perda da subjetividade. Deste modo, o pluralismo deve

reincorporar as concepções de bem anteriormente excluídas em seu momento positivo,

adotando-se, para tanto, uma posição ativa, pois a identidade resultante é fruto de seu próprio

trabalho. Conclui-se que “[...] a construção pelo sujeito constitucional de sua identidade

positiva não pode ser completada sem que o material bruto originalmente externo à esfera

constitucional seja submetido aos limites normativos prescritos pelo constitucionalismo.”

(ROSENFELD, 2003, p. 57).

Ainda de acordo com Neil Walker (2008), os limites normativos do

constitucionalismo não mais se restringem ao Estado. Múltiplas formas de governança

10 O recurso à negação foi usada de forma ampla e decisiva no famoso caso Dred Scott vs Sandford: “Em março de 1987, a Suprema Corte dos EUA, liderada pelo Ministro Roger B. Taney declarou que todos os afrodescendentes – tanto escravos quanto livres – não eram e nunca poderiam se tornar cidadãos dos EUA. A Corte também declarou o Ato de Missouri de 1820 inconstitucional [lei federal que determinava a emancipação de escravos levados por seus donos para território federal], legitimando a escravidão em todos os territórios. O caso perante a Corte foi Dred Scott v. Sanford. Dred Scott, um escravo que morava no livre estado de Illinois e no livre território de Wisconsin antes de se mudar de voltar ao estado do Missouri, apelou à Suprema Corte na esperança de ter sua liberdade concedida. Taney – um exímio defensor da escravidão [...] – redigiu em seu voto (majoritário) que, uma vez que Scott era negro, ele não era cidadão e portanto não tinha o direito de pleitear perante a Corte [...]”. Tradução livre (Disponível em <http://www.pbs.org/wgbh/aia/part4/4h2933.html> Acesso: 09 de junho de 2009). 11 O autor explica que se todas as concepções de bem trabalhadas pelo pluralismo são completamente opostas, a própria diversidade planejada pelo pluralismo não teria sentido (ROSENFELD, 2003).

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emergem em nível transnacional, incorporando princípios inerentes ao constitucionalismo

contemporâneo: a correta interação destes elementos e a dinâmica da relação destas instâncias

de governança com os tradicionais sujeitos de Direito Internacional constituem novos desafios

para os teóricos do direito constitucional.

Assim, a negação consiste em ferramenta essencial na negociação do espaço que

separa uma dada Constituição do universo normativo do constitucionalismo.

A Metáfora

O recurso à metáfora consiste na busca do sujeito constitucional por sua auto-

identidade positiva em meio à interação entre igualdade e diferença. Ela equivale ao conceito

de condensação de Freud12: “[...] ao combinar e organizar elementos complexos e

multifacetados em termos de similaridades, torna possível ou aguça a nossa apreensão do

local onde as genuínas identidades podem ser encontradas” (ROSENFELD, 2003, p. 62). A

condensação, porém, atua também por meio da substituição, abrindo um canal de expressão

para o material reprimido.

Rosenfeld (2003) explica que a função metafórica desempenha um papel

fundamental tanto na retórica jurídica13 quanto no discurso constitucional.

Na seara do discurso constitucional, a metáfora contribui ao acertar os pontos

cardeais de referência da ordem constitucional. Exemplificando, na máxima norte-americana

“the Constitution is colorblind” (“a Constituição é cega à cor das pessoas”), tem-se o uso da

metáfora para conferir ênfase à similaridade entre as raças, isto é, àquilo que compartilham,

colocando em segundo plano as diferenças existentes entre elas. Veda-se, portanto, o uso da

diferenças sociais como um meio de juridicamente se colocar em desvantagem as minorias

raciais oprimidas (2003, pp. 64-65).

A função metafórica, no entanto, não se restringe aos domínios do discurso

constitucional relacionados ao direito à igualdade. Outros direitos, como o direito à

12 A respeito da concepção freudiana do aparelho psíquico, explica Danilo Marcondes (2007, p. 126-127) que este deve ser entendido como “[...] composto do id (ou isso), que corresponde ao inconsciente; do ego (ou eu), a consciência; e do superego (ou supereu), a instância crítica, a autoridade externa, que inclui os valores morais. [Esta construção] revolucionou a concepção tradicional de subjetividade e de consciência, assim como a discussão sobre a origem e os fundamentos da ética, desde a consciência moral até os valores.” 13 A argumentação jurídica repousa fundamentalmente sobre o estabelecimento de analogias e similaridades (2003, p. 63).

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privacidade, também dependem em larga escala do uso da similaridade, conforme discutido

no caso Bowers v. Hardwick.14 Deste modo, “[...] o raciocínio metafórico exerce um relevante

papel na conformação dos direitos constitucionais e na definição da identidade constitucional

ao possibilitar que se alcance níveis mais altos de abstração.” (2003, p. 67).

Metonímia

Enquanto a metáfora trata da busca por similaridades, a metonímia promove

relações de contigüidade no interior de um contexto. É equivalente ao conceito freudiano de

deslocamento15, que por sua vez

[...] torna possível a expressão dos pensamentos reprimidos ao redirecionar toda a intensidade de sua carga emotiva para um alvo que guarda uma relação de contigüidade com aquele que seria mesmo o alvo se o recalcamento não o houvesse tornado acessível” (ROSENFELD, 2003, p. 68).

A função metonímica exerce um importante papel na retórica jurídica e no

discurso constitucional. Rosenfeld (2003) esclarece que a busca do sujeito constitucional por

uma identidade é equivalente à metonímia do desejo: o sujeito constitucional não pode

superar de modo pleno a experiência de si mesmo como uma ausência. A carência do sujeito

constitucional é, em última análise, o desejo insatisfeito dessa determinação completa16.

A função metonímica atua em direção oposta àquela adotada pela função

metafórica no nível dos argumentos constitucionais. Enquanto esta última aponta para as

similaridades, a metonímia conduz a uma maior contextualização. Em se tratando de direitos

constitucionais, o uso da função metonímica pode conduzir tanto à sua ampliação quanto à

14 A discussão central versava se a proteção constitucional deveria ser ou não ampliada para proteger as relações entre homossexuais adultos e capazes. Entendendo que a sodomia homossexual era tradicionalmente proibida e criminalizada, a maioria (5 votos a 4) entendeu que o sexo homossexual não era um direito constitucionalmente garantido. O fundamento desta decisão repousou em ampla argumentação histórica associada à tradição religiosa. Os votos dissidentes, por sua vez, não voltaram sua atenção para o tratamento do sexo homossexual nas diferentes culturas através da história. Pelo contrário, enfocaram as similaridades entre heterossexuais e homossexuais a partir do ponto de vista do indivíduo, tendo ambos – homossexuais e heterossexuais –, portanto, o “[...] mesmo interesse em decidir como viverão suas próprias vidas e, mais estritamente, em decidir como se comportarão em suas associações pessoais e voluntárias com seus companheiros.” (ROSENFELD, 2003, p. 67) 15 Lacan trabalha o conceito freudiano de deslocamento quando foca a metonímia como o símbolo do “[...] revoar do desejo de um objeto para outro, como a frustração decorrente da necessidade de reprimir o objeto original do desejo que conduz à busca sempre insatisfeita de objetos de desejo contíguos que dele poderiam se aproximar, sem, contudo, jamais o alcançar” (ROSENFELD, 2003, p. 68). 16 A determinação plena é impossível, uma vez que depende de uma síntese de todas as manifestações concretas passadas, presentes e futuras do lugar do sujeito constitucional no interior da ordem constitucional (ROSENFELD, 2003, p. 70).

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sua restrição, como demonstra o voto majoritário no caso Bowers v. Hardwick17. O mesmo

processo metonímico, porém, atua na implementação desses direitos: tomando como exemplo

o direito a igual tratamento, “[...] exatamente porque a igualdade requer mais a

proporcionalidade do que a simples similaridade de tratamento, é necessário contextualizar e

levar determinadas diferenças em conta.” (ROSENFELD, 2003, p. 73)

Quanto à definição da identidade do sujeito constitucional, a função metonímica

ajuda a superar a concepção desta identidade como mera relação de semelhança. Visto que a

identidade constitucional deve preencher o vazio entre o “eu” e o “outro”, cabe a ela

incorporar as diferenças através da contextualização para evitar a subordinação de uns aos

outros dentro de um mesmo regime constitucional, pois ao constitucionalismo importam o

pluralismo e a heterogeneidade.

Uma influência problemática da metonímia na formação da identidade

constitucional ocorre quando se absolutiza o deslocamento, como presente na relação entre o

Estado e religião na experiência constitucional norte-americana:

[S]e tomarmos em consideração as práticas relevantes para a matéria e a jurisprudência da Suprema Corte a respeito dos dispositivos referentes à religião, uma conclusão plausível é a de que a identidade constitucional americana, no fundo, acolhe ou endossa uma religião específica – ou, mais precisamente, um tipo específico de religião – em detrimento dos demais tipos de religião. Muito embora a jurisprudência da Suprema Corte sobre os dispositivos acerca da religião tenha sido sujeita a flutuações, quando considerada à luz das práticas institucionais prevalecentes, pode-se dizer que ele é melhor compreendida, sobretudo, como um endosso a uma influência moderada de um tipo de religião, principalmente cristã. (ROSENFELD, 2003, p. 76)

Note-se que a experiência jurisprudencial e institucional18 norte-americana, no

tocante à adoção “não-oficial” de um determinado tipo de religião, aponta para uma

identidade constitucional que não é neutra em se tratando de religião, sendo mais favorável a

determinada crença e avesso às visões atéias e agnósticas.

O discurso constitucional reconstrutivo e a relação entre a negação, a metáfora e a

metonímia

17 “[A] recusa da Suprema Corte em ampliar os direitos à privacidade da associação íntima para proteger o sexo homossexual consensual, pensou-se ser justificada pelo tradicional repúdio que conduziria à criminalização dos atos homossexuais e pela hostilidade para com a homossexualidade enraizada na tradição religiosa judaico-cristão.” (ROSENFELD, 2003, p. 72) 18 Dentre as práticas institucionais, Rosenfeld (2003) destaca o proferimento de orações por servidores públicos na abertura de uma sessão legislativa e a impressão da afirmativa “Cremos em Deus” (In God We Trust) na moeda tanto em papel quanto em metal.

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117

A negação, a metáfora e a metonímia desempenham relevante papel na

(re)construção da identidade do sujeito constitucional. Tal fato se mostra particularmente

importante no uso do duplo deslocamento, como ocorrido no caso Lynch v. Donnely, na qual a

Suprema Corte sustentou que a decoração de natal de uma cidade que incluía um presépio –

localizado no coração de um bairro comercial – não violava a Establishment Clause19. Por

meio do duplo deslocamento o Estado promoveu o endosso à religião dominante: de fato, os

argumentos utilizados pelos ministros da Suprema Corte – voto vencedor – foram

[...] tanto metafóricos quanto metonímicos para estabelecer que o presépio em questão era, pelo menos em parte, desvinculado das preocupações puramente religiosas. Mediante a analogia metafórica a exibição do presépio foi equiparada a uma exposição de pinturas sacras integrantes da coleção de um museu estatal. Por outro lado, utilizando-se o foco metonímico sobre a contigüidade e o contexto, a colocação do presépio, próxima a símbolos natalinos menos religiosos ou não-religiosos, no contexto dos fins dominantemente comerciais associados aos Shopping Centers, foi feita de modo a sugerir que a principal motivação para a exibição do presépio fora comercial, e não religiosa. (ROSENFELD, 2003, p. 82)

A interação entre as três funções dá-se em variados níveis, culminando em

múltiplas combinações e intersecções. Enquanto a negação realiza a mediação entre a

identidade e a diferença, a metáfora e a metonímia revelam qual(is) identidade(s) e qual(is)

diferença(s) devem ser identificadas pela negação para a reconstrução plausível do sujeito

constitucional.

A metáfora opera mediante a fixação de relações com referência a um

determinado código, ao passo que metonímia realiza a mesma tarefa, mas adotando como

ponto de referência um contexto determinado. No entanto, “[...] para que o significado, o

sentido seja produzido, a via semântica constituída por relações metafóricas deve se cruzar

com a via construída por relações metonímicas” (ROSENFELD, 2003, p. 84).

Rosenfeld (2003) reconhece que, tendo em vista as diferenças de personalidade,

de cultura e de estilo, a função metafórica pode ser privilegiada em relação à metonímia, e

vice-versa. Tal se revela no âmbito da argumentação jurídica: o recurso à metáfora obedece ao

propósito de ampliar o alcance de uma norma jurídica vigente, enquanto que a tarefa de

19 De uma forma geral, a Establishment Clause tem o propósito de “[...] proibir o governo federal de se declarar favorável e dar apoio financeiro a uma dada religião [...]. Entretanto, não é claro se a Establishment Clause também foi criada com o objetivo de evitar o suporte estatal ao cristianismo em geral. Os defensores de uma interpretação mais branda da cláusula enfatizam que o mesmo Primeiro Congresso que propôs a Bill of Rights também abriu sua sessão legislativa com orações votou favoravelmente à alocação de verbas para o estabelecimento de missões cristãs em terras indígenas. Por outro lado, os defensores de uma interpretação bem mais ampla indicam os escritos de Thomas Jefferson e James Madison sugerindo a necessidade de se estabelecer um “muro de separação” (wall of separation) entre Igreja e Estado”. Tradução livre. (Disponível em <http://www.law.umkc.edu/faculty/projects/ftrials/conlaw/estabinto.htm> Acesso em 10 junho 2009)

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118

limitar a abrangência da norma é desempenhada pela função metonímica. De um modo geral,

os processos metafóricos e metonímicos se cruzam em autêntico e contínuo processo

dialético. Em um nível mais concreto, o referido processo promove o equilíbrio entre o pólo

da identidade e o pólo – contrário – da diferença.

Essa interação revela-se presente, por exemplo, nos direitos constitucionais à

igualdade. Partindo-se do pressuposto de que existe uma tensão dialética entre identidade e

diferença, tanto esta quanto aquela podem ser convocadas para tornar os direitos de igualdade

mais inclusivos – como no caso do processo metafórico que desemboca em uma identidade

para além da questão racial – ou mais excludentes – como na desconsideração das diferenças

lingüísticas em uma comunidade política dividida em um grupo lingüístico majoritário e outro

minoritário, produzindo vantagens20 aos membros do grupo majoritário.

Tratando a evolução dos direitos à igualdade, Rosenfeld (2003; 2005) os concebe

como se desenvolvendo em três distintos estágios. O primeiro estágio é marcado pela forte

ênfase na correlação entre a desigualdade e as diferenças. O segundo estágio compreende a

correlação entre identidade e igualdade, e é alcançado lançando-se mão de extensos processos

metafóricos. Já o terceiro estágio caracteriza-se por uma igualdade mais envolvente que leva

em conta as diferenças sem, no entanto, explorá-las para fins de dominação. A passagem de

um estágio ao outro deve ocorrer sem que se perca de vista a identidade anterior. Assim, a

igualdade como diferença do terceiro estágio se apóia nas múltiplas formas da identidade

metafórica (segundo estágio) e da diferença metonímica: “[...] cada passo deve ser medido

para equilibrar metáfora e metonímia de sorte a evitar o duplo perigo da identidade por

demais restritiva e da diferença insuficientemente delimitada”. (p. 90).

A questão central levantada pelo autor é a seguinte:

[se] todas as palavras suscetíveis de substituição ao longo da via metafórica têm o mesmo valor de troca (exchange value), o problema é saber o que faz com que alguns desses termos tenham um valor de uso maior do que o de outros? (ROSENFELD, 2003, p. 90)

As identidades e diferenças que devem figurar no projeto de reconstrução

constitucional são filtradas pelos limites estruturais impostos por uma ordem constitucional,

assim como pela bagagem sociocultural da forma política relevante (polity). Neste contexto,

deve-se compreender o papel desempenhado pelo Direito Constitucional em uma ordem

jurídica democrática.

20 “Assim, se todo assunto governamental deve ser conduzido no idioma da comunidade lingüística majoritária, a igualdade de oportunidade para competir na seleção de empregos governamentais pode muito bem resultar em uma desvantagem para o grupo lingüístico minoritário.” (ROSENFELD, 2003, p. 87)

Page 119: Revista Ciência Dinâmica - 2ª Edição

119

Uma vez que o Direito Constitucional é Direito, ele também é limitador e

alienante, sendo predominantemente experienciado como coercitivo. Ocorre, porém, que o

mesmo Direito Constitucional também contribui para a auto-afirmação e para a emancipação

do sujeito constitucional, pois pode se sobrepor a leis democraticamente promulgadas:

[...] além de ser coercitiva como a lei, a Constituição é, a um só tempo, coercitiva e emancipatória: ela obriga e se impõe coercitivamente a todos os que sob ela venham a se encontrar enquanto membros do corpo legislativo soberano [o povo]; e, à medida que eles se tornem obrigados a obedecer os ditames das leis corretamente promulgadas, ela contribui para a emancipação dos membros desse mesmo corpo. (ROSENFELD, 2003, p. 92)

Uma vez que a identidade constitucional envolve várias reconciliações ou

equilíbrios – entre o “eu” e o “outro”, a identidade e a diferença, a imposição coercitiva e a

emancipação, a herança sociocultural e sua renovação – conclui-se que “[...] os aspectos mais

privilegiados ao longo da via metafórica e da metonímica serão mais provavelmente os mais

adequados [...] para se alcançar a maioria, senão a totalidade, desses objetivos”

(ROSENFELD, 2003, p. 93). Assim se constitui a sobredeterminação21 na teoria freudiana,

que na doutrina norte-americana encontra como equivalente a tradição do devido processo

legal.

A tradição, por sua vez, é importante em todos os cenários constitucionais

modernos. No interior do esquema da reconstrução dialética, a negação da tradição (primeiro

estágio) e a negação da negação (segundo estágio) representam dois momentos lógicos

sucessivos, apesar de que, na prática constitucional, tais momentos podem operar de forma

simultânea.

Rosenfeld (2003) explica que os direitos constitucionais à liberdade são

contratradicionais: consubstanciam tanto pretensões à liberdade em uma comunidade política

democrática quanto afirmações do direito de discordar das normas e valores sustentados pela

maioria. A liberdade constitucional não pode ser ilimitada: encontra limites estruturais

inerentes ao constitucionalismo e à ordem constitucional e também limites derivados da

herança sociocultural da comunidade política. Por outro lado, os direitos à liberdade são

representados no texto constitucional por meio de enunciados amplos e gerais, dando ensejo a 21 Rosenfeld (2003, p. 94) explica este conceito através de um exemplo fornecido pelo próprio Freud: “Uma mulher com tendência ao vômito histérico, uma sintonia que possibilita que desejos contraditórios encontrem uma saída expressiva (embora inconsciente). Um dos desejos dessa mulher era o de se engravidar o máximo possível do máximo de homens possível, o outro, era o contradesejo punitivo de ser tão pouco atraente que nenhum homem a desejasse. O vômito simboliza ambos os desejos contraditórios por meio da substituição e do deslocamento. Ao longo da via metafórica, o vômito tornou-se um substituto para a feiúra, por outro lado, na via metonímica, o vômito deslocou a gravidez (com a qual ele se associa intimamente através do enjôo matinal). O vômito pode se destacar como um pivô a conjugar os dois desejos contraditórios ao longo tanto da via metafórica quanto da metonímica.”

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120

interpretações das mais diversas e até mesmo contraditórias. Portanto, “[a] identidade dos

direitos à liberdade sob a cláusula do Devido Processo pode-se dizer, bastante literalmente,

consubstanciam uma ausência, um hiato, um lack, somente suscetível de determinação em

termos de conteúdo por meio da reconstrução” (p. 98).

O processo de construção da identidade constitucional envolve – talvez este seja

seu aspecto mais significativo – lidar com a tradição pré-constitucional. A Constituição

pretende ser contratradicional na medida em que representa um rompimento com a tradição

pré-constitucional; este rompimento, porém, não é completo, uma vez que a Constituição

freqüentemente realiza um retorno parcial a determinadas tradições. A nova tradição – que

constitui o conteúdo da identidade constitucional – vincula-se às tradições pré-existentes

mediante o estabelecimento de conexões metafóricas e metonímicas. Assim,

A determinação de coordenadas adequadas ao longo dos eixos metafórico e metonímico com vistas a fundamentar uma tradição a ser incorporada nos Due Process liberty rights depende de vários fatores distintos. Em primeiro lugar, é preciso que a tradição em questão não possa subverter ou ameaçar a contradição que sustenta a ordem constitucional. Em segundo lugar, é necessário que essa tradição não possa violar ou enfraquecer os limites estruturais inerentes ao constitucionalismo. Em terceiro lugar, essa tradição deve se prestar ao estabelecimento de um vínculo pós-fático plausível com uma tradição (pré-constitucional) pré-existente. E em quarto lugar, é preciso que ela seja suscetível de ser amplamente aceita como válida por uma maioria expressiva no interior da comunidade política (polity) [...] a identidade constitucional se desenvolve e se reinventa – ao condensar no processo de fusão conjunta de fragmentos de tradições pré-constitucionais, a contratradição constitucional e os novos elementos carentes de um lastro passado na tradição nos tipos específicos de tradição – sem abdicar de seu enraizamento em algum passado coletivo plausível. (ROSENFELD, 2003, pp. 106-107)

As peculiaridades das relações internacionais contemporâneas inserem novos

paradigmas para a formação da identidade do sujeito constitucional. O primeiro elemento a

ser considerado é a caracterização da própria ordem jurídica internacional, que se apresenta

cada vez mais fragmentada22 (KOSKENNIEMI, 2004, 2005; AFONSO, 2009) a partir da

emergência de instâncias legislativas e jurisdicionais que atuam de forma independente dos

Estados-nação e das normas gerais de Direito Internacional:

[...] a divisão da regulação internacional em filiais especializadas, referindo-se a interesses especiais e administradas por expertos técnicos. Ao invés de um único

22 Dado que este instigante tema não é objeto central deste trabalho, sugerimos os seguintes trabalhos para fins de maior aprofundamento: BURKE-WHITE, William W. International Legal Pluralism. Michigan Journal of International Law, Vol. 25, pp. 963-979, summer 2004; PAUWELYN, Joost. Bridging Fragmentation and Unity: International Law as a universe of inter-connected islands. Michigan Journal of International Law, Vol. 25, pp. 903-916, summer 2004; TEUBNER, Gunther; FISCHER-LESCANO, Andreas. Regime-collisions: the vain search for legal unity in the fragmentation of global law. Michigan Journal of International Law, Vol. 25, pp. 999-1045, summer 2004.

Page 121: Revista Ciência Dinâmica - 2ª Edição

121

direito internacional, temos hoje direito dos direitos humanos, direito ambiental, direito do comércio internacional, direito penal internacional, e assim em diante [...]regimes especiais são criados com o distinto propósito de minar ou desviar-se do direito geral. Tradução livre (KOSKENNIEMI, 2004, p. 243)

Uma ordem jurídica internacional fragmentada implica na busca de pontos de

convergência para a formação das identidades constitucionais, haja vista a multiplicidade de

desafios advindos do referido fenômeno (ROSENFELD, 2008): a construção identidade

constitucional não está restrita às fronteiras nacionais, de modo que as variadas identidades

sociais, políticas e culturais se comunicam de forma autônoma e dinâmica, dando origem a

uma multiplicidade de interações entre o “eu” e o “outro”. A busca por pontos de

convergência pode dar substratos à construção de “selves para propósitos limitados” (limited-

purpose selves), que atuam em contextos específicos ou em situações que exijam uma sintonia

por parte da sociedade internacional no trato de determinadas questões, como por exemplo, a

proteção e promoção dos direitos humanos.

Conclusão

A identidade do sujeito constitucional existe necessariamente em torno de um

hiato, de um vazio. Se por um lado esse vazio possibilita aprimoramento e aperfeiçoamento,

por outro lado pode gerar retrocessos. Igualmente, a identidade constitucional repousa na

[re]invenção da tradição. No entanto, a exata medida e forma em que determinado traço da

tradição irá ou não figurar no conteúdo da identidade constitucional dependerá de limites

estruturais, funcionais e culturais. Por meio dos processos de negação, metáfora e metonímia,

a identidade constitucional aproxima-se de maior determinação.

Dentro destes limites, a identidade constitucional jamais poderá tornar-se

definitiva, dado que não há como superar a separação entre o “eu” (self) e o outro. Esta

separação é interna – o sujeito constitucional é pluralista; na comunidade política convivem

uma pluralidade de grupos distintos – e também externa, na medida em que a comunidade

política se distingue de outras comunidades políticas. Note-se que tanto o “outro” interno

quando o “outro” externo não se limitam às fronteiras nacionais: a dialética da construção da

identidade do sujeito constitucional não encontra barreiras geográficas.23

23 O estudo do processo de globalização nos ajuda a compreender a supressão das barreiras a que se refere Rosenfeld (2003): “À medida que o domínio do “outro” interno se expande para além das fronteiras dos Estados-nações, o self pode muito bem se tornar mais incerto e inseguro em relação à identidade” (2003, p. 115). Para uma abordagem crítica da globalização e uma proposta de engajamento em um discurso multicultural inclusivo, conferir SANTOS, Boaventura de Souza. Uma concepção multicultural de direitos humanos. In: Lua Nova: Revista de Cultura e Política, volume 39, pp. 105-124, 1997.

Page 122: Revista Ciência Dinâmica - 2ª Edição

122

O contexto de transformação do Direito Internacional – que adquire uma feição

mais fragmentada, em detrimento da lógica sistêmica que predomina no âmbito do Direito

Interno – também merece atenção. Concebendo-se a ordem jurídico-política internacional

como altamente segmentada e fragmentada, a busca de pontos de convergência entre os

“outros” externos revela-se de fundamental importância para a formação da identidade

constitucional ao nível do Estado-nação.

A identidade constitucional nunca poderá ser representativa de todos os que se

encontram sob o seu âmbito, uma vez que não é possível se atingir uma posição neutra

eqüidistante de todas as diferenças – que não mais se limitam às fronteiras nacionais – que

competem para serem incluídas no interior da identidade constitucional. Destarte, conclui-se

que “[...] o melhor equilíbrio entre o self e o “outro” que o sujeito constitucional pode esperar

é aquele no qual o máximo possível de diferenças encontrem guarida na postura inclusiva em

relação ao outro interno” (ROSENFELD, 2003, p. 114).

BIBLIOGRAFIA

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Direitos Humanos como elemento unificador. Revista Eletrônica de Direito Internacional,

volume 4, pp. 53-90, 2009.

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<http://www.helsinki.fi/eci/Publications/Talks_Papers_MK.htm> Acesso: 05 maio 2008.

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Harvard, 05 de março de 2005 – Palestra. Disponível em

<http://www.helsinki.fi/eci/Publications/Talks_Papers_MK.htm> Acesso: 05 maio 2008.

MARCONDES, Danilo. Textos básicos de ética. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,

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MORRION, Wayne. Filosofia do Direito: dos gregos ao pós-modernismo. Tradução de

Jefferson Luiz Camargo. Martins Fontes: São Paulo, 2006.

ROSENFELD, Michel (ed.). Constitutionalism, Identity, Difference and Legitimacy:

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______. Just Interpretations: Law between Ethics and Politics. University of California Press,

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Research Paper No. 133 (2005). Disponível em SSRN: <http://ssrn.com/abstract=804488>

Acesso 10 maio 2009.

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pp. 519-543, 2008.

Page 124: Revista Ciência Dinâmica - 2ª Edição

124

Linguagem escrita e falada: os instrumentos de trabalho do profissional do

Direito

Marcela A. Toledo Milagres Duarte1

RESUMO: O presente artigo pretende ressaltar a importância do papel do uso da linguagem na formação do profissional do direito. Palavras chave: linguagem, profissional, direito ABSTRACT: This article aims to highlight the importance of the role of language use in training of lawyer. Keywords: language, professional, law

Vivemos numa sociedade em que as tecnologias de informação e comunicação

tomam cada vez mais espaço no dia a dia, a velocidade das trocas de informações, do

conhecimento, da interação entre indivíduos faz com que sempre nos adaptemos às novas

maneiras de se estabelecer uma comunicação efetiva que nos garanta inserção no contexto

social e profissional.

Ter conhecimento sobre a língua pressupõe alguns esclarecimentos, entre eles o

de que a língua comporta duas diferentes modalidades (SACCONI, 1998): a culta, que atende

as normatizações e modelos estabelecidos através de regras estruturais, muito utilizada em

algumas comunidades discursivas e na escrita e a modalidade popular, ou coloquial

(CEGALLA, 2003) que compreende principalmente a oralidade e todas as suas implicações

(gírias, expressões de cunho popular, dentre outras).

O profissional do Direito, enquanto indivíduo social historicamente

contextualizado e liguisticamente ativo deve ter em mente que é de extrema importância para

sua sobrevivência não só pessoal, mas (e principalmente) profissional a dominância das duas

modalidades: a oral e a escrita, pois, seu sucesso dependerá essencialmente de como ele se

expressa através da linguagem.

A maior parte dos atos jurídicos se formaliza através da modalidade escrita, o que

pressupõe a necessidade de que o profissional ligado à área jurídica se atenha às normas de

utilização da linguagem para que exponha, de forma clara, objetiva e coerente suas teses, para

1 Professora de Português Instrumental da Faculdade Dinâmica

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125

que não haja sob nenhuma forma, comprometimento das ideias, informações ou argumentos

que se deseja expor. Daí a grande necessidade de um olhar mais atento e um estudo mais

cuidadoso da Língua Portuguesa.

Não somente no tocante à redação das peças processuais, o estudo da língua e seu

conhecimento normativo se fazem necessários. A modalidade oral da linguagem, mais

especificamente aqui tratando da fala, é caracterizada muitas vezes como

“descompromissada” com o atendimento às normas da língua, visto que se levam em conta,

para que se possa fazer tal afirmação, características próprias atribuídas a ela, tais como sua

espontaneidade, informalidade e descontração (DAMIÃO; HENRIQUES, 2004).

Mesmo sabendo que a modalidade oral da língua é menos “apegada” às regras,

isso não pode fazer com que nos esqueçamos que o profissional do Direito será impelido,

inúmeras vezes, no exercício de sua profissão a se expressar verbalmente ante a um júri ou

construir uma argumentação frente ao juiz. Tais ocorrências elucidam o fato de que em

situações onde a formalidade da postura profissional é exigida, deve-se deixar de lado toda a

informalidade própria da fala para atribuir a ela, também as normas que regem a modalidade

escrita, ou seja, atendimento às normas, para que assim não haja falhas no processo do ato

comunicativo, o que resultaria, por exemplo, na perda de uma causa ocasionada por uma falha

na exposição de algum argumento em dada audiência.

Cabe, portanto, aos profissionais dessa área de atuação uma atenção especial

atribuída à língua em ambas modalidades (fala e escrita) e seu conhecimento mais detalhado,

se utilizando da adequação da linguagem à necessidade do contexto, sem se esquecer de que o

conhecimento das regras gramaticais, da semântica (estabelecimento de sentido aos

fenômenos linguísticos) e de construção dos enunciados são essenciais à boa comunicação e

consequentemente levam ao sucesso profissional.

Bibliografia

CEGALLA, Domingos Paschoal. Novíssima gramática da Língua Portuguesa. 29. ed. São

Paulo: Companhia Editora Nacional, 1985.

HENRIQUES, Antonio; DAMIÃO, Regina Toledo. Curso de Português Jurídico. 4ª ed. São

Paulo: Atlas, 2004.

SACCONI, Luiz Antônio. Nossa gramática teoria e prática. 24. ed. São Paulo: Atual Editora,

1998.

Page 126: Revista Ciência Dinâmica - 2ª Edição

126

Aplicação das cláusulas especiais do contrato de compra e venda ao

contrato de permuta

Elianderson Marçal Viana Alexandre de Sousa Melo

Helimar Fialho Guimarães Mirene Aparecida Soares

Aline Fialho Martins1 RESUMO: O atual Código Civil, vigente a partir de 2002, quanto ao contrato de compra e venda, além de prescrever as linhas gerais de sua feitura, o direcionamento para celebração do negócio jurídico, como adendo, fez constar as denominadas clausulas especiais que em última análise visam conceder às partes uma garantia, uma preferência, uma segurança, enfim, um direito a ser resguardado para consubstanciação eficaz, escorreita e justa do negócio. A partir de então, tratamos de analisar a aplicabilidade das retromencionadas clausulas ao contrato de permuta, considerando sua viabilidade, dentro do que prescreve o Código Civil de 2002, a respeito desta espécie de negócio jurídico. Palavras chave: compra e venda, cláusulas especiais, contrato de permuta, aplicabilidade. ABSTRACT: The current Civil Code, in force since 2002 for the contract of sale, beside to prescribe the outlines of its structure, the direction toward the transaction took place, as an addendum, noted in the so-called special clauses that ultimately aim to give the parties a guarantee, preferably, a security, in short, a right to be safeguarded for shaping efficient, smoother and fair business. Thereafter, we analyzed the applicability of the contract clauses retromencionadas exchange, considering its viability within the prescribing the Civil Code of 2002, regarding this kind of legal business.

Introdução

Inicialmente, convém salientar, que o contrato de permuta foi um instrumento

amplamente utilizado pelos povos primitivos que realizavam suas transações à base da troca

de produtos.

Com o advento da moeda, o contrato de troca cedeu lugar ao contrato de compra e

venda, embora ainda encontre previsão expressa em nosso atual Código Civil mais

precisamente no artigo 533.

Não obstante as conseqüências jurídicas acarretadas por cada um desses negócios

aplicam-se à troca as disposições referentes à compra e venda, observadas as exigências

legais.

1 Acadêmicos do Curso de Direito da Faculdade Dinâmica

Page 127: Revista Ciência Dinâmica - 2ª Edição

127

Adiante, tratamos de analisar a possibilidade da inserção de algumas clausulas

especiais próprias do contratado de compra e venda ao contrato de troca.

Análise da aplicabilidade das cláusulas especiais ao contrato de permuta.

A cláusula de retrovenda reserva ao vendedor o direito de reaver no prazo limite

de três anos o imóvel objeto de alienação, restituindo o preço mais as despesas realizadas pelo

comprador. É o que reza o artigo 505 do CC/02. Importa ressaltar que tal dispositivo faz

referência expressa a coisa imóvel. No que tange ao contrato de permuta, este poderá ter como

objeto coisas distintas e quantidades diversas: móveis e imóveis, vários móveis dado em troca

de um bem imóvel, possibilidade da presença de bens fungíveis, enfim, há um sem número de

coisas que podem figurar como objeto desta transação. Assim, ao que parece, a inclusão desta

clausula no contrato de permuta ensejaria o benefício de apenas uma das partes. Estaria

comprometida a própria segurança do negócio, uma vez que, a depender da natureza do que

fosse dado em troca seria necessário que a coisa até mesmo permanecesse inutilizada por

algum tempo até que se esgotasse o lapso temporal e decaísse o direito garantido por esta

clausula especial. Aduz-se, portanto, que não seria razoável sua aplicação ao contrato de

permuta ainda que a transação tivesse por objeto coisas imóveis, pois, a quem seria concedido

o direito de reaver o bem entregue?

Já na clausula denominada venda a contendo, a realização do negócio só se

efetiva após a manifestação do agrado, por parte do adquirente, a respeito da coisa sob pena

de não considerar-se perfeita a venda. Trata-se, portanto, de uma condição suspensiva. Esta

seria a inteligência do artigo. O contrato de troca, ao acolher a clausula em questão, insere no

negócio celebrado a necessidade de um ideal de satisfação e agrado, visado por ambas as

partes, quando na celebração do contrato. Assim, resta induvidosa a questão de os

contratantes convencionarem que o negocio somente será considerado perfeito a partir do

momento em que ambas as partes expressarem contentamento com a coisa recebida em troca.

Parece-nos razoável a aplicação da clausula em tela.

Também na venda sujeita a prova fica evidente o efeito suspensivo que a mesma

atribui e impõe ao contrato, verificada determinadas condições. Esta cláusula possui o

precípuo escopo de garantir que o negócio apenas se torne perfeito após se verificar que a

coisa possui as qualidades asseguradas e, ainda, atende ao fim proposto. Entendemos ser

possível a aplicação do referido dispositivo no contrato de troca ou permuta, pois pode uma

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128

das partes, ou até mesmo as duas, convencionar que, se um dos bens dados em troca, ou até

mesmo ambos, não possuírem todas as qualidades especificadas pelos permutantes, o lesado

terá direito a resolução contratual.

O Instituto da preempção ou preferência determina que o comprador de uma

coisa, móvel ou imóvel, obrigar-se-á a oferecê-la ao vendedor na hipótese de futuramente

vendê-la ou dá-la em pagamento. Tal cláusula, ao contrário da retrovenda, não pode ser

transmissível nem cessível aos herdeiros. Pelo exposto, entendemos perfeitamente possível a

aplicação desta clausula ao contrato de permuta, onde, uma das partes garantirá a preferência

sobre um bem, objeto de permuta, desde que esta seja feita através de um contrato de compra

e venda, isto é, permuta no primeiro instrumento contratual e compra e venda no ato de

exercer a preferência.

A venda com reserva de domínio constitui modalidade especial de venda de coisa

móvel, em que o vendedor tem a própria coisa vendida como garantia do recebimento do

preço. Só a posse é transferida ao adquirente. A propriedade permanece com o alienante e só

passa àquele após o recebimento integral do preço. Como podemos inferir a partir do conceito

de reserva de domínio, a garantia é sobre o pagamento do preço. Ficando, assim,

descaracterizado o uso de tal cláusula no contrato de permuta, uma vez que, em regra, o

pagamento do preço só ocorre no contrato de compra e venda.

Trata-se a venda sob documentos de clausula comumente utilizada no contrato de

compra e venda, ocorrendo quando a tradição se realizada mediante a entrega de documentos

que representem a coisa. Ou seja, não se transfere a plena propriedade da coisa ao comprador.

Já a troca tem por fim a substituição da propriedade de um bem móvel por outro. Portanto,

fica evidente a inaplicabilidade de tal dispositivo ao contrato de permuta.

Conclusão

Pelo exposto, podemos concluir pela aplicabilidade de algumas das cláusulas

especiais do contrato de compra e venda ao contrato de permuta como evidenciado

anteriormente. Importa ressaltar que mesmo em se tratando de negócios diferentes, compra e

venda e permuta possuem alguns pontos em comum, algumas peculiaridades, que tocam a

própria natureza do instrumento contratual, bem como a dos objetos, que lhes possibilitam a

aplicação de tais clausulas.

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129

Se o objetivo consiste em dar segurança, promover a justiça e, por conseguinte,

atender a boa técnica no que se refere à celebração dos contratos, temos que se trata de uma

prática escorreita e até mesmo necessária nos dias de hoje.

Destarte, sempre que o caso demandar sugerimos a aplicação das cláusulas

especiais do contrato de compra e venda ao contrato de permuta, obedecidos os limites de sua

abrangência.

BILIOGRAFIA

BRASIL. Código civil. 14ª ed. São Paulo. Saraiva, 2008.

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130

Pena de Morte e seu debate atual

“Quando vi separar-se do tronco a cabeça do condenado, caída com sinistro ruído no cesto, compreendi, e não com a razão, mas com o meu ser, que nenhuma teoria pode justificar tal ato”. Leon Trotski (SALES, 2005, p.02)

Cláudia Aparecida dos Anjos Flaviana Maria da Silva

Jefferson Russo Miranda José Genebaldo de Miranda Sampaio

Ravena Moreira Gomes Suely Vidal José

Walace Marçal Viana1 RESUMO: O tema proposto tem causado controvérsias em todos os âmbitos sociais. Nesse sentido, o presente artigo objetiva expor posicionamentos sob as visões doutrinária, jurídica, filosófica, religiosa, além do aspecto legal frente à Constituição Republicana de 1988. Mostra os argumentos usados pelos que são favoráveis e adversos e, ainda, dados importantes dos países que a adotam. Faz, também, uma análise da adoção da prática em nosso país em tempos pretéritos. Palavras chave: pena de morte, pena capital, criminalidade, ressocialização. ABASTRACT: The theme has caused controversy in all social fields. In this sense, this article aims at presenting the views or positions doctrinal, legal, philosophical, religious, and legal aspect of the front of the Republican Constitution of 1988. Shows the arguments used by those who are favorable and adverse, and also important data of the countries that adopt it. We have also made an analysis of the adoption of the practice in our country in past times Keywords: death penalty, capital punishment, crime, social reintegration.

Introdução

A pena de morte ou pena capital é assunto controverso em tempos atuais. Sempre

vem a debate quando ocorrem crimes absurdos que envolvem seqüestros impetuosos, estupros

de crianças, homicídios e roubos dotados de extrema violência que comovem o público em

geral.

Simpatizantes acreditam que ela é apta à resolução do problema da criminalidade.

Mas, posições contrárias manifestam como disparate um grave desrespeito à vida - o bem

1

Acadêmicos do 4º período do Curso de Direito da Faculdade Dinâmica do Vale Piranga/MG

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131

maior que temos, e que não traz resolução concreta aos fatos criminosos no âmbito social. Por

ser esta última a corrente majoritária na sociedade moderna, busca-se a abolição da prática.

Afinal, qual o sentido e finalidade da pena em si?

O termo pena advém do latim poena, que por sinal tem derivação grega, poine, e,

mais à frente, no sânscrito (língua constitucional da Índia) punia, cuja conceituação básica

quer dizer sofrimento, ou mais particularmente, dor, dó, lástima, no sentido de ter-se pena de

alguém. (RODRIGUES, 1996, p.29)

Greco (2008, p.485-489) diz que “a pena é a consequência natural imposta pelo

Estado quando alguém pratica uma infração penal. (...) deve reprovar o mal produzido pela

conduta praticada pelo agente”.

De acordo com nosso Código Penal vigente, em seu art. 59, a pena tem dupla

função: deve reprovar o mal produzido e prevenir futuras infrações.

Art. 59. O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário o suficiente para reprovação e prevenção do crime: (BRASIL, 1988)

Juridicamente, a pena de morte “é uma sentença aplicada pelo Poder Judiciário

que consiste na execução de um indivíduo condenado pelo Estado.” Faticamente encontramos

diversas causas usadas como “justificáveis” para sua aplicação: genocídio (Ruanda);

assassinato e roubo armado (Quênia); espionagem, charlatanismo e bruxaria (República

Centro-Africana); pirataria e assassinato com circunstâncias agravantes (Papua-Nova Guiné),

dentre outros. (WIKIPÉDIA, 2009)

A pena de morte no Brasil: visão histórica e constitucional.

Constitucionalmente, não há, atualmente, a possibilidade de se ter instaurada a

pena de morte no Brasil, com exceção de guerra declarada, conforme estabelece a CF/88, no

Título II: “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, em seu artigo 5º: “XLVII - não haverá

penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;”

(BRASIL, 1988)

Portanto, o legislador determinou expressamente que não há pena de morte no

Brasil, com apenas uma única ressalva acima prevista. Assim, é impossível juridicamente

instituir a pena de morte no Brasil. É um ordenamento pétreo, conforme preconiza artigo 60:

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“§ 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: IV- os direitos

e garantias individuais.” (BRASIL, 1988)

É de competência privativa do Presidente da República o que versa o art. 84, da

CF/88, em seu inciso XIX: “declarar guerra, no caso de agressão estrangeira, autorizado pelo

Congresso Nacional ou referendado por ele, quando ocorrida no intervalo das sessões

legislativas, e, nas mesmas condições, decretar, total ou parcialmente, a mobilização

nacional;” (BRASIL, 1988)

No entanto, fazendo-se uma análise histórica, percebemos que nem sempre foi

assim.

A prática da pena capital vigorou no país na época do domínio português. O

Código Penal de 1830 fazia previsão deste tipo de pena para os crimes de homicídio, para

roubo seguido de morte, para insurreição e para escravos que eventualmente obtivessem a

liberdade pela força. O condenado era levado para ruas públicas, como se fosse uma

cerimônia, a fim de mostrar a todos que a punição era inexorável e violenta. Era um ritual que

incutia medo e temor no povo. Havia possibilidade de entregar os corpos dos executados a

parentes e amigos, contanto que houvesse autorização do juiz e no caso de condenada grávida,

a pena só poderia ser executada, 40 dias após o parto. (D’URSO, 2009, p.1-2)

Como marco histórico do fim da pena de morte no Brasil, temos que:

[...] a pena de morte foi largamente utilizada e aplicada até a segunda metade do século XIX, quando, por um erro judiciário ocorreu a morte de Mota Coqueiro, em 1855 em Macaé, a qual abalou a população e impressionou o Imperador que passou, a partir daí, comutar a pena de morte sistematicamente, não autorizando a execução de mais ninguém, transformando em penas de Galés perpétuas, devendo serem removidos às galeras para remarem até o último de seus dias.

Este histórico erro judiciário que levou a morte Mota Coqueiro, é revelado pela

confissão tardia de um desconhecido, de nome Herculano, que momentos antes de morrer,

confessa ao seu próprio filho que ele sim teria sido o verdadeiro autor do crime pelo qual

Mota Coqueiro havia sido condenado.

Esse Herculano, pede ao seu filho que divulgue a sua confissão para afastar a

responsabilidade do Mota Coqueiro. Este triste episódio foi um marco na história da pena de

morte no Brasil. (D’URSO, 2009, p.2-3)

Na Constituição de 1891 foi abolida, mas foi mantida a ressalva para crimes

militares em tempos de guerra.

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Com o advento do autoritarismo no Estado Novo de Getúlio Vargas, a pena

capital voltou a fazer parte da Carta Magna de 1937, com previsão para crimes que ameaçasse

a soberania, a ordem política e nacional e até mesmo para o homicídio cometido por motivo

fútil e com extremos de perversidade.

O Código Penal de 1940, confrontando-se com a constituição da época, não

manteve a pena de morte.

Voltou a fazer parte do cenário brasileiro através de Ato Institucional na época da

Ditadura Militar, mas no processo de redemocratização do país foi abolida pela CF/88 com a

ressalva em caso de guerra declarada.

Hodiernamente, o Brasil é membro do Protocolo da Convenção Americana de

Direitos Humanos para a Abolição da Pena de Morte, que foi ratificado em 13 de agosto de

1996. (WIKIPÉDIA, 2009)

Constitucionalmente, a competência para legislar matéria penal pertence

unicamente à União, não podendo existir nenhuma outra norma esparsa que verse sobre o

referido assunto. Sob o aspecto legal, temos que:

Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:

I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho;” (BRASIL, 1988)

Também, estabelece o Código Penal Militar que, o meio de execução usado para o único caso de exceção em que se aplica a pena de morte é o fuzilamento nos termos do artigo 56. (BRASIL, 1969)

Em consulta popular, Almeida (2007, p.5) expõe que uma pesquisa feita pelo

Datafolha, em agosto de 2006, mostrou que 84% dos brasileiros defendem a

redução da maioridade penal de 18 para 16 anos e 51% querem a instituição da pena de morte.

A pena de morte no mundo

Aplica-se, atualmente, a pena de morte nos Estados Unidos da América, Japão,

China e na maior parte dos países do Médio Oriente.

Trinta e seis estados dos Estados Unidos, a Guatemala, a maior parte do Caribe,

da Ásia e da África ainda retêm a pena de morte para crimes comuns. O caso de alguns países,

como é o da Rússia, é bastante peculiar, pois ainda retêm a pena de morte na legalidade, mas

já não executam mais ninguém há um longo período de tempo. (WIKIPÉDIA, 2009)

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Numericamente, o país que tem o maior número de pessoas executadas

anualmente é a China,seguido dos Estados Unidos. Neste último, apesar da previsão para 36

dos 50 Estados, cada um delestem uma legislação própria, que abarca critérios e formas

diferentes de aplicação da pena de morte,alternando entre cadeira elétrica, injeção letal,

eletrocussão, fuzilamento, enforcamento e câmara de gás.“[...] uma ou duas horas antes da

execução, para a pessoa condenada são oferecidos serviços religiosos euma última refeição.

Execuções são realizadas em locais privados com apenas convidados e pessoascapazes de ver

o processo.”(WIKIPÉDIA, 2009)

Estatísticas revelam que neste país:

Entre 1973 e 2002, 7.254 sentenças de morte foram realizadas, levando a 820

execuções, 3.557 prisioneirosesperando para serem executados, tendo sido condenados por

assassinato, 268 morreram de causas naturais ousuicidaram-se enquanto esperavam pela

execução, 176 tiveram a pena comutada para prisão perpétua, e 2.403foram soltos, novamente

julgados e/ou ressenteciados pelas cortes. Em 2004, foram realizadas 59

execuções.(WIKIPÉDIA, 2009)

Em termos gerais, pesquisas demonstram que:

Os países que mantêm o uso da pena de morte (dados de 2005) são 74, os que não

têm execuções ou condenações há mais de dez anos são28, os que mantêm a pena de morte

para circunstâncias excepcionais são nove e os que a aboliram para todos os crimes são 89.

(WIKIPÉDIA, 2009)

Visão Filosófica

Cesare Beccaria ( 2001, p.31-34) afirma que:

A pena de morte é ainda funesta à sociedade, pelos exemplos de crueldade que dá aos homens. Se as paixões ou a necessidade da guerra ensinam a espalhar o sangue humano, as leis, cujo fim é suavizar os costumes, deveriam multiplicar essa barbaria, tanto mais horrível quanto dá a morte com mais aparato e formalidades? Não é absurdo que as leis, que são a expressão da vontade geral, que detestam e punem o homicídio, ordenem um morticínio público, para desviar os cidadãos do assassínio?

[...] A pena de morte não se apóia, assim, em nenhum direito. É uma guerra declarada a um cidadão pela nação, que julga a destruição desse cidadão necessária ou útil. Se eu provar, porém, que a morte não é útil nem necessária, terei ganho a causa da humanidade.

Quanto ao posicionamento de Rousseau (WIKIPÉDIA, 2009) temos que:

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Mas Rousseau também ficava em dúvida sobre até que ponto a pena de morte seria válida, pois como era possível o homem saber se um criminoso não podia se regenerar já que o estado sempre demonstrava fraqueza em alguns momentos. "Não existe malvado que não possa servir de coisa alguma

Almeida e Boscayno (2009, p.2) dispõe que Montesquieu “concebia a pena de

morte como um remédio necessário para uma sociedade doente.”

Visão jurídica

Mirabete (2007, p.246) expõe que:

[…] apesar de se discutir a realização de um plebiscito para se decidir sobre a implantação da pena de morte no país, tal procedimento eleitoral é inócuo pois a restrição da pena capital aos crimes praticados em estado de guerra é uma garantia individual à vida (garantia material explícita negativa) estabelecida na Constituição Federal, que proíbe emenda com o sentido de abolir "direitos e garantias individuais.

Greco (2008, p.84) cita que para Maurício Antônio Ribeiro Lopes a pena de

morte:

(...) deve ser reputada como algo que conflita com os princípios gerais do direito, dentre eles o da humanidade, sendo que vários foram alçados constitucionalmente, ou seja, a vedação quanto ao tratamento degradante, desumano. Se a pena tem função terapêutica, reeducadora, socializante, não pode haver pena de morte ou perpétua, que não atendam a função da pena.

Fernando Capez (2009, p.3) adverte:

Diria que a pena de morte não funciona num país como o Brasil, por diversos motivos. Em primeiro lugar, grande é o número de erros judiciários em nosso sistema penal. O cidadão que, por ausência de recursos financeiros, muitas vezes acaba tendo uma defesa deficiente, falha, está sujeito à injusta condenação. Além disso, o processo que culmina com a pena de morte demandaria muitos recursos financeiros. Ora, o Estado mal tem numerário suficiente para arcar com a condenação de indivíduo que praticou mero furto, quanto mais uma pena de morte, a qual demandaria inúmeros recursos até que se chegasse ao veredicto final. Em terceiro lugar, em nosso sistema penal, o que se demanda é a certeza da punição, a qual só ocorre com uma estrutura penitenciária adequada, com sanções disciplinares internas mais recrudescidas.

Rolf (APUD,1998, p.3 ) menciona o posicionamento do jurista Evandro Lins e

Silva:

Mesmo porque essa criminalidade que aumenta, que é motivo de revolta, de indignação pública, é resultado de quê? Do desemprego, da fome, da miséria. Na medida em que isso aumenta, aumenta a criminalidade. Não se pense que a criminalidade vai acabar se se introduzir a pena de morte, a pena mais grave. Absolutamente! Isso é uma ilusão, é uma fantasia, é uma falácia! Ainda ontem estive lendo um livro recente, chamado Le désir de punir, de um autor francês de cujo nome não me lembro agora. Na realidade, quem está desejando punir demais, no fundo, no fundo, está querendo fazer o mal, se equipara um pouco ao próprio delinqüente. Não é essa a tendência universal.

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Rodrigues(1998, p.2) expõe que Luzia Galvão Lopes da Silva, primeira

desembargadora do Estado de São Paulo, declara que é a favor da pena de morte, mas adverte

que:

No Brasil, ela é impraticável por contrariar a própria índole do nosso povo. Aqui, só serviria para tumultuar ainda mais a vida em sociedade, com manifestações contrárias a qualquer imposição de pena capital de que eventualmente se cogitasse, e que jamais seria executada. [...]

Mas em tese sou favorável à pena de morte e costumo dizer aos que afirmam que ela não evita que outros crimes de igual gravidade sejam cometidos o seguinte: aquele executado, criminoso cruel, empedernido e irrecuperável, não tornará a praticar outro ato nefando como aquele que justificou sua execução.

Visão jurídica

São favoráveis o Judaísmo e o Islamismo. São desfavoráveis o Budismo e o

Hinduísmo.

Protestantes e adeptos da Igreja Católica adotam posicionamentos divergentes

dentro de seu grupo religioso.

O Judaísmo é a favor da pena de morte [...] Segundo o Talmude, ela só pode ser

aplicada depois de um julgamento e com o aval de duas testemunhas contra o réu.

[…] O Budismo é contra a pena de morte. O primeiro princípio do budismo é não

fazer o mal a nenhuma criatura viva. Embora, segundo a filosofia budista, o estado deva zelar

pela estabilidade política e o bem estar social da população, nenhum ser humano tem o direito

de tirar a vida de outro ser humano.

[...] O hinduísmo é contra a pena de morte. Embora os reis tenham o dever de

dominar os inimigos e levá-los ao infortúnio, e as pessoas devam pagar os seus erros

meritórios, os hinduístas não gostam de tirar a vida.

[...] O Islamismo é a favor da pena de morte. O Alcorão decreta a pena de morte

para os homicidas (Suarata 11:178), para os que lutam contra Allah e o seu apóstolo

Mohamed (Suarata 5:33), os adúlteros, os fornicadores, os homossexuais e os blasfemos.

[...] Segundo o Catecismo Católico: O Ensino tradicional da Igreja não exclui,

depois de comprovados cabalmente a identidade e a responsabilidade do culpado, o recurso a

pena de morte, se essa for a única via praticável para defender eficazmente a vida humana

contra o agressor injusto.

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Segundo o Catolicismo, o homicídio voluntário é um pecado que clama ao céu por

vingança.

[...] Os protestantes se dividem quando a questão da pena de morte. Os que são a

favor da pena são os protestantes históricos como a Igreja Luterana, Igreja Presbiteriana,

Igreja Reformada (calvinistas), Igreja Anglicana e parte das Igrejas Batistas. Embora a Igreja

de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (mórmons) não seja protestante histórica, ela

também é a favor. Os evangélicos, ou protestantes tardios como a Igreja Metodista, os

quacres, o Exército da Salvação, algumas Igrejas Batistas e a Igreja de Cristo, são contra. Os

pentecostais e neopentecostais também, em sua maioria, são contrários a pena de morte.

(BRAUN; JÚNIOR; RIBEIRO; VILAR. 2004, p. 5-6)

Interessante notar o posicionamento dos católicos São Tomás de Aquino e Santo

Agostinho. Para o primeiro, “não apenas é lícita a pena de morte, mas necessária para a saúde

do corpo social...” (CARVALHO, 2009, p.1) Quanto ao segundo, Ferraz (2003, p.1)

menciona que, “o costume cruel de assassinar prisioneiros é, na opinião de Santo Agostinho,

uma ofensa a Deus, pois anula a dignidade e a pessoa humana.”

Razões favoráveis e desfavoráveis a adoção da pena de morte no Brasil.

Favoráveis

Alguns entendem que a adoção da pena de morte coíbe a criminalidade, elimina

indivíduos facínoras e indesejáveis à sociedade e diminuem-se os custos com carceragem.

Para Mittermaier (2004, p.144):

[...] A consciência pública reclama a pena de morte no interesse da justiça, cujo sentimento natural do homem será ferido, se a igualdade entre a pena e o crime não é mantida, e se cada homem não é tratado segundo suas obras.

[...] O povo assiste a uma execução com a consciência da satisfação dada à justiça: muitas vezes o próprio culpado declara com uma tranqüilidade de alma surpreendente que ele aceita a sua pena como reparação do crime e como meio de ter a paz consigo mesmo, com Deus e com os homens.

[...] A pena de morte é necessária para a defesa da sociedade contra certos criminosos danosos que não têm nenhum respeito da vida humana, ela garante o repouso público melhor que uma outra pena e muitas vezes ela foi a saúde de muitas gentes.

[...] Como recusar ao Estado o direito de tirar a vida a um criminoso, dizendo numerosos partidários da pena, quando o Estado tem o direito incontestável de exigir dos cidadãos todo sacrifício necessário para a existência da sociedade e a defesa do Estado? O Estado obriga os soldados a exporem sua vida para a saúde

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da pátria. Por que não empregaria, num interesse do mesmo gênero, a pena de morte?

Desfavoráveis

Dentre posições sem sentido negativo, temos que a prática poderia levar muitos

inocentes à morte, principalmente devido a erro e ou corrupção do judiciário, além de que

vislumbra-se com a visão espiritualista da natureza humana (ou seja, de que a vida vem de

Deus) e que há possibilidade real do indivíduo arrepender-se, ressocializar-se e seguir um

novo caminho.

Além destes temos outros: fere os direitos humanos; é ato irreversível e

desumano; é um processo que custa caro aos cofres públicos.

Seu uso não diminui a criminalidade, conforme comprovam as estatísticas realizadas nos países que adotaram essa modalidade de imposição de pena. Há o risco sempre presente do erro judiciário.(PINHO, 2002, p.79).

Argumenta Silva (2009, p.1-2 ) que:

- Gastam-se cerca de dois milhões e meio de dólares para se executar uma pessoa, nos Estados Unidos.

- Entre 1930 e 1996, 4220 prisioneiros foram executados nos Estados Unidos (mais da metade eram negros).

- De acordo com o Death Oenalty Information Center, a população atual, nos “corredores da morte” é constituída mais de negros e latinos.

- Até 2000 trinta e cinco condenados com retardo mental foram executados, apesar do governo federal americano e doze estados proibirem isso.

- Desde 1970, oitenta e sete americanos deixaram de ser executados por terem sidos comprovados erros em seus processos, e comprovada sua inocência pouco antes da execução.

Buratto (2009, p.1), menciona que:

Toda vez que iniciamos uma discussão sobre a pena de morte, tentamos elencar os casos em que ela poderia ser passível de aplicação. As opiniões divergem, mas podemos listar algumas: seqüestro seguido de morte, estupro seguido de morte, principalmente contra crianças, crimes hediondos com requintes de crueldade, etc. É claro que estes crimes revoltam e nos levam a querer implantar a pena de morte até para nos aliviarmos do imenso sentimento de impotência que nos toma quando ficamos frente a frente com esses "bandidos". Mas é justamente aí que se tornam fortes os contra-argumentos à pena de morte, porque boa parte desses criminosos podem ser frutos de uma sociedade injusta e cruel [...]

Wladimir Flávio Luiz Braga, (2007, p.2) adverte que:

Mesmo sem adentrar ao campo de estudos da vitimologia, é prudente reconhecer que os criminosos são doentes psíquicos ou sociais. Desta forma, fazer apologia da morte para aqueles tidos como irrecuperáveis é o mesmo que pregar o extermínio para um deficiente físico ou mental que necessita de tratamento para recuperar-se ou ter estabilizada sua situação. Se um nosso filho nasce ou torna-se paraplégico, damos-lhe todo amparo para que sua vida possa transcorrer da forma mais normal possível. E se um nosso filho, num momento de desgraça,

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comete um crime grave, vamos aceitar sua eliminação ou lutar por sua reinserção/reintegração social e profissional? Eis a questão: normalmente se defende a pena máxima imaginando que só estranhos a nós possam ser alvo dela.

Considerações finais

Será mesmo que a pena de morte resolve o problema da criminalidade no Brasil?

É certo que as cadeias ficariam menos lotadas. Muitos criminosos, ao invés de mantidos pelo

Estado - ou melhor por nós, cidadãos, já que o dinheiro sai dos cofres públicos - seriam

eliminados da sociedade.

Porém, concluímos que não constitui em “fazer justiça” o fato de o Poder

Judiciário ter em suas mãos a faculdade/poder de decidir sobre a vida humana. É decidir sobre

a preservação da vida ou a decretação da morte: será mesmo que este juízo valeria para todos

em pé de igualdade, com isonomia para pobres e ricos, negros e brancos....?

Nosso sistema jurídico penal não funciona de modo absoluto, completo ou

perfeito e não há maneiras de se remediar uma falha processual após ser executado o

condenado. É questão repleta de fragilidades.

A implantação da pena de morte requer um Judiciário sem falhas. Não é raro

vermos em noticiários pessoas que foram condenadas injustamente a cumprirem penas. Nem

mesmo compensa a indenização que o Estado oferece àqueles que inocentemente ficou preso.

E se a pena tivesse sido de morte? O que dizer daquele que foi morto por ser indevidamente

condenado, ao passo que o verdadeiro criminoso estaria solto por aí?

Nosso sistema prisional não é o mais adequado, está caótico, mas também não é a

instituição do extermínio através da pena de morte que iria melhorar a situação. Estamos

tratando de seres humanos, vejam bem!

Aceitar a instituição da pena de morte no Brasil é atentar contra os princípios

basilares do Estado Democrático de Direito, quais sejam vida, liberdade e a dignidade da

pessoa humana. Seria a aceitação do retrocesso à barbárie.

A vida constitui valor relevante de maior peso dentre os bens jurídicos protegidos

pelo Direito Penal. Está no topo do ordenamento.

Há sim outras formas de se buscar a redução do crime ao invés da aniquilação do

criminoso, como investir em educação, saúde, planejamento familiar e, principalmente, buscar

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uma melhor aplicação dos recursos financeiros do país implementando oportunidades de

emprego e de ressocialização.

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