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CÂMARA MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO PROCURADORIA-GERAL Revista de Direito Rev. Direito Rio de Janeiro v. 11 n. 16 p. 1 - 304 jan. / dez. 2007 ISSN 1516-1374

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CÂMARA MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO

PROCURADORIA-GERAL

Revista de Direito

Rev. Direito Rio de Janeiro v. 11 n. 16 p. 1 - 304 jan. / dez. 2007

ISSN 1516-1374

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Revista de Direito / Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Procu-radoria-Geral – Vol. 1, n. 1 (ago. 1997) - .– Rio de Janeiro : A Câmara, 1997-

v. ; 22 cm.

ISSN 1516-1374 1. Direito – Periódico. 2. Parecer – Periódico. 3. Jurisprudência – Periódico. I. Rio de Janeiro (RJ). Câmara Municipal. Procuradoria- Geral.

CDD 340.05

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FUNDADORES Vereador Sami Jorge Haddad Abdulmacih Presidente da Câmara Municipal do Rio de Janeiro Dr. Paulo Aquino de Oliveira Lima Procurador-Geral

DIRETOR RESPONSÁVEL Procuradora-Geral: Drª Jania Maria de Souza

CONSELHO EDITORIAL Procuradores Drª. Jania Maria de Souza Dr. Flávio Andrade de Carvalho Britto Drª. Claudia Rivolli Thomas de Sá Dr. Sérgio Antônio Ferrari Filho

COORDENAÇÃO Luzinete Neves Ruas

PROJETO GRÁFICO, DIAGRAMAÇÃO E EDITORAÇÃO Tânia Berriel Cardoso

REVISÃO Adriana Aparecida de Brito Saldanha Cristiana do Amaral Crivano Machado CATALOGAÇÃO NA FONTE e ÍNDICE Lucineide Costa Santos Luzinete Neves Ruas

IMPRESSÃO: Empresa Municipal de Artes Gráficas - Imprensa da Cidade

DISTRIBUIÇÃO: Joel Honório da Silva José Carlos de Oliveira Santos ENDEREÇO

Procuradoria-Geral da Câmara Municipal do Rio de JaneiroGrupo de Documentação e EventosPraça Floriano, 51 - 28º andar - Centro - 20031-050 - RJTel.Fax: (21)3814-1425 - 2283-1138 E-mail: [email protected]

A REVISTA DE DIREITO é uma publicação da Procuradoria-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Os trabalhos assinados são de exclusiva responsabilidade de seus autores. As opini-ões neles manifestadas não correspondem necessariamente às opiniões da Procuradoria-Geral.

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MESA DIRETORA

PresidenteVereador Aloisio Freitas

1º Vice-PresidenteVereador Jorge Pereira

2º Vice-PresidenteVereadora Pastora Márcia Teixeira

1º SecretárioVereador Luiz Carlos Ramos

2º SecretárioVereador Sebastião Ferraz

1º SuplenteVereador Dr. Jairinho

2º SuplenteVereador Stepan Nercessian

Adilson PiresAlberto SallesAndrea Gouvêa VieiraArgemiro PimentelAspásia CamargoÁtila Nunes NetoBencardinoCarlo CaiadoCarlos BolsonaroCharbel ZaibChiquinho BrazãoCláudio CavalcantiCristiane BrasilDr. Carlos EduardoDr. Nelson FerreiraEliomar CoelhoJerominhoJoão CabralJorge FelippeJorge MauroJorginho da SOS

Leila do FlamengoLiliam SáLucinhaLuiz André DecoLuiz GuaranáMárcio PachecoNadinho de Rio das PedrasNereide PedregalPatrícia AmorimPaulo CerriProf. Célio LuparelliRenato MouraRoberto MonteiroRogério BittarRomualdo BoaventuraRubens AndradeSami JorgeSilvia PontesTeresa BergherThéo SilvaVerônica CostaWilson Leite Passos

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COLABORADORES

Marcos Juruena Villela Souto

Procurador do Estado do Rio de Janeiro; Professor de Direito Administrativo Econômico da Universidade Gama Filho; Doutor em Direito pela Universidade Gama Filho

Patrícia Baptista

Procuradora do Estado do Rio de Janeiro; Professora Adjunta de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro; Professora do Programa de Pós-Graduação da Universidade Cândido Mendes; Doutora em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo - USP; Mestre em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Gustavo Binenbojm

Procurador do Estado, Advogado e Parecerista no Rio de Janeiro; Professor Adjunto de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ; Doutor e Mestre em Direito Público pela UERJ; Mestre em Direito pela Yale Law School (EUA)

Derly Barreto e Silva Filho

Procurador do Estado de São Paulo; Professor do Curso de Especialização em Direito Constitucional da PUC-SP; Mestre em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

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SUMÁRIO

ARTIGOS E ESTUDOS JURÍDICOS

A tutela da confiança legítima como limite ao exercício do poder normativo da administração pública: a proteção das expectativas legítimas dos cidadãos como limite à retroatividade normativaPatrícia Baptista .................................................................................... p. 15

Um novo direito administrativo para o século XXIGustavo Binenbojm ................................................................................ p. 45

Regulação do transporte alternativo de passageiros de âmbito regionalMarcos Juruena Villela Souto ............................................................... p. 79

Valor constitucional e significação democrática dos regimentos parlamentaresDerly Barreto e Silva Filho .................................................................. p. 119

PARECERES DA PROCURADORIA-GERAL DA CMRJ

DIREITO ADMINISTRATIVO E URBANÍSTICO

A disciplina do solo criado no Município do Rio de JaneiroParecer nº 02/07 - Claudia Rivolli Thomas de Sá ............................... p. 151

Ilegalidade de subcontratação não prevista em editalParecer nº 06/06 - Sérgio Antônio Ferrari Filho ................................. p. 163

DIREITO CONSTITUCIONAL

O ensino religioso em escolas públicas

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10 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 11, n. 16, jan./dez. 2007

Parecer nº 01/07 - Flávio Andrade de Carvalho Britto ........................ p.171

Descumprimento de lei supostamente inconstitucional por agente público municipalParecer nº 01/07 - Claudia Rivolli Thomas de Sá ............................... p. 177

DIREITO FINANCEIRO

Conseqüências da não-inclusão do Fundo Municipal de Defesa dos Direitos da Criança na Lei de Diretrizes OrçamentáriasParecer nº 04/06 - Flávio Andrade de Carvalho Britto ....................... p. 187

Da impossibilidade de rejeição total do Projeto de Lei de Diretrizes OrçamentáriasParecer nº 05/07 - Flávio Andrade de Carvalho Britto ....................... p. 199

DIREITO PARLAMENTAR E PROCESSO LEGISLATIVO

O prazo para revisão dos Planos DiretoresParecer nº 05/06 - Flávio Andrade de Carvalho Britto ....................... p. 209

O Vereador e o Conselho de Administração de Empresa Pública. Interpretação do art. 54, II, da Constituição FederalParecer nº 07/06 - Flávio Andrade de Carvalho Britto ...................... p. 218

Possibilidades de realização de sessão secreta em CPI e de intervenção de parlamentares estranhos à sua composiçãoParecer nº 04/07 - Flávio Andrade de Carvalho Britto ....................... p. 223

O alcance da renúncia de mandato parlamentarParecer nº 04-A/07 - Flávio Andrade de Carvalho Britto ................... p. 231

As CPIs e o alcance do art. 2º da Lei 1.579/52Parecer nº 06/07 - Flávio Andrade de Carvalho Britto ....................... p. 235

As comissões parlamentares de inquérito e as cortes de contas: possibilidades e limitesParecer nº 07/07 - Flávio Andrade de Carvalho Britto ....................... p. 240

Erro em ementa do projeto legislativo. Possibilidade de sanatória.

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Parecer nº 08/07 - Flávio Andrade de Carvalho Britto ....................... p. 245

Comissões permanentes – Incompetência para firmar acordos isoladamenteParecer nº 03/07 - Jania Maria de Souza ............................................ p. 248

DIREITO DE PESSOAL E PREVIDENCIÁRIO

Contribuição previdenciária sobre encargos especiaisParecer nº 04/06 - Claudia Rivolli Thomas de Sá ............................... p. 253

Substituição eventual – O pagamento só deve ocorrer se for por 30 dias consecutivos. Impossibilidade de interpretação extensiva.Parecer nº 01/07 - Jania Maria de Souza ............................................ p. 258

Licença especial – Interrupção por necessidade de serviço não impede a fruição do período restanteParecer nº 02/07 - Jania Maria de Souza ............................................ p. 262

Hipóteses de retenção de contribuição previdenciária na prestação de serviçosParecer nº 01/07 - Sérgio Antônio Ferrari Filho ................................. p. 265

Décimo-terceiro salário: natureza jurídica, forma de cálculo e tributação Parecer nº 02/07 - Sérgio Antônio Ferrari Filho ................................. p. 273

ÍNDICE ...................................................................................... P. 289

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ARTIGOS E ESTUDOS JURÍDICOS

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A tutela da confiança legítima como limite ao exercício do poder normati-

vo da administração pública : a proteção das expectativas legítimas dos cidadãos como

limite à retroatividade normativa

Patrícia BaptistaProfessora Adjunta de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Profes-

sora do Programa de Pós-Graduação da Universidade Cândido Mendes. Procuradora do Estado do Rio de Janeiro

1. A proteção da confiança legítima no âmbito do poder normativo da Administração Pública; 1.1. Os regulamentos: uma base menos sólida para a confiança; 2. A aplicação do princípio da proteção da confiança legítima como limite à retroatividade normativa; 2.1. Retroatividade autêntica e retroatividade aparente; 2.2. A proteção das legítimas expectativas de direito no direito público brasileiro; 3. Requisitos para a proteção da confiança legítima ante o exercício do poder normativo da Administração; 4. Conseqüências da incidência do princípio da proteção da confiança legítima no âmbito do poder normativo da administração; 4.1. O direito a um regime de transição justo; 4.2. A obrigação de respeitar o prazo de vigência fixado na norma; 4.3. A outorga de uma indenização compensatória; 4.4. A preservação da posição jurídica do administrado que confiou; 5. É possível invocar a proteção da confiança ante regulamentos ilegais?

1. A proteção da confiança legítima no âmbito do poder normativo da Administração Pública

Uma das questões mais contemporâneas do direito administrativo envolve a aplicação do chamado princípio da proteção da confiança legítima. Trata-se de

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princípio desenvolvido inicialmente pela jurisprudência das Cortes alemãs e que foi acolhido no direito comunitário europeu para, em seguida, ser incorporado aos direitos nacionais de diversos outros países na Europa. De início, tal princípio foi invocado como um limite à revisão dos atos administrativos concretos. Em um segundo momento, porém, a tutela da confiança legítima passou a ser oposta ao exercício do poder normativo.

Embora a oponibilidade desse princípio ao legislador, como limite ao exercício da função legislativa, suscite controvérsia

1, não há como recusar a sua incidência em

nível infralegal, frente ao exercício do poder normativo da Administração Pública2.

Deste particular enfoque cuidará o presente estudo3.

1.1. Os regulamentos: uma base menos sólida para a confiança

Os regulamentos, assim como os demais atos normativos editados pela Administração, constituem uma base menos sólida para a confiança que os atos concretos

4. É da própria essência do poder normativo a possibilidade de revogar

e de modificar as normas jurídicas com o objetivo de promover a adaptação do ordenamento às novas exigências da sociedade. A adoção de novas políticas públicas e, conseqüentemente, das normas que as veiculam, é uma faculdade inerente à Administração Pública e, por isso, deve integrar a esfera de previsibilidade dos cidadãos

5.

1 A propósito, v. CASTILLO BLANCO, Federico A. El principio europeo de confianza legítima

y su incorporación al ordenamiento jurídico español. Noticias de la Unión Europea, 2002. Disponível em: <http://www.uimunicipalistas.org/puntos/trabajos>. Acesso em 26 set. 2005, p. 5, nota 10; e GARCÍA LUENGO, Javier. El principio de protección de la confianza en el derecho administrativo. Madrid: Civitas, p. 204; 220-221. 2 Como voz isolada em contrário, v. GARCÍA LUENGO, p. 193; 228.

3 Embora o presente estudo não vá cuidar do problema da aplicação do princípio da proteção

da confiança legítima como limite ao exercício da função legislativa — tema que apresenta implicações constitucionais específicas —, é certo que muito do que será examinado aqui se aproveita, com as devidas adaptações, àquele domínio.4 Nesse sentido, v. CALMES, Sylvia. Du principe de protection de la confiance légitime en droits

allemand, communautaire et français. Paris: Dalloz, 2001, p. 311. A autora relata, inclusive, que alguns autores chegaram a negar que os regulamentos possam constituir uma base para a aplicação do princípio da proteção da confiança legítima, em razão da ausência, no caso, de uma relação direta e concreta entre a Administração Pública e o cidadão. Essa posição, no entanto, não prevaleceu (p. 309-310).

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Confira-se, a propósito, a decisão do Tribunal Supremo espanhol:

[...] não existe princípio de direito nem preceito legal algum que obrigue a Administração a manter a perpetuidade de todos os regulamentos aprovados, e afirmar o contrário é tanto como consagrar o congelamento definitivo das normas sem possibilidade alguma de modificação, o que é evidentemente insustentável por privar o ordenamento de sua condição dinâmica essencial e a oportunidade e acerto de uma disposição geral é matéria que incumbe aos órgãos administrativos apreciar dentro de uma margem de discricionariedade que esta jurisdição deve respeitar. (STS de 11 de junho de 1996, AR. 5408)

6

O princípio da proteção da confiança legítima, portanto, não oferece, nem poderia oferecer, uma garantia genérica de estabilidade do ordenamento jurídico. Como demonstra a experiência do direito comparado, na maioria dos casos em que o particular não é titular de uma relação jurídica concreta, mas nutria uma mera expectativa diante de um determinado regime normativo, a tutela da confiança é simplesmente rejeitada pelos Tribunais

7. Cite-se, como exemplo, decisão do Conselho

de Estado italiano em que se negou proteção à confiança pretensamente frustrada diante de uma alteração nas regras de edificação de uma determinada zona agrícola. Segundo aquela Corte, “nenhuma situação peculiar de confiança do particular poderia [...] ser reconhecida na mera pendência de um requerimento de licença edilícia no momento da adoção de uma mudança na regra. [...] A fortiori, não se pode admitir a tutela da expectativa edificatória do particular no caso em espécie, onde está ausente de todo uma atividade negocial ou um ato da administração.”

8

Sendo assim, deve-se investigar se, e em que hipóteses, não sendo titular de um direito adquirido, nem estando amparado pela coisa julgada ou por um ato jurídico perfeito, o cidadão pode invocar, com êxito, a aplicação do princípio da proteção da confiança legítima para afastar ou moderar os efeitos da incidência das novas normas 5 SCHØNBERG, Søren J. Legitimate expectations in administrative law. Oxford: Oxford

University Press, 2003, p. 145.6 CASTILLO BLANCO, op. cit., p. 33. No direito francês, segundo René Chapus, há “jurispru-

dência constante e explícita” no sentido de que “ninguém tem direito adquirido à manutenção de uma disposição regulamentar”, a qual “a autoridade pode a todo o momento ab-rogar e modificar”. Droit administratif général. Paris: Montchrestien, 2001, t. 1., p. 1162.7 Cf., por todos, SCHWARZE, Jürgen. European administrative law. Tradução ECSC.EEC.

EAEC. London; Sweet and Maxwell, 1995, p. 1113-1114.8 CONSELHO DE ESTADO. 4ª Seção. Apelação n.º 1.250/1996, Comune di Roma vs. Eredi

Sbardella et al., j. em 08.06.2004. Disponível em: <http://www.giustizia-amministrativa.it>. Acesso em: 30 set. 2005.

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administrativas. Esse o tema do qual se cuidará a seguir.

2. A aplicação do princípio da proteção da confiança legítima como limite à retroatividade normativa

Se não se pode negar ao Poder Público a faculdade de alterar ou revogar as suas normas com efeitos para o futuro, o mesmo não se pode dizer quando as novas regras tenham como propósito ou efeito alcançar fatos pretéritos ou, mesmo, situações jurídicas em curso. Aqui entra em cena o problema da retroatividade das normas jurídicas.

Especialmente nos direitos alemão e no comunitário europeu, o princípio da proteção da confiança legítima tem sido aplicado nos domínios do poder normativo para resolver questões relacionadas à aplicação das normas administrativas no tempo, sob a ótica da proteção dos administrados

9. Nesses ordenamentos, o citado princípio

vem atuando como um limite aos diversos graus de retroatividade normativa10

.

Como já se averbou, em tese as normas jurídicas devem vigorar para o futuro. Um bom sistema de direito, dizia Lon Fuller, há de ser constante e evitar leis retroativas. No entanto, o próprio L. Fuller reconhecia que, embora as leis retroativas isoladamente consideradas possam constituir verdadeiras monstruosidades, em algumas situações elas se mostram necessárias e, às vezes, mesmo indispensáveis. Nas suas próprias palavras, “embora o movimento próprio do Direito seja para frente, algumas vezes é necessário parar e voltar para catar os pedaços”

11.

Por isso, no direito brasileiro, assim como em vários outros ordenamentos jurídicos, não há uma vedação absoluta à retroatividade normativa. Tirante a vedação à retroatividade penal (art. 5º, XL), a proteção ao direito adquirido, ao ato jurídico 9 V. MAURER, Hartmut. Elementos de direito administrativo alemão. Tradução Luís Afonso

Heck. Porto Alegre: Sergio Fabris, 2001, p. 75 e ss.; e SCHWARZE, op. cit., p. 1119 e ss.10

Note-se que, no direito público francês, os problemas da retroatividade normativa são resol-vidos com base no princípio da irretroatividade construído pela jurisprudência do Conselho de Estado. Ao princípio da irretroatividade a jurisprudência não atribui status constitucional, mas sim a condição de princípio geral do direito. Uma grande casuística, porém, envolve a aplicação desse princípio. V. DELVOLVÉ, Pierre. Le principe de non-retroactivité dans la jurisprudence economique du Conseil d’État. In: Mélanges Offerts à Marcel Waline: le juge et le droit public. Paris: LGDJ, 1974, t. 2, p. 368. Obra coletiva. 11

V. FULLER, Lon L. The morality of law. ed. rev. New Haven: Yale University Press, 1969, p. 53.

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perfeito e à coisa julgada (art. 5º, XXXVI) e, ainda, a garantia da anterioridade tributária (art. 150, III, a), não é constitucionalmente vedada em tese a edição de normas retroativas. Portanto, não é possível afirmar a existência de um princípio geral de irretroatividade normativa

12.

Assim, dado que normas retroativas atentam contra a constância e a previsibilidade do ordenamento jurídico, mas, às vezes, são inevitáveis, faz-se necessário estabelecer um regime que, ao mesmo tempo, permita a evolução do direito sem sacrificar a posição do particular que confiou na sua estabilidade. Para atender a esse objetivo, as garantias do direito adquirido, da coisa julgada e do ato jurídico perfeito, previstas na Constituição brasileira, oferecem uma proteção apenas parcial e, em alguns casos, insuficiente, como se verá mais adiante. A aplicação do princípio da proteção da confiança legítima, nesse domínio, se presta justamente para aumentar o grau de proteção conferido aos cidadãos. Nas palavras de Federico Castillo Blanco, “o princípio da proteção da confiança serve como um instrumento de equilíbrio que torna possível a irretroatividade sem que esta, por sua vez, cause prejuízo aos interesses privados que puderem resultar afetados”

13.

2.1. Retroatividade autêntica e retroatividade aparente

A doutrina aponta a existência de dois graus diversos de retroatividade normativa: a retroatividade própria ou autêntica e a retroatividade imprópria ou aparente

14 . Há

retroatividade autêntica quando a lei nova retroage para alcançar as conseqüências legais passadas de ações pretéritas. Nesse caso, a lei nova produz efeitos em relação 12

Cf., nesse sentido, expressamente, a ementa do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 605: “(...) – O princípio da irretroatividade somente condiciona a atividade jurídica do Estado nas hipóteses expressa-mente previstas pela Constituição, em ordem a inibir a ação do Poder Público eventualmente configuradora de restrição gravosa (a) ao status libertatis da pessoa (art. 5º, XL), (b) ao status subjectionis do contribuinte em matéria tributária (CF, art. 150, III, a) e (c) à segurança jurídica no domínio das relações sociais (CF, art. 5º, XXXVI). – Na medida em que a retroprojeção normativa da lei não gere e nem produza os gravames referidos, nada impede que o Estado edite e prescreva atos normativos com efeito retroativo. – As leis, em face do caráter prospectivo de que se revestem, devem, ordinariamente, dispor para o futuro. O sistema jurídico-constitucio-nal brasileiro, contudo, não assentou, como postulado absoluto, incondicional e irrevogável, o princípio da irretroatividade. (STF, Pleno. Relator: Min. Celso de Mello. j. em 23.10.1991, DJ, 05 mar. 1993. Disponível em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 29 dez. 2005.13

CASTILLO BLANCO. La protección de confianza en el derecho aministrativo. Madrid: Marcial Pons, 1998, p. 198.

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a período anterior à sua entrada em vigor, atingindo fatos e situações que se iniciaram e se concluíram no passado

15. Nos casos de retroatividade aparente, a lei nova produz

efeitos tão-somente para o futuro, no entanto alcança situações ou relações que se iniciaram no passado e ainda estão em curso. É lógico que esses conceitos não são suficientemente precisos e, em muitos casos, é difícil determinar se uma situação já se concluiu no passado ou não. Porém, de um modo geral, essa distinção é útil à abordagem teórica do tema, razão pela qual dela se aproveitará o presente estudo.

No direito alemão e no direito comunitário europeu, a retroatividade autêntica é, em regra, vedada com base no princípio da proteção da confiança legítima. Como destaca Hartmut Maurer, “o cidadão deve poder confiar [...] que sua atuação, em conformidade com o direito vigente, ficará reconhecida pelo ordenamento jurídico com todas as conseqüências jurídicas previstas originalmente e não será desvalorizada por uma modificação de direito retroativa”

16. Mesmo nesses casos, porém, a retroatividade

é admitida excepcionalmente quando: (a) a confiança do particular for adequadamente tutelada; ou (b) não existir uma confiança digna de proteção; (c) a retroatividade for benéfica ou, ao menos, não atente contra situações jurídicas individuais; e (d) o propósito de interesse público a atingir com as novas regras demande a sua aplicação retroativa e esse propósito prevaleça sobre o interesse particular na preservação de sua posição jurídica

17.

14 Não há uniformidade, nem no direito comparado, nem no direito brasileiro, quanto ao emprego

dessas designações. Alguns classificam as hipóteses de retroatividade em retroatividade atual e autêntica (v. SCHWARZE, op. cit., p. 1120), outros em retroatividade primária e secundária (v. BREYER, Stephen et al. Administrativel law and regulatory policy: 5. ed. New York: Aspen Publishers, 2002, p. 635), ou, ainda, em retroatividade própria e retroatividade lato sensu. Uma outra classificação tripartite é, ocasionalmente, invocada pelo STF. Essa classificação divide as hipóteses de retroatividade, de acordo com sua intensidade, em três graus distintos: retroativi-dades máxima, média e mínima. Há retroatividade máxima “quando a lei retroage para atingir a coisa julgada ou os fatos jurídicos consumados”. A retroatividade média, por sua vez, incide “quando a lei nova atinge os efeitos jurídicos pendentes de ato jurídico verificado antes dela”, isto é, “quando a lei atinge os direitos exigíveis mas não realizados antes de sua vigência, vale dizer, direitos já existentes mas ainda não integrados ao patrimônio do titular”. E, por fim, “a retroatividade é mínima (também chamada temperada ou mitigada), quando a lei nova atinge apenas os efeitos dos atos anteriores produzidos após a data em que ela entra em vigor”. Nesse último caso, há quem sustente que nem propriamente de retroatividade se trata, mas tão-somente do efeito imediato da lei nova, o que é refutado pelo Min. Moreira Alves citando o exemplo dos contratos. Cf., a propósito, os votos do Min. Moreira Alves e Ilmar Galvão no julgamento da ADI n.º 493. Disponível em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 29 dez. 2005. 15

V. DELVOLVÉ, op. cit., p. 357.16

MAURER, op. cit., p. 77.

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A questão, porém, é mais delicada nos casos de retroatividade aparente. Nessas hipóteses, sucede precisamente o oposto do que se dá em relação aos casos de retroatividade autêntica: aqui a “retroatividade” é em princípio admitida e apenas por exceção a liberdade do poder normativo poderá ser limitada. De ordinário, pois, a incidência imediata de uma nova regulamentação não poderá ser afastada, já que, como anota Hartmut Maurer, “é essencialmente reduzida” a confiança que o cidadão pode ter na persistência para o futuro de uma regulação que lhe beneficie

18. Por isso,

o particular deve suportar a aplicação das novas regras sobre as relações jurídicas em curso, ainda não definitivamente constituídas ou acabadas. Todavia, tanto o direito alemão como o direito comunitário europeu reconhecem que a reunião de alguns requisitos poderá levar, mesmo nesses casos, ao afastamento da incidência imediata das novas normas, em razão da necessidade de proteção da confiança do particular: (a) a imprevisibilidade e o caráter súbito da alteração normativa; (b) a existência de uma base objetiva que pudesse ter despertado no particular uma expectativa concreta na estabilidade da regulação; (c) o prejuízo acarretado pela vigência das novas regras; e (d) que a confiança do particular prepondere sobre o interesse público na aplicação das novas regras

19.

Uma boa amostra do tipo de argumentação desenvolvido pela jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias (TJCE) acerca do tema pode ser colhida do julgamento do caso Crispoltoni (caso 368/89). Na hipótese, Antonio Crispoltoni, um plantador de tabaco, reclamou em juízo contra a aplicação de dois regulamentos editados pela Comissão da União Européia em julho de 1988. Esses regulamentos haviam fixado, para a colheita do próprio ano de 1988, preços e quantidades máximas garantidas para o plantio de determinada variedade de tabaco. O Tribunal, ao final, anulou os regulamentos porque entendeu que a sua aplicação à colheita que então já havia sido plantada importava em uma retroatividade violadora do princípio da proteção da confiança legítima. Veja-se o resumo dessa decisão:

Com efeito, a retroatividade desses dois regulamentos, que, embora não tenha sido prevista expressamente, resulta, para o primeiro, do fato de ter sido publicado depois de feitas as escolhas de produção para o ano em curso pelos plantadores e, para o segundo, do fato de ter sido publicado

17 Ibid., p. 78. V. também SCHWARZE, op. cit., p. 1129-1130.

18 MAURER, op. cit., p. 79.

19 A propósito, v. SCHWARZE, op. cit., p. 1130-1144. Esses requisitos serão mais bem exa-

minados no item 3, infra.

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quando essas escolhas já haviam sido concretizadas, viola o princípio da segurança jurídica e, por isso, a título excepcional, não pode ser admitida. Há violação à segurança jurídica porque o objetivo perseguido pela edição desses dois regulamentos, isto é, limitar a produção de tabaco e desencorajar a produção das variedades difíceis de escoar no mercado, não poderia ser atingido para esse ano em razão da data de publicação. Acresça-se a isso o fato de que a confiança legítima dos operadores em causa não foi respeitada, pois as medidas adotadas, embora previsíveis, intervieram em um momento no qual já não era mais possível levá-las em conta para orientar os investimentos.

Vale a pena ainda conferir algumas passagens da fundamentação desse julgado:

[...] segundo a jurisprudência constante da Corte [...], se, em regra geral, o princípio da segurança das situações jurídicas se opõe a que a entrada em vigor de um ato comunitário tenha seu momento inicial fixado para uma data anterior à sua publicação, pode assim não ser, a título excepcional, quando a finalidade a atingir o exija e a confiança legítima dos interessados seja devidamente respeitada. Essa jurisprudência se aplica igualmente no caso em que a retroatividade não tenha sido prevista expressamente pelo próprio ato, mas resulte de seu conteúdo.[...]Na ausência de qualquer outra razão indicada na exposição de motivos dos regulamentos n.ºs 114/88 e 2268/88, deve-se constatar, então, que a primeira condição para que a retroatividade desses regulamentos possa ser admitida, ou seja, que o objetivo a ser atendido o exija, não foi preenchida e que, por conseguinte, esses regulamentos são inválidos na medida em que prevêem uma quantidade máxima garantida no que concerne ao tabaco da variedade Bright colhido em 1988.No mais, a regulamentação contestada violou a confiança legítima dos operadores econômicos envolvidos. Com efeito, embora eles devessem considerar como previsíveis medidas que objetivassem limitar qualquer aumento da produção de tabaco na Comunidade de modo a desencorajar a produção das variedades que apresentam dificuldades de mercado, eles poderiam esperar porém que eventuais medidas que tivessem repercussão sobre seus investimentos lhes tivessem sido anunciadas em tempo útil. Não foi esse, porém, o caso. (C-368/89, julgamento de 11 de Julho de 1991, Crispoltoni, Rec. 1991, p. I-3695, n.° 17).

20

2.2. A proteção das legítimas expectativas de direito no direito público brasileiro

20 Disponível em: <http://europa.eu.int>. Acesso em: 30 dez. 2005.

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Tendo visto como o problema da retroatividade normativa é enfrentado no direito comparado sob o enfoque do princípio da proteção da confiança legítima, é hora de indagar se é possível, necessário ou útil transpor esse tipo de argumentação para o âmbito do direito administrativo brasileiro.

Antes, porém, convém registrar que, por ser o poder normativo da Administração em regra subordinado à lei, a edição de um regulamento com efeitos retroativos sempre estará na dependência de uma habilitação legal que lhe sirva de amparo. Aliás, por conta desse caráter infralegal, alguns chegam mesmo a negar qualquer possibilidade de retroatividade às normas editadas pela Administração

21. Contudo, tendo em vista

que a habilitação legal para o exercício do poder normativo da Administração é, hoje em dia, cada vez mais genérica e ampla, não fica difícil situar a retroatividade das normas administrativas no vazio normativo que decorre da omissão ou da incapacidade do legislador. Afora, ainda, a hipótese de exercício de poder normativo autônomo, tão controvertida, mas tão presente no cotidiano das Administrações Públicas contemporâneas

22.

Assentado, portanto, que o poder normativo da Administração Pública, infralegal ou autônomo, pode ser exercido retroativamente, e que assim o é com grande freqüência — em especial nos casos de retroatividade aparente —, resta analisar como essa questão tem sido enfrentada no direito brasileiro

23.

Por aqui, como já se mencionou anteriormente, a perspectiva tradicional da aplicação das normas administrativas no tempo se faz com o apoio dos limites clássicos constituídos pelas garantias do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada e, ainda, pela noção de fato consumado

24. Nesse contexto, as expectativas

depositadas na estabilidade de um determinado regime normativo genérico e abstrato 21

Confira-se, nesse sentido, decisão do Tribunal Supremo espanhol citada por CASTILLO BLANCO, op. cit., 2002, p. 16, nota 52.22

Acerca do tema, veja-se, por todos, GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pres-suposto. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 173 e ss.23

Vale registrar, a propósito, os precisos comentários de PONTES DE MIRANDA: “A cada passo se diz que as regras de direito público — administrativo, processual e de organização judiciária — são retroativas, ou que contra elas não se podem invocar direitos adquiridos. Ora o que acontece é que tais regras jurídicas, nos casos examinados, não precisam retroagir, nem ofender direitos adquiridos, para que incidam desde logo. O efeito que se lhes é normal, o efeito no presente, o efeito imediato (...). O que se passa no direito público é que esses casos de só aparente retroatividade são a regra”. Comentários à Constituição de 1967: com a Emenda Constitucional n.º 1 de 1969. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 386-387.

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simplesmente não são tuteladas pelo ordenamento jurídico25

. A incidência imediata das novas regras sobre as situações em curso é pronunciada quase sem exceção pelos Tribunais

26.

Logo, se, nos casos de retroatividade autêntica, a posição do cidadão é assegurada pela existência de um fato consumado, de um direito adquirido ou de um ato jurídico perfeito, assim já não se passa nas situações em que a retroatividade é meramente aparente

27. Nestas, via de regra, não há qualquer tutela para as expectativas

do administrado. A situação de sujeição geral do indivíduo à incidência imediata das normas jurídicas, sempre que não for titular de uma relação jurídica própria concretizada em um ato ou um contrato, deixa-o por inteiro à mercê da inconstância do poder normativo, não lhe sendo permitido postular proteção alguma para sua expectativa, por mais legítima que essa pudesse ser.

O exame de alguns julgados dos Tribunais Superiores pode dar bem a medida do tratamento dispensado ao tema no direito brasileiro. 24

A propósito, v., por todos, MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Aplicação da lei no tempo em direito administrativo. Revista de Direito Administrativo, v. 134, p. 11-21, 1978.25

É possível falar em expectativas de fato e expectativas de direito. Expectativas de fato, diz Vicente Ráo, são “a mera esperança, abstrata, de se vir a adquirir um direito, a mera potencia-lidade de aquisição, resultante da personalidade e da capacidade como situações genéricas”. A expectativa de fato se transmuda em expectativa de direito quando a pessoa que nutre a expectativa reúne “os requisitos de capacidade e de legitimidade para a aquisição do direito”. A expectativa de direito é “a esperança, fundada no elemento de fato já realizado, de sobrevir a verificação total do fato e, em conseqüência, o nascimento do direito. Em geral, as expectativas de direito não são tuteladas pela lei, por não serem ainda direitos. Também são chamadas de direitos eventuais”. Cf. O direito e a vida dos direitos. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 635-637.26

As relações contratuais, de um modo geral, são postas a salvo da incidência de novas regras, pois corretamente os contratos são qualificados como atos jurídicos perfeitos. Mesmo os contratos, porém, podem, em alguns casos, sofrer os efeitos de novas regras gerais de ordem econômica, sentido no qual tem se fixado a jurisprudência do STF. Prestigiando o ato jurídico perfeito, veja-se o RE n.º 204769/RS, Rel. Min. Celso de Mello, j. em 10/12/1996. Admitin-do a incidência imediata de lei que determinou a aplicação de fator de deflação monetária sobre contratos já firmados, cf. o RE n.º 253473 AgR/SP. Relator: Min. Carlos Velloso, j. em 22.11.2005.27

Cf. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p. 185: “Quanto aos primeiros [os atos gerais e regulamentares], são, por natureza, revogáveis a qualquer tempo e em quaisquer circunstâncias. (...) Por isso mesmo, não geram, normalmente, direitos subjetivos individuais à sua manutenção, razão pela qual os particulares não podem opor-se à sua revogação, desde que sejam mantidos os efeitos já produzidos pelo ato.”

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No julgamento do Recurso Extraordinário n.º 231.176/SP, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal entendeu que o imposto de importação sobre veículos adquiridos no exterior deveria ser recolhido com base na alíquota vigente no momento da entrada dos veículos no país, mesmo que outra fosse a alíquota prevista quando se fecharam os contratos de compra e venda desses veículos. Para o STF, não há ofensa à irretroatividade, ao direito adquirido ou à boa-fé na cobrança do imposto com base na alíquota posteriormente majorada por decreto, já que o fato gerador do tributo — a entrada da mercadoria no país — somente se verificou após a fixação da nova alíquota. Portanto, embora a recorrida tivesse contratado a aquisição dos veículos na expectativa de efetuar sua importação com base na alíquota vigente naquele momento, sua expectativa frustrada não foi tutelada

28.

É preciso salientar, porém, que, nesse caso, fossem considerados os critérios adotados no direito comparado, possivelmente a tutela da expectativa dos contribuintes de pagar a alíquota vigente no momento da aquisição dos veículos no exterior esbarraria na previsibilidade da atuação governamental e, bem assim, na falta de uma base objetiva em que os particulares pudessem ter depositado a sua confiança. De fato, a possibilidade de majoração das alíquotas do imposto de importação é prevista expressamente no art. 153, § 1º, da Constituição Federal. Além disso, não há notícia de que o Poder Público tenha sinalizado de algum modo no sentido de que as alíquotas seriam preservadas.

Por outro lado, como pôde ser constatado no julgamento do caso Crispoltoni pelo TJCE, os requisitos exigidos para a tutela das expectativas no direito comparado não operam isoladamente. Desse modo, como se estatuiu naquele caso, mesmo que em tese fosse previsível a alterabilidade do regime normativo, a presença de outros requisitos poderia recomendar a proteção da expectativa. Assim, por exemplo, se o Poder Público tivesse indicado que as alíquotas seriam preservadas por um determinado tempo e, ademais, fosse demonstrado que o objetivo perseguido com a alteração normativa poderia ser alcançado sem que se impusesse um prejuízo ao contribuinte. A mera existência de um comando legal prevendo o poder de alteração das alíquotas de um imposto não pode submeter os contribuintes ao capricho da Administração. Se não houver razões que justifiquem a intervenção abrupta das novas regras sobre situações já em curso, ou se os eventuais motivos não sejam de tal ordem que justifiquem o sacrifício impingido ao particular, a expectativa poderá ser tutelada, pela aplicação 28

RE 231.176/SP. 1ª. Turma. Relator: Min. Ilmar Galvão. j. em 11.12.98, DJ 28 maio 1999. Disponível em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 29 dez. 2005.

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do princípio da proteção da confiança legítima. Por isso, a aplicação ou o afastamento do princípio da proteção da confiança legítima nessas hipóteses deve ser precedido de uma rigorosa ponderação de todos os interesses e aspectos envolvidos.

Outro caso revelador do entendimento dos Tribunais brasileiros quanto à inviabilidade da tutela das expectativas na preservação de um dado regime normativo é o RMS n.º 7.731/MG, decidido pelo Superior Tribunal de Justiça. Na hipótese, o STJ afirmou a aplicabilidade imediata de uma lei que alterava os critérios de participação de municípios mineradores no ICMS. Segundo aquele Tribunal, “a expectativa de direito anterior não exercitado, rompido pela lei nova de incidência imediata, não favorece a invocação de irretroatividade ou de direito adquirido. O interesse público (coletivo) prevalece sobre o interesse particularizado, vencido pela lei nova”. O simples advento da lei nova já corporifica, portanto, para o STJ, um interesse público que, abstratamente considerado, se sobrepõe ao interesse particular. Como foi dito, se não há um “ato concreto ameaçando ou violando direito subjetivo próprio”, a posição do particular não pode ser tutelada

29.

Toda a insuficiência da tutela das expectativas de direito pela jurisprudência brasileira foi deixada à mostra, porém, no julgamento do Recurso Especial n.º 135.659. Tratava-se, no caso, de recurso interposto contra acórdão do TRF da 4ª Região que referendou uma resolução do Banco Central na qual se reduziu, de quarenta por cento para zero, o percentual de um benefício fiscal anteriormente concedido. Esse benefício incidia sobre o imposto de renda devido nos empréstimos tomados em moeda estrangeira. O Tribunal recorrido havia entendido que, por se tratar de um benefício fiscal sem prazo certo, o Banco Central poderia revogá-lo ou alterá-lo a qualquer momento. A recorrente, porém, alegou que a aplicação da nova resolução feriria os negócios fechados com base no regime fiscal anterior, desrespeitando o princípio da segurança jurídica e do ato jurídico perfeito. Vejam-se os fundamentos do voto da Relatora, Min. Eliana Calmon, reconhecendo que a recorrente era titular de um “direito expectativo” ao regime fiscal previsto na resolução revogada pelo BACEN:

Entendo que o contribuinte não tem direito adquirido a determinado regime fiscal, mas negocia, contrata, firma seus compromissos pautando-se em uma situação concreta, em que pagará X de Imposto de Renda.Ora esta situação, criada unicamente pelo Fisco, não pode ser alterada para onerar o contribuinte que tem direito expectativo a só pagar o imposto nos moldes da legislação vigente à época do contrato perfeito e acabado.29

RMS n.º 7.731/MG. 1ª. Turma. Relator: Min. Milton Luiz Pereira. j. em 23.10.1997, DJ 15 dez. 1997, p. 66214.

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Este entendimento leva à reforma do julgado, eis que a Resolução 1.351/74 não poderia ter aplicação imediata por infringir direito da empresa, adquirido sob a égide da Resolução 613 do BACEN.Em conclusão, conheço do recurso para dar-lhe provimento. (grifou-se)

30

Na verdade, o ar meio sem jeito que algumas das decisões citadas deixam transparecer no trato da tutela das expectativas de direito desapareceria caso fosse incorporado ao direito público brasileiro o instrumental oferecido pelo princípio da proteção da confiança legítima. É justamente nessas situações de retroatividade aparente que a aplicação desse princípio pode se revelar não só útil, como necessária

31.

Confira-se, a propósito, a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo de Portugal:

Para além disso, o Tribunal Constitucional tem estendido esta proibição de retroatividade a situações em que não há propriamente uma aplicação retroativa [...], mas em que são introduzidas alterações legislativas com que os cidadãos não podiam, razoavelmente, contar. [...] À face da jurisprudência do Tribunal Constitucional, o princípio da confiança, ínsito na idéia de Estado de Direito democrático (art. 2.º da Constituição) postula um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas que lhes são juridicamente criadas, censurando as afetações inadmissíveis, arbitrárias ou excessivamente onerosas, com as quais não se poderia moral e razoavelmente contar. [...]Nesta perspectiva, deverá entender-se que existe uma violação de tal princípio, quando não houver a necessidade de salvaguarda de interesses constitucionalmente protegidos mais relevantes, sempre que a alteração da ordem jurídica em sentido desfavorável às expectativas dos cidadãos seja algo com que eles não possam, razoavelmente, contar.

32

A utilidade da aplicação do princípio da proteção da confiança legítima para a tutela das legítimas expectativas de direito se mostra ainda mais patente quando são postas em causa expectativas geradas na preservação de determinadas posições jurídicas que persistem por anos, às vezes por décadas até, e que levam os particulares a fazer importantes disposições pessoais e patrimoniais. Para demonstrar essa afirmação, a eloqüência de um exemplo colhido do regime de aposentadoria dos servidores 30

REsp n.º 135.569/PR. 2ª. Turma. Relatora: Min. Eliana Calmon. j. em 14.08.2001, DJ, 29 out. 2001, p. 190.31

Nesse sentido, cf. CASTILLO BLANCO, op. cit., 1998, p. 198-199.32

Supremo Tribunal Administrativo. Processo n.º 47.275/2003, Acórdão de 30/04/2003, Pleno da Seção do Contencioso Administrativo, Relator: Jorge de Sousa. Por unanimidade, negar provimento. Disponível em: <http://www.dgsi.pt>. Acesso em: 15 ago. 2005.

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justifica um ligeiro desvio do tema33

. Imagine-se, assim, que um servidor público tenha completado trinta e cinco anos de contribuição e cinqüenta e nove anos de idade, quando sobrevém uma nova emenda constitucional alterando a idade mínima de aposentadoria para sessenta e cinco anos. Seria iníquo que a nova regulamentação alcançasse esse servidor, impedindo sua aposentadoria no prazo de um ano, da mesma forma em que alcançará um outro servidor recém-ingresso no serviço público, com dezoito anos de idade. No entanto, não fosse a decisão política do legislador de prever critérios de transição para regular as diversas situações em curso, aquele servidor, segundo o entendimento tradicional na matéria, não teria qualquer proteção jurídica contra a injustiça decorrente da incidência imediata das novas regras. Como o ordenamento em regra não tutela as expectativas de direito, as novas regras poderiam incidir imediatamente, sem outros questionamentos.

Não seria assim, todavia, caso se empregasse a lógica do princípio da proteção da confiança legítima. Embora o princípio em causa não se preste a garantir a permanência das normas revogadas, por seu intermédio se assegura ao menos que as novas regras não incidam abruptamente. Trata-se de dar, ao particular que confiou, um tempo para que ele possa se adaptar às novas regras por meio da previsão de um regime transitório, minimizando seus prejuízos.

É claro — repita-se novamente — que não basta a mera confiança abstrata e subjetiva depositada na preservação da norma para que a expectativa seja tutelada: alguns outros requisitos deverão também ser preenchidos (v. item 3, infra). De todo modo, parece indiscutível que o princípio da proteção da confiança legítima tem aptidão, nesse domínio, para preencher um certo vazio de direito existente quando se trata da tutela de expectativas

34.

Não custa enfatizar, ainda mais uma vez, que a tutela conferida pelo princípio da proteção da confiança legítima não se destina a impedir o exercício da função normativa

35. É a própria razão de ser dessa função estatal que o legislador ou a

Administração possam prover para o futuro. Impedir o Poder Público de modificar as normas existentes ou de aprovar novas regras com o único objetivo de proteger 33

O problema aqui, na verdade, não é do exemplo, mas do enquadramento constitucional dessa matéria. Deve-se às circunstâncias peculiares da formação da Constituição de 1988 — e dos processos de reforma que a ela se seguiram — o posicionamento constitucional de todos os detalhes do regime de aposentadoria dos servidores públicos, quando no máximo esses por-menores poderiam aspirar ao status legal. Além de lhes faltar dignidade constitucional, sua presença na Constituição é causa de grande instabilidade constitucional.

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uma expectativa dos cidadãos de hoje na imutabilidade das normas seria impor às gerações futuras o ônus de se ter atendido exclusivamente aos interesses individuais do presente. Esse conservadorismo individual atentaria contra o interesse público da coletividade na evolução do ordenamento. A esse papel não se presta o princípio estudado. Recorrendo mais uma vez à lição de Lon Fuller, “se toda vez que um homem confiasse nas regras existentes para dispor acerca de seus negócios, ele fosse protegido contra qualquer mudança das normas, nosso ordenamento inteiro ficaria ossificado para sempre”

36.

Assim, conquanto se reconheça que o princípio da proteção da confiança legítima tem aptidão para prover uma lacuna no direito público brasileiro, sua aplicação como limite ao exercício do poder normativo haverá de ser feita com grande parcimônia, a fim de não se tornar a Administração Pública refém de interesses privados.

3. Requisitos para a proteção da confiança legítima ante o exercício do poder normativo da Administração

Nem sempre é fácil discernir em que ponto uma expectativa na estabilidade de um determinado regime normativo passa a merecer a proteção do ordenamento jurídico

37. Alguns critérios, porém, podem ser empregados para essa identificação.

Em primeiro lugar, para que o princípio da proteção da confiança legítima possa ser invocado com o fim de tutelar uma expectativa do particular na preservação de um determinado regime normativo, é preciso que o administrado tenha sido surpreendido 34

Esse vazio muitas vezes tem levado a doutrina e a jurisprudência a construir argumentos nem sempre convincentes com o objetivo de assegurar um mínimo de proteção aos cidadãos nessas situações. Cite-se, como exemplo, o argumento da existência de direito adquirido a regime de aposentadoria desenvolvido por Valmir Pontes Filho. O ilustre Professor cearense, em sentido contrário ao entendimento dominante, defendeu a existência de um direito adquirido dos servidores públicos a regime de aposentadoria. Desse modo, novas regras de aposentadoria que viessem a ser aprovadas pelo Congresso Nacional somente poderiam ser aplicadas aos servidores que ingressassem no serviço público após a sua vigência. Na verdade, aparente-mente, buscava o autor a construção de uma teoria que permitisse tutelar as expectativas dos servidores, protegendo-os de mudanças abruptas e significativas no regime de aposentadoria vigente. Cf. Direito adquirido ao regime de aposentadoria. Revista Diálogo Jurídico, v. 1, n. 8, 2001. Disponível em: <http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em: 17 ago. 2002.35

Nesse sentido, v. THOMAS, Robert. Legitimate expectations and proportionality in admi-nistrative law. Oxford: Hart Publishing, 2000, p. 59-60.36

FULLER, op. cit., p. 60.

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por uma mudança súbita e imprevisível desse regime, e que a Administração lhe tenha dado fundadas razões para confiar na sua estabilidade

38. Confira-se, nesse sentido, a

seguinte decisão proferida pelo Tribunal Supremo da Espanha (STS de 27 de janeiro de 1990):

os princípios da boa-fé, segurança jurídica e interdição da arbitrariedade, proclamados no artigo 9 da Constituição, obrigam a outorgar proteção a quem legitimamente tenha podido confiar na estabilidade de certas situações jurídicas regularmente constituídas com base nas quais possam ter adotado decisões que afetem não somente ao presente como ao futuro [...] Daí o que terminantemente não se pode aceitar é que uma norma, que não seja nem regulamentar nem legal, produza uma brusca alteração em uma situação regularmente constituída ao amparo de uma legislação anterior, desarticulando, por surpresa, uma situação em cuja perduração se podia legitimamente confiar. Por isso, essas mudanças somente se podem admitir quando assim o imponha o interesse público e, em qualquer caso, oferecendo meios e tempo razoáveis para reposicionar as situações individuais afetadas.

39

No domínio normativo, de fato, a legitimidade da confiança se mede em regra pela surpresa e pelo caráter brusco da alteração normativa

40. Todavia, se é certo

que, de um modo geral, não é legítimo ao particular esperar que as normas jurídicas não sejam alteradas, não é menos induvidoso que ele pode, ao menos, esperar que eventuais mudanças não sejam bruscas, nem contrariem explicitamente as expectativas despertadas por comportamentos da própria Administração.

Portanto, para além da imprevisibilidade, é necessário que o Poder Público, por algum comportamento concreto seu, tenha infundido no particular uma expectativa efetiva “na permanência de um determinado marco normativo”

41. Como destaca

Jürgen Schwarze:

Para que o princípio da proteção da confiança legítima seja aplicável, uma base objetiva deve existir para esse princípio na forma de uma expectativa que mereça proteção. Por conta da ampla liberdade de ação de que goza

37 Nesse sentido, v. GALLIGAN, Denis J. Due process and fair procedures: A study of admi-

nistrative procedures. Oxford: Clarendon Press, 1996, p. 322.38

Cf. THOMAS, op. cit., p. 46; e CALMES, op. cit., p. 373 e ss.39

Apud GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de derecho administrativo. Madrid: Civitas, 1999, v. 1, p. 90.40

No caso, segundo Sylvia Calmes, op. cit., p. 378: “a previsibilidade das mudanças haverá de ser medida pela boa-fé subjetiva e pela diligência objetiva do particular que confiou”.

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o legislador, a mera existência de uma norma não constitui habitualmente uma base adequada para despertar uma confiança legítima suscetível de proteção. Uma base adequada para uma confiança sólida pode ser fornecida, de um lado, pelo fato de terem sido assumidas obrigações em relação ao Poder Público, ou, por outro, pela linha de conduta adotada pelas autoridades e que tenha despertado expectativas específicas — que, em determinadas circunstâncias, podem surgir de um compromisso assumido pelas autoridades.

42

Por isso, a confiança não será tutelada em face de normas claramente provisórias, já que, nesses casos, o particular podia e devia contar com a superveniência de um novo regime normativo

43. Igualmente, não haverá legitimidade na confiança quando

a regulamentação existente era confusa e de duvidosa legalidade, ou, ainda, quando por qualquer outra razão, o particular devesse contar com a edição de uma nova regulamentação

44. Segundo a Corte Constitucional Italiana, “nenhuma confiança

legítima pode de fato surgir com base na interpretação de uma norma que não seja pacífica e consolidada e, além disso, seja fortemente contestada na jurisprudência de mérito”

45.

Registre-se, mais, que o critério da previsibilidade nesses casos não haverá de ser medido a partir do ponto de vista subjetivo daquele que invoca a tutela da confiança, mas sim considerando um padrão médio de diligência que se poderia esperar de um particular naquelas mesmas circunstâncias. A jurisprudência do TJCE, por exemplo, avalia a imprevisibilidade a partir da ótica que seria de se esperar num diligente e prudente homem de negócios

46.

Entretanto, apenas a imprevisibilidade, o caráter repentino da mudança e a existência de razões objetivas para se acreditar na estabilidade normativa não denotam ainda a existência de uma confiança suscetível de proteção. A alteração normativa deverá incorporar uma mudança significativa na linha de conduta até ali adotada pela 41

CASTILLO BLANCO, op. cit., 2002, p. 35. 42

SCHWARZE, op. cit., p. 1134-1135.43

V. GARCÍA MACHO, Ricardo. Contenido y límites del principio de la confianza legítima: estudio sistemático en la jurisprudencia del Tribunal de Justicia. Revista Española de Derecho Administrativo, v. 56, p. 560, 1987.44

Assim, por exemplo, quando em tramitação projeto de reforma da regulamentação aplicável, inclusive mediante discussão pública. A propósito, v. MAURER, op. cit., p. 78-79. 45

Sentença n.º 229, de 7 de junho de 1999. Relator: Annibale Marini. Disponível em: <http://www.giurcost.org>. Acesso em: 30 set. 2005.

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Administração, deteriorando a posição jurídica do particular de modo a lhe causar prejuízo

47. A mera modificação normativa, sem a demonstração de um prejuízo efetivo

na posição jurídica do administrado, não enseja a proteção da confiança legítima48

. Esse prejuízo, é bom dizer, não será necessariamente financeiro. A propósito, confira-se a doutrina de Federico Castillo Blanco:

[...] no Direito comunitário não apenas são suscetíveis de proteção os direitos adquiridos, mas também, en certas condições, as meras expectativas subjetivas dos indivíduos que possam almejar à essa tutela quando a medida comunitária tiver um extraordinário impacto não previsível que implique em um real efeito punitivo [...].

49

Da mesma forma, nenhuma conduta capaz de frustrar a expectativa do cidadão pode ser atribuída à sua própria esfera de responsabilidade. Destarte, para que o princípio possa ser aplicado, os destinatários das novas regras não devem ter contribuído para sua edição com informações falsas ou incompletas, nem, por qualquer outro modo, ter pretendido se beneficiar da própria torpeza

50.

Por fim, também no domínio dos atos normativos é necessário proceder a uma ponderação entre a confiança legítima do particular na estabilidade da regulamentação aplicável e o interesse público concreto (saúde, meio ambiente, educação etc.) na modificação dessa regulamentação

51. Assim, se os inconvenientes impostos aos

destinatários das normas suplantarem, em grau e em relevância, o interesse público na adoção das novas regras, incide a proteção da confiança

52. Por outro lado, ainda

que a confiança seja legítima, a existência de um interesse público peremptório poderá determinar a incidência imediata, ou até mesmo retroativa, das novas regras (admitindo-se, eventualmente, a tutela da confiança pela via da indenização compensatória, conforme se verá adiante)

53.

4. Conseqüências da incidência do princípio da proteção da confiança legítima no âmbito do poder normativo da Administração46

SCHWARZE, op. cit., p. 1141.47

CALMES, op. cit, p. 388-390.48

CASTILLO BLANCO, op. cit., 2002, p. 34. 49

CASTILLO BLANCO, op. cit., 1998, p. 185.50

CASTILLO BLANCO, op. cit., 2002, p. 35. 51

V. SCHWARZE, op. cit., p. 1143-1144; GARCÍA LUENGO, op. cit., p. 88, nota 104.52

CASTILLO BLANCO, op. cit., 1998, p. 116.

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Demonstrado que o princípio da proteção da confiança legítima presta-se a tutelar as legítimas expectativas que os administrados depositaram na permanência de uma regulamentação, faz-se necessário indicar quais as conseqüências ou efeitos dessa tutela em concreto.

A partir do direito comparado é possível, em tese, indicar quatro conseqüências possíveis: (4.1) o estabelecimento de medidas transitórias ou de um período de vacatio; (4.2) a observância do termo de vigência fixado para a norma revogada; (4.3) a outorga de uma indenização compensatória pela frustração da confiança; e (4.4) a exclusão do administrado da incidência da nova regulamentação, preservando-se a posição jurídica obtida em face da regulamentação revogada.

A escolha de um dentre esses efeitos dependerá das circunstâncias do caso concreto, mediante um juízo de ponderação entre o interesse do particular na preservação da sua posição e o interesse público na aplicação imediata das novas regras

54. Deverá ser adotada a medida que imponha o menor grau de sacrifício aos

interesses em jogo. Desse modo, é possível antecipar que a previsão de medidas transitórias, a obrigação de respeitar o termo de vigência previsto para a norma e a outorga de uma indenização deverão preferir, nessa ordem, à preservação da posição jurídica alcançada em virtude da norma revogada

55.

4.1. O direito a um regime de transição justo

Pela experiência do direito comparado, a aplicação do princípio da proteção da confiança legítima como limite ao exercício do poder normativo determina, em primeiro lugar, a previsão de um regime transitório ou de um período de vacatio, que permita a adaptação do particular aos ditames da nova regulamentação

56. Nesse

sentido, confira-se a decisão tomada pelo TJCE no caso Tomadini (84/78):

19. Que a adoção do regulamento n.º 2604/77, sem que tenha sido previsto um regime transitório pelas trocas intracomunitárias, violaria o princípio da confiança legítima, tanto mais porque o regulamento n.º 2792/77, de 15 de dezembro de 1977, havia excepcionado as operações efetuadas sob a cobertura de um certificado [...], exceção que não se aplicaria senão às trocas entre países terceiros.

53 GARCÍA MACHO, op. cit., p. 560.

54 Nesse sentido, v. CALMES, op. cit., p. 472-473.

55 Ibid.

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20. Considerando que, no marco de uma regulamentação econômica como aquela das organizações comuns dos mercados agrícolas, o princípio do respeito da confiança legítima proíbe às instituições comunitárias (...) modificar esta regulamentação sem combiná-la com medidas transitórias, salvo se um interesse público peremptório se opuser à adoção de tal medida.

57

De fato, como destaca Sylvia Calmes, a previsão de medidas transitórias é o meio mais apropriado para a proteção da confiança nessas circunstâncias: “mesmo que as disposições adotadas em vista do futuro não justifiquem uma relação durável, elas podem ser levadas em conta ao menos com a previsão de um prazo apropriado de transição — que antecipe, assim, de forma abstrata a ponderação de interesses”

58. Além

disso, a determinação de um período de transição flexibiliza o princípio da vigência imediata das normas e permite considerar tanto as necessidades da Administração de adaptar as normas às novas exigências do interesse público como as do particular em preservar a sua posição jurídica

59.

Essa solução não é estranha ao direito norte-americano, embora em um contexto jurídico-legal bastante diferente. Segundo noticia Lon Fuller, a Suprema Corte entende que a eficácia de uma nova legislação que frustre a confiança dos cidadãos no regime legal anterior deve ser precedida de um prazo razoável para que aqueles possam se ajustar às suas prescrições

60.

De todo modo, para a proteção da confiança depositada na norma revogada, não basta que a nova regulamentação contenha previsão de medidas transitórias. É necessário ainda que tais medidas sejam justas, adequadas e proporcionais

61. Em

outros termos, que sejam capazes de tutelar adequadamente a confiança depositada na permanência do regime anterior. Por isso, apenas diante das circunstâncias próprias 56

Nesse sentido, v., dentre outros, GONZÁLEZ, Saturnina Moreno. El principio de seguridad jurídica en el derecho comunitario, p. 20; GARCÍA MACHO, op. cit.; CASTILLO BLANCO, op. cit., 2002, p. 12; CALMES, op. cit., p. 450 e ss.; SCHØNBERG, op. cit., p. 142-143; e SILVA, Almiro do Couto e. O princípio da segurança jurídica (proteção à confiança) no direito público brasileiro. Revista de Direito Administrativo, v. 237, p. 278, 2004.57

Acórdão da Corte de 16 de maio de 1979. Angelo Tomadini Snc vs. Administração das Finanças do Estado Italiano. Requerimento de decisão prejudicial; Pretura di Trento – Itália. Quantias compensatórias financeiras. Caso 84/78 Decisão de 16/05/1979, Rec.1979, p.1801. Disponível em: <http://europa.eu.int> Acesso em: 29 set. 2005. 58

CALMES, op. cit., p. 451.59

Ibid., p. 452.

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do caso — da confiança do cidadão e do interesse público que justificou a mudança do regime —, será possível examinar a adequação das regras transitórias previstas. Não é possível, portanto, predeterminar um elenco de medidas transitórias a serem previstas

62.

Por último, cabe registrar que, argüida perante o Judiciário a violação do princípio da proteção da confiança legítima, por ausência ou insuficiência de disposições transitórias em um novo regulamento, o juiz não poderá estipular, desde logo, as medidas transitórias que entender pertinentes. Agindo assim, estaria inequivocamente invadindo esfera que é própria da Administração

63. Nesses casos,

portanto, duas possibilidades se oferecem ao juiz: a declaração de ineficácia das novas regras ao requerente, enquanto não previstas normas transitórias justas e adequadas; ou a outorga de uma indenização compensatória, quando for possível traduzir em dinheiro a confiança frustrada, e exista pedido subsidiário nesse sentido.

4.2. A obrigação de respeitar o prazo de vigência fixado na norma

Muitas vezes, as normas jurídicas fixam um prazo para a sua própria vigência ou um prazo para a aplicação de uma vantagem ou benefício que tenham previsto.

No entanto, segundo o entendimento clássico na matéria, o exercício do poder legislativo ou regulamentar não fica vinculado ao prazo de vigência anteriormente fixado para a norma

64. Diante de um interesse público superveniente, ou convencendo-

se da inoportunidade da medida, o legislador ou a Administração podem a qualquer momento revogá-la, independentemente do escoamento do prazo inicial. A fixação de um termo de vigência não gera, em regra, direito adquirido à permanência da norma. Nesse sentido, fixou-se a orientação tanto do Conselho Constitucional como do Conselho de Estado da França: “uma legislação ou uma regulamentação podem 60

FULLER, op. cit., p. 80-81: “O mal de uma lei retrospectiva surge porque os homens podem ter agido com base na legislação anterior e, então, as ações adotadas podem ser frustradas ou se tornarem excessivamente onerosas pela alteração retroativa dos seus efeitos legais. Em algumas vezes, porém, uma ação adotada em razão da confiança na lei anterior pode ser desfeita, desde que haja um prévio aviso da mudança em vista e a alteração em si não se torne efetiva tão rapidamente que se deixe um período de tempo insuficiente para o ajuste às novas prescrições legais.”61

CANOTILHO. José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 263.62

Nesse sentido, v. MAURER, op. cit., p. 80: 63

Veja-se, nesse sentido, CALMES, op. cit., p. 474.

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ser modificadas a qualquer momento, qualquer que seja a duração de sua aplicação que tenha sido inicialmente fixada”

65.

Ora, essa orientação não está em consonância com os ditames do princípio da proteção da confiança legítima. Nesses casos, mesmo que não se trate de um direito adquirido, a aplicação do princípio da proteção da confiança pode garantir ao particular a preservação do regime normativo revogado pelo prazo previsto inicialmente. Desde que presente uma confiança digna de proteção e, na ponderação, o interesse público contrário não prevaleça, a posição jurídica do administrado que confiou na manutenção do prazo regulamentar deve ser preservada

66.

Tal lógica, aliás, parece também ter inspirado o STJ no julgamento do Mandado de Segurança n.º 10.673-DF. Naquele caso, a despeito da edição de um novo regramento pelo Ministério da Agricultura para a fabricação de sangria (a Instrução Normativa n.º 5/2005), foi assegurado à impetrante o direito de fabricar tal produto consoante as regras anteriores até que exaurido o prazo de dez anos da autorização de rótulo que lhe foi concedida nos termos do art. 15 do Decreto n.º 99.066/90. Com isso, a impetrante foi posta a salvo da incidência imediata das novas regras

67.

4.3. A outorga de uma indenização compensatória

A ineficácia da previsão de medidas transitórias, a ausência de termo a ser respeitado ou, ainda, a existência de um interesse público que inviabilize esses efeitos anteriores, pode levar à imposição de um dever de indenizar pela confiança frustrada, desde que estejam em causa interesses patrimoniais do particular que confiou, suscetíveis de conversão em pecúnia. Em alguns casos, a outorga da indenização 64

Uma exceção a essa afirmação pode ser encontrada no art. 178 do Código Tributário Nacio-nal. Esse dispositivo limita a revogação das isenções tributárias quando concedidas por prazo certo e em função de determinadas condições (dispositivo com a redação determinada pela Lei Complementar n.º 24/75).65

DELVOLVÉ, Pierre. Droit public de l´economie. Paris: Dalloz, 1998, p. 209. No mesmo sentido, v. o comentário de LONG, Marceau et al: “Um regulamento pode mesmo ser revo-gado antes do termo que ele tenha fixado, sem que se possa opor o princípio da proteção da confiança legítima no direito interno.” Les grands arrêts de la jurisprudence administrative. 15. ed. Paris: Dalloz, 2005, p. 870.66

Embora recuse a utilidade da incorporação do princípio da proteção da confiança legítima no direito francês, Sylvia Calmes, op. cit., p. 550-551, defende a necessidade de criação de uma obrigação geral de respeito aos termos fixados nas leis e regulamentos “para favorecer a estabilidade dessas situações e limitar os abusos na matéria.”

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poderá vir a ser o único efeito possível para a tutela da confiança diante de um interesse público concreto que determine a vigência imediata da nova regulamentação

68.

Acerca do tema, veja-se a decisão proferida pelo Tribunal Administrativo de Estrasburgo no julgamento do Caso Freymuth, em 8 de dezembro de 1994 (Empresa de Transportes Freymuth vs. Ministro do Meio Ambiente). Naquele caso, o Tribunal reconheceu a responsabilidade da Administração por ter modificado subitamente um regulamento — relativo ao regime de importação de um determinado produto — sem a previsão de normas de transição entre o regime de liberdade plena, até então vigente, e o de interdição total, previsto nas novas regras. Confira-se a seguinte passagem desse julgado, posteriormente reformado pelo Tribunal de Apelação de Nancy:

[...] na implementação de sua atividade, a administração deve zelar para não impor a terceiros um prejuízo anormal em virtude de uma modificação inesperada das regras que ela edita ou do comportamento que ela adota se o caráter súbito dessa modificação não for necessário para o objeto da medida ou para as finalidades perseguidas; que, em particular, se as autoridades administrativas podem modificar a regulamentação que tenham editado em função da evolução dos seus objetivos ou das situações de fato ou de direito que condicionam a sua intervenção, elas devem adotar as disposições apropriadas para que as pessoas envolvidas disponham de uma informação precedente ou para que medidas transitórias sejam previstas, uma vez que a modificação empreendida não deva, por natureza e em razão de urgência, produzir efeitos de maneira imediata e que seja suscetível de ter efeitos negativos sobre o exercício de uma atividade profissional ou de uma liberdade pública; que por não respeitar esse princípio da confiança pública na clareza e previsibilidade das regras jurídicas e da ação administrativa, a administração compromete sua responsabilidade em face do prejuízo anormal resultante de uma modificação inutilmente súbita dessas regras e comportamentos.

69

Na jurisprudência do TJCE, o direito à outorga de uma indenização diante da alteração súbita e inesperada de um ato normativo foi reconhecido pela primeira vez no caso CNTA (74/74). Na hipótese, concedeu-se à recorrente uma indenização pelas perdas sofridas em conseqüência da alteração repentina de um regulamento comunitário. Consta dos fundamentos do acórdão que, por se tratar de medida de

67 Primeira Seção. Relatora: Min. Eliana Calmon, j. em 28.09.2005.

68 Observe-se, porém, que a solução indenizatória não deve ser universalizada, tendo em vista

o ônus que importa aos cofres públicos. Cf. CALMES, op. cit., p. 474-475.

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natureza legislativa adotada na esfera da política econômica, apenas a violação de um princípio superior de proteção individual poderia ensejar a reparação por danos sofridos. A alteração do regulamento pela Comissão Européia, sem notificação prévia ou adoção de medidas transitórias, importou em violação ao princípio da proteção da confiança legítima. Por isso, uma indenização haveria de ser deferida à recorrente. Na afirmação textual do julgado: “a proteção que se pode reclamar por força da confiança legítima é meramente a de não sofrer perdas pela retirada das compensações.”

70

Posteriormente, a jurisprudência do TJCE evoluiu para admitir que, além da reparação dos prejuízos, a tutela da confiança também pode levar à inaplicabilidade das novas regras a determinados casos individuais, como se verá no item seguinte

71.

De todo modo, é preciso registrar que tanto o reconhecimento do direito à indenização como a preservação da posição jurídica do particular têm sido ocorrências raras no direito comunitário, pois o TJCE é bastante rigoroso no exame dos pressupostos da tutela da confiança legítima

72.

Discorrendo sobre o tema no direito espanhol, E. García de Enterría reconhece que o princípio da proteção da confiança legítima, mais do que operar como um limite substancial ao legislador, fundamenta a outorga de uma indenização reparatória nos casos em que a confiança do particular é frustrada pela mudança súbita de uma legislação

73. Confira-se a respeito decisão proferida pelo Tribunal Supremo

Espanhol:

Nenhuma dúvida existe de que o poder administrativo de planejamento se estende à reforma deste: a natureza regulamentar dos planos, em um sentido, e a necessidade de adaptá-los às exigências cambiantes da realidade, no outro, justificam plenamente o ‘ius variandi’ que nesse âmbito se reconhece à Administração – arts. 45 e ss. da Lei do Solo.Isto põe o problema da situação dos proprietários ante a modificação do planejamento.

69 Apud DELVOLVÉ, op. cit., 1998, p. 210-211. Note-se que o julgamento do Caso Freymuth,

por seu pioneirismo e por sua singularidade até hoje no direito francês, é referido por toda a doutrina que discorre sobre o tema da proteção da confiança legítima naquele país. Cf., por todos, CHAPUS, op. cit., t. 1, p. 107. Note-se que o Conselho de Estado francês rejeita a existência e a aplicação do princípio da proteção da confiança legítima no direito administrativo francês, acolhendo-o tão-somente quando se trata da aplicação do direito comunitário.70

Disponível em: <http://europa.eu.int>. Acesso em: 29 set. 2005.71

SCHWARZE, op. cit., p. 1145-1146.72

Ibid., p. 1137.

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Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 11, n. 16, jan./dez. 2007 39

[...]A já citada Exposição de Motivos lança uma luz sobre o problema ao referir-se à segurança do tráfico jurídico: se, confiando na subsistência durante um certo prazo de uma determinada ordenação urbanística, se fizeram inversões e gastos, incidirá, então, sim, o direito à indenização. O prazo, em virtude do disposto no art. 87.2, opera dando segurança ao mercado imobiliário e às atividades de execução de planejamento realizadas durante a vigência do Plano posto, de tal forma que, ainda que se modifique este, não trará perdas para o investidor.Quer-se dizer que a hipótese de fato do art. 87.2 não se integra unicamente pela alteração da ordenação urbanística: é preciso, ademais, que, confiando na subsistência desta, tenham sido desenvolvidas atividades e gastos que se tornem inúteis em virtude da alteração antecipada.[...]. (Sentença de 12 de maio de 1987, Câmara do Contencioso, Juiz Francisco Javier Delgado Barrio)

74.

No direito brasileiro, a solução de se outorgar uma indenização por prejuízos causados pela revogação ou pela mudança de um determinado regime normativo não é desconhecida

75. A doutrina já tem admitido a imposição da responsabilidade estatal

pela alteração de regime normativo, sem a preservação das expectativas legitimamente fundadas

76. Na jurisprudência, alguns poucos casos apóiam no dever de repartir os

encargos públicos, ou ainda no princípio da vedação do enriquecimento sem causa, a imposição de um dever de reparar ao Estado pela alteração de um dado regime normativo

77. Nessas hipóteses, a incorporação da lógica da proteção da confiança

contribuiria para aumentar a esfera de proteção dos administrados, além de tornar mais explícitos e controláveis os argumentos que conduziram a essas decisões.

Os requisitos para a aferição da existência de dano indenizável no caso em 73

GARCÍA DE ENTERRÍA; FERNÁNDEZ, op. cit., v. 1, p. 90-91.74

Disponível em <http://jur.poderjudicial.es/jurisprudencia>. Acesso em: 30 dez. 2005. 75

Embora de um modo geral prevaleça na jurisprudência o entendimento clássico segundo o qual a alteração de normas gerais e abstratas somente encontra limites no direito adquirido, na coisa julgada e no ato jurídico perfeito. Nesse sentido, confira-se o seguinte julgado do STJ: “Administrativo. Ato modificando o volume de produção anual de álcool etílico hidratado. 1. Portarias de efeitos gerais, com missão normativa, não objetivando situações pessoais, por sua natureza, são revogáveis. Atos de simples autorização, sujeitos à discricionariedade do Poder Público, em atenção à política do setor sucroalcooleiro podem ser alterados sem ofensa aos direitos subjetivos singulares 2. Segurança denegada. (MS 4.346/DF. 1ª. Seção. Relator: Min. Milton Luiz Pereira. j. em 11.06.1997, DJ, 15 set. 1997, p. 44268)”. Disponível em: <http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 30 dez. 2005.

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exame são os mesmos exigidos nas demais hipóteses de responsabilização do Estado por danos causados por atos normativos genéricos e abstratos: a anormalidade e a especialidade do dano

78. Nessas situações, o dano indenizável não é aquele que advém

da incidência genérica de um ato normativo sobre todos os cidadãos e que, portanto, deve ser suportado. Ao contrário, é indenizável apenas o sacrifício específico e extraordinário em relação aos incômodos impostos pela vida em sociedade.

4.4. A preservação da posição jurídica do administrado que confiou

Por fim, no domínio dos atos normativos da Administração Pública, a aplicação do princípio da proteção da confiança legítima pode determinar que a pessoa que confiou seja excluída do alcance das novas regras editadas, preservando-se a posição jurídica e as vantagens obtidas em face do regramento revogado

79. Essa, porém, deverá

ser uma conseqüência última e relativamente rara, por três razões distintas.

Em primeiro lugar, porque o princípio da proteção da confiança legítima não tutela a confiança depositada no ato como se esta fosse um fim em si mesma. Seu objetivo, ao contrário, é evitar que aquele que confiou acabe em uma posição jurídica pior do que a que teria se não tivesse confiado na permanência das normas editadas pelo Poder Público. Por isso, o que se tutela não é a expectativa de prosseguir desfrutando da vantagem atribuída pela norma revogada, mas apenas a expectativa de não sofrer uma piora na sua situação jurídica por ter confiado nas normas editadas

80.

Além disso, a existência de uma confiança legítima por parte do particular na manutenção de sua posição não poderá levar a uma vinculação ilimitada da Administração Pública. O Poder Público não haverá de ficar indefinidamente 76

A propósito, cf. SILVA, Almiro do Couto e. Responsabilidade do Estado e problemas jurídicos resultantes do planejamento. Revista de Direito Público, v. 63, p. 34, 1982, p. 34; NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira. O princípio da boa-fé e sua aplicação no direito administrativo brasileiro. Porto Alegre: Sergio Fabris, 2002, p. 292 e ss.77

Confira-se, nesse sentido, decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro: “[...] A extinção da pensão especial, pela Lei Estadual n.º 3189/99, extirpou o regime de pensão especial destinado à composição do fundo para suporte de pensões a dependentes dos segurados, fazendo com que passassem a integrar o patrimônio do estado as contribuições descontadas, sem qualquer contraprestação. Assim, faz jus o contribuinte à indenização consistente na de-volução dos descontos previdenciários efetuados, sob pena de enriquecimento sem causa do ente estatal. Sentença confirmada em reexame necessário.” (Processo n.º 2002.009.00665. 18ª Câmara Cível, Des. Jorge Luiz Habib, j. em 21.01.2003)78

Cf. CALMES, op. cit., p. 458. 79

A propósito, v. GARCÍA DE ENTERRÍA; FERNÁNDEZ, op. cit., p. 1145-1146.

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constrangido em função da confiança despertada por uma norma vigente em um dado momento no tempo. Em regra a ninguém é dado esperar que uma norma permaneça imutável para sempre. Daí por que, na grande maioria dos casos, a tutela da confiança deverá ter uma duração limitada no tempo

81.

Por último, com o afastamento da incidência das novas regras em relação àquele que confiou, estará sendo, a princípio, sacrificado por completo o interesse público que determinou a alteração normativa

82. Em decorrência disso, apenas excepcionalmente a

confiança do administrado deverá ser tutelada pela preservação da situação anterior à alteração normativa. Cumprirá adotar, na ponderação, a medida que imponha o menor sacrifício possível aos interesses potencialmente conflitantes. Na maioria dos casos, a confiança será suficientemente tutelada pela previsão de uma medida transitória ou pela outorga de uma indenização.

Note-se que, mesmo quando, por exceção, a tutela da confiança determine a preservação da posição jurídica do administrado, não se está cogitando aqui de que essa tutela possa ter como efeito a manutenção da própria regulamentação revogada. Em regra, a existência de uma confiança suscetível de tutela pelo ordenamento jurídico não levará à anulação das novas regras, mas apenas à exclusão daquele que confiou de sua esfera de incidência

83. A possibilidade de alteração objetiva e erga omnes da legislação

para o futuro não deve ficar prejudicada pela aplicação do princípio da proteção da confiança legítima na tutela de uma situação individual

84. No entanto, conforme narra

J. Schwarze, a jurisprudência do TJCE tem admitido excepcionalmente a declaração de nulidade dos dispositivos atentatórios da confiança legítima, caso seja demonstrado que “a expectativa de um setor econômico em geral foi desrespeitada”

85.

5. É possível invocar a proteção da confiança ante regulamentos ile-gais? 80

SCHWARZE, op. cit., p. 1145. Cf. ainda a decisão proferida pelo TJCE no caso CNTA (74/74), citado no Capítulo III, item 2.2., supra.81

Nesse sentido, CALMES, op. cit., p. 444.82

Ibid., p. 443: “De modo geral, a manutenção da base de confiança é incompatível com o interesse público uma vez que ela implica em uma vinculação excessivamente constritiva para o Poder Público.”83

Nesse sentido, v. THOMAS, op. cit., p. 60. Veja-se, ainda, a propósito, REALE, Miguel. Revogação e anulamento dos atos administrativos. Rio de Janeiro: Forense, 1968, p. 113: “(...) nada justifica seja declarado nulo um preceito regulamentar, só por ferir determinadas situações subjetivas, em relação às quais deveria ser apenas suspensa a sua incidência, sem prejuízo de sua vigência e eficácia para reger as demais relações a que se destina.”

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Uma última questão merece ser abordada: é possível aplicar o princípio da proteção da confiança legítima para tutelar a posição jurídica daquele que confiou na preservação de uma dada disciplina normativa que, posteriormente, veio a ser anulada por ilegalidade? Ou, dizendo de uma forma mais simples: cabe a tutela da confiança depositada em regulamentos ilegais?

De um modo geral, essa possibilidade deve ser rechaçada. Se o regulamento ilegal não deu origem à edição de um ato concretamente favorável ao particular, não há como protegê-lo contra a anulação desse regulamento. Não há direito à tutela da confiança em um ato ilegal genérico e abstrato, que não se materializou em um ato concreto favorável a um determinado particular. Nesse caso, a violação que seria perpetrada ao princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei seria de tal ordem grave que o princípio da proteção da confiança legítima deve em regra ceder. Veja-se, a propósito, a opinião de Javier García Luengo:

[...] a admissão da segurança jurídica como estabilidade ante um regulamento ilegal levaria a se demarcar um campo mais ou menos intenso no qual a Lei não poderia entrar, limitando o legislador e submetendo-o ao fruto dos poderes administrativos e, de quebra, tornaria vã a previsão constitucional de que a Administração está submetida à Lei e ao Direito. Tal possibilidade não cabe no nosso ordenamento nem tampouco no alemão, já que, na expressão de Ossenbühl, seria introduzir um cavalo de Tróia no Estado de Direito.

86

84 Cf. CALMES, op. cit., p. 446; GARCÍA LUENGO, op. cit., p. 228.

85 SCHWARZE, op. cit., p. 1147. Nesse sentido, segundo reportado por J. García Luengo, a

decisão do TJCE no caso 81/72, Comissão vs. Conselho, no qual foram anulados alguns artigos de um regulamento comunitário por terem sido considerados atentatórios à “proteção da con-fiança que mereciam os funcionários comunitários afetados em suas remunerações pela nova normativa”. El principio de protección de la confianza en el derecho administrativo, p. 212, nota 27. Essa possibilidade, contudo, é cogitada por CASTILLO BLANCO, op. cit., 2002, p. 34, nota 102. De se destacar, porém, que a aplicação do princípio da proteção da confiança legítima para invalidar-se, em abstrato, uma norma jurídica não é uma questão isenta de dificuldades. Em sentido contrário a essa hipótese, poderia argumentar-se que a verificação da legitimidade da confiança depende do exame das circunstâncias do caso concreto, não sendo possível a sua averiguação em abstrato (como, de fato, verificar a existência de um investimento de confiança em abstrato?). Por outro lado, é certo que em vários países europeus o princípio da proteção da confiança legítima tem servido de parâmetro ao controle de constitucionalidade das leis em abstrato. Essa questão, no entanto, por envolver o tema do controle da constitucionalidade das leis em abstrato — já que o controle judicial dos atos regulamentares sempre faz em concreto —, desborda dos limites do presente estudo. Seu aprofundamento fica, portanto, à espera de uma ocasião mais propícia e, certamente, de melhor autor.

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A regra geral, porém, merece alguns temperamentos.

Em primeiro lugar, mostra-se importante distinguir, nos casos concretos, se a ilegalidade era originária ou se sobreveio a posteriori, em virtude de uma alteração das circunstâncias de fato ou de direito que fundaram a edição do regulamento. Nas hipóteses de ilegalidade superveniente, parece perfeitamente razoável a aplicação do princípio da proteção da confiança legítima. Trata-se, é fato, de uma proteção excepcional, mas que leva em conta que, em um determinado momento, o cidadão confiou porque tinha razões fortes para confiar: afinal o ato era válido e regular. Sem embargo do que deverá, em qualquer caso, ser aferida a legitimidade da confiança, pelos critérios já antes destacados.

Vale registrar, ainda, a orientação vigente acerca do tema no direito administrativo francês. Segundo a jurisprudência do Conselho Estado, um regulamento administrativo ilegal que tenha se tornado definitivo — i.e., que tenha se tornado insuscetível de impugnação judicial — não pode ser revisto de ofício pela Administração com efeitos ex tunc, mas tão-somente com efeitos ex nunc. Não obstante o Conselho de Estado reconheça que a Administração tem o dever de rever os regulamentos ilegais

87, limita os

efeitos dessa revisão para o futuro toda vez que se trate de um regulamento definitivo e que tenha sido efetivamente aplicado

88.

Ora, parece inequívoca a preocupação da jurisprudência francesa com a necessidade de tutela da segurança jurídica mesmo diante de regulamentos ilegais. Embora sem fazer referência ao princípio da proteção da confiança legítima, é indubitável que a jurisprudência mencionada tem o efeito de tutelar abstratamente a confiança depositada em atos normativos que — até a pronúncia da ilegalidade — estavam em vigor e produziam efeitos.

A aplicação desse entendimento no direito brasileiro, todavia, deve ser considerada com parcimônia. Porém, não deve ser excluída a priori, tendo em vista a analogia passível de se estabelecer com o disposto no art. 27 da Lei Federal n.º

86 El principio de protección de la confianza en el derecho administrativo, p. 229. Esse também

parece ser o pensamento de Weida Zancaner. A autora admite expressamente que a Administra-ção sempre pode invalidar os seus atos abstratos relativamente insanáveis. Da Convalidação e da invalidação dos atos administrativos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, p. 93. Em sentido contrário, v. CALMES, op. cit, p. 441: “Um regulamento contrário à lei pode igualmente obter um caráter obrigatório pelo princípio da proteção da confiança legítima”. A autora indica como fontes dessa afirmação a doutrina de A. Randelzhoffer e de B. Weber-Dürler.87

V. LONG, op. cit., p. 870.88

YANNAKOPOULOS, Constantin. La notion de droits acquis en droit administratif français. Paris: LGDJ, 1997, p. 431-434.

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9.868/99. Com efeito, se uma lei inconstitucional, por razões de segurança jurídica, pode eventualmente ser suprimida com efeitos para o futuro, preservando-se seus efeitos pretéritos, tanto mais o poderá um regulamento ilegal. Para tanto, não poderão ser menosprezados nem o fator temporal, nem o alcance do ato normativo. Tratando-se de ato normativo vigente já por um longo período de tempo, e cujos efeitos tenham atingido um grande número de administrados, será muito difícil compatibilizar uma anulação retroativa com o princípio da segurança jurídica. Nesse caso, a supressão com efeitos ex nunc possivelmente atenderá melhor aos ditames da segurança jurídica.

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Um novo direito administrativo para o século XXI

Gustavo BinenbojmProfessor Adjunto de Direito Administrativo da Faculdade de

Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.Procurador do Estado, Advogado e Parecerista no Rio de

Janeiro

I. Nota prévia: o escopo da presente resenha; II. A crise teórica do Direito Administrativo e seus reflexos no Brasil; II.1. A discussão sobre a supremacia do interesse público; II.2. A discussão sobre a legalidade administrativa; II.3. A discussão sobre o controle judicial da discricionariedade administrativa; II.4. A discussão sobre as agências reguladoras independentes; III. A constitucionalização do Direito Administrativo brasileiro: avanços e retrocessos; IV. Novas formas de exercício do poder de polícia; V. Proteção da Confiança Legítima; VI. Responsabilidade civil extracontratual do Estado; VII. Teto remuneratório dos servidores públicos e direitos adquiridos.

I. Nota prévia: o escopo da presente resenha

O objetivo da presente resenha é o de noticiar algumas das principais manifestações – doutrinárias, legislativas e jurisprudenciais – do Direito Administrativo brasileiro ao longo dos primeiros anos do século XXI.

Cumpre, todavia, assentar as seguintes advertências sobre o escopo do trabalho: (I) não tem ele pretensão exauriente, tanto em extensão como em profundidade, mas apenas a de delinear um quadro básico de informações representativo do estado da arte da disciplina; (II) não tem ele caráter necessariamente original, eis que voltado a noticiar algo já produzido, em produção ou em vias de se produzir; (III) não está ele circunscrito, do ponto de vista temporal, aos primeiros anos do século XXI, refletindo antes um iter evolutivo de acontecimentos que se iniciaram ou tiveram seqüência nos

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anos em questão; (IV) por fim, a seleção de temas, autores, julgados e atos normativos reflete a guinada de visão do compilador, necessariamente situada em seu tempo e limitada por suas circunstâncias.

II. A crise teórica do Direito Administrativo e seus reflexos no Brasil

Teve seguimento, nos primeiros anos do século XXI, o movimento doutrinário pela ampla revisão dos paradigmas teóricos do Direito Administrativo.

1 Em

verdade, vive-se no Brasil, como alhures, um momento de inflexão na teoria jurídica administrativista no qual as prescrições dogmáticas basilares (os ditos paradigmas) do passado já não resistem ao confronto com o novo. Assiste-se, em tais momentos, a um abalo estrutural no discurso jurídico, em que os velhos dogmas são como que devolvidos ao debate zetético, caracterizando uma crise de paradigmas.

Em exposição inaugural realizada no I Congresso Internacional de Direito Administrativo promovido pela Procuradoria Geral do Município do Rio de Janeiro, Eduardo García de Enterría reconheceu a emergência de novos paradigmas para o Direito Administrativo contemporâneo.

2 Com efeito, tantas e tão profundas são as

inconsistências lógico-conceituais do antigo modelo (resultantes de uma tradição autoritária, burocrática e ineficiente), somadas a fenômenos como os da globalização, liberalização e constitucionalização, que não se pode falar apenas em um conjunto de mutações tópicas e pontuais, mas numa verdadeira revisão das premissas teóricas estruturantes da disciplina.

Em suma: vivemos um momento em que as considerações dogmáticas sobre o que o Direito Administrativo é ameaçam ruir diante daquilo que as discussões zetéticas afirmam que ele deve ser. Neste sentido, Jacqueline Morand-Deviller anota, de forma eloqüente, que embora o Direito Administrativo já tenha atravessado outras crises, a ameaça atual é mais grave, porquanto o que agora se encontra em xeque é a sua própria autonomia e os “poderosos pilares sobre os quais se assentava a catedral: o poder público (as prerrogativas do poder estatal) e o serviço público.”

3

1 V., por todos, BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos funda-

mentais, democracia e constitucionalização. São Paulo: Renovar, 2006.2 V. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Novos horizontes para o direito administrativo:

pelo controle das políticas públicas: ecos de um Congresso: a próxima missão. Revista de Direito do Estado, n. 4, p. 403, out./dez. 2006.

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Na França, como de resto na maior parte do Mundo ocidental, as transformações de grande magnitude por que passa o Estado exigem dos publicistas a renovação do instrumental teórico que serve de pauta à atuação da Administração Pública. De fato, como registrado por Marçal Justen Filho, “o instrumental teórico do Direito Administrativo se reporta ao século XIX. Assim se passa com os conceitos de Estado de Direito, princípio da legalidade, discricionariedade administrativa. A fundamentação filosófica do direito administrativo se relaciona com a disputa entre Duguit e Hauriou, ocorrida nos primeiros decênios do século XX. A organização do aparato administrativo se modela nas concepções napoleônicas, que traduzem uma rígida hierarquia de feição militar. [...] O conteúdo e as interpretações do Direito Administrativo permanecem vinculados e referidos a uma realidade sociopolítica que há muito deixou de existir. O instrumental do Direito Administrativo é, na sua essência, o mesmo de um século atrás.”

4

As transformações por que passou o Estado moderno, desde a ascensão do Estado providência até o seu colapso, verificado nas últimas décadas do século XX, somadas à emergência do Estado democrático de direito, agravaram o descompasso entre as velhas categorias e as reais necessidades e expectativas das sociedades contemporâneas em relação à Administração Pública.

Em minha tese de doutoramento, defendida na Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro,

5 procurei identificar quatro paradigmas

clássicos do Direito Administrativo que fizeram carreira no Brasil e que se encontram em xeque na atualidade. São eles:

I) o dito princípio da supremacia do interesse público sobre os interesses privados, que serviria de fundamento e fator de legitimação para todo o conjunto de privilégios de natureza material e processual que constituem o cerne do regime jurídico-administrativo.

6

II) a legalidade administrativa como vinculação positiva à lei, traduzida numa suposta submissão total do agir administrativo à vontade previamente manifestada 3 MORAND-DEVILLER, Jacqueline. Poder público, serviço público: crise e conciliação.

Revista de Direito do Estado, n. 4, p. 388, out./dez. 2006.4 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo, 2005, p. 13.

5 BINENBOJM, op. cit.

6 Neste sentido, v. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O conteúdo do regime jurídico-admi-

nistrativo e seu valor metodológico. Revista de Direito Público, v. 2, p. 45-47, 1967.

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pelo Poder Legislativo. Tal paradigma costuma ser sintetizado na negação formal de qualquer vontade autônoma aos órgãos administrativos, que só estariam autorizados a agir de acordo com o que a lei rigidamente prescrevesse ou facultasse.

7

III) a intangibilidade do mérito administrativo, consistente na incontrolabilidade das escolhas discricionárias da Administração Pública, seja pelos órgãos do contencioso administrativo, seja pelo Poder Judiciário (em países, como o Brasil, que adotam o sistema de jurisdição una), seja pelos cidadãos, através de mecanismos de participação direta na gestão da máquina administrativa.

8

IV) a idéia de um Poder Executivo unitário, fundada em relações de subordinação hierárquica (formal ou política) entre a burocracia e os órgãos de cúpula do governo (como os Ministérios e a Presidência da República). Na tradição do constitucionalismo brasileiro, a fórmula da Administração unitária é sintetizada, como no atual art. 84, inciso II, da Constituição de 1988, na competência do Chefe do Executivo para exercer a direção superior da Administração, com o auxílio dos Ministros de Estado.

Para cada um dos velhos paradigmas em crise foram propostos paradigmas novos, compatíveis com os marcos constitucionais do Estado democrático de direito. São eles:

I) a Constituição, e não mais a lei, passa a situar-se no cerne da vinculação administrativa à juridicidade;

II) a definição do que é o interesse público, e de sua propalada supremacia sobre os interesses particulares, deixa de estar ao inteiro arbítrio do administrador, passando a depender de juízos de ponderação proporcional entre os direitos fundamentais e outros valores e interesses metaindividuais constitucionalmente consagrados;

7 Tal formulação clássica é devida, entre nós, a Hely Lopes Meirelles. Direito administrativo

brasileiro, 1995, p. 82-83: “Na Administração não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza”. V. também, sobre o tema, BARROSO, Luís Roberto. Disposições Constitucionais Transitórias: conceito e classificação. Delegações legislativas: va-lidade e extensão. Poder regulamentar: conteúdo e limites. In: ______. O direito constitucional e a efetividade de suas normas, 1993, p. 387.8 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade administrativa na Constituição de

1988, 1991, p. 93 e ss.

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III) a discricionariedade deixa de ser um espaço de livre escolha do administrador para se convolar em um resíduo de legitimidade,

9 a ser preenchido por procedimentos

técnicos e jurídicos prescritos pela Constituição e pela lei com vistas à otimização do grau de legitimidade da decisão administrativa. Com o incremento da incidência direta dos princípios constitucionais sobre a atividade administrativa e a entrada no Brasil da teoria dos conceitos jurídicos indeterminados, abandona-se a tradicional dicotomia entre ato vinculado e ato discricionário, passando-se a um sistema de graus de vinculação à juridicidade;

IV) a noção de um Poder Executivo unitário cede espaço a uma miríade de autoridades administrativas independentes, denominadas entre nós, à moda anglo-saxônica, agências reguladoras independentes, que não se situam na linha hierárquica direta do Presidente da República e dos seus Ministros. A pedra de toque dessa independência (ou autonomia reforçada) das agências reguladoras em relação ao governo é a independência política dos seus dirigentes, nomeados por indicação do Chefe do Poder Executivo após aprovação do Poder Legislativo, e investidos em seus cargos a termo fixo, com estabilidade durante o mandato. Isto acarreta a impossibilidade de sua exoneração ad nutum pelo Presidente – tanto aquele responsável pela nomeação, como seu eventual sucessor, eleito pelo povo. À autonomia reforçada das agências, todavia, corresponderá um conjunto de controles jurídicos, políticos e sociais, de modo a reconduzi-las aos marcos constitucionais do Estado democrático de direito.

Veja-se, a seguir, uma síntese do estágio atual do debate sobre cada um dos paradigmas em questão.

II.1. A discussão sobre a supremacia do interesse público

A doutrina mais atualizada encontra-se dividida entre aqueles que defendem a desconstrução

10 do princípio da supremacia do interesse público e aqueles outros que

advogam apenas a necessidade de sua reconstrução.11

Em ambos os casos, todavia, os autores concordam em que, nos Estados democráticos e constitucionais, não há mais espaço para a defesa da prevalência a priori e descontextualizada dos interesses

9 A expressão é da lavra de Diogo de Figueiredo Moreira Neto. Legitimidade e discricionarie-

dade: novas reflexões sobre os limites e controle da discricionariedade, 2002, p. 33.

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coletivos sobre os direitos individuais.

Embora decantado pela literatura brasileira como fundamento e princípio normativo do Direito Administrativo, o princípio da supremacia do interesse público encontra-se sob fogo cruzado dos doutrinadores – tanto os que pregam a sua reconstrução, como os que não vêm alternativa senão a sua desconstrução. Para qualquer uma das duas correntes, sua inconsistência teórica e sua incompatibilidade visceral com a sistemática constitucional dos direitos fundamentais são patentes. Com efeito, uma norma que preconiza a supremacia a priori de um valor, princípio ou direito sobre outros não pode ser qualificado como princípio. Ao contrário, um princípio, por definição, é norma de textura aberta, cujo fim ou estado de coisas para o qual aponta deve ser sempre contextualizado e ponderado com outros princípios igualmente previstos no ordenamento jurídico. A prevalência apriorísitica e descontextualizada de um princípio constitui uma contradição em termos.

Por outra via, a norma de supremacia pressupõe uma necessária dissociação entre o interesse público e os interesses privados. Ocorre que, muitas vezes, a promoção do interesse público – entendido como conjunto de metas gerais da coletividade juridicamente consagradas – consiste, justamente, na preservação de um direito individual, na maior medida possível. A imbricação conceitual entre interesse público, interesses coletivos e interesses individuais não permite falar em uma regra de prevalência absoluta do público sobre o privado ou do coletivo sobre o individual.

Na verdade, o conceito de interesse público só ganha concretude a partir da disposição constitucional dos direitos fundamentais em um sistema que contempla 10

V., dentre outros, ÁVILA, Humberto. Repensando o “princípio da supremacia do interesse público sobre o particular”; SARMENTO, Daniel. Interesses públicos versus interesses privados na perspectiva da teoria e da filosofia constitucional; SCHIER, Paulo Ricardo Schier. Ensaio sobre a supremacia do interesse público sobre o privado e o regime jurídico dos direitos funda-mentais; ARAGÃO, Alexandre. A “supremacia do interesse público” no advento do estado de direito e na hermenêutica do direito público contemporâneo. In: SARMENTO, Daniel (Org.). Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público, 2006. Também no sentido da inexistência do princípio, JUSTEN FILHO, op. cit., p. 45-46.11

V. BARROSO, Luís Roberto. O Estado contemporâneo, os direitos fundamentais e a redefi-nição da supremacia do interesse Público. In: SARMENTO, Daniel (Org.). Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público, 2006; BORGES, Alice Gonzalez. Supremacia do interesse público: desconstrução ou reconstrução? Revista de Direito do Estado, n. 3, p. 137-153, jul./set. 2006.

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e pressupõe restrições ao seu exercício em prol de outros direitos, bem como de metas e aspirações coletivas de caráter metaindividual, igualmente estampadas na Constituição. Ao Estado legislador e ao Estado administrador, incumbe atuar como intérpretes e concretizadores de tal sistema, realizando as ponderações entre interesses conflitantes, guiados pelo postulado da proporcionalidade.

Assim, o melhor interesse público só pode ser obtido a partir de um procedimento racional que envolve a disciplina constitucional de interesses individuais e coletivos específicos, bem como um juízo de ponderação que permita a realização de todos eles na maior extensão possível. O instrumento desse raciocínio ponderativo é o postulado da proporcionalidade.

Veja-se que não se nega, de forma alguma, o conceito de interesse público, mas tão-somente a existência de um princípio da supremacia do interesse público. Explica-se: se o interesse público, por ser um conceito jurídico indeterminado, só é aferível após juízos de ponderação entre direitos individuais e metas ou interesses coletivos, feitos à luz de circunstâncias concretas, qual o sentido em falar-se num princípio jurídico que apenas afirme que, no final, ao cabo do processo ponderativo, se chegará a uma solução (isto é, ao interesse público concreto) que sempre prevalecerá? Em outras palavras: qualquer que seja o conteúdo desse “interesse público” obtido em concreto, ele sempre prevalecerá. Ora, isso não é um princípio jurídico. Um princípio que se presta a afirmar que o que há de prevalecer sempre prevalecerá não é um princípio, mas uma tautologia. Daí propor-se que é o postulado da proporcionalidade que, na verdade, explica como se define o que é o interesse público, em cada caso. O problema teórico verdadeiro não é a prevalência, mas o conteúdo do que deve prevalecer.

Hipótese ilustrativa da proposta acima alvitrada foi apreciada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADIN n° 1.753-2/DF, na qual se discutia a constitucionalidade da ampliação do prazo para a propositura de ações rescisórias pelo Poder Público, de dois para cinco anos.

O relator do feito, Ministro Sepúlveda Pertence, após anotar que a jurisprudência tem transigido com alguns favores legais da tradição do nosso processo civil, como o duplo grau obrigatório e a dilatação dos prazos de resposta e recurso (RE 181130, Min. Celso de Mello, DJ 12.05.1995; RE 196.430, Min. Sepúlveda Pertence, DJ 21.11.1997), deixou consignado que tais discriminações só são toleráveis na medida em que não forem arbitrárias e servirem, v.g., para compensar deficiências da defesa em juízo das entidades estatais. Assim, por exemplo, considerações ligadas à morosidade inerente

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a um Estado agigantado para que os advogados públicos obtenham as informações e provas de que necessitam para a elaboração de sua defesa ou mesmo a insuficiência crônica de procuradores nos quadros do Poder Público podem ser levadas em conta na formulação do juízo de constitucionalidade das prerrogativas processuais.

Na seqüência, o Ministro Pertence afirma textualmente que as desequiparações que desafiarem a medida da razoabilidade ou da proporcionalidade caracterizam privilégios inconstitucionais. Foi citado, a título ilustrativo, o caso do art. 6° da MP 314/93 que, no curso da implantação da Advocacia Geral da União, suspendeu todos os prazos da União. No julgamento, o Supremo Tribunal Federal restringiu o alcance da norma, a fim de excluir a sua incidência nos processos em que a defesa da União coubesse à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, instituição de há muito organizada, em relação à qual, portanto, não corriam os motivos conjunturais que emprestavam razoabilidade ao dispositivo nas causas em que passaria a atuar a nascente Advocacia Geral da União (QO no RE 148754, Min. Carlos Velloso, RTJ 150/888, 891). Em outras palavras, a norma em questão não passou no teste da adequação, de vez que o favor legal não se mostrava apto a servir a qualquer fim público juridicamente relevante.

No julgamento da dilatação do prazo de dois para cinco anos para a propositura de ações rescisórias pelo Poder Público, a posição da Corte também foi guiada pelo dever de proporcionalidade. Numa primeira etapa, o Ministro Pertence buscou demonstrar o que seria, na linha do raciocínio aqui proposto, a inadequação da medida para viabilizar a defesa do Poder Público em relação a sentenças transitadas em julgado passíveis de rescisão. O argumento utilizado foi o da suficiência do prazo existente – dois anos – para permitir o conhecimento do vício e o ajuizamento da competente ação rescisória.

Em uma segunda etapa do aresto, o relator buscou caracterizar o que aqui seria identificado como desnecessidade ou inexigibilidade da medida. Com efeito, a medida compressiva da isonomia ia além do necessário na medida em que, fosse a ampliação do prazo realmente conveniente, deveria a mesma beneficiar ambas as partes, e não apenas o Poder Público. A restrição à isonomia processual não constituía meio necessário para melhor viabilizar a defesa do Estado em juízo.

Além disso, levou em conta a Corte, na formação de sua convicção, o fato de a medida ir somar-se a vários outros favores legais de natureza processual já conferidos à Fazenda Pública. Como averbou o Ministro Pertence, tais privilégios já produzem

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conseqüência suficientemente gravosa aos particulares, retardando longamente a satisfação de direito seu reconhecido em juízo. Destarte, a instituição de mais um privilégio – qual seja, o prazo de cinco anos para a propositura da ação rescisória pela Fazenda – geraria situação de desequilíbrio insuportável em desfavor dos particulares. Em outras palavras, os eventuais benefícios trazidos pela ampliação do prazo da rescisória para o Poder Público não justificariam tamanho grau de sacrifício imposto aos particulares, em uma resposta negativa ao teste de proporcionalidade em sentido estrito.

Interessante notar que o acórdão, ao dar pela inconstitucionalidade do dispositivo, faz questão de mencionar que a decisão era fundada nos princípios da isonomia, da razoabilidade, da proporcionalidade e da supremacia do interesse público. O interesse público, na espécie, recomendava a preservação da isonomia formal, em resguardo dos interesses dos particulares, e não a chancela automática e apriorística da prerrogativa do Poder Público. Ademais, o juízo cognitivo pelo qual esse interesse público foi alcançado percorreu o iter do postulado da proporcionalidade, que buscou realizar uma ponderação entre os interesses em jogo, e não uma mera identificação do interesse público com o interesse estatal. Resta comprovado, assim, que não há prevalência a priori do coletivo sobre o individual, nem do estatal sobre o particular.

II.2. A discussão sobre a legalidade administrativa

A crise da lei formal é um fenômeno universal e cujos efeitos se projetam sobre os diversos segmentos do ordenamento jurídico. Dentre as possíveis causas de tal crise, é possível listar as seguintes: (i) a inflação legislativa; (ii) o uso histórico da lei como fundamento para a injustiça e a barbárie; (iii) o controle crescente e progressivo do processo legislativo pelo Poder Executivo; (iv) o advento do constitucionalismo e o fenômeno da constitucionalização do direito; (v) a multiplicação das novas formas de juridicidade, como regulamentos administrativos gerais e setoriais e outras fontes normativas de origem privada (soft law). Esse conjunto amplo de fatores contribuiu para dessacralizar o mito rousseauniano da lei como expressão da vontade geral, fundamento único do poder legítimo e veículo principal de expressão das normas disciplinadoras das atividades do Poder Público e dos particulares.

A crise da lei administrativa é uma manifestação setorial e potencializada da crise da lei formal. Em nenhum outro segmento jurídico, como no Direito Administrativo, o papel da lei formal sofreu tantas transformações. Na plataforma

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liberal, a legalidade administrativa seria uma limitação externa ao exercício do poder autônomo da Administração Pública (vinculação negativa à lei). Já na plataforma democrática, a legalidade administrativa seria não apenas um limite externo, mas o fundamento necessário de toda a atuação da Administração (vinculação positiva à lei). Assim se delineou a distinção clássica entre a legalidade tal como aplicada aos particulares (vinculação negativa) e ao Poder Público (vinculação positiva): enquanto aos particulares é dado fazer tudo que a lei não proíbe, ao Poder Público só é permitido agir nos termos do que a lei prescreve.

Com a constitucionalização do Direito Administrativo, a lei deixa de ser o fundamento único e último da atividade administrativa. A Constituição – entendida como sistema de regras e princípios – passa a constituir o cerne da vinculação administrativa à juridicidade. A legalidade, embora ainda muito importante, passa a constituir apenas um princípio do sistema de princípios e regras constitucionais. Passa-se, assim, a falar em um princípio da juricidade administrativa para designar a conformidade da atuação da Administração Pública ao direito como um todo, e não mais apenas à lei.

Talvez o mais importante aspecto dessa constitucionalização do Direito Administrativo seja a ligação direta da Administração aos princípios constitucionais, vistos estes como núcleos de condensação de valores.

12 A nova principiologia

constitucional, que tem exercido influência decisiva sobre outros ramos do direito, passa também a ocupar posição central na constituição de um Direito Administrativo democrático e comprometido com a realização dos direitos do homem. Como assinala Santamaria Pastor, as bases profundas do Direito Administrativo são de corte inequivocamente autoritário; até que fosse atraído para a zona de irradiação do direito constitucional, manteve-se ele alheio aos valores democráticos e humanistas que permeiam o direito público contemporâneo.

13

A idéia de juridicidade administrativa, elaborada a partir da interpretação dos princípios e regras constitucionais, passa, destarte, a englobar o campo da legalidade administrativa, como um de seus princípios internos, mas não mais altaneiro e soberano como outrora. Isso significa que a atividade administrativa continua a realizar-se, via de regra, (i) segundo a lei, quando esta for constitucional (atividade secundum legem), (ii) mas pode encontrar fundamento direto na Constituição, independente ou para 12

CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituição, 1991, p. 49.13

SANTAMARIA PASTOR. Princípios de derecho administrativo, 2000, p. 88.

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além da lei (atividade praeter legem), ou, eventualmente, (iii) legitimar-se perante o direito, ainda que contra a lei, porém com fulcro numa ponderação da legalidade com outros princípios constitucionais (atividade contra legem, mas com fundamento numa otimizada aplicação da Constituição).

Toda a sistematização dos poderes e deveres da Administração Pública passa a ser traçada a partir dos lineamentos constitucionais pertinentes, com especial ênfase no sistema de direitos fundamentais e nas normas estruturantes do regime democrático, à vista de sua posição axiológica central e fundante no contexto do Estado democrático de direito. A filtragem constitucional do Direito Administrativo ocorrerá, assim, pela superação do dogma da onipotência da lei administrativa e sua substituição por referências diretas a princípios expressa ou implicitamente consagrados no ordenamento constitucional.

14

O princípio da juridicidade se expressa por normas de diversos graus hierárquicos. Em primeiro lugar, a juridicidade se exprime pelo conjunto de regras e princípios constitucionais, imediatamente habilitadores de diversas competências administrativas, especialmente no que toca à proteção e promoção dos direitos fundamentais. Quando fundada diretamente na Constituição, a atuação administrativa prescinde da interpositio legislatoris, seja para a edição de atos normativos (regulamentos autônomos), seja para a prática de atos concretos, no âmbito de suas competências.

Em segundo lugar, a juridicidade pode exprimir-se por intermédio de leis formais ou atos com força de lei. Em qualquer caso, a lei desfruta de uma primazia ou preferência na regulamentação das diversas matérias administrativas, em relação aos atos administrativos normativos (regulamentos). Nas hipóteses de reservas de lei, a Constituição exige o tratamento (total ou parcial) da matéria, por meio de lei (em sentido formal ou material). Para matérias sob reserva de lei formal, a Constituição exige que a disciplina seja instituída por ato aprovado segundo o procedimento legislativo formal. Para matérias sob reserva de lei material, basta que o ato tenha força de lei (v.g., uma medida provisória). Na hipótese de reserva legal absoluta, 14

Na Alemanha, por exemplo, o comedimento da Lei Fundamental de Bonn, de 1949, no trato de questões relativas à Administração Pública não impediu que a jurisprudência e a doutrina reconhecessem a existência implícita, no bojo daquela Carta, de princípios reitores do direito administrativo, tais como o princípio da proporcionalidade, o princípio da ponderação de inte-resses e o princípio da proteção da confiança. Neste sentido, v. MAURER, Hartmut. Elementos de direito administrativo alemão. Tradução Luís Afonso Heck, 2000, p. 65-84; LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito, 1997, p. 602-606.

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toda a disciplina da matéria deve estar contida no ato legislativo (em sentido formal ou material), enquanto que na reserva legal relativa exige-se apenas que as diretrizes essenciais estejam nele previstas. Por fim, tem-se reserva legal simples quando a Constituição se limita a remeter o tratamento da matéria ao ato legislativo, enquanto há reserva legal qualificada nas hipóteses em que o constituinte entende por bem estabelecer antecipadamente os meios, fins ou graus da futura disciplina legal.

Em terceiro lugar, a juridicidade pode expressar-se por intermédio de atos administrativos normativos (regulamentos). Os regulamentos classificam-se em gerais e setoriais, conforme se refiram a matérias atinentes ao conjunto amplo de toda a sociedade ou a setores econômicos e sociais específicos, respectivamente. Aqui, o espectro de incidência é o critério determinante da classificação.

Por outro prisma, os regulamentos subdividem-se em autônomos ou de execução. Dizem-se autônomos os regulamentos que encontram fundamento direto na Constituição, seja por uma competência normativa expressamente assinalada no texto constitucional (como aquela prevista no art. 84, VI, a, introduzido pela Emenda Constitucional nº 32/2001 e no art. 237 da Carta de 1988), seja como uma decorrência implícita de competências administrativas que careçam de normatização prévia ao seu exercício. Duas ressalvas se fazem necessárias, todavia, em relação aos regulamentos autônomos: (i) em ambas as hipóteses assegura-se a primazia da lei supervenientemente editada sobre os regulamentos autônomos; (ii) não se admite a sua edição em espaços sujeitos à reserva legal.

No ano de 2006, o Supremo Tribunal Federal teve a oportunidade de proclamar a constitucionalidade de um regulamento autônomo – a Resolução nº 7/2005, editada pelo Conselho Nacional de Justiça.

15 Naquela hipótese, agiu o CNJ no desempenho

de suas competências administrativas previstas no art. 103-B, § 4º, da Constituição, na forma introduzida pela Emenda Constitucional nº 45/2004. Trata-se da proibição da nomeação de parentes para cargos em comissão, no âmbito do Poder Judiciário, sem que houvesse previsão legal expressa em tal sentido. Partindo do fundamento diretamente constitucional da atuação do CNJ na densificação dos princípios constitucionais da Administração Pública, afirmou o STF no mencionado aresto:

A Resolução nº 07/05 se dota, ainda, de caráter normativo primário, dado que arranca diretamente do § 4º do art. 103-B da Carta-cidadã e tem

15 ADC-MC 12/DF. Relator: Min. Carlos Britto, j. em 16.02.2006.

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como finalidade debulhar os próprios conteúdos lógicos dos princípios constitucionais de centrada regência de toda a atividade administrativa do Estado, especialmente o da impessoalidade, o da eficiência, o da igualdade e o da moralidade. O ato normativo que se faz de objeto desta ação declaratória densifica apropriadamente os quatro citados princípios do art. 37 da Constituição Federal, razão por que não há antinomia de conteúdos na comparação dos comandos que se veiculam pelos dois modelos normativos: o constitucional e o infraconstitucional. Logo, o Conselho Nacional de Justiça fez adequado uso da competência que lhe conferiu a Carta de Outubro, após a Emenda 45/04.

De outro giro, os regulamentos de execução são aqueles editados à vista de uma lei previamente promulgada, com o intuito de complementar-lhe o sentido e assegurar a sua implementação pelas autoridades competentes. Não se trata, é bem que se esclareça, de atos normativos desprovidos de qualquer caráter de inovação – como costuma afirmar a doutrina – , mas apenas de regulamentos que têm como parâmetro imediato de validade a lei, e não a Constituição.

Há, ainda, um conjunto de situações de juridicidade contra legem. Situações que tais podem decorrer, por exemplo, de condutas administrativas diante de uma lei inconstitucional (o repúdio à lei inconstitucional pela Administração). Outros casos envolvem a validação de efeitos concretos de atos administrativos ilegais que, por efeito de ponderações entre o princípio da legalidade e outros princípios constitucionais (como os princípios da proteção da confiança legítima, da moralidade e da eficiência), merecem ser convalidados ou invalidados com efeitos meramente prospectivos (ex nunc). Tais soluções – alternativas à invalidação com efeitos retroativos (ex tunc) – se justificam como aquelas que, nas circunstâncias em que aplicáveis, representam o cumprimento otimizado do sistema de princípios da Constituição.

II.3. A discussão sobre o controle judicial da discricionariedade admi-nistrativa

As transformações recentes sofridas pelo Direito Administrativo tornam imperiosa uma revisão da noção de discricionariedade administrativa. Com efeito, pretende-se caracterizar a discricionariedade, essencialmente, como um espaço carecedor de legitimação. Isto é, um campo não de escolhas puramente subjetivas, mas de fundamentação dos atos e políticas públicas adotados, dentro dos parâmetros jurídicos estabelecidos pela Constituição e pela lei.

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A emergência da noção de juridicidade administrativa, com a vinculação direta da Administração à Constituição, não mais permite falar, tecnicamente, numa autêntica dicotomia entre atos vinculados e atos discricionários, mas, isto sim, em diferentes graus de vinculação dos atos administrativos à juridicidade.

16 A discricionariedade

não é, destarte, nem uma liberdade decisória externa ao direito, nem um campo imune ao controle jurisdicional. Ao maior ou menor grau de vinculação do administrador à juridicidade corresponderá, via de regra, maior ou menor grau de controlabilidade judicial dos seus atos. Não obstante, a definição da densidade do controle não segue uma lógica puramente normativa (que se restrinja à análise dos enunciados normativos incidentes ao caso), mas deve atentar também para os procedimentos adotados pela Administração e para as competências e responsabilidades dos órgãos decisórios, compondo a pauta para um critério que se poderia intitular de jurídico-funcionalmente adequado.

Como explica Andreas Krell, de forma magistralmente clara, o enfoque jurídico-funcional (funktionell-rechtliche Betrachtungsweise) parte da premissa de que o princípio da separação de poderes deve ser entendido, hodiernamente, como uma divisão de funções especializadas, o que enfatiza a necessidade de controle, fiscalização e coordenação recíprocos entre os diferentes órgãos do Estado democrático de direito. Assim, as diversas figuras que caracterizam os diferentes graus de vinculação à juridicidade (vinculação plena, conceito jurídico indeterminado, margem de apreciação, opções discricionárias, redução da discricionariedade a zero) nada mais são do que os códigos dogmáticos para uma delimitação jurídico-funcional dos âmbitos próprios da Administração e dos órgãos jurisdicionais.

17

Portanto, ao invés de uma predefinição estática a respeito da controlabilidade judicial dos atos administrativos (como em categorias binárias, do tipo ato vinculado versus ato discricionário), impõe-se o estabelecimento de critérios de uma dinâmica distributiva “funcionalmente adequada” de tarefas e responsabilidades entre Administração e Judiciário, que leve em conta não apenas a programação normativa do ato a ser praticado (estrutura dos enunciados normativos constitucionais, legais ou regulamentares incidentes ao caso), como também a “específica idoneidade (de cada 16

Neste sentido, VEDEL, Georges. Droit administratif, p. 318-319: “L’administration ne se trouve jamais dans une situation de pur pouvoir discrétionnaire ou de pure compétence liée. Il n’y a jamais pure compétence liée (...) Mais surtout, il n’y a jamais pur pouvoir discrétionnaire”.17

KRELL, Andreas J. Discricionariedade administrativa e proteção ambiental: o controle dos conceitos jurídicos indeterminados e a competência dos órgãos ambientais: um estudo comparativo, 2004, p. 45 e ss. No mesmo sentido, BACIGALUPO, Mariano. La discreciona-lidad administrativa: (estructura normativa, control judicial y límites constitucionales de su atribución), 1997, p. 62; 142 e ss.

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um dos Poderes) em virtude da sua estrutura orgânica, legitimação democrática, meios e procedimentos de atuação, preparação técnica etc., para decidir sobre a propriedade e a intensidade da revisão jurisdicional de decisões administrativas, sobretudo das mais complexas e técnicas.”

18

Com efeito, naqueles campos em que, por sua alta complexidade técnica e dinâmica específica, falecem parâmetros objetivos para uma atuação segura do Poder Judiciário, a intensidade do controle deverá ser tendencialmente menor. Nestes casos, a expertise e a experiência dos órgãos e entidades da Administração em determinada matéria poderão ser decisivas na definição da espessura do controle. Há ainda situações em que, pelas circunstâncias específicas de sua configuração, a decisão final deve estar preferencialmente a cargo do Poder Executivo, seja por seu lastro (direto ou mediato) de legitimação democrática, seja em deferência à legitimação alcançada após um procedimento amplo e efetivo de participação dos administrados na decisão.

Em uma palavra: a luta contra as arbitrariedades e imunidades do poder19

não se pode deixar converter em uma indesejável judicialização administrativa, meramente substitutiva da Administração, que não leva em conta a importante dimensão de especialização técnico-funcional do princípio da separação de poderes, nem tampouco os influxos do princípio democrático sobre a atuação do Poder Executivo.

De outra banda, o controle judicial será tendencialmente mais denso quão maior for (ou puder ser) o grau de restrição imposto pela atuação administrativa discricionária sobre os direitos fundamentais. Assim, se as ponderações feitas pelo administrador (ou mesmo as do legislador) na conjugação entre interesses coletivos e direitos fundamentais revelarem-se desproporcionais ou irrazoáveis, caberá ao Poder Judiciário proceder a sua invalidação. Em tal caso, o papel primordial dos juízes no resguardo do sistema de direitos fundamentais autoriza um controle mais acentuado sobre a atuação administrativa, respeitado sempre o espaço de conformação que houver sido deixado pela diretriz normativa.

Conforme a densidade normativa incidente ao caso, pode-se dizer, assim, que os atos administrativos serão: (i) vinculados por regras (constitucionais, legais ou

18 KRELL, op. cit., p. 46.

19 GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo. La Lucha contra las inmunidades del poder en el derecho

administrativo: (poderes discrecionales, poderes de gobierno, poderes normativos), 1995.

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regulamentares), exibindo alto grau de vinculação à juridicidade; (ii) vinculados por conceitos jurídicos indeterminados (constitucionais, legais ou regulamentares), exibindo grau intermediário de vinculação à juridicidade; e (iii) vinculados diretamente por princípios (constitucionais, legais ou regulamentares), exibindo baixo grau de vinculação à juridicidade.

Os conceitos jurídicos indeterminados envolvem normalmente avaliações ou valorações dotadas de certo grau de imprecisão (justo preço, significativa degradação ambiental, reputação ilibada, notório saber, calamidade pública). Seu reconhecimento pelo intérprete não é um dado apriorístico do sistema, mas se revela apenas no complexo argumentativo da interpretação e aplicação do direito. Segundo a opção normativa, tal operação estimativa ou valorativa deve ser realizada, prioritariamente, pelo administrador público.

II.4. A discussão sobre as agências reguladoras independentes

A chamada Reforma do Estado, implementada no Brasil a partir de meados da última década do século passado, deixou como legado institucional para o país uma miríade de novas autoridades administrativas dotadas de elevado grau de autonomia em relação ao Poder Executivo, denominadas, à moda anglo-saxônica, agências reguladoras independentes. Tais estruturas, assumindo embora a surrada roupagem autárquica, foram erigidas sobre um conjunto de mecanismos institucionais de garantia que lhes confere papel e posição inéditos na história da Administração Pública brasileira.

Na lógica do Plano Diretor de Reforma do Estado (PDRE), de 1995, as agências independentes seriam instrumentos essenciais para dissolver os anéis burocráticos dos Ministérios e subtrair a regulação de setores estratégicos da economia do âmbito das escolhas políticas do Presidente da República. Sob um ponto de vista pragmático, essa pretensa despolitização tinha por objetivo criar um ambiente regulatório não diretamente responsivo à lógica político-eleitoral, mas pautado por uma gestão profissional, técnica e imparcial.

Como se sabe, o modelo regulatório brasileiro foi adotado no bojo de um amplo de processo de privatizações e desestatizações, para o qual a chamada reforma do Estado se constituía em requisito essencial. É que a atração do setor privado, notadamente o capital internacional, para o investimento nas atividades econômicas de interesse coletivo e serviços públicos objeto do programa de privatizações e

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desestatizações estava condicionada à garantia de estabilidade e previsibilidade das regras do jogo nas relações dos investidores com o Poder Público.

Na verdade, mais do que um requisito, o chamado compromisso regulatório (regulatory commitment) era, na prática, uma exigência do mercado para a captação de investimentos. Em países cuja história recente foi marcada por movimentos nacionalistas autoritários (de esquerda e de direita), o risco de expropriação e de ruptura dos contratos é sempre um fantasma que assusta ou espanta os investidores estrangeiros. Assim, a implantação de um modelo que subtraísse o marco regulatório do processo político-eleitoral se erigiu em verdadeira tour de force da reforma do Estado. Daí a idéia da blindagem institucional de um modelo que resistisse até a uma vitória da esquerda em eleição futura.

Para tanto, foi importada para o Brasil a figura da independent regulatory agency, existente nos Estados Unidos desde as últimas décadas do século XIX (1887)

20 e que

atingiria seu apogeu durante o New Deal. Tal figura institucional só se proliferaria na Europa ocidental a partir das décadas de setenta e oitenta do século XX, sob o influxo transformador dos projetos de governança comunitária transnacional promovidos pela União Européia, com o nome de autoridade administrativa independente.

21

A pedra de toque dessa independência (ou autonomia reforçada) das agências reguladoras em relação ao governo é a independência política dos seus dirigentes, nomeados por indicação do Chefe do Poder Executivo após aprovação do Poder Legislativo, e investidos em seus cargos a termo fixo, com estabilidade durante o mandato. Isto acarreta a impossibilidade de sua exoneração ad nutum pelo Presidente – tanto aquele responsável pela nomeação, como seu eventual sucessor, eleito pelo povo.

Quando o Supremo Tribunal Federal brasileiro, ao apreciar o pedido de medida

20 A primeira agência reguladora independente federal surgida nos Estados Unidos da América

foi a Interstate Commerce Commission (ICC). V. SUSTEIN, Cass R. O constitucionalismo após o The New Deal. In: ______. Regulação econômica e democracia: debate norte-americano, 2003, p. 131-133.21

O Banco Central da Alemanha (Deutsche Bundesbank) é normalmente apontado como o modelo pioneiro e paradigmático de autoridade administrativa independente no continente europeu, que serviu de inspiração, inclusive, para a configuração do Banco Central Europeu. V. LOMBARTE, Artemi Rallo. La constitucionalidad de las administraciones independientes, 2002, p. 74-75.

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cautelar formulado nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 1.949-RS, proclamou a constitucionalidade desse modelo de autoridade administrativa independente, muito mais havia em jogo do que a mera permanência dos dirigentes de uma agência (nomeados pelo governo anterior) em seus cargos. Neste leading case

22,para além da mera admissibilidade constitucional das agências independentes, a

Suprema Corte brasileira placitou a validade de um amplo conjunto de transformações na lógica de funcionamento das estruturas do nosso Estado democrático de direito.

As autoridades independentes quebram o vínculo de unidade no interior da Administração Pública, eis que a sua atividade passou a situar-se em esfera jurídica externa à da responsabilidade política do governo. Caracterizadas por um grau reforçado da autonomia política de seus dirigentes em relação à chefia da Administração central, as autoridades independentes rompem o modelo tradicional de recondução direta de todas as ações administrativas ao governo (decorrente da unidade da Administração). Passa-se, assim, de um desenho piramidal para uma configuração policêntrica.

Na verdade, a regulação independente enseja inúmeras e relevantes questões nos campos do direito e da política, como a revisão dos fundamentos legitimadores do poder, a redefinição do esquema clássico de articulação entre os poderes do Estado, o avanço da tecnocracia sobre a dialética política e a progressiva submissão do direito às exigências da economia.

As perplexidades geradas pelo novo modelo são diversas e variadas. Como compatibilizar a regulação setorial autônoma com políticas públicas desejadas por governos democraticamente eleitos? O que legitima a autoridade de tecnocratas na interpretação e aplicação de conceitos legais indeterminados? Qual a margem de apreciação técnica reservada aos reguladores? Qual o papel do Poder Judiciário na fiscalização da fidelidade da atuação das agências ao direito? Deve o Parlamento exercer algum tipo de supervisão sobre o trabalho das agências à vista de seus 22

A ADIN n° 1.979-RS dizia respeito, especificamente, à Lei estadual n° 10.931/97, referente à Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul – AGER-GS. Em seu veredito, tomado por maioria, o STF afastou-se de seu entendimento tradicional, consubstanciado no verbete n° 25 de sua Súmula de Jurisprudência (“A nomeação a termo não impede a livre demissão, pelo Presidente da República, de ocupante de cargo de dirigente de autarquia.”), passando a admitir a constitucionalidade da instituição, por lei, de restrições à livre exoneração, pelo Presidente da República, dos dirigentes das agências reguladoras.

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objetivos institucionais? Como assegurar a accountability (controle, prestação de contas e responsividade) dos reguladores autônomos, não sujeitos ao teste eleitoral? Devem ser desenvolvidas novas formas de participação e controle social, além da via eleitoral, de maneira a alcançar um maior grau de legitimidade nas decisões das agências? Essas são algumas das indagações ensejadas pelo advento do modelo de policentrismo decisório.

O governo do Presidente Luís Inácio Lula da Silva marcou, na história institucional do Brasil, o primeiro teste da estrutura regulatória independente face à sucessão democrática no âmbito federal. Antes disso, todos os dirigentes das agências tinham sido nomeados pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso. Na posse de Lula, a direção das agências estava entregue a homens de confiança do governo anterior, derrotado nas urnas. Seus mandatos ainda se encontravam em curso.

Em fevereiro de 2003, o Presidente Lula saiu de uma reunião ministerial e declarou aos mais importantes jornais e redes de TV que “as agências mandam no país.” Ele reclamou também que era avisado dos aumentos de tarifas de serviços públicos pelos jornais e que as decisões que mais afetavam a população não passavam pelo governo.

23

Logo em seguida, em março de 2003, Lula designou uma comissão para discutir uma proposta legislativa de reforma da estrutura das agências. De outra parte, o governo iniciou um acalorado debate público com as agências de telecomunicações (ANATEL) e energia elétrica (ANEEL) tendo por objeto a revisão das tarifas telefônicas e de energia, cujo exame estava em curso. Por evidente, não interessava a um governo popular que, logo em seu começo, medidas impopulares – como o aumento de tarifas – fossem determinadas pelas agências. Na percepção da opinião pública, tais medidas seriam certamente atribuídas ao governo como um todo.

Uma visão desse cenário pontua a tentativa do governo de pressionar as agências e obrigá-las a não adotar medidas impopulares, que seriam embora as mais técnicas e recomendáveis pelo interesse público de longo prazo. Haveria, assim, um episódio de disputa de poder entre um governo novo – e pleno de legitimidade – e as agências independentes, cujos dirigentes deviam seus mandatos ao governo anterior.

Essa é, todavia, apenas uma das visões possíveis sobre os mesmos fatos. Já 23

LULA critica agências e diz que fará mudanças. Folha de São Paulo, 20 fev. 2003.

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se disse, aliás, que não há fatos, só versões. E normalmente várias. Não se pretende aqui negar o quanto de populismo e de disputa de poder nutriu essas discussões entre governo e agências. Porém, tais episódios convidam a uma reflexão mais apurada sobre as fragilidades do arranjo institucional das agências reguladoras no Brasil.

Embora as crises do governo Lula com a ANATEL e a ANEEL tenham se resolvido pelos mecanismos institucionais disponíveis – a primeira, com uma decisão favorável à agência, proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, e a segunda, por um acordo entre governo e agência, de diferimento do aumento da tarifa –, minha especulação é a de que melhores instrumentos de controle político e jurídico, e um grau maior de participação social e visibilidade dos processos regulatórios, poderão prevenir futuras crises e conferir maior lastro de legitimidade ao papel das agências.

No ano de 2006, havia duas propostas legislativas em tramitação no Congresso Nacional versando o tema das agências reguladoras: o Projeto de Lei n° 3.337/2004 e a Proposta de Emenda Constitucional n° 81/2003. Tais projetos marcham, aparentemente, em sentidos contrários.

A PEC 81/2003 tem por objetivo promover a constitucionalização do modelo de agências reguladoras independentes, com previsão de mandatos e estabilidade para os seus dirigentes. Pretende-se, assim, resolver definitivamente a discussão sobre a constitucionalidade das leis que criaram as agências setoriais e sinalizar ao mercado maior segurança e confiabilidade aos marcos regulatórios nacionais.

De outra parte, o PL 3.337/2004, apresentado pelo Poder Executivo, tinha caráter distinto, voltado ao aprimoramento dos controles políticos (por via de contratos de gestão, por exemplo) e sociais (por meio de consultas e audiências públicas, por exemplo) sobre as agências. A verdade é que tantas e tão profundas são as emendas parlamentares apresentadas – inclusive projetos substitutivos – que, ao final de 2006, não era possível ter uma visão clara sobre os rumos do Projeto de Lei.

O fato mais relevante ligado à autonomia das agências reguladoras ocorrido no ano de 2006 foi a emissão do Parecer n° 51/2006, da Advocacia Geral da União, ao qual o Presidente da República atribuiu força vinculante e caráter normativo. Segundo tal parecer, os Ministros de Estado passam a ter poderes para rever decisões das agências – antes consideradas terminativas – em hipóteses nas quais (i) a agência tenha desbordado dos limites legais de suas competências; ou (ii) a agência tenha usurpado competências de elaboração de políticas públicas setoriais da competência do Ministério. E isso – frise-se, por muito relevante – independentemente da existência

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de previsão legal de cabimento de recurso hierárquico impróprio, por mera inferência do disposto no art. 87, parágrafo único, inciso I, da Constituição da República.

24 Mais

ainda, o parecer afirma que a revisão ministerial teria lugar também de ofício, por desdobramento do princípio da autotutela administrativa.

O entendimento exarado no parecer desafia o conhecimento convencional, consolidado no país, de descabimento de recurso hierárquico impróprio à míngua de previsão legal expressa (pas de tutelle sans texte), além de abrir flanco para um amplo contencioso entre dirigentes de agências e Ministros de Estado no âmbito judicial.

III. A constitucionalização do Direito Administrativo brasileiro: avan-ços e retrocessos

Talvez o aspecto mais paradoxal do acidentado itinerário histórico do Direito Administrativo tenha sido o que Sebastian Martín-Retortillo identificou como uma fuga do direito constitucional.

25 Com efeito, embora criado sob o signo do Estado de direito,

para solucionar os conflitos entre autoridade (poder) e liberdade (direitos individuais), o Direito Administrativo experimentou, ao longo de seu percurso histórico, um processo de descolamento do direito constitucional. A própria descontinuidade das constituições, em contraste com a continuidade da burocracia, contribuiu para que o Direito Administrativo se nutrisse de categorias, institutos, princípios e regras próprios, mantendo-se de certa forma alheio às sucessivas mutações constitucionais.

Deste modo, v.g., uma das categorias básicas do Direito Administrativo – a multifária noção de interesse público – de origem pré-constitucional, resiste em alguns países até os dias de hoje completamente alheia à juridicização de princípios e objetivos do Estado e da coletividade, operada pela Constituição. Mesmo em nações que adotaram o modelo de constituição dirigente – como Portugal e Brasil –, a doutrina administrativista permaneceu oferecendo as mais diversas conceituações de interesse público, quase todas sem qualquer referência às prescrições de suas respectivas Leis Fundamentais. No mais das vezes, o discurso da autonomia científica 24

“Art. 87, parágrafo único. Compete ao Ministro de Estado, além de outras atribuições esta-belecidas nesta Constituição e na lei:I – exercer a orientação, coordenação e supervisão dos órgãos e entidades da administração federal na área de sua competência e referendar os atos e decretos assinados pelo Presidente da República.”25

MARTÍN-RETORTILLO BAQUER, Sebastian. El derecho civil en la genesis del derecho administrativo y de sus instituciones, 1996, p. 215.

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do Direito Administrativo serviu de pretexto para liberar os administradores públicos da normatividade constitucional.

A mesma reflexão pode ser feita em relação à discricionariedade administrativa. Durante muito tempo – sem que isso provocasse maior polêmica – a discricionariedade era definida como uma margem de liberdade decisória dos gestores públicos, sem qualquer remissão ou alusão aos princípios e regras constitucionais. Vale lembrar que a primeira evolução no sentido do controle judicial dos atos (ditos) discricionários – com o surgimento de teorias como as do desvio de poder e dos motivos determinantes – partiu de elementos vinculados à lei, e não à Constituição, embora diversos Estados europeus à época já tivessem sido constitucionalizados.

A passagem da Constituição para o centro do ordenamento jurídico representa a grande força motriz da mudança de paradigmas do direito administrativo na atualidade. A supremacia da Lei Maior propicia a impregnação da atividade administrativa pelos princípios e regras naquela previstos, ensejando uma releitura dos institutos e estruturas da disciplina pela ótica constitucional.

Cumpre anotar que o tratamento constitucional de aspectos da Administração Pública foi inaugurado com as Cartas italiana e alemã, tendo sido substancialmente ampliado nas Constituições espanhola e portuguesa. A Constituição brasileira de 1988 discorre longamente sobre a Administração Pública, descendo a minúcias que exibem uma feição corporativa muito mais nítida que qualquer preocupação garantística. A despeito disso, trouxe alguns avanços, como a enunciação expressa de princípios setoriais do direito administrativo, que na sua redação original eram os da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade. A Emenda Constitucional nº 19/98 (apelidada de Emenda da Reforma Administrativa) acrescentou ao elenco o princípio da eficiência.

26 A propósito, a tensão entre a eficiência e legitimidade democrática é

uma das questões centrais da Administração Pública na atualidade.27

A constitucionalização do direito administrativo convola a legalidade em juridicidade administrativa. A lei deixa de ser o fundamento único e último da atuação da Administração Pública para se tornar apenas um dos princípios do sistema de juridicidade instituído pela Constituição. Como registra corretamente Juarez Freitas, “esta parece ser a melhor postura, em vez de absolutizações incompatíveis com o 26

A Lei nº 9.784, de 29.01.99, que regula o processo administrativo no plano federal, enuncia como princípios da Administração Pública, dentre outros, os da legalidade, finalidade, moti-vação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.

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pluralismo nuclearmente caracterizador dos Estados verdadeiramente democráticos, nos quais os princípios absolutos são usurpadores da soberania da Constituição como sistema. Com efeito, a soberania da Constituição, de que fala Gustavo Zagrebelski, deve ser vista, antes de tudo, como soberania de princípios à procura da síntese no intérprete constitucional.”

28

Na tarefa de desconstrução dos velhos paradigmas e proposição de novos, a tessitura constitucional assume papel condutor determinante, funcionando como diretriz normativa legitimadora das novas categorias. A premissa básica a ser assumida é a de que as feições jurídicas da Administração Pública – e, a fortiori, a disciplina instrumental, estrutural e finalística da sua atuação – estão alicerçadas na própria estrutura da Constituição, entendida em sua dimensão material de estatuto básico do sistema de direitos fundamentais e da democracia.

Mas qual seria o lado negativo da constitucionalização do Direito Administrativo? Parte dessa resposta é compartilhada por outros ramos do direito que passam por esse processo. O caso do Direito Administrativo, todavia, é ainda mais grave.

Em um plano mais geral, comum aos diversos ramos do direito, pode-se dizer que a constitucionalização se convola em patologia quando deixa de ser um movimento de releitura de institutos e conceitos básicos à luz dos princípios constitucionais, para se tornar um processo gradativo e avassalador de incorporação da legislação ordinária ao texto da Constituição. Em tal contexto, antes que uma verdadeira constitucionalização do direito ordinário, assiste-se a uma ordinarização da própria Constituição. Trata-se, à evidência, de uma constitucionalização às avessas.

A Constituição, como é trivial, é um documento normativo que almeja permanência e estabilidade, porquanto sua vocação é a de ser instrumento de governo e parâmetro cimeiro a orientar a interpretação das diversas disciplinas que compõem o ordenamento jurídico. Para tanto, é necessário que o legislador constituinte não se perca no varejo das miudezas, não se deixando capturar por interesses subalternos ou paixões momentâneas.

27 V. MATTOS, Paulo Todescan Lessa. O novo Estado regulador no Brasil: eficiência e legi-

timidade, 2006; no mesmo sentido, BARROSO, Luís Roberto. Agências reguladoras: cons-tituição, transformações do Estado e legitimidade democrática. In: ______. Temas de direito constitucional, 2003, t. 2, p. 303-304. 28

FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais, 2004, p. 45.

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A Constituição brasileira de 1988, a despeito dos notáveis avanços que promoveu, está recheada de retrocessos que tais, situação que se tem agravado com um verdadeiro festival de emendas constitucionais. Se tal anomalia já pode ser considerada grave em outras searas do direito, no campo do Direito Administrativo as suas conseqüências são ainda mais funestas.

Em primeiro lugar, a constitucionalização às avessas torna-se presa fácil ao entrincheiramento de interesses corporativos na Constituição. Na esfera do Direito Administrativo – e sobretudo nela – a incorporação ao texto constitucional de direitos e vantagens de servidores públicos não serve a nenhum propósito transformador do direito e da sociedade, senão que a corporações fortes e bem organizadas, cujo intuito é subtrair do debate político a discussão acerca da legitimidade e justeza de seus pleitos.

Entenda-se bem: a previsão constitucional de algumas garantias básicas para os servidores públicos (como a irredutibilidade remuneratória, o acesso a cargos e empregos mediante concurso público e o princípio da impessoalidade) representam importantes garantias da própria sociedade contra o mau uso da máquina administrativa por políticos inescrupulosos. Todavia, daí já há muito desbordou o legislador constituinte brasileiro, passando a dispor sobre regras específicas de previdência pública, aposentadoria, vantagens remuneratórias, dentre outras, o que acaba por elevar ao debate constitucional matérias que deveriam ser da alçada própria dos tribunais ordinários.

O entrincheiramento de privilégios de determinados setores do funcionalismo público na Constituição é, acima de tudo, uma tentativa de dificultar a deliberação democrática ordinária a respeito de quais prerrogativas a sociedade está disposta a oferecer (leia-se: pagar) aos servidores públicos em prol do eficiente e imparcial funcionamento da burocracia estatal. Ao introduzir no texto da Carta Magna tais matérias, o legislador constituinte as equipara, em termos de estatura hierárquica, àquelas consideradas mais relevantes, ficando protegidas pelas qualificadíssimas maiorias necessárias à aprovação de uma nova reforma constitucional.

A discussão, v.g., a respeito da reforma da previdência dos servidores públicos e seu regime remuneratório (limites máximos de remuneração etc.) é de índole manifestamente infraconstitucional. Não há na teoria constitucional moderna subsídios a justificar o tratamento supermajoritário conferido a, por exemplo, o limite de idade para a aposentadoria compulsória dos servidores ou o tempo de contribuição

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a ser preenchido como requisito para a aposentação. Isso, é bem dizer de forma direta, não é constitucionalização do Direito Administrativo, mas ordinarização da Constituição.

Vizinho do corporativismo – por vezes seu filho – é o casuísmo constitucional. Dispor sobre minúcias e ainda descer a detalhes é obra de quem não compreende o papel político de uma Constituição ou de quem, por compreendê-lo bem, faz dele uso desviado. Com efeito, o tratamento casuístico de situações específicas de grupos, entidades ou pessoas retira a autoridade moral do texto supremo e ameaça a estabilidade da ordem jurídica com o germe da quebra de legalidade constitucional.

De parte isso, a constitucionalização às avessas costuma levar, especialmente no campo da Administração Pública, a um indesejável processo de ossificação. Deveras, lidando com matérias cambiantes por natureza, a sua inserção indiscriminada no terreno constitucional conduz, em inúmeros casos, a uma dificuldade de transformação pelo processo político ordinário. Exemplo disso foi o enorme dispêndio de tempo, recursos e energia política nas três reformas previdenciárias do setor público por que passou o país nos últimos oito anos (1998, 2003 e 2005). Isso para não falar na previsão contida na Constituição de regras sobre serviços públicos, energia nuclear, petróleo, gás natural, garimpos, ordem urbana, desapropriação, dentre tantas outras.

Por fim, como conseqüência de todo esse processo, vive-se no país um reformismo constitucional crônico. Não é exagero que qualquer plano de governo – seja qual for o seu matiz ideológico – passa necessariamente por um punhado de emendas constitucionais, e pelo custoso e demorado iter de sua aprovação. Em tempos em que as palavras de ordem são velocidade, eficiência e competitividade internacional (decorrência da globalização), não deixa de ser curioso que o país tenha agregado esse elemento de “custo-constituição” ao nosso já robusto “custo-Brasil”. Ademais, o movimento pan-constitucionalista transforma em discussão constitucional qualquer questão regulatória, jogando por terra toda a almejada segurança jurídica por trás do Estado-regulador.

É natural que reformas à Constituição sejam aprovadas, de acordo com o tempo e circunstâncias de país. O que não é admissível – e refoge, portanto, a qualquer particularidade aceitável do Brasil – é a transformação da emenda constitucional em instrumento de política de governo. Afinal, é o governo que deve ser regido pela Constituição, e não o contrário.

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Não se pretende aqui repetir o já cansativo discurso da nossa inflação de emendas constitucionais, nem tampouco enumerá-las uma a uma. Ao revés, pretende-se apenas destacar como, numa seara como a do Direito Administrativo, os custos de transação, a perda de agilidade e de eficiência acabam sendo enormes – problemas que tornam o reformismo constitucional crônico brasileiro uma questão ainda mais dramática, sobretudo num país que tem urgência em crescer, gerar e distribuir riquezas.

IV. Novas formas de exercício do poder de polícia

No julgamento da ADIN nº 1.717/DF,29

o Supremo Tribunal Federal considerou inconstitucional dispositivo introduzido no art. 58 da Lei nº 9.649/98 que transformara os Conselhos de Fiscalização Profissional – salvo a Ordem dos Advogados do Brasil – em pessoas jurídicas de direito privado. Ratificando entendimento assentado pela doutrina, o STF assentou que tais entidades, por exercerem poder de polícia – porção do poder de império estatal – não poderiam assumir a forma de entes privados. Este era, até então, o conhecimento convencional sobre o tema produzido no Brasil.

Em 2006, todavia, ao julgar a ADIN nº 3.026/DF,30

o STF entendeu que a Ordem dos Advogados do Brasil não integra formalmente a estrutura da Administração Pública indireta, exercendo função tipicamente pública, porém sob forma não-estatal. A decisão é fundada na necessidade de as profissões liberais (e especialmente a advocacia) não ficarem sob o controle do Estado, mas se sujeitarem à auto-regulamentação e auto-fiscalização. Por isso, no caso concreto, a Corte afastou a aplicabilidade da regra do concurso público para a admissão de pessoal pela OAB.

Como se vê, o STF caminha no sentido de separar duas realidades distintas: a natureza pública, de um lado (dada pela natureza das funções desempenhadas), e a estatal, de outro (dada pelo elemento orgânico de integração à estrutura do Estado). Segundo Carlos Ari Sundfeld e Jacintho Arruda Câmara, a legislação pode criar, desde que tenha motivo razoável para fazê-lo, uma entidade com natureza jurídica de direito público, sem que a torne parte integrante da Administração. Nestas hipóteses, o ente seria público, mas não seria estatal.

31

Este é, aliás, o modelo que costuma ser adotado no Direito continental europeu para a criação de entes de auto-regulação profissional. Consoante lição de Vital 29

ADIN 1.7171. Relator: Min. Sydney Sanches, j. em 22.09.1999.30

ADIN 3.026/DF. Relator: Min. Eros Grau, DJU, 29 set. 2006.

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Moreira, “as funções de regulação e disciplina competem directamente à própria organização profissional (ordem, câmara ou colégio) para o efeito dotada de poderes públicos e sendo em princípio de natureza obrigatória e unicitária.”

32

No que se refere ao regime jurídico aplicável a tais entes – se público ou privado – é de ser reconhecida a sua hibridez. Com efeito, naqueles aspectos que digam respeito a sua natureza pública (manejo de exações fiscais, exercício de poder de império), ser-lhes-á aplicável o regramento constitucional público (prestação de contas ao Tribunal de Contas, imunidade de impostos). Já quanto aos aspectos não-ligados diretamente a suas funções públicas, ser-lhes-ão aplicáveis normas de direito privado (contratação de pessoal sem concurso, contratação de bens e serviços sem necessidade de licitação).

O exercício da polícia das profissões por entidades públicas não-estatais se soma a outras formas alternativas de exercício do poder de polícia que têm se desenvolvido no Brasil. Podem ser citadas as chamadas atividades comunicadas (nas quais é o particular quem comunica ao Poder Público o desempenho de certa atividade e este, conforme o caso, adota providências de polícia administrativa), as atividades de mera execução material (nas quais particulares são contratados para exercer atividades de apoio em averiguações, vistorias e laudos técnicos) e as atividades tacitamente consentidas (para as quais a lei atribui efeitos positivos ao silêncio da Administração, após o decurso de determinado prazo).

São exemplos de atividades comunicadas a reunião pacífica em locais abertos ao público, independentemente de autorização prévia, desde que não se frustre outra reunião para o mesmo espaço. Nos termos do art. 5º, XVI, da Constituição da República, exige-se apenas um aviso prévio à autoridade competente, que poderá exercer o poder de polícia, conforme o caso e as circunstâncias concretas em questão.

De mesma natureza é a comunicação da substituição da entidade hospitalar contratada, que deve ser feita pelos planos privados de assistência à saúde à Agência Nacional de Saúde Suplementar e aos consumidores, nos termos exigidos pelo art. 17, § 1º, da Lei nº 9.656/98. Também na mesma linha, o art. 8º da Lei nº 9.074/95 prevê a possibilidade de aproveitamento de potenciais hidráulicos e a implantação 31

SUNDFELD, Carlos Ari; CÂMARA, Jacintho Arruda. Conselhos de Fiscalização Profis-sio-nal: entidades públicas não-estatais. Revista de Direito do Estado, n. 4, p. 324, out./dez. 2006.32

MOREIRA, Vital. Auto-regulação e administração pública, 1997, p. 259.

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de usinas termoelétricas de pequenos potenciais mediante simples comunicação ao Poder Público, dispensadas a concessão, a permissão (formas de delegação de serviço público) e a autorização prévia (forma de exercício do poder de polícia).

Quanto às atividades de mera execução material, podem ser citados como exemplos a autorização, constante do art. 59 da Lei nº 9.472/97 (Lei Geral de Telecomunicações), para que a Agência Nacional de Telecomunicações utilize, mediante contratação, técnicos ou empresas especializadas para atividades de apoio, ressalvadas as atividades de fiscalização (art. 22, parágrafo único). Trata-se da positivação da separação entre a atividade jurídica de polícia administrativa (que contém a carga decisória do poder de império) e a atividade meramente material (que se cifra à execução ou ao suporte). A primeira é reservada a servidores públicos (o STF tem entendido, ainda, que tais servidores devem ser estatutários), enquanto a segunda pode ser realizada por terceiros (particulares contratados). Outro exemplo de tal clivagem é encontrado no Código Nacional de Trânsito: o art. 104 admite que a inspeção veicular seja feita por entidades privadas, reservando a adoção da medida administrativa cabível (a retenção do veículo, v.g.) para as autoridades administrativas. Na mesma toada, o art. 280, § 2º, exige que a lavratura do auto de infração seja realizada por servidor civil ou militar, enquanto as providências materiais a ela anteriores podem ser empreendidas por terceiros (particulares contratados).

Por fim, no campo das atividades tacitamente consentidas, tem-se o exemplo do art. 26, § 3º, da Lei nº 9.478/97, que atribui efeito de aprovação tácita ao silêncio da Agência Nacional do Petróleo, nos 180 dias que se seguem à apresentação do plano de exploração da área concedida pelo concessionário. É interessante anotar que no julgamento da ADIN nº 3.273/PR,

33 o STF, por expressiva maioria, declarou

a constitucionalidade do dispositivo em tela, considerando-o meio legítimo pelo qual o legislador ordinário deu concretude ao princípio da segurança jurídica dos particulares.

V. Proteção da Confiança Legítima

Inobstante os trabalhos pioneiros no Brasil de Almiro do Couto e Silva,34

só mais recentemente o princípio da proteção da confiança legítima (ou das expectativas legítimas) mereceu atenção específica da doutrina nacional e acolhimento na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Cuidei do tema em obra já mencionada,

35 33

ADIN nº 3.273/PR. Relator p/ Acórdão: Min. Eros Grau, DJU 02 mar. 2007.

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na qual abordei amplamente o surgimento do princípio nas Cortes alemãs, sua recepção no Direito Comunitário europeu e, finalmente, sua incorporação aos ordenamentos jurídicos nacionais continentais e anglo-saxônicos.

Entre as décadas de 1950 e 1970, o princípio da proteção da confiança fez fulgurante carreira no direito alemão (chegando a ser reconhecido como princípio constitucional implícito pelo Tribunal Constitucional Federal, na década de 1970), influenciou o direito inglês e acabou por afirmar-se como princípio fundamental do direito comunitário (rebatizado como princípio da confiança legítima), reconhecido pela jurisprudência da Corte de Justiça das Comunidades Européias.

36

Consoante lição de Hartmut Maurer, a incidência do princípio da proteção da confiança, no direito alemão, depende da concorrência de dois pressupostos:

[...] que o beneficente (1) confiou na existência do ato administrativo; e (2) sua confiança seja digna de proteção sob a ponderação com o interesse público em uma retratação (rectius: anulação). Essa fórmula geral ainda é concretizada pela lei em sentido diferente. A dignidade de proteção não tem lugar de antemão se o beneficiado obteve o ato administrativo antijurídico por engano, ameaça ou corrupção dolosa, ademais, se ele obteve o ato administrativo por declarações falsas ou incompletas, enfim, também então, se ele conhecia a antijuridicidade do ato administrativo ou em conseqüência de culpa grave não conhecia.

37

Assim, partindo da construção pretoriana, o princípio alcançou previsão expressa no § 48 da Lei do Processo Administrativo alemão, de 1976, que funcionou como fonte de inspiração aos arts. 2°, parágrafo único, incisos IV e XIII, 54 e 55 da nossa Lei n° 9.784/99 (Lei do Processo Administrativo federal brasileira). Tais dispositivos legais nada mais representam senão a concretização legislativa do princípio da proteção da confiança legítima, que tem sua sede constitucional (i) na cláusula do 34

SILVA, Almiro do Couto e. Princípios da legalidade da Administração Pública e da segurança jurídica no estado de direito contemporâneo. Revista de Direito Público, n. 84, p. 46 e ss., 1987; O princípio da segurança jurídica (proteção à confiança) no direito público brasileiro e o direito da Administração de anular seus próprios atos administrativos: o prazo decadencial do art. 54 da Lei do Processo Administrativo da União (Lei nº 9.784/99). Revista de Direito Administrativo, n. 237, p. 271-315, 2004.35

BINENBOJM, op. cit., p. 177-191.36

CALMES, Sylvia. Du principe de protection de la confiance légitime en droits allemand, communautaire et français, 2001, p. 24 e ss.37

MAURER, op. cit., p. 72-73.

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Estado democrático de direito (CF, art. 1°), (ii) na cláusula do devido processo legal (CF, art. 5°, LIV), (iii) no princípio da isonomia (CF, art. 5°, caput) e, especificamente no campo do direito administrativo, (iv) no princípio da moralidade administrativa (CF, art. 37, caput), expressão constitucional dos subprincípios da lealdade, boa-fé e da vedação do venire contra factum proprium (ninguém pode opor-se a fato a que ele próprio deu causa).

38

Segundo Almiro do Couto e Silva, o maior monografista do tema no direito administrativo brasileiro, a proteção da confiança envolve hoje os seguintes tópicos principais:

39

1) preservação de atos (ou, ao menos, dos efeitos já produzidos por atos) administrativos ou legislativos, invalidados por ilegais ou inconstitucionais (v.g., licenças, autorizações, subvenções, vencimentos e proventos de servidores públicos, pensões de seus dependentes);

2) responsabilidade do Estado por promessas firmes feitas por seus agentes, notadamente as relacionadas ao planejamento econômico;

3) responsabilidade pré-negocial do Estado;

4) dever do Estado de estabelecer regras transitórias em razão de bruscas mudanças introduzidas no regime jurídico administrativo (v.g., dos servidores públicos, do exercício das profissões, da ordem econômica).

A tais pontos podem-se acrescentar os atos praticados tanto por servidores de fato (aqueles que se apresentam ao público como tais sem sê-lo) como por servidores precários (aqueles que exercem cargo, emprego ou função pública a título precário, por força de decisões administrativas ou judiciais passíveis de invalidação a posteriori).

40

Havendo a Administração (ou qualquer outro órgão público) concorrido comissiva ou omissivamente para a aparência de legalidade da situação, deverá honrar a legítima confiança depositada pelos particulares que orientaram sua conduta por atos praticados por esses agentes.38

Sobre o tema, v. SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium, 2005, p. 202-209.39

SILVA, op. cit., p. 277-278.40

V., sobre o tema, BARROSO, Luís Roberto. O controle da constitucionalidade no direito brasileiro, 2004, p. 20.

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O STF, pela pena do Ministro Gilmar Ferreira Mendes, acolheu expressamente a existência do princípio da proteção da confiança no julgamento do Mandado de Segurança nº 22.357/DF,

41 que envolvia discussão acerca da admissão, sem concurso

público formal, de empregados públicos pela INFRAERO. Confira-se o teor da ementa do acórdão:

1. Mandado de Segurança. 2. Acórdão do Tribunal de Contas da União. Prestação de Contas da Empresa Brasileira de Infra-estrutura Aeroportuária - INFRAERO. Emprego Público. Regularização de admissões. 3. Contratações realizadas em conformidade com a legislação vigente à época. Admissões realizadas por processo seletivo sem concurso público, validadas por decisão administrativa e acórdão anterior do TCU. 4. Transcurso de mais de dez anos desde a concessão da liminar no mandado de segurança. 5. Obrigatoriedade da observância do princípio da segurança jurídica enquanto subprincípio do Estado de Direito. Necessidade de estabilidade das situações criadas administrativamente. 6. Princípio da confiança como elemento do princípio da segurança jurídica. Presença de um componente de ética jurídica e sua aplicação nas relações jurídicas de direito público. 7. Concurso de circunstâncias específicas e excepcionais que revelam: a boa fé dos impetrantes; a realização de processo seletivo rigoroso; a observância do regulamento da Infraero, vigente à época da realização do processo seletivo; a existência de controvérsia, à época das contratações, quanto à exigência, nos termos do art. 37 da Constituição, de concurso público no âmbito das empresas públicas e sociedades de economia mista. 8. Circunstâncias que, aliadas ao longo período de tempo transcorrido, afastam a alegada nulidade das contratações dos impetrantes. 9. Mandado de Segurança deferido.

Como ensina Patrícia Ferreira Baptista,42

o princípio da proteção da confiança legítima foi inicialmente invocado como limite à revisão de atos administrativos concretos, passando, em um segundo momento, a ser utilizado para a tutela da segurança jurídica face ao exercício do poder normativo. Segundo a autora, a incidência do princípio da proteção da confiança legítima no âmbito do poder normativo da Administração produziria as seguintes possíveis conseqüências:

I. o estabelecimento de medidas transitórias ou de um período de vacatio (isto 41

MS nº 22.357. Relator: Min. Gilmar Mendes, DJU 09 ago. 2006.42

BAPTISTA, Patrícia Ferreira. A tutela da confiança legítima como limite ao exercício do poder normativo da Administração Pública: a proteção às expectativas legítimas dos cidadãos como limite à retroatividade normativa. Revista de Direito do Estado, n. 3, p. 155-181, jul./set. 2006.

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é, o direito a um regime de transição justo);

II. a observância do termo final fixado para a vigência da norma revogada;

III. a outorga de indenização compensatória pela frustração da confiança;

IV. a exclusão do administrado da incidência da nova regulamentação, preservando-se a posição jurídica obtida à luz da regulamentação revogada.

A definição da conseqüência específica dependerá das circunstâncias do caso concreto, mediante juízo de ponderação entre o interesse do particular na preservação da sua posição e o interesse público na aplicação das novas regras. A escolha recairá sobre a medida que impuser o menor grau de sacrifício aos interesses em jogo. Segundo a autora, “é possível antecipar que a previsão de medidas transitórias, a obrigação de respeitar o termo de vigência previsto para a norma e a outorga de uma indenização deverão preferir, nessa ordem, a preservação da posição jurídica alcançada em virtude da norma revogada.”

43

Quanto aos regulamentos ilegais, todavia, sustenta que o princípio não tem aplicação, por força da necessidade de preservação da norma constitucional de submissão da Administração Pública à lei e ao Direito. Admite, todavia, pelo menos duas exceções: (i) a de ilegalidade superveniente, decorrente de alteração nas circunstâncias de fato ou de direito que fundaram a edição do ato normativo; e (ii) por analogia com o art. 27 da Lei nº 9.868/99, em se tratando de atos normativos vigentes por longo período de tempo e cujos efeitos tenham atingido um grande número de administrados.

VI. Responsabilidade civil extracontratual do Estado

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal alterou o entendimento tradicional relativamente à possibilidade de responsabilização direta per saltum da pessoa natural do agente público, quando causado o dano no exercício de atividade tipicamente funcional. Sempre se entendeu ser possível a propositura da ação pela vítima contra o servidor diretamente ou em face do Poder Público, conforme a sua escolha.

Entretanto, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 327.904, o STF, por sua Primeira Turma, firmou o entendimento de que “se eventual prejuízo ocorresse por 43

Ibid., p. 171.

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força de agir tipicamente funcional, não haveria como se extrair do citado dispositivo constitucional a responsabilidade per saltum da pessoa natural do agente. Essa, se cabível, abrangeria apenas o ressarcimento ao erário, em sede de ação regressiva, depois de provada a culpa ou o dolo do servidor público. Assim, concluiu-se que o mencionado art. 37, § 6º, da CF, consagra dupla garantia: uma em favor do particular, possibilitando-lhe ação indenizatória contra a pessoa jurídica de direito público ou de direito privado que preste serviço público; outra, em prol do servidor estatal, que somente responde administrativa e civilmente perante a pessoa jurídica a cujo quadro funcional pertencer.”

44

VII. Teto remuneratório dos servidores públicos e direitos adquiridos

Por apertada maioria (seis votos a cinco), o STF estabeleceu o entendimento de que a irredutibilidade de vencimentos dos magistrados constitui uma modalidade qualificada de direito adquirido. Assim, as remunerações acima do teto (subsídio de Ministro do STF), quando auferidas legitimamente antes da Emenda Constitucional 45/2004, não poderiam ser reduzidas nem mesmo por determinação da própria Emenda, por ser a irredutibilidade de vencimentos uma garantia individual e, como tal, uma cláusula pétrea da Constituição.

45

Veja-se que a Corte não adentrou o exame da questão sobre a possibilidade de emenda constitucional restringir ou abolir direitos adquiridos, nos termos da lei ordinária. Aqui, ao revés, o Tribunal afirmou a condição de cláusula pétrea da própria irredutibilidade de vencimentos, enquanto garantia individual albergada no art. 60, § 4°, inciso IV, da Carta da República.

Deste modo, os magistrados que recebam vantagens pessoais incorporadas acima do teto continuarão a recebê-las até o momento em que o subsídio de Ministro do STF sofra um aumento que venha a sobejá-las. Daí para frente, todavia, o teto não poderá mais ser ultrapassado. As únicas exceções que poderão ser admitidas são aquelas decorrentes de acumulação legítima de cargos ou funções remunerados, como a de professor e o exercício de funções na Justiça Eleitoral. Isso porque seria um contra-senso que a Constituição permitisse a acumulação remunerada e exigisse de apenas alguns o trabalho gratuito.

44 RE n° 327904/SP. Relator: Min. Carlos Britto, j. em 15.08.2006.

45 MS n° 24.875. Relator: Min. Sepúlveda Pertence, DJU, 06 out. 2006.

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Regulação do transporte alternati-vo de passageiros de âmbito regional

Marcos Juruena Villela Souto

Professor do Mestrado em Direito da Universidade Gama Filho; Professor de Direito Administrativo Econômico da Uni-versidade Gama Filho; Doutor em Direito pela Universidade

Gama Filho

Sumário. Introdução. 1. Submissão da livre iniciativa à função social e à regulação. 2. Os serviços de interesse econômico geral. 3. Polícia administrativa. 4. Os modelos de serviço público. 5. A competição nos serviços públicos. 6. A regulação promotora da competição. 7. As atividades comunicadas e a omissão na comunicação. 8. A regulação sobre o fato jurídico do transporte irregular. 9. A regulação preventiva de risco e do agravamento de custas. 10. Da legitimidade da interrupção do transporte. 11. A regulação corretiva e o espaço para a composição consensual do conflito. 12. Conclusões.

Introdução

A fiscalização dos veículos que executam o transporte complementar intermunicipal de passageiros tem ensejado a aplicação de penalidades a diversos proprietários de “vans” e outros transportadores complementares pelas irregularidades verificadas. Em alguns casos, o transporte de passageiros chega a ser interrompido no ato, sendo apreendidos os veículos, em razão do reiterado descumprimento da legislação, que, inconformados, pleiteiam, judicialmente, impedir a atuação do regulador.

Os argumentos são os mais diversos, tais como o fato de que os veículos estão devidamente autorizados pela municipalidade para executarem o transporte comercial de passageiros, sendo que o emplacamento pelo DETRAN (para uso de placa vermelha, que significa veículo de uso comercial) implica aceitação do Estado para que o transportador execute o serviço de transporte de passageiros. Ademais, se os veículos

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foram fabricados segundo as normas brasileiras para o transporte de passageiros, estão registrados e têm licenciamento em dia para o uso comercial, estão aptos ao transporte de passageiros. Não poderiam, assim, ser impedidos de transitar no âmbito estadual por agência reguladora que não faz parte do Sistema Nacional de Trânsito, sob pena de violar o livre exercício profissional e o direito de propriedade.

1. Submissão da livre iniciativa à função social e à regulação

O exame do tema exige a identificação do que sejam “serviço público” e “atividade econômica em regime de livre iniciativa”, bem como a distinção entre “fiscalização de polícia administrativa” e “fiscalização de serviços públicos”.

A sede para a definição do serviço público é, em princípio, a Constituição Federal. Sem que haja definição constitucional ou legal, a atividade se situa no plano da livre iniciativa.

Isto não significa dizer que tal liberdade seja absoluta, como se ainda se vivesse no tempo do Estado Liberal ou como se não existisse a noção de “poder de polícia”.

Com o advento do Estado do Bem-Estar, que, cada vez mais cede espaço ao Estado-Regulador, a liberdade de iniciativa sempre foi condicionada à função social da empresa e da propriedade. Está, ainda, legitimado o Estado a promover a defesa da livre concorrência, em especial para o que aqui interessa, reprimir práticas desleais.

O Estado Regulador e a estrutura administrativa que o caracteriza (agência reguladora) vêm reforçar tal modelo interventivo, de modo que a gestão privada de funções de interesse público seja submetida a condicionamentos e controles em defesa da sociedade.

É o que Carlos Ari Sundfeld denomina de “direito administrativo ordenador”

1:

Administração ordenadora é a parcela da função administrativa, desenvolvida com o uso do poder de autoridade, para disciplinar, nos termos e para os fins da lei, os comportamentos dos particulares no campo de atividades que lhes é próprio. Não se confunde como a regulamentação legislativa dos direitos e 1

SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo ordenador. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 20.

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deveres, visto envolver o exercício de função administrativa. Pela mesma circunstância, difere da decisão de conflitos pelo Poder Judiciário. Não se assemelha à disciplina dos vínculos entre a Administração e seus servidores, delegatários ou contratados, por atinar à ordenação do campo privado, não do setor público; por isso mesmo, desenvolve-se dentro de relação genérica – não de relação especial – da Administração com os particulares. Por fim, distingue-se de outras interferências no campo privado, com a exploração econômica estatal e o fomento, porquanto, de uma parte, objetiva regular a aquisição, exercício e perda de direitos pelos particulares (ao contrário da exploração econômica estatal, que visa substituir a privada) e, de outra, implica na utilização do poder de autoridade, inexistente na atividade de fomento.A exata compreensão da administração ordenadora demanda, assim, que fiquem evidenciados seus caracteres fundamentais: a) trata-se de exercício de função administrativa; b) voltado à organização da vida privada; c) dentro de relação genérica; d) com a utilização do poder de autoridade. (os grifos não são do original).

A exigência do justo título para execução de liberdades econômicas e do direito de propriedade é um exemplo dessa ordenação.

Não há, pois, como se falar que a atuação da agência reguladora, na repressão de irregularidades, possa ser considerada violadora da livre iniciativa ou do direito de propriedade.

2. Os serviços de interesse econômico geral

De outra parte, o conceito de serviço público envolve elementos históricos, culturais, políticos e econômicos que impedem que na Lei Maior sejam definidas todas as atividades de interesse geral que devam ser submetidas a uma disciplina estatal. Daí o art. 175, CF prever a possibilidade de a lei instituir novos serviços, bem como a correspondente disciplina de sua prestação mediante concessões e permissões.

O caso do “transporte alternativo de passageiros” bem reflete essa dificuldade de lidar com o conceito de serviços públicos, que envolve uma separação daquilo que não se adequa a tal disciplina, como bem explica Marçal Justen Filho

2:

Existem serviços – que não são públicos – cujo desempenho pelos particulares sujeita-se a uma fiscalização estatal mais rigorosa. Essas 2

JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria geral das concessões de serviço público. São Paulo: Dia-lética, 2003, p. 129-130.

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atividades econômicas sujeitas a maior fiscalização estatal são conhecidas em todos os países do mundo, inclusive nos ordenamentos que não consagram o instituto do serviço público. Muitas vezes, costuma-se utilizar a expressão serviço público virtual para a eles referir-se. A hipótese abrange os casos de transporte por meio de táxi, profissões regulamentadas, atividades de hotéis, bancos, seguros etc.Entre nós, a hipótese está explicitamente prevista no art. 170, parágrafo único, da CF/88. Ali se prevê que a lei poderá subordinar o exercício de certas atividades a uma autorização estatal prévia. O ato estatal destina-se a verificar o preenchimento pelo particular dos requisitos necessários. A intervenção do Estado, nesses casos, não atinge a natureza do serviço nem altera o regime jurídico sob o qual se desenvolve, ainda que se imponham requisitos para o desempenho das atividades e se as subordine a controle de intensidade variável. (os grifos não são do original).

Já se teve a oportunidade de apontar sobre o regime jurídico do título legitimador de tais situações híbridas

3:

Ao lado dessas fórmulas previstas no artigo 175, CF, foi prevista, como instrumento de ampliação da competição, a autorização dos serviços para sua exploração em regime privado, mediante ato administrativo vinculado (e não discricionário, como definido na citada doutrina clássica de Hely Lopes Meirelles), editado desde que preenchidas as condições objetivas e subjetivas necessárias à obtenção do título atributivo do direito de ingresso no mercado.Esta será baseada nos princípios constitucionais da atividade econômica, tendo por objetivo garantir a diversidade de serviços, o incremento de sua oferta e sua qualidade, a competição livre, ampla e justa, o respeito aos direitos dos usuários, a convivência entre as modalidades de serviço e entre prestadoras em regime privado e público, observada a prevalência do interesse público, o equilíbrio das relações entre prestadoras e usuários dos serviços, a isonomia de tratamento às prestadoras, o uso eficiente dos bens públicos, o cumprimento da função social do serviço de interesse coletivo, bem como dos encargos dela decorrentes.O preço dos serviços será livre, reprimindo-se toda prática prejudicial à competição, bem como o abuso do poder econômico.A prestadora de serviço em regime privado não terá direito adquirido à permanência das condições vigentes quando da expedição da autorização

3SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito administrativo regulatório. Rio de Janeiro: Lumen

Juris, 2002, p. 323-324.

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ou do início das atividades, devendo observar os novos condicionamentos impostos por lei e pela regulação, as quais concederão prazos suficientes para adaptação aos novos condicionamentos.A Agência poderá, excepcionalmente, em face de relevantes razões de caráter coletivo, condicionar a expedição de autorização à aceitação, pelo interessado, de compromissos de interesse da coletividade.Não haverá limite ao número de autorizações de serviço, salvo em caso de impossibilidade técnica ou, excepcionalmente, quando o excesso de competidores puder comprometer a prestação de uma modalidade de serviço de interesse coletivo, hipótese em que as prestadoras serão selecionadas mediante procedimento licitatório. (os grifos não são do original)

Em síntese: mesmo nos casos em que a atividade não se amolde ao conceito tradicional de serviço público, o interesse geral sobre ela e o impacto do seu exercício sobre o serviço público legitimam a atuação fiscalizadora e reguladora da agência, de modo a não expor o usuário e o consumidor, bem como a sociedade em geral, a riscos decorrentes do abuso de liberdades.

No caso dos transportes, que a própria Lei Maior definiu não só como serviços públicos, como, além disso, essenciais, é evidente a legitimidade para coibir abusos. Especialmente no caso do desenvolvimento de atividades sem justo título.

3. Polícia administrativa

Como dito, no caso dos transportes, não há maior problema, eis que em várias passagens da Constituição Federal deles já se trata como serviços públicos, recebendo, inclusive, o qualificativo de serem “essenciais”.

Portanto, a fiscalização daqueles que preenchem ou não os requisitos para a prestação do serviço público é típica atividade regulatória, assim como reprimir as irregularidades constatadas nessa fiscalização. Como a imperatividade e a coercibilidade são atributos do ato de autoridade de polícia, a ordem de cessação imediata da irregularidade e a contenção dos meios para a sua prática são absolutamente legítimos.

Conforme já lecionava Hely Lopes Meirelles4, sobre os atributos do poder de

polícia:4 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 24. ed. São Paulo : Malheiros,

1999, p. 119-122.

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O poder de polícia administrativa tem atributos específicos e peculiares ao seu exercício, e tais são a discricionariedade, a auto-executoriedade e a coercibilidade.A coercibilidade, isto é, a imposição coativa das medidas adotadas pela Administração, constitui também atributo do poder de polícia. Realmente, todo ato de polícia é imperativo (obrigatório para seu destinatário), admitindo até o emprego da força pública para seu cumprimento, quando resistido pelo administrado. Não há ato de polícia facultativo para o particular, pois todos eles admitem a coerção estatal para torná-Ios efetivos, e essa coerção também independe de autorização judicial. É a própria Administração que determina e faz executar as medidas de força que se tornarem necessárias para a execução do ato ou aplicação da penalidade administrativa resultante do exercício do poder de polícia.O atributo da coercibilidade do ato de polícia justifica o emprego da força física quando houver oposição do infrator, mas não legaliza a violência desnecessária ou desproporcional à resistência, que em tal caso pode caracterizar o excesso de poder e o abuso de autoridade nulificadores do ato praticado e ensejadores das ações civis e criminais para reparação do dano e punição dos culpados. (os grifos não são do original).

Também, sobre a competência administrativa cautelar, confira-se o ensinamento de Carlos Ari Sundfeld

5:

Entre as competências da Administração ligadas aos condicionamentos de direito, insere-se a de repressão da sua inobservância. A atividade repressiva é veiculada por instrumentos com variada finalidade e intensidade. Dentre eles, devem-se distinguir três, especialmente relevantes: a) a ordem para correção de irregularidade; b) a medida cautelar; e c) a sanção.[...]Medidas cautelares são providências de caráter provisório ditadas pela urgência de fazer cessar ilegalidades que coloquem em grave risco a vida, a saúde, a segurança da sociedade.Freqüentes vezes, a infração administrativa, por suas características de gravidade e perigo aos interesses públicos, exige a adoção de providências imediatas, voltadas a impedir sua continuidade. Figure-se o comerciante suspeito de usar seu estabelecimento para o tráfico de drogas: é imperioso impedir desde logo suas atividades, evitando o prosseguimento das práticas ilícitas. Contudo, a sanção de interdição do estabelecimento depende de procedimento em que, ademais de se comprovar a infração, seja garantido o direito de defesa, com todos seus desdobramentos, demandando prazo

5 SUNDFELD, op. cit., p. 73-74; 77-79.

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relativamente longo. A solução para, nessas hipóteses, evitar o perigo, não é como supõem certos administradores – aplicar imediatamente a sanção, lançando ao punido o ônus de desconstituir o ato sancionador. Aceita-se apenas a interdição cautelar, até a conclusão do procedimento. Tal medida não é sancionadora, mas acauteladora, o que, se por um lado dispensa o procedimento para garantia do direito de defesa, por outro impede a imposição de gravames desnecessários à cessação do perigo, bem como implica em que, constatada posteriormente a falsidade da imputação, sejam cabalmente indenizados os prejuízos causados pela aplicação da medida.A distinção entre sanção e medida cautelar administrativa tem sentido, visto ser juridicamente inaceitável a substituição de uma pela outra. No exemplo utilizado, embora ambos gerem efeitos imediatos semelhantes (o fechamento do estabelecimento), têm fins e requisitos procedimentais diversos. A finalidade do ato sancionador é subjetiva: impor conseqüência desfavorável ao infrator, para com isso puni-lo. Sua prática exige o procedimento com garantia de ampla defesa. A medida cautelar tem finalidade objetiva: eliminar o perigo, presente ou iminente. Daí dispensar prévio procedimento.(os grifos não são do original).

No âmbito do transporte que abrange mais de um município, dentro de um mesmo Estado, é inequívoca a competência do regulador estadual para reprimir as ilegalidades cometidas tanto por concessionários e permissionários, como, sobretudo, por terceiros que sequer disponham de tal titulação para o desenvolvimento da atividade.

Trata-se, pois, da tradicional função de polícia administrativa, fundamento da função de administrar, que tem por objetivo a convivência harmoniosa, como exposto por Márcia Walquíria Batista dos Santos

6, destacando a competência estadual em

matérias de interesse regional:

O poder de polícia destaca-se dentre os poderes administrativos cuja finalidade única e exclusiva é fiscalizar e adotar medidas para disciplinar direitos fundamentais da coletividade. Em outras palavras, é uma atividade da Administração Pública que tem por objetivo o controle dos limites a direitos e liberdades. Os assuntos de interesse nacional ficam sujeitos à regulamentação e policiamento da União, enquanto as matérias de interesse regional submetem-se às normas e à polícia estadual. Dessa maneira, fica claro que só compete à Administração Pública de cada Estado o exercício do poder de polícia. (os grifos não são do original)

6 SANTOS, Márcia Walquíria Batista dos. Poder de polícia. Boletim de Direito Municipal, São

Paulo, n. 9, p. 643, 2002.

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Essa polícia administrativa está incluída na função de regular, como tarefa de identificar a prestação ilegal do serviço, para a defesa não só do equilíbrio dos contratos firmados, como, em especial, da segurança dos administrados expostos a tais práticas contrárias ao ordenamento. Confira-se a lição de Marçal Justen Filho

7:

Sob certo ângulo, a regulação consiste na utilização permanente, racional e intensificada das competências de poder de polícia.Na concepção clássica, o poder de polícia era visto como competência estatal orientada a reprimir o exercício de faculdades privadas, visando a assegurar a ordem pública. A ampliação da complexidade socioeconômica conduziu à necessidade de ampliação do âmbito de intervenção estatal.A regulação é um estágio posterior nessa evolução, em que o Estado restringe a autonomia dos particulares, visando a constrangê-los ou a induzi-los a produzir as condutas reputadas como socialmente úteis ou indispensáveis.A regulação vale-se não somente da imposição da repressão (deveres de abstenção), mas incorpora a promoção (deveres de fazer) como solução indispensável para atingir os resultados pretendidos pelo Estado.No modelo regulatório, o Estado restringe sua atuação direta, e as necessidades coletivas são satisfeitas pela atuação apenas dos próprios particulares. A regulação estatal perde sua conotação apenas repressiva e adquire contornos claramente promocionais. (os grifos não são do original)

O caso em exame traz uma ilegalidade explícita. O Código de Trânsito, instituído pela Lei nº 9.503/97, proíbe, expressamente, em seu art. 231, VIII, o transporte remunerado sem permissão das autoridades competentes:

Art. 231. Transitar com o veículo: [...] VIII - efetuando transporte remunerado de pessoas ou bens quando não for licenciado para esse fim, salvo casos de força maior ou com permissão da autoridade competente: Infração média; penalidade: multa; medida administrativa: retenção do veículo. (os grifos não são do original)

Além disso, outras condutas genericamente são repudiadas pela citada norma:

Art. 237. Transitar com o veículo em desacordo com as especificações, e com falta de inscrição e simbologia necessárias à sua identificação, quando exigidas pela legislação:.

7 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005, p.

453.

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Infração - grave;Penalidade - multa;Medida administrativa - retenção do veículo para regularização.Art. 238. Recusar-se a entregar à autoridade de trânsito ou a seus agentes, mediante recibo, os documentos de habilitação, de registro, de licenciamento de veículo e outros exigidos por lei, para averiguação de sua autenticidade:Infração - gravíssima;Penalidade - multa e apreensão do veículo;Medida administrativa - remoção do veículo.

Na hipótese, os transportadores irregulares são autorizados pelos Municípios, para atuação apenas dentro do seu território. Para o transporte de âmbito regional, a autoridade competente, por óbvio, não é o Município e, sim, o Estado. Este fixaria os padrões de apresentação do veículo, as placas e sinalizações a serem empregadas.

De maneira explícita, inclusive dando conhecimento de tal prática ao Poder Judiciário – como relata a consulta – os transportadores alternativos extrapolam tais limites, não recebendo dos Municípios qualquer fiscalização sobre essas ilegalidades, o que faz com que Jair Eduardo Santana aponte os danos que isso acarreta para a sociedade como um todo, especialmente em função dos riscos e prejuízos que cria

8:

O fato é que os Municípios não têm usado de seu poder para dispor legislativamente sobre o tema. E assim, o quadro já caótico se vê cada vez mais agravado.[...]A omissão da municipalidade traz consigo outros fatores negativos, de repercussões desastrosas ao equilíbrio da própria Administração Pública. O transporte clandestino é realizado em veículos de adequações duvidosas, em situações desconhecidas, nas quais não foi dada à comuna a oportunidade de participar da escolha dos veículos, nem de exigir limites quanto a eles e ao próprio transporte em si. Sobre o transporte coletivo clandestino igualmente não incide carga tributária. Tais fatores margeiam a participação do Município e, naturalmente, de seus habitantes na concretização do transporte coletivo, e ainda se lhes retira o direito à percepção dos tributos que deveriam reverter-se em forma de benefícios à própria municipalidade. Ousamos ir mais além. A tolerância

8 SANTANA, Jair Eduardo. Poder de polícia e omissão do Poder Público na fiscalização do

transporte clandestino de passageiros: responsabilização possível do Município. Boletim de Direito Municipal. São Paulo, n. 8, p. 615; 617, 2005.

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na realização de mencionada atividade clandestina atenta ainda contra o Estado de Direito, pois retira a participação, ainda que indireta, da sociedade em assunto de seu peculiar interesse, relegando a prestação do serviço ao arbítrio do particular, e, conseqüentemente, a seus anseios individuais, voltados à lucratividade.A ilegal permissão ao transporte clandestino constitui, deste modo, ato atentatório ao equilíbrio da vida social, de repercussões que, a longo prazo, tendem a ser desastrosas pois, se hoje, ao fechar os olhos à clandestinidade, o Município tolera a existência de serviços paralelos em seu espaço físico, num futuro não muito distante estaremos a conviver em um Estado de duas realidades distintas: uma oficial, respeitante aos princípios norteadores da República Federativa; outra marginal, ofensiva a mencionados princípios, livre dos olhos daquele que tem por dever garantir o equilíbrio social. Tolerar mencionada realidade significa admitir a incapacidade do Estado de reger questões básicas da vida social, bem como de propiciar aos cidadãos condições mínimas essenciais, tal como pretendia o legislador constituinte. É, sobretudo, permitir uma transformação desorientada do Estado de Direito, o que não se revela atitude consciente e comprometida por parte da Administração Pública. (os grifos não são do original)

Sobre essa tolerância à ilegalidade, que faz surgir uma administração paralela, Agustín A. Gordillo

9 traz magistral lição, que demonstra que a conseqüência prática

disso é a retirada de vigência das normas em função da omissão fiscalizatória:

[...] que existe, en medida imposible de apreciar con exactitud, una economía paralela a la oficial, que está desde luego desautorizada por el sistema jurídico formal, pero el aparato del Estado no se esfuerza a fondo ni permanentemente por perseguir; dicho de otra manera, que el régimen realmente vigente o imperante en la práctica en verdad prácticamente tolera ambos sistemas, en el sentido de que carecen de vigencia en forma estable las normas prohibitivas.[...]Según la clásica distinción de Kelsen, al carecer de vigencia las normas pierden también su validez. Aquí no la pierden totalmente, pero sí en determinados ámbitos o sectores. Es como si hubiera un acomodamiento entre ambos sectores: el sector de lo establecido, formal, legal y oficial, y el sector de lo no formal, ilegal, no oficial: se respetan mutuamente, y tienen al menos una tregua incierta, intranquila, pero tregua al fin. Las escaramuzas que de tanto en tanto la rompen no llegan jamás a una guerra

9 GORDILLO, Agustín A. La administración paralela. Madrid: Civitas, 1982, p. 44-45.

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total que pueda tener vencedores o derrotados definidos; más aún, veremos luego que están profundamente entrelazados.

Daí a lição de Márcia Walquíria Batista dos Santos10

:

“[...] o poder de polícia tende a proporcionar a convivência social mais harmoniosa possível, para evitar ou atenuar conflitos existentes no exercício dos direitos e atividades dos indivíduos entre si e ante o interesse da população.[...]A finalidade do poder de polícia é, em poucas palavras, a proteção do interesse público em sentido amplo.”

Nesse mesmo sentido, associando o poder de polícia à regulação, é o ensinamento de Juarez Freitas

11:

Com efeito, o exercício legítimo do “poder de polícia administrativa” significa intervenção reguladora em sentido amplo, nunca mutiladora da essência dos direitos. Nessa perspectiva, o exercício adequado e parcimonioso do “poder de polícia” é somente um instrumento de que dispõe o Estado para tornar menos assimétrico o desfrute simultâneo dos direitos individuais e coletivos daqueles que, nacionais ou estrangeiros, encontram-se sob sua jurisdição. (os grifos não são do original)

E segue nessa associação entre regulação e polícia, afirmando que 12

:

Menos do que “poder”, proclama-se a obrigação estatal de praticar limitações regulatórias, inclusive de conter a si próprio (o poder de polícia não se exerce apenas contra particulares, convém sulcar), ao fiscalizar, prevenir e, em último caso, reprimir o exercício dos interesses (não propriamente direitos) que não se mostrarem em sintonia com a promoção efetiva dos intangíveis direitos fundamentais em bloco. (os grifos não são do original)

A definição como serviço público ainda submete tal atividade a uma regulação distinta das demais atividades econômicas, embora, como dito, tanto na iniciativa estatal como na iniciativa privada o exercício das atividades econômicas (respectivamente em sentido lato ou estrito) se submetam a uma disciplina de polícia administrativa, que tem por objetivo resguardar a segurança do administrado.10

SANTOS, op. cit., p. 646-647.11

FREITAS, Juarez. Poder de polícia administrativa: novas reflexões. Boletim de Direito Ad-ministrativo, São Paulo, n. 6, p. 658, 2006.12

Ibid., p. 668.

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Em outras palavras, ultrapassado o modelo do Estado Liberal, nenhuma atividade econômica – seja ou não definida como serviço público – ou o exercício do direito de propriedade escapa a uma disciplina ordenadora estatal no sentido de que tais faculdades se submetam a parâmetros socialmente aceitos, especialmente no que concerne ao requisito “segurança” e proteção dos usuários e consumidores.

4. Os modelos de serviço público

O Brasil ainda adota o modelo francês de prestação de serviços públicos, por força do qual a atividade assim definida se submete à iniciativa estatal, apartada, pois, do regime de livre iniciativa, e só pode ser desenvolvida pelo particular que receba do Estado uma concessão, uma permissão ou uma autorização.

Tal modelo diverge do sistema norte americano, de Public utility (que não se confunde com a noção pátria de “serviços de utilidade pública”, voltada para atividades sociais e beneficentes). Naquele modelo, as atividades tidas como de “utilidade pública” continuam no regime de livre iniciativa, exercidas sob uma licença de polícia administrativa estatal, mas submetidas a uma regulação diferenciada.

Com o advento da União Européia, cabe destacar o surgimento de um terceiro modelo, dito modelo europeu, que não mais faz uso da expressão “serviços públicos” (daí se falar na “crise do serviço público”). Preferiu-se adotar a expressão “serviços de interesse geral”, para representar o gênero do qual são espécies os “serviços universais”, vocacionados ao atendimento do princípio da universalidade, com compromisso de continuidade na prestação e modicidade de custos – em razão do que, como dito, se autoriza a mitigação da idéia de livre iniciativa – e os “serviços de interesse econômico geral”, que, sem tais compromissos (de modicidade e de continuidade), se submetem a um regime de competição e liberdade de iniciativa, ainda que sob regulação diferenciada das demais atividades econômicas.

Exatamente em razão desses modelos diferenciados, a distinção entre serviço público e atividade econômica é cada vez mais criticada. Afinal, não interessa tanto saber se a atividade se submete ou não à iniciativa estatal, mas, sim, como ela é regulada para atendimento dos interesses da coletividade em obter serviços seguros e eficientes.

Sobre o conceito de serviço público, já é de longa data a lição de Gaspar Arinõ 13

ARIÑO ORTIZ, Gaspar. El servicio publico como alternativa. Revista Española de Derecho Administrativo, n. 23, p. 537, 1979.

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Ortiz13

:

El concepto de servicio público es un concepto equívoco, polivalente. Es un invento de principios del siglo XIX, elaborado doctrinalmente por el Derecho francés que lo ha venido ampliando progresivamente hasta dar lugar a un cajón de sastre en el que cabe – como dice VALLINA – lo que en cada momento quiere el Conseil d’Etat. Nuestra doctrina ha bebido abundantemente de la francesa, habiendo llegado con ello a un parecido grado de confusión. Con objeto de llegar aquí a conclusiones más o menos realistas (y nada polémicas) lo que se ha hecho es acudir a nuestro Ordenamiento jurídico vigente, a la vista del cual puede afirmarse que no existe un concepto legal unitario de servicio público. [...]En conclusión, puede afirmarse que hay fundamentalmente dos sentidos de esta expresión: un sentido orgánico (a él se alude cuando se habla de «los servicios», de «las necesidades del servicio», de «los objetos que no sean de servicio público», etc.); en este sentido, se identifica con el Estado, sus organismos y entidades, sus unidades administrativas, el sujeto que actúa, cualquiera que sea su actuación. En otro sentido, el servicio público se refiere a un conjunto de actividades que reúnen unas características singulares que las hace especialmente dignas de protección, regulación y dirección, cualquiera que sea el sujeto que las preste. (os grifos não são do original)

No Brasil, contudo, a distinção entre serviços públicos e atividades econômicas ainda se justifica diante da redação do art. 175, CF, que atribui ao Poder Público a sua prestação, sendo, pois, uma exceção constitucionalmente prevista ao princípio da livre iniciativa. Nesse sentido, comentando o pensamento do doutrinador espanhol, Dinorá Adelaide Musetti Grotti

14:

Por fim, trata Gaspar Ariño Ortiz das prestações de serviços universais. Distingue na regulação de serviços em regime competitivo os que são prestações de mercado e prestações de “serviço essencial universal”. De acordo com o pensamento de Ariño, o serviço essencial universal representa uma base mínima de prestações a que todos têm direito e aos quais o mercado, por si só, não daria resposta. O custo de tais prestações é muito superior ao que por elas se poderia pagar. Nesse caso, então, não há competição pelo simples fato de que não há oferta.

Como o Brasil adota o princípio federativo, a disciplina da prestação do serviço 14

GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. O serviço público e a Constituição Brasileira de 1988. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 318.

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se divide tanto no plano normativo como no executivo em serviços federais (com enumeração taxativa na Constituição), estaduais (que representam uma competência residual) e serviços locais, que cabem ao Município.

No setor de transporte de passageiros (já que o transporte de cargas é tradicionalmente tratado como atividade econômica, desde o Código Comercial de 1850), essa divisão de competências é nitidamente estabelecida pelo âmbito de atuação, estando, pois, frise-se, na competência estadual o transporte que ultrapasse os limites do município e cujo trajeto não envolva mais de um Estado.

Destarte, os tradicionais traços definidores do serviço público são o elemento “objetivo”, qual seja, a atividade que atende a uma necessidade de interesse geral, o “subjetivo”, representado pela sua prestação pelo Estado ou por seu delegatário, o “formal”, que submete a sua disciplina a um regime diferenciado (próprio). A estes, modernamente se adita (cada vez mais) o elemento “teleológico”, no sentido de que só se autoriza a mitigação do princípio da livre iniciativa se a atividade se submeter a uma disciplina diferenciada com vistas à eficiência na sua prestação.

Tanto o aspecto formal como o teleológico legitimam a regulação.

No caso dos serviços públicos, essa noção de “eficiência” é atendida quando sistematizados os princípios da universalidade – territorial e populacional, da continuidade na sua prestação, da modicidade de custos, com técnicas atuais, observando, ainda, parâmetros de cortesia e regularidade.

O elemento “teleológico”, no entanto, é cada vez mais voltado para a idéia de atingimento do dever de eficiência por meio da competição. Ou seja, não mais se presume que o Estado possa estabelecer, fechado em suas repartições, parâmetros adequados de atendimento do interesse geral, devendo, sim, promover a liberdade de escolha dos usuários, como leciona Fernanda Stracke Moor

15:

A ausência de exclusividade é regra em termos de concessão de serviços públicos, visando a um estímulo à competição e, conseqüentemente, a uma maior eficiência na prestação dos serviços. Outro aspecto positivo é a harmonia do dispositivo com os direitos do usuário-consumidor, que tem assegurado o direito subjetivo público à livre escolha do prestador do serviço. A este direito se opõe o dever da Administração em garantir a não-exclusividade. [...] A não-exclusividade incentiva a competitividade e 15

MOOR, Fernanda Stracke. O regime de delegação da prestação de serviços públicos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 83.

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a possibilidade da livre escolha por parte do usuário do serviço que entende ser o mais adequado, e, conseqüentemente, estimula a cooperação do cidadão com o Poder Público para que a sua participação direta no âmbito da prestação do serviço público cada vez mais contribua no aprimoramento da qualidade e acesso a todos os administrados-usuários.

A regulação volta-se ao atendimento de compromissos com a universalidade, criando-se, especialmente pela política tarifária voltada para a modicidade, condições de acessibilidade conciliadas com compromissos de continuidade. Tudo com vistas ao princípio da dignidade da pessoa humana, que, no que aqui interessa, se relaciona com a idéia de inclusão social propiciada pelos serviços de transporte em condições dignas – especialmente seguras.

Nesse sentido, Paolo Henrique Spilotros Costa16

, citando Lorenzo Martín-Retortillo Baquer:

Para Lorenzo Martín-Retortillo Baquer17

, a nova noção de serviço público passa por uma técnica de correção social e territorial, de modo que devam ser asseguradas uma gama de obrigações cuja pretensão seja a universalidade ou generalidade, com o serviço sendo disponível em todas as camadas sociais e em todo o território nacional. Indispensável, ainda, a consagração de um “estatuto jurídico dos usuários”, tal como consta no artigo 40 da lei de transporte terrestre espanhola, dispondo sobre o cumprimento de horários, tarifas adequadas etc. Daí que mesmo a doutrina administrativista tradicional vê-se diante da prestação de serviço sob o regime público e privado. É o caso, por exemplo, da “autorização”, comumente atrelada a serviços sem a característica de interesse coletivo, mas de consentimento do Poder Público em facultar ao particular a exploração de determinada atividade, subordinada, no entanto, à polícia administrativa. Com a nova visão de serviço público, parece que há uma indução de maior participação do particular, sem que o mesmo esteja submetido ao regime publicista que consta nas regras da permissão ou concessão de serviço público. (os grifos não são do original)

16 COSTA, Paolo Henrique Spilotros. O princípio da eficiência e a competitividade nos serviços

públicos de transporte coletivo. In: SOUTO, Marcos Juruena Villela; MARSHALL, Carla C. (Coords). Direito empresarial público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 591.17

Palestra proferida no painel “Serviços públicos e serviços de interesse econômico geral”, no Seminário de Direito Administrativo Brasil-Espanha, realizado no Rio de Janeiro, nos dias 24 a 26 de outubro de 2001.18

COSTA, op. cit., p. 591.

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O autor18

já destacava o problema de se admitir, em regime de competição, agentes sem o devido vínculo com o Poder Público:

Neste sentido, o Poder Público deve estar preparado para conviver com atividades atreladas ao regime privado. Por outro lado, deve o Poder Público reprimir atividades ilegais de transporte praticadas por particulares sem a devida autorização, em hipótese típica de poder de polícia. (os grifos não são do original)

Dinorá Adelaide Musetti Grotti19

destaca o papel da regulação mesmo sobre as atividades autorizadas, sejam ou não serviços públicos:

[...] o conceito de serviço público se aproxima mais da idéia de atividade regulamentada, própria do mundo anglo-saxão; c) a substituição do regime fechado e em exclusividade, por um regime aberto, em princípio, quanto à entrada no setor, sob regime de autorização vinculada, submetida a uma “regulação por causa de serviço público” e à imposição de encargos ou obrigações de serviço, na medida em que deve garantir determinadas prestações ao público, que se imporão a todos quantos atuem no setor. O cumprimento de tais obrigações pode impor-se unilateralmente pela norma reguladora do serviço, ou contratualmente, pactuando-o, em cada caso, com os distintos operadores quando lhes é outorgada a autorização para atuar no setor. (os grifos não são do original)

Como a liberdade não afasta o dever de serem disponibilizados bens e serviços “seguros”, há uma evidente distinção entre “serviços públicos” e “polícia administrativa”, esta representada pelo condicionamento do ingresso no mercado mediante demonstração de atendimento de requisitos mínimos – no caso dos serviços de transportes, que tanto os veículos como os seus condutores preencham requisitos que demonstrem haver condições de trafegabilidade.

São, pois, esferas e momentos absolutamente distintos de atuação, no serviço público e na polícia administrativa (tradicionalmente chamada de “poder de polícia”); são, também, tradicionalmente, autoridades distintas para cada uma dessas etapas da atividade administrativa. No caso dos transportes, o serviço público é disciplinado por uma agência reguladora, dentre os prestadores que preenchem os requisitos de segurança, avaliados pelos DETRANs de cada entidade federada, à luz dos critérios estabelecidos no Código de Trânsito Brasileiro, aprovado pela Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997. Trata-se da aplicação do princípio da especialidade, que orienta a repartição de competências administrativas em função das atribuições de cada entidade, que personifica tarefas inerentes ao Poder Público.19 GROTTI, op. cit., p. 320.

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Ultrapassados os requisitos de segurança, condição inafastável para o exercício de qualquer liberdade privada, a atividade definida como serviço público só pode ser desenvolvida por um particular que receba do Poder Público um “justo título” para tanto.

Em outras palavras, a “licença” do veículo, exteriorizada na “placa vermelha”, apenas atesta as condições de trafegabilidade do veículo vocacionado ao uso comercial. No entanto, o DETRAN se limita ao consentimento de polícia. Não é poder concedente. Não é, pois, o DETRAN quem expede a concessão, permissão ou autorização de serviços de transporte.

Como dito, no Brasil, este justo título é previsto no art. 175 da Lei Maior, que exige uma concessão ou permissão, sempre precedida de licitação, embora não se descarte o uso da autorização, para as atividades que, por sua própria natureza, precária ou complementar, não se submetam ao regime de concessão ou permissão. O objetivo do uso das autorizações é, como dito, incrementar a competição com vistas à eficiência, conferindo maior liberdade de escolha aos usuários.

No caso em exame, a autorização seria o “justo título” dessas atividades híbridas, assim descrita por Sara Jane Leite de Farias

20:

Objetiva-se aqui traçar a distinção entre as diversas formas de autorização outorgadas pelo Poder Público, configuradas na autorização de polícia, autorização de serviço público clássica e autorização para desenvolvimento de atividade econômica.Na verdade, poder de polícia e serviço público são institutos inerentes à atividade administrativa, diretamente relacionada à função regulatória do Estado. A atividade econômica, apesar de não constituir uma atividade administrativa, cuja regra é a exploração pela iniciativa privada, com fulcro nos princípios constitucionais básicos da ordem econômica (art. 170 da CRFB), também é objeto da regulação.Mister esclarecer que a função regulatória é compatível e pode integrar cada uma das funções da Administração Pública (discricionária, de direção, normativa, sancionatória), variando conforme o tipo de atividade (polícia administrativa, gestão de serviços públicos, ordenamento econômico e ordenamento social).A justificativa de tal diferenciação encontra-se na necessidade de esclarecer que, hodiernamente, existe a possibilidade de prestação de serviços públicos 20

FARIAS, Sara Jane Leite de. Regulação jurídica dos serviços autorizados. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 85-86.

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por meio de autorização administrativa (quando assim for determinado pelo legislador infraconstitucional). Entretanto, o que restará evidenciado é que não se está exclusivamente no terreno das autorizações clássicas, tidas como atos discricionários; pois pode tratar-se, por vezes, de um ato vinculado. Aduza-se que referido instituto passou a ser adotado como um instrumento viabilizador da competição, sob a denominação de “autorização vinculada”. Torna-se mister esclarecer que não se trata de uma nova “modalidade” de autorização ou ato autorizatório, mas de uma evolução do provimento decorrente do novo cenário propiciado pelo processo de desestatização, caracterizado pela prestação de alguns serviços públicos num regime de direito privado, o qual sobrevive ao lado do regime de direito público, por meio de concessão e permissão.Outrossim, pode-se afirmar que a distinção entre serviço público e polícia administrativa consiste no fato de que o serviço público visa ofertar ao administrado uma utilidade, ampliando, assim, o seu desfrute de comodidades, mediante prestações feitas em prol de cada qual; já a polícia administrativa visa a restringir, limitar, condicionar, as possibilidades de sua atuação livre, exatamente para que seja possível um bom convívio social.

Trata-se, pois, de relevante instrumento regulatório, para disciplina da atividade e fomento à competição justa.

5. A competição nos serviços públicos

Não mais se limita essa competição pelo direito de entrar no mercado à licitação, que representa um modelo de regulação clássica ou regulação substitutiva da competição, pelo qual se desenvolve uma escolha pública dos padrões de eficiência, traçados no edital de licitação e na minuta de contrato desenvolvida pela própria Administração.

Desde o advento da Lei nº 8.987/95, art. 16, se previu, ainda, a competição no mercado, fixando-se a ausência de exclusividade como regra, não mais se admitindo concessões ou permissões com caráter de exclusividade, ainda que decorrentes de uma licitação, ressalvadas as situações de inviabilidade técnica ou financeira – como pode ser o caso em que a exclusividade seja a base da equação econômico-financeira, que garante o equilíbrio contratual, como explica Cármen Lúcia Antunes Rocha

21:

A exclusividade, como cláusula protetora da concessionária contra 21 ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Estudo sobre concessão e permissão de serviço público

no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 81-82.

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a concorrência, define a formulação, segundo essa base, da equação econômico-financeira, garantindo-lhe o equilíbrio. Ela concerne assim, no ensinamento de Alain-Serge Mescheriakoff, à regra integrante da relação riscos e vantagens a compor a relação contratual da concessão de prestação de serviços públicos.

Muito embora essa exclusividade ainda seja uma realidade no setor de transporte rodoviário de passageiros, já que os traçados urbanos não permitem a existência de mais de uma linha no mesmo trajeto, sob pena de se paralisar o trânsito das cidades e estradas com múltiplos “engarrafamentos”, a competição prevista com vistas à eficiência se desenvolve “entre mercados”, ou, mais especificamente, entre serviços públicos distintos. É o caso dos diversos modais de transportes, ônibus, táxis, vans, metrôs, trens, bondes, barcas, disputando a preferência dos usuários pelos melhores serviços, em termos de horários, conforto, trajeto etc.

Assim explicita Paolo Henrique Spilotros Costa22

:

É o caso, por exemplo, das delegações de transporte por ônibus, cuja execução opere de um lado a outro de uma baía, e a delegação de transporte aquaviário com o mesmo destino, ou na hipótese do metrô concorrendo com ônibus e vans. Opera-se, aí, a competição entre serviços públicos de transportes distintos, que pode ter sido implementada pelo Poder Público de forma a garantir opções aos usuários, para motivar eventual único prestador de serviço a modernizar e melhorar seu serviço, fazendo-o por meio da sempre salutar competição, ou mesmo por que o mercado de usuários permite, e até necessita de várias formas, posto que dirigido a uma camada populacional cuja demanda seja enorme.[...]Todavia, apesar desta previsão preferencialmente ter de ser feita antes da concessão para a linha de ônibus, se o caso não for de exclusividade, nada impede que outra delegação seja outorgada, posto que o primeiro concessionário, na elaboração de sua proposta, assumiu o risco de eventualmente competir com outro. (os grifos não são do original).

Nesse mesmo sentido, leciona Marçal Justen Filho23

:

Uma vez assegurada a exclusividade, o particular tem direito à sua manutenção. A infringência à exclusividade não pode ser reputada como

22 COSTA, op. cit., p. 559 e ss.

23 JUSTEN FILHO, Marçal. Concessões de serviços públicos. São Paulo: Dialética, 1997. p.

192.

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problema privado do concessionário ou permissionário. A responsabilidade é do poder concedente, único titular do poder autoritativo para promover a cessação das atividades de competição indevida. O particular que ofende à exclusividade está desempenhando serviço público indevidamente. Logo, ofende-se ao interesse público, antes do que ao interesse privado do concessionário. A omissão do Estado em adotar providências caracteriza renúncia ilegítima da competência para prestar o serviço público e determinar as condições de seu exercício. (os grifos não são do original).

Ainda que a concessão exclusiva não afaste a possibilidade de autorização de serviços de interesse econômico geral (que, frise-se, não são serviços públicos típicos), ao concedente e ao regulador cabe a defesa da justa competição – legitimadora da fiscalização e da regulação.

Linhas “alternativas” não se submeteriam à licitação ou ao regime de concessão, tendo em vista que não representam serviço público típico – ou seja, o voltado à generalidade e com modicidade de custos. A hipótese, portanto, seria típica de autorização da exploração do serviço público em regime privado, mas sempre sob regulação, com vistas à segurança e à qualidade na prestação, bem como para defesa da competição leal e justa.

Mas não para por aí, já que também se reconhece a validade da competição entre serviços públicos e atividades econômicas em regime de livre iniciativa, para as quais a Constituição Federal, no art. 170, parágrafo único, parte final, previu o regime de autorização.

6. A regulação promotora da competição

É justamente nesse cenário, de serviços prestados em regime público em competição com os serviços prestados em regime privado, que se situa a questão dos transportes alternativos ou complementares, sob regime de autorização, impondo-se fazer a distinção entre usuário e consumidor, mas, jamais afastando o conceito acima lançado de se submeterem tais atividades a uma regulação promotora da competição. Afinal, mesmo o serviço público prestado em regime público, ainda que inserido no Capítulo da Ordem Econômica, retira a atividade do plano da livre iniciativa e a submete a uma disciplina estatal. Vale lembrar que tal exceção ao fundamento da República se dá, apenas, quanto aos serviços que preencham os requisitos da generalidade, da continuidade e da modicidade de custos.

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Como ensina, sobre a legitimidade reguladora das atividades de interesse geral, Dinorá Adelaide Musetti Grotti

24:

Não se incluem no conceito de atividade econômica em sentido restrito certas atividades que a Constituição qualificou como serviço público.[...]Os serviços públicos, de forma diferente, a par de sua dimensão econômica – visto serem também relativos a bens escassos – obedecem a parâmetros diferentes a respeito da oportunidade e conveniência de serem prestados em determinadas condições, sob prerrogativas e sujeições especiais. Referem-se ao espaço público e não ao espaço privado, e sua qualificação como serviço público supõe excluir uma atividade das regras de mercado. (os grifos não são do original).

Frisa-se, assim, a idéia de que os serviços alternativos não estão abrigados no típico conceito de serviço público e, ainda que possam ser explorados como mera atividade econômica, submetem-se, em regra, a um consentimento – autorização do poder competente –, não se podendo afirmar que o Poder Concedente ou o Órgão Regulador possam ficar alijados do processo de sua fiscalização.

7. As atividades comunicadas e a omissão na comunicação

Dada a dificuldade de se precisar os limites da definição de “serviço público”, há situações fronteiriças entre a legalidade e a ilegalidade na sua exploração.

Para evitar essa incerteza, o interessado, não dispondo de justo título – concessão, permissão ou autorização – para o desenvolvimento da atividade, deve “comunicar” o seu exercício à “autoridade competente”.

Trata-se de tema ainda pouco explorado doutrinariamente25

.

A autoridade administrativa de regulação deve ser destinatária de tal

24 GROTTI, op. cit., p. 318-319.

25 No direito brasileiro ver SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo ordenador. São Pau-

lo: Malheiros, 1997, além do já citado SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito administrativo regulatório. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 75; na Espanha, bem destacada a obra de NÚÑES LOZANO, Maria del Carmen. Las actividades comunicadas a la administración: la potestad administrativa de veto sujeta a plazo. Madri: Marcial Pons, 2001, p. 73 e ss.

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comunicação, cuja função é assim explicada por Paulo César Melo da Cunha26

:

É aqui que se insere a contribuição deste estudo para o aprimoramento das ações de controle estatal sobre as atividades de interesse geral.No caso dos serviços públicos, prestados em regime público, é o Estado quem toma a iniciativa de promover a delegação; nos serviços públicos prestados em regime privado, o interessado requer uma autorização de exploração do serviço; para as demais atividades econômicas, a lei prescreve o procedimento para provocação da Administração para o consentimento de polícia (via licença, autorização, permissão, matrícula, registro, enfim, os chamados “atos negociais” ou “receptícios”).Nas demais situações, o particular se submete à “fiscalização de polícia”, que não depende de provocação, mas, por outro lado, a Administração não dispõe de informações para saber como, quando e onde está sendo desempenhada a atividade que deve fiscalizar.Sugere-se, assim, que tais liberdades sejam exercidas mediante comunicação à Administração Pública.São as atividades comunicadas que viabilizam o conhecimento do seu desenvolvimento pelos órgãos e entidades da Administração a fim de que seja controlado o exercício de uma liberdade, de modo a que tal exercício não cause prejuízo ao interesse geral. Logo, diante da ausência de proibição em lei ou em contrato de concessão ou permissão e sem criar qualquer tipo de embaraço ao seu cumprimento, pode o prestador de um serviço público apresentar os fatos, os motivos e a descrição da operação pretendida.É o que se extrai da doutrina de Marcos Juruena Villela Souto, citando os ensinamentos de Maria DeI Carmen Núñes Lozano, que assim define as atividades comunicadas:“Importa registrar que nem toda atividade privada, econômica ou não, depende da prévia manifestação de polícia da Administração. Maria DeI Carmen Núñes Lozano destaca as atividades comunicadas à administração, distinguindo, dentre estas, aquelas dedicadas a mero registro ou para fins de informação, daquelas que habilitam a administração a intervir, provocando um controle a posteriori.”Como o fundamento não pode ser afastado, a regra é a liberdade. Logo, o que não estiver tratado na exceção normatizada estará contido na regra da liberdade. É lógico, entretanto, que a comunicação é importante para 26

CUNHA, Paulo César Melo da. As atividades comunicadas e o controle do exercício das liberdades. In: OSÓRIO, Fabio Medina; SOUTO, Marcos Juruena Villela (Coords). Direito administrativo: estudos em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 260-261; 266- 267.

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evitar dúvidas acerca da licitude da conduta. Por outras palavras, significa dizer que é medida de boa-fé do comunicante, que acaba fornecendo os meios para o exercício eficiente da fiscalização de polícia – não sendo um pedido de consentimento de polícia. A utilidade na discussão do tema das atividades comunicadas se encontra no fato de que se aplica a esta hipótese a mesma carga regulatória administrada às atividades naturalmente sujeitas à regulação estatal.A comunicação [...] (já que não representam o próprio serviço público), serve, exatamente, para que o regulador verifique se seu exercício não prejudica o serviço remanescente. (os grifos não são do original)

Conclui o autor, no mesmo sentido do descabimento de sanções quando a atividade, de boa fé, é comunicada:

O papel da atividade comunicada é fornecer ao Estado elementos necessários ao controle das ações privadas. Frise-se que os atos clandestinos são cotidianos. O Poder Público precisa ter conhecimento da existência da atividade.Quando muito, diante da atividade comunicada, o ente regulador poderia entender, mediante motivação técnica, que tal atividade prejudicaria o desempenho do serviço público ou as liberdades privadas, hipótese em que negaria a autorização e determinaria a paralisação, sem, no entanto, que caiba qualquer penalidade pelo exercício da liberdade comunicada.

No caso em exame, as atividades vêm sendo desenvolvidas além dos limites, de forma absolutamente irregular e clandestina, sem qualquer comunicação aos reguladores.

Portanto, não havendo indício de boa-fé no exercício de atividade comercial sem justo título, legítima a imposição de penalidades e das prévias medidas administrativas para a cessação das irregularidades.

8. A regulação sobre o fato jurídico do transporte irregular

Mesmo não comunicada oficialmente, há uma situação de fato a enfrentar, que interfere na regular prestação dos serviços concedidos sob regulação. Não se pode pretender validar, pela omissão, uma competição desleal, entre regulados e não regulados, colocando a todos em situação de risco.

Este é mais um dos desafios regulatórios que afetam o transporte, ao lado das concessões e permissões delegadas sem licitação, do transporte clandestino de

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passageiros, das omissões e interferências de outras entidades da Federação, das interferências do Poder Judiciário (como, por exemplo, legitimando prestações sem justo título) ou do Legislativo (instituindo gratuidades sem atentar para o equilíbrio dos contratos), culminando com os problemas decorrentes de modais de transportes em competição, mas submetidos a reguladores e critérios diversos.

Em outra oportunidade já se expôs27

, com fundamento nos ensinamentos sempre atuais de Hely Lopes Meirelles:

A atividade regulatória deve zelar para que os serviços de transporte de passageiros sejam prestados segundo regras objetivas de seleção que elejam os meios adequados e eliminem conflitos ou competições desleais entre as diversas modalidades enunciadas, e mediante articulação coordenada e planejada, que permita obter eficiência na prestação, satisfação das necessidades públicas e justa rentabilidade dos serviços. Confira-se a lição de Hely Lopes Meirelles sobre o tema: “Todavia, sendo estáveis as permissões de transportes outorgadas pelo Estado, devem ser respeitados os direitos dos permissionários, principalmente o direito à justa retribuição pelos serviços prestados, coibindo-se, entre outras práticas nocivas, a concorrência ruinosa... decorrente da exploração desenfreada de linhas, com o enriquecimento de alguns permissionários e o empobrecimento de outros ou a ruína de todos eles. Objetivando prevenir a concorrência ruinosa... fixa o critério para a aferição da necessidade de transporte com base no índice estatístico de utilização de veículos, em se tratando de região já servida. Observe-se que a concorrência singela não é vedada porque a permissão, por sua natureza, não confere exclusividade ao permissionário.[...]Se é certo que a competição entre atividades em regime de livre iniciativa e atividades em regime de serviços públicos ou mesmo entre os modais de serviços de transportes é uma realidade que deve ser incentivada, não é menos exato que mesmo as atividades em regime de livre iniciativa estão sujeitas ao poder de polícia administrativa, através de um ato de consentimento (licença) e de atos de fiscalização; afinal, a razão de existência do poder de polícia estatal é, exatamente, o condicionamento da liberdade individual em prol do interesse coletivo. Nesse sentido firmou-se a jurisprudência do Eg. STF, conforme se vê do V. Acórdão, da lavra do eminente Octavio Gallotti:

28

27 SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito administrativo das concessões. 5. ed. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 2004, p. 219; 222.

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Transporte rodoviário interestadual de passageiros. Não pode ser dispensada, a título de proteção da livre iniciativa, a regular autorização, concessão ou permissão da União, para a sua exploração por empresa particular.Recurso extraordinário provido por contrariedade ao disposto no art. 21, XII, e, da Constituição Federal. Do corpo do V. Acórdão se extrai o seguinte ensinamento: Decisiva, sim, ao que penso, na solução da contenda, é a invocação do art. 21, XII, e, da Constituição, que subordina ao regime de autorização, concessão ou permissão federais, a exploração dos serviços de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros, quando não assumidos diretamente pela União. Nesse campo reservado à atuação direta estatal ou de seus concessionários, permissionários, ou autorizados, não pode certamente atuar o particular, ao seu alvedrio, como admitido pelo acórdão a título de proteção da livre iniciativa ou concorrência, princípios que não encontram lugar na área reservada pela Constituição aos agentes da União ou seus delegados.Há que se considerar, neste ato, a “necessidade do transporte”, de modo a não inviabilizar os prestadores do serviço pela “quebra de escala”. (os grifos não são do original)

Mesmo quando se trata da ilegal exploração da atividade por meio de vans (transporte dito alternativo), existe possibilidade de algum tipo de disciplina preventiva da concorrência desleal, por meio da regulação estatal, conforme ensina Horácio Augusto Mendes de Souza

29, valendo-se do conceito de “serviço de interesse

econômico geral”, a ser submetido à autorização estatal, a exemplo da disciplina conferida ao tema na União Européia.

Assim, da autorização do serviço público de transporte rodoviário de passageiros, marcada pelo seu caráter estático, passa-se à regulação pela via da autorização para os serviços de interesse econômico geral que, ao serem exercidos, repercutem diretamente nos interesses primários da sociedade, como é o serviço de interesse econômico geral de transporte rodoviário intermunicipal alternativo no Estado do Rio de Janeiro.

Assim, como dito e repetido, a autorização, conferida por autoridade estadual, seria o “justo título” para legitimar a exploração da atividade.28

RE n° 214.382-1-CE. Boletim de Licitações e Contratos, n. 7, p. 411-413, 2000.29

SOUZA, Horácio Augusto Mendes de. Regulação do transporte rodoviário de passageiros. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 160-163.

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9. A regulação preventiva de risco e do agravamento de custos

A competição desregrada impõe riscos que podem levar ao agravamento das condições de prestação do serviço adequado.

Tal aspecto não pode ser ignorado pelo concedente ou pelo regulador, qualquer que seja a qualificação da atividade desenvolvida em competição sem justo título.

Sobre as características das agências e dos atos regulatórios, Leila Cuéllar30

:

Assim, neste quadro, os órgãos reguladores brasileiros que têm por objeto a regulação da prestação de serviços públicos visam, especificamente, a promoção da eficiência na prestação do serviço público, justa e razoável fixação de tarifas, mas também a defesa do mercado e das liberdades econômicas das pessoas vinculadas à prestação de atividades que até há algum tempo eram serviços públicos. No intuito de cumprir estes escopos, as agências reguladoras possuem competência para dirigir, regular e fiscalizar o serviço público (ou atividade econômica em sentido estrito).No que tange às atividades econômicas em sentido estrito que se submetem à fiscalização dos entes reguladores, saliente-se que a missão das agências é regular, normatizar, controlar e fiscalizar as atividades desenvolvidas por particulares, tendo em vista o interesse público (desenvolvimento de ações de proteção à saúde, no caso da Agência Nacional de Saúde Suplementar e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e a defesa dos interesses dos consumidores, almejando a manutenção da qualidade dos serviços e produtos ofertados, os preços justos, o respeito aos menos privilegiados e às minorias etc.

E conclui Leila Cuéllar31

:

Tendo em vista esse elenco de funções das agências, é possível chegar às seguintes conclusões primárias quanto à sua natureza jurídica:[...]são entes com competência sancionatória, pois podem punir, aplicando sanções àqueles que descumprirem as normas vinculadas aos serviços ou atividades econômicas;[...]Em suma: são pessoas jurídicas de Direito Público, com estrutura formal

30 CUÉLLAR, Leila. As agências reguladoras e seu poder normativo. São Paulo: Dialética,

2001, p. 79-80.31

Ibid., p. 81.

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autárquica e competência para regulamentar, contratar, fiscalizar, aplicar sanções e atender aos reclamos dos usuários/consumidores de determinado serviço público ou atividade econômica.

A Lei nº 8.987/95, em seu art. 29, XI, atribui ao Poder Concedente o dever de zelar pela competitividade nos serviços públicos.

A defesa da “justa competição” é fator mais do que óbvio para legitimar a atuação reguladora estatal em prol da sociedade e do mercado.

Como tal, a atividade de transporte ainda envolve um risco, que, no entanto, não deve ser agravado por ação deliberada do Poder Público. Deve ser oferecido um cenário que deixe o concessionário preparado para reagir a novas outorgas; afinal, como é sabido, o risco é elemento do custo e pode elevar tarifas ou afugentar investidores.

Marçal Justen Filho32

assim leciona com sua habitual precisão:

A exteriorização mais direta do risco do concessionário relaciona-se com a tarifa. O risco é “precificado” não apenas na acepção de comportar uma avaliação financeira mas também no sentido de integrar-se no valor da tarifa. Isso significa que, quanto maior o risco do concessionário, tanto mais elevada será a tarifa. A incerteza sobre os custos necessários à efetiva obtenção dos benefícios pretendidos pelo empresário se traduz em custos de transação, o que significa que o empresário transfere para o preço as incertezas e inseguranças que entranham sua atividade.Tal evidencia que a ampliação do risco do concessionário é incompatível com a realização do objetivo da tarifa módica. Se uma das finalidades essenciais da delegação é assegurar a prestação do serviço público mediante tarifas módicas, uma decorrência inafastável é a ponderação do risco a ser atribuído ao concessionário.

Em outra obra, Marçal Justen Filho33

, mantendo a coerência, afirma que:

assim colocada a questão, evidencia-se que a concessão importa, antes de tudo, a transferência dos riscos do empreendimento para os próprios usuários. Antes de configurar-se risco para o concessionário, tal se verifica em relação ao conjunto de usuários. É que a prestação satisfatória dos serviços concedidos faz-se com fulcro nas tarifas cobradas. A supressão de tarifas acarreta a suspensão do serviço. O insucesso do concessionário 32

JUSTEN FILHO, op. cit., 2003, p. 78.33

______. As diversas configurações da concessão de serviço público. Revista de Direito Público da Economia. Belo Horizonte, n. 1, p. 105, 2003.

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retrata-se na ausência de serviço adequado. Com a implantação da concessão, elimina-se a captação de recursos externos ao serviço para sua manutenção. O custeio passa a ser obtido internamente, a partir da contribuição dos próprios usuários, segundo um critério de intensidade de utilização (ou de provocação da necessidade da realização da despesa).

Em síntese, o estímulo à competitividade não pode ensejar uma quebra de equilíbrio contratual ou do princípio da modicidade das tarifas, sendo, pois, zelar por uma competição não ruinosa, um dever do Poder Concedente e do regulador, sob pena de restar descumprida sua obrigação no contrato de concessão.

No que interessa às hipóteses em exame, tal obrigação se exerce, precipuamente, pela fiscalização das condutas de concorrência desleal, que se realizem por agentes despidos de vínculo ou de título.

Nem se diga que bastaria o título expedido por autoridade municipal para o desenvolvimento de transporte regional.

Marçal Justen Filho demonstra com clareza a diferença de parâmetros entre a eficiência nos planos regional e municipal, bem como dos critérios de segurança e adequação

34:

Assim, seria incorreto avaliar a adequação do serviço público de transporte em uma metrópole de mais de seis milhões de habitantes segundo os mesmos critérios adotados para uma pequena e próspera cidade do interior. Em suma, serviço adequado é conceito indeterminado, a ser especificado por ocasião da sua aplicação, o que se fará em face das circunstâncias. Essa indeterminação deriva não apenas da amplitude do conceito em si mesmo, mas da variação das circunstâncias do mundo social, que deverão ser tomadas em vista.Adequação consiste em eficiência do ponto de vista técnico. A atividade deve ser estruturada segundo as regras técnicas a ela pertinentes e de modo a que se constitua em meio causalmente próprio para satisfazer necessidades dos usuários. A atividade em que se materializa o serviço público é um meio-causa que deve conduzir a um fim-conseqüência. Não será adequado o serviço que não for apto a satisfazer, do ponto de vista técnico, a necessidade que motivou sua instituição.Segurança é o desenvolvimento da atividade sem pôr em risco a integridade física e emocional de quem quer que seja (usuários e não usuários). Não

34 JUSTEN FILHO, Marçal. Concessões de serviços públicos. São Paulo: Dialética, 1997, p.

124 e ss.

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existe segurança em termos absolutos, na acepção da eliminação de todo e qualquer risco, em virtude da inviabilidade de subordinar a ocorrência dos eventos futuros a esquemas cognoscitivos e a vontade humana. Logo, não se pode qualificar um serviço como inadequado simplesmente por ter-se verificado ocasional ofensa à integridade física ou emocional de usuários. Segurança significa, no caso, a adoção das técnicas conhecidas e de todas as providências possíveis para reduzir o risco de danos, ainda que assumindo ser isso insuficiente para impedir totalmente sua concretização. Mais ainda, podem ser exigíveis apenas as precauções que não inviabilizem a prestação do próprio serviço. Assim, por exemplo, poderia supor-se que a segurança exigiria que os ônibus urbanos trafegassem a uma velocidade de 5 km por hora. Desse modo, ficariam afastados os riscos de danos graves por atropelamentos ou colisões. Porém, isso significaria a impossibilidade de cumprimento das finalidades do serviço público ou seu encarecimento até níveis insuportáveis. O deslocamento seria extremamente lento, o que exigiria maior número de veículos, com conseqüência de elevação de custo. Esse é apenas um exemplo, mas essa situação se aplica a todos os setores de atividades humanas.

Resumidamente, há uma situação fática a ser enfrentada pelo regulador, diante da presença dos transportadores, do dever de continuidade do serviço a ser cotejada com o dever de prestação de “serviço adequado” e do dever de preservar a “justa competição”, como é, exatamente, a questão do transporte clandestino de passageiros.

Afinal, qualquer que seja a natureza jurídica do transporte “alternativo” de passageiros – livre iniciativa ou prestação irregular de serviço público – é indubitável que de sua atuação decorre um impacto da competição desigual sobre a estabilidade financeira dos concessionários, com os conseqüentes riscos de responsabilização do Poder Concedente, sem falar no atendimento do interesse público primário, que é a segurança da população em geral. Daí, mais uma vez, a lição de Marçal Justen Filho

35:

O poder concedente é obrigado a promover todas as providências materiais destinadas a impedir a turbação da posse ou a introdução de obstáculos ao desempenho da atividade inerente à prestação do serviço público, sempre que tal não se inserir nas atribuições do concessionário.

Como dito, a regulação promotora da competição deve lidar com omissões e interferências de outras entidades da federação, tais como a má conservação de rodovias, ampliando os custos e riscos das concessionárias, a interferência municipal 35

Ibid., p. 437.

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na definição de trajetos de linhas estaduais e federais, com fundamento na política urbana, bem como, no que interessa especificamente à hipótese em exame, na outorga de títulos para transporte, sem a correspondente fiscalização de observância dos limites.

Aqui é inafastável a lembrança do princípio da Separação de Poderes e a competência para ponderar entre as medidas de segurança e o dever de modicidade de custos, bem como do fato de que o serviço prestado “por conta e risco” da concessionária não afasta o direito ao equilíbrio contratual e os deveres do concedente e do regulador zelarem por um cenário saudável para o desenvolvimento da competição e atentarem para o risco para a “justa” competição quando houver disparidade entre os critérios técnicos das agências reguladoras e critérios políticos de autarquias e/ou órgãos tradicionais.

Para tanto, relacionando regulação e polícia, explica Maria Angelita Nestor Ferreira

36:

Com efeito, a agência reguladora, ao fazer uso do poder normativo editando regulamentos e outros atos de sua competência, além de estabelecer regras mínimas e gerais para a adequada prestação do serviço público, também fixa abstenções que deverão ser respeitadas pelos particulares, sob pena de violação da ordem pública e do bem comum.[...] No momento em que inúmeros segmentos passam por uma gestão privada, produzindo alterações nas fronteiras do serviço público e, por via de conseqüência na polícia administrativa, o desafio pela busca do equilíbrio entre o interesse privado e o público permanece. Se, de um lado, é indelegável o exercício da polícia administrativa por concessionário privado de serviço público, de outro, hão de se construir alternativas que permitam a fiscalização de fato e de direito do usuário do serviço público sob pena de se contrariar tanto os direitos e garantias fundamentais como o interesse coletivo. (os grifos não são do original)

Há, pois, em função da ilegalidade detectada nessa fiscalização, espaço para a repressão, admitindo-se, contudo, uma situação negociada para o impasse.

10. Da legitimidade da interrupção do transporte36

FERREIRA, Maria Angelita Nestor. Serviço público concedido X polícia administrativa. In: COSTALDELLO, Ângela Cássia (Coord.). Serviço público: direitos fundamentais, formas organizacionais e cidadania. Curitiba: Juruá, 2005, p. 117-120.

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Mister se faz esclarecer que qualquer distinção entre retenção e apreensão de veículo não impede que a atividade seja interrompida, determinando-se a cessação do trajeto com a desocupação do veículo pelos passageiros.

Isso é legítimo, independentemente de se levar ou não o veículo ao depósito – aspecto secundário.

Confira-se a farta jurisprudência sobre o tema:

STJ. RESP 623859. Proc. 200302384004/RJ. 2ª TURMA. Decisão 02/08/2005 DJ 29/08/2005, p. 275. Min. Rel. Eliana Calmon.Decisão: Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça “A Turma, por unanimidade, negou provimento ao recurso, nos termos do voto da Sra. Ministra-Relatora.” Os Srs. Ministros Franciulli Netto, João Otávio de Noronha, Castro Meira e Francisco Peçanha Martins votaram com a Sra. Ministra Relatora.PROCESSUAL CIVIL – ADMINISTRATIVO – PRESTAÇÃO JURISDIONAL DEVIDAMENTE PRESTADA – INFRAÇÃO DO ART. 231, VII, DO CTB – TRANSPORTE IRREGULAR INTERMUNICIPAL DE PASSAGEIROS, SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO – PENALIDADE DE RETENÇÃO DO VEÍCULO – INAPLICABILIDADE DA PENA DE APREENSÃO.1. Não deve ser anulado o acórdão, se a prestação jurisdicional foi adequada e suficiente, inocorrendo violação aos arts. 458 e 535 do CPC.2. As penas para a infração prevista no art. 231, VII, do Código Brasileiro de Trânsito, consistem em multa e retenção do veículo, sendo que a referência à retenção não pode ser interpretada como se apreensão fosse, pois o referido Código, em diversos dispositivos, dá tratamento diferenciado às duas hipóteses.3. No caso de apreensão, o veículo é “recolhido ao depósito e nele permanecerá sob custódia e responsabilidade do órgão ou entidade apreendedora, com ônus para o seu proprietário, pelo prazo de até trinta dias, conforme critério a ser estabelecido pelo CONTRAN” (art. 262). Tais regras não são estabelecidas para os casos de retenção que é medida precária, subsistindo apenas até que determinadas irregularidades apontadas pela fiscalização de trânsito sejam sanadas.4. Desborda dos limites traçados na legislação federal, o ato administrativo estadual que prevê para a infração prevista no art. 231, VII, do CTB, a penalidade de apreensão, não podendo ser aplicado.5. Recurso improvido.

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Na mesma linha da Ministra Eliana Calmon, legitimando a penalidade em função da irregularidade no transporte é a orientação do Ministro Francisco Falcão:

STJ. RESP 622965. Proc. nº 200400081569/RJ. 1ª Turma. Data da decisão: 27/09/2005. Fonte DJ DATA:21/11/2005 p.130. Min. Rel. Francisco FalcãoDecisão: Vistos e relatados os autos em que são partes as acima indicadas, decide a Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial, na forma do relatório e notas taquigráficas constantes dos autos, que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Os Srs. Ministros Luiz Fux, Teori Albino Zavascki, Denise Arruda e José Delgado votaram com o Sr. Ministro Relator.ADMINISTRATIVO. TRÂNSITO. TRANSPORTE IRREGULAR DE PASSAGEIROS. APREENSÃO DO VEÍCULO AUTOMOTOR. IMPOSSIBILIDADE. HIPÓTESE DE RETENÇÃOI - Acertado o decisum do Tribunal de origem, porquanto o art. 231, VIII, do CTB, que trata da infração de trânsito por transporte irregular de pessoas, não prevê como penalidade para essa prática a apreensão do veículo, mas apenas a possibilidade de sua retenção.II - A retenção é mera medida administrativa que pode ser adotada pela autoridade de trânsito até que se regularize a situação para ser liberado o veículo, consoante disciplina do art. 270, § 1º, do CTB. Precedente: REsp nº 648.083/RJ, Rel. Min. Luiz Fux, DJ de 28/02/05.III - Não havendo notícia nos autos de que o veículo do recorrido apresentasse qualquer irregularidade capaz de levar a sua apreensão, estando a celeuma em tela circunscrita ao transporte irregular de passageiro, abusiva a atividade de se manter apreendido o veículo, por falta de previsão legal, independente da finalidade pretendida pela autoridade com tal medida.IV - Recurso especial improvido.

Admitindo, até mesmo, a apreensão do veículo, o Eg. TRF 1ª Região assim decidiu:

TRF 1ª Região. AMS Proc. nº 200138000292413/MG 6ª Turma. Data da decisão: 12/5/2003. Fonte DJ DATA: 2/6/2003 p. 163. Relator(a) Desembargador Federal Daniel Paes Ribeiro Decisão: A Turma, por unanimidade, deu parcial provimento à apelação da União e à remessa oficial. Participaram do julgamento os Exmos. Srs. Desembargadores Federais Souza Prudente e Maria Isabel Gallotti Rodrigues.CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. APREENSÃO DE

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Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 11, n. 16, jan./dez. 2007 111

VEÍCULO. INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA. DECRETO N. 2.521, ART. 3°. LICENÇA PARA TRANSPORTE INTERMUNICIPAL REMUNERADO DE PESSOAS, CONCEDIDA PELO DER. VALIDADE RESTRITA AO ESTADO. EXPLORAÇÃO DE SERVIÇOS DE TRANSPORTE RODOVIÁRIO INTERESTADUAL. IMPOSSIBILIDADE DE CONCESSÃO PELO PODER JUDICIÁRIO. SEGURANÇA CONCEDIDA, EM PARTE.1. A apreensão de veículos sem a observância dos princípios da propriedade e da legalidade, fere a Constituição Federal.2. Apesar de legítima a apreensão de veículo por estar transportando passageiros em desacordo com o Decreto n. 2.521/98, falece competência à autoridade administrativa para sua retenção, desde que cumpridas as exigências de praxe, tais sejam o pagamento de multa ou o oferecimento de defesa administrativa.3. In casu, a aplicação da multa se mostra cabível, eis que contrariando a legislação de regência, não possuía o impetrante permissão ou autorização para explorar transporte interestadual de passageiros.4. As licenças concedidas pelo DER para prestação de Serviço Fretado de Transporte Rodoviário Intermunicipal, só têm validade no âmbito de jurisdição dos Estados.5. Não cabe, por outro lado, ao Poder Judiciário conceder autorização ou permissão para a exploração do serviço de transporte rodoviário de passageiros.6. Segurança concedida.7. Sentença reformada parcialmente.8. Apelação da União e remessa oficial providas em parte.

TRF 1ª Região. AC Proc. nº 200338030037920/MG. Órgão Julgador: SÉTIMA TURMA. Data da decisão: 16/5/2006. Fonte DJ DATA: 7/7/2006, p. 72. Relator(a) DESEMBARGADOR FEDERAL ANTÔNIO EZEQUIEL DA SILVA Decisão: A Turma, por unanimidade, não conheceu do agravo retido da União e negou provimento ao apelo da autora.PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. TRANSPORTE IRREGULAR DE PASSAGEIROS. APREENSÃO DE VEÍCULO. AGRAVO RETIDO. LEI Nº 9.503/97 E DECRETO Nº 2.521/98. LIBERAÇÃO DO VEÍCULO CONDICIONADA AO PRÉVIO RECOLHIMENTO DA MULTA APLICADA. ILEGALIDADE.

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112 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 11, n. 16, jan./dez. 2007

1. Não se conhece do agravo retido interposto em face da decisão que deferiu parcialmente o pedido de liminar quando não é requerida sua apreciação em sede de apelação, nos termos do art. 523, § 1º, do CPC.2. Ainda que somente tenha sido mencionado no auto de infração o Decreto nº 2.521/98, o art. 231, VIII, do CTB (Lei nº 9.503 de 23.09.1997) legitima a multa aplicada por prestar serviço de transporte remunerado de passageiros sem delegação, a tanto equivalendo a prestação do serviço em modalidade diferente daquela que consta da autorização recebida.3. Como os atos administrativos gozam de presunção juris tantum de veracidade e de legalidade, é transferido ao administrado o ônus de demonstrar a inveracidade das alegações da Administração. No caso concreto, a autora não se desincumbiu do ônus de provar que não vendera passagens, tendo-se por correta a autuação.4. A infração prevista no art. 231, VIII, da Lei nº 9.503/97, a par da multa, somente enseja a medida administrativa de retenção do veículo (art. 269, I, do CTB), não se lhe aplicando a pena de apreensão prevista no art. 256, IV, do mesmo Código. Assim sendo, é ilegal o condicionamento da liberação do veículo ao pagamento prévio da multa, seja porque o art. 262, § 2º, do CTB só prevê esse condicionamento no caso de apreensão do veículo, seja porque a jurisprudência vem entendendo ser indevida a retenção de bens como forma de exigir o pagamento da multa.5. Agravo retido da União não conhecido.6. Apelação da autora não provida.

Há, ainda, decisões que reconhecem que o veículo perde a condição de regularidade, para fins de trafegabilidade enquanto não sanadas as pendências:

TRF 1ª Região. AMS Proc. nº 200238030033932/MG Órgão Julgador: SÉTIMA TURMA Data da decisão: 10/4/2006. Fonte DJ DATA: 16/6/2006 p. 49. Relator(a) DESEMBARGADOR FEDERAL CATÃO ALVES Decisão: A Turma, por maioria, deu provimento ao recurso de Apelação, prejudicada a Remessa Oficial.ADMINISTRATIVO – APREENSÃO E RETENÇÃO DE VEÍCULO POR TRANSPORTE RODOVIÁRIO IRREGULAR DE PASSAGEIROS – LIBERAÇÃO CONDICIONADA AO PAGAMENTO DE MULTAS E DESPESAS DECORRENTES DA INFRAÇÃO – LEGITIMIDADE – DECRETO Nº 2.521/98, ART. 85, § 3º – LEI Nº 9.503/97 (CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO), ARTS. 262, § 2º, 270, § 4º, E 271, PARÁGRAFO ÚNICO.1 - A liberação de veículo, autorizada por liminar, sem pagamento da multa

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e das despesas decorrentes da infração, não deixa sem objeto o Mandado de Segurança porque, somente com a quitação, o veículo estará, novamente, regular e, portanto, em condições de tráfego, e veículo irregular não pode trafegar. Conseqüentemente, denegada a Segurança e cassada a liminar, ficará sujeito a nova apreensão e retenção até regularização nos termos da Lei. (Decreto nº 2.521/98, art. 85, § 3º; Lei nº 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro), arts. 262, § 2º, 270, § 4º, e 271, parágrafo único.)2 - Lídima a exigência de pagamento da multa e demais despesas decorrentes da sua retenção e apreensão para liberação de veículo autuado por infração a normas da Lei nº 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro) e do Decreto nº 2.521/98 porque veículo irregular não pode trafegar, e nessa situação permanece até a quitação. (Decreto nº 2.521/98, art. 85, § 3º; Lei nº 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro), arts. 262, § 2º, 270, § 4º, e 271, parágrafo único.)3 - O fato de não prever a Lei nº 10.233/2001, ao estabelecer penalidades, a apreensão, nem a retenção do veículo não invalida as previstas no Decreto nº 2.521/98 e na Lei nº 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro), normas que regulam a espécie, diferentemente daquela, que não revogou as últimas, nem as alterou por, sem dúvida, regular matéria diversa, pormenor que torna legítimas a autuação, a apreensão, a retenção e a multa por transporte irregular de passageiros.4 - A distinção entre apreensão e retenção de veículo por transporte irregular de passageiros é irrelevante porque, em ambos os casos, sua liberação e regularização para continuar a trafegar dependem do pagamento da multa e das despesas resultantes da infração. (Lei nº 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro), art. 262, § 2º - apreensão; arts. 270, § 4º, e 271, parágrafo único - retenção.)5 - Cessada a infração com a apreensão e a retenção do veículo, este permanece irregular pela falta de pagamento da penalidade imposta e das aludidas despesas, uma vez que só estará novamente regular para trafegar depois do mencionado pagamento, em face do disposto nos arts. 85, § 3º, do Decreto nº 2.521/98, e 262, § 2º, 270, § 4º, e 271, parágrafo único, da Lei nº 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro), e veículo irregular não pode trafegar. Logo, a exigência desse pagamento como condição de liberação do veículo não é coação ou constrangimento para sua efetivação, mas tem origem e espeque em expressa determinação legal.6 - As Súmulas nºs 70, 323 e 547 do Supremo Tribunal Federal não se aplicam às infrações de normas que regulam transporte rodoviário de passageiros por tratarem de matéria tributária, portanto, diversa.7 - Apelação provida.

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8 - Remessa Oficial prejudicada.9 - Sentença reformada.10 - Segurança denegada.

TRF 2ª Região. AGRPSL Proc. nº 9902255752 – RJ. Plenário. Data da decisão: 02/08/1999 Fonte DJ DATA:05/10/1999 . Relator(a) Juiz Alberto NogueiraDecisão: Acordam os membros do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, por maioria, em negar provimento ao agravo, nos termos do voto do Relator, vencido o Desembargador Federal Ney Fonseca.

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL. DECISÃO QUE INDEFERIU PEDIDO DE SUSPENSÃO DE LIMINAR POR INDEMONSTRADA A GRAVE LESÃO À ORDEM PÚBLICA. EMPRESA TRANSPORTADORA PRESTANDO SERVIÇO À POPULAÇÃO LOCAL, CONFORME REGIME DE PERMISSÃO DISPOSTO NO DEC. Nº 92.353/86, ART. 141 E NA LEI Nº 8987/95. OCORRÊNCIA. LICITAÇÃO PÚBLICA. INEXISTÊNCIA.1. Como o DNER existe para atender ao interesse público, não pode simplesmente, por conta de não haver licitação pública, impedir o serviço que já vinha operando antes, de acordo com a legislação pretérita, como único prestador no trecho, sob pena de provocar o caos no transporte da região.2. Contudo, como órgão fiscalizador, cabe à autarquia aplicar penalidades por descumprimento da legislação pertinente, principalmente no que diz respeito à segurança dos passageiros e tarifas, sob pena de responsabilidade.3. Agravo improvido, por maioria.

Está-se, pois, diante de aplicação prática dos atributos de imperatividade e de executoriedade da polícia administrativa pela autoridade competente.

11. A regulação corretiva e o espaço para a composição consensual do conflito

É inegável o reconhecimento da legitimidade de atuação do regulador diante das externalidades que, de fato, afetam as atividades sob sua regulação. A interpretação regulatória corretiva, com fundamento nos princípios regedores da prestação dos serviços públicos, da isonomia e da justa competição, é um instrumento hábil para,

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no plano consensual, antes do repressivo, regularizar a situação aflitiva para o serviço. Para tanto, um instrumento possível é o “acordo substitutivo”, do qual é exemplo típico o “Termo de Ajustamento de Conduta”.

É aí que entra a idéia de consensualidade, com vistas à composição dos conflitos, traduzindo o conceito de “complementaridade” dos transportes ditos “alternativos”.

A identificação de “horários”, “trajetos”, “padrões de conforto” e outros aspectos de “segurança” poderiam ser elementos para, alternativamente à legítima repressão, ponderar os valores de “livre iniciativa”, “defesa do consumidor” e da “livre concorrência”, com a idéia de equilíbrio contratual e eficiência do serviço público.

12. Conclusões

Quanto aos argumentos que os transportadores irregulares alegam para continuar na prática ilícita, cumpre apontar que:

1. Os veículos autorizados apenas pela municipalidade para executarem o transporte comercial de passageiros não estão em situação regular; o emplacamento pelo DETRAN para uso de placa vermelha indica, apenas, condições de trafegabilidade para fins de transporte comercial, o que ainda depende do “justo título”;

2. O fato de os veículos terem sido fabricados segundo as normas brasileiras para o transporte de passageiros, estarem registrados e terem licenciamento em dia para o uso comercial, representa, sim, aptidão para o transporte de passageiros, desde que, no transporte comercial, estejam munidos do título conferido pela autoridade competente, que, no caso, é o Estado;

3. O REGULADOR é competente para determinar a apreensão de qualquer veículo no Estado ou impedir o trânsito de veículos, não só porque age em conjunto com o DETRAN, mas porque tem, na função regulatória, o poder de polícia de repressão das ilicitudes na prestação dos serviços públicos, que, para a sua prestação, dependem de justo título;

4. A exteriorização visual do justo título é a sinalização do veículo transportador complementar de passageiros com “faixa e numeração do regulador”, sem tal sinalização, é justa a interrupção do transporte;

5. O fato de não ter havido concessão por meio de processo licitatório, não

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obriga o regulador a expedir autorização para os portadores de permissão municipal continuarem a realizar o serviço de transporte de passageiros; é claro que, por meio de acordos substitutivos, pode ser solucionado o impasse, mas isso depende de consenso e de compromissos e não de atos de livre vontade;

6. Mesmo quando se trate de atividade submetida ao princípio da livre iniciativa, o livre exercício profissional se submete a condicionamentos de polícia;

7. O não pagamento da taxa de fiscalização implica a caducidade de permissões ou concessões, porque tal situação é descrita como uma das obrigações a serem cumpridas pelos prestadores de serviços públicos;

8. Não há violação no direito de propriedade em submeter os veículos à fiscalização e à retenção ou apreensão daqueles que não se adequam aos parâmetros de técnicos e jurídicos para a trafegabilidade ou para o transporte remunerado de passageiros; trata-se de medidas previstas na legislação do trânsito e dos serviços públicos;

9. O regulamento de serviço público de transporte complementar é um decreto, mas o transporte coletivo de passageiros é constitucionalmente definido como serviço público e exige concessão ou permissão para a sua prestação; mesmo nas situações híbridas, em que a atividade pode não se enquadrar no conceito de serviço público, o Código de Trânsito exige o justo título, que é emanado da autoridade competente – que expediria uma autorização.

Conclui-se, pois, que há plena legitimidade da agência reguladora para disciplinar e reprimir as irregularidades e compor conflitos, não assistindo qualquer direito aos transportadores sem justo título para desenvolvimento da atividade no âmbito regional.

Assim, a competência exercida pelo DETRAN não impede a atuação do regulador na defesa do serviço público. O DETRAN exerce atividade de polícia administrativa em matéria de segurança dos veículos, no que concerne ao exame das condições de trafegabilidade; isto não se confunde com a regulação da atividade de serviço público, que cabe à Agência reguladora instituída com tal finalidade. Aplica-se o princípio da especialidade, definindo-se a vocação de cada uma das entidades da Administração Pública.

O regulador pode, na qualidade de agente fiscalizador do serviço público de

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transportes, exercer atuação contra agentes que desenvolvem tal atividade em território sob sua competência, mas que não mantêm com o Estado vínculo de concessão, permissão ou autorização. A fiscalização não tem por objetivo verificar apenas a prestação regular do serviço pelos delegatários, mas, também, o dever de impedir a sua prestação irregular por terceiros não titulados.

O regulador pode impedir, no seu território de atuação, o transporte de passageiros em veículos delegatários de outros Municípios. O serviço público de transporte, de caráter local, compete a cada município, devendo ser exercido nos limites dos respectivos territórios. Fora destes, a atuação é ilegal e deve ser reprimida, por meio da interrupção do transporte.

O regulador tem meios jurídicos para provocar o impedimento de os Municípios vizinhos delegarem a prestação de serviços públicos locais, diante da situação fática de que os trajetos executados além da delegação estarem adentrando em seu território e que o número de autorizações excede, em muito, a quantidade necessária para atendimento do mercado local. Embora a delegação de serviços públicos se insira no âmbito da autonomia municipal, em cada entidade federada, os atos irrazoáveis e ilegítimos – posto que não voltados ao atendimento do interesse publico – mercado local – podem ser reputados ilegais e questionados judicial ou administrativamente. Há evidente desvio de finalidade nesses atos de consentimento em quantidade superior às necessidades do município.

Para tanto a medida que poderia ser adotada pelo regulador para provocar alguma atuação dos Municípios vizinhos no combate a essas ilegalidades praticadas por seus delegatários, que causam prejuízos ao serviço e aos cofres públicos, além da via judicial, poderia ser a representação – sujeita ao princípio da oficialidade do processo – para que os Municípios que expedem concessões, permissões e autorizações fiscalizem a fiel observância na execução de tais delegações, sob pena de cassação, sem prejuízo de medidas de reparação civil pelos prejuízos que causem ao Estado e aos seus delegatários pelo exercício ilegal de atividade definida como serviço público.

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Valor Constitucional e Significação Democrática dos Regimentos Parla-

mentaresDerly Barreto e Silva Filho

Procurador do Estado de São PauloMestre em Direito do Estado pela

Pontifícia Universidade Católica de São PauloProfessor do Curso de Especialização em Direito

Constitucional da PUC-SP

Ainda hoje – e particularmente no Brasil – rareiam investigações doutrinárias sobre o conjunto normativo referente às funções desempenhadas pelos órgãos responsáveis, num primeiro momento, por legislar e representar politicamente a sociedade e, depois, por outras mais, como fiscalizar atos de governo e elaborar planos governamentais.

Esse desinteresse sói ser tributado ao decrescente prestígio social da função parlamentar, que, durante os séculos XVIII e XIX, esteve umbilicalmente ligada aos interesses da classe burguesa,

1 preocupada em manter intactas posições e privilégios

individuais, pouco lhe importando as iniqüidades sociais que encerravam.2 No século 1

Nessa época, o Parlamento era composto de representantes de minorias “ilustradas”, pessoas abastadas e cultas. Benjamin Constant, por exemplo, assim justificava o sufrágio censitário: “en nuestras sociedades actuales, el nacimiento en el país y la madurez de edad no bastan para conferir a los hombres las cualidades requeridas para el ejercicio de los derechos de ciudadanía. Aquellos a quienes la indigencia mantiene en una perpetua dependencia y condena a trabajos diarios no poseen mayor ilustración que los niños acerca de los asuntos públicos ni tienen mayor interés que los extranjeros en una prosperidad nacional cuyos elementos no conocen y en cuyos beneficios sólo participan indirectamente”. “No quiero cometer ninguna injusticia con la clase trabajadora. Es tan patriota como cualquiera de las restantes, y a menudo realiza los más heroicos sacrificios, siendo su abnegación tanto más de admirar cuanto que no se ve compensada por la fortuna ni por la gloria. Pero una cosa es, a mi juicio, el patriotismo por el que se está presto a morir por su país y otra distinta el patriotismo por el que se cuidan los propios intereses. Es preciso, pues, además del nacimiento y de la edad legal, un tercer requisito: el tiempo libre indispensable para ilustrarse y llegar a poseer rectidud de juicio. Sólo la propiedad asegura el ocio necesario, sólo ella capacita al hombre para el ejercicio de los derechos políticos” (Principios de política, edición castellana de José Alvarez Junco, con traducción de J. Hernández Alfonso, Madrid, Aguilar, 1970, p. 57-58, apud Gregorio Peces-Barba Martínez. Reflexiones sobre el Parlamento. Revista de la Facultad de Derecho de la Universidad Complutense, Madrid, n. 10, p. 213-214, 1986).

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XX, o Legislativo foi obnubilado e eclipsado por um Poder Executivo agigantado e forte, que açambarcou a função governativa e a exerceu muitas vezes, e por longos períodos, de modo ditatorial, cerceando e obstruindo o livre exercício funcional dos órgãos representativos. Atualmente, os Parlamentos atravessam profunda crise de legitimidade política, agravada por recorrentes casos e acusações de corrupção, circunstância que coloca em xeque as virtudes do modelo de representação popular adotado.

Esses reveses, no entanto, não retiram a atualidade, o valor constitucional e a significação democrática das normas atinentes à atividade parlamentar no Brasil.

O objeto da presente investigação é demonstrar essa assertiva. E o ponto de partida para tanto remonta aos primórdios da tripartição dos poderes.

A estrutura orgânico-funcional do Poder do Estado, preconizada por John Locke e aperfeiçoada por Montesquieu, pressupõe logicamente que cada ramo de atuação seja disciplinado por um plexo normativo que trate de sua organização e funcionamento.

No Estado de poderes concentrados, não se podia falar, por exemplo, de um direito administrativo, como direito funcional do Poder Executivo, porque a função de administração não estava apartada das demais nem confiada a um órgão especializado. É somente com a separação dos poderes que ocorre a seção do direito público em departamentos específicos e autônomos, embora correlatos entre si.

3

No liberalismo, o direito administrativo adstringia-se a regular a atuação do Executivo como vigilante, tutor da ordem pública, protetor da propriedade e liberdade individuais. O direito processual, por sua vez, comprometia-se com a solução dos conflitos de interesse intersubjetivos e a punição das condutas violadoras da ordem estabelecida.

Na medida em que esses direitos funcionais visavam à conservação do status quo social e econômico, seu objeto era bem menos amplo do que o dos seus correspondentes 2 “Para o liberal – afirma Norberto Bobbio –, o fim principal é a expansão da personalidade

individual, mesmo se o desenvolvimento da personalidade mais rica e dotada puder se afirmar em detrimento do desenvolvimento da personalidade mais pobre e menos dotada” (Liberalismo e democracia. São Paulo: Brasiliense, 2005, p. 39).3 Essa correlação se explica porque o poder político estatal é uno, ainda que suas funções se

separem e se distribuam organicamente.

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no Estado intervencionista.

O campo de regulação do direito administrativo no modelo social de Estado foi totalmente redefinido em vista da ampliação da ação do Poder Público nos domínios econômico e social.

O advento desse Estado interventor ensejou a formulação de teorias, a criação de institutos jurídicos e a revisão ontológica de conceitos tradicionais do direito privado. Interesse público, serviço e servidor públicos, órgão, ato e contrato administrativos, responsabilidade civil contratual e extracontratual do Estado, controle e autotutela da Administração, limitações e restrições administrativas ao direito de propriedade, regime jurídico, princípios e prerrogativas da Administração, poder de polícia, domínio público, entre outros, são exemplos da evolução do direito administrativo.

O Poder Judiciário também sofreu notáveis transformações. Foi orgânica e funcionalmente reestruturado a fim de desempenhar suas novas e crescentes atribuições no contexto de uma Constituição de vocação social, atribuições estas decorrentes do estabelecimento de direitos e deveres de caráter público aos particulares e ao Estado, do correlato aumento da litigiosidade entre os indivíduos, e entre estes e o Poder Público, e da necessidade de proteger os administrados em face de erros e abusos da Administração Pública e seus agentes na aplicação da lei.

O direito processual seguiu a mesma sorte.

O juiz liberal atuava como servidor da vontade de um legislador que dispunha do monopólio da lei e da Constituição na condição de soberano, único ente que traduzia e representava a vontade coletiva, tal como definida pela burguesia por intermédio de seus membros no Parlamento. O processo era o instrumento de que se valiam as pessoas livres e proprietárias para obter a tutela do Estado-juiz, preordenada a garantir a incolumidade das esferas de senhorio individual.

No século XX, o processo judicial muda de feição e adquire outro sentido. E isto se capta sob vários aspectos.

José Carlos Barbosa Moreira enfoca essa remodelagem sob o prisma da função social do processo e do juiz na relação processual. Diz ele: “a transição do liberalismo individualista para o “Estado social de direito” assinala-se, como é sabido, por substancial incremento da participação dos órgãos públicos na vida da sociedade. Projetado no plano processual, traduz-se o fenômeno pela intensificação da

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atividade do juiz, cuja imagem já não se pode comportar no arquétipo do observador distante e impassível da luta entre as partes, simples fiscal incumbido de vigiar-lhes o comportamento, para assegurar a observância das “regras do jogo” e, no fim, proclamar o vencedor. Não menos que na economia, a emergência do “social” também no processo derrui o império do laisser faire. Recusa-se aos litigantes a possibilidade de marcar soberanamente o compasso da marcha processual; equaciona-se em novos termos o capital problema da “divisão de tarefas” entre as partes e o órgão de jurisdição”.

4

Do ponto de vista da democratização da sociedade e do Estado, J. J. Calmon de Passos percebe o processo como garantia constitucional e instrumento de atuação política. Para ele: “Cumpre proteger-se o indivíduo e as coletividades não só do agir contra legem do Estado e dos particulares, mas de atribuir a ambos o poder de provocar o agir do Estado e dos particulares no sentido de se efetivarem os objetivos politicamente definidos pela comunidade. Despe-se o processo de sua condição de meio para realização de direitos já formulados e transforma-se ele em instrumento de formulação e realização dos direitos. Misto de atividade criadora e aplicadora do direito, ao mesmo tempo”.

5

A Constituição, que desde o século XVIII prestava-se primordialmente a confinar as ações do Estado, passa a ter também como destinatária a sociedade.

As crises sociais decorrentes do fracasso do liberalismo, a instituição do sufrágio universal, o surgimento dos sindicatos e dos partidos no cenário político e a crença tanto num Estado Democrático de Direito quanto numa Constituição que assegurassem a dignidade humana e eliminassem as graves injustiças sociais levaram a uma nova concepção de direito e realçaram a importância funcional do Poder Judiciário.

Da boca que pronunciava as palavras da lei mediante autômato, positivista e silogístico processo de aplicação das normas civis e penais,

6 o juiz transforma-se em

um agente estatal que objetiva concretizar os valores de uma Constituição que encampa 4 A função social do processo civil moderno e o papel do juiz e das partes na direção e na

instrução do processo. Revista de Processo, n. 37, p. 145, jan./mar. 1985.5 Democracia, participação e processo. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO,

Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo (Coord.). Participação e processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988, p. 95.6 A propósito, ao tratar da Constituição da Inglaterra, Montesquieu dizia: “os juízes de uma

nação não são [...] mais que a boca que pronuncia as sentenças da lei, seres inanimados que não podem moderar nem sua força nem seu rigor” (O espírito das leis. Tradução de Fernando Henrique Cardoso e Leôncio Martins Rodrigues. Brasília: Universidade de Brasília, 1995. Parte II, Livro XI, Capítulo VI, p. 123).

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aspirações e escolhas políticas fundamentais da sociedade, trasladadas para o seu texto muitas vezes em termos vagos e imprecisos e em forma de metas e programas, cuja realização posterga-se para a prática e dinâmica constitucionais, para a luta político-jurídica em busca da consolidação de posições e direitos previstos em mera “folha de papel”, para usar da expressão referida por Ferdinand Lassalle, em alusão à retórica constitucional apartada dos “fatores reais do poder”.

7

Para aplicar e concretizar essa Constituição e garantir o seu primado, não basta a reprodução mecânica de sua letra à moda liberal; o juiz há de interpretá-la.

8 É a

interpretação judicial que torna certo que os valores consignados na Constituição não se volatilizarão em profusas e atomizadas vontades legislativas e administrativas, incumbidas de identificar e efetivar a vontade constitucional, por óbvio sentida diferentemente por legisladores e administradores.

No Estado Social, a evolução da função e do processo judiciais culmina com o estabelecimento do controle de constitucionalidade das leis e atos normativos e a criação das Cortes Constitucionais, marco definitivo da transformação do papel do juiz – de guardião da lei a guardião da Constituição.

A passagem do Estado Absoluto para o Estado Liberal e, depois, para o Estado Social também determinou agudas mudanças nas feições do Parlamento.

O primeiro movimento desse processo deu-se com a emancipação do Legislativo em relação ao Executivo.

Fazendo uma brevíssima digressão histórica, a Inglaterra do século XVII foi 7 “Onde a constituição escrita não corresponder à real – afirma Lassalle –, irrompe inevitavel-

mente um conflito que é impossível evitar e no qual, mais dia menos dia, a constituição escrita, a folha de papel, sucumbirá necessariamente, perante a constituição real, a das verdadeiras forças vitais do país” (A essência da Constituição. 2. ed. Rio de Janeiro: Liber Juris, 1988, p. 41-42). “Os problemas constitucionais – esclarece – não são problemas de direito, mas do poder; a verdadeira Constituição de um país somente tem por base os fatores reais e efetivos do poder que naquele país vigem e as constituições escritas não têm valor nem são duráveis a não ser que exprimam fielmente os fatores do poder que imperam na realidade social: eis aí os critérios fundamentais que devemos sempre lembrar” (op. cit., p. 49).8 No liberalismo, apostava-se no dogma positivista da plenitude e unidade do ordenamento

jurídico, pretensamente infalível e onisciente. Costumava-se dizer que, no claro, não se inter-pretava ou que a interpretação tinha lugar apenas para prover situações de dúvida. Logo após a Revolução Francesa, por exemplo, o único tradutor autorizado do direito era o legislador, representante exclusivo e esclarecido da vontade geral da nação. Em 1790, a Lei nº 16, de 24 de agosto, determinou que os tribunais não podiam fazer normas; se tivessem dúvidas na interpretação de uma lei, deviam dirigir-se ao legislador.

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palco de intensos conflitos entre o Governo e o Parlamento, qual a célebre Revolução Gloriosa, de 1688.

Na luta pela consolidação do Estado de Direito, preservação da liberdade individual e exclusão das arbitrariedades e imunidades do poder, o Parlamento inglês levantou-se contra o rei.

Tanto Carlos I (1625-1649) quanto Jaime II (1685-1688) procuraram fazer do corpo parlamentar e seus membros seus comparsas, como em outras monarquias européias continentais. A crença no direito divino e incontrastável dos reis, a tentativa de dispensar o Parlamento e o exercício despótico do poder resultaram na decapitação do primeiro e na deposição do segundo.

Com a substituição do princípio hereditário, alicerce do poder monárquico, por um direito lastreado nos valores liberais, o Parlamento converteu-se no centro do sistema político britânico, no órgão colegiado que, pela primeira vez, decidiria quem seria o rei, e cujo apoio pouco depois passou a ser fundamental para a formação e permanência dos governos.

Era o nascimento do sistema de governo parlamentar.

A proeminente posição política do Parlamento traduziu-se na teoria da soberania parlamentar, assentada no ideal democrático pelo qual o poder de produção do direito concentra-se no Poder Legislativo, em cujo seio se reúnem os representantes da nação. Juridicamente, ela foi plasmada na seguinte regra do art. 9º do Bill of Rights, de 13 de fevereiro de 1689: “Que a liberdade de palavra e os debates ou processos parlamentares não devem ser submetidos à acusação ou à apreciação em nenhum tribunal ou em qualquer lugar que não seja o próprio Parlamento”.

9

Paulo Bonavides bem resume o prestígio das Casas Legislativas nessa quadra 9 Esse cânone, ao resguardar a liberdade de atuação do Parlamento, assegurava-lhe a capacidade

de, autonomamente, tratar de sua organização e regular seu funcionamento. E isto a tal ponto de ser excluída qualquer forma de controle – inclusive o judicial – sobre os atos parlamentares praticados em suas dependências. Estava consagrada a tese da imunidade jurídica do Poder Legislativo, investido de uma independência absoluta, de um poder incontrastável, equivalente em força à tão abominável e temível onipotência real. A esse respeito, Paloma Biglino Campos anota: “Desde épocas remotas, la jurisprudencia ha mantenido que si un acto parlamentario se ha elaborado irregularmente, corresponde al poder legislativo correguirlo o anularlo, pero mientras existe, el juez está obligado a aplicarlo. Cuando la ley ha resultado aprobada por ambas Cámaras, y ha recebido la sanción real, ninguna Corte de justicia puede investigar como se ha desarrollado el procedimiento legislativo”(Los vicios en el procedimiento legislativo. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1991, p. 20).

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histórica:

O rostro parlamentar simbolizava de conseguinte para os governados o triunfo da participação, a presença doravante inarredável do princípio há pouco tão incômodo às realezas absolutas. O idealismo burguês vislumbrava assim naquelas casas a moradia da liberdade mesma, visto que ali se debatiam, fora de toda a coação, as grandes teses, os grandes princípios, as grandes verdades. O mandato representativo e a imunidade parlamentar tomavam então a aparência ou a figura de valores absolutos. Com esses meios a nação se governava pelos seus representantes.Nunca o Parlamento foi tão forte quanto no Estado liberal. Todos os conceitos de hegemonia do ramo legislativo e de superioridade de sua missão têm por base a concepção liberal do poder. Por essa razão o regime parlamentar, que fez ontem a grandeza das câmaras, foi no século XIX algo mais que simples e neutral técnica de governo [...] por haver sido acima de tudo uma inteira filosofia de governo.

10

Ao lado da revolução inglesa, a francesa também colaborou para o ocaso do Estado Absoluto e o florescimento de um Estado ancorado em três grandes objetivos, que, amalgamados, traduzem a essência do constitucionalismo: a afirmação da supremacia do indivíduo, a necessidade de limitação do poder dos governantes e a crença nas virtudes da razão.

11

O objetivo fundamental nessa primeira época do constitucionalismo liberal – lembra Karl Loewenstein – foi romper com o monopólio do poder pela Coroa e emancipar o Parlamento da influência governamental sobre sua organização e funcionamento, condição essencial para que ele pudesse exercer eficaz contrapeso à função executiva.

12 Essa luta pela independência parlamentar – continua o autor

– passou pela conquista de várias posições, dentre as quais se destacam: 1) a eliminação da influência do Executivo tanto na eleição parlamentar, que ocorria por meio de leis eleitorais parciais e de intervenções inescrupulosas nas próprias eleições, quanto no processo legislativo, onde o governo alcançava primazia por meio da nomeação de membros de sua confiança; 2) a exclusão do controle governamental sobre as sessões parlamentares, incluindo sua convocação, suspensão e dissolução. Com 10

O Poder Legislativo no moderno Estado social. In: As tendências atuais do direito público. São Paulo: Forense, 1976, p. 30.11

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 18. ed. São Paulo: Sa-raiva, 1994, p. 169.12

Teoría de la Constitución. 2. ed., 4. reimpresión. Barcelona: Editorial Ariel, 1986, p. 255.

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esse poder, o governo ampliava os períodos de recesso parlamentar e livrava-se da indesejada fiscalização legislativa; 3) o fim da ingerência do Executivo sobre a gestão parlamentar propriamente dita, o que se logrou com o reconhecimento do direito ilimitado do Parlamento ao self-government, à auto-gestão de sua economia doméstica; 4) a eliminação da possibilidade de pressões externas sobre os membros do Parlamento durante o exercício de seu mandato. Esse objetivo foi conseguido com o estabelecimento das imunidades parlamentares; 5) a supressão de requisitos econômicos e outras condições limitativas à elegibilidade parlamentar. A democratização do acesso ao Legislativo rompeu o monopólio das classes latifundiárias e plutocráticas e abriu o processo político às classes baixas.

13

É com o liberalismo, portanto, que surge um autêntico direito funcional do (e não para o) Parlamento:

14 o direito parlamentar, fundado no poder das Casas Legislativas

de, por si mesmas, sem interferência de qualquer outro poder (notadamente do Poder Executivo), estabelecerem e aplicarem as normas de regência de suas próprias atividades.

Em que pesem os episódios de exercício totalitário do poder no século XX – em que os Parlamentos tornaram-se caixa de ressonância das ordens e desejos de ditadores como Hitler, na Alemanha, Mussolini, na Itália, e Franco, na Espanha

15

–, o predicado da autonomia parlamentar não perdeu a sua magnitude nem a sua importância constitucional. Pelo contrário.

Karl Loewenstein afirma que o grau de independência institucional e autonomia funcional do Parlamento revela a aptidão de caracterizar o tipo de governo de um Estado.

16 Nicolás Pérez Serrano, por seu turno, ao tratar do significado político da

normatividade parlamentar, observa que somente há capacidade de auto-regramento quando se reconhece o Poder Legislativo como fração institucionalizada do poder

13 Ibid., p. 255-257.

14 No absolutismo, o Parlamento desempenhava funções muito restritas, dado o natural receio

dos monarcas de ceder ou perder parcelas do seu poder. O direito que lhe orientava as atividades era, assim, bastante limitado e intensamente condicionado à vontade régia, que o manejava com liberdade, convocando ou dissolvendo a câmara legislativa ao seu talante.15

O Brasil também viveu períodos de vazio ou submissão parlamentar, como nas décadas de 30 e 40 do século passado, com o Estado Novo de Getúlio Vargas, e a partir do golpe de Estado de 1964, que inaugurou mais de duas décadas de regime militar autoritário, findo em 1987.16

Ibid., p. 244.

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político. Diz o autor espanhol: “Cuando se tiene poca fe en el Parlamento, o se abriga más temor que confianza con respecto a su actuación, no se deja en libertad a cada Cuerpo colegislador para que acuerde su Ley interna, sino que se reserva este cometido a una verdadera Ley formal, o se arroga esa función el propio Poder ejecutivo (según revelan las experiencias de los dos Imperios franceses o nuestra Ley de 17 de julio de 1857, art. 28). En cambio, si se profesa afecto y respeto a la institución parlamentaria, se reconoce a cada Cámara la facultad de regular su vida interna, garantía o «privilegio» que constituye la mejor defensa para la independencia semisoberana del organismo, librándole de interferencias peligrosas por parte de los demás poderes o instituciones...”.

17

Com razão os autores.

O art. 30 da Carta Política de 1967, com as modificações introduzidas pela Emenda Constitucional nº 1/69, da pena dos Ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar, era pródigo em enunciar normas de organização e funcionamento do Poder Legislativo.

18

17 Tratado de derecho politico. 2. ed. Madrid: Editorial Civitas, 1984, p. 772.

18 Tantas eram as normas impostas pela Constituição anterior aos regimentos das câmaras que

Manoel Gonçalves Ferreira Filho apontou o surgimento de um “direito constitucional regi-mental” (Comentários à Constituição brasileira. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 193). O art. 30, parágrafo único, da Constituição de 1967, com a redação da Emenda Constitucional nº 1/69, dizia que os regimentos internos deveriam observar as seguintes normas regimentais: a) na constituição das Comissões, assegurar-se-á, tanto quanto possível, a representação proporcional dos Partidos nacionais que participem da respectiva Câmara; b) não poderá ser realizada mais de uma sessão ordinária por dia; c) não será autorizada a publicação de pronunciamentos que envolverem ofensas às instituições nacionais, propaganda de guerra, de subversão da ordem política ou social, de preconceito de raça, de religião ou de classe, configurarem crimes contra a honra ou contiverem incitamento à prática de crimes de qualquer natureza; d) a Mesa da Câmara dos Deputados ou a do Senado Federal encaminhará, por intermédio da Presidência da República, somente pedidos de informação sobre fato relacionado com matéria legislativa em trâmite ou sobre fato sujeito à fiscalização do Congresso Nacional ou de suas Casas; e) não será criada Comissão Parlamentar de Inquérito enquanto estiverem funcionando concomitantemente pelo menos cinco, salvo deliberação por parte da maioria da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal; f) a Comissão Parlamentar de Inquérito funcionará na sede do Congresso Nacional, não sendo permitidas despesas com viagens para seus membros; g) não será de qualquer modo subvencionada viagem de congressista ao exterior, salvo no desempenho de missão temporária, de caráter diplomático ou cultural mediante prévia designação do Poder Executivo e concessão de licença da Câmara a que pertencer o Deputado ou Senador; e h) será de dois anos o mandato para membro da Mesa de qualquer das Câmaras, proibida a reeleição.

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Com a instauração da ordem jurídica fundamental de 5 de outubro de 1988, esse quadro de primazia da função executiva e de subserviência e desprestígio da função parlamentar redesenha-se.

Refletindo o anseio democrático popular, o constituinte procurou desatar o Legislativo dos angustos limites que lhe refreavam as ações e ceifavam as virtudes, colocando-o numa posição de real paridade com o Executivo,

19 como se comprova

pela forma de investidura nos seus cargos de direção (mediante a realização de eleições internas entre e pelos seus membros), pelo cometimento de diversas atividades no campo de atribuições dos outros poderes, pelo estabelecimento de extenso rol de matérias sob a reserva de leis, resoluções e decretos parlamentares, pelo compartilhamento da atividade de governo com o Poder Executivo, pelo asseguramento de poderes e instrumentos voltados ao desempenho de suas funções institucionais (típicas e atípicas), pela enunciação do regime jurídico dos seus membros (com a prescrição de prerrogativas, direitos, deveres e incompatibilidades), pela previsão de garantias às minorias e pela determinação de modos próprios para a formação da vontade parlamentar, ao regular, em linhas gerais, o processo legislativo.

Nesse processo de revitalização do Parlamento brasileiro, o aspecto que mais sobressai é a sua renovada capacidade autonormativa, exercida por meio da edição

19 Ao longo da história constitucional republicana brasileira, nem sempre se rendeu respeito à

independência parlamentar, embora formalmente declarada. A liberdade de atuação do Legisla-tivo não raras vezes foi coarctada, resultando na infirmação nuclear da tripartição funcional dos Poderes. As interferências do Executivo na esfera de competência administrativa do Legislativo são também perceptíveis nas Constituições de 1891 (art. 32) e 1946 (art. 61), que incumbiam o Vice-Presidente da República da Presidência do Senado Federal. Na de 1937, o denominado Conselho Federal – composto de representantes dos Estados e de dez membros nomeados pelo Presidente da República (art. 50, caput) – era presidido por um Ministro de Estado designado pelo Chefe do Poder Executivo (art. 56). Consoante o texto original da Constituição de 1967, cabia ao Vice-Presidente da República exercer as funções de Presidente do Congresso Nacional (art. 79, § 2º). Interferências legislativas do Executivo no Parlamento também são encontra-diças na história constitucional brasileira. À guisa de exemplo, de acordo com os arts. 51, § 3º, e 55, § 1º, da Constituição Federal de 1967, com a redação dada pela Emenda nº 1/1969, os projetos de lei enviados pelo Chefe do Poder Executivo, bem como os decretos-leis por ele expedidos, podiam ser considerados aprovados por decurso de prazo – portanto, sem deliberação parlamentar. Estas e outras competências, amalgamadas nas mãos do Presidente da República, acabavam por sujeitar o Poder Legislativo ao «domínio legislativo» do Executivo.

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de regimentos.20

A importância desses diplomas para a sociedade brasileira é transcendente, tendo em vista a sua influência político-jurídica na formação, condução e resultado democrático da vontade típica e atípica (normativa e não-normativa) do Estado-legislador.

Realmente. Dependendo da dicção das normas regimentais e da aplicação que se lhes dê, o conteúdo dos atos legislativos pode variar sensivelmente.

Por essa razão, aliás, costuma-se dizer que os regimentos constituem verdadeiras armas políticas que todos os partidos querem ter nas mãos.

21 E isto se explica porque

os repositórios regimentais são, por definição, os instrumentos técnicos através dos quais o processo político torna-se processo jurídico.

22

A Constituição Federal reserva aos regimentos parlamentares o tratamento de variadas matérias.

Cabe, aqui, arrolar as que se relacionam com o princípio democrático e tecer breves notas demonstrativas dessa correspondência.

São elas:

a) organização, funcionamento, polícia e serviços parlamentares das Casas Legislativas (arts. 51, III e IV, 52, XII e XIII, e 57, § 3º, II).

A organização regimental das Casas Legislativas em comissões temáticas (de 20

Renzo Dickmann observa, com precisão, que essa autonomia é uma particular manifestação da posição, no ordenamento jurídico, de determinados órgãos do Estado, os órgãos constitu-cionais, entre os quais se insere o Legislativo. Ela serve ao exercício das competências orgânicas e se exprime por meio da auto-suficiência normativa. Nas palavras do referido autor: “L’autonomia costituzionale è una particolare manifestazione della posizione nell’ordinamento di determinati organi dello Stato, gli organi costituzionali, è funzionale all’esercizio delle relative attribuzioni e consiste in alcune espressioni di autosufficienza normativa” (Autonomia e capacità negoziale degli organi costituzionali: l’esperienza delle assemblee parlamentari. In: Rivista Trimestrale di Diritto Pubblico, n. 2, 1997, p. 399).21

ALONSO DE ANTONIO, José Antonio; ALONSO DE ANTONIO, Ángel Luis. Derecho parlamentario. Barcelona: J. M. Bosch, 2000, p. 27.22

MANZELLA, Andrea. Diritto parlamentare e regolamenti delle camere nel quadro costitu-zionale. In: I Jornadas de Derecho Parlamentario. Madrid: Congreso de los Diputados, 1985, v. 1, p. 23.

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economia, educação, agricultura, finanças, etc.) segundo a regra da representação proporcional dos partidos ou blocos parlamentares do art. 58, § 1º, por exemplo, constitui um fator de grande influência democrática na decisão final do corpo parlamentar.

A idéia de divisão do trabalho legislativo por comissões preordena-se a garantir a existência, em caráter permanente, de mais uma instância, além do plenário, para o debate e manifestação parlamentares. Essa forma de ordenação estrutural do Poder Legislativo conduz a uma clarificação maior das decisões a serem tomadas. As diversas visões – matizadas pelas naturais dissensões e tensões políticas – que a referida representação proporcional partidária encerra contribuem decisivamente para um profícuo, esclarecido e ponderado trabalho legislativo, qualificado, no caso, pela nota democrática. A violação ou a manipulação do regimento neste capítulo pode conduzir a vontade parlamentar a outra direção, como fica claro se se considerar a hipótese de encaminhamento de um projeto de lei, resolução ou decreto legislativo ou proposta de emenda constitucional à comissão temática diversa da regimentalmente estabelecida. Tal decisão retiraria dos parlamentares, oposicionistas ou não, a possibilidade de, na condição de especialistas no assunto, e antes de a matéria porventura ir a plenário, exporem seus pontos de vista, fornecendo aos demais membros do Parlamento elementos informativos preciosos para a tomada consciente de deliberação.

23

b) definição das condutas dos deputados e senadores consideradas incompatíveis com o decoro parlamentar (art. 55, § 1º).

São os regimentos internos que se encarregam de definir as condutas dos deputados e senadores consideradas incompatíveis com o decoro parlamentar, estatuindo regras jurídicas de natureza disciplinar. Isto para efeito de perda de mandato.

24

A tipificação dos comportamentos indecorosos, cumpre esclarecer, não se opera de modo livre, casual ou subjetivo; não segue o fluxo das paixões políticas; não é fruto das contendas entre facções ideologicamente divergentes; orienta-se por

23 SILVA FILHO, Derly Barreto e. Inconstitucionalidade de lei por violação do devido proces-

so legislativo. Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, n. 59/60, p. 102-103, jan./dez. 2004.24

Dispõe o art. 55, II, da Constituição Federal, que perderá o mandato o deputado ou o senador cujo procedimento for declarado incompatível com o decoro parlamentar.

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cânones bem definidos, de grandeza constitucional, dentre os quais se citam: 1) art. 1º, II e V: a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito, tendo como fundamentos, entre outros, a cidadania e o pluralismo político; 2) art. 5º, caput: todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza; 3) art. 5º, IV: é livre a manifestação do pensamento; 4) art. 17, caput: é livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados, além da soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo e os direitos fundamentais da pessoa humana; 5) art. 53, caput: os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos.

Por mais que a Constituição tenha se preocupado, nesses e em outros dispositivos, em assegurar a incolumidade do mandato eletivo, guarnecendo-o das garantias necessárias ao desempenho da função representativa livre de qualquer pressão, vinda de fora ou oriunda do próprio seio parlamentar, é certo que, ao mesmo tempo, tratou de estabelecer limites, visando a evitar a perpetração de abusos.

Tais limites encerram-se na idéia de decoro parlamentar, que, de acordo com Miguel Reale, “quer significar a forma de comportamento do parlamentar de conformidade com as responsabilidades das funções que exerce, perante a sociedade e o Estado”.

25 Logo, falta de decoro, segundo o referido autor, “é falta de

decência no comportamento pessoal, capaz de desmerecer a Casa dos representantes (incontinência de conduta, embriaguez, etc.) e falta de respeito à dignidade do Poder Legislativo, de modo a expô-lo a críticas infundadas, injustas e irremediáveis, de forma inconveniente”.

26

Por conseguinte, a maioria parlamentar não pode tipificar como incompatíveis com o decoro, pelo seu rigorismo e veemência, os discursos de certos deputados contra tal ou qual política de governo, porque não é constitucionalmente válido estorvar, por via regimental, o lídimo exercício do direito político de oposição, corolário do regime democrático.

c) disciplina dos casos em que as comissões parlamentares, em razão das matérias de sua alçada, podem discutir e votar projetos de lei independentemente da deliberação do plenário do Congresso Nacional e de suas câmaras (art. 58, § 2º, I).

25 REALE, Miguel. Decoro parlamentar e cassação de mandato eletivo: liberdade do deputado

no exercício de seu múnus político. Revista de Direito Público, n. 10, p. 89, out./dez. 1969.26

Ibid.

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Essa hipótese constitucional tem como fonte inspiradora o art. 72 da Constituição italiana, idealizado com vistas a agilizar a atividade legiferante. Bem explica Manoel Gonçalves Ferreira Filho: “No intento de acelerar a elaboração legislativa sem desapossar dessa função o Parlamento, a Constituição italiana em vigor trouxe uma interessante inovação no seu art. 72. Trata-se da possibilidade de a câmara delegar a comissão sua, quer permanente, quer ad hoc, a elaboração de lei sobre matéria determinada, valendo o que decidir essa comissão como decidido pelo plenário da câmara. Ocorre, assim, uma delegação interna corporis, pois o poder de legislar pertencente à câmara passa a uma de suas frações”.

27

Regulando o assunto, o Regimento Interno da Câmara dos Deputados, no art. 24, II, confere aos referidos órgãos internos competência para deliberar sobre projetos de lei, dispensada a manifestação do Plenário, salvo o disposto no art. 132, § 2º,

28 e

excetuados, dentre outros,29

os de iniciativa popular.30

Sob o prisma democrático, a «saída regimental» encontrada não poderia ser outra, pois a transferência de competência, do plenário para as comissões, resulta na redução não apenas de formalidades intrínsecas à tramitação legislativa, mas também do número de vozes parlamentares, que poderiam colaborar na discussão das proposições, aspectos que não devem ser desconsiderados quando se anseia por uma deliberação representativa das várias correntes sociais, políticas e culturais.

O art. 91, I e II, do Regimento do Senado Federal, por sua vez, atribui às

27 Do processo legislativo. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 135. José Afonso da Silva entende

ser impreciso dizer-se, neste caso, que há “delegação interna”. Na sua opinião, “parece mais uma função própria de substituição do que uma função delegada” (Curso de direito constitu-cional positivo.10. ed. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 487).28

O art. 132, § 2º, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, estabelece que não se dispensará a competência do Plenário para discutir e votar, globalmente ou em parte, projeto de lei apreciado conclusivamente pelas Comissões se, no prazo de cinco sessões da publicação do respectivo anúncio no Diário do Congresso Nacional e no avulso da Ordem do Dia, houver recurso nesse sentido de um décimo dos membros da Casa, apresentado em sessão e provido por decisão do Plenário da Câmara.29

São eles: os projetos de lei complementar, os de código, os de Comissão, os relativos à matéria que não possa ser objeto de delegação, consoante o § 1º do art. 68 da Constituição Federal, os oriundos do Senado, ou por ele emendados, que tenham sido aprovados pelo Ple-nário de qualquer das Casas, os que tenham recebido pareceres divergentes e os que tramitam em regime de urgência.30

Vide art. 61, § 2º, da Constituição Federal.

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comissões parlamentares a competência para discutir e votar projetos de lei ordinária de autoria de senador, ressalvados os projetos de código, e projetos de resolução que versem sobre a suspensão da execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal. Ouvidas as lideranças, o Presidente daquela Casa poderá, de acordo com o § 1º do citado dispositivo regimental, conferir às comissões competência para apreciar, terminativamente, as seguintes matérias: tratados ou acordos internacionais; autorização para a exploração e o aproveitamento de recursos hídricos e a pesquisa e lavra de riquezas minerais em terras indígenas; alienação ou concessão de terras públicas com área superior a dois mil e quinhentos hectares; projetos de lei da Câmara de iniciativa parlamentar que tiverem sido aprovados, em decisão terminativa, por comissão daquela Casa; indicações e proposições diversas, exceto projeto de resolução que altere o Regimento Interno; projetos de resolução a que se referem os arts. 52, V a IX, e 155, §§ 1º, IV, e 2º, IV e V, da Constituição, e proposta de emenda constitucional.

Na hipótese de haver recurso de um décimo dos membros da respectiva Casa Legislativa, devolve-se o projeto de lei à competência deliberativa do plenário. É o que determina o art. 58, § 2º, I, in fine, da Constituição.

Ainda no que tange à disciplina do procedimento abreviado de discussão e votação de proposições, os regimentos parlamentares hão de ter o cuidado democrático de zelar pela efetividade do direito de participação das minorias – cuja vontade política, em atenção ao primado do pluralismo político-partidário,

31 deve integrar o ato

legislativo – e do princípio da publicidade dos trabalhos parlamentares das comissões – elemento propiciador do pleno conhecimento, por parte dos representados, das matérias objeto da atividade legislativa desconcentrada.

d) previsão dos poderes das comissões parlamentares de inquérito (art. 58, § 3º).

Neste caso, os regimentos internos têm por atribuição definir os poderes das CPIs, que podem não se resumir àqueles “próprios das autoridades judiciais”.

A respeito disso, o art. 36 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados prescreve que as CPIs podem, observada a legislação específica: I – requisitar funcionários dos serviços administrativos da Câmara, bem como, em caráter transitório, os de qualquer órgão ou entidade da administração pública direta, indireta 31

Vide arts. 1º, V, e 17, caput, da Constituição Federal.

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e fundacional, ou do Poder Judiciário, necessários aos seus trabalhos; II – determinar diligências, ouvir indiciados, inquirir testemunhas sob compromisso, requisitar de órgãos e entidades da administração pública informações e documentos, requerer a audiência de Deputados e Ministros de Estado, tomar depoimentos de autoridades federais, estaduais e municipais, e requisitar os serviços de quaisquer autoridades, inclusive policiais; III – incumbir qualquer de seus membros, ou funcionários requisitados dos serviços administrativos da Câmara, da realização de sindicâncias ou diligências necessárias aos seus trabalhos, dando conhecimento prévio à Mesa; IV – deslocar-se a qualquer ponto do território nacional para a realização de investigações e audiências públicas; V – estipular prazo para o atendimento de qualquer providência ou realização de diligência sob as penas da lei, exceto quando da alçada de autoridade judiciária; VI – se forem diversos os fatos inter-relacionados objeto do inquérito, dizer em separado sobre cada um, mesmo antes de finda a investigação dos demais.

Mais comedido é o Regimento Interno do Senado Federal, em cujo art. 148 estão previstos os poderes das CPIs senatoriais. São eles: realização de diligências julgadas necessárias; convocação de Ministros de Estado; tomada de depoimento de qualquer autoridade; inquirição de testemunhas sob compromisso; audiência de indiciados; requisição de informações ou documentos de qualquer natureza a órgão público; requerimento, ao Tribunal de Contas da União, de realização de inspeções e auditorias.

Na medida em que o art. 58, § 3º, da Constituição Federal, preceitua que as CPIs serão criadas mediante requerimento de um terço dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal, afiguram-se insidiosos ao princípio constitucional democrático expedientes regimentais que se destinem a impedir ou dificultar a 32

“Preenchidos os requisitos constitucionais (CF, art. 58, § 3º), impõe-se a criação da Comis-são Parlamentar de Inquérito, que não depende, por isso mesmo, da vontade aquiescente da maioria legislativa. Atendidas tais exigências (CF, art. 58, § 3º), cumpre, ao Presidente da Casa legislativa, adotar os procedimentos subseqüentes e necessários à efetiva instalação da CPI, não lhe cabendo qualquer apreciação de mérito sobre o objeto da investigação parlamentar, que se revela possível, dado o seu caráter autônomo (RTJ 177/229 – RTJ 180/191-193), ainda que já instaurados, em torno dos mesmos fatos, inquéritos policiais ou processos judiciais”. “A opção do legislador constituinte pela concepção democrática do Estado de Direito não pode esgotar-se numa simples proclamação retórica. A opção pelo Estado democrático de direito, por isso mesmo, há de ter conseqüências efetivas no plano de nossa organização política, na esfera das relações institucionais entre os poderes da República e no âmbito da formulação de uma teoria das liberdades públicas e do próprio regime democrático. Em uma palavra: ninguém se sobrepõe, nem mesmo os grupos majoritários, aos princípios superiores consagrados pela Constitui-

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constituição e o regular funcionamento das comissões de inquérito parlamentar. Nesse sentido já decidiu o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Mandado de Segurança nº 24.831.

32

e) estabelecimento das atribuições da comissão representativa do Congresso Nacional, que funciona durante o recesso parlamentar (art. 58, § 4º).

Por fazer as vezes do Congresso Nacional nos períodos de recesso parlamentar, torna-se dispensável ressaltar a relevância democrática das normas regimentais relativas a essa comissão.

Segundo o art. 7º da Resolução nº 3, de 1990, do Congresso Nacional – que é parte integrante do Regimento Comum –, à referida comissão compete: I – zelar pelas prerrogativas do Congresso Nacional, de suas Casas e de seus membros; II – zelar pela preservação da competência legislativa do Congresso Nacional em face da atribuição normativa dos outros Poderes; III – autorizar o Presidente e o Vice-Presidente da República a se ausentarem do País; IV – deliberar sobre: a) a sustação de atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa, desde que caracterize a necessidade da medida cautelar em caráter urgente; b) projeto de lei relativo a créditos adicionais solicitados pelo Presidente da República, desde que sobre o mesmo já haja manifestação da Comissão Mista Permanente a que se refere o § 1º do art. 166 da Constituição Federal; c) projeto de lei que tenha por fim prorrogar prazo de lei, se o término de sua vigência ocorrer durante o período de recesso ou nos dez dias úteis subseqüentes ao seu término; d) tratado, convênio ou acordo internacional, quando o término do prazo, no qual o Brasil deva sobre ele se manifestar, ocorrer durante o período de recesso ou nos dez dias úteis subseqüentes a seu término; V – ressalvada a competência das Mesas das duas Casas e a de seus membros: a) conceder licença a Senador e Deputado; b) autorizar Senador ou Deputado a aceitar missão do Poder Executivo; VI – exercer a competência administrativa das Mesas do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, em caso de urgência, quando ausentes ou impedidos os respectivos membros; VII ção da República”. “A maioria legislativa, mediante deliberada inércia de seus líderes na in-dicação de membros para compor determinada Comissão Parlamentar de Inquérito, não pode frustrar o exercício, pelos grupos minoritários que atuam no Congresso Nacional, do direito público subjetivo que lhes é assegurado pelo art. 58, § 3º, da Constituição e que lhes confere a prerrogativa de ver efetivamente instaurada a investigação parlamentar em torno de fato determinado e por período certo” (excertos do acórdão publicado no Diário da Justiça, Seção 1, nº 149, 4 de agosto de 2006, p. 26 e 27).

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– fiscalizar e controlar os atos do Poder Executivo, incluídos os da administração indireta; VIII – receber petições, reclamações, representações ou queixas de qualquer pessoa contra atos ou omissões das autoridades ou entidades públicas; IX – convocar Ministros de Estado e enviar-lhes pedidos escritos de informação, quando houver impedimento das Mesas de qualquer das Casas interessadas; X – representar, por qualquer de seus membros, o Congresso Nacional em eventos de interesse nacional e internacional; XI – exercer outras atribuições de caráter urgente, que não possam aguardar o início do período legislativo seguinte sem prejuízo para o País ou suas instituições. Citada resolução também regula a composição, convocação, quorum de instalação e deliberação e outras questões relacionadas ao funcionamento da comissão representativa do Congresso Nacional.

f) regulamentação da forma pela qual os projetos de lei relativos ao plano plurianual, às diretrizes orçamentárias, ao orçamento anual e aos créditos adicionais serão apreciados conjuntamente pela Câmara e pelo Senado (art. 166, caput) e do modo como se constituirá e funcionará a comissão mista permanente de senadores e deputados encarregada de: I – examinar e emitir parecer sobre os referidos projetos e as contas apresentadas anualmente pelo Presidente da República; II – examinar e emitir parecer sobre os planos e programas nacionais, regionais e setoriais constitucionalmente previstos e exercer o acompanhamento e a fiscalização orçamentária, sem prejuízo da atuação das demais comissões do Congresso Nacional e de suas Casas, criadas de acordo com o art. 58 (art. 166, § 1º, I e II).

A ordenação regimental desse tema é de inestimável valia para um País como o Brasil, em que se espera do Estado-Administração não apenas um comportamento limitado por normas jurídicas de competência, mas também, superando esse propósito constitucionalista liberal, uma atuação político-administrativa concertada e ajustada com os fins perseguidos pelo Estado Democrático de Direito.

Hodiernamente, recaem sobre o Poder Público e suas ramificações várias tarefas de natureza social: a de construir uma sociedade livre, justa e solidária; a de garantir o desenvolvimento nacional; a de erradicar a pobreza e a marginalização; a de reduzir as desigualdades sociais e regionais, e a de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, I a IV, da Constituição).

Deparando-se com toda essa sorte de incumbências, o Estado transforma-se em um agente de prestações positivas em favor do indivíduo e da coletividade, obrigado

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a decisões prontas e complexas, que almejam conformar a realidade em vista dos fins constitucionalmente fixados.

Consciente de que o Parlamento brasileiro é um órgão de representação dos mais diversos segmentos sociais, o legislador constituinte incumbiu o Congresso Nacional de legislar sobre o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e os orçamentos anuais (arts. 48, II, e 166). Repartiu, portanto, a função governamental entre o Executivo e o Legislativo – ao primeiro reservando a iniciativa; ao segundo, a deliberação sob o prisma do pluralismo político.

Ao regimento comum do Congresso Nacional, cabe dispor sobre a organização da comissão mista permanente de senadores e deputados e a tramitação das matérias a que se referem os incisos I e II do § 1º do art. 166. Dentre elas, a forma de realização do controle do cumprimento da política constitucional, materializada na execução do orçamento,

33 atividade fundamental ao postulado democrático e republicano, que

se identifica com a gestão responsável e participativa de bens, dinheiros e valores públicos.

g) fixação do rito de apreciação, pelo Plenário das duas Casas do Congresso, das emendas apresentadas na comissão mista acima referida, que sobre elas deverá emitir parecer (art. 166, § 2º).

Tal como no item antecedente, toca ao regimento comum versar detalhadamente como devem tramitar as emendas apresentadas na comissão mista permanente de planos, orçamentos públicos e fiscalização.

34

Essas sete expressas referências constitucionais, no entanto, não exaurem o âmbito substancial dos regimentos nem patenteiam todas as suas virtudes democráticas, pois há outros assuntos que se encartam nos textos regimentais que são imprescindíveis ao exercício pleno das demais atividades a cargo do Poder Legislativo.33

Vide a Resolução nº 1, de 2001, do Congresso Nacional, que se subdivide em quatro capí-tulos, quais sejam: competência e composição, direção, funcionamento e disposições gerais. O capítulo dedicado ao funcionamento, por sua vez, desdobra-se em seis seções. São elas: procedimentos, parecer preliminar, emendas, relatórios, destaques e prazos.34

A Resolução nº 1, de 2001, do Congresso Nacional, também trata do assunto.35

Jurisdição de controle do processo de emenda constitucional. Revista de Direito [da Procura-doria-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro], v. 10, n. 14, p. 21-22, jan./dez. 2005.36

Vide Seção VIII do Capítulo I Título IV da Constituição Federal (arts. 59 a 69).

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A um deles já se aludiu em outro momento:35

da leitura das normas que tratam do processo legislativo,

36 verifica-se que a Carta Política entregou à ordem normativa

da Câmara dos Deputados e do Senado Federal a disciplina do iter formativo das espécies normativas enunciadas pelo art. 59, I, II, III, IV, VI e VII.

37 Para corroborar

essa asserção, basta constatar a inexistência de disciplina constitucional a respeito da apreciação das proposições legislativas. Questões como apresentação, recebimento, distribuição a comissões, turnos, interstício, regime de tramitação, urgência, prioridade, preferência, destaque, prejudicialidade, retirada, discussão e votação das matérias sujeitas à deliberação parlamentar, só para citar algumas, quedaram-se sem normatização constitucional específica.

38

Além disso, comportam-se nos regimentos normas de direito material relativas à vida funcional dos parlamentares, dentre as quais figuram as que efetivam importantes 37

No que atina com as medidas provisórias, previstas no art. 62 da Constituição Federal, o regimento do Congresso Nacional se desincumbe de prescrever normas sobre o seu exame e votação.38

Poder-se-ia retorquir: essa normatização é aquela apontada pelo art. 59, parágrafo único, da Constituição, cujo preceito determina: “Lei complementar disporá sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis”. O argumento, no entanto, por especioso, não procede. O aludido cânone constitucional versou sobre técnica legislativa e não sobre processo legislativo (vide Lei Complementar nº 95, de 26 de fevereiro de 1998, que dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, conforme determina o parágrafo único do art. 59 da Constituição Federal, e estabelece normas para a consolidação dos atos normativos que menciona). A razão de ser de regramento desse jaez reside na necessidade de padronizar os métodos de elaboração, redação e alteração das leis. É assunto da maior relevância para União, Estados, Distrito Federal e Municípios, e, em especial, para todos aqueles que exercem atividade legislativa atípica. Por isso, veicula-se por lei complementar, de caráter nacional. De fato. Fosse o Legislativo o único poder estatal investido da função legiferante, despicienda seria a previsão constitucional de lei complementar prescritora de normas de técnica legislativa. Ele próprio as conceberia intramuros. Mas, havendo outros órgãos constitucionais detentores de competência legislativa excepcional, torna-se imperioso estabelecer regras comuns sobre a ma-téria. Cabendo ao Supremo Tribunal Federal a iniciativa de lei complementar sobre o Estatuto da Magistratura (art. 93, caput), a sua proposição à Câmara dos Deputados (art. 64, caput) há de ser elaborada e redigida de acordo com um método, aquele preconizado pela lei de técnica legislativa. Por igual motivo, o Presidente da República, ao apresentar projetos de lei de sua iniciativa (art. 61, § 1º) e editar medidas provisórias (art. 62, caput), haverá de observar os ditames da lei complementar prevista no art. 59, parágrafo único, da Constituição, elaborando e redigindo os seus atos legislativos atípicos segundo a mesma técnica de elaboração e redação das leis. Em suma, são os regimentos das Casas Legislativas, e não a lei complementar de técnica legislativa, que respondem pela disciplina do iter formativo das emendas constitucionais e das leis complementares, ordinárias e delegadas.39

Vide, à guisa de ilustração, os arts. 1º, II e V, 5º, caput e IV, 17, caput, 53, caput, 58, §§ 1º, 2º, I, in fine, 3º e 4º, e 89, IV e V.

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princípios e preceitos constitucionais de teor democrático, relevando mencionar, aqui, aqueles que reconhecem o direito de oposição política e institucionalizam a minoria (oposição) parlamentar.

39

Geralmente, servem de garantia às minorias parlamentares institutos regimentais como a solicitação de verificação de votação, o direito de obstrução, o requerimento de destaque para, por exemplo, votar em separado parte de proposição, o uso da palavra e o pedido de adiamento de votação. O Regimento Interno da Câmara dos Deputados, nesse assunto, denota atenção aos partidos minoritários quando assegura a participação, tanto na Mesa quanto nas comissões, de um membro da minoria, ainda que pela proporcionalidade não lhe caiba lugar (arts. 8º, § 3º, e 23).

40

40 Em Portugal, as minorias parlamentares contam com garantias constitucionais expressas,

como o direito à determinação da ordem do dia de um certo número de reuniões (vide art. 176º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa de 1976). Sobre o assunto, Maurice Duverger leciona que, para os debates parlamentares serem independentes, o Parlamento há de ter o domínio da ordem do dia. Mas adverte: pode-se temer que a maioria parlamentar imponha a sua pauta de discussão à minoria. Por isso, algumas vezes se prevêem garantias às agremiações minoritárias (Instituciones politicas y derecho constitucional. 5. ed. Barcelona: Ediciones Ariel, Esplugues de Llobregrat, 1970, p. 183-184). Ainda em Portugal, os deputados podem “fazer perguntas ao Governo sobre quaisquer actos deste ou da Administração Pública e obter resposta em prazo razoável, salvo o disposto na lei em matéria de segredo de Estado”, e “requerer e obter do Governo ou dos órgãos de qualquer entidade pública os elementos, informações e publicações oficiais que considerem úteis para o exercício do seu mandato” (cf. art. 156º, d e e, do referido texto constitucional).41

A propósito, Geraldo Ataliba, de modo luminar, assim se manifesta sobre o papel da oposição em ambientes constitucionais democráticos: “Na democracia, governa a maioria, mas – em virtude do postulado constitucional fundamental da igualdade de todos os cidadãos – ao fazê-lo não pode oprimir a minoria. Esta exerce também função política importante, decisiva mesmo: a de oposição institucional, a que cabe relevante papel no funcionamento das instituições re-publicanas”. “O principal papel da oposição é o de formular propostas alternativas às idéias e ações do governo da maioria que o sustenta. Correlatamente, critica, fiscaliza, aponta falhas e censura a maioria, propondo-se, à opinião pública, como alternativa. Se a maioria governa, entretanto, não é dona do poder, mas age sob os princípios da relação de administração”. “Efetivamente, ensina Kelsen, “o princípio da maioria não se identifica de fato com a senhoria absoluta da maioria, a ditadura da maioria sobre a minoria. A maioria pressupõe, por definição, a existência de uma minoria; e o direito da maioria implica, portanto, o direito de existência das minorias. O princípio da maioria é observado em uma democracia, quando se consente a todos os cidadãos a participação na criação da ordenação jurídica, embora seu conteúdo seja determinado pela vontade da maioria. Não é democrático – porque contrário ao princípio da maioria – excluir qualquer minoria da criação da ordenação jurídica, ainda que a exclusão seja decidida pela maioria. Se a minoria não é eliminada do procedimento – mediante o qual é criada a ordenação social –, sempre há a possibilidade de que a minoria

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Havendo previsão e eficácia regimental desses mecanismos, sempre há real possibilidade de os grupos minoritários influenciarem a vontade da maioria, levando a deliberação parlamentar a resultado diverso.

41

Por fim, os regimentos devem versar sobre o modo pelo qual se dará a inovadora participação da sociedade no seio do Poder Legislativo.

Isto porque, de acordo com o art. 58, § 2º, II e IV, da Constituição, às comissões parlamentares, em razão da matéria de sua competência, cabe realizar audiências públicas com entidades da sociedade civil e receber petições, reclamações, representações ou queixas de qualquer pessoa contra atos ou omissões das autoridades ou entidades públicas. Essa regra de competência constitui uma notável fonte de informação ao Parlamento a respeito da atuação dos entes que exercem função pública. Bem manejada regimentalmente, pode dar ensejo ao aperfeiçoamento da legislação, à responsabilização de agentes públicos, entre outras providências.

Outrossim, ao colocar a sociedade na posição de virtual partícipe do processo de criação legislativa, inaugurando os trabalhos da Câmara dos Deputados mediante a apresentação de projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles, o art. 61, § 2º, da Constituição, implica um visível alargamento espacial das normas regimentais da referida Casa, que passam a regular, tornando-a viável, a participação popular no processo de elaboração normativa.

42

Do exposto, conclui-se:

1) As normas regimentais emanam do Poder Legislativo no exercício da influencie a vontade da maioria. É, portanto, possível impedir, nessa medida, que o conteúdo da ordenação social determinado pela maioria se oponha absolutamente aos interesses da minoria. Este é um elemento característico da democracia”. Isto é absolutamente essencial à República”. (Judiciário e minorias. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 24, n. 96, p. 191-192, out./dez. 1987).42

O art. 252, VII e X, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, por exemplo, prescreve que: 1) nas Comissões ou em Plenário, transformado em Comissão Geral, poderá usar da palavra para discutir o projeto de lei, pelo prazo de vinte minutos, o primeiro signatário, ou quem este tiver indicado quando da apresentação do projeto; 2) a Mesa designará Deputado para exercer, em relação ao projeto de lei de iniciativa popular, os poderes ou atribuições conferidos por este regimento ao autor da proposição, devendo a escolha recair sobre quem tenha sido, com a sua anuência, previamente indicado com essa finalidade pelo primeiro signatário do projeto.

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competência de auto-regramento constitucionalmente atribuída com exclusividade às suas Casas. Fundam-se na autonomia funcional de que são dotados os órgãos legislativos para, por si mesmos, sem interferência de qualquer outro poder, mas nos termos e limites da Constituição, estabelecer e aplicar as normas de regência de suas atividades;

2) A principal incumbência dos regimentos é regrar minuciosamente a forma pela qual a vontade normativa e não-normativa do Estado constitui-se, tem expressão e adquire feição democrática;

3) Os regimentos parlamentares regulamentam temas de extração constitucional cuja significação democrática é de transcendente importância para a sociedade brasileira. São eles: a) a organização, funcionamento, polícia e serviços parlamentares das Casas Legislativas; b) a definição das condutas dos deputados e senadores consideradas incompatíveis com o decoro parlamentar; c) a disciplina dos casos em que as comissões parlamentares, em razão das matérias de sua alçada, podem discutir e votar projetos de lei independentemente da deliberação do plenário do Congresso Nacional e de suas câmaras; d) a previsão dos poderes das comissões parlamentares de inquérito; e) o estabelecimento das atribuições da comissão representativa do Congresso Nacional, que funciona durante o recesso parlamentar; f) a regulamentação da forma como os projetos de lei relativos ao plano plurianual, às diretrizes orçamentárias, ao orçamento anual e aos créditos adicionais devem ser apreciados conjuntamente pela Câmara e pelo Senado (art. 166, caput) e do modo como deve ser constituída a comissão mista permanente de senadores e deputados e desenvolvidas as atividades de: I – exame e emissão de parecer sobre os referidos projetos e as contas apresentadas anualmente pelo Presidente da República; II – exame e emissão de parecer sobre os planos e programas nacionais, regionais e setoriais constitucionalmente previstos e exercer o acompanhamento e a fiscalização orçamentária, sem prejuízo da atuação das demais comissões do Congresso Nacional e de suas Casas, criadas de acordo com o art. 58; g) a fixação do rito de apreciação, pelo Plenário das duas Casas do Congresso, das emendas apresentadas na comissão mista referida no item anterior, que sobre elas deverá emitir parecer; h) a disciplina do iter formativo das emendas constitucionais, leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas, resoluções e decretos legislativos, que envolve questões relativas à apresentação, recebimento, distribuição a comissões, turnos, interstício, regime de tramitação, urgência, prioridade, preferência, destaque, prejudicialidade, retirada, discussão e votação das matérias sujeitas à deliberação parlamentar, além de outras, que se quedaram sem normatização constitucional específica; i) a efetivação das

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normas relativas ao regime jurídico parlamentar; e j) o modo pelo qual a sociedade interage e se relaciona com o Poder Legislativo;

4) O direito constitucional brasileiro ainda aspira a uma autêntica democracia parlamentar, porque deposita nos regimentos – e não na Constituição, cujas normas são dotadas de maior estabilidade, porque rígidas – substancial fatia do estatuto das agremiações minoritárias. Do texto constitucional, constam as imunidades e os impedimentos parlamentares (arts. 53 e 54), mas não os direitos dos representantes políticos, em especial os referentes ao exercício do direito de oposição política, imanentes ao pluralismo político-partidário. A expressa previsão constitucional de criação de comissões parlamentares de inquérito por um terço dos membros do Senado Federal e da Câmara dos Deputados não infirma a assertiva, porque a maior parte dos instrumentos que servem de garantia ao direito de oposição (como solicitação de verificação de votação, o direito de obstrução, o requerimento de destaque para votar em separado parte de proposição, o uso da palavra e o pedido de adiamento de votação) está sediada nos regimentos. Esse dado confirma a importância da ordem jurídica regimental para a democracia brasileira.

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PARECERES DA PROCURADORIA

GERAL DA CMRJ

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Direito Administrativo e Urbanístico

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A Disciplina do solo criado no muni-cípio do Rio de Janeiro

Parecer no 02/07-CRTS

Ementa: Direito Urbanístico. 1. O solo criado e sua disciplina no Município do Rio de Janeiro. Arts. 23 e seguintes da Lei Complementar nº 16/92. Ao proprietário é dado construir o equivalente à metragem quadrada do seu terreno, podendo o Poder Público autorizar a construção em dimensões excedentes a esse limite mediante compensação financeira a ser calculada na forma do art. 25, da lei. 2. Vigência e Aplicabilidade dos dispositivos em questão. 2.1. Estão em pleno vigor as normas constantes dos arts. 23 e seguintes da lei. 2.2. A definição do coeficiente “um” de aproveitamento do terreno como limite de construção (art. 23) é norma de eficácia imediata e se impõe como parâmetro urbanístico válido. 2.3. A faculdade atribuída ao Poder Público para autorizar a criação de solo, mediante compensação financeira, depende de regulamentação por lei de iniciativa do próprio Poder Executivo. 3. Inobservância do disposto no art. 23, pela Administração. Conseqüências jurídicas. 3.1. Ação Civil Pública. 3.2. Ato de Improbidade Administrativa.

Senhora Procuradora-Geral,

A presente consulta tem por objeto os questionamentos encaminhados à Presidência da Casa pelo Ilmo. Sr. Vereador ..., Presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito instituída pela Resolução nº 1.068 de 04 de maio de 2007 (fls. 02/03), assim apresentados:

1) a Lei Complementar nº 16/92 que versa sobre o Plano Diretor Decenal,

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em seu art. 23, fixa o coeficiente “um” de aproveitamento do terreno, permitindo ao proprietário construir o equivalente à metragem quadrada do terreno;2) No art. 24, faculta ao Poder Público autorizar a criação do solo como excedente do coeficiente “um”, mediante pagamento, observando o IAT e os demais parâmetros urbanísticos; e3) No art. 25, estabelece a fórmula a ser aplicada para cálculo do valor a ser pago pela metragem que exceder à permitida pela legislação.Isto posto, indagamos:a) O art. 23 encontra-se vigente ou foi revogado?b) Admitindo-se sua vigência, excluídas as Leis Complementares que modificaram-no em áreas específicas (P.E.U.S e outros), indagamos se sua aplicação, isto é, o coeficiente “um” de aproveitamento do terreno, que permite ao proprietário construir a metragem quadrada do terreno, depende da regulamentação do previsto nos arts. 24 e 25, ou estes (arts. 24 e 25) só se fazem necessários quando exceder ao previsto no art. 23.c) Confirmado o limite imposto pelo art. 23, sua desobediência implica tipicidade penal?c.1 – Se incidente, alcança somente aos funcionários que desobedeceram à legislação ou/e também aos que requeiram o licenciamento ilegal?c.2 – Qual o caminho a ser adotado visando o ressarcimento aos cofres da Municipalidade?c. 3 – Qual o prazo de prescrição para os casos previstos nos subitens c.1 e c.2?

O solo criado e sua disciplina no Município do Rio de Janeiro

As normas constantes dos arts. 23, 24, 25, 26 e 27 do Plano Diretor Decenal (Lei Complementar nº 16/92) disciplinam a criação de solo no Município do Rio de Janeiro.

Art. 23 - É fixado para todo o Município o coeficiente um de aproveitamento do terreno, que permite ao proprietário construir o equivalente à metragem quadrada do terreno, sem qualquer pagamento relativo a criação do solo.§ 1º - Nas áreas tombadas e nas áreas de entorno de bens tombados e, ainda, naquelas onde a legislação urbanística fixar índices de aproveitamento do terreno inferiores a um ou outros parâmetros urbanísticos dos quais resultem índices de aproveitamento do terreno inferiores a um, o proprietário não terá direito de construir a área correspondente à metragem quadrada da totalidade do terreno de que trata o caput deste artigo.

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§ 2º - Para efeito de aplicação do coeficiente um, serão computados na área total do terreno os eventuais recuos para ele exigidos.Art. 24 - O Poder Público poderá autorizar a criação de solo como excedente do coeficiente um, mediante pagamento, observado o Índice de Aproveitamento do Terreno - IAT e os demais parâmetros urbanísticos fixados pela legislação.Art. 25 - O valor a ser pago pelo solo criado será calculado pela multiplicação da quantidade de metros quadrados a serem edificados, que excederem à área do terreno, pelo valor do metro quadrado do terreno no mercado imobiliário e por uma fração que considerará o Índice de Aproveitamento do Terreno fixado pela legislação e um fator de correção que variará de cinco centésimos a um, conforme o período em que for outorgada a concessão e o bairro onde se localizar o terreno, de acordo com a seguinte fórmula:SC = (ATE - AT) x (V/AT) x (1/(IAT - IAT x fc) + 1)), sendo:SC = valor a ser pago pelo solo criado;V = valor do terreno no mercado imobiliário;AT = área do terreno em metros quadrados não descontados os recuos obrigatórios;ATE = área total edificada em metros quadrados;IAT = índice de aproveitamento do terreno;fc = fator de correção diferenciado por bairro e por ano.§ 1º - O valor a ser pago pelo solo criado será fixado em Unidades de Valor Fiscal do Município - UNIF ou outro índice aplicado no Município, no ato da expedição da licença de construir, e o seu pagamento poderá ser efetuado em até doze parcelas mensais e sucessivas, a partir da data da comunicação do início da obra, conforme previsto no art. 97, § 1º, ficando a expedição do habite-se condicionada à quitação de todas as parcelas.§ 2º - Lei de iniciativa do Poder Executivo, proposta em mensagem contendo exposição circunstanciada e tabela de valores, definirá o fator de correção (fc) para cada bairro, que variará progressivamente tendendo a um, de acordo com o período de outorga da concessão, e disporá sobre a disciplina de sua cobrança.§ 3º - A lei a que se refere o parágrafo anterior poderá estabelecer coeficientes de correção (fc) diferenciados por logradouros ou áreas públicas situadas numa mesma Unidade Espacial de Planejamento, para atender à variação de valorização do terreno no respectivo bairro.Art. 26 - A lei poderá isentar, total ou parcialmente, o valor do solo criado, para adequá-lo à dinâmica do desenvolvimento urbano do Município.Art. 27 - O produto da arrecadação da criação do solo reverterá para o Fundo

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Municipal de Desenvolvimento Urbano e será aplicado exclusivamente na execução de projetos de construção de habitações para a população de baixa renda e de implantação de sistema de esgotamento sanitário nas comunidades por esta ocupadas.§ 1º - O orçamento municipal detalhará, a cada exercício, as áreas de aplicação dos recursos do Fundo Municipal de Desenvolvimento Urbano provenientes da arrecadação da criação de solo, vedada a sua utilização em áreas não incluídas na lei orçamentária.

A figura jurídica do solo criado, bastante recente na legislação brasileira, é um poderoso instrumento de ordenação urbana.

O direito de construir, inerente à propriedade do solo, está sujeito às limitações representadas pelos direitos de vizinhança e regulamentos administrativos (art. 1.299, do Código Civil), além das próprias normas técnicas.

Dentre as limitações de ordem administrativa encontra-se o coeficiente de aproveitamento do terreno – dado pela relação entre a área edificável e a área do terreno.

O Município do Rio de Janeiro adotou o coeficiente “um” de aproveitamento do terreno (art. 23), ou seja, ressalvadas as hipóteses previstas no § 1º, o proprietário tem o direito de construir o equivalente à metragem quadrada do terreno.

O Poder Público poderá autorizar construção excedente ao coeficiente “um”, mediante pagamento, observado o Índice de Aproveitamento do Terreno – IAT e os demais parâmetros urbanísticos fixados pela legislação.

Esse excedente é o chamado solo criado.

Na concisa definição dada por Ricardo Pereira Lira1, o solo criado consiste na

“criação de áreas adicionais de piso utilizável não apoiadas diretamente sobre o solo. É a criação de piso artificial”.

A noção de solo criado pressupõe a adoção de um coeficiente único de aproveitamento do solo (art. 23). É somente a partir dessa idéia que se pode chegar a uma concepção de solo criado strictu sensu, como o excesso de construção 1 LIRA, Ricardo Pereira. Elementos de direito urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p.

180.

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(piso utilizável) superior ao limite estabelecido em função do coeficiente único de aproveitamento.

Todo aproveitamento de terreno, no subsolo ou no espaço aéreo, envolvendo criação de solo, desde que consentida pela lei de uso do solo, cria para o beneficiário a obrigação de dar à comunidade uma contraprestação pelo excesso de utilização, que implica, como é intuitivo, uma sobrecarga para o equipamento urbano.

Não é difícil perceber que um prédio de 15 andares com 48 apartamentos de 02 quartos tem um impacto muito maior sobre o equipamento urbano que uma ampla casa construída no mesmo terreno.

É natural, portanto, que o beneficiário do empreendimento compense a coletividade por esse excesso de utilização.

Essa contraprestação pode variar segundo o critério adotado por cada ordenamento jurídico.

Em alguns sistemas essa compensação é feita mediante cessão à comunidade de área correspondente ao excesso artificial gerado, para que ali se criem áreas verdes, se instalem equipamentos comunitários, praças, escolas, áreas de lazer etc. É a versão urbanística do solo criado, em que o beneficiário compensa a coletividade pelo plus que consentidamente pratica com a cessão de espaço correspondente em favor do grupo.

Estabelecem esse tipo de compensação, entre outros, os Municípios de Porto Alegre (Lei Complementar nº 315/94) e Curitiba (Lei nº 9.802/00).

A maior parte dos Municípios adota um sistema semelhante ao definido em nosso Plano Diretor, com a compensação financeira do solo criado (versão financeira – sistema francês).

É o que prevê o art. 24, da Lei Complementar nº 16/92, que permite ao Poder Público autorizar construção excedente ao coeficiente “um” de aproveitamento do terreno, mediante pagamento que será calculado na forma do art. 25.

A sistemática prevista nessa lei guarda estreita conformidade com o padrão sugerido pelo Estatuto das Cidades (Lei Federal nº 10.257, de 10 de julho de 2001), que assim dispõe quanto à outorga onerosa do direito de construir:

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Art. 28. O plano diretor poderá fixar áreas nas quais o direito de construir poderá ser exercido acima do coeficiente de aproveitamento básico adotado, mediante contrapartida a ser prestada pelo beneficiário.§ 1

o Para os efeitos desta Lei, coeficiente de aproveitamento é a relação

entre a área edificável e a área do terreno.§ 2

o O plano diretor poderá fixar coeficiente de aproveitamento básico único

para toda a zona urbana ou diferenciado para áreas específicas dentro da zona urbana.§ 3

o O plano diretor definirá os limites máximos a serem atingidos pelos

coeficientes de aproveitamento, considerando a proporcionalidade entre a infra-estrutura existente e o aumento de densidade esperado em cada área.Art. 29. O plano diretor poderá fixar áreas nas quais poderá ser permitida alteração de uso do solo, mediante contrapartida a ser prestada pelo beneficiário.Art. 30. Lei municipal específica estabelecerá as condições a serem observadas para a outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso, determinando:I – a fórmula de cálculo para a cobrança;II – os casos passíveis de isenção do pagamento da outorga;III – a contrapartida do beneficiário.Art. 31. Os recursos auferidos com a adoção da outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso serão aplicados com as finalidades previstas nos incisos I a IX do art. 26 desta Lei.

A outorga onerosa é muito mais que uma significativa fonte de receita municipal. Ela viabiliza a conjugação do interesse econômico do empreendedor particular com o interesse público da coletividade.

Quando bem manejado, esse instrumento permite que o administrador controle o uso do solo e o crescimento desordenado da cidade, restringindo o adensamento construtivo e habitacional em áreas impróprias, evitando a sobrecarga da infra-estrutura urbana e induzindo a ocupação de áreas que promovam o desenvolvimento.

No Município do Rio de Janeiro, “o produto da arrecadação da criação do solo reverterá para o Fundo Municipal de Desenvolvimento Urbano e será aplicado exclusivamente na execução de projetos de construção de habitações para a população de baixa renda e de implantação de sistema de esgotamento sanitário nas comunidades por esta ocupadas.” (art. 27).

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Tais observações, conquanto prescindíveis, têm o propósito de localizar a questão dentro do ordenamento jurídico nacional e demonstrar a importância desse instrumento urbanístico e a modernidade e o rigor com que foi tratado por nosso Plano Diretor, quase uma década antes do Estatuto das Cidades.

Artigos 23 e seguintes da Lei Complementar nº 16/92 – Vigência e Apli-cabilidade (itens a e b)

Passando às questões formuladas (com bastante propriedade) pelo nobre vereador interessado, temos que o art. 23 e os que a ele se seguem encontram-se em pleno vigor.

Como se disse, tais normas guardam estreita consonância com os dispositivos constitucionais e legais atinentes à matéria.

A regra constante do art. 40 da Lei Federal nº 10.257/01 que prevê a revisão decenal dos Planos Diretores não limita sua vigência, tão-somente cria para os agentes envolvidos na elaboração da lei o dever de provocar sua renovação.

Suas normas permanecerão em vigor até que sejam revogadas explícita ou tacitamente por outras normas de igual ou maior hierarquia.

Tramita hoje nesta Casa, em regime de prioridade, o Projeto de Lei Complementar nº 25/2001 (Mensagem nº 81/2001), que “dispõe sobre a política urbana do Município, instituindo o Plano Diretor da Cidade do Rio de Janeiro”, mas não há no ordenamento municipal qualquer dispositivo de lei que tenha revogado explícita ou tacitamente os comandos em questão.

Estão, portanto, em pleno vigor, os arts. 23, 24 e 25, da Lei Complementar nº 16/92.

Superada a questão da vigência, há que se verificar sua aplicabilidade. Esses dispositivos são auto-aplicáveis ou dependem de regulamentação para sua plena eficácia? Vejamos.

O art. 23 define um coeficiente único de aproveitamento do terreno para o Município do Rio de Janeiro.

Ressalvados os casos previstos no § 1º (áreas tombadas, áreas de entorno de

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bens tombados, áreas com índices de aproveitamento do terreno inferiores a um ou com parâmetros urbanísticos de que resultem índices inferiores a um), ao proprietário é dado construir o equivalente à metragem quadrada do terreno, nela computados eventuais recuos para ele exigidos (§ 2º).

Essa norma traz em si todos os elementos para a sua imediata aplicação, prescindindo de qualquer intermediação regulamentadora.

O art. 24 faculta ao Poder Público autorizar a construção em dimensões excedentes ao coeficiente “um”, observados o Índice de Aproveitamento do Terreno e demais parâmetros urbanísticos fixados pela legislação, mediante pagamento.

O valor a ser pago será calculado de acordo com fórmula estabelecida pelo art. 25, em que serão considerados os seguintes fatores: área a ser edificada além do coeficiente “um” (metragem quadrada da construção subtraída da metragem quadrada do terreno), valor do metro quadrado no mercado imobiliário (tabela de IPTU), Índice de Aproveitamento do Terreno (anexo II, da Lei Complementar nº 16/92) e um fator de correção a ser definido em lei de iniciativa do Poder Executivo (§ 2º).

O § 1º desse artigo determina a forma de cobrança do solo criado e condiciona a expedição de “habite-se” ao seu prévio pagamento.

Ao que parece, até a presente data o Poder Executivo se manteve incompreensivelmente inerte em definir o fator de correção integrante do cálculo, inviabilizando a cobrança do solo criado e renunciando a uma significativa fonte de receita.

Por razões ainda mais insondáveis, tem a Administração deixado de aplicar o próprio art. 23, ignorando esse importante parâmetro urbanístico e permitindo a construção em dimensões excedentes ao coeficiente de aproveitamento sem qualquer compensação à coletividade.

Essa orientação, além de evidentemente contrária ao interesse público, não pode ser admitida do ponto de vista jurídico.

O art. 23, norma de eficácia imediata, traz uma regra geral, que pode ser excepcionada nos casos previstos no art. 24, sempre mediante compensação financeira a ser calculada na forma do art. 25.

Afastada a faculdade prevista no art. 24, à falta de norma regulamentadora

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que defina o fator de correção – pela inércia do Poder Executivo – persiste, forte em seus comandos, a regra geral do art. 23 – ao proprietário somente é dado construir o equivalente à metragem quadrada do terreno.

Qualquer empreendimento imobiliário que exceda essas dimensões estará inviabilizado até que a lei a que se refere o art. 25, § 2º seja promulgada.

Inércia do Poder Executivo – Conseqüências Jurídicas (item c)

Indaga o nobre consulente se a inércia da Administração nesse caso pode configurar um ilícito penal.

O afastamento da norma do art. 23 por tão prolongado período certamente gerou incalculáveis prejuízos para o Município – prejuízos de ordem financeira e prejuízos para o interesse público –, mas não parece haver elementos para caracterizar um ilícito penal.

Os órgãos de licenciamento não descumpriram a lei em casos específicos, beneficiando, individualmente, determinadas pessoas. Ao examinar os pedidos de licença – em geral –, esses agentes deixaram de considerar o parâmetro urbanístico constante do art. 23, não se sabe se apoiados em orientação jurídica ou não.

Tampouco parece ter havido, nesse caso, um ostensivo e deliberado descumprimento da lei, mas o equivocado julgamento de que a norma constante do art. 23 era inaplicável até que fossem regulamentados os demais dispositivos que regem a matéria.

Por outro lado, a postura da Administração nesse mister pode ser caracterizada como lesiva à ordem urbanística, na forma do art. 1º, inc. III, da Lei Federal nº 7.347/85, ensejando a propositura de Ação Civil Pública.

A Câmara Municipal do Rio de Janeiro não tem legitimidade para propor esse tipo de ação. Tampouco suas comissões ou seus membros. Mas, “qualquer pessoa poderá e o servidor público deverá provocar a iniciativa do Ministério Público, ministrando-lhe informações sobre fatos que constituam objeto da ação civil e indicando-lhe os elementos de convicção.” (art. 6º da Lei nº 7.347/85).

Além disso, poderá, em tese, vir a se caracterizar na hipótese um ato de improbidade administrativa, conforme o disposto no art. 10, inc. VII, da Lei Federal

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nº 8.429/92:

Art. 10 - Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação de bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta lei, e notadamente:... omissis ...VII – conceder benefício administrativo ou fiscal sem a observância das formalidades legais ou regulamentares aplicáveis à espécie;

Nesse caso, independentemente das sanções penais, civis e administrativas, previstas na legislação específica, o responsável estará sujeito ao “ressarcimento integral do dano, perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, se concorrer esta circunstância, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de cinco a oito anos, pagamento de multa civil de até duas vezes o valor do dano e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de cinco anos.” (art. 12, inc. II, da lei).

No entanto, qualquer providência nesse sentido deverá ser precedida de cautelosa apuração (pedidos de informações, convocações etc), porque a lei considera crime, passível de detenção de seis a dez meses, a representação por ato de improbidade contra agente público ou terceiro beneficiário, quando o autor da denúncia o sabe inocente (art. 19, da lei).

Se configurado o ato de improbidade administrativa, as disposições da lei estendem-se também àqueles que, mesmo não sendo agentes públicos, induzam ou concorram para a prática do ato lesivo ao patrimônio público ou dele se beneficiem direta ou indiretamente (art. 3º).

Quanto à prescrição, as ações destinadas a levar a efeito as sanções previstas na Lei nº 8.429/92 prescrevem em cinco anos a contar do término do mandato ou função fiduciária ou em prazo igual ao estabelecido no estatuto para faltas disciplinares passíveis de demissão, para os ocupantes de cargos efetivos (art. 23).

Finalmente, no tocante à questão do ressarcimento, a menos que venha a se caracterizar o ato de improbidade administrativa, com as conseqüências da referida lei, não há meios de se buscar qualquer reparação.

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As pessoas físicas e jurídicas que, desde a promulgação do Plano Diretor, requereram e obtiveram licença para construir em dimensões excedentes ao coeficiente “um” de aproveitamento dos seus terrenos presumivelmente agiram de boa-fé.

Todas elas, presumivelmente, submeteram seus projetos aos órgãos de licenciamento, supriram eventuais pendências – dentre as quais não foi indicada, à época, a vedação constante do art. 23 – e obtiveram a correspondente licença e, finalmente, o “habite-se”. Tudo isso de acordo com os critérios então adotados pela Administração.

Não há meios de se rever todos esses empreendimentos e exigir dos atuais proprietários qualquer compensação.

Como se viu, a definição desses valores depende de regulamentação. Ela não era devida à época e não será devida até que sobrevenha a norma regulamentadora.

Em verdade essas construções simplesmente não poderiam ter sido autorizadas, diante da vedação legal. Mas a correspondente licença foi concedida, e presumivelmente de boa-fé.

Assim, a menos que se venha a configurar, na hipótese, uma situação fraudulenta ou de improbidade, não é possível o ressarcimento pretendido.

É o parecer, sub censura de V. Exª.

Rio de Janeiro, 11 de julho de 2007.

Claudia Rivolli Thomas de SáProcuradora da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

Visto. Aprovo o Parecer nº 02/2007-CRTS, retro/supra.

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Encaminhe-se à consideração do Excelentíssimo Senhor Presidente.

Rio de Janeiro, 12 de julho de 2007.

Jania Maria de SouzaProcuradora-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

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Ilegalidade de subcontratação não prevista em edital

Parecer nº 06/06-SAFF

Ementa: Direito Administrativo. Licitação. Vedação à subcontratação ou à terceirização. Caracterização, no caso concreto, de subcontratação não autorizada pelo Edital, o que é vedado pelo art. 78 da Lei 8.666/93.

Senhora Procuradora-Geral

Pelo ofício no CPI 1037 12/06 (fls. 02), o ilustre Vereador Presidente da Comissão

Parlamentar de Inquérito instituída pela Resolução 1037 solicitou ao Exmº. Sr. Presidente o encaminhamento de consulta a esta Procuradoria-Geral, deferida às fls. 34 e relatada a seguir.

1. Histórico e Objeto da Consulta

No ofício acima referido, o Presidente da Comissão interessada narra que está investigando a licitação promovida pelo Poder Executivo para o fornecimento de gêneros para a merenda escolar das escolas deste Município. Segundo a narrativa, uma das licitantes teria apresentado, em sua documentação, um contrato de locação, como forma de atender a um dos itens da qualificação exigida.

Ainda segundo o expediente inicial, em uma das sessões da CPI, se teria indagado a servidores do Poder executivo se não seria necessária a apresentação de documentos da empresa locadora, e a resposta dos depoentes teria sido no sentido de que tal documentação só seria exigível se se estivesse diante de uma hipótese de

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subcontratação e, no caso concreto, havia uma terceirização.

O processo foi instruído com cópias do contrato de locação referido (fls. 04-10) e do edital de licitação, sem os anexos (fls. 12-33). No próprio expediente inicial, a Comissão consulente formula os seguintes quesitos:

1) Qual a distinção entre subcontratação e terceirização?

2) Caso exista alguma distinção, no caso concreto, considerando o edital de licitação (doc. 2, anexado) e as características do contrato de locação apresentado (doc. 1), estaria caracterizada uma subcontratação ou uma terceirização?

3) O fato do referido contrato de locação descrever a totalidade da área das instalações da empresa locadora (7.500 m2) pesa sobre a caracterização, ou não, de uma subcontratação?

Passo a opinar.

2. Apreciação

Antes de abordar os quesitos formulados pela operosa Comissão consulente, é necessário examinar outras questões jurídicas que foram pressupostas na consulta e na pergunta efetuada aos depoentes, mas que, por imperativo lógico, devem ser dirimidas antes daquelas. Em especial, deve-se examinar a segunda delas (pergunta efetuada aos depoentes), para que o trabalho desta Procuradoria-Geral não fique reduzido ao exame da resposta dos depoentes, e menos ainda, a indagações puramente doutrinárias, como a contida no quesito nº 1.

A primeira das questões a examinar é se existe uma vedação legal à subcontratação nos contratos públicos. A resposta decorre necessariamente da análise conjugada de dois dispositivos da Lei 8.666/93, que trata das licitações e contratos públicos:

Art. 72. O contratado, na execução do contrato, sem prejuízo das responsabilidades contratuais e legais, poderá subcontratar partes da obra, serviço ou fornecimento até o limite admitido, em cada caso, pela Administração.Art. 78. Constituem motivo para rescisão do contrato:VI – a subcontratação total ou parcial do seu objeto, a associação do contratado com outrem, a cessão ou transferência, total ou parcial, bem como a fusão, cisão e incorporação, não admitidas no edital e no contrato;

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Em estudo objetivo sobre o tema, a Professora Izabel Sobral reporta cuidadosamente a opinião de diversos autores

1, como Diógenes Gasparini, Hely Lopes

Meirelles, Miguel Algel Berçaitz, Carlos Pinto Coelho Motta, Sergio Ferraz, Lucia Valle Figueiredo e Jessé Torres Pereira Júnior, afinal concluindo que:

a) a subcontratação e a cessão ou transferência podem ser parciais, mas somente se estiverem previstas no edital e no contrato, de acordo com a interpretação que concilia as disposições do art. 72 e do inciso VI, do art. 78, da Lei 8.666/93.[...]b) A subcontratação, a cessão ou transferência totais referidas no inciso VI do art. 78, da Lei 8.666/93 configuram negação do procedimento licitatório e ferem o princípio da igualdade. (não sublinhado no original)

Examinando o edital de licitação, cuja cópia se encontra às fls. 04-33, não se vislumbra qualquer autorização à subcontratação que, por óbvio, deveria ser expressa. Ao contrário, o item 9.04 do Edital (fls. 16) trata das hipóteses de transformação societária da empresa vencedora, silenciando sobre a possibilidade de subcontratação. Confira-se:

9.04 – A empresa vencedora, isoladamente ou participante de consórcio, poderá realizar operações de transformação societária, fusão, cisão e incorporação até a aceitação definitiva dos serviços, desde que submeta tal fato ao Município com antecedência mínima de 30 dias, para verificação de suas implicações com o objeto do Contrato. O consórcio vencedor ficará obrigado a promover a constituição e o registro de Consórcio antes da celebração do Contrato, e poderá ter sua constituição ou sua composição alteradas, observado o procedimento estabelecido na primeira parte desta alínea.

Assim, resta claro que, embora a legislação permita a subcontratação de serviços, neste caso em concreto, ela é vedada por falta de expressa previsão editalícia.

Respondida esta primeira indagação, cumpre verificar se, no caso relatado nestes autos, teria havido a subcontratação dos serviços.

Neste passo, cumpre aludir ao primeiro quesito formulado pela ilustre Comissão consulente. A distinção, prática ou doutrinária, entre subcontratação e terceirização, 1 SOBRAL, Izabel. A transferência, cessão ou subcontratação totais do contrato são legais

(art. 78,VI da Lei 8.666/93)? In: MUKAI, Toshio. Curso avançado de licitações e contratos públicos. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2000, p. 220-221.

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a par de não ser muito clara, não oferece utilidade na análise ora empreendida. O importante é saber se houve a entrega, a terceiros, da execução do objeto do contrato, total ou parcialmente. Se se quer chamar isso de subcontratação, em oposição à terceirização, que seria a entrega a terceiros da execução de serviços não contidos no objeto do contrato (atividades meio da empresa), tanto melhor. Se se quer chamar isso de outro nome (coisa que a Lei não faz), o problema ficará exatamente o mesmo: bastará verificar – repita-se – se os serviços repassados a outrem são ou não parte integrante do contrato com a Administração.

Desse modo, atendo-se aos limites do caso concreto, impende saber se a locação, pela licitante vencedora, das instalações de outra empresa, constitui ou não hipótese de repasse, a terceiro, de serviço integrante do objeto licitado.

A resposta é positiva, e vem do próprio Edital de Licitação, que assim dispõe no seu item 11.B.4, a seguir transcrito parcialmente:

(b.4) – Comprovação de possuir depósito(s) e câmara(s) frigorífica(s) com capacidade de armazenamento e condições de higiene compatíveis com o fornecimento objeto da presente licitação [...]

Assim, se o Edital determina que os licitantes comprovem possuir depósitos e câmaras frigoríficas, é certo que a Administração exige, especificamente quanto a esta parte do serviço, que a atividade seja prestada diretamente pelo licitante, em instalações próprias, e não transferida a terceiros, por constituir parte do objeto da licitação.

Conclui-se, assim, sem necessidade de maiores indagações, que o material contido nestes autos é suficiente para demonstrar a existência de uma subcontratação, não autorizada expressamente pelo edital de licitação e, portanto, ilegal.

Daí já se pode perceber que os dois primeiros quesitos formulados pela Comissão consulente restam prejudicados, pois a distinção conceitual entre subcontratação e terceirização, como já se disse, é irrelevante. Do mesmo modo, não é decisivo para as conclusões aqui obtidas o fato de o contrato de locação envolver a totalidade da área operacional da empresa locadora, objeto do terceiro quesito, pois já está caracterizada a subcontratação irregular, independentemente deste fato.

3. Conclusões

De todo o exposto, concluo, à vista dos documentos apresentados, que o Edital de Concorrência A/CEL/GEN nº 002/2005 não autorizou a subcontratação do objeto da

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licitação que, a despeito disso, foi efetuada, violando o art. 78,VI da Lei 8.666/93.

É o parecer, submetido à elevada consideração de Vossa Excelência.

Rio de Janeiro, 12 de dezembro de 2006.

Sérgio Antônio Ferrari FilhoProcurador da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

Visto. Aprovo o Parecer nº 06/06-SAFF, supra.

Encaminhe-se à consideração do Exmº. Sr. Presidente.

Em 13 de dezembro de 2006.

Jania Maria de SouzaProcuradora-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

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Direito Constitucional

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O Ensino religioso em escolas públi-cas

Parecer n° 01/07-FACB

Ementa: - Constitucional. Consulta formulada acerca da aplicação, no âmbito do Município do Rio de Janeiro, do que dispõe o art. 210, § 1º, da Constituição Federal – que versa sobre ensino religioso nas escolas públicas – em face de decisões tomadas pelo Eg. Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, nas Representações de Inconstitucionalidade n° 36/2003 – que julgou inconstitucional a Lei Municipal nº 3.228/2001 – e nº 141/2000 – que julgou constitucional a parte essencial da Lei Estadual n° 3.459.- Conclusão, com base nas citadas decisões judiciais, sobre a aplicação da Lei Estadual n° 3.459/2000, no que couber, no âmbito do Município do Rio de Janeiro.

Senhor Vereador Presidente,

Através do Ofício GVMP n° 100/2006 (fls. 2), o ilustre Vereador ... tece considerações acerca do tema que envolve a possibilidade de inserção do ensino religioso confessional como disciplina curricular nas escolas da rede pública municipal de ensino.

Relembra o nobre Parlamentar que o tema, na esfera municipal, veio a ser objeto da Lei n° 3.228/2001, cuja inconstitucionalidade foi declarada, por unanimidade, pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Pontua, contudo, que norma idêntica, a Lei n° 3.459/2000, do Estado do Rio de Janeiro foi tida, com

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exceção de seu art. 5º, como constitucional, no julgamento da RI n° 141/2000. Diante de tais circunstâncias, solicita o ilustre Parlamentar o exame, da parte desta Procuradoria-Geral, acerca da propriedade das seguintes assertivas:

1ª) os municípios somente poderiam ‘atuar’ no ensino fundamental, oferecendo a seus alunos a disciplina Ensino Religioso, como disciplina a ser ministrada nos horários normais das escolas públicas, sem no entanto poder legislar sobre a matéria, o que seria feito pelos Estados;2ª) possuindo o Estado do Rio de Janeiro a Lei n° 3.459, de 14 de setembro de 2000, que ‘dispõe sobre Ensino Religioso Confessional nas escolas da rede pública de ensino do Estado do Rio de Janeiro’, estariam os municípios do Estado – inclusive o nosso Rio de Janeiro – obrigados a cumprir as determinações do referido diploma legal, ou seja, implantar imediatamente o Ensino Religioso Confessional.

O debate entre os limites entre Religião e Estado no Brasil é tema que merece uma aprofundada reflexão, muito além dos limites desta manifestação. De todo modo, mesmo tendo em conta o caráter eminentemente prático da consulta formulada, faz-se necessária, preliminarmente, uma breve consideração acerca do tratamento constitucional sobre o contexto que integra a questão do ensino religioso no País.

O § 1º do art. 210 da Constituição Federal – núcleo desta manifestação – estatui que “o ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental”. Trata-se de apenas um, dentre tantos outros dispositivos da Carta Maior, que bem demonstram a opção do constituinte em imprimir à relação “Estado - Igreja” o que se convencionou chamar de “separação atenuada”

1, através do qual o Estado emite sinais positivos acerca do exercício da

religião, reservando para si, contudo, a supremacia de estado laico sobre as questões de índole religiosa.

Em verdade, a regra geral que fixa a separação “Estado - Religião” acha-se encartada, em nossa Constituição Federal, no art. 19, I, verbis:

Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações

1 Cf. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros,

1992, p. 225.

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de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;”

Estabelecida a regra geral da separação entre Estado e Religião, a Constituição Federal cuida de, em vários outros dispositivos, estabelecer sua mitigação

2; nessa

linha de raciocínio, pode-se já afirmar, especificamente, que a organização do ensino religioso nas escolas públicas deverá sofrer a interpretação harmônica com a regra maior de separação entre Estado e Religião.

Assim, uma das marcas da chamada “colaboração de interesse público” – a que alude o transcrito art. 19, I, da Carta Magna – acha-se adequadamente estampada no art. 33 da Lei nº 9.394/96, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, que atribui ao Poder Público o dever de coordenação dos procedimentos para a definição de conteúdo e de contratação de professores de ensino religioso:

Art. 33. O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo.1° Os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para a definição dos conteúdos do ensino religioso e estabelecerão as normas para a habilitação e admissão dos professores.§ 2° Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas, para a definição dos conteúdos do ensino religioso.

Assim, cada sistema de ensino – vale dizer, União, Estados e Municípios – organizará a oferta de ensino religioso, sendo certo – art. 11, I da Lei n° 9.394/96 – que os Municípios, especificamente, têm a incumbência de “organizar, manter e desenvolver os órgãos e instituições oficiais dos seus sistemas de ensino, integrando-os às políticas e planos educacionais da União e dos Estados”, dispositivo que encontra matriz no disposto no art. 211, §2º, da Constituição Federal.

3

Há, portanto, a previsão normativa de um organizado sistema de oferta de ensino religioso da parte do Poder Público.2 arts. 5°, VI, VII e VIII, 143, § 1°, 226, §2°

3 Art. 211. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão em regime

de colaboração seus sistemas de ensino. [...] § 2º Os Municípios atuarão prioritariamente no ensino fundamental e na educação infantil.

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Não obstante, afora tal constatação, não há dúvida de que o art. 210, § 1°, da Constituição Federal, contém considerável força coercitiva, constituindo, antes de tudo, um direito do cidadão. Nessa linha de raciocínio, convém colacionar a lição de Anna Cândida da Cunha Ferraz, para quem:

A norma vertida no § 1° evidencia, de pronto, abrigar dois conteúdos distintos: em primeiro lugar, dela exsurge um comando imperativo. Com efeito, o verbo ‘constituirá’ indica comando impositivo, vale dizer, na organização dos currículos mínimos do ensino fundamental deverá constar o ensino religioso. Destarte, no tocante a este conteúdo, trata-se de norma auto-exeqüível. O ensino religioso deverá constar do ensino fundamental, independentemente de lei que tal preveja ou estabeleça. Assim, nos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental há de caber o ensino religioso. Contrario senso, a lei não poderá suprimir ou ignorar o comando constitucional, deixando de contemplar, no ensino fundamental, o ensino religioso.

Para Ives Gandra da Silva Martins, não há dúvida de que o ensino religioso é obrigatório nas escolas públicas, sendo facultativa a freqüência, conforme o credo religioso de cada cidadão

4.

Importa observar, nessa altura, que, conquanto se deva reconhecer a necessidade de uma ação positiva da Administração de forma a implementar, de forma ordenada, o ensino religioso nas escolas públicas, o fato é que não poderá o Estado assumir o encargo de ministrar o ensino religioso.

Veja, nessa linha, que o art. 33, § 2°, da Lei n° 9394/96, sintomaticamente, prevê que os sistemas de ensino deverão ouvir “entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas, para a definição dos conteúdos do ensino religioso”, afastando, expressamente, o Estado de tal múnus.

Assim, em síntese, podemos afirmar que cabe a qualquer cidadão – inclusive através de ação judicial, na hipótese de resistência – exigir do Poder Público o direito a um espaço no horário normal da escola pública para que o ensino religioso seja ministrado, cumprindo às confissões religiosas a definição de seu conteúdo.

Estabelecidos tais parâmetros, será já possível tecer algumas considerações conclusivas acerca da consulta formulada. Como consta dos autos, a Representação 4 Educação religiosa nas escolas públicas: inteligência do art. 210 da CF. Revista dos Tribunais,

v. 721, p. 79 e ss.

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de Inconstitucionalidade nº 36/03, que julgou inconstitucional a Lei Municipal nº 3.228/2001, entendeu que a matéria em questão – ensino religioso nas escolas públicas – não poderia ser objeto de lei municipal por ausência de prevalência do interesse local. A Representação de Inconstitucionalidade nº 141/2000, por seu turno, rejeitou a pecha de inconstitucionalidade sobre a Lei do Estado do Rio de Janeiro n° 3.459/2000, salvo sobre seu art. 5º.

Extrai-se, assim, do conteúdo de ambas as decisões, que se entendeu que a questão do ensino religioso é de interesse regional – e não local – por aplicação da regra do art. 22, IX, da Constituição Federal (art. 74, IX, da Carta Estadual). Interessante notar, em reforço a esse raciocínio, que o Prefeito Municipal, na petição inicial da Representação por Inconstitucionalidade 36/03 (fls. 10 deste processo), defende a aplicação da Lei Estadual n° 3.459/2000, sustentando, com base no que dispõe o art. 313 da Carta Estadual, que “há disposição expressa da Constituição do Estado (que, aliás, reproduz o art. 210, § 1°, da Constituição Federal), pretendo a edição de norma regional (não local) sobre o tema”.

Assim, conjugando tudo o que até aqui se afirmou, e examinando o disposto na Lei n° 3.459/2000, pode-se afirmar que tal norma, no que for cabível, deve ser aplicável aos municípios fluminenses.

Assim, tomando por base o conteúdo das decisões judiciais proferidas nas ações de inconstitucionalidade referidas – e com a reserva de nosso posicionamento, favorável à competência municipal para dispor sobre o assunto – julgo ser possível, agora, o exame das questões suscitadas pelo ilustre Vereador Consulente:

1ª) os municípios somente poderiam ‘atuar’ no ensino fundamental, oferecendo a seus alunos a disciplina Ensino Religioso, como disciplina a ser ministrada nos horários normais das escolas públicas, sem no entanto poder legislar sobre a matéria, o que seria feito pelos Estados;

Considerando que o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro decidiu que a regra contida no art. 210, § 1°, da Constituição Federal é destinada ao Estado, por aplicação do disposto no art. 22, IX da Carta Federal e art. 74, IX, da Carta Estadual, pode-se ter adequada a assertiva. Aduza-se que, aparentemente, é essa também a posição do Prefeito desta Urbe, considerando o teor de que linha argumentativa na petição da Representação por Inconstitucionalidade n° 36/03.

2ª) possuindo o Estado do Rio de Janeiro a Lei n° 3.459, de 14 de setembro de 2000, que ‘dispõe sobre Ensino Religioso Confessional nas escolas da

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rede pública de ensino do Estado do Rio de Janeiro’, estariam os municípios do Estado – inclusive o nosso Rio de Janeiro – obrigados a cumprir as determinações do referido diploma legal, ou seja, implantar imediatamente o Ensino Religioso Confessional.

Com reserva de nosso entendimento pessoal, não há dúvida que, encerrando uma norma de caráter regional, a Lei n° 3.459/2000, no que couber, é aplicável aos municípios fluminenses, sempre sem prejuízo da conclusão de que as escolas, de todo modo, devem oferecer sempre espaço e condições para que o ensino religioso seja ministrado em suas dependências.

À superior consideração.

Rio de Janeiro, 12 de janeiro de 2007.

Flávio Andrade de Carvalho BrittoSubprocurador-geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

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Descumprimento de lei supostamente inconstitucional por agente público

municipalParecer n

o 01/07-CRTS

Ementa: Direito Constitucional. Ostensiva e deliberada inexecução de legislação vigente por ato de secretário municipal. Implicações jurídicas. Medidas cabíveis. 1. É ilegítimo o afastamento de lei por secretário municipal através de ato imotivado e sem a necessária provocação judicial. 2. A negativa de execução de lei presumidamente válida, nessas condições, constitui violação à competência legislativa da Câmara Municipal e ao próprio Princípio da Separação dos Poderes. 3. Medidas cabíveis. 3.1. Convocação do secretário. 3.2. Pedido de informações ao prefeito, sob pena de incidir em infração político-administrativa. 3.3. Crime de Responsabilidade. 3.4. Infração político-administrativa. 3.5. Intervenção Estadual.

Senhora Procuradora-Geral,

A presente consulta tem por objeto a manifestação constante do Memorando nº 14 SMU/SUB, da Secretaria Municipal de Urbanismo (fl. 03), trazida ao conhecimento desta Câmara Municipal pelo Ilmo. Sr. Vereador ..., Presidente da Comissão de Justiça e Redação.

O mencionado expediente, encaminhado às Coordenadorias de Licenciamento e Fiscalização Urbanística e de Planejamento Local pelo Secretário Municipal de Urbanismo, dá ciência a esses órgãos da “orientação da PG/PADM quanto à aplicabilidade da Lei Complementar nº 79/2006, tendo em vista a determinação

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do Exmo. Sr. Prefeito para representação de inconstitucionalidade da referida lei, publicada no D.O. Rio de 07/06/06”.

Essa orientação, emitida em resposta a consulta daquela mesma secretaria, tem o seguinte teor:

se o Exmo. Sr. Prefeito já se manifestou no sentido de que seja argüida a Representação por Inconstitucionalidade da Lei Complementar nº 79/2006, não é necessário que a Secretaria Municipal de Urbanismo dê aplicabilidade à referida lei nos projetos que estão em análise naquela pasta, pois como dito, uma vez considerada inconstitucional uma lei pelo Chefe do Poder Executivo, terá ele o direito de não cumpri-la.

Sob tais frágeis argumentos, o Ilmo. Sr. Secretário de Urbanismo, através de ato formal (o Memorando nº 14 SMU/SUB), determinou aos seus órgãos que negassem execução à mencionada Lei Complementar nº 79/2006.

É essa medida e suas implicações jurídicas que constituem o objeto do presente parecer.

A Lei Complementar nº 79/2006

Conquanto desnecessárias ao exame da questão, são cabíveis algumas observações acerca da Lei Complementar nº 79/2006.

Essa norma define o Projeto de Estruturação Urbana – PEU – dos bairros de Vargem Grande, Vargem Pequena, Camorim e parte dos bairros do Recreio dos Bandeirantes, Barra da Tijuca e Jacarepaguá, estabelecendo padrões de ocupação urbana para essas áreas.

O projeto, de iniciativa do prefeito, sofreu, em sua tramitação, uma série de alterações, todas elas vetadas pelo Chefe do Poder Executivo. Afastadas as razões de veto pela Câmara Municipal, a lei foi promulgada por esta Casa e publicada no Diário Oficial do Município com a determinação do prefeito à Procuradoria-Geral do Município para “analisar/preparar a competente representação por inconstitucionalidade”.

Vale dizer, ANALISAR A QUESTÃO e VERIFICAR SE É CABÍVEL E OPORTUNA A PROPOSITURA DESSA AÇÃO.

Até a presente data, não foi proposta nenhuma representação por

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inconstitucionalidade contra a lei ou qualquer dos seus dispositivos.

Descumprimento pelo Poder Executivo de lei ou ato normativo flagran-temente inconstitucional

É tese consolidada na doutrina como na jurisprudência brasileira a de que, ao Chefe do Poder Executivo é dado descumprir norma que repute flagrantemente inconstitucional, bem como expedir determinação àqueles submetidos a seu poder hierárquico para que procedam da mesma forma.

Caberia, assim, ao administrado prejudicado, o ônus de levar ao Poder Judiciário a questão, no caso concreto, fixando, esse órgão, a sua posição quanto àquela norma.

Esse entendimento, firmado anteriormente à Carta de 1988, quando a legitimidade para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade restringia-se ao Procurador-Geral da República

1, sofreu temperamentos com a promulgação da atual Constituição,

que estendeu essa legitimidade ao Presidente e aos Governadores, entre outros.

Hoje, ainda se admite a possibilidade de descumprimento de lei flagrantemente inconstitucional pelo Chefe do Poder Executivo, mas ela está sujeita a limites precisos.

O primeiro deles é a definição do sujeito. Essa é uma faculdade dada apenas ao CHEFE DO PODER EXECUTIVO, que poderá deixar de aplicar a lei que repute inconstitucional, bem como determinar aos seus órgãos que procedam igualmente.

O segundo é a motivação. A deliberada inexecução de legislação vigente deve ser precedida de uma mínima formalidade, para dizer o menos, possibilitando, eventualmente, legitimar a atuação da administração. É como leciona Hely Lopes Meirelles:

Nivelados no plano governamental, o Executivo e o Legislativo praticam atos de igual categoria e com idêntica presunção de legitimidade. Se assim é, não se há de negar ao chefe do Executivo a faculdade de recusar-se a cumprir ato legislativo inconstitucional, desde que por ato administrativo formal e expresso (decreto, portaria, despacho etc) declare a sua recusa e aponte a inconstitucionalidade de que se reveste.

1 O Chefe do Poder Executivo não dispunha, então, de nenhum outro meio para provocar o

exame judicial da questão constitucional.

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Nessa atitude do Executivo não há rebeldia à lei, mas obediência à Constituição da República, que é a lei suprema. O essencial é que o prefeito, ao negar cumprimento a uma lei inconstitucional, justifique o seu ato e ingresse no Judiciário, se for titular de ação, para obter o pronunciamento de inconstitucionalidade pelo Poder que tem competência para fazê-lo.” (Direito municipal brasileiro. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 1998).

O terceiro requisito que deve, necessariamente, ser preenchido em hipóteses como a presente é o exame da questão pelo Poder Judiciário.

Todos os Poderes da República interpretam a Constituição e têm o dever de assegurar o seu cumprimento, mas é o Poder Judiciário que detém a primazia da interpretação final dos seus comandos.

A lei (ato legislativo), como o ato administrativo e o ato judicial, reveste-se da presunção de legitimidade. A lei promulgada presume-se válida, legítima e conforme a Constituição.

Só ao Poder Judiciário cabe, em última análise, afastar essa presunção.

Assim, para que a decisão do Chefe do Poder Executivo de negar cumprimento a determinada lei que considere, fundamentadamente, inconstitucional seja legítima, ela deverá, necessariamente, ser acompanhada da competente provocação judicial, sob pena de violação ao Princípio da Separação dos Poderes.

A hipótese dos autos

A simples leitura do expediente que ensejou a presente consulta revela, em termos inquestionáveis, que a postura do seu autor (o Secretário Municipal de Urbanismo) excedeu a todos os limites fixados pela doutrina e jurisprudência para o legítimo afastamento de lei considerada inconstitucional.

A nenhum agente público (político ou administrativo), que não o Chefe do Poder Executivo, é dado fazê-lo.

O Prefeito não negou execução à lei complementar, nem mesmo declarou ser ela inconstitucional, apenas determinou ao seu órgão de consultoria jurídica a análise da questão com as providências cabíveis.

Se alguma inconstitucionalidade nela enxergaram – o prefeito ou o secretário –, nem mesmo a indicaram.

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Nem a própria Procuradoria-Geral do Município, na manifestação que ensejou a decisão do Secretário de Urbanismo, fez qualquer menção a dispositivo constitucional que tenha sido violado pela lei.

Não sem razão, até a presente data, não se tem notícia da propositura de qualquer representação por inconstitucionalidade contra a lei em questão.

Como se pode ver, carece de qualquer amparo legal e doutrinário a conduta do Ilmo. Sr. Secretário Municipal de Urbanismo.

Violação ao princípio da separação dos poderes

A deliberada e ostensiva inexecução de legislação vigente constitui frontal violação ao Princípio Constitucional da Separação dos Poderes e ao próprio Estado de Direito.

Como se disse, a lei promulgada presume-se constitucional, devendo ser cumprida por todos, inclusive a Administração Pública.

Quando um órgão ou agente público deliberadamente e sem qualquer justificativa nega execução à lei, ele está, em última análise, desconhecendo a própria competência do Poder Legislativo.

Zelar pela preservação de sua competência é um dever que se impõe a todas as Casas Legislativas (art. 49, XI, da Constituição Federal).

Instrumentos de preservação da competência das casas legislativas

Retomando os argumentos até aqui desenvolvidos, temos que: i) é ilegítima a negativa de execução da lei municipal pelo Secretário de Urbanismo; ii) esse ato constitui violação à competência legislativa da Câmara Municipal e ao próprio Princípio da Separação dos Poderes; e iii) esta Casa tem o poder/dever de zelar pela preservação de sua competência.

Diante disso, cumpre-nos examinar, em atendimento à consulta proposta, os instrumentos de que dispõe esta Câmara Municipal para assegurar suas competências constitucionais. Vejamos.

São crimes de responsabilidade os atos do prefeito que atentem contra a Constituição da República, a Constituição do Estado, a Lei Orgânica do Município

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e, especialmente CONTRA O CUMPRIMENTO DAS LEIS e decisões judiciais (art. 112, da Lei Orgânica).

As normas de processo e julgamento, bem como a definição desses crimes, são as estabelecidas pela legislação federal (art. 112, parágrafo único, da Lei Orgânica).

Essa legislação é o Decreto-Lei nº 201/67, recepcionado pela Constituição Federal, que dispõe em seu artigo 1º, XIV:

Art. 1º - São crimes de responsabilidade dos Prefeitos Municipais, sujeitos ao julgamento do Poder Judiciário, independentemente do pronunciamento da Câmara dos Vereadores:... omissis ...XIV - negar execução a lei federal, estadual ou municipal, ou deixar de cumprir ordem judicial, sem dar o motivo da recusa ou da impossibilidade, por escrito, à autoridade competente;

A condenação definitiva nesses crimes acarreta a perda do cargo e a inabilitação, pelo prazo de cinco anos, para o exercício de cargo ou função pública, sem prejuízo da reparação civil do dano causado ao patrimônio público ou particular (art. 1º, § 2º, do decreto-lei).

Qualquer interessado pode requerer a abertura de inquérito policial ou a instauração da ação penal pelo Ministério Público, bem como intervir, em qualquer fase do processo, como assistente da acusação (art. 2º, § 1º, do decreto-lei).

Assim também a Câmara Municipal, por dois terços dos seus membros.

Como órgão colegiado que é, esta Casa está sujeita a normas internas de apuração da sua vontade coletiva.

Para a deflagração de processo criminal contra o prefeito, a Lei Orgânica exige o quorum de dois terços dos membros da Câmara (art. 45, XXVII). O mesmo quorum está previsto no art. 354, do Regimento Interno.

Vale dizer, qualquer vereador, individualmente considerado, pode requerer a abertura de inquérito policial ou a instauração da ação penal pelo Ministério Público e a Câmara Municipal poderá fazê-lo por decisão de dois terços dos seus membros.

O ato em questão – negativa de execução a lei municipal – também configura infração político-administrativa, definida no mencionado decreto-lei em seu art. 4º,

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VII:

Art. 4º - São infrações político-administrativas dos Prefeitos Municipais sujeitas ao julgamento pela Câmara dos Vereadores e sancionadas com a cassação do mandato:... omissis ...VII - praticar, contra expressa disposição de lei, ato de sua competência ou omitir-se na sua prática;

Essas infrações são processadas e julgadas pela própria Câmara Municipal e sujeitam o seu autor à perda do mandato, pelo voto de dois terços dos seus membros (art. 116, da Lei Orgânica).

Não obstante a configuração, na hipótese, de crime de responsabilidade, bem como de infração político-administrativa; aquele, como esta, são delitos próprios do prefeito, do vice-prefeito ou de quem vier a substituí-lo no exercício do cargo, não estando a eles sujeitos os secretários municipais.

2

Os elementos constantes dos autos não configuram o descumprimento da lei pelo prefeito, mas pelo Secretário de Urbanismo.

Para trazer o prefeito para essa relação, a Câmara deverá lançar mão de outro mecanismo político constante da Lei Orgânica: a solicitação de informações sobre assuntos referentes à Administração (art. 45, XXIV).

A esta Casa é dado questionar o prefeito acerca do formal e ostensivo descumprimento da lei municipal pelo Secretário de Urbanismo.

As informações solicitadas deverão ser prestadas no prazo de trinta dias (prorrogável por igual período), sob pena de incidir o prefeito em infração político-administrativa

3, ensejando, também, a intervenção estadual (art. 45, § 2º).

Diante disso, o prefeito poderá posicionar-se contra o ato do secretário, determinando que se cumpra a lei, ou ao seu lado, reiterando sua postura e incidindo 2 A inclusão dos secretários municipais nesse rol (art. 45, XXVIII, da Lei Orgânica) foi decla-

rada inconstitucional pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (Representação por Inconstitucionalidade nº 15/90). 3 “São infrações político-administrativas do Prefeito aquelas definidas em lei federal e tam-

bém:... omissis ...

V - desatender, sem motivação justa, às convocações da Câmara Municipal e seus pedidos de informações, sonegar informações ou impedir o acesso às informações;”

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em crime de responsabilidade e infração político-administrativa.

Quanto ao Secretário Municipal de Urbanismo, ele pode ser convocado pela Câmara Municipal para prestar esclarecimentos sobre o seu ato (art. 45, XXV), podendo rever sua postura no tocante à matéria ou mantê-la.

A negativa de execução a lei municipal enseja, por fim, a intervenção estadual, na forma do art. 55, IV, da Constituição Federal:

Art. 35 - O Estado não intervirá em seus Municípios, nem a União nos Municípios localizados em Território Federal, exceto quando:... omissis ...IV - o Tribunal de Justiça der provimento a representação para assegurar a observância de princípios indicados na Constituição Estadual, ou para prover a execução de lei, de ordem ou de decisão judicial.

A decretação da intervenção, nessa hipótese, deverá ser requerida pelo Poder Legislativo ao Tribunal de Justiça do Estado (art. 36, I), podendo, o decreto de intervenção, limitar-se a suspender a execução do ato impugnado, se essa medida bastar ao restabelecimento da normalidade (art. 36, § 3º).

São essas as medidas de que dispõe a Câmara Municipal do Rio de Janeiro para preservar sua competência legislativa diante do ostensivo descumprimento da Lei Complementar nº 79/2006 pelo Secretário Municipal de Urbanismo.

É o parecer, sub censura de V. Exª.

Rio de Janeiro, 17 de abril de 2007.

Claudia Rivolli Thomas de SáProcuradora da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

Visto. Aprovo o Parecer nº 01/2007-CRTS, retro.

Encaminhe-se à consideração do Exmº Sr. Presidente.

Em 20 de abril de 2007.

Jania Maria de Souza

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Direito Financeiro

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Conseqüências da não-inclusão do Fundo Municipal de Defesa dos Di-

reitos da Criança na Lei de Diretrizes Orçamentárias

Parecer n° 04/06-FACB

Ementa: Consulta formulada por Parlamentar sobre as possíveis conseqüências da não inclusão do plano de ação do Fundo Municipal de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, no bojo da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) aprovado por esta Câmara Municipal. Os direitos conferidos à criança e ao adolescente têm matriz constitucional, sendo o fundo municipal para sua proteção regulado pela Lei Federal nº 8.069/90 e, no âmbito do Município do Rio de Janeiro, pela Lei nº 1.873/92, que instituiu o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), e que tem por competência o estabelecimento de planos e critérios de aplicação das receitas do respectivo fundo. A circunstância de não haver o Poder Executivo incluído os planos de aplicação dos recursos do Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente na Lei de Diretrizes Orçamentárias não pode ter o condão de impedir a aplicação dos respectivos valores. Possibilidade de inclusão dos planos de ação do Fundo Municipal e respectivas destinações de receitas no bojo da lei orçamentária anual, ainda não submetida à Casa Legislativa.

Senhora Procuradora-Geral,

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1) A consulta

A nobre Vereadora ... solicita a manifestação desta Procuradoria-Geral acerca dos seguintes tópicos:

1) Os compromissos e metas deliberados pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente para utilização dos recursos do Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, publicados no Diário Oficial do Município de 29 de junho de 2006 (pág. 33), poderiam estar fora do Projeto de Lei das Diretrizes Orçamentárias para 2007?2) Como a previsão de utilização dos recursos do Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente poderá ser incluída da Lei Orçamentária Anual, sem que as metas e prioridades tenham sido previamente definidas na Lei de Diretrizes Orçamentárias?

Após a formulação de tais questionamentos, a ilustre Parlamentar tece judiciosas considerações acerca do tema, fazendo anexar, após, através do Processo nº 4.191/06, cópia de Recomendação encaminhada pelo Ministério Público acerca do tema.

Cumpre, assim, previamente, delimitar o espectro de aplicação da lei de diretrizes orçamentárias, para, na seqüência, examinar as conseqüências de tal omissão do Poder Executivo.

2) A lei de diretrizes orçamentárias

A Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) encontra matriz no texto constitucional – artigo 165, §2º – e deverá compreender, necessariamente, as metas e prioridades da administração pública, incluindo as despesas de capital para o exercício financeiro subseqüente, além de orientar a elaboração da lei orçamentária anual, dispor sobre as alterações na legislação tributária e estabelecer a política de aplicação das agências financeiras oficiais de fomento.

Na concepção original da Constituição Federal de 1988, a LDO haveria de ser a grande peça de planejamento econômico-orçamentário do País, permeando a generalidade do Plano Plurianual e as minúcias da Lei Orçamentária Anual, com o mérito de dotar de maior transparência o planejamento e o processo orçamentário brasileiro.

Na prática, contudo, restou demonstrado o pouco apego do administrador

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público aos seus comandos, ao menos até a edição da Lei Complementar nº 101/00, a chamada Lei de Responsabilidade Fiscal, que, em boa hora, cuidou de especificar os tópicos indispensáveis da LDO, notadamente através de seu art. 4

o 1, tornando-se

assim uma norma com o caráter cogente desejável.

Assentou-se, assim, a LDO como o instrumento básico de: i) estabelecimento de metas e prioridades da Administração Pública, incluindo as despesas de capital para o exercício financeiro seguinte, ii) orientação na elaboração da lei orçamentária anual, iii) disposição de alterações na legislação tributária e, iv) estabelecimento de política nas agências oficiais de fomento.

A controvérsia, in casu, surge pela constatação de não ter a Lei de Diretrizes Orçamentárias do Município do Rio de Janeiro, alusiva ao exercício de 2007, indicado o Plano de Ação elaborado pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente. A ilustre Consulente presta a informação de que, no âmbito do Poder Executivo, entendeu-se desnecessária sua inclusão. Não há, contudo, notícia sobre a 1 “Art. 4

o A lei de diretrizes orçamentárias atenderá o disposto no § 2

o do art. 165 da Constitui-

ção e: I - disporá também sobre: a) equilíbrio entre receitas e despesas; b) critérios e forma de limitação de empenho, a ser efetivada nas hipóteses previstas na alínea b do inciso II deste artigo, no art. 9

o e no inciso II do § 1

o do art. 31; c) (VETADO) d) (VETADO) e) normas

relativas ao controle de custos e à avaliação dos resultados dos programas financiados com recursos dos orçamentos; f) demais condições e exigências para transferências de recursos a entidades públicas e privadas; II - (VETADO) III - (VETADO) § 1

o Integrará o projeto de lei

de diretrizes orçamentárias Anexo de Metas Fiscais, em que serão estabelecidas metas anuais, em valores correntes e constantes, relativas a receitas, despesas, resultados nominal e primário e montante da dívida pública, para o exercício a que se referirem e para os dois seguintes. § 2

o

O Anexo conterá, ainda: I - avaliação do cumprimento das metas relativas ao ano anterior; II - demonstrativo das metas anuais, instruído com memória e metodologia de cálculo que justi-fiquem os resultados pretendidos, comparando-as com as fixadas nos três exercícios anteriores, e evidenciando a consistência delas com as premissas e os objetivos da política econômica nacional; III - evolução do patrimônio líquido, também nos últimos três exercícios, destacando a origem e a aplicação dos recursos obtidos com a alienação de ativos; IV - avaliação da situ-ação financeira e atuarial: a) dos regimes geral de previdência social e próprio dos servidores públicos e do Fundo de Amparo ao Trabalhador; b) dos demais fundos públicos e programas estatais de natureza atuarial;V - demonstrativo da estimativa e compensação da renúncia de receita e da margem de expansão das despesas obrigatórias de caráter continuado. § 3

o A lei

de diretrizes orçamentárias conterá Anexo de Riscos Fiscais, onde serão avaliados os passivos contingentes e outros riscos capazes de afetar as contas públicas, informando as providências a serem tomadas, caso se concretizem. § 4

o A mensagem que encaminhar o projeto da União

apresentará, em anexo específico, os objetivos das políticas monetária, creditícia e cambial, bem como os parâmetros e as projeções para seus principais agregados e variáveis, e ainda as metas de inflação, para o exercício subseqüente”.

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linha de raciocínio que embasaria tal entendimento.

De toda forma, pode-se de pronto afirmar que a Lei de Diretrizes Orçamentárias deve contemplar as políticas e os programas voltados para o Fundo Municipal para Atendimento dos Direitos da Criança e do Adolescente, conforme será adiante demonstrado. Feito tal exame, cumprirá perquirir se tal omissão repercutirá de forma decisiva na aplicação dos valores que tocam ao Fundo e na linha de atuação do respectivo Conselho.

3) Os fundos municipais para atendimento dos direitos da criança e do adolescente

A Lei Federal nº 8.069, de 13 de julho de 1990, o chamado Estatuto da Criança e do Adolescente, concebeu uma política de atendimento direcionada à infância e à juventude composta por um conjunto de ações governamentais e não governamentais, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, pelo que prevê seu art. 86, linhas de ação

e metas que, respectivamente, definem-lhe prioridades e a

estruturam.

Constitui uma das diretrizes da política de atendimento, a manutenção dos fundos nacional, estaduais e municipais, vinculados aos respectivos conselhos dos direitos da criança e do adolescente, consoante preceitua o art. 88, IV do mesmo Estatuto. Tais fundos são coordenados pelos respectivos Conselhos, que, consoante dicção do art. 260, § 2

o, “fixarão critérios de utilização, através de planos de aplicação

das doações subsidiadas e demais receitas, aplicando necessariamente percentual para incentivo ao acolhimento, sob a forma de guarda, de criança ou adolescente, órfãos ou abandonados, na forma do disposto no art. 227, § 3º, VI, da Constituição Federal”.

O Fundo Municipal para Atendimento dos Direitos da Criança e do Adolescente, no âmbito do Município do Rio de Janeiro, foi instituído pela Lei nº 1.873/92, norma que cria e estabelece regras de funcionamento do respectivo Conselho Municipal, definindo objetivos da política municipal de atendimento à criança e ao adolescente.

Seu artigo 20 prevê, expressamente, que “o orçamento do Fundo Municipal para Atendimento dos Direitos da Criança e do Adolescente evidenciará as políticas e os programas de trabalho no setor, observados o Plano Plurianual e a Lei de Diretrizes

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Orçamentárias, e os princípios da universalidade e do equilíbrio”, além de incumbir ao Secretário de Governo (art. 19, III) propor ao Conselho o plano de aplicação a cargo do Fundo, “em consonância com a política estabelecida para o setor e com a Lei de Diretrizes Orçamentárias”.

Assim, já por conta de tais dispositivos legais, emanados do próprio Município do Rio de Janeiro, seria possível afirmar ser ilegal a não inclusão das políticas e programas relativos ao Fundo Municipal para Atendimento dos Direitos da Criança e do Adolescente. De todo modo, será conveniente examinar a disciplina dos fundos especiais à luz da legislação vigente, para demonstrar que mesmo a legislação federal impõe a inclusão dos planos relativos aos fundos na lei de diretrizes orçamentárias.

A disciplina dos fundos especiais

Como já referido na consulta, o Fundo Municipal para atendimento dos direitos da criança e do adolescente constitui um “fundo especial”, definido no artigo 71 da Lei nº 4.320/64 como “o produto das receitas especificadas que por lei se vinculam à realização de determinados objetivos ou serviços, facultando a adoção de normas peculiares de aplicação”. Algumas das peculiaridades dos fundos especiais são ressaltadas nas clássicas lições de J. Teixeira Machado Jr. e Heraldo da Costa Reis:

Assim, chega-se a um conceito que deve estar presente: o fundo especial não é entidade jurídica, órgão ou unidade orçamentária, ou ainda uma conta mantida na Contabilidade, mas tão-somente um tipo de gestão financeira de recursos ou conjunto de recursos vinculados ou alocados a uma área de responsabilidade para cumprimento de objetivos específicos, mediante a execução de programas com eles relacionados. (In: A Lei nº 4.320 Comentada. 27. ed. Rio de Janeiro: IBAM, 1996, p. 133).

Ainda segundo a valiosa lição de J. Teixeira Machado Jr. e Heraldo da Costa Reis, esses fundos especiais dispõem de algumas importantes características:

•Receitas especificadas: o fundo especial deve ser constituído de receitas específicas e especificadas, instituídas em lei, ou outra receita qualquer, própria ou transferida, observando-se quanto a estas as normas de aplicação estabelecidas pela entidade beneficente. A Constituição da República veda a possibilidade da vinculação de impostos a fundos especiais, conforme disposto no art. 167, IV;

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•Vinculação à realização de determinados objetivos ou serviços: ao ser instituído, o fundo especial deverá vincular-se à realização de programas de interesse da Administração, cujo controle é feito através dos planos de aplicação e contabilidade próprios. A lei que instituir o fundo especial deverá dispor sobre as obrigações que serão pagas com o produto formado pelas receitas especificadas;•normas peculiares de aplicação: a lei que instituir o fundo especial deverá estabelecer ou dispor sobre normas de controle referentes à destinação dos seus recursos financeiros. Esclareça-se contudo que as disponibilidades de caixa são escrituradas à parte, com clareza, em contas específicas no Ativo Financeiro, que indiquem a especificação do fundo especial, a sua destinação com a sua respectiva contrapartida em obrigações a pagar escrituradas no Passivo Financeiro;•vinculação a determinado órgão da Administração;•descentralização interna do processo decisório;•plano de aplicação, contabilidade e prestação de contas específica.Assim, chega-se a um conceito que deve estar sempre presente: o fundo especial não é detentor de patrimônio, porque é o próprio patrimônio entidade jurídica, órgão ou unidade orçamentária, ou ainda apenas uma conta mantida na Contabilidade, mas tão-somente um tipo de gestão de recursos ou conjunto de recursos financeiros destinados aos pagamentos de obrigações por assunção de várias naturezas, bem como por aquisições de bens e serviços a serem aplicados em projetos ou atividades vinculados a um programa de trabalho para cumprimento de objetivos específicos em uma área de responsabilidade

2.

Por conta de sua natureza, os Fundos Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente não se acham submetidos hierarquicamente a qualquer órgão do Poder Executivo, e sim aos respectivos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente (art. 88, IV, do ECA), responsáveis que são por sua gestão (art. 260 do ECA).

Tal circunstância, obviamente, não autoriza sua eventual exclusão da Lei de Diretrizes Orçamentárias, não só por conta da expressa previsão da legislação local, como também pela constatação de que a própria Lei de Responsabilidade Fiscal (art. 4º, I, a) compele a LDO a dispor sobre o equilíbrio entre receitas e despesas, fazendo incluir a previsão alusiva aos fundos especiais.

2 A Lei 4.320 comentada. 30. ed. Rio de Janeiro: IBAM, p. 155

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Diogo de Figueiredo Moreira Neto leciona que a Lei de Diretrizes Orçamentárias ocupa função paramétrica, contendo para isso, diretrizes, sob forma de metas, prioridades e orientações, “que deverão ser seguidas na elaboração do orçamento anual”

3. A própria Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101/2000)

acena que até trinta dias após a publicação dos orçamentos, nos termos em que dispuser a lei de diretrizes orçamentárias e observado o disposto na alínea c do inciso I do art. 4º, o Poder Executivo “estabelecerá a programação financeira e o cronograma de execução mensal de desembolso”, sendo certo, a teor do que prescreve o parágrafo único do art. 8º, que “os recursos legalmente vinculados a finalidade específica serão utilizados exclusivamente para atender ao objeto de sua vinculação, ainda que em exercício diverso daquele em que ocorrer o ingresso”.

Vale dizer, pois, em síntese, que todo o sistema de receitas e despesas – o que inclui a previsão com fundos especiais – deve vir contemplado na Lei de Diretrizes Orçamentárias. Assim, também por conta de tais fundamentos, é errônea a suposta assertiva do Poder Executivo quanto à desnecessidade de previsão de alocação dos fundos especiais na LDO.

De todo modo, tal indesculpável omissão não tem o condão de fazer extirpar a programação do Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente para o próximo ano, como será visto a seguir.

A compulsória execução do plano de aplicação do fundo especial

O art. 2º da Lei nº 4.320/64 estabelece que a Lei Orçamentária Anual “conterá a discriminação da receita e despesa, de forma a evidenciar a política econômico-financeira e o programa de trabalho do Governo, obedecidos os princípios da unidade, universalidade e anualidade”. De sua parte, o § 2º, I, desse mesmo art. 2º. estabelece que acompanharão a respectiva lei os “quadros demonstrativos da receita e planos de aplicação dos fundos especiais”.

Conquanto os fundos especiais sejam desprovidos de personalidade jurídica, no presente caso, como já visto, o Fundo Municipal de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente deve ser vinculado ao respectivo Conselho. Segundo doutrina

3 Considerações sobre a Lei de Responsabilidade Fiscal, com a colaboração de Silvio Freire

de Moraes. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 108.

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abalizada, “nenhum recurso poderá ter destinação e aplicação sem que tenham sido deliberadas politicamente (e tecnicamente) pelo Conselho, cuja expressão monetária dar-se-á através de Plano de Aplicação”

4.

No âmbito do Município do Rio de Janeiro, já se sabe que o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente é regulado pelo que dispõe a Lei nº 1.873/92, incumbindo-lhe a tarefa de “fixar planos de aplicação e os critérios de utilização das doações subsidiadas e demais receitas do Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente”, nos termos do também já referido art. 260 da Lei Federal nº 8.069/90.

Em síntese, pois, o que se tem é um amplo sistema de proteção à criança e ao adolescente, que se inicia na Constituição Federal e vai até a legislação municipal que trata sobre o fundo especial, criado com o objetivo de lhes assegurar plena proteção. Sob tal óptica, não se pode conceber como a omissão voluntária do Poder Executivo na previsão de planos para o Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente possa impedir sua regular execução no ano seguinte.

Nunca se esqueça, ademais, que a própria Lei nº 4.320/64 prevê – art. 41, II – a possibilidade de abertura de créditos adicionais especiais, destinados, justamente, a despesas para as quais não haja dotação orçamentária específica. Ou seja, no próprio curso da execução orçamentária, pode-se introduzir uma nova modalidade de programa, muito embora seja intuitivo que, “à medida que melhora o processo de planejamento e que seus resultados são expressos em programas no orçamento, tendem a desaparecer os créditos especiais”, conforme abalizada lição de J. Teixeira Machado Jr. e Heraldo da Costa Reis

5. Na esteira desse raciocínio, mesmo que, em

uma grosseira omissão, inexistisse previsão das verbas dos fundos especiais na própria lei orçamentária anual, ainda assim sua inclusão poderia ser objeto de abertura de crédito adicional especial.

O Supremo Tribunal Federal, de sua parte, já teve oportunidade de assentar entendimento de que a eventual ausência de previsão de determinada rubrica não pode ser capaz de inviabilizar o respectivo investimento ou gasto.

4 DONIZETI, Wilson; CYRINO, Públio Caio Bessa. Conselhos e Fundos no Estatuto da

Criança e do Adolescente. Rio de Janeiro: Malheiros, 1997, p. 188.5 Op. cit., p. 106.

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Na ADI nº 1.428-5-SC, Rel. Min. Maurício Correa, o STF, interpretando o art. 169 da Carta Federal – que condiciona alterações em matéria de pessoal a prévia autorização específica na lei de diretrizes orçamentárias –, recomendou que se atenuasse seu rigor literal, como forma de viabilizar as atividades do Poder Executivo e do próprio Poder Legislativo. Caso contrário, afirma o acórdão, “estar-se-ia impondo cruéis restrições às atividades da administração e do legislativo, facilmente imagináveis, sem nenhuma justificativa minimamente plausível; creio não ser este o desígnio da norma constitucional”. Adiante, o acórdão faz um breve apanhado das decisões da Corte sobre o tema¸ verbis:

3.1. Neste sentido, a decisão desta Corte ao julgar o pedido de medida liminar na ADIn no 484-PR, Rel. Min. Célio Borja, in RTJ 137/1.067, onde ficou decidido, à unanimidade, segundo o voto do Relator, que, in verbis: ‘Argumenta-se, enfim, com a inobservância do artigo 169, da Constituição Federal, pois, sendo a Lei no 9.422/90 posterior à de Diretrizes Orçamentárias (Lei no 9.407, de 19.10.90), deveria nela encontrar autorização para os atos e despesas de pessoal que determina.Observo que a inexistência de autorização na Lei de Diretrizes Orçamentárias torna inexeqüíveis, no exercício em que ela vige, as providências não autorizadas. Mas, não as invalida, nem nulifica’ (RTJ 137/1.075-1.076).3.2. Posteriormente, ao julgar o pedido de medida liminar na ADI no 1.243-6-MT, Rel. Min. Sydney Sanches, in DJU de 27.10.95, esta interpretação do art. 169 foi ratificada, também à unanimidade, verbis: ‘a falta de previsão orçamentária, conforme precedente do STF (RTJ 137/1.067), é obstáculo ao cumprimento da Lei no mesmo exercício mas, não, no subseqüente.”

A questão aqui é, em tese, mais singela. Não se está aqui a tratar de uma vantagem pontual, recém criada, que não estaria a encontrar respaldo na lei de diretrizes orçamentárias. Ao contrário, a omissão, aqui, diz respeito a direitos constitucionalmente atribuídos às nossas crianças e adolescentes, valendo, neste passo, fazer menção à decisão do Min. Celso Mello, proferido na ADPF nº 45, acerca do que chama de “direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade”:

Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese – mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa – criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de

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condições materiais mínimas de existência. Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do possível” – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade. Daí a correta ponderação de Ana Paula de Barcellos (“A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais”, Renovar, p. 245-246, 2002): “Em resumo: a limitação de recursos existe e é uma contingência que não se pode ignorar. O intérprete deverá levá-la em conta ao afirmar que algum bem pode ser exigido judicialmente, assim como o magistrado, ao determinar seu fornecimento pelo Estado. Por outro lado, não se pode esquecer que a finalidade do Estado ao obter recursos, para, em seguida, gastá-los sob a forma de obras, prestação de serviços, ou qualquer outra política pública, é exatamente realizar os objetivos fundamentais da Constituição. A meta central das Constituições modernas, e da Carta de 1988 em particular, pode ser resumida, como já exposto, na promoção do bem-estar do homem, cujo ponto de partida está em assegurar as condições de sua própria dignidade, que inclui, além da proteção dos direitos individuais, condições materiais mínimas de existência. Ao apurar os elementos fundamentais dessa dignidade (o mínimo existencial), estar-se-ão estabelecendo exatamente os alvos prioritários dos gastos públicos. Apenas depois de atingi-los é que se poderá discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em que outros projetos se deverá investir. O mínimo existencial, como se vê, associado ao estabelecimento de prioridades orçamentárias, é capaz de conviver produtivamente com a reserva do possível.” Vê-se, pois, que os condicionamentos impostos, pela cláusula da “reserva do possível”, ao processo de concretização dos direitos de segunda geração – de implantação sempre onerosa –, traduzem-se em um binômio que compreende, de um lado, (1) a razoabilidade da pretensão individual/social deduzida em face do Poder Público e, de outro, (2) a existência de disponibilidade financeira do Estado para tornar efetivas as prestações positivas dele reclamadas. Desnecessário acentuar-se, considerado o encargo governamental de tornar efetiva a aplicação dos direitos econômicos, sociais e culturais, que os elementos componentes do mencionado binômio (razoabilidade da pretensão + disponibilidade financeira do Estado) devem configurar-se de modo afirmativo e em situação de cumulativa ocorrência, pois, ausente qualquer desses elementos, descaracterizar-se-á a possibilidade estatal de realização prática de tais direitos. Não obstante a formulação e a execução de políticas públicas dependam de opções políticas a cargo daqueles que, por delegação popular, receberam investidura em mandato eletivo,

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cumpre reconhecer que não se revela absoluta, nesse domínio, a liberdade de conformação do legislador, nem a de atuação do Poder Executivo. É que, se tais Poderes do Estado agirem de modo irrazoável ou procederem com a clara intenção de neutralizar, comprometendo-a, a eficácia dos direitos sociais, econômicos e culturais, afetando, como decorrência causal de uma injustificável inércia estatal ou de um abusivo comportamento governamental, aquele núcleo intangível consubstanciador de um conjunto irredutível de condições mínimas necessárias a uma existência digna e essenciais à própria sobrevivência do indivíduo, aí, então, justificar-se-á, como precedentemente já enfatizado – e até mesmo por razões fundadas em um imperativo ético-jurídico –, a possibilidade de intervenção do Poder Judiciário, em ordem a viabilizar, a todos, o acesso aos bens cuja fruição lhes haja sido injustamente recusada pelo Estado.”

6

A questão, portanto, parece estar bem delineada: competindo ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente o dever de fixar planos de aplicação e os critérios das receitas do respectivo Fundo Municipal, dúvida não há de que a inércia do Poder Executivo jamais poderá impedir o regular planejamento de destinação das suas verbas, que deverão ser regularmente incluídas na lei orçamentária anual para regular execução no próximo ano.

Forte em tais considerações, pode-se agora apresentar a resposta aos quesitos formulados:

1) “Os compromissos e metas deliberados pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente para utilização dos recursos do Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, publicados no Diário Oficial do Município de 29 de junho de 2006 (pág. 33), poderiam estar fora do Projeto de Lei das Diretrizes Orçamentárias para 2007?”

RESPOSTA: Não.

2) “Como a previsão de utilização dos recursos do Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente poderá ser incluída da Lei Orçamentária Anual, sem que as metas e prioridades tenham sido previamente definidas na Lei de Diretrizes Orçamentárias?”

6 ADPF nr. 45, decisão monocrática do Excelentíssimo Ministro Celso de Mello em 29/04/2.004,

Supremo Tribunal Federal.

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RESPOSTA: Considerando a natureza do Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente e considerando os interesses envolvidos, inclusive em sede constitucional, a programação do Fundo Municipal poderá vir regularmente estampada na lei orçamentária anual para aplicação no ano que segue.

À superior consideração.

Rio de Janeiro, 13 de setembro de 2006.

Flávio Andrade de Carvalho BrittoSubprocurador-geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

Visto. Aprovo o Parecer nº 04/06-FACB, retro.

Encaminhe-se ao Gabinete da Assessoria da Presidência.

Em 14 de setembro de 2006.

Jania Maria de SouzaProcuradora-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

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Da impossibilidade de rejeição total do Projeto de Lei de Diretrizes Orça-

mentárias

Parecer nº 05/07-FACB

Ementa: - Constitucional. Consulta sobre a possibilidade de rejeição integral, pelo Parlamento, de Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias por vícios de conteúdo. - O Chefe do Poder Executivo deve enviar anualmente o Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) até o dia 15 de abril, cumprindo as exigências prescritas no art. 165, § 2º, da Constituição Federal e o art. 4

o da

Lei de Responsabilidade Fiscal. De sua parte, o Poder Legislativo deve observar o contido no art. 57, § 2

o, da

Constituição Federal, e aprovar a LDO, sob pena de não poder interromper a sessão legislativa. - Entendimento de que, como o Poder Legislativo tem de aprovar, compulsoriamente, o projeto de LDO, e detém considerável poder de emenda, não teria como rejeitá-lo in totum. - De todo modo, o envio de proposta de lei orçamentária sem seus requisitos pode configurar infração político-administrativa (art. 4º, V, do Decreto-Lei nº 201/67), ou mesmo infração administrativa contra as leis de finanças públicas (art. 5

o da Lei nº 10.028/2000).

Excelentíssimo Senhor Vereador Presidente,

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A Comissão de Finanças, Orçamento e Fiscalização Financeira envia o Ofício CFOFF nº 21/07 pedindo o pronunciamento desta Procuradoria-Geral acerca das seguintes questões:

1 – À luz da Lei Orgânica do Município há possibilidade de rejeição do Projeto de Lei encaminhado pelo Poder Executivo que dispõe sobre as diretrizes orçamentárias para 2008, por não cumprir o estabelecido pela Lei de Responsabilidade Fiscal, a Constituição Federal e a Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro? 2 – Se há dispositivo legal ou alguma interpretação que obrigue o Poder Executivo a reencaminhar nova proposta de diretrizes orçamentárias para 2008, em caso de rejeição pelo Legislativo do projeto já encaminhado.3 – Pedimos que a tramitação do Projeto de Lei nº 1105/2007 seja sobrestada enquanto a Comissão aguarda a resposta do presente ofício.

Os lineamentos básicos para elaboração das leis de diretrizes orçamentárias (LDO) acham-se encartados no texto da própria Constituição Federal, notadamente em seu artigo 165, § 2º. Tal dispositivo aponta que a LDO deverá compreender, necessariamente, as metas e prioridades da administração pública, incluindo as despesas de capital para o exercício financeiro subseqüente, além de orientar a elaboração da lei orçamentária anual, dispor sobre as alterações na legislação tributária e estabelecer a política de aplicação das agências financeiras oficiais de fomento.

O art. 4º da Lei Complementar nº 101/2000, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), de sua parte, minudencia os tópicos essenciais da LDO. Por sua relevância, será útil transcrever seu inteiro teor:

Art. 4o A lei de diretrizes orçamentárias atenderá o disposto no § 2

o do art.

165 da Constituição e:I - disporá também sobre:a) equilíbrio entre receitas e despesas;b) critérios e forma de limitação de empenho, a ser efetivada nas hipóteses previstas na alínea b do inciso II deste artigo, no art. 9

o e no inciso II do

§ 1o do art. 31;

c) (VETADO)d) (VETADO)e) normas relativas ao controle de custos e à avaliação dos resultados dos programas financiados com recursos dos orçamentos;

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f) demais condições e exigências para transferências de recursos a entidades públicas e privadas;II - (VETADO)III - (VETADO)§ 1

o Integrará o projeto de lei de diretrizes orçamentárias Anexo de Metas

Fiscais, em que serão estabelecidas metas anuais, em valores correntes e constantes, relativas a receitas, despesas, resultados nominal e primário e montante da dívida pública, para o exercício a que se referirem e para os dois seguintes.§ 2

o O Anexo conterá, ainda:

I - avaliação do cumprimento das metas relativas ao ano anterior;II - demonstrativo das metas anuais, instruído com memória e metodologia de cálculo que justifiquem os resultados pretendidos, comparando-as com as fixadas nos três exercícios anteriores, e evidenciando a consistência delas com as premissas e os objetivos da política econômica nacional;III - evolução do patrimônio líquido, também nos últimos três exercícios, destacando a origem e a aplicação dos recursos obtidos com a alienação de ativos;IV - avaliação da situação financeira e atuarial:a) dos regimes geral de previdência social e próprio dos servidores públicos e do Fundo de Amparo ao Trabalhador;b) dos demais fundos públicos e programas estatais de natureza atuarial;V - demonstrativo da estimativa e compensação da renúncia de receita e da margem de expansão das despesas obrigatórias de caráter continuado.§ 3

o A lei de diretrizes orçamentárias conterá Anexo de Riscos Fiscais,

onde serão avaliados os passivos contingentes e outros riscos capazes de afetar as contas públicas, informando as providências a serem tomadas, caso se concretizem.§ 4

o A mensagem que encaminhar o projeto da União apresentará, em

anexo específico, os objetivos das políticas monetária, creditícia e cambial, bem como os parâmetros e as projeções para seus principais agregados e variáveis, e ainda as metas de inflação, para o exercício subseqüente.

Assentou-se, assim, a LDO, definitivamente, como o instrumento básico de: i) estabelecimento de metas e prioridades da Administração Pública, incluindo as despesas de capital para o exercício financeiro seguinte, ii) orientação na elaboração da lei orçamentária anual, iii) disposição de alterações na legislação tributária e, iv) estabelecimento de política nas agências oficiais de fomento.

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Sendo a mensagem da LDO de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo – ex vi do disposto no art. 166, § 6

o, da Constituição Federal –, perquire-se aqui acerca

das conseqüências de o Prefeito não cumprir, satisfatoriamente, em sua proposição, o índice de deveres contidos tanto no art. 165, § 2

o, da Carta Federal, como no art.

4o da Lei de Responsabilidade Fiscal, acima transcrito. Mais especialmente, nessa

hipótese, indaga-se se o Poder Legislativo pode rejeitar, tout court, proposição de LDO que não cumpra os deveres mínimos contidos nas normas citadas.

Extrai-se da estrutura jurídica vigente, que, tanto o Poder Executivo, como o Poder Legislativo, devem, coercitivamente, debruçar-se, de forma diligente e técnica, sobre a Lei de Diretrizes Orçamentárias, mitigando – tanto quanto possível – as ingerências de ordem estritamente política.

Da parte do Poder Executivo, faz-se imprescindível a apresentação de um projeto de LDO na forma complexa contida no art. 165, § 2

o, da Constituição Federal e no

art. 4o da Lei de Responsabilidade Fiscal. Não se trata, intuitivo supor, de norma sem

sanção. Deveras, a LRF prevê, em seu art. 73, que as infrações aos seus dispositivos devem ser “punidas segundo o Decreto-Lei n

o 2.848, de 7 de dezembro de 1940

(Código Penal); a Lei no 1.079, de 10 de abril de 1950; o Decreto-Lei n

o 201, de 27

de fevereiro de 1967; a Lei no 8.429, de 2 de junho de 1992; e demais normas da

legislação pertinente”. Pode-se, também, fazer expressa alusão ao contido na Lei nº 10.028/2000, que além de inserir novos tipos nesses diplomas legais, fez incluir a chamada infração administrativa contra as finanças públicas.

O Poder Legislativo, por seu turno, deve apreciar a Lei de Diretrizes Orçamentárias em limitado período de tempo, sendo certo que a sessão legislativa não será interrompida sem sua aprovação, a teor do que disciplina o art. 57, § 2

o,

da Constituição Federal. As emendas ao seu texto somente poderão ser aprovadas se compatíveis com o Plano Plurianual (art. 166, § 4º, da CF). De todo modo, nos termos do art. 166, § 5º, o Chefe do Poder Executivo poderá enviar mensagem à Casa Legislativa para propor modificação nos projetos das leis de índole orçamentárias (PPA, LDO e LOA) enquanto não iniciada a votação, na comissão competente, da parte cuja alteração é proposta.

Por conta de tal exposição, bem se vê a relevância que o sistema normativo dá ao conteúdo e ao trâmite da Lei de Diretrizes Orçamentárias. Nessa ordem de idéias, colha-se o seguinte trecho de ementa de feito relatado pelo Min. Celso de Mello, que bem atesta a relevância que o Supremo Tribunal Federal confere à Lei de Diretrizes

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Orçamentárias:

A Lei de Diretrizes Orçamentárias possui destinação constitucional específica e veicula conteúdo material próprio, que, definido pelo art. 165, § 2

o, da Carta Federal, compreende as metas e prioridades da Administração

Pública, inclusive as despesas de capital para o exercício financeiro subseqüente. Mais do que isso, esse ato estatal tem por objetivo orientar a elaboração da lei orçamentária anual e dispor sobre as alterações na legislação tributária, além de estabelecer a política de aplicação das agências financeiras oficiais de fomento. [...] Esse ato legislativo – não obstante a provisoriedade de sua vigência – constitui um dos mais importantes instrumentos normativos do novo sistema orçamentário brasileiro

1.

De outra parte, a imposição de maiores detalhamentos em leis de natureza financeira constitui medida de inequívoca e salutar transparência: Diogo de Figueiredo Moreira Neto assenta que “a gestão fiscal pública se vai tornando, cada vez mais intensamente, o que dela se espera numa democracia: a necessária e obrigatória e transparente expressão financeira de políticas públicas consentidas e subsidiárias, com previsão de riscos fiscais e para o desempenho das quais os agentes políticos e administrativos deverão atuar com prudência, responsabilidade e responsividade”

2.

Ressaltada, pois, a relevância do conteúdo, forma e processo legislativo da LDO, passa a ser examinada a possibilidade de sua rejeição pela Casa Legislativa, “por não cumprir o estabelecido pela Lei de Responsabilidade Fiscal, a Constituição Federal e a Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro”, como ventilado na Consulta ora examinada.

Pondere-se, inicialmente, que a Consulta não ventila a rejeição de proposta de LDO por razões de ordem exclusivamente política, mas por descumprimento de imposições normativas superiores. Tal distinção é, aparentemente, ignorada pela doutrina que, unânime, entende que não pode a Casa Legislativa restituir o projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias. Nesse sentido leciona José Afonso da Silva:

Comecemos por informar que a Constituição não admite a rejeição do projeto de lei de diretrizes orçamentárias porque declara, expressamente, que a sessão legislativa não será interrompida sem a aprovação do projeto de lei de diretrizes orçamentárias (art. 57, § 2

o). Mas admite a possibilidade

1 ADI-QO nº 612-RJ, Rel. Min. Celso de Mello, DJ, 6.5.94, p. 10.484.

2 Considerações sobre a Lei de Responsabilidade Fiscal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p.

19.

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da rejeição do projeto de lei orçamentária anual, quando, no art. 166, § 8o,

estatui que os recursos que, em decorrência de veto, emenda ou rejeição do projeto de lei orçamentária anual, ficarem sem despesas correspondentes poderão ser utilizados, conforme o caso, mediante créditos especiais ou suplementares, com prévia e específica autorização legislativa.

3.

Tal lição acha-se afinada com o entendimento de Alexandre de Moraes e para quem a teleologia da Carta Federal remete à impossibilidade de rejeição da LDO:

Não há possibilidade de o Congresso Nacional rejeitar o projeto de lei de diretrizes orçamentárias, uma vez que a Constituição Federal determina em seu art. 57, § 2º, que “a sessão legislativa não será interrompida sem a aprovação do projeto de lei de diretrizes orçamentárias.

Há muito já se assentou na doutrina o entendimento de que também a lei orçamentária anual não poderia ser restituída. O Supremo Tribunal Federal já teve oportunidade de anotar lição de Adilson Abreu Dallari que parte para uma interpretação sistemática da Constituição para afastar a possibilidade de rejeição da LOA:

Com efeito, o eminente Prof. Alexandre de Moraes, ao comentar o parágrafo 8º do art. 166, da Constituição Federal, após afirmar que o Congresso Nacional não pode rejeitar integralmente o projeto de lei orçamentária, sob pena de paralisação da máquina estatal, nos remete aos estudos de Adilson Abreu Dallari, de onde se extraem os seguintes ensinamentos: “O que é uma rejeição senão a forma mais radical de emendar, suprimindo totalmente a regra inicialmente proposta! Ora, se a Constituição restringe o poder de emenda, que somente pode ser exercido dentro de certos limites, evidentemente proíbe, implicitamente, a emenda total, radical, modificadora absoluta do texto inicialmente proposto [...]. Em resumo, ao dever imposto pela Constituição ao Chefe do Executivo de elaborar e enviar o projeto de lei orçamentária corresponde o dever imposto ao Legislativo de examiná-lo, alterá-lo (se for o caso) e aprová-lo – (grifei) – sem possibilidade de rejeição total”. Para então concluir o eminente Constitucionalista: “Não nos parece que o legislador constituinte quis dar esse alcance ao texto magno, mesmo porque, sem expressa determinação constitucional não há como se suprimir a independência do Poder Legislativo ao analisar um projeto de lei, quer aprovando-o, quer rejeitando-o, total ou parcialmente. (ob. cit. p. 1799)

4.

Cabe aqui um parêntese: tal entendimento pode dar margem a algumas perplexidades que, aparentemente, não foram ainda enfrentadas por doutrinadores 3 Curso de direito constitucional. 10. ed. São Paulo: Malheiros, p. 679.

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e pela jurisprudência: é que, como visto, a elaboração da Lei de Diretrizes Orçamentárias exige do Chefe do Poder Executivo um criterioso e ordenado trabalho de organização das finanças municipais. De tão minucioso e complexo, não será difícil supor a hipótese de que, em algum município de nosso imenso País, ocorra o envio de LDO completamente divorciado das exigências formais constantes da Lei de Responsabilidade Fiscal e da Constituição Federal.

Estaria, nesta hipótese, o Poder Legislativo impedido de restituir o Projeto ao seu autor, por manifesta inconstitucionalidade ou injuridicidade, como autorizam, por exemplo, os Regimentos do Senado, Câmara dos Deputados e de nossa Câmara Municipal do Rio de Janeiro? Ou caberia ao Poder Legislativo preencher as lacunas do Chefe do Poder Executivo e, fazendo-lhe as vezes, estabelecer metas e critérios fiscais, como se Administrador fosse? Entendo, pessoalmente, que a questão está por merecer um estudo mais detido, já que não devem ser raras situações como estas em, pelo menos, alguns dos milhares municípios brasileiros. De todo modo, parece ser pacífico o entendimento da doutrina de que o Poder Legislativo deverá emendar – no limite de suas possibilidades – o texto legal e aprová-lo, evitando, dessa forma, um impasse institucional.

De todo modo, uma constatação é inescapável e decorre de lei: ainda que o Poder Legislativo fique privado de rejeitar o projeto de LDO, a omissão, total ou parcial, do Chefe do Poder Executivo na sua elaboração poderá configurar infração administrativa contra as leis de finanças públicas, nos termos do que dispõe o art. 5

o

da Lei nº 10.028/2000, verbis:

Art. 5o Constitui infração administrativa contra as leis de finanças públicas:

I – deixar de divulgar ou de enviar ao Poder Legislativo e ao Tribunal de Contas o relatório de gestão fiscal, nos prazos e condições estabelecidos em lei;II – propor lei de diretrizes orçamentárias anual que não contenha as metas fiscais na forma da lei;III – deixar de expedir ato determinando limitação de empenho e movimentação financeira, nos casos e condições estabelecidos em lei;IV – deixar de ordenar ou de promover, na forma e nos prazos da lei, a execução de medida para a redução do montante da despesa total com pessoal que houver excedido a repartição por Poder do limite máximo.§ 1

o A infração prevista neste artigo é punida com multa de trinta por

4 SS 2.676-AP, Ministro Nelson Jobim (então Presidente), DJ, 5.4.2005, p. 45.

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cento dos vencimentos anuais do agente que lhe der causa, sendo o pagamento da multa de sua responsabilidade pessoal.§ 2

o A infração a que se refere este artigo será processada e julgada pelo

Tribunal de Contas a que competir a fiscalização contábil, financeira e orçamentária da pessoa jurídica de direito público envolvida.

Não se pode excluir, ademais, o suposto cometimento da infração político-administrativa prevista no art. 4º, II, do Decreto-Lei nº 201/67, caso o Prefeito deixe de apresentar à Câmara, no devido tempo, e em forma regular, a proposta orçamentária.

Pelo que se expôs, em resposta à Consulta formulada, tem-se que arcabouço normativo rejeita a possibilidade de rejeição, pela Casa Legislativa, de projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias, ainda que esteja ele em desacordo com as regras do art. 165, § 2

o, da Constituição Federal e do art. 4

o da Lei de Responsabilidade

Fiscal, inexistindo dispositivo legal ou interpretação que obrigue o Poder Executivo a reencaminhar nova proposta. Como sanção, poderá o Chefe do Poder Executivo incorrer no cometimento de infração administrativa contra as leis de finanças públicas, nos termos do art. 5

o da Lei nº 10.028/2000, e na infração político-administrativa

prevista no art. 4º, II, do Decreto-Lei nº 201/67.

À superior consideração.

Rio de Janeiro, 11 de maio de 2007.

Flávio Andrade de Carvalho BrittoSubprocurador-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

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Direito Parlamentar e

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O prazo para revisão dos planos di-retores

Parecer nº 05/06-FACB

Ementa: - Pedido de esclarecimentos formulado por Parlamentares acerca do prazo para aprovação do projeto de lei que contém a revisão do Plano Diretor decenal, à luz do que dispõe o Estatuto da Cidade. - O art. 40, § 3º do Estatuto da Cidade estabelece que os planos diretores deverão ser revistos a cada 10 anos, estando os agentes públicos envolvidos em sua concepção, votação e execução sujeitos aos ditames da Lei de Improbidade, caso ajam com qualquer ação ou omissão que viole “os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições”, como expressamente preceitua o art. 11 da Lei nº 8.429/92.

Senhora Procuradora-Geral,

As Vereadoras ... subscrevem pedidos de manifestação desta Procuradoria-Geral sobre eventual existência de prazo fatal para que o Legislativo municipal conclua a votação do Plano Diretor Decenal da Cidade do Rio de Janeiro.

Existe, de fato, alguma polêmica acerca do prazo fatal para a aprovação do Plano Diretor. Tal debate acirrou-se com a edição da adiante transcrita Resolução Recomendada nº 8/2006, do Conselho das Cidades, órgão integrante da estrutura do Ministério das Cidades, que conclui que os Municípios que já tinham seus planos diretores aprovados, quando da promulgação do Estatuto da Cidade, deverão atualizá-los até o prazo fatal de 10 de outubro de 2006.

Passo a opinar.

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Como é sabido, o art. 182, § 1º, da Constituição Federal, estatui que o Plano Diretor, aprovado pela respectiva Câmara Municipal, é obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, constituindo em instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.

O Município do Rio de Janeiro, em atenção ao preceito constitucional, fez aprovar seu Plano Diretor – a Lei Complementar nº 16, de 4 de junho de 1992 – desde então em vigor, mas jamais revisto.

Com o escopo de regulamentar os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, editou-se em 10 de julho de 2001 a Lei nº 10.257, o Estatuto da Cidade, a vigorar a partir de 10 de outubro do mesmo ano, que estabeleceu, para o que aqui importa, marcos temporais para a aprovação e atualização de planos diretores.

Assim, para aqueles municípios – como o Rio de Janeiro – que já tinham Plano Diretor vigente, o art. 40, § 3º, da Lei nº 10.257/01 exigiu que a lei que institui o Plano Diretor deve ser revista a cada dez anos.

O art. 50, diferentemente, estabelece que Municípios que tenham mais de vinte mil habitantes e os que integrem regiões metropolitanas e aglomerações urbanas, que não tenham plano diretor aprovado na data de entrada em vigor da Lei (ou seja, 10 de outubro de 2001), devem aprovar o respectivo Plano Diretor no prazo de cinco anos, prazo este a se vencer, efetivamente, no próximo dia 10 de outubro.

As situações dos citados artigos 40, § 3º, e 50 são claramente distintas. Mesmo assim, o legislador os agrupou no art. 52, VII, para prever que o descumprimento dos respectivos preceitos configurará ato de improbidade. Não obstante, sua configuração dependerá de distintos pressupostos.

A previsão inserta no art. 50 é explícita e não dá margem a qualquer interpretação quanto ao prazo para aprovação do Plano Diretor. Não se concebe, efetivamente, que, passados 18 anos da promulgação da Carta Magna, não tenha um município de mais de 20.000 habitantes cumprido o dever – que é constitucional – de aprovar seu Plano Diretor, sendo inequívoca e salutar a impositiva coerção legal.

Tratamento distinto é dado pela legislação aos municípios que já tinham seu próprio Plano Diretor (art. 40, § 3º). Para esses, a regra é de revisão decenal dos respectivos planos, de forma a mantê-los adequados à realidade urbanística.

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Assim, incorrerão em improbidade administrativa o Prefeito e demais agentes públicos que deixarem de tomar as providências necessárias para garantir a observância das regras dos arts. 40, § 3º, e 50 do Estatuto da Cidade.

Assim, à luz da legislação vigente, seria correto afirmar que o município que já tivesse seu Plano Diretor, há mais de 10 anos (art. 40, § 3º), estaria sujeito ao mesmo prazo daqueles municípios que não o tinham, objeto da previsão do art. 50?

A resposta negativa se impõe. Como se afirmou, as situações são distintas e merecem tratamento diverso.

É fato que todos os municípios devem rever seus planos diretores a cada dez anos (art. 40, § 3º), incorrendo em improbidade os agentes públicos que deixarem de tomar as providências necessárias para garantir a observância de tal regra (art. 52, VII). Nada há, contudo, que remeta à conclusão de que, mesmo para tais municípios, o prazo seria o de 5 anos a partir da vigência do Estatuto da Cidade.

Sob esse aspecto, equivoca-se, data venia, a Resolução Recomendada do Conselho das Cidades nº 08/2001.

Afora a óbvia constatação de que tal Colegiado não detém qualquer parcela de poder de ingerência sobre os municípios, por conta da direta aplicação do art. 30, VIII, da Constituição Federal, o fato é que as premissas e conclusões emanadas do referido ato são errôneas. Imprescindível, de todo modo, conferir o inteiro teor da Resolução Recomendada nº 8/06 (os tópicos mais relevantes para o debate aqui travado estão destacados em negrito):

O Conselho das Cidades, no uso das suas atribuições estabelecidas pelo Decreto nº 5.790, de 25 de maio de 2006, e considerando: a) que compete ao Conselho das Cidades emitir orientações e recomendações sobre a aplicação da Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001, (Estatuto da Cidade), e dos demais atos normativos relacionados ao desenvolvimento urbano;b) que o prazo para atender a obrigação constitucional de aprovação de planos diretores, fixado pelo art. 50 do Estatuto da Cidade, para as cidades que tenham população superior a 20.000 habitantes ou integrem regiões metropolitanas e aglomerações urbanas, que não possuem plano diretor ou tenham aprovado seu plano diretor há mais de 10 anos, esgota-se no dia 10 do mês de outubro de 2006;c) que, nos termos do inciso VII, art. 52, do Estatuto da Cidade, incorre

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em improbidade administrativa, sem prejuízo de punição de outros agentes públicos, o Prefeito que deixar de tomar as providências necessárias para garantir a observância do disposto no § 3º, art. 40 e no art. 50;d) que a prática da gestão democrática por meio da participação popular e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento dos planos diretores é uma exigência do Estatuto da Cidade, posteriormente detalhada na Resolução nº 25 deste Conselho; e) que, nos termos do inciso VI, art. 52, do Estatuto da Cidade, incorre em improbidade administrativa, sem prejuízo de punição de outros agentes públicos, o Prefeito que impedir ou deixar de garantir os requisitos contidos nos incisos I a III, § 4º, art. 40; f) que o art. 182 da Constituição Federal estabelece que o Plano Diretor deve definir a função social da propriedade urbana, e constitui pressuposto para a aplicação dos instrumentos de política urbana, conforme § 2º e § 4º;g) que o descumprimento dos arts.182 e 183, da Constituição Federal, e do Estatuto da Cidade, implica em violação da ordem urbanística garantida na Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985;h) que o prazo fixado pelo art. 50 do Estatuto da Cidade trata da aprovação de planos diretores que promovam o acesso à terra urbanizada, o uso do solo em prol do bem coletivo, elaborados de forma participativa e que atendam aos conteúdos estabelecidos no art. 42 do Estatuto da Cidade detalhados posteriormente na Resolução nº 34, de 01 de julho de 2005, deste Conselho, resolve emitir as orientações e recomendações que se seguem:Art. 1º Reafirmar o prazo estabelecido no art. 50 do Estatuto da Cidade quanto à obrigatoriedade de aprovação de planos diretores, dirigido aos municípios que tenham população superior a 20.000 habitantes, ou que integrem regiões metropolitanas e aglomerações urbanas, que não possuem plano diretor ou cujo plano diretor tenha sido aprovado há mais de 10 anos.Parágrafo único. O prazo a que se refere o art. 1º desta Resolução, com base no estabelecido no art. 50 do Estatuto da Cidade, esgota-se no dia 10 de outubro de 2006 e destina-se a estabelecer uma data limite para APROVAÇÃO pela Câmara de Vereadores do Projeto de Lei do Plano Diretor encaminhado pelo poder executivo municipal.Art. 2º Em observância da ordem urbanística, durante todo o processo de elaboração ou revisão do Plano Diretor deverão ser considerados, no mesmo nível de relevância do prazo, os aspectos referentes ao processo participativo, e os referentes ao conteúdo do plano diretor.§ 1º Os aspectos referentes ao processo participativo pautam-se nos termos

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do § 4º, art. 40, do Estatuto da Cidade, e detalhamentos estabelecidos na Resolução nº 25, de 18 de março de 2005, do Conselho das Cidades;§ 2º Os aspectos referentes ao conteúdo do plano diretor pautam-se nos termos do art.182 da Constituição Federal e art. 42 do Estatuto da Cidade, detalhados na Resolução nº 34 do Conselho das Cidades;Art. 3º Recomendar a intensificação das atividades da Campanha Nacional “Plano Diretor Participativo”, nos estados e municípios, conforme aprovada pela Resolução nº 15, de 03 de setembro de 2004, do Conselho das Cidades.Parágrafo único. Os Núcleos Estaduais da Campanha, constituídos por todos os segmentos da sociedade, deverão priorizar o acompanhamento e fiscalização dos processos de elaboração e aprovação de Planos Diretores em andamento, de forma a garantir que estes atendam às exigências estabelecidas na Constituição Federal, no Estatuto da Cidade e nas Resoluções nº 25 e nº 34 deste Conselho.Art. 4º Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação. Dê-se ciência às Prefeituras e Câmaras Municipais, ao Ministério Público e aos Governos Estaduais, registre-se e publique-se. Marcio Fortes de AlmeidaPresidente do Conselho

Peca a Resolução por enxergar, sic et simpliciter, que o art. 50 do Estatuto estaria a disciplinar a situação dos municípios que tinham já seu próprio plano diretor, matéria disciplinada, exclusivamente, pelo seu art. 40, § 3º. Em verdade, inexiste, sequer, mesmo nos consideranda da Resolução, uma mínima construção interpretativa aceitável que pudesse ser objeto de exame. Será relevante constatar, em prol de tal constatação, que o mesmo Conselho das Cidades fez expedir a Resolução nº 34/2005 que somente faz advertências quanto ao prazo fatal referido no art. 50 do Estatuto das Cidades.

O regime do art. 50 é bem outro e, talvez, ainda mais rigoroso com os agentes políticos. Em verdade, muito mais que a mera aprovação do plano diretor no prazo fixado pela norma, extrai-se do sistema empreendido pelo Estatuto da Cidade que os agentes públicos locais devem empreender um sistema permanente de obediência e atualização do Plano Diretor.

Assim, conjugando a conduta exigível do agente público com a regra da Lei nº 8.429/92, tem-se que qualquer ação ou omissão que viole “os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições” poderá configurar, por si só, ato

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de improbidade, a teor do que expressamente prescreve o art. 11 da sobredita Lei1. Esse

parece, sim, ser o principal norte a regular a conduta dos agentes públicos (na prática – e no mais das vezes – o Prefeito e os Vereadores) na elaboração e atualização do Plano Diretor. Sob tal aspecto, ao menos em tese, é possível que algum agente público tenha já cometido ato de improbidade muito antes do vencimento do qüinqüênio da vigência do Estatuto da Cidade.

Assim, é exata a assertiva do Professor Maurício Balesdent Barreira, assessor da Vereadora ..., em trabalho que integra seu pedido de consulta, de que “o Conselho da Cidade, ao ‘emitir recomendações e orientações’ sobre a aplicação do Estatuto da Cidade, tratou de entrelaçar, sem maiores pudores, o mandamento contido no art. 50 ao que dispõe o § 3º do art. 40”.

Examine-se, pois, à luz de tais considerações, a situação do Município do Rio de Janeiro que teve seu Plano Diretor – a Lei Complementar nº 16 – aprovado em 4 de junho de 1992. Seu art. 2

o impõe sua execução pelo prazo de dez anos, “sem

sacrifício de sua revisão no prazo e na forma fixados no art. 230” da Lei Orgânica Municipal, que é do seguinte teor:

Art. 230 - O Plano Diretor Decenal instituído por esta Lei Complementar será revisto pela Câmara Municipal, por proposta do Poder Executivo, no prazo de cinco anos contados da data de sua publicação.Parágrafo único - A revisão de que trata este artigo será precedida de avaliações da aplicação do Plano Diretor Decenal a cada ano de sua execução e objeto de mensagem especial do Prefeito à Câmara Municipal, com as respectivas conclusões.

Não há notícias de implemento satisfatório de tal norma. De toda forma, após a edição da Lei nº 10.257/01, cuidou o Prefeito Municipal de enviar uma mensagem do novo ordenamento urbanístico local, através do Projeto de Lei Complementar nº 1 “Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da admi-

nistração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente: I - praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência; II - retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício; III - revelar fato ou circunstância de que tem ciência em razão das atribuições e que deva permanecer em segredo; IV - negar publicidade aos atos oficiais; V - frustrar a licitude de concurso público; VI - deixar de prestar contas quando esteja obrigado a fazê-lo; VII - revelar ou permitir que chegue ao conhecimento de terceiro, antes da respectiva divulgação oficial, teor de medida política ou econômica capaz de afetar o preço de mercadoria, bem ou serviço”.

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25/01. Houve, contudo, controvérsias quanto à observância do Estatuto da Cidade pelo Projeto apresentado.

Vislumbrando inadequação do projeto que fora a ela com os preceitos do Estatuto da Cidade, esta Câmara Municipal aprovou a Lei Complementar nº 56/2002 compelindo o Poder Executivo a proceder à revisão do Plano Diretor da Cidade e reenviá-la ao Poder Legislativo, devidamente compatibilizada com a Lei Federal nº 10.257 de 10 de julho de 2001, contendo, ainda, avaliações da aplicação do Plano Diretor Decenal a cada ano de sua execução, a teor do que estatui a Lei Orgânica.

Corroborando, em certa porção, o entendimento desta Câmara Municipal, o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, à época, manifestou-se no sentido de que o referido Projeto não contemplaria todos os itens impostos pelo Estatuto da Cidade

2. Sustentou o Parquet, em síntese, que o referido Projeto de Lei Complementar

nº 25/2001, que versa sobre o Plano Diretor, não incorpora, em seu bojo, mandamentos impostos pela Lei 10.257/2001, o chamado Estatuto da Cidade, fazendo especial referência ao eventual descumprimento dos deveres contidos nos seus arts. 40, § 4

o,

e 42. O art. 40, § 4o, compele “a promoção de audiências públicas e debates com a

participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade”, além de ampla publicidade e acesso aos documentos e informações produzidas nos respectivos trabalhos. O art. 42, de sua parte, lista as disciplinas mínimas que deverão ser tratadas pelos planos diretores municipais.

Prestados os esclarecimentos pela Presidência desta Casa, pautados, sobretudo, na existência da referida Lei Complementar nº 56/2002, o Parquet, até onde se sabe, não adotou qualquer medida mais drástica em face dos agentes públicos municipais. De todo modo, bem se vê que a improbidade administrativa acha-se muito mais relacionada a atos e omissões individualmente considerados, do que pelo eventual 2 Três Promotores de Justiça, lotados nas 1

a, 2

a e 3

a Promotorias de Tutela Coletiva de Proteção

ao Meio Ambiente da Capital do Estado do Rio de Janeiro, expediram Recomendação ao Pre-sidente desta Câmara Municipal para que o mesmo se abstivesse “de colocar em votação pelo Plenário desta Casa Legislativa, o Projeto de Lei Complementar nº 25/2001 que dispõe sobre a Política Urbana do Município do Rio de Janeiro, até que o Executivo Municipal promova a adequação do mesmo ao Estatuto da Cidade (Lei Federal nº 10.257/01)”, posteriormente Promotora lotada na 2

a Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva – Meio Ambiente solicita ao

Presidente da Câmara Municipal que determine convocação do Plenário, em sessão especial, “a fim de que seja feita a recomendação a todos os vereadores da casa no sentido de que se abstenham de votar o projeto de lei complementar nº 25/2001, até que seja adequado à Lei 10.257/01”.

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transcurso de prazos impostos pela legislação.

Assim, conquanto se deva sopesar a circunstância de ser o Rio de Janeiro uma cidade muitíssimo mais complexa – notadamente por sua geografia e por sua população – que uma cidade que tenha apenas 20.000 habitantes, tal circunstância não tem o condão de justificar que, passados 4 anos do transcurso do decênio previsto pelo Plano Diretor carioca de 1992, não se tenha, ainda, uma perspectiva de aprovação de um novo texto, apesar da indiscutível disposição desta Casa Legislativa, notadamente nesta legislatura, em se desincumbir de tal missão.

Em vista do todo exposto, pode-se, pois, afirmar:

a) o prazo de 5 anos a que alude o art. 50 da Lei nº 10.257/01 não se é aplicável aos Municípios que já tinham, à época da sua promulgação, Plano Diretor vigente;

b) o só transcurso do prazo de cinco anos de vigência do Estatuto da Cidade não tem o condão, por si só, de caracterizar como ato de improbidade dos agentes políticos locais a não aprovação da revisão do Plano Diretor da capital carioca.

De toda forma, conjugando a regra dos arts. 40, § 3º, e 52, VII, do Estatuto da Cidade com o art. 11 da Lei nº 8.429/92, cumpre a esta Câmara Municipal priorizar o trâmite da revisão do Plano Diretor, buscando contemplar e observar todas as fases exigidas pelo próprio Estatuto da Cidade, destacando a efetiva e profunda participação popular, podendo valer, como referência, o texto da Resolução nº 34/2005 do Conselho das Cidades.

À superior consideração.

Rio de Janeiro, 6 de outubro de 2006.

Flávio Andrade de Carvalho BrittoSubprocurador-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

Visto. Aprovo o Parecer nº 05/06-FACB, retro.

Encaminhe-se à consideração do Exmº Sr. Presidente.

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Em 09 de outubro de 2006.

Jania Maria de SouzaProcuradora-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

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O vereador e o conselho de adminis-tração de empresa pública. Interpre-tação do art. 54, II, da Constituição

Federal

Parecer n° 07/06-FACB

Ementa: Constitucional. Consulta de Vereador licenciado, no exercício do cargo de Secretário Municipal, acerca da possibilidade de ocupar assento em Conselho de Administração de empresa pública, vinculada à sua pasta.A Constituição Federal (art. 56, I) limita e restringe a atuação do Parlamentar licenciado ao exercício de cargo de Ministro ou de Secretário, conforme a hipótese. Em assim sendo, veda-se seu licenciamento para o exercício de qualquer outro cargo, emprego ou função no âmbito da Administração Pública que possa ser objeto de destituição ou exoneração.Parecer no sentido da negativa à hipótese ventilada na Consulta.

Senhor Vereador Presidente,

..., Vereador com assento nesta Casa Legislativa, mas que atualmente ocupa o cargo de Secretário Extraordinário da Qualidade de Vida do Município do Rio de Janeiro, questiona se “há impedimento legal ao Edil licenciado para exercer cargo

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de Secretário de Governo, ocupar vaga em Conselho de Administração de Empresa Pública subordinada ao órgão sob sua direção”.

A Constituição Federal elenca, em seu art. 54, as incompatibilidades relativas a Deputados e Senadores que, por simetria, são aplicáveis aos Deputados Estaduais e Vereadores (neste específico caso, com a óbvia ressalva do disposto no art. 38, II, da CF, que se destina ao Vereador que ocupa cargo de provimento efetivo). O dispositivo é do seguinte teor:

Art. 54. Os Deputados e Senadores não poderão: 1- desde a expedição do diploma:a) firmar ou manter contrato com pessoa jurídica de direito público, autarquia, empresa pública, sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviço público, salvo quando o contrato obedecer a cláusulas uniformes;b) aceitar ou exercer cargo, função ou emprego remunerado, inclusive os de que sejam demissíveis “ad nutum”, nas entidades constantes da alínea anterior;II - desde a posse:a) ser proprietários, controladores ou diretores de empresa que goze de favor decorrente de contrato com pessoa jurídica de direito público, ou nela exercer função remunerada;b) ocupar cargo ou função de que sejam demissíveis “ad nutum”, nas entidades referidas no inciso I, “a”;c) patrocinar causa em que seja interessada qualquer das entidades a que se refere o inciso I, “a”;d) ser titulares de mais de um cargo ou mandato público eletivo.

O descumprimento de tais preceitos pode importar em perda de mandato do Parlamentar, a teor do que estatui o art. 55 da Constituição Federal. O art. 56, I, por seu turno, estabelece que não perderá o mandato o Deputado ou Senador que “investido no cargo de Ministro de Estado, Governador de Território, Secretário de Estado, do Distrito Federal, de Território, de Prefeitura de Capital ou chefe de missão diplomática temporária”. Tal dispositivo, inclusive, ampara a licença concedida ao ilustre Consulente.

A situação se repete nas esferas estaduais e municipais, estas por força do que dispõe o art. 29, IX, da Constituição Federal. No âmbito da Cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, as regras contidas nos arts. 54, 55 e 56 da Constituição Federal se repetem, ipsis verbis, nos artigos 48, 49 e 50. Ocupando regularmente o

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cargo de Secretário Municipal, o ilustre Consulente consulta, tão somente, quanto à possibilidade de ocupar vaga em Conselho de Administração de Empresa Pública municipal, subordinada, segundo informa, à própria Secretaria da qual é titular.

Esta Procuradoria-Geral já teve oportunidade de emitir Parecer sobre o assunto (Parecer n° 07/98-FACB) em hipótese que guarda alguns pontos de contato a que ora se examina. À ocasião foi lavrada a seguinte ementa:

Os Vereadores não podem aceitar ou exercer cargo, função ou emprego remunerado, inclusive as que sejam demissíveis ad nutum, em pessoa jurídica de direito público, autarquia, empresa pública, sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviço público municipal.Não incorre na incompatibilidade do art. 54, I, b, da Constituição Federal, o Vereador empregado de empresa concessionária de serviço público federal.

A doutrina pátria é uníssona em interpretar que, efetivamente – com exceção da hipótese do art. 56, I, da Constituição – os Parlamentares estão vedados de aceitar ou exercer cargo, função ou emprego remunerado, notadamente os de que sejam passíveis de exoneração “ad nutum”, nas entidades de natureza pública. A lição de José Nilo de Castro não dá margem a dúvidas:

Quem não tem cargo (emprego ou função) remunerado não pode, depois da diplomação, vir a tê-lo. Se já o tem, não pode exercê-lo, expedido o diploma, ocupando-o, não o exercendo. Daí, após a posse, salvo o cargo a que se aceder por concurso público, não pode o Vereador ocupar cargo ou função e emprego, naquelas entidades municipais, de que seja exonerável ad nutum, isto é, cargos e funções de confiança, de livre nomeação e exoneração.

1

Alguém poderá afirmar que, por sua natureza, as atribuições dos membros de Conselho de Administração de sociedade anônima, não se confundem com o rol de incompatibilidades dos Parlamentares. Tal assertiva, contudo, deve ser recebida com temperamentos.

O Conselho de Administração é responsável – como o nome está a sugerir – pela administração da companhia (art. 138 da Lei n° 6.404/76). Muito embora tenha o Membro do Conselho de Administração de uma sociedade anônima um mandato (art. 140, III, da Lei n° 6.404/76), não deixa sua atividade de se caracterizar como

1 Direito municipal positivo. Belo Horizonte: Del Rey, 1996, p. 100.

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uma “função” na empresa pública, o que é vedado pelo texto constitucional e pela lei orgânica. Colha-se, neste instante, a manifestação abalizada de José Afonso da Silva. Após manifestar-se acerca da licença do Vereador para ocupar o Cargo de Secretário Municipal, o eminente constitucionalista faz considerações acerca da possibilidade deste mesmo Parlamentar ocupar outros cargos e funções:

Fica mais complicado o problema quando se consideram outros cargos e funções em comissão, que, no sistema da Constituição de 1969, encontravam proibição expressa. Essa vedação continua expressamente proibida para os congressistas (art. 54, II, b). E isso se estende aos Vereadores por força do disposto no art. 29, IX. Se é lícita a variação de tratamento das incompatibilidades dos Vereadores pelas leis orgânicas municipais, esbarram elas, contudo, não só com princípios constitucionais de observância obrigatória também pelos poderes municipais, como a divisão de poderes, mas agora também com proibições e incompatibilidades aplicadas aos congressistas que a eles se estendem, por força do citado inc. IX do art. 29

2

Adiante, após fazer menção à existência de leis orgânicas que admitem o afastamento do Vereador para funções outras que não a própria Secretaria Municipal, José Afonso da Silva conclui

3:

Em geral, as leis orgânicas ficaram no razoável, admitindo a investidura no cargo de Secretário Municipal, às vezes de Assessor municipal (LOM de Toledo, art. 22) ou de Administrador Regional (LOM de Belo Horizonte, art. 80, I). Mesmo assim, essas duas últimas hipóteses não se conformam com a orientação da Constituição Federal, pelo que só é estritamente válida a possibilidade de investidura no cargo de Secretário municipal ou equivalente.Essas considerações se aplicam especialmente à Administração direta, mas, em seu aspecto geral, valem também para a Administração indireta, que se compõe de autarquias, empresas públicas e sociedades de economia mista. Típicos cargos (ou funções) em comissão destas entidades são os de superintendente e conselho curador ou semelhante nas autarquias, e os da superintendência e diretoria das empresas públicas e das sociedades de economia mista. O fato de estas serem organizadas em forma de sociedade anônima não exclui a incidência do conceito, porque, sendo o Município acionista majoritário, é evidente que a designação (eleição) dos membros da diretoria está ligada ao fator confiança, tanto que, a

2 Manual do vereador. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 64.

3 Obra e local citados.

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qualquer momento, podem ser destituídos pelo Prefeito.

Diante de tais considerações, opino no sentido de que o Vereador licenciado não pode ocupar qualquer cargo, emprego ou função na Administração Pública, com nota de precariedade, com exceção da própria pasta de titular de Secretaria.

À superior consideração.

Rio de Janeiro, 11 de dezembro de 2006.

Flávio Andrade de Carvalho BrittoSubprocurador-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

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Possibilidade de realização de sessão secreta em CPI e de intervenção de

parlamentares estranhos à sua com-posição

Parecer nº 04/07-FACB

Ementa: - Constitucional. Consulta acerca dos poderes e limites de uma Comissão Parlamentar de Inquérito em suas reuniões. - Nada há que obrigue uma Comissão Parlamentar de Inquérito a dar palavra, em suas reuniões e audiências, a Parlamentares que dela não façam parte, seja para fazer intervenções pontuais, seja para inquirir testemunhas e/ou indiciados. - As Comissões Parlamentares de Inquérito podem fazer reuniões ou audiências secretas, em hipóteses excepcionais, e de forma motivada, especialmente para preservar a integridade das investigações ou de pessoas que possam vir a sofrer danos. Em tais reuniões e audiências somente poderão estar presentes os membros da Comissão e as pessoas indispensáveis ao andamento dos trabalhos. - A Comissão Parlamentar de Inquérito pode, em caso de não comparecimento da testemunha sem motivo justificado, postular ao Poder Judiciário sua condução coercitiva.

Excelentíssimo Senhor Vereador Presidente,

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Trata-se de consulta formulada pela Excelentíssima Senhora Vereadora ..., na qualidade de Presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito instituída pela Resolução n. 1.062, de 29 de março de 2007, com o objetivo de apurar “as causas da crescente desordem urbana no que diz respeito ao uso indevido, discriminatório ou abusivo das praias, calçadas, praças e demais logradouros públicos”, do seguinte teor:

1 - Se os Vereadores que não sejam membros de uma Comissão Parlamentar de Inquérito têm direito ao uso da palavra nas reuniões internas e audiências para tomada de depoimentos, ou se a cessão da palavra é uma faculdade do(a) Presidente da CPI;2 - Se uma Comissão Parlamentar de Inquérito pode realizar reuniões internas e audiências para tomada de depoimento fechadas, ou seja, somente com a participação dos Vereadores membros do CPI e assessores e funcionários da Casa que exerçam atividades indispensáveis à realização das citadas reuniões e audiências; e3 - Quais são os poderes de uma Comissão Parlamentar de Inquérito para intimar testemunhas e, caso necessário, determinar sua condução forçada para a prestação de depoimentos.

Passo a opinar.

As comissões parlamentares de inquérito encontram fundamento para instalação e funcionamento no art. 58, § 3º, da Constituição Federal, que é do seguinte teor:

Art. 58. [...]§ 3º - As comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores.

Esse é, em síntese, o norte de todas as comissões parlamentares de inquérito, razão pela qual o art. 109, § 3

o, da Constituição do Estado do Rio de Janeiro apresenta

idêntica redação, inspiradora, por seu turno, do que dispõe o art. 45, IX, da Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro, verbis:

Art. 45 - É da competência exclusiva da Câmara Municipal:[...]

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IX - criar comissões parlamentares de inquérito sobre fato determinado que se inclua na competência da Câmara Municipal, sempre que o requerer pelo menos um terço dos seus membros;

Sob tal aspecto, parece não haver qualquer dúvida de que as Comissões de inquérito criadas pelo Legislativo municipal, no âmbito da competência fiscalizadora local, detêm poderes análogos aos dos Órgãos da mesma natureza, instituídos no Congresso Nacional ou Assembléias Legislativas estaduais. Por isso mesmo, aplicam-se-lhe as normas da Lei federal n

o 1.579, de 18 de março de 1952, que, consoante a

doutrina mais abalizada, “é uma lei nacional e não uma lei federal. Seu campo de aplicação — apesar de seu defeito de técnica legislativa compreensível à época em que foi elaborada — compreende a União, os Estados-membros e os Municípios”

1.

Tem-se, pois, que aludida Lei federal, para José Nilo de Castro “é aplicável às Comissões Parlamentares de Inquérito constituídas pelas Câmaras Municipais e pelas Assembléias Legislativas [...], [o que] decorre do próprio poder que detêm os legislativos municipais e estaduais ao constituírem as Comissões, cujo funcionamento, porém, para se lhes ter a eficácia, exige preceitos normativos capazes de tutelar a ação desses poderes estaduais e municipais, no exercício de suas respectivas competências. E tais preceitos só podem advir de lei nacional, como a Lei n

o 1.579/52,

pela coercibilidade de suas normas. Só assim as CPI’s foram e são respeitadas e mantiveram, como mantêm, seu grande prestígio, como instrumento eficiente de controle das ações públicas.”

2.

Uadi Lammêgo Bulos, de sua parte, sustenta que mesmo municípios que não disponham de previsão, em lei orgânica, de CPIs, podem adotá-las. Para ele, “basta que a edilidade tome como parâmetro a Carta Federal (arts. 29, caput, e inc. IX, c/c o § 3

o do art. 58) e certos diplomas normativos infraconstitucionais, aplicáveis

à espécie (v.g. Lei nº 1.579/52)”3.

Inexiste, pois, qualquer dúvida acerca da possibilidade de instalação de comissões parlamentares de inquérito no âmbito das Casas Legislativas estaduais e

1 VALÉRIO FILHO, Américo Gonçalves apud BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria

geral das comissões parlamentares: comissões parlamentares de inquérito. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1988, p. 140. Grifos daqui.2 CASTRO, op. cit., p. 36.

3 Comissão parlamentar de inquérito: técnica e prática. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 30.

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municipais, sendo também pacífico o entendimento quanto aos poderes das Comissões estaduais e municipais, observadas, evidentemente, as esferas de competências dessas unidades federativas.

Estabelecida a possibilidade de aplicação da Lei nº 1.579/52 aos trabalhos das comissões parlamentares de inquérito instituídas nas casas legislativas municipais, impõe-se observar, como já deliberou o STF

4, que, “sendo o inquérito parlamentar

essencialmente ‘um procedimento jurídico-constitucional’ (José Alfredo de OLiveira Baracho. Teoria geral das Comissões Parlamentares de Inquérito: Comissões Parlamentares de Inquérito, p. 162, 1988, Forense), torna-se evidente que os poderes de que dispõe uma CPI acham-se necessariamente condicionados e regidos pelo princípio da legalidade dos meios por ela utilizados na ampla investigação dos fatos sujeitos à apuração congressual. Isso significa que as Comissões Parlamentares de Inquérito não têm mais poderes do que aqueles que lhes são outorgados pela Constituição e pelas leis da República".

Nessa ordem de idéias, há que se buscar o equilíbrio ideal entre os amplos poderes de uma Comissão Parlamentar de Inquérito – concedidos, em grandes linhas, pelo já transcrito art. 58, § 3º, da CF e pela Lei Federal nº 1.579/52 – e os não menos amplos direitos e garantias individuais dos cidadãos que são chamados a depor a qualquer título – assegurados, sobretudo, pela regras do art. 5º da CF. Nessa linha, colha-se, por todas, a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Habeas Corpus nº 79.589-DF, Rel. Ministro Octávio Gallotti:

A exigência de respeito aos princípios consagrados em nosso sistema constitucional não frustra e nem impede o exercício pleno, por qualquer CPI, dos poderes investigatórios de que se acha investida.A observância dos direitos e garantias constitui fator de legitimação da atividade estatal. Esse dever de obediência ao regime da lei se impõe a todos – magistrados, administradores e legisladores.O poder não se exerce de forma ilimitada. No Estado Democrático não há lugar para o poder absoluto. Ainda que em seu próprio domínio institucional, nenhum órgão estatal pode, legitimamente, pretender-se superior ou supor-se fora do alcance da autoridade suprema da Constituição Federal e das leis da República.O respeito efetivo pelos direitos individuais e pelas garantias fundamentais outorgadas pela ordem jurídica aos cidadãos em geral representa, no contexto de nossa experiência institucional, o sinal mais 4

Mandado de Segurança nº 23.452-1-RJ. Relator: Min. Celso de Mello.

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expressivo e o indício mais veemente de que se consolida, em nosso País, de maneira real, o quadro democrático delineado na Constituição da República”.

Observados tais limites, pode-se afirmar que está obrigado a depor à CPI não só o cidadão comum, como qualquer autoridade pública, nos termos do que dispõe o art. 2º da Lei n. 1.579/52, observando-se, em cada caso as eventuais restrições pontuais inerentes às funções exercidas pelos servidores e sua relação com os fatos apurados.

De outra parte, é de notar a preocupação do Constituinte – art. 58, § 1o – de

preservar nas Comissões, “tanto quanto possível”, a proporcionalidade das Casas Legislativas. Pode-se dizer, assim, que a Comissão Parlamentar de Inquérito há de constituir, sempre, um microcosmo do próprio Parlamento, detendo seus membros – e só eles – atribuição equivalente à autoridade judicial no que se refere aos fatos investigados.

Sob tal óptica, parece ser claro que somente seus integrantes detêm os poderes de deliberação e de inquirição de depoentes. Observados, pois, os estritos requisitos formais de instalação e funcionamento da Comissão Parlamentar de Inquérito não se afigura cabível a intervenção de Parlamentares estranhos à Comissão em seus trabalhos, seja para manifestar opiniões, seja – principalmente – para inquirir depoentes. Nem se entenda que somente o Presidente da Comissão pode inquirir os depoentes. Uadi Lammêgo Bulos, entende que qualquer membro da CPI poderá fazê-lo:

Quem poderá fazer as perguntas? Apenas o Presidente da CPI? Qualquer parlamentar poderá formular indagações à testemunha. Todos eles, sem distinção, gozam dessa prerrogativa, que não é exclusiva do Presidente da CPI. Isso decorre do próprio caráter colegiado do órgão, composto de parlamentares de cada uma ou ambas as Casas do Congresso Nacional

5.

Sublinha-se aqui que a restrição ora apontada diz respeito à compulsória intervenção do Parlamentar estranho à CPI. Nada há que impeça, por exemplo, que um Parlamentar teça considerações pontuais acerca da investigação ao longo das sessões ordinárias da Casa Legislativa. Pode-se ir além, mesmo no estrito âmbito dos trabalhos da CPI, sua direção poderá abrir excepcionalmente prazo e condições para intervenções pontuais de Parlamentares não integrantes da Comissão. Ainda assim, 5 Op. cit., p. 88.

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é certo que somente os membros da CPI poderão dirigir-se aos depoentes.

Não se vislumbra, aqui, qualquer restrição à atividade político-partidária. Em primeiro lugar, por conta do princípio da proporcionalidade, todas as matizes políticas estarão representadas nas Comissões de Inquérito, assegurando a todas as agremiações o acesso às informações veiculadas e a possibilidade de regular intervenção. Ademais, sob um outro aspecto, constituiria direito da testemunha, em nome do devido processo legal, responder, apenas, aos integrantes da CPI.

Assim, à luz de tais considerações, é possível concluir que nada há que obrigue uma Comissão Parlamentar de Inquérito a dar palavra, em suas reuniões e audiências, a Parlamentares que dela não façam parte, seja para fazer intervenções pontuais, seja para inquirir testemunhas e/ou indiciados.

Avançando aos termos da consulta, podemos afirmar, desde logo, que as reuniões e audiências das Comissões Parlamentares de Inquérito podem ser sigilosas, desde que as circunstâncias apontem sua necessidade. A Lei nº 10.679, de 23.5.2003, fez incluir um parágrafo 2

o no art. 3

o da Lei nº 1.579/52 que prevê, de forma expressa,

a possibilidade de realização de sessões secretas. Parece ser claro, nesse sentido, que excepcionalmente as sessões poderão, sim, ser secretas, quando em jogo, principalmente, valores maiores que justifiquem a medida. Manoel Messias Peixinho e Ricardo Guanabara lecionam nesse sentido, verbis:

Com o advento da Lei n. 10.679, de 23 de maio de 2003, o art. 3º da Lei n. 1.579, no seu parágrafo 2º passou-se a prever a possibilidade de reunião secreta. Cumpre observar que as reuniões secretas serão excepcionais e somente podem ocorrer para preservar a integridade das investigações ou de pessoas que possam vir a sofrer danos, sempre em nome do interesse público. Nesse sentido, nas audiências realizadas por uma CPI ficam vedadas quaisquer espécies de publicidades, como filmagem, gravação ou outros meios que coloquem em perigo à integridade da investigação. Somente os membros da CPI e os envolvidos estão autorizados a participar das reuniões secretas. Importante ressaltar que a decisão de optar pelo sigilo das reuniões caiba à comissão, devendo, contudo, fundamentar as razões que conduziram à adoção do procedimento sigiloso

6.

Com efeito, não será difícil imaginar e conceber situações em que testemunhas

6 Comissões parlamentares de inquérito: princípios, poderes e limites. 2. ed. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 2005, p. 83.

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possam se sentir constrangidas, ou mesmo ameaçadas, em prestar depoimentos públicos ou que seja imprescindível o sigilo das deliberações da Comissão.

Por fim, não há dúvida quanto aos poderes das Comissões Parlamentares de Inquérito na convocação de testemunhas. Dispõe, textualmente, o art. 3

o da Lei nº

1.579/52:

Em caso de não-comparecimento da testemunha sem motivo justificado, a sua intimação será solicitada ao juiz criminal da localidade em que resida ou se encontre, na forma do art. 218 do Código de Processo Penal.

De sua parte, o art. 218 do Código de Processo Penal tem a seguinte dicção:

Art. 218. Se, regularmente intimada, a testemunha deixar de comparecer sem motivo justificado, o juiz poderá requisitar à autoridade policial a sua apresentação ou determinar seja conduzida por oficial de justiça, que poderá solicitar o auxílio da força pública.

Assim, em resposta aos quesitos formulados, temos as seguintes respostas:

1 - Se os Vereadores que não sejam membros de uma Comissão Parlamentar de Inquérito têm direito ao uso da palavra nas reuniões internas e audiências para tomada de depoimentos, ou se a cessão da palavra é uma faculdade do(a) Presidente da CPI;

Vereadores estranhos à Comissão Parlamentar de Inquérito não têm, compulsoriamente, direito a uso da palavra em reuniões e sessões daquele Colegiado. A cessão da palavra a esse parlamentar constitui, efetivamente, uma faculdade da direção da Comissão.

2 - Se uma Comissão Parlamentar de Inquérito pode realizar reuniões internas e audiências para tomada de depoimento fechadas, ou seja, somente com a participação dos Vereadores membros do CPI e assessores e funcionários da Casa que exerçam atividades indispensáveis à realização das citadas reuniões e audiências;

Em circunstâncias excepcionais, após regular motivação, especialmente quando houver necessidade de preservar a integridade das investigações ou de pessoas, as Comissões Parlamentares poderão realizar reuniões internas e/ou sessões secretas.

3 - Quais são os poderes de uma Comissão Parlamentar de Inquérito para intimar testemunhas e, caso necessário, determinar sua condução forçada para a prestação de depoimentos?

De acordo com o que dispõe o art. 3o da Lei nº 1.579/52, as Comissões

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Parlamentares de Inquérito dispõem de poderes para requerer em Juízo a intimação de testemunha, podendo requerer, em caso de ausência imotivada, sua condução coercitiva.

À superior consideração.

Rio de Janeiro, 29 de maio de 2007.

Flávio Andrade de Carvalho BrittoSubprocurador-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

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O alcance da renúncia de mandato parlamentar

Parecer nº 04-A/07-FACB

Ementa: - Pedido de suplente para declarar a vacância de cargo de Vereador, que se desligou de agremiação partidária pela qual foi eleito, tomando por base manifestação do Tribunal Superior Eleitoral na Consulta nº 1.398. - Entendimento do Supremo Tribunal Federal prevalente, em sentido contrário ao da Consulta. Entende a Corte Constitucional que, apesar de a Magna Carta dar acentuado valor a representação partidária (artigos 5

o,

LXX, ‘a’; 58, § 4o; 103, VIII), não quis preservá-la com

a adoção da sanção jurídica da perda do mandato, para impedir a redução da representação de um Partido no Parlamento.- Parecer pelo indeferimento do pedido.

Excelentíssimo Senhor Vereador Presidente,

..., suplente de Vereador, filiado ao Partido Liberal, requer que a Presidência desta Casa declare vago o cargo de Vereador hoje conferido à Vereadora ..., procedendo sua convocação, na qualidade de suplente imediato.

Fundamenta o requerente seu pleito no que restou deliberado pelo Tribunal Superior Eleitoral, na Consulta nº 1.398, formulada pelo Partido da Frente Liberal, acerca da preservação, pelo partido político, de vaga quando houver pedido de

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cancelamento de filiação ou de transferência do candidato eleito por um partido para outra legenda. A Consulta, registre-se, foi formulada nos seguintes termos:

Considerando o teor do art. 108 da Lei nº 4.737/65 (Código Eleitoral), que estabelece que a eleição dos candidatos a cargos proporcionais é resultado do quociente eleitoral apurado entre os diversos partidos e coligações envolvidos no certame democrático.Considerando que é condição constitucional de elegibilidade a filiação partidária, posta para indicar ao eleitor o vínculo político e ideológico dos candidatos.Considerando-se ainda que, também, o cálculo das médias, é decorrente do resultado dos votos válidos atribuídos aos partidos e coligações. INDAGA-SEOs partidos e coligações têm o direito de preservar a vaga obtida pelo sistema eleitoral proporcional, quando houver pedido de cancelamento de filiação ou de transferência do candidato eleito por um partido para outra legenda?

A indagação foi decidida por maioria de votos e mereceu a seguinte ementa:

Consulta. Eleições proporcionais. Candidato eleito. Cancelamento de filiação. Transferência de partido. Vaga. Agremiação. Resposta afirmativa.

Importante consignar que a só resposta à Consulta formulada não se mostrou apta, de per si, a restituir aos Partidos Políticos as supostas vagas dos Parlamentares que se desligaram das agremiações partidárias pelas quais se elegeram. Tanto assim é que o Democratas (nova denominação do Partido da Frente Liberal) viu-se compelido a impetrar mandado de segurança contra o Presidente da Câmara dos Deputados (MS nº 26604, Relatora Ministra Carmen Lucia Antunes Rocha) não tendo sido, ainda, examinado o pedido de liminar. Outros writs foram impetrados por outras agremiações partidárias (MS nº 26602, Rel. Eros Grau, impetrado pelo PPS e MS 26603, impetrado pelo PSDB, Rel. Min. Celso de Mello). Em nenhuma delas, também, foi proferida decisão liminar favorável aos impetrantes.

Dessa forma, inexiste amparo para que a Presidência desta Casa Legislativa dê seqüência ao pleito de fls. 2 e ss., mormente quando se tem em conta que o entendimento prevalente no Supremo Tribunal Federal é em sentido contrário do que ventila o Requerente. Em verdade, até hoje, predomina o entendimento da Corte externado no julgamento do Mandado de Segurança nº 20.927, Rel. Min. Moreira

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Alves, que mereceu a seguinte ementa:

Mandado de segurança. Fidelidade partidária. Suplente de deputado federal. - Em que pese o princípio da representação proporcional e a representação parlamentar federal por intermédio dos partidos políticos, não perde a condição de suplente o candidato diplomado pela Justiça Eleitoral que, posteriormente, se desvincula do partido ou aliança partidária pelo qual se elegeu. - A inaplicabilidade do princípio da fidelidade partidária aos parlamentares empossados se estende, no silêncio da Constituição e da lei, aos respectivos suplentes. - Mandado de segurança indeferido

1.

Desse acórdão, extrai-se o seguinte tópico, de todo aplicável à espécie:

Ora, se a própria Constituição não estabelece a perda de mandato para o Deputado que, eleito pelo sistema de representação proporcional, muda de Partido e, com isso, diminui a representação parlamentar do Partido por que se elegeu (e se elegeu muitas vezes graças ao voto da legenda), quer isso dizer que, apesar de a Carta Magna dar acentuado valor a representação partidária (artigos 5

o, LXX, ‘a’; 58, § 4

o; 103, VIII),

não quis preservá-la com a adoção da sanção jurídica da perda do mandato, para impedir a redução da representação de um Partido no Parlamento. Se o quisesse, bastaria ter colocado essa hipótese entre as causas de perda de mandato, a que alude o artigo 55.

Tal entendimento vem de ser recentemente reiterado no MS n. 23.405-GO, Rel. Min. Gilmar Mendes:

EMENTA: Mandado de Segurança. 2. Eleitoral. Possibilidade de perda de mandato parlamentar. 3. Princípio da fidelidade partidária. Inaplicabilidade. Hipótese não colocada entre as causas de perda de mandado a que alude o art. 55 da Constituição. 4. Controvérsia que se refere a Legislatura encerrada. Perda de objeto. 5. Mandado de Segurança julgado prejudicado.

2

1 Mandado de Segurança n. 20.927-DF, Pleno. Relator: Min. Moreira Alves,DJ, 15.4.89.

2 Mandado de Segurança n. 23.405-GO, Pleno. Relator: Min. Gilmar Mendes, DJ, 23.4.04,

p. 8.

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Por tais considerações, opino pelo indeferimento do pedido.

Rio de Janeiro, 16 de maio de 2007.

Flávio Andrade de Carvalho Britto

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As CPIs e o alcance do art. 2 da Lei 1.579/52

Parecer nº 06/07-FACB

Ementa: - Constitucional. Conselheiro de Tribunal de Contas que, por conta de tal condição, se diz impedido de comparecer em audiência de Comissão Parlamentar de Inquérito que investiga vícios em edital de concorrência. - Consideradas as características das Cortes de Contas, bem assim dos direitos, garantias e prerrogativas de seus Conselheiros, nada há que os impeça de prestar os depoimentos solicitados pelas CPIs, notadamente quando não se trata, em si, de tarefa judicante.

Excelentíssimo Senhor Vereador Presidente,

Trata-se de consulta formulada pela Comissão Parlamentar de Inquérito instituída pela Resolução n. 1.061/2007, indagando sobre a juridicidade de manifestação do Excelentíssimo Senhor Presidente do Tribunal de Contas do Município do Rio de Janeiro que, diante de convite formulado a Conselheiro daquela Corte, sustentou “a impossibilidade de seu atendimento, em razão de impedimento legal inerente à sua condição de Membro Julgador deste Tribunal de Contas do Município do Rio de Janeiro, o que o impede de manifestar-se em qualquer esfera estranha a esta Instituição, sobre atos de julgamento da competência desta Corte”.

Importante ressaltar, de pronto, que o fato determinado que dá ensejo à formação da Comissão Parlamentar de Inquérito em tela é, justamente, apurar, dentre

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outras, “informações prestadas pelo Egrégio Tribunal de Contas do Município do Rio de Janeiro referente à cessão do Riocentro S.A. e diversas irregularidades na concorrência Ceh/Próprios/SMF n. CN 01-2006”.

Não obstante, como será visto a seguir, a motivação contida no Ofício oriundo da nobre Corte de Contas carioca, data venia, não se sustenta.

Conquanto não desça a minúcias, é possível extrair da justificativa apresentada – impedimento legal inerente à sua condição de Membro Julgador – que a recusa decorre da tênue similitude entre os direitos e deveres dos Conselheiros das Cortes de Contas e os dos magistrados. Conquanto se admita a existência de pontos de contato entre tais funções, ela jamais ocorre, na dimensão ventilada pelo Ofício ora sob comento.

Inicie-se com a constatação de que, da extensa lista de atribuições conferidas ao Tribunal de Contas da União no âmbito da Constituição Federal

1, apenas uma constitui,

propriamente, função judicante: pontualmente, o art. 71, II, da Carta afirma competir à Corte de Contas “julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público” (art. 71, II). Jorge Ulisses Jacoby Fernandes, emérito estudioso do tema, faz menção a artigo de Aécio Mennuci Figueira para concluir que “é na apreciação das contas anuais dos órgãos – excetuam-se apenas aquelas prestadas pelo chefe do Poder Executivo – que as Cortes de Contas brasileiras exercem a ‘real função jurisdicional’.

2”

E será significativo trazer aqui consistentes digressões sobre o tema em alentado trabalho do brilhante Secretário-Geral do Tribunal de Contas do Município do Rio de Janeiro, Dr. Silvio Freire de Moraes, no corpo do Processo nº 40/1002/2006, que trata, justamente, do malsinado Edital de Concorrência CEL/PRÓPRIO/SMF nº CN 01-06, objeto da CPI instituída pela Resolução n. 1.061/07. Sua manifestação é do seguinte teor:1 O art. 75 da Constituição Federal dispõe que “as normas estabelecidas nesta seção aplicam-se,

no que couber, à organização, composição e fiscalização dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, bem como dos Tribunais e Conselhos de Contas dos Municí-pios”.2 Tribunais de Contas do Brasil: jurisdição e competência, p. 155.

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O ex-Conselheiro do Tribunal de Contas do Distrito Federal, Jorge Ulisses Jacoby Fernandes, ferrenho e ardoroso defensor da competência privativa nos ‘processos de julgamento de contas de administradores’, corroborando a tese da inafastabilidade do controle pelo Poder Judiciário, pontuou e distinguiu as várias atribuições das Cortes de Contas, dentre estas as ora examinadas – fiscalizar e julgar: ‘Nem todas as funções que os tribunais de Contas exercem podem ser classificadas como de jurisdição. Sem dúvidas, têm também função técnica de assessoramento, de mera fiscalização, de registro. No elenco de competências, o rigor científico da terminologia empregada acentua a diferenciação, inclusive na finalidade de cada mister realizado. Para algumas tarefas, empregou-se o termo apreciar, em outras fiscalizar, em outras realizar inspeções e auditoria e, em apenas um caso, julgar”E, após discorrer acerca do direito das pessoas atingidas recorrerem ao Judiciário para rever as deliberações das Cortes de Contas ou seus efeitos, asseverou:‘Os magistrados ficam aqui livres para examinar a questão à luz do ordenamento jurídico – embora o exame da legalidade também tenha sido efetuado na corte de contas – porque não se inserem na competência jurisdicional’.A eminente Ministra Eliana Calmon Alves, do Superior Tribunal de Justiça, em artigo de consulta obrigatória acerca do tema, também divisou as funções das Cortes de Contas, sustentando inclusive haver jurisdição fora do Judiciário, mas somente quando os Tribunais atuam julgando as contas dos administradores, ressaltou:‘O Poder Judiciário, em razão do que está previsto no art. 5º, inciso XXXV, da Constituição, não pode ter sonegado de sua apreciação lesão ou ameaça de lesão a direito, o que não obsta o exame por outros órgãos, com uma jurisdição específica e especial.[...]Observe-se, portanto, que o Tribunal de Contas, além de agir como administrador coadjuvante, funciona também como fiscalizador, das licitações, das contas públicas, das concorrências, enfim, de todas as atividades listadas na Constituição. É o caso da decisão do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, quando concluiu pela ilegalidade do edital de licitação para a concessão do sistema rodoviário Anhanguera/Bandeirantes. Tal atividade não é jurisdicional. A emissão de parecer sobre concorrência ou licitação não é exercício de jurisdição, é desempenho de atividade fiscalizadora, coadjuvando com a administração.

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Ora, como invocar prerrogativas inerentes a um Magistrado, se a CPI aqui em questão não está a investigar qualquer julgamento, mas os termos de um singelo edital de concorrência, fora, portanto, do rol de atribuições judicantes das Cortes de Contas?

A questão pode, ainda, ser examinada sob um outro ângulo. É possível que o raciocínio externado no Ofício TCM/GPA nº 111/-07, ora examinado, decorreria de direta aplicação do art. 73, § 3º, da Constituição Federal, que estatui que “os Ministros do Tribunal de Contas da União terão as mesmas garantias, prerrogativas, impedimentos, vencimentos e vantagens dos Ministros do Superior Tribunal de Justiça, aplicando-se-lhes, quanto à aposentadoria e pensão, as normas constantes do art. 40”.

Mas, também sob tal aspecto, nada há que possa impedir a presença de um Conselheiro de Tribunal de Contas municipal no âmbito de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, na esteira do que estatui o art. 2

o da Lei nº 1.579/52, verbis:

Art. 2º. No exercício de suas atribuições, poderão as Comissões Parlamentares de Inquérito determinar as diligências que reportarem necessárias e requerer a convocação de Ministros de Estado, tomar o depoimento de quaisquer autoridades federais, estaduais ou municipais, ouvir os indiciados, inquirir testemunhas sob compromisso, requisitar de repartições públicas e autárquicas informações e documentos, e transportar-se aos lugares onde se fizer mister a sua presença.

Nessa linha, colha-se o magistério de Uadi Lammêgo Bulos, para quem até o Presidente da República – e mesmo qualquer autoridade judiciária – pode prestar depoimento às comissões parlamentares de inquérito. Segundo suas palavras, “pela sistemática do Texto Máximo, a expressão ‘quaisquer autoridades’ só convém ser interpretada de modo amplo e incondicionado, porque o princípio republicano, a diretriz do Estado Democrático de Direito e o pórtico da isonomia assim exigem”

3.

Muito menos se afirme, por fim, que a eventual presença de um Conselheiro de Corte de Contas no seio de uma Comissão Parlamentar de Inquérito venha a constituir violação ao princípio de separação e harmonia entre os poderes. Tal raciocínio, também, não resiste a um exame pouco mais atento.

Esta Câmara Municipal e o Egrégio Tribunal de Contas do Município conhecem, 3 Comissão parlamentar de inquérito: técnica e prática. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 103.

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como poucas instituições, seus próprios limites e possibilidades constitucionais, afirmadas e reafirmadas por pronunciamentos internos e mesmo por decisões judiciais, tamanhos são os embates que vêm sendo, ao longo dos anos, travados com o Poder Executivo.

Entretanto, em nenhum desses confrontos – aliás, a bem da verdade, em lugar algum – jamais se ousou afirmar que as Cortes de Contas pudessem constituir um outro Poder ou exercer uma função de Estado estranha e estanque às funções legislativa, executiva e judicial.

O máximo que se afirma – vide, nessa linha, o Parecer nº 17/00 – SAFF, da lavra do ilustre Procurador Sérgio Ferrari – é que o Tribunal de Contas constituiria um órgão auxiliar dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, acolhendo, assim, lição de Ricardo Lobo Torres.

Assim, em síntese, por onde quer que se examine a questão, nada há que sirva de suporte a impedir a presença de um Conselheiro do Tribunal de Contas em colaboração a uma Comissão Parlamentar de Inquérito.

Afinal de contas, consoante matriz constitucional (art. 71, VII, repetida no art. 88, VIII, da Lei Orgânica Municipal) compete ao Tribunal de Contas “prestar as informações solicitadas pelo Congresso Nacional, por qualquer de suas Casas, ou por qualquer das respectivas Comissões, sobre a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial e sobre resultados de auditorias e inspeções realizadas”.

Por tais fundamentos, opino no sentido de que inexiste qualquer dispositivo de ordem constitucional apto a impedir que um Conselheiro de Contas preste depoimento em uma Comissão Parlamentar de Inquérito, devendo, na toada de tal raciocínio, o convite vir a ser refeito, acompanhado desta Manifestação.

À superior consideração.

Rio de Janeiro, 1º de junho de 2007.

Flávio Andrade de Carvalho BrittoSubprocurador-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

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As comissões parlamentares de in-quérito e as cortes de contas: possi-

bilidades e limites

Parecer nº 07/07-FACB

Ementa: - Exame de Parecer da douta Assessoria Jurídica do Tribunal de Contas do Município do Rio de Janeiro que rebate os termos do Parecer 06/07-FACB. - Apesar de insistir que um Conselheiro de Tribunal de Contas pode atender a convite formulado por uma Comissão Parlamentar de Inquérito – contrariamente ao que sustenta a Corte de Contas – é fato que a Casa Legislativa não dispõe de meios para compelir o comparecimento do Conselheiro faltante. - Parecer pela aplicação do art. 71, VII, da Constituição Federal, que trata do pedido de informações que as Cortes de Contas devem prestar ao Poder Legislativo.

Excelentíssimo Senhor Vereador Presidente,

O Excelentíssimo Senhor Presidente do Egrégio Tribunal de Contas do Município do Rio de Janeiro encaminha ao exame desta Casa Legislativa manifestação da Ilustrada Assessoria Jurídica daquela Corte, que examina os termos de nosso Parecer nº 06/07-FACB, que, de seu turno, mereceu a seguinte ementa:

- Constitucional. Conselheiro de Tribunal de Contas que, por conta de tal condição, se diz impedido de comparecer em audiência de Comissão Parlamentar de Inquérito que investiga vícios em edital de concorrência.

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- Consideradas as características das Cortes de Contas, bem assim dos direitos, garantias e prerrogativas de seus Conselheiros, nada há que os impeça de prestar os depoimentos solicitados pelas CPIs, notadamente quando não se trata, em si, de tarefa judicante.

O estudo elaborado pela Corte de Contas teve a seguinte ementa:

Constitucional – CPI nº 1061/2007 – CPI do RIOCENTRO – Convite para comparecimento de Conselheiro de Tribunal de Contas – Prerrogativas, garantias e impedimentos equiparados aos membros do Poder Judiciário por força constitucional – Limites ao poder de investigação das CPI’s.

Apesar da franca convergência de conclusões – que será adiante demonstrada – a douta Assessoria Jurídica do TCM entende que nossa manifestação estaria partindo de “premissas equivocadas”, porquanto

i) não enxergamos a total convergência de garantias, prerrogativas e impedimentos entre os Magistrados e os Conselheiros de Tribunais de Contas;

ii) sob sua óptica, o exame de um edital constituiria, sim, ato de natureza jurisdicional.

Apesar de tais considerações distarem, efetivamente, de nossa linha de raciocínio – vazada no Parecer nº 06/07-FACB –, o fato é que tal divergência se dá em tópicos não-essenciais de ambas as manifestações, mormente quando se tem em conta que as conclusões dos trabalhos apontam para o mesmo sentido.

Passo a demonstrar.

Como deixei claro em minha manifestação, “nada há que sirva de suporte a impedir a presença de um Conselheiro do Tribunal de Contas em colaboração a uma Comissão Parlamentar de Inquérito”. Não arredo pé de minha convicção pessoal nesse sentido, posto que, como lá afirmado, não há autoridade da República que se ache privada do direito de, em espírito de colaboração, comparecer a uma Comissão Parlamentar de Inquérito. Nessa ordem de idéias, divirjo da assertiva, contida na manifestação da douta Assessoria Jurídica, de que “os propósitos do convite de Conselheiros restarão ilegais e ilegítimos se de tal ato pretender-se buscar depoimento sobre conteúdo objeto de controle de contas em juízo valorativo”. Pela própria acepção da palavra, data venia, convite algum pode ser tido como ilegal e ilegítimo.

Muito menos vale concluir – como feito – que, pelos termos do convite

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formulado, esta Casa Legislativa estaria a tratar o Tribunal de Contas como um “órgão preposto do Poder Legislativo”. Sequer vale polemizar sobre tal assertiva, já que como disse em meu Parecer “esta Câmara Municipal e o Egrégio Tribunal de Contas do Município conhecem, como poucas instituições, seus próprios limites e possibilidades constitucionais, afirmadas e reafirmadas por pronunciamentos internos e mesmo por decisões judiciais, tamanhos são os embates que vêm sendo, ao longo dos anos, travados com o Poder Executivo”.

A questão, na verdade, é muito mais simples. Entendi, como ainda entendo, que um Conselheiro de Tribunal de Contas pode, em colaboração com uma Comissão Parlamentar de Inquérito a ela comparecer declinando sua percepção acerca de fatos de índole administrativa, fora do espectro de função judicante. Entendo mais, com base no que já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, que “a emissão de parecer sobre concorrência ou licitação não é exercício de jurisdição, é desempenho de atividade fiscalizadora, coadjuvando com a administração”.

Vai daí uma distância muito longa para se enxergar qualquer tentativa de ingerência na Corte de Contas, instituição que, como dito, sempre foi prestigiada por esta Casa Legislativa e, em especial, sua Procuradoria-Geral.

O enfoque de minha manifestação foi de que, diante de um convite, o Conselheiro poderia, a título de colaboração, prestar depoimento à CPI. Apresentada uma objeção – qualquer que fosse ela –, a situação demandaria um novo exame.

E, coerente com tal modo de pensar e, notadamente, por conta da dicção do texto constitucional, tenho por certo que os Conselheiros das Cortes de Contas não podem ser convocados coercitivamente a comparecer a Comissões Parlamentares de Inquérito, caso entendam de recusar o convite. Nesse sentido é a lição de Uadi Lammêgo Bulos:

Basta ver que os conselheiros dos Tribunais de Contas não podem ser compelidos à presença de uma CPI. Eles comparecem se desejarem. Não é dado ao Poder Legislativo exigir-lhes o dever de comparecimento para depor. Assim, os Tribunais de Contas, no posto constitucional de órgãos de colaboração técnica e de auxílio, não estão compelidos a ofertar documentos às comissões de inquérito antes de proferir seus pareceres prévios. Em casos específicos, se eventualmente solicitados, poderão, conforme o juízo discricionário dos membros do Tribunal, oferecer informações. Isso,

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contudo, é uma faculdade que a Constituição da República franqueia às Cortes de Contas, não um dever (CF, art. 71, VII c/c o art. 75)

1.

E, mesmo que o Conselheiro espontaneamente comparecesse à sessão de uma Comissão Parlamentar de Inquérito e entendesse que o tema estaria imbricado com sua função judicante, poderia ele declinar o depoimento. Quanto a este ponto vale reconhecer a similitude com as funções de magistrado, valendo transcrever, por cabível, a lição de Manoel Messias Peixinho e Ricardo Guanabara acerca das prerrogativas dos poderes e limites das CPIs e da magistratura. Assim, após concluírem pela possibilidade de estabelecimento de uma CPI que vise a investigar o próprio Poder Judiciário, concluem aqueles doutrinadores:

E por ilação lógica, legítima é também a convocação de um magistrado responsável pela condução da administração da coisa pública em determinado Tribunal. Porém, o que não se pode admitir é a convocação de um magistrado para que deponha sobre assunto pertencente à esfera de sua atuação jurisdicional, porque, neste caso, estaríamos diante de violação do princípio federativo da separação e independência dos Poderes

2.

Parece ser claro, pois, que, apesar de divergências pontuais, o que se tem é uma franca convergência para a conclusão de que o Conselheiro da Corte de Contas não pode ser compelido a comparecer em sessão de Comissão Parlamentar de Inquérito, pouco importando as razões que forem apresentadas para a recusa ao convite, restando apontar as possíveis alternativas para a hipótese, caso a Comissão Parlamentar de Inquérito insista em obter dados acerca dos fatos que, afinal de contas, deram azo à sua instalação.

Assim, ante a recusa ao convite formulado, e considerando a impossibilidade de convocação coercitiva de um Conselheiro do Tribunal de Contas, parece-nos ser a hipótese de aplicação da regra do art. 71, VII

3, da Constituição da República

(repetida no art. 88, VIII da Lei Orgânica Municipal), que compele a Corte a prestar

1 Comissão parlamentar de inquérito: técnica e prática. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 130.

2 Comissões parlamentares de inquérito: princípios, poderes e limites. 2. ed. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, p. 189. 3 Que diz competir ao Tribunal de Contas “prestar as informações solicitadas pelo Congresso

Nacional, por qualquer de suas Casas, ou por qualquer das respectivas Comissões, sobre a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial e sobre resultados de auditorias e inspeções realizadas”.

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as informações solicitadas pelas Comissões do Poder Legislativo, medida que se sugere para o regular prosseguimento dos trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito.

À superior consideração.

Rio de Janeiro, 24 de julho de 2007.

Flávio Andrade de Carvalho BrittoSubprocurador-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

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Erro em ementa do projeto legislati-vo. Possibilidade de sanatória.

Parecer nº 08/07-FACB

Ementa: Lei Municipal que contém, desde o projeto legislativo originário, errônea referência em sua ementa. Considerando seu caráter subsidiário em relação à norma em si, e considerando que a sanatória é feita com o assentimento expresso de ambos os agentes políticos envolvidos no processo legislativo, opina-se pela republicação da norma, sem a equivocada menção constante da primeira publicação.

Excelentíssimo Senhor Vereador Presidente,

O Excelentíssimo Senhor Prefeito Municipal encaminha Ofício apontando que a ementa da Lei nº 4.550, de 17 de julho de 2007 (PL nº 1.015/07), contém uma remissão equivocada à legislação por ela revogada. Deveras, como explanado na referida correspondência, “houve, na ementa do PL, um erro formal na referência entre parênteses quanto à Lei nº 1.369, de 29 de dezembro de 1988. A expressão (Código Tributário Municipal) é indevida, pois o CTM é a Lei nº 691, de 24 de dezembro de 1984, e não aquela Lei”.

Há, em outras palavras, na ementa na legislação aprovada, uma equivocada menção à norma que contém o dispositivo revogado – a Lei nº 1.369/88 – que, no caso, não é o “Código Tributário Municipal”.

Cumpre, pois, apurar se a retirada da expressão “Código Tributário Municipal” pode ser feita mediante singela republicação, ou se seria necessária a edição de uma

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nova norma que rechaçasse explicitamente o equívoco.

Existe, no âmbito do Município do Rio de Janeiro, a Lei Complementar nº 48, de 5 de dezembro de 2000, que, inspirada na Lei Complementar Federal nº 95/1998, dispõe sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis municipais. O art. 4

o da norma municipal estabelece que “a ementa será grafada por meio de

caracteres que a realcem e explicitará, de modo conciso e sob a forma de título, o objeto da lei”.

Segundo Hésio Fernandes Pinheiro, a ementa, ou rubrica, de uma lei objetiva “permitir, em simples golpe de vista, o conhecimento do conteúdo do ato consultado, tornando por outro lado, fácil e imediata a sua identificação”

1.

Sua função é limitada: Carlos Maximiliano leciona que a ementa “ajuda a deduzir os motivos e o objeto da norma: presta, em alguns casos, relevantes serviços à exegese: auxilia muito a memória; é fácil de reter, e por ela se chega à lembrança das regras a que se refere; porém, oferece um critério inseguro; a rubrica é de ordem subsidiária; vale menos do que os outros elementos de hermenêutica, os quais se aplicam diretamente ao texto em sua íntegra”

2.

Afirme-se, de pronto, que, consoante dicção do art. 18 da Lei Complementar nº 95/98 – reproduzida, no âmbito municipal pelo art. 16 da Lei Complementar nº 48/2000 – eventual “inexatidão formal de norma elaborada mediante processo legislativo regular não constitui escusa válida para o seu descumprimento”.

Ou seja, conquanto, no caso em tela, parte da ementa não se coadune com seu conteúdo, nenhuma conseqüência prática advirá de tal imprecisão. É dizer: ainda que, aqui, ninguém se apercebesse de tal equívoco, não teria ele o condão de fazer nascer qualquer incerteza – que dirá direitos – a quem quer que seja, Administração ou administrados.

Assentadas tais premissas, cumpre analisar, por útil, a questão pelo exame tópico que confere a Lei Complementar nº 48/2000. Confira-se, assim, a dicção de art. 2

o,

que cuida de unificar a estrutura de uma norma:

Art. 2º A lei será estruturada em três partes básicas: I – parte preliminar, compreendendo a epígrafe, a ementa, o preâmbulo, o

1 Técnica legislativa. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1962, p. 48.

2 Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1941, p. 319.

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enunciado do objeto e a indicação do âmbito de aplicação das disposições normativas;II – parte normativa, compreendendo o texto das normas de conteúdo substantivo relacionadas com a matéria regulada;III – parte final, compreendendo as disposições pertinentes às medidas necessárias à implementação das normas de conteúdo substantivo, às disposições transitórias, se for o caso, à cláusula de vigência e à cláusula de revogação, quando couber.

Parece ser claro, também aqui, que a norma em si – aquela que faz nascer direitos e deveres – decorre do que se expressa em sua “parte normativa” e em sua “parte final”, constituindo a chamada “parte preliminar” mera apresentação da norma.

Voltando ao caso em tela, tem-se que a ementa da Lei nº 4.550/07 acha-se bem redigida – nos moldes do art. 4

o da Lei Complementar nº 48/00 – não fosse a indevida

aposição, ao seu final, de que o dispositivo revogado pertenceria ao Código Tributário Municipal, fato que não corresponde à realidade. Tal constatação, ademais, facilita a conclusão pela simples republicação, com a só retirada da errônea referência.

É relevante relembrar ademais que a republicação terá lugar com o pleno e formal assentimento dos agentes políticos envolvidos. Insisto, contudo, que, mesmo que assim não fosse, o equívoco cometido não teria o condão de fazer nascer direitos e deveres a quem quer que seja.

A conta de tais fundamentos, entendo que a existência de erro formal em parte da ementa de legislação prescinde de sanatória através de uma outra lei, bastando a republicação da norma com a exclusão do tópico que contém informação inexata.

À superior consideração.

Rio de Janeiro, 6 de agosto de 2007.

Flávio Andrade de Carvalho BrittoSubprocurador-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

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Comissões permanentes - Incompetên-cia para firmar acordos isoladamente

Parecer nº 03/07-JMS

Ementa: As Comissões Permanentes não têm competência para firmar acordos diretamente com entidades externas ao Poder Legislativo Municipal. Inteligência dos arts. 30, I, 56 e 73, XV, do Regimento Interno da Câmara Municipal.

Exmo. Sr. Presidente

O Exmo. Sr. Vereador ... solicita orientação quanto à “amplitude da Comissão Municipal de Defesa dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência,...” (fl. 02). Esclarece que a consulta visa a esclarecer a possibilidade de a Comissão Municipal de Defesa dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência, da qual é Presidente, firmar acordos de cooperação com outras entidades. Nesse sentido, passo a opinar.

Fundamentação

Esta Procuradoria-Geral já teve oportunidade de se manifestar acerca da possibilidade de as Comissões Permanentes desta Casa firmarem acordos de cooperação. Dentre os opinamentos, destacam-se os Pareceres nºs 08/00-SAFF, 06/05-SAFF e 09/97-FNB.

A Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência foi criada pela Resolução nº 1006/05, cujas competências específicas estão descritas no art. 69, XVI, do Regimento Interno desta Casa.

Com efeito, a teor do art. 56 do Regimento Interno, as Comissões “são órgãos técnicos, constituídos pelos membros da Câmara Municipal, em caráter permanente ou transitório, e destinados a proceder a estudos, realizar investigações e representar

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a Câmara Municipal...”.

Como bem salientado no Parecer nº 09/97-FNB, do ponto de vista do direito material, não haveria problema de a Comissão firmar acordos de cooperação para os fins específicos a que ela se destina, desde que não gere despesas e nos quais convirjam os objetivos dos participantes. Contudo, do ponto de vista formal, há a possibilidade de controverter-se a validade dos próprios acordos de cooperação firmados pela Comissão, a título de incapacidade desta para a representação do Poder Legislativo. É bem de ver que o art. 56, I, da Lei Orgânica dispõe competir ao Presidente desta Casa tal representação. Vejamos:

Art. 56 – Compete ao Presidente da Câmara Municipal, além de outras atribuições estabelecidas no regimento interno:I – representar a Câmara Municipal em juízo ou fora dele;

Nesse contexto, cuidando-se de ato negocial, afigura-se necessária a sua subscrição pela autoridade legalmente investida de representação do Poder Legislativo, sendo atribuição do Presidente da Câmara Municipal firmar convênios com entidades externas ao Poder Legislativo Municipal. Embora o Regimento Interno não estipule vedação expressa à possibilidade de Presidente de determinada Comissão Permanente poder firmar diretamente acordos de cooperação, os dispositivos que regulamentam essa matéria devem ser interpretados de forma sistemática.

Com efeito, o art. 30, parágrafo único do Regimento Interno, dispõe:

Art. 30 – Omissis.Parágrafo único – Na direção dos trabalhos legislativos, compete ao Presidente:VI – quanto às atividades e relações externas da Câmara Municipal.a) manter, em nome da Câmara Municipal, todos os contatos de direito com o Prefeito e demais autoridades;.

Não obstante o dispositivo acima transcrito mencionar apenas “autoridades”, o que numa interpretação literal poderia excluir as entidades particulares, a melhor interpretação, teleológica, indica que se atribui ao Presidente da Câmara Municipal a representação desta entidade em tudo que diz respeito a relações externas.

Já o art. 73, XV do Regimento Interno, referente às atribuições dos Presidentes das Comissões Permanentes, destaca apenas relações entre a Comissão e a própria Câmara, tudo a indicar que as relações entre a Comissão e o meio externo dar-se-ão

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através do Presidente do Legislativo Municipal. Veja-se:

Art. 73 – Ao Presidente da Comissão Permanente compete:Omissis.XV – representar a comissão nas suas relações com a Mesa Diretora e com outras comissões.

Nesse contexto, verifica-se que as Comissões Permanentes, por seus Presidentes diretamente, não têm competência para firmar acordos de cooperação com entidades externas à Câmara Municipal.

Conclusão

Pelas razões acima expostas, conclui-se que as Comissões Permanentes não possuem, diretamente, competência para firmar acordos de cooperação com entidades externas ao Poder Legislativo Municipal.

É como me parece. À consideração de Vossa Excelência.

Rio de Janeiro, 03 de julho de 2007.

Jania Maria de SouzaProcuradora-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

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Direito de Pessoal e

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Contribuição previdenciária sobre en-cargos especiais

Parecer no 04/06-CRTS

Ementa: Direito Previdenciário. Contribuição previdenciária dos servidores públicos da Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Incidência do desconto sobre a gratificação de encargos especiais. Impossibilidade. 1. Decreto nº 22.870, de 07/05/03. Art. 9º, § 1º. No cálculo da contribuição não serão consideradas as parcelas de caráter eventual. 2. Art. 40, § 3º, da Carta Federal, na redação dada pela emenda constitucional nº 41, de 19/12/03. A contribuição previdenciária incide sobre as verbas remuneratórias vinculadas ao cargo efetivo que repercutirão nos futuros proventos. Não incide, portanto, sobre a gratificação de encargos especiais que, por força de lei, não integra os proventos de aposentadoria. 3. Parecer pela manutenção dos critérios adotados por esta Casa no tocante à matéria (Parecer nº 07/03-CRTS).

Senhora Procuradora-Geral,

Cuida-se de procedimento deflagrado pela nobre autarquia interessada [Instituto de Previdência do Município do Rio de Janeiro – Previ-Rio] com o fim de dar conhecimento a esta Casa de “decisão exarada no administrativo CMRJ 005.865/2002, no qual foi decidida (sic) a legalidade da cobrança de contribuição previdenciária sobre a gratificação de encargos especiais, tendo em vista a orientação vertida no Parecer PG/PPE/003/2005/ANB”, solicitando, sob tal fundamento, o restabelecimento do desconto no âmbito do Poder Legislativo, bem como o ressarcimento desses valores pelos servidores beneficiários da suspensão do desconto e pela própria Câmara Municipal, relativo à contribuição patronal.

A questão foi inicialmente examinada pelo ilustre procurador deste órgão, o

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Doutor Sérgio Antônio Ferrari Filho, que, com habitual acertamento, observou que a Câmara Municipal do Rio de Janeiro goza de autonomia administrativa, não se submetendo a entendimentos e procedimentos ditados pelo Poder Executivo, o que, por si só, afastaria a pretensão do PREVI-RIO.

Não obstante, considerando-se as inovações empreendidas pelas emendas constitucionais nº

s 41/03 e 47/05, sugeriu, o nobre procurador, que a hipótese fosse

reexaminada à luz dessas novas regras.

Assim os autos como nos chegaram para análise e parecer.

II

O parecer PG/PPE/003/2005/ANB, longe de afastar a tese adotada por esta Casa no tocante à incidência de contribuição previdenciária sobre a gratificação de encargos especiais (Parecer nº 07/03-CRTS), vem reforçá-la.

Suas desconcertantes conclusões apontam no sentido da não incidência do desconto sobre as verbas de natureza eventual, como deveriam ser, por definição legal (art.119, IV, da Lei nº 94/79), os encargos especiais. Sua incidência, na hipótese específica daquele parecer, se devia unicamente ao deturpado uso dessa verba no âmbito do Poder Executivo onde ganhou caráter “habitual e linear”:

22. De outra parte, a legislação municipal é muito clara no excluir da incidência do desconto em comento as verbas que sejam pagas ao servidor em caráter eventual. É o que reza o § 1º, do art. 6º, da Lei nº 3.344, de 28/12/2001, e bem assim o § 1º, do art. 9º, do Decreto nº 22.870, de 06/05/2003.23. No caso concreto, consta informação às fls. 22 que o requerente percebe ininterruptamente gratificação por encargos especiais desde a edição do Decreto nº 10.296/1991.24. Nada obstante, não é ocioso relembrar que o pagamento da gratificação por encargos especiais prevista no artigo 119, inciso IV, da Lei nº 94, de 14/03/1979, tem, por definição, um caráter eventual, pois se trata de uma vantagem paga em contrapartida a um serviço extraordinário – e, portanto, de caráter não-habitual – que é prestado pelo servidor sem prejuízo do desempenho das funções próprias do cargo titularizado. Vai daí que as gratificações por encargos especiais pagas em contrapartida a serviços desempenhados em caráter efetivamente extraordinário e não-habitual não podem integrar a base de cálculo de incidência da contribuição previdenciária, consoante os termos do § 1º, do art. 6º, da Lei nº 3.344,

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de 28/12/2001, e bem assim do § 1º, do art. 9º, do Decreto nº 22.870, de 06/05/2003.25. É dizer, por outras palavras, que a legalidade da incidência de contribuição previdenciária sobre a gratificação de encargos especiais dependerá, no âmbito do Município, da verificação do caráter de habitualidade do pagamento dessa vantagem ao servidor beneficiário, vis-à-vis dos contornos fáticos de cada caso concreto, tal como foi preconizado, para fins de incorporação dessa vantagem a proventos, na Promoção PG/PPE/003/2005/ANB. (fls. 19/20, sem grifos no original).

Os encargos especiais concedidos no âmbito da Câmara Municipal do Rio de Janeiro guardam estreita consonância com a natureza e a finalidade desse benefício, mantendo seu caráter eventual e extraordinário.

É o que dispõe a Resolução da Mesa Diretora nº 746, de 20/09/84:

Art. 1º - A gratificação de encargos especiais a que se refere o artigo 119, inciso IV, da Lei nº 94/79 poderá ser concedida aos servidores incumbidos de atividades diversas de suas atribuições usuais ou que as exerçam em condições peculiares.§ 1º - Consideram-se peculiares, entre outras, as condições pertinentes ao grau especial de responsabilidade que o exercício das atribuições exige do servidor e à sua extensão, intensidade, duração e complexidade.§ 2º - A gratificação a que se refere a presente Resolução será concedida exclusivamente aos servidores que se enquadrem nos requisitos por ela estabelecidos e que prestem serviços no Setor Administrativo da Câmara Municipal do Rio de Janeiro.Art. 2º - O valor da gratificação a que se refere esta Resolução será fixado em cada caso pela Mesa Diretora, não podendo ultrapassar o valor do símbolo DAS-6.Art. 3º - As despesas decorrentes da aplicação do disposto nesta Resolução dependerão de dotação orçamentária e disponibilidade financeira.Art. 4º - Esta Resolução entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

Como se pode ver, nossos encargos não se submeteram às distorções sofridas pelo benefício no âmbito do Poder Executivo, estando, portanto, excluídos da incidência do desconto previdenciário, na forma do art. 6º, § 1º, da Lei nº 3.344/01 e art. 9º, § 1º, do Decreto 22.870/03.

III

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Quanto às inovações trazidas pelas emendas constitucionais nºs 41/03 e 47/05,

nada nelas há que afaste os fundamentos e as conclusões constantes do Parecer 07/03-CRTS, desta Casa.

Pelo contrário, a nova redação dada pela Emenda nº 41/03 ao § 3º, do artigo 40, do texto constitucional sepulta a questão em sentido idêntico ao daquele opinamento. Vejamos:

§ 3º - Para o cálculo dos proventos de aposentadoria, por ocasião da sua concessão, serão consideradas as remunerações utilizadas como base para as contribuições do servidor aos regimes de previdência de que tratam este artigo e o art. 201, na forma da lei. (sem grifos no original).

Vale dizer, as verbas a serem consideradas na fixação dos proventos de aposentadoria são aquelas sobre as quais incidiram as contribuições previdenciárias.

Por igual, somente incidem as contribuições previdenciárias – e os correspondentes descontos – sobre as verbas que virão a integrar os proventos do servidor.

Esse dispositivo torna ainda mais segura a postura adotada por esta Casa quanto à não incidência da contribuição previdenciária sobre a gratificação de encargos especiais.

IV

Não há, assim, qualquer razão que justifique a mudança dos critérios adotados pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro no tocante à matéria e, conseqüentemente, qualquer das medidas indicadas pela nobre autarquia interessada.

É esse o parecer que submeto à consideração de V. Exa.

Rio de Janeiro, 07 de julho de 2006.

Claudia Rivolli Thomas de SáProcuradora da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

Visto. Aprovo o Parecer nº 04/06-CRTS, retro/supra.

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Encaminhe-se ao Gabinete da Presidência.

Flávio Andrade de Carvalho BrittoSubprocurador-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

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Substituição eventual - O pagamento só deve ocorrer se for por 30 dias consecutivos. Impossibilidade de in-

terpretação extensiva.

Parecer nº 01/07-JMS

Ementa: Substituição eventual. Não se coaduna com os regramentos rígidos que norteiam o Direito Administrativo e a Administração Pública o pagamento por substituição eventual que não se dê por 30 (trinta) dias consecutivos. Princípio da legalidade. Impossibilidade de se conferir interpretação extensiva à norma de direito excepcional. Parecer pelo indeferimento.

Exmo. Sr. Primeiro Secretário

O Exmo. Sr. Vereador ... solicita de Vossa Excelência “providências necessárias, no sentido de providenciar a elaboração do pagamento referente à substituição eventual do assessor-chefe de meu gabinete, ..., pertinente às suas férias usufruídas no mês de janeiro do ano em curso, à funcionária ..., substituta eventual, ...” (fl. 02).

A Diretoria de Pessoal informou, à fl. 06, que o período de substituição não foi de 30 (trinta) dias, razão pela qual não haveria cálculos a serem feitos para fins de pagamento ao servidor substituto.

O Exmo. Sr. Vereador ..., à fl. 07, reitera o pedido alegando que o período de substituição se deu por 30 (trinta) dias, sendo 07 (sete) dias no mês de novembro de 2006 e 23 (vinte e três) dias no mês de janeiro de 2007.

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A Assessoria Jurídica se pronunciou sobre o tema, sugerindo fosse ouvida esta Procuradoria-Geral, fls. 09/10, o que foi determinado por V. Exa., à fl. 12. Desse modo, passo a opinar.

Fundamentação

A respeito da matéria, dispõe o art. 33, § 3º, da Lei nº 94, de 14 de março de 1979:

Art. 33 – Omissis.§ 3º - a substituição nos termos dos parágrafos anteriores será gratuita salvo se igual ou superior a 30 (trinta) dias, quando será remunerada.

Ao contrário das relações privadas, à Administração Pública só é permitido fazer o que a lei expressamente autoriza. É o chamado princípio da legalidade. Daí por que devem as regras concessivas de direitos e vantagens serem interpretadas de forma restritiva. Por essa razão, a Administração Pública não pode conceder direitos de qualquer espécie sem que estes estejam previstos na lei.

Dada a excepcionalidade da substituição – que não é extensível a todo e qualquer servidor, mas de vantagem reservada a quem o titular da unidade administrativa designar –, a interpretação dos dispositivos sobre a matéria deve ser restritiva e dentro dos regramentos que norteiam o Direito Administrativo, exceptiones sunt strictissimae interpretationis.

Com efeito, trata-se de um direito excepcional, que segundo Carlos Maximiliano

1

...quando a letra de um artigo de repositório parece adaptar-se a uma hipótese determinada, porém se verifica estar esta em desacordo com o espírito do referido preceito legal, não se coadunar com o fim, nem com os motivos do mesmo.,

isto é, sempre que disposições legais

introduzam exceções, de qualquer natureza, a regras gerais, ou a um preceito da mesma lei, a favor, ou em prejuízo, de indivíduos ou classes da comunidade.

Nesse contexto, veja-se, mais uma vez, o § 3º do art. 33 do Estatuto 1 Hermenêutica e aplicação do direito. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, n. 270 e 275,

p. 225 e 230.

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Municipal:

§ 3º - a substituição nos termos dos parágrafos anteriores será gratuita salvo se igual ou superior a 30 (trinta) dias, quando será remunerada.

Apesar de a lei não trazer expressamente o termo “consecutivo”, “ininterrupto” ou qualquer outro de mesma significação, não se pode interpretar a norma de forma extensiva. Assim, não se pode entrever que, ante à ausência expressa de uma daquelas palavras, poder-se-ia entender que o pagamento por substituição eventual poderia ocorrer, mesmo que a substituição tenha sido em períodos intercalados.

Em construção sistemática das normas que regem o Direito Administrativo, nada autoriza que se possa ler uma regra de direito excepcional em sentido diverso do que lhe é próprio, mormente quando se refira à concessão de direito e de despesa para o Erário.

Não se trata, no caso, de lacuna da lei. Com efeito, somente se pode ter como caracterizada “lacuna” quando faz-se necessário o seu preenchimento para que a ordem jurídica, como um todo, possa ser aplicada de forma satisfatória. E tal, na hipótese, não ocorre. Isso porque todo o disciplinamento sobre a substituição eventual não deixou de ser aplicado pela ausência de citação aos termos “ininterrupto, consecutivo” etc, no mencionado § 3º do art. 33 da Lei nº 94/79.

Pelas razões expostas, não há como se entender que o pagamento por exercício de substituição eventual abrangeria períodos intercalados, como ocorreu na hipótese destes autos.

Conclusão

Nesse contexto, e tendo em vista que os dispositivos legais que regem o tema substituição eventual – por versarem matéria de direito excepcional – devem ser interpretados de forma restritiva, não comportando elastérios e, tampouco, recursos hermenêuticos e, menos ainda, aplicação extensiva ou analógica, pode-se afirmar que não existe amparo legal para deferir-se a pretensão formulada à fl. 07.

É o que me parece. À consideração de Vossa Excelência.

Em 01 de junho de 2007.

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Jania Maria de SouzaProcuradora-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

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Licença especial - Interrupção por necessidade de serviço não impede a

fruição do período restante.

Parecer nº 02/07-JMS

Ementa: Licença especial. No caso de interrupção do gozo em razão de necessidade de serviço não se aplica o disposto no Decreto nº 6019/86, que trata de interrupção voluntária. Ilegalidade, nessas hipóteses, de qualquer restrição temporal à fruição do período restante de licença especial, por ser desproporcional e irrazoável.

Exmo. Sr. Primeiro Secretário

Cuida-se de processo administrativo no qual Vossa Excelência determina a oitiva desta Procuradoria-Geral acerca da interrupção do período de licença especial do servidor ..., à vista do questionamento da Diretoria de Pessoal, à fl. 41, sobre a incidência, na hipótese, do art. 6º e do § 1º do art. 13 do Decreto nº 6019/86.

O cerne da questão reside, pois, em saber se a interrupção da licença especial deve ser sempre limitada a períodos de 30 (trinta) dias, nos termos dos dispositivos legais citados, mesmo quando a impossibilidade de fruição decorra de imperiosa necessidade de serviço.

Delimitado o âmbito da consulta, passo a tecer as considerações que se seguem.

Fundamentação

O servidor em tela teve deferido o gozo de licença especial, no período de 11/04/07 a 10/07/07 (fl. 33). Ocorre que, por imperiosa necessidade de serviço, esta

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Procuradoria-Geral solicitou ao Diretor-Geral de Administração a interrupção da licença, a partir do dia 24, inclusive, do mês de maio passado. À vista dessa interrupção, a Diretoria de Pessoal indaga se incide ao caso o disposto no art. 6º e no § 1º do art. 13 do Decreto 6019/86, que dispõem, respectivamente:

Art. 6º - A licença especial poderá ser gozada seguida ou parceladamente.§ 1º - No caso de gozo parcelado, o tempo de licença, relativo a cada qüinqüênio, será dividido em períodos de um ou mais meses completos, devendo o funcionário mencionar expressamente, no processo em que solicitou a concessão da licença, o período que pretende gozar. Art. 13 - O funcionário que desejar desistir ou interromper voluntariamente o gozo da licença especial, deverá declarar expressamente tal propósito no próprio processo de concessão.§ 1º - As interrupções do gozo da licença especial só se poderão verificar quando o restante da licença corresponder exatamente aos períodos parcelados estabelecidos no § 1º do art. 6º. (grifei).

Como se pode verificar, os dispositivos colacionados disciplinam situações diversas da exposta nestes autos. Com efeito, o art. 6º refere-se ao fato de o servidor poder usufruir os 90 (noventa) dias de licença especial seguidos ou divididos em meses completos. No que tange ao § 1º do art. 13, este possibilita ao servidor desistir ou interromper voluntariamente o gozo da licença especial. Nesse caso, a interrupção só poderá ocorrer em períodos completos de 30 (trinta) dias. Nenhuma das hipóteses ocorreu no caso vertente.

É bem de ver que a licença especial do servidor não foi interrompida voluntariamente. Ao revés, por necessidade de serviço esta Procuradoria-Geral foi quem solicitou a interrupção, conforme se verifica à fl. 39.

A imperiosa necessidade de serviço surge sem prazo pré-estabelecido, vale dizer, se há a necessidade nada justifica que a Administração tenha de esperar o lapso temporal de 30 (trinta) dias para interromper a licença, conforme dispõe o § 1º do art. 13 do Decreto 6019/86. Como se disse alhures, esse dispositivo trata da interrupção de licença por vontade do servidor.

Nesse ponto, cumpre indagar se a necessidade de serviço da Administração, que deu ensejo à interrupção do gozo da licença especial do servidor, poderia cassar o direito à fruição dos dias que faltam para o implemento do período marcado à fl. 33? Parece-me que a resposta negativa se impõe.

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Com efeito, não atende ao princípio da razoabilidade e nem ao da proporcionalidade a perda pura e simples do direito à fruição do período completo da licença especial. À míngua de qualquer mecanismo compensatório, a extinção desse direito representaria um enriquecimento sem causa da Administração, que pôde valer-se dos serviços do seu servidor quando este tinha o direito subjetivo ao gozo da licença.

De fato, uma das regras básicas do juízo proporcional de ponderação é a de que a manutenção de um dos interesses não pode levar à eliminação do interesse contraposto. Desse modo, entender-se que se a licença especial, interrompida a qualquer tempo por necessidade de serviço, implicaria a perda do direito ao gozo dos dias restantes ao implemento do período, quando é a própria Administração a responsável pela interrupção da licença, representa, pode-se assim dizer, que é permitido à Administração suprimir o direito que a lei assegura ao servidor invocando razões de interesse público.

Não havendo compensação para a perda do direito, é razoável e proporcional entre os interesses em jogo – o da Administração em dar continuidade aos serviços e o do servidor de usufruir sua licença – que não pereça o direito do servidor à fruição da licença especial, sem qualquer limitação de ordem temporal.

Em síntese, conclui-se que na hipótese de interrupção do gozo de licença especial por imperiosa necessidade de serviço não se aplica o disposto no Decreto nº 6019/86.

É como me parece. À consideração de Vossa Excelência.

Em 05 de junho de 2007.

Jania Maria de SouzaProcuradora-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

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Hipóteses de retenção de contribui-ção previdenciária na prestação de

serviços

Parecer nº 01/07-SAFF

Ementa: Direito Previdenciário. Retenção de contribuições previdenciárias nos pagamentos efetuados a prestadores de serviços. Instrução normativa do INSS que interpreta a Lei 8.212/91. Resposta à Consulta com especificação das hipóteses de retenção na fonte.

Senhora Procuradora-Geral

Através do Ofício no 07/2007 (fls. 02), o ilustre Inspetor Geral de Finanças

solicitou ao Exmº. Sr. Primeiro Secretário o encaminhamento de consulta a esta Procuradoria-Geral, deferida às fls. 03 e descrita a seguir.

1. Histórico e Objeto da Consulta

No expediente inicial, o Consulente indaga se os seguintes serviços estariam sujeitos à retenção de contribuição previdenciária, no percentual de 11% (onze por cento):

- consultorias;

- assinaturas;

- cursos;

- aquisição de bens;

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- assinaturas de periódicos;

- prestação de serviços nas dependências da CMRJ ou nas dependências de terceiros, com ou sem o fornecimento de material/equipamento;

- telemarketing.

Às fls. 03, o Exmº Sr. Primeiro Secretário determinou a oitiva desta Procuradoria-Geral, sendo o feito distribuído ao signatário às fls. 03,v.

Passo a opinar.

2. Apreciação

A retenção, pelo tomador de serviços de terceiros, da contribuição previdenciária incidente sobre o preço (como de outros tributos incidentes sobre transações comerciais), é um instituto pitoresco, porém arraigado no Direito brasileiro. Através deste procedimento, transfere-se para o contratante dos serviços o ônus administrativo de conhecer a intrincada e detalhada regulamentação do tema, além de alocar pessoas e recursos para fazer a retenção de tributos que, em última análise, são de responsabilidade do contratado, e cuja fiscalização compete ao Estado.

Todavia, havendo lei que determine tal retenção, deve ser cumprida por todos os tomadores de serviços, inclusive pelo Poder Público, quando na qualidade de contratante. O instituto da retenção, em seara previdenciária, antes mesmo da Instrução Normativa referida na inicial, tem suporte legal no art. 31 da Lei 8.212/91, recentemente alterado pela Lei 11.488, de 15/06/2007, e que tem a seguinte redação:

Art. 31. A empresa contratante de serviços executados mediante cessão de mão-de-obra, inclusive em regime de trabalho temporário, deverá reter 11% (onze por cento) do valor bruto da nota fiscal ou fatura de prestação de serviços e recolher a importância retida até o dia 10 (dez) do mês subseqüente ao da emissão da respectiva nota fiscal ou fatura em nome da empresa cedente da mão-de-obra, observado o disposto no § 5

o do art.

33 desta Lei. § 1º O valor retido de que trata o caput, que deverá ser destacado na nota fiscal ou fatura de prestação de serviços, será compensado pelo respectivo estabelecimento da empresa cedente da mão-de-obra, quando do recolhimento das contribuições destinadas à Seguridade Social devidas sobre a folha de pagamento dos segurados a seu serviço.

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Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 11, n. 16, jan./dez. 2007 267

§ 2º Na impossibilidade de haver compensação integral na forma do parágrafo anterior, o saldo remanescente será objeto de restituição. § 3º Para os fins desta Lei, entende-se como cessão de mão-de-obra a colocação à disposição do contratante, em suas dependências ou nas de terceiros, de segurados que realizem serviços contínuos, relacionados ou não com a atividade-fim da empresa, quaisquer que sejam a natureza e a forma de contratação.§ 4º Enquadram-se na situação prevista no parágrafo anterior, além de outros estabelecidos em regulamento, os seguintes serviços: I - limpeza, conservação e zeladoria; II - vigilância e segurança;III - empreitada de mão-de-obra; IV - contratação de trabalho temporário na forma da Lei n

o 6.019, de 3 de

janeiro de 1974.

Percebe-se que a Lei 8.212/91 já tratou, no § 3º do art. 31, da delimitação de quais são os serviços sujeitos à retenção, fazendo uma definição ampla e razoavelmente aberta, cabendo ao regulamento detalhar essa definição. Por isso, só se pode entender com exemplificativa a lista contida no § 4º, logo a seguir.

Essa explicitação veio, de forma ainda mais detalhada, na Instrução Normativa MPS/SRP nº 3, de 14/07/2005. Como é mesmo próprio dos regulamentos previdenciários, altamente instáveis, essa Instrução, em apenas dois anos de vigência, já foi alterada por nada menos que oito Instruções posteriores, a saber: nº 4 (28/07/2005), nº 5 (03/08/2005), nº 6 (11/08/2005), nº 14 (30/08/2005), nº 20 (11/01/2007), nº 23 (30/04/2007) da Secretaria da Receita Previdenciária, 739 (02/05/2007) e 761 (30/07/2007), estas duas últimas da Receita Federal do Brasil.

Os arts. 143 e 144 dessa Instrução Normativa procuram detalhar os conceitos contidos na determinação legal:

Art. 143. Cessão de mão-de-obra é a colocação à disposição da empresa contratante, em suas dependências ou nas de terceiros, de trabalhadores que realizem serviços contínuos, relacionados ou não com sua atividade fim, quaisquer que sejam a natureza e a forma de contratação, inclusive por meio de trabalho temporário na forma da Lei nº 6.019, de 1974. § 1º Dependências de terceiros são aquelas indicadas pela empresa contratante, que não sejam as suas próprias e que não pertençam à empresa prestadora dos serviços.§ 2º Serviços contínuos são aqueles que constituem necessidade permanente

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da contratante, que se repetem periódica ou sistematicamente, ligados ou não a sua atividade fim, ainda que sua execução seja realizada de forma intermitente ou por diferentes trabalhadores.§ 3º Por colocação à disposição da empresa contratante entende-se a cessão do trabalhador, em caráter não eventual, respeitados os limites do contrato.Art. 144. Empreitada é a execução, contratualmente estabelecida, de tarefa, de obra ou de serviço, por preço ajustado, com ou sem fornecimento de material ou uso de equipamentos, que podem ou não ser utilizados, realizada nas dependências da empresa contratante, nas de terceiros ou nas da empresa contratada, tendo como objeto um resultado pretendido.

Passa-se, então, a analisar cada um dos itens da consulta, à vista desses conceitos e demais disposições do Regulamento.

a) Consultorias

A atividade de consultoria se caracteriza pela transmissão e aplicação de conhecimentos do contratado, para fins determinados pelo contratante. De um modo geral, as consultorias têm caráter pontual, voltadas ao estudo de uma questão específica. Neste sentido, já estaria afastada a obrigatoriedade de retenção, nos termos do art. 143 da Instrução, que fala em “serviços contínuos”. Ademais, a Instrução contém também listas de serviços, em seus arts. 145 e 146, após os quais o art. 147 traz a seguinte e relevante regra de interpretação:

Art. 147. É exaustiva a relação dos serviços sujeitos à retenção, constante dos arts. 145 e 146, conforme disposto no § 2º do art. 219 do RPS. Parágrafo único. A pormenorização das tarefas compreendidas em cada um dos serviços, constantes nos incisos dos arts. 145 e 146, é exemplificativa. (não sublinhado no original)

Os referidos artigos 145 e 146, apesar de extensos, não contém qualquer referência aos serviços de consultoria, em perfeita sintonia com a definição geral do art. 143, limitada aos serviços contínuos.

Desse modo, não se deverá fazer retenção de contribuições previdenciárias no caso de serviços de consultoria, por não estar caracterizada, na forma do regulamento, a cessão de mão de obra.

b) Assinaturas

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As assinaturas, sejam de periódicos impressos (jornais, revistas, etc.), sejam de serviços eletrônicos (informativos de internet, televisão a cabo, etc.) não envolvem, em geral, a prestação de serviços pessoais. O que o contratante deseja é receber o conteúdo, por meio gráfico ou magnético, sem ter contato com qualquer agente ou preposto do contratado. Nesse sentido, o serviço não estaria sujeito à retenção.

Neste ponto, alguma dúvida poderia ser causada pela redação do inciso IX do art. 146 do Regulamento, que tem a seguinte redação:

Art. 146. Estarão sujeitos à retenção, se contratados mediante cessão de mão-de-obra, observado o disposto no art. 176, os serviços de:IX - distribuição, que se constituam em entrega, em locais predeterminados, ainda que em via pública, de bebidas, de alimentos, de discos, de panfletos, de periódicos, de jornais, de revistas ou de amostras, dentre outros produtos, mesmo que distribuídos no mesmo período a vários contratantes; (não sublinhado no original)

Na verdade, como se percebe da restrição contida no caput, a referência à “distribuição de periódicos, de jornais, de revistas” diz respeito à contratação, pela empresa distribuidora ou produtora dos periódicos, de uma outra empresa para fazer a entrega ao destinatário final (assinante) ou ao comerciante. Não se dirige o dispositivo, como poderia parecer numa leitura mais apressada, à contratação do serviço pelo assinante, destinatário final.

Assim, também não está sujeita à retenção a contratação, por esta Casa Legislativa, de assinaturas.

c) Cursos

A hipótese é especificamente tratada pelo Regulamento, nos seguintes dispositivos:

Art. 146. Estarão sujeitos à retenção, se contratados mediante cessão de mão-de-obra, observado o disposto no art. 176, os serviços de:X - treinamento e ensino, assim considerados como o conjunto de serviços envolvidos na transmissão de conhecimentos para a instrução ou para a capacitação de pessoas;Art. 148. A contratante fica dispensada de efetuar a retenção e a contratada de registrar o destaque da retenção na nota fiscal, na fatura ou no recibo, quando:

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III - a contratação envolver somente serviços profissionais relativos ao exercício de profissão regulamentada por legislação federal, ou serviços de treinamento e ensino definidos no inciso X do art. 146, desde que prestados pessoalmente pelos sócios, sem o concurso de empregados ou outros contribuintes individuais. (não sublinhado no original)

Assim, algumas situações devem ser distinguidas, para que se possa responder corretamente à questão.

Em primeiro lugar, a matrícula de servidores da Câmara Municipal, em cursos ou seminários abertos ao público, isto é, em que nem todos os freqüentadores são servidores, não envolve cessão de mão de obra, ainda que o contrato se dê diretamente entre esta Casa Legislativa e a entidade que promove o curso. Neste caso, o curso ou seminário existiria independentemente da participação de servidores da Câmara, cabendo ao prestador de serviços recolher suas contribuições previdenciárias na forma da lei. Não há que se falar, então, nesta hipótese particular, em retenção.

Já na hipótese de um evento “fechado”, isto é, um treinamento contratado exclusivamente para servidores da Câmara Municipal (pouco importando onde se realizarão as aulas), deverá ser feita a retenção, pois prevista expressamente no art. 146-X da Instrução. Quanto à exceção do art. 148-III, caberá à empresa contratada, se for o caso, informar essa condição na fatura, assumindo a responsabilidade pelas informações prestadas, para que deixe de ser feita a retenção.

d) Aquisição de bens

O instituto da retenção é aplicável especificamente à prestação de serviços, que, por sua natureza laboral, são aptos a serem qualificados como fatos geradores de contribuições previdenciárias. Não se aplica, portanto, a retenção, aos contratos de aquisição de bens.

Mesmo na hipótese em que a aquisição de bens envolve algum serviço paralelo (como os casos de manutenção durante a garantia ou treinamento de operadores de um equipamento, por exemplo), só deverá haver retenção se o serviço for cobrado à parte, com fatura em separado, e, por sua natureza, se sujeitar à retenções previstas no Regulamento.

e) Telemarketing

Aqui, é preciso distinguir dois termos que, de um modo geral, têm sido

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utilizados de forma equivocada. O “telemarketing” é a oferta de bens ou serviços por telefone, ou seja, uma forma de propaganda, com a finalidade de conquistar novos consumidores. Em geral, caracteriza-se por uma postura ativa, em que as ligações são geradas da central de serviços para o consumidor. Já o “tele-atendimento” abrange várias atividades, que têm em comum a existência de uma central de atendimento, para receber grande quantidade de chamadas, com finalidades específicas. Enquadram-se no tele-atendimento os serviços de assistência técnica e de atendimento a consumidores, tanto de empresas quanto de concessionárias de serviços públicos. Aqui, ao contrário, as centrais são receptoras de chamadas, adotando postura passiva.

Infelizmente, tem se disseminado o equívoco de chamar todas estas atividades de “telemarketing”, causando certa confusão conceitual.

Neste passo, a Instrução Normativa nº 3 foi bastante precisa, assim dispondo:

Art. 146. Estarão sujeitos à retenção, se contratados mediante cessão de mão-de-obra, observado o disposto no art. 176, os serviços de:XXIV - telefonia ou de telemarketing, que envolvam a operação de centrais ou de aparelhos telefônicos ou de tele-atendimento.

A razão da indagação da ilustrada Inspetoria consulente, certamente, se deve ao fato de esta Casa Legislativa manter serviços de tele-atendimento para a população em geral, como o “disque-idoso”, o “disque-educação”, e outros.

Nestes casos, havendo a cessão da mão-de-obra correspondente (telefonistas ou operadores de tele-atendimento), é inegável o enquadramento nos termos da Instrução Normativa, sendo necessário fazer a retenção.

Por fim, indaga-se na inicial sobre “prestação de serviços nas dependências da CMRJ ou nas de terceiros, com ou sem fornecimento de material/equipamento”. O caráter genérico da indagação não permite que se dê uma resposta precisa, pois seria necessário verificar a natureza de cada um dos serviços, tal como feito nos itens anteriores. Havendo dúvida a respeito de algum serviço específico, deverá ser formulada nova consulta a esta Procuradoria-Geral.

3. Conclusões

De todo o exposto, concluo que a retenção de contribuição previdenciária é devida em alguns dos casos relatados na inicial, e não é devida em outros, tal como especificado no corpo do Parecer.

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É o parecer, submetido à elevada consideração de Vossa Excelência.

Rio de Janeiro, 23 de agosto de 2007.

Sérgio Antônio Ferrari FilhoProcurador da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

Visto. Aprovo o Parecer n° 01/07-SAFF, retro-supra.

Enacaminhe-se à consideração do Exmo. Primeiro Secretário.

Em 24 de agosto de 2007.

Jania Maria de SouzaProcuradora-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

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Décimo-terceiro salário: natureza jurídica, forma de cálculo e tributa-

ção Parecer nº 02/07-SAFF

Ementa: Direito Administrativo. Servidor Público. Décimo-Terceiro Salário. Reiteração e consolidação de entendimentos já manifestados por esta Procuradoria-Geral, relativamente à natureza, época de pagamento, composição, proporcionalização e descontos incidentes. Resposta à Consulta com esclarecimentos sobre as questões apresentadas, ressaltando tratar-se de pronunciamento em tese, sujeito a nova análise quando da sua aplicação a casos específicos.

Senhora Procuradora-Geral

Cuida o presente processo de consulta, formulada pela operosa Diretoria de Pessoal desta Casa Legislativa, a respeito de questões pontuais da parcela remuneratória conhecida como “décimo-terceiro salário”.

1. Histórico

O presente processo teve início com requerimento de servidor, relativo a descontos tributários e previdenciários efetuados no pagamento do seu décimo-terceiro salário, sobre o qual se manifestou esta Procuradoria-Geral às fls. 15-16, através da Informação nº 02/07-SAFF.

Às fls. 18-20, a ilustre Diretora da Divisão de Pagamento de Pessoal apresentou questões, em abstrato, decorrentes da atual forma de processamento das folhas de pagamento relativas ao décimo-terceiro salário.

Submetido o feito ao Exmº Sr. Primeiro Secretário, este determinou a manifestação desta Procuradoria-Geral (fls. 23).

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Passo a opinar.

2. O Objeto da Consulta e os Precedentes nesta Procuradoria-Geral

O tema “décimo-terceiro salário” já foi objeto de vários pronunciamentos desta Procuradoria-Geral, desde a sua instalação, em 1996, dada a diversidade de situações concretas que se apresentam para o órgão de pessoal. Enumere-se, para melhor orientação do leitor, quais foram estes Pareceres: 04/05-CRTS, 05/06-CRTS, 09/96-FACB

1, 14/96-FACB

2, 05/00-FACB

3, 06/97-FNB

4, 10/99-FNB, 14/99-FNB,

01/98-JMS5, 09/03-SAFF e 03/05-SAFF

6.

Já naquela época, diante de uma sucessão de indagações abstratas, o muitíssimo saudoso Procurador Dr. Francisco das Neves Baptista, manifestou, com sua peculiar eloqüência, preocupação com tal procedimento, nos seguintes termos (Parecer nº 10/99-FNB):

A visível dificuldade de este feito chegar a termo decorre, manifestamente, de estar-se tentando, aqui, articular uma doutrina capaz de exaurir todas as hipóteses de exigibilidade ou inexigibilidade do pagamento de 13

o

salário proporcional; e, sendo a casuística, em regra, inesgotável, surge, a cada passo, situação nova — atual, previsível ou, mesmo, imaginária —, não abrangida pelos moldes anteriormente elaborados e que se prossegue tentando enquadrar in abstracto. Conseguintemente, jamais se logra encerrar o debate da matéria.

De fato, as múltiplas combinações possíveis (estimadas, no Parecer nº 10/99-FNB, em pelo menos fatorial de doze) tornam mesmo arriscado que esta Procuradoria-Geral emita pronunciamento abstrato que, depois, venha a servir de parâmetro, abrangendo situações novas, não cogitadas ou sequer imaginadas quando da elaboração do Parecer. Daí também, ser um desperdício de tempo e de energia, imaginar possíveis hipóteses que, afinal, podem acabar jamais ocorrendo.

1 Revista de Direito [da Procuradoria-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro ], v. 1, n.

1, p. 184-189, ago. 1997.2 Revista de Direito, v. 1, n. 1, p. 204-210, ago. 1997.

3 Revista de Direito, v. 4, n. 8, p. 163-166, jul./dez. 2000.

4 Revista de Direito, v.1, n. 2, p. 187-191, dez. 1997.

5 Revista de Direito, v. 2, n. 3, p. 163-178, jan./jun. 1998.

6 Revista de Direito, v. 9, n. 14, p. 113-117, jan./dez. 2005.

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Nada obstante, as indagações contidas às fls. 19-20 são decorrência de dificuldades reais vivenciadas pela Diretoria de Pessoal, ao menos sob o aspecto operacional e, por isso, deve-se tentar respondê-las, como forma de aperfeiçoamento das rotinas administrativas. Faz-se, porém, a advertência de que outras dúvidas, na apreciação de casos concretos, deverão ser submetidas à ilustrada Assessoria Jurídica ou, quando encerrarem matéria nova, a esta Procuradoria-Geral.

Feita tal observação, nota-se que as questões colocadas pela Consulente são as seguintes (fls. 19-20):

1) Que remunerações devem ser proporcionalizadas para cálculo do 13º Salário?

2) Como deve ser feita esta proporcionalização?

3) Como devemos tratar os descontos fiscais e previdenciários sobre o 13º Salário?

4) Que servidores têm direito ao 13º Salário?

5) Que servidores têm direito ao Adiantamento do 13º Salário?

Como se verá a seguir, quase todas estas questões podem ser respondidas com base em pronunciamentos já emitidos por esta Procuradoria-Geral. Nada obstante, é proveitoso reunir as conclusões pertinentes, reiterando-as, para melhor orientação da Administração. É o que se passa a fazer.

3. Apreciação

3.1 “Que remunerações devem ser proporcionalizadas para cálculo do 13º Salário?”

No Parecer nº 09/96-FACB, o ilustre Procurador Dr. Flávio Andrade de Carvalho Britto, num dos primeiros pronunciamentos desta Procuradoria-Geral, traçou a diretriz que veio a ser seguida por este órgão, em Parecer assim ementado:

O mês de dezembro é termo e não condição para a aquisição do direito à gratificação natalina. Assim, por ser direito fracionário, adquirido mês a mês pelo servidor, ao longo do ano, as parcelas por ele percebidas deverão ser consideradas pela média mensal, a 1/12, sensível às variações decorrentes

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das remunerações dos diversos cargos eventualmente ocupados, mas tendo como paradigma de valor calculado, o mês de dezembro, quando é efetivado o pagamento do benefício.

Pouco depois, no Parecer nº 14/96-FACB, esta diretriz geral foi tratada em maior detalhe, quando se questionou sobre quais parcelas remuneratórias deveriam ser levadas em conta no cálculo do décimo-terceiro. Eis a ementa:

Todas as verbas devidas a servidor que guardem caráter de não eventualidade devem ser computadas, em seus duodécimos, para efeito de incidência na gratificação natalina, tomando por referência o vencimento-base vigente no mês de dezembro ou no de seu efetivo dispêndio, em caso de adiantamento ou exoneração.

Assim, a expressão-chave para responder a esta questão é “caráter de não eventualidade”. Todas as verbas que se enquadrem nesse conceito deverão integrar o 13º e, em conseqüência, serão proporcionalizadas, quando não recebidas uniformemente ao longo do ano. Todas as verbas citadas na descrição do procedimento atual (fls. 19) já foram objeto de análise por esta Procuradoria-Geral, como segue:

Do rol de verbas apresentado às fls. 30, pode-se, de pronto, afastar a incidência da diária-prêmio (Resolução de Mesa Diretora nº 1802/91), porque não integrantes do conceito de remuneração, não comportando sua inclusão nem mesmo quando observada a habitualidade, como no regime de direito privado, posto que a Administração Pública está adstrita, por força da própria Constituição Federal, ao princípio da legalidade. Semelhante raciocínio deve ser adotado com relação à Gratificação pela prestação de serviço extraordinário, instituída pela Resolução da Mesa Diretora nº 1306/89, justamente por dispor de “caráter transitório, não gerando a sua percepção qualquer direito à incorporação aos vencimentos ou proventos de aposentadoria, sobre ela não incidindo o cálculo de qualquer vantagem”, consoante estatui, ipsis verbis, seu artigo 2º, ressalvando que assim será, menos por sua literalidade que por sua natureza. Possuem, ainda, caráter de eventualidade a gratificação pela participação em órgão de deliberação coletiva (jeton, conforme estatui o art. 119, VIII da Lei 94/79 c/c Decreto nº 12.346, de 19 de outubro de 1993), assim como o Decreto nº 6.147, de 19 de setembro de 1986, que trata da gratificação pelo trabalho noturno. Por outro lado, os valores pagos referentes às gratificações objeto das Leis nºs 440 e 441 (chamadas às fls. 30 de “risco de vida”), de 10 de outubro de 1983, da Lei nº 1012, de 29 de junho de 1987 (“adicional de periculosidade”), da Lei nº 702 (adicional de insalubridade), de 2

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de janeiro de 1985, bem como a gratificação referente ao exercício da função de encarregado de núcleo (“agente de pessoal”), a que alude o art. 31 do Decreto-Legislativo nº 26/91, devem ser considerados para efeito de cálculo da gratificação natalina. Deverão ser pagos, também, nas devidas proporções, os valores referentes à variação do triênio (art. 126 da Lei nº 94/79) registrada ao longo do ano. Na hipótese de substituição (arts. 32 e ss. c/c art. 119, III da Lei nº 94/79), o duodécimo somente será calculado se esta se der em prazo igual ou superior a 30 dias, nos termos do artigo 33, § 3º da Lei nº 94/79. Óbvio que a não-eventualidade de tais verbas não se confunde com a incorporação de que trata o art. 205 da Lei Orgânica, que, também, por sua natureza, deve ser refletida, proporcionalmente, na gratificação natalina.Quanto às gratificações por encargos especiais, adequando tudo o que foi dito sobre a índole do pagamento da gratificação natalina inserta na Constituição Federal, pode-se afirmar que, em princípio, guardado o caráter de sua não-eventualidade, elas poderão ser contabilizadas para fins de cálculo do valor da gratificação natalina, sendo, também em princípio, irrelevante a disposição contida em alguns comandos, de que o seu pagamento não seria incorporado ao vencimento, ao menos para fins de cálculo do quantum relativo à gratificação natalina. (Parecer nº 14/96-FACB, o sublinhado é do original, o negrito é daqui)Como se disse, o auxílio saúde tem caráter remuneratório e, como tal, integra, necessariamente, o cálculo das férias e 13º salário (Parecer nº 05/06-CRTS, não destacado no original).

Da simples leitura destes precedentes, verifica-se que todas as verbas listadas no item “1” de fls. 19 devem integrar o cálculo do décimo-terceiro salário, na proporção em que foram recebidos ao longo do ano, à exceção da gratificação por substituição eventual, a qual só deverá ser considerada para o cálculo do 13º quando igual ou superior a 30 (trinta) dias.

3.2 “Como deve ser feita esta proporcionalização?”

Na descrição do procedimento atual (fls. 19), esclarece o órgão consulente que calcula a proporcionalidade atribuindo ao servidor 1/12 da parcela correspondente, para cada mês em que tenha recebido a verba por 15 dias ou mais, desprezando-se os períodos iguais ou inferiores a 14 dias, e tomando por base as tabelas de dezembro.

O procedimento está correto, e segue exatamente o que foi externado, há mais de dez anos, pelo então primeiro Procurador-Geral desta Casa, Dr.. Paulo Aquino de

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Oliveira Lima, já nos primeiros dias de funcionamento deste órgão:

Por sua vez o 13º salário é um direito fracionário, adquirido mês a mês pelo servidor, no correr do ano em exercício, portanto, as parcelas por ele percebidas deverão ser consideradas pela média mensal, a 1/12, tendo como paradigma de valor calculado, o mês de dezembro, mês este de pagamento do benefício, considerando-se ainda, como mês integral a fração igual ou superior a 15 dias de serviço (pronunciamento transcrito no Parecer nº 09/96-FACB)

Uma sutileza, porém, deve ser observada: quando, na descrição do procedimento (fls. 19), se diz “cada mês em que tenha recebido determinada verba por 15 dias ou mais”, uma interpretação literal poderia concluir que, no caso de uma verba percebida de 14 de agosto a 16 de setembro, por exemplo, seriam devidos 2/12 avos, por serem dois meses “em que tenha recebido determinada verba por 15 dias ou mais”. Na verdade, o parâmetro de “15 dias ou mais” só deve ser utilizado para a parcela que exceder cada período completo de 30 dias, e não com relação a cada mês civil, individualmente considerado. Neste exemplo (14 de agosto a 16 de setembro), portanto, seria devido apenas 1/12 da parcela correspondente.

3.3 “Como devemos tratar os descontos fiscais e previdenciários sobre o 13º salário?”

As parcelas remuneratórias não mudam sua natureza jurídica pelo fato de serem pagas como décimo-terceiro salário. Assim, salvo a existência de norma específica sobre o 13º salário, na legislação tributária ou previdenciária, o cálculo das incidências fiscais e previdenciárias, no décimo-terceiro, deve se ater rigorosamente à natureza das verbas que estão sendo pagas. Em termos mais práticos: aquelas verbas, que habitualmente constituem base cálculo de imposto ou contribuição, continuam com tal característica quando tomadas como referência para cálculo do quantum do 13º; por outro lado, aquelas verbas que não constituem base de cálculo de imposto ou contribuição (como a gratificação de encargos especiais), também não poderão ser tributadas quando incluídas no décimo-terceiro salário.

O problema concreto que se coloca, neste ponto, parece relacionado ao procedimento atualmente adotado pela Diretoria de Pessoal, e assim descrito: “consideramos o 13º salário como uma remuneração à parte, sobre a qual há incidência tanto de descontos previdenciários quanto fiscais. Em outras palavras, o contracheque do 13º salário tem apenas uma verba de ganho, 13º vencimento” (fls. 19, grifo do original).

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Neste passo, não vislumbro outra alternativa que não seja a adaptação do procedimento (e, provavelmente, dos sistemas informatizados) para que o cálculo das incidências tributárias e previdenciárias, na folha do décimo-terceiro salário, passe a levar em conta a natureza das verbas que compõem o quantum a ser pago.

3.4 “Que servidores têm direito ao 13º Salário?” e “Que servidores têm direito ao Adiantamento do 13º Salário?”

A primeira pergunta não se refere exatamente a quais servidores teriam direito ao 13º, mas às limitações temporais para que se adquira tal direito, como se vê da descrição do procedimento atual (fls. 19):

Consideramos com direito ao 13º salário os servidores que tiveram exercício de pelo menos 01 dia de dezembro. Nenhum servidor exonerado com validade anterior a 01 de dezembro tem direito a 13º salário proporcional; entretanto, servidores exonerados depois de receberem o Adiantamento de 13º Salário, ficam desobrigados de devolvê-lo.

A segunda pergunta diz respeito ao chamado “adiantamento” do 13º salário, seguindo a mesma indagação anterior, isto é, sob o enfoque temporal.

Como as duas questões estão relacionadas, e diante da necessidade de distinguir adequadamente o “13º proporcional” do “adiantamento” (institutos absolutamente distintos, mas na prática freqüentemente confundidos), trataremos conjuntamente destas duas perguntas.

Tem-se aqui duas questões a dirimir. A primeira, diz respeito à existência ou não de um direito ao recebimento proporcional do 13º, quando o exercício não abrange todo o ano. A segunda, diz respeito à existência de um direito ao adiantamento, bem como da obrigatoriedade de restituir aquilo que, eventualmente, tiver sido pago a maior nesse “adiantamento”.

3.4.1 O décimo-terceiro salário no caso de servidores que têm exercício apenas em parte do ano, sem atingir o mês de dezembro

Na primeira manifestação sobre o tema, o brilhante e já citado Parecer nº 09/96-FACB, fixou-se a diretriz geral de que “o mês de dezembro é termo, e não condição para a aquisição do direito à gratificação natalina”. Sucedendo-se, depois, requerimentos de pagamento de “13º proporcional”, por servidores não-efetivos,

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que eram exonerados ao longo do ano, esta Procuradoria-Geral se manifestou especificamente sobre o ponto, no Parecer 006/97-FNB, assim ementado:

Ementa: Indenização de férias de ocupante de cargo em comissão exonerado. Reiteração do entendimento de que a extensão do direito trabalhista a férias (art. 7°, nº XVII, da Constituição da República) aos servidores públicos (art. 39, § 2°, da mesma Constituição) não implica estender-se-lhes, ipso facto, a abrangência das regras impositivas de indenização respectiva, insertas na Consolidação das Leis do Trabalho, dada a radical diferença de natureza entre os vínculos obreiro e funcional. Parecer pela inviabilidade jurídica da pretensão a ressarcimento de férias não gozadas e de 13

o salário proporcional, à míngua de norma expressa de

direito administrativo municipal permissiva desse pagamento.

Este entendimento – absolutamente claro – foi reiterado no Parecer nº 10/99-FNB. Não havendo razão para sua revisão, cumpre apenas reiterar as conclusões alcançadas pelo douto e saudoso Procurador.

Assim, na hipótese de exoneração de servidor ocupante exclusivamente de cargo em comissão, não é devido pagamento de “13º proporcional”. Isto, porém, não pode ser confundido com o tema do “adiantamento”, do qual se tratará a seguir.

Também se pode afirmar correta a primeira parte do procedimento descrito acima (pagamento do décimo-terceiro aos servidores que tenham exercício em apenas um dia do mês de dezembro e não pagamento de décimo-terceiro “proporcional” a quem é exonerado antes do advento desse mesmo mês).

3.4.2 O “adiantamento” do 13º salário

Questão que encerra notáveis dificuldades práticas e jurídicas é a que diz respeito ao chamado “adiantamento” do 13º salário.

Antes de tudo, é preciso compreender sua natureza, como procurei expor no Parecer nº 09/03-SAFF:

Assim, a rigor, o servidor só tem direito subjetivo à integralidade do décimo terceiro salário ao final do ano. Nada obstante, este Município, já há muitos anos, vem pagando uma parcela do décimo terceiro salário antecipadamente aos seus servidores. No âmbito do Poder Executivo, a época de pagamento deste adiantamento varia de ano para ano (nos últimos anos vem sendo pago em julho ou agosto). Já na Câmara Municipal, há regulamentação específica, através da Resolução da Mesa Diretora n° 1266/89, que fixa o

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mês de julho como a época de percepção do adiantamento, correspondente à metade do valor bruto do décimo terceiro salário.Tal “adiantamento”, é bom repetir, é mera liberalidade do Poder Público, que não tem o dever de fazê-lo. (não sublinhado nem destacado no original)

Assim, a rigor, não se pode falar num “direito” ao adiantamento do décimo-terceiro salário. Nesta Casa Legislativa, enquanto vigorar a RMD 1266/88, o adiantamento deverá ser pago a todos os servidores, efetivos e comissionados, visto que a Resolução não faz distinção entre uns e outros.

3.4.2.1 O adiantamento no caso de servidores exonerados antes do advento do mês de dezembro

O questionamento da Diretoria de Pessoal, no entanto, parece ter também enfoque temporal, como se vê da descrição do procedimento atual (fls. 20):

Consideramos com direito ao Adiantamento de 13º Salário os servidores que tiveram exercício de pelo menos 01 dia de junho. Para os servidores exonerados após o recebimento do Adiantamento do 13º Salário e antes de dezembro, é feito o débito dos descontos fiscais e previdenciários sobre o montante recebido.

O procedimento, tal como descrito, está correto. Todos os servidores recebem o adiantamento em julho (mês de competência junho), fazendo-se a compensação, no mês de dezembro, com o valor real a receber. Se, no entanto, o servidor vem a ser exonerado antes do advento do mês de dezembro, já tendo recebido o adiantamento, deverá pagar as incidências fiscais e previdenciárias que só lhe seriam cobradas naquele mês. Este valor deve ser compensado com o que o servidor tiver a receber no mês de sua exoneração, ou, se o saldo for insuficiente, cobrado pela via administrativa ou, se não adimplido, inscrito em dívida ativa.

Ressalte-se, por importante, que o “adiantamento” não se confunde com o “pagamento proporcional”, de caráter indenizatório, que, como já se disse, não tem qualquer suporte legal.

3.4.2.2 O valor a ser adiantado

Embora não tenha sido objeto de específica indagação, este ponto é de fundamental importância. Além da hipótese indagada pela Diretoria de Pessoal e

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tratada acima (servidor exonerado antes de dezembro), o inverso também deverá ser objeto de análise: e o caso do servidor que é nomeado depois de iniciado o ano, mas ainda no primeiro semestre?

A hipótese não é mera divagação. A altíssima rotatividade dos cargos em comissão nesta Câmara Municipal faz estatisticamente provável que, ao chegar o mês de julho (quando é pago o “adiantamento”), boa parte dos servidores comissionados não tenha ainda seis meses de exercício.

Neste caso, há que se recordar o que se disse no Parecer nº 14/99-FNB:

Obviamente a expressão “como adiantamento do 13o salário” é, todavia,

relevante na inteligência do preceito. Se não se cogita de vantagem autonomamente deferida, mas prestada a título de antecipação, participa da natureza do direito antecipado. O servidor que, por qualquer razão — admissão ou retorno ao exercício no curso do semestre, por exemplo —, previsivelmente receberá menos de 12/12 (doze doze avos) ao final do ano, haverá, com o vencimento de julho, somente a metade do que potencialmente lhe será pago em dezembro. Imaginemos um servidor investido no cargo a 1

o de março: com o estipêndio de julho, é curial que

se lhe paguem 5/12 (cinco doze avos) de sua remuneração integral e não metade desta — já que se está adiantando pagamento que, previsivelmente, não excederá 10/12 (dez doze avos) daquela remuneração. Se, porém, o servidor esteve em exercício contínuo desde janeiro, caber-lhe-á, com o vencimento de julho, metade de sua remuneração integral do mesmo mês — eis que, também previsivelmente, deverá caber-lhe, em dezembro, a totalidade dessa remuneração, da qual se deduzirá o adiantamento.

Assim, no cálculo do “adiantamento” do 13º salário, não se deverá simplesmente pagar a todos os servidores metade da remuneração do mês. Como demonstrado no Parecer acima, de maneira absolutamente clara, este pagamento deve levar em conta a expectativa do décimo-terceiro devido em dezembro. Desse modo, se o comissionado teve exercício a partir de março, presume-se que, em dezembro, terá direito a 10/12 da remuneração e, portanto, o “adiantamento” deverá ser de 5/12 desse mesmo valor. Se teve exercício a partir de maio, não poderá ter, em dezembro, mais que 8/12 da remuneração como 13º e, obviamente, seu “adiantamento” não poderá ser superior a 4/12 do estipêndio total, e assim por diante.

Portanto, para ser absolutamente claro, tome-se o exemplo do servidor nomeado e com exercício a partir de 01 de junho. Sua expectativa de cálculo do décimo-terceiro será de, no máximo, 7/12 da remuneração atual. Assim, mesmo reconhecendo-se que

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tem direito ao “adiantamento” (por ter exercício em junho), este deverá ser calculado à razão de metade de 7/12, ou seja, 7/24 (ou 29,17%) da sua remuneração integral do mês.

3.4.3 Os adiantamentos pagos a maior – sugestão de alteração da RMD 1266/88 (reiteração)

Não desconhece esta Procuradoria-Geral a complexidade do tema “adiantamento de 13º” na prática, e os inúmeros transtornos administrativos dele decorrentes. Além das situações descritas no subitem anterior (servidores comissionados exonerados antes de dezembro ou nomeados depois de janeiro), há – e é bem comum – a combinação das duas hipóteses: servidores nomeados depois de janeiro e exonerados antes de dezembro. Assim, a Diretoria de Pessoal acaba tendo diante de si a hercúlea tarefa de um cálculo individualizado do “adiantamento” (e das suas restituições) para centenas de casos diferentes.

Esta complexidade e estes transtornos, porém, decorrem unicamente de uma peculiaridade desta Casa Legislativa, que há quase quatro anos descrevi no Parecer nº 09/03-SAFF:

Tem sido relativamente comuns os casos em que servidores exonerados deixam débitos com a Câmara, em razão do recebimento da remuneração integral do mês da exoneração, ou ainda de férias ou adiantamento do décimo terceiro salário. Tais débitos, na grande maioria dos casos, não são saldados, gerando inscrições na dívida ativa municipal, cuja cobrança é custosa, demorada e muitas vezes inefetiva. Creio que a possibilidade de que os servidores estranhos ao quadro (“60/”) recebam esse benefício, poderia agravar sensivelmente tal situação, aumentando os casos de inscrição em dívida ativa e caracterizando ato de gestão antieconômico, com impacto sobre os princípios da economicidade (art. 70 da Constituição Federal) e da eficiência (art. 37).

Não se tem notícia de que a situação tenha melhorado desde então. Não se pode fechar os olhos para esta realidade: todos os anos, centenas de servidores comissionados recebem o “adiantamento” do décimo-terceiro e, ao serem exonerados, antes do final do ano, deixam um débito que, raramente sendo saldado de forma espontânea, gera um aumento da dívida ativa deste Município. É de amplo conhecimento que boa parte deste débito, mesmo após a cobrança judicial, não é adimplido, significando perdas para o Erário. Ora, se este problema se prolonga há anos, e sua solução não

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depende de alteração de lei, mas apenas de ato regulamentar (Resolução de Mesa Diretora), pode e deve o Administrador procurar meios de minorar este transtorno, atento aos princípios constitucionais da economicidade e da eficiência.

Assim, esta Procuradoria-Geral reitera a sugestão, agora mais enfaticamente, de que o “adiantamento” do 13º salário seja pago apenas aos servidores efetivos (pois é muito provável que tenham exercício no mês de dezembro de cada ano). Se esta solução parecer muito radical, pode também a Mesa Diretora adotar uma solução intermediária, dispondo que o “adiantamento”, para os servidores ocupantes exclusivamente de cargo em comissão (“60/”) fique limitado a um percentual menor que a metade (30% ou 40% do valor bruto, que representaria aproximadamente 50% do valor líquido) de modo que, no caso de uma exoneração antes do mês de dezembro, seja possível compensar os débitos fiscais e previdenciários com o saldo eventualmente devido ao servidor.

4. Conclusões

De todo o exposto, concluo que a Diretoria de Pessoal deverá manter ou adaptar os seus procedimentos, quanto ao “décimo-terceiro” salário, na forma descrita no corpo deste Parecer. Saliento, ainda, a sugestão contida no item 3.4.3, alvitrando seja submetida à n. Mesa Diretora.

É o parecer, submetido à elevada consideração de Vossa Excelência.

Rio de Janeiro, 29 de agosto de 2007.

Sérgio Antônio Ferrari FilhoProcurador da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

Visto. Aprovo o Parecer n° 02/07-SAFF, retro.

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Encaminhe-se à consideração do Exmo. Primeiro Secretário.

Em 30 de agosto de 2007.

Jania Maria de SouzaProcuradora-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

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Acordo – Convênio – Comissão Municipal de Defesa dos Direitos da Pessoa Por-tadora de Deficiência – Comissão Permanente – Competência administrativa – Presidente – Câmara Municipal – Representação legal Parecer nº 03/07 – Jania Maria de Souza .............................................. ...........p. 248

Administração pública – Direito administrativo – Dogmática jurídica – Interesse público – Supremacia – Direitos e garantias fundamentais – Princípio consti-tucional – Ponderação de interesses – Proporcionalidade – Agência reguladora – Poder vinculado – Poder discricionário – Juridicidade – Controle jurisdicio-nal – Segurança jurídica – Boa-fé Um novo direito administrativo para o século XXI. Gustavo Binenbojm ......... p. 45

Administração pública – Direito administrativo – Poder normativo – Ato admi-nistrativo – Interesse público – Irretroatividade das leis – Direito comparado – Regulamento – Segurança jurídica – Boa-fé A tutela da confiança legítima como limite ao exercício do poder normativo da Administração Pública: a proteção das expectativas legítimas dos cida-dãos como limite à retroatividade normativa. Patrícia Ferreira Baptista ........ p. 15

Agência reguladora – Direito administrativo – Administração pública – Dogmática jurídica – Interesse público – Supremacia – Direitos e garantias fundamentais – Princípio constitucional – Ponderação de interesses – Proporcionalidade – Poder vinculado – Poder discricionário – Juridicidade – Controle jurisdicio-nal – Segurança jurídica – Boa-fé Um novo direito administrativo para o século XXI. Gustavo Binenbojm ......... p. 45

Atividade econômica – Transporte de passageiros – Transporte alternativo – Trans-porte intermunicipal – Transporte clandestino – Transporte rodoviário – Ser-viços públicos – Competência – Estados – Municípios – Poder de polícia – Concessão de serviço público – Permissão de serviço público – Regulação – Competição – Livre iniciativa – Irregularidade – Atividade econômica – Au-torização – DETRAN Regulação do transporte alternativo de passageiros de âmbito regional. Mar-cos Juruena Villela Souto ...................................................................................p. 79

Ato administrativo – Direito administrativo – Administração pública – Poder normativo – Interesse público – Irretroatividade das leis – Direito comparado – Regulamento – Segurança jurídica – Boa-fé A tutela da confiança legítima como limite ao exercício do poder normativo da Administração Pública: a proteção das expectativas legítimas dos cida-dãos como limite à retroatividade normativa. Patrícia Ferreira Baptista ........

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290 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 11, n. 16, jan./dez. 2007

p. 15

Autorização – Transporte de passageiros – Transporte alternativo – Transporte intermunicipal – Transporte clandestino – Transporte rodoviário – Serviços públicos – Competência – Estados – Municípios – Poder de polícia – Conces-são de serviço público – Permissão de serviço público – Regulação – Compe-tição – Livre iniciativa – Irregularidade – Atividade econômica – DETRAN Regulação do transporte alternativo de passageiros de âmbito regional. Mar-cos Juruena Villela Souto ...................................................................................p. 79

Baptista, Patrícia Ferreira A tutela da confiança legítima como limite ao exercício do poder normativo da Administração Pública: a proteção das expectativas legítimas dos cidadãos como limite à retroatividade das leis ..................................................... ..........p. 15

Binenbojm, Gustavo Um novo direito administrativo para o século XXI ...........................................p. 45

Boa-fé – Direito administrativo – Administração pública – Dogmática jurídica – Interesse público – Supremacia – Direitos e garantias fundamentais – Princí-pio constitucional – Ponderação de interesses – Proporcionalidade – Agência reguladora – Poder vinculado – Poder discricionário – Juridicidade – Controle jurisdicional – Segurança jurídica Um novo direito administrativo para o século XXI. Gustavo Binenbojm ......... p. 45

Boa-fé – Direito administrativo – Administração pública – Poder normativo – Ato administrativo – Interesse público – Irretroatividade das leis – Direito compa-rado – Regulamento – Segurança jurídica A tutela da confiança legítima como limite ao exercício do poder normativo da Administração Pública: a proteção das expectativas legítimas dos cida-dãos como limite à retroatividade normativa. Patrícia Ferreira Baptista ........ p. 15

Cargo em comissão – Servidor público municipal – Substituição de função – Subs-tituto eventual – Exercício – Período – Trinta dias – Remuneração – Princípio da legalidade – Interpretação restritiva – Caráter excepcional Parecer nº 01/07 – Jania Maria de Souza .............................................. ...........p. 258

Comissão Municipal de Defesa dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência – Comissão Permanente – Acordo – Convênio – Competência administrativa – Presidente – Câmara Municipal – Representação legal

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Parecer nº 03/07 – Jania Maria de Souza .............................................. ...........p. 248

Comissão parlamentar – Princípio da separação dos poderes – Parlamento – Poder Legislativo – Decoro parlamentar – CPI– Regimento Interno – Processo legis-lativo – Democracia – Constituição Federal Valor constitucional e significação democrática dos regimentos parlamenta-res. Derly Barreto e Silva Filho .........................................................................p. 119

Comissão parlamentar de inquérito ver CPI

CPI– Princípio da separação dos poderes – Parlamento – Poder Legislativo – De-coro parlamentar – Comissão parlamentar – Regimento Interno – Processo legislativo – Democracia – Constituição Federal Valor constitucional e significação democrática dos regimentos parlamenta-res. Derly Barreto e Silva Filho .............................................................p. 119

Competência – Transporte de passageiros – Transporte alternativo – Transporte intermunicipal – Transporte clandestino – Transporte rodoviário – Serviços públicos – Competência – Estados – Municípios – Poder de polícia – Conces-são de serviço público – Permissão de serviço público – Regulação – Compe-tição – Livre iniciativa – Irregularidade – Atividade econômica – Autorização – DETRAN Regulação do transporte alternativo de passageiros de âmbito regional. Mar-cos Juruena Villela Souto ...................................................................................p. 79

Competição – Transporte de passageiros – Transporte alternativo – Transporte intermunicipal – Transporte clandestino – Transporte rodoviário – Serviços públicos – Competência – Estados – Municípios – Poder de polícia – Conces-são de serviço público – Permissão de serviço público – Regulação – Livre iniciativa – Irregularidade – Atividade econômica – Autorização – DETRAN Regulação do transporte alternativo de passageiros de âmbito regional. Mar-cos Juruena Villela Souto .......................................................................p. 79

Conselheiro – Tribunal de Contas – CPI – Convite – Comparecimento – Recusa – Impedimento legal – Inexistência – Edital – Concorrência pública – Vício – Depoimento – Função jurisdicional – Prerrogativa – Descaracterização Parecer nº 06/07 – Flávio Andrade de Carvalho Britto .....................................p. 235 Parecer nº 07/07 – Flávio Andrade de Carvalho Britto .....................................p. 240

Conselho de Administração – Empresa pública municipal – Vereador – Licencia-mento – Secretário municipal – Exercício – Impossibilidade

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Parecer nº 07/06 – Flávio Andrade de Carvalho Britto ......................... ...........p. 218

Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente – Fundo Municipal para Atendimento dos Direitos da Criança e do Adolescente – Plano de ação – Omissão – Recursos financeiros – LDO – Fundo especial – Previsão legal – Necessidade – Plano de Aplicação – Poder Executivo – Inércia – Orçamento – Inclusão – Possibilidade Parecer nº 04/06 – Flávio Andrade de Carvalho Britto .....................................p. 187

Constituição Federal – Princípio da separação dos poderes – Parlamento – Poder Legislativo – Decoro parlamentar – Comissão parlamentar – CPI– Regimento Interno – Processo legislativo – Democracia Valor constitucional e significação democrática dos regimentos parlamenta-res. Derly Barreto e Silva Filho .........................................................................p. 119

Contribuição previdenciária – Base de cálculo – Servidor público municipal – Apo-sentadoria – Proventos – Fixação – Remuneração – Cargo efetivo – Incorpo-ração – Caráter permanente – Gratificação de encargos especiais – Caráter provisório – Desconto – Exclusão Parecer nº 04/06 – Claudia Rivolli Thomas de Sá ................................. ...........p. 253

Contribuição previdenciária – Retenção na fonte – Percentagem – Pagamento – Contratante – Tomador de serviço – Prestação de serviço – Prestador de serviço Parecer nº 01/07 – Sérgio Antônio Ferrari Filho ................................... ...........p. 265

Controle jurisdicional – Direito administrativo – Administração pública – Dogmáti-ca jurídica – Interesse público – Supremacia – Direitos e garantias fundamen-tais – Princípio constitucional – Ponderação de interesses – Proporcionalidade – Agência reguladora – Poder vinculado – Poder discricionário – Juridicidade – Segurança jurídica – Boa-fé Um novo direito administrativo para o século XXI. Gustavo Binenbojm ......... p. 45

Convênio – Acordo – Comissão Municipal de Defesa dos Direitos da Pessoa Por-tadora de Deficiência – Comissão Permanente – Competência administrativa – Presidente – Câmara Municipal – Representação legal Parecer nº 03/07 – Jania Maria de Souza .............................................. ...........p. 248

CPI – Convite – Comparecimento – Conselheiro – Tribunal de Contas – Recusa

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– Impedimento legal – Inexistência – Edital – Concorrência pública – Vício – Depoimento – Função jurisdicional – Prerrogativa – Descaracterização Parecer nº 06/07 – Flávio Andrade de Carvalho Britto ......................... ...........p. 235 Parecer nº 07/07 – Flávio Andrade de Carvalho Britto ......................... ...........p. 240

CPI – Inquérito parlamentar – Investigação – Competência – Depoimento – Tes-temunha – Membros – Deliberação – Inquirição – Manifestação – Audiência – Sessão secreta – Possibilidade – Intimação – Comparecimento – Ausência – Ação judicial – Condução coercitiva Parecer nº 04/07 – Flávio Andrade de Carvalho Britto ........................p. 223

CPI – Licitação – Alimento – Merenda escolar – Licitante – Empresa – Subcontra-tação – Terceirização – Caracterização – Irregularidade – Edital – Proibição – Exigência – Irregularidade Parecer nº 06/06 – Sérgio Antônio Ferrari Filho ..............................................p. 163

CPI – Plano Diretor – Solo criado – Terreno – Aproveitamento – Coeficiente – Construção – Excedente – Autorização – Compensação financeira – Paga-mento – Outorga onerosa do direito de construir – Lei complementar mu-nicipal – Vigência – Aplicação da lei – Regulamentação – Poder Executivo – Iniciativa – Inércia – Ação civil pública – Improbidade administrativa Parecer nº 02/07 – Claudia Rivolli Thomas de Sá .............................................p. 151

Décimo terceiro salário – Servidor público municipal – Pagamento – Remuneração – Parcela – Proporcionalidade – Desconto – Base de cálculo – Imposto de renda – Contribuição previdenciária – Adiantamento – Exoneração – Cargo em comissão – Pagamento a maior – Débito Parecer nº 02/07 – Sérgio Antônio Ferrari Filho ...............................................p. 273

Decoro parlamentar – Princípio da separação dos poderes – Parlamento – Poder Legislativo – Comissão parlamentar – CPI– Regimento Interno – Processo legislativo – Democracia – Constituição Federal Valor constitucional e significação democrática dos regimentos parlamenta-res. Derly Barreto e Silva Filho .............................................................. ...........p. 119

Democracia – Princípio da separação dos poderes – Parlamento – Poder Legislati-vo – Decoro parlamentar – Comissão parlamentar – CPI– Regimento Interno – Processo legislativo – Constituição Federal Valor constitucional e significação democrática dos regimentos parlamenta-res. Derly Barreto e Silva Filho .........................................................................

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p. 119

DETRAN – Transporte de passageiros – Transporte alternativo – Transporte inter-municipal – Transporte clandestino – Transporte rodoviário – Serviços públi-cos – Competência – Estados – Municípios – Poder de polícia – Concessão de serviço público – Permissão de serviço público – Regulação – Competição – Livre iniciativa – Irregularidade – Atividade econômica – Autorização Regulação do transporte alternativo de passageiros de âmbito regional. Mar-cos Juruena Villela Souto ...................................................................................p. 79

Direito administrativo – Administração pública – Dogmática jurídica – Interesse público – Supremacia – Direitos e garantias fundamentais – Princípio consti-tucional – Ponderação de interesses – Proporcionalidade – Agência reguladora – Poder vinculado – Poder discricionário – Juridicidade – Controle jurisdicio-nal – Segurança jurídica – Boa-fé Um novo direito administrativo para o século XXI. Gustavo Binenbojm ......... p. 45

Direito administrativo – Administração pública – Poder normativo – Ato admi-nistrativo – Interesse público – Irretroatividade das leis – Direito comparado – Regulamento – Segurança jurídica – Boa-fé A tutela da confiança legítima como limite ao exercício do poder normativo da Administração Pública: a proteção das expectativas legítimas dos cida-dãos como limite à retroatividade normativa. Patrícia Ferreira Baptista ........ p. 15

Direito comparado – Direito administrativo – Administração pública – Poder normativo – Ato administrativo – Interesse público – Irretroatividade das leis – Regulamento – Segurança jurídica – Boa-fé A tutela da confiança legítima como limite ao exercício do poder normativo da Administração Pública: a proteção das expectativas legítimas dos cida-dãos como limite à retroatividade normativa. Patrícia Ferreira Baptista ........ p. 15

Direitos e garantias fundamentais – Direito administrativo – Administração pública – Dogmática jurídica – Interesse público – Supremacia – Princípio constitu-cional – Ponderação de interesses – Proporcionalidade – Agência reguladora – Poder vinculado – Poder discricionário – Juridicidade – Controle jurisdicio-nal – Segurança jurídica – Boa-fé Um novo direito administrativo para o século XXI. Gustavo Binenbojm ......... p. 45

Dogmática jurídica – Direito administrativo – Administração pública – Interesse público – Supremacia – Direitos e garantias fundamentais – Princípio consti-tucional – Ponderação de interesses – Proporcionalidade – Agência reguladora

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– Poder vinculado – Poder discricionário – Juridicidade – Controle jurisdicio-nal – Segurança jurídica – Boa-fé Um novo direito administrativo para o século XXI. Gustavo Binenbojm ......... p. 45

Ementa – Lei municipal – Erro formal – Código tributário – Referência – Redação – Elaboração legislativa – Retificação – Correção – Republicação Parecer nº 08/07 – Flávio Andrade de Carvalho Britto ......................... ...........p. 245

Ensino religioso – Escola pública – Lei municipal – Representação de inconstitu-cionalidade – Declaração de inconstitucionalidade – Lei estadual – Decisão judicial – Constitucionalidade – Aplicação da lei Parecer nº 01/07 – Flávio Andrade de Carvalho Britto ......................... ...........p. 171

Escola pública – Ensino religioso – Lei municipal – Representação de inconstitu-cionalidade – Declaração de inconstitucionalidade – Lei estadual – Decisão judicial – Constitucionalidade – Aplicação da lei Parecer nº 01/07 – Flávio Andrade de Carvalho Britto ......................... ...........p. 171

Estados – Transporte de passageiros – Transporte alternativo – Transporte intermu-nicipal – Transporte clandestino – Transporte rodoviário – Serviços públicos – Competência – Municípios – Poder de polícia – Concessão de serviço públi-co – Permissão de serviço público – Regulação – Competição – Livre iniciati-va – Irregularidade – Atividade econômica – Autorização – DETRAN Regulação do transporte alternativo de passageiros de âmbito regional. Mar-cos Juruena Villela Souto ...................................................................................p. 79

Fidelidade partidária – Vereador – Suplente – TSE – Consulta – Cargo eletivo – Va-cância – Convocação – Partido político – Filiação partidária – Desligamento – Transferência – Vaga – Mandato parlamentar – Perda – Descabimento Parecer nº 04-A/07 – Flávio Andrade de Carvalho Britto .................................p. 231

Fundo Municipal para Atendimento dos Direitos da Criança e do Adolescente – Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente – Plano de ação – Omissão – Recursos financeiros – LDO – Fundo especial – Previsão legal – Necessidade – Plano de Aplicação – Poder Executivo – Inércia – Orça-mento – Inclusão – Possibilidade Parecer nº 04/06 – Flávio Andrade de Carvalho Britto ......................... ...........p. 187

Gratificação de encargos especiais – Caráter provisório – Desconto – Exclusão

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– Servidor público municipal – Contribuição previdenciária – Base de cálculo – Aposentadoria – Proventos – Fixação – Remuneração – Cargo efetivo – In-corporação – Caráter permanente Parecer nº 04/06 – Claudia Rivolli Thomas de Sá ................................. ...........p. 253

Interesse público – Direito administrativo – Administração pública – Dogmática jurídica – Interesse público – Supremacia – Direitos e garantias fundamentais – Princípio constitucional – Ponderação de interesses – Proporcionalidade – Agência reguladora – Poder vinculado – Poder discricionário – Juridicidade – Controle jurisdicional – Segurança jurídica – Boa-fé Um novo direito administrativo para o século XXI. Gustavo Binenbojm ......... p. 45

Interesse público – Direito administrativo – Administração pública – Poder nor-mativo – Ato administrativo – Irretroatividade das leis – Direito comparado – Regulamento – Segurança jurídica – Boa-fé A tutela da confiança legítima como limite ao exercício do poder normativo da Administração Pública: a proteção das expectativas legítimas dos cida-dãos como limite à retroatividade normativa. Patrícia Ferreira Baptista ........ p. 15

Irregularidade – Transporte de passageiros – Transporte alternativo – Transporte intermunicipal – Transporte clandestino – Transporte rodoviário – Serviços públicos – Competência – Estados – Municípios – Poder de polícia – Conces-são de serviço público – Permissão de serviço público – Regulação – Compe-tição – Livre iniciativa – Atividade econômica – Autorização – DETRAN Regulação do transporte alternativo de passageiros de âmbito regional. Mar-cos Juruena Villela Souto ...................................................................................p. 79

Irretroatividade das leis – Direito administrativo – Administração pública – Poder normativo – Ato administrativo – Interesse público – Direito comparado – Re-gulamento – Segurança jurídica – Boa-fé A tutela da confiança legítima como limite ao exercício do poder normativo da Administração Pública: a proteção das expectativas legítimas dos cida-dãos como limite à retroatividade normativa. Patrícia Ferreira Baptista ........ p. 15

Juridicidade – Direito administrativo – Administração pública – Dogmática jurídica – Interesse público – Supremacia – Direitos e garantias fundamentais – Princí-pio constitucional – Ponderação de interesses – Proporcionalidade – Agência reguladora – Poder vinculado – Poder discricionário – Controle jurisdicional – Segurança jurídica – Boa-fé Um novo direito administrativo para o século XXI. Gustavo Binenbojm ......... p. 45

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LDO – Fundo Municipal para Atendimento dos Direitos da Criança e do Adoles-cente – Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente – Plano de ação – Omissão – Recursos financeiros – Fundo especial – Previsão legal – Necessidade – Plano de Aplicação – Poder Executivo – Inércia – Orçamento – Inclusão – Possibilidade Parecer nº 04/06 – Flávio Andrade de Carvalho Britto .....................................p. 187

LDO – Projeto de lei – Apresentação – Competência privativa – Poder Executivo – Prefeito – Apreciação – Emenda – Poder Legislativo – Câmara Municipal – Rejeição integral – Restituição – Impossibilidade – Proposta orçamentária – Injuridicidade – Irregularidade – Exigência formal – Descumprimento – In-fração político-administrativa – Caracterização Parecer nº 05/07 – Flávio Andrade de Carvalho Britto ......................... ...........p. 199

Lei complementar municipal – Promulgação – Projeto urbanístico – PEU – Poder Executivo – Secretário municipal – Descumprimento – Princípio da separação dos poderes – Violação – Prefeito – Câmara Municipal – Competência legisla-tiva – Crime de responsabilidade – Infração político-administrativa Parecer nº 01/07 – Claudia Rivolli Thomas de Sá ................................. ...........p. 177

Lei de diretrizes orçamentárias ver LDO

Lei estadual – Decisão judicial – Constitucionalidade – Aplicação da lei – Ensino religioso – Escola pública – Lei municipal – Representação de inconstitucio-nalidade – Declaração de inconstitucionalidade Parecer nº 01/07 – Flávio Andrade de Carvalho Britto ......................... ...........p. 171

Lei municipal – Ementa – Erro formal – Código tributário – Referência – Redação – Elaboração legislativa – Retificação – Correção – Republicação Parecer nº 08/07 – Flávio Andrade de Carvalho Britto ......................... ...........p. 245

Licença especial – Servidor público municipal – Gozo – Período – Trinta dias – Interrupção – Necessidade de serviço – Direito subjetivo – Perda – Enrique-cimento sem causa – Administração Parecer nº 02/07 – Jania Maria de Souza .............................................. ...........p. 262

Licitação – CPI – Alimento – Merenda escolar – Licitante – Empresa – Subcontra-tação – Terceirização – Caracterização – Irregularidade – Edital – Proibição – Exigência – Irregularidade Parecer nº 06/06 – Sérgio Antônio Ferrari Filho .................................. ...........

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p. 163

Livre iniciativa – Transporte de passageiros – Transporte alternativo – Transporte intermunicipal – Transporte clandestino – Transporte rodoviário – Serviços públicos – Competência – Estados – Municípios – Poder de polícia – Conces-são de serviço público – Permissão de serviço público – Regulação – Compe-tição – Irregularidade – Atividade econômica – Autorização – DETRAN Regulação do transporte alternativo de passageiros de âmbito regional. Mar-cos Juruena Villela Souto ...................................................................................p. 79

Mandato parlamentar – Perda – Descabimento – Vereador – Suplente – TSE – Con-sulta – Cargo eletivo – Vacância – Convocação – Partido político – Filiação partidária – Desligamento – Transferência – Vaga – Fidelidade partidária Parecer nº 04-A/07 – Flávio Andrade de Carvalho Britto ..................... ...........p. 231

Municípios – Transporte de passageiros – Transporte alternativo – Transporte intermunicipal – Transporte clandestino – Transporte rodoviário – Serviços públicos – Competência – Estados – Poder de polícia – Concessão de serviço público – Permissão de serviço público – Regulação – Competição – Livre iniciativa – Irregularidade – Atividade econômica – Autorização – DETRAN Regulação do transporte alternativo de passageiros de âmbito regional. Mar-cos Juruena Villela Souto ...................................................................................p. 79

Outorga onerosa do direito de construir – CPI – Plano Diretor – Solo criado – Ter-reno – Aproveitamento – Coeficiente – Construção – Excedente – Autorização – Compensação financeira – Pagamento – Lei complementar municipal – Vi-gência – Aplicação da lei – Regulamentação – Poder Executivo – Iniciativa – Inércia – Ação civil pública – Improbidade administrativa Parecer nº 02/07 – Claudia Rivolli Thomas de Sá ................................. ...........p. 151

Parlamento – Princípio da separação dos poderes – Poder Legislativo – Decoro parlamentar – Comissão parlamentar – CPI– Regimento Interno – Processo legislativo – Democracia – Constituição Federal Valor constitucional e significação democrática dos regimentos parlamenta-res. Derly Barreto e Silva Filho ..........................................................................p. 119

Permissão de serviço público – Transporte de passageiros – Transporte alternativo – Transporte intermunicipal – Transporte clandestino – Transporte rodoviário – Serviços públicos – Competência – Estados – Municípios – Poder de polícia – Concessão de serviço público – Regulação – Competição – Livre iniciativa – Irregularidade – Atividade econômica – Autorização – DETRAN

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Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 11, n. 16, jan./dez. 2007 299

Regulação do transporte alternativo de passageiros de âmbito regional. Mar-cos Juruena Villela Souto ...................................................................................p. 79

Plano Diretor – CPI – Solo criado – Terreno – Aproveitamento – Coeficiente – Construção – Excedente – Autorização – Compensação financeira – Paga-mento – Outorga onerosa do direito de construir – Lei complementar mu-nicipal – Vigência – Aplicação da lei – Regulamentação – Poder Executivo – Iniciativa – Inércia – Ação civil pública – Improbidade administrativa Parecer nº 02/07 – Claudia Rivolli Thomas de Sá ................................. ...........p. 151

Plano Diretor – Projeto de lei – Votação – Prazo – Dez anos – Revisão – Cinco anos – Aprovação – Obrigatoriedade – Estatuto da Cidade – Descumprimento – Improbidade administrativa Parecer nº 05/06 – Flávio Andrade de Carvalho Britto ......................... ...........p. 209

Poder de polícia – Transporte de passageiros – Transporte alternativo – Transporte intermunicipal – Transporte clandestino – Transporte rodoviário – Serviços públicos – Competência – Estados – Municípios – Concessão de serviço público – Permissão de serviço público – Regulação – Competição – Livre iniciativa – Irregularidade – Atividade econômica – Autorização – DETRAN Regulação do transporte alternativo de passageiros de âmbito regional. Mar-cos Juruena Villela Souto ...................................................................................p. 79

Poder discricionário – Direito administrativo – Administração pública – Dogmática jurídica – Interesse público – Supremacia – Direitos e garantias fundamentais – Princípio constitucional – Ponderação de interesses – Proporcionalidade – Agência reguladora – Poder vinculado – Juridicidade – Controle jurisdicio-nal – Segurança jurídica – Boa-fé Um novo direito administrativo para o século XXI. Gustavo Binenbojm ......... p. 45

Poder Legislativo – Princípio da separação dos poderes – Parlamento – Poder Legislativo – Decoro parlamentar – Comissão parlamentar – CPI– Regimento Interno – Processo legislativo – Democracia – Constituição Federal Valor constitucional e significação democrática dos regimentos parlamenta-res. Derly Barreto e Silva Filho .........................................................................p. 119

Poder normativo – Direito administrativo – Administração pública – Ato admi-nistrativo – Interesse público – Irretroatividade das leis – Direito comparado – Regulamento – Segurança jurídica – Boa-fé A tutela da confiança legítima como limite ao exercício do poder normativo

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da Administração Pública: a proteção das expectativas legítimas dos cida-dãos como limite à retroatividade normativa. Patrícia Ferreira Baptista ........ p. 15

Poder vinculado – Direito administrativo – Administração pública – Dogmática jurídica – Interesse público – Supremacia – Direitos e garantias fundamentais – Princípio constitucional – Ponderação de interesses – Proporcionalidade – Agência reguladora – Poder discricionário – Juridicidade – Controle jurisdi-cional – Segurança jurídica – Boa-fé Um novo direito administrativo para o século XXI. Gustavo Binenbojm ......... p. 45

Ponderação de interesses – Direito administrativo – Administração pública – Dog-mática jurídica – Interesse público – Supremacia – Direitos e garantias funda-mentais – Princípio constitucional – Proporcionalidade – Agência reguladora – Poder vinculado – Poder discricionário – Juridicidade – Controle jurisdicio-nal – Segurança jurídica – Boa-fé Um novo direito administrativo para o século XXI. Gustavo Binenbojm ......... p. 45

Prestação de serviço – Contribuição previdenciária – Retenção na fonte – Percenta-gem – Pagamento – Contratante – Tomador de serviço –Prestador de serviço Parecer nº 01/07 – Sérgio Antônio Ferrari Filho ................................... ...........p. 265

Princípio constitucional – Direito administrativo – Administração pública – Dog-mática jurídica – Interesse público – Supremacia – Direitos e garantias fundamentais – Ponderação de interesses – Proporcionalidade – Agência reguladora – Poder vinculado – Poder discricionário – Juridicidade – Controle jurisdicional – Segurança jurídica – Boa-fé Um novo direito administrativo para o século XXI. Gustavo Binenbojm ......... p. 45

Princípio da separação dos poderes – Parlamento – Poder Legislativo – Decoro parlamentar – Comissão parlamentar – CPI– Regimento Interno – Processo legislativo – Democracia – Constituição Federal Valor constitucional e significação democrática dos regimentos parlamenta-res. Derly Barreto e Silva Filho .........................................................................p. 119

Processo legislativo – Princípio da separação dos poderes – Parlamento – Poder Legislativo – Decoro parlamentar – Comissão parlamentar – CPI– Regimento Interno – Processo legislativo – Democracia – Constituição Federal Valor constitucional e significação democrática dos regimentos parlamenta-res. Derly Barreto e Silva Filho .........................................................................p. 119

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Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 11, n. 16, jan./dez. 2007 301

Projeto de lei – LDO – Apresentação – Competência privativa – Poder Executivo – Prefeito – Apreciação – Emenda – Poder Legislativo – Câmara Municipal – Rejeição integral – Restituição – Impossibilidade – Proposta orçamentária – Injuridicidade – Irregularidade – Exigência formal – Descumprimento – In-fração político-administrativa – Caracterização Parecer nº 05/07 – Flávio Andrade de Carvalho Britto .....................................p. 199

Projeto de lei – Plano Diretor – Votação – Prazo – Dez anos – Revisão – Cinco anos – Aprovação – Obrigatoriedade – Estatuto da Cidade – Descumprimento – Improbidade administrativa Parecer nº 05/06 – Flávio Andrade de Carvalho Britto ......................... ...........p. 209

Projeto urbanístico – PEU – Lei complementar municipal – Promulgação – Poder Executivo – Secretário municipal – Descumprimento – Princípio da separação dos poderes – Violação – Prefeito – Câmara Municipal – Competência legisla-tiva – Crime de responsabilidade – Infração político-administrativa Parecer nº 01/07 – Claudia Rivolli Thomas de Sá ................................. ...........p. 177

Regimento Interno – Princípio da separação dos poderes – Parlamento – Poder Legislativo – Decoro parlamentar – Comissão parlamentar – CPI– Processo legislativo – Democracia – Constituição Federal Valor constitucional e significação democrática dos regimentos parlamenta-res. Derly Barreto e Silva Filho .........................................................................p. 119

Regulação – Transporte de passageiros – Transporte alternativo – Transporte intermunicipal – Transporte clandestino – Transporte rodoviário – Serviços públicos – Competência – Estados – Municípios – Poder de polícia – Conces-são de serviço público – Permissão de serviço público – Competição – Livre iniciativa – Irregularidade – Atividade econômica – Autorização – DETRAN Regulação do transporte alternativo de passageiros de âmbito regional. Mar-cos Juruena Villela Souto ...................................................................................p. 79

Regulamento – Direito administrativo – Administração pública – Poder normativo – Ato administrativo – Interesse público – Irretroatividade das leis – Direito comparado – Segurança jurídica – Boa-fé A tutela da confiança legítima como limite ao exercício do poder normativo da Administração Pública: a proteção das expectativas legítimas dos cida-dãos como limite à retroatividade normativa. Patrícia Ferreira Baptista ........ p. 15

Rejeição integral – LDO – Projeto de lei – Apresentação – Competência privativa – Poder Executivo – Prefeito – Apreciação – Emenda – Poder Legislativo

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302 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 11, n. 16, jan./dez. 2007

– Câmara Municipal – Restituição – Impossibilidade – Proposta orçamentá-ria – Injuridicidade – Irregularidade – Exigência formal – Descumprimento – Infração político-administrativa – Caracterização Parecer nº 05/07 – Flávio Andrade de Carvalho Britto .....................................p. 199

Secretário municipal – Descumprimento – Projeto urbanístico – PEU – Lei com-plementar municipal – Promulgação – Poder Executivo – Princípio da sepa-ração dos poderes – Violação – Prefeito – Câmara Municipal – Competência legislativa – Crime de responsabilidade – Infração político-administrativa Parecer nº 01/07 – Claudia Rivolli Thomas de Sá ................................. ...........p. 177

Secretário municipal – Vereador – Licenciamento – Conselho de Administração – Empresa pública municipal – Exercício – Impossibilidade Parecer nº 07/06 – Flávio Andrade de Carvalho Britto ......................... ...........p. 218

Segurança jurídica – Direito administrativo – Administração pública – Dogmática jurídica – Interesse público – Supremacia – Direitos e garantias fundamentais – Princípio constitucional – Ponderação de interesses – Proporcionalidade – Agência reguladora – Poder vinculado – Poder discricionário – Juridicidade – Controle jurisdicional – Boa-fé Um novo direito administrativo para o século XXI. Gustavo Binenbojm ......... p. 45

Segurança jurídica – Direito administrativo – Administração pública – Poder normativo – Ato administrativo – Interesse público – Irretroatividade das leis – Direito comparado – Regulamento – Boa-fé A tutela da confiança legítima como limite ao exercício do poder normativo da Administração Pública: a proteção das expectativas legítimas dos cida-dãos como limite à retroatividade normativa. Patrícia Ferreira Baptista ........ p. 15

Serviços públicos – Transporte de passageiros – Transporte alternativo – Transpor-te intermunicipal – Transporte clandestino – Transporte rodoviário – Com-petência – Estados – Municípios – Poder de polícia – Concessão de serviço público – Permissão de serviço público – Regulação – Competição – Livre iniciativa – Irregularidade – Atividade econômica – Autorização – DETRAN Regulação do transporte alternativo de passageiros de âmbito regional. Mar-cos Juruena Villela Souto ...................................................................................p. 79

Servidor público municipal – Cargo em comissão – Substituição de função – Subs-tituto eventual – Exercício – Período – Trinta dias – Remuneração – Princípio da legalidade – Interpretação restritiva – Caráter excepcional Parecer nº 01/07 – Jania Maria de Souza .............................................. ...........

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Servidor público municipal – Contribuição previdenciária – Base de cálculo – Apo-sentadoria – Proventos – Fixação – Remuneração – Cargo efetivo – Incorpo-ração – Caráter permanente – Gratificação de encargos especiais – Caráter provisório – Desconto – Exclusão Parecer nº 04/06 – Claudia Rivolli Thomas de Sá .............................................p. 253

Servidor público municipal – Décimo terceiro salário – Pagamento – Remuneração – Parcela – Proporcionalidade – Desconto – Base de cálculo – Imposto de renda – Contribuição previdenciária – Adiantamento – Exoneração – Cargo em comissão – Pagamento a maior – Débito Parecer nº 02/07 – Sérgio Antônio Ferrari Filho ................................... ...........p. 273

Servidor público municipal – Licença especial – Gozo – Período – Trinta dias – Interrupção – Necessidade de serviço – Direito subjetivo – Perda – Enrique-cimento sem causa – Administração Parecer nº 02/07 – Jania Maria de Souza .............................................. ...........p. 262

Sessão secreta – Possibilidade – CPI – Inquérito parlamentar – Investigação – Competência – Depoimento – Testemunha – Membros – Deliberação – In-quirição – Manifestação – Audiência – Intimação – Comparecimento – Ausên-cia – Ação judicial – Condução coercitiva Parecer nº 04/07 – Flávio Andrade de Carvalho Britto ........................ ...........p. 223

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304 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 11, n. 16, jan./dez. 2007