Revista da - UFRGS

229

Transcript of Revista da - UFRGS

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 1

Revista da

FACULDADE

DE DIREITO

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

Vol. 27

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 20072

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SULReitor: Prof. José Carlos Ferraz Hennemann

Vice-Reitor: Prof. Pedro Cezar Dutra Fonseca

FACULDADE DE DIREITODiretor: Prof. Sérgio José Porto Vice-Diretor: Prof. Manoel André da Rocha

Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal

do Rio Grande do Sul

Diretor: Prof. Carlos Silveira Noronha

Responsáveis técnicos:

Jornalista Blásio Hugo Hickmann - Reg. M.T.: 2.073Bibliotecária Naila Touguinha Lomando - CRB - 10/711

Conselho Editorial:

Professores ex-diretores:

Galeno Vellinho de LacerdaAlmiro Régis do Couto e SilvaJosé Sperb SanseverinoPeter Walter AshtonEduardo Kroeff Machado CarrionPlínio de Oliveira Corrêa

Professores titulares:

Carlos Alberto Álvaro de OliveiraCarlos Silveira NoronhaCezar Saldanha de Souza JúniorCláudia Lima MarquesSérgio José Porto

Professores doutores:

Alfredo de Jesus Dal MolinAugusto Jaeger JúniorCarlos Klein ZaniniCesar Viterbo Matos Santolim

Representação discente:

Acadêmica Carolina Vestena

Faculdade de Direito - UFRGSAv. João Pessoa, 80 - CEP 90.040-000 - Porto Alegre/RS - Brasil

Tel: (51) 3308-3118 / 3308-3128 / 3308-3555 / 3308-3464e-mail: [email protected]

site: http://www.direito.ufrgs.br

Cláudio Fortunato Michelon JúniorGlênio José Wasserstein HekmanHumberto Bergmann ÁvilaIgor DanileviczJosé Alcebíades de Oliveira Jr.Juarez FreitasJudith Hofmeister Martins-CostaLuis Afonso HeckLuiz Felipe Silveira DifiniLuiz Fernando BarzottoMarco Fridolin Sommer SantosMarta Lúcia Olivar JimenezOdone SanguinéSérgio Viana SeveroTupinambá Pinto de AzevedoVera Maria Jacob de Fradera

Servidores técnico-administrativos:Jornalista Blásio Hugo HickmannBibliotecária Naila Touguinha Lomando

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 3

Revista da

FACULDADE

DE DIREITO

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

Vol. 27

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 20074

Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal

do Rio Grande do Sul

Diretor: Prof. Carlos Silveira Noronha

EDITORA MERIDIONAL LTDA.

Av. Osvaldo Aranha, 440 cj. 101Cep: 90035-190 PortoAlegre-RS

Tel: (0xx51) 3311-4082Fax: (0xx51) 3264-4194

www.editorasulina.com.bre-mail: [email protected]

Pede-se permuta Se pide canje We ask for exchangeOn demande de l’échange Wir bitten um Austausch Si richiere lo scambo

Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande doSul. Porto Alegre: UFRGS - v.27 dez/2007 - Continuação da: Revista daFaculdade de Direito de Porto Alegre, publicada de 1949-1974.

Semestral

ISSN: 0104-6594

1.Direito: Periódicos. I. Universidade Federal do Rio Grande do Sul

CDD: 340CDU: 34(05)

Dados internacionais de catalogação na publicação (CIP)Bibliotecária Responsável: Denise Mari de Andrade Souza - CRB 10/960

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 5

Sumário

Agenor CasarilA pessoa humana como centro e fim do direito: a positivação da dignidadeda pessoa humana ...................................................................

Carlos Silveira NoronhaDos contratos bancários ........................................................................

Eduardo Augusto PohlmannO discurso jurídico como um caso especial do discurso prático geral:uma análise da teoria discursiva do Direito de Robert Alexy ....................

Eduardo Kroeff Machado CarrionCarta pela valorização das comissões parlamentares de inquérito .............

Haikel Weidner MalufFamília e adoção no melhor interesse da criança ...................................

Lucas Dutra BortolozzoAceitação, interpretação e objetividade: um ensaio sobre a juridicidadede regras e princípios no projeto hart-dworkiano ..................................

Lúcia Souza d’AquinoO acidente com o helicóptero PT-YAM no município de Pinto Bandeirae o fato da vítima como excludente do nexo de causalidade ....................

Luiz Fernando Castilhos SilveiraJurisdicação e Judiciário: um estudo a partir do pensamento deHannah Arendt ....................................................................................

Nadir Silveira DiasFiança sem outorga uxória: causa de nulidade, anulabilidade ou ineficácia?

7

29

59

101

105

125

143

167

199

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 20076

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 7

1. INTRODUÇÃO

No pensamento humanísticocontemporâneo, os temas da pessoahumana e a dignidade e direitos a elainerentes constituem questões centrais,assim da ciência como da filosofia dodireito. Têm eles se constituído, nasúltimas décadas, em valores políticossuperiores que devem-se consagrar,garantir e proteger.1

Até meados do século XX, a digni-dade da pessoa humana não haviaalcançado o pleno reconhecimento nomundo jurídico. Hodiernamente, osordenamentos jurídicos tendem ao

A pessoa humana como centro e fim do direito:

a positivação da dignidade da pessoa humana

Agenor Casaril*

* Professor na FMP, FESDEP e Faculdade de Direito São Judas Tadeu.

1 PEREZ, Jesus Gonzalez. La dignidad de la persona. Madrid: Civitas, 1986, p.19.

2 NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira. O direito brasileiro e o princípio da dignidade dapessoa humana. Revista de Direito Administrativo.Rio de Janeiro, v. 219, p.237-251,janeiro/março de 2000, p.238.

3 CANOTILHO, José Joaquim Gomes et MOREIRA, Vital. Constituição da RepúblicaPortuguesa Anotada. 2.ed. Coimbra: Coimbra ed., 1984, v.1, p.70.

reconhecimento da pessoa humanacomo o centro e o fim do Direito;2 positi-vando a dignidade da pessoa humanacomo valor básico e princípio fundantedo Estado Democrático de Direito.

Com efeito, pondera J. GomesCanotilho3 que o conceito de dignidadeda pessoa humana é concebido comoreferência constitucional unificadora detodos os direitos fundamentais. Porém,para além desse horizonte, outras conse-qüências decorrem da adoção do con-ceito, pois, elevado a princípio, obriga auma densificação valorativa que leveem consideração o seu abrangentesentido normativo-constitucional para

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 20078

4 CANOTILHO, José Joaquim Gomes et MOREIRA, Vital. Constituição da RepúblicaPortuguesa Anotada. 2.ed. Coimbra: Coimbra ed., 1984, v.1, p.70.

5 MARTINI, Agostino. Il diritto nella realtà umana. Il diritto nel mistero della ChiesaPontificium institutum utriusque juris - Pontificia Università Lateranense: Roma,1986, p.6.

6 Idem, p.7.

7 Ibidem p. 8.

8 Ibidem, p. 9.

9 MARTINI, Agostino. Op. cit., p.10.

além de mera idéia apriorística dohomem. Logo, infere o nominado autor,não é possível reduzir-se o sentido dadignidade humana à defesa dos direitospessoais tradicionais, ou invocá-lapara construir ‘teoria do núcleo dapersonalidade’ individual, ignorando-ano espaço dos direitos econômicos,sociais e culturais.”4

2. FUNDAMENTO PRIMORDIALDO DIREITO

A pessoa humana é o fundamentoprimeiro do direito. Com efeito, ohomem é o ser que, dentro do tempo edo espaço, se apresenta e deve serconsiderado como ‘centro e fim’ detudo o que existe, pois ele é pessoa, istoé, o ser em consciência e em liberdade.

Esta sua identidade o torna o valorabsoluto – o único valor absoluto – aque tudo se refere.5 O absolutismo dohomem, dentro da realidade do mundo,afirma-lhe o primado ontológico e fina-lístico: ele é o ser supremo, não podendo,por isso, ser instrumentalizado.

Este primado do homem não podenão ser reconhecido, acolhido, respeitado,

promovido e tutelado.6 Assim, sendo apessoa humana o fundamento primeirodo direito, é ela, em decorrência, a fonteoriginária dos conteúdos primordiaisdeste.7 Segue-se que a pessoa humana,impondo-se como fundamento primeirodo direito e fonte originária de seusconteúdos primordiais, constitui a justifi-cação última da obrigatoriedade deste.8

O direito tem um finalismo próprioque lhe legitima a presença na vidahumana, consistente na busca do bemcomum no qual se complementa ocrescimento integral do homem. Talfinalismo jurídico se inscreve, obvia-mente, no finalismo da pessoa humana,porquanto esta é o fim último de tudoquanto existe no tempo e no espaço.9

Tanto na ordem político-jurídicainternacional como nos ordenamentosjurídicos internos dos estados modernos,têm proliferado os documentos declara-tórios de direitos em que os direitosfundamentais e a dignidade da pessoahumana aparecem como núcleo centralde tais declarações. O que não temnelas aparecido com clareza é umaconvincente fundamentação de taisdireitos, isto é, o fundamento e razão

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 9

10 PEREZ, Jesus Gonzalez. Op. cit., p.19.

11 PEREZ, Jesus Gonzalez. Op. cit., p.19-20.

12 LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos. São Paulo: Companhia dasLetras, 1988, p.19.

de ser deles, sua origem e razõestranscendentes, como se existissemsimplesmente porque favorecidos pormaioria de votos nos organismosinternacionais e nos parlamentos, naponderação de Perez.10

Esta carência de uma adequadafundamentação conduz à conclusão deque a dignidade humana é intangível sóporque foi assim decidido. Isto explicaque, em nome da dignidade da pessoahumana, se chegue a soluções radical-mente opostas, relativamente a temasfundamentais de nosso tempo. Tais sãoa admissibilidade de certas formas deprocriação humana, a manipulaçãogenética, a disponibilidade de órgãoshumanos, os experimentos médicoscom pessoas, o aborto e a eutanásia.11

Em verdade, ao solucionar, juridica-mente, questões relativas à dignidadehumana, a diferente concepção teóricaque se lhe antepuser resultará emsoluções diferentes e, até, diametral-mente opostas. Disto decorre a neces-sidade de adoção de um fundamentoúltimo que radique na essência dadignidade humana, gerando segurançajurídica aos jurisdicionados. Para tal,mais adequada a concepção dopersonalismo cristão, que transcende avisão, limitada e limitante, do puroracionalismo cartesiano e mesmokantiano. Com efeito, a dignidade da

pessoa humana fundamenta-se não sóna autoconsciência ou racionalidade,mas, simultaneamente, na liberdade, nacomunicação e na auto-transcendênciado homem.

Em realidade, os países cujos povosinserem em seu ideal político aconcretização de um regime democrá-tico, constituído em Estado Democrá-tico de Direito, dão realce à dignidadeda pessoa humana e buscam suaproteção em seus ordenamentosjurídicos. Com efeito, via ordem consti-tucional, buscam prevenir que, em nomede ideologias, cometam-se abusosbrutais contra a dignidade humana,como os ocorridos em pleno século XX,sob o influxo do totalitarismo, inde-pendente dos matizes deste.

Com efeito, plenamente pertinentea ponderação oferecida por Lafer, aoestabelecer que a posição expres-samente adotada pelo totalitarismo, nosentido “de que os seres humanos sãosupérfluos e descartáveis, representauma contestação frontal à idéia do valorda pessoa enquanto “valor-fonte” detodos os valores políticos, sociais eeconômicos” e, em decorrência, aofundamento último da legitimidade daordem jurídica, como formulado pelatradição, assim no âmbito do paradigmado Direito Natural como no da Filosofiado Direito.12

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 200710

13 ADORNO, Theodor W. Dialética Negativa, p. 330, apud GALEAZZI, Umberto. Poruma libertação da prisão da imanência. In: Deus na filosofia do Século XX. São Paulo:Loyola, 1998, p.359.

14 Ingo Wolfgang Sarlet, em nota à p. 63 de sua Dignidade da pessoa humana e direitosfundamentais..., refere que a Constituição Alemã, conhecida como de Weimar (1919), jáhavia previsto, em seu art. 151, I, o princípio da dignidade da pessoa humana, ao estabelecerque o objetivo maior da ordem econômica é o de garantir uma existência digna. De igualmodo, salienta, a Constituição Portuguesa de 1933 (art. 6, nº 3) e a da Irlanda, de 1937, emseu Preâmbulo, faziam referência expressa à dignidade da pessoa humana. (SARLET,Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na ConstituiçãoFederal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.)

Com razão, ante o imperativo derespeito irrestrito à dignidade da pessoahumana, ponderou-se que “Hitler impôsaos homens um novo imperativo cate-górico: organizar o seu agir e pensarde modo que Auschwitz não se repita,que nada de semelhante aconteça.”13

3. CONSTITUIÇÕES QUEINSPIRARAM A BRASILEIRANA POSITIVAÇÃO DOPRINCÍPIO DA DIGNIDADE DAPESSOA HUMANA

Alguns ordenamentos constitucionaisinspiraram a Constituição brasileiravigente. Tais são o alemão, o espanhol,o italiano e o português, entre outros.A estes far-se-á referência e breveanálise das disposições normativasrelativas ao princípio.

3.1 A Lei Fundamental daAlemanha

Com efeito, no âmbito históricoe geográfico, admitidas algumas

exceções,14 a Lei Fundamental daRepública Federal da Alemanha,promulgada em 23 de maio de 1949, édada como a que, pioneiramente,consagrou a dignidade da pessoahumana em seu texto, de modo expressoe solene, erigindo-a em direitofundamental, estabelecido no seuart. 1º, nº 1, nos seguintes termos:A dignidade humana é inviolável.

Respeitá-la e protegê-la é obrigação

de todos os Poderes estatais.

Em complemento, dispõe o nº 2:O povo alemão se identifica,

portanto, com os invioláveis e

inalienáveis direitos do homem

como fundamento de toda a comu-

nidade humana, da paz e da justiça

no mundo.

Afirma José Afonso da Silva que apositivação constitucional do princípioda dignidade da pessoa humanafundamenta-se no fato de o Estadonazista ter vulnerado gravemente taldignidade mediante a prática dehorrorosos crimes políticos sob a invo-

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 11

15 SILVA, José Afonso da. A dignidade da pessoa humana como valor supremo dademocracia. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, v.212, abril/junho de1998, p.89.

16 HESSE, Konrad. Manual de derecho constitucional. Madrid: Marcial Pons, 1996,p. 86. “A experiência de um regime totalitário que desprezou o ser humano e sua liberdadee o fato de que a carência de tradição não permitia considerar humanidade e liberdadecomo óbvias bases naturais do Estado, conduziram, após 1945, ao esforço por estabelecê-las e fortalecê-las no novo ordenamento até o maior grau possível de garantia. Destaforma, o novo ordenamento jurídico se baseia, já desde o art. 1 GG, no princípio supremo,absoluto e intangível, da inviolabilidade da dignidade humana (art. 1.1 GG) e noreconhecimento dos direitos invioláveis e inalienáveis do homem (art. 1.2 GG).”

17 VERDÚ, Pablo Lucas. Teoria de la constitución como ciencia cultural. Madrid:Dyckinson , 1997, p.33.

18 BENDA, Ernst. Dignidad humana y derechos de la personalidad. In: BENDA, Ernst etalii. Manual de derecho constitucional. Madrid: Marcial Pons, 1996, p.121.

cação de razões de Estado e outras.”15

O que é confirmado por Hesse.16

Quanto ao conteúdo de tal princípioda Lei Fundamental tedesca, nãomenos incisivo é Verdú ao asseverarque foi proclamada a dignidade humanacomo princípio lógico, ontológico edeontológico de todos os direitos,tendo-se invocado a Deus nopreâmbulo da ‘Grundgesetz’ e na dos‘Laender’. Foi estabelecido o Estadode Direito como Estado social deDireito e se distinguiu entre lei e Direitofrente às posturas positivistas.17

E, identicamente, Benda proclama aexcelência do princípio da dignidadehumana na Constituição tedesca, aoponderar que a norma do artigo 1.1 GGalém de projetar-se valorativamentesobre as normas reguladoras da relaçãodo indivíduo com o Estado, na esferados direitos fundamentais, ainda“permeia profundamente tudo o que

comporta o Estado livre e democráticode Direito. (...) Sempre se terá de terem conta esse artigo 1.1 como parâ-metro valorativo na especial interpre-tação desses direitos fundamentais”.18

Quanto ao fecundo labor interpre-tativo e afirmativo do princípio dadignidade humana, desenvolvido pelaCorte Constitucional tedesca, nãoescapa a Perez a precisa observaçãode que ele figura entre os princípiosbásicos da Constituição, que dominamtodos os preceitos da Lei fundamental.Refere, ademais, a afirmação de algunsautores de que ele contém o princípio

supremo da Constituição, surgindo elecontinuamente nas sentenças doTribunal Constitucional Federal emdefesa da dignidade da pessoa,independentemente da idade e dacapacidade mental. “Onde existe vidahumana, há de reconhecer-se-lhe adignidade correspondente, sem que seja

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 200712

19 PÉREZ, Jesus Gonzalez. Op. cit., p.53.

20 BENDA, Ernst. Op. cit., p.118.

21 SILVA, José Afonso da. A dignidade da pessoa humana como valor supremo dademocracia. Op. cit., p.89.

22 VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Os direitos fundamentais na constituiçãoportuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 1987, p.101 e 102. “Neste contexto se deveentender o princípio da dignidade da pessoa humana, afirmado logo no artigo 1º daConstituição, como o princípio fundamental que está na base do estatuto jurídico dosindivíduos e confere unidade de sentido ao conjunto dos preceitos relativos aos direitosfundamentais. (...) Realmente, o princípio da dignidade da pessoa humana está na base detodos os direitos constitucionalmente consagrados, quer dos direitos e liberdadestradicionais, quer dos direitos dos trabalhadores e direitos a prestações sociais.”

23 MODERNE, Franck. La dignité de la personne comme principe constitutionnel dans lesconstitutions portugaise et française. In: MIRANDA, Jorge (org.) Perspectivas

decisivo que o sujeito esteja conscientedesta dignidade e saiba guardá-la porsi mesmo.”19

A Benda cabe, ainda, a relevanteafirmação de que a Lei Fundamentalde Bonn é um ordenamento constitu-cional comprometido com valores.Como tal, “reconhece a proteção daliberdade e da dignidade humana comofim supremo de todo o Direito (breve12, 45 (51)). O art. 1 GG faz desteobjetivo o supremo princípio constitutivoda Lei Fundamental”.20 Com efeito,constituindo lógica decorrência, ao ladodos princípios da legalidade, divisão dospoderes, democracia representativa,forma republicana, federalismo eEstado social, a Lei Fundamentalgermânica, no artigo 79, III, instituicomo cláusula pétrea o princípio deinviolabilidade da dignidade humanacontido no art. 1.1 daquela. Dessarte,no ordenamento constitucional ger-mânico, a dignidade da pessoahumana é o fio condutor de toda a sua

estruturação, com as necessáriasdecorrências infraconstitucionais.

3.2 A Constituição de Portugal

A Constituição de Portugal,promulgada em 1976, por razõeshistóricas semelhantes às da Alemanha,diz José Afonso da Silva, igualmentedispôs, modo expresso, sobre adignidade humana: Portugal é uma

República soberana, baseada na

dignidade da pessoa humana e na

vontade popular e empenhada na

construção de uma sociedade livre,

justa e solidária.21 Neste ponto, oordenamento português coincide como alemão, porquanto também tem porbase o princípio da dignidade da pessoahumana. Confirma-o a doutrina, comVieira de Andrade.22 Com Moderne, areafirmação.23

De Verdú, colhe-se a análise de quea Constituição lusitana reconhece eestabelece o valor inerente da dignidade

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 13

constitucionais nos vinte anos da constituição de 1976. Coimbra: Coimbra Editora, 1996,vol. I, p. 205. “Se a dignidade da pessoa humana representa assim o primeiro fundamentoda República, a base mesma ‘dos direitos fundamentais e das liberdades essenciais’ assimcomo ‘a garantia de seu exercício e de seu uso’ (art. 2 da Constituição), ela irriga o grandeleque de direitos reconhecidos pela Constituição portuguesa, ela ‘dá um senso a todos osdireitos fundamentais’. Tanto assim que, à diferença da maioria das outras constituiçõeseuropéias, a Constituição de 1976 dá lugar aos direitos fundamentais eventuais, que virãoa se impor à consciência jurídica coletiva ou que se originarão ‘das leis e das regras dedireito internacional aplicáveis’ (art. 16-1 da Constituição): estes futuros direitos deverãoser conformes às exigências da dignidade humana, tal qual é proclamada pelo artigoprimeiro da lei fundamental.”

24 VERDÚ, Pablo Lucas. Op. cit., p.203.

25 CARDOSO DA COSTA, José Manuel Moreira. O princípio da dignidade da pessoahumana na constituição e na jurisprudência constitucional portuguesas. In: BARROS,Sérgio Resende de e ZILUETI, Fernando Aurélio (coord.). Direito constitucional – estudosem homenagem a Manoel Gonçalves Ferreira Filho. São Paulo: Dialética, 1999, p.192.

26 Tradução livre do espanhol pelo autor.

27 Livre tradução do espanhol pelo autor.

humana, sendo esta a Grundnorm deum ordenamento fundamental conformeos valores. A interpretação dos direitos,liberdades e garantias do Título II,Capítulo I, do Texto Básico português“significa que tais direitos, liberdades egarantias formais são premissas concor-dantes da Constituição de modo que aLei Maior portuguesa há de interpretar-se à luz da dignidade humana”.24

Cardoso da Costa, por sua vez,comenta que, além da referênciaemblemática que lhe faz no seu artigo1º, a Constituição de Portugal nãoenuncia o princípio da dignidade dapessoa humana no seu catálogo dedireitos fundamentais, pois é mais doque isso, já que “representa o ‘princípiode valor’ que é o fundamento mesmo(e o ‘critério’) desses direitos e dorespectivo catálogo – catálogo ao qualconfere uma ‘unidade de sentido’”.25

3.3 A Constituição da Espanha

A vigente Constituição espanhola,promulgada após o crepúsculo doregime franquista, abre seu texto (art.1º, 1) com a solene proclamação de que“A Espanha se constitui em um Estadosocial e democrático de Direito, quepropugna como valores superiores deseu ordenamento jurídico a liberdade,a igualdade e o pluralismo político”.26

Explicitando tais valores superiores, porsua vez, inseriu o princípio da dignidadeda pessoa humana em seu artigo 10, nº1, com a seguinte dicção: A dignidade

da pessoa, os direitos invioláveis que

lhe são inerentes, o livre desenvol-

vimento da personalidade, o respeito

à lei e ao direito dos demais são

fundamentos da ordem política e da

paz social”.27

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 200714

28 PECES-BARBA Martínez, Gregorio. Temas clave de la constitución española – losvalores superiores. Madrid: Tecnos, 1986, p.49.

29 MATTE, Luíza. A dignidade da pessoa humana em abstrato, sua positivação e suainfluência na prática jurídica. Porto Alegre: PUCRS: 2000. 183 p. Dissertação (Mestradoem Direito) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande doSul, 2000, p.69.

30 GONZÁLEZ PÉREZ, Jesús. Op. cit., p.82 e 83.

31 DÍAZ REVORIO, Francisco Javier. Valores superiores e interpretación constitucional.Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 1997, p. 117 e 118. “Em nossaopinião, a referência ao ‘fundamento da ordem política e da paz social’ ressalta o caráteressencial da dignidade e dos demais conceitos do artigo 10.1 para o Estado e para a sociedade;ademais, ainda que a referência ao Ordenamento jurídico não seja explícita como no artigo 1.1,também pode considerar-se que ditos elementos são fundamento de dito ordenamento. (...)Destacou-se que a dignidade preside o preceito e ocupa uma posição central dentro domesmo. Os restantes conceitos que menciona dito artigo, ainda que possam ser consideradosvalores, não seriam superiores, já que a maioria deles pode ficar englobada na própria dignidadeou em algum dos restantes valores superiores: assim acontece com ‘os direitos invioláveis’,conseqüência da dignidade da pessoa, ou o livre desenvolvimento da personalidade, que éuma manifestação do valor liberdade e da própria dignidade.”

De Peces-Barba a observação deque a Constituição espanhola é pioneirano emprego da expressão “valoressuperiores”, porquanto pouco comum,no âmbito do direito comparado, o usodessa terminologia, mesmo que sereconheça que “a jurisprudência daRepública Federal Alemã construa umsistema de valores, deduzindo-o doordenamento constitucional”.28

A expressão “valores superiores”,segundo visão coincidente de váriosautores espanhóis, alcança umacompreensão abrangente. Com efeito,“a dignidade da pessoa humana, noordenamento jurídico espanhol, não sóse constitui em um valor superior elamesma (ainda que referida em artigodiverso do 1.1), como é o próprio fun-damento ético, axiológico, a justificação,o valor que ocupa posição central e

legitimadora, a norma fundamental efundamentadora deste ordenamento”,como anota Luíza Matte.29

A propósito, González Perez refereque a dignidade da pessoa constitui umdos valores superiores que o Direitopositivo não pode ignorar, assim comonão pode desconhecer os direitos àmesma inerentes. A Constituiçãocontempla a dignidade da pessoahumana como um dos valores doordenamento jurídico espanhol. Se fossepossível escalonar os valores em ordemde prioridade, ocuparia o primeiro lugara dignidade da pessoa humana. “Desdeo ponto de vista axiológico, a dignidadeda pessoa ‘é o fundamento, princípio eorigem do ordenamento constitucionalespanhol, é a Grundnorm em sentidológico, ontológico e deontológico’”.30

Na mesma linha de González Perez,pronuncia-se Díaz Revorio. 31

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 15

32 PECES-BARBA Martínez, Gregorio. Op. cit., p.43 e 112.

33 ITÁLIA. Presidência do conselho de ministros, serviços de informações e da propriedadeliterária, El Estado italiano y su ordenamiento, p.3.

34 Em livre tradução, pelo autor, o texto expressa: “A República reconhece e garante osdireitos invioláveis do homem, seja como indivíduo ou nos agrupamentos sociais ondedesenvolve sua personalidade, e exige o cumprimento dos inderrogáveis deveres desolidariedade política, econômica e social”.

Corroborando os precedentes autores,afirma Peces-Barba que o fundamentodestes valores superiores do art. 1.1 éum fundamento racional e histórico querepresenta o juízo do legislador consti-tuinte, ratificado em referendum, e quese converte, por esse modo, em umgrande acordo social, caracterizador deum consenso básico de que estesvalores superiores e sua inserção pro-funda são o fundamento para arealização dos objetivos básicos doEstado, quais sejam, o desenvolvimentoda dignidade humana através da vidasocial, tornando possível a plenitudedesta dignidade. “O acordo não é, pois,arbitrário, senão que recolhe uma mora-lidade baseada na dignidade humana, ecom a pretensão de que a organizaçãoda vida social favoreça, aprofunde edesenvolva essa dignidade humana.”32

3.4 A Constituição da RepúblicaItaliana

Promulgada no imediato pós-guerra(27 de dezembro de 1947), aConstituição da República da Itália,dispensado o clássico preâmbulo, notítulo de abertura, contempla os

princípios fundamentais, “os quaisproporcionam os traços essenciais dorosto do Estado e representam ofundamento ideológico do ordenamentoestatal”.33 Embora sem a forma diretae literal de afirmação da dignidade dapessoa humana como princípiofundamental do ordenamento jurídicoitálico, dita Constituição a contempla jáem seu artigo 2º: La Repubblica

riconosce e garantisce i diritti inviolabili

dell’uomo, sia come singolo sia nelle

formazioni sociali ove si svolge la sua

personalità, e richiede l’adempimento

dei doveri inderogabili di solidarietà

politica, economica e sociale.34

Reitera o princípio no art. 3º, in

verbis:

Tutti i cittadini hanno pari dignitàsociale e sono eguali davanti allalegge, senza distinzione di sesso, dirazza, di lingua, di religione, diopinioni politiche, di condizionipersonali e sociali.È compito della Repubblica rimuoveregli ostacoli di ordine economico esociale, che, limitando di fatto lalibertà e l’eguaglianza dei cittadini,impediscono il pieno sviluppo della

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 200716

35 A disposição constitucional, em livre tradução pelo autor, proclama que “Todos oscidadãos têm igual dignidade social e são iguais perante a lei, sem distinção de sexo, raça,língua, religião, opiniões políticas e de condições pessoais e sociais. É incumbência daRepública remover os obstáculos de ordem econômica e social, que, limitando de fato aliberdade e a igualdade dos cidadãos, impedem o pleno desenvolvimento da personalidadehumana e a efetiva participação de todos os trabalhadores na organização política,econômica e social do País”.

36 AMBROSINI, Giangiulio. Costituzione italiana. Torino: Piccola Biblioteca Eunaudi, 1975,p.26. O texto, livremente traduzido e sumariado pelo autor, é este: Repubblica, democrazia,egualglianza dei cittadini, sono sicuramente principi cardine dell’ordinamento, e sullaloro essenzialità non vi può essere problema. Per quanto caratterizzanti, essi non esaurisconola gamma dei principi fondamentali accolti dalla Costituzione. A bem guardare nel textocostituzionale, una rilevanza non dissimile deve essere attribuita alla tutela della persnoahumana... La persona humana há una considerazione privilegiata, sia sotto il profilo fisico(libertà personale), sia sotto il profilo morale.

37 ZAGREBELSKY, Gustavo. El tribunal constitucional italiano. In: FAVOREU, L. et alii.Tribunales constitucionales europeos y derechos fundamentales. Madrid: Centro deestudios constitucionales, 1984, p.423.

38 ZAGREBELSKY, Gustavo. Op. cit., p.422.

persona humana e l’effettivapartecipazione de tutti i lavoratoriall’organizzazione politica, economicae sociale del Paese.35

Sem dúvida, albergou, nasdisposições citadas, o princípio dadignidade da pessoa humana, com ocorrelativo da isonomia, ainda que sema desenvoltura das disposições literaisdas outras Constituições vistas. Comefeito, o desenvolvimento da personali-dade ganha reiterada e expressaproteção. Dessarte, Ambrosini, emcomento à Consituição da Itália,expressa-se, ao analisar os princípiosfundamentais, afirmativamente quantoa ter o texto constitucional atribuído àtutela da pessoa humana umarelevância de princípio cardeal, e de tera pessoa humana merecido umaconsideração privilegiada, assim noaspecto físico como no moral.36

Sintonizado com Ambrosini, refereZagrebelsky que a Itália aderiu àsconvenções internacionais de direitosdo homem, fundadas na dignidade dapessoa humana, destacando, ainda, opapel que desempenham os artigossupracitados na jurisprudência dostribunais superiores. Com efeito, lembraele que “o Tribunal de Cassação, emsua atividade de interpretação global dosistema jurídico, precedeu ao TribunalConstitucional ao afirmar a existênciade um direito à livre manifestação dapersonalidade, segundo o artigo 2 daConstituição”.37 Prossegue, ponderandoque o Tribunal Constitucional italianotem “decisões que reconhecem o valorda pessoa humana” (11/1956) eproclamam a existência de “bensfundamentais que formam parte dopatrimônio inviolável da pessoa humana(33/1974)”38, fechando a análise com

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 17

39 Ibidem, p.436.

40 PALAZZO, Francesco C. Valores constitucionais e direito penal. Tradução de GérsonPereira dos Santos. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 1989, p.17.

41 SILVA, José Afonso da. A dignidade da pessoa humana como valor supremo...Op. cit., p.89.

esta idéia: “Em suma, a proclamaçãode direitos fundamentais possui umaforça expansiva no sistema jurídico eexige uma verdadeira ‘política dedireitos fundamentais’. Isto se vêreforçado pelo artigo 3".39

Essa força expansiva do princípioconstitucional da dignidade da pessoahumana merece de Palazzo, ao estudaros valores constitucionais incidentes noDireito Penal, a afirmação de que,contraposta à intrínseca politicidade dodireito penal, existe uma constanteexigência de eticidade, própria dodireito penal. Com eticidade se pode“‘simplesmente’ aludir ao fato de quese, no manancial do direito penal, seencontram a política e a exigência datutela da sociedade, em seu âmago seencontra a pessoa humana”.40

4. A POSITIVAÇÃO DO PRINCÍPIONA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL

Por derradeiro, a Constituição daRepública do Brasil. Com efeito, atortura e outras formas de desrespeitoà pessoa humana, praticados durante oregime militar, pondera José Afonso daSilva,41 deram ao Constituinte brasileirode 1988 a motivação e justificativa parainserir a dignidade da pessoa humanacomo um dos fundamentos do Estado

Democrático de Direito da RepúblicaFederativa do Brasil, ao dispor, no artigo1º, inc. III, da CR: A República

Federativa do Brasil, formada pela

união indissolúvel dos Estados e

Municípios e do Distrito Federal,

constitui-se em Estado Democrático

de Direito e tem como fundamentos:

III – a dignidade da pessoa humana.

O estudo deste último tópico cinge-se ao escopo demonstrativo do forte eloexistente, no pertinente, entre o ordena-mento brasileiro e os ordenamentosconstitucionais europeus referidos,tomados como modelo. Convém notar,com efeito, que o Brasil adota, quantoà constitucionalização do princípio dadignidade da pessoa humana, aconcepção denominada de personalismohumanista, característica do constitucio-nalismo de valores que caracteriza aprópria cultura ocidental dos nossos dias.

5. A DIGNIDADE DA PESSOAHUMANA COMOFUNDAMENTO DO ESTADO

Neste segmento da dissertação,presente seu objeto específico, intenta-se verificar a presença da dignidade dapessoa humana na tessitura constitu-cional brasileira, na qualidade e funçãode princípio fundante de tal ordemconstitucional. De tal escopo decorre

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 200718

42 SOUZA JUNIOR, Cezar Saldanha. A crise na democracia no Brasil. Rio de Janeiro:Forense, 1978, p.3 e 4.

43 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais naConstituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p.61.

a busca de um real significado erespectiva eficácia para o princípio.

A República Federativa do Brasilconstitui-se em Estado Democrático deDireito, na precisa prescrição do art.1º da Lei Magna. Na democracia, oEstado não é fim mas meio, concebidocomo instrumento a serviço do serhumano. Este, na precisa ponderaçãode Souza Junior,42 como PessoaHumana, é anterior e superior aopróprio Estado. Com efeito, a con-cepção de que o homem é uma Pessoa,isto é, um ser, a um tempo, individual esocial, material mas espiritualmenteaberto ao transcendente, e, de conse-qüência, dotado de dignidade e dedireitos fundamentais a serem preser-vados e promovidos pelo Estado, foi oprincípio a partir do qual plasmou-se,na Europa, a denominada civilizaçãocristã ocidental. Foi no âmbito dessanova civilização que se consolidou aidéia do Estado a serviço da dignidadee dos direitos da pessoa. É pois, a idéiado Estado democrático.

A vigente Constituição daRepública, ao dispor o princípio em tela,fê-lo sob motivações várias, dentre asquais a de exorcizar o períodoautoritário antecedente à sua edição,porquanto violador de direitos funda-mentais e, por isso, desrespeitador dadignidade da pessoa humana, na

condução dos negócios de Estado.Quanto à linha principiológica seguida,buscou inspiração nas congêneres daAlemanha, Itália, Portugal e Espanha,tornando expresso o compromissojurídico com a dignidade da pessoahumana. A propósito do pioneirismointerno daí decorrente, destaca Sarletque a atual Constituição da Repúblicafoi a primeira, no constitucionalismobrasileiro, a instituir um título própriopara os princípios fundamentais,“situado, em manifesta homenagemao especial significado e função destes,na parte inaugural do texto, logoapós o preâmbulo e antes dosdireitos fundamentais”.43

De notar, igualmente, que, nahistória do constitucionalismo pátrio, éa primeira vez que aparece positivadoo princípio da dignidade da pessoahumana como fundamento do EstadoDemocrático de Direito. O que ocorreno artigo 1º., inciso III, da CRFB:A República Federativa do Brasil,

formada pela união indissolúvel dos

Estados e Municípios e do Distrito

Federal, constitui-se em Estado

Democrático de Direito e tem como

fundamentos: III – a dignidade da

pessoa humana. Compreender, pois,a dignidade da pessoa como princípioconstitucional é traçar-lhe o alcanceestruturante e surpreender-lhe a eficá-

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 19

44 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2.ed. Porto Alegre:Livraria do Advogado, 2001, p.101.

45 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos... p.66.

cia sistêmica no plano das conseqüên-cias jurídicas, destas possibilitandodestacar, exemplificativamente algumas,como adiante se verá.

É ainda Sarlet a constatar que olegislador constitucional, via instituiçãode princípios fundamentais em títulopróprio, deixou clara a sua intenção deoutorgar aos princípios fundamentais atextura de “normas embasadoras einformativas de toda a ordem constitu-cional, inclusive dos direitos funda-mentais, que também integram aquiloque se pode denominar de núcleoessencial da Constituição material”.44

E tal é o relevo dado pelo legisladorconstituinte ao princípio da dignidade dapessoa humana que aparece eleexpresso em várias outras disposiçõesda arquitetura constitucional. Assimno artigo 170, caput, dispondo que“A ordem econômica, fundada navalorização do trabalho humano e nalivre iniciativa, tem por fim assegurar atodos existência digna, conforme osditames da justiça social...” De igualmodo, no título da ordem social –capítulo relativo à família, criança,adolescente e idoso – previu (artigo 226,parágrafo 6º ) o planejamento familiarfundado nos princípios da dignidade dapessoa humana e da paternidaderesponsável, assegurando o direito àdignidade à criança e ao adolescente(artigo 227, caput).

Logo, a dignidade da pessoahumana, conquanto tardiamente reco-nhecida no plano normativo, estáinduvidosamente positivada na ordemconstitucional pátria. Constitui, semdúvida, princípio normativo fundamental,com a qualificação de norma jurídicafundamental da ordem jurídica.45 Comisto, de logo, toma-se posição quanto ànatureza jurídica do princípio, pois, emsendo dado com caráter normativo,resta dar-lhe classificação comoespécie, ao lado das regras, no âmbitogenérico das normas.

6. O PRINCÍPIO DADIGNIDADE DA PESSOAHUMANA COMO VALORFUNDAMENTAL

6.1 Notas preliminares

Resulta, do exposto no capítuloprecedente, que os princípios gerais dedireito, de fonte subsidiária nos Códigos,passaram, com as Constituições dasegunda metade do século XX, aconstituir fonte primária de normati-vidade, dando corpo, na ordem jurídica,aos valores supremos desta, dos quaisderivam os direitos e as garantiasfundamentais. Desta forma, comosintetiza Bonavides, os princípios,enquanto valores, constituem o critériode aferição dos conteúdos constitucio-

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 200720

46 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 10.ed. São Paulo: Malheiros,2000, p.254.

47 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos ... p.66.

48 BLECKMANN, A. Apud SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humanae direitos ... p.66.

49 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos ... p.69.

50 Apud BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p.260-1.

nais em sua dimensão normativa maior.46

Como já destacado, a dignidade dapessoa humana foi erigida, pelo legis-lador constituinte, a fundamento, emboranão único, do Estado Democrático deDireito da República Federativa doBrasil (art. 1º, III), pelo que o Parla-mento pátrio tomou uma decisão políticafundamental relativamente ao sentido,à finalidade e à justificação do exercíciodo poder estatal e do próprio Estado.47

Ao inserir tal princípio na tessituraconstitucional, definiu, de formacategórica, a relação homem-Estado:este existe para aquele, sendo o Estadoinstrumento a serviço da pessoa humana.Esta é a razão de ser do Estado e nãomeio para que o Estado alcance fins.48

Aceita esta premissa, evidente resta aadoção de princípios-valores noarcabouço constitucional brasileiro, comdestaque para o da dignidade da pessoahumana na precípua função de normafundamental do ordenamento. Comefeito, o Constituinte de 1988, coerente-mente com esta opção (decisão política)fundamental, não incluiu a dignidade dapessoa humana no elenco dos direitose garantias fundamentais, porquantoestes concretizam derivação lógicadaquele. Não quer isto significar, é bem

de ver, que, ao positivar constitucional-mente a dignidade da pessoa humanacomo princípio fundante da ordemjurídica, tenha o Constituinte pretendidoaprisionar aquela ao âmbito da ordemjurídica, porquanto a dignidade humanatem existência independente da positi-vação e do grau deste reconhecimentolegal, como valor imanente que é.Porém, do nível do reconhecimento epositivação do princípio da dignidade dapessoa pela ordem constitucionaldependerá a efetividade deste.49

6.2 O princípio da dignidadehumana como norma suprema

Os princípios, positivados constitu-cionalmente, constituem as normassupremas do ordenamento jurídico, ouseja, a norma das normas. Este processose opera quando, segundo GordilloCañas, a Constituição materializa umaordem objetiva de valores, o que se dáquando a dignidade da pessoa humanae os direitos da personalidadeconstituem os esteios da ordem políticae social.50 Neste contexto, pois, oprincípio da dignidade da pessoahumana exsurge como supremo valorda ordem constitucional, presente a

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 21

51 BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p.261.

52 FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de direitos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris,1996, p.54.

53 SARLET, Ingo W. Op. cit., p.71.

54 FERREIRA DOS SANTOS, Fernando. Princípio constitucional da dignidade dapessoa humana. São Paulo: Celso Bastos, 1999, p.57-8.

moderna visão da doutrina constitu-cional que compreende a Lei das Leiscomo expressão do “consenso socialsobre os valores básicos”.51 Em sendovalor fundamental da ordem constitu-cional, o princípio da dignidade dapessoa humana (art. 1º, III) projeta umaeficácia de valor unificador dos direitosfundamentais, sendo-lhe fonte jurídico-positiva.52 O princípio é, pois, o valorque dá unidade e coerência aos direitosfundamentais em seu conjunto, inde-pendentemente de estarem rotuladoscomo tal e elencados no artigo 5º(direitos e deveres individuais e coletivos),nos artigos 6º a 11 (direitos sociais) ounos artigos 14 a 17 (direitos políticos).

Sobreleva notar, como faz Sarlet,que a dignidade da pessoa humana,como valor intrínseco desta, elevada aprincípio constitucional fundamental,não é passível de ser concedida peloordenamento jurídico, porquanto oprecede e fundamenta.

Neste sentido, vista a contrário senso,decisão do Tribunal Federal Consti-tucional da Alemanha estabelecendo quenenhuma pessoa humana poderá serprivada da respectiva dignidade,conquanto possa ser violada a pretensãode respeito e proteção que dela decorre.53

Logo, a dignidade da pessoa humana, por

inerência humana e princípio-valorfundamentador da ordem jurídica, nãoconstitui e nem poderá ser um direitofundamental a ser concedido.

Decorre, pois, que o princípio dadignidade da pessoa humana, tantoquanto na Alemanha, é valor superiorque precede a e está materializado naordem constitucional vigente no Brasil.

Sendo, aliás, notória e, de todomodo, amplamente referida na parteprimeira deste trabalho, a inspiraçãohaurida pelo Constituinte brasileiro dopensamento constitucional europeu,nomeadamente Alemanha, Espanha,Portugal e Itália, dúvidas não restamde que a Constituição da RepúblicaFederativa do Brasil foi erigida comosistema de valores, à semelhança daquelasque a influenciaram decisivamente.

A propósito, segundo FranciscoFernandez Segado, referido porFernando Ferreira dos Santos,54 háunanimidade entre os constitucionalistasespanhóis no sentido de que a ordemconstitucional de Espanha constitui umsistema de valores. Com isto, naponderação do citado autor, a Lei Maiorespanhola de 1978 teve por escopotranspor o reducionismo do positivismoestatal, consagrando a dimensãoaxiológica do Direito, de modo que o

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 200722

55 Cf. E. Benda, apud Ingo W. Sarlet. A dignidade da pessoa humana e os direitosfundamentais... p.71-2.

56 SARLET, Ingo W. Op. cit., p.72.

57 O jusfilósofo alemão, em sua Teoria dos Direitos Fundamentais, trata princípios evalores como categorias lógicas distintas. Como pontos de identificação, aduz que sepode cogitar de uma colisão e respectiva ponderação de princípios e assim também, deuma colisão e respectiva ponderação de valores. Igualmente, a possibilidade de realizaçãogradual dos princípios admite a contrapartida da realização também gradual dos valores.Em decorrência, a Corte Constitucional alemã elabora enunciados sobre princípiosaplicáveis a valores e vice-versa, mantendo-se válido o conteúdo deles. Mas, para alémdas semelhanças, refere haver uma especial diferença entre princípios e valores. Comefeito, enquanto os princípios são conceitos de tipo deontológico (consistente nummandado ou dever ser), os valores são conceitos do tipo axiológico, que se expressampela idéia de que algo é bom e não de algo é devido.

ordenamento jurídico estatal não haurelegitimidade de si mesmo, por procederdo Estado, em conformidade com osprocedimentos formais de produção dasnormas jurídicas, como apregoavaHans Kelsen. Nem é um sistema axiolo-gicamente neutro, que pode orientar-se a qualquer fim, com todos os perigosque disso decorre, como a históriarecente dá conta. Contrariamente aesta superada concepção positivista, oDireito, consubstanciado na ordemjurídica, constitui um instrumento paraa realização dos fins que a Constituiçãoenuncia como valores.

Uma vez aceito que a qualificaçãoda dignidade da pessoa humana comoprincípio constitucional fundamental(art. 1º, III, CRFB) constitui, não meradeclaração de conteúdo ético, masnorma jurídica positivada, de naturezaconstitucional formal e material, dotadade plena e pronta eficácia, há de seadmitir, com Benda55, que ela alcançaa condição de valor jurídico fundamental

da comunidade. Nessa linha argumen-tativa, pondera, ainda, Sarlet56, comapoio em doutrina de K. Stern, que,como princípio fundamental, a digni-dade da pessoa humana é valor-guiados direitos fundamentais e assim detoda a ordem jurídica (constitucional einfraconstitucional), “razão pela qual,para muitos, se justifica plenamentesua caracterização como princípioconstitucional de maior hieraquiaaxiológico-valorativa”.

6.3 O princípio da dignidadehumana como norma e valorfundamentais

Até aqui, trabalhou-se, como ofazem os autores em sua maioria, naperspectiva identificadora de princípioe valor, à medida em que aquele, comoespécie de norma, é sempre portadorou expressão deste. Passando ao largoda conhecida e diferenciadora posiçãoteórica de Robert Alexy57, e para além

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 23

58 DE BONI, Luiz Alberto (org.). Armando Câmara. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999,Coleção Pensadores gaúchos, p.134 e 135.

59 Ibidem, p.54 e 55.

60 ARAGÓN REYES, Manuel. Constitución y democracia. Madrid: Tecnos, 1989, p. 85.

61 Cf. Armando CÂMARA in Jacy de Souza MENDONÇA, Diálogos no solar dos Câmara,Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999, Coleção Pensadores gaúchos, p.134.

62 DÍAZ REVORIO, Francisco Javier. Op. cit., p.95 e 107.

dela, intenta-se colher uma precisa idéiade valor, aplicável ao presente ensaio.Com a brevidade que a natureza dopresente trabalho requer, parte-se dapremissa de que o princípio, antes deespecífico mandado de otimização daconcepção alexeniana, é norma deconduta, porquanto, positivado, impõeum agir de certo modo, constituindomedida ou referência de comportamento,com as características próprias daespécie, consistentes na generalidade,obrigatoriedade e coercitividade. Assim,sendo a Constituição a primeira dasnormas, e presente a tendência atual daconstitucionalização de valores, comoantes visto, com destaque para a digni-dade da pessoa humana, elevada a princí-pio e valor supremos, tem-se que é centralo conceito de valor nessa construção.

Com efeito, na compreensão deautores vários, valor identifica-se como fim do ser. Fim este que é ontológicopor tomar parte do próprio ser, no caso,o humano. Tal é o conceito colhido deArmando Câmara, para quem “valor éa relação de conformidade dodinamismo do ser com seus fins”.58

Dito noutros termos, mas na mesmaperspectiva, “O valor é o próprio ser,

visionado racionalmente, numa pers-pectiva teleológica, em livre posicio-namento de conformidade dos seusdinamismos com seus fins”.59 Por seuturno, os fins do ser humano sãoalcançáveis por um meio não ontológico,que é a razão. Esta age na perspectivaaxiológica, fazendo com que o fim doser humano seja concebido como umbem. Os valores, pois, são fins do ser.60

Voltando a Armando Câmara, tem-se que a percepção do valor na mentehumana surge quando a razão,descobrindo os fins do ser humano, paraos quais se projeta todo o dinamismodo ser, percebe a conformidade dessesdinamismos finalizados com os própriosfins, que levam à realização total e plenado ser humano.61

Diaz Revorio62, em comento àConstituição espanhola, na perspectivado sistema de valores por ela consa-grados, manifesta-se no sentido de quelhe parece adequado correlacionar osvalores com o finalístico bem, porquantoeste constitui um critério ao qualcorrespondem os valores explicitadosnormativamente na Constituição.Assim sendo, o bem materializa-secomo o devido. De notar-se, porém,

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 200724

63 DEL VALLE, Basave. Filosofia do homem. Tradução de Hugo di Primio Paz. São Paulo:Convívio, 1975, p.161.

64 VERDÚ, Pablo Lucas, op. cit., p.115.

65 Op. cit., p.95.

que valor é um conceito que, além dejurídico, é metajurídico, porquanto osvalores, embora a ele pertençam, nãose cingem ao mundo jurídico.

Identificando o valor com o fim doser, tem-se a ponderação de Basave delValle, para quem o ponto nuclear dovalor está em sua ordenaçãoteleológica, presente em sua próprianatureza. Assim, o valor está naestrutura ôntica do ser humano, comsuporte no mundo real, consistindo emuma manifestação ativa do ser, que estáordenado a um fim.63 Esta ordem deraciocínios onto-axiológicos tornaplenamente pertinente a reflexão deVerdú quando pondera que a taxativadisjunção ser/valor, isto é, entreontologia e axiologia, levaria àdessubstancialização dos valores.Assim, a perda da visualizaçãometafísica dos valores conduz a umnominalismo axiológico contra o qualtanto se bateu Scheler. Tampoucoconsiste em substituir a ontologia pelaaxiologia, nem a essência pelaexistência. Pondera ele que, nesta rotade evolução, e “já no campo do direitoconstitucional, se chegaria à dessubs-tancialização da Constituição, dosvalores superiores que propugna, dadignidade da pessoa, do conteúdo

essencial dos direitos fundamentais eda distinção entre lei e Direito.”64

Não é demasia ponderar que oprocesso de juridicização de um valorconsiste na sua positivação e respectivaintegração ao conteúdo da justiça. Emsuma, os fins do ser, quando positivadosem uma norma, constituem valoresjurídicos. A propósito, Luíza Matte,65

com toda pertinência, refere ensina-mento do Prof. Cezar Saldanha deSouza Junior, para quem as normasjurídicas podem ordenar condutas diretaou indiretamente a fins. Aquela normaque ordena condutas diretamente a finstem por conteúdo material um valor,constituindo um princípio. Logo,princípio é espécie de norma e, comonorma, baliza condutas, expressando umfim ou estando diretamente a serviçode um fim. De conseqüência e emsuma, os princípios, em sendo normas,como as regras, são meios de atingiros fins a que o direito se propõe. Porsua vez, o direito, ele próprio, é essencial-mente meio em relação à pessoahumana, na perspectiva de realizaçãodos fins desta, que são ontológicos.

Do exposto, conclui-se que adignidade da pessoa humana é valorjurídico e, como tal, conteúdo materialdo respectivo princípio. Com efeito, a

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 25

66 MARTINI, Agostino. Op. cit., p.10.

positivação constitucional da dignidadeda pessoa humana, no art. 1º, inc. III,da Constituição da República, tornainduvidosa sua condição de valorjurídico, com força normativa fundanteda República Federativa do Brasil,constituída em Estado Democrático deDireito, sedimentando a premissa deque a pessoa humana é o fim primeiroe último, alfa e ômega, do direito e doEstado. Como valor superior e fundanteda ordem constitucional, a dignidade dapessoa humana.

7. CONCLUSÕES

a) Hodiernamente, os ordenamentosjurídicos tendem ao reconhecimento dapessoa humana como o centro e o fimdo Direito.

b) A pessoa humana é ofundamento primeiro do direito. Comefeito, o homem é o ser que, dentro dotempo e do espaço, se apresenta e deveser considerado como ‘centro e fim’ detudo o que existe, pois ele é pessoa, istoé, o ser em consciência e em liberdade.

c) A identidade do homem comopessoa o torna o valor absoluto – oúnico valor absoluto – a que tudo serefere. Este primado do homem nãopode não ser reconhecido, acolhido,respeitado, promovido e tutelado

d) O direito tem um finalismopróprio que lhe legitima a presença navida humana, consistente na busca dobem comum no qual se complementa o

crescimento integral do homem. Talfinalismo jurídico se inscreve, obviamente,no finalismo da pessoa humana,porquanto esta é o fim último de tudoquanto existe no tempo e no espaço.66

e) Várias Constituições inspirarama Constituição Brasileira na positivaçãodo princípio da dignidade da pessoahumana, dentre as quais a LeiFundamental da Alemanha, aConstituição de Portugal, a Constituiçãoda República Italiana e a de Portugal.

f) A positivação do princípio vemexpressa no artigo 1º, inc. III, daConstituição da República do Brasil: ARepública Federativa do Brasil,

formada pela união indissolúvel dos

Estados e Municípios e do Distrito

Federal, constitui-se em Estado

Democrático de Direito e tem como

fundamentos: III - a dignidade da

pessoa humana.

g) A dignidade da pessoa humana,enquanto princípio, foi positivada comoum dos fundamentos do EstadoDemocrático de Direito da RepúblicaFederativa do Brasil.

h) O princípio da dignidade dapessoa humana foi positivado comovalor fundamental da ordemjurídica brasileira.

i) O princípio da dignidade humanafoi positivado como norma e valorfundamentais identificados, porquantoa dignidade da pessoa humana é valorjurídico e, como tal, conteúdo materialdo respectivo princípio.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 200726

REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor W. Dialética

Negativa, p. 330, apud GALEAZZI,Umberto. Por uma libertação daprisão da imanência. In: Deus na

filosofia do Século XX. São Paulo:Loyola, 1998, p.359.

AMBROSINI, Giangiulio. Costituzione

italiana. Torino: Piccola BibliotecaEunaudi, 1975, p.26.

ARAGÓN REYES, Manuel. Constitución

y democracia. Madrid: Tecnos, 1989,p.85.

BLECKMANN, A. Apud SARLET, IngoWolfgang. Dignidade da pessoa

humana e direitos ... p.66.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito

Constitucional. 10.ed. São Paulo:Malheiros, 2000, p.254.

CÂMARA, Armando, in MENDONÇA,Jacy de Souza. Diálogos no solar

dos Câmara, Porto Alegre:EDIPUCRS, 1999, Coleção Pensa-dores gaúchos, p.134.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes etMOREIRA, Vital. Constituição da

República Portuguesa Anotada. 2.ed.Coimbra: Coimbra ed., 1984, v.1, p.70.

CARDOSO DA COSTA, José ManuelMoreira. O princípio da dignidade dapessoa humana na constituição e najurisprudência constitucionalportuguesas. In: BARROS, SérgioResende de e ZILUETI, FernandoAurélio (coord.). Direito constitucional

– estudos em homenagem a Manoel

Gonçalves Ferreira Filho. São Paulo:Dialética, 1999, p.192.

DE BONI, Luiz Alberto (org.). Armando

Câmara. Porto Alegre: EDIPUCRS,1999, Coleção Pensadores gaúchos,p.134 e 135.

DEL VALLE, Basave. Filosofia dohomem. Tradução de Hugo di PrimioPaz. São Paulo: Convívio, 1975, p.161.

DÍAZ REVORIO, Francisco Javier.Valores superiores e interpretaciónconstitucional. Madrid: Centro deEstudios Políticos y Constitucionales,1997, p.117 e 118.

FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão dedireitos. Porto Alegre: Sergio AntonioFabris, 1996, p. 54.

FERREIRA DOS SANTOS, Fernando.Princípio constitucional da dignidadeda pessoa humana. São Paulo: CelsoBastos, 1999, p.57-8.

HESSE, Konrad. Manual de derechoconstitucional. Madrid: Marcial Pons,1996, p.86.

ITÁLIA. Presidência do conselho deministros, serviços de informações eda propriedade literária, El Estadoitaliano y su ordenamiento, p.3.

LAFER, Celso. A reconstrução dosdireitos humanos. São Paulo:Companhia das Letras, 1988, p.19.

MARTINI, Agostino. Il diritto nella realtàumana. Il diritto nel mistero dellaChiesa Pontificium institutumutriusque juris - Pontificia UniversitàLateranense: Roma, 1986, p.6.

MATTE, Luíza. A dignidade da pessoahumana em abstrato, sua positivaçãoe sua influência na prática jurídica.Porto Alegre: PUCRS: 2000. 183 p.Dissertação (Mestrado em Direito) –Faculdade de Direito, PontifíciaUniversidade Católica do Rio Grandedo Sul, 2000, p.69.

MODERNE, Franck. La dignité dela personne comme principeconstitutionnel dans les constitutionsportugaise et française. In:

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 27

MIRANDA, Jorge (org.) Perspectivas

constitucionais nos vinte anos da

constituição de 1976. Coimbra:Coimbra Editora, 1996, vol. I, p.205.

NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira. Odireito brasileiro e o princípio dadignidade da pessoa humana. Revista

de Direito Administrativo.Rio deJaneiro, v. 219, p. 237-251, janeiro/março de 2000, p.238.

PALAZZO, Francesco C. Valores

constitucionais e direito penal.

Tradução de Gérson Pereira dosSantos. Porto Alegre: Sergio AntônioFabris, 1989, p.17.

PECES-BARBA Martínez, Gregorio.Temas clave de la constitución

española – los valores superiores.Madrid: Tecnos, 1986, p.49.

PEREZ, Jesus Gonzalez .La dignidad de

la persona. Madrid: Civitas, 1986, p.19.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos

direitos fundamentais. 2.ed. PortoAlegre: Livraria do Advogado, 2001.

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade

da pessoa humana e direitos

fundamentais na Constituição

Federal de 1988. Porto Alegre:Livraria do Advogado, 2001.

SILVA, José Afonso da. A dignidade dapessoa humana como valor supremoda democracia. Revista de Direito

Administrativo. Rio de Janeiro, v.212, abril/junho de 1998.

SOUZA JUNIOR, Cezar Saldanha. A crise

na democracia no Brasil. Rio deJaneiro: Forense, 1978.

VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Os

direitos fundamentais na constituição

portuguesa de 1976. Coimbra:Almedina, 1987, p.101 e 102.

ZAGREBELSKY, Gustavo. El tribunalconstitucional italiano. In: FAVOREU,L. et alii. Tribunales constitucionales

europeos y derechos fundamentales.

Madrid: Centro de Estudios Constitu-cionales, 1984, p.423.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 200728

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 29

NOÇÕES PRELIMINARES

Ao tratar dos contratos bancários,há que se ter em mente que essas rela-ções jurídicas negociais são realizadasno âmbito de uma entidade empresária,que desde os mais remotos tempos édenominada BANCO e que moderna-mente, no direito pátrio, insere-se nocontexto das instituições financeiras, assimdefinidas na chamada Lei da ReformaBancária (Lei 4.595/64, arts. 17-18).

É o Banco uma entidade empresáriaque exerce papel de transcendentalimportância e que se posta no complexonegocial como expressivo pólo deirradiação da atividade econômico-financeira, sob a tutela do DireitoMercantil e mais especificamente do

Dos contratos bancários

Carlos Silveira Noronha*

* Professor Titular da Faculdade de Direito da UFRGS e da Faculdade de Direito SãoJudas Tadeu de Porto Alegre; Mestre e Doutor em Direito pela U.S.P.; Diretor da Revistada Faculdade de Direito da UFRGS.

1 VIVANTE, Cesare. Tratado di Diritto Commerciale, vol. 1, p.92, Milão, 1992.

Direito Bancário, que se destaca comoramo especial do primeiro.

A conceituação dessa instituiçãofinanceira, vem provocando as maisvariadas preferências dos comercialistase, notadamente, dos especialistas emDireito Bancário, seja na qualidade depromotora da circulação monetária, sejacomo mobilizadora ou intermediadorada expansão do crédito às pessoas físi-cas e jurídicas que deste necessitam pa-ra o desenvolvimento dos seus negócios.

Já em tempos modernos, Vivantedefiniu o BANCO como “estabeleci-mento comercial que recolhe os capitaispara distribuí-los sistematicamente comoperações de crédito”1 ao passo queCarvalho de Mendonça refere que osBancos são “empresas comerciais, cujo

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 200730

2 CARVALHO DE MENDONÇA, J. X. Tratado de Direito Comercial Brasileiro, vol. 7, 3ªparte, p.119, Rio, 1947.

3 MARTINS, Fran. Contratos e Obrigações Comerciais, nº 370, p.407, 14.ed., Forense,Rio, 1996.

4 ABRÃO, Nelson. Direito Bancário, nº 02, p.3, 10.ed., Saraiva, São Paulo, 2007; MARTINS,Fran. Contratos e Obrigações Comerciais, cit., p.497.

objetivo principal consiste na intromissãoentre os que dispõem de capitais e osque precisam obtê-los, isto é, em recebere concentrar capitais para sistematica-mente distribuí-los por meio de opera-ções de crédito”.2

Finalmente, para Fran Martins, aoentender que a função dos Bancossupera a de simples intermediários docrédito, refere que “na realidade, osBancos são mobilizadores do crédito,agindo sempre como sujeitos dasoperações e dos contratos que rea-lizam”, razão por que os conceitua como“empresas comerciais que têm porfinalidade realizar a mobilização docrédito, principalmente mediante orecebimento, em depósito, de capitaisde terceiros, e o empréstimo de impor-tâncias, em seu próprio nome, aos quenecessitam de capital”.3

No Brasil, na atualidade, os Bancosencontram-se incluídos no elenco dasinstituições financeiras (lei 4.595, de31.12.1964). chamada Lei da ReformaBancária, cujo artigo 17 as define como“pessoas jurídicas públicas ou privadas,que tenham como atividade principal ouacessória a coleta, intermediação ouaplicação de recursos financeiros pró-prios ou de terceiros, em moeda nacionalou estrangeira, e a custódia de valor de

propriedade de terceiros”, de modo queesse dispositivo legal não estabelecequalquer diferença entre instituiçõesfinanceiras e Bancos, mas ao contrário,equipara-os como gênero e espécie.

O parágrafo único, do artigo 17, dalei especial referida, atribui às pessoasfísicas a qualidade de instituições finan-ceiras, equiparando-as às pessoas jurídi-cas, quando aquelas exercerem qual-quer das atividades próprias dessa cate-goria financeira.

No entendimento da doutrina, há quese estabelecer a distinção entre Bancose instituições financeiras, caracteri-zando-se os primeiros como instituiçõesfinanceiras bancárias propriamenteditas, que criam moeda escritural, e assegundas, como instituições financeirasnão bancárias, que apenas influem navelocidade de circulação da moeda.4

É pacífico na doutrina que a dis-tinção entre Banco e instituição finan-ceira ainda se torna mais clara no quepertine aos fundos de que dispõem essesdois tipos de organismos financeirospara realizar suas operações. Os Bancosoperam não só com seus próprioscapitais, mas também com os fundosde toda ordem que recebem do públicoa título de depósitos, aplicações e outros,ao passo que as instituições financeiras

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 31

5 ABRÃO, Nelson. Direito Bancário, cit., nº 02, p.5.

6 ABRÃO, Nelson. Direito Bancário, ob. cit., nº 13, p.32-33.

7 MOLLE, Giacomo. I Contratti Bancari, p.4-5, Milão, 1973.

não podem operar senão com seuspróprios capitais, pois não lhes permitea lei receber outros aportes de terceiros.Assim sendo, as operações das institui-ções financeiras não bancárias são maislimitadas que as dos Bancos.5

Dos Bancos, distinguem-se tambémas casas Bancárias, que embora in-cluam-se no rol das instituições finan-ceiras, daqueles se diferenciam, sejapelo seu capital menor, seja pelo númeromais reduzido de suas atividades, cujaexistência ocorreu em época de menorpujança econômica, havendo as mesmasdesaparecido ou se transformadoem Bancos.

Apenas para registrar a presençahistórica das Casas Bancárias no com-plexo econômico-financeiro, traz-se àbaila o Decreto nº 14.728, de 16.03.1921,que as define e as distingue dos Bancos,ao referir que: “Para os efeitos dopresente regulamento, considera-seBanco a pessoa natural ou jurídica que,com capital superior a quinhentos milcruzeiros (moeda da época), realizar asoperações especificadas neste artigo, eCasa Bancária a que, com o mesmoobjetivo, tiver o capital igual ou inferiora quinhentos mil cruzeiros”. Essecritério quantitativo do capital foimantido pelo Decreto-lei 6.429, de13.04.1944, mas a ele foi acrescida a

importância econômica das praças emque a Casa Bancária estiver sediada.6

FONTES E EVOLUÇÃOHISTÓRICA DOS BANCOS

Desde as épocas mais recuadas notempo, notadamente a partir do séculoVI a.C., começaram a surgir estaspráticas negociais realizadas porinstituições, nas quais pode-se identificara presença dos Bancos, sabendo-se, porexemplo, que o empréstimo em dinheirorealizava-se com freqüência, já nessaépoca, na Babilônia, Egito e Fenícia.7

Foi, porém, no mundo greco-romano, chamado antiguidade clássica,que se tornaram conhecidas outrasoperações que, com as modificaçõessofridas no transcurso dos tempos, estãoatualmente integradas no comérciobancário, não só as que figuram no vastoelenco das modalidades de empréstimo,classificadas como operações ativas,como também no das passivas, em queo Banco figura como obrigado, e, ainda,nas que atua como mero prestador deserviços chamadas operações acessóriasou complementares. Deve-se observarque, embora possa constituir umasituação incomum na concepção dostempos atuais, esses negócios bancáriosda época realizavam-se no interior dostemplos, seu inicial e verdadeiro berço,

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 200732

local onde os antigos reuniam-se paracultuar seus deuses, sendo esse fatocompreensível em face dos costumesentão vigentes.8

Na Idade Média, com o floresci-mento do comércio, graças às feiras dascidades italianas, surgiam os compsores

ou combiatores, que praticavam a trocamanual da moeda. Com o aperfeiçoa-mento de suas atividades; que evoluíramda simples troca de moedas para aatividade creditícia, tornaram-se conhe-cidos por banqueiros, no século XII,esses cambistas.

Faziam esses cambistas suasoperações nos templos, mas tambémnos mercados ou feiras, por seremlugares públicos, onde instalavam suasbancas nas quais expunham as moedas,para atrair seus clientes e realizar atroca das moedas estrangeiras pelasnacionais. Inspirando confiança aopúblico, por essas atividades desenvolvi-das, esses cambistas passaram a rece-ber moedas em depósito que lhes eramconfiadas para posterior devolução e,deste modo, providos de capital, davamo mesmo em empréstimos aos quedeles necessitavam.

Das bancas dos cambistas adveioo termo banco, até hoje utilizado para

caracterizar o principal tipo de insti-tuição financeira nos tempos modernos.9

Desse modo, na Idade Média,surgiram os primeiros estabelecimentosbancários, que realizaram papel rele-vante no atendimento aos comerciantesestrangeiros em operações de troca demoedas, e outras operações bancárias,notadamente as de empréstimos. Tem-se nessa época, na Itália, o Banco deVeneza, fundado em 1171, o primeirosurgido na Europa, que atuou duranteseis (06) séculos, até o ano de 1.797.

A seguir, entre os mais importantes,surgiram em 1408, em Gênova, na Itália,a Casa di San Giorgio (ou Banco de SãoJorge), que se constituiu na primeirasociedade anônima conhecida; em 1609,o Banco de Amsterdam, na Holanda,que foi levado à insolvência em 1820,ou seja, 211 anos após a sua fundação;contemporaneamente, o Banco daSuécia; fundado em 1694, o Banco daInglaterra, em 1800; o Banco de França,fundado por Napoleão.10

Na Idade Moderna, com odesenvolvimento das atividades comer-ciais e industriais, ocorrido após os doisgrandes conflitos mundiais, gerou-se ocrescimento do apelo ao crédito, não sóna esfera privada como também na

8 MOLLE, Giacomo. I Contratti Bancari, ob. cit., p.5; NELSON ABRÃO. Direito Bancário,cit., nº 05, p.13.

9 MARTINS, Fran. Contratos e Obrigações Comerciais, cit., nº 372, p.408.

10 RODIÈRE, René e RIVES-LANGE, Jean-Louis. Droit Bancaire. p.18-20, Paris, 1980;ABRÃO, Nelson. Direito Bancário cit., nº 6, p.14; MARTINS, Fran. Contratos eObrigações comerciais cit., nº 372, p.408-409.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 33

pública, fatos que fizeram com que sealterasse a própria estrutura e funçãodos Bancos, passando-se dos modelosantigo e intermédio, para o moderno,cujas atividades primordiais caracte-rizam-se por tomar os fundos monetáriosamealhados pelos poupadores e em-prestá-los aos que do crédito neces-sitam, para o desenvolvimento dosrespectivos negócios. E em razão dessesfatos, multiplicou-se o número deBancos, fundados, notadamente, naEuropa, projetando-se com maiorrapidez esse crescimento na transiçãodo Século XIX para o XX, da nossa era.

No Brasil, o primeiro Banco,fundado ainda na fase colonial, em 12de outubro de 1808, por Alvará de D.João VI, quando para cá transferiu aCorte portuguesa, foi o Banco do Brasil,que experimentou, inicialmente, trans-formações e episódios de liquidação,aprovadas por assembléia geral de11.04.1835. Fundiu-se com o BancoComercial em 31.08.1853 e com oBanco da República dos Estados Unidosdo Brasil em 17.12.1892, conservandosempre a denominação de Banco doBrasil. Reorganizou-se definitivamente,tendo seus estatutos aprovados pela Leinº 1.455, de 30 de dezembro de 1905,contando atualmente uma existência dedois séculos, ou seja, precisamente 200anos, que ocorrerá na data próxima de12 de outubro do ano vindouro de 2008.

Atualmente participam do comérciobancário pátrio extenso número deBancos públicos e privados, que inte-gram o grande mundo das instituiçõesfinanceiras, estando os nacionais pri-vados dependentes para funcionar deautorização do Banco Central do Brasil,enquanto os estrangeiros estão sujeitosa autorização governamental, mediantedecreto do Poder Executivo, comodispõe o artigo 18, da Lei 4.595/64.

CLASSIFICAÇÃO DOS BANCOS

A pretensão de realizar a distinçãodos Bancos, em classes, mediantecritérios rígidos, a par de haver sidotentada historicamente pela doutrina,está em fase de desaparecimento,devido às dificuldades encontradas,como bem adverte renomado comer-cialista nacional, ao afirmar que“classificar os Bancos é entrar nocampo arbitrário”.11

Todavia, no âmbito do nosso direitointerno, a Lei 4.595, de 31 de dezembrode 1964, chamada Lei da ReformaBancária, classificou os Bancos pelogênero instituições financeiras,dividindo-os em instituições financeiraspúblicas e privadas (art. 17). Entre aspúblicas, figuram os Bancos Públicos,criados e mantidos pelos Governosfederal e estaduais, encarregados daexecução das políticas creditícias

11 CARVALHO DE MENDONÇA, J.X. Tratado de Direito Comercial Brasileiro, cit.,vol. 7, p.39.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 200734

respectivas, retratando o interven-cionismo estatal no setor.

Integram-se especificamente nosetor público, o Banco Central do Brasil,instituição bancária cúpula do SistemaFinanceiro Nacional, regulador efiscalizador das demais instituiçõesbancárias; o Banco do Brasil, sociedadede economia mista, órgão executor dapolítica creditícia e financeira do Gover-no Federal (art. 19), referido acima; oBanco Nacional do DesenvolvimentoEconômico e Social (BNDES), instru-mento de execução da política de inves-timentos do Governo da União (art. 23);a Caixa Econômica Federal (CEF),empresa pública, criada inicialmentepelo Decreto nº 2.723, de 12 de janeirode 1861, de D. Pedro II,12 que atual-mente tem sua estrutura definida peloDecreto-Lei nº 759, de 12.08.1969, alte-rado pelo Decreto-Lei nº 1.259, de19.02.1973, regendo-se pelo Estatutoaprovado pelo decreto nº 3.882, de08.08.2001. Extinto o Banco Nacionalda Habitação (BNH), pelo Decreto-Leinº 2.291, de 21 de novembro de 1986,passou a CEF à execução do SistemaFinanceiro da Habitação (SFH), comodispõe o artigo 24, parágrafo único, daLei da Reforma Bancária.

Ainda no setor público, mas noâmbito estadual, existiam, até poucotempo, as Caixas Econômicas Esta-

duais, previstas no artigo 24, parágrafoúnico da Lei nº 4.595/64, todasatualmente extintas. Nos três Estadosdo Sul (Rio Grande do Sul, SantaCatarina e Paraná) e no Estado de MatoGrosso do Sul, existe o Banco Regionalde Desenvolvimento do Extremo Sul(BRDE), que constitui Banco defomento. No Rio Grande do Sul, foicriada no Governo anterior a Caixa-RS,também Banco de fomento.

Compartilham com as instituiçõesfinanceiras públicas, na composição doSistema Financeiro Nacional, asinstituições financeiras privadas, regu-ladas também pela Lei 4.595/64, (art.25 e seus § §), que têm marcada pre-sença no mundo financeiro na figura doBanco Comercial, cujo desempenho édos mais abrangentes, configurando-seem banco múltiplo ou universal, ou seja,aquele que pratica substancialmentequase todas as operações bancárias,como sucede na Alemanha.13

Os Bancos Comerciais encontram-se atualmente regulamentados pelaResolução nº 469, de 07.04.1978, doBanco Central, que os define comoinstituições financeiras privadas,constituídas sob a forma de sociedadeanônima, tendo por objetivo precípuoproporcionar o suprimento oportuno eadequado dos recursos necessários parafinanciar, a curto e médio prazo, o

12 DE OLIVEIRA, Celso Marcelo. Manual de Direito Bancário, nº 29, p.201-202, EdiçãoIOB Thomson, São Paulo, 2006.

13 ABRÃO, Nelson. Direito Bancário cit., nº 12, p.23.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 35

comércio, a indústria, as empresasprestadoras de serviços e as pessoasfísicas, podendo realizar todas as ope-rações pertinentes a esse tipo de institui-ção bancária, tais como, descontartítulos, realizar operações de aberturade crédito, captar depósitos, etc.14

Dentre outras instituições creditíciasque se incluem no elenco das instituiçõesfinanceiras privadas, figuram as Coope-rativas de crédito, que são sociedadesde pessoas com forma jurídica própria,de natureza civil, sem finalidade lu-crativa, organizadas para a prestaçãode serviços ou para o exercício deoutras atividades de interesse comumdos associados.

As Cooperativas de crédito estãoregidas pela lei geral da categoria (Lei5.764, de 16.12.1971), e em especialpela Lei da Reforma Bancária (artigo55, da Lei 4.595/64), esta última no queconcerne a autorização para funciona-mento e fiscalização das mesmas, acargo do Banco Central. As coopera-tivas de crédito têm por finalidadepropiciar empréstimos aos seus associa-dos, em valores limitados e mediantetaxas módicas de juros, visando auxiliarde modo particular o pequeno trabalhodos mesmos em qualquer atividade queeste labor se manifeste, seja no setoragrícola, industrial, comercial ousimplesmente profissional.15

DAS OPERAÇÕES BANCÁRIASE SUA CLASSIFICAÇÃO

Visando obviar a realização de seuobjeto, os Bancos desempenham, emrelação aos seus clientes, uma extensagama de relações negociais, que recebema denominação técnica de operaçõesbancárias. A expressão encontra-sedesde muito consagrada no nosso direitopositivo, pois o Código Comercial, emsua Parte Primeira, no artigo 119, hojerevogada, dispunha, ao definir a figurado banqueiro, que “São consideradosbanqueiros os comerciantes que têm porprofissão habitual do seu comércio asoperações chamadas de Banco”. E oantigo Regulamento 737, de 25 denovembro de 1850, que regia o processocomercial e que foi revogado com oadvento do Código de Processo Civilde 1939, enumerava as operaçõesbancárias entre os atos de comércio pornatureza, inserindo estas no complexoda atividade empresária, como sendoaquela economicamente organizadapara a prestação de serviços.

É de lamentar que o vigente CódigoCivil de 2002, em seu artigo 966, posta-se com timidez em relação às operaçõesbancárias anteriormente caracterizadasno revogado artigo 119 do Código deComércio, pois ao definir a figura doempresário, acolhendo a concepção

14 MARTINS, Fran. Contratos e Obrigações Comerciais, cit., nº 375.

15 ABRÃO, Nelson. Direito Bancário cit., nº 15, p.35-36; MARTINS, Fran. Contratos eObrigações Comerciais, cit., nº 378, p.425-428.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 200736

legislativa consagrada no Código Civilitaliano de 194216 se refere não pelaespécie, mas pelo gênero dos atosrealizados pelo empresário que ospratica “profissionalmente (como)atividade econômica organizada para aprodução ou a circulação de bens oude serviços”, sendo sustentável oentendimento de que as operaçõesbancárias encontram-se incluídas pelolegislador atual nesse contexto, por-quanto são os Bancos consideradostambém entidades empresárias.

Assim, a posição atual dos comer-cialistas é no sentido de que devem serentendidas por operações bancárias acoleta ao público de aportes financeirose a intermediação ou aplicação dessesrecursos, sejam próprios ou de terceiros,no atendimento das necessidades decrédito de empresas e particulares.17

No que pertine à classificação dasoperações bancárias, têm os autores, demodo geral, levado em consideração, deum lado, a coleta de recursos finan-ceiros perante o público poupador e, deoutro, a aplicação destes, sejam própriosou de terceiros, às pessoas físicas ouempresários que deles necessitem parao desenvolvimento dos seus negócios,

de modo que as classificam em operaçõespassivas e em operações ativas.18

Outros as dividem em operaçõestípicas e atípicas. Na primeira categoriaincluem-se as que se relacionam comas atividades creditícias exercidas peloBanco, seja na coleta de recursosfinanceiros do público poupador, sejanos empréstimos aos que deles neces-sitam. Assim as operações típicassubdividem-se em passivas, nas quaiso Banco assume a posição de devedorda obrigação e em ativas, em que oBanco assume a posição de credor.19

Todavia, entendem outros autores,ainda, entre os quais Giuseppe Ferri eNelson Abrão, que o melhor critérioclassificatório das operações bancáriasé o que leva em conta a importância donegócio praticado, ou seja, a atividadedos Bancos resulta de uma dúplicecategoria de operações. Na primeiracategoria figuram as operações essenciaisou fundamentais, que representam afunção própria do Banco, qual seja oexercício do crédito em todas as suasmodalidades. Estas consistem, de umlado, na coleta de capitais junto aopúblico poupador, caracterizandooperações passivas, e, de outro lado, as

16 ABRÃO, Nelson. Direito Bancário, cit., nº 21, p.52-56.

17 Sobre o assunto, v. COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de Direito Comercial, p.445, Ed.Saraiva, São Paulo, 2005.

18 Em tal sentido CARVALHO DE MENDONÇA, J.X. Tratado cit., p.145; MARTINS,Fran. Contratos e Obrigações Comerciais, cit., nº 383, p.432.

19 COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de Direito Comercial, cit., p.447.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 37

que consistem na distribuição doscapitais, mediante a concessão deempréstimos aos que deles necessitampara o desenvolvimento dos seus negó-cios, caracterizando operações ativas.Existe ainda uma segunda categoria deoperações bancárias por meio das quaiso Banco presta serviços aos seus clien-tes, recebendo estas a qualificação deoperações acessórias ou complementares.

Deste modo, segundo os autoresanteriormente mencionados, o critériomais adequado para classificar asoperações bancárias é o que as divideem operações principais essenciais oufundamentais, podendo estas serempassivas ou ativas e em operaçõesacessórias ou complementares, nasquais o Banco não concede, nem rece-be crédito, mas apenas presta serviçosaos seus clientes.20

Assim sendo, constituem operaçõesprincipais, essenciais ou fundamentais,exemplificativamente, o depósito, oredesconto, a conta corrente, as aplica-ções financeiras dos clientes, etc., quesão operações passivas e, por outro lado,também exemplificativamente, oempréstimo, o desconto, a abertura decrédito, a conta de cheque especial, etc.,que são operações ativas; e, por fim, acustódia de valores, o serviço de cofresde segurança, a cobrança de títulos,etc., que formam as operações aces-sórias ou complementares.

DOS PRINCÍPIOS E REGRASORDENADORES DOSCONTRATOS BANCÁRIOS

Insertos no contexto geral dasrelações contratuais, os contratosbancários devem ser informados em suaestrutura, conteúdo e fins por umaprincipiologia comum a todos os con-tratos, civis e comerciais, dentre tais,notadamente, os princípios da autono-mia da vontade, da obrigatoriedade,caracterizada historicamente no pacta

sunt servanda, porém, cum grano salis,como a seguir se passará a observar.O princípio da autonomia da vontade,ou da autonomia privada, está fundado,como é sabido, no individualismo, que éproduto de tendências já verificadas nossistemas romano e canônico e noliberalismo econômico, manifestado,historicamente, pelo jusnaturalismo e,filosoficamente, na doutrina de KANT,cujo pensamento figura como precursorda idéia de estado liberal.21

A autonomia da vontade traduz,portanto, um poder de disposiçãodiretamente ligado à concepção tradi-cional relativa ao direito de propriedadeprivada, nos meandros do sistema demercado, promotor da livre circulaçãode bens, cujo principal instrumento é onegócio jurídico. Essa teoria proclamaque o sujeito é livre para contratar,escolher com quem contratar e

20 FERRI, Giuseppe. Manuale de Diritto Commerciale, p.680, Turim, 1971; ABRÃO,Nelson. Direito Bancário, cit., nº 23, p.59-61.

21 Em tal sentido, é também a posição doutrinária de Francisco Amaral em Direito CivilIntrodução, p.358, 5.ed. Renovar, Rio, 2003.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 200738

estabelecer, sem limitações, o conteúdodo contrato e seus efeitos.

As conseqüências do reconheci-mento da autonomia da vontade pelateoria clássica vêm desaguar nosprincípios da liberdade contratual, daforça obrigatória dos contratos e doefeito relativo,22 este último ainda estavaconcebido no artigo 928 da codificaçãocivil revogada. Nos tempos atuais,todavia, esses três princípios encontram-se balizados pela intervenção estatal nocontrato, visando preservar o interessepúblico no contexto dessa relaçãojurídica e é aplicável também aoscontratos bancários.

E é de notar-se que, significativa-mente, com o amadurecimento das idéiasde solidariedade e de socialidade dosdireitos, a Constituição Federal restou poradotar em seu artigo 5º, XXIII, de igualmodo, o princípio da função social dapropriedade, com o escopo de combatera especulação latifundiária.

A discussão legislativa acerca doProjeto da nova codificação civil, noCongresso Nacional, acolhendo asidéias da socialidade que, em con-seqüência da regra Constitucional,passou a ser concebida pelos con-gressistas, na discussão do Projetocivilista, fez com que o princípio dafunção social do contrato fosse, de igualmodo, contemplado na legislação civilcomum, em sede de relação contratual,estabelecendo-a no artigo 421, danova codificação.

Assim, diante dessa uniformeposição tomada pela legislação especiale também pela lei comum, a nova teoriacontratual vem sofrendo significativastransformações nos últimos tempos,fruto de uma consciência social moldadasob novas idéias que visam tornar maisequânime e mais justa a relação con-tratual. Essa nova tomada de posiçãoteve por escopo senão afastar, pelo menos,minorar ou relativizar os efeitos do indivi-dualismo e do patrimonialismo imperan-tes no passado, na esfera contratual.

Essas idéias de equanimidade e dejustiça social a serem observadas noâmbito da contratação servem paralimitar o tradicional princípio da auto-nomia da vontade, sempre que esteestiver em confronto com o interessesocial, que atende também os postuladosda ordem pública.

Assim sendo, concebendo o legis-lador que a liberdade de contratar nãopode divorciar-se da função socialcaracterizadora dessa relação jurídica,positivou a dita função no Código Civilde 2002, como regra geral a serobservada em todas as contratações naárea do direito privado.

A par de acolher o princípio dafunção social no campo da teoria geraldos contratos, extensivo a toda a tipo-logia contratual indistintamente, olegislador civil reconheceu também aatuação desse princípio especificamentenos contratos de adesão, ao estabelecerno artigo 423 da codificação a regra de

22 Sobre esse tema, v. ainda, Francisco Amaral, Direito Civil, Introdução, cit., p.359.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 39

que “Quando houver no contrato deadesão cláusulas ambíguas oucontraditórias, dever-se-á adotar a inter-pretação mais favorável ao aderente”,repristinando, de certo modo, a regravedatória das cláusulas abusivas,constantes no artigo 54 e § § 1º ao 4º,do Código de Defesa do Consumidor.

Ainda com o escopo declarado daadoção do princípio da função social docontrato, notadamente nos contratos deadesão, introduziu o legislador nacodificação civil de 2002, o artigo 424,segundo o qual, “nos contratos deadesão, são nulas as cláusulas queestipularem a renúncia antecipada doaderente a direito resultante da naturezado negócio”.

Na atualidade, a própria legislaçãocivil, como se viu, ao adotar em sedede teoria geral dos contratos o princípioda função social, concebe-a como partede uma realidade mais abrangente ecomo fator de alteração da realidadesocial, como o faz, de igual modo, como direito de propriedade. E em facedessa concepção, consagra a rescisãodo contrato lesivo (Cód. Civil, art. 157),anula o celebrado em estado de perigo(Cód. Civil, art. 156), sanciona o enri-quecimento sem causa (Cód. Civil, art.884-886); prescreve a resolução docontrato por onerosidade excessiva(Cód. Civil, art. 478-480); limita o valorda cláusula penal (Cód. Civil, art. 412-413), etc., como salienta a doutrina.23

Deve-se ainda registrar que oCódigo de Defesa do Consumidor(CDC) acolhe extensivamente em seutexto a função social do contrato deconsumo, estendendo-a também aoscontratos bancários, pois ao definir osserviços, como categoria sujeita àdisciplina dessa codificação especial, osinclui como atividade de consumo, e comotais “inclusive as de natureza bancária,financeira, de crédito...”, praticadas peloconsumidor com os Bancos.

Assim sendo, diante da regraexpressa contida no artigo 3º, § 2º, doCDC, às relações de consumo pratica-das com os Bancos é aplicável o princí-pio da função social do contrato. A apli-cabilidade do CDC às operações ban-cárias encontra-se já sedimentada najurisprudência, na Súmula 297 do S.T.J.

Quanto à sua estrutura e elementosconstitutivos, encontram-se os contratosbancários regulados pelas regras da leicivil comum e quanto ao seu conteúdoe finalidades pela regência geral dasregras de direito mercantil e, particular-mente por disposições de direito bancá-rio, salvo alguns contratos inominadosque recebem a disciplina de leis especiais.

Não se deve esquecer de salientarque desde tempos transatos vem persis-tindo a unidade normativa, civil e comer-cial, para a regência das obrigações dessesdois setores da relação jurídica privada.

Mas, a par da confluência dessasduas áreas jurídicas, quanto ao direito

23 Entre outros, Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, vol. III, nº 185,p.10-14, 11.ed., Forense, Rio, 2004.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 200740

obrigacional, não se pode conceber que,com a revogação dos artigos 1º a 456,constantes da parte primeira do CódigoMercantil de 1850, tenha-se transladadapara o Livro II da codificação civilvigente, sob o título de Direito de

Empresa, toda a normatividade denatureza mercantil sob a regênciadaquelas disposições revogadas. Deoutro modo, constituiria concepçãodeveras incorreta imaginar-se que partedo direito mercantil se tenha transmu-tado em civil, pelo simples fato de suacolocação tópico em sede civil.

Já no passado, a respeito dasobrigações e contratos mercantis enesse elenco incluídos os contratosbancários, havia regra expressa noartigo 121, do Código Comercial,segundo a qual “As regras e disposiçõesdo direito civil para os contratos emgeral são aplicáveis aos contratoscomerciais, com as modificações erestrições estabelecidas neste Código”.

Na verdade, os contratos mercantisem geral e, no particular, os contratosbancários, socorrem-se das regras con-tidas na lei civil comum, quanto aos seuselementos pertinentes à capacidade,legitimidade das partes e à forma, masregem-se pela lei mercantil, quanto àespécie, qualidade e demais caracterís-ticas do objeto e a sua finalidade,porquanto a definição e disciplinadestes últimos elementos não é própriada lei civil.

Quanto à forma, a disciplina éexclusiva da lei civil e a imensa maioriados contratos mercantis e bancáriosobedece a forma não defesa em lei,

segundo dispõe os artigos 104, III e 107caput, do Código Civil, ou seja, a formalivre, devendo-se salientar que oscontratos que envolvem compra evenda de imóveis, cujo valor não excedaa 30 salários mínimos vigentes no País,podem ser formatizados por escrituraparticular, segundo o artigo 108 dacodificação civil. Todavia, por expressadisposição legal, podem ser realizadospor escritura particular os contratosbancários que têm por objeto o finan-ciamento de imóveis com garantiahipotecária, pertinentes ao SistemaFinanceiro da Habitação (SFH),segundo o artigo 61, § 5º, da Lei 4.380/64, que criou o Banco Nacional daHabitação (BNH) e criou também omencionado sistema de financiamentoda casa própria.

Não obstante a lei civil autorizar aprática da forma livre para instrumentara realização dos contratos bancários,estes são, na verdade, praticadosmediante a utilização da forma escrita,podendo esta ser obtida com o auxílioda máquina, notadamente por meio dainformática, que na atualidade éutilizada inclusive para instrumentar osnegócios jurídicos mais solenes, comoé o caso do testamento, em sede dodireito das sucessões, segundodisposições do artigo 1.864 e outros, dacodificação civil em vigor.

Conforme registra certa doutrina,“Não há mais no direito brasileirocontratos mercantis solenes”, conti-nuando o autor a afirmar que “aexigência da forma escrita para a plenaeficácia das obrigações contratadas não

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 41

se confunde com o requisito da soleni-dade para a constituição do contrato”(como acentua Fábio Ulhoa Coelho.24

DAS OPERAÇÕES DOSBANCOS EM GERAL E DOSCONTRATOS QUE ASFORMALIZAM

Como já foi explanado acima, asoperações bancárias classificam-se, porsua natureza, em operações principais,essenciais ou fundamentais do comérciobancário, sendo estas subdivididas emoperações ativas, nas quais o Bancofigura como credor, e em operaçõespassivas, em que o Banco assume aposição de obrigado ou devedor. Deoutro lado, o mesmo critério classifi-catório reconhece outra categoria deoperações bancárias chamadas opera-ções acessórias ou complementares, nasquais o Banco não concede emprés-timos, nem recebe recursos financeirosdos poupadores em geral, mas tãosomente assume o encargo de prestarserviços aos seus clientes.

DAS OPERAÇÕES ATIVASDOS BANCOS

No elenco das operações principais,essenciais ou fundamentais do comérciobancário, que figuram como operaçõesativas, passam a ser examinadas,exemplificativamente, a de mútuo, a de

desconto de títulos de crédito, a decheque especial, a de empréstimo rural,a de empréstimo industrial, a deempréstimo em consignação, a de cartãode crédito, a de empréstimo mediantepenhor de jóias, metais e pedraspreciosas, dentre outras da mesmaespécie, todas elas formalizadas porinstrumentos de contrato que sãonominados com a mesma denominaçãoprópria de cada uma.

DO CONTRATO DE MÚTUO

É o instrumento formalizador daoperação de mútuo, a mais comum emais ocorrente entre os contratos ban-cários. Representa também a espéciecontratual mais antiga, realizada emtodos os tempos pelos Bancos, havendonotícias de sua prática já no distanteimpério babilônico, onde se encontravaregida pelo Código de Hamurábi, deaproximadamente 2.600 a.C., contendoregras restritivas da usura acerca dataxa de juros, segundo às quais, se oemprestador estabelecesse taxas dejuros superiores a 20%, não só perdia odireito à renda do capital emprestado,mas também ao próprio capital.

Para os romanos, foi o mútuo difun-dido entre os argenti e seus clientes,os quais exerciam atividades seme-lhantes aos atuais banqueiros, realizandooperações de empréstimos mediantea cobrança de juros, devendo-se

24 Sobre esse requisito dos contratos mercantis, v. Fábio Ulhoa Coelho, Manual deDireito Comercial, p.445, Saraiva, São Paulo, 2005.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 200742

ressaltar que na Idade Média essacobrança de juros sobre os emprés-timos recebeu a reprovação da IgrejaCatólica, que a considerou usurária,imoral e pecaminosa.

Com efeito, abandonando-se ovácuo temporal transcorrido entre omedievo e a época moderna, há que seregistrar que o contrato de mútuoingressou no direito brasileiro pelo artigo247 do Código Comercial de 1850,encontrando-se atualmente definido noartigo 586 e ainda explicitado, quanto acobrança de juros, no artigo 591, ambosda codificação civil de 2002.

Segundo a doutrina especializada, estarelação contratual deve ser entendidacomo a operação bancária realizada entreo Banco e seu cliente, mediante a qual ainstituição bancária coloca à disposiçãodaquele determinada soma em dinheiro,em moeda corrente, para ser restituídaao mutuante na mesma espécie, qualidadee quantidade, dentro de certo tempo, comacréscimo de juros remuneratórios.25

O mútuo é espécie do gênerooperações financeiras, que tem desta-cada predominância no campo das ope-rações essenciais ou fundamentais eativas dos Bancos. E no sentido espe-cífico, o contrato de mútuo deve serconsiderado “o núcleo central do sis-tema creditório ou o centro de gravita-ção do comércio bancário segundo aexpressão da doutrina especializada”.26

O contrato de mútuo pode serajustado pura e simplesmente, amparadoapenas no conceito pessoal e cadastraldo tomador, ou mediante garantia fide-jussória (aval, fiança) ou com garantiareal (caução, penhor, hipoteca), tendoem vista que o direito creditório do cre-dor repousa no patrimônio de devedor,segundo dispõem os artigos 391, doCódigo Civil e 591, do CPC. Todavia,deve ser registrado que o avalista detítulo de crédito vinculado a contrato demútuo também responde pelas obriga-ções pactuadas, quando no contratofigurar como devedor solidário, confor-me dispõe a Súmula nº 26, do S.T.J.

Quanto aos juros remuneratórios aserem ajustados no contrato de mútuo,deve ser observada a taxa média demercado estipulada pelo Banco Central,limitada ao percentual contratado,segundo dispõe a Súmula 596, do S.T.F.e a Súmula 296, do S.T.J., salientadoque a taxa de juros de 12% ao ano,fixada no § 3º, artigo 192, do textooriginal da Constituição Federal, foirevogada pela Emenda Constitucionalnº 40, de 29.05.2003 e bem assim estáafastada a Lei da Usura (Decreto22.626/33), que fixava os jurosremuneratórios no mesmo patamar de12% ao ano (artigo 1º) e os jurosmoratórios em 6% a.a. (artigo 3º).

Finalmente, há que ser observadoque os empréstimos desta espécie,

25 MARTINS, Fran. Contratos e Obrigações Comerciais, cit., nº 389, p.436; ABRÃO,Nelson. Direito Bancário, cit. nº 32, p.94.

26 ABRÃO, Nelson. Direito Bancário, cit., nº 32, p.94.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 43

quando concedidos pelos Bancos apessoa física ou jurídica que se dediqueà atividade comercial ou à de prestaçãode serviços, poderão ser operados pormeio de cédula de crédito comercial oude nota de crédito comercial, seguindo-se as disposições da Lei 6.840, de03.11.1980, bem como as que discipli-nam a cédula de crédito industrial, con-tida no Decreto-Lei nº 413, de 09.01.1969.

DO CONTRATO DEDESCONTO

O desconto de títulos de crédito éoutra operação bancária tipicamenteativa, mediante a qual o Banco, nessetipo de negócio jurídico, chamado des-contário, antecipa ao cliente, chamadodescontante, um adiantamento pecuniá-rio, em troca de títulos de crédito sa-cados por este último contra terceiros,os quais são endossados ao Banco. Esteendosso caracteriza-se como endossotranslativo da posse-propriedade dotítulo, segundo doutrina de tomo.27

Naturalmente, a quantia antecipadapelo Banco ao cliente descontantelimita-se ao valor líquido dos títulosdescontados, deduzidos os juros remu-neratórios incidentes sobre a operação,calculados até o vencimento e a comis-são de cobrança dos mesmos.

São objeto de desconto bancário, emregra, todos os títulos cambiais comvencimento futuro, tais como os não

causais (letras de câmbio, notas pro-missórias) e bem assim os causais oucambiariformes, representados pelasduplicatas de fatura, que constituemefetivos efeitos comerciais. Tanto nodesconto dos títulos não causais, comonos cambiariformes, estes resultantesda compra e venda de mercadorias ouda prestação de serviços entre ocomerciante, cliente do Banco e umterceiro, a instituição financeira descon-tária adquire a propriedade dos títulos,mediante endosso translativo, sob afigura da cessão de crédito, subrogando-se no direito de crédito do cliente.

Destarte, pelos seus elementosconstitutivos, o desconto bancárioconfigura uma relação jurídica trilateral,composta pelo cliente, sacador ouemitente dos títulos descontados, que osaliena ao Banco descontário; por esteque, mediante o endosso, adquire apropriedade dos títulos; e pelo sacado,que é o obrigado a implementar o paga-mento dos títulos, nos respectivos ven-cimentos, salientando-se que, não resga-tados estes, remanesce a coobrigaçãodo descontante de reembolsar o Bancopela quantia que recebeu antecipadamente.

Por derradeiro, cabe observar que,adquirida pelo Banco a propriedade dostítulos descontados, pela figura dacessão de crédito; compete-lhe, obvia-mente, proceder a cobrança dosmesmos e bem assim o respectivoaceite, se for o caso.

27 Ver Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, Tomo 36, § 4.050, nº 3, p.222-223,Edição Borsoi, Rio de Janeiro, 1971.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 200744

DO CONTRATO DECHEQUE ESPECIAL

Deve-se entender por contrato decheque especial, que também é deno-minado contrato de cheques garantidos,a operação bancária ativa, mediante aqual o Banco concede a clientes sele-cionados a abertura de um crédito comlimite e prazo determinados, para serpor estes utilizado por meio de chequesde categoria especial, fornecidos pela ins-tituição creditadora. O Banco que con-cede o crédito é ordinariamente denomi-nado creditador, enquanto o favorecidodo empréstimo é chamado creditado.

Essa modalidade de crédito, cujadenominação se confunde com o ins-trumento de sua utilização, vem sendogenericamente identificada por “chequeespecial”. No entanto, pode adquirirdenominações diversas, segundo a pre-ferência do Banco instituidor do crédito.Haja visto, exemplificativamente, que noBanco do Brasil recebe a denominaçãoespecífica de “cheque ouro”, enquantoem outras instituições bancárias a de“cheque conterrâneo”, no Banco doNordeste do Brasil e a de “chequeBEC”, no Banco do Estado do Ceará,segundo noticia a doutrina comercial.28

O cliente ou creditado, em benefíciodo qual é realizada a abertura de crédito,é indentificado, para a utilização domesmo, através de um cartão fornecidopelo Banco, no qual constam o nome ea assinatura do beneficiário, o prazo de

utilização do crédito, a indicação doestabelecimento creditador e bem assimo número da conta corrente do clienteou creditado.

O deferimento do crédito pode serpuramente pessoal, segundo o teor decredibilidade que o creditado gozarperante o Banco creditador, aferida estamediante avaliação criteriosa dos res-pectivos registros cadastrais, ou, ainda,com base no saldo médio que se veri-ficar, por certo período, em sua contacorrente. Com efeito, essa aferição nãoé recomendada pelo Banco Central, segundoregistra autor da área comercialista.29

A operação de cheque especial podeser periodicamente renovada. Quantoaos juros remuneratórios ajustadoscontratualmente, incidentes sobre asparcelas utilizadas pelo creditado, sãocontados e debitados mensalmente naconta corrente do mesmo, ou na oportu-nidade da extinção do contrato, quepoderá ser cancelado pelo Banco, nocaso de descumprimento, pelo devedor,das obrigações contratuais, ou por opçãodeste ou, ainda, por desnecessidade decontinuar a utilizar-se do crédito.

DOS CONTRATOS DEEMPRÉSTIMO RURAL

Tendo em mira os interesses que oagronegócio vem despertando no espí-rito das pessoas ligadas ao meio rural,o qual se expande com rara velocidadee dinamismo nos tempos modernos,agricultores e pecuaristas vêm dirigindo

28 MARTINS, Fran. Contratos e Obrigações Comerciais, cit., nº 401, p.443-445.

29 MARTINS, Fran. Contratos e Obrigações Comerciais, cit., nº 402, p.404.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 45

suas atenções para esses dois setoresda vida rural. E, diante da escassezde aportes financeiros próprios, paraenfrentá-los com os recursos técnicosnecessários à obtenção de resultados,recorrem esses ruralistas aos Bancospara, mediante a consecução de emprés-timos especializados e destinados aesses setores da atividade rural, conse-guir os recursos necessários para enfren-tar e desenvolver tais empreendimentos.

Os empréstimos rurais, obedecidosos ditames traçados pela política go-vernamental, visando o desenvolvi-mento técnico, metódico e dinâmico daprodução primária, dispõe de estruturaorganizada para atender as necessida-des financeiras de cada um dos doissetores produtivos, de modo que os em-préstimos a eles destinados estãodivididos em agrícolas e pecuários.

Os contratos de empréstimo agrí-cola obedecem a limites de créditofixados segundo o tipo de cultura a serdesenvolvida pelo agricultor, isto é,existem parâmetros limitativos para acultura de lavouras de arroz irrigadas enão irrigadas, de soja, de trigo, de milho,de girassol, etc., mediante juros remu-neratórios do capital empestado redu-zidos, sendo os prazos dos financia-mentos compatíveis com o períodovegetativo de cada espécie de cultura,devendo-se salientar que, por disposiçãolegal expressa, o prazo do penhoragrícola não excederá de 3 (três) anos,prorrogável por mais 3 (três),segundoo artigo 61, do Decreto-lei nº 167, de 14

de fevereiro de 1967, observado, noentanto, o prazo compatível ou neces-sário para cumprir o período vegetativodo tipo de cultura que for praticado.Pode haver pacto de capitalização dejuros nos contratos de empréstimo rural,segundo dispõe a Súmula 93, do S.T.J.

As garantias do contrato deempréstimo agrícola, que constituemespécie de penhor rural, admitidas pelacédula rural pignoratícia, esta criadainicialmente pela tradicional Lei nº 492,de 30 de agosto de 1937, que crioutambém o penhor agrícola (arts. 6º ao9º) e o penhor pecuário (art. 10 a 13),30

devem constar no instrumento escritodo respectivo contrato, segundo dispõeo artigo 14, inciso V, do diploma legalreferido, devendo serem integradas pelofruto pendente a ser produzido pelo tipode cultura praticado pelo agricultor ebem assim pelas máquinas e utensíliosagrícolas empregados no empreendi-mento e ainda, por outros bens neces-sários para completar o complexo ga-rantidor do empréstimo.

No que diz com os empréstimos daespécie, concedidos a pequenos e amicro-produtores rurais, são estes sub-vencionados pelo Programa Nacionalde Fortalecimento da AgriculturaFamiliar (PRONAF), com recursos doTesouro Nacional, com o objetivo deincrementar as culturas agrícolas a queos referidos beneficiários estão habitua-dos a praticar, sendo portadores deconhecimentos práticos e experiência,para o exercício do mister.

30 Ver Fran Martins, Contratos e Obrigações Comerciais, cit., nº 295, p.347.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 200746

Essa modalidade de empréstimoagrícola, que deve observar a estruturaformal da Nota de Crédito Rural,estatuída pelo Decreto-lei 167/67, emseus artigos 27 e 28, dispensada agarantia real exigida para os emprés-timos de maior porte, requer que o seuinstrumento formal seja levado a registrono Ofício de Imóveis, com o objetivode conferir-lhe eficácia em relação aterceiros e, conseqüentemente, a obten-ção do efeito erga omnes.31

Esse título de crédito deve estarrevestido dos requisitos exigidos pelasdisposições legais que regulam estamodalidade de empréstimo, cujo prazonão excederá a 2 (dois) anos, mas ditoprazo deverá guardar compatibilidadecom o período vegetativo do tipo decultura a ser praticado pelo agricultor.

Por fim, extinto o prazo do emprés-timo e não prorrogado este na formapermitida na lei, deve o mutuário repô-lo ao Banco financiador, pelo modoestipulado na avença, que poderá serparcelado ou integral.

Os contratos de empréstimo pecuá-rio, embora dirigidos para tipo de em-preendimento diverso do que se destinaao empréstimo agrícola e não obstantese incluam no mesmo gênero dosempréstimos rurais, obedecem, de igualmodo, a limites fixados em conformi-dade com o tipo de atividade pecuáriaempreendida pelo pecuarista postulantedo empréstimo, ou seja, existem parâ-metros fixadores dos limites para ofinanciamento à exploração de gado

bovino, ovino, suíno, etc., e bem assimquanto aos juros remuneratórios docapital emprestado, prazo de vigênciada avença; regras técnicas pertinentesà manutenção da saúde do rebanho; eoutras necessárias ao sucesso doempreendimento. E, no que diz respeitoao primeiro tipo de exploração pecuária,isto é, a de gado bovino, há que serealizar, ainda, a distinção quanto aoobjeto do empréstimo, isto é, se destina-do à criação, reprodução do rebanho oudestinado à engorda. Pode haver pactode capitalização de juros nos contratosde empréstimo rural em geral, dos quaisparticipa o empréstimo pecuário,segundo a Súmula 93 do S.T.J.

As garantias do contrato de em-préstimo pecuário são as que constituemo objeto do penhor pecuário, cujasdisposições reguladoras desse tipo degarantia encontram-se atualmente nanossa codificação civil de 2002 (artigos1.444 a 1.446), salvo quanto ao prazodo ajuste, que encontra comando legalexpresso no Decreto-lei nº 167/67,segundo o qual não é admitido para openhor pecuário prazo superior a 5(cinco) anos, podendo ser prorrogadopor mais 3 (três) anos.

DO CONTRATO DEEMPRÉSTIMO INDUSTRIAL

Para suprir as necessidades finan-ceiras acaso enfrentadas no desenvol-vimento dos seus negócios, as pessoasfísicas ou jurídicas dedicadas à ativi-

31 ABRÃO, Nelson. Direito Bancário, cit., nº 138, p.284-285.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 47

dade industrial podem valer-se do em-préstimo bancário destinado a atenderfinanceiramente esse ramo de trabalhoempresarial, o qual é operado por meioda cédula de crédito industrial ou danota de crédito industrial, que cons-tituem títulos de crédito de rápida e fáciloperacionalidade, utilizáveis segundo ahipótese concreta que se apresentar.

Essa modalidade de empréstimobancário foi inicialmente adotada como advento do Decreto-lei nº 1.271, de16 de janeiro de 1939, tendo prossegui-mento com os diplomas que a este su-cederam, e encontrando-se atualmentesob a regência do Decreto-lei nº 413,de 09 de janeiro de 1969.

A cédula de crédito industrialrepresenta título certo e líquido, cujovalor é o do empréstimo concedido peloBanco ao cliente, sendo tal importecreditado pelo Banco, em contavinculada à operação, a ser utilizadapelo creditado por meio de cheques,saques, recibos, ordens, cartas ouquaisquer outros documentos, na formaestipulada no instrumento cedular ou noorçamento que a este é anexado (arts.4º e 10). As importâncias fornecidaspelo Banco vencem juros remunera-tórios segundo os índices fixados peloConselho Monetário Nacional, bemcomo correção monetária e taxas, inci-dentes sobre os saldos devedores daconta vinculada à operação, exigíveisno final de cada semestre civil e tambémem outras datas, fixadas no título (art.5º). A taxa de juros remuneratórios estásujeita à capitalização, segundo dispõea própria lei (art. 14, VI), sendo assim

entendida pela jurisprudência consolid-ada, constante da Súmula 93, do S.T.J.

O mencionado título de créditoencerra em seu conteúdo promessa depagamento em dinheiro, que seencontra assegurado por garantia real,cedularmente constituída (art. 9º) emcláusula própria, na qual devem constara descrição pormenorizada dos bens queconstituem objeto do penhor, tais comoa espécie, a qualidade, a quantidade, asmarcas (se houver), bem como a indi-cação, situação, confrontações do imóvelem que se encontram depositados os benspenhorados e também o registro imobi-liário do mencionado instrumento (art. 14,V), do referido diploma legal.

Além do penhor cedular (arts. 9º e14), a cédula de crédito industrial admiteoutras modalidades de garantia, taiscomo a alienação fiduciária e a hipotecacedular (art. 19). Esse penhor deve serconstituído pelas máquinas e aparelhosutilizados na indústria, matérias-primas,animais destinados à industrialização decarnes, sal, veículos automotores,dragas, letras de câmbio, promissórias,duplicatas, e outros (art. 20). Consti-tuem, ainda, objeto da hipoteca cedular,as construções (pavilhões da fábrica oudo complexo industrial), o terreno emque se apóia o complexo, as instalaçõese benfeitorias (art. 24). Constituemobjeto da alienação fiduciária, os bensindicados no Decreto-lei 911/69 e naLei 4.728/65, esta chamada Lei doMercado de Capitais.

Em casos especiais, o empréstimoindustrial poderá ser operacionalizadopor meio de nota de crédito industrial,

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 200748

que consubstancia, como ocorretambém com a cédula de créditoindustrial, promessa de pagamento emdinheiro, constituída sem garantia real(art. 14). Os requisitos para a suaconstituição encontram-se indicados noartigo 16 do Decreto-lei nº 413/69.

Goza o respectivo crédito de privi-légio especial. Quanto ao mais, excetoa ausência de garantia e a inscriçãoimobiliária, à nota de crédito industrialaplicam-se as disposições legaispertinentes à cédula de crédito indus-trial (art. 18).

DO CONTRATO DE CARTÃODE CRÉDITO

O contrato de cartão de crédito é amodalidade contratual moderna que tempor escopo suprir as carências finan-ceiras pontuais de uma grande faixa dapopulação, normalmente assalariada,que não dispõe de soma de dinheirobastante para a aquisição de bens ede serviços, durante alguns dias domês corrente.

A instituição do cartão de crédito,na sua feição atual, surgiu nos EstadosUnidos, na década de 50 do séculoanterior, originalmente com as modali-dades implantadas pelo Diners Club epelo American Express, que permitiama aquisição a prazo de bens e serviçosno setor de hotelaria, turismo e trans-portes, sendo que no final dessa décadao negócio passou a interessar aos Bancos

que o adotaram com celeridade e dina-mismo. Da América, o uso do cartãode crédito emigrou para a Europa e daídisseminou-se pelo mundo inteiro.32

No Brasil, foi o cartão de créditointroduzido na década de 60 do séculoanterior, propiciando atualmente aaquisição de uma numerosa gama debens e serviços a curto e médio prazos,além de oferecer o saque, pelo cliente,de fundos por ele disponíveis no Bancoemissor do cartão.

Deve-se entender por contrato decartão de crédito o documento denatureza negocial destinado à aquisiçãode bens e serviços a curto e médioprazo, cujo titular goza de um limite decrédito perante uma instituição finan-ceira, que o credencia também a efe-tuar saques de dinheiro em caixas ele-trônicas do Banco emissor do cartão.33

O cartão de crédito representa umnegócio jurídico atípico e complexo, doqual participam três pessoas interve-nientes, tais como o emissor, o titulardo cartão ou aderente e o fornecedor.O emissor é geralmente um Banco, querealiza a intermediação do negócio entreo titular do cartão e o fornecedor dosbens e serviços; enquanto o titular é obeneficiário, autorizado pelo Bancoemissor a utilizar o cartão para as aqui-sições mencionadas; e, finalmente, afigura do fornecedor, ou seja, o terceirointegrante do negócio jurídico, que vendeos bens ou presta os serviços adquiridospelo titular do cartão.

32 ABRÃO, Nelson. Direito Bancário, cit., nº 80, p.184-185.33 ABRÃO, Nelson. Direito Bancário, cit., nº 80, p.186.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 49

Há que se salientar que a relaçãojurídica de cartão de crédito biparte-seem dois vínculos distintos. O primeirose estabelece pelo chamado contrato

de filiação, em razão do qual o emissorse obriga a pagar ao fornecedor aquantia ou o preço da compra dos bensou da realização dos serviços adquiridospelo titular do cartão, antes mesmo dereceber deste a mencionada quantia oupreço, donde passar o emissor do cartão(Banco) a ser o devedor responsávelperante o fornecedor para pagar o valordas operações realizadas pelo cartão decrédito. O segundo vínculo é o que seestabelece entre o titular do cartão decrédito e o emissor do mesmo, pelo qualaquele se obriga a pagar diretamente aeste o valor-preço dos bens adquiridose dos serviços recebidos do fornecedor.

Por outro lado, o vínculo que seestabelece entre o adquirente dos bensou serviços e o fornecedor dos mesmosé indiferente ao contrato de cartão decrédito, pois decorre exclusivamente denegócio jurídico de compra e venda,tornando-se irrelevante seja o mesmorealizado por meio de cartão de créditoou por qualquer outra modalidade denegócio. Destarte, embora a operaçãode cartão de crédito possa sugerir umarelação jurídica triangular, na verdadeela é apenas bilateral, porque o terceirovínculo acima referido, emergente dacompra e venda, se estabelece entrecomprador e vendedor, podendo aquele

exercer contra este as ações e execu-ções que resultarem de deficiênciaspertinentes aos bens ou serviçosadquiridos, mas não em razão donegócio haver sido realizado por meiode cartão de crédito. Não integra, pois,a compra e venda, em sua essência, arelação jurídica de cartão de crédito.34

A emissão de cartão de crédito ésolicitada pelo cliente ao Banco com oqual mantém relações negociais, e esteo confecciona em forma impressa, coma identificação do titular, número e prazode vigência. E com a entrega do cartãoao cliente, pelo Banco, o mesmo aceitaas cláusulas contratuais preestabe-lecidas pelo emissor, configurando,desse modo, a avença, contrato deadesão, que se submete às regras doCódigo de Defesa do Consumidor(CDC), pois já se manifestou a jurispru-dência, atualmente consolidada, que aadministradora de cartão de créditoconfigura instituição financeira, comodispõe a Súmula 283, do S.T.J. e, comotal, está submetida às regras especiaisdo CDC, como dispõe a Súmula 297,do mesmo Tribunal Superior.35

Deve ser observado, por oportuno,que a emissão de cartão de crédito peloBanco ao seu cliente, resulta da credibi-lidade pessoal ou patrimonial que estegoza perante aquele. A par disso, ainsegurança e o cometimento de atosilícitos nos grandes centros urbanos têmlevado os Bancos a exigir a contratação,pelo titular do cartão, de um seguro de

34 MARTINS, Fran. Contratos e Obrigações Comerciais, cit., nº 459, p.509-511; ABRÃO,Nelson. Direito Bancário, cit., nº 82, p.190-192.

35 ABRÃO, Nelson. Direito Bancário, cit., nº 82, p. 188.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 200750

crédito, cujo prêmio é pago mensal-mente por este, visando prevenir osefeitos de furto ou roubo do cartão.

O contrato de cartão de crédito éajustado com prazo determinado, demodo que a ocorrência desse eventotorna-o extinto. Pode extinguir-se tambéma avença antecipadamente por opçãounilateral do cliente, ou ainda, poriniciativa do Banco emissor, toda vezque o beneficiado deixar de gozar daconfiança daquele, resultante do usoindevido do cartão ou por descumpri-mento das obrigações contratuais.36

DO EMPRÉSTIMO MEDIANTEPENHOR DE JÓIAS, METAIS EPEDRAS PRECIOSAS

Esta modalidade de empréstimotem existência longínqua, pois foiinaugurada com a criação da CaixaEconômica Federal, inicialmente denomi-nada Monte de Socorro, pelo GovernoImperial, com o Decreto nº 2.273, de 12de janeiro de 1861, promulgado por DomPedro II, mantendo-se até agora comomodalidade de empréstimo realizadopela Caixa, com exclusividade.

Para as Agências desta instituiçãobancária que operam neste Estado, oempréstimo vem sendo garantido exclusi-vamente por penhor de jóias, ao passoque em Agências sediadas em outrosEstados, o penhor é estendido a outrosmetais e pedras preciosas, constituindoesse tipo de penhor, que tem a naturezade penhor comum, a única garantia que

assegura à entidade financiadora areposição do capital emprestado.

Trata-se de empréstimo de pequenovalor, cujos limites partem da quantiamínima de R$ 50,00, podendo chegarao patamar máximo de R$ 50.000,00,por cliente, situando-se o limite médiobem abaixo deste limite máximo,variando os prazos entre 30, 60, 90, 120,150 e 180 dias, permitido ao clienterenova-los ao término de cada um.

Esses limites do empréstimo sãofixados em percentuais aferidos sobreo valor de avaliação dos bens pelocliente oferecidos em garantia, os quaissão avaliados por técnico da instituiçãoemprestadora, levadas em conta,também, a qualificação e a categoriados objetos que constituem a garantia.Assim sendo, o valor do empréstimodeve corresponder à percentagem quese situa entre dez e oitenta por centodo valor da avaliação.

Os juros remuneratórios, incidentessobre as operações da espécie, sãovariáveis, segundo o limite maior oumenor do empréstimo, situando-se osmesmos entre as taxas de 1,80% a2,85% fixadas na contratação inicial econservadas no mesmo patamar, naeventualidade renovação do empréstimoao final do prazo ajustado entre as partes.

Liquidado o empréstimo, integral ouparcialmente, são os objetos constitu-tivos da garantia desonerados e devol-vidos ao financiado, na proporção dosrecolhimentos realizados por este a títulode pagamento parcial ou total.

36 ABRÃO, Nelson. Direito Brasileiro, cit., nº 84, p. 194.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 51

DAS OPERAÇÕES PASSIVASDOS BANCOS

Classificadas igualmente comooperações principais, essenciais oufundamentais dos Bancos, porqueintegrantes também, por sua natureza,da prática habitual e própria docomércio bancário, são as operaçõespassivas, mediante as quais a instituiçãobancária capta recursos financeiros dopúblico poupador, para emprestar aosque necessitam do crédito paradesenvolver seus negócios, ou negociaseus ativos com outras instituições parasuprir necessidades de caixa, ou ainda,recebe capitais de seus clientes parareaplicação no mercado de capitais,assumindo o Banco em todos essescasos, o papel de obrigado ou devedor.

Nesse elenco, figuram exemplifica-tivamente, dentre outras, a operação deconta corrente credora, a de redescontode títulos, a de aplicação financeira oude fundos de investimento, a decaderneta de poupança, etc., como osprincipais negócios dessa espécie, todaselas formalizadas por instrumentos decontrato, nominados com a mesmadesignação própria de cada uma. Assim,o contrato de conta corrente credora, ocontrato de redesconto de títulos, ocontrato de aplicação financeira ou deinvestimento, o contrato de cadernetade poupança, etc.

DO CONTRATO DE CONTACORRENTE CREDORA

O contrato de conta corrente cre-dora apresenta-se na prática bancáriacomo o instrumento formalizador donegócio jurídico intitulado conta cor-rente credora, que se inclui entre asprincipais operações passivas dosBancos. Esta tem provocado as maisvariadas caracterizações pela doutrinae pela legislação, a começar com aintroduzida pelo Código italiano, em seuartigo 1.834, ao referir que “Nosdepósitos de uma soma de dinheiro emum Banco, este lhe adquire a pro-priedade e é obrigado a restituí-la namesma espécie monetária, no venci-mento do prazo convencionado, ou àsolicitação do depositante, com obser-vância do período de pré-aviso estabele-cido pelas partes ou pelo uso”.37 E,segundo a doutrina francesa, “Para osjuristas, o depósito de fundos em umbanco é o contrato pelo qual uma pessoaentrega certa soma de dinheiro a seubanqueiro, que se obriga a lhe restituir,a seu pedido, nas condições previstas”.38

Em palavras mais simples, definemautores nacionais, essa operação pas-siva dos Bancos, referindo que se pode“entender por depósito pecuniário, ousimplesmente depósito, a operaçãobancária segundo a qual uma pessoaentrega ao banco determinada impor-

37 É a disposição do Código Italiano revelada por Nelson Abrão, Direito Bancário, cit.,nº 39, p.108.

38 RODIÊRE, René e RIVES -LANGE, Jean-Louis. Droit Bancaire, cit., p.183, Paris, 1980.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 200752

tância em dinheiro, ficando o mesmocom a obrigação de devolvê-la no prazoe nas condições convencionadas”.39

Denomina-se depositante ou correntistaa pessoa interveniente no contrato queefetua o depósito em dinheiro edepositário o Banco que recebe odepósito e do primeiro torna-se devedor.

Sobre o saldo credor apresentadomensalmente pela conta corrente, nopassado conta gráfica escriturada emforma contábil, os Bancos abonavamjuros compensatórios aos depositantes,com taxas variáveis segundo as moda-lidades de depósito. No entanto, essebenefício foi abolido há mais de 30 anospelo Banco Central, com a Resoluçãonº 15, de 28.01.1966, de modo que naatualidade nenhum tipo de renda perce-be o correntista pelo saldo credor queapresentar sua conta. Ao contrário, pelamanutenção do depósito e a sua guarda,costumam os Bancos cobrar mensal-mente determinada taxa, cuja variabili-dade, ou até a sua isenção, resta na de-pendência do correntista manter outrasoperações com a instituição bancária.

Quanto à natureza dessa operaçãobancária, controvertem os autores sobrea análise de três teorias: a do depósitoirregular, a do mútuo e a do contratotípico ou sui generis. A primeira, dodepósito irregular, é inaceitável, porquea regularidade do contrato de contacorrente está patenteada pelas obriga-ções recíprocas que decorrem da pró-pria contratação. Quanto à teoria domútuo, também não merece melhor

sorte, já pelo simples fato de que estecaracteriza-se por ser uma operaçãoativa dos Bancos, enquanto a contacorrente é uma operação passiva.Destarte, afastadas a primeira e asegunda teorias propostas, convergemos autores no sentido de admitir a teoriado contrato típico ou “sui generis”, tendoem vista que nesta última a instituiçãobancária exerce as funções de capta-dora, guardiã e emprestadora a outrosclientes dos fundos depositados pelopoupador de capitais, beneficiando-seeste com a segurança que resulta daguarda de suas economias pelo Banco.É esta a idéia que pessoalmenteconcebemos sobre o tema, embora nãoexatamente coincidente com a expres-sada por certos autores especializados.40

As modalidades da operação deconta corrente classificavam-se, nopassado, quanto ao escopo econômicopretendido pelo depositante, quanto àforma e quanto à titularidade do deposi-tante. Na primeira, os depósitos podiamser classificados em à vista ou a prazo.O depósito à vista que é a modalidadepraticada na atualidade e que interessaao depositante, ou seja, é aquela, cujosaldo credor pode a qualquer momentoser sacado pelo correntista. Por outrolado, o depósito a prazo, cuja disponi-bilidade só ocorria após o decurso decerto tempo, não é mais, na atualidade,interessante ao correntista, devido aoperíodo inflacionário por que passa anossa economia, tendo em vista haversido absorvido ou substituído pelas

39 MARTINS, Fran. Contratos e Obrigações Comerciais, cit., nº 385, p.433-434.

40 Sobre esse tema, v. Nelson Abrão, Direito Bancário, cit., nº 40, p.110-112.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 53

atuais aplicações financeiras, que ense-jam maiores rendimentos.41

Quanto à forma, a operação deconta corrente podia ser classificada,também no passado, em simples ou demovimento. Simples, era aquela em queo ingresso do depósito e a sua retiradarealizou-se em uma só vez, encon-trando-se atualmente superada emrazão da realidade econômica vigente.A conta corrente de movimento é a quepermite fluxo contínuo de ingressos eretiradas, estas mediante a emissão decheques pelo correntista, a qual con-tinua a ser utilizada na atualidade.

Quanto a titularidade da pessoa oupessoas intervenientes na operação deconta corrente, o depósito pode serindividual ou em conjunto. Individual éaquele em que uma só pessoa intervémna operação, quer seja para depositarou retirar a quantia depositada.

Em conjunto é a operação de contacorrente que tem no pólo ativo váriosdepositantes, subdividindo-se esta emsimples e solidária. Configura-se comosimples a operação de conta correnteconjunta, quando a um dos depositantesé permitido retirar, individualmente, aquantia correspondente à sua quota,sendo que o total depositado só podeser retirado por todos em conjunto.Solidária é a operação de conta correntemais usual, na qual é permitido a cadadepositante retirar individualmente aintegralidade do depósito, situação que

libera o Banco depositário integralmenteda responsabilidade pelo depósitoperante todos os depositantes, comoproclama a doutrina italiana42 e igual-mente a nossa.43

Assim sendo, nesta última modalidadede contrato de conta corrente conjunta esolidária a morte, a incapacidade ou aausência superveniente de um ou maisdepositantes solidários não desfaz asolidariedade ativa e não impede que umou alguns exerçam o direito de todos.

O negócio jurídico referido exige,para sua realização válida, como regra,agente capaz. No entanto, desde aedição do Decreto nº 24.427, de 1934,estavam os menores relativamenteincapazes autorizados a abrir emovimentar contas de depósito emCaixas Econômicas, a partir dos 16anos. Essa situação foi modificada coma edição do Código Civil de 2002, quereduziu a maioridade plena para 18anos, mantendo a menoridade relativaentre 16 e 18 anos. Modernamente, essasituação de menoridade relativa vemcomportando maleabilidade, em face decircunstancialidades da vida moderna,de modo que vem se tornando habituala prática dos pais ou responsáveisprestarem assistência financeira a seusfilhos, autorizando-os a abrirem e movi-mentar contas correntes bancárias, sema presença e assistência paterna.

Quanto ao tempo de vigência daconta corrente bancária, é preciso notar

41 Sobre o assunto, v. Nelson Abrão, Direito Bancário, cit., nº 43, p.117-119.

42 MOLLE, Giacomo. I Contratti Bancari, p.129-130, Milão, 1973.

43 ABRÃO, Nelson. Direito Bancário, cit., nº 43, p.117-119.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 200754

que a nova lei civil estipula no artigo205 da codificação, que a prescriçãogeral é de 10 anos, em relação a todosos direitos que não disponham de regraespecial para esse fato prescritivo. Noentanto, existe a regra especial da Lei370, de 04.03.1937 e seu Regulamentopelo Decreto nº 1.508, de 17.03.1937,que consideram abandonados os valoresem depósito, quando restarem inativosdurante 30 anos, caso em que devemser recolhidos ao Tesouro Nacional. Éque a guarda dos depósitos por largotempo gera despesas acumuladas aosBancos, não se podendo conceber queessa situação venha a acontecer peloabandono ou descaso do depositante,em dinamizar sua conta corrente ban-cária, reduzindo-a à inatividade.

Por fim, há que se aduzir que aodepositante em desacerto com o Bancodepositário a respeito do saldo credorde sua conta corrente, confere a lei aprovidência da prestação de contas ebem assim a jurisprudência atualmenteconsolidada na Súmula 259, do S.T.J.

DO CONTRATO DEREDESCONTO DE TÍTULOS

É outra operação passiva, dentre asdemais operações principais, essenciaisou fundamentais da atividade bancária.O redesconto de títulos de crédito con-figura, em realidade, uma segundaoperação de desconto que um Bancodescontário realiza perante outra insti-tuição bancária, tendo por objeto títulos

de crédito emitidos por seus clientes, jáanteriormente descontados pelo primei-ro. A instituição bancária que realiza aoperação de redesconto denomina-seredescontante e redescontário o Bancoque acolhe esse negócio jurídico.

Anteriormente realizada pela Car-teira de Redescontos do Banco doBrasil, autorizada pelo Decreto-lei nº6.634, de 27.06.1944, a operação deredesconto é atualmente da competên-cia exclusiva do Banco Central doBrasil, segundo disposição expressa noartigo 10, inciso IV, da Lei nº 4.595/64,estando dita operação interbancáriaregulamentada pelas Resoluções nº2.308/96, 2.727/96 e 2.869/99, expedidaspela mencionada autarquia federal.

O redesconto caracteriza-se, des-tarte, como típico negócio jurídico reali-zado entre Bancos, no qual a instituiçãoredescontante objetiva geralmenteobter maior liquidez financeira paraimplementar o cumprimento de suasobrigações passivas. Assim sendo, emface dos objetivos que o determinam, oredesconto pode receber a classifica-ção de redesconto de liquidez ou deassistência financeira à instituiçãobancária redescontante.

As taxas de juros remuneratórios doBanco redescontário a que está sujeitaa operação de redesconto obedecem osparâmetros estabelecidos pelo sistemaSELIC (Sistema Especial de Liquidaçãoe de Custódia), em reuniões periódicasdo COPOM - Comitê de Política Econô-mica, vinculado ao Ministério da Fazenda.44

44 A respeito dessa operação interbancária, consultem-se Nelson Abrão, Direito Bancário,cit., nº 60, p.148-150; Fran Martins, Contratos e Obrigações Comerciais, cit., nº 387, p.435.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 55

DO CONTRATO DEAPLICAÇÃO FINANCEIRA

A operação de aplicação financeiraé outra espécie de negócio jurídico quese inclui no elenco das operaçõesprincipais, essenciais ou fundamentaisrealizadas pelo Banco, no exercício dopapel que lhe é próprio, classificadacomo operação tipicamente passiva, naqual a instituição bancária receptora dosrecursos financeiros do aplicadorassume perante o mesmo a posição deobrigada ou devedora, devendo restituirao cliente, em certo prazo, o capitalrecebido, acrescido da renda produzidano período convencionado.

Assim sendo, é a dita operaçãoformalizada por um instrumentocontratual, mediante o qual o aplicadorautoriza o Banco a aplicar no mercadode capitais, em ações, títulos da dívidapública e outros, o dinheiro recebido docliente, com a obrigação de restituí-lo,na forma acima referida, como registraa doutrina comercialista.45

DO CONTRATO DECADERNETA DE POUPANÇA

A operação de aplicação financeira éoutra espécie de negócio financeirobancário que se formaliza por instrumentocontratual com a mesma denominação eque tem por objeto o depósito em dinheiroque o poupador entrega ao Banco,assemelhando-se à conta corrente cre-

dora. Constitui, de igual modo, uma ope-ração passiva, na qual a instituiçãofinanceira depositária assume a posiçãode devedora, com a obrigação de restituirao aplicador, quando este solicitar, o capitalaplicado, acrescido dos rendimentosproduzidos no período.

Essa operação bancária é definidapela doutrina como “um sistema decaptação de recursos populares, incenti-vado pelo governo, com a finalidade depossibilitar o financiamento de bensmóveis de uso durável ou de imóveis”.46

A conta poupança, embora apre-sente similitude com a conta correntecredora, dela se distingue, porque en-quanto esta não gera nenhum rendi-mento ao depositante, aquela é remune-rada com um percentual de juros de0,5% ao mês, acrescida de correçãomonetária, ocorrida em sua data base,chamada popularmente data deaniversário, que se verifica no mesmodia do mês subseqüente ao do depósito.

A operação de caderneta depoupança apresenta certas vantagensao poupador, pois, além de preservar ocapital aplicado contra a desvalorizaçãodo padrão monetário e de beneficiar-seda renda por ela produzida no períodoconvencionado, ainda atende a umarelevante função social, qual a depossibilitar o financiamento de imóveisdestinados à aquisição da casa própriapelos que dela carecem, inicialmenterealizada pelo Banco Nacional da

45 COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de Direito Comercial, p.448-451, 16.ed., Saraiva, SãoPaulo, 2005.

46 ABRÃO, Nelson. Direito Bancário, cit., nº 43, p.117-119.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 200756

Habitação (BNH) e, a partir doDecreto-Lei nº 2.291/86, pela CaixaEconômica Federal, em sua maioria.

A operação bancária desta espécie,que tem a função de receber eadministrar os recursos financeirosamealhados pelo público em geral, figuraentre os investimentos mais utilizadosem nosso País, especialmente pelasegurança que proporciona aosaplicadores, pois além de garantirrendimento fixo, não verificado emoutros investimentos, ainda preserva ocapital aplicado das oscilaçõesocorrentes no mercado de capitais.47

DAS OPERAÇÕES ACESSÓRIASOU COMPLEMENTARES DOSBANCOS

Por fim, considerada a classificaçãodas operações bancárias, segundo a suanatureza, em operações principais,essenciais ou fundamentais do comérciobancário, subdivididas estas em opera-ções ativas e passivas, acima examina-das, resta examinar-se as que o Bancorealiza, como atividade acessória ou com-plementar, nas quais a instituição ban-cária não concede empréstimos, nemrecebe capitais do público em geral, mastão somente assume o encargo de presta-ção de serviços aos seus clientes. Tais opera-ções são, dentre outras, as que dizemrespeito à ordem de pagamento, à co-

brança de títulos, à locação de cofres desegurança, à custódia de valores e títulos.

DO CONTRATO DE ORDEMDE PAGAMENTOS

Mediante este contrato de prestaçãode serviço, o Banco realiza, a pedidode seu cliente, a transferência de umaquantia em dinheiro para outra institui-ção bancária sediada em localidadediversa, para que esta a entregue àpessoa designada como favorecida daquantia transferida. O cliente que seutiliza desse modo de transferência denumerário é chamado tomador, enquantoo que a recebe é denominado beneficiado.

A transferência do numerário objetoda ordem de pagamento bancáriopoderá ser realizada pelos meios decomunicação escolhidos pelo tomador,ou seja, por carta, telegrama ou tele-fone, segundo o desejo de urgência ounão manifestada pelo tomador. A ordemde pagamento também poderá serrealizada mediante a emissão de chequesacado contra a instituição bancária,destinatária da transferência, no qualfigura como beneficiária a pessoa quedeve receber a quantia transferida.

Pela prestação dessa espécie deserviço, o Banco autor da transferênciageralmente cobra do tomador da ordemde pagamento determinada taxa peloserviço prestado.48

47 Acerca dessa aplicação financeira, consulte-se também Paulo Maximiliam WilhelmSchonblum, Contratos Bancários, nº 5.2.2, p.82-84, Freitas Bastos, Rio, 2005;Celso Marcelo de Oliveira, Manual de Direito Bancário, nº 60, p.405-406, Thomson-IOB,S. Paulo, 2006.

48 MARTINS, Fran.Contratos e Obrigações comerciais, cit., nº 398, p.442.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 57

Por fim, é de se salientar que essetipo de serviço bancário vem setornando mais raro, na atualidade,devido ao dinamismo e operosidadepraticamente instantânea que éoferecida pelo sistema de computação.

DO CONTRATO DECOBRANÇA DE TÍTULOS

Também classificada comoprestação de serviço, o Banco realiza acobrança e, em certos casos, o aceitedo devedor, de títulos sacados por seusclientes contra terceiros, sejam repre-sentados por títulos não causais, (comoas letras de câmbio) ou por títuloscambiariformes, (como as duplicatas defatura). Em tais casos, o Banco executadito serviço na qualidade de meromandatário do sacador dos títulos, quelhe são entregues para esses fins,mediante endosso para cobrança.

Na execução desse encargorecebido do seu cliente, o Banco agecomo simples intermediário entre osacador (credor do título) e o sacado,(devedor) e obrigado ao pagamento domesmo, no vencimento.

Para o exercício desse mister,geralmente o Banco fá-lo gratuitamenteou cobra determinada taxa proporcio-nalmente ao seu valor.49

DO CONTRATO DE LOCAÇÃODE COFRES DE SEGURANÇA

A locação de cofres de segurançaconfigura uma locação de coisa que oBanco realiza com seus clientes,mediante a qual o locador assegura aolocatário a invulnerabilidade do cofreposto à disposição deste, para a guardade valores, objetos de estimação ou degrande valia. Trata-se de contratobilateral, por implicar obrigações deambos os contratantes, oneroso, porenvolver prestações recíprocas e deexecução continuada, devido ao seu usoe utilidade prolongada no tempo.

A par dessas características, essecontrato é também chamado locação decofre-forte, sendo definido pela doutrinacomo “aquele pelo qual o Banco colocaà disposição do utente um comparti-mento ou cavidade para a guarda dedinheiro, objetos preciosos ou documen-tos, mediante remuneração”, cuja segu-rança resulta dos fatores da vigilânciae do segredo.50

O referido compartimento, no inte-rior do qual são depositados os bensmencionados, o qual constitui o objetomediato do contrato, é munido de umafechadura que não pode ser aberta senãocom o concurso de duas chaves

49 RODIÊRE, René e RIVES-LANGE, Jean-Louis. Droit Bancaire, cit., p. 188; MARTINS,Fran. Contratos e Obrigações Comerciais, cit., nº 309, p.442; ABRÃO, Nelson. DireitoBancário, cit., nº 114, p.257-258.

50 ABRÃO, Nelson. Direito Bancário, cit., nº 108, p. 247; DE OLIVEIRA, Celso Marcelo.Manual de Direito Bancário, nº 73, p.426, Thomson-IOB, São Paulo, 2006.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 200758

diferentes, uma mantida em poder doBanco e a outra sob a guarda do usuário.

Devido ao dever de vigilância e sigiloque o incumbe com vistas à segurançadesse serviço, desconhece o Banco oconteúdo do depósito feito unilateral-mente pelo cliente, de modo que torna-se realmente difícil estimar ou quanti-ficar o valor dos bens, no caso de des-truição ou qualquer outro ato de violên-cia que ofereça ou faça desapareceras coisas que nele se encontram deposi-tadas. Diante dessas eventualidades, osBancos costumam fixar valoreslimítrofes de sua responsabilidade.51

CONTRATO DE CUSTÓDIA DEVALORES E TÍTULOS

Esse tipo de operação acessória oucomplementar do Banco, também sim-plesmente chamada guarda, abrange acustódia de valores e títulos entreguesà instituição bancária pelo seu cliente,para serem por aquela guardados, con-servados e administrados, com a segu-rança que é a pedra de toque dessaentidade empresária. Nessa operaçãorevelam-se interesses, recíprocos daspartes, pois se de um lado reside ointeresse do Banco de prestar o serviçoao cliente para mantê-lo no âmbito desua atividade empresarial, potencial-mente interessado nas operações

financeiras que realiza; de outro ladoconfigura-se o interesse do cliente deguardar e manter os bens custodiadossob a administração segura da ins-tituição bancária que dispõe de insta-lações adequadas, as quais infundem acredibilidade e a segurança pretendidapelo custodiante.52

A custódia figura entre as mais antigasoperações acessórias dos Bancos,consistente, segundo a doutrina, no fatode alguém confiar à instituição bancária,em depósito, títulos e outros valoresmóveis, ficando responsável pela boaguarda desses valores depositados. Porvezes, podem as partes convencionar aadministração dos bens custodiados peloBanco e, neste caso, essa instituiçãocustodiante se encarregará de praticar acobrança de dividendos das ações e orecebimento de juros dos títulos,produzidos por esses bens custodiados.53

Dessa operação acessória dos Bancosdecorre uma duplicidade de obrigaçõespara as partes. O Banco está vinculado aobrigações de fazer e não fazer, quaissejam, a de custodiar e preservar a coisa,devolvê-la ao custodiante no prazoconvencionado ou por este reclamado ebem assim a obrigação negativa de nãousar a coisa. O cliente, por outro lado, restaobrigado a ressarcir o Banco das despesasrealizadas com a guarda dos valores etítulos custodiados.54

51 MAXIMILIAN, Paulo e SEHONBLUM, Welhelm. Contratos Bancários, nº 5.11.4.2,p.260-261, Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 2005.

52 ABRÃO, Nelson. Direito Bancário, cit., nºs 102 a 105, p.236-243; DE OLIVEIRA, CelsoMarcelo. Manual de Direito Bancário, cit., nº 72, p.425-426.

53 Sobre o assunto, v. Fran Martins, Contratos e Obrigações Comerciais, cit., nº 400, p.442.

54 ABRÃO, Nelson. Direito Bancário, cit., nº 104, p.237-241.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 59

1. INTRODUÇÃO

A popularidade de Robert Alexy,nos últimos tempos, deveu-se, em gran-de parte, à sua conhecida teoria dos prin-cípios, na qual o jusfilósofo alemão fazuma análise detalhada da distinção entreregras e princípios e elabora regras ecritérios para lidar com esses. Sem negara importância e relevância atual destetema, este artigo, contudo, procura tra-tar de outra importante teoria de Alexy,mais especificamente, a chamada tesedo caso especial, que se situa no centrode sua teoria discursiva do Direito.

Tal teoria encontra seu fundamentoprincipalmente na ética do discursodesenvolvida por Jürgen Habermas,

O discurso jurídico como um caso especial do

discurso prático geral: uma análise da teoria

discursiva do Direito de Robert Alexy1

Eduardo Augusto Pohlmann*

cujas premissas servem de suporte paraAlexy desenvolver uma teoria do Direitocentrada na argumentação. Mais do queo alicerce de uma teoria da argumen-tação erigida sob a idéia de discurso, atese do caso especial possui importantesimplicações para temas centrais da filo-sofia do Direito, nomeadamente: a rela-ção entre Direito e moral; a relação en-tre Direito e razão prática; e a relaçãoentre argumentação jurídica e argumen-tação prática.

O fio condutor da análise, portanto,será a tese do caso especial, segundo aqual o discurso jurídico é um caso es-pecial do discurso prático geral. Segundoela, o discurso jurídico é um caso es-pecial do discurso prático geral porque

* Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

1 Artigo elaborado sob orientação do prof. dr. Cláudio Fortunato Michelon Júnior duranteos anos de 2004 e 2005. Sou grato ao professor pelo constante apoio e disponibilidadepara esclarecer aspectos fundamentais da pesquisa. Também agradeço aos vários amigosque me ajudaram na correção e revisão do original.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 200760

compartilha com ele de certas seme-lhanças (ambos lidam com questõespráticas e erigem uma pretensão decorreção), ao mesmo tempo em que sediferencia do mesmo em um aspectocrucial: a pretensão de correção levan-tada no Direito é restringida por umasérie de condições limitadoras, comoleis, precedentes e dogmática.

Primeiramente, será feita uma ex-posição daqueles que são os funda-mentos da tese do caso especial: a teo-ria do discurso, o conceito de Alexy dediscurso prático geral e a pretensão decorreção como um elemento necessáriodo Direito. Aqui a preocupação seráfixar o paradigma dentro do qual se pro-curará refletir sobre as questões acimaassinaladas. Obviamente, essas mes-mas questões podem ser respondidasde formas extremamente díspares emoutras tradições filosóficas. No entanto,a fim de poder abordá-las de maneiramais profunda, a análise será restrita àvisão de Alexy da teoria do discurso.

Posteriormente, será analisada atese do caso especial em si, e o que elatraz de inovador com relação à teoriado Direito. Nesta parte será demons-trado que ela está substancialmentecorreta, e que as críticas a ela dirigidas

não se sustentam. Por fim, serãoabordadas as conseqüências, tanto datese do caso especial como de seuprincipal elemento, a pretensão de cor-reção. Dentre as principais conseqüên-cias, está não só um ataque à principaltese positivista (separação conceitualentre Direito e moral) como também odesenvolvimento de uma nova teoria doDireito fundada sobre a idéia de que esteé a institucionalização da razão prática eque, por isso, não só ele deve ser con-cebido como um sistema de regras, prin-cípios e procedimentos, como também aargumentação prática geral deve serintegrada na argumentação jurídica e serutilizada a todo o momento.

2. FUNDAMENTOS DA TESEDO CASO ESPECIAL

Alexy recolheu influências de diver-sas origens a fim de sustentar seu pro-jeto discursivo do Direito. No entanto,embora Hare, Baier, a Escola de Er-langen, Perelman, entre outros, tenhamimportância nesse projeto, é inegávelque a maior contribuição surgiu da teoriado discurso.2 Na primeira parte docapítulo serão expostos, em linhasgerais, os seus principais conceitos, a

2 A referência à teoria do discurso será sempre à teoria desenvolvida principalmente porHabermas e Apel, embora somente a do primeiro será analisada aqui. Para uma visãodistinta do discurso, de tradição clássica, e uma crítica à ética discursiva moderna, veja-se, principalmente, FINNIS, John. Natural law and the ethics of discourse. Ratio Juris, v.12, n. 4, p. 354-373, 1999. Para uma crítica (embora parcial) no mesmo sentido à Alexy, verRENTTO, J.-P. Aquinas and Alexy: a perennial view to discursive ethics. The AmericanJournal of Jurisprudence, p. 157-175, 1991.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 61

fim de tornar mais compreensível aprópria teoria de Alexy, que faz usodesses termos constantemente. A abor-dagem dos princípios e regras do dis-curso prático geral é imprescindível parase entender satisfatoriamente o discursojurídico e verificar se a tese do casoespecial está correta e se este é um casoespecial daquele.

Na segunda parte serão abordadosalguns aspectos distintivos da teoria deAlexy com relação à teoria do discurso,como os conceitos de “discurso práticogeral” e “unidade da razão prática,” queservem para fundamentar a tese do casoespecial, que será o principal objeto deanálise deste artigo.

Já na terceira parte o foco será na-quele que é o cerne da tese do casoespecial, e o principal elemento que liga

o discurso jurídico ao discurso práticogeral, qual seja, a pretensão de cor-reção. Com estes três alicerces, a tesedo caso especial se estrutura não sócomo uma sistematização e reinterpre-tação da teoria do discurso práticohabermasiana, mas também como umaextensão dessa tese para o campoespecífico do Direito.3

2.1 Teoria do discurso

A teoria do discurso é uma teoriakantiana da racionalidade prática. Aética kantiana possui um caráterdeontológico, cognitivista, formalista euniversalista.4 A teoria do discurso com-partilha da maior parte dessas caracte-rísticas, embora entre ambas haja algu-mas diferenças.5 Uma das principais é

3 Cf. ATIENZA, Manuel. As razões do Direito: teorias da argumentação jurídica. Traduçãode Maria Cristina Guimarães Cupertino. 3.ed. São Paulo: Landy, 2003, p. 160.

4 Veja-se HABERMAS, Jürgen. As objecções de Hegel a Kant também se aplicam à éticado discurso? In: HABERMAS, Jürgen. Comentários à ética do discurso. Tradução GildaLopes Encarnação. Lisboa: Instituto Piaget, 1991, p. 15.

5 Veja-se HABERMAS, As objecções de Hegel a Kant também se aplicam à ética dodiscurso? In: HABERMAS, Jürgen. Comentários à ética do discurso. Tradução GildaLopes Encarnação. Lisboa: Instituto Piaget, 1991, p. 23. Além de negar a teoria dos doismundos de Kant, a ética do discurso abandona também a concepção atomista de pessoa.Isso faz com que seja possível para Habermas afirmar que “a ética do discurso assumeuma posição intermédia, na medida em que partilha com os ‘liberais’ da compreensãodeontológica de liberdade, moralidade e direito decorrente da tradição kantiana, e com os‘comunitaristas’ da compreensão intersubjectivista da individualização enquanto produtoda socialização decorrente da tradição hegeliana.” (HABERMAS, Jürgen. Comentários àética do discurso. Tradução Gilda Lopes Encarnação. Lisboa: Instituto Piaget, 1991, p.196). Muito embora esteja em um meio-termo entre liberalismo e comunitarismo, a ética dodiscurso não reconcilia Kant com Aristóteles (HABERMAS, Jürgen. Justiça esolidariedade: para uma discussão acerca do “estádio 6”. In: HABERMAS, Jürgen.Comentários à ética do discurso. Tradução Gilda Lopes Encarnação. Lisboa: InstitutoPiaget, 1991. p. 73). Sua estrutura é eminentemente kantiana.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 200762

que a ética do discurso faz derivar osconteúdos de uma moral universalistaa partir dos pressupostos gerais da ar-gumentação, pois quem empreende atentativa de participar numa argumen-tação, “admite implicitamente pressu-postos pragmáticos gerais de teor nor-mativo; é, então, possível abstrair oprincípio moral a partir do teor destespressupostos argumentativos”.6 Assim,segundo Habermas:

Na ética do discurso, o método daargumentação moral substitui o impe-rativo categórico. É ela que formula oprincípio ‘D’:- as únicas normas que têm o direitoa reclamar validade são aquelasque podem obter a anuência de todosos participantes envolvidos num dis-curso prático.O imperativo categórico desce aomesmo tempo na escala, transfor-mando-se num princípio de univer-salização ‘U’, que nos discursos prá-ticos assume o papel de uma regrade argumentação:

- no caso das normas em vigor, os re-sultados e as conseqüências secun-dárias, provavelmente decorrentesde um cumprimento geral dessas mes-mas normas e a favor da satisfaçãodos interesses de cada um, terão depoder ser aceites voluntariamentepor todos.7

O princípio da ética do discurso,portanto, assenta neste fato pragmático-universal: apenas as regras morais quepodem obter a anuência de todos osindivíduos em causa, na qualidade departicipantes num discurso prático,podem reclamar validade.8

E muito embora, no dia-a-dia, aspretensões de validade que se ligam acada ato de fala são aceitas de modomais ou menos ingênuo, essas preten-sões podem ser problematizadas. Quan-do o que se problematiza são as preten-sões de verdade ou de correção, ocorrea passagem da ação comunicativa9 parao discurso. Um discurso é uma série deações interligadas devotadas a testar a

6 HABERMAS, As objecções..., p. 16.

7 Ibidem, p. 16.

8 Nesse sentido, HABERMAS, Comentários..., p. 151-152.

9 A ação comunicativa é uma ação social orientada ao entendimento, por oposição à açãoestratégica, que é uma ação social orientada ao êxito. Enquanto na ação estratégica ossujeitos “persiguen sus fines por via de influjo sobre las decisiones de otros actores.”(HABERMAS, Jürgen. Observaciones sobre el concepto de acción comunicativa. In:HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa: complementos y estudiosprevios. Tradução de Manuel Jimenéz Redondo. Madrid: Cátedra, 1989, p. 490, na açãocomunicativa “los participantes en la interacción ejecutan sus planes de acción teniendoa la vista un acuerdo comunicativamente alcanzado.” (Ibidem, p. 504.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 63

verdade de asserções (caso se trate deum discurso teórico) ou a correção deafirmações normativas (caso se tratede um discurso prático).10

Feita essa distinção, deve-se anali-sar agora de que forma Alexy procurafundamentar racionalmente os juízospráticos ou morais em geral com a teoriado discurso. Para isso, ele procura fugirde dois extremos: de um lado, as posi-ções subjetivistas, relativistas, decisio-nistas ou irracionalistas; de outro, asobjetivistas, absolutistas ou racionalistas.Assim, acaba aderindo a uma teoriamoral procedimental,11 como o é a teo-ria do discurso, que formula regras oucondições da argumentação ou decisãoprática racional: “la pieza nuclear de lateoría del discurso está formada por unsistema de reglas del discurso y de

principios del discurso, cuya obser-vancia asegura la racionalidad de laargumentación y de sus resultados”.12

Segundo todas as teorias procedi-mentais, a adequação de uma norma oua verdade de uma proposição dependede se a norma ou a proposição é ou podeser o resultado de um procedimento de-terminado.13 Dito de outra forma, umanorma ou diretriz isolada que satisfaçaos critérios determinados pelas regrasdo discurso pode ser considerada justaou correta.

Obviamente, o fato de uma normater passado por um teste discursivo nãolhe garante algo como um selo deracionalidade absoluta. No entanto, ainvestigação discursiva, ainda que nãoleve à certeza, leva pelo menos a sairdo campo da mera opinião e da crença

10 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional comoteoria da justificação jurídica. Tradução Zilda Hutchinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo:Landy, 2001, p. 181. Deixando mais claro: no discurso teórico a pretensão de validadeproblematizada é a verdade, e sua justificação se realiza aduzindo fatos como razões; nodiscurso prático a pretensão de validade problematizada é a correção normativa, e suadefesa é feita mediante a invocação de normas socialmente compartilhadas. “Un ‘discursopráctico’ surge, pues, cuando se pone en cuestión la pretensión de rectitud normativa delos actos de habla regulativos o prescriptivos.” (ARROYO, Juan Carlos Velasco. El lugarde la razón práctica en los discursos de aplicación de normas jurídicas. Isegoría, n. 21,1999, p. 58). Segundo Alexy, “un discurso racional práctico es un procedimiento paraprobar y fundamentar enunciados normativos y valorativos por medio de argumentos.”(ALEXY, Robert. Derechos, razonamiento jurídico y discurso racional. Isonomía, n. 1, p.37-49, 1994, p. 48. Veja-se também ALEXY, Teoria da argumentação..., p. 94).

11 Para uma discussão sobre a noção de procedimento na argumentação jurídica, verGIANFORMAGGIO, Letizia. La noción de procedimiento en la teoría de la argumentaciónjurídica. Doxa, n. 14, p. 159-167, 1993.

12 ALEXY, Robert. Sistema jurídico, principios jurídicos y razón práctica. Doxa, n. 5, p.139-151, 1988, p. 150.

13 ALEXY, Robert. Problemas da teoria do discurso. Revista Notícia do Direito Brasileiro,p. 244-259, 1996.p. 244-245.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 200764

subjetiva,14 já que “mais do que isso nãoé possível em questões práticas.”15 Umadas tarefas da teoria do discurso é pre-cisamente a de criar normas que, porum lado, sejam suficientemente fracas,portanto, de pouco conteúdo normativo,o que permite que indivíduos comopiniões normativas muito diferentespossam concordar com elas – e, poroutro lado, sejam tão fortes, que qual-quer discussão feita com base nelas sejadesignada como ‘racional’.16 Emboraas regras de racionalidade deixem umamplo espaço para diversas normascontraditórias serem consideradas ra-cionais (discursivamente possíveis),igualmente elas definem algumas comodiscursivamente necessárias e outrascomo discursivamente impossíveis. “Asregras de racionalidade já excluem cer-tos resultados. Com elas, não é compa-tível que um indivíduo, mesmo um queconsinta, aceite um estado duradourosem direitos, ou seja, o estado de es-cravo.”17 Apesar do espaço do discursi-

vamente possível ser muito grande e odo discursivamente impossível muitopequeno, essas regras não são inúteisnem triviais. Sua principal função seriaa de formular o que Alexy chama deum código de razão prática, que “no sólocomplementa las reglas específicas deldiscurso jurídico, sino que constituyetambién la base para su justificacióny crítica, en el marco de una justifica-ción y crítica del sistema jurídico ensu conjunto”.18

Agora, se uma norma, segundo umateoria procedimental como o é a teoriado discurso, pode ser considerada cor-reta ao passar por um determinado pro-cedimento, ou seja, obedecer a certasregras, como, por sua vez, fundamentaressas regras? Pois uma coisa é funda-mentar uma norma aludindo a sua capa-cidade de passar por um teste discur-sivo, outra é fundamentar as regras quedevem formar esse teste. A fim de fazerisso, deve-se entrar num outro nível: odo discurso sobre as regras do discurso.19

14 Aqui concordando com Alexy, Rentto: “practical reason is not a mere fluctuation ofemotions or the like but a rational activity as any other exercise of the mind.” (RENTTO,Aquinas and..., p.160).

15 ALEXY, Problemas...., p.259.

16 Nesse sentido ALEXY, Teoria da argumentação..., p.28.

17 ALEXY, op. cit., p. 113. Em sentido semelhante: “La teoría del discurso sostiene que unaargumentación que excluye o suprime personas o argumentos – excepto por razonespragmáticas que tienen que ser justificadas – no es una argumentación racional, y que lasjustificaciones que se obtienen de la misma son defectuosas.” (ALEXY, Derechos..., p. 48).

18 ALEXY, Sistema..., p.168.

19 Ou “discourse-theoretical discourse”, na expressão de Alexy. Veja-se ALEXY, Robert.A theory of legal argumentation: the theory of rational discourse as theory of legaljustification. Tradução Ruth Adler; Neil MacCormick. Oxford: Clarendon, 1989, p.187.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 65

Segundo a ética do discurso, asregras do discurso não podem ser ques-tionadas porque subjazem à estruturada linguagem e expressam a existênciade uma moral correta enraizada nela.Quem negar validez a essas regrasincorrerá necessariamente em umacontradição performativa,20 pois essasregras estão implícitas em todo processode argumentação, já que todo falanteune a suas manifestações pretensõesde inteligibilidade, veracidade, correçãoe verdade. E quem emite um juízo devalor ou de dever necessariamente erigeuma pretensão de correção. Essas con-dições são constitutivas de toda práticaargumentativa. Essa maneira de fun-damentar as regras do discurso é deno-minada fundamentação pragmática uni-versal (ou pragmática transcendental,para Alexy). A pragmática universal tempor objeto a reconstrução da base universalde validez da fala,21 e como tarefaidentificar e reconstruir as condiçõesuniversais do entendimento possível.22

Alexy não aceita totalmente tal mé-todo, e procura fundamentar a validez

universal das regras do discurso comum argumento constituído de três par-tes. A primeira consiste em uma versãomuito fraca de um argumento prag-mático-transcendental. O segundo ele-mento parcial aponta para a maximi-zação individual de utilidades. E estavinculação pressupõe, como terceiroelemento, uma premissa empírica. Ditomais detalhadamente:

Las reglas del discurso expresan, pri-mero, una competencia que pertenece ala forma más universal de vida de lapersona. Todo el que participa en ellaexpresa alguna vez frente a alguien unaaseveración, plantea a alguien lapregunta ‘por qué?’ y aduce alguna vezfrente a alguien una razón. Al hacerlo,ejerce aquella competencia, aunque másno sea rudimentariamente. Segundo, to-do aquel que tenga un interés en la cor-rección tiene que hacer uso de aquellacompetencia. Tercero, para quien notiene ningún interés en la corrección, laobservancia objetiva de las reglas deldiscurso es, desde el punto de vista de lamaximización individual de utilidades,ventajosa al menos a largo plazo.23

20 Veja-se HABERMAS, Comentários..., p. 134.

21 HABERMAS, Jürgen. Qué significa pragmática universal? 1976. In: HABERMAS,Jürgen. Teoría de la acción comunicativa: complementos y estudios previos. TraduçãoManuel Jimenéz Redondo. Madrid: Cátedra, 1989, p. 302. Segundo La Torre, “the point is,then [...], to make explicit what is implicit, and universalize it. Universalization is in turn atranscendental (implicit) requirement of discourse on norms, values and principles.” (LATORRE, Massimo. Theories of legal argumentation and concepts of law. An approximation.

Ratio Juris, v. 15, n. 4, p. 377-402, 2002, p. 396).

22 HABERMAS, op. cit., p. 299.

23 ALEXY, Robert. Una concepción teórico-discursiva de la razón práctica. In: ALEXY, Robert.El concepto y la validez del derecho y otros ensayos. Tradução Jorge M. Seña. 2. ed. Barcelona:Gedisa, 1997, p. 149-150. Para uma crítica dessa fundamentação, BETEGÓN, Jerónimo. Sobrela pretendida corrección de la pretensión de corrección. Doxa, n. 21-I, p. 171-192, 1998.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 200766

Esses fundamentos, no entanto, nãosão suficientes para sustentar a tese docaso especial. A fim de fazer isso, Alexyprecisa diferenciar-se da visão de Ha-bermas em alguns pontos, principalmen-te no conceito de discurso prático geral.

2.2 Discurso prático geral eunidade da razão prática

Embora Alexy nunca tenha sidosuficientemente claro na explicitação doconceito de discurso prático geral,24 éesse conceito uma das principais linhas

diferenciadoras entre ele e Habermas,se constituindo num dos principais fun-damentos da tese do caso especial.

A idéia de discurso prático geral ga-nhou importância na tese de Alexy aosurgir como resposta à crítica de Haber-mas, que afirmava não ser possível odiscurso jurídico ser um caso especialdo discurso prático moral,25 já que o dis-curso moral, no sentido de Habermas,26

se refere à universalização e somenteà universalização de normas, enquantoo discurso jurídico “precisa manter-seaberto a argumentos de outras proce-

24 Mesmo para Habermas tal conceito permanece obscuro: “I am still not quite clear aboutthe role of what Alexy calls ‘general practical discourse.’ Here, different types of argument– prudential, ethical, moral, legal arguments – are supposed to come in one package.”HABERMAS, Jürgen. A short reply. Ratio Juris, v. 12, n.4, p.445-453, 1999, p.447.

25 Veja-se HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade.Tradução Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, v.1, p.287-288.

26 É importante que o discurso prático geral não seja confundido com o discurso moral,mas no sentido que Habermas dá a este termo, ou seja, como uma esfera que transcendeo contexto local e onde “são decisivos os argumentos que conseguem mostrar que osinteresses incorporados em normas contestadas são pura e simplesmente generalizáveis.”HABERMAS, op. cit., p. 203. Discurso prático geral talvez possa ser consideradosemelhante a discurso moral (veja-se MICHELON JÚNIOR, Cláudio Fortunato. Beingapart from reasons: a study on the role of reasons in public and private moral decision-making. Doctoral Thesis. University of Edinburgh, 2000, p.158) no sentido de moral crítica,ou correta (sobre a distinção entre moral social, crítica e crítica social, veja-se GARCÍAFIGUEROA, Alfonso. La tesis del caso especial y el positivismo jurídico. Doxa, n.22,p.195-220, 1999, p. 200). É esse uso da palavra que faz com que Alexy afirme que tambémMacCormick (“there is an analogy between legal reasoning and moral reasoning.”(MACCORMICK, Neil. Legal reasoning and legal theory. Oxford: Clarendon, 1978, p.272)e Habermas (“argumentações morais são institucionalizadas através de meios jurídicos”HABERMAS, Jürgen. Como é possível legitimidade através da legalidade? In:HABERMAS, Jürgen. Direito e moral. Tradução Sandra Lippert. Lisboa: Instituto Piaget,1992, p.15) são defensores da tese do caso especial. Sobre isso, veja-se mais adiante.A confusão em torno desse conceito de discurso não deve nos ofuscar para o fato maisessencial que Alexy, acima de tudo, procura desenvolver a idéia de que a argumentaçãojurídica depende da argumentação prática geral. Por ser mais utilizado por Alexy, noentanto, continuarei a usar o termo “discurso”.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 67

dências, especialmente a argumentospragmáticos, éticos e morais”.27

No entanto, como esclarece Alexy,o genus proximum do discurso jurídiconão é o discurso moral, mas o discursoprático geral. Por discurso prático geralAlexy entende exatamente um discursoem que participam argumentos relativosa questões pragmáticas, éticas e morais.A distinção entre esses três tipos deargumentos ele extrai igualmente deHabermas. Segundo esse: “somos as-saltados por vários problemas práticosem diferentes situações. Estes ‘têm’ deser dominados, caso contrário podemsurgir conseqüências, no mínimo,importunas.”28 Dessa forma a questão“O que devo fazer?” ganha um signi-ficado pragmático, ético ou moral, con-

soante a forma como o problema éapresentado. Em todos os casos se estáperante a fundamentação de decisõestomadas entre possibilidades alterna-tivas de conduta, mas cada tarefa re-clama um tipo de conduta e cada ques-tão correspondente reclama um tipo deresposta.29 “O terminus ad quem do res-pectivo discurso pragmático é a reco-mendação de uma tecnologia adequadaou de um programa exeqüível.”30 Já oterminus ad quem do respectivo dis-curso ético-existencial “é um conselhosobre a correcta orientação na vida e so-bre a realização de uma forma de vidaindividual.”31 E o terminus ad quem dodiscurso prático-moral “é um acordoacerca da solução justa para um conflitono âmbito da acção regulada por normas.”32

27 HABERMAS, Direito..., p. 287.

28 HABERMAS, Jürgen. Acerca do uso pragmático, ético e moral da razão prática. In:HABERMAS, Jürgen. Comentários à ética do discurso. Tradução Gilda Lopes Encarnação.Lisboa: Instituto Piaget, 1991, p.102.

29 Ibidem, p.108.

30 HABERMAS, Acerca..., p. 109. No singular, essa decisão diz respeito, por exemplo, aoque fazer quando emergem problemas de saúde ou quando o dinheiro necessário àsatisfação de determinados desejos torna-se escasso. No plural, remetem para anecessidade de compromissos, logo que os interesses individuais têm de ser harmonizadoscom os interesses alheios.

31 Ibidem, p.109. Colocada no singular, essa decisão concerne, por exemplo, a escolha daprofissão ou do curso, que tem a ver com as “inclinações” ou com os interesses, com otipo de atividade que poderia contribuir para a auto-realização do indivíduo em causa. Jáno plural, trata-se da clarificação de uma identidade coletiva que tem de deixar espaçopara a multiplicidade de projetos de vida individuais.

32 Ibidem, p. 109. “Aproximamo-nos [...] da perspectiva moral logo que começamos a avaliaras nossas máximas quanto à sua compatibilidade com as máximas dos outros.” Por exemplo,a máxima que me permitiria cometer ocasionalmente um pequeno delito é injusta quando o seucumprimento geral não é igualmente bom para todos. No plural, o problema da razoabilidadedessas obrigações morais motiva, para Habermas, a transição da moral para o Direito.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 200768

Assim, o discurso prático geral émais complexo do que o discurso moral,e enfeixa argumentos de diversos tipos,os quais têm peso igualmente na ar-gumentação especificamente jurídica.Para Habermas, tal visão:

is not sufficiently sensitive for thedesired separation of powers. Once thejudge is allowed to move in theunrestrained space of reasons thatsuch a “general practical discourse”offers, a “red line” that marks thedivision of powers between courts andlegislation becomes blurred.33

Embora Alexy ofereça argumentospara defender princípios formais comoa separação de poderes,34 sua visão dediscurso prático geral como fundamentodo discurso jurídico não afeta tal sepa-ração substancialmente. A sua preocu-pação, diferentemente de Habermas, énão insular os argumentos morais dosargumentos jurídicos no raciocínio dosjuízes,35 já que um dos pontos de partida

mais importantes da argumentação ju-rídica são as leis que resultam do pro-cesso legislativo, e “si la argumentaciónjurídica debe someterse a lo que ha sidodecidido en el proceso democráticotiene que tomar en consideración lostres tipos de razones presupuestas por,o conectadas con, sus resultados.”36

Uma última questão deve ser vista.Foi abordado anteriormente que o dis-curso prático geral combina questõespragmáticas, éticas e morais num únicodiscurso, e que os argumentos práticosgerais, portanto, podem ser definidos nomesmo sentido. Porém, de que formatais elementos se harmonizam? Segun-do Alexy há uma relação de prioridadee permeabilidade entre o adequado(discurso pragmático), o bom (discursoético) e o justo (discurso moral).

El discurso práctico general sería,dicho brevemente, un discurso que com-binara los puntos de partida de laadecuación o utilidad, del valor oidentidad y de la moralidad o justicia.

33 HABERMAS, A short..., p. 447.

34 Veja-se ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução Ernesto GarzónValdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997. p. 133 e p. 286 e ALEXY, Robert.Sistema jurídico y razón práctica. In: ALEXY, Robert. El concepto y la validez del derechoy otros ensayos. Tradução Jorge M. Seña. 2. ed. Barcelona: Gedisa, 1997, p. 169. Apesar dedar importância a princípios formais, como o que diz que o legislador democrático devetomar as decisões importantes para a comunidade, Alexy não procura justificar a existênciae a razão de ser das instituições por trás desse princípio. Oferecer essa fundamentação é, emgrande parte, o que Waldron se propõe. Veja-se, para isso, WALDRON, Jeremy. Law anddisagreement. Oxford: Clarendon, 1999 e WALDRON, Jeremy. A dignidade da legislação.Tradução Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

35 Veja-se MICHELON JÚNIOR, Being apart..., p.166.

36 ALEXY, Robert. La tesis del caso especial. Isegoría, n.21, p.23-35, 1999, p.27.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 69

Existiría tanto un orden prioritario co-mo una relación de permeabilidadentre lo adecuado, lo bueno y lo justo.37

Há uma prioridade do justo sobre obom nas questões mais elementaresconcernentes aos direitos humanos co-mo, por exemplo, a escravidão, torturae tratamento degradante. Tais questõesde justiça, que podem ser deduzidas daargumentação pragmático-transcen-dental, são objetivas e independentes dequalquer concepção de bem.38 Emboraessa prioridade seja algo simples quandoo que se ordena está claramente des-lindado entre si, como quando falamosde direitos humanos elementares, nãoo é se se concebe a justiça como umcompromisso entre todas as questõesde distribuição e retribuição, pois:

los argumentos relativos a cómo com-prenderse a uno mismo y a la comu-nidad en la que se vive desempeñan unpapel esencial. Por ello, lo justodepende de lo bueno. Un cambio en laautocomprensión o la interpretaciónde la tradición en la que alguien hasido educado puede implicar un cambio

en su concepción de la justicia. Todoesto muestra que el discurso prácticogeneral no es una simple mezcla ocombinación, sino una conexiónsistemáticamente necesaria queexpresa la unidad sustancial de la razónpráctica.39 Éste es el fundamento de latesis del caso especial.40

2.3 Pretensão de correção

O terceiro fundamento da tese docaso especial poderia ser rastreado apartir de perguntas cotidianas que fre-qüentemente surgem quando se discutesobre o valor das sentenças e a legiti-midade do juiz em proferi-las. Assim,indaga-se se serão as sentenças (ouproposições jurídicas em geral) arbitrá-rias, subjetivas ou refletindo somenteemoções do juiz ou do falante; se podeo juiz dar uma sentença sem afirmar,mesmo que implicitamente, que ela écorreta; se teriam as discussões em tor-no de controvérsias jurídicas algum sig-nificado se elas fossem consideradas co-mo somente uma opinião subjetiva, semfundamentos que poderiam ser aceitospor todos, entre outras. Segundo Alexy,

37 ALEXY, La tesis..., p.28.

38 Já que “lo justo representa el punto de vista moral universal.” E “su prioridad sólopuede ser justificada mostrando que el punto de vista moral es necesario para todos. Estopuede hacerse reconstruyendo presuposiciones necesarias implícitas en actos de hablaelementales, como afirmar, preguntar y argumentar, que resultan inevitables oindispensables para todos.” (Ibidem, p.28).

39 A unidade da razão prática ganha contornos um pouco distintos em Habermas. Cf.Acerca do uso pragmático, ético e moral da razão prática. In: HABERMAS, Jürgen.Comentários à ética do discurso. Tradução Gilda Lopes Encarnação. Lisboa: InstitutoPiaget, 1991, p.117.

40 ALEXY, op. cit., p.29.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 200770

a resposta para as três indagaçõesseria a mesma: não. Isso porque todaproposição jurídica erige necessaria-mente uma pretensão de correção.Correção significa aceitabilidade ra-cional, apoiada em argumentos.41 Umaproposição que se pretende corretanada mais é do que uma proposição quepode ser justificada racionalmenteatravés de uma argumentação racional,e não arbitrária e despojada de valor,ou seja, meramente subjetiva.

Implícita na afirmação de que todaproposição jurídica necessariamenteerige uma pretensão de correção estáalgo mais além de uma disputa acercado caráter científico da jurisprudência.É a própria legitimidade do judiciáriocomo instância de julgamento que estáem jogo. Se a sentença deve ser vistacomo refletindo valores subjetivos dojuiz ou ela é conseqüência, como afir-mava um dos grandes realistas ameri-canos, “do que o juiz tomou no café da

manhã”, por que haver um corpo cons-tituído de juízes para tomar decisões?Em que sentido a legitimidade delesseria maior do que a de qualquer outrocidadão? E por que a argumentaçãojurídica (que, por essa visão, não serianada além de uma retórica para dis-farçar a verdadeira intenção do julgador)não poderia ser substituída por ummétodo mais rápido e barato de decisãocomo, por exemplo, jogar uma moeda?42

Evidentemente, Alexy não acreditaque o juiz possa se despojar de toda acarga pessoal na fundamentação. Há,por certo, na tomada de decisão, umamistura entre a sua impressão inicialcom a necessidade de justificar a deci-são. Mas essa justificação não se reduza um esclarecimento da psique do juiz.Ela deve ser feita à luz do ordenamentojurídico vigente, e vista como umatentativa de ser a resposta mais ade-quada ao caso.43 Num outro sentido, apretensão de correção que necessaria-

41 HABERMAS, Direito e..., p.281.

42 Devo essa idéia ao professor Cláudio Michelon (MICHELON JÚNIOR, Cláudio Fortunato.Aulas do curso de História do Pensamento Jurídico da Faculdade de Direito daUniversidade Federal do Rio Grande do Sul, ministrado no primeiro semestre de 2005).Em sentido semelhante, Alexy salienta que “se os julgamentos têm como base julgamentosde valor e esses julgamentos de valor não são racionalmente fundamentados, então, nomínimo, em muitos casos as convicções normativas, respectivamente as decisões de umgrupo profissional formam a base para essa regularização de conflitos, uma base que nãopode nem tem mais nenhuma justificação.” (ALEXY, Teoria da argumentação..., p.20-21).

43 Como MacCormick coloca: “It is of course possible that judges always or sometimeshave subjective reasons motivating them to decide cases as they do which are quiteother than the justifying reasons they give. But [...] it is also possible that judges couldcommit themselves to trying always to give the best justified decision (as they see it)because it is the best justified decision. In that sense, it is possible that we can, and thatjudges do, consciously model our actions upon rules, principles, and other relevantstandards.” MACCORMICK, Legal reasoning.., p.270.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 71

mente todo ato de fala normativo erigevisa mais criar um critério ideal de ver-dade prática que, embora não possa seralcançado, deve ser incessantementebuscado a fim de que os atos dos partici-pantes tenham sentido. É por isso queAlexy não abandona por completo a tesede Dworkin da única resposta correta:

la idea regulativa de la única respuestacorrecta no presupone que exista paracada caso una única respuestacorrecta. Sólo presupone que enalgunos casos se puede dar una únicarespuesta correcta y que no se sabe enqué casos es así, de manera que vale lapena procurar encontrar en cada casola única respuesta correcta.44

Mas nenhum desses argumentosprova a existência de uma pretensão decorreção enraizada nas proposiçõesjurídicas. Pode-se vislumbrá-la como umelemento necessário do Direito pelo mé-todo da contradição performativa. Seuargumento pode ser reconstruído sinteti-camente por dois exemplos: imagine-sea redação do artigo primeiro de uma no-va Constituição para o Estado X, noqual a minoria oprime a maioria. A mino-ria deseja seguir desfrutando das vanta-

gens da opressão, mas também ser ho-nesta. Sua assembléia constituinte,então, aprova como artigo primeiro daConstituição o seguinte:

X é uma república federal,

soberana e injusta.

Esse artigo evidentemente é falho,mas em que sentido reside sua falha?Não se trata somente de uma falhatécnica, moral ou convencional: 45 afalha nesse artigo é, mais do que tudo,uma falha conceitual. No ato de fazeruma constituição, uma pretensão decorreção está necessariamente conec-tada, nesse caso uma pretensão dejustiça. O autor de uma constituiçãocomete uma contradição performativase o conteúdo de seu ato constitucionalnega essa pretensão, enquanto ele aerige com a execução desse ato.46

Da mesma forma, um juiz quesentenciasse o réu da seguinte maneira:

O acusado é condenado, em

virtude de uma falsa interpretação

do direito vigente, à prisão perpétua.

O que se tem aqui é mais do queuma irregularidade social ou jurídica.47

44 ALEXY, Sistema..., p.151.45 Para uma explicitação do porquê, ver ALEXY, Robert. El concepto y la validez delderecho. In: ALEXY, Robert. El concepto y la validez del derecho y otros ensayos.Tradução Jorge M. Seña. 2. ed. Barcelona: Gedisa, 1997, p. 42-43 e ALEXY, Robert. On thethesis of a necessary connection between law and morality: Bulygin’s critique. RatioJuris, v.13, n.2, p.138-147, 2000, p.178-179.

46 A idéia subjacente ao método da contradição performativa é explicar o absurdo comoresultado de uma contradição entre o que está implícito no ato de fazer uma constituição– que ela é justa – e o que é explicitamente declarado – que ela é injusta. Segundo ALEXY,Robert. The nature of legal philosophy. Ratio Juris, v.17, n.2, p.156-167, 2004, p.164.

47 ALEXY, El concepto..., p.44 e ALEXY, On necessary..., p.179-180.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 200772

O juiz comete uma contradição perfor-mativa e, nesse sentido, um erro concei-tual. Uma decisão judicial sempre pre-tende que se esteja aplicando o Direitocorretamente. O conteúdo do veredictocontradiz a pretensão feita pelo atoinstitucional de anunciar a sentença.

A pretensão de correção, entretan-to, possui características diferentesnuma norma individual ou no sistemajurídico como um todo. Embora tantoum como outro necessariamente levan-tem uma pretensão de correção, a au-sência dessa terá conseqüências diver-sas caso se trate de um sistema jurídicoou uma norma jurídica:

Los sistemas normativos que noformulan explícita o implícitamenteesta pretensión no son sistemasjurídicos. En este sentido, la pretensiónde corrección tiene relevancia

clasificatoria. Los sistemas jurídicosque formulan esta pretensión pero nola satisfacen son sistemas jurídicosjurídicamente deficientes. En estesentido, la pretensión de correccióntiene una relevancia cualificante. Enel caso de las normas aisladas y de lasdecisiones judiciales aisladas, lapretensión de corrección tiene unarelevancia exclusivamente cualifi-cante. Son jurídicamente deficientes sino formulan o no satisfacen lapretensión de corrección.48

O fato de uma sentença explici-tamente não possuir uma pretensão decorreção, como uma sentença de morteque fosse pronunciada somente parasatisfazer um tirano, não refuta a tesede que o Direito necessariamente erigeuma pretensão de correção. Da mesmaforma que anteriormente, é necessáriodistinguir entre uma pretensão de

48 ALEXY, El concepto..., p.41-42. Uma conexão “classificatória” (ou definitória) está emquestão se uma norma ou um sistema de normas, que não preenchem um certo critériomoral, tem negado seu status de norma jurídica ou de sistema jurídico. Uma conexão“qualificatória” (ou ideal) está em questão se alguém reivindica que uma norma ou umsistema de normas, que não preenchem um certo critério moral, podem ser consideradoscomo uma norma jurídica ou um sistema jurídico, mas são, entretanto, uma norma jurídicaou sistema jurídico falho por razões conceituais. ALEXY, On necessary..., p.171-172. Háque se ressaltar, no entanto, que, para Alexy (ALEXY, El concepto..., p.45-46) quandonormas isoladas ultrapassam um certo “umbral de injustiça”, podendo ser consideradas“extremamente injustas”, a vinculação entre Direito e moral possui um caráter definitório,ou seja, também o caráter jurídico dessas normas é destruído. Obviamente, como o próprioAlexy assume, isso não é nada mais do que o argumento da injustiça de Radbruch, comseu postulado clássico que “el conflicto entre la justicia y la seguridad jurídica debióresolverse con la primacía del derecho positivo sancionado por el poder, aun cuando porsu contenido sea injusto y inconveniente, a no ser que la contradicción de la ley positivacon la justicia alcance una medida tan insuportable, que deba considerarse ‘como falsoderecho’ y ceder el paso a la justicia.” (RADBRUCH, Gustav. Arbitrariedad legal y derechosupralegal. In: RADBRUCH, Gustav. Relativismo y derecho. Tradução Luis Villar Borda.Santa Fe de Bogotá: Editorial Temis, 1992, p.35).

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 73

correção erigida subjetivamente e outraobjetivamente. Pois embora o tiranopossa subjetivamente não ter levantadoa pretensão na sua sentença, devido aele agir como uma autoridade jurídicatal pretensão está objetivamente ligadaa seu cargo. Em segundo lugar, deve-se ater ao fato de que decisões indivi-duais, bem como normas, estão imersasnum sistema jurídico. Esse necessaria-mente erige uma pretensão de correção,caso contrário, não pode ser considera-do um sistema jurídico.49 Sistemasjurídicos só perdem seu caráter jurídicono caso de uma grande quantidade dedecisões e normas seguirem esse pa-drão de injustiça, quando então poderiase dizer que o sistema como um todoabandonou a pretensão de correção.50

A pretensão de correção, portanto,é uma necessidade resultante da própriaestrutura dos atos jurídicos e do racio-cínio jurídico.51 Como afirma Alexy,“this claim necessarily connects thecorrectness as an ideal dimension andmilestone of criticism with the law. Thefaultiness is therefore more than amerely deplorable negative property. Itis something that according to theconcept of law should not be there.”52

E se o Direito está necessariamenteconectado com uma pretensão decorreção, ele consiste em mais do quepuro poder, ordens fundadas emameaças ou uma espécie de “coerçãoorganizada”.53 Sua natureza com-preende não só um lado real, mas tam-bém um crítico, ou ideal.54 Esta conexão,

49 Sobre o assunto, ALEXY, El concepto... p.40.

50 ALEXY, On the thesis..., p.142.

51 Cf. ALEXY, The nature..., p.164.

52 ALEXY, Robert. Bulygins Kritik des Richtigkeitsarguments. In: NORMATIVE systemsin legal and moral theory:. Festschrift für Carlos E. Alchourrón und Eugenio Bulygin. Ed.Ernesto Garzón Valdés et al., 235-50. Berlin: Duncker & Humblot apud BULYGIN, Eugenio.Alexy’s thesis of the necessary connection between law and morality. Ratio Juris, v.13,n.2, p.133-137, 2000, p.135.

53 Veja-se, nessa linha, o argumento de Postema: “La propiedad que distingue al derechode otros ejercicios del poder social es que el derecho – o más bien la parte oficial – pretendeautoridad para la formulación de sus diretrices lo mismo que para respaldarlas con la amenazade la fuerza. [...] Si la parte oficial no puede pretender legitimidad para ella misma, no tenemosbase sobre la cual podamos acordarle, ni siquiera de facto, legitimidad. Pero, entonces, hayun sentido directo en el cual la fuerza coactiva institucionalizada no puede ser consideradacomo derecho.” Postema (1987, p. 92s.) apud GARZÓN VALDÉS, Ernesto. Algo más acercade la relación entre derecho y moral. Doxa, n. 8, p.111-130, 1990, p.119.

54 ALEXY, On the thesis... p. 138. Em sentido semelhante: “Two properties are essentialfor law: coercion or force on the one hand, and correctness or rightness on the other. Thefirst concerns a central element of the social efficacy of law, the second expresses its idealor critical dimension.” (ALEXY, The nature..., p.163).

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 200774

além do mais, é o principal fundamentotanto para um ataque àquele que é oprincipal alicerce do positivismo, aseparação conceitual entre Direito emoral, como também é o principalargumento de Alexy para estabeleceruma ligação entre discurso jurídico ediscurso prático geral. Isso realiza atransição para o próximo capítulo.

3. A TESE DO CASO ESPECIAL

A tese do caso especial advoga queo discurso jurídico é um caso especialdo discurso prático geral. Como já foiressaltado, isso ocorre porque o discursojurídico compartilha com o discursoprático geral de certas semelhanças, aomesmo tempo em que se diferencia domesmo em alguns aspectos cruciais. Assemelhanças residem no fato de tantoum quanto outro lidarem com questõespráticas e suas proposições erigiremuma pretensão de correção. A diferençacrucial é a de que a pretensão decorreção erigida por uma proposiçãojurídica é limitada, no sentido de que eladeve ser considerada correta dentro doordenamento jurídico vigente e suascondições limitadoras (basicamente alei, os precedentes e a dogmática).

Alexy em nenhum momento é claroquanto ao que ele entende por discursojurídico. Em um nível mais amplo eleseria um discurso prático geral operando

sob condições limitadoras. Em um nívelmais estrito, ele seria um procedimentointermédio entre a criação estatal doDireito e o processo judicial.55 Isso nãoé de todo relevante, já que:

la tesis del caso especial puede serrelativa tanto a los procedimientosjudiciales como a la argumentaciónjurídica en cuanto tal, esto es, la argu-mentación jurídica tal como tiene lu-gar, por ejemplo, en los libros, artículoso discusiones académicas. La primerase encuentra institucionalizada,mientras que la segunda no.56

Dessa forma, embora haja diversostipos de discurso jurídico, desde aqueleque se desenrola na dogmática comoos que se desenvolvem no tribunal ounuma sala de aula, todos eles, ao mesmotempo em que se diferenciam em váriospontos, como as restrições institucionaisa que alguns estão submetidos, compar-tilham de dois pontos essenciais: emtodas as formas de argumentação o ar-gumento é, ao menos em parte, jurídico,e em todos eles nem todas as questõesestão abertas ao debate.

Assim, como há diversos tipos dediscurso jurídico, também haverá dife-renças entre eles concernentes à exten-são e aos tipos de limitações. Uma dis-cussão acadêmica é mais livre, enquantonum processo os limites são maiores. Acada nível as restrições e, conseqüen-

55 Sobre essas distinções, veja-se mais adiante, 4.2.

56 ALEXY, La tesis..., p.25.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 75

temente, a diferenciação e o afastamen-to do discurso jurídico com relação aodiscurso prático geral aumentam, em-bora nunca se rompa o vínculo estabele-cido entre os dois pela pretensão decorreção que ambos possuem.

O conceito central da tese do casoespecial, portanto, é que as afirmaçõesjurídicas, em todo e qualquer nível, sem-pre erigem uma pretensão de correção.A pretensão de correção implícita nasproposições jurídicas é tornada explícitapela institucionalização do dever dosjuízes de justificarem suas decisões.57

Mas, diferentemente da pretensão decorreção do discurso prático geral, apretensão de correção jurídica reivin-dica que, mesmo sujeita às limitaçõesestabelecidas por essas condições limi-tadoras, a afirmação é racionalmentejustificável. Um juiz deverá, portanto,de uma forma ou outra, demonstrar quesua sentença não se baseia em convic-ções pessoais, mas que pode ser racio-nalmente justificada no contexto daordem vigente. E, embora a pretensão

de correção se manifeste de maneiramais explícita nas discussões travadasnum tribunal, já que ali se desenvolvemlongas e intensas discussões sobre acorreção de uma decisão (que são, alémdisso, entendidas pelos participantescomo uma busca pela decisão cor-reta),58 os argumentos justificativos sãoapresentados em todas as formas dediscurso jurídico.

A tese do caso especial, dessa for-ma, estaria errada caso se comprovasseque o discurso jurídico não lida comquestões práticas ou que os limites queregem as discussões jurídicas tornaminjustificável designá-las como discur-sos. Eles seriam algo qualitativamentediferente de um discurso prático geral.

Quanto ao primeiro argumento, deque o discurso jurídico não trata dequestões práticas, é bastante óbvio que,embora em algumas matérias seu con-teúdo é teórico e descritivo, na maioriadas vezes ele é orientado para a resolu-ção de questões práticas. O problema,obviamente, não é tão simples. No

57 Já que “não é permissível nos discursos jurídicos assim como não o é nos discursospráticos gerais afirmar algo e depois se negar a justificá-lo sem dar razões para isso.”ALEXY, Teoria da argumentação..., p.213. No Direito brasileiro, esse dever está expressono art. 93, inc. IX da Constituição Federal e arts. 131, 165 e 458, inc. II, do Código deProcesso Civil.

58 Assim, ALEXY, op. cit., p. 215. No mesmo sentido, Wieacker: “Nas deliberaçõessubstantivas de uma bancada de juízes ou nas discussões científicas de juristasprofissionais, a troca de argumentos se torna totalmente o meio para o avanço comumrumo à verdade prática.” (WIEACKER, Franz. Zur praktischen Leistung derRechtsdogmatik, p.330 apud ALEXY, op. cit., p.276.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 200776

entanto, não será debatido aqui.59 Paraos objetivos do artigo basta a conside-ração, bastante genérica, de que sempreque uma norma jurídica é desafiada, éconceitualmente necessário entrar numdiscurso prático.60

Já o argumento de que o discursojurídico é algo qualitativamente diferentede um discurso prático geral se assenta,basicamente, sobre três pressupostos:1) o de que as discussões jurídicas ocor-rem sob limitações muito fortes; 2) ode que as partes num processo buscammais a vantagem própria do que acorreção da decisão; e 3) o fato de mui-tas decisões terem de ser tomadas combase numa lei injusta ou irracional.

Quanto à primeira questão, deve-se admitir que há limitações,61 como asimpostas pelas regras processuais, pra-zos, o fato de não serem as partes a

participarem, mas sim seus represen-tantes legais, entre outras, que em prin-cípio nos inclinariam a considerar odiscurso jurídico como algo completa-mente distinto do discurso prático geral.Quanto a isso pode se levantar que, em-bora as condições a que estão submeti-das as partes fazem do discurso que elasestão empreendendo algo inequivoca-mente diferente do que ocorre no âmbi-to de um discurso prático geral, é nissoque consiste a tese do caso especial.Ela nem afirma que o discurso jurídicoestá dissolvido em um discurso práticogeral, e nem que ele é totalmente in-dependente do mesmo, mas sim que,juntamente com semelhanças, hápeculiaridades, como as condições li-mitadoras citadas, que lhe dão umcaráter distinto.62

59 Segundo os críticos (basicamente Ulfrid Neumann) da tese de que o Direito não trata dequestões práticas, questões jurídicas não seriam práticas, pois são tratadas como teóricaspelos agentes do discurso jurídico, além de serem predeterminadas fortemente pelosprecedentes e pela lei. No entanto, como explica Pavlakos, o fato de uma série de restriçõeslimitarem seu tratamento como prática não pode por si só destituir questões jurídicas de seucaráter prático. As questões jurídicas, além do mais, não podem ser tratadas como teóricas,pois essas devem considerar somente fatos empíricos, enquanto questões práticas devemconsiderar também normas. (PAVLAKOS, Georgios. The special case thesis. An assessmentof R. Alexy’s discursive theory of law. Ratio Juris, v.11, n.2, p.126-154, 1998, p.128. Para umadefesa do caráter prático, ver também ALEXY, op. cit., p.319-320).

60 PAVLAKOS, op. cit., p.133.

61 A referência, agora, é ao discurso jurídico que acontece num processo judicial, já que,evidentemente, tais limitações não existem numa discussão dogmática ou acadêmica.

62 Essa flexibilidade da tese do caso especial também foi igualmente criticada (NEUMANN,Ulfrid. Juristische Argumentationslehre. Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgessellschaft,1986, p. 90-91 apud ATIENZA, As razões..., p. 195). Pois, dependendo das críticas que aela se dirigem, ora ela se esconde atrás da sua ligação com o discurso prático geral, oraatrás da sua especificidade. Não há porque insistir nesse ponto: a medida da suaespecificidade não pode ser calculada. O importante é que as proposições jurídicas erijamuma pretensão de correção, mesmo que limitada.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 77

Quanto à segunda questão, se pa-rece quase indiscutível que no âmbitoda doutrina ou até mesmo da sala de au-la a pretensão de correção está semprepresente, no caso de um litígio envol-vendo partes e seus respectivos advo-gados a questão é mais complicada. Ébastante óbvio que geralmente (se nãosempre) as partes num processo bus-cam o próprio interesse. O processo, aomenos da perspectiva dos litigantes, nãoé um processo de busca cooperativa pe-la solução mais justa, mas sim umconflito em que cada parte quer sair vi-toriosa. Isso, entretanto, não afeta a tesedo caso especial por uma série de razões.

Em primeiro lugar, como salienta opróprio Alexy:

This claim to correctness is notrendered invalid by the fact that theperson justifying some position is onlyfollowing his or her subjectiveinterests. What holds true here issimilar to the case of promising. Thefact that in making a promise I maysecretly intend not to keep it, in noway affects the obligation which hasobjectively come into existence as aresult of the promise.63

Embora subjetivamente a parte bus-que seu próprio interesse e o advogadofreqüentemente faça uso de figuras re-tóricas para influenciar o juiz a seu fa-vor, isso não elimina o caráter objetivoda pretensão de correção. A subjetivi-

dade das partes não é argumento paraeliminar a pretensão de correção; em-bora elas não desejem convencer uma àoutra, pretendem falar de um modo quetoda pessoa racional teria de concordarcom seu ponto de vista. “Elas ao menospretendem estar apresentando argu-mentos tais que obteriam concordânciaem condições ideais.”64 Uma argumen-tação num tribunal é fundamentalmentediferente daquela que acontece numanegociação que visa um acordo. Mesmoque, no fundo, estejam perseguindo seusinteresses, a forma da argumentaçãoutilizada explicita que as razões que sãoapresentadas a favor de certa decisãopoderiam, ao menos em princípio, serincluídas, por exemplo, num tratadojurídico-científico. O fato de muitos ar-gumentos utilizados pelas partes seremutilizados inclusive em decisões pos-teriores deixa mais explícito o caráter dis-cursivo mesmo de uma discussão queocorre no âmbito de um processo.

Em último caso, igualmente, contri-buem a um discurso que da perspectivado juiz serve à obtenção de um juízoimparcial. Isso não reduz os partici-pantes a meras fontes de informação.Pois se o tribunal quer decidir correta-mente, deve ouvir todos os argumentos,e se a correção da sua decisão estásujeita a controle, o tribunal deverájustificar seu juízo ante os participantese ante o público geral e jurídico. Porisso, está submetido aos discursos frente

63 ALEXY, A theory of legal..., p.214.

64 ALEXY, Teoria da argumentação..., p.217.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 200778

aos tribunais superiores, à profissãojurídica e ao público.65

Se as partes, no entanto, devem aomenos fingir que seus argumentosestão construídos de maneira tal que,sob condições ideais, poderiam encon-trar o acordo de todos,66 não seria issomais uma condição para realizar umaação estratégica bem sucedida, ao invésde ser uma condição para a existênciade um discurso? Nesse sentido, a pre-tensão de correção seria mais uma pre-tensão de seriedade, isto é, um “jogo”onde “as partes – ou seus represen-tantes – propõem seus argumentos le-

vando a sério as regras do ‘jogo’ e seupapel nele.”67

A pretensão de correção, no en-tanto, não é uma mera condição de

sucesso, porém uma condição do

jogo.68 Num processo em que as partesargumentassem procurando convencero juiz a proferir uma decisão que lhesfosse favorável, mas não utilizassempara isso argumentos que visassem queessa decisão fosse correta ou justa, e ojuiz desse uma sentença do tipo: “Douuma vantagem ao sr. N, porque ele medeixou mais bem disposto a seu favor”,o jogo que foi feito não poderia ser

65 Nesse sentido, ALEXY, La tesis..., p.26.

66 ALEXY, Robert. Resposta a alguns críticos. 1996. Esse trabalho integra o posfácio daedição em português de ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria dodiscurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução Zilda Hutchinson SchildSilva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2001. p.324.

67 ATIENZA, As razões..., p.197. Atienza, dessa forma, se une à antiga posição de Habermas,que igualmente via no processo judicial uma ação estratégica, ao invés de um discurso.Quanto ao último, embora no seu “Teoria da ação comunicativa” tenha mudado de opinião(“R. Alexy me ha convencido de que las argumentaciones jurídicas, en todas susacuñaciones institucionales, han de entenderse como un caso especial de discursopráctico.” (HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa: racionalidad de laacción y racionalización social. Tradução Manuel Jimenéz Redondo. 4. ed. Taurus. 1987,p. 60), na sua obra “Direito e democracia: entre facticidade e validade” acaba criticando atese do caso especial e aderindo à tese de Klaus Günther (veja-se HABERMAS, Jürgen.Direito e democracia: entre facticidade e validade. p. 144 e 289), que distingue discursosde justificação de discursos de aplicação (veja-se GÜNTHER, Klaus. A normativeconception of coherence for a discursive theory of legal justification. Ratio Juris, v.2,n.2, p.155-166, 1989). As críticas de Günther e no que elas afetam a tese do caso especialnão serão abordadas aqui. Para isso, veja-se GÜNTHER, Klaus. Critical remarks on RobertAlexy’s “special-case thesis”. Ratio Juris, v.6, n.2, p.143-156, 1993.

68 ALEXY, Resposta..., p.324.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 79

caracterizado como uma negociaçãojurídica, mesmo que aconteça no con-texto de um sistema jurídico.69

Por fim, resta analisar o terceiroargumento contra a tese do caso espe-cial, qual seja, o que afirma que umadiscussão jurídica não pode ser enten-dida como um discurso, principalmentepela vinculação da argumentação jurí-dica com a lei. Essa conclusão seriafacilmente demonstrável quando umasentença tem que se basear numa leiinjusta ou irracional. Nesse caso, nãohaveria pretensão de correção, desapa-recendo, portanto, o principal elementoda conexão entre o discurso jurídico eo discurso prático geral. Caso esse argu-mento esteja correto, aquele seria algo

distinto deste, já que a racionalidade deuma argumentação baseada numa leiirracional não seria algo menos, mas algodiferente do que a racionalidadesubstantiva que tem lugar de acordo comas regras do discurso racional prático.

Esse argumento falha,70 contudo,por compreender somente de maneiraparcial a pretensão de correção. Poisdeve-se distinguir entre dois aspectosda pretensão de correção levantada pe-las decisões jurídicas. O primeiro aspec-to se refere ao fato de a decisão sercorretamente justificada, quando separte do Direito vigente. O segundoaspecto se relaciona com o fato de oDireito válido ser racional ou justo.A pretensão de correção levantada

69 Conforme ALEXY, op. cit., p.324. É possível, aqui, fazer uma analogia com o que Alexyfala sobre a fundamentação das regras do discurso: “Quien ingresa en el discursosimplemente por razones estratégicas tiene tan sólo que hacer como si aceptase la libertady la igualdad de los otros como partes en el discurso. Sin embargo, ésta sería unaobjeción sólo si uno tuviera que considerar la creación de una motivación que, por sucontenido, respondiera a las reglas del discurso como elemento constitutivo necesariode una fundamentación de reglas del discurso. Pero tal no es el caso. También el ámbitodel discurso puede distinguirse entre una validez subjetiva, es decir, referida a lamotivación, y una objetiva, es decir, referida al comportamiento externo.” (ALEXY, Elconcepto..., p.149). O mesmo se aplica no âmbito de um processo: a parte não precisa,subjetivamente, ser motivada pela correção; mas deve comportar-se como se fosse, devidoa ligação objetiva dessa pretensão ao discurso jurídico. O mesmo se aplica a fundamentaçãoda sentença por um juiz.

70 Para Pavlakos essa crítica está correta, mas não afeta a tese do caso especial. Issoporque, segundo ele, em sociedades modernas não há discussão ou procedimentocomunicativo puramente prático; todos esses tipos de comunicação tomam lugar dentrode dadas instituições que permitem o uso de argumentos estratégicos. Simultaneamente,contudo, todos esses tipos de ações comunicativas estão estruturadas de acordo com oideal do discurso prático e precisamente neste sentido eles constituem casos especiaisdo discurso prático geral. (PAVLAKOS, The special case..., p.151).

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 200780

pelas decisões judiciais contém ambosos aspectos.71

Muitas vezes, devido a princípiosformais como segurança jurídica eseparação dos poderes, é necessáriobasear a decisão numa lei desse tipo.No entanto, isso de forma alguma alteraseus defeitos. Apesar da falta de umapretensão de correção com respeito acerta decisão não tirar dessa decisãoseu caráter como decisão válida, elasempre será defeituosa em mais do queum sentido moral relevante.72 Se essadecisão deve ser tomada com basenessa lei, isso não ocorre por força dapretensão de correção, mas apesar dapretensão de correção.

Essa limitação também não leva àconclusão de que a tese do caso especialpressupõe a justiça do Direito positivo,como Atienza aponta.73 Pois emboraquando uma decisão deve se basearnuma lei injusta seja impossível satis-fazer os dois aspectos da pretensão decorreção, a única conclusão que pode-mos tirar é que não é possível argu-mentar racionalmente com base numalei irracional. Mas isso não retira o ca-ráter ideal da pretensão de correção,pois, embora o espaço para o discursojurídico seja reduzido quase a zero no

âmbito de utilização dessa lei, o inter-relacionamento entre a racionalidadediscursiva e o Direito não se rompe. “Aracionalidade discursiva não pode maisestabelecer o conteúdo da decisão,porém forma a razão para sua falibili-dade e a medida para sua crítica.”74

Com isso foi feito um avanço impor-tante, e deve-se agora vislumbrar aintegração da argumentação jurídica nointer-relacionamento da racionalidadede um sistema jurídico mais abrangente.Esse tema será abordado a seguir.

4. CONSEQÜÊNCIAS DA TESEDO CASO ESPECIAL

Neste capítulo serão diferenciadastanto as conseqüências da tese do casoespecial como de seu principal elemento,a pretensão de correção. A pretensãode correção que está conectada ao Di-reito não só faz dele um caso especialdo discurso prático geral como também,segundo Alexy, estabelece uma cone-xão conceitualmente necessária entreDireito e moral, no que sua teoria setorna essencialmente não-positivista,pois o positivismo jurídico tem na sepa-ração conceitual entre Direito e moral(além de na tese das fontes sociais) um

71 Assim, se uma decisão é justa quando está de acordo com o Direito, e este tem umcaráter autoritário e um ideal (veja-se a seguir, 4.2), ser justo é cumprir plenamente essasduas características: ser de acordo com a lei (aspecto autoritário) e de acordo com a moral(aspecto ideal). Isso significa preencher o caráter duplo da pretensão de correção.

72 ALEXY, Teoria da argumentação..., p.214.

73 ATIENZA, As razões..., p.199.

74 ALEXY, Resposta..., p.323.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 81

de seus principais alicerces. Por ela, oDireito é visto como um conjunto denormas não necessariamente justas,mas, como obra de homens que podemerrar, falíveis.75

A partir disso será feita uma análiseda maneira como a pretensão de correçãoconduz a uma conexão entre Direito emoral,76 e de que forma a tese do casoespecial leva à conclusão de que tal mo-ral deve ser concebida como universalista.

Num segundo e terceiro momento,será tratado tanto a necessidade do dis-curso jurídico do ponto de vista do dis-curso prático geral, como a necessidadedo discurso prático geral do ponto devista do discurso jurídico. Essa duplanecessidade, será visto, é conseqüênciade uma dupla vulnerabilidade (ou limi-tação) constitutiva tanto de um comode outro, e são facilmente deduzidas daprópria estrutura da tese do caso espe-cial que, se por um lado deixa manifestoque argumentos práticos gerais são ne-cessários na argumentação jurídica, por

outro evidencia a própria necessidadede argumentos jurídicos (e, portanto, dainstituição “Direito”) a fim de resolverquestões práticas surgidas na sociedade(no contexto do discurso prático geral,portanto). Assim, será demonstrado queo Direito deve ser visto como a institu-cionalização da razão prática, e, a fimde que ele não perca suas raízes nesta,os argumentos práticos gerais devemser integrados aos argumentos jurídicosa todo o momento.

4.1 Conexão conceitualmentenecessária entre Direito e moral

A pretensão de correção implicauma pretensão de justificação, oufundamentabilidade. Apesar de diversasjustificações serem possíveis, a essênciade todas elas é a mesma, já que, quemjustifica algo:

at least pretends that he accepts theother person as an equal partner, at

75 O que o positivismo insiste, portanto, não é que não possa haver conexão fática entreuma ou outra norma jurídica e uma norma moral, mas sim que o Direito não precisa sermoralmente correto para ser Direito. “O positivismo não é a doutrina que separa o Direitoda moral, só afirma que eles não se acham necessariamente vinculados.” (GARCÍAFIGUEROA, La tesis..., p.203).

76 É importante, desde logo, esclarecermos o ponto de vista pelo qual analisaremos aconexão conceitual entre Direito e moral pois, como muito acertadamente diz Alexy, “en lapolémica acerca de las relaciones necesarias entre derecho y moral se trata de una serie deaseveraciones diferentes.[...] A menudo, sus participantes no reconocen que la tesis queellos defienden es de un tipo totalmente distinto al de la tesis que atacan, es decir, quemantienen diálogos paralelos.” (ALEXY, El concepto..., p.33). Segundo ele, caso seanalisassem todos os pontos de vista possíveis, chegaríamos a 64 teses sobre a conexãoou não entre Direito e moral. Aqui se analisará somente a questão de que há uma conexãoconceitualmente necessária desde a perspectiva do participante (do ponto de vista interno,por exemplo, o de um juiz).

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 200782

least in discourse and that he neitherexercises coercion himself nor issupported by coercion exercised byothers. He furthermore claims to beable to defend his thesis not onlyagainst his partner in discourse butagainst everyone. These claims toequality and universality form thebasis of a procedural ethic built onthe idea of generalizability. This is thediscourse-ethic.77

A conexão que a teoria do discursocria entre correção, justificação e gene-ralizabilidade é transferida para o Direitopela tese do caso especial. Dessa for-ma, é estabelecida uma conexão neces-sária entre o Direito e uma moralidadeuniversalista. O argumento, dessa for-ma, pode ser sintetizado da seguintemaneira: quem afirma que algo é corretoimplicitamente aceita que pode justificarisso; quem pretende justificar algo deveaceitar diversas premissas inerentes aoprocesso de justificação, como a aceita-ção do outro como um parceiro de dis-curso; essas premissas ligam o ato dejustificar a uma moralidade universalistaconstruída sob a idéia de generalizabi-lidade e universalizabilidade; como, damesma forma que no discurso prático,no discurso jurídico está necessaria-mente presente uma pretensão de cor-reção, o Direito está necessariamenteligado, ao menos idealmente, a essamoralidade universalista.

A conexão que Alexy estabeleceuentre Direito e moral foi criticadaseveramente.

Uma das críticas veio de Haber-mas,78 que afirmou que a tese do casoespecial assumia que havia de fatosempre uma consonância entre morale Direito. Mas a tese de Alexy assume,entretanto, somente que tal consonânciaestá sempre implícita nas pretensões doDireito. A conexão entre Direito e moralé só uma pretensão, não é exigido queessa conexão sempre se cumpra.

A principal crítica dirigida à conexãoentre Direito e moral é que Alexy, aoidealizar demasiadamente as categoriasjurídicas do Estado contemporâneo,estendeu a moralidade implícita nessepara todos os demais sistemas jurídicos.Essa crítica foi expressa da seguintemaneira por Bulygin:

The thesis of the necessary connectionbetween law and morality implies thatthere is a conceptual link between anylegal system, on the one hand, and oneand the same morality, not just any moralsystem, on the other. In the case of Alexyit is the universalistic morality, basedon a procedural discourse ethics.79

Parece bastante óbvio, no entanto,que a maioria dos sistemas jurídicoshistoricamente existentes não compar-tilham dessa moralidade. Se essa críticaestivesse correta, então ou a tese da

77 ALEXY, On necessary..., p.180.

78 Cf. ALEXY, La tesis..., p 32.

79 BULYGIN, Alexy’s..., p.134. Para um argumento semelhante, TUORI, Kaarlo. Eticadiscursiva y legitimidad del derecho. Doxa, n.5, p.47-67, 1988, p.49.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 83

conexão entre Direito e moral estariaequivocada, ou bem o que Alexy en-tende por Direito é um fenômeno quesó ocorreu na modernidade. A críticade Bulygin, entretanto, equivoca-se numponto chave. A fim de provar isso, oargumento da conexão deve ser refi-nado: em primeiro lugar, é um erroconceder que o Direito está conectadocom uma moralidade concreta, de-terminada; em segundo lugar, é igual-mente um erro afirmar-se que o Direitoestá conectado com uma moral, qual-quer que ela seja. A fim de restringir ocampo de qual moralidade deve estarconectada ao Direito, deve-se inter-pretar a pretensão de correção moralque uma proposição jurídica levantanum sentido forte. Interpretada nessesentido, ela pode ser preenchida somen-te se o julgamento é justificável sob abase de uma moralidade correta, deuma moralidade que é justificável. Aidéia de correção demanda a inter-

pretação forte. Um julgamento moralque é justificável sob a base de umamoralidade que não é ela mesma justifi-cável não é correto. Dessa maneira, aconexão necessária entre o Direito e amoral correta é criada no sentido de quea pretensão de correção inclui umapretensão de correção moral que seestende também aos princípios sub-jacentes.80 Como esclarece Alexy, por-tanto, “a necessary connection betweenlaw and morality does not presupposea morality actually shared by all. It iscompatible with moral dispute.”81

A fim de se obter uma conexãoentre Direito e moralidade, portanto, nãoé necessário que haja uma mesmamoralidade, objetiva, compartilhada portodos. A idéia de moralidade correta, aprática de uma argumentação racionalsobre o que é moralmente correto, e apossibilidade de construir uma racionali-dade prática basta.82 Se o Direito éconstituído por uma pretensão de cor-

80 Cf. ALEXY, El concepto..., p.82. “Law’s claim to correctness is on no account identicalwith the claim to moral correctness, but it includes a claim to moral correctness.” (ALEXY,On the thesis..., p.146).

81 ALEXY, op.cit., p.143.

82 Nesse sentido, ALEXY, op. cit., p.144. Por outro lado, toda e qualquer moralidadeconectada ao Direito possui, mesmo que implicitamente, ideais discursivos e universalistas.É importante entender o pensamento de Alexy dentro da estrutura de uma era pós-metafísica, que “não pode recuperar todo o potencial semântico do que foi outroraconcebido pelas éticas clássicas como sendo justiça evangélica ou cósmica.”HABERMAS, Justiça e..., p.73, e em que o mundo, para usar uma expressão consagrada,sofreu um “desencantamento”, e está despido de qualquer explicação metafísica oureligiosa. A ruptura com tal ordem abre a possibilidade para a realização do que Habermase Alexy chamam de “potencial de razão”. Tal potencial encontra-se mais plenamenterealizado, portanto, na sociedade moderna, daí a tendência em ver o Estado ConstitucionalDemocrático, como (a expressão é de TUGENDHAT, Ernst. Zur Entwicklung von

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 200784

reção, e essa implica uma pretensão dejustificação, quem justifica algo neces-sariamente terá que aceitar a generali-zabilidade e universalizabilidade comopadrão de argumentação. Nesse sen-tido, uma moralidade correta pode abar-car várias moralidades e ser, portanto,compatível com ordenamentos jurídicosque possuam moralidades diversas. Essaconexão qualificatória não conduz,portanto, a uma conexão necessária doDireito com uma determinada moralconcreta designada como correta, massim a uma conexão necessária do Di-reito com a idéia de uma moral corretano sentido de uma moral fundamentada.Esta idéia não é, de modo algum, vazia.Sua vinculação com o Direito significaque a ele pertencem não só as regras

especiais da fundamentação jurídica,como também as regras gerais da argu-mentação prática geral. Além disso, aidéia de uma moral correta, da mesmaforma que a única resposta correta, temo caráter de uma idéia regulativa nosentido de um objetivo a aspirar. Nessamedida, a pretensão de correção con-duz a uma dimensão ideal necessaria-mente vinculada com o Direito.83

A tese de Alexy, portanto, leva àconclusão de que o Direito não podeser corretamente entendido sem refe-rências à correção de suas decisões.Um sistema jurídico possui uma dimen-são ideal que o liga à idéia de justiça,84

pois, como inclusive Radbruch já haviaassinalado nos seus últimos escritos, ésimplesmente impossível “definir el

moralischen Begründunsgsstrukturen in modernen Recht. A.R.S.P., nova série, caderno14, 1980, p. 4 apud ATIENZA, As razões..., p. 204) “o melhor de todos os mundos jurídicosimagináveis” (sobre essa idealização em Alexy: ATIENZA, Manuel. Entrevista a RobertAlexy. Doxa, n.24, p.671-687, 2001, p. 685). O fato de o Direito estar conectado com a idéiade uma moral correta e potencialmente universalista e esta ligação ser mais visível noEstado Constitucional Democrático parece ser aceito de bom grado por Alexy, quando eleafirma que essa moralidade universalista “is directly valid for modern legal systems andpossibly justifiable for pre-modern legal systems within the frame of a normative theoryof legal evolution.” Veja-se ALEXY, On necessary..., p.180-181. Isso não depõenecessariamente contra a tese de Alexy. A semelhança entre a sua visão idealizada com aera de origem de sua teoria não é, de maneira nenhuma, um argumento quanto à correçãodessa teoria. O que importa na crítica de uma teoria, unicamente, é se ela está certa ou não:explicações históricas, psicológicas e sociológicas, embora possam justificar o início deum debate sobre a teoria em questão, são marginais às investigações quanto à correçãoda mesma (esse é também o argumento de Dworkin contra as teorias “desmascaradoras”.Cf. BIX, Brian. Questões na interpretação jurídica. In: MARMOR, Andrei. Direito einterpretação: ensaios de filosofia do direito. Tradução Luís Carlos Borges. São Paulo:Martins Fontes, 2004, p.222).

83 Veja-se ALEXY, El concepto..., p.84-85.

84 Entre outros, veja-se ATIENZA, As razões..., p.684.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 85

derecho, inclusive el derecho positivo,de otra manera que como un ordeny estatuto, que de acuerdo con su senti-do están determinados a servir ala justicia.”85

4.2 Direito como um sistema deregras, princípios e procedimentos

A teoria de Alexy pretende lançarbases sólidas para uma teoria nãopositivista do Direito. Isso é feito basi-camente pela já vista conexão concei-tualmente necessária entre Direito e

moral. Porém, essa conexão demonstrasomente que o positivismo falha em suatentativa de compreender a natureza doDireito, mas ainda não oferece um novoprojeto para substituí-lo. Em grandeparte, uma nova teoria do Direito já sefazia necessária após a “Teoria da Ar-gumentação Jurídica”, cujos funda-mentos não poderiam ser encontradosnuma teoria positivista do Direito,86 comoa teoria da argumentação de MacCormick, por ele considerada um com-plemento à teoria de Hart.87 Essa teoria,ao mesmo tempo que parte da distinção

85 RADBRUCH, Arbitrariedad legal..., p.36. Garzón Valdés argumenta em um sentidosemelhante: “no es posible excluir del concepto de derecho (existente, positivo) suvinculación con la moral, si es que se lo quiere entender tal como es y como funciona en larealidad.” GARZÓN VALDÉS, Algo más... p.121. Sobre as conseqüências práticas da conexãoconceitual entre Direito e moral, ALEXY, op. cit., p.14-19 e ALEXY, La tesis..., p.32.

86 Já que a teoria da argumentação pressupõe alguma teoria do Direito e alguma teoriasobre as relações conceituais entre Direito e moral. E, como salienta Garcia Figueroa, “apesar de que conceptualmente una teoría de la argumentación jurídica no es incompatiblecon una teoría positivista del derecho, de hecho la tesis del caso especial ha reforzado lavinculación conceptual de derecho y moral y, en este sentido, ha sido tendencialmenteantipositivista.” (GARCÍA FIGUEROA, La tesis..., p.197).

87 Enquanto MacCormick parte da justificação de decisões judiciais para então elaboraruma teoria da argumentação jurídica que ele acaba por considerar como parte de umateoria geral da argumentação prática, Alexy parte de uma teoria da argumentação práticageral para projetá-la sobre o Direito. Porém, enquanto MacCormick desenvolve suateoria no seio de uma teoria positivista do Direito hartiana (“La visión del razonamientojurídico se muestra esencialmente hartiana, basada em el análisis del concepto de Derechohartiano o al menos plenamente compatible com éste.” MACCORMICK, op. cit., p.XIV,apud GARCÍA FIGUEROA, Alfonso. El “derecho como argumentación” y el derecho parala argumentación: consideraciones metateóricas en respuesta a Isabel Lifante. Doxa,n.24, p.629-653, 2001, p.633), Alexy procura, em artigos posteriores, inserir sua teoria deargumentação numa teoria discursiva do Direito. Contudo, é importante ressaltar que opróprio MacCormick, em escritos recentes, tem mudado sua posição. Conforme esclareceGarcia Figueroa, no prólogo a “Legal Reasoning and Legal Theory”, revisado em 1994,“MacCormick pone de relieve que sus planteamientos inicialmente positivistas hartianosse han visto matizados en los últimos años. En ese mismo prólogo el profesor escocésseñala que Alexy y Habermas le han convencido de la vinculación entre la razón práctica

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 200786

entre regras e princípios de Dworkin,88

a aprofunda, adicionando um novo nívela esses dois. Assim, o Direito, para Alexy,deve ser visto como um sistema deregras, princípios e procedimentos.

Aqui, é importante somente umabreve síntese sobre o conceito de regrae princípio.89 Tanto regras como prin-cípios são espécies de um gênero maior,normas, e “ambos pueden ser formula-dos con la ayuda de las expresionesdeónticas básicas del mandato, lapermisión y la prohibición.”90 A dife-rença fundamental é que, para Alexy,os princípios são normas que ordenamque algo seja realizado na maior medidapossível, dentro das possibilidadesjurídicas e reais existentes. Portanto, os

princípios são mandatos de otimização.Já as regras são normas que só podemser cumpridas ou não. Se uma regra éválida, então deve ser feito exatamenteo que ela exige, nem mais nem menos.Nesse sentido, as regras contêm deter-minações no âmbito do fática e juridi-camente possível.

Agora, o Direito não pode ser con-cebido de forma estática, somente comoum conjunto de normas.91 A esse ladopassivo, deve ser adicionado um ladoativo: o dos procedimentos.92 Este ladosurge da necessidade de fornecer umaresposta a uma indagação prática bas-tante simples: com relação a um pro-blema prático, como chegar a uma únicaresposta correta que seja, além do mais,

discursiva y el razonamiento jurídico.” GARCÍA FIGUEROA, La tesis..., p.206.MacCormick, na verdade, como já é reconhecido e inclusive por ele assumido,conceitualizou uma intuição muito semelhante à de Alexy com relação à ligação entreargumentação jurídica e argumentação prática, o que já era visível na sua obra maisfamosa (veja-se, para isso, o capítulo X, onde ele diz explicitamente: “legal reasoning is aspecial, highly institutionalized and formalized, type of moral reasoning.” MACCORMICK,Legal..., p. 272).

88 Alexy, ao mesmo tempo em que aceita essa distinção, considera os princípios de formadiferente de Dworkin. Tais diferenças não serão levantadas aqui. Sobre a evolução dadistinção entre princípios e regras, veja-se ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: dadefinição à aplicação dos princípios jurídicos. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p.26-31.

89 Uma análise mais aprofundada pode ser encontrada em ALEXY, Teoría de losderechos..., p.81-135.

90 ALEXY, op. cit., p.83.

91 “En tanto sistema de normas, el sistema jurídico es un sistema de resultados o productosde procedimientos de creación de normas, cualesquiera que sean sus características.”(ALEXY, El concepto..., p.31).

92 “Como un sistema de procedimientos, el sistema jurídico es un sistema de accionesbasadas en reglas y guiadas por reglas, a través de las cuales las normas son promulgadas,fundamentadas, interpretadas, aplicadas e impuestas.” (ALEXY, op. cit., p.31).

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 87

vinculante? No âmbito do discurso prá-tico geral isso não é possível basica-mente por dois motivos: as regras dodiscurso não garantem que se possaalcançar uma única solução correta paracada questão prática (problema doconteúdo), nem tampouco que, caso sealcançasse esse acordo, todo o mundoestaria disposto a segui-lo (problema daimposição). As razões para o primeiroponto são basicamente três: as regrasdo discurso só podem ser cumpridas demodo aproximado; nem todos os passosda argumentação estão determinados;todo discurso deve começar a partir dasconvicções normativas dos participan-tes, que estão determinadas historica-mente e são, além do mais, variáveis. Arazão para o segundo ponto reside numadistinção, que Alexy toma de Kant, entreo principium diudicationis e o princi-

pium executionis, isto é, entre a forma-ção do juízo e a formação da vontade:saber o que é certo não significa neces-sariamente agir nesse sentido.

O problema da imposição faz surgira necessidade do Direito, ou seja, de umsistema coercitivo que estabeleça regrasdotadas de sanção para quem não esti-ver disposto a segui-las de bom grado.93

Já a resolução do problema do conteúdopassa, em primeiro lugar, pelo estabe-lecimento de alguns resultados discursi-vamente necessários e outros discursiva-mente impossíveis. Os mais importantesdentre os primeiros são os direitos huma-nos, os quais Alexy procura fundamentarsobre a base da teoria do discurso.94 Noentanto, o espaço do discursivamente pos-sível continua demasiado grande, e nemtudo que pode ser justificado discursiva-mente pode valer juridicamente. Issolevanta a necessidade de procedimentosjurídicos que garantam, ao final, somenteum resultado definitivo e obrigatório.95

Alexy distingue três tipos de procedi-mentos que seria preciso acrescentar aoprocedimento do discurso prático geral:a criação estatal do Direito, o discursojurídico e o processo judicial.

93 ALEXY, Resposta..., p. 306. Talvez não seja a visão de Alexy, mas o fato é que ele passaao largo de outro fator importante para resolver o problema da fraqueza da vontade: aforça da socialização, tão ressaltada pela ética do discurso. O Direito, evidentemente,permanece como ultima ratio, mas dificilmente ele consegue estabilizar por si própriouma sociedade de sujeitos que só são motivados a fazer o que é certo devido ao medo deuma sanção. Além de contextos normativos são necessários, como salienta Habermas,“processos complementares de socialização e de identidade”, caso contrário, “um juízomoral aceite como válido só poderá assegurar uma coisa: o destinatário inteligente tem,então, consciência de que não tem boas razões para agir de outra forma.” (HABERMAS,Comentários..., p.134).

94 Veja-se ALEXY, Una concepción..., p.152-155.

95 Para Alexy, é por isso que “la teoría del discurso puede alcanzar importancia prácticasólo si es inserta en una teoría del derecho.” ALEXY, op. cit., p.151. Veja-se tambémHABERMAS, Justiça e..., p.63.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 200788

A passagem do primeiro para osegundo ocorre devido a ampla gamade soluções para uma questão práticaque podem ser consideradas discursi-

vamente possíveis. Assim, através dacriação estatal de normas, certos pa-drões são firmados em detrimento deoutros. Porém, também as normas nãoespecificam suficientemente qual seriaa solução obrigatória, seja pelo aspectovago da linguagem jurídica, a impre-cisão das regras do método jurídico oua impossibilidade de prever todas asconstelações possíveis de casos. O ter-ceiro procedimento é o discurso jurí-dico,96 marcado pelas condições limita-doras já referidas. Aqui o grau do discur-sivamente possível é consideravelmentemenor, mas a grande controvérsia dou-trinária, empiricamente verificável, de-monstra que ainda é necessário umquarto procedimento, em que o elemen-

to decisório novamente está ao lado daargumentação: o procedimento judicial.Findo todo esse processo, só restará umaresposta para ser considerada obrigatória.

Nesse sistema de quatro procedi-mentos, dois são institucionalizados, edois não. O discurso prático geral e aargumentação dogmática em geral per-tencem ao grupo dos não institucionali-zados, e a criação legislativa e o proces-so, aos institucionalizados. A principaldiferença entre um e outro é que nosprocedimentos institucionalizados, quesurgem para resolver o problema dosdebates potencialmente intermináveisque ocorrem nos momentos anteriores,é necessário se chegar a uma resposta:neles não só se argumenta, também sedecide.97 A fim de que isso ocorra, re-gras e limitações são impostas aosparticipantes, como as regras legisla-tivas e as regras processuais. 98

96 Aqui em sentido estrito, no sentido de argumentação da dogmática jurídica.

97 “Une procédure est à considérer comme ‘institutionnalisée’ si elle a été réglée par desnormes juridiques, de telle manière que l’aboutissement à un résultat définitif est assuréet que celui-ci est juridiquement obligatoire.” (ALEXY, Robert. Idée et structure d’unsystème du droit rationnel. Archives de Philosophie du Droit, v.33, p.23-38, 1988, p.31).

98 É possível refinar o argumento dos 4 níveis do Direito de Alexy. Como já foi anteriormentereforçado, discurso prático geral deve ser entendido mais como argumentação práticageral, ou argumentação moral (com a ressalva do ponto 2.2), bem como discurso jurídico,como argumentação jurídica. Da mesma forma que Alexy distingue discurso jurídicoenquanto tal, ou argumentação da dogmática jurídica (discussões acadêmicas, doutrina)do discurso jurídico que ocorre no âmbito de um processo, é possível distinguir discursoprático geral enquanto tal (que ocorre nos mais diversos âmbitos da sociedade) do discursoprático geral que ocorre no âmbito da criação estatal de normas. Sempre no segundomomento a diferença é que uma decisão deve ser tomada, e daí a necessidade seja deregras processuais, seja de regras de criação legislativa (limitação de tempo, prazos, regrada maioria...). É importante ressaltar que o tipo de condições limitadoras é distinto casofale-se de regras que impõem a necessidade de uma decisão ou das condições a que estásubmetido o discurso jurídico como um todo. Tanto a técnica legislativa como as regras

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 89

É importante ressaltar que a pas-sagem de um nível para o outro nãodeve ser considerada como um aban-dono dos princípios do discurso e seusideais: eles devem ser considerados,muito mais, como necessários para arealização destes e justificados comreferência a eles. O nível seguinte surgenão só para sanar falhas do anterior,mas é exigido por ele por poder chegara resultados que o outro não conse-guiria.99 Por exemplo, no âmbito do dis-curso prático geral tanto o alcance doque é discursivamente possível, que émuito amplo, como também a neces-sidade de resolver muitas questões prá-ticas num curto espaço de tempo consti-

tuem bons motivos para a inserção delimitações. Assim, a necessidade dedecisão, a correção relativa, o respeitoà lei e aos precedentes e a consideraçãopelos dogmas jurídicos (no sentido deverdades provisórias) fazem com queuma decisão possa ser alcançada mes-mo havendo divergências, o que nãoaconteceria num discurso prático geral,onde a discussão poderia se tornar infin-dável. Todavia, como já foi salientado,essas limitações devem ser entendidasno sentido de assegurar a possibilidadedo discurso prático geral.100

É por esse lado ativo do Direito quefica clara a ligação entre discurso prá-tico geral e discurso jurídico. Concebê-

de ordem processual são um mesmo tipo de limite, diferente do limite ao qual o discursojurídico como um todo está submetido. As primeiras são limites, mas formais, que garantemum caráter institucional, mas não de especialidade.Na criação estatal as condições limitadoras são definidas pela necessidade de decisão,embora o argumento seja livre; no discurso jurídico, além das limitações processuais noprocesso, ele, como um todo, apresenta um horizonte argumentativo reduzido para aspartes, ou seja, ele está limitado também pelo tipo de argumento que pode ser utilizado,que deve ser jurídico (embora os argumentos práticos gerais não sejam proibidos; maseles entram, embora livres, ou não institucionalizados, sob formas e condições especiais,como será mais bem explicado no próximo ponto). O discurso jurídico, portanto, éconstitutivamente restrito pelas condições limitadoras (lei, precedentes, dogmática), edaí seu caráter especial. Caso contrário, a criação estatal do direito deveria ser consideradaum caso especial do discurso prático geral e o processo um caso especial do discursojurídico em sentido estrito.

99 “Uma das tarefas da teoria do discurso é investigar como [...] a possibilidade doargumento racional pode ser melhorada na presença de condições limitadoras.” ALEXY,Teoria da argumentação..., p. 108. Um dos melhores modos para ver-se de que forma ascondições limitadoras podem melhorar a busca de uma solução adequada é investigandoo papel da dogmática jurídica. Para isso, veja-se o ponto 4.3.

100 Dito de outra forma, “para a tese do caso especial isso significa que o discursojurídico não é uma variante do discurso prático, que é exigida para sanar as falhas dosistema jurídico racional. Muito mais ele é em sua estrutura um elemento necessáriorealizado da racionalidade discursiva.” ALEXY, Resposta..., p.322.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 200790

lo também dessa forma dinâmica é es-sencial para traçarmos tanto sua origemcomo também a sua necessidade. Atese do caso especial, entendida poresse ponto de vista, é a afirmação desseseu aspecto dinâmico. É nessa linha quetem sentido afirmar que o Direito nãosó é a institucionalização da razãoprática, como também um meio ne-cessário para a realização dessa nasociedade. Como o discurso jurídico éconcebido como conectado ao discursoprático geral, conseqüência e afirmaçãode seus princípios, também o Direitonão pode ser concebido de forma autô-noma. Isso não é nada mais do que ou-tra forma de expressar a unidade darazão prática.101

Portanto, visto por esse prisma,tanto como regra e princípio (no âmbitopassivo) e como institucionalização eargumentação livre (no âmbito ativo), oDireito pode ser visto como possuindouma dupla vertente real e uma duplavertente ideal.

La double dimension idéale se montreau niveau des procédures dans la“réalisabilté” seulement approxima-tive des règles du discours et au niveaudes principes dans leur caractère dedepassement. La double dimensionréelle correspond, au niveauprocédural à la nécessité desinstitutions, et au niveau des normesau fait que les règles sontindispensables.102

Na sua dupla vertente real estáimplícita a necessidade de ordem, seucaráter dogmático e a necessidade decerteza do Direito; na sua dupla ver-tente ideal, seu aspecto dinâmico, ocaráter argumentável e provisório detoda proposição jurídica.103 É nesta“dialética da ordem e da liberdade”104

que a tese do caso especial busca seinserir, procurando estabelecer umaligação entre esses dois aspectos semcair num extremo ou em outro. Nãoprocura nem sobrevalorizar o aspectoreal, caindo num legalismo rígido em que

101 Aqui, de novo, MacCormick, que expressa uma visão semelhante: “There must be aunity in practical reason as well as a diversity in its particular operation in special contexts.”MACCORMICK, Legal reasoning..., p.274.

102 ALEXY, Idée..., p.38.

103 O que também está por trás dessa distinção entre caráter real e ideal é que, se quisermosdar conta do fenômeno jurídico, devemos não vê-lo somente como algo pronto, acabado,coisificado, independente dos processos que dão lugar a sua criação. Nas palavras deLifante Vidal: “Al desatender el aspecto dinámico del Derecho [...], se olvida que un rasgoesencial de las prácticas sociales es precisamente que se encuentran permanentementeen construcción”. LIFANTE VIDAL, Isabel. Una crítica a un crítico del “no positivismo”.A propósito de “la tesis del caso especial y el positivismo jurídico”, de Alfonso GarcíaFigueroa. Doxa, n.23, p.709-728, 2000, p.726).

104 A expressão é de PERELMAN, Chaïm. Ética e direito. Tradução Maria ErmantinaGalvão. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p.281.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 91

o juiz é a boca da lei, nem o aspectoideal, caindo num principialismo arbi-trário em que o juiz toma o lugar dolegislador.105 A análise de qual deveprevalecer sobre qual será feita nopróximo ponto.

4.3 Tese da integração

O discurso jurídico, portanto, énecessário do ponto de vista do discursoprático geral, e é exigido por motivospráticos gerais a fim de realizar o prin-cípio da racionalidade discursiva. Entre-tanto, seria um erro pensar que o dis-curso jurídico acaba com todas as in-certezas existentes no discurso prático

geral e se torna independente dele. Muitopelo contrário, o discurso jurídico, apesarde reduzir o campo do discursivamentepossível sensivelmente, dificilmenteproduz, se operando somente por seustermos, uma única resposta. É dessalimitação que emerge a necessidade deintegração de argumentos práticos geraisna argumentação jurídica.

A questão que se analisará agora ésob que forma esses argumentos prá-ticos gerais106 entram na argumentaçãojurídica e em que sentido eles se har-monizam com os argumentos especifi-camente jurídicos. Segundo Alexy exis-tem, basicamente, três teorias diferen-tes para responder essa questão. Pela

105 Sobre a oscilação da argumentação jurídica entre rigidez e arbitrariedade, veja-seATRIA, Fernando. The irony of legal positivism (inédito), p.16-19.

106 A incerteza quanto a uma definição clara de discurso prático geral também se refleteno conceito de argumento prático geral. Segundo Alexy: “los argumentos prácticos gene-rales son argumentos no institucionales.” ALEXY, Robert. La tesis del caso especial,p.34. Isso é um tanto vago. O conceito fica mais claro ao deslindar-se onde eles sãonecessários. Segundo Alexy (ALEXY, Teoria da argumentação..., p.266), a argumentaçãoprática geral pode ser requerida (1) na justificação de premissas normativas necessáriaspara satisfazer as diferentes formas de argumento, (2) na justificação de uma escolhaentre diferentes formas de argumento que levam a diferentes resultados, (3) na justificaçãoe exame de proposições da dogmática jurídica, (4) na justificação de quaisquer casos dedistinguir ou prevalecer, e (5) diretamente na justificação de afirmações usadas na justificaçãointerna. Poderia-se ainda adicionar que argumentos práticos gerais são particularmenteimportantes no processamento de balanceamento de princípios: “moral arguments enterthe realm of legal discourse every time that someone undertakes a weighing of principles inorder to state what is postulated within a legal system.” PAVLAKOS, The special..., p.149.Argumentos práticos gerais, portanto, devem ser entendidos mais como “dogmas práticos”,que são necessários sempre que são feitos julgamentos de valor, que não podem serderivados do material normativo. Mas eles igualmente são necessários mesmo onde hámaterial normativo anterior. Isso fica mais evidente, por exemplo, na análise e crítica deconceitos da dogmática jurídica, como legítima defesa, terceiro, dever de informar, boa-fé...A abertura para argumentos práticos gerais é constitutiva de tais conceitos e, em todosesses casos, somente (ou principalmente) através desses argumentos é que é possívelesclarecê-los, criticá-los e reformulá-los (veja-se ALEXY, op. cit., p.250).

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 200792

tese da subordinação, sempre quehouver casos em que a solução nãopossa ser derivada conclusivamente dalei, o discurso jurídico não passa de umdiscurso prático geral por trás de umafachada jurídica. Já a tese da suple-mentação afirma que a argumentaçãojurídica só pode ir até uma parte docaminho, chegando a um ponto em queos argumentos especificamente jurídi-cos não estão mais disponíveis. É aquique deve intervir a argumentação prá-tica geral. A teoria adotada por Alexy,entretanto, afirma que argumentosespecificamente jurídicos e argumentospráticos gerais devem ser combinadosem todos os níveis e aplicados conjun-tamente.107 Essa é a tese da integra-ção.108 Segundo essa tese, no entanto,apesar de argumentos práticos geraisserem utilizados conjuntamente com

argumentos jurídicos, eles só entram naargumentação sob condições e formasespeciais, que aumentam consideravel-mente sua capacidade de determinação,devido, principalmente, à natureza insti-tucionalizada do discurso jurídico.

A necessidade de argumentos práti-cos gerais decorre igualmente da inca-pacidade do discurso jurídico de resolvertodos os problemas que lhe são propos-tos a partir de seu próprio universo. Oschamados “casos difíceis” constituemum bom exemplo de como muitas vezesé necessário chegar a uma conclusãoque não pode ser derivada logicamentedo conjunto de normas ou princípios.Nesses casos, o discurso jurídico cedeespaço ao discurso prático geral e seusprincípios.109 Isso não transforma a teseda integração na tese da suplementação:o discurso prático, do ponto de vista da

107 “Los argumentos no institucionales que están inmersos en las instituciones puedenser insertados, integrados y especificados tanto como se quiera, siempre y cuandocontinúen conservando lo que es esencial para ese tipo de argumentos: su carácter librey no institucional.” (ALEXY, La tesis..., p. 34. Embora tais argumentos sejam inseridos“tanto como se quiera”, eles não conformam, por si só, a decisão. Eles complementam emuitas vezes são imprescindíveis, mas a argumentação jurídica é caracterizada pelo uso epela decisão a partir de argumentos especificamente jurídicos, sempre que possível.

108 Um exemplo da tese da integração é a regra J.10, do seu código de razão jurídica: “todaproposição dogmática tem de ser justificada recorrendo-se ao menos a um argumento práticogeral sempre que seja objeto de dúvida.” (ALEXY, Teoria da argumentação..., p.252).

109 “Si l’on ne peut trouver une réponse à ces questions à l’aide des moyens spécifiquesdu droit, il ne reste que le recours au discours pratique général.” ALEXY, Idée..., p.33. Emsentido semelhante: “moral reasons can and must participate in the justification of legaldecisions when authoritative reasons run out.” ALEXY, The nature..., p.165. A questão dese tais julgamentos de valor tomados sem referência ao material normativo autorita-tivamente fixado são passíveis de controle e justificação racional é a questão central do“Teoria da Argumentação Jurídica”. Esse problema não será debatido em detalhes aqui,mas para Alexy esse controle pode ser feito ao que ele chama de código de razão jurídica,que se situa no interior de um, mais amplo, código de razão prática. Nesse sentido, ver

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 93

primeira, é necessário não somentequando o discurso jurídico não conseguefornecer uma resposta, mas em todosos momentos da argumentação.

Da mesma forma, a pretensão dejustificação no Direito, além de o conec-tar com a moral, cria uma dimensãocrítica que lhe dá um caráter ideal.Quem justifica algo, mesmo no contextode um discurso jurídico, da mesmaforma que pretende que sua afirmaçãoseja correta dentro desse contexto,igualmente espera, como já foi visto, queo próprio Direito seja racional. Emboraisso nem sempre possa acontecer, o fatode interpretações da lei há muito tempomantidas serem modificadas, decisõesserem revistas, leis criticadas, e mesmoalgumas decisões serem proferidascontra legem, denunciam o fatoevidente da falibilidade,110 e, portanto,da mutabilidade das interpretações.Essa dimensão de justificação leva anovos níveis, mais elevados, de justifi-cação, embora a provisoriedade dasdecisões sempre seja um componenteconstitutivo das mesmas. Isso não sig-nifica, obviamente, que as decisões

devem ser incessantemente revistas afim de serem alçadas a graus de jus-tificação mais elevados. O importante,aqui, é que através dessa pretensão écriada a possibilidade de surgirem con-tra-argumentos que podem ser melhorese eventualmente mudarem a prática dejustificação: “con ello se vuelve posibleuna crítica de la praxis de las decisionesdesde el punto de vista del derecho.”111

Isso só evidencia o que já foiressaltado e constitui um dos pilares datese do caso especial: o Direito édinâmico. Esse dinamismo reflete-se natese da integração de maneira clara.Porém, esse mesmo dinamismo, advin-do do caráter argumentável e livre doDireito, entra em conflito com a neces-sidade de segurança e certeza jurí-dica.112 É necessário que haja, portanto,no Direito, alguns elementos estabiliza-dores, que nem sejam rígidos o sufi-ciente a ponto de impedirem mudanças,nem flexíveis demais a ponto de com-prometerem a estabilidade do ordena-mento: esse é, em grande parte, um dospapéis da dogmática.

ALEXY, Teoria da argumentação..., p.293-299. Para uma crítica do código de razão jurídica,DWARS, Ingrid. La rationalité du discours pratique selon Robert Alexy. Archives dePhilosophie du Droit, v..32, p.291-304, 1987, p.302.

110 A falibilidade do Direito evidencia não só o seu caráter dinâmico, como também, comoaponta Peczenik, o faz moralmente aceitável: “whoever eliminates defeasibility from thelaw, must end up with a law open to moral criticism.” (PECZENIK, Aleksander. A theory oflegal doctrine. Ratio Juris, v.14, n.1, p.75-105, 2001, p.87).

111 ALEXY, El concepto..., p.126.

112 MacCormick procura resolver essa tensão exatamente através da tese do caso especial.Veja-se MACCORMICK, Neil. Retórica y estado de derecho. Isegoría, n.21, p.5-21, 1999.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 200794

Dogmatismo, no Direito, é mais doque “the inclination to identify the goalof our thinking with the point at whichwe have become tired of thinking”.113

Embora uma investigação maisdetalhada já tenha sido feita em outrolugar,114 é importante ressaltar queconceitos da dogmática jurídica não sãoonde a discussão necessariamentetermina, mas onde ela começa; elesfixam pontos de partida a partir dosquais avançamos, sem a necessidadede reabrir a discussão desde o início atodo momento.115 E, apesar de que emalgum momento, a fim de se alcançaruma decisão, a discussão terá que parar,isso não torna os dogmas em propo-sições irrefutáveis.116 A dogmática pos-sui esse duplo viés: por um lado, umavez aceita uma proposição, ela nãoprecisa ser retida por um período ilimi-tado; por outro, ela cria uma presunçãoa seu favor que pelo menos exclui o seu

simples abandono sem nenhuma razão:“a razão para a nova solução tem deser suficientemente forte para justificarnão só a nova solução, mas também orompimento da tradição.”117

Voltando ao ponto inicial, se ar-gumentos práticos gerais são neces-sários em todos os momentos da argu-mentação jurídica, isso não levaria a tesedo caso especial a enfrentar uma con-tradição? Pois a necessidade do discur-so jurídico é derivada exatamente dalimitação do discurso prático geral, quenão oferece pautas definitivas de con-duta. Argumentos práticos gerais, aoserem inseridos na argumentação jurí-dica, realmente levam com eles toda acarga de incerteza presente no discursoprático geral; esse paradoxo é, no en-tanto, aparente. Isso tanto pelo fato deque o discurso jurídico não se reduz aodiscurso prático geral como também àverdade clara e evidente de que o

113 Carta de Lessing para Mendelssohn de 9 de janeiro de 1771 apud STRAUSS, Leo.Natural right and history. Chicago: The University of Chicago, 1953, p.22.

114 ALEXY, Teoria da argumentação..., p.252-257.

115 Em sentido semelhante, Jeremy Waldron coloca que o jurista não se aproxima de seutópico como se ele fosse iniciar a discussão a partir do “Year Zero”: “more often [...], juristidentify a number of fixed points of existing doctrine which a good account [...] of the lawmust ‘fit’.” WALDRON, Law and..., p.5.

116 Muito pelo contrário: eles são sempre “derrotáveis” (defeasible). Isso porque arealidade que o Direito procura ordenar está em constante mudança, e continuamenteproduz casos difíceis, onde uma exceção a palavra da lei parece ser razoável. Como colocamuito bem Peczenick: “The main source of the defeasibility of legal rules is that our moralreason – which is behind all law – has a spontaneous capacity to find exceptions from oldrules, once life confronts us with new situations.” (PECZNENIK, A theory..., p.88).

117 ALEXY, op. cit., p.253. Em sentido semelhante, o princípio da inércia de PERELMAN,Ética..., passim.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 95

Direito nunca pode oferecer uma res-posta definitiva e cabal na resolução deconflitos práticos. Isso não o tornamenos racional, pois:

si la racionalidad fuera equiparadacon la certeza, ello daría origen a unaobjeción fundada. Sin embargo, tal noes el caso. La razón práctica no es deaquellas cosas que pueden serrealizadas sólo perfectamente o no enabsoluto. Es realizable aproximati-vamente y su realización suficiente nogarantiza ninguna correccióndefinitiva sino tan sólo relativa.118

As questões jurídicas nunca estãocompletamente encerradas, o que, porcerto, traz ao Direito um certo grau deinsegurança. Porém, “bajo las condi-ciones humanas no es posible superaresta medida de razón práctica en el de-recho.”119 Não é permitido, portanto,esperar do Direito mais certeza que elepode oferecer: assim como no homem,a vulnerabilidade120 e as incertezas deladecorrentes são essenciais na caracteri-zação também do Direito;121 ignorar es-te fato é possuir uma visão deturpadadas suas características mais fundamentais.

118 ALEXY, Sistema..., p.176. Em outras tradições esse fato também é reconhecido: “larazón práctica versa acerca de lo operable, que es singular y contingente, pero no acercade lo necesario, que es objeto propio de la razón especulativa. De aquí que las leyeshumanas no puedan gozar de la infalibilidad que tienen las conclusiones demostrativasde las ciencias. Pero no es necesario que toda medida sea completamente cierta e infalible;basta que lo sea en el grado posible dentro de su determinado orden de cosas.” (TOMÁSDE AQUINO. Summa teologica. Madrid: Editorial Católica, 1956. v.4, I-II, q. 91, a.3, adtertium. Para uma discussão mais aprofundada das semelhanças e diferenças entre SãoTomás de Aquino e Alexy, RENTTO, Aquinas and Alexy...).

119 ALEXY, Robert. Sistema jurídico y razón práctica. In: ALEXY, Robert. El concepto y lavalidez del derecho y otros ensayos, p.176.

120 Recorrendo ao paradigma que sustentou esse artigo, a ética do discurso, é interessantenotar que Habermas aponta a moral como fonte de equilíbrio dessa extremavulnerabilidade de sujeitos que se individuam à medida que se socializam. “Asinteracções sociais que formam o Eu também o ameaçam – através das dependências emque ele se implica e das contingências a que ele se expõe.” HABERMAS, Jürgen. LawrenceKohlberg e o neo-aristotelismo. In: HABERMAS, Jürgen. Comentários à ética do discurso.Tradução Gilda Lopes Encarnação. Lisboa: Instituto Piaget, 1991, p. 96. É nesse sentidoque é possível entender a moral “como um dispositivo de proteccção que compensa umavulnerabilidade estruturalmente instalada em formas de vida socio-culturais.”(HABERMAS, As objecções..., p.18.

121 Embora, e esse foi um dos principais pontos debatidos neste artigo, o Direito possuaelementos que reduzem (embora não eliminem) essa incerteza, como as condiçõeslimitadoras citadas e o fato de a argumentação jurídica ocorrer em formas especiais,segundo regras especiais e em condições especiais.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 200796

5. CONCLUSÃO

A tese do caso especial procuraconceitualizar uma intuição muitosimples e comum na reflexão jurídica:a de que o Direito não pode operarhermeticamente por seus própriostermos. Porém, o fato de a argu-mentação jurídica depender da argu-mentação prática geral não diz muitacoisa. É preciso especificar em que sen-tido ocorre essa dependência, quandoargumentos práticos gerais devem serinseridos na argumentação jurídica,como eles podem ser controlados equais conclusões podem-se deduzirdessa ligação.

Da mesma forma, apesar de sim-ples, não só ela nem sempre foi unânimeno Direito como também, ao refiná-la,

é possível fazer-se algumas reflexõesque não são tão triviais assim. Atravésda análise da teoria discursiva do Direitode Robert Alexy este artigo procuroutecer alguns comentários sobre a liga-ção da tese do caso especial com algunsdos temas mais importantes da teoriado Direito, como a relação entre Direitoe moral e entre Direito e razão prática.

Se esse ensaio e, obviamente, a te-se do caso especial, estiverem corretos,o Direito está conceitualmente conec-tado com a moral, a dependência dodiscurso jurídico para com o discursoprático geral ocorre a todo o momentoe em todos os níveis, e argumentos prá-ticos gerais devem ser integrados e inse-ridos a todo o momento na argumen-tação jurídica a fim de que essa nãoperca suas raízes na razão prática.

REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert. El concepto y la validezdel derecho. In: ALEXY, Robert. Elconcepto y la validez del derecho yotros ensayos. Tradução Jorge M.Seña. 2. ed. Barcelona: Gedisa, 1997.

______. Derechos, razonamiento jurí-dico y discurso racional. Isonomía,n. 1, p. 37-49, 1994.

______. Idée et structure d’un systèmedu droit rationnel. Archives dePhilosophie du Droit, v. 33, p. 23-38, 1988.

______. The nature of legal philoso-phy. Ratio Juris, v. 17, n. 2, p. 156-167, 2004.

______. On necessary relations betweenlaw and morality. Ratio Juris, v. 2,n. 2, p. 167-183, 1989.

______. Problemas da teoria do discurso.Revista Notícia do Direito Brasileiro,p. 244-259, 1996.

______. Resposta a alguns críticos.1996. Esse trabalho integra oposfácio da edição em português deALEXY, Robert. Teoria daargumentação jurídica: a teoria dodiscurso racional como teoria dajustificação jurídica. Tradução ZildaHutchinson Schild Silva. 2. ed. SãoPaulo: Landy, 2001. p. 301-324.

______. Sistema jurídico, principiosjurídicos y razón práctica. Doxa, n.5, p. 139-151, 1988.

______. Sistema jurídico y razónpráctica. In: ALEXY, Robert. Elconcepto y la validez del derecho y

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 97

otros ensayos. Tradução Jorge M.Seña. 2. ed. Barcelona: Gedisa, 1997.

______. A theory of legal argumentation:the theory of rational discourse astheory of legal justification. TraduçãoRuth Adler; Neil MacCormick.Oxford: Clarendon, 1989.

______. Teoría de los derechosfundamentales. Tradução ErnestoGarzón Valdés. Madrid: Centro deEstudios Constitucionales, 1997.

______. La tesis del caso especial.Isegoría, n. 21, p. 23-35, 1999.

______. On the thesis of a necessaryconnection between law andmorality: Bulygin’s critique. RatioJuris, v. 13, n. 2, p. 138-147, 2000.

______. Teoria da argumentaçãojurídica: a teoria do discurso racionalcomo teoria da justificação jurídica.Tradução Zilda Hutchinson SchildSilva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2001.

______. Una concepción teórico-discursiva de la razón práctica. In:ALEXY, Robert. El concepto y lavalidez del derecho y otros ensayos.Tradução Jorge M. Seña. 2. ed.Barcelona: Gedisa, 1997.

ARROYO, Juan Carlos Velasco. El lugarde la razón práctica en los discursosde aplicación de normas jurídicas.Isegoría, n. 21, 1999.

ATIENZA, Manuel. Entrevista a RobertAlexy. Doxa, n. 24, p. 671-687, 2001.

______. As razões do direito: teorias daargumentação jurídica. TraduçãoMaria Cristina Guimarães Cupertino.3. ed. São Paulo: Landy, 2003.

ATRIA, Fernando. The irony of legalpositivism. (Inédito).

ÁVILA, Humberto. Teoria dosprincípios: da definição à aplicação

dos princípios jurídicos. 4. ed. SãoPaulo: Malheiros, 2004.

BETEGÓN, Jerónimo. Sobre lapretendida corrección de lapretensión de corrección. Doxa, n.21-I, p. 171-192, 1998.

BIX, Brian. Questões na interpretaçãojurídica. In: MARMOR, Andrei.Direito e interpretação: ensaios defilosofia do direito. Tradução LuísCarlos Borges. São Paulo: MartinsFontes, 2004.

BULYGIN, Eugenio. Alexy’s thesis of thenecessary connection between lawand morality. Ratio Juris, v. 13, n. 2,p. 133-137, 2000.

DWARS, Ingrid. La rationalité dudiscours pratique selon Robert Alexy.Archives de Philosophie du Droit, v.32, p. 291-304, 1987.

FINNIS, John. Natural law and the ethicsof discourse. Ratio Juris, v. 12, n.4, p. 354-373. 1999.

GARCÍA FIGUEROA, Alfonso. El“derecho como argumentación” y elderecho para la argumentación:consideraciones metateóricas enrespuesta a Isabel Lifante. Doxa, n.24, p. 629-653, 2001.

______. La tesis del caso especial y elpositivismo jurídico. Doxa, n. 22, p.195-220, 1999.

GARZÓN VALDÉS, Ernesto. Algo másacerca de la relación entre derecho ymoral. Doxa, n. 8, p. 111-130, 1990.

GIANFORMAGGIO, Letizia. La nociónde procedimiento en la teoría de laargumentación jurídica. Doxa, n. 14,p. 159-167, 1993.

GÜNTHER, Klaus. A normativeconception of coherence for adiscursive theory of legal

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 200798

justification. Ratio Juris, v. 2, n. 2,p. 155-166, 1989.

______. Critical remarks on RobertAlexy’s “special-case thesis”. RatioJuris, v. 6, n. 2, p. 143-156, 1993.

HABERMAS, Jürgen. Acerca do usopragmático, ético e moral da razãoprática. In: HABERMAS, Jürgen.Comentários à ética do discurso.Tradução Gilda Lopes Encarnação.Lisboa: Instituto Piaget, 1991.

______. Comentários à ética do discurso.Tradução de Gilda Lopes Encarnação.Lisboa: Instituto Piaget, 1991.

______. Como é possível legitimidadeatravés da legalidade? In:HABERMAS, Jürgen. Direito emoral. Tradução Sandra Lippert.Lisboa: Instituto Piaget, 1992.

______. Direito e democracia: entrefacticidade e validade. Tradução Flá-vio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro:Tempo Brasileiro, 1997. v. 1.

______. Justiça e solidariedade: para umadiscussão acerca do “estádio 6”. In:HABERMAS, Jürgen. Comentários àética do discurso. Tradução GildaLopes Encarnação. Lisboa: InstitutoPiaget, 1991.

______. Lawrence Kohlberg e o neo-aristotelismo. In: HABERMAS, Jür-gen. Comentários à ética do discurso.Tradução Gilda Lopes Encarnação.Lisboa: Instituto Piaget, 1991.

______. As objecções de Hegel a Kanttambém se aplicam à ética dodiscurso? In: HABERMAS, Jürgen.Comentários à ética do discurso.Tradução Gilda Lopes Encarnação.Lisboa: Instituto Piaget, 1991.

______. Observaciones sobre elconcepto de acción comunicativa. In:HABERMAS, Jürgen. Teoría de la

acción comunicativa: complementosy estudios previos. Tradução deManuel Jimenéz Redondo. Madrid:Cátedra, 1989.

______. Qué significa pragmáticauniversal? 1976. In: HABERMAS,Jürgen. Teoría de la acción comuni-cativa: complementos y estudiosprevios. Tradução Manuel JimenézRedondo. Madrid: Cátedra, 1989.

______. A short reply. Ratio Juris, v. 12,n. 4, p. 445-453, 1999.

______. Teoría de la accióncomunicativa: racionalidad de laacción y racionalización social.Tradução Manuel Jimenéz Redondo.4. ed. Taurus. 1987.

LA TORRE, Massimo. Theories of legalargumentation and concepts of law.An approximation. Ratio Juris, v. 15,n. 4, p. 377-402, 2002.

LIFANTE VIDAL, Isabel. Una crítica aun crítico del “no positivismo”. Apropósito de “la tesis del casoespecial y el positivismo jurídico”, deAlfonso García Figueroa. Doxa, n.23, p. 709-728, 2000.

MACCORMICK, Neil. Legal reasoning andlegal theory. Oxford: Clarendon, 1978.

______. Retórica y estado de derecho.

Isegoría, n. 21, p. 5-21, 1999.

MICHELON JÚNIOR, CláudioFortunato. Aulas do curso de Históriado Pensamento Jurídico daFaculdade de Direito daUniversidade Federal do Rio Grandedo Sul, ministrado no primeirosemestre de 2005.

______. Being apart from reasons: astudy on the role of reasons in publicand private moral decision-making.Doctoral Thesis. University ofEdinburgh, 2000.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 99

PAVLAKOS, Georgios. The special casethesis. An assessment of R. Alexy’sdiscursive theory of law. Ratio Juris,v. 11, n. 2, p. 126-154, 1998.

PECZENIK, Aleksander. A theory of legaldoctrine. Ratio Juris, v. 14, n. 1, p.75-105, 2001.

PERELMAN, Chaïm. Ética e direito.Tradução Maria Ermantina Galvão.São Paulo: Martins Fontes, 1996.

RADBRUCH, Gustav. Arbitrariedad legaly derecho supralegal. In: RADBRUCH,Gustav. Relativismo y derecho.Tradução Luis Villar Borda. Santa Fede Bogotá: Editorial Temis, 1992.

RENTTO, J.-P. Aquinas and Alexy: aperennial view to discursive ethics.

The American Journal ofJurisprudence, p. 157-175, 1991.

STRAUSS, Leo. Natural right andhistory. Chicago: The University ofChicago, 1953.

TOMÁS DE AQUINO. Summa teologica.Madrid: Editorial Católica, 1956. v. 4.

TUORI, Kaarlo. Etica discursiva ylegitimidad del derecho. Doxa, n. 5,p. 47-67, 1988.

WALDRON, Jeremy. Law anddisagreement. Oxford: Clarendon,1999.

______. A dignidade da legislação.Tradução Luís Carlos Borges. SãoPaulo: Martins Fontes, 2003.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007100

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 101

O documento abaixo transcrito foi

entregue ao Presidente da República,

em reunião realizada no Palácio do

Planalto em 2 de agosto 2006, por

comissão de dez membros, entre os

quais quatro (4) ex-presidentes do

Conselho Federal da Ordem dos

Advogados do Brasil, constituída por

iniciativa da Secretaria de Relações

Institucionais da Presidência da

República. A minuta do texto, que, para

a conformação final do documento,

recebeu importantes contribuições dos

demais membros da comissão, foi de

minha autoria, tendo assumido, ao

mesmo tempo, a condição de relator

da mesma. Na sessão ordinária do dia

30 de outubro de 2006, o Pleno do

Carta pela valorização das comissões

parlamentares de inquérito

Eduardo Kroeff Machado Carrion*

Conselho Federal da Ordem dos

Advogados do Brasil proferiu, por

unanimidade, decisão “acolhendo os

termos do voto do eminente Conse-

lheiro Federal Alberto Zacharias

Toron, no sentido de que a OAB se

some à proposta pela ‘atualização e

modernização da normatividade

infraconstitucional com relação ao

funcionamento das Comissões Parla-

mentares de Inquérito’, propondo,

como alvitrado na ‘Carta Pela Valo-

rização das Comissões Parlamentares

de Inquérito’, que, “respeitadas as

competências constitucionais dos

Poderes da República, a matéria seja

discutida pelas entidades da sociedade

civil, pelos cidadãos em geral e seus

* Ex-diretor e professor titular de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da UFRGS.Leciona, atualmente, no Curso de Especialização em Direito Constitucional e na Faculdadede Direito da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul(FMP), bem como no Curso Oficial de Preparação à Magistratura do Trabalho da FundaçãoEscola da Magistratura do Trabalho/RS (FEMARGS).

NOTA EXPLICATIVA

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007102

representantes políticos” (Ofício

COP/213/2006 dirigido, em 20 de

novembro de 2006, pelo Presidentedo Conselho Federal da OAB, Dr.

Roberto Antonio Busato, ao Ministro

de Estado Chefe da Secretaria de

Relações Institucionais, Dr. Tarso

Genro). Em seu voto, o Conselheiro

Federal Alberto Zacharias Toron,

designado relator, entre outras

observações, salienta: “De minha

parte penso que o documento

apresentado para análise deste E.

Conselho é dessas peças que não

merecem nenhum retoque ou acrés-

cimo. Mais: entusiasticamente a

subscreveria e, por igual, concla-

maria este Conselho a fazê-lo”.

Acrescenta ainda: “O quanto regis-

trado, por si só, já recomendaria

encampar a idéia consolidada no

documento em exame, qual seja,

sobre a necessidade de atualização

e modernização da legislação que

regula o funcionamento das CPIs”.

E conclui: “Por estas e muitas outras

razões que poderiam ser alinha-

vadas, opino no sentido de que a

OAB se some à proposta pela ‘atua-

lização e modernização da norma-

tividade infraconstitucional com rela-

ção ao funcionamento das Comissões

Parlamentares de Inquérito’, propondo,

como alvitrado no documento, que,

respeitadas as competências

constitucionais dos Poderes da

República, a matéria seja discutida

pelas entidades da sociedade civil,

pelos cidadãos em geral e seus

representantes políticos”. EKMC

Excelentíssimo Senhor Luiz Inácio Lulada Silva

Digníssimo Presidente da RepúblicaFederativa do Brasil

Assunto: Carta Pela Valorização dasComissões Parlamentares de Inquérito

Excelentíssimo Senhor Presidente daRepública,

As Comissões Parlamentares deInquérito (CPIs), previstas no § 3º do artigo58 da Constituição, são um instrumentoimportante do controle parlamentar daAdministração Pública. Embora alegislação seja uma incumbência essencialdo Poder Legislativo, o controle torna-secrescentemente uma de suas principais

atribuições, favorecendo igualmente ummelhor equilíbrio e colaboração entre osPoderes, a responsabilização do Executivoe a transparência da Administração Pública.Podendo ser criadas “pela Câmara dosDeputados e pelo Senado Federal, emconjunto ou separadamente, medianterequerimento de um terço de seusmembros”, as Comissões Parlamentares deInquérito, sem deixarem de ser umaemanação e representação do órgão,expressam também o poder e o papel dasminorias parlamentares, eventualmente daprópria oposição, que exercem uma funçãoindispensável na cena política democrática.

A origem histórica das ComissõesParlamentares de Inquérito remonta pelomenos ao século XVII na Inglaterra, algunsapontando mesmo suas raízes no século

A CARTA

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 103

XIV. Desde então, os mais diversos regimespolíticos democráticos recepcionaram, sobdiferentes denominações e distintasmodalidades, as Comissões Parlamentaresde Inquérito em suas Constituições.Revestem-se elas, assim, de dignidade eimportância democráticas, tal como temensinado a prática histórica.

No Brasil, a Constituição de 1934 foi aprimeira a expressamente prever asComissões Parlamentares de Inquérito. Apartir de então, salvo o interregno dasexperiências autoritárias, o instituto temsido aperfeiçoado. A Constituição de 1988,significando novos tempos e reconhecendosua importância, ampliou o papel e asatribuições das Comissões Parlamentaresde Inquérito, em correspondência, aliás,com a ampliação do papel e das atribuiçõesdo Congresso Nacional. Passaram, assim, ater “poderes de investigação próprios dasautoridades judiciais, além de outrosprevistos nos regimentos das respectivasCasas”, devendo, entretanto, ser semprerespeitada a competência exclusiva doPoder Judiciário para a prática de determi-nados atos, a denominada “cláusula dereserva jurisdicional”. Com o novo regimeconstitucional, sucessivas ComissõesParlamentares de Inquérito foraminstaladas, nas mais diversas áreas daatividade social, a denotar sua presençacada vez mais marcante na vida políticanacional. A título de exemplo, cabe lembrara CPI do Caso Collor (1992), a CPI doOrçamento (1993), a CPI dos Precatórios(1997), a CPI dos Bancos (1999), a CPI doJudiciário (1999), a CPI do Narcotráfico(1999/2000), a CPI do Roubo de Cargas(2000/2002), sem referir as mais recentes.

Reconhecida e ressaltada a importânciadas Comissões Parlamentares de Inquérito,convém sempre lembrar que devem elas, noexercício de suas atribuições, submeter-seao império da lei e, em especial, da

Constituição. Por isso mesmo, já de há muitoe reiteradamente, tem agido, quandoprovocado, o Supremo Tribunal Federal(STF) no sentido de definir as faculdades elimites constitucionais das ComissõesParlamentares de Inquérito. Nesseparticular, cabe destacar o Acórdãoprolatado pelo Plenário do STF no MS nº23.452-1-RJ, relator o Ministro Celso deMello, paradigmático em grande parte.

Antes de tudo, hão de pautar-sepelo princípio da finalidade. No caso,significa uma investigação para “apuraçãode fato determinado”. Isso não impedeque possam, as Comissões Parlamentaresde Inquérito, no decorrer de suasinvestigações, debruçar-se, nem que sejasob a forma de aditamento, sobre fatosnovos que guardem conexão ou íntimaligação com os fatos apurados. Mas nãopodem, desviar o foco e mudar o rumo dasinvestigações, com o risco ainda de perder-se no emaranhado de temas trazidos aexame. Da mesma forma, embora possamproporcionar momento de exercício agudoda disputa política, não podem transformar-se em elemento rasteiro da luta políticaconjuntural, contrariando seus altosobjetivos institucionais, tal como se deduzdo texto constitucional.

Destaque especial deve ser dado aosdireitos do cidadão. Inadmissível que asComissões Parlamentares de Inquérito setransformem em instrumento de abusos edevassas contra particulares, atentandocontra direitos constitucionais, máximequando inexistente nexo causal com os fatosapurados. Muitas vezes, a intimidade daspessoas e das famílias, assim como osnegócios particulares do cidadão sãolevados a público, sem respeito a quaisquerlimites. Quando se fala em direitos docidadão, fala-se igualmente em direitos dedefesa do cidadão e, portanto, emprerrogativas de seus advogados, tal como,

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007104

aliás, vem sendo reiteradamentereconhecido pelo STF.

Tão ou mais importante do que opedido de responsabilização civil e criminaldos infratores, tal como previsto no textoconstitucional, talvez sejam os resultadose as propostas de aperfeiçoamento dasinstituições e de medidas, administrativase legislativas, de prevenção com relação aeventuais futuras infrações. Nesse sentido,importante que os relatórios finais dasComissões Parlamentares de Inquéritoconcluam-se sempre por propostas legisla-tivas, quando isso for necessário ou conve-niente para o resguardo do interesse público.

Seguramente, obedecidos parâmetrosmínimos em sua atuação, as ComissõesParlamentares de Inquérito poderão cadavez mais contribuir para o aperfeiçoamentodas instituições e para o processo demo-crático, legitimando-se crescentementejunto à sociedade e à cidadania.

Atualmente, regem, no plano infra-constitucional, o funcionamento e a atuaçãodas Comissões Parlamentares de Inquérito,a Lei nº 1.579 de 18/03/1952, alterada pelaLei nº 10.679 de 23/05/2003, a Lei nº 10.001de 04/09/2000, bem como as normasregimentais: Regimento Interno da Câmarados Deputados, Regimento Interno doSenado Federal e Regimento Comum doCongresso Nacional.

Desde 1952, quando da edição da Leinº 1.579, já houve uma rica experiênciaacumulada com relação às ComissõesParlamentares de Inquérito, que aponta paraa oportunidade de um aperfeiçoamento dalegislação vigente. Aliás, por iniciativa daatual Presidência do STF, está se conso-lidando a jurisprudência de nosso TribunalConstitucional com referência ao tema.

A atualização e modernização danormatividade infraconstitucional comrelação ao funcionamento das ComissõesParlamentares de Inquérito, sem que issopossa significar qualquer limitação ao seuimportante papel institucional na vidademocrática, podem representar um fator deprogresso, evitando ademais conflitosdesnecessários entre os Poderes da Repú-blica. Respeitando as competências cons-titucionais dos Poderes da República, doExecutivo, que poderá tomar a iniciativa deum projeto de lei e que terá ainda a responsa-bilidade da sanção, do Legislativo, a quemcabe finalmente discutir e deliberar, seria detodo conveniente que o debate se tornassepúblico, trazendo assim a colaboração dosmais diversos segmentos e setores.

Vossa Excelência, na condição de chefedo Poder Executivo da República Federativado Brasil, poderia propiciar, em conjunto eharmonia com as Chefias dos demaispoderes, iniciativas neste sentido.

Esse, Excelentíssimo Senhor Presidenteda República, nosso entendimento sobre amatéria e nossa despretensiosa colaboraçãopara o aperfeiçoamento das instituiçõesrepublicanas e democráticas.

Atenciosamente,

Américo LacombeDalmo de Abreu DallariEduardo Kroeff Machado CarrionEduardo Seabra FagundesHermann Assis BaetaLuis Carlos MadeiraMarcelo Lavenère MachadoOvídio Rocha Barros SandovalReginaldo Oscar de CastroRoberto de Figueiredo Caldas

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 105

INTRODUÇÃO

Ao se falar em adoção, pensamoslogo nos procedimentos que levarão aoenvolvimento entre uma criançaabandonada ou retirada dos pais e umcasal impotente desejoso de ter filhos.Também emerge em nosso imaginárioa idéia de solução ao problema da criançaem situação de risco, criança na rua,vulnerável, sofredora de maus tratos ounegligenciada pelos pais. Porém, aadoção nem sempre corresponde a estavaga idéia que se faz, um tanto clássicae romântica, de uma infância idílica, queencontra, de uma forma ou de outra,uma saída ou salvação social, cujaimagem está impressa em nossoinconsciente, e, por tantas vezes, vemretratada em filmes. É uma instituiçãoque perpassa os tempos, desde os maisremotos da história do homem, mas não

Família e adoção no

melhor interesse da criança

Haikel Weidner Maluf*

se mostra de uma forma estática, poisvaria de acordo com as concepções defamília e infância e as relações que setecem com o Estado e a sociedade.

Temos, pois, de nos valer de múltiploscampos de conhecimento que nospermitirão visualizar o instituto daadoção, com o maior número de efeitossubjacentes a fim de abordá-lo de umaforma conveniente, isto é, com o maisamplo leque de significados que omesmo pode ter.

Considerando-se a variedade deenfoques que o tema suscita (tais como:a questão da perda do poder familiar,ou caracterização da situação deabandono da criança; a criação dovínculo com a família substituta; asformas irregulares de adoção; a adoçãointernacional; adoção por homossexuais;a (im)possibilidade de o adotado co-nhecer seus pais biológicos, etc), faz-se

* Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007106

necessário delimitar a abordagempretendida, ou seja, estabelecer por qualviés percorrerá o presente artigo.

Com efeito, a legislação acerca daadoção introduzida pelo Estatuto daCriança e do Adolescente (Lei 8.069/1990) e agora praticamente reiteradano Código Civil de 2002, reflete osprincípios que foram consagrados peloreferido estatuto, tratando a criança eo adolescente como sujeitos de todos

os direitos fundamentais inerentes à

pessoa (art. 3º), a partir da doutrina daproteção integral. O debate em tornodessa legislação vem causando polê-mica não só entre os profissionais daárea do direito, mas mobilizando intelec-tuais de diversas áreas de conhecimento,uma vez que sua incidência temimportante conotação social, abran-gendo aspectos socioculturais, psicoló-gicos, éticos, religiosos e morais.

Como características importantesdesta nova legislação, mais que afinalidade em satisfazer casais ou pessoassozinhas, dando-lhes o que a naturezanão permitiu, tem-se a orientação centralem conseguir um lar às crianças emsituação de vulnerabilidade social eeconômica. Em nome do interesse dacriança e do adolescente, com o fim detratá-los de forma mais digna, modi-ficam-se as concepções em relação àcriança, por conseqüência, uma novaterminologia é adotada: abandona-se otermo “menor”, carregado de precon-ceito e estigma, para se referir ora às

crianças abandonadas, órfãos e pobres,ora a delinqüentes, ligados ao mundo docrime, da contravenção e da infração,passando a se referir a “crianças de rua”e “crianças na rua”, “crianças em situaçãode risco”, ou “crianças em situação devulnerabilidade social e econômica”.

Sobre os princípios norteadores daadoção, os autores são uníssonos emidentificá-la aos princípios constitucionaisda prioridade absoluta da criança e daigualdade entre os filhos. CláudiaFonseca ainda identifica um terceiroprincípio emergente, conforme refere:

Vemos então na evolução dalegislação a emergência de trêsprincípios “modernos”: além dacentralidade do bem-estar da criança,aparecem claramente os princípios deigualdade (dos filhos da família) e daliberdade individual (os pais adotivosimpõem a criança aos membros de sualinhagem consangüínea quer estesqueiram ou não).1

Neste contexto, não se pode deixarde referir que a Lei nº 8.069/90 é normaregulamentadora da ConstituiçãoFederal, que em seu art. 227 determina:

Art 227 – É dever da família, dasociedade e do Estado assegurar àcriança e ao adolescente, com absolutaprioridade, o direito à vida, à saúde, àalimentação, à educação, ao lazer, àprofissionalização, à cultura, àdignidade, ao respeito, à liberdade e àconvivência familiar e comunitária, além

1 FONSECA, Cláudia. Caminhos da adoção. São Paulo: Cortez, 1995, p.123.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 107

de colocá-los a salvo de toda forma denegligência, discriminação, exploração,violência, crueldade e opressão.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

§5º - A adoção será assistida peloPoder Público, na forma da lei, queestabelecerá casos e condições de suaefetivação por parte de estrangeiros.§6º - Os filhos, havidos ou não darelação do casamento, ou por adoção,terão os mesmos direitos e qualifica-ções, proibidas quaisquer designaçõesdiscriminatórias relativas à filiação.

Trata-se, dessa forma, de conceberum conjunto de regras que se coadunamcom o princípio geral no qual a criançae o adolescente passam a ser vistoscomo sujeitos de direitos, isto é,detentores de direitos que os colocamna condição de pessoa. Redefine-se opapel do Poder Público, que passa daesfera de órgão responsável pela tutelada criança em estado irregular,conforme a doutrina da situaçãoirregular que embasa o Código deMenores de 1979, para uma função deproteção e garantia dos direitos dascrianças e dos adolescentes, conformea doutrina da proteção integral.

No que concerne à regularizaçãoestabelecida pelo Estatuto da Criançae do Adolescente, observa-se ainda umadistinção particularmente importante emrelação à legislação anterior: “Art. 43– A adoção será deferida quandoapresentar reais vantagens para o ado-

tando e fundar-se em motivos legítimos”,ainda em voga em nosso entenderapesar de o Novo Código Civil, em seuart. 1625, ter reduzido para apenas umcritério, substituindo a expressão reaisvantagens por efetivo benefício.

A existência de motivos legítimos

como condição para o deferimento daadoção remete fundamentalmente àintenção do adotante e sua correspon-dência com os princípios gerais do ECAe a garantia do bem-estar do menor. Aexpressão “motivos legítimos” comocondição para a adoção foi desenvolvidapor Sandra Maria Lisboa (1996).Segundo ela, ao buscar os motivos dopedido, o juiz tem o papel de encontrarnas intenções do adotante os finspróprios do instituto, prevalecendo obem-estar da criança e do adolescente.2

Já a expressão reais vantagens serefere à necessidade de se resguardarprioritariamente os interesses da criançadiante dos demais sujeitos envolvidos.Estas prerrogativas reforçam o jáconstante no art. 29, segundo o qual:“Não se deferirá colocação em famíliasubstituta a pessoa que revele, porqualquer modo, incompatibilidade coma natureza da medida ou não ofereçaambiente familiar adequado.”

A doutrina e jurisprudência vêm, empassos largos, sopesando as dificuldadese contradições do sistema, de modo atorná-lo eficaz , isto é, atingir o fimprecípuo de colocar a criança em

2 LISBOA, Sandra Maria. A adoção no estatuto da criança e do adolescente: doutrinae jurisprudência. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p.63.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007108

família, observados os princípios domaior interesse da criança e seusdesdobramentos, conforme já referido.A preocupação em aprofundar o estudoacerca da caracterização do que sãoreais vantagens e motivos legítimos,pois, tem sua importância na medida emque são inúmeras as dificuldades quepodem emergir quando da caracteri-zação do ambiente sociocultural,econômico, etc, em que será inserido oadotando. Neste sentido, cabe àautoridade judicial o poder/dever deaveriguação, já que a adoção de criançaou de adolescente, conforme dispõe oart. 1623 do Código Civil, necessaria-mente passa por processo judicial.

O problema que se examina é deque maneira vem sendo abordado pelosdoutrinadores e pela jurisprudência oprincípio do maior interesse da criançae como têm sido asseguradas as reais

vantagens ou efeitos benéficos aoadotando no processo de adoção quandodiante de uma situação não prevista, ouseja, quando o procedimento decolocação em família substituta não sedeu na via judicial e não observados ospassos prescritos na lei.

Sugere-se que, em nome do bem-estar da criança, muitas vezes tem sidodesconsiderado pela autoridade judicialo contexto psicológico e social em que

está inserida a criança, circunstânciaque pode ser decorrência da rigidez danorma, que opta pelo sistema de“adoção fechada” que, de acordo comMaria Antonieta Pisano Motta:

[...] é o modelo de adoçãonormalmente praticado em nosso país.Refere-se à confidencialidade total.Nele a mãe biológica e os pais adotivosnão têm nenhum contato nem trocamqualquer informação. A interaçãofutura entre a mãe biológica e acriança não tem previsão legal. Os paisbiológicos deixam de existir ou de terimportância de qualquer ordem, parao desenvolvimento da criança.3

Ao ter como premissa básica aconsideração da equiparação da famíliaadotiva com a família “natural”, demaneira única e irrevogável, parecendo,em princípio, representar um avanço pordar fim a qualquer distinção entre filhosnaturais e adotivos, o estabelecimentoda adoção plena como forma única,conforme refere Cláudia Fonseca4 estáligada à noção de família moderna ereflete um determinado contexto histórico,questionando a pesquisadora se ela levaem consideração a importância da redefamiliar na realidade brasileira.

Mesmo não desconhecendo aprescrição do art. 167 da Lei nº 8069/90, que possibilita à autoridade judiciária

3 MOTTA, Maria Antonieta Pisano. “Adoção pronta X adoção pelo cadastro” In: LEITE,Eduardo de Oliveira (coord.). Adoção: aspectos jurídicos e metajurídicos. Rio de Janeiro:Forense, 2005, p.251.

4 FONSECA, Cláudia. Op cit, p.126.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 109

auxiliar-se do trabalho de assistentessociais e psicólogos envolvidos junto àVara da Infância e da Juventude, supõe-se que no âmbito processual não hácondições de auferir a real situaçãopessoal, social e econômica querecomenda a lei para fazer frente aoimpacto que o processo de adoçãoimplica não só ao adotando como aoadotante, tendo-se claro que nem todasas pessoas têm capacidade paraassumir e criar uma criança ou tratarcom um adolescente.

1. CONCEPÇÕES DE FAMÍLIA EFILIAÇÃO NA ESFERA JURÍDICA

A colocação da criança em famíliaé o centro das preocupações do legisladorquando refere o maior interesse emtermos da adoção. Faz-se necessário,pois, situar a família no tempo e espaço,considerando os aspectos históricos,sociais e jurídicos. A família aqui nãosó vista enquanto núcleo de primeiroconvívio social, no seio do qual a criançaserá formada, fonte de proteção,segurança, acolhimento, carinho, amor,pertencimento, necessários para suaestruturação pessoal, mas também doponto de vista jurídico formal, que nemsempre traduz aquela primeira acepção,mas com ela interage e se transforma.

Além de ser o lugar onde sedesenvolve a pessoa, na sociedademoderna ocidental, conforme enfatizou

o professor civilista Perlingieri,5 afamília é um valor constitucionalmentegarantido, não contrariando os valoresque regem a sociedade civil, e tendo afinalidade precípua de prover aeducação e promover os sujeitos a elapertencentes. A noção de família, então,é potencializada enquanto o locus

privilegiado de manutenção e repro-dução de valores sociais, recebendo, emcontrapartida, a tutela do Estado.

De acordo com o doutrinador, operfil consensual e o afeto são osdenominadores comuns do núcleofamiliar. O merecimento da tutela nãose restringe às questões de sangue, massobretudo às afetivas. Dentro disto,garante-se através da adoção aosmenores desprovidos deste convíviocomunal de afeto, por nunca terem tidoou por terem perdido, a possibilidade deuma estável relação de filiação, com amesma dignidade da família consangüínea,conforme também refere a constituição.

A formação familiar é digna detutela, contudo, somente se em seuinterior forem respeitados os valores deigual dignidade, moral e jurídica entreseus componentes e a democracia,traduzida esta na igualdade entre seusmembros, que agregados à solidarie-dade, compõem o rol dos direitos edeveres inerentes à família.

Não só à família é observada estacondição, mas é uma exigência aqualquer comunidade integrada na

5 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Tradução de Maria Cristina de Cicco. Riode Janeiro: Renovar, 1999, p.244.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007110

sociedade civil. Há nexo entre ascomunidades que intermediam arelação do indivíduo com o Estado, quese baseia no respeito ao pluralismo. Nafamília, estes princípios se traduzem naigualdade moral e jurídica dos cônjugese na igual dignidade dos filhos.

À noção restritiva de família atentaexclusivamente na relação entre oscônjuges, justificada pelo aspecto eco-nômico de maximização da capacidadede renda, passa-se, pois, ao princípio dodireito do menor à família estendido aodireito de qualquer pessoa a ter família,isto é, desloca-se a problemática dafamília do âmbito patrimonial para oâmbito dos direitos fundamentais dapessoa. O reconhecimento da paternidadesocioafetiva insere o instituto da adoçãoneste contexto da família eudemonista.

Conforme enfatiza Fachin,6 noséculo XX, vigorou o critério da consan-güinidade na definição de família.Citando Clóvis Bevilaqua, arremata adefinição de família então vigente comosendo “o conjunto de pessoas ligadaspelo vínculo da consangüinidade”.

Porém, nem sempre o fator daconsangüinidade legitima uma situaçãode parentesco e nem todo o parentesco

é definido em razão de relaçãoconsangüínea. Ilustra-se a primeira coma inviabilidade do reconhecimento dafiliação dos filhos naturais, isto éconsangüíneos, tidos de relaçõesextraconjugais na vigência do CódigoCivil de 1916 até o advento da Lei nº7.250/84, que alterou a Lei nº 883/49,permitindo o reconhecimento do filhotido fora do casamento pelo cônjugeseparado de fato há mais de cinco anos.7

A Constituição Federal de 1988, aoreconhecer o status de família à uniãoestável, através do parágrafo 3º do art.226, efetuou louvável avanço à noçãoaté então em voga que reduzia a famíliaàquela situação típica de casamento eda necessária existência de prole. Nodizer de Genofre,8 entre os juristasconservadores, o reconhecimento datutela do Estado à família provenientedo concubinato sofreu duas críticas, quereproduzo a seguir:

a) O discriminatório conceito de que,sem prole, sem filhos, não há família,foi defendido por famosos doutrina-dores, como Clóvis Bevilácqua, queprelecionava: “designam-se porfamília, somente os cônjuges e arespectiva progênie”; Sá Pereira: “Só

6 FACHIN, Luiz Edson. Da paternidade: relação biológica e afetiva. Belo Horizonte:Del Rey, 1996, p.21 e ss.7 FACHIN, Luiz Edson. Op. cit, p.23, faz referência à decisão do Superior Tribunal deJustiça, mencionando a limiar abertura das portas dos Tribunais à permissão doreconhecimento do filho havido fora do matrimônio, ilustrando com decisão do RecursoEspecial nº 1109, baseando-se na lei citada.8 GENOFRE, Roberto Maurício. Família: uma leitura jurídica. In: CARVALHO, Maria doCarmo Brant de (org.). A família contemporânea em debate. 3. ed. São Paulo: EDUC/Cortez, 2000, p.99.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 111

será possível se falar em família, querno campo jurídico, quer na ciência,quando se estiver diante de coisas,pessoas ou idéias ligadas por filiação.b) No tocante ao concubinato, ascríticas prosseguem: Pontes deMiranda: “o concubinato não constitui,no Direito brasileiro, instituição doDireito de Família”.

Para estes e outros juristas citadospor Genofre, a família legítima restouenfraquecida com o advento daConstituição de 1988. Porém, operou-se uma mudança de paradigma emrelação ao conceito de família legítima,resultando no reconhecimento darelevância jurídica da família natural,isto é, aquela não-fundada no casa-mento (gize-se que o problema é decostume e não de lei e não caberia aolegislador manter uma situação jásuperada de fato).

Ademais, a revogação da vedaçãoda legitimação do filho natural, bemcomo o princípio da igualdade entre oscônjuges e da igualdade entre os filhos,vão alterar a estrutura da família, dando-lhe novas roupagens, revelado sobretudono reconhecimento prioritário do vín-culo afetivo, conforme vem se orien-tando a jurisprudência nas questõesreferentes aos litígios sobre a adoçãoentre os pretendentes adotantes com osgenitores biológicos.

De outra banda, as novas formasda tecnologia genética, propiciandocerteza quase que inequívoca da filiaçãoatravés dos exames de DNA, revitaliza,por isso mesmo, o respeito à filiaçãobiológica, que ganha novo fôlego nasúltimas décadas. Neste sentido, comsagaz sutileza que lhe é comum, aantropóloga professora CláudiaFonseca9 bem sintetizou a implicaçãodo avanço das técnicas de DNA nasrelações de parentesco, pontuando que:

Enquanto a legitimidade versusilegitimidade era a dicotomia reinanteda era pré-contemporânea (separandoesposas de concubinas, filhos legítimosde bastardos), o sistema atual declassificação tem acentuado a divisãoentre parentes “eletivos” e osconsangüíneos (Ouellette, 1998). Ditode outra forma, a tendência atual é decomparar o “parentesco de escolha”(baseado acima de tudo na afeiçãomútua), com o parentesco baseadonaquilo que é percebido como os fatosimutáveis da biologia. O maisintrigante na atual configuração é queambos os termos da equação – tanto asafinidades eletivas quanto os dadosbiológicos – são altamente valorizados.

Segundo a autora supra citada, aocolocar a afeição como centro, afamília nuclear está em desmistificação,com a redefinição das rígidas convenções

9 FONSECA, Cláudia. A vingança de Capitu: DNA, escolha e destino na família brasileiracontemporânea. In BRUSCHINI, Cristina; UNBEGAUM, Sandra G. (Org.) Gênero,democracia e sociedade brasileira. São Paulo, Fundação Carlos Chagas, 2002, p.271.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007112

morais por valores centrados na buscapela auto-realização e satisfaçãoemocional, mitigando a concepção deruptura causada pelo descasamento,tratado como “extensão normal dosvalores da família moderna”, desmisti-ficando a máxima freudiana de queproduz infelicidade às crianças. Poroutro lado há um recrudescimento dasconcepções biológicas de parentesco,conforme assinala a professora:

[...] durante as últimas décadas, houveuma recrudescência também dasconcepções biológicas de parentesco.“O sangue é mais espesso do que aágua” é um adágio de extremaimportância no modo euro-americanode pensar as relações de parentesco.[...] Enquanto a família de “escolha”descrita acima parece enquadrar olugar da família no âmbito de umacultura moldada pelo homem, a noçãode sangue, com toda a sua conotaçãogenética, faz com que a família recaianos imutáveis fatos da natureza”.10

Exemplos disto, diz a autora, seriamas freqüentes buscas efetuadas pelascrianças adotadas pelo conhecimentodas origens genealógicas ou astentativas de gerar filhos com vínculosbiológicos entre parceiras do mesmosexo, através de dolorosas técnicas dedoação de óvulo ao útero da outra.

A família evolui e confunde-se coma história. E como tal é dinâmica. Esta

dinamicidade permite que identifi-quemos hoje uma multiplicidade deconfigurações familiares, algumas delasjá devidamente reconhecidas legalmentecomo a união estável e a monopa-rentalidade. Dentre todas estas formas,contudo, resta um denominador comum,bem traduzido por Hironaka,11 nas linhasque seguem:

Mudam os costumes, mudam oshomens, muda a história; só parecenão mudar esta verdade, vale dizer, aatávica necessidade que cada um denós sente de saber que, em algumlugar, encontra-se o seu porto e o seurefúgio, isto é, o seio de sua família,este locus que se renova sempre comoponto de referência central doindivíduo na sociedade; uma espéciede aspiração à solidariedade e àsegurança que dificilmente pode sersubstituída por qualquer outra formade convivência social.

2. A ADOÇÃO

Levando em consideração o fato deque a adoção é constituída no sistemalegal brasileiro necessariamente atravésde sentença, ainda que abundem oscasos em que ocorrem ao arrepio dalei, através de registro direto ou dasimples entrega da criança à famíliasubstituta, com vista à posteriorregulamentação ou não, assume umasingular importância o exame minucioso

10 Id. Ibidem, p.273.

11 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Família e casamento em evolução.Revista Brasileira de Direito de Família, n 1/7, abril e junho de 1999.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 113

da legislação. Retomando a inserçãolegislativa do instituto, lembramos que,em âmbito constitucional: 1) o direito àconvivência familiar é garantido (art.227, caput, da CF); 2) o Estado temque assegurá-lo, isto é, promovê-lo.Contudo, pouco tem sido feito emrelação à sorte das crianças que, porfatores diversos, acabam em internatose por lá permanecem até atingirem amaioridade. Em razão disto, pode-sedizer que as práticas de entrega ouempréstimo dos filhos são mais eficazesdo que o procedimento formal de adoçãopara satisfazer o ideal de colocação detoda criança em família.

Ao eleger a legislação uma formaideal de convivência que define comofamiliar, não exclui outras formas nãopreconcebidas em lei. Vê-se que pormuito tempo não era reconhecida aunião estável como formadora do vínculofamiliar, mas nem por isso deixou de serexpressiva esta manifestação, acabandopor ser reconhecida legalmente.

Também a adoção deve ser tomadacomo uma instituição, que se manifestaàs vezes de forma tangencial à lei, comono caso da adoção à brasileira,12 àsvezes de forma displicente com a lei,como na adoção irregular,13 ou até

mesmo como forma contrária à lei,através de seqüestros ou roubos decrianças de enfermaria, submetidas, ounão, à legitimação pelo judiciário. Osjulgadores têm sido sensíveis aoreconhecer a adoção informal socioafe-tiva como forma suficiente para conferiro estado de filho adotivo, comodemonstra a ementa a seguir descrita:

EMENTA: AÇÃO DECLARATÓRIA.ADOÇÃO INFORMAL. PRETENSÃOAO RECONHECIMENTO. PATERNI-DADE AFETIVA. POSSE DO ESTADODE FILHO. PRINCÍPIO DA APA-RÊNCIA. ESTADO DE FILHOAFETIVO. INVESTIGAÇÃO DEPATERNIDADE SOCIOAFETIVA.PRINCÍPIOS DA SOLIDARIEDADEHUMANA E DIGNIDADE DA PESSOAHUMANA. ATIVISMO JUDICIAL. JUIZDE FAMÍLIA. DECLARAÇÃO DAPATERNIDADE. REGISTRO. A pater-nidade sociológica é um ato de opção,fundando-se na liberdade de escolhade quem ama e tem afeto, o que nãoacontece, às vezes, com quem apenas éa fonte geratriz. Embora o ideal seja aconcentração entre as paternidadesjurídica, biológica e socioafetiva, oreconhecimento da última não significao desapreço à biologização, masatenção aos novos paradigmasoriundos da instituição das entidades

12 Utilizo-me aqui do esclarecedor artigo de ALMEIDA, Júlio Alfredo de. Adoção intuitupersonae – uma proposta de agir. Revista do Ministério Público do Rio Grande do Sul,nº 54 – outubro de 2004 a abril/2005, p.197, em que define: “Como adoção à brasileira,deve ser entendida a situação em que alguém procede ao registro do nascimento e umacriança como se genitor biológico fosse.”

13 “Já adoção irregular, aquela onde o pretendente recolhe a criança ao seu convívio edepois de determinado tempo ingressa com pedido de adoção, valendo-se da alegação deformação de vínculo.” Id. ibidem.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007114

familiares. Uma de suas formas é a“posse do estado de filho” , que é aexteriorização da condição filial, sejapor levar o nome, seja por ser aceitocomo tal pela sociedade, comvisibilidade notória e pública. Liga-seao princípio da aparência, quecorresponde a uma situação que seassocia a um direito ou estado, e quedá segurança jurídica, imprimindo umcaráter de seriedade à relaçãoaparente. Isso ainda ocorre com o“estado de filho afetivo”, que além donome, que não é decisivo, ressalta otratamento e a reputação, eis que apessoa é amparada, cuidada e atendidapelo indigitado pai, como se filho fosse.O ativismo judicial e a peculiar atuaçãodo juiz de família impõe, em afago àsolidariedade humana e veneraçãorespeitosa ao princípio da dignidadeda pessoa, que se supere a formalidadeprocessual, determinando o registro dafiliação do autor, com veredictodeclaratório nesta investigação depaternidade socioafetiva, e todos osseus consectários. APELAÇÃOPROVIDA, POR MAIORIA. (ApelaçãoCível Nº 70008795775, Sétima CâmaraCível, Tribunal de Justiça do RS,Relator: José Carlos Teixeira Giorgis,Julgado em 23/06/2004.

E não poderia ser diferente, pois,ao Estado compete, diante dos pre-ceitos constitucionalmente previstos,promover a inclusão da criança no

convívio familiar, bem como regularizaras formas de adoção que escapam aoseu controle, por não observarem osprocedimentos legislativos.

O Estatuto da Criança e do Adoles-cente consagra direitos à criança e aoadolescente, imbuído que está noreconhecimento em tratá-los enquantosujeitos de direito em situação especialde desenvolvimento e, como tal,merecedores da tutela do Estado.Dentre tais direitos, como desdobra-mento de norma constitucional, àscrianças e aos adolescentes é garantidaa convivência familiar. Assim, priorita-riamente, ao Estado cabe promover amanutenção dos vínculos da criançacom a família de origem.

Somente excepcionalmente (art.1914), poderá ser colocada a criança emfamília substituta, sendo proibidasdiscriminações relativas à filiação (art.2015), observadas as três formas legaispara tanto, estabelecidas pelo art. 28 doECA, quais sejam: a adoção, a guardae a tutela. A adoção assume importânciacomo instituição que propicia atransferência do menor à famíliasubstituta por seu caráter irrevogávelem relação aos demais institutos.

Os motivos para a saída da famílianatural são amplos, desde a perda dopoder familiar, abandono, orfandade ou

14 Art. 19. “Toda a criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio de suafamília e excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária,em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes.”

15 Art. 20. “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão osmesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatóriasrelativas à filiação.”

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 115

simples entrega. Quanto à perda dopoder familiar, observa-se o constanteno art. 5º do Estatuto da Criança e doAdolescente que afirma que: “nenhumacriança ou adolescente será objeto dequalquer forma de negligência,discriminação, exploração, violência,crueldade e opressão, punido na formada lei qualquer atentado, por ação ouomissão, aos seus direitos funda-mentais.” Ou seja, estas situaçõespodem ser consideradas de intervençãodo Estado com o fim de garantia deproteção à criança vítima de quaisquersituações que possam expô-la a taisriscos, não sendo a pobreza motivo paraa destituição do Poder Familiar (art. 23do ECA). Uma vez configurada umadas situações referidas no art. 5º doECA, as crianças devem ser colocadasem programas de auxílio, comumente,em abrigos de acolhimento.

Porém, as políticas devem-se pautarpela necessidade da reaproximação dacriança com a família de origem, geral-mente a família de origem. Veja-se adecisão que segue:

EMENTA: ECA. SUSPENSÃO DOPÁTRIO PODER. Em que pese acomprovação do indevido exercício dopátrio poder, impositivo o encami-nhamento da família a tratamento e aprogramas de auxílio com vista àmanutenção do vínculo, mormente emface da idade dos infantes, o quepraticamente inviabiliza a colocaçãoem família substituta. Apelo desprovido,com a adoção, de ofício, da sugestãoministerial. (Apelação Cível Nº70005488473, Sétima Câmara Cível,

Tribunal de Justiça do RS, Relator:Maria Berenice Dias, Julgado em19/02/2003).

Somente sendo consentida pelospais biológicos ou atestada suaincapacidade, seja pela falta deinteresse, ou por seu comportamentoobstrutivo, como uso de drogas,espancamento, ou abuso sexual, é queentão se permite falar em extinção dopoder familiar.

O Estatuto da Criança e doAdolescente tratou de instituir umaúnica forma de adoção, que não sóconsagra a “adoção plena” prevista noCódigo de Menores, quanto rechaçaoutras formas, revogando por completoa “adoção simples”. Foi esta mesmaorientação dada pelo art. 1626 do NCCpara os casos de adotandos maiores deidade, não vigorando mais nem na formados arts. 368 e 378 do antigo CódigoCivil (adoção simples, revogável, ...).

A padronização do instituto atravésde uma única forma deve ser entendidaà luz dos valores subjacentes à norma,alicerçados na teoria da proteçãointegral, tratando o interesse da criançacomo prioridade absoluta.

Com relação ao procedimento daadoção, o Estatuto da Criança e doAdolescente tem como preocupação anecessidade da colocação da criançaem família substituta apta (ficando oquestionamento do que pode serconsiderado como apta). Prevê, em seuart. 50, a necessidade da manutençãopela autoridade judicial de cadastros decrianças e adolescentes em condiçõesde serem adotadas e de candidatos a

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007116

adotantes,16 passando estes poravaliação prévia com diferentesprofissionais para fins de atestar suaaptidão – compatibilidade e possibi-lidade de oferecimento de ambientefamiliar adequado, nos termos do art.29. Mediante o sistema de cadastrospode-se garantir o desligamento com afamília de origem, evitando que os paisvenham a reivindicar a paternidade, indode encontro às formas de adoçãobaseadas em convívio prévio, em queprepondera a mera vontade dos pais,em detrimento muitas vezes do interessedos filhos.

No que se refere aos candidatosadotantes, o procedimento da adoção,conforme estabelece o Estatuto, não serestringe à análise da formalidade dopedido, mas da tomada de medidas paraauferir a condição pessoal, social eeconômica do adotante, lançando-semão de estudo psicossocial, senecessário, bem como de visitação inloco, conforme recomenda o art. 167,sendo importante os pareceres queconstituirão o laudo para a tomada dadecisão sobre as condições do adotante,conforme prevê o art. 29, Não se

deferirá a colocação em família

substituta a pessoa que revele, por

qualquer modo, incompatibilidade

com a natureza da medida ou não

ofereça ambiente familiar adequado.

Além disto, aconselha-se acompa-nhamento psicológico para se inteirar

acerca da visão que o adotante faz doprocesso de ser pai, de como encarar ofilho, e se tem condições de suportartoda a nova situação que a este se impõe.

Convém salientar que a efetivaçãodo procedimento da habilitação tem setornado uma prioridade, tendo em vistaas práticas de adoção dirigidas pelosJuízes da infância e da juventude,conforme demonstram as conclusõesnos encontros que se efetivam no RS,particularmente a conclusão de número10, na matéria cível, do 1º EncontroEstadual de Juízes da Infância e daJuventude, realizado em dezembro de2002, que refere:

10. Em que pese não ser a priori ilegal,a adoção dirigida não é recomendável,devendo-se adotar cautelas quanto àlegitimidade do consentimentomaterno, bem como promover, comoregra, a observância do Cadastro dePretendentes à Adoção, inclusiveadvertindo e responsabilizandoentidades e pessoas que promovam oagenciamento de crianças paraadoção. (Aprovado por unanimidade).

O procedimento legal da adoção,uma vez respeitado, deveria garantir orompimento dos vínculos, o distan-ciamento e a ausência de contatos entreos pais adotantes e os pais naturais, emresguardo da criança, para que nãovenha, posteriormente, a sofrer qualquertipo de constrangimento. Também visa

16 Ficam excluídas da necessidade do cadastro em se tratando os adotantes com grau deparentesco ou relação de afinidade (art. 28, §2º).

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 117

permitir o controle do efetivo cumpri-mento dos preceitos das reais vantagensà criança, uma vez que submete os pais,pretensos adotantes, à habilitaçãoprévia. Contudo, os julgadores têmentendido que esta não é condição paraa adoção, conforme segue:

EMENTA: APELAÇÃO. ECA.ADOÇÃO. HABILITAÇÃO DOSADOTANTES. AUSÊNCIA. INÉPCIADA INICIAL. INOCORRÊNCIA. Ahabilitação prévia dos adotantes noregistro a que se refere o artigo 50, doECA, não é condição da ação. Suainexistência não impõe o inde-ferimento da inicial. Os candidatos àadotante devem preencher, na açãoproposta, os requisitos e pressupostosautorizativos da adoção, respeitando-se eventuais outros interessados,habilitados ou não. Pedido de guardaprovisória indeferido, na medida quea análise deve ser feita no primeirograu. DERAM PARCIAL PROVIMENTO.(SEGREDO DE JUSTIÇA). (ApelaçãoCível Nº 70007563406, OitavaCâmara Cível, Tribunal de Justiça doRS, Relator: Rui Portanova, Julgadoem 12/02/2004).

A persistência de casos de “adoçãoà brasileira” e de adoção irregularseriam práticas tão contrárias assim aosistema? Não teria ainda o judiciárioformas de apreciar a aptidão dosadotantes, de modo a assegurar as reaisvantagens ao infante? E, aprofundandoum pouco mais o debate, a antiga“adoção simples” prevista no Código deMenores, que estabelecia espécie deguarda prolongada, seria de todoinadequada, diante das práticas

costumeiras de entrega direta dos filhospara outros cuidarem?

Certo é que, quando posta em juízo,já estabelecidos os vínculos, torna-sedifícil a reversão. E é em nome dosuperior interesse da criança que osjulgadores têm legitimado a situação defato já consolidada, em detrimento dosrequisitos formais. A adaptação dacriança é condição importante e formalda concessão, assim como a garantiado oferecimento de condições sociais,ambiente familiar adequado, condiçõesmorais e econômicas. O interessepreponderante na adoção, enfim,conforme previsto pelo Estatuto daCriança e do Adolescente, passa a serdo adotado, em nome não de umaprestação de assistência, mas degarantia de direitos fundamentais (verart. 3º do ECA).

3. PROBLEMATIZANDO AS“REAIS VANTAGENS”, “OSMOTIVOS LEGÍTIMOS” E“OS EFEITOS BENÉFICOS”

Através dos princípios do melhorinteresse e doutrina da prioridadeabsoluta à criança, temos hoje umalegislação preocupada em resgatar adignidade da criança, em olhá-la comosujeito de direitos, fruto das conquistasdos direitos humanos experimentadas aolongo da idade moderna. Esta legislaçãotrouxe algo de novo na sistemática dasleis em nosso direito, em especial no quese refere ao direito de família,substituindo uma tradicional fórmulafechada de descrição de condutas

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007118

hipotéticas, com atribuições deconseqüências, legado da época dacodificação, em que o Estado de feiçãoliberal colocava o direito de família sobo cânone do direito privado. Seus artigostextualizam princípios, como se pode verno art. 227 da Constituição Federal enos arts. 1º, 3º, 4º, 5º e 6º do Estatuto daCriança e do Adolescente, dandoênfase aos valores que deverão serconsiderados quando da aplicaçãodeste ou daquele dispositivo.

Refletindo sobre este conjunto deprincípios e valores que dizem respeitoà adoção de crianças e adolescentes,principalmente sobre as reais

vantagens, motivos legítimos e efeitos

benéficos conferidos à criança nomomento de decidir acerca da adoção,algumas questões merecem serenunciadas. Primeiro, sobre o destinoda criança quando em situação deconflito em que há entrega da criançapela mãe biológica para que outros delatomem conta, as situações já descritasda adoção à brasileira ou da adoção

irregular, vislumbramos diversasmaneiras de conceber as configuraçõesfamiliares contemporâneas. Emsegundo lugar, a entrega dos filhos afamiliares ou conhecidos, antes derepresentar uma exceção, trata-se deprática cristalizada, que por vezes chegaaos tribunais. Seja por motivos de faltade condições econômicas, por força decircunstância excepcional (viagem a

trabalho, troca de moradia, etc), por faltade interesse em criar filhos, as criançasacabam formando novos vínculosafetivos, circunstâncias que colocamdesafios aos profissionais que lidam coma criança e o adolescente.

Observa-se que há no Brasilexpectativas conflitantes entre a mãenatural e os pais adotivos. A primeira,por não ter condições de criar o filho,entrega-o à família onde será o mesmocriado, mas espera que o filho venha alhe amparar em um momento futuro.Os segundos, que empreenderam todoum esforço na educação, esperam porum retorno. Os conflitos, então, setornam mais ásperos no momento emque o filho entra na idade adultatendo condições de auxiliar na “redede ajuda mútua”.

A genitora que aceita colocar seu filhopode achar que está agindo pelo bemtanto do filho quanto da mãe adotiva.Pode esperar, em troca, uma certaretribuição da mãe adotiva. Nãoconsidera necessariamente que tenhaaberto mão de seu direito de seramparada pelo filho, uma vez que estetenha crescido. [...] A mãe adotiva, ...,aacentuar as tribulações provenientesda lida materna cotidiana, apresentaa criança como um ‘peso’, deixandosubentendido ser ela a merecedora deeventuais recompensas futuras.17

Indaga-se se o que ocorre entreuma família e outra é passível de se

17 FONSECA, Cláudia. 1995, Op. cit, p.127-128.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 119

reduzir a uma única forma de resolvero problema da adoção. Sob este aspecto,a plena adoção, tal qual foi legislada,primeiro no Código de Menores e, após,na Constituição, não seria um recursoacionado principalmente por paisadotivos das camadas médias?

Observa-se que em determinadospaíses ocorrem casos distintos deadoção, considerada como adoçãoaberta, em que os pais contribuem nadecisão de qual família é a maisadequada para a criação do filho, ou seja,a mãe biológica não é excluída destepoder decisório. No Brasil, nossosistema optou pela “adoção fechada”,em que não há ligação entre as famílias,tendo os vínculos rompidos e o registro“apaga” as origens. Através desteprocedimento, obedece-se às listas deespera de pretendentes adotantes.

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL.ADOÇÃO. DOIS CASAIS HABILITADOSNO JUIZADO. DISPUTA. Criançarecém nascida sem laços afetivosformados. Neste caso, a questão deveser resolvida pela ordem de pre-ferência da lista de adoção. Critérioobjetivo que busca colocar em ordemas pessoas interessadas em adotar eevita eventual transação de criançapelos genitores. PRELIMINAR REJEI-TADA. RECURSO DESPROVIDO.18

Sucintamente, a decisão veio deencontro à chamada “adoção pronta”,também denominada de “intuito

persona”, que, segundo MOTTA,19

trata-se da “escolha dos pretendentes

pela mãe biológica”. As adoçõesprontas não são comumente aceitaspelos juízes, por ocultarem situaçõesilegais ou perigosas para a criança, oupor não se saber da intenção da mãebiológica, tampouco das condições doscandidatos adotantes, ou ainda, porprevenção de dificuldades que poderiamadvir do contato entre as famílias. Hánestas decisões a crença de se estargarantindo o melhor interesse dacriança. Porém, Motta identifica que:

[...] a atualmente tão decantadabusca do maior interesse da criança épor vezes tratada como elementoisolado, alienado e que deve serperseguida sem que nos demosconta que não podemos isolar a criançade seu contexto, das pessoas que acercam, para perseguir seu interesse.Sem isso, a ‘busca do maior interesseda criança’ será retórica vazia, carentede significação.20

A resistência das mulheres emenfrentar o processo legal de entregaacarreta prejuízos não só à criança, que

18 Apelação Cível nº 70013077656, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator:Alfredo Guilherme Englert, julgado em 15/12/2005. in: Revista de Jurisprudência. Estadodo Rio Grande do Sul. Tribunal de Justiça, nº 254, maio, 2006, p.216-219.

19 MOTTA, Maria Antonieta Pisano. Op. cit, p.248.

20 Id. Ibidem, p.259.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007120

é levada e acaba por permanecer eminstituições, ou é entregue à “adoção àbrasileira”, às avessas do PoderJudiciário, como também à própria mãe,que acaba por não conseguir superar ador da perda, buscando em nova gravidezsubstituir o filho perdido, caindo assimem círculo vicioso. Urge, pois, viabilizaro caminho legal da entrega, buscandoatrair a mãe biológica; para tanto, porém,faz-se necessário repensar a sistemáticaprocedimental da adoção. Quem sabe ainclusão da mãe biológica na vida dacriança adotada não seria uma formamenos traumática e que melhor respondeaos interesses dos envolvidos?

Outro aspecto a salientar é que oato de entrega da criança para adoçãonem sempre pode ser entendido comodefinitivo, pois depende dascircunstâncias em que a mãe e/ou paiencontram-se envolvidos, inúmerasvezes em situação econômica e socialprecária – como desemprego ealcoolismo – levando-os a uma situaçãolimite e até mesmo desesperadora sobo ponto de vista do equilíbrio emocional.Segundo pesquisa da antropólogaCláudia Fonseca esta é uma situaçãoque envolve muita ambigüidade, poisrefere à forma de que cada um vê aposição de filho e de mãe. Veja-se nestesentido a citação abaixo:

Mães que entregam os filhos a outrosconsideram que sacrificaram suas

prerrogativas maternas em benefíciodestes; elas regalaram os pais adotivoscom a graciosa presença de umacriança, assegurando ao mesmotempo um contexto familiar decentepara seus rebentos. Esta idéia desacrifício materno é subjacente aosesforços que ocasionalmente se vê umamãe biológica fazer para extrair ajudamaterial do tutor de sua criança; aidéia implícita é: ‘Eu te emprestei meufilho, agora o que tu vais me emprestar?’21

Neste sentido, seria talvez forçosaa constatação de que o agir da mãecaracterizaria uma situação de negli-gência e abandono da criança; porém,é um dos fundamentos que se utilizamos julgadores para solucionar a questãodo ponto de vista legal, em nome domelhor interesse da criança. Veja-se,nestes termos, a decisão que segue:

Apelação Cível nº 70001790039 – 7ªCâmara Cível – Des. Rel. Luiz FelipeBrasil Santos. Apelação. Adoção.Estando a criança no convívio docasal-adotante há aproximadamente04 anos, já tendo desenvolvido vínculosafetivos e sociais com os mesmos, éinconcebível retirá-la da guardadaqueles que reconhece como pais,mormente, quando a mãe biológicademonstrou interesse em dá-la emadoção, arrependendo-se posterior-mente. É perceptível que o vínculoafetivo da menor, a esta altura da vida,se encontra bem definido na pessoa dos

21 FONSECA, Claudia, 1995. Op. cit., p.36.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 121

apelados, e que deve-se prestigiar,como reiteradamente temos decididoneste Colegiado, a paternidade sócio-afetiva sobre a paternidade biológica,considerando-se o superior interesse nacriança. Negaram provimento.22

Conforme se denota, há umacentralização nas informações obtidaspelo laudo da assistente social e pelo laudopsicológico, em que são detectadassituações que caracterizam um bem-estar da criança. Apesar de não haverreferências ao Estatuto da Criança e doAdolescente no acórdão em questão,subentende-se que a decisão estáimbuída dos princípios norteadores dareferida legislação: a família substitui afamília natural e o que importa é a“garantia dos interesses do infante”, eestes residem basicamente em ser “bemajustada” ao núcleo familiar; “bem cui-dada” (assistência integral compatível)e tendo o “indispensável afeto”.

Contudo, cabe questionar em quaiscircunstâncias a mãe “demitiu-se dopátrio-poder”, para utilizar umalinguagem corrente. Parece ter havidoum momento difícil. A mãe, ao buscaremprego em Porto Alegre, deixou a filhaem Rio Grande com os adotantes, deforma provisória, projetando para umfuturo a vida com a filha, momento emque estaria mais segura sob o ponto devista financeiro e afetivo. Suas açõessão no sentido de estruturar uma família,nutrindo a esperança de recompor os

laços de filiação e assumi-los emmelhores condições.

As condições econômicas, emboraexplicitamente dito no acórdão que nãosão fundamentais para a destituição doPoder Familiar, também não sãoirrelevantes no momento de conflito edecisão entre a filiação biológica e afiliação afetiva. Apesar de não seconsiderar como fundamento para adestituição do Poder Familiar asituação econômica, há uma recorrênciaem tantas decisões de casos similaresem caracterizar a fragilidade infantil doponto de vista material antes de fatorespsicológicos, no que se refere àsatribuições e compromissos das mãesbiológicas para com seus filhos.

CONCLUSÃO

Preocupado em entender a atualsistemática legislativa da adoção,considerando seu necessário envolvi-mento com a vida das crianças e adoles-centes, bem como a preocupação emmantê-los no convívio familiar, e aresponsabilidade do Estado em promovereste bem estar, analisando a transfor-mação da legislação e observando suaaplicação das decisões judiciais, busqueivisualizar a adoção enquanto um institutoque abriga toda uma complexidade quea transferência da criança da famíliabiológica à família substituta acarreta.

Fez-se necessário, para tanto,observar as alterações do olhar dos

22 Revista de Jurisprudência. Estado do Rio Grande do Sul. Tribunal de Justiça, nº 207,agosto, 2001, p. 347-350.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007122

entes públicos sobre a criança, querecaia, em princípio, na criança pobre edesassistida, já que a ela residiam asatenções e preocupações dosrepresentantes do poder público, quandoainda não se falava em promoção dainclusão social ou manutenção dafamília, mas no potencial risco querepresentavam os menores nas ruas.

Fruto da doutrina da proteçãointegral à criança, disposta tanto naConstituição Federal de 1988, comoadvindas das discussões entre a ONUe UNICEF que desembocaram naConvenção dos Direitos da Criança de1989, em 13 de julho de 1990 foipromulgada a Lei nº 8.069 que dispõesobre o Estatuto da Criança e doAdolescente. Inserido nos mesmosprincípios norteadores que viamassegurar às crianças e aosadolescentes a proteção integral, ouseja, o tratamento com dignidade, comosujeito de direitos, o procedimento daadoção sofrerá transformações. Alémda garantia da igualdade do filho adotivocom o filho natural, novos critérios maisespecíficos deslocam o olhar dosjulgadores dos aspectos formais doprocesso para os aspectos mais ligadosà realidade das famílias envolvidas, afim de que sejam respeitados osmelhores interesses da criança.

A existência de formas institucio-nalizadas socialmente mencionadas,chamadas de “adoção à brasileira” e“adoção irregular” apesar de revelaremambigüidades de intenções das pessoasenvolvidas, acabam por cumprir oobjetivo de assegurar os interesses da

criança, como prioridade. Há umaforte predisposição dos magistradosem equiparar a filiação biológica àfiliação afetiva e, assim, albergartais situações de fato constituídas,conferindo-lhes legitimidade.

Contudo, há um apego em uma visãoideal de família, com uma idéiapreconcebida de paternidade,maternidade e filiação. Nestes casos deentrega direta do filho aos paispretensamente adotivos, há umadificuldade em aceitar a vontade dospais biológicos, identificando umasituação de negligência e renúncia doPoder Familiar, dando poucaimportância às justificativas destes pais,em nome do interesse da criança. Háuma dificuldade em aceitar a idéia deque tenha-se dado um “empréstimo” dofilho, isto é, uma entrega de formatemporária (provisória) e, ainda que asituação acabe por perdurar, há umacredibilidade que não pode serdesconsiderada de que a mãe biológicaagiu em favor do bem-estar da criançaao escolher uma família que possa vir adeixar marcas na criança que consideraimportante.

Se a entrega do filho a outros paisdá-se em razão de desespero pordificuldades pessoais, estreitamentevinculadas à carência financeira, coma pretensão da mãe a vir a melhorar devida e então reconstituir o lar, a decisãoque caracteriza a renúncia ounegligência representa uma violênciacontra estas expectativas, que nãopodem ser, de maneira alguma, opostasaos interesses da criança.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 123

Por estas razões, a adoção se colocaenquanto um desafio para osprofissionais do direito, que são levadosa conhecer a fundo a realidade das partesenvolvidas, tendo que se familiarizar comos conhecimentos de outras disciplinasque se pautam nos estudos da família.Fundamentalmente, observa-se que ainterpretação das razões que levaram aos

pais agirem deste ou daquele modo acabapor ser central na decisão. Neste sentido,noções emprestadas da sociologia, daantropologia e da psicologia são demuita valia, já que há a demanda por umesforço em desapegar-se dos valores epreconceitos e ouvir a voz do outropara que sejam garantidas as reaisvantagens à criança.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Júlio Alfredo de. Adoçãointuitu personae – uma proposta deagir. Revista do Ministério Públicodo Rio Grande do Sul, n. 54 –outubro de 2004 a abril/2005.

FACHIN, Luiz Edson. Da paternidade:relação biológica e afetiva. BeloHorizonte: Del Rey, 1996.

FONSECA, Cláudia. A vingança deCapitu: DNA, escolha e destino nafamília brasileira contemporânea. InBRUSCHINI, Cristina; UNBEGAUM,Sandra G. (Org.) Gênero, democraciae sociedade brasileira. São Paulo,Fundação Carlos Chagas, 2002.

FONSECA, Cláudia. Caminhos daadoção. São Paulo: Cortez, 1995.

GENOFRE, Roberto Maurício. Família:uma leitura jurídica. In: CARVALHO,Maria do Carmo Brant de (org.). Afamília contemporânea em debate. 3.ed. São Paulo: EDUC/Cortez, 2000.

HIRONAKA, Giselda Maria FernandesNovaes. Família e casamento em

evolução. Revista Brasileira de

Direito de Família, nº 1/7– Abril,Maio e Junho de 1999.

LISBOA, Sandra Maria. A adoção no

estatuto da criança e do adolescente:

doutrina e jurisprudência. Rio deJaneiro: Forense, 1996.

MOTTA, Maria Antonieta Pisano.“Adoção pronta X adoção pelocadastro” In: LEITE, Eduardo deOliveira (coord.). Adoção: aspectos

jurídicos e metajurídicos. Rio deJaneiro: Forense, 2005.

PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direitocivil. Tradução de Maria Cristinade Cicco. 1ª ed. Rio de Janeiro:Renovar, 1999.

Revista de Jurisprudência. Estado do RioGrande do Sul. Tribunal de Justiça,nº 207, agosto, 2001.

Revista de Jurisprudência. Estado do RioGrande do Sul. Tribunal de Justiça,nº 254, maio, 2006.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007124

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 125

INTRODUÇÃO

Este artigo é, antes de tudo, umatentativa de compreender o debate entreHart e Dworkin. O filósofo RonaldDworkin, em seu The Model of Rules,2

ao criticar a posição juspositivista, maisespecificamente na concepção deH.L.A. Hart, começa este debate, oqual termina com o pós-escrito de Hartao “Conceito de Direito”. O debateHart/Dworkin é habitualmente com-preendido como um conflito entre duasposições – positivismo e, digamos,reconstrutivismo – absolutamente anta-gônicas. Neste ensaio, tentar-se-á mostrarque, subjacente ao positivismo hartiano

Aceitação, interpretação e objetividade: um

ensaio sobre a juridicidade de regras e princípios

no projeto hart-dworkiano1

Lucas Dutra Bortolozzo*

e ao reconstrutivismo dworkiano, estáum mesmo projeto filosófico, a saber,sobre a objetividade e a certeza nofenômeno jurídico. E que, neste projeto,ambos são complementares.

O ensaio está dividido em duaspartes. Primeiro, propõe-se umainterpretação da obra de Herbert Hart,qual seja, sobre: 1) os limites da noçãode aceitação compartilhada – funda-mento da regra de reconhecimentohartiana – para a compreensão dofenômeno jurídico e 2) a objetividadedo conceito de regra proposto por Hartcomo uma resposta à concepçãoautonômica de objetividade denominada“ceticismo externo”.

* Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

1 Este texto é o resultado da etapa inicial de uma pesquisa orientada pelo professorCláudio Michelon, ao qual muito agradeço pelas críticas e sugestões.

2 Utilizo, ao invés do artigo original, a reformulação feita por Dworkin no segundo capítulode DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. (trad. Nelson Boeira) São Paulo:Martins Fontes. 2002. 568 p., denominado Modelo de Regras I., a partir de agora LDS.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007126

Na segunda parte, tenta-se analisarDworkin, por assim dizer, dworkianamente.Tenta-se compreender a obra de Dworkincomo um todo coerente e, deste todo:1) retirar conceitos fundamentais sobreo projeto filosófico referido, por exem-plo, o conceito – tão mal compreendido– de princípio jurídico ou da tese daúnica resposta correta e 2) percebercomo estes conceitos, em conjunto coma interpretação da regra de reconheci-mento proposta anteriormente seinterlaçam em uma mesma teoria sobrea objetividade no fenômeno jurídico.

1. HART E O CETICISMO EXTERNO

Herbert Hart, ao construir suateoria, descarta a noção de objetividadecomo autonomia, ou seja, a posiçãosegundo a qual os participantes dedeterminada prática social – aqui nosinteressa o direito – não podem deter-minar o conteúdo dessa prática, massomente recebê-lo. Em outras palavras,não compreende a proposta que há umacompleta oposição entre o sujeito(participante da prática) e o objeto(prática em si). Neste ponto, portanto,tentar-se-á explicar: 1) a concepção deobjetividade subjacente à teoria hartia-na, 2) como esta concepção enfrenta aconcepção autonômica, 3) os limites da

posição de Hart e 4) como ela estápressuposta na teoria de Dworkin.

Segundo Hart, os conceitos queutilizamos estão intrinsecamenteconectados aos ambientes nos quais oapreendemos. Ao adentrarmos, comoestranhos, em um determinado gruposocial, passaríamos a reconhecer auto-ridade quando integrantes deste grupoutilizam o que para nós são novostermos.3 No entanto, após apreender-mos esta relação termo-situação, pas-samos, igualmente aos outros inte-grantes do grupo, a participar destacomunidade. Isso significa que aceita-mos suas regras, mas também quetemos autoridade, como os primeirosparticipantes, para constituí-las. Pode-mos também determinar seu significadoatravés de um consenso social.

O grande insight de Hart, nesteponto, foi conseguir construir critériospúblicos, não somente subjetivos, mas,e essencialmente, compartilhados pelossujeitos dentro de uma determinadacomunidade. Desta forma estabeleceuum método de teorizar contra o ceticis-mo jurídico, principalmente em relaçãoà objetividade nos domínios normativos.4

Por isso, a postura cética que somente“admite a utilização de enunciadosjurídicos (como a de qualquer outroenunciado) desde que esses enunciados

3 Para a relação entre o direito e a moral no pensamento de Hart, Cf. HART, Herbert.Positivism and the separation of law and morals. In: DWORKIN, Ronald (Org.). Thephilosophy of law. Oxford: Oxford University Press. 1977. cap. 1, p.17-37.

4 MICHELON JR, Cláudio. Aceitação e Objetividade,... p.119.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 127

não sejam considerados afirmaçõessobre como as coisas realmente são”5

deve ser descartada.O critério de objetividade de qualquer

regra social (regras jurídicas, porexemplo) é esta ser um padrão decrítica compartilhado que nós utilizamospara julgar nossas perspectivassubjetivas. Baseando-se, então, naanálise da linguagem ordinária utilizadanos tribunais, Hart busca mostrar que épossível depreender, deste fenômenosocial, um enunciado que explicite aorigem do fundamento de juridicidadepara qualquer sistema jurídico. Só énecessário uma aceitação compartilhadadeste enunciado pelos participantesdesta prática social (em nosso casoprincipalmente juízes).

O que significa, no entanto, aceita-ção? Hart afirma que “aceitar” não é

somente observar um comportamento.E não poderia sê-lo, obviamente, já quehábitos sociais possuem igualmente essaobservância, não sendo possível adistinção entre hábitos e regras6 devidosomente a este critério. “Aceitar” tambémnão significa ter uma aprovação éticopolítica.7 “É possível aceitar um padrãode comportamento ainda que oconsideremos desvalioso do ponto devista ético-político”.8

A aceitação de um comportamentopode ser percebida quando o seu desvioé visto como um erro, existindo umacompartilhada pressão social negativacomo resposta a este erro. “Aceitar”,portanto, é utilizar um padrão como ummodelo ideal, que possa justificar eestabelecer críticas aos comporta-mentos considerados inadequados.9

Para Hart, é fundamentalperceber que a aceitação é um fenô-

5 MICHELON JR, Cláudio. Aceitação e Objetividade,... p.123.

6 A distinção entre hábitos e regras é, dentro da teoria hartiana, fundamental. Ambos, de fato,possuem um mesmo aspecto externo, uma convergência de comportamentos. No entanto,diferem com relação à capacidade de provocar uma posição crítica, um aspecto interno que ohábito não possui. De fato, não criticaríamos um casal que tem por hábito alugar filmes todosos finais de semana por não tê-lo feito neste último. Por outro lado, tranqüilamente criticaríamosaqueles que passaram por um sinal vermelho durante o dia. Este aspecto interno que possuia regra constitui em uma atitude crítico-reflexiva daqueles que percebem uma obrigatoriedadeneste comportamento, tornando-o não-facultativo. A regularidade de comportamento écondição necessária e suficiente para a existência de um hábito, mas é apenas condiçãonecessária para a existência de uma regra. Sobre a distinção entre hábitos e regras no pensamentode Hart. Cf. MICHELON JR, Cláudio. Aceitação e Objetividade,... p.136.

7 CATANIA, Alfonso. L’accetazione nel pensiero di Herbert L.A. Hart. RivistaInternazionale di Filosofia del Diritto. Milano, v. 48, n. 4, p.261-279, 1971, p.262.

8 MICHELON JR, Cláudio. Aceitação e Objetividade,... p.138.

9 O uso e a aceitação de padrões estão intrinsecamente conectados. Não pode haver a aceitaçãode qualquer critério (inclusive da validade jurídica) se estão sendo utilizados outros distintos.“Quando usamos outros critérios, significa que não aceitamos o mais precedente, mas simaqueles dos quais estamos nos servindo”. CATANIA, Alfonso. L’accetazione ,... p.278.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007128

meno social, não individual, é o compar-tilhamento de um critério público dejulgamento. Isso significa que não sepode falar em regras individuais,10 já quede aceitação social depreende-se umautilização de um padrão por largacamada do grupo.11 Também não é aaceitação o resultado de uma deli-beração. Não se escolhe viver em umacomunidade, visto que estar em umanão é uma questão física. É, principal-mente, uma questão de compartilharuma cultura, uma linguagem.

A posição de Hart possui, noentanto, seus problemas: os critérios deaceitação precisam ser públicos,compartilhados, consensuais. A questãoé perceber que mesmo que exista certoconsenso, é necessário descobrir atéque ponto ele existe.

Criticando Hart no que toca aoslimites de sua concepção deobjetividade como consenso social,Dworkin aponta para a possibilidadetrês discussões possíveis dentro de umprocesso jurisdicional: sobre fatos (o queaconteceu?), sobre o direito (qual a

regra pertinente?) e sobre a moralidadepolítica (a regra é justa, e, se não for,deve ser ignorada pelo juiz?).12 Nosimporta aqui somente a segundaquestão. O que significa o fato, porexemplo, de dois advogados discutiremo significado e, conseqüentemente, aforma de aplicação de um mesmo artigoou conjunto de artigos? Que discussãoé essa? Onde reside esta divergência?A pertinência destas perguntas refletea existência do que Dworkin chama dedivergência teórica. Distinta de umadivergência empírica, quando se discutea existência de uma regra para o caso,13

os juristas, na absoluta maioria doscasos, também discutem sobre o queesta regra “quer dizer”. Discutem, emsuma, qual o sentido de uma mesmaproposição jurídica.

O direito, para Dworkin, não estádeterminado antes que se faça nenhumjuízo sobre ele. Hart, de fato, nos dizquais são as regras que devem serutilizadas, entretanto, não explica comoutilizá-las. Esta visão de que o direitoestá “determinado antes e indepen-

10 MICHELON JR, Cláudio. Aceitação e Objetividade,... p.139.

11 A quantidade de pessoas que aceitam um padrão não algo fundamental para adeterminação de seu caráter público. É o resultado de um grande consenso, algoparadigmático. Como explica o professor Michelon “a pergunta sobre quão genéricadeve ser essa aceitação é um mal entendido no mesmo sentido de que a pergunta sobrequantos fios de cabelo deve ter para não ser careca é um mal entendido. Em outraspalavras, a diferença é lógica, não estatística.” Cf. MICHELON JR, Cláudio. Aceitação eObjetividade,... p.140.

12 DWORKIN, Ronald. Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes. 2002, p.6.A partir de agora, ID.

13 DWORKIN, Ronald. Império..., p.8.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 129

dentemente dos juízos que sobre elefaçam”14 é chamada por RonaldDworkin de ‘aguilhão semântico’

Hart sofreu este aguilhão. Eleconstruiu o que Dworkin chama de uma“teoria semântica”, que tem comopressuposto que os juristas, ao utilizaremos mesmos critérios para decidir quandouma proposição jurídica é verdadeira,estariam igualmente de acordo comrelação ao que o direito é.15 Estefenômeno, entretanto, não ocorre. Osfundamentos do direito na teoriahartiana, uma aceitação compartilhadados juizes e funcionários públicos sobreos critérios de juridicidade, uma aceita-ção que pode ser percebida pela análiseda linguagem ordinária utilizada porestas pessoas, pressupõe um consensoque não existe, ou pelo menos não existenos exatos termos de Hart.16

A linguagem, e mesmo Hart apontapara esse fato,17 não é sempre clara ouprecisa, existindo, então, casos cin-zentos. Para Hart, esses casos seriamapenas limítrofes, tendo na grande

maioria dos casos um grau maior decerteza. Essa constatação, quando sepercebe a existência – e a importância– da divergência teórica, mostra-sefalsa. A utilização do que Hart denominade poder discricionário, antes de seruma exceção, seria a regra, isto é,aconteceria em quase todos os casos.Dworkin, por isso, pergunta-se:

Como poderiam pensar ter argumentosfavoráveis à decisão essencialmentearbitrária de usar a palavra em umsentido, e não em outro? Comopoderiam pensar que decisõesimportantes sobre o uso do poder doEstado pudessem se transformar em ummero jogo de palavras?18

Para que se possa admitir que odireito não seja somente um jogo depalavras, segundo Dworkin, deve-seaceitar a divergência e passar atrabalhar com ela. Os juristas precisamperceber que, ao falarem sobre o direito,acabam – mesmo que involuntariamente– invocando a paternidade sobre seu

14 GESSINGER, Rafael Koerig. O Direito e a Filosofia Prática no Pensamento de RonaldDworkin. Dissertação de mestrado, UFRGS, 2002. p.11.

15 DWORKIN, Ronald. Império..., p.41.

16 Endicott afirma que este é o desafio mais fundamental que Dworkin fez a Herbert Hart:is the interpretativist chalange: (i) that Hart thought that the fulcrum of disagreement isa set of shared criteria for the application of legal concepts, and (ii) that we typicallly donot share such criteria. [...] That means that Hart’s theory cannot explain how lawaccomplishes what Hart considered its basic function: to provide standards that guidebehaviour. ENDICOTT, Timothy. Herbert Hart and the Semantic Sting. In COLEMAN,Jules (ed.). Hart’s Postscript: Essays on the Postscript to The Concept of Law. Oxford:Oxford University Press, 2001, p.39.

17 HART, Herbert. O Conceito de Direito. 3.ed. Lisboa: Caulouste Gulbenkian, 1994, p.139.

18 DWORKIN, Ronald. Império..., p.50.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007130

significado, supondo que o ser humanoé capaz de perceber o conteúdo detextos e práticas realizados por outroshomens, até em épocas distintas, semcontaminar o conhecimento com suaspróprias idéias.19

Segundo Dworkin, a única forma deextrair o aguilhão semântico é ignoraras teorias semânticas do direito eadmitir que o direito precisa ser con-siderado como uma prática interpre-tativa. Ressalva-se que Dworkin estáoferecendo, não uma teoria sobre ainterpretação jurídica, mas uma teoriainterpretativa do direito. O direitoseria dividido em três fases: uma pré-interpretativa, na qual se reúne omaterial consensualmente admitidocomo jurídico; uma interpretativa, naqual o intérprete constrói uma teoriamoral para explicar os elementosdispostos na primeira fase e uma fasepós-interpretativa, quando o intérpreteconecta o resultado de sua teoria moralcom o material jurídico da primeira fase,a modificando para o próximo caso. Parao filósofo americano, este novo conceitode direito seria a única forma possívelde mostrar como um problema internoe subjetivo (dissenso sobre o signi-ficado do material jurídico utilizado) nãoacabará por justificar algo objetivo (acoerção estatal).

Devido às críticas de Dworkincentrarem-se nas falhas do conceito

semântico de objetividade de Hart, umdos principais pilares da teoria positivistahartiana, a regra de reconhecimento,sofre igualmente importantes aprecia-ções. Para Dworkin, a regra de reco-nhecimento não poderia identificar todoo material jurídico porque: 20

Argumentamos em favor de princípiosdebatendo-nos com todo um conjuntode padrões – eles próprios princípiose não regras – que estão emtransformação, desenvolvimento emútua interação. [...] Não poderíamosaglutiná-los todos em uma única‘regra’, por mais complexa que fosse.

A teoria interpretativa de Dworkin,no entanto, pressupõe uma espécie deregra de reconhecimento. Hart, apesarde não perceber as verdadeiras críticasde Dworkin, aponta para este fato, jáque mesmo o processo interpretativo deDworkin possui aberturas para adoutrina da regra secundária. No mo-mento em que o americano distingueuma etapa pré-interpretativa, no qual sedetermina qual material institucionalserá interpretado, aceita, de fato, algomuito semelhante à regra de reconheci-mento. A diferença reside no fato queDworkin, ao invés de falar em umaregra baseada na aceitação daquelesque aplicam o direito, fala em “consenso”e “paradigmas” que aqueles que irãointerpretar compartilham.21

19 GESSINGER, Rafael Koerig. O Direito,... p.40-53.

20 DWORKIN, Ronald. Levando,... p.65.

21 HART, Herbert. O Conceito,... p.329.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 131

Apesar de Hart, acertadamente,afirmar que a teoria de Dworkin pres-supõe uma regra de reconhecimento,esta é absolutamente distinta damaneira como é apresentada pelo autoringlês, já que não visa mostrar o fenô-meno jurídico “como ele é” e aceita que,na verdade, parte do fenômeno jurídicotrabalha diretamente, e sempre, com amoralidade subjetiva do juiz, ou seja, dequal sentido deve ter o material jurí-dico.22 No intento de mostrar o direitocomo ele é,23 Hart acaba compreendendoa parte como se fosse o todo. Dworkin,então, não está negando a possibilidadeda existência de uma regra dereconhecimento, mas seu limite e, tendoeste em vista, sua verdadeira função.

Paul Gaffney faz uma distinção queclarifica as propostas de Dworkin noque toca a regra de reconhecimento:

esta possuiria duas funções, umaepistemológica (identificar o materialjurídico) e outra semântica (conhecer odireito).24 Hart, obviamente, não fazesta distinção, já que, para ele, essasduas funções estão intrinsecamenteconectadas. O direito estaria pronto (aregra de reconhecimento o teria identi-ficado previamente ao caso) e sóprecisaria ser aplicado.

Dworkin, por seu turno, consideraas duas funções absolutamente dis-tintas, mostrando que a regra de reco-nhecimento hartiana, na verdade, sópoderia cumprir a primeira funçãoplenamente, ou seja, identificar asfontes do direito consensualmenteestabelecido. Em outras palavras,mostra quais padrões são comparti-lhados como jurídicos, mas não diz o quefazer com eles. Para Dworkin, ao

22 Hart, como mostramos no capítulo anterior, não analisa no fenômeno jurídico o problemada justificação das decisões judiciais. Como diz Stavropoulos, “Relations of justificationsare not legitimate for Hart. Not ony does he say thios account is descriptive; moreover,what justifies use is too far way from the surface of use, too deep to be acceptable tohim.” Cf. STAVROPOULOS, Nicos. Hart’s Semantics. in COLEMAN, Jules (ed.). Hart’sPostscript: Essays on the Postscript to The Concept of Law. Oxford: Oxford UniversityPress, 2001, p.77.

23 Na verdade, a relação entre o direito e a moral sempre foi encarada por Hart tendo emvista duas crenças filosóficas: primeiro, suas dúvidas sobre a objetividade da ética e detodos os juízos valorativos, e segundo, sua crença na objetividade do direito. Cf. RAZ,Joseph. Two Views of the Nature of the Theory of The Law, in COLEMAN, Jules (ed.).Hart’s Postscript: Essays on the Postscript to The Concept of Law. Oxford: OxfordUniversity Press, 2001, p.5.

24 “A rule of recognition serves an epistemic purpose when it sets out tests for verifyingthe legality of other rules and norms. It serves a semantic purpose when it sets out truhtconditions for propositions of law. The two purposes are not the same, and not every ruleof recognition serves both purposes at once.” GAFFNEY, Paul. Ronald Dworkin on Lawas Integrity: Rights as Principles of Adjudication. Lewiston: The Edwin Mellen Press,1996, p.23.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007132

aceitarmos que a regra de reconheci-mento pudesse cumprir as duas funções,perceberíamos que em pouquíssimoscasos existiria uma regra jurídica.Precisaríamos, como Hart propõe, queconcordássemos não somente sobre ocaráter jurídico, mas também sobre osignificado dos símbolos jurídicosaplicados, já que a relação validade/eficácia seria totalmente direta.Somente seriam efetivamente jurídicasregras como a da validade do testa-mento, da velocidade máxima de umcarro em uma rodovia, etc. Regras quepossuem termos absolutamente clarose fechados, que não permitiriam, hoje,que possa haver uma discussão teóricasobre o sentido da norma em questão.Todas as outras regras jurídicaspossuiriam o que Hart chama de texturaaberta, sendo passível da utilização do

poder discricionário pelo juiz. Umaconclusão absolutamente indesejável àteoria hartiana ou a qualquer outra quebusque a certeza no fenômeno jurídicocomo forma de legitimação do usoda força pública.

A regra de reconhecimento, e, destaforma, o conceito social de objetividadede Hart, são, em certa medida, recepcio-nados pela teoria de Dworkin25 Noentanto, é necessário perceber queDworkin, de maneira alguma, aceita ateoria semântica de objetividade, masque a identificação de um texto comojurídico ao invés de outro já é, per se,um julgamento interpretativo.26 A regrade reconhecimento “dworkiana”27

corresponde, plenamente à funçãosemântica28 da antiga correspondentehartiana.29 Ela não pode identificar todoo fenômeno jurídico, já que este é um

25 Segundo Endicott, isto ocorre devido ao fato que ‘Even to disagree, we need tounderstand each other. If I reject what you say whitout understanding you, we will onlyhave the ilusion of a disagreement. You will be asserting one thing and I will be denyinganother. Even to disagree, we need some agreament.” ENDICOTT, Timothy. HerbertHart,... p.39.

26 Cf. DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípios (Trad. Luis Carlos Borges). SãoPaulo: Martins Fontes, 2001, p.253.

27 Uma dos principais intuições com relação a existência desta regra de reconhecimentopode ser encontrada em Hund: “There is, a hope to show, a valuable descriptive componentlocked within the heart of Dworkin’s institucional approache” HUND, John. New Lighton Dworkin’s Jurisprudence. ARSP, v.LXXV. 1989, p.471.

28 É preciso deixar claro que a regra de reconhecimento não identificaria somente omaterial, mas sim o que fosse semanticamente consensual à comunidade em questão. Porisso, além do material, é necessário que coloquemos a apreensão epistemológica mínimapela regra de reconhecimento. De fato, não poderia ser relativo a assuntos muito abstratos,só o necessário para que o significado de “carro” não seja confundido com o de “cachorro”,e comecemos a multar os donos de cães por que os deixaram “estacionados” no parque.

29 Como diz Endicoot: “The fulcrum of disagreement is nothing more than the use ofparadigms”, p.41.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 133

processo que exige uma etapainterpretativa, de relação individual entreo jurista e o material recebido na fasepré-interpretativa, mas é capaz deidentificar qualquer fase em que oscritérios sejam compartilhados. Istosignifica que, apesar de a regra dereconhecimento não ser capaz de ana-lisar a construção do direito em sua faseinterpretativa, é capaz de fazê-lo nasoutras duas etapas da interpretação, nafase pós-interpretativa, como tambémna pré-interpretativa.

Mesmo Hart consegue perceber aconvergência entre a regra de reconhe-cimento e a fase pré-interpretativa.30

Há, entretanto também uma fase pós-interpretativa, quando há a adequaçãoda teoria moral criada pelo juiz aoordenamento até então identificado, ou,em termos menos dworkianos, quandoocorre a jurisdição. Neste momento, umnovo paradigma é adicionado aoordenamento, fazendo com que o ciclohermenêutico de Dworkin sejacompletado, criando uma nova, mesmoque só levemente modificada, regra dereconhecimento para o próximo caso.31

De fato, mesmo que a dinâmica daregra de reconhecimento seja lenta, elaexiste, já que “no single paradigm isguaranted to emerge intact from thepost-interpretative stage, at wich theinterpreter ‘adjusts his sense of whatthe practice realy requires so as betterto serve the justification he accepts atthe interpretative stage.”32 A regra dereconhecimento seria capaz, então, deidentificar, tanto o ponto de partida (odireito estabelecido), como o de che-gada (a decisão judicial).

Em suma: a principal diferença daregra de reconhecimento entre a teoriasemântica de Hart e a interpretativa deDworkin é que, enquanto que o direitoválido significa, para a primeira, o êxitode uma interpretação, para a segundaé somente um pressuposto de umaatividade interpretativa.33

2. DWORKIN E O CETICISMOINTERNO

O ponto anterior possuía basica-mente duas funções: 1) mostrar a

30 “As práticas jurídicas estabelecidas ou paradigmas de direito que tal teoria interpretativadeve interpretar são designados por Dworkin como ‘pré-interpretativos’ e considera-se que umteorizador não terá dificuldades, nem terá de executar para tal tarefa teórica, em identificar taisdados pré-interpretativos, uma vez que estão estabelecidos como uma questão de consensogeral dos juristas de sistemas jurídicos concretos.” HART, Herbert. O Conceito,... p.302.

31 Em termos ideais, o juiz deveria considerar todo o material jurídico identificado pelaregra de reconhecimento. O que não inclui somente códigos, Constituição, etc., mastambém as decisões proferidas nos tribunais. Além disso, por material jurídico não merefiro somente a textos escritos, mas também a práticas que sejam consideradas comojurídicas, visto que o critério é a aceitação compartilhada expressada na linguagem, o quepoderia englobar conjuntamente atos e costumes considerados jurídicos.

32 ENDICOTT, Timothy. Herbert Hart,... p.48.

33 SCHIAVELLO, Aldo. Diritto come integrità,…p.139.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007134

concepção de objetividade presente emHart, uma visão que tem como intuitoacabar com a antecedente percepçãode uma realidade que pode ser vistade lugar algum ou, como aqui estásendo denominado, ceticismo externo e2) apontar para o fato de que a teoriade Dworkin pressupõe a objetividadehartiana mas, além disso, percebeseus limites – o aguilhão semântico – e,por isso, precisa construir um novoconceito de direito, não mais semântico,mas interpretativo.

Dworkin, no entanto, por delegar aointérprete uma função conceitualmentefundamental a atividade jurídica, precisaconstruir uma nova concepção de obje-tividade, que possa justificar o porquêda legitimidade da força pública, emúltima análise, depender de uma posiçãomeramente individual, a do juiz.34

A posição que nega este projeto é oque Dworkin chama de ceticismointerno ou, em outras palavras, adescrença na possibilidade de existênciade uma única resposta correta a cadacaso concreto, a right answer thesis,visto que cada intérprete acabaria, na

verdade, uma resposta distinta. Istoimpossibilitaria a busca pela certeza eobjetividade no domínio normativo,condições necessárias ao direito namodernidade, como mostramos noprimeiro ponto do ensaio.

A discussão, em suma, centra-se nasegunda fase interpretativa.35 Nesta,por não haver mais um consenso, háuma tentativa (segundo os céticosinternos destinada ao fracasso) deconstrução de uma teoria moral quejustifique, da melhor maneira possível,a organização dos elementos consen-suais dispostos na primeira etapa. Tor-nemos, então, à resposta de Dworkin.

Para Dworkin, a resposta ao ceti-cismo passa pela correta compreensãodo direito como integridade. Estaconcepção é, na verdade, uma formade encarar a atividade jurisdicional, ouseja, uma tentativa de compreendernossas instituições sobre a sua melhorluz, como se tivessem seguido, ao longoda história, uma mesma linha de prin-cípios. Isso significa que, quandocritérios contraditórios são encontradosna teoria moral que se está construindo,

34 Dworkin afirma que suas teses são, na verdade, “uma tentativa de melhorar a equivocadateoria do ‘simplesmente ali’ para o sentido dos julgamentos interpretativos”. Cf.DWORKIN, Ronald. Uma Questão..., p.252.

35 A interpretação judicial para Dworkin, como se sabe é criativa-construtiva. Criativa,por não se prender às intenções do autor e construtiva, visto que é o intérprete quepropõe um propósito ao seu objeto (regras). Para melhor compreensão do conceitodworkiano de interpretação Cf. DWORKIN, Ronald. Império..., p.64 e DWORKIN, Ronald.Uma Questão,... p.252-254.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 135

deve-se tentar encontrar uma novaexplicação, mais coerente,36 a fim deque as decisões judiciais não sejammeramente conciliatórias.37

O direito como integridade, então,ignora um velho debate sobre o papeldo juiz dentro da prática judicial, se estedescobriria ou inventaria o direito nocaso concreto. Como disse Pastore,essa concepção sugere um novo racio-cínio jurídico, entre as duas posições,mas, ao mesmo tempo, não relacionadoa nenhuma das duas.38 O direito, paraDworkin, não seria descoberto ouinventado, mas construído. Sempresendo buscada a única resposta correta,a mais coerente com o material jurídico.

É partindo desta busca pela coe-rência, na segunda fase da interpretaçãojurídica, que é possível compreender osprincípios na teoria de Dworkin, umconceito absolutamente fundamental àpercepção da objetividade em seu

pensamento. Dworkin normalmente étratado como possuindo duas fases depensamento. A primeira sendo expostaprincipalmente em “Levando os Direitosa Sério”, ao passo que a segunda estariapresente somente em “O Império doDireito”. Quando se trata da teoria dosprincípios, então, normalmente refere-se à exposição do capítulo quarto doLDS, e somente a este capítulo. Isto,entretanto, é um grande erro. Osprincípios dworkianos só podem sercompreendidos por meio da doutrinaexposta em “O Império do Direito” e,caso isso não ocorra, as distinçõespropostas pelo “primeiro” Dworkinpoderiam ser facilmente refutadas.39

A obra de Dworkin deve ser enca-rada como um todo, tentando tornarcoerente o que – aparentemente – écontraditório, tentando dar novas luzesa propostas antes consideradas incon-sistentes. Busca-se aqui uma teoria que

36 Coerência não consiste, na teoria do filósofo americano, somente na eliminação denormas contraditórias, as antinomias. A resolução das antinomias mostra-se uma questãode consistência (consistency). Sobre a distinção entre coerência e consistência nopensamento de Dworkin, em comparação com a posição de jusfilósofos como MacCormicke Bobbio, Cf. PINO G., Coerenza e verità nell’argomentazione giuridica. Alcune riflessioni,in Rivista internazionale di filosofia del diritto, LXXV, 1998, p. 87.

37 CALSAMIGLIA, Albert. Dworkin and the focus on Integrity, in ARSP, v.80, 1994, p.62.

38 PASTORE B., Integrità tradizione, interpretazione, in Rivista internazionale di filosofiadel diritto, IV Serie, n. 70, 1993, p.73.

39 Duas consistentes críticas que se apegam somente aos critérios expostos em LDSpodem ser encontradas em Hart e Schiavello. Devido a esta percepção, tende-se aconsiderar os princípios não como elementos diversos das regras, mas sim o mesmoelemento em um maior grau de abstração e generalidade, possibilitando que regrasdiferentes possam ser, nada menos, que exemplificações de um mesmo princípio. Cf.HART, Herbert. O Conceito,... p.322. e SCHIAVELLO, Aldo. Riflessioni sulla dittinzione“rules/principles” nell’opera di Ronald Dworkin. Rivista Internazionale di Filosofia delDiritto, Gennaio-Marzo, p.159 e ss., 1995.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007136

explique Dworkin de maneira que estepareça o mais coerente possível. Emoutras palavras, tenta-se mostrar Dworkinà maneira dworkiana. Isso significa queas distinções propostas em LDS, no quetoca à diferenciação lógica entre regrase princípios, precisam ser pensadas nostermos interpretativos de ID. O testede pedigree, por exemplo, que deter-mina a validade das regras, mostra-sealgo claro, já que a aplicação destasregras, na fase pré-interpretativa, defato, é tudo-ou-nada, pois a regra é umpadrão social, consensual, de aceitaçãocompartilhada. Ou se utiliza o determi-nado material como ponto de partidapara a segunda fase interpretativa, oueste material não constitui uma regrajurídica. É tudo-ou-nada.40

Os princípios não são, por seu turno,o fruto de uma criação ou convençãosocial, mas o resultado de um árduoprocesso interpretativo.41 São propostasmorais provindas do sujeito buscandoencontrar um abrigo dentro dos limites

do objeto. Isto que significa dizer queos princípios são elementos justifi-cativos, sendo do conflito entre o sujeitoe o objeto que resultam os princípios.Uma teoria moral é proposta ao objeto,e é função deste aceitá-la, ou não. O objeto,o direito estabelecido no acordo pré-interpretativo, possui na teoria dworkianauma função exclusivamente negativa, qualseja, mostrar ao sujeito os limites de suainterpretação, sobre o que este podedebruçar-se. Os princípios, desta forma nãosão descobertos no objeto, mas aceitos porele. E é dever do juiz tentar ponderar seusprincípios até o encontro da resposta correta.Um princípio, portanto, é um argumentomoral do intérprete para a justificação dodireito pré-estabelecido.42 Desta forma, cadacaso representa uma interpretação, e cadainterpretação representa um diferenteconjunto de princípios. Diferente tanto detodos os princípios anteriores como tambémdos posteriores. A razão deste caráterdinâmico é simples: os princípios sãoestruturados e construídos tendo em vista

40 Como se mostrou, a teoria hartiana não demonstra um conceito de regra tão restrito.Não propõe que o termo “regra” só exemplifique padrões de conduta formulados atravésde atos competentes, mas existência de uma regra, em Hart, acaba por significar a meraorigem de um fato histórico. O entendimento de Ronald Dworkin, sobre as proposiçõesde Herbert Hart, principalmente com relação à regra de reconhecimento não é restritivo.Pelo contrário, Dworkin leva em consideração os verdadeiros fundamentos de Hart,tornando-o coerente em seus próprios termos. Ao invés de criticar um “modelo” hartiano,Dworkin o julga dentro de seu próprio campo, o sociológico.

41 Sobre a relação entre princípios, regras e interpretação, Cf. WALDMAN, RicardoLibel. A Teoria dos Princípios de Ronald Dworkin. Direito e Justiça, Porto Alegre, v.25,p.119-145, 2002.

42 Os princípios não aparecem somente em casos difíceis, mas em qualquer caso. O termo“lacunas”, um dos critérios habituais para conceituação de um caso difícil mostra-se paraDworkin ininteligível. Cf. GESSINGER, Rafael Koerig. O Direito,... p.43.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 137

o caso concreto. Estes elementos,fundamentais à teoria dworkiana, não sãomáximas morais ontológicas, mas simplesargumentos interpretativos, que semodificam tendo em vista cada casoconcreto.43 Se o conteúdo dos princípiospudesse ser dado anteriormente ao caso eà hermenêutica construtiva, todos asposições contra o aguilhão semântico teriamsido em vão. Desta forma a moralidade dojuiz adentra no fenômeno jurídico, fazendocom que, como afirma Gessinger, “amoralidade política adquire forma medianteprincípios. Os princípios são justificativasmorais do direito que, todavia, fazem partedele. [...] O direito, livre da amarra semântica,articula a reflexão moral dentro de si.”44

A atribuição do caráter jurídico a umpadrão, portanto, é simplesmente umaquestão de terminologia. Expressa arelação de um enunciado ao “conceitode direito”, seja referente à “delibe-rações políticas coletivas tomadas nopassado”, seja referente à “relaçãoentre o poder e seu exercício”.

Dworkin cria um juiz imaginário,Hércules, que teria uma capacidade,uma sagacidade e uma paciência sobre-humanas e, desta forma, seria capaz deconstruir a teoria moral que melhor seadequaria ao acordo pré-interpretativo,ou seja, construiria uma teoria de prin-cípios correta, a única, que justificariaplenamente as regras sociais.

No entanto, ao expor sua teoria dosprincípios como intrinsecamente conec-tada à tese da única resposta correta,Dworkin passa a sofrer as principaiscríticas da posição cética interna.Interna porque, ao invés de criticar apossibilidade da participação do sujeitopara a determinação de objetividade,como propõe o ceticismo externo,analisa o caráter desta participação.Defende que práticas de cortesia, obrasde arte, etc. são por demais complexaspara terem uma única resposta correta.

O ceticismo interno centra-se,portanto, na idéia de indeterminação, ouseja, interessa-se pelo conteúdo dasafirmações, no sentido de que a únicaresposta correta é que nenhuma inter-pretação pode, com absoluta certeza,afirmar algo correto. Argumenta que a“interpretação ‘perfeita’ deve oferecerum tipo de unidade que nenhuma inter-pretação pode oferecer.”45 Em últimaanálise, não haveria uma resposta certa,mas apenas respostas diferentes.

O direito como integridade, naverdade, não está sendo devidamentecompreendido, ao sofrer esta crítica.Visto que a existência de distintasrespostas, verdadeiramente um fato,não é uma questão de indeterminação,mas de incerteza.

Não há problema nenhum emafirmar que as pessoas divergem sobre

43 Para outros sentidos atribuídos historicamente ao termo “princípio jurídico”, cf. CARRIÓ,Genaro. Principi di diritto e positivismo giuridico. in Rivista Internazionale di Filosofia delDiritto, Aprile-Giugno, p.127-148, 1970.

44 GESSINGER, Rafael Koerig. O Direito,... p.39.

45 GESSINGER, Rafael Koerig. O Direito,... p.113.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007138

valores, mas isso não traz razões paraafirmar racionalmente de que não háuma resposta correta.46 Dworkin chegaa afirmar que “absolute clarity is aprivilege of fools and fanatics”.47 Ocético interno não percebe que, emúltima análise, não pode afirmar aexistência desta indeterminação, já que,mesmo essa proposição é consideradauma proposição objetiva. Os céticosprecisam, ao menos, admitir a obje-tividade de suas formas de expressão,que concorre com as outras.

Um exemplo desta posição céticapode ser encontrada nas palavras deRobert Alexy, quando afirma queDworkin peca na defesa da existênciade uma resposta correta porque estadependeria de uma ordenação rígida dosprincípios internos ao ordenamento.Defende que sendo os princípios aexpressão de valores, não se poderiaem uma comunidade pluralista,estruturar uma “orden estrita”.48 ParaAlexy, em outras palavras, uma ordem

estrita não é possível, pois deveríamossaber a exata intensidade de realizaçãode cada princípio. Dworkin, entretanto,não propõe uma ordem estrita nosmoldes criticados por Alexy.

O direito em Dworkin tem relaçãodireta com a justificação. É destamaneira que enfrenta o ceticismointerno, explicando porquê um Estadolegítimo é aquele que proporciona umaobrigação política em seus cidadãos, ouseja, entre os cidadãos é reconhecidauma autoridade moral nos deveresimpostos por meio legal. Por isso que ateoria de Dworkin pode ser vista comouma teoria de direitos. Direitosindividuais que funcionam como “trumpcards” contra o Estado e suas políticaspúblicas. Triunfos políticos nas mãos dosindivíduos, que não podem ser negadosnem pelo governo, tampouco pelamaioria (sobre a base de argumentosde supostos benefícios ou prejuízosgerais). Incidir nesta prática implicariaem não “levar os direitos a sério”.49

46 Dworkin, de fato, afirma que “Nenhum aspecto do direito como integridade tem sidotão mal compreendido quanto sua recusa em aceitar a opinião popular de que não existemrespostas exclusivamente certas nos casos difíceis do direito. Eis uma afirmação queHercules rejeita: ‘Os casos difíceis são difíceis porque diferentes grupos de princípios seajustam suficientemente bem a decisões do passado para serem consideradas comointerpretações aceitáveis deles.’ Advogados e juízes vão divergir sobre qual deles é maiseqüitativo ou mais justo, mas nenhuma das partes pode estar ‘realmente’ certa, pois nãoexistem padrões objetivos de equidade e de justiça que um observador neutro pudesseutilizar para decidir-se por um deles.” DWORKIN, Ronald. Império..., p.317.

47 DWORKIN Ronald. Objectivity and truth,… p.133.

48 ALEXY, Robert. Sistema Jurídico, princípios jurídicos e razon práctica. Doxa,v.5, p.145.

49 VIGO. Rodolfo. La Interpretación jurídica en Ronald Dworkin, in Rivista Internazionaledi Filosofia del Diritto, Ottobre-Dicembre, LXX, 1993, p.666.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 139

Esses direitos derivam de um direitomais fundamental: o direito a uma igualconsideração e respeito. Um direito quediz respeito às decisões sobre a dis-tribuição dos bens pela máquina

pública.50 Desta forma, Dworkin admiteser a legitimidade uma questão moral,51

exigindo que o indivíduo também tenha,para usarmos uma terminologiahartiana, um ponto de vista interno.52

50 Dworkin, deve-se ressalvar, quando fala de direitos individuais, não está referindo-seaos direitos que são reconhecidos pelo Estado. Estes seriam, digamos, “direitos civispositivados”, visto que, como diz Watt, “os mesmos procedimentos ou decisões que criaramestes direitos podem estender, restringir ou até aboli-los”.O direito a um igual respeito econsideração é inato ao indivíduo e não conferido a ele. Watt concorda com essa posição,quando afirma que “It is to positive civil rights that we will appea if we can. If the rules orthe laws recognize our claim, we are then invoking, not human rights, but the rights ofresidents, citizens, voters, football players, or whatever. If the customs of our village recognizeour claim, we will appeal to those customs. But where aour claim is not recognized by therules or the law, there is no point in appealing to them. Rather, if we appeal, we must apealagainst them.” , Cf. WATT, E.D. Taking rights seriously enough: what kind of rights couldbe trumps?, in The American Journal of Jurisprudence, v.38, 1993, p.257.

51 A concepção de objetividade de Hart, por não depender moralmente do indivíduo, nãotorna a legitimidade uma questão moral, mas sociológica. A legitimação passa a dependerdos juízes e funcionários públicos, aqueles que, para Hart, precisam possuir um ponto devista interno. A justificação, nas palavras de Hart, é absolutamente inútil, visto que é umacondição necessária a um sistema jurídico que os cidadãos obedeçam ao direito, e nãoque o aceitem. Por outro lado, os critérios de identificação do direito precisam doreconhecimento dos funcionários públicos, visto que “se o ponto de vista interno nãoestivesse aí largamente disseminado, não poderia haver logicamente quaisquer regras.Mas onde há uma união de regras primárias e secundárias [...] a aceitação das regrascomo padrões comuns para o grupo pode ser desligada do aspecto relativamente passivoda aquiescência do indivíduo comum em relação às regras, obedecendo-lhes por suaconta apenas.” É por este motivo que Hart afirma que é necessário que haja um conteúdomínimo de moralidade, mínimo exatamente por ser o mínimo necessário para que sejapossível que ao menos algumas pessoas tenham uma perspectiva interna com relação aoordenamento e possam formar regras sociais. Sobre o caráter contingente deste direitomoral mínimo em Hart, Cf. CATTANEO, Mario. Il diritto naturale nel pensiero di HerbertHart. in Rivista Internazionale di Filosofia del Diritto. Milano, n.4, p.673-694, 1965. ParaHart, a relação entre o direito e o cidadão é uma relação de poder, e somente isso.A máquina pública só precisa manter sua regra de jurisdição, o que sociologicamentesignifica, em suma, ter força coercitiva para evitar uma revolução. Por isso que Hart podecomparar a sociedade a um rebanho, explicando que os “carneiros poderiam acabar nomatadouro.” Cf. HART, Herbert. O Conceito,... p.129 e 310.

52 Dworkin admite que seria muito complicado afirmar que o sistema nazista não era umsistema jurídico. Ele chega a afirmar que “não temos dificuldades em compreender alguémque diga que a lei nazista não constituía realmente um direito, ou era um direito num sentidodegenerado”, mas não era claro em dizer o porquê desta fácil constatação. Sociologicamenteo regime nazista é “direito”, mas é, entretanto, moralmente pouco desenvolvido.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007140

Desta forma a tese da resposta corretaencaixa-se, como uma das peçasprincipais, em uma mais abrangenteteoria política.

No entanto, a má compreensãodesta tese da única resposta, promovecriticas em Dworkin por algo que eleefetivamente não é. A resposta corretaé defendida como existente, não comopraticável. A integridade não é umautopia, mas um ideal que pode melhorarnossas práticas institucionais concretas,legitimando-as com os indivíduos. Aobrigação dos juizes seria, para usarmostermos civilistas, uma obrigação demeios e não de resultado.

A teoria de Dworkin é, em suaspróprias palavras, uma teoria políticacomum,53 ou seja, uma teoria que nãotrabalha com utopias, mas que visaprescrever como melhorar as institui-ções existentes. Em uma teoria políticautópica os problemas relativos à justiçae à equidade que seriam enfrentados.Não a integridade. E este fato não éuma questão de falta de espaço para aintegridade como ideal político, já queela seria absolutamente inútil dentro deuma utopia. “A coerência estaria garan-tida porque as autoridades fariam sempreo que é perfeitamente justo e imparcial.”54

É, portanto, desta forma que aobjetividade e a integridade se encon-tram. A objetividade nos enunciadosjurídicos, portanto, tem, como mostradono primeiro ponto, intrínseca relação

com a legitimação do uso da forçapública contra os indivíduos. Issomostra como a busca pela objetividadenos domínios jurídicos está presentetanto em Hart como em Dworkin, noentanto, visto os enunciados jurídicosterem tomado novos aspectos, seria umtruísmo esperar que os inimigostambém não o fizessem.

CONCLUSÃO

Este ensaio teve como principalproposta mostrar que algo habitualmentevisto como um debate era, na verdade,um projeto comum. Entre os objetivossecundários, pode-se listar 1) a noçãode objetividade em cada um dos autorese 2) o caráter da distinção lógica entreregras e princípios.

Ao perceber que o que está pordetrás do projeto moderno para o direitoé uma busca da legitimação da forçapública, é possível compreender asprincipais teses do que normalmente sedenomina de positivismo jurídico, emostrar que a autonomia do direito nãoé uma condição necessária, nem aomenos possível, como mostrou oprofessor Barzotto, para que estalegitimidade seja adquirida.

Hart e Dworkin, não voluntaria-mente creio, construíram concepçõesde objetividade que acabam porcomplementar-se, mostrando que o quedeveria ser evitado é, não a participaçãodo sujeito nos domínios normativos

53 DWORKIN, Ronald. Império..., p.199.

54 DWORKIN, Ronald. Império..., p. 213-4.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 141

(regras em Hart e princípios emDworkin), mas sim o ceticismo quantoà possibilidade e à maneira de como istoacaba por ocorrer.

O direito, para este projeto, não é,portanto, nem um conjunto de regras –objetivas devido à intersubjetividade dalinguagem – tampouco um conjuntosomente de princípios – objetivos devidoà busca por uma universalização damoralidade subjetiva. É, sim, umconjunto de regras e princípios, umfenômeno que alia o social ao individuale a tradição à coerência. Este projeto,

em suma, como também fez o positi-vismo, tenta mostrar sob quais con-dições é legítima a ação do poderpúblico contra pessoas. Mas com umadistinta visão sobre a natureza daobjetividade no direito, apontando parao fato que, quando o assunto é o fenô-meno jurídico, não é inteligível aparticipação do sujeito como um meroexpectador, a constituição dos enuncia-dos normativos exige, seja como partede um todo social, seja como um intér-prete do resultado deste todo, umposicionamento crítico do sujeito.

REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert. Sistema Jurídico, prin-cípios jurídicos e razon práctica.inDoxa, v.5, p.139-151, 1988.

BARZOTTO, Luis Fernando. OPositivismo Jurídico Contempo-râneo. São Leopoldo: EditoraUnisinos, 2000.

CALSAMIGLIA, Albert. Dworkin andthe focus on Integrity, in ARSP,v.80, 1994.

CATANIA, Alfonso. L’accetazione nelpensiero di Herbert L.A. Hart. RivistaInternazionale di Filosofia del Diritto.Milano, v. 48, n. 4, p.261-279, 1971.

CATTANEO, Mario. Il diritto naturale nelpensiero di Herbert Hart. in RivistaInternazionale di Filosofia del Diritto.Milano, n.4, p.673-694, 1965.

CARRIÓ, Genaro. Principi di diritto epositivismo giuridico, in Rivista diFilosofia. Torino, n.2, Aprile –Giugno, p. 127 – 148, 1970.

DWORKIN, Ronald. Levando os Direitosa Sério. (trad. Nelson Boeira) SãoPaulo: Martins Fontes. 2002.

DWORKIN, Ronald. Império do Direito.São Paulo: Martins Fontes. 2002.

DWORKIN Ronald. Objectivity andtruth: you’d Better Believe It, inPhilosophy & Public Affairs, 1996.

DWORKIN, Ronald. Uma Questão de

Princípios (Trad. Luis Carlos Borges).São Paulo: Martins Fontes, 2001.

ENDICOTT, Timothy. Herbert Hart andthe Semantic Sting. In COLEMAN,Jules (ed.). Hart’s Postscript: Essays

on the Postscript to The Concept of

Law. Oxford: Oxford UniversityPress, 2001.

GAFFNEY, Paul. Ronald Dworkin on

Law as Integrity: Rights as Principlesof Adjudication. Lewiston: TheEdwin Mellen Press, 1996.

GESSINGER, Rafael Koerig. O Direito

e a Filosofia Prática no Pensamento

de Ronald Dworkin. Dissertação demestrado, UFRGS, 2002.

HABERMAS, Jürgen. Como es posiblela legitimidad por via de la legalidad?

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007142

Revista Doxa, Universidad deAlicante, 1988.

HART, Herbert. O Conceito de Direito. 3.ed.Lisboa: Caulouste Gulbenkian, 1994.

HART, Herbert. Positivism and theseparation of law and morals. In:DWORKIN, Ronald (Org.). The

philosophy of law. Oxford: OxfordUniversity Press. 1977.

HUND, John. New Light on Dworkin’sJurisprudence. ARSP, v.LXXV. 1989.

MACCORMICK, Neil. The concept oflaw and ‘the concept of law’. OxfordJournal of Legal Studies, v.14, 1994.

MICHELON JR, Cláudio. Aceitação e

Objetividade, Dissertação deMestrado apresentada à faculdade deDireito/UFRGS em junho de 1996.

PARAMO, Juan R. de. H.L.A. Hart y

la teoria analítica del derecho.Madrid: Centro de EstudiosConstitucionales, 1984.

PASCUA, José Antonio de Ramos. La

Regla de Reconocimiento en la Teoria

Jurídica de H.L.A. Hart. Madrid:Fundacion Cultural Enrique LuñoPena, 1989.

PASTORE B., Integrità tradizione,interpretazione, in Rivista interna-

zionale di filosofia del diritto, IVSerie, n.70, 1993.

PINO G., Coerenza e veritànell’argomentazione giuridica. Alcune

riflessioni, in Rivista internazionaledi filosofia del diritto, LXXV, 1998.

RAZ, Joseph. Two Views of the Natureof the Theory of The Law, inCOLEMAN, Jules (ed.). Hart’sPostscript: Essays on the Postscriptto The Concept of Law. Oxford:Oxford University Press, 2001.

SCHIAVELLO, Aldo. Diritto comeintegrità: incubo o nobile sogno?Saggio su Ronald Dworkin,Giappichelli, 1998.

SCHIAVELLO, Aldo. Riflessioni sulladittinzione “rules/principles”nell’opera di Ronald Dworkin. RivistaInternazionale di Filosofia del Diritto,Gennaio-Marzo, p.159 e ss., 1995.

STAVROPOULOS, Nicos. Hart’sSemantics. in COLEMAN, Jules (ed.).Hart’s Postscript: Essays on thePostscript to The Concept of Law.Oxford: Oxford University Press, 2001.

VIGO. Rodolfo. La Interpretación jurídicaen Ronald Dworkin, in RivistaInternazionale di Filosofia del Diritto,Ottobre-Dicembre, LXX, 1993.

WALDMAN, Ricardo Libel. A Teoria dosPrincípios de Ronald Dworkin.Direito e Justiça, Porto Alegre, v. 25,p. 119-145, 2002.

WATT, E.D. Taking rights seriouslyenough: what kind of rights could betrumps?, in The American Journalof Jurisprudence, v.38, 1993.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 143

INTRODUÇÃO

O instituto da Responsabilidade Civilteve grande modificação em suadisciplina recentemente, razão pela qualse torna importante, senão essencial,caracterizar seus elementos, sob penade, em casos concretos, como o analisadono presente trabalho, impor condenaçõesa quem não deu causa a danos.

A Constituição Federal prevêexpressamente a indenização por danossofridos, e o Código Civil de 2002,igualmente, dispõe quanto à reparaçãodos atos ilícitos, através do instituto daResponsabilidade Civil. Os princípiosconstitucionais, analisados em conjuntocom os institutos da nova lei civil, levamà responsabilização daquele que causa

O acidente com o helicóptero PT-YAM no

município de Pinto Bandeira e o fato da vítima

como excludente do nexo de causalidade

Lúcia Souza d’Aquino*

o resultado, e apenas a ele. Nesse sentido,importantíssima a correta caracteri-zação da Responsabilidade Civil, comseus pressupostos, a fim de evitar pos-síveis erros, que certamente causariamdanos ao injustamente responsabilizado.

O anseio de obrigar o agente, causadordo dano, a repará-lo inspira-se no maiselementar sentimento de justiça. O danocausado pelo ato ilícito rompe o equi-líbrio jurídico-econômico anteriormenteexistente entre o agente e a vítima. Háuma necessidade fundamental de serestabelecer esse equilíbrio, o que seprocura fazer recolocando o prejudi-cado no statu quo ante. Impera nestecampo o princípio da restitutio in integrum,isto é, tanto quanto possível, repõe-se avítima à situação anterior à lesão.1

* Bacharel em Direito, formada em 2007/02. Trabalho de conclusão de curso de graduaçãoapresentado ao Departamento de Direito Privado e Processo Civil da Faculdade de Direitoda Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para a obtenção dograu de Bacharel em Direito. Orientadora: Profa. Dra. Véra Maria Jacob de Fradera.

1 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 6.ed., revista, aumentadae atualizada. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 36.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007144

A doutrina, bem representada porCaio Mário da Silva Pereira,2 CarlosRoberto Gonçalves,3 Fernando Noronha,4

Sergio Cavalieri Filho5 e Silvio Rodrigues,6

tradicionalmente refere cinco elementospara a caracterização da responsabili-dade: o ato ilícito, o dano, a culpa lato

sensu, nexo de imputação e o nexo decausalidade, este último o elemento demais difícil caracterização.

Destes, muito importante para quehaja a reparação do dano, é o nexo decausalidade, que revela exatamentequem é o causador do dano, quem deverepará-lo. Inexistente ou rompido, oinstituto da responsabilidade civilsimplesmente deixa de existir, não sendopossível cogitar qualquer indenização.

O Código Civil prevê causas em queo nexo de causalidade é rompido, ouseja, apesar de haver o ato ilícito, o danoe a culpa, não se configura o nexo decausalidade. As excludentes do nexo decausalidade previstas na legislaçãoe consagradas pela doutrina e ajurisprudência são o caso fortuito, aforça maior, o fato de terceiro e o fatoexclusivo da vítima.

O presente trabalho pretendedemonstrar, através da descrição de umcaso concreto, a complexidade nacomprovação de fato exclusivo davítima, e a sua caracterização comoexcludente de responsabilidade civil.Após a descrição explicativa do institutoda Responsabilidade Civil e seuselementos, passa-se à descrição do casoem que a controvérsia existente gira emtorno da atitude de um piloto comopropulsora de uma colisão de helicópterocom a rede de distribuição de energiaelétrica de alta tensão, ocasionandoexplosão e o óbito de todos os ocupantesda aeronave. O caso analisado foiprocessado e julgado em Porto Alegre,perante o juízo cível. A sentença deprimeiro grau7 reconheceu o ato dopiloto como propulsor do acidente.

O estudo da jurisprudência pátriademonstra dificuldade em reconhecerculpa exclusiva da vítima, principal-mente em casos que envolvem óbito.Parece haver uma resistência em dizerque um acidente ocorreu exclusi-vamente por fato da própria vítima; que

2 PEREIRA, CAIO MÁRIO DA SILVA. Instituições de Direito Civil. 10.ed. v. I e III. Rio deJaneiro: Forense, 1997.

3 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Volume IV: responsabilidade civil.São Paulo: Saraiva, 2007.

4 NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações. Volume I. São Paulo: Saraiva, 2003.

5 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa...

6 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. 15.ed., atualizada. v. 4. São Paulo: Saraiva, 1997.

7 COMARCA DE PORTO ALEGRE, 3ª Vara Cível. Processos nº 001/1.05.0070791-3, 001/1.05.0086660-4 e 001/1.05.0237241-2. Juiz de Direito Dr. Mário Roberto Fernandes Corrêa.Julgado em 22/05/2007.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 145

ela deu causa ao fato que lhe tirou avida. Em casos como o que aqui seráanalisado, em que há uma famíliadesamparada, há relutância emafirmar a atitude da vítima como fatocausador do dano.

Cavalieri Filho8 trata a matéria comofato da vítima, e não culpa, para nãoacarretar ao termo uma carga negativa,já que a culpa lato sensu engloba o doloe a culpa stricto sensu, esta divididaem imprudência, negligência eimperícia. Torna-se delicado afirmar quea vítima foi imprudente ou negligentecom sua própria segurança e veio aocasionar o próprio óbito.

Após a descrição do caso, tornar-se-á clara a conclusão pela inexistênciade responsabilidade civil por parte daconcessionária de energia elétricaenvolvida. No entanto, já houve umjulgamento referente ao mesmoprocesso em que a conclusão foicontrária à apresentada neste trabalho,restando processos pendentes de

julgamento, em que as partes insistemna existência de responsabilidade civilpor parte da concessionária.9

A decisão proferida torna-se deextrema importância, tendo em vistatratar-se de assunto em pautaatualmente, tendo em vista a atualsituação da aviação brasileira. Oschocantes acidentes ocorridos no paísenvolvendo aeronaves levam aoquestionamento direto acerca daresponsabilidade por acidentes, como astragédias recentemente ocorridas.

Ficará demonstrado que em todosos casos há que se ponderar em buscada causa do dano, para que se possaencontrar o real responsável poreventual indenização a ser buscada.

1. CARACTERIZAÇÃO DARESPONSABILIDADE CIVILNO DIREITO BRASILEIRO

A Responsabilidade Civil, no DireitoCivil Brasileiro, decorre de um ato ilícito,

8 CAVALIERI FILHO, Programa..., p.89.

9 Os outros processos movidos em razão do mesmo acidente têm como autores a AGFSeguros (001/1.05.0107477-9 – processado e julgado pela 5ª Vara Cível de Porto Alegre,encontra-se aguardando o julgamento do Recurso Especial 862.072, no STJ. Neste caso, ojuízo de origem entendeu pela existência de responsabilidade da concessionária de energiaelétrica), o IRB – Brasil Resseguros S.A. (001/1.05.2293828-4 – processado pela 12ª VaraCível de Porto Alegre, encontra-se aguardando o trânsito em julgado da decisão do processomovido pela AGF), Adelaide Durigon Viero (001/1.05.0078028-9 – processado pela 2ª VaraCível de Porto Alegre, encontra-se na fase de instrução), Rafael de Oliveira Morais (001/1.05.05803054-2 – processado pela 12ª Vara Cível de Porto Alegre, encontra-se na fase deinstrução), Luiza Rodrigues Morais (001/1.05.0028047-2 – processado pela 2ª Vara Cível doForo Regional do 4º Distrito de Porto Alegre, encontra-se apensado e aguardando a instruçãodo processo movido por Ciane Gautério Morais para julgamento em conjunto), e CianeGautério Morais (001/1.06.0049125-4 – processado pela 2ª Vara Cível do Foro Regional do 4ºDistrito de Porto Alegre, encontra-se na fase de instrução).

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007146

este considerado como aquele que violadireito, causa dano a outrem, ouexercício de direito que exceda limitesimpostos pelo fim econômico ou social,boa-fé ou bons costumes, ou seja, quenão seja permitido pelo direito, em simesmo ou nas suas conseqüências.10

Savatier caracteriza a ResponsabilidadeCivil como sendo “a obrigação que podeincumbir uma pessoa a reparar oprejuízo causado a outra, por fatopróprio, ou por fato de pessoas ou coisasque dela dependam”.11

O artigo 186 do Código Civilcaracteriza o ato ilícito, como sendoaquele decorrente de ação ou omissãovoluntária, negligência ou imprudência,que viole direito e cause dano a outrem.O artigo 187 prescreve, ainda, ser atoilícito aquele exercido excedendo oslimites impostos pelo fim econômico ousocial, pela boa-fé ou pelos bonscostumes. Estão excluídos os atospraticados em legítima defesa ouexercício regular de direito, ou com ofim de remover perigo iminente (desdeque o ato seja realmente essencial pararemover o perigo).12

O artigo 927 do referido Códigocaracteriza a responsabilidade civil, comseus elementos: aquele que, por ato

ilícito (arts. 186 e 187) causar dano aoutrem, fica obrigado a repará-lo. Daídecorrem os elementos necessários àcaracterização da responsabilidade civil:o ato ilícito, o dano, a culpa, o nexo deimputação e o nexo de causalidade.Ainda que em casos especiais, não sejanecessária a presença de todos oselementos, eles são sempre apresentadoscomo elementos essenciais à caracte-rização da responsabilidade civil.

A seguir, será caracterizado eanalisado cada um dos elementos,para melhor compreensão doassunto abordado.

1.1 Ato ilícito

O conceito de ato ilícito é importantepara a conceituação da responsabilidadecivil, tendo em vista a previsão de queaquele que comete ato ilícito deve indenizar.

Cavalieri Filho13 expõe a questão doconceito de ato ilícito e a inclusão daculpa em sua caracterização, tendo emvista que há casos de responsabilidadecivil sem culpa. No entanto, nãoapresenta resposta à questão, perma-necendo a dificuldade de caracterizaçãode ato ilícito em função da culpado agente.

10 NORONHA, Fernando. O nexo de causalidade na responsabilidade civil. RevistaTrimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro, Ano 4, Volume 14. P. 53-77. Abril/junho de2003, p.53.

11 SAVATIER, René. Traité de la responsabilité civile, v.1, n.1. Paris, 1939 apudRODRIGUES, Direito..., p.6.

12 O artigo 188 do Código Civil de 2002 prevê expressamente estes casos.

13 CAVALIERI FILHO, Programa..., p.30.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 147

Antunes Varela14 faz oportunaconsideração a respeito do tema,caracterizando como elemento básicoda responsabilidade o fato do agente.No entanto, não é qualquer fato: éaquele que é dominável ou controlávelpela sua vontade, uma manifestação daconduta humana, tendo em vista queapenas quanto a tais fatos cabe a idéiade ilicitude, o requisito da culpa e aobrigação de reparar o dano nos termosimpostos pela lei.

Humberto Theodoro Júnior, por suavez, ao caracterizar o ato ilícito, propõea conjugação das idéias de comporta-mento humano e antijuridicidade do ato.Então, ato ilícito é o comportamentohumano contrário às normas, e queacarrete dano injusto a outrem.15

Ocorrido o ato ilícito, deve-se avaliara existência e a extensão do dano, quese passa a conceituar a seguir.

1.2 O dano

Os danos objeto de responsabili-zaçãocivil podem ser tanto patrimoniais quantoextrapatrimoniais. A Constituição Federal,em seu artigo 5º, incisos V e X, e o CódigoCivil, em seu artigo 186, prevêem o direitode indenização por quaisquer danossofridos, tanto materiais quanto morais.

Cavalieri Filho bem define o dano,16

como a subtração ou diminuição de umbem jurídico, qualquer que seja suanatureza. De acordo com o autor, tantoos bens patrimoniais quanto osintegrantes de sua personalidade sãodanos indenizáveis. De tal diversidadede bens que podem ser subtraídos paraa caracterização do dano, surge adivisão do dano em patrimonial e moral.

Os danos patrimoniais, ou materiais,afetam diretamente o patrimônio dolesado. São os danos que podem sermonetariamente avaliados, e cujademonstração é obrigatória durante ainstrução processual, tendo em vista queo dever de reparar decorre da neces-sidade de promover ao lesado o resta-belecimento, na medida do possível, doestado patrimonial anterior ao dano.17

Dessa forma, torna-se necessária acomprovação do prejuízo, para pos-terior indenização.

Os danos extrapatrimoniais, comojá referido, afetam bem integrante dapersonalidade da vítima, seja este bemsua honra, moral, imagem, liberdade,etc. As espécies de danos extrapatri-moniais mais conhecidas são os danosestéticos (aqueles que afetam a apa-rência do lesado, através de marcaspermanentes, visíveis) e os danos

14 VARELA, João de Matos Antunes. Das obrigações em geral. Coimbra: Almedina, 1991.apud CAVALIERI FILHO, Programa ..., p.30.

15 THEODORO JÚNIOR, Humberto. “Dos Atos Jurídicos Lícitos. Dos Atos Ilícitos. DaPrescrição e da Decadência. Da prova”.in Comentários ao novo Código. Sálvio deFigueiredo Teixeira (coord.), v. 3, tomo II. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.17-18.

16 CAVALIERI FILHO, Programa..., p.96.

17 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado. 3.ed. 2a.reimpressão, tomo XXII. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984, p.208-209.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007148

morais (afetam a intimidade, impondohumilhação, tristeza, dor injusta e umsofrimento anormal ao indivíduo).

O Desembargador Francisco XavierMedeiros Vieira assevera que qualqueragressão à dignidade pessoal causalesão à honra, dando origem ao danomoral, sendo, por isso, indenizável.18

Ainda, há previsão de indenizaçãopor ofensa à liberdade pessoal, previstano artigo 954 do Código Civil,consistente em cárcere privado, prisãopor queixa ou denúncia falsa e de má-fé e a prisão ilegal.

A atual disciplina da Responsabili-dade Civil, conforme já demonstrado,portanto, considera passível de inde-nização qualquer dano juridicamenteinjusto a que a vítima não tenha dadocausa, ou seja, qualquer sofrimento ouabalo, patrimonial ou não, que sejacausado por outrem, pode ensejarressarcimento e responsabilização.

Caracterizados o ato ilícito e dano,parte-se para a conceituação da culpae sua necessidade ou não para que hajao dever de indenizar.

1.3 A culpa

A culpa, na responsabilidade civilbrasileira, aparece em suas modalidadesde dolo e culpa stricto sensu

(negligência ou imprudência), conformeprevisão do artigo 186 do Código Civil.

Carlos Roberto Gonçalves consi-dera que, para que haja o dever deindenizar, tratando-se de responsabilidadecivil subjetiva, não basta o ato ilícito,antijurídico, que viole uma norma.O dever surge a partir do momento emque o agente tem culpa pelo dano, porsua ação ou omissão voluntária, suanegligência ou imprudência. Não basta,portanto, que o agente procedaerroneamente; tal erro deve basear-seem sua culpa lato sensu.19

O dolo é caracterizado pelaintenção em provocar o dano. CarlosRoberto Gonçalves, em sua obra, defineo dolo por conduta que já nasce ilícita,em que a vontade do agente se dirige,desde sempre, à prática de umato antijurídico.20

18 AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. RELAÇÃO DE TRABALHO.RECLAMATÓRIA PARCIALMENTE PROCEDENTE NA JUSTIÇA ESPECIALIZADA.INACOLHIMENTO DA PRETENSÃO INDENIZATÓRIA, ÀQUELE TÍTULO, POR SETRATAR DE MATÉRIA DE NATUREZA CIVIL. AUSÊNCIA DE PROVA VÁLIDA PARALEGITIMAR O PLEITO. POSTULAÇÃO INEXITOSA. RECURSO DESPROVIDO.Qualquer agressão à dignidade pessoal lesiona a honra, constitui dano moral e é por issoindenizável. Valores como a liberdade, a inteligência, o trabalho, a honestidade, o carátere tantos outros com selo de perenidade, aceitos pelo homem comum, formam a realidadeaxiológica a que todos estamos sujeitos. Ofensa a tais postulados exige compensaçãoindenizatória. (...) (Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. Apelação Cível 40.541.Relator Des. Francisco Xavier Medeiros Vieira, 2ª Câmara Cível. Julgado em 19/10/1993).

19 GONÇALVES, Direito Civil..., p.295.

20 GONÇALVES, Direito Civil..., p.297.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 149

A culpa stricto sensu existequando, por inobservância, voluntária ounão, de normas de conduta, o agentecausa o dano, sem pretendê-lo. Existenas modalidades de negligência,imprudência ou imperícia. O CódigoCivil de 2006 menciona apenasnegligência e imprudência, tendoenglobado a imperícia nesta última.

Negligência é o descumprimento deum dever de cuidado ou atenção doautor do dano, através de condutaomissiva, segundo Cavalieri Filho.21

Imprudência ocorre em decorrênciade atitude comissiva de inobservânciavoluntária de normas, tanto legaisquanto de conduta, que acaba por lesaroutro indivíduo.

A imperícia, por sua vez, ocorrequando há falta de habilidade para aprática de atividade técnica do agenteem determinada função, profissãoou arte.22

No Direito Brasileiro, há previsãoexpressa de responsabilidade semculpa.23 É a chamada responsa-bilidade objetiva. Nesses casos, apenascom o rompimento do nexo de cau-salidade deixa de existir o dever deindenizar. Isso porque a responsabili-dade objetiva é fundada no risco24 daatividade desenvolvida.

Cavalieri Filho apresenta comoespécies de risco o risco-proveito(responde aquele que tira proveitoeconômico de atividade danosa – ubi

emolumentum, ibi onus), o riscoprofissional (cobre eventuais acidentesde trabalho), o risco excepcional(decorrente de atividade estranha àatividade comum da vítima), o riscocriado (atividade que cria risco àsociedade, sem envolver necessaria-mente proveito econômico) e o riscointegral (casos de responsabilidade civilagravada, em que se prescinde de nexode causalidade).25

Após a conceituação do ato ilícito,do dano e da culpa, cumpre conceituaro nexo de imputação.

1.4 Nexo de imputação

O nexo de imputação liga o autorao dano, e permite sua responsabi-lização. Leva em consideração apossibilidade de o autor do dano terconhecimento da ilicitude e dasconseqüências do ato praticado. Talconceito é importado do Direito Penal,pois leva em conta a imputabilidade doindivíduo, ou seja, a possibilidade deresponsabilizá-lo, sua capacidade deentender seus atos e conseqüências.26

21 CAVALIERI FILHO, Programa..., p.61.

22 GONÇALVES, Direito Civil..., p.295.

23 Artigos 927 e 933 do Código Civil e artigo 37, § 6º da Constituição Federal, além de leisespecíficas que não fazem parte do escopo do presente trabalho.

24 CAVALIERI FILHO, Programa..., p.61.

25 CAVALIERI FILHO, Programa..., p.156-158.

26 MIRANDA, Tratado..., p.20-21.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007150

O artigo 927 do Código Civil imputaàquele que causar o dano o dever deindenizar. No entanto, em casos em quea lei considera o responsável pelo danoincapaz de responder por seus atos,prevê quem deve por si responder. Sãoos casos previstos no artigo 932 doCódigo Civil.

Cavalieri Filho27 entende necessáriosdois elementos para a imputabilidade: amaturidade, ou o desenvolvimento mentaldo indivíduo, e a sanidade mental, higidez.E caracteriza a imputabilidade como oconjunto de condições do indivíduo quelhe dão capacidade para responder pelasconseqüências de seus atos, caso estessejam contrários ao seu dever. Éimputável aquele que deveria – e tem talconsciência – agir de outro modo.

Os casos de inimputabilidade são oselencados no artigo 3º do Código Civil,que arrola os totalmente incapazes;nesses casos, o responsável peloinimputável deve responder pelos danoscausados, além dos casos previstos nosartigos 936 a 938 do referido Código.

Caracterizados os quatro elementosjá tratados, parte-se para a conceituaçãodo nexo de causalidade, que, dos ele-mentos da responsabilidade civil, é o demais difícil e controvertida caracterização.

1.5 O Nexo de causalidade

Atinge-se neste momento o maiscontroverso elemento da Responsabili-

dade Civil. Pode existir ResponsabilidadeCivil sem nexo de imputação, sem culpaou sem ato ilícito. No entanto, aResponsabilidade Civil deixa deexistir se não há nexo de causalidade.Nesse sentido, bem observa JudithMartins-Costa:

Como se percebe, aí está umpressuposto que não pode jamaisser afastado do instituto daresponsabilidade civil, sob pena deesta se transformar em um jogo de azar,numa cega loteria. É, talvez, de todosos pressupostos da responsabilidade,o mais perto ancorado na perspectivamoral da ação humana, pois indica,primariamente, quem responde pelodano injusto que se causa (imputaçãosubjetiva). A lei, porém, pode ampliareste nexo, atribuindo a responsabili-dade a quem não causou diretamente odano, mas é tido, por um nexo deimputação, responsável pela segurança,ou pela garantia, ou pelo risco(imputação objetiva). Portanto, a noçãode nexo de causalidade não é, elatambém, uma noção naturalista,mas normativa.28

O nexo de causalidade liga, diretaou indiretamente, o fato e o dano.Significa que determinado dano deu-seem razão de determinado fato. “É omais delicado dos elementos daresponsabilidade civil e o mais difícil deser determinado. Aliás, sempre que umproblema jurídico vai ter na indagação

27 CAVALIERI FILHO, Programa..., p.50.

28 MARTINS-COSTA, Judith. “Do inadimplemento das obrigações”. in Comentários aonovo Código. Sálvio de Figueiredo Teixeira (coord.), v. 5, tomo II. Rio de Janeiro: Forense,2003, p.358-362.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 151

ou na pesquisa da causa, desponta a suacomplexidade maior”.29

Cavalieri Filho considera o nexo decausalidade o primeiro elemento a serexaminado, afinal, é necessário saberse o agente deu causa ao dano antesde avaliar sua responsabilidade. Econceitua o nexo como o que estabeleceo vínculo entre o comportamento doagente e o evento ocorrido, concluindo-se se este foi conseqüência natural desua conduta voluntária.30

No entanto, não há que se confundircausalidade com coincidência. O fatonão deve coincidir com a ocorrência dodano, deve causá-lo.31

É de difícil caracterização, tendo emvista que nem todas as situaçõesocorrem de forma a se tornar clara eindiscutível a causa do dano. Em razãode tal dificuldade, surgiram diversasteorias a respeito da causalidade dosdanos, das quais duas são aceitas noDireito Brasileiro: a Teoria da Equiva-lência de Condições e a Teoria daCausalidade Adequada.

A Teoria da Equivalência dasCondições, elaborada entre os anos de1860 e 1885 por Von Buri, é baseadana concepção de causa de Stuart Mill.32

Segundo tal entendimento, todas ascondições, positivas ou negativas,concorrem para produzir o resultado.Portanto, não havendo uma dascondições, não há o referido resultado.Não há a necessária distinção entrecausa e condição. Se diversas condiçõesconcorrem para um dano, não importaqual delas foi mais ou menos eficientepara sua ocorrência; todas elas sãoconsideradas equivalentes para oresultado. É a chamada teoria daconditio sine qua non, criticadapor levar a “uma exasperação dacausalidade e a uma regressão infinitado nexo causal”.33

A Teoria da Causalidade Adequada,elaborada por Von Kries, em 1888,também leva em consideração todas ascondições que colaboraram para oresultado. No entanto, avalia qual delasé a mais adequada para a produção do

29 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil. 9.ed. Rio de Janeiro: Forense,1998 apud CRUZ, Gisela Sampaio da. O problema do Nexo Causal na ResponsabilidadeCivil. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p.5.

30 CAVALIERI FILHO, Programa..., p.70 e 71.

31 CRUZ, O problema..., p.4.

32 Stuart Mill define a causa como sendo “a soma das condições positivas e negativasconsideradas em conjunto, o total de contingências de todas as espécies às quais, sendorealizadas, segue-se invariavelmente o conseqüente” MILL, Stuart. Sistema de lógicaindutiva e dedutiva. Liv. III, cap. V apud ROCHA, Marco Aurélio Martins. O problema donexo causal na responsabilidade civil. in Estudos Jurídicos, n.71, v.27. São Leopoldo:UNISINOS, setembro/dezembro de 1994, p.45.

33 CAVALIERI FILHO, Programa..., p.72.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007152

resultado, sendo esta a causa adequada.Leva em consideração a previsibilidadede que determinada ação produza certoresultado, portanto.34

Na conceituação feita por FernandoNoronha, a teoria da causalidadeadequada parte da condicionalidadeexistente entre o fato consideradodeterminante do dano e o resultadofinal. A esta condicionalidade acres-centa-se a adequação, ou seja, o danoé conseqüência previsível do fato.35

A doutrina brasileira é majoritária aoafirmar que o Direito Civil pátrio adotouesta última teoria.36 Não há, no CódigoCivil de 2002, menção expressa da teoriaadotada. No entanto, utiliza-se ainterpretação firmada na doutrina ejurisprudência com base no artigo 1.060do Código Civil de 1916, transcrita noartigo 403 do atual Código. Dessa forma,o efeito direto e imediato não é aquelemais próximo ao dano – temporalmentefalando –, e sim aquele que foi maiseficaz para o resultado ocorrido.

Superado o problema do fato quegerou determinado resultado, surgem as

excludentes do nexo de causalidade,que são os fatos que, quando verifi-cados, rompem o liame existente entrefato e dano. Os três casos de exclusãode nexo enumerados, unanimemente,por doutrina e jurisprudência são o casofortuito ou força maior, fato de terceiroe fato exclusivo da vítima.

Fernando Noronha faz importanteobservação ressaltando que os fatosexcludentes do nexo de causalidade nãopodem decorrer de precedente fato doresponsável aparente pelo dano. Nestecaso, estaria presente o nexo de causali-dade. Os fatos excludentes devem serindependentes de qualquer atitudeanterior do suposto responsável.37

O caso fortuito e a força maior sãocomumente tratados como sinônimos,sendo controversa sua distinção. OCódigo Civil prevê ambos no artigo 393,quando trata do inadimplemento dasobrigações, não fazendo diferenciaçãoalguma entre ambos.

Cavalieri Filho38 diferencia casofortuito de força maior, caracterizandoo primeiro como evento imprevisível e,

34 TEPEDINO, Gustavo. Notas sobre o Nexo de Causalidade. Revista Trimestral de DireitoCivil. Rio de Janeiro, volume 6, p.3-19. Abril/junho de 2001, p.6-7.

35 NORONHA, Direito..., p.600.

36 PONTES DE MIRANDA adota tal teoria ao afirmar que sempre que o fato é própriopara causar o dano, a responsabilidade estabelece-se, não havendo responsabilidade seo fato não é causalmente adequado à produção do dano. MIRANDA, Tratado..., p.185.Também em NORONHA, Direito..., p.609, e CAVALIERI FILHO, Programa..., p.73encontramos tal posicionamento. CAVALIERI FILHO ainda cita como adeptos de talteoria JOSÉ DE AGUIAR DIAS e CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA.

37 NORONHA, Direito..., p.622.

38 CAVALIERI FILHO, Programa..., p.91.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 153

por isso mesmo, inevitável, resultantede atitude humana ou de terceiro queintervém nos fatos. A força maior, noentanto, é previsível, mas inevitável,caracterizada principalmente porfatos da natureza (Acts of God).Caracterizam excludentes de nexo decausalidade por tratar-se de fatoestranho à conduta do aparente agente,sendo sempre inevitáveis.

O parágrafo único do citado artigoprevê a ocorrência de caso fortuito ouforça maior quando o fato ocorrido énecessário, e os efeitos são de impos-sível evitabilidade ou previsibilidade.Fernando Noronha39 acrescenta, ainda,que o fato deve ser irresistível paracaracterização de caso fortuito ou forçamaior. O mesmo autor consideradesnecessária a diferenciação entreambos, tendo em vista que são sempretratados em conjunto pela legislação.

Para se entender o fato de terceiro,é necessário, primeiramente, caracte-rizar o terceiro. Terceiro é todo aqueleque não é o lesado ou o aparente res-ponsável pelo dano.40 Tem-se, portanto,que o fato de terceiro exclui a responsa-bilidade daquele contra quem a demandaé dirigida, tendo em vista que, apesar

de aparentemente ser o causador dosdanos experimentados pelo lesado, narealidade não foi ele o causador.

Da mesma forma ocorre com o fatoda vítima. Muitos autores tratam o fatoda vítima como sua culpa exclusiva. Taldenominação remete ao conceito deculpa, e não de causalidade, motivo peloqual não é bem aceito pela doutrina maisrecente. Um exemplo utilizado paraexplicitar a imprecisão de tal denomi-nação é o suicídio de um indivíduo quese atira sob um veículo. Se tal indivíduofor inimputável, não há que se falar emsua culpa. Dessa forma, o seu fato, enão sua culpa, é o que exclui eventualresponsabilização do motorista.

Explicitado o termo a ser usado –fato exclusivo da vítima –, parte-se parasua caracterização.

O Código Civil de 2002 não prevêexpressamente o fato exclusivo davítima como excludente da causalidade;no entanto, o artigo 186, ao prever que“aquele que violar direito e causar danoa outrem...” prevê expressamente queapenas comete ato ilícito, e respondecivilmente, aquele que efetivamentecausa o dano. E, sendo tal dano causadodiretamente pela vítima, não há como

39 NORONHA, Direito..., p.619-634.

40 Fernando Noronha bem exemplifica tal conceito através de um engavetamento deveículos. Em caso de colisão de vários carros porque um deles não conseguiu frear, esteé o responsável pelo acidente. No entanto, não é o veículo que colidiu com todos osveículos. Para alguns veículos, o causador do acidente não é necessariamente o quecolidiu diretamente. Dessa forma, o causador do dano é um terceiro, e não as partesdiretamente envolvidas nos danos causados a um dos veículos. Tal exemplo foi retiradode acórdão do 1º Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, julgado em 08/04/1986, publicadona Revista dos Tribunais, 607:117. NORONHA, Direito..., p.621.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007154

outro responder. É o que já previa opreceito romano “quod quis ex culpa

sua damnum sentit, non intelligitur

damnum sentire”.41

Apesar de o conceito de fatoexclusivo da vítima ser claro, ajurisprudência brasileira reluta muito emcaracterizá-lo, principalmente em casosde acidente com morte. Isso porqueainda se coloca em destaque a culpaexclusiva da vítima, e pode parecerofensivo relatar que a vítima foi aculpada pelo próprio óbito. No entanto,deve-se analisar os casos deresponsabilidade civil levando-se emconta os princípios adotados pelolegislador e pela doutrina ejurisprudência. Como bem refere GiselaSampaio da Cruz, a nova realidadeimpõe que a responsabilidade civil tenhapor objetivo não mais castigarcomportamentos negligentes, senãoproteger vítima do dano injusto.42

Assim como a vítima encontra-seatualmente favorecida, através dehipóteses de responsabilidade objetiva,que prescinde de culpa, deve ela agirde acordo com os princípios de boa-fée cuidado, na responsabilidade

contratual, e com atenção e precaução,na delitual, evitando dar causa a danosque lhe prejudiquem.

Caracterizado o instituto daResponsabilidade Civil no DireitoBrasileiro, passa-se à análise do caso aque se propõe o presente trabalho. Neste,observar-se-á a importância fundamentaldo instituto do fato exclusivo da vítima.O caso mostra-se paradigmático noinstituto da responsabilidade civil, no quetange à exclusão do nexo de causalidade.Demonstra-se, após longa dissertaçãosobre o acidente ocorrido e as condiçõesem que este se deu, a impossibilidade deresponsabilizar civilmente a aparentecausadora do infortúnio.

2. O CASO: ACIDENTE DEHELICÓPTERO NOMUNICÍPIO DE PINTOBANDEIRA43

O caso a ser analisado decorre doacidente ocorrido em 29 de novembrode 2001, no município de Pinto Bandeira,interior do Rio Grande do Sul, próximoao Rio das Antas. Na ocasião, umhelicóptero sobrevoava o Vale do Rio

41 Tradução: “quando alguém experimenta dano, por culpa sua, não se entende que sofradano”. Pomponius, Digesto 50, 17, 203 apud CRUZ, Gisela Sampaio da. O problema doNexo Causal na Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p.167, nota 310.

42 CRUZ, O problema..., p.17.

43 Há nove processos em curso em razão deste acidente. O presente trabalho tomarácomo base o processo nº 001/1.05.0070791-3, que tramita perante a 3ª Vara Cível da Comarcade Porto Alegre e tem como autoras Alice Treib Porto da Silva e sua mãe, Mara ReginaTreib de Herrera, que foi instruído e julgado em conjunto com os processos movidos porShirley Galli Taylor da Rosa (processo nº 001/1.05.0237241-2) e Pedro Yates Porto da Silva(processo nº 001/1.05.0086660-4).

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 155

das Antas a fim de realizar períciatécnica no local. Uma das pás da hélicedo helicóptero enroscou-se na rede dedistribuição de energia elétrica de altatensão. O piloto perdeu o controle daaeronave, que se chocou contra umparedão próximo ao local e explodiu.Os cinco ocupantes faleceram.

Foi realizada perícia no local eaberto inquérito policial para a apuraçãodas causas do acidente. O inquéritopolicial foi arquivado por considerar queo helicóptero encontrava-se a umaaltura inferior à mínima permitida, nãohavendo culpa ou dolo da conces-sionária de energia elétrica.

A legislação brasileira prevê asinalização da rede de distribuição deenergia elétrica, com o uso de esferasvermelhas ou de cor laranja, a partir dedeterminada altura, a fim de evitarcolisões como a ocorrida neste caso.44

Então, foi estabelecida a contro-vérsia. De um lado, as famílias dosocupantes da aeronave afirmam que osfios da rede de energia elétricadeveriam estar sinalizados; de outro, aconcessionária de energia elétricasustenta que não havia necessidadede sinalização, e que o helicópteroencontrava-se a altura inferior àpermitida. Não havendo consenso, ademanda foi levada ao Poder Judiciáriopara apreciação.

As famílias dos cinco ocupantesajuizaram demandas afirmando que

houve culpa tanto da concessionária deenergia elétrica quanto da empresa detáxi aéreo que alugou o helicóptero, oque deu origem a ações requerendoindenizações pelos danos moraissofridos. Além disso, tanto a Seguradoraque pagou a indenização à empresaproprietária do helicóptero quanto oInstituto de Resseguros do Brasil, quetambém arcou com os custos daaeronave, acionaram a concessionáriade energia elétrica, requerendo res-sarcimento pelos danos causados.45

Alegaram serem ambas asempresas responsáveis pelo acidente.A empresa concessionária, por nãohaver sinalizado a rede de alta tensãoque passava por cima do Rio das Antas,e a proprietária do helicóptero, por terfornecido a aeronave para vôo nãoautorizado, além de responder pelos atosdo piloto, que teria conduzido o helicóp-tero com imperícia, levando à colisãofatal, conforme previsão expressa doart. 932 do Código Civil de 2002 (que éaplicável ao presente caso por força doart. 2.028 do referido diploma).

Postularam indenização pelos danosmorais sofridos em razão da perda dosfamiliares. Diante da perda do pai emarido no acidente, sofreram danospsicológicos. As ações, movidas pelosfamiliares do biólogo do Departamentode Conservação da Secretaria Estadualdo Meio Ambiente e do engenheiroagrônomo da Divisão de Licenciamento

44 ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. Sinalização de advertênciaem linhas aéreas de transmissão de energia elétrica: NBR 7276. Rio de Janeiro, 1993.

45 Ver nota 9, com situação atual dos processos.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007156

Florestal de Áreas Protegidas da Secre-taria Estadual do Meio Ambiente foraminstruídas e julgadas conjuntamente.

A controvérsia da demanda situava-se na regularidade ou não da rede deenergia elétrica e na regularidade dovôo ocorrido. Nas outras demandas,reside a mesma controvérsia, razão pelaqual a decisão proferida torna-se extre-mamente relevante. As informaçõescolhidas e aqui citadas referem-se àsinformações constantes nos autos.

Em primeiro lugar, será analisado ovôo realizado.

2.1 Análise do vôo realizado

No dia 29 de novembro de 2001, às11h30, o helicóptero Esquilo PT-YAMpartiu do Aeroporto Salgado Filhoconduzindo profissionais para sobrevôode reconhecimento sobre o Rio dasAntas, com o fim de avaliar o impactoambiental decorrente do projeto deconstrução de três usinas hidrelétricaspróximas ao local.

Por tratar-se de vôo em que serianecessário avaliar impacto ambiental deuma obra sobre a fauna e flora da região,deveria ser realizado, em algunsmomentos, em baixa altura, já que ainspeção visual era necessária e deveriaser registrada e processada pelosocupantes da aeronave.

Dessa forma, considerado o tipo deaeronave e a natureza do vôo (VFR –Visual Flight Rules),46 as regras parasua realização estão especificadas naIMA 100-4.47 A instrução prevê asseguintes alturas mínimas para vôo:

3.2. ALTURAS MÍNIMAS PARAVÔO VFRa. Exceto em operações de pouso edecolagem, ou quando autorizado peloSRPV48 ou CINDACTA49 com jurisdiçãosobre a área em que seja pretendida aoperação, o vôo VFR de helicópteronão se efetuará sobre cidades,povoados, lugares habitados ou sobregrupo de pessoas ao ar livre, em alturainferior a 500 pés acima do mais altoobstáculo existente em um raio de 600mem torno da aeronave.Em lugares não citados em a. anterior, ovôo não se realizará em altura inferioràquela que lhe permita, em caso deemergência, pousar em segurança e semperigo para pessoas ou propriedadesna superfície.NOTA: Esta altura deve ter no mínimo200 pés.c. Tendo em vista atender a operaçõesespeciais de helicópteros, tais como:vôos panorâmicos, de filmagem, deinspeção de redes elétricas, etc.,poderão ser autorizados vôos VFR,abaixo da altura mínima especificadaem a. anterior, mediante autorização doSRPV com jurisdição na área em queseja pretendida a operação.

46 Tradução livre: Regras de vôo visual.

47 Instrução do Ministério da Aeronáutica, que contém regras especiais de tráfego aéreopara helicópteros.

48 SRPV – Serviço Regional de Proteção ao Vôo

49 CINDACTA – Centro Integrado de Defesa Aérea e Controle de Tráfego Aéreo.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 157

O local, conforme apurado peloInstituto-Geral de Perícias, peloMinistério Público e de acordo comtestemunhas ouvidas no local, erahabitado, razão pela qual a alturamínima para o vôo era de 500 pés.50

Ou, caso o vôo tivesse sido autorizadopelo SPRV, o que ocorre em casosexcepcionais, o helicóptero poderiaestar a 200 pés do solo.51

O acidente ocorreu aproximada-mente às 12h30min, quando uma daspás do rotor principal do helicópterocolheu um dos fios da rede de distribuiçãode energia elétrica existente, vindo aenroscar-se. A aeronave foi de encontroa uma das paredes da encosta do Riodas Antas, onde colidiu e explodiu.

Quanto à sinalização da linha aéreade distribuição de energia elétrica, aNBR 727652 exige a sinalização da linhaque passe a uma altura igual ou superiora 150m do solo:

3.2. Sinalização diurna em travessiasobre vale profundo:Na travessia de linha de transmissãosobre vales profundos, nos vãos em queo cabo superior se situar a uma alturaigual ou superior a 150m do solo, emalgum ponto, à temperatura mínimado projeto sem vento, este cabo ésinalizado com esferas...

A perícia realizada pelo Instituto-Geral de Perícias para apuração dascondições do acidente foi realizada emum helicóptero equipado com um GPSe um altímetro, que especificaram ascoordenadas das margens do rio, dolocal e dos postes correspondentes àlinha de distribuição.

Há controvérsia nos autos quanto àaltura dos fios de distribuição da redeelétrica. Portanto, foi elaborado estudotécnico pelos engenheiros elétricos LuizOsório Flores Cabral e Sadi RoniMatzembacher, que esclarece as contro-vérsias existentes em decorrência de umlaudo da SPAR53 foi juntado aos autosda ação proposta pela AGF Seguros (jámencionada, ver nota 9), e que afirmaque a linha de transmissão rural fica nabarranca do rio, a aproximadamente 300metros do nível do rio.

O fato é que o terreno, no local doacidente, é extremamente sinuoso, e alinha de distribuição de energia elétricaacompanha tal sinuosidade. Nasmargens do rio, o terreno possui umaclive, que é acompanhado pelos fios.Portanto, a linha pode se encontrar a300m do nível do rio, mas fica a 130metros do solo.

A NBR 7276 apenas impõe que ofio deve estar sinalizado se, em algum

50 Um pé corresponde a 30,48cm. 500 pés correspondem, portanto, a 152,40m.

51 200 pés correspondem a 60,96m.

52 Norma da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) que dispõe sobresinalização de advertência em linhas aéreas de transmissão de energia elétrica.

53 SPAR – Serviços Periciais Aeronáuticos Ltda.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007158

ponto, a distância vertical entre o solo ea rede de distribuição for superior a150m. No entanto, em ponto algum aaltura da rede ultrapassa os 150m,estando geralmente a 130m do solo.Então, diante do fato de que a rede dedistribuição de energia elétricaencontrava-se abaixo dos 150m, não eraobrigatória a sinalização da rede dedistribuição de energia elétrica.

De posse do dado referente à alturados fios da rede de distribuição deenergia elétrica, uma conclusão torna-se lógica: se o helicóptero enroscou-secom a rede de distribuição, obrigatoria-mente estava voando à altura desta, ouseja, 130m. E, para vôos a esta altitude,seria necessária a autorização do SRPVou CINDACTA, o que não ocorreu.

Estão postas, pois, as condições emque ocorreu o acidente. Em seguida,serão analisadas tais condições, paraapuração da causa do acidente e daresponsabilidade civil.

2.2 Análise da causa do acidente

Para apuração da causa do acidenteocorrido, deve-se retomar os conceitosinerentes à causalidade adotadas emsede de Responsabilidade Civil. Comoapontado anteriormente, a doutrinabrasileira adota a Teoria da CausalidadeAdequada para apuração das causasdo dano. A jurisprudência segue omesmo caminho.

O Desembargador Dálvio LeiteDias Teixeira, em recurso de apelaçãocível, manifesta-se no sentido de quenem todas as circunstâncias queconcretamente concorrerem para aprodução do resultado são relevantes,sendo-o somente aquela que interferiude forma decisiva.54

Também o Centro de Estudos Jurí-dicos do Conselho da Justiça Federal,durante a I Jornada de Direito Civil, apro-vou enunciado reconhecendo a aplicabi-lidade da teoria da causalidade adequada.55

54 APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL EM ACIDENTE DE TRÂNSITO.ROUBO DE VEÍCULO. PERSEGUIÇÃO POLICIAL. CASO FORTUITO. AUSÊNCIA DENEXO CAUSAL. - Não há que se falar na responsabilidade do proprietário, quando,desapossado de seu veículo mediante grave ameaça, vem o mesmo a colidir com veículoconduzido pela parte demandante. Inexistem provas de que o demandado tenha deixadode tomar as cautelas necessárias com a guarda de seu veículo, dando azo ao roubo pormeliantes. - A prova dos autos evidencia que o veículo conduzido pelo autor foi abalroadoautomóvel roubado conduzido por criminosos durante uma tentativa de fuga deperseguição policial. Teoria da Causalidade Adequada. Afastado o nexo de causalidade.(...) Agravo retido não conhecido. Rejeitada a preliminar. Apelo desprovido. (ApelaçãoCível Nº 70019462415, Décima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator:Dálvio Leite Dias Teixeira, Julgado em 06/09/2007).

55 Art. 945: o art. 945 do Código Civil, que não encontra correspondente no Código Civilde 1916, não exclui a aplicação da teoria da causalidade adequada.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 159

Para o caso, portanto, interessadeterminar a causa adequada doacidente, a causa sem a qual não teriaocorrido o resultado.

Duas seriam as possíveis causaspara o acidente, o que gera toda acontrovérsia existente nos processosem curso: a ausência de sinalização darede de distribuição de energia elétrica,por parte da concessionária de energiaelétrica, e a altura em que o pilotoconduzia o helicóptero.

Primeiro, será analisada a redeelétrica. Ainda que não exista o deverde sinalização da rede elétrica, aconcessionária de energia, por força nodisposto no artigo 37, § 6º daConstituição Federal, responde pelosdanos que causar, independentementede culpa. Portanto, se existir nexo decausalidade entre o dano ocorrido e ofato de estar a rede de distribuiçãosem sinalização, deverá a concessio-nária indenizar. Só será eximida daresponsabilidade em caso de inter-rupção do nexo causal, por uma dasexcludentes já citadas.

A sinalização na rede de distribuiçãotem como fim alertar as aeronaves desua existência. No caso em tela, se elaexistisse, o piloto teria avistado a redede distribuição. No entanto, ainda quea sinalização não existisse, pois não eranecessária, o piloto tinha ciência de suaexistência. Os pilotos ouvidos duranteo inquérito de apuração das causas doacidente, feito pelo Ministério Público,informaram que todos os pilotos sãoinformados, quando vão sobrevoar aárea do Rio das Antas, da existência de

rede de distribuição de energia elétricanão sinalizada. O piloto Eduardo deAzevedo Sperb, que fora ouvido nosprocessos como testemunha, informater contado, em vôos anteriores, trêslinhas sem sinalização.

O piloto envolvido no acidente jáhavia sobrevoado o local em trêsocasiões, e conhecia bem o local doacidente. Em relatório elaborado peloCentro de Investigação e Prevenção deAcidentes Aeronáuticos, ficou compro-vado que o piloto já havia sobrevoado aárea anteriormente. Portanto, a sinali-zação da rede da distribuição de energiaelétrica poderia alertar o piloto quantoà sua existência, mas não teria neces-sariamente evitado o acidente.

Passa-se, agora, a analisar a altitudedo piloto da aeronave. Como jádiscorrido, a altura em que o helicópterose encontrava era de aproximadamente130m. Para estar pilotando a esta altura,seria necessária autorização do órgãoresponsável, o que não houve.

O piloto, portanto, agiu com negli-gência, diante da inobservância denorma que deveria ser seguida. A alturamínima para o vôo não tem outrafinalidade que não promover a segu-rança da população e dos ocupantes dasaeronaves. Portanto, deve ser seguidaà risca. Se, abaixo de determinadaaltura, se torna necessária autorizaçãoprévia para o vôo, conclui-se que há ummaior risco envolvido, e deve-seredobrar a segurança em tais casos.

No entanto, mesmo sabendo quedeveria realizar o vôo em baixa altitude,devido ao tipo de avaliação que deveria

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007160

ser feita, e da necessidade de proximi-dade com o solo, o piloto não teve aprecaução de requerer tal autorização.

Somando-se à ausência de auto-rização o fato de que o piloto conheciaa região e a existência da rede dedistribuição de energia elétrica, surgedaí sua imperícia, ao ignorar normavigente e de realizar atividade técnicasem observar a sua segurança e dosocupantes da aeronave.

Se o piloto houvesse requerido aautorização para o vôo naquele local,em baixa altitude, e tivesse obtido talautorização, mesmo diante do alto riscodecorrente da existência da fiaçãoexatamente na altura em que a aeronaveestaria voando, certamente teria sidonovamente alertado da existência darede, o que teria feito com que redo-brasse a atenção no local.

E, se tivesse obedecido a alturamínima para o vôo, que é o que deveriater ocorrido, simplesmente não teriaocorrido o acidente. Ainda que a redede energia elétrica não estivessesinalizada, se o piloto do helicópterotivesse cumprido a Instrução daAeronáutica, e observado a alturamínima para o vôo, o que é plenamentepossível, tendo em vista que helicópterossão equipados com altímetros, nuncateria ocorrido a colisão entre os fios e ahélice do helicóptero, e o acidente fatal.E, mesmo se a rede de energia elétricaestivesse sinalizada, a condução dohelicóptero a 130m de altura teriacausado a colisão, da mesma forma.

Portanto, por qualquer ângulo quese analise, conclui-se que se o heli-

cóptero não estivesse voando abaixo daaltura mínima permitida não teria suahélice colhido um dos fios da rede dedistribuição de energia elétrica, e nãoteria ocorrido a colisão, a explosão, oacidente. A causa adequada a causaracidente foi, então, a conduta culposado piloto do helicóptero, nasmodalidades de negligência e imperícia.

A seguir, será analisada acaracterização de ResponsabilidadeCivil no caso.

2.3 Caracterização da respon-sabilidade civil no caso em estudo

Para averiguar a existência dodever de indenizar, deve-se analisar aexistência dos cinco elementos neces-sários à sua caracterização. Tendo emvista que o caso está sendo analisadotendo a concessionária de energiaelétrica como possível responsável peloacidente, a caracterização será feita sobesse ponto de vista.

O ato ilícito, em princípio, existe.Considerando-se que a rede dedistribuição não estava sinalizada, teriahavido omissão da concessionária,caracterizando omissão que causa danoa outrem. Seria, portanto, um fatoantijurídico que originou lesão injusta aterceiro, ensejando indenização pelosdanos sofridos. Por tratar-se deatividade de risco a desenvolvida pelaconcessionária, não precisa havernecessariamente ato ilícito. Elaresponde pelo risco criado a terceiros.

O dano, no presente caso, éinegável. Todos os ocupantes da aero-

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 161

nave faleceram tragicamente, deixandofamílias desamparadas. Este é oentendimento do Superior Tribunal deJustiça e do Tribunal de Justiça do RioGrande do Sul. A morte de um familiaracarreta, certamente, sofrimento, sendodesnecessária sua comprovação.

Neste sentido é o voto do MinistroAldir Passarinho Junior, no julgamentode Recurso Especial em matéria deResponsabilidade Civil. Tratava-se deacidente com ônibus transportandopassageiros, em que faleceu o pai dosautores. Há alegação que as duas filhasda vítima, por serem casadas, nãosofreriam dano moral. O Ministroconsidera que a relação afetiva não seapaga através do casamento.56

O Desembargador Paulo RobertoLessa Franz, ao julgar apelação cível em

ação de danos morais em razão do assas-sinato do filho da autora, ocorrido em localfechado e com seguranças, assevera queo dano moral decorre do próprio eventodanoso, sendo imensuráveis a dor e osofrimento suportados pela autora. Trata-se, portanto, de dano in re ipsa.57

A culpa, do ponto de vista dos autoresda demanda, estaria caracterizada apartir do momento em que não hásinalização da rede de distribuição deenergia elétrica. Por tratar-se deResponsabilidade Objetiva, não énecessária a existência da culpa para aexistência do dever de indenizar. Assim,ainda que não haja culpa, presentes osdemais elementos, caracterizar-se-ia aresponsabilidade civil.

O nexo de imputação tambémexistiria. O acidente ocorreu através da

56 CIVIL E PROCESSUAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. ACIDENTE COM COLETIVO.MORTE DE PASSAGEIROS. NULIDADE DO ACÓRDÃO NÃO CONFIGURADA.DEPENDÊNCIA ECONÔMICA. FUNDAMENTAÇÃO. SUFICIÊNCIA. PROVA.REEXAME. IMPOSSIBILIDADE. DANO MORAL DEVIDO AOS FILHOS E IRMÃOS.(...)III. Dano moral presumido dos autores, pela perda das vidas do pai e irmão acidentados,desimportando a circunstância de que duas delas já se achavam casadas, porquanto oslaços afetivos na linha direta e colateral, por óbvio, não desaparecem em face do matrimôniodaqueles que perderam seus entes queridos.(...)VI. Recurso especial conhecido em partee improvido. (REsp 330.288/SP, Rel. Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, QUARTATURMA, julgado em 27.06.2002, DJ 26.08.2002 p.230).

57 EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO DEINDENIZAÇÃO. DANOS MORAIS. PENSÃO MENSAL. MORTE DO FILHO DAAUTORA. ILÍCITO CIVIL CONFIGURADO. (...) 3. DANO MORAL. CONFIGURAÇÃO.São imensuráveis a dor e o sofrimento suportados pela autora, ante a perda precoce dofilho, estando caracterizado o danum in re ipsa, o qual se presume, conforme as maiselementares regras da experiência comum, prescindindo de prova quanto à ocorrência deprejuízo concreto. (...) APELAÇÕES DA AUTORA E DA RÉ VIGILÂNCIA PEDROZOLTDA. IMPROVIDAS. APELO DO SESC PARCIALMENTE PROVIDO. (Apelação CívelNº 70016733685, Décima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Paulo RobertoLessa Franz, Julgado em 27/09/2007).

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007162

colisão de uma aeronave com fios darede elétrica, de propriedade eresponsabilidade da concessionária. Setais fios causassem o dano, deveria aempresa responder.

Chega-se, portanto, ao último – emais importante, no caso – elementopara a caracterização da Responsabi-lidade Civil da concessionária: o nexode causalidade. Conforme explanado,o dano foi ocasionado por atitudeexclusiva da vítima, o que é uma dasexcludentes do nexo de causalidade.Interrompido o nexo de causalidade, emdecorrência de fato exclusivo da vítima,inexiste responsabilidade daconcessionária pelo acidente.

Realmente, seria contrário à justiçaque alguém que não tenha dado causaa uma lesão devesse ser responsabili-zado. Se, por alguma razão, não há onexo de causalidade, não existe respon-sabilidade. O piloto foi o responsávelpelo acidente, ele deve responder pelosdanos sofridos e causados a outrem.

Tal conclusão é de importância parao caso, tendo em vista tratar-se deresponsabilidade objetiva. Se nãoestivesse rompido o nexo de causali-dade, ainda que a empresa não tenhaagido com culpa, estaria obrigada aindenizar pelas lesões sofridas.Portanto, diante da ocorrência da únicapossibilidade de exclusão deresponsabilidade, que é a interrupção donexo de causalidade, torna-se essencialsua caracterização, a fim de evitar quea empresa seja condenada a indenizaros parentes das vítimas por danos a quenão deu causa.

A empresa de táxi aéreo, noentanto, deve indenizar os familiares davítima. Por força do artigo 932, III doCódigo Civil de 2002, o empregadorresponde pelos danos causados por seusempregados, nessa qualidade. Oacidente foi causado pelo piloto, noexercício de sua função, razão pela qualé responsável pela reparação civil.Tendo em vista que faleceu no acidente,a empresa assume a responsabilidade.

2.4 Análise da decisão proferidapelo juízo de primeiro grau

O MM. Juízo de primeiro grau, emdecisão proferida nos autos dosprocessos em análise, concluiu pelainexistência de responsabilidade daempresa Rio Grande Energia S.A. epela responsabilidade da empresaAeromed Serviço de Táxi Aéreo.Concluiu pela inexistência do dever desinalizar os fios da rede de distribuiçãode energia elétrica com a qual seenroscou o rotor do helicóptero, porparte da concessionária de energiaelétrica. E, diante de tal inexistência,não há ilícito que a obrigue a responderpelos danos ocasionados.

Tal entendimento, talvez, não seja omais acertado tendo em vista quemesmo diante da ausência de ato ilícito,deveria a concessionária responder, porforça do parágrafo único do artigo 927do Código Civil e do parágrafo 6º doartigo 37 da Constituição Federal.Ambos prevêem a responsabilidade civilindependente de culpa. Aquele faz talprevisão em casos em que a atividade

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 163

normalmente desenvolvida traz risco aoutrem, o que efetivamente ocorre comeletricidade, e este prevê a responsa-bilidade das pessoas jurídicas de direitoprivado prestadoras de serviço público,o que é o caso da concessionária deenergia elétrica.

Após a conclusão da inexistência dodever de indenizar, por parte da RioGrande Energia, o juiz discorre arespeito da responsabilidade da empresade táxi aéreo. Para tanto, caracteriza aatitude culposa do piloto.

Considera o juiz que “o reconheci-mento de que o comandante e piloto daaeronave foi diretamente o responsávelpela tragédia é inafastável”.58 Discorreque se tratava de vôo de alta precisãoe risco, para o qual era necessáriahabilidade e conhecimento técnico, alémde conhecimento da região e neces-sidade de um reconhecimento prévioa fim de identificar e localizar osobstáculos existentes, que eram deconhecimento do piloto.

Pelo fato de nenhum dos vôosanteriormente realizados ter exigidotamanha precisão, e exposto a aeronavea tamanho risco, a localização das linhasde distribuição de energia elétricatornava-se providência inafastável pararedução do grau de risco do vôo.

Era de conhecimento do piloto quenem sempre era possível visualizar arede de energia elétrica, por se tornarofuscada pelo reflexo do espelho d’água,pelo fundo verde da mata e pela atenção

que deveria dar aos ocupantes do heli-cóptero, a fim de atingir a finalidade dovôo. Houve relato, nos autos, de quetalvez a atenção que foi dispensada àsfinalidades do vôo tenha contribuídopara que o piloto esquecesse da exis-tência da rede de distribuição de energia.

A área que seria analisada seria aregião de inundação do lago que seriaformado pela barragem das hidrelé-tricas, área essa já delimitada. Portanto,restaria ao piloto o dever de fazerreconhecimento prévio exatamentenessa região, já que apenas nela serianecessário voar a baixa altitude. Ainexistência de tal reconhecimentocaracteriza a negligência que tornou-sedefinitiva para a ocorrência do acidente.

O relatório do Centro de Inves-tigação e Prevenção de AcidentesAeronáuticos conclui que tal negligência,agregada à necessidade de voar a baixaaltura e a demasiada autoconfiança dopiloto foram essenciais na ocorrência doacidente. “Não se desconhece queoutros fatores também se somaram parao ocorrido”, conclui, “entretanto, eles (osfios) já eram integrantes do local e aausência de sinali-zação não se mostravaem situação de irregularidade, comoamplamente se debateu”.59

Por tais razões, julgou improcedenteo pedido em relação à Rio GrandeEnergia, e procedente em face da Aeromed– Serviço de Táxi Aéreo, condenando-aao pagamento de indenização por danosmorais a todos os autores, e indenização

58 Fl. 21 da sentença proferida nos autos dos processos em análise.

59 Fl. 22 da sentença em análise.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007164

por danos materiais, em razão de gastoscom psicólogo, em favor de Shirley GalliTaylor da Rosa. A decisão proferida,dessa forma, enquadra-se no problemaposto em questão, que é a caracteri-zação de fato exclusivo da vítima como fim de excluir o nexo de causalidade.

O tema é controverso, houveinterposição de recurso de apelaçãopelos autores e pela ré condenada, como fim de reconhecer a inexistência defato do piloto, e responsabilidade civilda Rio Grande Energia.

O caso analisado exemplifica demodo satisfatório o fato da vítima e suacaracterização. A atitude do piloto, aodesobedecer à norma vigente quedeveria ter sido observada, e não tertomado as precauções que deveria,como reconhecimento prévio da regiãoa fim de identificar obstáculos de quetinha ciência, contribuíram de formaessencial ao acidente. Tivesse ele semantido à altura determinada, não teriase enroscado com os fios de energia. Eteria evitado a sua morte, e dos outrosquatro ocupantes do helicóptero.

CONCLUSÃO

A Responsabilidade Civil, a partir dapromulgação da Constituição Federal de1988, assume como função também agarantia dos direitos fundamentais,através da previsão expressa dereparação dos danos antijurídicos.

O Código Civil de 2002 caracterizao ato ilícito, do qual decorre o deverde indenizar. Surgem, portanto, oscinco elementos essenciais à carac-

terização da responsabilidade: ato ilícito,dano, culpa, nexo de imputação e nexode causalidade.

A presença de culpa nem sempreé necessária para que haja o deverde indenizar. Nos casos previstos emlei, ou em que a atividade normal-mente desenvolvida pelo autor ofereçarisco a outrem, prescinde-se de culpa,bastando que estejam presentes osoutros elementos.

O nexo de causalidade ligadiretamente o autor ao dano. O DireitoBrasileiro, ao adotar a Teoria daCausalidade Adequada, admite comocausa do dano apenas aquilo queefetivamente acarreta o dano. Apenasa causa sem a qual o resultado não seriaproduzido é considerada como eficiente.

Se interrompido o nexo de causa-lidade, inexiste o dever de indenizar.A doutrina e a jurisprudência brasileirasadmitem três causas de exclusão donexo de causalidade: o fato de terceiro(quando outro, que não o responsávelaparente, causa a lesão), o caso fortuitoe a força maior (eventos imprevisíveisou inevitáveis que ocasionam o dano) eo fato exclusivo da vítima (o lesado éresponsável pela causa adequada àprodução do resultado).

O caso analisado decorre deacidente de helicóptero em que uma daspás de seu rotor principal enroscou-seaos fios da rede de distribuição deenergia elétrica, ocasionando colisãocom um paredão e explosão, com amorte de todos os ocupantes.

Surgiu, então, a controvérsia acercado civilmente responsável pelo acidente,

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 165

e pelo conseqüente dever de indenizaros familiares da vítima e, talvez, ressarcira seguradora pelo valor pago à empresaproprietária do helicóptero destruído.

Os outros elementos da responsa-bilidade civil, em princípio, estariamcaracterizados no caso. O ato ilícito(ausência de sinalização da rede dedistribuição de energia), o dano (mortedos ocupantes), a culpa (pela ausênciada sinalização) e o nexo de imputação(os fios são de propriedade daconcessionária, que pelos danoscausados deve responder).

No entanto, durante a instruçãoprocessual, surgiram duas possíveiscausas do acidente: a ausência desinalização dos fios da rede elétrica,através das esferas, e a altura em queo piloto conduzia a aeronave, o quetrouxe a controvérsia de quem seria oresponsável pela indenização.

A perícia realizada concluiu que arede de distribuição de energia elétricaencontrava-se a 130m do solo. A normaaplicável ao caso prevê a existência dasinalização apenas se o fio, em algumponto, estiver a uma altura superior a150m. Inexistiu, portanto, descumprimentode norma por parte da concessionáriade energia elétrica, não ocorrendo con-duta culposa. No entanto, isto não ésuficiente para a exclusão de sua respon-sabilidade, eis que, tanto por força doartigo 37, § 6º da Constituição Federal,quanto pelo artigo 927, parágrafo únicodo Código Civil, a empresa respondeindependentemente de culpa.

Passou-se, então, a analisar ascondições do vôo. Instrução do Minis-tério da Aeronáutica determina as

alturas mínimas para vôos dehelicóptero. Por força de tal instrução,e por tratar-se de vôo que precisava serrealizado próximo do solo, paraavaliação do impacto ambiental, a alturamínima era de 500 pés, equivalentes aaproximadamente 150m. Se houve acolisão da aeronave com os fios da redeelétrica, conclui-se logicamente que suaaltura era de aproximadamente 130m.

O piloto, ao conduzir consciente-mente o helicóptero em altura inferiorà permitida, afinal a aeronave éequipada com aparelhos que indicamsua altura, incidiu em conduta culposa.

Para determinar a causa doacidente, deve-se analisar qual dascausas foi adequada à produçãodo resultado.

Ainda que os fios estivessemsinalizados, se o helicóptero estivesse àaltura em que se encontrava, ocorreriaa colisão. No entanto, mesmo nãohavendo a sinalização, se o pilotoobedecesse às normas inerentes ao vôo,não haveria o acidente.

A causa que se mostrou adequadaà produção do resultado ocorrido,portanto, foi a condução da aeronaveabaixo do limite mínimo permitido,caracterizando esta como a causaadequada do acidente.

Demonstrado, pois, que o fatoproduzido exclusivamente pela vítima foia causa adequada à produção doresultado, ocorrendo a interrupção donexo de causalidade e eximindo aconcessionária de distribuição deenergia elétrica do dever de indenizar.

A sentença do caso analisadoadotou tais prerrogativas como razões

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007166

de decidir e também concluiu pelaimprocedência da demanda em relaçãoà Rio Grande Energia.

As outras ações referentes aomesmo acidente encontram-se aindaem curso, pendentes de decisão.

O caso é, realmente, controvertido,e esbarra na dificuldade do judiciário emadmitir que uma vítima contribuiu

decisivamente para o evento que causousua morte e a de outras pessoas.

Minha conclusão é de que a decisãofoi clara, e aplicou corretamente osprincípios e regras correspondentes aocaso, que levam à conclusão lógica einafastável do fato exclusivo da vítimacomo causa do dano e conseqüenteexclusão do nexo de causalidade.

REFERÊNCIAS

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DENORMAS TÉCNICAS. Sinalizaçãode advertência em linhas aéreas detransmissão de energia elétrica: NBR7276. Rio de Janeiro, 1993.

BRASIL. Código Civil Anotado. 2.ed.,revista e ampliada. 2ª tiragem. São Paulo:Editora Revista dos Tribunais, 2004.

BRASIL. Constituição Federal, 1988.Constituição da República Federativado Brasil de 05 de outubro de 1988.40.ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

CAVALIERI FILHO, Sergio. Programade Responsabilidade Civil. 6.ed.,revista, aumentada e atualizada. SãoPaulo: Malheiros, 2005.

CRUZ, Gisela Sampaio da. O problemado Nexo Causal na ResponsabilidadeCivil. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.

GONÇALVES, Carlos Roberto. DireitoCivil Brasileiro, vol. IV. São Paulo:Saraiva, 2007.

I JORNADA DE DIREITO CIVIL,2002, Brasília. I Jornada de DireitoCivil. Disponível em: < www.jf.gov.br >.Acesso em 20/11/2007.

MARTINS-COSTA, Judith. “Do inadim-plemento das obrigações” in Comen-tários ao novo Código. Sálvio de Figuei-redo Teixeira (Coord.), v.5, tomo II.Rio de Janeiro: Forense, 2003.

MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontesde. Tratado de Direito privado. 3. ed.,2ª reimpressão. Tomo XXII. São Paulo:Editora Revista dos Tribunais, 1984.

NORONHA, Fernando. Direitodas Obrigações. v.1. São Paulo:Saraiva, 2003.

NORONHA, Fernando. O nexo decausalidade na responsabilidade civil.Revista Trimestral de Direito Civil.Rio de Janeiro, Ano 4, v.14. p.53-77. Abril/junho de 2003.

ROCHA, Marco Aurélio Martins. “O pro-blema do nexo causal na respon-sabilidade civil” in Estudos Jurídicos,n.71, v.27. São Leopoldo: UNISINOS,setembro/dezezembro de 1994.

RODRIGUES, Silvio. Direito Civil.15.ed., v.4. São Paulo: Saraiva, 1997.

TEPEDINO, Gustavo. Notas sobre oNexo de Causalidade. Revista Trimes-tral de Direito Civil. Rio de Janeiro,v.6, p.3-19. Abril/junho de 2001.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. “DosAtos Jurídicos Lícitos. Dos AtosIlícitos. Da Prescrição e daDecadência. Da prova”. inComentários ao novo Código.Sálvio de Figueiredo Teixeira(Coord.), v.3, tomo II. Rio de Janeiro:Forense, 2005.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 167

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por escopouma análise – ainda que breve – do papeldesempenhado pelo processo judicial (eespecialmente pelo Processo Civil) nasociedade contemporânea. Ante acomplexidade e pluralização das

Jurisdição e Judiciário:

um estudo a partir do pensamento de

Hannah Arendt

Luiz Fernando Castilhos Silveira*

relações sociais atuais, o paradigmafilosófico racional já não apenas sinalizaseu esgotamento, mas lateja sua com-pleta inadequação como fundamento deteorias sociopolíticas. Na mesma esteira,a ideologia político-liberal segue atreladaao Judiciário, no melhor estilo laissez-

faire1 que contradiz um esforço de con-

* Professor em Ciências Jurídicas e Sociais na UFRGS; mestre em Direito pela UNISINOS.Advogado militante. [email protected]

1 Como um Judiciário que, pelos mais diversos motivos, se abstém de julgar, seja protelandoa decisão “por culpa do excesso de recursos ou de trabalho”, seja atribuindo-a a outrem(lei, princípios, legislador, etc.). Bem mencionou Ovídio Baptista: “[p]ara o pensamentoconservador, manter o status quo é o modo de não ser ideológico. O magistrado queindefere a liminar pedida pelo autor não imagina que esteja outorgando, diríamos, uma‘liminar’ idêntica ao demandado, apenas de sinal contrário, enquanto idêntico benefícioprocessual, permitindo que ele continue a desfrutar do status quo a custo zero.” Quanto

“Eles estão tão fascinados pela coerência do seu sistema e tornam-se assassinos porque estão prontos a tudo sacrificar por essacoerência, por esse ‘belo’ autofechamento.”

Hannah Arendt, Vies Politiques (Paris, 1974), p.152.

“O que proponho é simples: trata-se apenas de refletir sobre oque estamos fazendo.”

Hannah Arendt, A Condição Humana.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007168

cretização de um Estado democráticode direito constitucionalmente previsto.

Os problemas que se põem sãomuitos. O presente texto pretendeabordar uma concepção que vise aofortalecimento do Poder Judiciário comoinstituição integrante da democracianacional (em um sentido diferente damera aplicação literal de uma Leiheterônoma), focando diretamente aquestão da legitimidade do julgador. JohnMerryman2 alertara do papel desempe-nhado pelo juiz na tradição do DireitoContinental: a de um servidor público, umfuncionário. E como tais os magistradossão reconhecidos e respeitados.3

Entretanto, essa não é a única formade se conceber o Judiciário – e essa

concepção de julgador deveria estar tãodesgastada quanto o próprio paradigmaem que se insere. Há maneiras de ojuiz não ser nem o burocrata4 que aplicaas diretrizes de um ‘governo deninguém’,5 nem alguém que impõe assuas próprias verdades com arbitra-riedade pura – velada ou exposta. É viacorrelata ao que Ovídio Baptista6

classificou como “resgatar a figura dojuiz responsável – oposto ao juiz dosistema, que não comete injustiças.”7

Esse caminho passa pela negaçãodo esvaziamento do magistrado en-quanto relevante para a operacionali-zação do Direito. É preciso esquecer afigura da separação absoluta dos po-deres, como idealizada pela doutrina

à atribuição da responsabilidade a outrem, segue o doutrinador: “[s]e o juiz aplicar avontade da lei, imagina-se que a injustiça terá sido cometida pelo legislador.” Cf. SILVA,Ovídio A. Baptista da. Processo e Ideologia. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.16.

2 MERRYMAN, John. La Tradición Jurídica Romano-Canônica. México: Fondo deCultura Económica, 1971.

3 Ibidem, p.67, 72 et passim.

4 Com relação à perda da legitimidade do juiz pela sua insersão no ‘poder burocrático, ver,dentre outros, SILVA, Ovídio A. Baptista da. Processo e Ideologia. Rio de Janeiro: Forense,2006, p.45.

5 Hannah Arendt se referiu à burocracia como o “mando de ninguém”, ou seja, umaoperacionalização em que ninguém se torna responsável. A autora considera, justamentepor isso, que talvez seja a forma menos humana e mais cruel de governo. ARENDT,Hannah, Responsabilidade e Julgamento. Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo:Companhia das Letras, 2004, p.94; (Cf. Infra).

6 SILVA, Ovídio A. Baptista da. Fundamentação das Sentenças como GarantiaConstitucional, in Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, vol. 1, n.4. Porto Alegre:Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2006, p.323-352.

7 Ibidem, p.333. Nesse sentido, será trabalhado no decorrer do texto a questão daresponsabilidade dos julgadores, tanto no sentido pessoal quanto coletivo, a partir dasidéias de Hannah Arendt. Também será revista a questão dessa impossibilidade deperceber injustiças a partir dessa mesma matriz teórica, o que, para a autora, está entre asorigens do sistema totalitário (Cf. Infra).

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 169

francesa da era moderna, em que oJudiciário é um poder nulo, a mera bocada lei.8 E ninguém mais apto a por essamudança em escopo que os própriosjulgadores, com apenas um cuidado: nãotransformarem um totalitarismo daverdade burocrática (elaborada sobcritérios de eficiência moderna) em umtotalistarismo de suas ‘verdades’ econvicções pessoais ou corporativas.

Dentro dessa perspectiva, o quedeve conferir legitimidade ao Judiciárioe prestígio aos juizes é precisamente opapel democrático que estes podemdesempenhar, assumindo o debatepolítico,9 em vez de fingir que o mesmo,para eles, sequer existe. Busque-se aoperacionalização do jurídico da formamais adequada a uma democracia tãoalmejada – uma que não seja disfarcea qualquer oligarquia governante, a qualimpõe seus valores e soluções aos demaiscidadãos –, que esteja compromissadacom o respeito à diversidade inerente aoregime democrático.10 Um passo alémde identificar o problema, este estudopretende pôr um caminho para discussão.

O enfoque que se propõe, com vistasa despertar um espírito de reflexão emovimento em busca de solução aoproblema, se desenvolverá a partir dopensamento de Hannah Arendt.Tomando-se como referência algunsconceitos centrais da autora, como,principalmente, ‘verdade’, ‘espaçopúblico’, ‘senso comum’, ‘responsabili-dade’, ‘mal radical’ e ‘banalidade domal’, além de alguns de seus insights

acerca das origens do totalitarismo,pretende-se questionar essas idéias deforma a tencionar uma possível inter-pretação do direito processual a partirdesse enfoque e suas conseqüências.

Este texto se dividirá em duaspartes. Na primeira, apresentar-se-ábrevemente alguns conceitos arendtianosque se consideram centrais para acompreensão do argumento que sepretende desenvolver. No segundomomento, pretende-se relacionar opensamento da filósofa com algumascaracterísticas de nosso Processo Civil,tomando-se como referência a visão dealguns juristas que possuem relevantes

8 Cf. MERRYMAN, Op. Cit., p.37, ss. et passim; Cf. também MATEUCCI, Nicola.Organización del Poder y Libertad: historia del constitucionalismo moderno. Madrid:Trotta, 1998, passim.

9 Por ‘debate político’ não se quer qualquer concepção restrita, como um debate político-partidário; Entenda-se como o debate respeitante à administração do poder, da república(Res Publica, bem comum, etc.); toma-se, principalmente, o termo ‘político’ no sentidoarendtiano (Cf. Infra).

10 Cf. SILVA, Ovídio A. Baptista , da. Fundamentação das Sentenças..., passim.; sobre acrise de legitimidade da democracia causada pela forma racionalista de conceber o Direito,ver SILVA, Ovídio A. Baptista da. Processo e Ideologia (Cit.), p.56; sobre a questão dadiversidade versus ‘pasteurização’ do regime democrático como uma sociedade de ‘iguais’,ver MATEUCCI, Nicola. Op.Cit., p.255 et passim.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007170

contribuições críticas ao estudo dotema, como John Merryman, MauroCapeletti e Ovídio Baptista.

Por mais que a primeira parte pareçaum tanto afastada ou desconectada como tema que está sendo tratado (processoe jurisdição), pede-se que o leitor não sedeixe enganar. Talvez as críticas maisseveras e contumazes se encontrem jus-tamente ali, nas entrelinhas. A estruturado presente texto não é casual e visa apermitir que quem tome contato com elepossa, no decorrer da leitura, tirar suaspróprias conclusões, ter seus própriosinsights para, na segunda parte, poderconfrontá-los com alguns dos que serãoapresentados. Já na primeira parte dotexto, pretende-se deixar que o intérpretebusque a relação com o tema, e pistasque levem a essas conecções serãooferecidas ao seu sabor. Essa primeiraparte tampouco se presta a umaexposição exaustiva do pensamentoarendtiano, mas visa apenas a exporalguns poucos conceitos que parecemcentrais para algumas reflexões na áreada jurisdição.

Saliente-se que o presente trabalhonão se presta a uma mera análise doque é ou foi o processo judicial; tam-pouco visa a descrever o que ele deveriaser, em termos absolutos – e isso,principalmente, porque se acredita, coma companhia de Ovídio Baptista (dentreoutros), que não há ciência do processo– perfeita, acabada, ideal e a-histórica.

Pelo contrário, reconhece-se a propostaaqui exposta como utópica, como umatensão com o intuito de demonstrar queo processo, tal como concebido hoje, nãomais se presta à sociedade pós-segundaguerra (para a qual serve, com imensopropósito e não ao acaso, o pensamentoarendtiano). Não se quer instituir umaverdade por outra: lembremos queArendt toma qualquer ditadura daverdade como tão tirânica quantoqualquer outra forma de despotismo.11

O objetivo, por fim, é o desloca-mento do discurso do processualismotradicional, com vistas a identificarproblemas e tencionar soluções quepossam ser adequadas a uma realidade(sempre) transformada.

2. BREVE EXPOSIÇÃO DEALGUMAS IDÉIAS DEHANNAH ARENDT

Esta autora desempenha um papelcentral na filosofia política do pós-guerra, não sendo de se desconsiderar,dentre as razões, sua origem judaica ealemã. Tendo presenciado em terrasgermânicas a tomada do poder porHitler, em 1933, e o surgimento do ter-ceiro Reich, Arendt fugiu da Alemanhanazista para Paris e, após novosproblemas políticos decorrentes daguerra (por ser nacional de um inimigoda França), conseguiu escapar para osEstados Unidos em 1941.

11 ARENDT, Hannah. Verdade e Política. Trad. Manuel Alberto. Lisboa: Relógio d’ÁguaEditores, 1995, p.35.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 171

Tais acontecimentos levaram opensamento arendtiano a uma guinadaconsiderável. A autora não perdeu suasinfluências existencialistas adquiridaspelos estudos com Jaspers e Heidegger,mas cambiou seu foco prinicipal para arelação entre a filosofia que lhe eraimanente e a política, principalmente noque toca aos regimes totalitários. Suaobra evolui, em parte, visando a sedistanciar dos malefícios que a vidainserta em tais ideologias traz àhumanidade, ao fim de sua vida voltandoa uma filosofia libertadora do indivíduo,das suas ações e de seu pensamento,não à toa muitas vezes figurando comobandeirante da dignidade da pessoahumana nos tempos atuais.

2.1 Por que partir dopensamento arendtiano?

A primeira grande obra publicadapor Hannah Arendt, As origens do

Totalitarismo,12 já no seu ‘exílio’ emterras americanas, enfoca precisamentequestões que envolveriam políticas‘totalitárias’ (e a autora classifica comotais, tanto a ideologia nazista, quanto oregime comunista, colocando lado-a-lado Hitler e Stalin).

Um dos ônus que este texto sepropõe é demonstrar que alguns caracteresque Arendt identificou como envolvidos

no terror totalitário (ou dele causadores)são exatamente alguns dos que norteiamnossa disciplina processual – tanto nateoria quanto na prática. As consta-tações que a filósofa fez a partir de suaexperiência no julgamento de Eichmann,em Jerusalém,13 nos levam a refletir queos piores males são os cometidos quandonão temos consciência deles, e nãoquando se busca efetivamente o mal.Tenciona-se mostrar o quanto nossosprocedimentos judiciais tecnicistasafastam os juristas, pelo bem do Estadotecnocrata e burocrata, da realidade eda consciência, do social e do coletivo.

O segundo objetivo é o de buscaralgumas idéias que levem a um Pro-cesso mais democrático, mais humanoe menos ideológico (em termosarendtianos). Arendt, após identificar osproblemas que levaram ao esvazia-mento do ser humano e que, por isso,permitiram as atrocidades que foramcometidas na Alemanha nazista (e queainda são praticadas – embora emmuito menor grau – todos os dias emtodo regime burocratizado), procurainsistentemente por soluções.

Essas alternativas passam pelabusca da ‘realidade’ perdida, afastadado conhecimento do homem, trocadapor uma ideologia vazia, a qual pregavauma ausência de pensamento e dereflexão. Parte da solução do problema

12 No original, The origins of totalitarism (1951).

13 Elaboradas na obra Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal.Tradução: José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007172

passa justamente por um ‘parar parapensar’,14 por uma reconstrução daprópria realidade do mundo a partir dosenso comum aos indivíduos, dareconstrução da realidade de um mundocompartilhado, e não mais de umaexistência individualista e solipsista querompe com a medida da existência.

No objetivo mediato deste degrauda pesquisa está justamente a utopia detencionar um processo que reconectea sociedade a si mesma; em outraspalavras, que leve os administradoresda justiça a se voltarem para o mundocoletivamente construído, negando aidealização de seu mundo particular emdetrimento da realidade. A alteridade, ooutro, é que permite que o meu própriomundo seja construído e faça sentido.15

Como já foi dito na tradição arendtiana,o ato de julgar é possivelmente o maisdelicado, precisamente por ser o ato decompartilhar o mundo com esse outro.16

Em suma, é justamente na negação,na superação e na descoberta dosmalefícios desse pensamento modernovoltado à burocracia e aos fins de umEstado-eficiência que o pensamentoarendtiano nos é primoroso. Já é horade darmos um passo adiante do

formalismo vazio, tão criticado e tãopraticado; não para negar o que ele nospode trazer de bom (o que não é objetivodeste texto, pelo contrário), mas paraaprender também o que ele nos podetrazer de ruim, de maléfico. É precisobuscar algo que seja sincrônico com ahumanidade no seu estágio dedesenvolvimento atual, claramente nãomais a mesma dos séculos XVII eXVIII, dos quais o modelo cientificistanão mais nos deveria servir – menosainda sem uma profunda reflexão.

2.2 A verdade e opinião

Primeiramente, é de se salientarque o pensamento de Hannah Arendtnão é sistemático ou linear; pelo con-trário, suas idéias evoluíram e transmu-daram ao longo de sua vida. Dessaforma, muitos conceitos e noções cria-dos pela autora são trazidos de formadiferente, e às vezes até contraditória,em uma ou outra de suas obras.

Em particular, sobre o conceito deverdade buscaram-se bases principal-mente no ensaio Verdade e Política,publicado em português como umvolume independente17 – além de outras

14 A expressão é corrente no pensamento arendtiano. Ver ARENDT, Hannah. A Vida doEspírito: o pensar, o querer, o julgar. Tradução: Antônio Abranches e Helena Martins. Riode Janeiro: Relume Dumará, 2000, passim; também SOUKI, Nádia. Hannah Arendt e aBanalidade do Mal. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998, p.129.

15 ROVIELLO Anne-Marie. Senso Comum e Modernidade em Hannah Arendt. Trad.Bénédicte Houart e João Felipe Marques. Lisboa: Instituto Piaget, 1987, p.121.

16 Ibidem, p. 112; Cf. ARENDT, A Vida do Espírito, passim.

17 ARENDT, Hannah. Verdade e Política. Trad. Manuel Alberto. Lisboa: Relógio d’ÁguaEditores, 1995.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 173

versões insertas em volumes maiores(e.g. in Entre o passado e o Futuro,São Paulo, Editora Perspectiva, 1968;ou in A dignidade da política. Organi-zador: Antônio Abranches. Rio deJaneiro: Relume-Dumará, 1993, p.91-115). Nele, a autora parte da condiçãode os homens viverem em conjunto, emum mundo que partilham e para o qualconstroem livremente o significado.

Arendt identifica duas instâncias emque a verdade se manifesta, às quaisela chama ‘verdades filosóficas’ e‘verdades de fato’. As primeiras dizemrespeito ao homem na sua singularidade;são convicções íntimas, pessoais. Já assegundas são os acontecimentos domundo, ‘acontecimentos originais’; sãoo passado, ocorrências sobre as quaisnão temos controle, não temos comomodificar. Nesse sentido, a autoradefine: “[c]onceitualmente, podemoschamar verdade àquilo que nãopodemos mudar.”18

Mas é no contexto de homempolítico, de coletividade, de homem‘condenado’ a repartir o mundo com o‘outro’, que Hannah noticia o que vaichamar de impotência da verdade.Isso porque a verdade só é válida nocontexto singular; na passagem para oplural, essa verdade racional setransmuda em opinião.19

Quanto à verdade filosófica, aautora afirma que, “quando surge napraça, muda de natureza e torna-seopinião, porque se produz […] umdeslocamento não apenas de umaespécie de raciocínio para outro, masde um modo de existência humana paraoutro.”20 Já no que se refere às verdadesde fato, pergunta-se se existirá algumfato para além da opinião e da interpre-tação. Arendt vai afirmar que inexistea possibilidade de constatar fatos semos interpretar, no seguinte sentido:

Não demonstraram gerações dehistoriadores e filósofos da história aimpossibilidade de constatar fatos semos interpretar, na medida em que têmde começar por ser extraídos de um caosde puros acontecimentos (e os prin-cípios da escolha não são certamentedados de fato), serem em seguidaorganizados numa história que nãopode ser contada a não ser numa certaperspectiva, que nada tem a ver com oque aconteceu originalmente?21

É interessante ver a análise que aautora faz das tentativas de levarem-se as verdades à coletividade. Lembremosque o termo ‘política’ aqui não estásendo empregado apenas no sentido de‘política partidária’, mas, sim, como umespaço destinado ao humano na suapluralidade, na natureza social do

18 Ibidem, p.59.

19 Ibidem, p.20; também em ROVIELLO, Op. Cit., p.112.

20 ARENDT, Verdade e Política, p.24.

21 Ibidem, p.25.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007174

homem, no sentido aristotélico de‘homem político’.22 Nesse contexto, oque é político é o que diz respeito aohomem na coletividade, em oposição àsua singularidade.

Arendt afirma que, se o filósofoquiser ver prevalecer a sua verdadesobre as opiniões da multidão, sofreráuma derrota. Disso, conclui que “averdade é impotente”, e que talasserção é “um truísmo tão pleno desentido como o do matemático, que,incapaz de realizar a quadratura docírculo, lamentasse o fato de o círculonão ser quadrado.” 23 Mas isso não étudo: se quisesse fazê-lo medianteimposição, instituiria uma tirania daverdade – e a autora faz referência àsdiferentes utopias políticas que conhe-cemos, “tão tirânicas como quaisqueroutras formas de despotismo.” Por fim,mesmo que obtivesse sucesso sem ouso da força, teria conseguido umavitória de Pirro. Isso porque a verdadevenceu, não pela sua própria essênciaconstrangedora, mas porque os homensse puseram de acordo para isso: “o quetinha sido verdade filosófica ter-se-iatornado simples opinião.”24

As verdades de fato não escapamà mesma constatação. Arendt afirmaque, se aquele que afirma algo quiserdesempenhar um papel político (ou seja,

quiser fazer valer sua opinião nacoletividade), quase sempre “procederáconsideráveis desvios para explicar porque é que a sua verdade serve melhoraos interesses de qualquer grupo.”25 Essaconstatação não é uma condenação aomau-caratismo: pelo contrário, coaduna-secom a afirmação feita acima, de quenão há constatação de fatos indepen-dentemente de interpretação. Se oindivíduo possui certa finalidade aointerpretar fatos (mesmo que sejaapenas a compreensão), certamenteessa interpretação e a descrição jamaiscorresponderão ao fato-em-si.

No entanto, essa ausência de mau-caratismo na tranformação de fato emcompreensão-do-fato leva à perda daboa-fé pessoal, caso aquele que diga averdade de fato se identifique comqualquer interesse particular ou grupode poder. A garantia dessa boa-fé,segundo a autora, é a imparcialidade, aintegridade e a independência.26 É dese notar que Arendt se contradiz umpouco nessa questão, mas não ao pontode invalidar o que afirma. Bastaatentarmos para o fato de que esse‘qualquer interesse particular’ é uminteresse particular do próprio sujeitoque se expressa, uma finalidade que temem sua ação de comunicar o que tempor verdade de fato.

22 ARISTÓTELES. Política, §10. São Paulo: Martin Claret, 2005, p.49.

23 ARENDT, Verdade e Política, p.35.

24 Idem, ibidem.

25 Ibidem, p.41.

26 ARENDT, Verdade e Política, cit., p.41.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 175

A relação desse estatuto da verdadecom o processo judicial será tratada maisadiante no texto. Contudo, para jámarcar um dos pontos relevantes: o juizsempre possui (e deve possuir) uminteresse na descrição dos fatos – o defundamentar e justificar sua decisão. Senão há interpretação independente dosujeito, há ainda mais uma razãorelevante para se afastar a já combatidaneutralidade do magistrado. Essaparcialidade – sim, porque qualquervisão é sempre parcial – não significamá-fé ou mau julgamento, mashumanidade do julgador.27

É interessante essa complemen-tação, e não exclusão, que opera entrea verdade e a opinião: enquanto aqueladiz respeito ao indivíduo, na suasingularidade (como já exposto), esta sótoma consistência na medida em quese depara com outras opiniões. A partirdessa idéia é que a noção de realidade,e de uma realidade construída econstituída pela pluralidade de indivíduos– um senso comum –, começa adesenhar sua importância: essaconstrução da opinião somente se operano momento em que ela é vista emperspectiva, a partir de outra opiniãosobre o mesmo mundo, compartilhado.28

A supressão do status de opiniãoque define toda a comunicação é uma

das formas que toma a tirania, aideologia. Essa noção será tratada maisadiante, mas cumpre já frisar asconseqüências às quais relação entreverdade e opinião podem apontar:

Os modos de pensamento e decomunicação que têm a ver com averdade são, quando considerados naperspectiva política, necessariamentetirânicos; não têm em conta opiniõesde outros, quando esse ter em conta éa marca de todo o pensamentoestritamente político.29

2.3 Política, senso comum,realidade e sentido

A questão política por excelência éa questão do mundo enquanto mundocomum, ou seja, é o que diz respeito aomundo que, enquanto seres humanoscoletivos, compartilhamos. “O campo dapolítica é o do pensamento plural, é opensar no lugar e na posição do outro.”30

O espaço público, por sua vez é ondese institui e onde acontece essa perspec-tivação das opiniões, a qual cria, dá subs-tância, ao mundo comum. Esse espaçose pode encontrar em qualquer esferada atividade humana, e não apenas nasinstituições públicas oficiais.31

O ‘senso comum’ não é umaverdade positiva comum presente em

27 Cf. CARDOZO, Benjamin N. A Natureza do Processo Judicial. São Paulo: MartinsFontes, 2004, p.3 et passim.

28 Cf. ROVIELLO, Op. Cit., p.112.

29 ARENDT, Verdade e Política, cit., p.28.

30 SOUKI, Nádia. Op. Cit., p.44.

31 ROVIELLO, Op. Cit., p.187.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007176

cada indivíduo;32 não é uma decisão ouuma adesão da maioria; muito menos éum consenso ou uma unanimidade. Pelocontrário, o pensamento arendtianooferece a unanimidade como umsintoma de desaparecimento do sensopúblico. Hannah Arendt é enfática nessesentido: “[o] mundo comum acabaquando é visto somente sob um aspectoe só se lhe permite uma perspectiva.”33

Bethânia Assy faz uma beladescrição do que seria o senso comum,mostrando-o a partir da relação que temcom o julgamento, com o ato de julgar:

(…) o sensus comunis é concebido talqual um senso que nos ajustaria àpluralidade, e não a um consensocoletivo ou a uma decisão políticaunânime. Arendt afirma no manuscritode 1965 ‘levar o outro em consideraçãoquando eu julgo não significa umaconformidade entre meu julgamento eo dos outros. Eu ainda me refiro àminha própria opinião e não levo emconta a quantidade de outros quandochego à conclusão de que algo estácerto. Todavia, meu julgamento deixade ser simplesmente subjetivo, nosentido de que não considero apenas a

mim mesma quando julgo’. […] Nãoiniciamos ab ovo nem criamos ex nihilo.34

Nesse sentido, o que garante um atode julgar não arbitrário e não solipsistaé precisamente esse contato com osenso comum. Nas palavras de Anne-Marie, “É precisamente esta referênciado senso comum que permite estabe-lecer a diferença entre a opinião verda-deira e a arbitrariedade subjetiva.”35

Isso porque, se o próprio mundo éconstituído pelo debate, pelaperspectivação de opiniões, uma opiniãoque não se refere ao senso comum nãoé construída a partir do mundocompartilhado com os outros homens.Julgar tomando por base apenas o seumundo, as suas opiniões (ou, quem sabe,as suas verdades), é praticar umaarbitrariedade subjetiva.36

Mais que uma descrição do mundo,o senso comum é a própria condiçãode sentido de um mundo compartilhado.Seu desaparecimento é a prova de quenão se compreende coletivamente essemundo, enquanto o próprio senso derealidade de um mundo que é comum a

32 Cfe. ROVIELLO, Op. Cit., p.116.

33 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro: ForenseUniversitária, 2005, p.68.

34 ASSY, Bethânia. Introdução à edição brasileira de Responsabilidade e Julgamento, inARENDT, Hannah. Responsabilidade e Julgamento. Trad. Rosaura Eichenberg. SãoPaulo: Companhia das Letras, 2004, p.49.

35 ROVIELLO, Op. Cit., p.112.

36 O outro extremo do que seria, poderíamos dizer pela argumentação, uma arbitrariedadeobjetiva, que é o julgamento sem reflexão, heterônomo. Esse outro tipo de ação é típicodas ideologias, sobretudo totalitárias, e será amplamente tratado abaixo.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 177

mais de uma pessoa nasce do debateque se faz sobre ele.37

É importante salientar que não éapenas um debate sobre o mundo,mas que esse debate é a própria insti-tuição de um mundo comum – o qualsó existe na medida em que os indiví-duos sobre ele discutam.38 É nessesentido que o ‘político’ é tão importantepara Arendt. O espaço público, odebate, é central para o ser humanojustamente porque é “o espaço porexcelência onde se pode realizar, aoinstituir-se livremente, a condição dohomem enquanto ser-deste-mundo. Nae pela instituição da sociedade humanaestabelecem-se os laços entre o homem,o mundo e o sentido.”39

Há no pensamento arendtiano umapassagem de uma especulação metafí-sica para um ‘juízo político’, para ummundo construído a partir da comuni-dade de sentido. Nas palavras deRoviello, “a comunidade de sentido

fundada na ‘intersubjetividade do mundo’toma o lugar da verdade eterna e imu-tável.” O sentido revela-se apenas napartilha, do mundo e do próprio sentido;essa partilha, essa comunhão impede queas perspectivas se fechem em si próprias,constituindo mundos privados.40

O ‘problema’ vem à tona justamentequando se quer impor esses mundos

privados ao outro. No momento em quenão há uma abertura à alteridade, aosentido constituído na comunidade, háarbitrariedade, há necessariamente atentativa de impor verdades (vez quede opinião não se trata, por carecer deperspectiva), conforme descrito nosubcapítulo acima.

A exigência da razão, nessecontexto, não é, segundo HannahArendt, dar conta de tudo o que existee acontece.41 Não é a sede de saberque determina a razão, mas a busca desentido. Essas questões constituem emsua essência uma verdadeira aberturapara o mundo, uma insersão nessemundo através da compreensão.42 Aabertura para o mundo é que significaabertura para o outro; essa abertura aomundo não quer dizer procurar ocompreender sozinho, isolado em ummundo individual e próprio, mas umaabertura à opinião do outro quanto aomundo que compartilham.

2.4 Ideologia, totalitarismo,banalidade do mal e mal radical

A ideologia, no pensamentoarendtiano, significa o pensamento quejá não é exercido nesse contato com omundo comum, com essa realidadeconstituída e instituída, mas que é

37 ROVIELLO, Op. Cit., p.116.

38 Ibidem, p.174.

39 Ibidem, p.8.

40 Ibidem, p.111-112.

41 ARENDT, A Vida do Espírito, passim.

42 Cf. ROVIELLO, Op. Cit., p.108.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007178

realizado à parte dela.43 O pensamentoideológico é caracterizado por ergueruma parede entre o indivíduo e arealidade; a experiência particular ésubstituída por um “sobre-sentidoprefabricado da ideologia.”44

O discurso ideológico é precisa-mente o que se propõe a transmitir, nãoopiniões, mas verdades. A ideologiatotalitária, indo além, não é, nas palavrasde Anne-Marie, “um pensamento quese equivoca ou um pensamentofalacioso; é um pensamento que se negaa si próprio, um pensamento que temcomo objetivo não pensar.”45

A primeira negação que o sujeitorealiza (conscientemente ou não) ao seapropriar de um discurso ideológico é oda sua autonomia. E essa foi uma dascaracterísticas marcantes que Arendtidendificou em Eichmann, quandoassistiu a seu julgamento em Jerusalém.Ele não era um monstro, como ela(e muitos à época) imaginavam.Ao contrário, a filósofa viu no alemãouma pessoa vazia – ao que se referiucomo alguém que não pensava. Alémdisso, era um homem com extremo

grau de heteronomia.46 Há um trechoescrito por Nádia Souki, esclarecedornesse sentido:

Se todo pensar exige um ‘pare-e-pense’,tal movimento permanente é incompa-tível com a atividade de pensar. Nessapausa onde o homem pode suspender,provisoriamente, seus juízos de valor esuas certezas prévias, ‘parar-para-pensar’ é o primeiro ato de resistênciaa uma imposição externa, a umaexigência de obediência. É exatamentenessa parada, momentânea masdecisiva, que o homem pode começar arealizar sua autonomia. E esse fluxocontínuo, que interdita qualquer parada,qualquer pensamento, tem comoobjetivo, exatamente, o automatismoem que os homens deixam de interrogarpara, prontamente, obedecer.47

Essa é a ligação da burocracia como regime totalitário. O Estado-eficiênciainsere o indivíduo em uma máquinaburocrática que lhe impede qualquerjulgamento por si, qualquer tomada dedecisão independente, qualquerautonomia. O ‘modelo’ de cidadão dassociedades burocratas é aquele que atuasob ordens, que é incapaz de pensar porsi mesmo. A espontaneidade dopensamento é abolida.48

A própria linguagem ideológicadesempenha um papel fundamentalnesse fechamento à reflexão (e aocontato com a realidade). Souki afirma

43 Cf. ROVIELLO, Op. Cit., p.106.

44 Ibidem, p.129.

45 Ibidem, p.131.

46 SOUKI, Op. Cit., p.37.

47 Ibidem, p.129.

48 Cf. SOUKI, Op. Cit., p.13.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 179

que “[o]s clichês, as frases prontas, oscódigos de expressão padronizados econvencionais servem para proteger osindivíduos da realidade levando-os aviver e agir em um mundo totalmenteirreal.”49 A autora denomina essa lingua-gem como ‘linguagem burocrática’, cujafunção fundamental seria “criar umaapaziguadora ilusão para os executantese para os executados [nos campos de concen-tração], pois estes últimos nem de longeentendem o significado dessas palavras.”50

Arendt avalia que a ‘maldade’ e a‘perversidade’ de Eichmann está ligadaa uma incapacidade para julgar, a umaverdadeira recusa de pensar. O alemãonão conseguia, segundo ela, se colocara questão do sentido e, principalmente,a questão do sentido das suas ações.Lembrando que o sentido é constituídopela comunidade, Eichmann não possuíaa capacidade de ver seus atos pelaperscpectiva exterior à sua ou à daideologia que lhe foi imposta.51

O que Arendt denomina de‘banalidade do mal’ está ligado a essevazio de pensamento, ou a essa ausênciade pensamento. O mal extremo não seencontra em uma subjetividade per-

versa, mas na anestesia da subjetividade,em uma não-reflexão. Como dizRoviello, “enquanto somos incapazes depensar sobre o mal somos tanto maiscapazes de o praticar. É na própriamedida em que omitimos pensar sobreo mal no qual tomamos parte, quepodemos realizá-lo melhor. 52

Aí é onde está a maior perver-sidade: o mal que não é perverso, quenão tem motivos especiais é justamenteo que pode ser um mal infinito,53 poissequer é pensado, sequer é refletido.“O mal humano é ilimitado quando nãogera nenhum remorso, quando os atossão esquecidos assim que são cometidos.”54

Já o ‘mal radical’ arendtiano (crono-logicamente abordado antes da criaçãoda expressão ‘banalidade do mal’) temclara inspiração kantiana. Arendt vaireferir, em mais de uma ocasião: “eunão sei o que é o mal radical, mas eusei que ele tem a ver com essefenômeno: a superfluidade dos homensenquanto homens.”55 Esse mal serealiza, tanto para Kant quanto paraArendt, quando o homem deixa de serum fim em si mesmo, quando ele setorna um meio, um instrumento. A sua

49 SOUKI, Op. Cit., p.107.

50 Ibidem, p.95.

51 ROVIELLO, Op. Cit., p.110.

52 Ibidem, p.159.

53 Cf. SOUKI, Op. Cit., p.71.

54 KOHN, Jerome. Introdução à edição americana de Responsabilidade e Julgamento, inARENDT, Responsabilidade e Julgamento, p.19.

55 Citado, dentre outras obras, em SOUKI, Op. Cit., p.105.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007180

própria existência passa a ser condi-cionada a um valor utilitário.56

O próprio ser humano se tornadescartável. O homem é apenas maisum dente da engrenagem, alguém cujasubstituição nada muda no ‘sistema’ –essa é uma das pressuposições de todasas burocracias, de todo serviço públicoburocratizado ao extremo. É interes-sante que Hitler, durante o terceiroReich, se definiu como “o único homeminsubstituível em toda a Alemanha.”,asserção considerada correta porArendt.57 A autora se refere à buro-cracia como “infelizmente o mando deninguém e, por essa mesma razão,talvez a forma menos humana e maiscruel de governo.58

2.5 Ética e responsabilidade

Na ética arendtiana, a dualidade ato/intenção desaparece. O quem somos nãovai se dar pelo nosso encerramento emintenções, mas pelo que transmitimos navisibilidade do espaço público. Comoafirma Bethânia Assy, “a ética daresponsabilidade não se comprometecom as chamadas ‘melhores intenções’,que repousam invisíveis na escuridãoprivada de nosso coração.”59

A própria personalidade do indivíduoé ‘construída’ da mesma forma quequalquer outra realidade do mundo: pormeio da perspectivação de opiniões. Éaí que importa o visível, e quem somos

não depende de quem queremos ser,mas da imagem que passamos tanto pornossos julgamentos quanto por um “agirconsistente.”60 Nas palavras de HannahArendt, “[n]este mundo em que chega-mos e aparecemos vindos de lugarnenhum, e do qual desaparecemos emlugar nenhum, Ser e Aparecer coincidem.”61

Essa leitura da ética muda comple-tamente o enfoque ordinário. Nãoestamos mais fechados em nósmesmos, avaliando nossas ações apartir da nossa perspectiva, sendo onosso próprio juíz. Arendt afirma queninguém pode ser o juiz do seu própriocaso (ou, no contexto em que apresenta,o juiz de si mesmo), pois sempreacreditou não ser possível alguém“conhecer a si mesmo, porque ninguémaparece para si mesmo assim comoaparece para os outros. Só o pobreNarciso vai se deixar enganar pela suaprópria imagem refletida, definhandopor amor a uma miragem.”62

Isso porque o sentido da ação sóse configura a partir do senso comum

56 SOUKI, Op. Cit., p.105.

57 ARENDT, Responsabilidade e Julgamento, p.91-92.

58 Ibidem, p.94.

59 ASSY, Bethânia in ARENDT, Responsabilidade e Julgamento, p.53.

60 ASSY, Bethânia in ARENDT, Responsabilidade e Julgamento, p.56.

61 ARENDT, Op. Cit., p.17.

62 Idem, Responsabilidade e Julgamento, p.69.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 181

– como já explicado acima. O julga-mento da nossa conduta é feito pelooutro ou, mais propriamente, pelosoutros, em uma constituição de sentidoque trespassa o individual, o particular.Essa presença do outro (que muitos, nasua submersão em um pensamentoindividualista, classificam como‘incômoda’) não é apenas uma espéciede condenação que sofremos por viverem comunidade; é, ao mesmo tempo,nossa salvação: ela é a única garantiada nossa existência enquanto humanos,é a condição de nosso próprio sentido.

O pensamento arendtiano nesseponto tensiona um paradoxo. Se um dos‘problemas’ identificados por Arendt napersonalidade de Eichmann era sua faltade capacidade para julgar os próprios atosatribuindo-lhes sentido, como poderia elenesse caso ser juiz de seus próprios atos?

A questão apresenta-se delicada,mas buscar elucidá-la é de grande valia.Eichmann foi, de certa forma, o juiz deseus próprios atos. Quando interrogadopela polícia israelense, afirmou quetinha ‘conduzido toda a sua vida deacordo com os preceitos morais deKant’.63 Ao que parece, essa pretensa‘retidão moral’ de nada adiantou, hajavista as atrocidades que cometeu.

A carência do alemão foi aatribuição de sentido. Certamente para

ele os atos que cometera tinham umsignificado, enquanto para (quase todo)o resto da humanidade, outro. Essedistanciamento, que Arendt afirma serum distanciamento da própriarealidade,64 é que lhe permitiu mantersua conduta – inclusive acreditando queera de uma correção moral impecável.

O exemplo, que foi chocante paraArendt e acabou por lhe redirecionartodo o seu pensamento, é claro parademonstrar que a mera reflexãosolipsista não é suficiente para a buscade qualquer ética. A reflexão proposta– e é aí que o indivíduo não pode sejulgar por si mesmo – é a abertura aosentido da ação, que quem lhe dá é acomunidade de sentido, pelo exercícioda abertura ao outro, à alteridade.Essa abertura tampouco significaheteronomia; pelo contrário, é condiçãode autonomia em contato com o mundo.O senso comum não é a vontade deoutrem, mas o senso de realidade quenorteia a atribuição de sentido ao real.

A ideologia vem ao encontro dodesejo dos indivíduos de se descartaremda sua responsabilidade, de se limitarema “seguir o movimento.”65 Vemconfortar aqueles indivíduos que, comomencionou Foucault, possuem umdesejo de não ter que ‘começar’.66 Nãopensar naquilo que fazemos, para nós,

63 KOHN, Jerome, in ARENDT, Responsabilidade e Julgamento, p.16.

64 Cf. Supra.

65 ROVIELLO, Op. Cit., p.132.

66 FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. Tradução: Laura Fraga de Almeida Sampaio.São Paulo: Loyola, 2005, p.6 et passim.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007182

parece significar não termos queresponder por aquilo que fazemos.67

Arendt critica aqueles que ‘nãoquerem pensar’. Segundo ela, são muitomais confiáveis os céticos, “não porqueo ceticismo seja bom ou o duvidar,saudável, mas porque são usados paraexaminar as coisas e para tomardecisões.”68 É o refletir no que se estáfazendo, buscando como ponto departida e chegada do pensamento osenso comum, o real, o mundocompartilhado, que se busca evitar oafastamento do mundo – causa de umaditadura de uma verdade imposta(ou pressuposta).

A autora faz uma clara separaçãoentre ‘culpa’ e ‘responsabilidade’. Aprimeira seria estritamente pessoal, ediz respeito a questões morais ou legais.A afirmação de que “somos todos

culpados”69 por algo serviria de fatoapenas para desculpar aqueles que sãorealmente culpados. Arendt afirmacategoricamente: “[q]uando somostodos culpados, ninguém o é.”70

Por outro lado, a responsabilidadeé coletiva e, nesse sentido, política.Segundo a autora, toda a comunidade a

assume ‘por qualquer ato de qualquerde seus membros’.71 Afirma ela: “[t]odogoverno assume a responsabilidadepelos atos e malfeitorias de seuspredecessores, e toda a nação pelos atose malfeitorias do passado”,72 e só sepode escapar dessa responsabilidadeabandonando a comunidade – ainda quenenhum ser humano possa viver(enquanto humano) sem pertencer aalguma comunidade.

A responsabilidade pelo que nãofizemos ‘é o preço que pagamos porlevar nossa vida não conosco mesmos,mas entre nossos semelhantes’. ParaHannah Arendt, “nenhum padrão moral,individual e pessoal de conduta serácapaz de nos escusar da responsabilidadecoletiva.”73 A questão passa a ser, nãocomo evitá-la, mas como assumi-la.

É no ‘parar-para-pensar’ que ohomem resiste a uma imposição externa,à obediência cega. É nessa parada queo homem pode realizar sua autonomia– e o fluxo contínuo da burocracia temcomo objetivo exatamente o automa-tismo, o homem que deixe de interrogarpara prontamente obedecer. De acordocom Souki, é relevante Arendt ter

67 ROVIELLO, Op. Cit, p.160.

68 ARENDT, Responsabilidade e Julgamento, p.108.

69 Como no caso dos alemães a respeito do regime nazista, ou dos brancos liberais arespeito dos negros, como citado pela própria autora em H. Arendt, Responsabilidade eJulgamento, p.213, 214.

70 ARENDT, Responsabilidade e Julgamento, p.214.

71 Ibidem, p.216.

72 Ibidem, p.217.

73 Ibidem, p.225.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 183

baseado sua teoria na autoridade deSanto Agostinho, pois para este ohomem é livre porque é o começo.“Para Agostinho, Deus criou o homempara introduzir no mundo a faculdadede começar: a liberdade.”74

3. VISÃO CRÍTICA DOPROCESSO E DA JURISDIÇÃO

Neste capítulo, serão abordadosalguns aspectos críticos do processojudicial e da jurisdição, principalmentesob o enfoque dos juristas e proces-sualistas já apontados,75 visando a apon-tar algumas possíveis relações entresuas idéias e o pensamento arendtiano.

3.1. Verdade ou sentido?

Ovídio Baptista salienta, no decorrerde suas obras, o quanto ainda estamosarraigados em um pensamento atreladoao paradigma racionalista, ou seja, àbusca de ‘verdades absolutas’76 peloindivíduo. Este pensamento, tornadoalicerce do liberalismo, para que atinjaseus objetivos, deve valer-se apenas da

razão, “desligado de seus laços culturaise livre da tradição e das doutrinasfilosóficas tradicionais.”77

Se assumirmos o pensamentoarendtiano nesse ponto, ou, ao menos,o considerarmos válido, a ‘verdade’ –se atingida – será ideológica ou solip-sista. A busca da verdade não é absurdanem impossível, mas ideológica. OvídioBaptista bem se reporta ao assuntocomo ‘componente autoritário’, tra-çando um paralelo com Hobbes e a suaconcepção de Estado absoluto. Refere,ainda, que “Estados modernos levaramao extremo […] um Direito produzidopela vontade do soberano para ser‘consumido’ pela nação.”78

Esse tipo de concepção deconstrução do Direito só autoriza trêscaminhos: impor uma ideologia, imporuma arbitrariedade ou falhar. Salvo aterceira hipótese, será necessariamenteanti-democrática (como o seria qualquer‘ditadura da verdade’79). Foi assim quea Alemanha nazista procurou levar acabo um dos anseios do racionalismo, oideal de certeza: o princípio soberanoera o da vontade do Führer80 – e esta

74 SOUKI, Op. Cit., p.43.

75 Cf. Supra.

76 SILVA, Ovídio A. Baptista da. Jurisdição e Execução na tradição romano-canônica.São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996, p.103.

77 SILVA, Ovídio A. Baptista da. Processo e Ideologia, p.6.

78 Ibidem, p.51.

79 Cf. Supra.

80 Eichmann afirmou que “não tinha obedecido simplesmente à lei da Alemanha de Hitler,mas tinha identificado a vontade do Führer ‘com o princípio por trás da lei”. KOHN,Jerome, in ARENDT, Responsabilidade e Julgamento, p.16.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007184

pode ser sempre verificada. “O Direito‘perfeito’ elimina qualquer tentativa dequestionamento. É o direito do tirano.”81

À parte dessa busca de umaverdade, do certo e imutável, a opera-cionalização do jurídico pode visar aosentido. Tomemos a lide como não sendomais que uma “pequena unidade dahistória, vivida por seres reais.”82 E, maisainda, como uma discussão acerca deoutra (pequena) unidade da história: osfatos litigiosos. Ora, o fato histórico écompreendido, jamais explicado “comose explicam as experiências no domíniodas ciências modernas.”83

Que é a lide, então, senão a buscado sentido referente aos fatos contro-versos?84 Da discussão acerca da atribui-ção – ou não – de sentido jurídico aosfatos, e do sentido dessa mesma atribuição?

Nesse contexto, em um regimedemocrático85 não cabe ao juiz impor

o sentido de um ‘superior hierárquico’ou o seu próprio. Lembremos o pensa-mento arendtiano, ao qual Roviello assim

se refere: “julgar significa partilhar omundo com outrem, e a modalidade destapartilha é a persuasão, não o constran-gimento, ainda que fosse o da verdade.”86

O papel do magistrado não é imporuma leitura de mundo (ou dos fatos),mas construí-la juntamente com aspartes litigantes. O contato do julgadorcom o senso comum, com o sentidoconstituído pela comunidade, dá-se pelasua abertura à alteridade: pela suaabertura ao sentido exposto pelos seusinterlocutores no processo. O sentidoconstruído pela sociedade, e estamesma, são ouvidos por intermédio daspartes que litigam. E essa abertura éque legitimaria o ato jurisdicional.

Um dos primeiros entraves que háno processo à busca de sentido dopróprio processo (e, com ele, do Direito)é a ausência de debates. A discussão éresumida (ou aleijada) a uma enun-ciação individual e solipsista de cadaparte. Cada um fala de seu lugar de fala– não há abertura ao outro. Há a

81 SILVA, Ovídio A. Baptista da. Processo e Ideologia, p.93.

82 SILVA, Ovídio A. Baptista da. Processo e Ideologia, p.266.

83 Ibidem, p.290.

84 Ovídio Baptista vai referir que “[o] processo moderno pressupõe a existência do ‘fato’,em sua materialidade, e não o ‘sentido’ que o ‘fato’ possa adquirir no interior de cadalide.” In Fundamentação das Sentenças…, p.328.

85 Não faço menção à democracia apenas enquanto regime de governo, mas, de acordocom o pensamento arendtiano, enquanto constituição da própria realidade – em oposiçãoao totalitarismo (também no sentido atribuído pela autora), o qual não se limita às atividadesde governo, mas impõe arbitrariamente toda a realidade.

86 ROVIELLO, Op. Cit., p.112.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 185

‘apresentação’ de dois pontos de vista,mas não o diálogo necessário à consti-tuição de um senso comum.87

Mais: esse debate só seria perfec-tibilizado com a participação do julgador.Como bem demonstra Ovídio,88 este éum dos maiores dogmas de nossoprocesso judicial: o juiz não pode semanifestar antes de convencido, antesde proferir a ‘verdade’. Entretanto, setomarmos ‘a’ verdade por indesejável(pelos motivos já expostos), é sem sentidoque o magistrado assim se comporte.Não mais se lhe é exigida a imposiçãode uma sabedoria atemporal, masapenas a solução da lide. E esta deveser construída, constituída, por meio dalinguagem, da argumentação, em umaabertura ao sentido trazido pelas partes.

O julgador não profere uma‘verdade’ em sua decisão (a não serem regimes autoritários/totalitários),mas uma opinião89. Esta, lembrando, sótem consistência se perspectivada poroutras opiniões – e a possibilidade dequestionamento lhe é fundamental. Alegitimidade da decisão não mais é umjuízo de certeza (falacioso ouimpositivo), mas um juízo responsável,ou seja, um juízo aberto à constituiçãode sentido pelo senso comum.

Em suma, a constituição de sentidoda decisão é construída pelo magistradopor meio da abertura ao mundo, de umlevar em consideração a opinião daspartes, e pelo deixar as partes levaremem consideração a sua própria opinião.E é justamente esse fazer-sentido-no-mundo (enquanto mundo comum, compar-tilhado entre o magistrado e os envol-vidos) que sustenta a decisão, que alegitima – democrática ou racionalmente.

Vejamos, nesse contexto, aspalavras de Ovídio Baptista:

Quando o juiz disser que julga de tal ouqual modo porque esse é o sentido danorma aplicável, ele ainda não forneceunenhum fundamento válido da sentença.Escolhendo ‘livremente’ o sentido quelhe pareceu adequado, sem justificá-lo,o julgador não teria ido além do racio-cínio formulado por alguém proibido deexplicitar os fundamentos da decisão.[…] A exigência de que a motivação seja‘completa’, abrangendo tanto a versãoaceita pelo julgador, quanto as razõespelas quais ele recusara a versão oposta,é fundamental para que o convencimentojudicial alcance o nível de racionali-dade exigido pela lei.90

Vemos que o autor se aproximamuito de defender o ponto aqui

87 Remete-se aqui à explicação supra, de que o senso comum não é um ‘meio-termo’, nemum ‘mínimo denominador comum’ remanescente entre a confrontação de verdadespositivas diversas.

88 SILVA, Ovídio A. Baptista da. Processo e Ideologia, passim.

89 Faço menção ao conceito e ao papel da opinião no pensamento arendtiano, cf. supra.

90 SILVA, Ovídio A. Baptista , da. Fundamentação das Sentenças…, p.334-335.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007186

sustentado, ainda que com linguagemdiversa. A divergência está na questãode o magistrado poder escolherlivremente o ‘sentido’ que lhe pareceuadequado – em uma perspectivaarendtiana, a ‘escolha’ individualizada,por si só, carece de sentido.

O problema não está apenas nafundamentação, a qual nos apresentaapenas o (ou um) sintoma. A questãofulcral se dá durante a lide, e não aoseu final. É lá que o magistrado deveestar aberto ao ‘sentido’ de ambas aspartes, e não apenas na justificação(lógica e cronologicamente posterior).O sentido, na justificação (vale dizer, dadecisão) é alcançado por esse ‘levar emconta’ as versões apresentadas, e porconstruir, a partir delas e com elas, emconjunto, em debate, em posição esobreposição de opiniões, a soluçãopara o caso. A justificação apresentadaserá conseqüência.

Calamandrei resume de forma belaparte do argumento que está sendoexposto (ainda que, ao menos à citação,falte boa parte do enfoque filosófico queaqui foi exposto): “[j]ustiça é com-preensão: isto é, tomar em conjunto eadaptar os interesses opostos: a socie-dade de hoje e a esperança de amanhã;as razões de quem a defende e as dequem a acusa.”91 Já Capeletti fala em

“tornar a autonomia dos juízes abertaao corpo social e, assim, às solicitaçõesdos ‘consumidores’ do supremo bem queé o da Justiça.”92

Frise-se que não se fala aqui apenascom referência às verdades de fato.Não se trata de debater apenas acercade ‘versões dos fatos’, mas, também, de‘versões do Direito’. O papel do jurídicoé a atribuição de sentido; e o sentido sófaz sentido no coletivo, no espaço público,aberto à comunidade. Como bem refereOvídio Baptista, “[o] sentido não estáno texto. […] Não há um sentido a

priori, que seja anterior e independentedo respectivo contexto em que ele seinsere.”93 Pois é a busca desse sentidoe desse contexto que é o sentido doprocesso judicial, quando inserido emuma comunidade democrática.

3.2 Ideologia, burocracia e maldade

Como desenvolvido até aqui, aideologia choca-se diretamente com umprocesso civil legítimo em umasociedade democrática. Cabe nessecontexto uma colocação de Castoriadis:

E se fosse possível um conheci-mentoseguro e completo (epistémè) do domíniohumano, a política acabaria imedia-tamente, e a democracia tornar-se-ia, aomesmo tempo, impossível e absurda, pois

91 CALAMANDREI, Piero. Elogio dei giudici da un avvocato. Firenze: Le Mennier,1955, p.269 e ss. apud CAPELETTI, Mauro. Juízes Irresponsáveis? Tradução e Revisão:Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto Alegre: Fabris, 1989, p.93.

92 CAPELLETI, Op. Cit., p.93.

93 SILVA, Ovídio A. Baptista da. Fundamentação das Sentenças..., p.331.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 187

a democracia pressupõe que todos oscidadãos têm a possibi-lidade de atingiruma doxa correcta e que ninguém possuiuma epistémè das coisas políticas.94

Mas exatamente o que o pensa-mento ideológico propõe é um sabersecularizado, à parte do contexto esituação históricos. “O esquecimentodo passado é condição do dogma.”95

Entretanto, a compreensão do passadoé condição de sentido para o entendi-mento do presente; o esquecimentoda história é a perda de sentido daexistência. Nas palavras de Roviello,“procurar o sentido do passado é, assim,procurar uma primeira garantia para osentido do presente”.96

A apropriação ideológica dopassado, transformado em dogma compretensão de verdade, o anacronismoevidente das verdades secularizadas noscondena a conviver com o não-sentido.O próprio hábito (entendido no contextode vida pós-moderna, próximo a umcondicionamento, e não no sentido dospensadores clássicos) é uma remoçãoda noção do tempo em nossos atos. Enão é à toa que, via de regra, pessoashabituadas ou condicionadas a certasatitudes não saibam dizer o sentidodesses mesmos atos e atitudes, tendoem vista que esqueceram ou sequer se

puseram a pensar sobre isso. Naspalavras de Bethânea Assy:

[A]pesar da estabilidade positivaproporcionada pelos hábitos, tem-se,primeiro, a sobrevalorização damecanização tanto das atividadesmentais quanto do sentido material darealidade; e, em segundo, conseqüente-mente, a promoção do que se poderiachamar de ‘a seguridade de um ontempermamente’. Na mesma proporção queos hábitos contribuem para a estabili-dade do mundo, asseguram uma equi-vocada segurança da realidade. Colo-cado de forma bela por Arendt já em1928, ‘o hábito é um ontem eterno e semfuturo. Seu amanhã é idêntico a hoje’.97

O pensamento burocrático desem-penha um papel central nesse raciocíniode fazer perdurar idéias anacrônicas.Como já apresentado acima, HannahArendt é enfática ao demonstrar aburocracia como um sistema queimpede de pensar e que limita o acessodo homem à realidade (sincrônica).Ela corresponde a uma mecanização ea um esvaziamento do ser humano, queperde o contato com a realidade e como senso comum. Seus atos deixam defazer sentido, deixam de ter sentido e,por último, sua própria existência passaa ser vazia.98

94 CASTORIADIS, Cornelius. Domaines de l’homme. Les carrefours du labyrinthe II,Paris: Seuil, 1977, p.285 apud ROVIELLO, Op. Cit., p.184.

95 SILVA, Ovídio A. Baptista da. Processo e Ideologia, p.19.

96 ROVIELLO, Op. Cit., p.84.

97 ASSY, Bethânia in ARENDT, Responsabilidade e Julgamento, p.41.

98 Cf. supra.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007188

A busca da certeza do direito,enquanto pensamento ideológico, temsua origem – como já referido – noracionalismo europeu, e possui umarelação estreita com o sistema buro-crático de organização judiciária, o quecontribui com a “assimilação da funçãojudicial à carreira de um funcionáriopúblico comum […].”99 A ideologia,bem no sentido arendtiano, se manifestana separação Direito/mundo real, comobem observa Ovídio Baptista: “[a] supo-sição de que a ciência do direito pudessecriar, através da razão, como pretenderaLeibniz, ‘verdades eternas’ é a res-ponsável pelo extraordinário divórcioentre o Processo Civil e a vida que seobserva na experiência contemporânea.”100

A burocratização do Direito acabapor desempenhar essa função deabstração do jurídico em relação àrealidade. A solução judicial, não raro,embora possua fundamentação dogmá-tica, simplesmente não faz sentido nomundo – e muito menos sentido aindano mundo não-jurídico! Como bemafirma Ovídio Baptista, “[o] ‘mundojurídico’, de que tanto falava Pontes deMiranda, é o espaço criado pelasdoutrinas políticas liberais para excluiro jurista do ‘mundo social’.”101 Nomesmo parágrafo, assim expôs o jurista:

Esse exacerbado normativismo é o pilarque sustenta o dogmatismo de nossaformação universitária. É ele quepermite a constituição de um ensino doDireito abstrato, formal e acrítico,permitindo que os juristas alimentemuma ilusão de produzir uma ciência doDireito neutra quanto a valores,mantendo-os distantes e alienados deseus compromissos sociais.102

O ensino jurídico dominante naatualidade (ao menos em nosso país), oqual apresenta um Direito divorciado darealidade, do sentido e do contextosocial, coroa o pensamento ideológico.O aluno, em vez de aprender o ‘parar-para-pensar’, em vez de ser estimuladopara construir, pelo estudo, pelo debatee pelo discurso, o sentido da realidadejurídica, é ensinado a buscar no já-pronto (doutrina, leis, jurisprudência) asolução. O sentido não é construído, maslhe é dado.103

Cumpre referir que essas consta-tações correspondem aos sintomas queHannah Arendt identifica comooriginários do mal radical e da bana-lidade do mal.104 Quanto ao primeiro, ohomem deixa de ser um fim em simesmo: a solução da lide se vê perdidaem meio à burocratização do processo,

99 SILVA, Ovídio A. Baptista da. Jurisdição e Execução…, p.103; no mesmo sentido, verMERRYMAN, John. La tradición jurídica…, p.67,72 et passim.

100 SILVA, Ovídio A. Baptista da. Jurisdição e Execução…, p.128.

101 SILVA, Ovídio A. Baptista da. Processo e Ideologia, p.50.

102 Idem, ibidem.

103 Cabe fazer referência ao ponto 2.4, acima.

104 Cf. Supra.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 189

onde a justiça meramente formal eprocedimental arraigada no liberalismoexacerbado toma conta.

No que se refere à banalidade domal, em decorrência dessa burocrati-zação, perde-se o sentido do ato pra-ticado. Este pode ser infinitamente mal,pois nos é impedido, pelos váriosartifícios do sistema – pela linguagemburocrática, pelo movimento constantede informações (em grande partedispensáveis), pelo pensamento ideoló-gico, pelo distanciamento Judiciário-sociedade –, que tomemos contatocom o sentido da ação. O que não fazsentido não tem medida e, conseqüente-mente, não tem limite.

Ensina Roviello que “[a] desmedidademonstra ser a máxima miséria, já queé acompanhada por um encerramentodo sistema em si próprio; a desmedidaé o solipsismo ou o narcisismodesmesurado de um fragmento domundo que se toma pela totalidade domundo.”105 E note-se a proximidade deuma afirmação de Piero Calamandreicom a banalidade do mal pensada porHannah Arendt:

O verdadeiro perigo não vem de fora:é um lento exaurimento da consciência,

que a torna aquiescente e resignada:uma crescente preguiça moral (…). Naminha longa carreira nunca meencontrei, face a face, com juízescorruptos, mas conheci não raramentejuízes indolentes, desatentos,aborrecidos (…).106

Cumpre lembrar a figura de Eichmann(por ser icônica no pensamentoarendtiano),107 para demonstrar o quantopodemos ser maus sem que tenhamosconsciência, graças a uma incapacidadede deixar que a realidade do outro, queo sentido por ele trazido, permeie nossomundo. E isso nos remete ao quantouma decisão judicial pode ser má, pornão permitir que o sentido trazido pelasopiniões dos personagens envolvidosseja levado a construir, conjuntamentecom a opinião do juiz, o sentido buscadopelo processo judicial.108

3.3 Responsabilidade

Em primeiro lugar, cumpre salientarque não se busca, aqui, discorrer sobrequalquer tipo de responsabilidade civilou administrativa do juiz (e dos juristasem geral).109 Trata-se, sim, de umaresponsabilidade ética, no sentido deuma ética da responsabilidade.110

105 ROVIELLO, Op. Cit., p.181.

106 CALAMANDREI, Piero. Elogio dei giudici da un avvocato. Firenze: Le Mennier, 1955,p.269 e ss. apud CAPELETTI, Op. Cit., p.93.

107 E boa parte do conteúdo do ponto 2.4, acima.

108 Cf. ANEXO I, infra.

109 Se essa é a intenção, sugere-se a leitura do texto de CAPELETTI, Op. Cit.

110 Cf. Supra.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007190

O primeiro dogma a ser afastado éa não-responsabilidade do juiz em razãoda transferência ao momento legisla-tivo. Já é aceito sem grande contestaçãoque a atividade jurisdicional possui aomenos algum grau de criação de Direito,o que acaba por afastar essa fuga deassumir o compromisso com a funçãodesempenhada. A legislação só échamada a fundamentar as decisõesquando lhe é conveniente comofundamento; caso contrário, há sempreum princípio (constitucional ou não –mas quanto mais amplo melhor) que asustente – ainda que contra legem.111

Se a legislação, por si só, já não maispode servir como refúgio satisfatório aojuiz que queira ‘lavar as mãos’ (emboraainda busquem esse subterfúgio), Arendtnos ensina que a ideologia vem justa-mente ao encontro do desejo do humanode não se responsabilizar. O pensa-mento ideológico, que nos conforta com‘verdades’ – heterônomas –, nos traz umafalsa noção de segurança em nossosatos. Procurou-se demonstrar, supra,como o pensamento arendtiano negaessa ‘fuga’, atribuindo responsabilidadeao indivíduo que, justamente porquecego pelo pensamento ideológico,comete males infinitos.

Evitar a ideologia, nos dias atuais,não é fácil. Até porque o próprio sistemajurídico, como um todo, o é. OvídioBaptista nos apresenta um argumentoque é relevante: mesmo a negação deum agir por parte do juiz pode serideológico (e normalmente o é). Nãointerferir é, por exemplo, justamente umdos maiores dogmas do liberalismo –como já foi referido, em trecho deBaptista já citado em nota de rodapé,no início deste texto.112

Se tomarmos por base o pensamentoarendtiano, a alternativa que temos paraassumir a responsabilidade (já que não hácomo fugir dela) é precisamente anegação de uma busca de verdades – ou,o que é pior, da verdade. Estas seriam,ou a verdade posta e imposta pelaideologia, ou a verdade arbitrária dojulgador. A solução estaria na admissãode que dispomos é de opiniões, visões demundo, que constituem, em conjunto (eem perspectiva) o senso comum – osentido da realidade compartilhada.A busca desse sentido com o outro é quelegitima o papel do juiz em uma sociedadedemocrática, que se diz negar as malda-des do totalitarismo e da arbitrariedade.

O processo deveria nortear suabusca, então, não pela verdade, mas

111A colocação só vem ao encontro de quem sustenta que somos, hoje, no Brasil,positivistas exacerbados, legalistas, como muitas vezes se ouve. A fundamentação dasdecisões, no entanto, embora muitas vezes se baseie apenas em um artigo de lei, em umavisão mais ampla se aproximaria mais do fenômeno descrito pelo Realismo Americanomais radical do que de um legalismo formal aplicado em todos os casos judiciais. Refere-sea isso porque os mesmos textos legais são utilizados para fundamentar decisões as maisdiversas – e, por vezes, até opostas.

112 SILVA, Ovídio A. Baptista da. Processo e Ideologia, p.16.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 191

pelo debate de opiniões verdadeiras (emoposição a arbitrariedades subje-tivas113). Lembremos que as opiniõessó tomam consistência na medida emque são vistas a partir de outros pontosde vista sobre o mesmo mundo.114

Note-se que se fala do mesmo mundo,e não do mundo criado por cada um,em sua existência solipsista ouindividualista. Esse próprio ‘mesmomundo’ é instituído, como já afirmadomais de uma vez acima, pelo própriodebate sobre ele.

Ou seja, ao adentrarmos nessaleitura, admitimos que a opinião do juiz(e, finalmente, sua decisão) só possuiconsistência na medida em que ésubmetida a debate. Essa seria a saídapara uma sincera constituição de ummundo comum entre o julgador e osenvolvidos – se alargando, tout court,à sociedade globalmente considerada.Como já enunciado acima, essa nãoperspectivação por outras opiniõesreduz a decisão judicial (quandoconsiderada por outros que não opróprio julgador) a uma verdadesolipsista ou ideológica.

Esse debate, essa sincera troca deopiniões acerca do mesmo mundo (nemo jurídico, nem o real, mas o mundoconstituído pelo sentido) é o que pode eo que deveria salvar a legitimidade doJudiciário enquanto fenômeno social ecultural (em oposição a arbitrário e

ideológico). A constituição de sentidoem conjunto pelos envolvidos é o quevisa a garantir que a decisão façasentido fora do contexto privado do juiz.

Nesse contexto, uma das formas debuscar a realização de tal ideal é,possivelmente, por meio da oralidade dosatos judiciais. Só pode haver verdadeirodebate na forma oral. O que há, emnosso processo – como já referido –, éa enunciação de versões. De uma parte,da outra, do juiz. Não há debate, não hátroca, não há construção em conjuntodo que quer que seja.

A nossa prática judicial vemcaminhando no sentido contrário,embora recentes (e pequenas) reformasno sistema estejam buscando salvar aoralidade. Esse caminho ratificador dacultura dos escritos (e, conseqüen-temente, da distância entre os sujeitosdo processo) é uma falha grave. A partenão só não participa, como é irrelevantepara a solução da lide. Mesmo por meiode seus advogados, seu ponto de vista,suas razões vêm podendo ser elegante-mente ignorados. Se, em um passadorecente, já muito se decidia que o magis-trado não estava obrigado a examinartodos os argumentos das partes (alémde as decisões só exporem o argumentovencedor, como bem ressaltou OvídioBaptista115), recentemente se decideque o argumento das partes não precisasequer ser considerado. 116

113 Cf. Supra.

114 ROVIELLO, Op. Cit., p. 112; Cf. Supra.

115 Cf. Supra.

116 Cf. Anexo I.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007192

Note-se que esse afastamento, pro-vocado pelo uso exacerbado da palavraescrita, entre o discurso e a realidade,entre a palavra e o que ela tem depotente, pode, também, ser causa deuma banalização do mal. Os sentidosdos atos praticados no foro não sãovistos nem sentidos por quem os praticae, sobretudo, refere-se aos funcionáriospúblicos e juízes, pois advogados acabampor ter contato com seus clientes e vêemo impacto a eles causado na hora delhes traduzir os segredos jurídicoscontidos nos processos em comandose limitações (e, por que não dizer, porvezes até humilhações).

Capeletti, citando Giuliani e Picardi,afirma: “a história demonstra (…) comoé ilusório todo discurso sobre aresponsabilidade judicial, quando osegredo cobre o momento da decisão.”A solução da lide afasta-se da realidadequando tomada no silêncio de umgabinete, em isolamento. Afasta-semais ainda quando ela é comunicada porintermédio do papel, de uma comuni-cação oficial, para, só então, ser transmi-tida pelo advogado à parte. O seu im-pacto, benéfico ou maléfico, é diacrô-nico, e do qual o julgador muitas vezes– ou na maioria das vezes – sequertomará conhecimento (a não ser, quemsabe, por escrito, novamente via interme-diários profissionais, quando das razõesde algum dos infindáveis recursos quetemos, e que sequer são para esse fim).

O verdadeiro debate de opiniõesaqui proposto, como forma de legitimar

o Judiciário e de garantir maior prestígioaos julgadores, passa por, no mínimo,levar ao debate as afirmações dosadvogados e a opinião do juiz, no cursodo processo; no final, levar a debate aprópria decisão, em frente aos interes-sados (diante das partes). Assim, o magis-trado garantiria o contato da sua soluçãocom a realidade, receberia um feedback

imediato do que pretende decidir, cons-truindo, democraticamente, o sentido dasolução a ser adotada para a lide.

Capeletti se refere muitas vezes aum ‘dever de prestar contas’ por partedo juiz.117 Por esse prestar contas, nocontexto deste trabalho, pode-seentender o levar em consideração aposição da sociedade – e, nisso, leia-sede ambas as partes – na busca pelasolução do litígio. É um ‘prestar contasdo porquê da decisão’ que, levado acabo, é uma fundamentação e umajustificação sólidas e amplas. Nestas éque o julgador ‘prestará contas’ e mostrarápor que a sua decisão faz sentido e – maisainda – por que ele possui legitimidadepara um papel tão relevante e delicadoem uma sociedade democrática quanto ode juiz. A justificação (prestação decontas) se transfere das razões de si parao sentido que a decisão faz e deve fazerao outro, à sociedade.

Há um último ponto a ser abordadocom referência à responsabilidade, eque diz respeito à avaliação que se fazda decisão. A partir da premissaapresentada acima, no ponto 2.5, de quenão podemos ser os juízes éticos de

117 CAPELETTI, Op. Cit., passim.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 193

nosso próprio caso (ou, leia-se, da nossaprópria conduta), encontramos maisuma questão: o magistrado não podedecidir pela correção ou justiça da suaprópria decisão.

Essa conclusão não leva a nenhumradicalismo a proposta aqui levantada.Pelo contrário: corrobora com a afir-mação de que a decisão que o juizfundamenta a partir das suas própriasconvicções de correção e justeza nãoestá adequadamente justificada. O argu-mento, corrente em nosso meio jurídico,de que o juiz deve decidir baseado emsuas próprias convicções não se sus-tenta – não só por todos os argumentosapresentados até agora, mas tambémporque não lhe é eticamente possívelavaliar a própria ação (o ato de julgar).

Essa deveria ser a função dostribunais. Tem-se considerado um tantoineficiente nossa solução de ‘duplo graude jurisdição’, que não faz mais quedesvalorizar o primeiro deles. A matéria(segundo, inclusive, princípio proces-sual) é ‘devolvida’, para que sejanovamente decidida. O que acontece,via de regra, é uma transferência dosproblemas encontrados em primeira

instância, no que diz respeito à funçãojurisdicional, com o agravamento dealguns deles (como a distância emrelação aos fatos, às partes e às teste-munhas, a ainda maior falta de oralidadee debate, dentre outros118).

Inserto no contexto filosófico que sepropõe, o que deveria haver seria uma‘jurisdição de segundo grau’, e não um‘segundo grau de jurisdição’. A funçãodaquela seria, não decidir novamente alide, mas avaliar a decisão do juiz deprimeiro grau. Valorizar-lhe, e não tomar-lhe boa parte do mesmo poder. E essaavaliação, novamente, não deveria sermeramente técnico-jurídica (ou talveznem o deveria ser), mas principalmenteética, inserida na idéia de uma ‘ética daresponsabilidade’ arendtiana.

Teríamos, assim, três desembar-gadores com o papel de debater, entresi e, também e principalmente, com aspartes (representadas por seusadvogados), as quais simbolizam,também, o restante da sociedade, osentido que a decisão de primeiro graufaz ou deixa de fazer no mundoconstituído pelas opiniões mesmas quesobre ele se manifestam. É importante

118 Há ainda vários outros problemas atinentes especificamente à jurisdição de segundainstância como praticada nos sistemas de Direito Continental, como, por exemplo, a falta deexposição clara das posições divergentes no tribunal, a falta de debate entre osdesembargadores - pois, nos acórdãos, razões e argumentos são reduzidos a números (votos),etc. Para essa argumentação, ver MERRYMAN, La Tradición Jurídica…., p.71 et passim;sobre a desvalorização do juiz de primeiro grau, sobrevalorização dos recursos e burocratizaçãoda magistratura, ver CAPELETTI, Op. Cit., p.48. Sem falar na redução da quase totalidade dosjulgamentos de nossos colegiados, sobretudo de segundo grau, a decisões supostamenteunânimes (ou que assim aparecem). Faz-se referência, por oportuno, a casos em que sãotomadas decisões contraditórias ou até opostas, todas unânimes, em Acórdãos proferidos namesma sessão de julgamento, mas relatados por diferentes Desembargadores.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007194

frisar que esse debate discursivo não ésobre o mundo, mas é a própriainstituição de um mundo compartilhado!

A função da revisão das decisões nãodeveria ser somente avaliar a capaci-dade técnica do juiz (pois o Direito não émeramente uma técnica), nem mesmoquestionar suas convicções íntimas (oque seria indesejável e deverasautoritário), ou substituí-las por outras (oque seria adiar o problema a outrainstância, e assim por diante). Deveriaser simplesmente debater, democrati-

camente, se a decisão faz ou não sentidono mundo em que nos encontramos, noqual dependemos do outro para o sentidoda nossa própria existência.

4. CONCLUSÃO

[Capeletti, citando Merryman:] ‘Osjuízes exercitam um poder. Onde hápoder deve haver responsabilidade: emuma sociedade organizada racionalmente,haverá uma relação diretamente pro-porcional entre poder e responsabili-dade.’ […] O poder [com a palavra,Capeletti], é bem sabido, freqüente-mente cresce sem o correspondentecrescimento da responsabilidade. Inrerum natura, portanto, não existecorrelação necessária entre poder eresponsabilidade, no sentido indicadopor Merryman. Mas um poder não sujeitoa prestar contas representa umapatologia, ou seja, isto que Merrymanapelida, com expressão que oculta um

pouco seu conteúdo ideológico, de faltade ‘organização racional’ mas que, emciência política, se pode sim-plesmenterotular de autoritarismo e, na suaexpressão extrema, de tirania. […] [Porfim, cita Trocker:] ‘um poder semresponsabilidade é incompatível comum sistema democrático.’119

Uma intenção secundária destetexto foi tentar demonstrar por que nãoseria democrático um poder (Judiciário)sem responsabilidade. Pede-se des-culpas, apenas, por eventual distorçãoda acepção empreendida por Capeletti(e, possivelmente, antes por Merryman)em sua colocação, para trazê-la à tra-dição arendtiana. Mas tal interpretaçãofoi tomada sem remorsos, pois, comoas opiniões tomam consistência quandovistas a partir de outras, assim tambémas perspectivas de cunho filosófico, quenão se opõem, mas se complementame se dão, mutuamente, sentido.

Procurou-se demonstrar que aresponsabilidade pela função jurisdi-cional não tem apenas relação comlegalidade: com legitimidade formal, comresponsabilidade civil, penal ouadministrativa (disciplinar). Certamentetem alguma conexão com o que Cape-letti denominou de “responsabilidadesocial”120, sobretudo no que diz respeitoà questão de dever ser a responsa-bilidade vista, não em função do juiz ouda magistratura, nem em função de uma

119 CAPELETTI, Op. Cit., p.18.

120 Ibidem, passim.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 195

entidade abstrata de poder (como o‘estado’ ou o ‘soberano’), mas emfunção dos usuários: da coletividade.121

Contudo, não é só isso. Como setentou argumentar, a responsabilidadenão é suficientemente exercida quandoo jurista se recolhe em seu mundo e,após, apresenta (leia-se impõe) uma‘solução’ jurídica para o caso. A éticaenvolvida com a atividade jurisdicionalem uma concepção democrática deveperpassar pela comunidade, ser construídae instituída junto com ela. Não bastaque a criação de leis seja democrática(e quanto a isso já há suficientesdúvidas) se a aplicação (leia-se: constru-ção do sentido jurídico quando dojulgamento) é autoritária ou ideológica.

Já o ônus primário ao texto impostofoi o de procurar demonstrar que talconcepção parte, necessariamente, doabandono dos juízos de certeza, dabusca pela ‘verdade’, do dogmatismo.Quando envolvemos, sinceramente, aconvicção do outro, a certeza se dilui.Não há univocidade de sentido, que éconstituído livremente. Roviello chamaa isso de ‘paradoxo da modernidade’:

[A] diferença entre o sentido e o não-sentido, o legítimo e o ilegítimo, é elaprópria uma diferença dotada de sen-tido, isto é, fundadora da humanidadedo homem e da sociedade humana. […][S]ão os homens que estabelecem livre-mente esses limites, de que são os homensque instituem livremente uma comuni-

dade assente no sentido dessa diferençaentre o sentido e o não-sentido.122

Assumir que a busca do jurista éuma busca do sentido (e não umadescrição do mundo natural ou umaverdade metafísica – os dois extremos)o põe em uma situação extremamentedifícil. Como Arendt mesma afirmou, aideologia vem justamente ao encontrodesse desejo humano de não ter que seresponsabilizar.123 Tanto a heteronomiaquanto a autonomia solipsista levam oindivíduo a se afastar do sentidoconferido ao mundo que divide com osoutros homens. Aquele que não lida coma tensão constante de uma realidade quese institui livremente pelo sentindo, emconjunto com os outros (e não num ounoutro extremo), é o que está sujeito acometer os maiores males.

Todavia, um dos pontos centrais detrazer à tona o pensamento de HannahArendt no âmbito da jurisdição é fazerver que esse ‘lavar as mãos’, sob asmuitas máscaras que é apresentado,pode ser a origem dos piores males. Aproposta apresentada visa a afastar omal banalizado que possa ser produzidopor um Judiciário ideológico (ainda quede ideologia conservadora e liberal,pouco importa), autoritário, arbitrário ou,simplesmente, burocratizado ou alienado;mas, sobretudo, por um Judiciário quesequer escuta honestamente àqueles aquem deve e a quem irá julgar.

121 Ibidem, p.91.

122 ROVIELLO, Op. Cit., p.183.

123 Cf. Supra. Ver também FOUCAULT, Op. Cit., passim.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007196

REFERÊNCIAS

ARENDT, Hannah. A Condição Humana.Trad. Roberto Raposo. Rio deJaneiro: Forense Universitária, 2005.

________. Hannah. A Vida do Espírito:o pensar, o querer, o julgar.Tradução: Antônio Abranches eHelena Martins. Rio de Janeiro:Relume Dumará, 2000.

________. Responsabilidade eJulgamento. Trad. RosauraEichenberg. São Paulo: Companhiadas Letras, 2004.

________. Verdade e Política. Trad.Manuel Alberto. Lisboa: Relógiod’Água Editores, 1995.

ARISTÓTELES. Política. São Paulo:Martin Claret, 2005.

CAPELETTI, Mauro. Juízes Irrespon-sáveis? Tradução e Revisão: CarlosAlberto Alvaro de Oliveira. PortoAlegre: Fabris, 1989.

CARDOZO, Benjamin N. A Natureza doProcesso Judicial. São Paulo: MartinsFontes, 2004.

FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso.Tradução: Laura Fraga de AlmeidaSampaio. São Paulo: Loyola, 2005.

MATEUCCI, Nicola. Organización del

Poder y Libertad: historia delconstitucionalismo moderno. Madrid:Trotta, 1998.

MERRYMAN, John. La Tradición

Jurídica Romano-Canônica. México:Fondo de Cultura Económica, 1971.

ROVIELLO Anne-Marie. Senso Comum

e Modernidade em Hannah Arendt.Trad. Bénédicte Houart e JoãoFelipe Marques. Lisboa: InstitutoPiaget, 1987.

SILVA, Ovídio A. Baptista da. Processo

e Ideologia. Rio de Janeiro:Forense, 2006.

________. Fundamentação dasSentenças como Garantia Constitu-cional, in Revista do Instituto de

Hermenêutica Jurídica, v.1, n.4.Porto Alegre: Instituto de Herme-nêutica Jurídica, 2006, p.323-352.

________. Jurisdição e Execução na

tradição romano-canônica. São Paulo:Editora Revista dos Tribunais, 1996.

SOUKI, Nádia. Hannah Arendt e a

Banalidade do Mal. Belo Horizonte:Editora UFMG, 1998.

ANEXO I

Traz-se neste anexo uma decisãoproferida em acórdão recente, com afinalidade de ilustrar – em termospráticos – o que foi amplamentedebatido no corpo deste trabalho.

Deixa-se as conclusões queadvêm da mesma ao sabor dopróprio intérprete.

DATA: 28/06/2006 CADERNO 1 DAUNIAO PAG. Nº 419.TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA3ª REGIÃOSUBSECRETARIA DA QUARTATURMA

PROC. : 2003.03.00.065491-6 AG 191346ORIG. : 9107239106 /SP EMBARGOS DEDECLARAÇÃO EM AGRAVO DEINSTRUMENTO A G RT E : EDITORA

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 197

GLOBO S/A ADV : DANIEL SANTOSDE MELO GUIMARÃES AGRDO:União Federal (FAZENDA NACIONAL)ADV: ELYADIR F BORGES e MIRIAMAPARECIDA P DA SILVA PARTE A:NETCOM COMUNICAÇÕES S/AORIGEM: JUÍZO FEDERAL DA 8ªVARA SÃO PAULO Sec Jud SP RELATO R : DES. FED. FÁBIO PRIETO DESOUZA / QUARTA TURMA

EMENTA - EMBARGOS DEDECLARAÇÃO - ALEGAÇÃO DEOMISSÃO: INEXISTÊNCIA -PREQUESTIONAMENTO -REJEIÇÃO.

1) O Poder Judiciário, pela iniciativa daspartes, está vinculado a decidir a lide,em regra, nos termos do pedido. Mas adecisão fica sujeita a qualquerfundamento jurídico. 2) Na solução dacausa, a adoção de fundamento jurídicodiverso do exposto pela parte não éomissão. É divergência de intelecção

na solução da lide, circunstânciadesqualificadora da interposição deembargos de declaração. 3) A Consti-tuição Federal não fez opção estilística,na imposição do requisito da fundamen-tação das decisões. Esta pode ser lau-datória ou sucinta. Deve ser, tão-só, per-tinente e suficiente. 4) Os requisitosprevistos no artigo 535, do Código deProcesso Civil, devem ser observadosnos embargos de declaração destina-dos ao prequestionamento. 5) Embar-gos rejeitados. ACÓRDÃO Vistos,relatados e discutidos estes autos, emque são partes as acima indicadas,ACORDAM os DesembargadoresFederais da Quarta Turma do TribunalRegional Federal da 3ª Região, naconformidade da ata do julgamento, porunanimidade de votos, em rejeitar osembargos de declaração, nos termos dorelatório e voto do DesembargadorFederal Relator, que fazem parteintegrante do presente acórdão. SãoPaulo, 15 de março de 2006 (grifamos).

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007198

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 199

1. INTRODUÇÃO

Conquanto nem sempre gostemos,a vida é ditada por definições. Assimna natureza física, na natureza bioló-gica, no micro e no macrocosmos etambém na natureza humana. Assim navida social, na vida individual, noparticular ou no universal.

De igual forma, forçosamente, nomundo jurídico, espelho e simultanea-mente retrato, registro, de uma socieda-de qualquer, estrita ou abrangentementeconsiderada, num tempo qualquer.

Com este pequeno intróito, outra nãoé a intenção senão lembrar que o mundojurídico está repleto de microssistemasque se interligam ou antagonizam na medi-da dos embates travados no campo dasidéias, em prol do bem privado em disputaou, pior, em detrimento do bem comum.

Fiança sem outorga uxória:

causa de nulidade, anulabilidade ou ineficácia?

Nadir Silveira Dias*

E por isso mesmo, o objetivo destetrabalho ao tratar do contrato de fiançasem outorga uxória no precípuo fim deresponder se tal constitui causa denulidade, anulabilidade ou de ineficácia.

É de lembrar-se, por oportuno, quenão tem ele a pretensão de dizer coisasnovas, pois a humanidade conta comcerca de dez mil anos e, por conseguinte,também com quase igual tempo demundo jurídico (na ínsita concepçãodo direito que todo ser humanopossui), mas tão-só alinhar conside-rações sobre o tema.

Não poderia dispensar e tampoucofugir na sua apreciação das forçosasdefinições, pelas quais guia-se o seudesenvolvimento e a idéia do autor.

Não é instigante nem meramenteregistral, mas de qualquer forma,

* Advogado; pós-graduado; assessor de Desembargador no Tribunal de Justiça doRio Grande do Sul.

“Interpretar é, ainda que inconscientemente, tomar partido por uma

concepção de direito, o que significa dizer por uma concepção de vida.

Interpretar é dar vida a uma norma. (...) O raciocínio e a intuição, todavia,

pertencem ao homem, e, por isso, estão prenhes de subjetivismo.

Todo intérprete é, embora não o queira, um filósofo e um político da Lei.”

Eduardo Couture

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007200

importante e necessário para o objetivopós-acadêmico que cuida de apreciar aquestão posta, vista no estreito campoque comporta o microssistema do DireitoImobiliário, âmbito de Especialização daPós-Graduação, mas sem que tal insti-tuto (a fiança) deixe de pertencer, igual-mente, a outros campos do Direito e semque deixe de servir, de igual forma, comoaplicativo na prática relacional entre aspessoas e, por conseqüência, na eviden-ciação dos efeitos que gera na soluçãode conflitos, geralmente levados esolvidos pelo Judiciário.

Portanto, a análise de Fiança semOutorga Uxória, Causa de Nulidade,Anulabilidade ou Ineficácia?, conquantodirigida ao Direito Imobiliário, comtônica particular para aplicação nalocação de imóveis urbanos (sua maiorabrangência), repito, não descaracterizao aproveitamento e as aplicações emoutros segmentos do instituto.

2. FIANÇA

Fiança é contrato acessório, não-comutativo, e por conseguinte, nãooneroso para o afiançado, recebedor dabenesse e, como regra, sempredependente do principal.

No dizer comum, trata-se de con-fiança, e nesse passo fiança é a respon-sabilidade assumida por terceiro parasolver a obrigação principal assumidapelo afiançado perante o credor, casoaquele não a cumpra.

Segundo Antonio Houaiss,1 trata-sede obrigação assumida por terceiro quese responsabiliza pelo devedor enquantoeste não puder realizar o seu cumpri-mento (em sua segunda acepçãojurídica). Em referindo-se à pessoa doautor da fiança, o fiador, diz tratar-sedo abonador, pessoa que afiança ouassegura o cumprimento dos deveres eobrigações de outro contratante.2

Em iguais termos, a definiçãotrazida pela Grande Enciclopédia

Larousse Cultural.3

Trata-se do ato de abonar obrigaçãoalheia, responsabilidade, garantia, obri-gação acessória assumida por terceirapessoa, que se responsabiliza, total ou parcial-mente, pelo cumprimento da obrigação dodevedor, caso este não venha a cumpri-la, é abonação, fiadoria, fiador, na suaacepção jurídica, nas palavras de AurélioBuarque de Holanda Ferreira.4

Menos ortodoxo no rigorismo téc-nico, neste tão-só aspecto, e com um

1 In Pequeno Dicionário Enciclopédico Koogan Larousse, Editora Larousse do Brasil,1982, p.372: “Obrigação assumida por terceiro que se responsabiliza pelo devedorenquanto esse não puder cumpri-la.”

2 In op.cit. p.372: “Abonador, pessoa que afiança ou assegura o cumprimento de deverese obrigações de outro.”

3 In Grande Enciclopédia Larousse Cultural, Ed. Nova Cultural, 1999, v.10, p.2410.

4 In Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa, Ed. Nova Fronteira, 1995, p.295:fiança. S.f. 1. Ato (...) de abonar obrigação alheia. 3. Responsabilidade, garantia, 4. Jur.Obrigação acessória assumida por terceira pessoa, que se responsabiliza, total ou

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 201

texto que abrange o dizer comum do povo,Iêdo Batista Neves5 incorpora à suadefinição outros institutos de direito, comocaução e penhor, que fiança não são, senãopara o colóquio descompromissado,desvinculado do campo do direito.

Nesse ponto, evidentemente, cuida-se aqui da Fiança Civil,6 em contrapontoà Fiança Comercial ou FiançaMercantil,7 ainda que, como afirmadona parte introdutória, possa a análiseaqui perseguida servir a outros camposdo direito, como este, ora referido.

Ainda em oposição à Fiança Civil daqual aqui se cuida, é de lembrar-se aFiança Legal,8 aquela que deriva depreceito contido em diploma legislativo ouregulamentar, se aquele a tiver previsto, etambém a Fiança Judicial,9 esta oriundade comando judicial, e a partir dos autos

de processo sujeito à competência daquelejuízo que a determina.

À toda evidência, conclui-se que éa Fiança Convencional10 que constituio objeto estrito deste estudo, agregadaa seus outros elementos, e que outranão é senão aquela que forma a maioriade sua incidência, a Fiança CivilConvencional prestada na locação deimóveis urbanos, sem prejuízo de outrascongêneres ou não, desde que nãoexcluídas por este estudo ou por suaprópria natureza.

Neste caso, e de regra em todos osdemais, por certo e cabalmente exigível,precisa ela ser idônea, razão pela qualtambém é importante lembrar queFiança Idônea,11 ainda segundo IêdoBatista Neves, é fiança qualificada pelaexigência feita ao fiador, além da

parcialmente, pelo cumprimento da obrigação do devedor, caso este não a cumpra ou nãopossa cumpri-la; abonação, fiadoria, fiador. (...)

5 In Vocabulário Prático de Tecnologia Jurídica e Brocardos Latinos, APM Editora,1987: “Fiança, s.f. – Diz-se da caução, do penhor, da garantia, da segurança dada poralguém ao cumprimento da obrigação de outro. Diz-se, também, da obrigação acessória,que alguém assume, de satisfazer, perante o credor, a obrigação de terceiro, no caso deeste não a cumprir no prazo e nas condições estabelecidas.”

6 In op.cit. “II - Fiança Civil – Diz-se da que garante uma obrigação de natureza civil, ecompreende todos os acessórios da dívida principal, inclusive despesas judiciais.”

7 In op.cit. “III – Fiança Comercial (X – Fiança Mercantil - o mesmo que Fiança Comercial)– Diz-se da que garante uma obrigação comercial e seus acessórios.”

8 In op. cit. “IX – Fiança Legal – Diz-se daquela que decorre de exigência de lei.”

9 In op.cit. “VIII – Fiança Judicial – Diz-se da que é determinada pelo juiz, de ofício ou arequerimento da parte, para garantia do cumprimento de obrigação de parte no processo.”

10 In op.cit. “IV – Fiança Convencional – Diz-se daquela que resulta de contrato, e mediantea qual alguém se obriga a realizar a prestação do devedor principal, se este não a cumprir.”

11 In op.cit. “VII – Fiança Idônea – Diz-se daquela que se exige, ao lado da capacidade deobrigar-se do fiador, que ele tenha bens livres e desembaraçados, suficientes para agarantia oferecida.”

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007202

capacidade de obrigar-se, também apropriedade de bens livres e desemba-raçados, suficientes para a garantiaassumida, além da comprovação decapacidade financeira, regra típica epressuposto primeiro para a garantia deimóveis urbanos.

No magistério do Mestre OrlandoGomes,12 o contrato de fiança se dáentre o fiador e o credor da pessoa querecebe a benesse de natureza subsidiáriapela razão de a execução restar condi-cionada ao não cumprimento do con-trato principal, esclarecendo que aobrigação fidejussória somente se tornaexigível se não cumprida a obrigaçãoprincipal. Afirma tratar-se de contratounilateral, gratuito e acessório, produ-zindo efeitos unicamente para o fiador.13

Nesse mesmo sentido o ensina-mento de Sylvio Capanema de Souza,Advogado do Mercado Imobiliário,

Professor de Direito Civil da FaculdadeCândido Mendes, e atual Desembar-gador do Tribunal de Justiça do Rio deJaneiro, ao afirmar constituir-se a fiançaem pacto acessório pelo qual alguém,denominado fiador, se obriga perante ocredor a pagar a dívida do devedorafiançado, se este não o fizer, ao des-tacar a preferência do credor por essamodalidade de garantia em sua maisrecente obra sobre imóvel urbano.14

Para o catedrático de Direito Civilda Faculdade de Direito da Universi-dade de São Paulo e doutor honoris

causa da Faculdade de Direito daUniversidade de Paris XII, o tambémfestejado Silvio Rodrigues, leciona quea fiança convencional tem por naturezajurídica ser contrato acessório,unilateral, solene e, não raro, gratuito,chamando a atenção no que respeita asua interpretação.15

12 In Contratos, 10.ed., Forense, Rio de Janeiro, 1984, n.368, p.492: “O contrato de fiançatrava-se entre o fiador e o credor do afiançado. Sua natureza é a de um contrato subsidiário,por ter a execução condicionada à inexecução do contrato principal. Por outras palavras,a obrigação fidejussória só se torna exigível se a obrigação principal não for cumprida.”

13 In op.cit., n.369, p.493: “Fiança é contrato unilateral, gratuito e acessório. Produzobrigações unicamente para o fiador.”

14 In “Da Locação de Imóvel Urbano – Direito e Processo”, 1.ed., 2a.tiragem, Forense, Riode Janeiro, 1999, n.165. p.240-241: “De todas as garantias admitidas pela lei, a mais utilizadaé a fiança, que constitui pacto acessório pelo qual alguém, a quem chamamos de fiador, seobriga, perante o credor, a pagar a dívida do devedor, afiançado, caso este não o faça. (...).Trata-se de contrato acessório, sendo de sua própria natureza a gratuidade, embora seadmita que tal se transforme em oneroso, quando se convenciona remuneração do fiador,tal como ocorre na fiança comercial ou bancária.”

15 In Direito Civil, dos Contratos e das Declarações Unilaterais da Vontade, Vol. 3, EditoraSaraiva, 22.ed., 1994, n.179, p.370-371: “Natureza jurídica – A fiança convencional, objetodeste Capítulo, é contrato acessório, unilateral, solene e, no geral, gratuito. (...) O fato dafiança ser contrato gratuito implica a incidência da regra do art. 1.090 do Código Civil, queordena sejam as convenções benéficas interpretadas estritamente. Isto é, não se pode,por analogia, ampliar as obrigações do fiador, quer no respeitante à sua abrangência, querno concernente à sua duração (...).”

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 203

Para o autor,16 a seu turno, semprejuízo de outras aplicações, e emestudo já publicado sobre a legislaçãoinquilinária, Fiança (Civil Convencional)é o instituto de direito civil trazido parao âmbito da legislação especial esparsaque disciplina a locação de imóveisurbanos e é a modalidade de garantiaprevista no inciso II do artigo 37 da LeiInquilinária, enquanto na lei comumcodificada, encontra-se disciplinada nosartigos 1481 a 1504 do Código Civil.

E, contrariamente ao que ocorrecom a caução, é a preferida porlocadores ou por seus representantes,as administradoras de imóveis, namedida em que calcada em compro-vação de renda por parte do fiador e nacomprovação de uma ou duas pro-priedades livres e desembaraçadas dequaisquer ônus, legais ou convencio-nais, o que garante, sobremaneira, ovalor da locação.

Corresponde a afirmar que nãobasta ao fiador ter a vontade de afiançaruma pessoa para ser ele locatário (coisaque raramente alguém quer ser), mascujo objetivo é evidenciar que, além disso,visto que ausente não pode estar o seuconsentimento, precisa o fiador comprovarsituação econômico-financeira para

demonstrar a capacidade de pagamento,caso o locatário não o faça.

Assim fazendo, por certo que teráa aprovação de seu cadastro e a acei-tação do locador, quando então poderáfirmar o contrato de locação, em geralreconhecido por autenticidade, e tão-sóraramente por semelhança, pelo tabeliãoou ajudante juramentado, no tabelionatode notas, atual denominação dos an-tigos Cartórios de Notas. A transcriçãodos artigos lá objetivou o maiorentendimento do instituto e a sua melhorou mais adequada aplicação, aquilevada para o item 7.

3. OUTORGA UXÓRIA

Outorga uxória é consentimento, oassentimento de vontade, a manifes-tação de anuência, por parte daqueleque deve participar do ato de concessãoda fiança convencional. É de ser do ma-rido ou da mulher, dependendo de quemseja o autor concedente da garantiaconsubstanciada no contrato de fiança.

Antonio Houaiss,17 define a outorgacomo o consentimento, enquanto uxórioé o que diz respeito à mulher casada.

No mesmo sentido, é o dizer deAurélio Buarque de Holanda Ferreira.18

16 In Locação de Imóveis Comentada em Locuções e Verbetes, Editora Livraria doAdvogado, 1999, n.198, p.122-123.

17 In op.cit. p.611: “Outorga: s.f. Ação ou efeito de outorgar; concessão; beneplácito;consentimento.” p. 863: “Uxório: adj. Que diz respeito à mulher casada.”

18 In op.cit. p.472: “Outorga. S. f. Ato ou efeito de outorgar; consentimento; concessão;aprovação; beneplácito.” p.661: “Uxório (cs). Adj. Respeitante à mulher casada.”

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007204

Não discrepa dessa definição IêdoBatista Neves, bipartindo-a em outorgamarital e outorga uxória.19

Para Sylvio Capanema,20 a outorgauxória ou marital é condição de validadee eficácia da fiança. Quando concedidapor apenas um dos cônjuges, importaausência da outorga e nulidade dagarantia, sem deixar de fazer referênciaà existência de corrente doutrináriaque admite a sua validade com o com-prometimento daquele que concedeua fiança.

O Professor Silvio Rodrigues, porsua vez, afirma que a outorga uxória éo consentimento da mulher, enquantosustenta que na fiança prestada sem elanão se cuidará de nulidade absoluta, namedida em que suscetível de conva-

lidação mediante ratificação que podefazer a mulher,21 e, também o marido,se for o caso de outorga marital.

4. NULIDADE

No que respeita à nulidade, adefinição trazida pelo reconhecidodicionarista Antonio Houaiss nos diz queela é um estado do ato jurídico que seencontra gravado de vício, que o impedede existir legalmente e de produzir os seusefeitos. Diz ainda que a nulidade absolutapode ser invocada por qualquer pessoainteressada, a nulidade relativa somentepelas pessoas a quem aproveita.22

A seu turno, não menos reconhe-cido, o festejado dicionarista AurélioBuarque de Holanda Ferreira afirma

19 In op.cit.: “Outorga, s.f.- Diz-se do consentimento; da permissão; do mandato.” I –Outorga Marital – Diz-se do consentimento do marido para que a mulher pratique certosatos segundo a lei. II – Outorga Uxória – Diz-se do consentimento da mulher casada,necessário para que o marido pratique determinados atos, especialmente no que toca àalienação de bens móveis.” N.A. (aqui, certamente, houve erro de digitação, pois areferência é de ser a bens imóveis).

20 In op.cit., n.166, p.242: “A outorga é condição de validade e eficácia da fiança, pelo quea sua ausência importará, inexoravelmente, em nulidade da garantia, em que pese umacorrente doutrinária sustentar que será válida, com o comprometimento apenas da meaçãodo consorte que a concedeu.”

21 In op.cit. n.179-A, p.371: “A fiança e a outorga uxória – Tratando-se de negócio emgeral gratuito, no qual o fiador arrisca seus bens, pois, se o devedor principal não pagara dívida, o fiador deve fazê-lo, impede o legislador que o homem casado preste fiança,sem o consentimento de sua mulher (CC, art. 235, III). As razões inspiradoras da lei jáforam sucintamente analisadas (v. n. 63, III, v. 6), tendo-se sustentado que a nulidade dafiança, prestada sem outorga uxória, não é absoluta, por ser suscetível de convalescimento,através de ratificação da mulher (...).”

22 In op.cit., p.592: “NULIDADE, s.f. Qualidade do que é nulo./(...) Falta de validade./Estado de um ato jurídico gravado de vício, que o impede de existir legalmente e deproduzir efeitos. (A nulidade absoluta pode ser invocada por qualquer pessoa interessada,a nulidade relativa só pelas pessoas a quem deve proteger.”

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 205

em sua definição que a nulidade é o estadoou qualidade de nulo, apontando para aacepção jurídica que diz ser a ineficáciade um ato jurídico, pela ausência decondições necessárias à sua validade.23

Para Iêdo Batista Neves, no direitojudiciário, nulidade é o vício causado por

erro ou carência de formas essenciaisdo ato, que o tornam inválido ouinoperante em relação ao direitoprocessual. Suas múltiplas e variadasdefinições são de todo significativaspara esse trabalho e razão bastante paraa citação, in totum.24

23 In op.cit., p.458-459: “nulidade. S.f. 1. Estado ou qualidade de nulo. (...) 4. Jur. Ineficáciadum ato jurídico, resultante da ausência de uma das condições necessárias para sua validade.”

24 In op. cit. “NULIDADE, s. f. - Diz-se da qualidade do que é nulo; da ineficácia total ouparcial do ato jurídico a que falta alguma formalidade ou solenidade intrínseca ou extrínsecaque lhe é essencial. Em direito judiciário, diz-se do vício, por erro ou preterição de formasessenciais, que torna inválida, ou inoperante, uma relação de direito processual.I - Nulidade Absoluta - Diz-se da nulidade insanável.II - Nulidade Acidental - Diz-se da nulidade relativa.III - Nulidade Dependente de Rescisão - O mesmo que Nulidade Relativa ou Ato Anulável.IV - Nulidade Essencial - Diz-se da nulidade de fundo. Diz-se, também, da nulidade formal,quando a lei impõe determinada forma ao ato.V - Nulidade Expressa - Diz-se da que está prevista na letra da lei.VI - Nulidade Extrínseca - Diz-se da nulidade absoluta que decorre da omissão de formaque a lei considera substancial ao ato.VII - Nulidade Formal - Diz-se daquela que atinge o ato que não obedeceu ao modoprescrito em lei.VIII - Nulidade Imperativa - Diz-se da que decorre da substância do ato.IX - Nulidade Insuprível - Diz-se da nulidade insanável; do ato que não pode ser ratificadonem pode produzir efeitos.X - Nulidade Intrínseca - Diz-se da que decorre de vício interior do ato.XI - Nulidade Legal - Diz-se da que é proclamada por lei.XII - Nulidade Parcial - Diz-se daquela que não prejudicará o ato na parte válida, se estafor separável.XIII - Nulidade Material - Diz-se da nulidade de direito substantivo; da que atinge oconteúdo do ato.XIV - Nulidade Relativa - Diz-se da que resulta da incapacidade relativa do agente ou devício de vontade,

e não pode ser alegada pela parte prejudicada e declarada existente por

meio de ação própria. V. Nulidade Acidental.XV - Nulidade Substancial - Diz-se da que consiste no estado dum ato em que há víciosintrínsecos ou extrínsecos insupríveis, que impedem tenha ele existência legal e queproduza seus efeitos jurídicos

, circunstância que pode ser alegada por qualquer interessado

ou pelo Ministério Público, cumprindo ao juiz decretar de ofício a invalidade completadesse ato desde que o conheça. V. Nulidade Absoluta.XVI - Nulidade Tácita - V. Nulidade Virtual.XVII - Nulidade Taxativa - Diz-se da nulidade expressa como cominação para a falta decumprimento das formalidades que a lei considera essenciais para a existência válida doato. É a que só se refere a casos determinados.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007206

Segundo Cario Mário da SilvaPereira, professor emérito da Universi-dade Federal do Rio de Janeiro e daUniversidade de Minas Gerais, nulidadeé a sanção para a ofensa ao que prede-terminou a lei, ainda que nem sempreesteja ela prevista ou declarada naprópria lei, às vezes tão-só enunciandoo princípio e cominando a penalidade25.

No magistério de Maria HelenaDiniz, titular de Direito Civil e professorade Filosofia do Direito em Pós-Graduação em Direito da PUCRS,nulidade é a sanção imposta pela normalegal com a determinação de privaçãodos efeitos do negócio jurídico praticadosem a sua observância.26

5. ANULABILIDADE

Anulabilidade, por sua vez, na defi-nição de Antonio Houaiss é a qualifi-cação do que é anulável, enquanto anu-lação é a ação de anular e, anular, oque pode ser declarado nulo, sem efeito,para anular o negócio, e anulável, o quepode ser anulado, revogável.27

Para Aurélio Buarque de HolandaFerreira, anular está definido como tornarnulo, invalidar, anulatório, o que tem forçade anular, a capacidade de anular, e anu-lável é o que pode ou deve ser anulado.28

Iêdo Batista Neves, em suas defi-nições, aponta-nos que a anulabilidadeé a característica do anulável, por defeito

XVIII - Nulidade Textual - Diz-se daquelas expressamente previstas no texto da lei.XIX - Nulidade Virtual - Diz-se da que decorre do espírito da lei. O mesmo que Nulidade Tácita.XX - Nulidade Visceral - Diz-se da falta de um elemento substancial para a existência doato. V. Nulidade Substancial.XXI - Nulidade de Sentença - Diz-se da que ocorre no julgamento em que são preteridasprescrições legais que não poderiam deixar de ser observadas.”

25 In Instituições de Direito Civil, Vol. I, Introdução do Direito Civil, Teoria Geral de DireitoCivil, 9.ed., Forense, Rio de Janeiro, 1986, n.109, p.439-441: “É nulo o negócio jurídico,quando, em razão do defeito grave que o atinge, não pode produzir o almejado efeito. É anulidade a sanção para a ofensa à predeterminação legal. Nem sempre, contudo, se achadeclarada na própria lei. Às vezes, esta enuncia o princípio, imperativo ou proibitivo,cominando a pena específica ao transgressor, e, então, diz-se que a nulidade é expressa outextual; outras vezes, a lei proíbe o ato ou estipula a sua validade na dependência de certosrequisitos, e, se é ofendida, existe igualmente nulidade, que se dirá implícita ou virtual. (...)”

26 In Curso de Direito Civil Brasileiro, 1° Vol., Teoria Geral do Direito Civil, 4.ed., EditoraSaraiva, 1986, H. h.1., p.258: “A nulidade vem a ser a sanção, imposta pela norma jurídica,que determina a privação dos efeitos jurídicos do negócio jurídico praticado emdesobediência ao que prescreve (163. Orlando Gomes...; Caio M. S. Pereira...).”

27 In op.cit., p.58: “Anulabilidade, s.f. Qualidade de anulável. Anulação, s.f. Ação deanular; abolição, revogação: a anulação de um casamento. Anular², v.t. Tornar, declararnulo, sem efeito: anular o negócio. Anulável, adj. Que pode ser anulado; revogável.”

28 In op.cit., p.49: “anular². V.t. 1. Tornar nulo; invalidar. 2. Reduzir a nada; destruir,eliminar, aniquilar. 3. Destruir o efeito de; resistir a. (...). anulatório. Adj. Jur. Que tem forçade anular; capaz de anular. anulável. Adj. 2 g. Que se pode ou deve anular.”

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 207

que pode ser sanado pela parte;anulação, a rescisão do ato ou negóciojurídico; anular, o desfazimento do atoou do negócio jurídico, acrescendo queanular significa existência, ainda quecom defeito; anulatório, o que tem forçaou aptidão para anular e anulável, o quepode ser desfeito ou rescindido.29

Discorrendo sobre a anulabilidade,Caio Mário da Silva Pereira leciona queela não tem o mesmo alcance danulidade, pois ausente o interessepúblico, mas a mera conveniência daspartes, aduzindo ainda que em doutrinavisa ela proteger o consentimento,podendo ainda referir-se à incapacidadedo autor da manifestação volitiva.30

No magistério de Maria HelenaDiniz, a anulabilidade ou nulidaderelativa, citando Clóvis Beviláqua, érelativa àqueles negócios que se encon-tram com vício capaz de determinar asua ineficácia, e que podem ser elimi-nados para restaurar-lhes a normali-dade, acrescentando que se trata dedesconformidade que a norma jurídicaconsidera de menor gravidade, concernenteà esfera de interesses individuais.31

6. INEFICÁCIA

Sobre a ineficácia, Antonio Houaissesclarece em sua definição que ela é aausência de eficácia, inutilidade ou

29 In op. cit. “Anulabilidade, s.f. – Diz-se do que é anulável, isto é, do ato ou negociojurídico defeituoso porque lhe faltam requisitos previstos em lei, mas cujo desfazimentodepende de argüição do prejudicado. Pode ser sanado por ato da parte ou das partesinteressadas. A anulabilidade é defeito menos grave do que a nulidade. Anulação, s.f. –Diz-se da rescisão do ato ou do negócio jurídico. Anular, v.t. – Desfazer o ato ou onegócio jurídico. Não se confunde com decretação de nulidade, que é declarar inexistenteo ato jurídico. Anular pressupõe existir, embora com defeito. Anulável, s.f. – Diz-se do quepode ser desfeito ou rescindido: negócio anulável; decisão anulável.”

30 In op.cit., n.110, p.442-443: “Anulabilidade. Não tem o mesmo alcance da nulidade, nemtraz o mesmo fundamento a anulabilidade do negócio jurídico. Nela não se vislumbra ointeresse público, porém a mera conveniência das partes, já que na sua instituição olegislador visa à proteção de interesses privados.¹² (De Page, Traité, n° 98) (...) Diz-se emdoutrina que a anulabilidade visa à proteção do consentimento ou refere-se à incapacidadedo agente.¹³ (Planiol, Ripert et Boulanger, n°351.)”

31 In op.cit. H. h.1. “A nulidade relativa ou anulabilidade refere-se “a negócios que seacham inquinados de vício capaz de lhes determinar a ineficácia, mas que poderá sereliminado, restabelecendo-se a sua normalidade” (165. Esta é a definição de ClóvisBeviláqua (op.cit. p.281). A declaração judicial de sua ineficácia opera ex nunc, de modoque o negócio produz efeitos até esse momento (CC, art. 152). Isto é assim porque aanulabilidade se prende a uma desconformidade que a norma considera menos grave,uma vez que o negócio anulável viola preceito concernente a interesses meramenteindividuais, acarretando uma reação menos extrema (CC, arts. 147, I e II; 155 a 158) (...)”

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007208

insuficiência que não produz os resul-tados desejados.32

Nas palavras de Aurélio Buarquede Holanda Ferreira, ineficácia é aqualidade de ineficaz, o que não temeficácia, e ineficaz, o que é não eficaz,inútil, inconveniente.33

Sem discrepar dessas definições,Iêdo Batista Neves afirma que aineficácia trata-se da inutilidade ouinsuficiência do ato para produzir efeitos,enquanto que ineficaz se traduz porausência de qualidade do ato para aprodução de efeitos jurídicos.34

Caio Mário da Silva Pereira, aodiscorrer sobre os efeitos da nulidade eda anulabilidade, por via transversa ouindireta, favorece a idéia aqui desen-volvida ao sustentar que a ineficácia daobrigação acessória da fiança não levaà ineficácia da obrigação principal.35

Ainda que expostos na análise danulidade do negócio jurídico, MariaHelena Diniz afirma nulos os atosnegociais com vícios essenciais e semqualquer eficácia jurídica.36

7. LEGISLAÇÃO

7.1 Código Civil Brasileiro

Art. 1481. Dá-se o contrato de fiança,quando uma pessoa se obriga poroutra, para com o seu credor, asatisfazer a obrigação, caso o devedornão a cumpra.Art. 1482. Se o fiador tiver quem lhe abonea solvência, ao abonador se aplicará odisposto neste capítulo sobre fiança.Art. 1483. A fiança dar-se-á por escrito,e não admite interpretação extensiva.Art. 1484. Pode-se estipular a fiança,ainda sem consentimento do devedor.Art. 1485. As dívidas futuras podem serobjeto de fiança; mas o fiador, nestecaso, não será demandado senãodepois que se fizer certa e líquida aobrigação do principal devedor.Art. 1486. Não sendo limitada a fiança,compreenderá todos os acessórios dadívida principal, inclusive as despesasjudiciais, desde a citação do fiador.Art. 1487. A fiança pode ser de valorinferior ao da obrigação principal econtraída em condições menos onerosas.

32 In op.cit., p.464: “Ineficácia, s.f. Falta de eficácia; inutilidade, insuficiência que nãoproduz os efeitos desejados.”

33 In op.cit., p.359: “ineficácia. S.f. Qualidade de ineficaz; falta de eficácia. Ineficaz. Adj. 2g. Não eficaz; inútil, inconveniente.”

34 In op.cit. “Ineficácia, s. f. – Diz-se da inutilidade da insuficiência do ato para produzirefeitos jurídicos. Ineficaz, adj. – Diz-se da ausência de qualidade do ato para produzirefeito jurídico.”

35 In op.cit. n.º 111, p.444: “Quando uma obrigação é dependente de outra, a nulidade daprincipal fulmina a acessória, mas a recíproca não é verdadeira, pois a ineficácia da acessórianão macula a principal, que continua produzindo os seus efeitos, como seria o caso daobrigação garantida por fiança, em que a nulidade da obrigação principal extingue agarantia, mas se for nula a fiança, subsiste o débito.”

36 In op.cit. H, h.1. p.268:”(...) São nulos os atos negociais inquinados por vícios essenciais,não podendo ter, obviamente, qualquer eficácia jurídica. P. ex. (CC, art. 145) (...).”

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 209

Quando exceder o valor da dívida, oufor mais onerosa, que ela, não valerásenão até ao limite da obrigação afiançada.Art. 1488. As obrigações nulas não sãosuscetíveis de fiança, exceto se a nuli-dade resultar apenas de incapacidadepessoal do devedor.Parágrafo único. Esta exceção nãoabrange o caso do art. 1.259.Art. 1489. Quando alguém houver de darfiador, o credor não pode ser obrigado aaceitá-lo se não for pessoa idônea,domiciliada no município, onde tenha deprestar a fiança, e não possua benssuficientes para desempenhar a obrigação.Art. 1490. Se o fiador se tornar insol-vente, ou incapaz, poderá o credorexigir que seja substituído.

Efeitos da Fiança

Art. 1491. O fiador demandado pelopagamento da dívida tem direito a exigir,até a contestação da lide, que sejamprimeiro excutidos os bens do devedor.Parágrafo único. - O fiador, que alegaro benefício de ordem a que se refereeste artigo, deve nomear bens dodevedor, sitos no mesmo município,livres e desembargados, quantosbastem para solver o débito (art. 1.504).Art. 1492. Não aproveita este benefícioao fiador:I - Se ele o renunciou expressamente.II - Se se obrigou como principalpagador, ou devedor solidário.III - Se o devedor for insolvente,ou falido.Art. 1493. A fiança conjuntamenteprestada a um só débito por mais deuma pessoa, importa o compromisso desolidariedade entre elas, se declarada-mente não se reservaram o benefícioda divisão.Parágrafo único. Estipulado este bene-fício, cada fiador responde unicamente

pela parte que, em proporção, lhecouber no pagamento.Art. 1494. Pode também cada fiadortaxar, no contrato, a parte da dívida quetoma sob sua responsabilidade, e, nestecaso, não será obrigado a mais.Art. 1495. O fiador, que pagarintegralmente a dívida, fica sub-rogadonos direitos do credor; mas só poderádemandar a cada um dos outrosfiadores pela respectiva quota.Parágrafo único. A parte do fiadorinsolvente distribuir-se-á pelos outros.Art. 1496. O devedor responde tambémao fiador por todas as perdas e danosque este pagar, e pelos que sofrer emrazão da fiança.Art. 1497. O fiador tem direito aos jurosdo desembolso pela taxa estipulada naobrigação principal, e, não havendotaxa convencionada, aos juros legaisda mora.Art. 1498. Quando o credor, sem justacausa, demorar a execução iniciadacontra o devedor, poderá o fiador, ouo abonador (art. 1.482), promover-lheo andamento.Art. 1499. O fiador, ainda antes de haverpago, pode exigir que o devedor satis-faça a obrigação, ou o exonere da fiança,desde que a dívida se torne exigível, outenha decorrido o prazo dentro no qualo devedor se obrigou a desonerá-lo.Art. 1500. O fiador poderá exonerar-seda fiança que tiver assinado sem limi-tação de tempo, sempre que lhe convier,ficando, porém, obrigado por todos osefeitos da fiança, anteriores ao atoamigável, ou à sentença que o exonerar.Art. 1501. A obrigação do fiador passa-lhe aos herdeiros; mas a responsabi-lidade da fiança se limita ao tempodecorrido até a morte do fiador, e nãopode ultrapassar as forças da herança.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007210

Extinção da Fiança

Art. 1502. O fiador pode opor ao credoras exceções que lhe forem pessoais, eas extintivas da obrigação que compitamao devedor principal, se não provieremsimplesmente de incapacidade pessoal,salvo o caso do art. 1.259.Art. 1503. O fiador, ainda que solidáriocom o principal devedor (arts. 1.492 e1.493), ficará desobrigado:I - Se, sem consentimento seu, o credorconceder moratória ao devedor.II - Se, por fato do credor, for impossívela sub-rogação nos seus direitos epreferências.III - Se o credor, em pagamento dadívida, aceitar amigavelmente dodevedor objeto diverso do que este eraobrigado a lhe dar, ainda que depoisvenha a perdê-lo por evicção.Art. 1504. Se, feita a nomeação nascondições do art. 1.491, parágrafoúnico, o devedor, retardando-se aexecução, cair em insolvência, ficaráexonerado o fiador, provando que osbens por ele indicados eram, ao tempoda penhora, suficientes para a soluçãoda dívida afiançada.”145 INC-VDAS NULIDADES“Art. 145. É nulo o ato jurídico:I - quando praticado por pessoaabsolutamente incapaz (artigo 5º).II - quando for ilícito, ou impossível, oseu objeto.III - quando não revestir a formaprescrita em lei (art. 82 e 130).IV - quando for preterida algumasolenidade que a lei considere essencialpara a sua validade.V - quando a lei taxativamente o declararnulo ou lhe negar efeito.”146 PAR-ÚNICO“Art. 146. As nulidades do artigoantecedente podem ser alegadas por

qualquer interessado, ou pelo MinistérioPúblico, quando lhe couber intervir.Parágrafo único. Devem ser pro-nunciadas pelo juiz, quando conhecer doato ou dos seus efeitos e as encontrarprovadas, não lhe sendo permitido supri-las, ainda a requerimento das partes.”NB: 1) Ver CCB, art. 222. 2) Ver Lei n.º6.015/73, Lei dos Registros Públicos, art.214, no mesmo sentido.“Art. 147. É anulável o ato jurídico:I - por incapacidade relativa do agente(art. 6º).II - por vício resultante de erro, dolo,coação, simulação, ou fraude (arts. 86a 113).”NB: Ver CCB, arts. 83, 154 a 157.“Art. 148. O ato anulável pode ser ratifi-cado pelas partes, salvo direito de terceiro.A ratificação retroage à data do ato.”NB:1) Ver CCB, art. 1.008. 2) VerSúmulas 335 e 346 do STF“Art. 149. O ato de ratificação deveconter a substância da obrigação ratifi-cada e a vontade expressa de ratificá-la.”NB: A ratificação somente pode serefetivada por ato da mesma naturezado documento original; se for o casode escritura pública, a ratificação só terávalidade se também for lavrada porinstrumento público.“Art. 150. É escusada a ratificaçãoexpressa, quando a obrigação já foicumprida em parte pelo devedor, cientedo vício que a inquinava.”“Art. 151. A ratificação expressa, ou aexecução voluntária da obrigaçãoanulável, nos termos dos arts. 148 a 150,importa renúncia a todas as ações, ouexceções, de que dispusesse contra oato o devedor.”“Art. 152. As nulidades do art. 147 nãotêm efeito antes de julgadas porsentença, nem se pronunciam de ofício.Só os interessados as podem alegar, eaproveitam exclusivamente aos que as

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 211

alegarem, salvo o caso de solidariedade,ou indivisibilidade.Parágrafo único. A nulidade doinstrumento não induz a do ato, sempreque este puder provar-se por outro meio.”178 PAR-9 INC-I LET-B“Art. 178. Prescreve:§ 9º. Em quatro anos:I - Contados da dissolução da socie-dade conjugal, a ação da mulher para:a) desobrigar ou reivindicar os imóveisdo casal, quando o marido os gravou,ou alienou sem outorga uxória, ousuprimento dela pelo juiz (art. 235 e 237);b) anular as fianças prestadas e asdoações feitas pelo marido fora doscasos legais (arts. 235, nºs. III e IV, e236);” (Redação do Dec. Legislativo n.°3.725/19)235 INC-III“Art. 235. O marido não pode, semconsentimento da mulher, qualquer queseja o regime de bens:I - Alienar, hipotecar ou gravar de ônusreal os bens imóveis, ou direitos reaissobre imóveis alheios (arts. 178, § 9º,n.º I, a, 237 , 276 e 293). (Redação doDec. Leg. 3.725/19)II - Pleitear, como autor ou réu, acercadesses bens e direitos.III - Prestar fiança (arts. 178, § 9º, n.º I, be 263, n.º X).”239“Art. 239. A anulação dos atos do maridopraticados sem outorga da mulher, ousem suprimento do juiz, só poderá serdemandada por ela, ou seus herdeiros(arts. 178, § 9º, n.º I, a e n.º II).”NB: Ver CCB, arts. 240 e seg.242“Art. 242. A mulher não pode, semautorização do marido (art. 251):I - Praticar atos que este não poderiasem consentimento da mulher (art. 235).II - Alienar ou gravar de ônus real, osimóveis de seu domínio particular,

qualquer que seja o regime dos bens(arts. 263, nºs II, III e VIII, 269, 275 e 310).III - Alienar os seus direitos reais sobreimóveis de outrem.IV - Contrair obrigações que possamimportar em alheação de bens do casal.”(Redação dos incisos dada pela Lei n.º4.121, de 27.08.62).

7.2. No NOVO CÓDIGO CIVILBRASILEIRO (Lei no 10.406, de 10de janeiro de 2002)

“LIVRO IV. Do Direito de Família.TÍTULO I Do Direito Pessoal.SUBTÍTULO I Do Casamento. TÍTULOII Do Direito Patrimonial. Subtítulo I DoRegime de Bens entre os Cônjuges.CAPÍTULO I

Disposições Gerais”“Art. 1.642. Qualquer que seja o regimede bens, tanto o marido quanto a mulherpodem livremente:(...)III - desobrigar ou reivindicar osimóveis que tenham sido gravados oualienados sem o seu consentimento ousem suprimento judicial;IV - demandar a rescisão dos contratosde fiança e doação, ou a invalidação doaval, realizados pelo outro cônjuge cominfração do disposto nos incisos III eIV do art. 1.647;Art. 1.647. Ressalvado o disposto noart. 1.648, nenhum dos cônjuges pode,sem autorização do outro, exceto noregime da separação absoluta:I - alienar ou gravar de ônus real osbens imóveis;II - pleitear, como autor ou réu, acercadesses bens ou direitos;III - prestar fiança ou aval;(...)

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007212

Art. 1.648. Cabe ao juiz, nos casos doartigo antecedente, suprir a outorga,quando um dos cônjuges a deneguesem motivo justo, ou lhe seja impossívelconcedê-la.Art. 1.649. A falta de autorização, nãosuprida pelo juiz, quando necessária (art.1.647), tornará anulável o ato praticado,podendo o outro cônjuge pleitear-lhe aanulação, até dois anos depois determinada a sociedade conjugal.Parágrafo único. A aprovação tornaválido o ato, desde que feita porinstrumento público, ou particular,autenticado.”

“P A R T E E S P E C I A LLIVRO I. DO DIREITO DASOBRIGAÇÕES. TÍTULO VI. Das VáriasEspécies de Contrato

CAPÍTULO XVIII. DA FIANÇASeção I Disposições GeraisArt. 818. Pelo contrato de fiança, umapessoa garante satisfazer ao credor umaobrigação assumida pelo devedor, casoeste não a cumpra.Art. 819. A fiança dar-se-á por escrito, enão admite interpretação extensiva.Art. 820. Pode-se estipular a fiança,ainda que sem consentimento dodevedor ou contra a sua vontade.Art. 821. As dívidas futuras podem serobjeto de fiança; mas o fiador, nestecaso, não será demandado senãodepois que se fizer certa e líquida aobrigação do principal devedor.Art. 822. Não sendo limitada, a fiançacompreenderá todos os acessórios dadívida principal, inclusive as despesasjudiciais, desde a citação do fiador.Art. 823. A fiança pode ser de valorinferior ao da obrigação principal econtraída em condições menos onerosas,e, quando exceder o valor da dívida, ou

for mais onerosa que ela, não valerá senãoaté ao limite da obrigação afiançada.Art. 824. As obrigações nulas não sãosuscetíveis de fiança, exceto se anulidade resultar apenas de incapaci-dade pessoal do devedor.Parágrafo único. A exceção estabele-cida neste artigo não abrange o casode mútuo feito a menor.Art. 825. Quando alguém houver deoferecer fiador, o credor não pode serobrigado a aceitá-lo se não for pessoaidônea, domiciliada no município ondetenha de prestar a fiança, e não possuabens suficientes para cumprir a obrigação.Art. 826. Se o fiador se tornar insolventeou incapaz, poderá o credor exigir queseja substituído.Seção II

Dos Efeitos da Fiança

Art. 827. O fiador demandado pelopagamento da dívida tem direito a exigir,até a contestação da lide, que sejamprimeiro executados os bens do devedor.Parágrafo único. O fiador que alegar obenefício de ordem, a que se refere esteartigo, deve nomear bens do devedor,sitos no mesmo município, livres edesembargados, quantos bastem parasolver o débito.Art. 828. Não aproveita este benefícioao fiador:I - se ele o renunciou expressamente;II - se se obrigou como principalpagador, ou devedor solidário;III - se o devedor for insolvente, ou falido.Art. 829. A fiança conjuntamenteprestada a um só débito por mais deuma pessoa importa o compromisso desolidariedade entre elas, se declarada-mente não se reservarem o benefíciode divisão.Parágrafo único. Estipulado este bene-fício, cada fiador responde unicamente

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 213

pela parte que, em proporção, lhecouber no pagamento.Art. 830. Cada fiador pode fixar nocontrato a parte da dívida que toma sobsua responsabilidade, caso em que nãoserá por mais obrigado.Art. 831. O fiador que pagar inte-gralmente a dívida fica sub-rogado nosdireitos do credor; mas só poderádemandar a cada um dos outrosfiadores pela respectiva quota.Art. 832. O devedor responde tambémperante o fiador por todas as perdas edanos que este pagar, e pelos quesofrer em razão da fiança.Art. 833. O fiador tem direito aos jurosdo desembolso pela taxa estipulada naobrigação principal, e, não havendotaxa convencionada, aos juros legaisda mora.Art. 834. Quando o credor, sem justacausa, demorar a execução iniciadacontra o devedor, poderá o fiadorpromover-lhe o andamento.Art. 835. O fiador poderá exonerar-seda fiança que tiver assinado semlimitação de tempo, sempre que lheconvier, ficando obrigado por todos osefeitos da fiança, durante sessenta diasapós a notificação do credor.Art. 836. A obrigação do fiador passaaos herdeiros; mas a responsabilidadeda fiança se limita ao tempo decorridoaté a morte do fiador, e não podeultrapassar as forças da herança.Seção III

Da Extinção da Fiança

Art. 837. O fiador pode opor ao credoras exceções que lhe forem pessoais, eas extintivas da obrigação que compe-tem ao devedor principal, se não pro-vierem simplesmente de incapacidadepessoal, salvo o caso do mútuo feito apessoa menor.

Art. 838. O fiador, ainda que solidário,ficará desobrigado:I - se, sem consentimento seu, o credorconceder moratória ao devedor;II - se, por fato do credor, for impossívela sub-rogação nos seus direitos epreferências;III - se o credor, em pagamento dadívida, aceitar amigavelmente dodevedor objeto diverso do que este eraobrigado a lhe dar, ainda que depoisvenha a perdê-lo por evicção.Art. 839. Se for invocado o benefícioda excussão e o devedor, retardando-se a execução, cair em insolvência, ficaráexonerado o fiador que o invocou, seprovar que os bens por ele indicadoseram, ao tempo da penhora, suficientespara a solução da dívida afiançada.”

“PARTE GERAL.. LIVRO III, DOSFATOS JURÍDICOS, TÍTULO I, DONEGÓCIO JURÍDICO, CAPÍTULO IDisposições Gerais

Art. 104. A validade do negócio jurídicorequer:I - agente capaz;II - objeto lícito, possível, determinadoou determinável;III - forma prescrita ou não defesa em lei.Art. 107. A validade da declaração devontade não dependerá de formaespecial, senão quando a leiexpressamente a exigir.Art. 108. Não dispondo a lei emcontrário, a escritura pública é essencialà validade dos negócios jurídicos quevisem à constituição, transferência,modificação ou renúncia de direitosreais sobre imóveis de valor superior atrinta vezes o maior salário mínimovigente no País.Art. 109. No negócio jurídico celebradocom a cláusula de não valer sem

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007214

instrumento público, este é dasubstância do ato.Art. 110. A manifestação de vontadesubsiste ainda que o seu autor haja feitoa reserva mental de não querer o quemanifestou, salvo se dela o destinatáriotinha conhecimento.Art. 113. Os negócios jurídicos devemser interpretados conforme a boa-fé eos usos do lugar de sua celebração.Art. 114. Os negócios jurídicosbenéficos e a renúncia interpretam-seestritamente.CAPÍTULO VDa Invalidade do Negócio JurídicoArt. 166. É nulo o negócio jurídicoquando:I - celebrado por pessoa absolutamenteincapaz;II - for ilícito, impossível ouindeterminável o seu objeto;III - o motivo determinante, comum aambas as partes, for ilícito;IV - não revestir a forma prescrita em lei;V - for preterida alguma solenidade quea lei considere essencial para a suavalidade;VI - tiver por objetivo fraudar leiimperativa;VII - a lei taxativamente o declarar nulo,ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção.Art. 167. É nulo o negócio jurídicosimulado, mas subsistirá o que sedissimulou, se válido for na substânciae na forma.§ 1o Haverá simulação nos negóciosjurídicos quando:I - aparentarem conferir ou transmitirdireitos a pessoas diversas daquelasàs quais realmente se conferem, outransmitem;II - contiverem declaração, confissão,condição ou cláusula não verdadeira;III - os instrumentos particulares foremantedatados, ou pós-datados.

§ 2o Ressalvam-se os direitos deterceiros de boa-fé em face doscontraentes do negócio jurídicosimulado.Art. 168. As nulidades dos artigosantecedentes podem ser alegadas porqualquer interessado, ou peloMinistério Público, quando lhe couberintervir.Parágrafo único. As nulidades devemser pronunciadas pelo juiz, quandoconhecer do negócio jurídico ou dosseus efeitos e as encontrar provadas,não lhe sendo permitido supri-las,ainda que a requerimento das partes.Art. 169. O negócio jurídico nulo não ésuscetível de confirmação, nemconvalesce pelo decurso do tempo.Art. 170. Se, porém, o negócio jurídiconulo contiver os requisitos de outro,subsistirá este quando o fim a quevisavam as partes permitir supor que oteriam querido, se houvessem previstoa nulidade.Art. 171. Além dos casos expressamentedeclarados na lei, é anulável o negóciojurídico:I - por incapacidade relativa do agente;II - por vício resultante de erro, dolo,coação, estado de perigo, lesão oufraude contra credores.Art. 172. O negócio anulável pode serconfirmado pelas partes, salvo direitode terceiro.Art. 173. O ato de confirmação deveconter a substância do negóciocelebrado e a vontade expressa demantê-lo.Art. 174. É escusada a confirmaçãoexpressa, quando o negócio já foicumprido em parte pelo devedor, cientedo vício que o inquinava.Art. 175. A confirmação expressa, ou aexecução voluntária de negócioanulável, nos termos dos arts. 172 a 174,

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 215

importa a extinção de todas as ações,ou exceções, de que contra eledispusesse o devedor.Art. 176. Quando a anulabilidade do atoresultar da falta de autorização deterceiro, será validado se este a derposteriormente.Art. 177. A anulabilidade não tem efeitoantes de julgada por sentença, nem sepronuncia de ofício; só os interessadosa podem alegar, e aproveita exclusiva-mente aos que a alegarem, salvo o casode solidariedade ou indivisibilidade.Art. 178. É de quatro anos o prazo dedecadência para pleitear-se a anulaçãodo negócio jurídico, contado:I - no caso de coação, do dia em queela cessar;II - no de erro, dolo, fraude contra cre-dores, estado de perigo ou lesão, do diaem que se realizou o negócio jurídico;III - no de atos de incapazes, do dia emque cessar a incapacidade.Art. 179. Quando a lei dispuser quedeterminado ato é anulável, semestabelecer prazo para pleitear-se aanulação, será este de dois anos, acontar da data da conclusão do ato.Art. 180. O menor, entre dezesseis edezoito anos, não pode, para eximir-sede uma obrigação, invocar a sua idadese dolosamente a ocultou quandoinquirido pela outra parte, ou se, no atode obrigar-se, declarou-se maior.Art. 181. Ninguém pode reclamar o que,por uma obrigação anulada, pagou aum incapaz, se não provar que reverteuem proveito dele a importância paga.Art. 182. Anulado o negócio jurídico,restituir-se-ão as partes ao estado emque antes dele se achavam, e, nãosendo possível restituí-las, serão inde-nizadas com o equivalente.Art. 183. A invalidade do instrumentonão induz a do negócio jurídico

sempre que este puder provar-se poroutro meio.Art. 184. Respeitada a intenção daspartes, a invalidade parcial de um negóciojurídico não o prejudicará na parte válida,se esta for separável; a invalidade daobrigação principal implica a dasobrigações acessórias, mas a destas nãoinduz a da obrigação principal..”

8. JURISPRUDÊNCIA

Na legislação encontram-se generi-camente reguladas as situações da vida,mas longe de resolvê-las em sua totali-dade, apenas apontam caminho quenem sempre se encaixa no fato sob óticaou é seguido por aqueles a quem diri-gidas as suas respectivas incidências.

Nesse passo, necessário e de todorecomendável que se tenha como fontenão apenas as leis comuns ou esparsas,mas também a jurisprudência queanalisa reiterados casos concretos emelhor define a correta e adequadaaplicação do dispositivo legal sob ótica.

Nesse teor, como fonte criativa quese torna na lacuna da lei, na controvérsiaou mesmo na mera pretensão resistida,apresenta a jurisprudência variada gamade ocorrências a serem analisadas e,ainda que assim seja, na exata medidaque alcança o estrito segmento contidoneste trabalho, Fiança sem OutorgaUxória: Causa de Nulidade, Anulabili-dade ou Ineficácia?, e na conformidadedo que se pode constatar e dimensionarcom as ementas abaixo colacionadas:

“LOCAÇÃO. AÇÃO DE DESPEJOPOR FALTA DE PAGAMENTO C/C

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007216

AÇÃO DE COBRANÇA. Contrato delocação prorrogado por prazoindeterminado. Fiança. Exoneração.Caso concreto. Matéria de fato.Exegese de cláusula contratual. Naespécie, uma vez prorrogada a locaçãopor tempo indeterminado, a fiança nãose resolve por si mesma, devendo osfiadores agir conforme o disposto no art.1.500 do Código Civil; não o fazendo,serão responsáveis pelo pagamento dosalugueis ate a desocupação do imóvele a entrega das chaves. Apelo provido,sentença desconstituída. (ApelaçãoCível nº 70004278131, Décima QuintaCâmara Cível, Tribunal de Justiça doRS, relator: Des. Vicente Barrôco deVasconcellos, julgado em 19/06/02).

AÇÃO ORDINÁRIA DE COBRANÇA.Juros remuneratórios. Não-limitação.Dependendo o par. 3° do art. 192 daCF de regulamentação, conformeinterpretação do Pretório Excelso, legala pactuação da taxa de jurosremuneratórios acima do limite de 12%ao ano. Às instituições financeiras nãose aplica, no particular, o disposto noDecreto n.° 22.626/33. Fiança. Falta deoutorga uxória. Anulabilidade do ato. Afalta de outorga uxória à prestação defiança constitui ato anulável, porquesomente à mulher e seus herdeiroscompete invalidá-la. Exegese do art.239 do CC. Apelação provida.TRIBUNAL TARGS, RECURSOAPC N.°197210107, 13/08/98, DécimaOitava Câmara Cível, Rel. WilsonCarlos Rodycz, ORIGEM: Estrela.REFLEG. CF-192, par-3 de 1988.

ASSUNTO: 1. - Falta de efetividade.Ineficácia. Taxa acima limite.Instituição financeira. 2. - Nulidade.

EMBARGOS À EXECUÇÃO.FIANÇA SEM OUTORGA UXÓRIA.ANULABILIDADE. A fiançaprestada pelo marido sem o consenti-mento da mulher é ato anulável, estandolegitimados para propor a anulatóriasomente o cônjuge ou seus herdeiros(art. 239 do Código Civil). Apeloimprovido. REFLEG. CC-239;ASSUNTO: 1. Fiança. Falta de OutorgaUxória. Nulidade. Legitimação Ativa.Mulher ou Herdeiros. 2. Embargos dodevedor. DECISÃO: Negado provi-mento. Unânime. TRIBUNAL TARGS,RECURSO APC N.° 196245641, 20/03/97, Segunda Câmara Cível, Rel.Roberto Laux, ORIGEM: Carazinho.

EMBARGOS Á EXECUÇÃO.FIANÇA. AUSÊNCIA DE OUTORGAUXÓRIA. ANULABILIDADE. INA-PLICABILIDADE DO PARÁ-GRAFO ÚNICO DO ART. 298 DOCPC. APELAÇÃO NÃO PROVIDA.TRIBUNAL TARGS, RECURSOAPC N° 196135420, 11/12/96, SétimaCâmara Cível, DECISÃO: Negadoprovimento. Unânime. Rel. RobertoExpedito da Cunha Madrid, Três deMaio REFLEG. CPC-298; JURISPR.RP v-6 p-317; ASSUNTO: 1. Fiança.Falta de outorga uxória. Anulabilidade.2. Execução. Co-devedor. Falta decitação. Embargos do devedor.Nulidade. Inocorrência. TIPO CÍVEL.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 217

NOTA DE CRÉDITO COMER-CIAL. EMBARGOS. FIANÇA.OUTORGA UXÓRIA. ATO ANU-LÁVEL. JUROS REMUNERATÓRIOS.A fiança prestada pelo marido semconsentimento da mulher é ato anulável,estando legitimada apenas a mulher ouseus herdeiros. Questão superada,entretanto, pelo afastamento da fiança,ante o assentimento tácito doexeqüente. Os juros remuneratóriosdevem paramentar-se em 1% ao mês,sem socorro a argumentos constitu-cionais, pois em período de estabilidademonetária, esta é tradição nacional, àvista de vários diplomas. Apelaçãoprovida, em parte. ASSUNTO: 1. Notade crédito comercial. Execução.Embargos do devedor. 2. Fiança. Faltade outorga uxória. - Anulabilidade. -Nulidade. Legitimação ativa. Mulher ouherdeiros. 3. Juros reais. Interpretação.Percentual. Limite. DECISÃO: Dadoprovimento parcial. Unânime.TRIBUNAL TARGS, RECURSOAPC N.° 196146997, 24/10/96, SextaCâmara Cível, RELATOR José CarlosTeixeira Giorgis, ORIGEM: Espumoso.

FIANÇA. AUSÊNCIA DE OU-TORGA UXÓRIA. PROPOSTA AAÇÃO DE DESCONSTITUIÇÃODA OBRIGAÇÃO PELA MULHER,QUE NÃO A FIRMOU, A PRO-CEDÊNCIA É IMPOSIÇÃO LEGAL,POUCO IMPORTANDO A DETER-MINAÇÃO EM TORNO DANULIDADE OU ANULABILIDADEDA FIANÇA. EXIGÊNCIA DEOUTORGA UXÓRIA QUE NÃO SE

VÊ ALTERAR PELA NOVACONSTITUIÇÃO FEDERAL.IRRELEVÂNCIA, OUTROSSIM, DEO FIADOR HAVER SE COMPRO-METIDO COMO PRINCIPALPAGADOR E DEVEDOR SOLIDÁ-RIO, DESDE QUE, MESMO ASSIM,MANTIDA A NATUREZA DAFIANÇA COMO TAL. HONO-RÁRIOS FIXADOS COM MODE-RAÇÃO. APELAÇÃO IMPROVIDA.TRIBUNAL TARGS, RECURSOAPC N.° 195059332, 22/06/95, SEXTACÂMARA CÍVEL, RELATORMARCELO BANDEIRA PEREIRA,ORIGEM: PORTO ALEGRE.REFLEG. CC-235 INC-III; CC-242INC- ASSUNTO: 1. FIANÇA. FALTADE OUTORGA UXÓRIA. -NULIDADE. - ANULABILIDADE.2. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS.FIXAÇÃO NA SENTENÇA.DECISÃO: NEGADO PROVIMENTO.UNÂNIME. TIPO CÍVEL.

FIANÇA. A AUSÊNCIA DEOUTORGA UXÓRIA NÃO NULI-FICA A FIANÇA. APENAS IM-PLICA EM INEFICÁCIA RELATIVADA MESMA EM FACE DA ESPOSA.INEFICÁCIA ESTA, DE RESTO, ASER ALEGADA, PRIVATIVA-MENTE, PELO CÔNJUGE. CASOEM QUE, DE RESTO, O EMBAR-GANTE ASSUMIU DÍVIDATAMBÉM COMO DEVEDORSOLIDÁRIO. REFLEG. CC-263 INC-X; CC-239; CC-235; CC-178 PAR-9AL-B. ASSUNTO: 1. FIANÇA.FALTA DE OUTORGA UXÓRIA.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007218

ANULABILIDADE. - VALIDADE.RESPONSABILIDADE. BEM PAR-TICULAR OU MEAÇÃO. - NULI-DADE. LEGITIMAÇÃO ATIVA.MULHER OU HERDEIROS. 2.FIANÇA. EXECUÇÃO. DEVEDORSOLIDÁRIO. DECISÃO: DADOPROVIMENTO. UNÂNIME. TRI-BUNAL TARGS, RECURSO APCN.° 195087622, 08/08/95, SEXTACÂMARA CÍVEL, RELATOR ARMÍ-NIO JOSÉ ABREU LIMA DA ROSA.ORIGEM: FLORES DA CUNHA.

FIANÇA. ANULABILIDADE. ÉANULÁVEL E NÃO NULA, AFIANÇA DESPROVIDA DEOUTORGA UXÓRIA (CC, ARTS.145, V, 146, 152 E 239) COM-PETINDO À MULHER LEGITIMI-DADE PARA DEMANDAR AINVALIDAÇÃO (CC, ART. 239).REFLEG. CC-235 INC-III; CC-239;CC-145 INC-V; CC-152; CC-178 PAR-9 INC-I LET-B; CC-146 PAR-ÚNICO. JURISPR. APC 12651TJRGS; APC 191108661 TARGS;JULGADOS TARGS V-12 P-166; V-81 P-171; RJTJRGS V-42 P-58; RTJV-36 P-559; V-54 P-138; V-55 P-384;V-56 P-743; V-61 P-676 RJTJRS,JULGADOS TARGS V-88 P-354 AC-IGUAL APC 194143152 ARNOWERLANG ASSUNTO: FIANÇA.FALTA DE OUTORGA UXÓRIA. -ANULABILIDADE. - NULIDADE.LEGITIMAÇÃO ATIVA. MULHER.DECISÃO: DADO PROVIMENTO.UNÂNIME. TRIBUNAL TARGS,RECURSO APC N.° 193190071, 30/

11/93, PRIMEIRA CÂMARA CÍVEL,RELATOR HEITOR ASSISREMONTI, ORIGEM: PELOTAS.BIBLIOGR. - SANTOS, CAVALHO.“CÓDIGO CIVIL BRASILEIROINTERPRETADO”. III, P-250,FREITAS BASTOS; - LEAL, A.L.CÂMARA. “DA PRESCRIÇÃO EDA DECADÊNCIA”. P-381, 159.JULGADOS TARGS V-88 P-354,TIPO CÍVEL.

EXECUTIVO FISCAL. EMBARGOS.FIANÇA. NULIDADE DA FIANÇAPELO ANALFABETISMO DAFIADORA, RECONHECIDA DEOFÍCIO, E ANULABILIDADE PORFALTA DE OUTORGA MARITAL,QUE DEPENDE DE SUSCITAÇÃODO CÔNJUGE PRETERIDO. APENHORA EM BENS IMÓVEISDOS FIADORES, NÃO VINCULAPROCESSUALMENTE A FIADORANÃO ATADA, NEM INTIMADA DACONSTRIÇÃO. PROSSEGUIMENTODA EXECUÇÃO. TRIBUNAL TJRGS,RECURSO APC N.° 592136022, 18/02/93, SEGUNDA CÍVEL, RELATORSERGIO JOSÉ DULAC MULLER,ORIGEM: TAQUARI. (RESUMO)REFLEG. CC-43 INC-I LF-6830 DE1980 ART-12 PAR-2 CTN-109ASSUNTO: 1. PROCESSO CIVIL. 2.ICMS. COBRANÇA. 3. EXECUTIVOFISCAL. - FIANÇA. FIADORANALFABETO. EFEITOS QUANTOÀ GARANTIA PRESTADA. - PE-NHORA. INTIMAÇÃO. EFEITOS. -CITAÇÃO DO DEVEDOR. -CITAÇÃO DO FIADOR. FALTA.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 219

EFEITOS. 4. FIADOR. DÉBITOSFISCAIS. 5. EMBARGOS DODEVEDOR. - PENHORA EM EXE-CUTIVO FISCAL. - AVALIAÇÃODOS BENS PENHORADOS. - BENSIMÓVEIS DO FIADOR. INTI-MAÇÃO DO CÔNJUGE. FALTA. -EXECUTIVO FISCAL. - FIANÇA.ANULABILIDADE. ILEGITIMI-DADE DO DEVEDOR PARASUSCITAR. - CRÉDITO FISCAL EMULTA. 6. FIANÇA. - OUTORGAUXÓRIA. FALTA. EFEITOS. -NULIDADE. CONHECIMENTO DEOFÍCIO. EFEITOS. - ANULABILI-DADE. FONTE: JURISPRU-DÊNCIA TJRS, C-CÍVEIS, 1993, V-1, T-9, P-287-290, TIPO CÍVEL.

FIANÇA - OUTORGA UXÓRIA- AUSÊNCIA - NULIDADE DAGARANTIA - APLICAÇÃO DOART. 242, I, C/C O ART. 235, III, DOCC - INTERPRETAÇÃO DO ITEMI DO ART. 5º, C/C O § 5º DO ART.226, AMBOS DA CF - EXEGESE DAIGUALDADE ENTRE HOMEM EMULHER - A nulidade da fiança porausência de outorga é absoluta e nãoconvalesce, conforme demonstra odisposto nos arts. 235, III, e 242, I, doCC, descabendo incluir-se meação depessoa que sequer foi parte do contratode fiança e que, por isso, dispensada doônus de provar. (2º TACSP - Ap. c/rev.306.986-0-00 - 6ª - Rel. Juiz LagrastaNeto - J. 05.02.92) (JTACSP 135/357).

EMBARGOS DO DEVEDOR.LOCAÇÃO. FIANÇA. É ANULÁVEL,

E NÃO NULA, A FIANÇA DES-PROVIDA DE OUTORGA UXÓRIA,COMPETINDO À MULHER LEGI-TIMIDADE PARA DEMANDAR AINVALIDAÇÃO. HIPÓTESE EMQUE, DEMANDADO O DESFA-ZIMENTO DO ATO, A RESPECTI-VA SENTENÇA, EM SEU DIS-POSITIVO LIMITOU-SE A EX-CLUIR A MULHER DA RELAÇÃOPROCESSUAL EXECUTÓRIA.SUBSISTÊNCIA DA OBRIGAÇÃOEM RELAÇÃO AO MARIDO.EXCLUSÃO, TODAVIA, DASDESPESAS DE RECUPERAÇÃODO IMÓVEL, PORQUE IMPROVA-DAS NÃO DECORRESSEM DEUSO NORMAL, E DA SUCUMBÊN-CIA NA AÇÃO DE DESPEJO, PORFALTA DE INTIMAÇÃO DOFIADOR. APELAÇÃO PROVIDAEM PARTE. TRIBUNAL TARGS,RECURSO APC N.° 191108661, 25/09/91, TERCEIRA CÂMARA CÍVELRELATOR ARAKEN DE ASSIS,ORIGEM: PELOTAS. REFLEG. LI-LF-6649 DE 1979 ART-22; CC-145INC-V; CC-146 PAR-ÚNICO; CC-152; 02/08/99 15:06:27, TJRS -Jurisprudência Cível Unificada, Página:2 CC-239; CC-245 INC-III; CC-1486;CPC-471 INC-II RJTJRS,JULGADOS TARGS V-81 P-171ASSUNTO: 1. FIANÇA. FALTA DEOUTORGA UXÓRIA. -ANULABILIDADE. - NULIDADE.LEGITIMAÇÃO ATIVA. MULHER.2. LOCAÇÃO. EXECUÇÃO. -FIANÇA. FALTA DE INTIMAÇÃOAÇÃO DE DESPEJO. EFEITOS. -

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007220

COBRANÇA ALUGUEL, CUSTAS EHONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. -REPARAÇÃO DE DANO. FALTA DEPROVA. EXCLUSÃO. DECISÃO:DADO PROVIMENTO. UNÂNIME.BIBLIOGR. DALL’AGNOL JR.ANTONIO JANYR. INVALIDADESPROCESSUAIS, PORTO ALEGRE,LEJUR, 1989, N-3.1, P-31 JULGADOSTARGS V-81 P-171. TIPO CÍVEL.”

9. ANÁLISE RELACIONAL ECONFRONTO DOS INSTITUTOS

Ao teor do quanto exposto até aqui,e consoante o que dispõe a legislação,ao que prega a doutrina e ao quecomprova a própria jurisprudência, esegundo a ótica deste articulista, oContrato de Fiança sem Outorga Uxórianão é causa de Nulidade, não é causade Anulabilidade e não é causa deIneficácia. E tal importa dizer por quênão é e/ou justificar o que seja.

Não se trata de nulidade porque anulidade somente pode alcançar a quemnão participou do ato de concessão dafiança com a sua anuência, com o seuassentimento, com o seu livreconsentimento.

Não se trata de anulabilidade porquenão se pode anular o ato que foiregularmente praticado por agentecapaz, objeto lícito e não vedado em lei,sem outra causa de anulabilidade senãoessa ora em estudo. Por força disso, avalidade do ato não pode ser anulada.

Não se trata de ineficácia porquesomente os atos que padecem de víciosinsanáveis é que poderão ser tidospor ineficazes.

Mas um vício parcial existe amacular esse contrato de fiança semoutorga uxória: a ausência da manifes-tação de vontade daquele que estavaobrigado a participar com o seu consenti-mento ao ato de concessão da fiança.

Desse modo, marido ou mulher, umou outro não está obrigado a responderpelos efeitos que possam vir a sercausados em sua esfera jurídicaobrigacional na medida em que a issonão deram causa.

Nesse ponto, não pode ela ou ele,conforme se der o caso, seremalcançados pelos efeitos da fiança,aquele que não contratou e que nãopode responder pelos seus efeitos. Enesse caso, trata-se, portanto, deineficácia parcial, ou ineficácia relativa,mas nunca nulidade, anulabilidade, ouineficácia, pura e simplesmente.

O mesmo raciocínio, no entanto,serve igualmente, data venia, para osque entendem que se trata de nulidade,de anulabilidade ou ineficácia.

Em qualquer dos casos, não senulificará o ato, não se anulará o ato,não se ditará a ineficácia do ato, senãoem relação à meação daquele de quemausente o consentimento para aconcessão da garantia, pois o outrocônjuge o praticou segundo sua perfeitae plena vontade, não podendo, pois,cogitar-se de nulidade, anulabilidade, ouineficácia, senão parcial, relativamenteao cônjuge que não participou do ato,negócio jurídico acessório, o contrato deconcessão da fiança.

Até porque, e isso subjaz aoentendimento aqui esposado, jamais se

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 221

cogitará de nulidade, de anulabilidade,ou de ineficácia, senão naquelasoportunidades em que o concedente dafiança sem outorga uxória impossibilita-se de cumprir a obrigação do afiançadoe, por causa disso, é judicialmenteacionado a responder com os bens quepossui, no caso, em comunhão comaquela ou aquele que deveria terparticipado do ato com a sua anuência.

E se não produziu a concessão degarantia, sua meação nesses bens levadosà constrição, estarão, necessariamente,parece-me, preservados pelo juízo queda causa tomar conhecimento.

E a meu pensar, ver e sentir, issoocorre porque nem a lei, nem a doutrina,podem superar o fato consumado quederiva da circunstância de o concedenteda fiança sem outorga uxória ou maritalespontaneamente satisfazer perante ocredor a obrigação não cumprida peloafiançado devedor, seja fazendo-o emnome próprio ou, e não raro, em nomedo próprio devedor.

E nesse passo, não há de cogitar-sede nulidade, de anulabilidade ou de inefi-cácia, pois, ao contrário, o contrato de fiançasem outorga uxória ou marital teve plenae absoluta existência, plena e absolutavalidade e plena e absoluta eficácia.

E tal se explica porque a procura ea pesquisa na identificação do que sejauma coisa ou outra tem vertente naconfusão, similitude ou sinonímiaverificada tanto na legislação quanto nadoutrina e mesmo na jurisprudência,quanto ao uso da nomenclatura relativaà nulidade, anulabilidade e ineficácia,aplicando indistintamente uma ou outra,

mas sempre na mesma direção, nomesmo sentido: o resultado.

No entanto, importante frisar, omeio através do qual a isso se chegou,como visto, não tem maior relevânciasegundo a ótica deste articulista, narazão direta de que a única coisa quetem significado teleológico e finalísticoocorre exatamente no campo, no âmbito,do resultado, dos efeitos, da eficácia ounão que possa ter a fiança concedidasem outorga do outro cônjuge.

Por outro lado, a meu ver e sentir,conquanto respeite e acolha as idéias eensinamentos dos mestres, consideroque não importa o rótulo que se dê aosproblemas criados pelos fatos noefervescer do mundo social, pois emregime democrático e estado de direitoo que importa, no fundo, é a soluçãoequânime para o caso sub oculis. Porisso mesmo, de um contrato de fiançasem outorga uxória podem ser extraídasvárias conclusões.

A primeira, é que pode mesmotratar-se de nulidade. E se assim for,somente poderá tratar-se de nulidademitigada, pois do cônjuge que concedeua fiança sem qualquer outra causa denulidade senão essa, não poderá pensar-se em nulidade.

E ter-se-á obrigatoriamente detratá-la de Nulidade Parcial Absoluta,onde a nulidade atinge tão-somente apessoa do cônjuge que não deu oconsentimento. Por certo que tal implicaem processo, de regra executivo, e jána fase de constrição de bens quepertencem a ambos os cônjuges, umdeles surpreendido na medida em quenenhum gravame criou para os seus

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007222

bens, relativamente a essa fiança, namedida em que não a concedeu.

Veja-se, entrementes, que essadeclaração judicial de nulidade parcialabsoluta não terá qualquer significado epara nada servirá, objetivamente, se nãotiver aplicação no plano da eficácia, ouseja, ela corresponderá ao juiz da causaafirmar que a fiança não tem eficáciaem relação ao cônjuge não-participanteda fiança, pois se o cônjuge que nãoconcedeu a fiança não viesse a serafetado pela constrição, não haverianulidade conhecida e, portanto, nãoreconhecida como tal em juízo, e, por issomesmo, sem aplicação no campo querealmente significa resultados: os efeitosda fiança, a eficácia da fiança.

A segunda conclusão é que podetambém tratar-se de anulabilidade, masAnulabilidade Parcial, pois não sepoderá anular o ato existente, válido eeficaz, relativamente ao cônjuge queconcedeu a fiança sem qualquer outracausa de anulabilidade senão essadecorrente da falta de outorga, uxóriaou marital.

Nesse passo, então, necessárioapontar a diferença entre a nulidadeparcial absoluta e a anulabilidade parcialque residem sempre, ambas, na evitaçãoou impedimento de atuação plena dosefeitos da fiança, do campo da eficácia,na esfera jurídica obrigacional daquelecônjuge que não concedeu a fiança.

A nulidade parcial absoluta decorreda operatividade da defesa já na esferade constrição dos bens do cônjuge nãoparticipante da fiança, enquanto que aanulabilidade parcial pode ser argüidapor quem a aproveita (o outro cônjuge)a partir do momento em que tiverciência da concessão de certa fiançasem outorga uxória, ainda que, a essetempo, não exista inadimplemento dodevedor ou constrição de bens.

Contextualizando, a busca doreconhecimento judicial da declaraçãode anulabilidade parcial vai obter omesmo efeito da declaração de nulidadeparcial absoluta, esta já no âmbitoprocessual executivo, enquanto queaquela, necessariamente, ainda nocampo do processo de conhecimento.

A terceira e definitiva conclusão éque uma circunstância ou outra seconstituem em meras facetas dos fatosque levam à concessão da fiança semoutorga uxória ou marital, que na suaelaboração, na sua efetuação, nãocogitam do enquadramento legal,doutrinário ou jurisprudencial, mas cujointeresse e alcance tem por objetivoúnico a ineficácia da fiança,relativamente ao cônjuge preterido. E,como visto, Ineficácia Parcial.

Em outras palavras, a argüição denulidade parcial absoluta ouanulabilidade parcial seriam apenas omodus faciendi,37 segundo Humberto

37 Gilberto Caldas, In O Latim no Direito. São Paulo, Brasiliense Coleções, 1986, p.188:MODUS FACIENDI. Maneira de fazer. Citando Humberto Theodoro Júnior: “É oprocedimento, de tal sorte, que dá exterioridade ao processo, revelando-se o modusfaciendi com que se vai atingir o escopo da tutela jurisdicional.” (Processo Cautelar,Humberto Theodoro Júnior, 1. ed., p.26).

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 223

Theodoro Junior, citado por GilbertoCaldas, de atingir o objetivo único, queé a ineficácia, que pode ser argüidadiretamente pelo cônjuge nãoconcedente da fiança, como IneficáciaParcial, no processo executivo, duranteou antes da fase de constrição, ou aindaem processo típico de conhecimento,quando o objetivo já não seria evitar aimediata constrição de seus bens,resguardando-lhe a meação, masprevenir a meação que pode a vir a seratingida no futuro, caso o afiançadodevedor venha a não cumprir aobrigação assumida perante o credor,garantida pelo outro cônjuge.

10. EFEITOS EX TUNC E EX NUNC

Nessa contextualização, não há quese confundir o poder potestativoprocessual típico da nulidade com afaculdade processual exsurgente daanulabilidade, poderes traduzidos emoperatividade distinta de direitos, mas queconvergem para um único e exclusivofim: o efeito de direito material que resultaem declaração judicial negativa daobrigação na esfera obrigacional docônjuge que não concedeu a fiança, ena medida direta em que não se obrigoue, por isso mesmo, não pode vir a sofrerqualquer constrição em seus bens.

Ou, em outras palavras, material-mente o contrato de fiança não lhe éoponível porquanto não-eficaz, visto queessa eficácia nasce (e só daí podenascer) da obrigação constituídasegundo o consentimento daquele quese obriga ou está legalmente obrigado(e este não é caso em apreço).

E isso, a meu pensar e sentir, éineficácia parcial, pois diretamenterelacionada entre o contrato acessórioe o não-concedente da fiança, ainda quepermaneça o contrato com eficáciaplena em relação ao cônjuge autor dagarantia, pela qual responderá até olimite de sua meação nos bens constritosou a constritar.

Nesse passo, rogata maxima

venia, os efeitos da declaração judicialhaverão de ser sempre ex tunc, desdeo momento em que concedida a fiançapelo outro cônjuge, sem outorga uxória,desimportando que ela se faça mediantea potestatividade da nulidade ou dafaculdade da anulabilidade, no processode conhecimento.

Por conseqüência, venia concessa,logo se conclui que os efeitos ex nunc,desde o momento em que exarada adeclaração, não tem aplicação à fiançasem outorga uxória porque não se podeaplicar esse princípio da faculdadeprocessual quando do que se cogita éda estrutura de direito material(segundo o qual ninguém se obriga semciência – em não se tratando – comonão se trata, de obrigação ditada pelalei, que ninguém pode ignorar), ao qualse subsume a anulabilidade dentro daprincipiologia adotada pelo Código CivilBrasileiro, onde direito menor nãoprevalece ou se sobrepõe sobre direitomaior (a não-obrigação), e ainda quenele mesmo prevista, porque disposiçãode menor hierarquia, a anulabilidade.

Oportuno lembrar que afora oscasos de silêncios jurídicos, osdenominados silêncios eloqüentes, que

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007224

significa ciência sobre o que deve a partesilenciar ou manifestar-se (do que nãose cogita ou não tem aqui aplicação), nãohá no Código Civil Brasileiro, obrigaçãoque decorra da não-obrigação ou da não-ciência de uma obrigação qualquer.

Por isso, data venia, relevanteainda salientar que a questão em examese resolve mesmo, materialmentefalando, ou se exaure a finalidade daconcreção do fato, não no plano daexistência (pois fiança não existe parao cônjuge que não a concedeu) e podelevar à nulidade parcial absoluta, etampouco no plano da validade, o quelevaria a anulabilidade, posto que nãopode valer o que não existe, o quelevaria à anulabilidade parcial, e aindaque tal venha a se definir num processo,o plano que realmente faz resultados éo plano da eficácia material, do qualnem a nulidade, nem a anulabilidadepodem escapulir.

E isso ainda que o plano da eficáciamaterial, para contestar ou defender odireito da não-obrigação perante a garan-tia da fiança concedida pelo outro cônjuge,somente se alcance mediante processojudicial, geralmente já na fase executiva,mas que também pode, como antesassinalado, ser exercido esse direitoatravés do processo de conhecimento esem que para tal, tenha a decisão judicialque reconhecer a ineficácia parcial dafiança somente a partir de então.

11. CONCLUSÃO

Em suma, o ato não-eficaz somentepode decorrer de ato não-existente ounão-válido, circunstâncias quecoexistem, coabitam, no contrato defiança sem outorga uxória ou marital,relativamente ao cônjuge que nãoconcedeu a fiança.

Aliás, de todo oportuno lembrar queé pela interpretação que se conhece aconcepção de vida do intérprete, atéporque, e por isso mesmo, impregnadade subjetivismo, na cátedra de EduardoCouture.38

Nesse passo, longe deste trabalhovir para contrariar tudo quando já ditoaté então, vem apenas para acrescentarque a causa jurídica eficiente nadefinição de o contrato de fiança semoutorga uxória ser causa de nulidade,de anulabilidade ou de ineficácia, é,como exposto, a Ineficácia Parcial, nãoa nulidade, que é causa jurídica deargüição plena, ou a anulabilidade, queé causa jurídica de argüição mitigada,relativa, ou parcial, pois são ambasnecessariamente convergentes aodesvelamento, à revelação daquela, acausa jurídica eficiente.

Por isso, resulta concluir que ocontrato de fiança sem outorga uxória(ou marital) é causa de IneficáciaParcial, ou, subsidiariamente, ainda quedirecionada para esse mesmo objetivo(no qual se subsume), a ineficácia, causa

38 “Interpretar é, ainda que inconscientemente, tomar partido por uma concepção de direito,o que significa dizer por uma concepção de vida. Interpretar é dar vida a uma norma. (...) Oraciocínio e a intuição, todavia, pertencem ao homem, e, por isso, estão prenhes de subjetivismo.Todo intérprete é, embora não o queira, um filósofo e um político da Lei.” Eduardo Couture.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 225

de nulidade parcial absoluta ou anulabili-dade parcial, e seus efeitos exsurgentesdesde o momento em que deveria terexistido a outorga uxória ou marital.

Por derradeiro, no âmbito doprocesso de conhecimento poderá sertambém identificada como causa de

Nulidade Parcial Absoluta ou causa deAnulabilidade Parcial, embora noprocesso executivo, pela concreção daargüição de direito material, resultesempre em Causa de Ineficácia Parcial,porquanto constitui o fim último, oresultado, da análise ora enfrentada.

REFERÊNCIAS

ADIERS, Moacir. Caracterização da

Boa-Fé na Posse como uma Arte

Jurisprudencial. Porto Alegre, Ajuris

n.41, 1987.

AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado de.

Interpretação. Porto Alegre, Ajuris

n.45, 1989.

ASSIS, Araken de. Locação e Despejo.

Porto Alegre, Sérgio Antônio Fabris

Editor, 1991.

BARROS, Wellington Pacheco. A Inter-

pretação dos Contratos. Porto Alegre,

Ajuris n.49, 1990.

——. A Interpretação Sociológica do

Direito. Porto Alegre, Livraria do

Advogado, 1995.

——. Dimensões do Direito. 2.ed. Porto

Alegre, Livraria do Advogado, 1999.

——. Curso de Direito Agrário. 3.ed.,

Porto Alegre, Livraria do Advogado,

198. ——. Contrato de Arrendamento

Rural. Porto Alegre, Livraria do

Advogado, 1998.

BATALHA, Wilson de Souza Campos. Lei

das Locações Prediais Urbanas:

Comentários. São Paulo, LTR, 1992.

CALDAS, Gilberto. Nova Lei do

Inquilinato Comentada. São Paulo,

Ediprax, 1991.

——. A Técnica do Direito, v.4, A

Técnica da Locação de Imóveis

(Comercial e Residencial). São

Paulo, Brasiliense Coleções, 1986.

——. O Latim no Direito. São Paulo,

Brasiliense Coleções, 1986.

CARVALHO, Ivan Lira de. A interpre-

tação da Norma Jurídica. Ajuris

n.58, 1993.

CERVO, Amado Luiz e BERVIAN, Pedro

Alcino. Metodologia Científica, 2.ed.

rev. e ampl. São Paulo, McGraw-Hill

do Brasil, 1978.

CIRNE LIMA, Ruy. Princípios de Direito

Administrativo, 6.ed. São Paulo,

Editora Revista dos Tribunais, 1987.

CRETELLA JUNIOR, José. Manual de

Direito Administrativo, 6.ed. Rio de

Janeiro, Editora Forense, 1992.

——. Curso de Direito Romano. O direito

romano e o direito civil brasileiro,

7.ed. rev. e aum. Rio de Janeiro,

Editora Forense, 1980.

DIAS, Nadir Silveira. Locação de

Imóveis Comentada em Locuções e

Verbetes. Porto Alegre, Livraria do

Advogado, 1999.

DINIZ, Maria Helena. Lei de Locações

de Imóveis Urbanos Comentada. São

Paulo, Saraiva, 1992.

——.Curso de Direito Civil Brasileiro,

1° vol. Teoria Geral do Direito Civil,

4.ed. São Paulo, Editora Saraiva, 1986.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007226

EDITORA ABRIL S.A. Manual de Estilo

Editora Abril. Rio de Janeiro, Editora

Nova Fronteira, 1990.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda.

Dicionário Aurélio Básico da Língua

Portuguesa. Folha de São Paulo/

Editora Nova Fronteira, 1995.

GASPERI, Ulysses de. Elementos de

Economia (Economia Política), 5.ed.

Porto Alegre, Sulina, 1970.

HOUAISS, Antônio. Direção de, Pequeno

Dicionário Enciclopédico Koogan

Larousse, Rio de Janeiro, Ed.

Larousse do Brasil, 1992.

KASPARY, Adalberto J. Habeas Verba,

Português para Juristas, Porto

Alegre, Livraria do Advogado, 1994.

——.O verbo na Linguagem Jurídica -

Acepções e Regimes. 2.ed. rev. e

ampl. Porto Alegre, Livraria do

Advogado, 1994.

LINDEMBERG FILHO, Sylvio de

Campos. Venda de Imóveis, um Ato

de Negociação. 1.ed. Porto Alegre,

Sagra, 1990.

MACHADO NETO, Antônio Luís.

Sociologia Jurídica. 4.ed. São Paulo,

Saraiva, 1979.

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica

e Aplicação do Direito. 8.ed. São

Paulo, Freitas Bastos, 1965.

MELLO NETO, João Alfredo. Manual

Teórico e Prático do Condomínio.

1.ed., Rio de Janeiro, Aide Ed., 1989.

NEVES, Iêdo Batista. Vocabulário

Prático de Tecnologia Jurídica e de

Brocardos Latinos. Rio de Janeiro,APM Editora, 1987.

PACHECO, José da Silva. Comentáriosà Nova Lei sobre as Locações dos ImóveisUrbanos e seus Procedimentos. SãoPaulo, Revista dos Tribunais, 1992.

PEREIRA, Caio Mário da Silva.Instituições de Direito Civil, vol. I,Introdução ao Direito Civil, TeoriaGeral de Direito Civil, 9.ed. Rio deJaneiro, Forense, 1986.

RIZZARDO, Arnaldo. A Nova Lei doInquilinato. Porto Alegre, Ajurisn.54, 1992.

RODIGUES, SILVIO. Direito Civil, dosContratos e das DeclaraçõesUnilaterais da Vontade, Vol..3, EditoraSaraiva, 22.ed., 1994.

ROQUE LAUSCHNER, S.J. LógicaFormal. 3.ed. , Porto Alegre, LivrariaSulina Editora, 1969.

SILVA, José Henrique de Freitas Valle e.Manual Prático do Inquilinato.Porto Alegre, Ed. Pró-Viver, 1991.

SOUZA, Rui Barbosa de. Correspon-dência, Moderno Manual deLinguagem e Comunicação, 4.ed.Porto Alegre, Editora Rígel.

SOUZA, Sylvio Capanema de. A NovaLei do Inquilinato Comentada. Riode Janeiro; Saraiva, 1993.

——.Da Locação do Imóvel Urbano,Direito e Processo, 1.ed., 2ª tiragem.Rio de Janeiro, 1999.

TEMER, Michel. Elementos de DireitoConstitucional. 10.ed., São Paulo,Malheiros Editores, 1996.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007 227

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS - no 27, 2007228

Composto especialmente para a Editora Meridional,em Times New Roman, corpo 11/13,5, sobre o papel offset 75g

e impresso na