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Escola da Magistratura do Tribunal Regional do Trabalho da 2 Regio 2008 DIREO DO TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 2 REGIOPresidente

Desembargador Antonio Jos Teixeira de Carvalho Desembargador Delvio Buffulin Desembargadora Wilma Nogueira de Arajo Vaz da Silva Desembargador Decio Sebastio DaidoneCorregedor Regional Vice-Presidente Judicial Vice-Presidente Administrativo

DIREO DA ESCOLA DA MAGISTRATURADesembargador Antonio Jos Teixeira de Carvalho Desembargadora Lizete Belido Barreto Rocha Juiz Carlos Roberto Husek Juiz Salvador Franco de Lima Laurino Juza Patrcia Therezinha de ToledoCoordenadores Diretor

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REVISTA DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 2 REGIO

Revista da Escola da Magistratura do Tribunal Regional do Trabalho da 2 Regio n 3 (set.2008) - So Paulo - Semestral - Revista oficial do TRT da 2 Regio So Paulo -

Frum Trabalhista Ruy Barbosa Av. Marqus de So Vicente, 235 10 andar Torre A So Paulo SP 01139-001 Fone (11) 3525-9221 E-mail: [email protected]

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Palavra do Desembargador Presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 2 Regio para a revista da EMATRAQuem atua no Tribunal Regional do Trabalho da 2. Regio e conhece a nossa realidade sabe que esta Corte responde pela mais significativa parcela dos nmeros apresentados pela Justia do Trabalho no Brasil. Alm de enorme a quantidade de feitos apreciados, tambm so extremamente variadas as atividades empresariais de onde advm os conflitos a ns submetidos. Por estes motivos, so muito eclticos os cursos e palestras desenvolvidos pela Coordenao da Escola da Magistratura desta Corte, visando o aprimoramento de juzes e servidores. Da mesma forma, os temas aqui discutidos adquirem importncia para outros Regionais medida que apontam para discusses de vanguarda, temas que ainda despontam nas lides obreiras e que sugerem a jurisprudncia que se formar. Logo, grata a minha satisfao ao apresentar a Revista da Escola da Magistratura contendo as realizaes desta gesto. certeza de sua importncia para os operadores do Direito, soma-se nossa gratido aos coordenadores da Escola da Magistratura do Tribunal Regional do Trabalho da 2. Regio: a Desembargadora Lizete Belido Barreto Rocha e os juzes Carlos Roberto Husek, Salvador Franco de Lima Laurino e Patrcia Therezinha de Toledo.

Antonio Jos Teixeira de CarvalhoDesembargador Presidente do Tribunal

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AGRADECIMENTOS Em seu terceiro nmero, a Revista da Escola da Magistratura do Trabalho da 2 Regio rene artigos de Magistrados, Professores, Membros do Ministrio Pblico, Advogados e tantos outros doutrinadores que enriqueceram o debate jurdico em nossas atividades do ano de 2008. Amplia-se, desse modo, o acesso s atividades da Escola, cumprindo-se um dos maiores objetivos da instituio, que a divulgao do trabalho cientfico e do pensamento acadmico em prol do aprimoramento dos Juzes e de todos os cultores do Direito. Mais uma vez, os nossos agradecimentos so dirigidos a cada um daqueles que, alm das palestras proferidas, honraramnos com artigos vinculados aos temas de suas participaes nas atividades do ano de 2008.

Desembargadora Lizete Belido Barreto RochaCoordenadora da Escola da Magistratura do Tribunal Regional do Trabalho da 2 Regio

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SUMRIO

Dimenses da Precarizao Estrutural do Trabalho ANTUNES, Ricardo ............................................................................ 10 Responsabilidade Civil no Direito do Trabalho DALLEGRAVE NETO, Jos Affonso ............................................. 25 Teoria Geral da Responsabilidade Civil GONALVES, Carlos Roberto ........................................................37 O Porto GONALVES, Jucirema Maria Godinho ........................................ 51 Questes atuais sobre a substituio processual LAURINO, Salvador Franco de Lima .............................................. 77 Sobre Cidadania e Direito MASCARO, Alysson Leandro ............................................................ 91 Acidente de Trabalho Responsabilidade com e sem Culpa MELO, Raimundo Simo de .............................................................. 97 O Devido Processo Legal MESQUITA, Jos Ignacio Botelho de .............................................. 123 Proteo e Justiciabilidade dos Direitos nos Planos Global, Regional e Local PIOVESAN, Flvia .............................................................................. 139

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Sistema e Ordenamento Jurdico: Origens do Pensamento Sistemtico no Direito SOLON, Ari Marcelo .......................................................................... 183 Reforma Indireta do Processo Trabalhista Brasileiro A (ou a Mendicidade do Processo do Trabalho frente s Inovaes ocorridas no Processo Civil) TOLEDO FILHO, Manoel Carlos .................................................. 193

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Ricardo AntunesProfessor Titular de Sociologia do Trabalho no IFCH/UNICAMP e autor, entre outros livros, de Riqueza e Misria do Trabalho no Brasil (coordenador, Boitempo, 2006), O caracol e sua Concha: ensaio sobre a nova morfologia do trabalho (Boitempo, 2005); Os Sentidos do Trabalho, (Boitempo), entre outros livros. Coordena tambm as Colees Mundo do Trabalho (Boitempo) e Trabalho e Emancipao (Ed. Expresso Popular. Colaborador de vrias publicaes no Brasil e no exterior. tambm pesquisador do CNPq.

DIMENSES DA PRECARIZAO ESTRUTURAL DO TRABALHO I J se tornou lugar comum dizer que a classe trabalhadora vem sofrendo profundas mutaes, tanto nos pases centrais, quanto no Brasil. Sabemos que quase um tero da fora humana disponvel para o trabalho, em escala global, ou se encontra exercendo trabalhos parciais, precrios, temporrios, ou j vivenciava a barbrie do desemprego. Mais de um bilho de homens e mulheres padecem as vicissitudes do trabalho precarizado, instvel, temporrio, terceirizado, quase virtual, dos quais centenas de milhes tm seu cotidiano moldado pelo desemprego estrutural. Se contabilizados ainda os dados da ndia e China, a conta se avoluma ainda mais. H, ento, um movimento pendular que caracteriza a classe trabalhadora: por um lado, cada vez menos homens e mulheres trabalham muito, em ritmo e intensidade que se assemelham fase pretrita do capitalismo, na gnese da Revoluo Industrial, configurando uma reduo do trabalho estvel, herana da fase industrial que conformou o capitalismo do sculo XX. Como, entretanto, os capitais no podem eliminar completamente o trabalho vivo, consegue reduzi-lo em vrias reas

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e ampli-lo em outras, como se v pela crescente apropriao da dimenso cognitiva do trabalho. Aqui encontramos, ento, o trao de perenidade do trabalho. (Antunes, 2005). No outro lado do pndulo, cada vez mais homens e mulheres trabalhadores encontram menos trabalho, esparramando-se pelo mundo em busca qualquer labor, configurando uma crescente tendncia de precarizao do trabalho em escala global, que vai dos EUA ao Japo, da Alemanha ao Mxico, da Inglaterra ao Brasil, sendo que a ampliao do desemprego estrutural sua manifestao mais virulenta. Contrariamente, entretanto, s teses que advogam o fim do trabalho, estamos desafiados a compreender o que venho denominando como a nova polissemia do trabalho, a sua nova morfologia, isto , sua forma de ser (para pensarmos em termos ontolgicos), cujo elemento mais visvel o seu desenho multifacetado, resultado das fortes mutaes que abalaram o mundo produtivo do capital nas ltimas dcadas. Nova morfologia que compreende desde o operariado industrial e rural clssicos, em processo de encolhimento, at os assalariados de servios, os novos contingentes de homens e mulheres terceirizados, subcontratados, temporrios que se ampliam. Nova morfologia que pode presenciar, simultaneamente, a retrao do operariado industrial de base tayloriano-fordista e, por outro lado, a ampliao, segundo a lgica da flexibilidade-toyotizada, das trabalhadoras de telemarketing e call center, dos motoboys que morrem nas ruas e avenidas, dos digitalizadores que laboram (e se lesionam) nos bancos, dos assalariados do fast food, dos trabalhadores dos hipermercados etc. Se nos pases do Norte ainda podemos encontrar alguns poucos resqucios do welfare state, do que um dia denominamos estado de bem estar social - ainda que o padecimento do trabalho e o desemprego tambm sejam seus traos ascendentes nos pases do Terceiro Mundo, os trabalhadores e trabalhadoras oscilam, cada vez mais, entre a busca quase inglria do emprego ou o aceite de qualquer labor. Na China, por exemplo, pas que cresce a um ritmo estonteante, dadas as tantas peculiaridades de seu processo de industrializao hipertardia - que combina fora de trabalho sobrante e hiper-explorada com maquinrio industrial-informacional em lpido e explosivo desenvolvimento - tambm l o contingente mais proletrio vem se precarizando intensamente, sofrendo forte reduo, em decorrncia das mutaes em curso naquele pas. Segundo Jeremy Rifkin (2004), entre

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1995 e 2002 a China perdeu mais de 15 milhes de trabalhadores industriais. No por outro motivo que o PC Chins e seu governo esto assustados tambm com o salto dos protestos sociais, que decuplicaram nos ltimos anos, chegando recentemente casa das 80 mil manifestaes em 2005. Processo assemelhado ocorre tambm na ndia e em tantas outras partes do mundo, como em nossa Amrica Latina. Na Argentina, por exemplo, estamos presenciando novas formas de confrontao social, como a exploso do movimento dos trabalhadoresdesempregados, os piqueteros, cortan las rutas para barrar a circulao de mercadorias (ajudando a embaralhar a produo) e para estampar ao pas o flagelo do desemprego. Ou ainda, a expanso da luta dos trabalhadores em torno das empresas recuperadas, ocupadas durante o perodo mais crtico da recesso, nos incios de 2001, e que j atingem a soma de duas centenas de empresas sob controle-direo-gesto dos trabalhadores. Foram, ambas, respostas decisivas ao desemprego argentino. E sinalizaram para novas formas de lutas sociais do trabalho. (Bialakowsky at al., 2003) No Brasil o quadro ainda mais grave. Durante nossa dcada de desertificao neoliberal, pudemos presenciar, simultaneamente, tanto a pragmtica desenhada pelo Consenso de Washington (com suas desregulamentaes nas mais distintas esferas do mundo do trabalho e da produo), quanto uma significativa reestruturao produtiva em praticamente todo universo industrial e de servios, conseqncia da nova diviso internacional do trabalho que exigiu mutaes tanto no plano da organizao scio-tcnica da produo, quanto nos processos de reterritorializao e desterritorializao da produo, dentre tantas outras conseqncias. Tudo isso num perodo marcado pela mundializao e financeirizao dos capitais, o que tornou obsoleto tratar de modo independente os trs setores tradicionais da economia (indstria, agricultura e servios), dada a enorme interpenetrao entre essas atividades, de que so exemplos a agro-indstria, a indstria de servios e os servios industriais. Vale aqui o registro, at pelas conseqncias polticas decorrentes, que reconhecer a interdependncia setorial muito diferente de falar em sociedade ps-industrial, concepo carregada de significao poltica. A necessidade de elevao da produtividade dos capitais em nosso pas vem ocorrendo, ento, fundamentalmente atravs de reorganizao scio-tcnica da produo, da reduo do nmero de

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trabalhadores, da intensificao da jornada de trabalho dos empregados, do surgimento dos CCQs (Crculos de Controle de Qualidade) e dos sistemas de produo just-in-time e kanban, dentre outros elementos. Foi quando o fordismo aqui vigente sofreu os primeiros influxos do toyotismo. Nos anos 1990 essa processualidade deslanchou atravs da implantao dos receiturios oriundos da acumulao flexvel e do iderio japons e assemelhados, da intensificao da lean production, das formas de subcontratao e de terceirizao da fora de trabalho, da transferncia de plantas e unidades produtivas, onde empresas tradicionais, como a indstria txtil, sob imposio da concorrncia internacional, passaram a buscar, alm de isenes fiscais, nveis mais rebaixados de remunerao da fora de trabalho, combinados com uma fora de trabalho sobrante, sem experincia sindical e poltica, pouco ou nada taylorizada e fordizada e carente de qualquer trabalho. Vrias fbricas de calados, por exemplo, transferiram-se da regio de Franca, no interior do estado de So Paulo, ou da regio do Vale dos Sinos, no estado do Rio Grande do Sul, para estados do Nordeste, como o Cear e Bahia e hoje comeam a pensar em transferir parcela de sua produo para o solo chins. Indstrias consideradas modernas, do ramo metalmecnico e eletrnico, transferiram-se da Regio da Grande So Paulo para reas do interior paulista (So Carlos e Campinas), ou deslocaram-se para outras reas do pas, como o interior do Rio de Janeiro (Resende), ou ainda para o interior de Minas Gerais (Juiz de Fora), ou outros estados como Paran, Bahia, Rio Grande do Sul. E hoje examinam possibilidades de transferncia de parte da produo para a China. Novas plantas foram instaladas, como a Toyota e Honda, ambas na regio de Campinas, dentre tantos outros exemplos. (Antunes, 2006). Dentro desta contextualidade, pode-se constatar uma ntida ampliao de modalidades de trabalho mais desregulamentadas, distantes da legislao trabalhista, gerando uma massa de trabalhadores que passam da condio de assalariados com carteira para trabalhadores sem carteira assinada. Se nos anos 1980 era relativamente pequeno o nmero de empresas de terceirizao, locadoras de fora de trabalho de perfil temporrio, nas dcadas seguintes esse nmero aumentou significativamente, para atender grande demanda por trabalhadores temporrios, sem vnculo empregatcio, sem registro formalizado. Ou seja, em plena era da informatizao do trabalho, do mundo maquinal e digital, estamos conhecendo a poca da informalizao do trabalho, dos terceirizados,

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precarizados, subcontratados, flexibilizados, trabalhadores em tempo parcial, do cyberproletariado, conforme a sugestiva indicao de Ursula Huws (2003). No por acaso que a Manpower smbolo de emprego nos EUA. Se, no passado recente, s marginalmente nossa classe trabalhadora presenciava nveis de informalidade, em 2007 mais de 50% dela se encontra nessa condio (aqui concebendo a informalidade em sentido amplo), desprovida de direitos e sem carteira de trabalho. Desemprego ampliado, precarizao exacerbada, rebaixamento salarial acentuado, perda crescente de direitos, esse o desenho mais freqente da nossa classe trabalhadora. Resultante do processo de liofilizao organizacional (Castillo, 1996) que permeia o mundo empresarial, onde as substncias vivas so eliminadas, como o trabalho vivo, sendo substitudas pelo maquinrio tcno-informacional presente no trabalho morto. E, nessa empresa liofilizada, necessrio um novo tipo de trabalho, que os capitais denominam, de modo mistificado, como colaborador. II Quais so os contornos desse novo tipo de trabalho? Ele deve ser mais polivalente, multifuncional, diverso do trabalhador que se desenvolveu na empresa taylorista e fordista. O trabalho que cada vez mais as empresas buscam, no mais aquele fundamentado na especializao taylorista e fordista, mas o que se gestou na fase da desespecializao multifuncional, do trabalho multifuncional, que em verdade expressa a enorme intensificao dos ritmos, tempos e processos de trabalho. (Bernardo, 2004) E isso ocorre tanto no mundo industrial, quanto nos servios, para no falar do agronegcios. Alm de operar atravs de vrias mquinas, no mundo do trabalho hoje presenciamos tambm a ampliao do que Marx chamou de trabalho imaterial, realizado nas esferas da comunicao, publicidade e marketing, prprias da sociedade do logos, da marca, do simblico, do involucral e do suprfluo. o que o discurso empresarial chama de sociedade do conhecimento, presente no design da Nike, na concepo de um novo software da Microsoft, no modelo novo da Benetton, e que so resultado do labor (imaterial) que, articulado e inserido no trabalho material, expressam as formas contemporneas do valor. Os servios pblicos, como sade, energia, educao,

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telecomunicaes, previdncia etc, tambm sofreram, como no poderia deixar de ser, um significativo processo de reestruturao, subordinandose mxima da mercadorizao, que vem afetando fortemente os trabalhadores do setor estatal e pblico. O resultado parece evidente: intensificam-se as formas de extrao de trabalho, ampliam-se as terceirizaes, a noo de tempo e de espao tambm so metamorfoseadas e tudo isso muda muito o modo do capital produzir as mercadorias, sejam elas materiais ou imateriais, corpreas ou simblicas. Onde havia uma empresa concentrada pode-se substitu-la por vrias pequenas unidades interligadas pela rede, com nmero muito mais reduzido de trabalhadores e produzindo muitas vezes mais. As repercusses no plano organizativo, valorativo, subjetivo e ideopoltico so por demais evidentes. O trabalho estvel torna-se, ento, (quase) virtual. Estamos vivenciando, portanto, a eroso do trabalho contratado e regulamentado, dominante no sculo XX, e vendo sua substituio pelas diversas formas de empreendedorismo, cooperativismo, trabalho voluntrio, trabalho atpico. (Vasapollo, 2005 e Vasapollo e Ariola, 2005). O exemplo das cooperativas talvez seja ainda mais eloqente, uma vez que, em sua origem, elas nasceram como instrumentos de luta operria contra o desemprego e o despotismo do trabalho. Hoje, contrariamente, os capitais vm criando falsas cooperativas, como forma de precarizar ainda mais os direitos do trabalho. As cooperativas patronais tm, ento, sentido contrrio ao projeto original das cooperativas de trabalhadores, uma vez que elas so verdadeiros empreendimentos para destruir direitos e aumentar ainda mais as condies de precarizao da classe trabalhadora. Similar o caso do empreendedorismo, que cada vez mais se configura como forma oculta de trabalho assalariado e que permite o proliferar, neste cenrio aberto pelo neoliberalismo e pela reestruturao produtiva, das distintas formas de flexibilizao salarial, de horrio, funcional ou organizativa. E neste quadro, caracterizado por um processo de precarizao estrutural do trabalho que os capitais globais esto exigindo tambm o desmonte da legislao social protetora do trabalho. E flexibilizar a legislao social do trabalho significa, no possvel ter nenhuma iluso sobre isso, aumentar ainda mais os mecanismos de extrao do sobretrabalho, ampliar as formas de precarizao e destruio dos direitos sociais que foram arduamente conquistados pela classe trabalhadora, desde

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o incio da Revoluo Industrial, na Inglaterra, e especialmente ps-1930, quando se toma o exemplo brasileiro. Ampliou-se, ento, o desenho compsito, heterogneo e multifacetado que caracteriza a classe trabalhadora brasileira. Alm das clivagens entre os trabalhadores estveis e precrios, de gnero, dos cortes geracionais entre jovens e idosos, entre nacionais e imigrantes, brancos e negros, qualificados e desqualificados, empregados e desempregados, temos ainda as estratificaes e fragmentaes que se acentuam em funo do processo crescente de internacionalizao do capital. Para compreendla preciso, ento, partir de uma concepo ampliada de trabalho, abarcando a totalidade dos assalariados, homens e mulheres que vivem da venda da sua fora de trabalho e no se restringindo aos trabalhadores manuais diretos; devemos incorporar a totalidade do trabalho social e coletivo, que vende sua fora de trabalho como mercadoria, seja ela material ou imaterial, em troca de salrio. E devemos incluir tambm o enorme contingente sobrante de fora de trabalho que no encontra emprego, mas que se reconhece enquanto parte da classe trabalhadora desempregada. III Devemos enfatizar que a classe trabalhadora, em nosso entendimento, compreende a totalidade dos assalariados, homens e mulheres que vivem da venda da sua fora de trabalho, a classe-que-vivedo-trabalho e que so despossudos dos meios de produo. (Antunes, 1999 e 1995) Com a retrao do binmio taylorismo/fordismo, desde o incio da reestruturao produtiva do capital em escala global, vem ocorrendo uma reduo do proletariado industrial, fabril, tradicional, manual, estvel e especializado, herdeiro da era da indstria verticalizada de tipo taylorista e fordista. Na principal rea do operariado metalrgico no Brasil, no ABC paulista, regio onde se encontram as principais empresas automobilsticas, houve uma reduo de aproximadamente 240 mil operrios nos anos 1980 para menos de 100 mil em 2007. Na cidade de Campinas, outra importante regio industrial metalrgica, no mesmo perodo o proletariado reduziu-se de cerca de 70 mil para pouco mais de 40 mil. Este proletariado vem diminuindo com a reestruturao produtiva do capital, dando lugar a formas mais desregulamentadas de trabalho,

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reduzindo fortemente o conjunto de trabalhadores estveis que se estruturavam atravs de empregos formais, herana da fase taylorista/ fordista. H, entretanto, contrariamente tendncia acima apontada, outra muito significativa, tambm anteriormente mencionada, que se caracteriza pelo aumento do novo proletariado fabril e de servios, em escala mundial, presente nas diversas modalidades de trabalho precarizado. So os terceirizados, subcontratados, part-time, entre tantas outras formas assemelhadas, que se expandem em escala global. Com a desestruturao crescente do Welfare State nos pases do Norte e aumento da desregulamentao do trabalho nos pases do Sul, acrescidos da ampliao do desemprego estrutural, os capitais implementam alternativas de trabalho crescentemente informais, de que so exemplo as distintas formas de terceirizao. Em 2007, mais de 50% da populao economicamente ativa encontra-se em situao de informalidade no Brasil. Em vrios outros pases da Amrica Latina a situao similar, quando no ainda mais grave; no Mxico, Argentina, Chile, depois de uma expanso de seu proletariado industrial nas dcadas passadas, passaram a presenciar significativos processos de desindustrializao, tendo como resultante a expanso do trabalho precarizado, parcial, temporrio, terceirizado, informalizado, etc, alm de enormes nveis de desemprego, de trabalhadores/as desempregados/as. (Sotelo, 2004). Outra tendncia de enorme significado no mundo do trabalho contemporneo dada pelo aumento significativo do trabalho feminino que atinge mais de 40% da fora de trabalho ou mais em diversos pases avanados e tambm na Amrica Latina, onde tambm foi expressivo o processo de feminizao do trabalho. Esta expanso do trabalho feminino tem, entretanto, um movimento inverso quando se trata da temtica salarial, onde os nveis de remunerao das mulheres so em mdia inferiores queles recebidos pelos trabalhadores, o mesmo ocorrendo em relao aos direitos sociais e do trabalho, que tambm so desiguais. No Brasil, o salrio mdio das mulheres est em torno de 60% do salrio dos trabalhadores. (Nogueira, 2004 e 2005) perceptvel tambm, particularmente nas ltimas dcadas do Sculo XX, uma significativa expanso dos assalariados mdios no setor de servios, que inicialmente incorporou parcelas significativas de trabalhadores expulsos do mundo produtivo industrial, como resultado do amplo processo de reestruturao produtiva, das polticas neoliberais e

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do cenrio de desindustrializao e privatizao, mas que tambm sentem as conseqncias do processo de reestruturao Se, entretanto, inicialmente deu-se uma forte absoro, pelo setor de servios, daqueles/as que se desempregavam do mundo industrial, necessrio acrescentar tambm que as mutaes organizacionais, tecnolgicas e de gesto tambm afetaram fortemente o mundo do trabalho nos servios, que cada vez mais se submetem racionalidade do capital e lgica dos mercados. Como exemplos, poderamos lembrar a enorme reduo do contingente de trabalhadores bancrios no Brasil, em funo da reestruturao do setor. No Brasil havia um milho de trabalhadores bancrios em 1985 e em 2007, esse contingente reduziu-se para menos de 400 mil. Com a inter-relao crescente entre mundo produtivo e setor de servios, vale enfatizar que, em conseqncias dessas mutaes, vrias atividades no setor de servios anteriormente consideradas improdutivas tornaram-se diretamente produtivas, subordinadas lgica exclusiva da racionalidade econmica e da valorizao do capital. Outra tendncia presente no mundo do trabalho a crescente excluso dos jovens, que atingiram a idade de ingresso no mercado de trabalho e que, sem perspectiva de emprego, acabam muitas vezes engrossando as fileiras dos trabalhos precrios, dos desempregados, sem perspectivas de trabalho, dada a vigncia da sociedade do desemprego estrutural. Paralelamente excluso dos jovens vem ocorrendo tambm a excluso dos trabalhadores considerados idosos pelo capital, com idade prxima de 40 anos e que, uma vez desempregados, dificilmente conseguem reingressar no mercado de trabalho. Somam-se, desse modo, aos contingentes do chamado trabalho informal, aos desempregados, aos trabalhos voluntrios etc. O mundo do trabalho atual tem recusado os trabalhadores herdeiros da cultura fordista, fortemente especializados, que so substitudos pelos trabalhadores polivalentes e multifuncionais da era toyotista. E, paralelamente excluso dos idosos e jovens em idade ps-escolar, o mundo do trabalho, nas mais diversas partes do mundo, tem se utilizado da incluso precoce e criminosa de crianas no mercado de trabalho, nas mais diversas atividades produtivas. Como desdobramento destas tendncias acima apontadas, vem se desenvolvendo no mundo do trabalho uma crescente expanso

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do trabalho no chamado Terceiro Setor, assumindo uma forma alternativa de ocupao, atravs de empresas de perfil mais comunitrios, motivadas predominantemente por formas de trabalho voluntrio, abarcando um amplo leque de atividades, onde predominam aquelas de carter assistencial, sem fins diretamente mercantis ou lucrativos e que se desenvolvem relativamente margem do mercado. A expanso desse segmento um desdobramento direto da retrao do mercado de trabalho industrial e de servios, num quadro de desemprego estrutural. Esta forma de atividade social, movida predominantemente por valores no-mercantis, tem tido certa expanso, atravs de trabalhos realizados no interior das Ongs e outros organismos ou associaes similares. Trata-se, entretanto, de uma alternativa extremamente limitada para compensar o desemprego estrutural, no se constituindo, em nosso entendimento, numa alternativa efetiva e duradoura frente ao mercado de trabalho capitalista, mas que, ao contrrio, lhe bastante funcional. No Brasil ela hoje abarca cerca de 20 milhes de trabalhadores. Outra tendncia que gostaramos de apontar a da expanso do trabalho a domiclio, permitida pela desconcentrao do processo produtivo, pela expanso de pequenas e mdias unidades produtivas. Atravs da telemtica, com a expanso das formas de flexibilizao e precarizao do trabalho, com o avano da horizontalizao do capital produtivo, o trabalho produtivo domstico vem presenciando formas de expanso em vrias partes do mundo. Sabemos que a telemtica (ou teleinformtica) nasceu da convergncia entre os sistemas de telecomunicaes por satlite e a cabo, juntamente com as novas tecnologias de informao, a microeletrnica e as redes informacionais, possibilitando enorme expanso e agilizao das atividades das transnacionais. (Chesnais, 1996) Essa modalidade de trabalho tem se ampliado em grande escala, de que so exemplos a Benetton, a Nike, dentre as inmeras empresas que vm aumentando as atividades de trabalho produtivo, realizado no espao domiciliar ou em pequenas unidades produtivas, conectadas ou integradas s empresas. Desse modo, o trabalho produtivo a domiclio mescla-se com o trabalho reprodutivo domstico, aumentando as formas de explorao do contingente feminino. este, portanto, o desenho compsito, heterogneo, polissmico e multifacetado que caracteriza a nova conformao da classe trabalhadora: alm das clivagens entre os trabalhadores estveis e precrios,

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homens e mulheres, jovens e idosos, nacionais e imigrantes, brancos e negros, qualificados e desqualificados, includos e excludos, etc, temos tambm as estratificaes e fragmentaes que se acentuam em funo do processo crescente de internacionalizao do capital. IV Desse modo, fica evidenciado que, para se compreender a nova forma de ser do trabalho, preciso partir de uma concepo ampliada de trabalho. Ela compreende a totalidade dos assalariados, homens e mulheres que vivem da venda da sua fora de trabalho, no se restringindo aos trabalhadores manuais diretos, incorporando tambm a totalidade do trabalho social, a totalidade do trabalho coletivo que vende sua fora de trabalho como mercadoria em troca de salrio. Ela incorpora, como vimos anteriormente, tanto o ncleo central do proletariado industrial, os trabalhadores produtivos que participam diretamente do processo de criao de mais valia e da valorizao do capital (que hoje transcende em muito as atividades industriais, dada a ampliao dos setores produtivos nos servios) e abrange tambm os trabalhadores improdutivos, cujo trabalhos no criam diretamente mais valia, uma vez que so utilizados como servio, seja ara uso pblico, como os servios pblicos, seja para uso capitalista. Podemos tambm acrescentar que os trabalhadores improdutivos, criadores de anti-valor no processo de trabalho, vivenciam situaes muito aproximadas com aquelas experimentadas pelo conjunto dos trabalhadores produtivos. A classe trabalhadora hoje incorpora tanto os trabalhadores materiais, como aqueles e aquelas que exercem trabalho imaterial, predominantemente intelectual. Abrange, tambm, o proletariado rural, que vende a sua fora de trabalho para o capital, de que so exemplos os assalariados das regies agro-industriais e engloba o proletariado precarizado, o proletariado moderno, fabril e de servios, part time, que se caracteriza pelo vnculo de trabalho temporrio, pelo trabalho precarizado, em expanso na totalidade do mundo produtivo. Inclui, ainda, em nosso entendimento, a totalidade dos trabalhadores desempregados. Naturalmente, em nosso desenho analtico no fazem parte da classe trabalhadora moderna os gestores do capital, pelo papel

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central que exercem no controle, gesto e sistema de mando do capital. Esto excludos tambm os pequenos empresrios, a pequena burguesia urbana e rural que proprietria e detentora, ainda que em pequena escala, dos meios de sua produo. E esto excludos tambm aqueles que vivem de juros e da especulao. Compreender, portanto, a classe-que-vive-do-trabalho, a classe trabalhadora hoje, de modo ampliado, implica em entender este conjunto de seres sociais que vivem da venda da sua fora de trabalho, que so assalariados e desprovidos dos meios de produo. Como todo trabalho produtivo assalariado, mas nem todo trabalhador assalariado produtivo, uma noo contempornea de classe trabalhadora deve, em nosso entendimento, incorporar a totalidade dos trabalhadores assalariados. A classe trabalhadora, portanto, mais ampla do que o proletariado industrial produtivo do sculo passado, embora este ainda se constitua em seu ncleo fundamental. Ela tem uma conformao mais fragmentada, mais heterognea e mais complexificada. Essa nova morfologia do trabalho, que aqui to somente indicamos alguns pontos centrais, no poderia deixar de afetar os organismos de representao dos trabalhadores. Da a enorme crise dos sindicatos, para ficar somente neste exemplo. Se muitos analistas diagnosticaram um carter terminal neste organismo de representao de classe, esse no o nosso entendimento. Aqui queremos to somente registrar que a nova morfologia do trabalho significa tambm um novo desenho das formas de representao das foras sociais do trabalho. Se a indstria taylorista e fordista parte mais do passado do que do presente (ao menos enquanto tendncia), como imaginar que um sindicalismo verticalizado possa representar esse novo e compsito mundo do trabalho? Uma concluso se impe, guisa de provocao: hoje devemos reconhecer (e mesmo saudar) a des-hierarquizao dos organismos de classe. A velha mxima de que primeiro vinham os partidos, depois os sindicatos e, por fim, os demais movimentos sociais, no encontra mais respaldo no mundo real e em suas lutas sociais. O mais importante, hoje, aquele movimento social, sindical ou partidrio que consegue chegar as razes das nossas mazelas e engrenagens sociais, tocando suas questes vitais. E, para faz-lo, imprescindvel conhecer a nova (e ampla) morfologia do trabalho, bem como as complexas engrenagens do capital.

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Jos Affonso Dallegrave NetoMestre e Doutor em Direito pela UFPR; Advogado membro do IAB e da ANDT Academia Nacional de Direito do Trabalho

RESPONSABILIDADE CIVIL NO DIREITO DO TRABALHOEsse texto um resumo da conferncia ministrada em evento do TRT, 2. Regio. A abordagem completa do tema encontrase na obra Responsabilidade Civil no Direito do Trabalho, 3. edio, So Paulo: LTr, 2008.

1. Espcies de responsabilidades No contrato de trabalho h dois tipos de responsabilidade: uma estribada na inexecuo culposa de obrigao e outra no dano que tenha como nexo causal o simples exerccio regular da atividade profissional. Aquela provm da responsabilidade civil subjetiva, enquanto a segunda est embasada na teoria objetiva concernente assuno do risco da atividade pela empresa. O Cdigo Civil de 2002 introduziu clusula geral de responsabilidade objetiva, cujo alcance bem mais amplo do que o das normas esparsas at ento existentes. Enquanto estas apontam casos especficos, aquela um enunciado largo e aberto que comporta um vasto nmero de situaes. Em face dessa inovao normativa, h quem defenda que hoje existe um sistema dual, estando justapostas a responsabilidade civil subjetiva e objetiva. Ao nosso crivo no possvel chegar a essa inferncia, remanescendo a responsabilidade subjetiva como regra geral, vez que assim dispe o caput do art. 927 do CC e tambm o art. 7, XXVIII, da CF, quando prev a indenizao acidentria a cargo do empregador nos casos em que este incorrer em dolo ou culpa. Em se tratando de responsabilidade civil contratual, o

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devedor, a rigor, responder pelos prejuzos que causar ao credor, decorrentes do descumprimento da obrigao. Logo, a violao do dever jurdico resulta da inexecuo de uma obrigao contratual preexistente. Ao contrrio, a responsabilidade extracontratual delitual, vez que decorre da violao da norma geral (neminem laedere), sendo o ato ilcito (art. 927, CC) que dar ensejo relao jurdica obrigacional entre agente e vtima (dever de indenizar). 2. Indenizao suplementar e clusula penal O Cdigo Civil de 2002 inovou ao introduzir a possibilidade do julgador deferir indenizao suplementar nos termos do pargrafo nico do art. 404, do CC/02: Quanto chamada clusula penal, o seu valor, a rigor, imutvel, no podendo exceder o da obrigao principal, exceto quando a obrigao de fundo for cumprida em parte, ocasio em que o juiz poder reduzir proporcionalmente a pena estipulada, conforme dispem os artigos 409 e 416 do Cdigo Civil. 2.1. Obrigaes principais, secundrias e deveres

anexos

Na esfera trabalhista, a obrigao principal do empregado de meio e se traduz em trabalhar de maneira subordinada e de acordo com as diretivas da empresa-empregadora. J a obrigao principal da empresa de resultado e consiste em remunerar o trabalho prestado, de acordo com o valor pactuado e nos termos das normas legais e coletivas que incidem sobre o contrato. As obrigaes secundrias so aquelas destinadas ao regular cumprimento das principais. Por derradeiro, registre-se a existncia dos deveres de conduta anexos, que no dizem respeito a prestaes especficas, mas so revelados apenas na medida em que sejam necessrios para a realizao das finalidades da prpria relao obrigacional, em ateno a uma unidade funcional. Tais deveres tm sua origem e so informados pela boa-f

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estampada no art. 422 do Cdigo Civil Brasileiro. A despeito da existncia de vrias taxionomias acerca dos deveres anexos de conduta, adotamos aquela de Antonio Menezes Cordeiro, que assim dispe: a) deveres de proteo; b) deveres de esclarecimento; c) deveres de lealdade. Os primeiros visam elidir danos mtuos nas pessoas e nos patrimnios fsicos e psquicos, materiais e morais dos contratantes. Os segundos obrigam as partes a se informarem mutuamente de todos os aspectos do vnculo, bem como os efeitos que da execuo contratual possam advir. Os ltimos impem aos contratantes absterem-se de comportamentos que possam falsear o objetivo do contrato ou causar desequilbrio acerca da comutatividade das prestaes. 3. Ato ilcito e Culpa Ato ilcito a antijuridicidade oriunda de ao voluntria com culpa do agente. A ao voluntria do homem, em sentido amplo, decorre da manifestao de sua vontade em fazer ou deixar de fazer alguma coisa. Entretanto, no se pode confundir vontade com o querer intencional. Esta noo necessria para diferenciar culpa de dolo, ambas pertencentes culpa lato sensu. No dolo h uma trplice coincidncia entre vontade manifestada, inteno desejada e resultado obtido; na culpa o agente decide pela conduta praticada, sem desejar o resultado malfico, o qual , todavia, previsvel devido negligncia, imprudncia e impercia praticadas. Nessa esteira taxionmica, a negligncia ocorre pela ausncia de cautela adequada do agente, configurada por uma atitude omissiva; vg: o empregador negligente quando deixa de instruir, de forma eficaz, sobre o uso adequado de EPI. A imprudncia se caracteriza pela falta de cuidado caracterizada por uma atitude comissiva e temerria; vg: o empregador que expe o seu empregado a um perigo iminente, exigindolhe servios superiores a sua fora. Finalmente, a impercia traduz-se pela falta de habilidade tcnica para o exerccio de determinada atividade profissional; vg: o empregado que, na funo de motorista, causa dano ao

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patrimnio da empresa por falta de habilidade na conduo do veculo da empresa (barbeiragem no volante). A imputabilidade , pois, elemento indissocivel da culpa, podendo ser conceituada como o conjunto de condies pessoais que do ao agente capacidade para poder responder pelas conseqncias de uma conduta contrria ao dever. Com outras palavras pode-se asseverar que imputvel aquele que podia e devia ter agido de outro modo. 3.1. Excludentes de ilicitude: legtima defesa, exerccio regular de um direito e estado de necessidade H casos em que o agente atua em legtima defesa ou no exerccio regular de um direito reconhecido. A rigor, nessas situaes no h responsabilidade, porque sequer existe ato ilcito nos termos do art. 188, I, CC/02. H trs condies para que o agente se exima da responsabilidade invocando a legtima defesa: 1) que a agresso seja injusta; 2) que a defesa seja proporcional ao ataque; 3) que a reao seja imediata no havendo tempo hbil para buscar a tutela do Estado. Quanto ao alcance do art. 188, I, do CC, que diz no ser ato ilcito aquele praticado no exerccio regular de um direito reconhecido, cabe registrar que o dano causado sem violao ao direito um dano justo e, como tal, no serve de elemento do ato ilcito. O artigo 188 do CC/02, em seu pargrafo nico, declara inexistir ato ilcito quando o agente atua em estado de necessidade para remover perigo iminente, desde que as circunstncias tornem o ato absolutamente necessrio e sem exceder os limites do indispensvel para remoo do perigo. O conceito legal de estado de necessidade aquele previsto no art. 24 do Cdigo Penal: quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que no provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito prprio ou alheio, cujo sacrifcio, nas circunstncias, no era razovel exigir-se. Diante de tais consideraes, conclui-se que as chamadas excludentes de ilicitude abrangem atos que causam danos a terceiros, mas que o legislador o justifica mediante juzo de ponderao que leva em conta o real interesse do agente. Com efeito, quando o ato lesivo praticado

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sem excesso e em legtima defesa, no exerccio regular de um direito ou em estado de necessidade no sero considerados crimes, nem tampouco ato ilcito na esfera civil. 3.2. Graus de Culpa A regra geral permanece intocvel no sentido de que a indenizao se mede pela extenso do dano (restitutio in integrum). Todavia, doravante, a prpria lei (art. 944, par. nico, e art. 945, ambos do CC) fez questo de dizer que o grau de culpa, para o qual concorreram agente e vtima, poder servir de base para o juiz fixar o quantum indenizatrio. Os graus da culpa passaram a ganhar relevo a partir de ento, motivo pelo qual vale a pena diferenciar a culpa grave, da culpa leve e da culpa levssima. Em sede de ao reparatria de acidente do trabalho, a distino ganhou importncia com a promulgao da CF/88, pois antes dela o empregador respondia apenas pelos danos causados por dolo ou culpa grave, de acordo com a dico da Smula n. 229 da STF. Em vigor o art. 7 XXVIII, da atual Carta da Repblica, o empregador passa a responder por dolo ou culpa (simples). Em se tratando de dano com origem na inexecuo contratual, o ato culposo ser presumido caso a obrigao inadimplida seja de resultado como, por exemplo, o prejuzo material oriundo da inadimplncia salarial. Nessa situao, a vtima s precisa provar o dano e o nexo causal (que o dano decorreu da inexecuo do contrato de trabalho). Contudo, quanto inexecuo de meio - vg: deveres anexos de colaborao ou lealdade - no se admite a presuno de culpa, tendo o ofendido que comprov-la em juzo para fazer jus reparao. salutar marcar a distino entre culpa in eligendo e culpa in vigilando, ambas aplicveis no campo da responsabilidade civil subjetiva, forte nos contratos de trabalho. Culpa in eligendo aquela que procede de m escolha do representante ou preposto da empresa. Culpa in vigilando provm da ausncia de correta fiscalizao ou vigilncia do empregador em relao aos atos dos empregados que se encontram sob sua subordinao. Tais espcies so relevantes, principalmente, para fundamentar a responsabilidade do empregador por ato danoso praticado

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por seu empregado contra terceiro. 3.3 Abuso de Direito Somente com o advento do Cdigo Civil de 2002, estabeleceu-se um conceito legal e completo do abuso de direito: Art. 187: Tambm comete ato ilcito o titular de um direito que, ao exerc-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econmico ou social, pela boa-f ou pelos bons costumes. No se pode negar a relevncia do abuso de direito na rbita trabalhista, mxime nas situaes em que o empregador extrapola o seu direito de comando. O jus variandi patronal quando exercido de forma ilegtima e divorciado da real necessidade de servio ou mesmo em confronto com os limites sociais e ticos do contrato caracteriza abuso de direito reparvel mediante ao trabalhista. A clusula geral de boa-f objetiva, introduzida pelo art. 422 do CC/02 e de inspirao nitidamente constitucional, contribui para o conceito de abuso de direito ao proporcionar uma viso exata de relao jurdica complexa, como aquela que emerge deveres de conduta s partes pautados em valores metajurdicos: lealdade, probidade, proteo, informao e colaborao. Assim, alm das obrigaes principais e secundrias, o cumprimento das partes na relao obrigacional envolve a necessidade de observar mltiplos deveres acessrios de conduta. A prpria CLT, em seu art. 493, ao conceituar falta grave fez questo de assinalar que h deveres e obrigaes do empregado. Tais deveres anexos de conduta, quando inobservados, caracterizaro cumprimento defeituoso, dando ensejo a resoluo contratual, alm da obrigao do devedor de reparar os danos dele resultantes. 4. Dano material e moral Pode-se conceituar dano como leso a interesses juridicamente tutelveis; a ofensa ao patrimnio patrimonial ou extrapatrimonial de algum. Para que o dano seja indenizvel, necessrio

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preencher trs requisitos: a) violao de um interesse patrimonial ou moral de uma pessoa fsica ou jurdica; b) certeza do dano, no sendo possvel compensar a vtima por um suposto dano abstrato; c) subsistncia do dano no momento de sua exigibilidade em juzo. Quando o dano repercute sobre o patrimnio da vtima, entendido como aquele suscetvel de aferio em dinheiro, denominarse- dano patrimonial. Ao revs, quando a implicao do dano violar direito geral de personalidade, atingindo interesse imaterial, dir-se-, ento, dano extrapatrimonial. O dano patrimonial alcana tanto o dano atual, quanto o dano futuro. Aquele conhecido como dano emergente, constituindo-se em tudo aquilo que se perdeu e que seja suscetvel de liquidao pela aplicao da teoria da diferena entre o patrimnio anterior e posterior inexecuo contratual ou ao fato gerador do dano. Ambos, dano emergente e lucro cessante esto previstos no art. 402 do atual Cdigo Civil. Registre-se ainda o dano material proveniente da perda de uma chance, ensejando a indenizao quando a vtima se v frustrada, por ato de terceiro, em uma expectativa sria, legtima e provvel, no sentido de obter uma vantagem ou de evitar uma perda que ameaa. 4.1. Conceito de dano moral O dano moral se caracteriza pela simples violao de um direito geral de personalidade, sendo a dor, a tristeza ou o desconforto emocional da vtima sentimentos presumidos de tal leso (presuno hominis) e, por isso, prescindveis de comprovao em juzo. Os direitos de personalidade encontram-se exemplificados no artigo 5, V e X, da Carta. Mais que isto, o constituinte, dada a importncia do tema, trouxe uma regra que desenha verdadeira clusula geral de proteo personalidade, qual seja o art. 1., III, que assegura a dignidade da pessoa humana como fundamento de todo Estado Democrtico de Direito. Assim, toda a ordem jurdica deve ser interpretada luz do princpio da mxima efetividade dos direitos de personalidade. Importa sublinhar que aludidos direitos de personalidade manifestam-se tanto fora quando dentro da esfera dos contratos. Assim, o cidado empregado, quando da execuo do contrato de trabalho, tem seus direitos de personalidade salvaguardados, inclusive contra eventuais

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abusos da parte do empregador. Caso o trabalhador seja ofendido em sua honra, privacidade, nome, imagem, etc, haver leso a um interesse extrapatrimonial que tutelado em direito e a reparao desse dano moral estar enquadrada na responsabilidade civil contratual, mxime porque agente e vtima ostentam a figura jurdica de contratante (empregado e empregador) no momento da consumao do dano. Em tempos hodiernos indiscutvel a admisso do dano extrapatrimonial em matria contratual, o qual pode se manifestar pelo: (a) no-cumprimento de uma obrigao, (b) cumprimento defeituoso ou (c) quebra de deveres secundrios derivados da boa-f. Geralmente, em tais conjeturas o dano moral se encontra cumulado com o dano material, o que juridicamente possvel, se considerarmos que ambos partem de fatos geradores diversos. Nessa direo a correta Smula 37 do STJ. Das trs formas j vistas, a de maior incidncia o dano moral oriundo do descumprimento de dever anexo de conduta, que se subdivide em dever de proteo, informao e lealdade. Se de um lado comum o empregador cumprir de forma regular sua obrigao principal, de outro lado, verifica-se, amide, seu total desrespeito em relao aos direitos de personalidade do trabalhador. O fato da CLT estabelecer que a ofensa moral praticada pelo empregado ou pelo empregador constitui-se causa de resoluo contratual (art. 482, j e k e art. 483, e), no tem o condo de obstar o pleito de indenizao por danos morais, vez que as leses produzidas encerram facetas diferentes e, portanto, exigem tutelas jurdicas diferentes. Assim, no caso da empresa ferir a honra do seu empregado, este poder pleitear cumulativamente: a) resciso indireta do contrato de trabalho com a indenizao trabalhista da resultante; b) indenizao civil pelos danos morais; c) representao criminal atravs de ao penal prpria. 4.2. Enquadramento do dano esttico Consigne-se a existncia de corrente doutrinria que posiciona os danos corporais, estticos ou da imagem no como espcies de dano moral, mas como um tertium genus. Referido enquadramento

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nos parece injustificvel, pois em tais direitos de personalidade no se verifica nenhuma peculiaridade que exija um tratamento diverso daquele dispensado aos demais interesses extrapatrimoniais. Ademais, o dano moral e o dano esttico no so cumulveis, vez que o dano esttico ou importar em dano material ou estar compreendido no conceito de dano moral. 4.3. Dano moral sofrido pela pessoa jurdica Em relao possibilidade da pessoa jurdica sofrer dano moral, o STJ j pacificou o tema em sentido positivo atravs da Smula 227. A jurisprudncia desse excelso pretrio vem firmando posio de que a indenizao, nesses casos, possvel somente se houver leso honra objetiva (difamao), sendo imprprio falar em honra subjetiva (calnia ou injria) da empresa. Tal exemplo do STJ deve ser seguido pelos pretrios trabalhistas. 4.4. Fixao do valor do dano moral A legislao positiva omissa na tarifao dos danos morais e assim o faz de forma acertada, vez que pela prpria natureza dos direitos imateriais de personalidade no possvel aplicar valores nominais e imutveis a todas as situaes concretas, indiscriminadamente. Conforme preceitua o art. 946 do CC/02, combinado com o art. 475-C, II, do CPC, o juiz deve arbitrar o valor da condenao por dano moral. Com efeito, a efetiva reparao do dano extrapatrimonial, mormente aquele advindo da relao empregatcia, deve representar funo ressarcitria-preventiva. Assim, o valor da indenizao deve representar, ao mesmo tempo, uma compensao financeira vtima e uma punio ao agente capaz de desestimular a reiterao da prtica leviana.

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5. Nexo causal cedio que no haver indenizao sem a presena do dano, bem assim quando ausente o nexo causal entre o dano e a culpa ou entre o dano e a atividade de risco do agente. Ambos os elementos (dano e causalidade) so imprescindveis tanto na responsabilidade civil contratual e aquiliana, quanto na responsabilidade subjetiva e objetiva. A teoria da causalidade adequada e imediata a que melhor se ajusta para a responsabilidade civil em nosso ordenamento jurdico, vez que considera como causa no s o precedente necessrio, mas tambm o adequado e imediato ultimao concreta do resultado. Nesse sentido a regra do art. 403 do novo Cdigo Civil. Contudo, se a causa do agente no tenha sido a nica determinante, mas tenha concorrido para a existncia ou agravamento do dano, aplica-se a regra do art. 945 do novo Cdigo Civil (possibilidade de reduo do valor da indenizao). Observe-se ainda que as chamadas concausas, preexistentes, concorrentes ou supervenientes, no elidem o nexo causal, mas so apenas circunstncias que concorrem para a tipificao ou o agravamento do prejuzo. 5.1. Excludentes da responsabilidade Quanto aos chamados fatores excludentes da responsabilidade, impende registrar as quatro situaes possveis: culpa exclusiva da vtima; fato de terceiro; fora maior; e clusula de no indenizar. Por serem enquadradas como fato impeditivo do direito de indenizar, o nus da prova ser sempre do Ru-empregador, nos termos do art. 818 da CLT combinado com o art. 333, II, do CPC. Examinemos uma a uma. preciso distinguir o dano que tenha sido motivado por culpa exclusiva da vtima do dano em que tenha havido por culpa concorrente da vtima. O primeiro caso afigura-se como fator excludente de

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indenizao, posto que o aparente agente atua apenas como um instrumento do acidente, no se podendo falar em liame de causalidade entre seu ato e o prejuzo experimentado pelo ofendido. Na segunda situao, a culpa concorrente da vtima no ter o condo de elidir, mas apenas de abrandar a indenizao, conforme previso do art. 945 do novo Cdigo Civil. Quanto ao fato de terceiro, tido como pessoa diversa do empregado ou empregador, resta saber se o agente foi o causador nico ou concorrente do dano sofrido pela vtima. Deve-se investigar, tambm, se o terceiro no um preposto da empresa ou mesmo colega de trabalho da vtima, pois, nesse caso, por fora do que dispe a lei, a responsabilidade civil recair solidariamente ao agente direto e ao empregador (responsabilidade solidria da empresa por ato de preposto ou empregado praticado em razo do contrato de trabalho). Exegese do art. 932, III, do CC. Aqui, como si acontecer, a vtima acionar judicialmente a empresa-empregadora, tendo esta direito ao de regresso contra o agente (empregado) em relao ao valor que destinou indenizao paga. No que tange a proximidade das figuras fato de terceiro e caso fortuito, o fato de terceiro, para excluir integralmente a responsabilidade do agente causador direto do dano, h que se vestir de caractersticas semelhantes s do caso fortuito, sendo imprevisvel e irresistvel, conforme assinala o pargrafo nico do art. 393 do novo CCB. A CLT tambm conceitua fora maior, em seu art. 501, como sendo todo acontecimento inevitvel em relao vontade do empregador e para a realizao do qual este no concorreu, direta ou indiretamente. Ainda: nos termos do seu pargrafo 1, a imprevidncia do empregador excluiu a razo da fora maior. importante sublinhar a diferena de tratamento dado pela legislao trabalhista e pela lei civil acerca dos efeitos da fora maior. Enquanto o Cdigo Civil exclui o devedor pelos danos resultantes de fora maior, desde que expressamente no se houver por eles responsabilizado (art. 393 do novo CCB), a lei trabalhista apresenta regramento diverso. Por intermdio da aplicao analgica do art. 501 e 502, II, da CLT, a fora maior no elide o direito indenizao pelo empregado, sendo, contudo, devida pela metade quando ela for capaz de afetar substancialmente a empresa ou sua situao econmica.

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Por fim, consigne-se como fato excludente da responsabilidade a chamada clusula de no indenizar fixada pelos signatrios no bojo do contrato. Fruto da autonomia privada, tal avena no encontra margem de aplicao em nosso sistema jurdico marcado pelo solidarismo constitucional (art. 1, III e art. 3, I), seno em situaes especialssimas onde se impere a bilateralidade do consentimento e desde que no exima as situaes de dolo do estipulante ou outras que colidam com a lei. Por tais motivos, invivel a clusula de no indenizar perante os contratos individuais de trabalho, seja porque trata de um contrato de adeso, seja porque um dos contratantes considerado hipossuficiente, seja porque tal ajuste fere frontalmente o conceito legal de empregador, previsto no caput do art. 2. da CLT e o princpio da irrenunciabilidade dos direitos trabalhistas.

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Carlos Roberto GonalvesPALESTRA: TEORIA GERAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL Sinto-me extremamente honrado com o convite que me foi formulado pela Escola da Magistratura do TRT da 2. Regio para participar, como conferencista, do painel sobre responsabilidade civil. Este realmente um dos mais importantes e atuais temas, de interesse de todos os operadores do direito. Vamos enfocar, precipuamente, as inovaes do Cdigo Civil de 2002 em matria de responsabilidade civil. Vrias alteraes importantes foram efetuadas, valendose, em grande parte, do que a jurisprudncia j vinha decidindo. Lamentamos, todavia, o fato de no se ter aproveitado a oportunidade para disciplinar o dano moral. Hoje, os tribunais esto abarrotados de inmeras aes que versam sobre o dano moral. No entanto, temos um novo Cdigo Civil que nada diz a respeito dessa modalidade de dano, fazendo-lhe apenas uma singela referncia no art. 186. A explicao para essa omisso est no fato de que o referido diploma comeou a ser projetado h mais de 30 anos, numa poca em que no se indenizava essa espcie de dano. O princpio da reparabilidade do dano moral acabou sendo acolhido na Constituio Federal de 1988. Ento, quando o Projeto de Lei n. 634, de 1975, foi elaborado, j se considerou, na poca, um grande progresso o fato de o referido art. 186 dizer que todo aquele que causa dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, fica obrigado a reparar o prejuzo causado. Essa referncia ao dano moral foi considerada um grande avano, porque at ento, como j dito, no se indenizava essa modalidade de dano o que acabou acontecendo somente com o advento da atual Constituio Federal. Mas o tratamento do dano moral resumiu-se a isso. Na parte que trata da indenizao propriamente dita, o novo Cdigo no trouxe nenhum critrio, nenhum parmetro, nada que possa auxiliar os juzes na quantificao do dano moral. Em concluso: continuaro sendo observados os mesmos critrios estabelecidos pela jurisprudncia.

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A estrutura do novo Cdigo Civil, no tocante responsabilidade civil, no foi alterada, ou seja, mantm-se aquelas regras da Parte Geral do Cdigo de 1916. O antigo art.159 passou a ser art. 186, com o referido acrscimo: ainda que o dano seja exclusivamente moral. Na Parte Especial, h dois captulos, exatamente como no Cdigo de 1916. Mudou apenas o ttulo geral, que passa a ser Da Responsabilidade Civil. No Cdigo de 1916 no havia esse ttulo, mas apenas um captulo, que comeava no artigo 1.518, intitulado Das obrigaes por atos ilcitos, que continha vrias regras. Em seguida, vinha o ttulo: Da liquidao das obrigaes por atos ilcitos. quando, ento, o Cdigo mostrava como se deve calcular a indenizao em caso de homicdio, em caso de leso corporal, em caso de calnia, difamao etc. O novo Cdigo muda apenas os ttulos. claro que alguns artigos desses captulos tiveram sua redao alterada e que houve um progresso, um aperfeioamento. Antes de falar sobre isso, porm, gostaria de comentar alguns dispositivos que se encontram fora do captulo especfico da responsabilidade civil, mas que com ela se relacionam O primeiro deles o art. 5 do novo Cdigo Civil, que reduz a maioridade para 18 anos. Sabemos que, anteriormente, a maioridade era alcanada somente aos 21 anos de idade. O novo diploma reduziu esse limite para 18 anos. Isto ir, com certeza, acarretar prejuzo a muitas vtimas. E tambm, de uma certa maneira, aos prprios menores. Porque, at ento, os incapazes eram protegidos e assistidos pelo Ministrio Pblico, que se manifestava obrigatoriamente em todos casos em que havia interesses dos menores de 21 anos, naturalmente para defend-los. No tero estes mais o Ministrio Pblico ao seu lado. As vtimas tambm sero prejudicadas, porque o art. 1.521, inciso I, do Cdigo de 1916 dizia que os pais respondem pelos atos ilcitos praticados pelos filhos menores. E a menoridade s terminava aos 21 anos de idade. Mas, como no novo Cdigo ela termina aos 18 anos, as vtimas no podero mais mover aes de indenizao contra os pais, por atos dos filhos que j houverem completado 18 anos de idade. A ao s poder ser movida contra os causadores do dano, no contra os seus pais, porque estes no respondero mais pelos atos dos filhos que j tiverem atingido a maioridade, isto , que j tiverem completado 18 anos de idade. Isso causar prejuzo s vtimas, porque nessa faixa de idade os jovens em geral ainda no tm patrimnio suficiente para responder pela indenizao.

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Ainda sob este aspecto, no Cdigo Civil de 1916 a responsabilidade civil j comeava aos 16 anos de idade. Dizia o referido artigo 156 que os maiores de 16 e menores de 21 anos de idade eram equiparados aos adultos quanto aos atos ilcitos que praticarem. Assim, se o causador do dano tivesse menos de 16 anos, seria civilmente irresponsvel e estaria na mesma situao dos loucos: no responderia civilmente pelos seus atos. Por eles responderiam os seus pais, ou os tutores, se aqueles j houvessem falecido. Mas, se o menor tivesse de 16 a 21 anos, seria equiparado ao adulto e, portanto, considerado civilmente responsvel. Desse modo, a vtima j poderia, se quisesse, mover ao contra ele. Na maioria das vezes, todavia, as vtimas preferiam acionar os pais dos menores. Mas havia casos em que estes se encontravam na faixa dos 16 aos 21 anos e tinham melhores condies financeiras do que os pais. Nestas hiptese, a vtima podia escolher entre mover ao s contra o menor, ou s contra os seus pais, ou contra ambos, porque todos respondiam solidariamente. O novo Cdigo, no entanto, no contem nenhum artigo igual ao mencionado art. 156 do Cdigo Civil de 1916. No h, assim, nenhum dispositivo prevendo que a partir dos 16 anos os causadores de danos j se tornam responsveis pela indenizao. Desse modo, os pais respondero pelos atos dos filhos menores de 18 anos, tenham 17, 16, 15, 14 anos ou menos. Assim, se o causador do dano tiver 16 ou 17 anos, a ao s poder ser movida contra os seus pais. Estes deixaro de responder pelos atos dos filhos que j tiverem completado 18 anos. Conseqentemente, ou a ao ser movida contra os pais, porque os filhos ainda no completaram 18 anos, ou ser movida s contra os filhos, porque estes j completaram 18 anos. nesse ponto que se introduziu uma inovao importante. Preceitua o art. 928 do novo Cdigo Civil que o incapaz responde pelos prejuzos que causar, se as pessoas por ele responsveis no tiverem obrigao de faz-lo ou no dispuserem de meios suficientes. Em princpio, s os pais respondem pelos atos dos filhos que no tenham completado 18 anos. Excepcionalmente, porm, os filhos respondero por esses atos quando as pessoas por eles responsveis, os seus pais, no tiverem obrigao de faz-lo ou no dispuserem de meios suficientes. Se o pai, todavia, no tiver dinheiro, nem patrimnio suficiente para responder pelo ato ilcito praticado pelo menor, ento surgir a responsabilidade dos filhos, que passa a ser subsidiria. S se os pais no tiverem condies de pagar a indenizao que a vtima poder

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voltar-se contra o incapaz, mas com uma condio, imposta no pargrafo nico: A indenizao prevista nesse artigo, que dever ser equitativa, no ter lugar se ela privar do necessrio o incapaz ou as pessoas que dele dependem. O novo Cdigo criou, assim, a responsabilidade subsidiria e mitigada, dos incapazes. Subsidiria, porque a vtima precisa, primeiramente, procurar receber dos pais a devida indenizao. S depois de esgotada essa possibilidade, pela constatao de que os genitores no tm recursos suficientes para ressarcir a vtima, poder esta voltar-se contra o menor de 18 anos. Mas desde que ele possa pagar a indenizao sem se privar do necessrio ao seu sustento, ou seja, s se for um menor abastado. O mesmo se d em relao ao louco, que continuar civilmente irresponsvel, ou seja, o curador continuar sendo responsvel pelos seus atos. Mas, se o curador no tiver condies de pagar a indenizao, a vtima poder voltar-se contra o amental, desde que este seja abastado e possa pagar a indenizao sem se privar do necessrio ao seu sustento. Essa responsabilidade mitigada e subsidiria dos incapazes, adotada pelo novo Cdigo Civil, j existe em muitos pases, como na Espanha, na Sua e no Mxico, dentre outros. Ainda sem entrar no captulo da responsabilidade civil, mas comentando alguns artigos da Parte Geral do Cdigo, anota-se uma mudana muito importante no captulo da prescrio. Sabemos que, anteriormente, a prescrio das aes pessoais s ocorria em 20 anos. No novo Cdigo, porm, h um nico prazo prescricional para as aes de reparao de danos, que de apenas 3 anos (art. 206, par. 3o., V). Alm disso, segundo o novo diploma, o que prescreve a pretenso, e no a ao (art. 189). Nas disposies finais, h uma regra de transio, o art. 2.028, que prescreve: Sero os da lei anterior os prazos, quando reduzidos por este Cdigo, e se, na data de sua entrada em vigor, j houver transcorrido mais da metade do tempo estabelecido na lei revogada. Desse modo, somente ser aplicado o prazo reduzido aos casos em que ainda no haja transcorrido mais da metade do tempo estabelecido no diploma anterior. H ainda uma outra regra a respeito de prescrio em matria de responsabilidade civil, no novo Cdigo, e que consta do art. 200. Neste caso, nada mais fez o novo diploma do que consagrar uma orientao seguida pela jurisprudncia. J havia decises, inclusive do Superior Tribunal de Justia, reconhecendo que no corre a prescrio

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antes da sentena definitiva, quando a ao se originar de fato que deva ser apurado no juzo criminal. Muitas vezes o advogado da vtima espera o desfecho do processo crime, para ajuizar a actio judicati, porque sabe que a sentena penal condenatria faz coisa julgada no cvel. Mas, e se o ru da ao cvel for o Estado, ou se tratar de algum outro caso em que a prescrio ocorra em pouco tempo? Pode demorar o desfecho da ao penal, a ponto de prescrever a pretenso que poderia ser deduzida em juzo, se o prazo se contasse da data do fato. Ento, j havia uma orientao do Superior Tribunal de Justia no sentido de que, quando o fato, alm de ser ilcito civil, tambm crime, o prazo prescricional s comea a correr do trnsito em julgado da sentena penal condenatria. Mesmo que o processo crime dure 10, 15 ou 20 anos, no correr a prescrio no cvel, antes do trnsito em julgado da sentena penal condenatria. o que prescreve o artigo 200 do novo Cdigo, que apenas aproveitou e reproduziu essa jurisprudncia. O novo Cdigo comea o captulo referente aos atos ilcitos corrigindo um equvoco de redao do art. 159 do Cdigo de 1916, que dizia: Aquele que, por ao ou omisso voluntria, negligncia, ou imprudncia, violar direito, ou causar prejuzo a outrem, fica obrigado a reparar o dano. H um equvoco na expresso violar direito OU causar prejuzo, que foi corrigido. Ou alternativa. Fica a impresso de que, para algum ser obrigado a reparar o prejuzo, basta uma conduta ou outra, isto , basta causar dano, mesmo que no se tenha violado direito, ou basta violar direito, mesmo que se no tenha causado o dano. Na verdade, para que algum seja obrigado a reparar prejuzo necessrio que tenha feito as duas coisas: agido contrariamente ao direito e causado prejuzo a outrem. Por exemplo: se algum viola o Cdigo de Trnsito Brasileiro, por dirigir embriagado, ou subir com o veculo na calada, ou invadir a contramo de direo, ou atravessar cruzamento com o sinal fechado, mas por outro lado tem a sorte de no atropelar ningum, de no colidir com nenhum outro carro, de no causar dano a qualquer pessoa, no se pode dizer que tenha praticado um ato ilcito, nem que tenha a obrigao de indenizar. Para que isto acontea necessrio que tenha, concomitantemente, violado direito e causado dano a outrem, como consta do artigo 186 do novo Cdigo. s vezes a pessoa causa dano a outrem, mas a sua conduta

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no ilcita. Quando age em legtima defesa, por exemplo, que excludente da responsabilidade admitida tambm no cvel. Mesmo tendo tirado a vida de uma pessoa, a sua conduta no foi contrria ao direito e, portanto, no est obrigado a reparar o prejuzo. Quantas vezes, nos dias de hoje, os patres resolvem diminuir o seu quadro de funcionrios por dificuldades financeiras e despedem alguns empregados, causando prejuzo a estes. Mas, tendo indenizado todos os seus direitos trabalhistas, no poder ser responsabilizado pelo direito comum pelos prejuzos dos funcionrios, decorrentes do desemprego, porque no teve nenhuma conduta contrria ao direito. por isso que o art. 186 do novo Cdigo exige que o agente tenha violado direito e causado prejuzo, ainda que exclusivamente moral, para se poder afirmar que cometeu um ato ilcito. No Cdigo Civil de 1916 no havia nenhuma referncia expressa possibilidade de algum ser responsbilizado civilmente em caso de abuso de direito. Apesar disso, j h muitos anos a doutrina e a jurisprudncia vinham entendendo ser possvel algum, que tenha causado dano, responder por abuso de direito. Para tanto, a doutrina passou a interpretar a contrario sensu o art. 160 do diploma anterior, que declarava, no inciso I, no constiturem atos ilcitos os praticados em legtima defesa ou no exerccio regular de um direito. Interpretando-se a contrario sensu esse dispositivo, torna-se possvel concluir que, ento, constitui ato ilcito o exerccio irregular de um direito, ou seja, que comete ato ilcito quem abusa do seu direito. H muitos anos se entende no Brasil que, mesmo em caso de conduta lcita do agente, pode ele ser responsabilizado se estiver abusando do seu direito, tendo esse abuso causado danos a outrem. Nesse caso, fica obrigado a reparar o prejuzo. Essa soluo encontrada no direito de vizinhana, no livro do Direito das Coisas. Reconhece-se que o proprietrio de um aparelho de som, que mora num apartamento, tem o direito de ligar o referido aparelho, mas no pode abusar desse direito a ponto de perturbar o sossego dos demais condminos. O novo Cdigo dedicou um artigo para os casos de abuso de direito, o artigo 187, que dispe: Tambm comete ato ilcito o titular de um direito que, ao exerc-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econmico ou social, pela boa-f ou pelos bons costumes. Esse dispositivo reconhece o abuso de direito como causa de dano e de indenizao. Quanto ao mais, o art. 160 do Cdigo de 1916 passa a ter

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o nmero 188, sem sofrer modificao alguma. O referido art. 188 tambm proclama que no constituem atos ilcitos os praticados em legtima defesa. Sabemos que s no responde pelos danos causados a terceiros aquele que age em legtima defesa real, e quando quem sofre o dano o prprio injusto agressor. Mas o art. 1.540 do Cdigo de 1916 prescrevia que, mesmo o agente agindo em legtima defesa, ficava obrigado a indenizar, se errasse a pontaria e acabasse atingindo um terceiro, que nada tinha a ver com a histria. Tambm a doutrina vem entendendo, h muitos anos, que o agente igualmente fica obrigado a indenizar o prejuzo causado quando age em legtima defesa putativa. A explicao para esse fato que o Cdigo se preocupa com a situao das vtimas e, no caso da pessoa errar a pontaria, o terceiro que no participa dos atos acaba sofrendo o dano e deve ser indenizado, porque ningum pode lesar a outrem. Se o agente agisse em legtima defesa e atingisse o injusto agressor, tirando a vida deste, a famlia do falecido no tinha ao contra aquele que agiu licitamente, como preceituava o aludido artigo 160 do Cdigo de 1916. Mas se o agente errasse a pontaria e atingisse um terceiro, que estava passando do outro lado da rua, pelo citado art. 1.540 tinha aquele que primeiro indenizar o terceiro, para depois poder ajuizar ao regressiva contra o injusto agressor. Embora o anterior diploma no mencionasse a legtima defesa putativa, dizia a doutrina que, neste caso, quem causou o dano ficava obrigado a indenizar, porque no constitui ela excludente da antijuridicidade do ato, sendo apenas excludente da culpabilidade. E, em matria de culpa, a responsabilidade civil diferente da responsabilidade penal. No cvel, qualquer grau de culpa, por mais leve que seja, obriga a indenizar. No juzo criminal no: o juiz s condena algum por crime culposo se a culpa tiver um certo grau, pois se for muito leve o juiz absolve o ru. No cvel, a culpa mesmo levssima obriga a indenizar (in lege Aquilia et levssima culpa venit). Ento, no deixa de ter uma certa culpa, ainda que de pequeno grau, aquele que se precipita e age em legtima defesa putativa. Exemplo clssico o dos dois desafetos que se cruzam na rua, e um deles abre o palet para tirar o mao de cigarro. O outro, pensando que aquele vai sacar uma arma, precipitadamente atira antes. Houve uma certa precipitao e por isso ele ser absolvido no juzo criminal, mas responder por seu ato no juzo cvel.

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Esse sistema foi mantido no novo Cdigo Civil. O artigo 160 do Cdigo Civil de 1916 refere-se tambm ao chamado estado de necessidade no cvel. O inciso II dizia que igualmente no constitui ato ilcito a destruio de coisa alheia a fim de remover, perigo iminente desde que sejam usados os meios necessrios. o caso, por exemplo, da pessoa que est dirigindo e, para no atropelar uma criana que repentinamente cruza a rua na frente do veculo, desvia e acaba chocando-se com um carro que est parado, ou sobe na calada e derruba o muro de uma residncia. Para o referido artigo 160 o motorista no teria praticado nenhum ato ilcito, porque teria agido dessa forma por necessidade, para no causar um mal maior, que seria o atropelamento da criana. Mas o prprio dispositivo em questo fazia expressa remisso aos arts. 1.519 e 1.520 do aludido diploma, pelos quais aquele que destruiu coisa alheia para no atropelar a criana (no exemplo dado, para no acarretar um mal maior desvia o veculo e derruba o muro de uma residncia) teria de indenizar o dono do muro. A razo, como j se afirmou, estava na preocupao com a situao do terceiro, que no participou dos fatos e, portanto, nada tinha a ver com o acontecido e no podia permanecer irressarcido. Que culpa tem o terceiro nesse episdio? Quem deveria pagar a indenizao era quem derrubou o muro. Depois, com base no citado art. 1.520, poderia mover ao regressiva contra quem criou a situao de perigo, ou seja, contra o pai de criana, que no a vigiou e permitiu que ela atravessasse a rua abruptamente. Esse sistema foi mantido no novo Cdigo. Mudaram apenas os nmeros e os artigos, mas com uma diferena: o Cdigo de 1916 s admite o estado de necessidade em relao a bens danificados, enquanto o novo diploma estende a sua aplicao tambm aos danos causados s pessoas. Aquele exemplo de estado de necessidade do direito penal, em que duas pessoas se encontravam em um barco que s suporta uma pessoa e uma delas, para sobreviver, tira a vida da outra, sem praticar ato ilcito, no valia para o revogado Cdigo Civil porque esses artigos no se aplicavam a dano a pessoa. Mas o novo Cdigo mudou essa situao, dispondo, no art. 188, inciso II: No constituem atos ilcitos: II - a deteriorao ou a destruio da coisa alheia ou a leso a pessoa, a fim de remover o perigo iminente. O sistema adotado pelo novo Cdigo o seguinte: primeiro, no art. 186, define o ato ilcito: Aquele que, por ao ou omisso voluntria, negligncia ou imprudncia, violar direito e causar dano a outrem, ainda

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que exclusivamente moral, comete ato ilcito. Tambm diz, no artigo 928, que comete ato ilcito quem causa prejuzo a outrem ao abusar de seu direito. E, no artigo 927, complementa: Aquele que, por ato ilcito, causar dano a outrem obrigado a repar-lo. Observa-se, ento, que o novo Cdigo Civil manteve a responsabilidade subjetiva, no art. 186, ao referir-se ao dolo e culpa em sentido estrito ou aquiliana como pressupostos da obrigao. Mantevese, como regra, a responsabilidade subjetiva. S se poder responsabilizar o motorista que causou um dano a outrem se se provar que agiu com alguma modalidade de culpa. Sem a prova do dolo, da imprudncia ou da negligncia do motorista, ele no ser responsabilizado civilmente. Mas a principal inovao do Cdigo aprovado est exatamente no pargrafo nico desse art. 927. No caput proclama-se que todo aquele que causa prejuzo a outrem e, portanto, comete um ato ilcito, fica obrigado a repar-lo. S comete ato ilcito quem age de forma culposa ou dolosa. A vtima continua, pois, com o nus de provar a culpa do causador do dano. A inovao encontra-se no pargrafo nico, que dispe: Haver obrigao de reparar o dano independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. Adota, portanto, para as hipteses mencionadas, expressamente, a responsabilidade objetiva. A vtima no precisar se preocupar em provar a culpa do causador do dano nos casos especificados em lei... - a primeira hiptese - ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. a responsabilidade objetiva decorrente do exerccio de atividade perigosa, que j existe em outros pases e que o nosso Cdigo foi buscar no Cdigo Civil italiano. O novo Cdigo Civil brasileiro, porm, foi mais rigoroso que o prprio Cdigo Civil italiano, que afasta a responsabilidade do agente se este provar que tomou todas as cautelas para evitar que dano ocorresse. O novo Cdigo Civil brasileiro no fez essa ressalva. Desse modo, aquele que exercer uma atividade considerada perigosa, de risco, e causar dano a outrem, responder objetivamente, independentemente de culpa, sem ter a chance de demonstrar que tomou todas as cautelas para evitar que o mal acontecesse. A responsabilidade decorrente do exerccio de atividade perigosa, como causa de responsabilidade objetiva, j existia no direito brasileiro h bastante tempo, mas era prevista somente em leis especiais,

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em leis esparsas. Muitas leis anteriormente existentes no Brasil responsabilizam objetivamente pessoas que causam danos a terceiros, exercendo determinadas atividades Veja-se, por exemplo, o Cdigo Brasileiro de Aeronutica, de 1986, que responsabiliza objetivamente as empresas areas, considerando que exercem atividade de risco. Se cair um pedao da asa do avio, ou o prprio avio em cima de uma residncia, no cabe discusso a respeito da responsabilidade da empresa area. Ela objetiva, porque o Cdigo Brasileiro de Aeronutica considera perigosa essa atividade. De vez em quando se v nos jornais que a empresa area est discutindo e se negando a pagar a indenizao pleiteada. O que se discute so os danos causados ao passageiro, e no os causados s pessoas em terra, vitimados pela queda da aeronave. Essa discusso decorre do fato de a Conveno de Varsvia dizer que a indenizao tarifada e deve ser observada uma tabela de valores, salvo se se provar culpa grave ou dolo da empresa area. A discusso gira em torno da existncia ou no da culpa grave ou dolo da empresa area. Mas tudo isso diz respeito indenizao devida ao passageiro. As pessoas que sofrem dano em terra, contudo, tm o direito de mover ao contra a empresa area, responsabilizando-a objetivamente. Temos vrias outras leis semelhantes. H uma de 1967 que responsabiliza objetivamente as pessoas que exercem atividades nucleares, e outras mais, que tomam como fundamento da responsabilidade objetiva o exerccio de atividade perigosa. Entretanto, para que algum respondesse de forma objetiva pelo exerccio de uma atividade de risco era necessrio que existisse uma lei especial disciplinando o assunto. Com a entrada em vigor do novo Cdigo Civil, ficam ressalvadas todas essas leis j existentes, porque o pargrafo nico do mencionado artigo 927 afirma que haver a obrigao de reparar o dano independentemente de culpa nos casos especificados em lei. Todas as leis j existentes que responsabilizam objetivamente o causador do dano pelo exerccio da atividade perigosa foram mantidas. O dispositivo abrange tambm futuras leis que vierem a ser promulgadas, considerando perigosas determinadas atividades. Mas, independentemente da existncia de leis esparsas, o Judicirio, mesmo que no exista nenhuma lei especial regulamentando uma determinada atividade que venha a surgir e que, estatisticamente, esteja provocando danos s pessoas de forma reiterada, poder consider-

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la perigosa e responsabilizar objetivamente quem assumir o risco de exercla. Se no existisse, na poca do Cdigo de 1916, nenhuma lei dizendo que determinada atividade era perigosa e que o causador do dano respondia objetivamente pelos danos causados, a hiptese caia na regra geral da responsabilidade subjetiva, pela qual a vtima tem que provar culpa ou dolo do agente. Mas no novo Cdigo pode o caso no subsumirse regra geral, se o Judicirio entender que se trata de atividade potencialmente perigosa, independentemente da existncia de lei especial que assim a considere, aplicando simplesmente o pargrafo nico do artigo 927 e decidindo que a responsabilidade, no caso sub judice, objetiva. Quem vai dizer quando determinada atividade implica em risco para os direitos de outrem o Judicirio, analisando os diversos casos que lhe forem apresentados. Na Itlia, segue-se muito o critrio estatstico. Se uma determinada atividade estatisticamente causa danos a muitas pessoas, ento ela considerada uma atividade potencialmente perigosa. Provavelmente esse critrio ser adotado tambm no Brasil. Se determinada atividade estiver causando dano a muitas pessoas, pode ser que o Judicirio passe a consider-la perigosa e, nesse caso ento, as pessoas que a exercerem respondero objetivamente, isto , independentemente de culpa, pelos prejuzos causados. Entretanto, tal critrio, por si s, mostra-se insuficiente para avaliar a periculosidade de determinada atividade, podendo servir apenas de subsdio. J tive a oportunidade de escrever sobre essa responsabilidade independente de culpa que, para mim, a maior novidade do Cdigo Civil de 2002 em matria de responsabilidade civil. Afirmei, ento que, dentro da teoria do risco, h uma responsabilidade decorrente do exerccio de atividade perigosa, tomada em sentido dinmico, relativa utilizao de diferentes veculos, mquinas, objetos, utenslios. E h uma outra atividade de cunho esttico do bem, que se inclui na responsabilidade pelo fato das coisas. Perante a nova ordem estabelecida pelo Cdigo Civil de 2002, basta que exista nexo de causalidade entre o exerccio de atividade considerada potencialmente perigosa e o dano superveniente, para que se completem os pressupostos da responsabilidade em concreto. A obrigao de reparar o dano surge, pois, do simples exerccio da atividade que o

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agente desenvolve em seu interesse e sob seu controle, em funo do perigo que dela decorre para terceiros. Tem-se, ento, o risco como fundamento da responsabilidade. Passou-se, assim, de um ato ilcito, base da teoria subjetiva, para tomar-se por base da responsabilidade um ato lcito. Uma atividade lcita, mas potencialmente perigosa, geradora de perigo, pode caracterizar a responsabilidade objetiva. Ponto de partida desse sistema foi a constatao de que um certo nmero de atividades, por sua periculosidade, embora legtimas, traziam em si riscos prprios ocasionando danos com freqncia. Da por que deveriam sujeitar os seus titulares responsabilidade pela simples criao e pela introduo de coisas perigosas na sociedade. Outros cdigos tm dispositivos semelhantes. O Cdigo de Obrigaes do Lbano, ao dispor da responsabilidade pelo fato de coisas afirma: Mesmo quando essas no se encontrem sob o controle do agente, como um automvel em movimento, metr, avio em vo, um elevador em funcionamento. O Cdigo Civil portugus, tambm refere-se atividade perigosa por sua natureza ou pela natureza dos meios empregados. O Cdigo Civil mexicano impe a responsabilidade pela utilizao de mecanismos, instrumentos, aparelhos ou substncias perigosas por si mesmas, pela velocidade que desenvolvem, por sua natureza explosiva ou inflamvel, pela energia de corrente eltrica que produzem ou outras causas anlogas. Quem lida com explosivos certamente passou a ter responsabilidade objetiva no novo Cdigo. Termino o comentrio sobre a responsabilidade decorrente do exerccio de atividade perigosa dizendo o seguinte: deve ser considerada perigosa, pois, aquela atividade que contenha em si uma grave probabilidade, uma notvel potencialidade danosa em relao ao critrio da normalidade mdia e revelada por meio de estatsticas, de elementos tcnicos e da prpria experincia comum. Alguns autores, como o professor Carlos Alberto Bittar, que desenvolveu excelente estudo sobre a teoria do exerccio da atividade perigosa, acham que essa teoria no admite nenhuma excludente da responsabilidade, no admitindo a alegao de caso fortuito. Creio, no entanto, que no s a fora maior, ou fortuito externo, bem como a culpa exclusiva da vtima ou de terceiro, devem ser admitidos, porque rompem o nexo de causalidade. o que acontece com a responsabilidade do Estado, que objetiva, sob a modalidade do risco administrativo, dispensando a vtima de provar a culpa do agente pblico. Mas admite-se que o Estado

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se exonere da obrigao de indenizar provando fora maior, culpa exclusiva da vtima ou culpa exclusiva de terceiro, porque rompem o nexo de causalidade. Talvez se possa afastar a alegao de fortuito interno, ligado atividade, mquina, ao servio, includo no risco da atividade. H outra mudana importante no novo Cdigo, no tocante responsabilidade por atos de terceiro. No sistema do Cdigo Civil de 1916, o pai respondia pelo ato do filho menor, o patro pelo ato do empregado, o tutor pelo ato do tutelado, o curador pelo ato do curatelado. Provada a culpa do filho, presumia-se a do pai, mas no de forma absoluta, pois a presuno era relativa. Muitos pais conseguiam livrar-se da condenao, provando que foram diligentes, que foram cuidadosos, porque a presuno de culpa era juris tantum, relativa. Provada a culpa do tutelado, presumia-se, embora de forma relativa, a do tutor. Provado que o louco procedeu de forma incorreta e causou um dano, presumia-se a responsabilidade do curador. Mas admitia-se que este provasse, para exonerar-se da obrigao de indenizar, que foi cuidadoso, que fez tudo o que estava ao seu alcance para evitar que o louco causasse dano, e, mesmo assim, no conseguiu. No novo Cdigo isso no ser possvel, porque o artigo 933 prescreve que as pessoas indicadas no artigo antecedente, mesmo que no haja culpa de sua parte, respondero pelos atos praticados pelos terceiros ali referidos. Por que o pai respondia pelo ato do filho? Por sua prpria culpa, que se chama at culpa in vigilando. Por que o patro respondia por ato do empregado? Porque o escolheu mal (culpa in eligendo). No novo Cdigo eles respondero objetivamente, independentemente de culpa. Desse modo, no tero como eximir-se da condenao. Provada a culpa do filho, o pai estar condenado; provada a do empregado, o patro j estar condenado. O novo Cdigo no fala mais em presuno de responsabilidade, pois esta passa a ser absoluta e decorrente exclusivamente da situao de cada um em relao ao causador do dano. Se algum mover uma ao contra o pai e provar a culpa do filho - porque a responsabilidade deste subjetiva -, passar a existir uma responsabilidade objetiva daquele. Outra mudana foi introduzida no tocante ao quantum da indenizao. do conhecimento de todos que no se mede a indenizao pelo grau de culpa. A verificao da culpa necessria somente para saber se o ru deve ser condenado a indenizar. Provada a culpa, qualquer que

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seja o grau, mesmo que ela seja levssima, o ru ser condenado. O passo seguinte fixar o montante da indenizao a ser paga. Nesse ponto, o grau de culpa no tem nenhuma influncia. O causador do dano indenizar todo o prejuzo acarretado vtima, tenha agido com dolo, culpa grave, culpa leve ou levssima. Se a vtima alega que seu prejuzo foi de 100 mil reais, mas prova apenas prejuzo de 50 mil, o juiz vai fixar a indenizao em 50 mil reais. Mas se provar que realmente o seu prejuzo foi de 100 mil reais, a indenizao ser fixada nesse valor. Na poca do Cdigo de 1916, se duas pessoas, agindo de forma idntica, causassem um prejuzo de igual valor, tendo um agido com dolo intenso e o outro com culpa levssima, ambos pagariam a mesma quantia, porque no se levava em contra o grau de culpa para se fixar a indenizao, mas somente o montante do prejuzo. nesse ponto que reside a novidade trazida pelo Cdigo de 2002. O artigo 944 do novo diploma, no caput, repete a regra de que A indenizao mede-se pela extenso do dano. Assim, se este foi de 100 mil reais, a indenizao ter esse valor. Mas, acrescenta o pargrafo nico que, se, no entanto, houver excessiva desproporo entre