Revista de Estudos Criminais - 01

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Revista de Estudos Criminais Ano 1 - 2001 - NQ 1

Diretores Felipe Cardoso Moreira de Oliveira

Marco Antonio Coutinho Paixao

Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais (Composi~iio)

Presidente Felipe Cardoso Moreira de Oliveira

Vice~Presidente

Jader da Silveira Marques

Secreta rio Geral Daniel Gerber

Tesoureiro Marcelo Machado Bertoluci

Coordenador do Nucleo de Pesquisa Salo de Carvalho

Coordenador de Rela~oes Internacionais: Alexandre Wunderlich

Conselho: Andrei Zenkner Schmidt Fabio Roberto D' A vila

Marcelo Caetano Guazzelli Peru chin Paulo Vinicius Sporleder de Souza

Rodrigo Moraes de Oliveira

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© REVISTA DE ESTUDOS CRIMINAlS Direitos pertcnccntes ao Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais - Porto Alegre - RS

Editada e distribuida em todo 0 territ6rio nacional por: Notadez Inforrnac;ao Ltda. Av. Rubem Berta, 1420 - 93218·350 - Sapucaia do Sui - RS Fone/fax: (051) 451.8500 Internet: http://www.notadez.com.br - E-mail: notadez@notadez. com.br

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodu~ao parcial ou to­tal, sem a citac;ao da fonte.

Os conceitos emitidos em trabalhos assinados sao de responsabili­dade de seus autores. Os originais nao serao c1evolvidos, embora nao publicados. Os artigos sao divulgaclos no idioma original ou tIa­duzidos.

Os ac6rdaos selecionados para esta Revista correspond em, na inte­gra, as c6pias dos originais obtidas na Secretaria do Supremo Trioo­nal Federal e dos demais tribunais.

Distribuida em todo 0 territ6rio nacional.

Editorac;ao e1etr6nica: Notadez InformaC;ao Ltda.

Tiragem: 2.000 exemplares

I REVISTA DE ESTUDOS CRIMINAlS - 2001- Sumarl. 51

sUMAruo

APRESENTA!;AO ............................................................................................................ 7

ENTREVISTA 1. A Esquerda Punitiva: Entrevista com Maria Lucia Karam (Betch

Cleinman) ........................................................................................................ 11

DOUTRINA 1. Apontarnentos Iniciais Acer~a do Garantismo (Sergio Cademartori e

Marcelo Coral Xavier) ...................................................................................... 19 2. Introdus:ao aos Princfpios Gerais do Direito Processual Penal Brasileiro

(Jacinto Nelson de Miranda Coutinho) ............................................................ .26 3. 0 "Crime de Porte de Arma" a Luz da Principiologia Constitucional e do

Contra Ie de Constitucionalidade: Tres Soluyoes it Luz da Henneneutica (Lenio Luiz Streck) ........................................................................................... 52

4. A\=ao Civil Publica Versus Ar;ao Penal Publica (au 0 Devido Processo Legal Versus a Discricionariedade do Titular de Uma A<;ao) (Pedro Krebs) ............................................................................................................... 64

5. luizados Especiais Criminais: a Descumprimento da Transac;ao Penal (Eduardo M. Cavalcanti) .................................................................................. 73

CRIMINOLOGIA 1. Alguns Aspectos das Relac;6es Sociais em Estabelecimentas Penitenciarios

(Luiz Ricardo M. Centuriao) ........................................................................... 87 2. Midia, Crime e Responsabilidade (Betch Cleinman) ......................................... 97

JURISPRUDENCIA COMENTADA 1. Furto - Circunstancia Agravante - Reincidencia

a) Ac6rdiio do TJRS (Amilton Bueno de Carvalho) ........................................ I03 b) Comentario (Solo de Carvalho) ................................................................. 109

2. Furta - Qualificado pelo Concurso - Aumento de Pen a a) Ac6rdiio do TJRS (A milton Bueno de Carvalho) ........................................ 120 b) Comentario (Lenio Luiz Streck) ................................................................. 132

PARECER I. Pedido de Progressao de Regime (Andrei Zenckner Schmidt) ......................... 147

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I REVISTA DE ESTUDOS CRIMINAlS 1 - 2001· Apresentagio

APRESENTA«;:AO

Com grande satisfa,ao a Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais apresenta it comunidade cientifica nacional a Revista de Estudos Crimina is. Publica,ao realizada em can junto com a Notadez Informa,iio, e resultado de mais de dais anos de trabalho. 0 ITEC, fundado no final de 1998 par operadores docentes de atua,ao na esfera criminal, possui como objetivo principal interagir com diversas areas do conhecimento, com intuito de instigar debate acerca da necessidade de constru,ao de novo paradigma nas ciencias penais, cuja base esteja fundada nos prindpios da legalidade, interven,ao minima, humanidade, proporcionalidade e devido processo legal.

o Instiluto Transdisciplinar de Estudos Criminais caminha de maos dadas com as garantias constitucionais de primeira gera,ao oponiveis contra a poder do Estado, com fundamento na tutela das liberdades e direitos individuais legalmente conferidos.

A Revista de Estudos Criminais nasce em substitui,ao ao Informativo do ITEC. Os custos envolvidos na elabora,ao do Informativo eram simi/ares aos do projeto de realiza,ao da Revista, 0 que, somado a qualidade do trabalho apresentado pela Notadez Informa,ao Ltda., levou a diretoria do Instiluto, apoiada por seu Conselho, a definir como prioridade a elabora,ao da Revista em detrimento do Informativo.

o primeiro namero traz, alem da compi/a,ao de diversas Separatas editadas em Informativos ante rio res, a apresenta,ao de textos inedilos.

Desde ja convocamos todos nossos leila res a colaborar com a Revista de Estudos Criminais no sentido de enviar artigos, pesquisas e estudos para posterior publica,ao.

Esperamos que 0 trabalho seja bem ace ito pela comunidade cientifica nacional.

FELIPE CARDOSO MOREIRA DE OLIVEIRA

Presidente do Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais

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Entrevista

1. A Esquerda Punitiva: Entrevista com Maria Lucia Karam (Betch Cleinman) ................... 11

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REVISTA DE ESTUDOS CRIMINAlS 1- 2001· Entrevlsta

A ESQUERDA PUNITIVA: ENTREVISTA COM MARIA LUCIA KARAM

por Betch Cleinman

Alguns vaa ficar chacadas. Outros nao admitirao estarem concernidos. Afinal, a conceito de esquerda punitiva, que a Juiza de Direito aposentada, ex-Jufza Auditora da Justic;a Militar Federal, MARIA LUCIA KARAM desenvolveu em urn artigo na revista Discursos Sediciosos (10 semestre de 1996), revela sernelhanc;as e pontos de contata nas formas de percepc;ao e atuac;ao da esquerda e da direita nas quest6es relativas a criminalidade. Ao damar pelo tim da impunidade, reivindicando a intervenc;ao do sistema penal, essa esquerda s6 vern corroborando as ideias dos movimentos de extrema direita da lei e da ordem. Era preciso lucidez e olhos de lince para perceber no emar:mhado polftico­ideo16gico essa 16gica criminalizante par parte de setores que se pretendem progressistas. A experiencia como defensora publica, juiza de direito, com atuac;oes durante oito anos em varas criminais e cinco em varas de familia, certamente contribuiu para a percepc;no de pniticas e logicas que, aparentemente, distintas, s6 fazem refon;ar sistemas opressores e exc1udentes. MARIA LUCIA KARAM e membra do Instituto BrasHeiro de Ciencias Criminais (IBCCRIM) e da Associar;ao Jufzes para a Democracia. Foi filiada ao Partido dos Trabalhadores CPT) de 1980 ate 1982, quando assumiu a magistratura. Acompreensao desse conceito e fundamental para que se efetive 0 distanciamento entre a "adolescente Esquerda Punitiva" e a "velha megera Direita Penal".

COMO SURGIU 0 CONCE/TO DE ESQUERDA PUNITIVA? COMO VOCE 0 PERCEBEU?

R: A partir do meu distanciamento, da minha posi~ao cotica em rela\ao ao sistema penal, comecei a ver em cima de varias coisas. Inicialmente, e dentro de uma visao que se pode dizer marxista, toda a crftica ao sistema penal partiu de criminologos considerados de esquerda. Eles tentavam compreender e desvendar 0 papel do sistema penal dentro das contradic;oes da sociedade, sua funcionalidade para a manuten~ao da estrutura de urn sistema dominante, sempre com uma visao marxista do capitalismo. A chamada criminologia crftica evoluiu para as posic;oes abolicionistas, que ja nao sao mais marxistas.

VOCE SE REFERE AOS TRABALHOS DO LOUK HULSMAN?

R.: Urn dos abolicionistas ate era originalmente marxista, 0 Thomas Mathiesen. Os outros, nao. Hulsman, Niels Christie, ja tinham uma visno muito mais amp la, mais progressista, no sentido de romper com 0 marxismo classico. A partir dessa analise que desvenda a essencia do sistema penal, ficou muito clara essa opressao ali existente. Na medida em que vivemos em uma sociedade capitalista, ele funciona com conteiido de

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classe, colaborando para a manuten~ao dessa estrutura social. Essa opressao, essa exc1usao do sistema penal, pode tambem funcionar, e funciona muito bern, no socialismo real, e de forma ate mais grave. 0 socialismo real, que vejo como uma contrafa<;ao do socialismo, tambem trouxe exclusao, reproduziu a opressao. Para mim, ficou claro que se tern de caminhar para a aboli<;ao dos sistema penal. E uma posi~ao conseqUente em termos do que me parecia uma visao de esquerda, a supera<;ao do capitalismo e a constru<;ao de uma outra sociedade, que se pode chamar de socialista. Sempre supus que esta fosse uma posi<;ao de esquerda. Mas todo 0 discurso da esquerda nesse campo nao e bern assim. Em prirneiro lugar, ela ainda nao se libertou da pnitica do socialismo real, tendo urn discurso reaciomirio e opressor. A critica da esquerda tradicional baseava-se apenas nos piores princfpios do socialismo real, como 0 dos dois pesos e duas medidas. A critica ao sistema penal so valia, entao, quando eventualmente eram atingidos nossos amigos, ou seja, 0 proletariado. A esquerda se limitava a reclamar de que so 0 ladrao de galinhas ia preso, sem cornpreender muito bern pOT que isso acontecia.

E POR QUE ISSO ACONTECIA?

R: Parece-me muita obvio. A partir do momento em que se desvenda a funcionalidade do sistema penal para a manutenc;ao de uma detenninada estrutura social -no caso, estrutura capitalista - parece obvio que esse sistema flaO pode funcionar contra as classes dominantes. Se isso ocorresse, ele perderia sua funcionalidade. Achar que 0

sistema penal pode funcionar contra as classes dominantes e abandonar a visao de classe, de como funciona 0 capitalismo. E fantasiar que 0 Direito e uma coisa abstrata, que nao tern nada a ver com uma sociedade de classes. A meu ver, isso e contraditorio com uma visao de esquerda. Ela, esquecida das li<;6es de Marx, come~ou a reivindicar uma nova atua~ao do sistema penal contra condutas caracterfsticas das classes dominantes. Os movimentos ferninistas tambem partilharam dessa visao, ao reivindicarem urn rigor penal contra crimes e violencias contra a mulher. Eles tambem esqueceram esse condicionamento de classe que todo Direito tern, especialmente as concretiza~6es do direito penal. Por sua forc;a ideologica ao rotular alguma coisa como crime, 0 direito penal e especialmente funcional para a manutenc;ao de uma dada estrutura social.

o PATRIMONIO E UM BEM lURiDlCO MAIS IMPORTANTE QUE A VIDA?

R.: 0 patrimonio eo bern mais irnportante no capitalismo, mais importante ate que a vida. Ha uma serie de condutas que, atingindo so 0 patrimonio, ou 0 patrimonio e a vida, se tornam mais graves por atingirem 0 patrimonio. Pegando 0 nossa Codigo Penal, ve-se que 0 patrimonio e 0 mais protegido e valorado entre os varios bens jurfdicos considerados oa defini~ao de condutas delituosas. A funcionalidade do sistema penal nao consiste apenas em supervalorizar 0 patrimonio. Ele tambem identifica 0 criminoso como o mal, 0 inimigo. Agindo prioritaria e necessariamente contra pessoas das classes subalternizadas, ele vai identifica-Ias como seus inimigos, os maus. Qualquer figura criminosa serve para isso. 0 estupro praticado por alguem da Baixada e muito mais visfvel do que 0 estupro praticado par alguem das classes dominantes, que vive com mais privacidade. Portanto, os mesmos atos de violencia contra pessoa - estupro, lesao corporal - tern uma divulga<;ao maior quando praticados por pessoas que vivem mais expostas. Quando se mora em uma favela, sua vida e conhecida por todos os vizinhos, pois uma janela esta do Iado da outra. As pessoas estao venda 0 que se passa: Em urn ediffcio da classe media, media alta, ninguem se conhece. As pessoas entram e saem e ninguem se

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conhece. A classe dominante vive mais fechada, sua vida e menos visfvel. Assim, crimes que podem, indistintamente, ser cometidos por qualquer pessoa, quando praticados por membros das classes subalternizadas serao mais visfveis. Daf resultando maior numero de processos, maior numero de condena~6es, maior numero de prisoes. Essa visibilidade contribui, portanto, para a visao de que 0 criminoso vern das classes subaltemizadas, seodo elas as pessoas perigosas.

RECENTEMENTE, EM UMA SEMAN A OCORRERAM VARIOS HOMICiDIOS NO RIO DE JANEIRO. 0 PREFElTO CARIOCA E MAIS DOIS DE ClDADES DA BAlXADA FLUMINENSE VIERAM PEDIR AO GOVERNADOR A PRESENC;A DAS FORC;AS ARMADAS NAS RUAS PARA FAZER 0 PAPEL DE POLiCIA.

R.: As For~as Armadas ja estao nas ruas, sem nenhuma oposi~ao. Muito pelo contnirio, elas esUio cootando com a colabora9ao de uma serie de pessoas ditas progressistas, de ONOs. A Secretaria Nacional Antidrogas (Senad), por exemplo. e urn 6rgao subordinado a Casa MiIitar da Presidencia da Republica. Hoje, quem dita a pol{tica nacional antidrogas sao as For~as Armadas e ninguem esta assustado com isso. Nem com a Colombia aparecendo como a pr6xima Kosovo. Esse apelo as For\as Armadas nem e novidade. Houve aquele ensaio no final de 94 - Opera<;ao Rio -, e oa epoca tampouco a esquerda se manifestou. Lembro-me de que 0 Fernando Gabeira foi 0 uoico que se manifestou contra. Os partidos de esquerda nada falaram. E agora, com a Senad, tambern ninguem acha nada de errado. 0 Prefeito Conde (PFL) chamar as For~as Armadas e normal nesse contexto. 0 esquisito e a esquerda nao achar nada demais.

voct ESCREVEU 0 ART/GO SOBRE A ESQUERDA PUNITIVA EM 96. 0 QUE ACONTECEU DESDE ENTAO?

R.: Sempre me assustou muito essa fantasia de querer usar 0 sistema penal contra as classes dominantes. Mas a esquerda foi avan~ando, nao parou af. Par perder essa perspectiva do socialismo, com a derrocada do socialismo real, todo mundo ficou perdido, sem urn modelo de socialismo. Ha algumas diretrizes, mas nao h<i mais 0 modelo completo, em que a historia ja estava toda tra~ada. A esquerda ficou perdida sem essa perspectiva de futuro. Esse artigo e 0 resultado do meu amadurecimento, do meu distanciamento dessa dita esquerda. Eu continuo me considerando de esquerda. Os outros e que nao sao. Eles tern urn discurso igual aD da dire ita, nao h<i a menor diferen~a. Antes, s6 queriarn criminalizar a conduta das classes dominantes, que 0 sistema penal fosse igualit<irio, algo fmpar na sociedade capitalista, que e toda desigual. A partir da perda da visao de futuro - nao h<i mais socialismo, nao h<i mais revolm;aa -, a esquerda tornou-se eleitoreira. Ao viver a perspectiva de ocupar espa~os de governo, ajusta seu discurso ao que diz a midia, ao que se chama de opinino publica, e que gosto de dizer que nao e publica e sim opiniiio publicada. Nesses uItimos tempos, esse discurso de inseguran~a, de violencia, de criminalidade, tern crescido, adquirindo uma impartfincia nas discuss6es na sociedade ern todos os pafses. Trata~se de urn fenomeno mundial. A esquerda se ajustou a isso, e come~ou a ampliar seu furor punitivo tambem para condutas caracterfsticas das classes subalternizadas. Uma das coisas que rnais me marcararn foi urn debate de que participei, antes de escrever 0 artigo, oa Camara de Vereadores. Ele era patrocinado por partidos de esquerda. Fiquei muito impressionada com 0 discurso de urn lfder da esquerda flurninense sobre a minha visao crftica do direito penal. "Sim, mas 0 que vamos fazer com os funciomirios da Ciimara quando vao buscar seus carros no estacionamento ali no Vietna

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(ele se referia aos Arcos da Lapa) e sao assaltados por meninos de rua?", Fiquei chocada, porque ele definia as meninos de rua como vietcongues. No meu tempo, eramos a favor deles e naG dos americanos.

A perda da visuo critica foi-se aprofundando assim como a incompreensao da estrutura do sistema penal. A esquerda come~ou tambem a exigir puni~ao rigorosa para condulas caracteristicas das classes subalternizadas. Ela come~ou a se preocupar com raubo, violencia nas ruas, drogas. A explicac;ao para a presenc;a de traficantes nas comunidades earentes e a conseqi.iente perda para eles das associac;6es de moradores espelha mais uma falta de imaginac;ao politica. passando a ter 0 mesrna discurso da direita. A perda das associa~oes dos moradores nao se deve aos traficantes, e sim it incapacidade politica da esquerda. Eu me lembro da campanha eleitoral de 94, quando 0

discurso de urn importante lider da esquerda fluminense era igualzinho ao do General Newton Cruz, tambern eandidato. Nao houve uma crftica it Opera~ao Rio (For~as

Armadas oeupanda as ruas), muito pelo contnirio. Todos a achavam razoaveJ, necessaria

VOCE PODERIA EXPLlCAR 0 QUE QUER DIZER "PODEROSOS FANTASMAS DO CRIME ORGANIZADO"?

R.: Crime organizado virou uma linguagem da moda, que cumpre bern 0 papel de assustar. Mas ninguem sabe a que e crime organizado, nao existindo uma defini<;ao para issa. Tenta-se falar de uma estrutura de empresa, de infi1tra~5es no poder, mas na~ se consegue ter uma defini~ao, porque nao existe. Toda a<;ao humana, como 0 crime, que nao seja uma resposta, uma rea~ao instantanea, instintiva a determinada situa~ao, e organizada. A maioria dos crimes e organizada. Qualquer roubo realizado por mais de uma pessoa e urn crime organizado. 0 que e a criminalidade organizada 7 Essa idtSia de todos trabalhando para urn objetivo comum, 0 que da a no<;ao de organiza<;ao, nao existe. Urn rouho a banco exige reuniao, planejamento, combinar a horario, dividir tarefa. Hi uma organiza<;ao. 0 objetivo e a luera, seja ele legal au ilegal. 0 crime organizado e uma novidade que se criou para fortalecer a publicidade do sistema penal. Com a existencia dessas "mafias", passa a ser possfvel vulnerar todo 0 sistema de garantias.

A EXACERBA(:AO DA REIVINDICA(:AO PELA INTERVEN(:AO DO SISTEMA PENAL NAO VEM TENDO POR EFEITO A SUPRESSAO DE GARANTlAS E LlBERDADES INDIVIDUAlS E POBLlCAS?

R.: As garantias penais vern sendo cada vez mais abandonadas, em cima desse discurso de corrup<;ao, de lavagem de dinheiro, crime do "eolarinho branco". Ha cada vez mais leis que tern rompido com garantias minirnas do devido processo legal, conquistas da civiliza<;ao. Cada vez que se rompe com uma garantia, pretendendo atingir urn poderoso, esta-se rornpendo com a dia-a-dia da Justi<;a Criminal, que nao diz respeito a esses processos excepcionais. A clientela do dia-a-dia da Justj~a Criminal, 90% dela sao compostas por pessoas que proeurarn a Defensoria Publica porque nao tern dinheiro para pagar advogado.

QUAL SERIA UMA MANEIRA NAO HlSTERICA E RAClONAL DE COMBATER 0 CRIME?

R.: Nao gosto da palavra comhate porque fortalece a ideia de guerra, abrindo espa~o para as Fon;as Armadas, para a exacerba<;ao da violencia policial. Prefiro controle a combate. Urn dos grandes males do sistema penal e nao funcionar, aIem de propiciar

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dar, opressao, exclusao, nas pessoas sabre quem ele recai. Ele tampouco funciona do lado que diz funcionar, no easo os crimes, as a~5es negativas. A reaC;ao punitiva traz primeiro uma satisfac;ao, extrafda de todo desejo de punic;ao, que todos tern. Quando se localiza urn mau, isso gera urn alfvio em todos que assim nao sao c1assificados. Partindo desse desejo de puni<;ao, tambem passa a id6ia de que prendendo, segregando. afastando alguem do convivio social, as coisas vao estar resolvidas. 0 sistema penal trabalha com a individualiza<;ao das condutas, com a identifica<;3.o de condutas negativas, bern como de seus autores. Excluindo-se essa pessoa, tudo esta resoivido, ficando a sociedade em paz. Com essa individua1iza~ao, corn a identifica<;ao dessa conduta como desviante, 0 sistema penal oculta as raz6es que levaram a esse comportamento. Quando ele eseolhe, seleciona as responsaveis, nao mUda urn milfmetro da realidade. Assim, ninguem analisa as razoes estruturais que levaram, propiciaram, ensejaram, aquele desvio. 0 combate nao e feito contra uma situa<;ao negativa - 0 crime assim entendido -, e siro contra a pessoa do criminoso. A realidade nao mUda, portanto, urn rnilfmetro. Urn dos grandes avan<;os da esquerda punitiva foi a processo do Collor, do Pc. Esse virou urn grande demonio e toda a promiscuidade nas rela<;oes polfticas e econornicas pennaneceu intod.vel. Af e que me assusta, pais nao houve ninguem de esquerda, de quem se poderia esperar uma analise mais profunda da realidade, que tocasse nesse ponto.

COMO A ESQUERDA PUNlTlVA PODERIA TORNAR-SE CRiTICA?

. R: S6.retomando a visa? de futuro. E nae importa daqui a quanta tempo. Nao lrnporta se val perder elei<;ao. E retornar seu papel de vanguarda, embora isso tambem tenha seu lado reacionano, como na ideia de que a partido de vanguarda era quem sabia, em contraponto ao proIetariado ignorante. Mas 0 lado positivo dessa visrio de vanguarda e nao ter medo de Ser minoria, de trazer a novo, de discutir a novo. Quando se acreditava na revolu<;ao, no socialismo, nao havia problema em dizer coisas que poderiam nao agradar de imediato ou que ate poderiam assustar de imediato. Uma boa parte do discurso da esquerda punitiva e porque ele nao pode desagradar a chamada opiniao publica. Quando a esquerda insiste em apresentar solu<;6es imediatas, elas sao as mesmas da direita. Alias, solw;5es imediatas nao sao soluc;6es. Seguran<;a publica e mais ampla que polfcia, que controte das a<;oes criminalizantes. Seguranc;a significa trabalhar com bem-estar, com lima p~ss~vel. garanti~ de vida digna para todos. Vioiencia tambem supera as a<;oes cnmmahzantes. E a tradu<;ao de qualquer atentado 11 sobrevivencia digna das pessoas e de viola'Jao de direitos decorrentes das necessidades fundamentais para a sobrevivencia, como alimento, abrigo, saude, educaC;ao, transporte, trabalho, Iazer, conservac;ao da vida e da integridade fisica. Todas as ar;6es que constituem atentados a esses direitos sao violencia. Polfcia e coisa pequena dentro disso.

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Doutrina

1. Apontamentos Iniciais Acerca do Garantismo (Sergio Cademartori e Marcelo Coral Xavier) ................................................ 19

2. Introduc;ao aos Principios Gerais do Direito Processual Penal Brasileiro a acinto Nelson de Miranda Coutinho) ..................... 26

3. 0 "Crime de Porte de Arman a Luz da Principiologia Constitucional e do Controle de Constitucionalidade: Tres SolU(;6es a Luz da Hermeneutica (Lenio Luiz Streck) .. 52

4. Ac;ao Civil Publica Versus Ac;ao Penal Publica (Ou 0 Devido Processo Legal Versus a Discricionariedade do Titular de Uma Ac;ao) (Pedro Krebs) ........................... 64

5. 0 Descumprimento da Transac,:ao Penal: Juizados Especiais Criminais (Eduardo M. Cavalcanti) .................................................... 73

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APONTAMENTOS INICIAIS ACERCA DO GARANTISMO

l-APRESENTA(:J.O DO TEMA

Sergio Cademartori Doutor em Filosofia do Direito

Professor da UFSC Tutor do PET - Direito

Marcelo Coral Xavier Ex-petiano

Mestrando em Filosofia do Direito pela UFSC

Em ensaio recente, NORBERTO BOBBIO afinna em rela~ao aos direitos do Hornern que, urna vez resolvido 0 problema de sua enuncia,!ao atraves das diversas Deciara,!oes Universais - as quais se seguiram a positiva,!ao daqu~les nas particulares Constitui~oes dos Estados contemporaneos - e, de outro Iado, tendo sido encontrado 0 seu fundamento - a consenso de todos as homens -, 0 problema agora e 0 de garanti-losl _ De fato, de nada servem declara,!oes de direitos fundamentais estabelecidas ao nlvel mais alto dos ordenamentos se a sociedade nao dispuser de mecanismos capazes de tormi-Ios efetivos_ Verifica-se assim uma tremenda defasagem entre a vontade da sociedade, expressa em nivel constitucional, e as pdlicas concretas des diversos Estados, sempre tendentes a avassalar os direitos consagrados no ordenamento, principalmente no que tange aos direitos sociais_

De outro lado, 0 Estado de Direito, pensado por seus fautores como poder politico lirnitado pelo direito, e fruto das lutas sociais dos ultimos seculos, vern desconhecendo Iimites em nome de eventuais maiorias aclarnativas, fruto de consensos fabricados pela manipula~ao rnediatica2

_ Em nome de uma suposta governabilidade medida par padr5es de ardem predominantemente economica, esquecem-se as governantes de voltar os olhos para as necessidades e valores sociais, descuidand6 da func;ao predpua do Estado de Direito, que e a de sua submissao it sociedade, ja que e produto da vontade da mesma_

Torna-se assim a principal desafio do pensamento jurfdico contemporaneo elaborar uma teoria que possa dar conta desses fenomenos - incumprimento dos direitos fundamentais e desvia~ao de poder do Estado real de Direito - a fim de minimizar, senao elirninar, as defasagens entre as modelos postulados e a pratica perversa.

A teoria do Garantismo, que aqui pretendemos resumir em grandes linhas, prop5e­se a essa tarefa como finalidade, entendendo que aquelas defasagens podem ser equacionadas a partir de urn ponto de vista juridico-polftico que possa fornecer subsidies

I BOBBIO, Norberto. A Era dos DireilOs, Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 26. 2 HABERMAS, Jurgen. Mudanra Estrutural da Esfera Publica, Rio de Janeiro: Tempo Brasiieiro, 1984,

especialmente capitulos VI eVIl.

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te6ricos para a pratica dos operadores jurfdicos que tenham a percep9ao da atual situa9ao de injusti9a presente nas pniticas operativas dos modernos Estados de Direito.

De fato, na esteira do pensamento iluminista dos Seculos XVII e XVIII, 0 Garantismo parte da n09ao metaleorica da centralidade da pessoa e de seus direitos fundamentais, bern como da anterioridade 16gica da sociedade em rela9ao ao Estado, que e vista como produto e servo daquela, Elaborado par LUIGI FERRAJOLI e outros juristas, a partir dos ultimos anos da dee ada passada, na ItiHa3

, 0 Garantismo da ainda seus primeiros passos, mas desde ja apresenta-se como lima teoria suficientemente promissora para alimentar as esperan9as daqueles que acreditam que 0 Estado de Direito ainda pode ser eficazmente realizado.

2 - QUESTOES DE TEORIA E METATEORIA DO DIREITO

Podemos separar em tres as questoes rnetateoricas e te6ricas do direito que se entrelu9am formando a ciencia jurfdica assim como entendida por FERRAJOLI em Direito e Raziio - Sistema Garantista (SG) -, a saber: a) estatuto epistemologico da teoria do direito - seu papel nao s6 descritivo, mas tambem nonnativo e prescritivo; b) teoria do direito do Estado de Direito - distin<;:ao entre vigor e validade; c) papel crftico e dimensao normativa e valorativa que esta distin9ao, retroagindo sabre 0 plano metacientffico, assinala no toeante ao direito vigente, a dogmatica jurfdica e a atividade judiciaria.

A teoria do "Garantismo" nao e uma "teoria pura", formal, assumindo 0 seu caniter prescritivo. Contudo, nao se trata apenas de uma simples questao de opyao, mas e sim, devido ao pr6prio objeto de amilise da teoria, QU seja, 0 direito comum aos Estados de Direito que se caracteriza por ser positivo e estar formalrnente e materialmente sujeito ao proprio direito. :E positivo, ou seja, posto por homens, 0 que implica ser ele urn objeto artificial, produzido por outras teorias; e larnbem esta sujeito ao direito, de forma que nao s6 0 seu ser vern incorporado ao ordenamento, mas tambem seu dever~ser. Possui, assim, o SG urn duplo carater normativo: a) sentido meta-jurfdico (somente normativo e preseritivo); b) senlido juridico, que compreende 0 dever-ser no direito (descritivo) e 0

dever-ser do direito (normativo e prescritivo).

As duas caracterfsticas desta conceP9ao jurfdica sao a juspositivismo e 0

constitucionalismo e correspondem aos dais princlpios sobre as quais se funda 0 sa, 0 de mera legalidade, ou convencionalisma (condi9ao necessaria do modelo), e 0 de estrita legalidade (condiyao suficiente). A mera legaJidade e condi9ao necessaria do modelo, pois e 0 pressuposto que garante a certeza dos conteudos das garantias materiais constitucionalmente positivadas. Assim, a crftica ao convencionalismo (a qual afirma que o mesmo serviu como meio legitimador de diversas pniticas criminosas) perde sua razao de ser, dado que 0 convencionalismo no modele proposto e condi930 necessaria, mas nao suficiente, para a garantia e certeza do Direito.

Os princfpios do modelo garantista de Estado e Direito (que TIa analise de FERRAJOLI se confunde com 0 moderno Estado de Direito e sua concep9ao jurfdica) sao passlveis de concretiza-Io, somente atraves da articula9ao do ordenamento ern diversos nfveis normativos e da dissociayao entre vigencia e validade das normas. A n09ao de

) Pode considerar~se 0 marco fundador da Teoria Geml do Garantismo a obra de FERRAJOLl, Diritto e Raggione, de 1989, cuja versao mais atual e a espanhola de 1995. Cf. FERRAJOLi, Luigi. Derecho y Raz6n, Madrid: Trotta, 1995.

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dever-ser do direito presente na obra, identificada pelo conceito de validade (que deixa de ser meramente formal e assume a dimensao substancial), caracterfstica, segundo ele, dos modernos Estados de Direito, possibilita a critica dos conteudos das preseri90es jurfdicas.

A refonnulayao do significado de validade e 0 ponto central da obra de FERRAJOLI, que de existencia (para KELSEN), passa a ser dividido em dais conceitos distintos. 0 de existencia ou vigencia, que respeita a validade fonnal da norma, e 0 de validade propriamente dito, respeitante a validade material. 0 primeiro diz respeito as regras que disciplinam a forma de criayao de outras nonnas (competencia e procedimento). 0 segundo se refere a necessidade de identifica<;:ao, ou nao-contradi9ao, entre os conteudos das nonnas inferiores e superiores. Neste sentido, a validade da norma inferior e condi9ao de eficacia da norma superior, e vice-versa.

Existe, portanto, uma clara distin9ao entre os jufzos sobre a vigencia da norma e os jufzos sobre sua vaHdade. Os primeiros tern duas dimensoes. A prime ira e fatica e diz respeito ao ato normativo que criou a norma, e a segunda e normativa, ou seja, se este fato esta de acordo com a nonna sabre a produ9ao das normas, que disciplina 0 ato normativo. Os segundos apresentam apenas uma dimensao nonnativa, que se caracteriza pelo confronto entre os conteudos da norma produzida, ou seja, seu significado, e aqueles conteudos superiores no que toca a materia sobre a qual a norma dispoe. Ambos, portanto, se configuram como "observancia" das respectivas nonnas sobre a produ9ao. No primeiro caso, trata-se da conformidade ou correspondencia de urn fato ao que estatui uma norma; no segundo, a nao-contradi9ao au a compatibilidade 16gica entre dois significados.

Esta concep9uo de validade e sua distinyao do conceito de vigencia e a condiyuo e a tra90 distintivo desse moderno Estado de Direito caracterizado pela fonna positiva do seu direito e pela disciplina constitucional de seus conteudos. A confusao, portanto, entre as duas n090es, presentes no normativismo (que alarga 0 significado de validade, fazendo­a coincidir com 0 de existencia) e no realismo (que restringe a significado de existencia, fazendo-o coincidir com 0 de validade), gera profundas incompreensoes daquele fen6meno - 0 modemo Estado de Direito.

Em primeiro lugar, impede de dar conta da existencia de normas vigentes, mas invalidas. E 0 que e pior, nao se da conta, por urn lado, do papel normativo do direito e assim do paradigma do Estado de Direito e, por outro, da crftica das leis invalidas e assim do papel pragmatico da jurisprudencia e da ciencia jurfdica. Move-se, assim, do reconhecimento de fato da conformidade da forma do ato nonnativo com a norma de procedimento sabre sua produ<;:ao e assim da existencia jurfdica da norma produzida para a dedu9ao da sua validade.

E isso, justamente, a que a separa9ao entre validade e vigencia vern contestar. 0 paradigma do Estado de Direito, dessa forma, alem de conferir a teoria do direito 0 papeI normativo-prescritivo, imp6e urn papel crttico-normativo a dogmatica juridica, que se exprime atraves dos jufzos de validade das normas, que sao qualitativamente diferentes dos jufzos de existencia, apesar de serem ambos opimlveis e valorativos.

A diferen9a entre ambos (como ja abordado) em ser 0 juizo de vigencia urn jufzo de fato e de direito, enquanto 0 jUlzo de validade e apenas de direito. Esta diferenya torna os jufzos de vigencia urn pressuposto 16gico dos jufzos de validade. Porque a existencia e predicada unicarnente a urn fato - 0 ate nonnativo em sua forma empfrica. Ja os significados das normas, estes nao existem por si mesrnos, no sentido de que nao existe

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urn referente empmco independente de sua forma au enunciagao. Logo, a constitucionalidade sup6e a positividade, assim como a estrita legalidade supGe a mera legalidade.

A teoria da vaHdade por ele exposta nao afirma que as nonnas existentes seriam sempre formalmente validas, mas a implicac;ao inversa, ou seja, que uma nOrma sem vicios formais e existente (vigente) e que a validade material (validade) supce a validade formal (vigencia). A extensao e 0 grau dos vicios que ensejariarn, contuda, uma anulalfao da norma au a sua nao-existencia, au, ainda, a sua nao-recepc;ao pelo sistema, e uma questao de direito positivQ e nao de teoria geral. 0 papel da' teoria geral e somente fazer com que as nonnas denotem as vicios de maneira taxativa e distingui-los _ sanaveis/insanaveis - e com que nao se confundam com a invalidade do seu significado, do seu conteudo.

o que irnporta ressaItar e que 0 jurista pode eritiear internamente 0 ordenamento, dado que podern existir, e de fato existem, normas vi gentes e invalidas. 0 paradigrna nonnativista, earaeterizado peIa insistencia em identificar a validade com a existencia da nonna e que pode ser expJieado pelo dogma da presun~ao de regularidade dos atos do poder - presun,'o de legitimidade do ordenamento - chamado por CARL SCHIMITT de "0 premia supralegal da posse do poder legal", e, dessa fonna, superado. 0 jUrista, ao criticar a direito vigente (e para FERRAJOLI isto e fazer cit~ncia), assume os valores constitucionalmente positivados como parametros do proprio diseurso juridico, independentemente da sua adesao moral. Pode esta servir para uma crftica do ponto de vista externo do ordenamento e rnarea a distin~ao entre ciencia jurfdica e politiea jurfdica. Assim, os jufzos de validade sao cientificos e desempenham urn controle da produ~ao norrnativa, comum ao Estado de Direito.

3 - QUESTOES DE FILOSOFIA POLiTlCA

3.1 Garantismo e Democracia

Toda a teoria do Direito, sobretudo se se declara prescritiva, deve comportar a aceita~ao de uma filosofia pOlitica de sustenta9ao, seu pressuposto axiologico. A escolhida por FERRAJOLI, que aparece inclusive como urn dos tres significados de Garantismo, consiste na identifica9ao do paradigma do Estado de Direito com a dimensao substancial da democracia. 0 Direito aparece assim como urn instrurnento de defesa dos direitos e garantias fundamentais, externos a ele e por ele garantidos.

Para alem das provoca90es que este termo pudesse gerar (democracia substantiva), sua escolha significa, simplesmente, que as normas que disciplinam as direitos e garantias fundamentais e, portanto, toda a produ~ao jurfdica do rnoderno Estado de Direito (seu trar;o fundamental) sao substanciais. Como ja assinalado, a sujei~ao do direito ao direito e gerada da dissocia~ao entre vigencia e vaIidade das normas, sua racionalidade fonnal e material, segundo WEBER. Dessa forma, e a pr6pria possibilidade de existir urn direito substancialmente ilegftimo que e a aparente paradoxal condi~ao sine qua non da democracia substancial.

Os direitos constitucionaimente garantidos operam, entao, nao como fonte de legitimar;ao, mas ao contrario, como fonte de deslegitima~ao do poder. Nenhuma maioria poderia, pertanto" decidir contra eSses direitos, e se 0 fizer, esta-se distanciando do Estado de Direito como definido por FERRAJOLI, au da democracia s'ubstantiva. Existem,

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assim, num Estado de Direito, assuntos sabre os quais nao se pode decidir e assuntos sobre os quais nao se pode deixar de decidir, ainda que por maioria

A constata~ao de que 0 cidadao e 0 unico interprete autorizado de seus interesses nao contradiz 0 papel garantista das regras substanciais de direitos fundamentais. Os direitos fundamentais nao podem ser estabelecidos a revelia de seus titulares e realmente nao sao. Sao estes 0 resultado de urn processo hist6rico. A Constitui~ao, contrato social escrito, onde estao positivados aqueles direitos, e a expressao de uma maioria,qualificada. A sua diferen9a quanto a outros direitos decorre de, sendo neia positivados os direitos fundamentais, eles valem independentemente da vontade da maioria.

o fato de poder-se, democraticamente, detenninar que alguns direitos sejam mais bern satisfeitos pel0 mercado que pelo Estado, ou seja, sem a intervem;ao direta deste, tarnbem nao implica que a regra da maioria possa ser aplicada a todas as decisoes comuns ao Estado. A argumenta9ao e falaciosa na medida em que nao questiona os direitos fundamentais assim como definidos pelo SG, nem sua estrutura suporte - a distin~ao entre estes e os demais direhos subjetivos -, mas os meios de sua satisfa9ao. Assim, 0 Estado, aioda que deixe ao mercado a responsabilidade da satisfa9ao de algum direito fundamental, nao se exime da responsabilidade de sua garantia, que sera mais eficaz quanto maior for a participa9ao dos interessados, ou seja, todos.

3.2 Direitos Fundamentais e Direitos Patrimoniais

Como na base do paradigma do Estado de Direito encontram-se os direitos e garantias fundamentais, estes devem ser devidamente conceituados e definidos, para que sejam individuados e, portanto, nao se confundam com outros. Assim, FERRAIOLI aponta tres caracterfsticas fundamentais que os distinguem dos direitos patrimoniais: a) sua universalidade, base da igualdade en droits; b) sua indisponibilidade, donde decorrem as caracterfsticas da inalienabiJidade, insuprimibilidade e inviolabiIidade; c) sao sempre ex lege e seu exercfcio, ao contrario dos direitos patrimoniais, nao produz efeitos na esfera jurfdica de outrern, pois nao impUca a abstenc;ao por parte de outros.

Urn r6tulo de liberalismo sui generis pade dar a dimensao do enfoque garantista dos direitos fundamentais, ou seja, da separac;ao do binomio liberdade-propriedade para se melhor conjugarem os direitos de cunho liberal-individuais com os direitos e garantias sociais, superando as antinomias geradas ao se considerar 0 direito de propriedade urn direito fundamental. 0 possivel aparecimento de antinornias, agora, deve ser encarado como uma natural oposi9ao entre a exercfcio de dois direitos quaisquer.

Existe ainda uma quarta diferenr;a fundamental entre os direitos fundamentais e os de propriedade: os primeiros sao inclusivos, ao passo que 0 segundo e exclusivo. Nao somente no sentido juridico, mas tambem no sentido social. au seja, nao posso usufruir das garantias que nao podem ser usufrufdas por todos. Assim, os direitos fundamentais se constituem na garantia social da a~ao de todos para assegurar a cada urn seu usufruto, na garantia externa, "extrajuridica" dos direitos fundamentais.

3.3 Primado do Ponto de Vista Externo

E a autonomia cdtica e prescritiva da politica e da moral sobre 0 direito positivo que faz com que este seja urn rneio para realizar as valores metajuridicos, ou seja, externos. Com este princfpio, conectam-se tres teses: a) a refutac;ao do legalismo etico; b)

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a inexistencia de uma obriga<;ao poiftica e moral, senao jurfdica, de obedecer as leis; c) a crftica do conceito de soberania estatal.

A separa<;ao entre direito e moral e a necessidade de se recorrer a princfpios morais que justifiquem as decisoes politico-juridicas nao implicam uma contradi<;ao no SO. Na verdade, esta separa<;ao entre direito e moral quer dizer: num sentido assertivo, que moral e direito nao se confundem; num sentido prescritivo, que a moral nao e suficiente, nem em sede judiciaria. nem em sede executiva, a justificar a intervenc;~o penal - "todos os delitos sao pecados. mas nem todos as pecados sao delitos". 0 deslocamento. em grande parte, da discussao entre moral e direito, para uma discussao entre normas positivas (paradigma do Estado de Direito), nao quer dizer que se tenha acabado corn 0 conflito. Oaf a existencia e o primado do ponto de vista externo.

Assim, a refutac;ao do legalismo etico representa a pr6pria assunc;ao de urn ponto , de vista externo, ou seja, de urn modele heteropoietico do direito. A existencia, contudo,

de val ores que habitam 0 imaginano dos operadores e que, segundo FERRAJOLI, devern estar ancorados na propria Constituic;ao, nao implica uma contradic;ao ao modelo heteropoietico como e entendido no SO. Pais 0 prirnado de urn ponto de vista extra­jurfdico nao impede que 0 Direito assuma detenninados valores. Como virnos, este e a pr6prio tra<;o distintivo do Estado de Direito.

Quanta ao tema da existencia ou nao de uma obrigaC;ao moral de se respeitar 0

Direito, este nos remete a duas perguntas: a) a obrigac;ao de obedecer as leis e universalizavel?; b) 0 Estado de direito pode pretender uma adesao moral para a16m da adesao jurfdica? Segundo FERRAJOLI, a resposta afirmativa a esta duas questoes nos faria cair em urn legalismo etico, ja refutado. Na verdade, a adesao moral do cidadao ao Estado de Direito depende justamente do fato de ele nao a pressupor, e este e a risco que uma dernocracia deve correr para que nao seja negada. Assim, a direito de resistencia esta indissaluvelmente ligado a 16gica pr6pria do Estado de Direito e surge, justamente, quando 0 sistema ordinana de garantias ja nao funciona, quer dizer, torna-se incapaz de responder satisfatoriarnente as demandas pel a realizac;ao dos direitos fundamentais constitucionalmente positivados e outros ainda em fase de latencia.

A terceira tese e a da existencia de lima "soberania limitada" como caracterfstica do Estado de Direito. Esta ideia, contudo, aparece como que marginal na obra de FERRAJOLI e nao se pretende juridica (haja vista que 0 conceito jurfdico de soberania deve abarcar seu carater absoluto) mas poli'tica, au seja, serve para designar uma realidade ainda em construc;ao, qual seja, as mudanc;as no plano da autonornia externa dos Estados Nacionais. Trata-se da insustentabilidade - ja defendida par KELSEN - do dogma da soberania absoluta. Surge assim uma fecunda discussao acerca da relac;ao entre Oarantismo e Federalismo em nfvel mundial. a partir da sujeic;ao de todos as paises a urn direito internacional eficaz e Garantista, com poder de controle externo sobre os poderes internos dos Estados que, em ultima amilise, seriam derivados de urn Estado Mundial.

4 - CONSIDERAC;OES FINAlS

Existe uma estreita conexao entre luta pelo direito e a teoria do direito desenvolvida por FERRAJOLI, que, de certa forma, viola a neutralidade presente no fonnalismo kelseniano. Deriva esta concepc;ao de luta pelo Direito, como modus operandi da propria noC;ao de ciencia jurfdica, da identificac;ao dos direitos fundamentais como base

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do paradigm. do Estado de Direito e da distin<;iio das no~5es de vigencia e validade (tra~o distintivo do Estado de Direito),

A crenc;a na virtude da razao jurfdica e na voca<;ao despotica do pader aparecem como ingredientes de fundo da teoria garantista. Sendo a discricionariedade a essencia do poder, a sua sujei<;ao ao direito e a maior conquista das instituic;oes juridicas liberais. Neste sentido, 0 SO pode ser definido como urna tecnica de dirninuic;ao da discricionariedade e maXInllZac;aO das expectativas garantidas como direitos fundamentais. Assim, as suas forc;a e fraqueza decorrem ambas da luta individual e caletiva pela defesa dos direitos fundamentais.

Contra a fahicia normativista (0 direito vigente e tido como vaJido), em que a cren~a na razao jurfdica ultrapassa 0 ambito do fenomeno jurfdico culminando numa simples contemplaC;ao e quase adoraC;ao do Direito vigente, ou da resignac;ao realista, onde 0 direito eficaz e tido como valido, FERRAJOLI contrapoe uma nova conceps:ao de validade. Contudo, as alternativas possfveis s6 podem ser pensadas a partir de lutas politicas e sociais. Assim, a identificac;ao de normas invalidas, pela nao-garantia dos direitos fundamentais, constitui-se numa luta pela eficacia destes direitos, uma luta por cidadania.

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INTRODU<;AO AOS PRINCiPIOS GERAIS DO DIREITO PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO'

1 -INTRODUr;J.O

Jacinto Nelson de Miranda Coutinho Professor de Direito Processual Penal na UFPR e IBEJ

P6s-graduado em Curitiba e Roma

SUMARlO: 1 - lntroduplo; 2 - Prindpios relativos aos Sistemas Proeessuais: inquisitivo e dispositivo; 3 - Prindpios relativos a JurisdirQo: 3. I Principio da Imparcialidade, 3.2 Principia do JuizNatural: 3.3 Principio da Indeclinabilidade; 3.4 Principio da Inercia da Jurisdiplo; 4 - Prinelpios reiativos a ArGO: 4.1 Princlpio da Oflcialidade; 4.2 Principio da Obrigatoriedade (Legalidade); 5 -Princfpios relativos ao Processo: 5.1 Principio do ContradEtario; 5.2 Prindpio da Verdade Material; 5.3 Principio do Livre Convencimento.

Como e elementar, 0 estudo dos princfpios gerais do Direito Processual Penal e 0

que fornecera a base para uma compreensao sistematica da materia; e at transcende a sua importancia.

A par de se poder pensar ern principio (do latim principium) como senda infcio, origem, causa, genese, aqui e conveniente pensa-Io(s) como motivo conceitual sobre o(s) qual(ais)funda-se a teo ria geral do processo penal, podeodo estar positivado (na lei) ou nao.

Par evidente, falar de motivo conceitual, na aparencia, e nao dizer nada, dada a ausencia de urn referendal semantico perceptivel aos sentidos. Mas quem disse que se necessita, sempre, pelos significantes, dar conta dos significados? Ora, nessa impossibilidade e que se aninha a nossa humanidade, nao raro despeda<;ada pela arrogancia. sempre imaginaria, de ser 0 Homem 0 seohor absoluto do circundante; e sua razao 0 summum do seu ser. Ledo engano! Embora nao seja, definitivamente, 0 caso de desistir-se de seguir lutando para ten tar dar conta, 0 que, se nao servisse para nada, serviria parajustificar 0 motivo de seguir vivendo, 0 que nao e pouco, diga-se en passant.

De qualquer sorte, nao se deve desconhecer que dizer motivo conceitual, aqui, e dizer mito\ ou seja, no minimo abrir urn campo de discussao que nao pode ser olvidado,

I Texto preparado e inicialmente apresentado no ambito da Comissao de Estudos criada pelo Tribunal de Justi<;:a do Estado do Parana e lnstituto Max Planck, de Freiburg, Alemanha, no Proje{Q "A Justi<;:a como garantia dos direitos humanos na America Latina", maio de 1998, a partir das aulas de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da UFPR.

2. Nao se desconhece a importancia fundamental, quanto a no\!ao de mito, de C14UDE LEVI-STRAUSS, mormente a Antropologia; de CARLO GINZBURG, mormente a Hist6ria; de SIGMUND FREUD e JACQUES LACAN. mormente a psicanalise, assim como tan{Qs outros nomes vitais ao conhecimento

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mas que, agora, nao ha como desvendar, na estreiteza desta singela investigar;ao. N~o obstante, sempre se teve presente que ha alga que as palavras nao expressam; nao conseguem dizer, isto e, ha sempre urn antes do primeiro momento,' um lugar que i, mas do qual nada se sabe, a nao ser depois, quando a linguagem comefa a fazer sentido. Nesta parca dimensao, 0 milO pode ser tornado como a palavra que i dita, para dar sentido, no lugar daquilo que, em sendo, nao pode ser dito. Dai a big-bangJ a fisica moderna; Deus a teologia; 0 pai primevo a FREUD e a psicanalise; a Grundnorm a KELSEN e urn mundo dejuristas, 56 para terem-se alguns exemplos.

o importante, sem embargo, e que, seja na ciencia, seja na teoria, no principium estli urn milO; sempre! S6 isso, par sinal, ja seria suficiente para retirnr, dos impertinentes legalistas4, a muleta com a qual querem, em geral, sustentar, a qualquer prer;o, a seguram;a juridica, so possivel no imagimrrio, por elementar 0 Iugar do logro, do engano, como disse LACAN; e ai esta a direitos. Para espar;os malresolvidos nas pessoas - e veja­se que 0 individual esta aqui e, portanto, todos -, 0 melhor continua sendo a terapia, que se ha de preferir as investidas marotas6 que, usando pOT desculpa 0 juridicQ, investem contra uma, algumas, dezenas, milhares, milh5es de pessoas.

Por outro lado - e para nos isso e fundamental -, depois do mito ha que se pensar, necessariamente, no rito. Ja se passa para outra dimensao, de vital importancia, mormente quando em jogo estao questao referentes ao Direito Processual e, em especial, aquele Processual Penal.

o papel dos principios, portanto, transcende a mera analise que se acostumou fazer nas Faculdades, pressupondo-se urn conhecimento que se nao tern, de regra; e a categoria acaba solta, desgarrada, corn uma caracterfstica assaz interessante: os operadores do direito sabem da sua importancia, mas, nao raro, nao tern preciso 0 seu sentido. 0 que dificulta sobremaneira 0 manejo. 0 problema maior, neste passo, e seu efeito alienante, altamente perigoso quando em jogo estiio valores fundamentais como a vida, s6 para ter­se urn exemplo. Por conta disso e que se mostra feliz a assertiva lanc;ada por JORGE DE FIGUEIREDO DIAS: "Sao estes 'princfpios gerais do processo penal' que dao sentido a multidao das normas, orientar;ao ao legislador e pennitem a dogmatica nao apenas 'explicar', mas verdadeiramente compreender os problanas do direito processual e caminhar com seguranr;a ao encontro da sua solur;ao"7.

humano. Sem embargo, para 0 Direi{Q, qui\!a 0 nome imprescindfvel, nesta materia, seja 0 de PIERRE LEGENDRE. principalmente nas Lecciones IV: el inestimable objeto de la transmisi6n - estudio sobre el principio genealagico en Occidente, Trad. de Isabel Vericat Nunez. Mexico: Siglo Veintiuno, 1996, em especial pp. 100 e S5. _

3 Delineado magistralmente par AGOSTINHO RAMALHO MARQUES NETO no Curso de Extensao Universitaria realizado na Faculdade de Direito da UFPR, em Curitiba, entre 21 e 25 de setembro de 1998, sob o titulo "Etica e lei: uma leitura da Antigona de S6foc1es".

4 ALFREDO AUGUSTO BECKER, com a geniaJidade que Ihe era peculiar, deixou para os menos avisados a li\!aO de BARTOLO DE SASSOFERRATO (1313-1357), que, segundo diz, tetia ensinado a TULLI~ ASCARELLI, que teria ensinado a RUBENS GOMES DE SOUZA e este a ele: "I meri leggisti sono pun asini". (Carnaval tribuUirio, Sao Paulo: Saraiva, 1989).

~ LACAN, Jacques. Uvro 20: mais, ainda, 2" ed., versao brasileira de M. D. MAGNO, Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p. to: " ... lembrarei ao jurista que, no fundo, 0 direito fala do que you Ihes falar - 0 gozo. ( ... ) 0 gozo e aquilo que nao serve para nada. (p. 11)".

6 Poder-se-ia chamar assim atos que, nao poucas vezes, sao verdadeiros genocfdios? 7, DlAS, Jorge de Figueiredo. Direito processual penal, Coimbra : Coimbra, 1974, p. 113.

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Assim: para conhecer-se aqueles tidos como fundamentais f: _ I •

comeryar anahsando as princfpios referentes a organiza("30 dos sl'stema's az se ne~essano seguida I' d y processuats e em ae-ao J'u'r' adq,u: es tl as como bases estruturais da trilogia do Direito Processual P~nal' y , IS H;ao e processo. .

2 ;;IS~~~;g~os RELATlVOS AOS SISTEMAS PROCESSUAIS: INQUISITlVO E

S' t 0 estudo dloS princfpios inquisitivo e dispositivo nos remete de plano a nol"'3.o de IS ema pracessua . y

Por elementar, os diversos ramos do D'·t d ' ideia basica de sistema: conjunto d t uel ~ po em ser organ~zados a partir de Uffia

~~~~a!o:, que fonnam urn todo pret:ns::~~t~Oo~;:~~so, e:s~i~:d~o a Puo~a u:t::~~~~~

estudo ~osim, pat ra a devida co~preensa.o do Direito Processual Penal e fundamental 0 s SIS emas processuals quais S . . ,. I •

respectivamente, pelos referidos Pri~cfpios inq~~~iv~:q~il:~:::t~vo~ acusat6rio, regidos,

Destarte a di ferenciac;a d t d' , princfplOS unifi~adores, detenni~ad: ~eloo~~i~::~~:sg~;~~e~:~i:o~:z-~e atraves de tais

~~~!~r !n:~~~:effOen~e ou~r~s, a reco~stituic;ao de urn fato preterito,· 0 ~:i~:, o:;~~~~~~ identifica 0 principio ~n~~:~~::" a gestao da prova, na forma pel a qual ela e realizada,

Com efeito pode-se dizer que . . .. I •

~:q~:~~~j'u:;~~~:o ::!~c~~~~:ac~:~~i~t:;:e~naq~~~~~~~a;:;i~; p~~~ :~n~i~~ !nve~t!ga'fao e tido como 0 detenter ~a verdade ';:~~ ~~~ ~aacq~:~~o e ~edro obJeto de mquIsldor. ' evera ar COntas ao

esta n~ ~::::os~~t~~v:~ c~~~~~;i~:i~:n:~~!~:~:t:~ ~:;::::a~~ ~~~ui:~6rio, tm verd;dr

;e~i;~~!I:%r~~~I~ej~i:e~~~:~:~~i:ef~~~ ~u:~alvantagte~ ~aparent~) de ~:: ~a~~=t~r~ t t d p amen e mlormar-se sobre a verdade d d:~~~ -se~ todo~ ?S ~a~tos penaI~ente relevantes, mesmo que nao contidos na acusaC;ao ~s refere FOU~~~~* umco e <:mn!potente ~o ~roces~o em qualquer das suas fases'B. Com~

, com razao, ele constltUla, sozmho e com pleno d com a qual investia 0 aeusado'9." IU ,po er, uma verdade

uma ve~~~~s~.~~ ~CUS~6rio, 0 process? continua sendo urn instrumento de descoberta de artes 0 .. 1~ ~nca. ntretanto, c~nslderando que a gestiio da prova esta nas maos das

p , JUlz dlra, com base excluslvamente nessas provas 0 direito I' d easo concreto (0 'I h ,a ser ap lca 0 no , I ~ . que os mg eses c amam de judge made law) Alias .. i 109 es, asslm, dentro do common law nasce c ~..' 0 proeesso pena

diverse daquele antes existente. Na ess~ncia, 0 c~:r~d~t~ri~u~e;::~~;p:~c~~:~ e~:at~~~:t~

• 9 DIAS, Jorge de ~igueiredo. Direito, .. Gp. cit., p. 247.

FOUCAULT, Michel Vigiar . 6" d d .. 10 C.OUTINHO, Jacint~ Nelso: ~~~iran~a" ~a . L171~ M. Pon~eyassalo, Petropolis: Vozes, 1988, p. 36. Semmurio nacional sobre 0 USa alt'rnat' d' dP'ap'

e RO. novo JUIZ no processo penal, in Direito alternativo·

CORD lVO 0 lrelto, 10 de Janeiro· Anv' /93' . ERO, Franco. Guida alIa procedura penale Torino' Ut t t986 , 3 ,Jun ,p. 38. Conferir, ainda,

, . e, ,pp.2ess,

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em posic;ao passiva, sempre lange da colheita dn prova. 0 processo, des tarte, surge como uma disputa entre as partes que, em local publico (inClusive pra~as), argumentavam perante 0 juri, 0 qual, enquanto sociedade, dizia a verdade, vere dictum. E elementar que urn processo ca1cado em tal base estruturasse uma cullura processual mais arredia a manipula~5es, mormente porque 0 reu, antes de ser urn acusado, e urn cidadao e, portanto, senhor de direitos inafastaveis e respeitados. Por isto, 'incentivado peia ideologia liberal que se desprende ja da Magna Charta Libertatum de Joao-sem-Terra (1215) e acentuado sobretudo pelo Bill of Rights (1689) e pelo Act of Settlement (1701), ele ganha 0 seu maior e vivaz fiorescirnento, a ponto de ainda hoje se manter af essencialmente irnodificado'". A par de a gestao da prova nao estar nas maos dos jufzes, mas ser canfiada as partes - aqui existentes na sua concepc;ao mais radical -, outras caracteristicas dao ao sistema acusat6rio uma visao distinta daquele inquisitorial. Deste modo, com BARREIROSI2

, e passfvel referir que 0 6rgao juigador e uma Assembleia ou jurados populares (Juri); que ha igualdade das partes e 0 juiz (estatal) e arbitro, sem iniciac;ao de investigac;ao; que a acusac;ao nos delitos publicos e desencadeada par aC;ao popular, ao passo que nos delitos privados a atribuic;ao e do of en dido, mas nunca e publica; que 0 processo e, par excell~ncia e obviamente, oral, publico e contraditorio; que a prova e avaliada dentro da livre convicC;ao; que a sentenc;a passa em julgado e, por fim, que a liberdade do acusado e a regra, antes da condenac;5.o, ate para poder dar conta da prova a ser produzida"13.

Finaimente, diante da breve analise dos sistemas processuais e dos princfpios que os estruturarn, pode-se concluir que 0 sistema processual penal brasileiro e, oa essencia, inquisit6rio, porque regido pelo prindpio inquisitivo, ja que a gestiio da prova esta, prirnordialmente, nas maos do juiz, 0 que e imprescindfvel para a compreensao do Direito Processual Penal vigente no Brasil. No entanto, como e primario, nao ha mais sistema processuaJ pura, razao pela qual se tern, todos, como sistemas mistos. Nao obstante, nao e preciso grande esforc;o para entender que nao ha - e nem pode haver - urn princfpio misto, o que, por evidente, desfigura 0 dito sistema. Assim, para entendewlo, faz-se mister observar 0 fato de que ser misto significa ser, na essencfa, inquisitorio ou acusat6rio, recebendo a referida adjetiva~ao por conta dos elementos (todos secundarios), que de urn sistema sao emprestados ao outro. E 0 caso, por exemplo, de 0 processo comportar a existencia de partes. 0 que para muitos, entre n6s, faz 0 sistema tornar-se acusat6rio. No entanto, 0 argumento nao e feliz, 0 que se percebe por uma breve avaliaC;ao hist6rica: qui~a 0 maior monumento inquisit6rio fora da Igreja tenha sido as Ordonnance Criminelle (1670), de Lufs XIV, em Fran'!a; mas mantinha urn processo que comportava partes.

3 - PRINC/PlOS RELATlVOS A JURISDIC;Ao

Primeiramente, faz-se mister estudar os principios que dizem com a jurisdi9QO, tomada no sentido chiovendiano, a qual e premissa 16gica ao exercicio da ac;ao.

E importante frisar, para nao deixar duvida, que diz ela, na essencia, com 0 poder estatal, no caso, de dizer 0 dire ito: dicere ius; iuris dictio. Diz-se 0 direHo acertando-se os casos penais de forma definitiva, isto e, na medida daquilo que the e levado pelo autor: therna decidendum. Faz-se uma oP9iio, de regra condenando-se ou absolvendo-se, tudo de modo a que a decisao ganhe estabilidade, dada a qualidade de imutabilidade que a alcanc;a

11 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direilo ... Op. cit., p. 66. 12 BARREIROS, Jose Antonio. Processo Penal, Coimbra : Almedina, 1981, p. 12. 13 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. 0 papel... Op. cit., p, 40.

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quando ocorre a preclusao das vias irnpugnativas, em face do transcurso do prazo recursal, o que e tipico da coisa julgada (res judicata) e nota caracteristica da fun~ao jurisdicional processual.

Nao e demais lembrar, tambem, em tempos de neoliberalismo e Estado minima (aos quais e preciso resistir corn tedas as foryas e uma racionalidade que nao se deixe enganar pelo cambia epistemol6gico fundado por HAYEK e calcado no e/icientismo das ar;iJes), que a jurisdir;iio, a par de ser urn poder - e como tal deve sec estudado com proficiencia -, e uma garantia constitucional do cidadiio, da qual naD se pode abrir mao. As criticas, neste raia, por evidente que sao bem-vindas, porque se h:i de pensar, sernpre, em urn aprimorarnento do poder e dos 6rgiios que 0 exercem. Havedio de ser, portanto, construtivas. Nao e, porem, 0 que se tern visto; e com freqUencia. Incautos e insipientes lanc;am-se na aventura eficientista e minirnalista, de cariz eminentemente economicista, donde fazem urn ataque desarrazoado a jurisdirdo, em geral buscando suprimi-Ia, em largos espaltos, quando nao os mais importantes para, quem sabe, reservarem-Ihe as questoes menores. A hip6tese e absurda. Em definitivo, nito hd dernocracia, neste pais, sem a regra do art. 5°, XXXV, da CF: "A lei nao excluini da aprecialtao do Poder ludiciario lesao ou amealta a direito".

3.1 Principio da Irnparcialidade

Tal materia analisamos em 0 papel do novo juiz no processo penal, trabalho originariamente preparado e em parte apresentado no Semimirio Nacional sobre Uso Alternativo do Direito, evento comemorativo do sesquicentemirio do Instituto dos Advogados Brasileiros, Rio de Janeiro, 7 a 9 de junho de 1993, a qual aqui se adota, em vista da sua singularidade:

"Problema de essencia que se enfrenta no ambito do direito e 0 que se refere a neutralidade e imparcialidade do juiz. Para que se possa analisar convenientemente esta questao, faz-se necessario buscar elementos basilares de crftica no arsenal te6rico da epistemologia.

Durante determinado perfodo da historia do pensamento, acreditou-se que era possivel ao Hornem, enquanto sujeito cognoscente, anular-se completamente nas relac;oes de conhecimento. Com isto, procurava-se obter urn tipo de saber que nao estivesse eivado de qualquer imperfeic;ao humana. Daf 0

metodo perfeito para a consecuc;ao deste desiderato, proposto pelo ernpirismo. Para este, '0 metodo consiste em urn conjunto de procedimentos que por si mesmos garantem a cientificidade das teorias elaboradas sobre 0 real. Como 0

sujeito se limitaria a captar 0 objeto, essa captaltao seria tanto mais eficaz e neutra quanta mais preciso e rigoroso fosse a metodo utilizado >l4. Assim, a elaboratrao cientifica se limitaria ao cumprimento rigoroso de certas tc;~cnicas preestabelecidas, que conteriam 0 poder quase miraculoso de conferir cientificidade aos conhecirnentos elaborados atraves del as.

A busca desta neutralidade do sujeito tinha alguns mati vas detemtinantes: primeiro, a crenc;a em uma razao que tivesse validade universal, servindo de paradigma para todos (crent;a esta que, de certa forma, seguiu todD 0

14 MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. lmrodu(;iio ao estudo do direito: conceilO. Qbjeto e metoda, Rio de Janeiro: Forense, 1990, p. 49.

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pensamento da hist6ria moderna no Ocidente, desde 0 discurso da Igreja - por influencias platonicas -, passando pelo pensamento de DESCARTES, BACON, KANT, ate chegar em AUGUSTO COMTE); segundo, a necessidade de legitimar a discurso do Estado rnoderno nascente, que vinha falar em nome de toda a natrao, uma vez que os sujeitos da hist6ria passaram a ser 'iguais' e nao era mais possivel sustentar os privilegios do clero e da nobreza: .0 Estado agora e de todos, e, final mente; terceiro, a urgencia ern ocultar que os mteresses do Estado, ao contrario do que se acreditava, eram de classes; e nao do povo como urn todo ls •

T ais necessidades e crenc;as nao apenas fazem estrada na instancia da hist6ria moderna, como acompanham todo 0 discurso cientffico e filos6fico da epoca e, de conseqiiencia, 0 juridico.

Msim, por mais que muitos soubessem que geralmente se tratava de uma farsa - nao obstante a importancia hist6rica do seu discurso e ate alguns avantros materiais -, passaram os juristas e jusfil6sofos a pensar ern tennos de igualdade jurfdica: todos sao iguais perante a lei. E 0 Estado, enquanto pertencente a todos (mas ao mesrno tempo sem pertence~ ~ ~inguem), ~everia assegurar tal igualdade. Isto se reflete no discurso dos Clvlhstas, penahstas e, ate mesmo, no incipiente desenvolvimento do direito processual que cornec;ava a ganhar foros de autonomia em reIac;ao ao direito material.

Exemplo que reffete tal pensarnento e a visao que se comec;a a ter sabre a aC;ao e 0 processo. A atrao nao e mais urn direito material violado que se poe e~ movimento, de cunha marcadarnente individualista; e 0 processo nao e mms sin6nimo de meros ritos. Passa-se a falar em urn 'interesse publico' na resolutrao dos conflitos. 0 Estado preocupa-se com a manutenc;ao da igualdade e 0 papel do juiz passa a ser mais efetivo na relac;ao processual, reforc;ando, com isto, aparentemente, a ideia de BULGARO do iudicium accipitur actus as minus trium personarum: actoris intendentis, rei inlentionem evitantis, iudicis in medio cognoscentis, OU, na formula sintetica antes referida, iudicium est actus trium personarum: iudicis, actoris et rei, mas agora com outra conotac;ao em decorrencia das mudanc;as do discurso no desenvolver historico.

CoroIario desta concepc;ao, que chega ate os dias atuais, e 0 de que 0 juiz constitui-se urn 6rgao super et interpartes ou, em outra acepltao, super omnia, como supracitado.

Sabe-se que, com esta visao, 0 que se pretende e a preservac;ao da ideia do juiz como urn 6rgao neutro e imparcial, que par nao ter interesse direto no caso, tutelaria a igualdade das partes no processo. Com isto, estar-se-ia buscando a manutenltao do seu escopo ultimo: a pacificac;ao dos conflitos de interesses e a justic;aI6

Cabe indagar, entretanto, ate que ponto essa neutralidade e imparciaJidade sao reais? Qual 0 interesse em manter vivas, como estao, essas categorias?

IS CHAUf, Marilena de Souza. 0 que e ideologia, 34" ed., Sao Paulo: Brasiliense, 1991, pp. 100-1. 16 DINAMARCO, Ciindido Rungel. A inslrumenlalidade do processo, Sao Paulo: RT, 1987, pp. 220 e ss.

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Ha quem afirme que 0 Judiciario s6 existe porque e imparcial e sujeito a lei e que a justic;:a consiste em urn metoda de decis6es imparciais. Cumpre salientar, entretanto, que, nao obstante a possibilidade de se vislumbrar certa importancia neste tipo de afinna~ao, principalmente no plano de uma dogmatica processua] em que a atividade do Estado 6 substitutiva, faz-se necessaria uma tomada de posicionamento critico em re]ac;:ao a ela!?

A 6poca de aceitar os discursos universalistas, com a devido respeito de quem possa pensar 0 contrario, passoll. 0 Estado se desenvolveu. Os sujeitos renovaram suas necessidades e interesses e agora, ao contrario do que ja se SUstentou, sabem que sao capazes de construir sua hist6ria, social e pessoal. Em Outras palavras: os sujeitos vao tomando consciencia de que podem construir Seu mundo, tra~ar eertos projetos e mudar 0 rumo da hist6ria para 0 vetor que Optarem, de acordo com as eseolhas axiologicas que tomarem par referenda.

Nao par outro motivo as epistemologias contemporaneas, principalmente as criticas, veem a sujeito do conhecimento como urn agente participativo, Canstrutor da realidade, que nao tern mais motivos para esconder sua ideologia e escolhas diante do mundoj~. Torna-se, entao, insustentavel a tese da neutralidade do sujeito e vige, para todos as efeitos, a id6ia de diaIetica da Particip~aoI9.

Assim, constata-se que todo conhecimento e historico e dialetico. Hist6rico porque 6 sempre fruto de determinado momento de uma certa sociedade. Dial6tico porque, a16m de ser reflexo das condic;:5es materiais de seu tempo, atua sabre esta materialidade, alterando-a. Em outras palavras: todo saber 6 condicionado e condicionante2o•

o saber enquanto elemento condicionado foi muito explorado pelas doutrinas marxianas, que viam os discursos cientificos como meros reflexos da lllaterialidade social. Tal posicionamento nao e de todo falso. Mas 0 que se tern qUe ter em mente 6 que os discursos, de modo geral, tamb6m atuaffi sabre a realidade, como ja reconheceram GRAMSCFI, POULANTZAS22, entre outros. ? que se retira disto, inicialmente, transportando tal pensamento para 0 direito, e que 0 juiz nao e mero 'sujeito passivo' nas reiac;:6es de conhecimento. Como t~dos os outros seres humanos, tambem 6 construtor da realidade em que V1vemos, e nao mero aplicador de nonnas, exereendo atividade simplesmente recognitiva. AMm do mais, como parece sintomatico, ele, ao apticar a lei, atua sabre a realidade, pelo menos, de duas maneiras: primeiro, buscando reconstruir a verdade dos fatos no processo; e segundo, interpretando as regras

~-----------------fa ~~PlA. AN-a\' A, Rui. Motivaroes ideol6gicas da selltenra, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1992, pp. 40

Po' ~~EL::D. Bilton. Introdu,ao 00 pen'ammlO epimmol6giw. 6' ed., Rio de Joneim : Francisco Alv". 1991.

;~ MARQtJ~SLu!z Fernando . . Teoria crttica do direito, Curitiba : HDV, 1987, pp. 46 ss. 22 GRAMSC1 NETO, Agostmho Ramalho. lntrodufiio ... Op. cit., capitulos Ie n, pp 1-60. POULA~ Antonio. Scrini giovanili, Torino: Einaudi, 1958, pp. 280-281.

p. 19. -. l ~AS, Nicos. 0 estado, 0 poder, 0 sOcialismo, 2" ed., trad. Rita Lima, Rio de Janeiro: Graal, 1985,

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juridicas que serao aplicadas a esse fato ou, em outras palavras, acertando 0

caso que the e posta a resolver. Nao bastassem estas afirma~5es para afastar a primado da neutralidade do

juiz, urge reconhecer que 0 direito, de modo inegavel, 6 ideologico23• Tutela nas

suas regras interesses que podem facilmente ser identificados dentro de cada sociedade e que, muitas vezes, tomam carater de oculta~ao dos conflitos existentes no seu interior, ou seja, torna uma dimensao alienante. Categorias lingUisticas generieas como 'bern eomum', 'interesse coletivo', 'democracia' e 'igualdade', por exempl0, mostram bern esta situa~ao. Quantos de nos nao acredita que hi! uma efetiva igualdade de tados perante a lei; ou entao que 0 Estado esta sempre buscando a 'bern comum'? Ora, isto e ineseurecfvel discurso ideol6gico.

De acordo com exaustiva produyao teorica de NORBERTO BOBBI024, a democracia exige, sob urn enfoque estritamente formal, uma pr6via de1imita~ao das regras do jogo - e aqui nao se pode negar a contribui~ao do positivismo jurfdico para uma no~ao de democracia que teve seu momento e importfulcia hist6rica -, cientes todos, salvo as ingenuos, da necessidade da 'lei' tt propria sobrevivencia (melhor sena Lei, com maiuscula), como demonstra a psicamilise.

Mas isto, a delimitac;:ao das regras, nao basta! E preciso que se saiba, para a16m dela, contra quem se estiijogando equal 0 conteudo etico e axiologico do pr6prio jogo. Como referido no inicio, alcan~ar tal patamar s6 6 passivel quando os agentes em cena, no palco social, assumem sua face ideoJ6gica. Nao e possivel jogar oma partida honesta ou justa contra quem se esconde sob mascaras tais como as de 'objetividade' au 'neutralidade'. Ate mesmo porque se sabe que tais referenciais tern como func;:ao principal a oculta.yao dos conflitas socioeconomico-politicosB

.

Em outras palavras: demoeracia - a comeyar a processual - exige que as sujeitos se assumam ideologicamente. Por esta razao 6 que nao se exige que 0

legislador, e de conseqUencia 0 juiz, seja tornado completamente par neutro26,

2J LYRA FILHO, Roberto. Por que estudar direito. hoje?, Brasflia : Nair, 1984, 34 p. 24 BOBBIO. Norberto. 0 futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo, 4" ed., trad. Marco Aurelio

Nogueira, Rio de Janeiro: paz e Terra, p. 12: "Naturalmente. todo este discurso apenas vale se nos atemos aquela que chamei de definiIYao minima de democracia. segundo a qual por regime democratico entende-se primariamente urn conjunto de regras de procedimento para formay8.o de decis5es coletivas, em que esta pre vista e facilitada a partieipaIYao mais ampla possfvel dos interessados".

B FARIA, Jose Eduardo. Oniem legal v. Mudanro social: a crise do judicia rio e afonna~iio do magistratio, in Direito e justiya: a funyao social do judieiano, Sao Paulo: Atiea, 1989, p. 103.

26 DIAS, Jorge de Figueiredo. Sobre 0 estado actual da doutrina do crime, in Revista portuguesa de cicncia criminal, Lisboa : Aequitas Editora, 1991.janimar., fase. 1, p. 14: "Assim se edge a autonomia da valora~iio­pelo menos uma autonomia reiariva, dentro das 'possibilidades' que the sao oferecidas pela predetenninayao nao juridica do substrata - em momenta essencial do pensamento juridico-penal. Quando porem, em seguida. se afronta a questao do criteria ou criterios da valorafiio, nao parece suficiente dizer que 0 legislador os escolhe em inteira Iiberdade e que 0 interprete s6 teni de os if buscar 11. lei. A soluyao tera antes de alcanyar-se por uma via apontada para a 'descoberta' (ou 'criayao') de uma soluyoo justa do caso concreto e simultaneamente adequada ao (ou comportavel pelo) sistema juridico-penal. Isto sup6e 0 que tenho chamado de 'penetrayao axio16giea' do problema juridico concreto e que, no Ambito do direito penal, tern de ser feita por apelo ou com referenda a finalidades valorativas e ordenadoras de natureza poiftico-criminal". Contra:

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mas que procure, a vista dos resultados pratieos do direito, assumir urn compromisso efetivo com as reais aspira~6es das bases sociais21

• Exige-se nao mais a neutralidade, mas a clara assun<;ao de uma postura ideol6gica, isto e, que sejam retiradas as mascaras hip6critas dos diseursos neutrais, 0 que come<;a pelo dominio da dogmatica, apreendida e construfda na base da transdisciplinaridade. "Z8

Por fim, 0 principia da imparciaJidade funciona como uma meta a ser atingida pelo juiz no exercicio da jurisdi~ao, razao por que se busca criar mecanismos capazes de garanti-la.

Desta forma, e for~oso reconhecer que a imparcialidade e uma garantia tanto para aqueIe que exerce a jurisdi<;ao, como para aquele que demanda perante ela; mas nao deixa de ser meta optata. Unica coisa que se nao pode aceitar, na especie, e uma visao ingenua, permissiva dos espfritos a moda PILATOS, que a tomam como alga dado por natureza (como evidente mecanismo de defesa) quando, em verdade, 0 que se passa e exatamente 0

contrario29•

3.2 Princfpio do Juiz Natural

o principio do juiz natural e expressao do principio da isonomia e tambem urn pressuposto de imparcialidade.

Vale salientar que este principia esta vinculado ao pensamento iluminista e, conseqUenternente, a Revolw;ao Francesa. Como se sabe, corn eia foram suprimidas as justic;as senhoriais e todos passaram a ser submetidos aos mesmos tribunais.

Desta forma, vern a lume 0 principia da juiz natural (au juiz legal, como querem as alemaes) com 0 escopo de extinguir os privi16gios das justi<;as senhoriais (foro privilegiado), assim como afastar a criac;ao de tribunais de exee<;ao, ditos ad hoc ou post factum.

ROXIN, Claus. Tllterschafi und Tatherrschaft, Hamburg: de Gruyter, 1963, p. 20; BErnOL. Giuseppe. Gli uItimi scdtti e la lezione di congedo, Padova : Cedam, 1984, p.116, em texto apresentado por LUCIANO PETTOELW MANTOV ANI, de urn discurso inacabado que 0 professor de Pad ova faria aos jovens magistrados reunidos no Consiglio Superiore della Magistratura, sob 0 tftulo "Garanzie fondamentali della persona nella costituzione, nei codici penali, nella legislazione dell' emergenza e nella convenzione europea dei diritti dell'uomo": "Voi dovete conoscere ed applicare leggi che non sempre sono perfette perche anche il legislatore puo sbagliare in quanto uomo, ed e solo dell'uomo pater errare. Ma la vostra coscienza aperta a1 senso della veritA, della giustizia e della Iibertll, tale deve essen! da poter indicare eventuate errori iegislativi e quindl sollecitare illegislalOre a rivedere quello che hafatto" (grifos nossos). Mas a juiz, aqui, continua servo do legislador; e 0 discurso e meramente ret6rico enquanto, nos casas que interessa, decide contra os erros da lei; e tudo volta ao ponto de partida. au seja, urn problema de fundamenta~ao da decisao. Que 0 magistrado seja insensfvel e tiio~s6 se limite a pedir ao legislador a corre~ao do erro e compreens{vel, mas inaceitavel, mesmo porque nao poucas vezes a emenda nao acontece.

27 MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. Introdu~iio ... Op. cit., p. 154. l8 COU~HO, Jacinto Nelson de Miranda. 0 papel ... Op. cit., pp. 42-43. 0 conceito de transdisciplinariedade

vern de MIAILLE, Michel. Inlrodu~ao cd/iea ao direito, 2- ed., Lisbon: Estampa, 1989. 29 PORTANOVA, Rui. Moliya~6es ... Gp. cit., p. 41: "A dificuldade na concretiza~ao de elementos conceituais

deve·se, por certo, a grande extensao de fatores, inclusive inconscientes, que afastam as condi~i5es

psico16gicas de julgar com isen~ao. Desses fatores nilo esta a salvo 0 juiz honesto, probo e honrado, 0 qual deve ser 0 primeiro a suspeitar, nao de sua integridade moral, mas de seu estado d'alma. (. .. ) p. 42: Em suma, ha sempre uma ampla possibilidade de questionar-se a imparcialidade, pois a '.,. neutralidade do juiz e importantfssima para que se possa garantir a toda sociedade sua independencia' (REZEK, 1990, p. 9) e as partes tratamento igualitario (THEODOROJR.. 1985, p. 181)".

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Destarte, todos passam a ser julgados pelo "seu" juiz. 0 qual e~co?tra-se com sua competencia previamente estabelecida pela lei, ou seja, em uma lei vIgente antes da

pratica do crime. Por outro lado, e preciso questionar a respeito da sua extensao, desde que sempre

foi descurado no Brasil e, mais ainda, depois da Constitui~ao Federal de 1988, na, qual se procurou _ e se fez! _ estabelecer regra (art. 5°, LIIl) que escapasse de qualque-: manipula~ao politica/jurfdica sobre a comp~te~cia. ~ a. qual ~. sempre f01 abordada/questionada pela doutrina e vetada pela Junsprudencla. europe~a ~uando se discute a materia a partir de suas bases legais, mormente na Itaha (CostltuzlOne della Repubblica), fonte principal do nosso modo de pensar".

Assim, nosso legislador constituin.te de. 1988, como se sa?e, n~o tr~to~ expressamente do juiz natural, como havlam felto as europeus contmentals _ apos Revoluc;ao Francesa, de urn modo geral, exatamente para que nao se alegasse nao estar inserido nele a questao referente a competencia. Ao contrmo, por exemplo, do ~t. 25 da Constitui9ao italiana atual, em vigor desde 01.01.48 ("Nessuno puo e~se~e dlsolto. dal giudice naturale precostituito per legge"), preferiu nossO le~islador const1t~mte, segUl?d~ o alerta da nossa melhor doutrina, em face dos aconteclmentos ocorndos no patS profundamente conhecidos (veja-se a atua<;ao do Ato Ins.titucional n° 2, d~ ~7.10.65, e a discussao no STF a respeito da materia, corn seus respect~vos res~lta~os pratJc~s), ~ata-Ia de modo a nao deixar margem as duvidas, como garantta constItUCIonal do cldada?, no art. 5°, LUI: "Ninguem sera processado nem sentenciado senao pela autondade

competente" (grifos nossos). Parte consideravel de nossa doutrina, no entanto, qui\=a por nllo se dar conta ~a

situa9ao mormente ap6s a definiC;ao constitucional, continua insistindo que a matena referent~ a competencia nao tern aplica~ao no principio em ~iscu_ssao. Em verdade, 0 que se esta a negar, aqui, e a pr6pria CF, empe<;ando-se a sua efetlva<;ao.

A questao, entao, ha de ser discutida a partir do que vern a ser jufzo competente. Ao que parece, nao ha no mundo quem melhor trate desta materia q~e ~ Pro.fessor JOR~E DE FIGUEIREDO DIAS, sempre fundado nos pressupostos consl1tuclOnaJS de seu paIS, de todo aplicados ao nossO entendimento. Esclarece. ele _"que 0 princf~io d~ ~,~iz natural visa entre outras finalidades, a estabelecer a orgamzac;ao fixa dos tnbunals ,mas eia "na~ e ainda condi~ao bastante para dar a adrninistrac;ao da justic;a - hoc sensu, a jurisdi9ao _ a ordenaC;ao indispensavel que permite. detenninar, relativamente a urn caso concreto, qual 0 tribunal a que, segundo a sua especle, deve ser entregue ~ ~ua!"12dentre. os tribunais da mesma especie, deve concretamente ser chamado a decldl-Io . ~SSl~, seguindo 0 pensamento do professor de Coimbra, faz-se necessario r~gulamentar ~ a~blto de atua<;ao de cada tribunal, de modo a que cada casO concreto seJa da competencla de apenas urn tribunal: ojuiz naturaPl.

30. CORDERO, Franco. procedura penale, 8" ed., Milano: Giuffre, 1985, p. 254; ______ . Procedura penale, Milano: Giuffre, 1991, 109 e ss.

31 OIAS, Jorge de Figueiredo. DireilO ... Op. cit. p. 328. n DIAS Jorge de Figueiredo. Direilo ... Op. cit., pp. 328~329. 'd A • em 33 Por i~prescindlvel, hA de se ver 0 triplice significado que empresta ao principio: "a) E.le pae em eVI enCla,

primeiro lugar, 0 plano da fonte: s6 a lei pode instituir 0 juiz e fixar·lhe a competencla; b) em seg~nd~ .lug~~ procura ele explicitar urn ponto de referencia temporal, atraves deste afirmando u~ pnnclplo irretroactividade: a fixa~!l.o do juiz e da sua competencia tem de ser feita par uma lei vigente Ja ao tempo em

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136 REVISTA DE ESTUDOS CRIMINAlS 1- 2001· Dout.ln.

Alias, pensamento diverso poderia abrir urn precedente capaz de possibilitar a escolha de urn juiz "mais interessante" para 0 julgamento de determinados casos, depois de esses terem acontecido, segundo criterios pessoais (mais liberal Oll mais conservador, por exemplo), 0 que pade indicar na direc;ao da suspeita da sua imparcialidade (emjufzQ a priori, naturalmente), alga sempre abominado pela reta Justic;a e que, como se sabe, serviu de base estrutural ao pensamento da Revoluc;ao Francesa, a qual, vitoriosa, editou, como a primeira de BUas leis processuais. em 11.08.1789, regramento tendente a vetar quaJquer manipulac;ao oeste sentido (termina a justic;a senharial), consolidando-se 0 principia do juiz natural na Constitui~ao de 1791 e na legisla~ao subseqtiente.

E preciso ressaltar, ainda, que 0 principio da identidade fisica do juiz nao se confunde com 0 principio do Juiz Natural. Como se sabe, por este, ninguem podera ser processado ou sentenciado por juiz incompetente, ou seja, 0 juiz natural e 0 juiz competente. aquele que tern sua competencia legalmente preestabelecida para julgar determinado caso concreto. la. por aquele (0 principio da identidade ffsica) assegura-se aos jurisdicionados a vincula~ao da pessoa do juiz ao processo. Assim. par exernplo. pelo disposto no C6digo de Processo Civil. 0 juiz competente responsavel pela conclusao da audiencia de instru~ao e julgamento vincular-se-a ao processo e devera, entao, julgar a lide. Resta claro, destarte, que os principios supracitados nao se confundem e que 0 art. 132 do CPC refere-se tao-s6 ao princfpio da identidade fisica do juiz. No nosso processo penal, todavia, jamais teve ele aplica~ao, pela pr6pria natureza do sistema adotado. embora seja terna de grandes discussoes.

3.3 Principio da lndeclinabilidade

Como e basico, quando se retirou do particular a possibilidade de realiza~ao da autojusti~a, 0 Estado assurniu 0 monop6lio na resolu~ao dos casos. Desde entao, passaram eles a ser resolvidos a partir do exercicio da jurisdi~ao.

Nao por outro motivo, tal atividade estatal passou a ser indeclinaveI. Desta forma, desde que provocado, 0 Estado, atraves do Poder Judiciario, nao pode furtar-se a resolu~ao de uma lide ou, no que diz com a Processo Penal, ao acertamento de urn caso penal.

Assim. tendo em vista 0 que ja se expos acerca do principio do juiz natural, tem-se que 0 juiz competente para julgar determinada causa, ou seja, para exercer a jurisdi~ao em rela~ao a determinado caso concreto, nao podera declinar de tal exercicio. Ora, por sua face operacionalizada (competencia), tem-se a jurisdi~ao como exclusiva de quem a detem e excludente dos demais; dai pOT que nao se admite, ademais, a prorrogariio e a delegariio da competencia (outros dois principios decorrentes da indeclinabilidade), sob pena de usurpa~ao de fun~o publica. Aparentemente, porem, poder-se-ia pensar, com CARNELUTTI, que hat no ambito do processo penal, urna especie de vli.ivula de escape no que diz com 0 principio ora analisado.

Como frisou CARNELLUTTI, "a chamada absolvi9ao por insuficiencia de provas, de fato, nao e senao uma recusa de escolha; e, par isso, denuncia, como ja disse mais de uma vez, 0 insucesso da administra~ao da justi9a. Entre 0 sim e 0 nao, 0 juiz, quando

que foi praticado 0 facto criminoso que sera objeclo do processo; c) em terceiro lugar, pretende 0 prindpio vincular a uma ordem legal taxativa de competencia, que exclua qualquer alternativa a decidir arbitniria ou mesmo discricionariamente" (DIAS. Jorge de Figueiredo. Direito ... Op, cit., pp. 322-323),

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absolve por insuficiencia de provas, confessa a sua incapacidade. de s~per~ a duvida e deixa a imputado na condi~ao em que se encontrava antes da dlscussao: Imputad~ par toda a vida. Recordo, a esse prop6sito, quando presidia a Comissao para a forma9ao de urn projeto de reforma do c6digo de processo penal, de ter observado que essa e uma solu9ao comada para 0 juiz, porque 0 libera do peso cia sua tarefa, mas nOClva para a justi~a, a qual deve dirigir-se com urn sim au com urn nao"34.

A posi9aO, todavia, nao e carreta, se observada no nosso processo peoal. Co~ efeito, na absolvi,iio por falta de provas (in dubio pro ~eo), a op,iio e dada pela pr6pna lei, em face de oao ter 0 juiz - e a acusa~ao - prodUZldo provas capaz:~ de fu~dar urn jUlzo condenat6rio. E tanto e vero 0 acertamento que a senten~a absolutona, na hlp6tese. passa em julgado materialrnente.

Destarte, a regra e que a atividade jurisdicional de acertarnento dos casos peoais e

indeclinavel. Entao, pade-se concluir que "a o~ao. aqui, e politica, como 0 e ~a coisa julgada e

taotas outras; mas absolutamente necessaria para, da melhor maneira possivel, nas questoes limitrofes, teolar fixar alguns parametros e, a partir deles, exigir respeito, n~o fosse antes. urn cornprornetimento etico. Nada disto, contudo, adianta, se os homeos nao tiver~m a grandeza de fazer valer a palavra do pactuado, daquilo expressamente fixado no contrato"J5.

3.4 Principio da Inercia da lurisdifao Este principio, que e uma das caracteristicas irnportadas d? sistema acu~at6rio,

detennina que a jurisdi~ao e inerte e nao pode ser exerclda (no sentJdo do desencadearnento do processo) de offcio pelo juiz. Isto implica dizer que, para que se mova, precisa ser provocada: nemo iudex sine actore; ne procedat iudex ex officio.

Como se sabe, 0 principio do devido processo legal exige que 0 6rgao julgador seja submetido ao principio da inercia, buscando garantir, ao maximo, a sua imparcialidade e eqUidistancia das partes.

Com efeito, quando se autoriza ao juiz a instaura~ao ex officio do processo, como era tfpico no sistema inquisit6rio pure, permite-se a forma~ao ~~quilo .. que .C~RDERO charnou de "quadro mental paran6ico"36, ou seja, abre-se ao JUIZ a posslblhdade de decidir antes e, depois, sair em busca do material probat6rio suficien~e p~a c.onflrtnar a 'sua' versao, isto e, 0 sistema legitima a possibilidade da cren~a no Imagmano, ao qual toma como verdadeiro"l7.

Diante disto, parece sintomatico que 0 principia da inercia, ora estudado, e urn dos pressupostos para que se tenha urn processo penal democratico.

34 CARNELUTII. Francesco. Verdade. duvjda e certeza. Trad. Eduardo Ca~~i. Folha Acade~ica n° 11~/.1997: Curitiba Centro Academico Hugo Simas. Composi~ao Grcifica Unarth. Ongmalmente pubhcado na RlVIsta dl Virilto Processuale. Padova : Cedam. 1965, vol. XX (11 Serle), pp, 4-9. com 0 titulo Verita, dubbio e certezza.

~ COUTINHO Jacinto Nelson de Miranda. Glosas ao "verdade, duvida e certeza". de FRANCESCO CARNELtrITr. para os operadores do direito, No prelo, ° presente trabalho ,(~i ~pecialment.e ~reparad? ~ara o paine! Direito e Psicanalise. do Seminano Nacional "? Direito no ill Mliemo: N~VOS Dlreltos e DlrellOS

Emergentes", realizado na Universidade Luterana do Brasil - ULBRA, em Canoas, RIO Grande do Sui, de 12 a 15 de novembro de 1997, no prelo.

36 CORDERO, Franco .... Op. cit,. p. 51. 37 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. 0 papel,., Op. cit. p. 39.

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Adernais, de tal principia decorre a irnpossibilidade de a juiz julgar alem, fora au aquem do que foi imputado ao acusado na pec;a inicial: ultra, extra et citra petita. Assim, quando a juiz proferir sua decisao, nao podeni modificar a imputac;ao fatica realizada na pec;a acusat6ria (thema decidendum), devendo haver sempre uma correla~tio exata entre a imputac;ao e a sentenc;a. Por elementar, tern ele a livre dicrtio do direito (iura novit curia), justo porque se nao subordina quanta ao direito, mas tao-s6 it imputac;ao (atribuic;ao do fato penalmente relevante aa acusada, com tadas as suas circunstancias), que circunscreve o espac;o e a extensao da decisao. Assim, ao juiz leva-se 0 fata - au as fatas -, respondendo ele 0 direito aplicavel: narra mihi factum, dabo tibi ius. Nao e por autro mativa que as qualifica~i5es jurfdicas exigidas pela lei antes da sentenc;a, tadas, sao provis6rias. Isto permite que a juiz corrija a inicial (que tern imputac;ao precisa e err6nea qualifica,ao juridical, aplicando a regra do art. 383 do CPP, a qual !rala da chamad. emendatio libelli, ainda que como resultado da emenda sobrevenha uma condenac;ao. Par outro lado, a mesmo nao sucede Se a erro estiver na imputac;ao: nao se trata mais de mera corrigenda, mas de verdadeira mudanra no thema decidendum. Nesta hip6tese, antes da decisao (tenha ela a natureza que tiver), deve 0 juiz lanc;ar mao das providencias indicadas no art. 384 do CPP: trata-se da charnada mutatio libelli. Vale iembrar, par elementar, que o acusado defende-se dos fatos e nao da qualificac;ao juridica, razao par que 6 precise muita atenc;ae quando do tratamento da materia.

Par derradeiro, nao seria impertinente lembrar, para tentar-se evitar os arroubos persecut6rios de alguns. que "a imparcialidade e objectividade que, conjuntamente corn a independencia, sao condic;oes indispensaveis de uma autentica decisao judicial so estarao asseguradas quando a entidade julgadora nao tenha tamb6m func;oes de investigac;ao preliminar e acusac;aa das infracc;oes, mas antes possa apenas investigar e julgar dentro dos limites que Ihe sao postos por uma acusac;ao fundamentada e deduzida por urn 6rgao diferenciado (em regra 0 MP ou urn juiz de instrw;ao)"38. Mesrno assim, 0 futuro democratico do nosso processo penal aponta na direc;ao de urn sistema de essencia acusat6ria e, nele, e altarnente discutiveI nao s6 acometer aos juizes a investigarao preliminar e a acusartio, mas 0 proprio impulso processual quando em jogo estiver a produrtio da prova39

• Trata-se, por elementar, de uma op(iio poiftica, mas a prec;o que se paga 6 muito alto, seja 0 proprio juiz, a sociedade e a jurisdicianado. Ademais, a historia mostrou - e continua mostrando - nao ser em nada melhar para 0 processo penal uma tal liberdade, justo porque mantem intacta a possibilidade - natural - de se decidir antes e, tao-s6 depois, sair-se a cata da prova suficiente para justificar a decisao previamente tomada. Enfim, faz-se mister deixar as partes 0 onus probandi, como ameaya fazer 0 CPP, em seu art. 156, prime ira parte, para desmentir-se ja na segunda parte, quando sllstenta a tradiyao inquisitoria: "A prova da alegac;ao incumbid a quem a fizer; mas 0 juiz podent, no curso da instruc;ao ou antes de praferir sentenc;a, detenninar, de aficio, diligencias para dirimir duvida sabre ponto reievante".

Alga compietamente distinto, por seu turno, 6 0 impulso processual, par parte do julgador, tendente a evitar procrastinar;iJes indevidas. Par evidente, a par da questfto referente a preclustio, hii de se ver que cabe ao juiz do pracesso 0 cumprirnento fiel do rilO, sem qualquer vilipendio aos principios e regras que garantem a democracia

38 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito ... Op. cit. p. 136. 39 Contra: DIAS, Jorge de Figueiredo. Direiro ... Op. cit. p. 148.

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processual. Para tanto, ha instrumental suficiente na nossa estrutura, mas e preciso dela ter urn dominia pelo menas razoavel, pais, do contrano, ter-se-a, somada a outros fatores, urn resultado conjunturalmente procrastinador, quase sem solw;ao.

4 - PRINe/PiOS RELATlVOS A A9AO

Como se viu, num pais que pretende ser democratico, a jurisdi9iio somente podera ser exercida a partir de quando e provocada. Tal provoca~ao da-se atrav~s da ar;tio, a qual 6 tida, basicamente, como urn direito (para a Ministeria Publico, al6m diStO, urn dever) de se buscar e, se for a casa (preenchendo as condic;Oes exigidas pela ~ei), obter a tutela jurisdicional, de modo a que se possa vir a ter uma decisao de merito, tudo nO' melhor estilo da nossa tradic;ao liebmaniana. Trata-se, por evidente, de urn direito (para 0 MP urn dever) publico, porque sempre dirigido ao Estado-Iurisdic;ao.

Assirn, pode-se ver nitida a diferenc;a entre 0 agir daquele que exefce a j4risdi93.0 e a agir daqueJe que a provoca, 0 qual se estrutura a partir de alguns principios basicos.

4.} Principia da Oflcialidade

Tal principio diz corn 0 sujeito que da inicio a investigac;ao crimin.al e pr~c~de a acusa9ao, ou seja, cabe aqui definir a quem compete impulsionar a exercfC!o da auv~dade jurisdicional, assim como, antes dele e se necessario for, a investiga(do de deteimmada

pratica delituosa. Assim, segundo FIGUEIREDO DIAS, "trata-se aqui a questao de saber a quem

compete a iniciativa (0 impulso) de investigar a pratica de uma infrac;ao e a.d~~is~o de a submeter ou nao a julgarnento. (.,.) no sentido de estabelecer se uma tal Imclattva (de provocar a jurisdic;ao) deve pertencer a urn entidade publica.o~ estad~al- qu~ interp~ete 0

interesse da comunidade, constituida em Estado, na persegwc;ao oficlOsa das mfrac'}:oes -, au antes a quaisquer entidades particulares, designadamente aD of en dido pel a infraC;aO"40.

Com efeito, e possivel afirmar que a conteudo do principia da oficialidade, quanto a artio, e determinado pela natureza do interesse que impulsiona a exercici? ~urisdician~. Entende-se, assim, de regra, que se tal interesse 6 publico e pertence a coletlvldade, a ac;ao

deve ser promovida por 6rgaos oficiais: trata-se dos chamados crimes publicos e semipublicos, dos quais decorreriarn a a(tio penal publica incondicionada e a a(Jo penal publica condicionada, respectivarnente; do contr:irio, se 0 interesse pertence exclusivarnente ao particular, cabe a ele a iniciativa de provocar a orgao jurisdicional: a crime seria particular ou privado e dele decarreria a charnada ar;do penal de iniciativa privada. Nesta medida, e possivel identificar a raiz da oficialidade no Direito P:ocessu~l Romano, no qual a ac;ao, a acusa~ao, era eminentemente popular, mas quem agw 0 fazza em nome da coletividade.

De acordo com JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, "no antigo direito romano vigorava 0 principia da acc;ao popular, segundo 0 qual qua~quer pes~oa ~qui~is ex populo) poderia deduzir a acusac;ao penal: 0 que, pare~endo traduZlr uma pflvahza~~o ~xtrema do processo penal, seria antes, no entanto, sma.l de uma a~~da c..?nscle.ncl~ da co­responsabilidade de qualquer membra da comumdade na adrrumstra9ao da Justlc;a penal. C .. ) No antigo direito germanico vigorava, diferentemente, a principio da acusac;iio

40 DIAS. Jorge de Figueiredo, Direito ... Op. cit .. p. 116.

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privada, que deixava a promo~ao processual penal na vontade do of en dido, au da fanu1ia au grupo (sippe) a que pertencia"4!,

Entretanto, naD se pode negar que 0 princfpia da oficialidade foi consagrado, nos moldes modernos, pelo sistema inquisit6rio.

Como se yin, neste sistema, 0 processo e instaurado de offcio pelo juiz, uma vez que nao ha partes e 0 acusador e dispensaveL Destarte, percebe-se que 0 impulso do qual se o~gina a p~rsecuc;ao penal e promovido por urn 6rgao estatal; mas nao ha afYGo propnamente dlta, nos termos que a concebemos hoje.

. " Al~as, e fors:?so reconhecer que, de certa fonna, tal princfpia legitimou 0 sistema mqUls1t6no, na medi~ ~ue se ente?di~ que 0 juiz-inquisidor era 0 Linico ente estatal capaz de, em ~ome da colet~vldade, dar mfcIO a persecu~ao penal. Assim, pensava-se que, caso fosse delxado ao partIcular a impulso de investiga~ao e do processo, sena colocado em risco a interesse coletivo.

Contudo,. deve-~e observar que, mesmo com a supera<;ao do sistema inquisit6rio pur~ e. com ~ dlferencla<;ao dos orgaos acusador e julgador, tem-se que a princfpio da oficIahdade, J untarnente com 0 principia da legaJidade, permite urn maior comrole da atua<;ao daquele que inicia a persecu~ao penal.

. ~em :mbargo,. cabe ressaltar que 0 Iegislador brasileiro previu expressarnente que a olTIvesugac;ao sera felta por 6rgaos oficiais (Policia Judiciaria), nos terrnos do art. 144, § 1 , IV, da .CF e art. 4

0 do CPP, quando se tratar de inquerito policial, a fonna usual de seu

desenvolvlmento, n~o. obstant~ o. sistema suportar outras42• De regra, tarnbem a acusa<;ao, la~~~da pelo exerClCIO do dlreIto da ac;ao, sera feita por 6rgaos oficiais (Ministerio Pubhco), conforme art. 24 do CPP, salvo nos casas de ac;ao de iniciativa privada.

Cabe, entao, uma distifl';ao: em geral, a a~ao penal e publica (incondicionada ou condic~onada? .no ~enti~o ~e estar 0 seu .exercicio (iniciativa) a cargo do 6rgao oficial de acusa<;ao (Mmlsteno PublIco), mas a leI pode excepcionar a situac;ao, assirn a fazendo pela ~xpr.essa previsao de a exercicio da a<;ao penal estar a cargo do particular, quando se estana diante da chamada a~ao penal de iniciativa privada (art. 30 do CPP). E uma classificay~o,. por eiementar, que na~ leva em considera<;ao a estrutura ontol6gica da ac;ao (sernpre publIca), mas 0 seu autor. Por sinal, isto resta claro Com maior rigor quando se perc~b~, que a estrutura oferecida pelo legisiador, inclusive constitucional, previu a posslbIhdade de uma ariio penal de iniciativa privada suhsidiaria da publica, nos tennos do art. 29 do CPP" e art. 5", LIX , da CP«.

, . P~r fim, ,a .distim;ao entre elas e dada pete C6digo Penal: sendo regra a ~ao penal pubh.c~ mcondlclOnada, sabe-se que se esta diante de caso de ac;ao penal publica condlcIOnada quando. no CP, em panigrafos dos artigos da Parte Especial ou mesmo em

41 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito ... Op. cit .. p. 117. 42 MARQUES, Jose Frederico. Elementos de direito processual penal, 2- ed., Rio de Janeiro _ Sao Paulo:

Fore?se, 1965, pp. 146-147; TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal, IS- ed., Sao Paulo: SaralV,a, 1997, pp. 196-198.

43 Art. 29 do CPP: ·'Se.ra. ad~itid~ a!ao p~vada nos crimes de ac;1io publica, se esta nao for intentada no prazo legal, cabendo ao Mmlsteno Pubhco adltar a queixa, repudia-Ia e oferecer denuncia substitutiva, intervir em todo~ ?s ~ennos do processo, fomecer elementos de pro va, interpor recurso e, a todo tempo, no caso de

44 neghgencla do querelante, retOmar a ac;ao como parte principal". • Art. 5°, LIX, da CF: "Sera admitida aC;1io privada nos crimes de ac;ao publica, se esta nno for intentada no prazo legal".

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artigos que se dirigem a regular os capftulos, restar expresso que s6 se procede mediante representarlio, como, por exemplo, no art, 147, paragrafo unico, e no art, 182. Trata-se do amilogo nacional il querela, do direito italiano (arts. 336 e ss. do CPPI), 0 que exige urn pouco de aten~ao quando de analises comparativas. Por outro lade e da mesma maneira, quando for caso de a~ao penal de iniciativa privada, did 0 CP que "somente se procede mediante queixa". Par elementar, ao referir-se ao verba proceder, quis 0 legislador apontar a arlio, mesmo porque, na especie, a pec;a formal que estampa 0 seu exercfcio recebe 0 nomem iuris de queixa e, portanto, coloca-se, na estrutura. como correspondente a denuncia, quando a caso for de a~ao penal publica. Sao exemplos, no CP, de hipoteses de a'tao penal de iniciativa privada a art. 345, paragrafo unico, e art. 145, caput, Assim. por exclusao, sempre que nao houver previsao desta ou daquela, 0 caso sera de a<;ao penal publica incondicionada.

4.2 Principia da Obrigatariedade (Legalidade)

Este princfpio diz com a obrigatoriedade do exerdcio da a~ao penal publica, para evitar-se qualquer manipula~ao por parte do 6rgao acusador e, por outra parte, eventuais pressoes que possa sofrer. Assim, entende-se que, presentes as condi<;oes da a~ao, deve exercita-la, ainda que nao exista previsao expressa na lei (como fez 0 legislador constituinte italiano, ao inserir 0 art. 112, na CR, que expressa: "11 pubblico ministero ha I'obbligo di esercitare l'azione penale"), embora seja certo ser uma decorrencia do princfpio constitucional da isonomia. Sem embargo. e praxe ser tratado por princfpio da legalidade, em face de fundar urn dever do 6rgao ofieial de acusa~ao,

Como ressalta TOURINHO PILHO, "pertencendo a a,ao penal ao Estado (salvo exce<;oes), segue-se que aquele a quem se atribui 0 seu exercfcio, 0 Ministerio Publico, nao pode dela dispor. Acertada a li,ao de DONNEDIEU DE V ABRES: C .. ) OS 6rgaos do Ministerio publico nao agem senao em nome da sociedade que eles representam. Eles tern o exercfcio, mas nao a disposi~ao da a~ao penal; esta nao lhes pertence (cf. Traite, cit, p. 606). ( ... ) Cabendo ao Ministerio Publico 0 exercfcio da a~ao penal publica (princfpio da oficialidade), 0 princfpio da legalidade impoe-Ihe outro dever, qual a de promover a ac;ao penal sem inspirar-se em motivos politicos ou de utilidade social. ( ... )"4~,

E preciso salientar, ainda, que urn dos fundamentos do princfpio da obrigatoriedade "esta vinculado a independencia do Ministerio Publico. Antes de funcionar como grilhao para a instituic;ao, escuda-a de ingerencias externas impertinentes, descabidas, dos mais variados segmentos da sociedade. Assim, rnesmo sem previsao legal 0 temos como plenamente vigente e cremos nele, nos conformes, pela necessidade e pelos mais variados argumentos, alguns coerentes e aceitaveis, outros sem qualquer cabida, como anotou FREDERICO MARQUES.

o princfpio, de linha mais vinculadora, opoe-se ao da oportunidade ou discricionariedade e ambos projetam-se no mundo informando os sistemas processuais, De regra, os pafses do Common Lawe as influenciados diretamente por ele tendem para a oportunidade, ao passo que os paises de tra~os germano-romanisticos, via de regra, adotam 0 princfpio da obrigatoriedade. Isto nao implica, e claro, regras estanques. Os paises mesc1am a utiliz~ao dos principios confonne suas necessidades. A analise, neste sentido, serve bern para questionar-se ate que ponto 0 argumento das influencias extemas

43 TOURINHO Fll..HO, Fernando da Costa. Processo ... Op. cit. pp. 313-315.

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seria ;~lido. Por es~e caminho, sabe-se que nao se tern podido desacreditar - muito pete contrano - na senedade do MP nos paises ande prevalece a discricionariedade no exercicio do direito de ac;ao. De uma forma au de Dutra, as sistemas caminham. Vale a seriedade do MP, independentemente de ohrigac;ao legal au naco Is50 e 0 que menos imp0:ta. A di~cussao. desla forma, deve ficar para 0 controle de exercitar 0 direito de ac;aa au nao. AsSIID, urn contrale serio, exclusivamente hienirquico, e a suficiente para resguardar 0 6rgao - como homens e, como tal, passiveis de eITa - e a instituh;ao, fiel defensora da Constituic;ao do Estado, e, portanto, do todo, sem espac;o para interferencias estranhas, maxime do Executivo. Basta, de pronto, seriedade.

o CPP de 41 delimita 0 Controle em urn sistema misto. Sem vontade alguma de dec:e~r a existencia da obrigatoriedade. 0 art. 28 do Codigo de Processo fecha na figura do JUlZ 0 controle do exercfcio do direito de a\=11.o e, sornente em caso de discordancia de~te.' remete a questao ao Procurador-Geral. As inconveniencias do sistema sao patentes: a ultima palavra, se for 0 casa, esta sob a responsabilidade do Procurador-Geral, que oc.upa cargo de confian~a do Governador; exclui-se 0 org11.o maximo da institui\=ao, au seJa, 0 Conselho Supenor e, sem discussao, como pi~r de tudo, pennite, sem Controle algum, manipula\=oes conjuntas do Magistrado e do arguo do Ministerio Publico. Embora na atual fase das instituic;6es, isso nao seja lugar-comum, e de possivel acontecimento e: portanto, uma falha irnperdoavel"46.

AMm disto, e preciso ressaltar que a obrigatoriedade de 0 Ministerio Publico promover a acusac;ao, nos casos de ac;ao publica, nao esta colocada de forma absoluta, uma vez que 56 se obtem a tutela jurisdicionai, quando do exercfcio da ac;tio, se presentes as chamadas questoes previas, incluidas ai as condic;6es da aC;11.o e os pressupostos processuais analisaveis noju[zo de admissibilidade.

Ademais, e precise considerar que tal princfpio da obrigatoriedade, ainda que fosse possivel pensar estar atrelado ao principio da legalidade, deve ser relativizado, ja que urn processo penal democnitico tern, antes de mais nada, 0 objetivo de atender ao interesse publica.

Neste sentida, JORGE DE FIGUEIREDO DIAS assevera que "bern se campreende que, relativarnente a certos casos concretas, a promo'.t11.o e a prossecuC;ao obrigat6rias do processo penal causem a comunidade juridica maior dana que vantagem - maxime, atento o pequeno significado da questao para 0 interesse publico, ou conexionado este com dificuldades de prova, inflaC;ao do numero de processos, pequena probalidade de eXecutar a condena<;ao, etc. (v.g. relativamente a factos cometidos no estrangeiro ou por pessoa que s: n~o. enc~ntre no pais) - ~ que, em trus casas, se deixe ao MP uma certa margem de dlscnclOnarledade no procedlmento. Ponto e que se nao esquecra que poder discriciomlrio nao 6 sin6nimo de arbitrio, mas concessao de uma faculdade que deve ser utilizada em direcC;ao ao tim que a pr6pria lei teve em vista concede-Ia - no caso a preservac;ao, em ultimo termo, dos verdadeiros interesses da comunidade juridica e dos valores prevalentes nela ... "47.

46 C.O,!TINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Prindpios gerais do processo penal, in Revista da Faculdade de Duelto da UFPR, n° 22, ano 22, 1985, pp. 216-217. Por evidente, depois da CF/88 js nao se ocupa cargo de confianp, mas mandata (art. 128, § 3°). mas e coerente manter-se 0 texto original pelo seu conjunto.

47 FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito ... Op. cit .. p. 131.

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RelativizaC;11.o, assim, a fim de se atender ao interesse publico, DaO implica se admitir a sua manipulac;ao. Por 6bvio, pode-se nela chegar por mera constatac;ao: sendo as candi,5es da a,iia requisitas exigidas pela lei (art. 43 c.c. art. 18, ambos do CPP), abre-se, as escancaras, urn largo espac;o a exegese, a adequa'.tao objeto!regra, a relac;ao semantica. o interprete, entao, passa a ter papel fundamental, porque e irnenso 0 espac;o a ser preenchido pela subjetividade. Neste passo, como parece sintomatico. 0 direito depende dos homens; e nao das leis. E e justamente deles que se espera 0 sentimento de Justic;a, da qual, por sinal, sao Promotores.

A estrutura da a(fio, no nosso processo penal, conhece tambem 0 princfpio da oportunidade au da conveniencia. E ele que rege 0 seu exercicio nos casas de a'.tao penal de iniciativa privada, razao par que se deixa ao of en dido (ou, se for 0 caso, a seu represenlanle [ega!), a decisao de exercita-Ia au nao. Age, portanto, se quiser, na rnedida da sua conveniencia.

5 - PRINC/PIOS RELAT/VOS AO PROCESSO

"II mezzo attraverso cui si attua la giurisdizione e it processo.l! II processo (processus da procedere) e il complesso degli atti giuridici diretti all'esercizio della giurisdizione"48. Daf poder-se dizer que no processo busca-se a reconstituic;ao hist6rica do crime, a tim de se fonnar 0 convencimento do julgadoyA9.

Em que pese a intinita discussao a respeito da sua natureza jUridica e a ado<;ao, pela CF/88, da pasi,iia de ELIO FAZZALARI (art. 5°, LV), ou seja, de que ha processa quando houver procedimento com contradit6rioso, continua tinne na dogmatica, por enquanto, a no'.tao btilowiana de que e ele uma relarfio jurfdica processual.

Com tais premissas, ha de se notar que sao basicos tres dos principios relativos ao processo, pelos quais se poderia partir a analise de outros: I) principio do contradit6rio; II) principia da verdade material; e III) principio do livre convencimento.

5.1 Princfpio do Contradit6rio

o principio do contradit6rio e tfpico de urn processo de partes, no qual 0 julgador mant6rn-se eqtiidistante delas no exercicio da atividade jurisdicional (confonne detennina o princfpio da imparciaHdade), embora, presentando~' 0 Estado na rela'.tao processual, e 0

detentor do Poder e, por conta disto, funciona como 6rgao mediador, atraves do qual passam os pleitos.

Traduz-se, entao, na necessidade de se dar as partes a possibilidade de exporem suas raz6es e requererem a produc;ao das provas que julgarem importantes para a soluc;ao do caso penal. Assim, "6, pois, em resumo, ciencia bilateral dos atos e termos processuais e possibilidade de contraria-Ios"~2. Exprime-se, assim, na paremia auditur et altera pars.

48 PISAPIA. Gian Domenico. Compendio di procedura penale, 4" ed., Padova : Cedam, 1985, p. II: "0 meio atraves do qual atua-se ajurisdi'1ao e 0 processo.ll 0 processo (processus de procedere) e 0 complexo dos atos jurfdicos dirigidos ao exercicio dajurisdi'1ao".

49 ALMEIDA. Joaquim Canuto Mendes de. Princ{piosfundamentais do processo penal, Sao Paulo: RT, 1973. p. 6.

so FAZZALARI, Elio. L'esperienza del processo nella cultum contemporanea, in Rivista di dirieto processuale, Padova: Cedam, 1965, Vol. XX, p. 27.

51 A nO'1ao, perfeita para caracterizar 0 que sucede, e de PONTES DE MIRANDA, Francisco. Tratado de direito privado, 3" ed., Rio de Janeiro: Borsoi, 1970, pp. 412 e ss.

52 ALMEIDA, Joaquim Canuto Mendes de. Principios .... Op. cit. p. 82.

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Por sinal, a audiencia das partes de modo paritaria e vital a pr6pria existencia do processo, monnen!e porque expressiio, qui,. maxima, do principia da igualdade (isonomia). Alinal, como anotado em BELLAVISTA·TRANCHINA, "dove non c'. contestazione, non c'. rapporta giuridico processuale; dove non c'e contradittorio, non e'c processo"!l3.

Diante disto, e for~oso reconhecer que, por tal principio, reflete-se urn dever-ser que reclama (exige) a dialetica de urn processo de partes, au seja, 0 dhilogo entre a acusa~ao e a defesa, perante urn juiz imparcial.

Ademais, e preciso ressaltar que "0 princfpio do eontradit6rio op6e-se, deeerto, a uma estrutura puramente inquisit6ria do processo penal, em que 0 juiz pudesse proferir a decisao sem previamente ter confrontado 0 argUido com as pro vas que contra ele houvesse recolhido - e nao faltaram exempJos hist6ricos de processos penais assim estruturados -ou sem lhe ter dado, em gerai, quaJquer possibilidade de contesta~ao da aeusa~ao contra ele formulada. Excep~ao feita, porem, a casos de estrutura mais asperarnente inquisit6ria, o princfpio encabe9ado sobretudo na pessoa do argUido, mereeeu sempre geral aeeita~ao -nos direitos antigos (tanto no grego como no romano) como nos medievais (ap6s a reeep~ao do direito romano, logo em seguida obscurecida, como se sabe, pelo processo inquisit6rio) e, de fonna inquestiomivel, nos processos penais 'reformados' conseqUentes a Revolu~ao Francesa"~4.

Assim, no processo penal brasileiro, da mesma maneira que nos supracitados processos de essencia inquisitorial, e assegurado 0 princfpio do contradit6rio. Nao obstante, na pnitica, nao hi efetividade formal (a lei trata de manter a desigualdade, entre outros e par exemplo, nos arts. 222, 370, § I", 501, todos do CPP) e muito menos material~', dependendo-se, sobremaneira, em primeiro lugar, do conhecimento do 6rgao julgador e, depois, do rigor que imp5e a si mesmo quanto ao respeito pela garantia constitucional, ate porque os principios relativos as invalidades abrem urn campo tao amplo de a~ao a ponto de, se bern operados, quase tomar possfve] a sua inviabilidade. A guisa de exemplo, veja-se 0 pas de nullite sans grief (nao ha nulidade sem prejufzo), insecto no art. 563 do CPP, onde prejuizo, em sendo urn conceito indeterminado (como tantos outros dos quais esta prenhe a nossa legis]a~ao processual penal), vai eneontrar seu referencial semantico naquilo que entender 0 julgador: e af nao e diffcil perceber, rnanuseando as eompila90es de julgados, que nao raro expressarn decis6es teratol6gicas.

Veja-se. todavia, que a Constitui~ao Federal, em seu art. 5°, LV, preve expressamente que "aos litigantes, em processo judicial Oll administrativo, e aos acusados em geral sao assegurados 0 contradit6rio e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes" (grifos oossos).

Em sendo ele, 0 contradit6rio, uma garantia constitucional, para se tee urn processo penal dernocratico nao se pode pensar em restringi-lo, salvo quando esbarrar ern outro principio tambern previsto na Constitui~ao, como ocorre, por exernplo, nas hip6teses em que sao protegidos as direitos a intimidade e a privacidade. Tal confronto hoi de sec

'3 BELLAVISTA, Girolamo & TRANCHINA. Giovani. Lezione di diritto processuale penale, 7- ed .• Milano: Giuffre. 1982, p. 181: "Onde nao existe contesta'rao, nao existe re1a'rao jurfdica processual; onde nao existe contradit6rio, nao existe processo".

Sol FlGUEIREDO DlAS. Jorge de. Direito .... Op. cit., p. 150. 5~ COUTINHO, Jacinto Nelson de Mjranda. Princfpios ... Gp. cit., p. 214.

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resolvido pela aplicalY3.0 do principio da proporcionalidade (como querem as alemaes) ou princfpia da razoabilidade, na visao dos americanos.

Por derradeiro, ha de ressaltar que 0 contradit6rio, ern seoda urn principia 16gico, esta inserido em ambito mais amplo~. ou seja. aquele do principia do devido processo legal, hoje constitucionalmente estabelecido (art. 5°, LIV: "Ninguem sera privado da liberdade ou de seus bens sem 0 devido processo legal"), razao pela qual e recomendavel que 0 seu estudo inicie pela materia constitucional, ainda Hia carente na nossa dogmatica.

5.2 Principio da Verdade Material

o princfpia da verdade material remete-nos ao estudo do processo enquanto reconstru\=ao de urn fato preterite.

Como ja tivemos a oportunidade de analisar tal materia, basta, par brevidade, adota-la, agora, de forma integral, mesmo porque a avalia~ao e recente~7.

"0 fato, neste diapasao, e acontecimento hist6rico, dado a luz por adequac;ao ou inadequa~ao ao jurfdico. Como tal, traduz-se em uma verdade tambem hist6rica e, assim, recognosclvel. 0 meio, sabe-se bern, de fazer - au se tentar fazer - com que aporte no processo e a pro va. Eis par que se diz que a prova e 0 meio que constitui a convic~iio do juiz sobre 0 caso concreto au, tambem e nO mesmo sentido, conjunto de elementos que fonnam a convic~ao do juiz, em que pese, saberem todos. nao ser s6 ela a verdadeira fonnadora do jufzo.

De qualquer sorte, CARNELUTTI mostrou, ja em 1925, que e esteril a discussao a respeito de viger a verdade material au a verdade formal, olhando a diferen~a que se insistia - e alguns ainda insistem - em fazer entre elas, no processo penal e civil. Se EUGENIO FLORIAN (Prove penali, Milano : Vallardi, 1924, pp. 6 e ss.) apontou naquela dire,iio, CARNELUTTI. ao responder (Prove civile e prove penali, in Rivista di diritto processuale civile, Padova : La Litotipo, 1925, volume II, parte I, pp. 3 e ss., especialmente, pp. 17-18), mostrou que a compara~ao era equivocada a urn, porque 0 escopo d~ ambos era a verdade; e a dois, porque 'se l'impiego di dati mezzi, i qualt talvolta servono a farla conoscere, talvolta no, viene prescritto. il risultato che salta fuori si chiama verita fonnale 0 legale volendosi significare che it loro risultato deve essere dal giudice posto a base della decisione, come se fosse veritA, anche se non sia. ( ... ) II che significa che neanche al processo penale si deve assegnare, come risultato anziche come scopo, la verita rnateriale' (p. 18). Com tal formula,iio, sequer a resposta de FLORIAN (Le due prove (civile e penali), in Rivista di diritto processuale civile, Padova : Cedam (giil Litotipo): 1926. volume III, parte I, pp. 221 e ss.), ainda que bern lan,ada, fO! convincente, porque necessariamente circunscrita a pontos secundarios. Basta ver que, no essencial, asseverou que '10 scopo generico delle varie prove, che nei due processi si possono svolgere. e sempre quello di seoprire la verita;. rna­ahime - la verita, gUl tanto ardua a eonseguirsi, si atteggia in modo dIverso

56 TUCCI, Rogerio Lauria. Direitos e garantias irniividuais no processo penal brasileiro. Sao Paulo: Saraiva,

1993. pp. 47 e S8.

'7 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. GJosas ... , Gp. cit.

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nelle prove penali e nelle prove civili' (p. 223), Dai por diante, nao havia como confrontar escapos e resultados, embora fosse - e continue senda - visfvel a ~ifere,n~a que se, ~anifesta quanta a busea, dada a origem sistemica meq~lvocamente dlstIn,ta entre ambos as ramas do direito processual: 0 penal contInua senda essenclaimente inquisit6rio e 0 civil segue corn sua essencia a~usat6ria-dispositiva; sistemas diferentes (veja-se, por evidente, 0 conceito de sIstema, antes de tudo), princfpios reitores diferentes: naquele inquisitivo; neste, dispositivD. Nao existe, todavia, principia misto, razao por que nae se sustenta - a nao ser retoricarnente - urn sistema misto, embora, hoje, todos 0

sejam, isto e, mantem a seu m1cleo (e assim devem ser vistas), mas elencam elementos secundarios importados do outro sistema. Par este vies e metaforieamente falando, ha uma distancia de anos-Iuz entre eles, a qual s6 nao ve quem nao quer; ou tern interesse em manter a situa~ao como esta, 0 que nao 6 de born alvitre, dada a suma importancia da materia, para a que basta pensar nas refonnas Iegislativas.

A afirmacrao de CARNELUTTI, alga como: busca-se a verdade material e obtem-se como resultado a verdade fonnal - e que Ihe marcou a carreira e a vida intelectual ate 1965, quando publica 0 Verdade, duvida e certeza -, acaba sendo a grande ponto de partida, pela negacrao da ultima (verdade formal), porque a primeira 'jamais pode ser alcancrada pelo Homem'. A verdade, se assim 0 e, ha de ser, au melhor, e uma s6; e aquela dita formal, par evidente, em ~endo uma mero reflexo no espelho. 'nao e a verdade' . 0 processo, porem, contInua tendo conteudo, mas e de outra coisa que se trata.

Aqui, como salta it vista, ha uma grande responsabilidade etica: CARNELU1TI funda as bases para que se sustente que os julgarnentos sao lancrados sabre aquilo que, a priori, sabe-se nao ser verdadeiro. Da-nos, entao, por primario, a possibilidade - quicra pela primeira vez! - de questionar a malf~dada segurancra juridica, desde sempre'tao-s6 ret6rica e que transformou her61s em vil6es e vice-versa. .

Nao bastava, todavia, disparar contra - e desmontar - a sustentaculo maior da aparente tranqililidade dos senhores que nao queriam - e nao querem! _ ass~mir as suas responsabilidades, no contraponto dos poderes e deveres que detem. algo s6 passivel de entendimento a partir de FREUD e da psicamilise, mas desde logo compreensfvel, para sOfte da dernocracia. Era necessario, nao obstante. ir al6m e explicar par que e, depois, oferecer algo para colocar-se no seu lugar. CARNELUTTI, neste pequeno-grande texto, nao deixa por menos, embora 0 facra de modo inaceitaveL

Com efeito, a verdade esta no todo, mas ele nao pode, pelo Homem, ser apreensfvel, ao depois, a nao ser por uma, au algumas. das partes que 0

con;p5em. Seria, enquanto vislumbravel como figura geometrica, como urn pohgono, do qual s6 se pode receber it percep~ao algumas faces. Aquelas da sombra, que nao aparecem, fazem parte - ou sao integrantes - do todo, mas nao sao percebidas porque nao refletem no espelho da percepcrao. Ademais, esta figura multifacetada, por evidente, nao pode ser tomada - ou confundida - com apenas .uma das su~s faces. Par isto, sem que se fira 0' princfpio da nao­contradl~ilo (ARISTOTELES. Metafisica, trad. de LEONEL V ALLANO, Porto

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Alegre: Globo, 1969, Livro IV, pp. 86 e ss.; Livro X, p. 206 e ss.: '0 mesmo atributo nao pode, ao mesrno tempo. pertencer e nao pertencer ao mesmo sujeito com relar;ao a mesma coisa' (p. 92), e plenamente possivel afirmar que a parte-face e e nao e ao mesrno tempo. Naquilo em que nao e (na percepcrao quando da recognicrao da instrucrao processual, por exemplo), marca a falta da verdade, a qual, para chegar-se, 'e necessaria conhecer nao somente aquila que a rosa e, mas tambem aquilo que ela nao 6'.

Nao se trata, aqui. de desdizer, por vias transversas, 0 paj da Metaffsiea, p ARMENIDES, quando afirmava: 0 ser e; a nao-ser nao e. 0 problema continua sendo 0 mesmo de sempre, au seja, a identificacrao do pr6prio ser. E aqui, para nos, DUSSEL continua imbatfvel, embora insistam em denega-lo, em nao 0 reconhecer: "0 ser e 0 proprio fundamento do sistema ou a totalidade de sentido da cultura e do mundo do Homem do centro. ( ... ) A ontologia, 0

pensamento que exprime a ser - do sistema vigente e central -, e a ideologia das ideologias. e 0 fundamento das ideologias do imperio, do centro. A filosofia classiea de todos os tempos e 0 acabamento e a realizacrao te6rica da opressao pratica das periferias. ( ... ) Identidade do poder e da dominacrao, 0

centro, sobre as colonias de outras culturas, sabre os escravos de outras ra\=as. o centro e; a periferia nao e. Onde reina 0 ser, reinam e controlarn as exercitos de Cesar, do Imperador. 0 ser e; e a que se ve e se controla. ( ... ) Os filosofos modernos europeus pensam a realidade que se lhes apresenta: a partir do centra interpretam a periferia. Mas os fil6sofos coloniais da periferia repetem uma visao que lhes e estranha, que nao lhes ~ propria: veem-se a partir do centro como nao ser, nada, e ensinam a seus discfpulos, que ainda sao algo (visto que sao analfabetos dos alfabetos que se Ihes quer impor), que na verdade nada sao; que sao como nadas ambulantes da hist6ria. Quando terminaram seus estudos (como alunos que ainda eram algo, porque eram incultos da filosofia europeia), terminam como seus mestres coloniais par desaparecer no mapa (geopoliticamente nao existem, e muito menos filosoficamente). Esta triste ideologia com 0 nome de filosofia e a que ainda se ensinava na maioria dos centros filos6ficos da periferia pela maioria dos professores' (DUSSEL, Enrique. Filosofia da libertarQo, trad. de Luiz lOaD Gaio, Sao Paulo-Piracicaba : Loyola-Unimep, s.d., pp. 11-12-18-19).

Daqui par diante, a questao e de metodo, porque s6 atraves dele e possfvel dizer sobre 0 ser. Neste campo, reinou e reina a analftica aristotelica, porque par excelencia diz com 0 metodo da ciencia. Para urn direito 6rfiio da vera e pr6pria cientificidade, nada mais superficial que se engajar em alga do genera (embora tenha sido exatamente isto que foi feito), tendo-se por pano de fundo. por sintomatico e mais uma vez, a aparente segurancra jurfdiea: au alguem seria capaz de duvidar que a 'precisao' da premissa seduziu os incautos?; ou seria melhor dizer ingenuos?; au, melhor ainda, inseguros?; nao fossem, muitos, catedr' aulicos, como diria LYRA FILHO, que servem a dominacrao por safadeza (LYRA FILHO, Roberto. Par que eSludar direilo, hoje?, Brasilia: Nair, 1984, p. 23): sabem do que se trata; que e necessaria mudar; mas querem que tudo fique como esta, ou que mude para ficar como esta, qual TANCREDI, de Lampedusa, em Ii gattopardo. explicando-se ao tio. Pense-se, nesta esteira,

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por exemplo, em como estuda-se - e ensina-se - a sentenya e 0 ato de sentenciar; 0 requerimento-peti~ao e a ato de requerer, e assim por diante. Tuda, enfim, resume-se a silogismos, muitas vezes sem qualquer sentido; au, 0

qu~ e muito pior, que dao, categoricamente, '0' sentido. De quaJquer forma, a VfCIO pareee estar no pr6prio metoda; e mais uma vez CARNELUTTI, ainda que sem 0 saber (au ja sabia'?), proporcionou-nos urn passo adiante. Aflnal, quando afirma que '0 todo e demais para n6s', antecipa aquila que veia a sec urn dos pilares do neoliberalismo de FRIEDRICH AUGUST VON HAYEK (Derecho, legislaci6n y liberdad, Mexico: Union Editorial, 1985), mas abre ~m grande leq.ue de discussao e investiga~ao. Sem embargo, para 0 que agora mteressa-nos, IStO e, 0 espac;o de questionamento do valor da analftica enquanto '0 metoda' do direito, assim como 0 nosso autor, DUSSEL tambern vai afi~ar, sabre ela, que 'antes de de-rnonstrar algo h!i. que rnostrar 0 principio 'a partir' do qual se pretende 'de'-monstrar. 0 que se mostra e 0 ponto de partida ~a d~-m~nstr~9ao e nao se 0 pode por sua vez de-monstrar - porque se iria ao mfimto: Jamals podendo demonstrar algo. 0 ponto de partida e indemonstravel. Ou a clencia parte de principios evidentes ou nao h:i ciencia. ( ... ) A ciencia Par:e. ~o conhecido por evidencia: a evidencia, porem, funda-se na cotId~amdade dentro da qual a princfpio e considerado (as vezes par mera con~lc.9~o hist6rico-cultural) evidente. ( ... ) A ciencia nao parte de duas possIbIhdades, mas de urn principio au axioma. A ciencia nao se interroga acerca de seus axiomas. Considera-os evidentes; do contnirio nao haveria ciencia. ( ... ) A ciencia capta com evidencia seus principios: estes principios sao postos-debaixo: subpos~os'. (DUSSEL, E. Metodo para urna filosofia da hbertarlio, trad. de Jandlr Joao Zanotelli, Sao Paulo: Loyola, 1986, pp. 24-25-29), ~esta evidente, por 6bvio, que estamos diante de Uma impossibilidade, de uma ms~guranc;a enquanto pretende-se exatamente 0 oposto, isto e, aquila que proporclona a seguranc;a; assim, estamos diante de uma verdade aceita cOlToborada, quando efetivamente 0 e porque, de seguro mesrno, s6 a certez~ de que Se pade manipular a axioma. E nao ha de se duvidar ser a prerrogativa usada por aqueles com poderes para tanto ... sempre ern nome da 'verdade'. da 'fe', da 'maioria', do 'povo', da 'seguranc;a nacional', 'da falta', au seja, do argumento ret6rico mais apropriado para 0 momenta. Sem embargo, isto e poss~vel porque se mantem vivo - e mantem-se mesmo! -, no imaginano coletlvo, a ameac;a do inimigo, do contnirio, do invasor, au quem se prestar a tanto; sem embargo, no limite, cria-se urn 'bode expiat6rio' (em sociedades autoritarias), au desenvolve-se a racismo, naquelas tidas como mais democniticas, como se fez na Europa ocidental com as imigrantes, mormente ap6s a queda do Muro de BerIim: 'Assirn os grupos sociais man tern sua coesao em uma oscila~ao pouco divertida entre ditadura e democracia, duas formas de organizac;ao cujos efeitos sao avaliados ou pela exclusao de urn bode expiat6rio, au por urn racismo mais au menos larvado' (POMMIER, Gerard. Freud apolftico?, trad. de Patricia Chitonni Ramos, Porto Alegre : Artes Medicas, 1989, p. 35).

Desmitificada a ana1ftica, restaria a diaIetica e a saber que propicia, 'rnais perfeito que 0 cientifico' (DUSSEL, E. Db. cit., Metodo, p: 25). Eis a for9a do

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livro dos T6picos, de ARISrOTELES (trad. de Leonel Vallandro e Gerd Bernheim, 4' ed., Sao Paulo: Nova Cultural, 1991, cole9iio Os Pensadores), banido porque a ponto de partida ja nao devia ser uma 'premissa exata' - e fonte de toda a aparente seguranc;a -, mas de mera 'opiniao cotidiana', julgada desprezivel pelos adeptos de PLATAO (e a Igreja nao se construiria - e consolidar-se-ia - se nao fosse assim: veja-se 0 Nome da Rosa, de UMBERTO ECG), razao par que se caminhou ao outro extrema, isto e, 0 de se pensar 'que a ciencia era 0 supremo' (DUSSEL, E. Db. cit, Metodo, p. 25).

No lugar de ambas (analitica e dialetica), faz-se mister referir - embora nao se tenha muho espac;o neste despretensioso ensaio -, que DUSSEL vai apontar da dire9ao da analetica, a qual mereceria uma mais profunda observaC;ao, dada a riqueza com que se apresenta (Dussel, E. Db. cit, Metodo, pp. 196-7 e 199).

CARNELUTTI mostrou-nos, ao colocar ern crise - e destruir - a n0930 de verdade processual, a corda bamba pela qual temos que passar para sobreviver. Resta-nos, porem, uma etica na qual 0 outro conte - e deve contar - alguma coisa; a etica da alteridade. Ja nao somas, por outro lado, as mesmos dos tempos dos nossos av6s, onde a palavra valia acima de qualquer lei (au com ela se confundia), qui'ta porque estamos perdendo a registro do simb61ico, em troca de urn crescente deslizar no imaginario. As aparencias, como diz 0 ditado popular, enganam; e enganam mesmo! Diagnosticada a falta da verdade. no Iugar dela CARNELUTTI prop6e que no processo passe-se a buscar e investigar a certeza. No fundo, e born que se diga desde logo, nao vai mudar muito; mas vai, definitivamente, colocar a espelho diante daqueles que nele devem enxergar-se."

Apesar do exposto, a grande maioria da doutrina brasileira insiste em dizer que 0

processo penal e regido pelo principio da verdade materia1. Contudo, nao se da conta que esta ideia vern 1egitimar 0 sistema inquisit6rio e toda a barbarie que 0 acompanha, na medida em que tern 0 processo como meio capaz de dar conta "da verdade"; e nao de "uma verdade", nao poucas vezes completamente diferente daque1a que ali se estaria a buscar.

Assim, e preciso admitir que no processo penal jamais se vai apreender a verdade como urn todo - porque ela e inaIcan9avel - e, portanto, como se viu, 0 que se pode - e deve - buscar nos julgamentos e urn jUlzo de certeza, pautado nos principios e regras que assegurarn 0 Estado Democratico de Direito.

5.3 Princfpio do Livre Convencimento

Como se sabe, a produC;ao da prova no processo penal tern por objetivo formar a convicC;ao do juiz a respeito da existencia au inexistencia dos fatos e situac;6es relevantes para a senten'ta. E, em verdade, 0 que possibilita 0 desenvolvimento do processo, enquanto reconstru~ao de urn fato preterito, conforme restou dernonstrado.

Nesse momenta, reconstituidos os fatos, surge a questao referente a apreciac;ao da prova. Como e primario, ha, historicarnente, tres principios que orientam a regencia da dita apreciac;ao, em que pese nao necessariamente em tal ordem cronol6gica: I) a valor das provas e dado pelo juiz que, livremente, empresta a ela a sua subjetividade: trata-se do principio da convic(iio rntima ou certeza moral; II) 0 valor das provas e atribufdo taxativamente pela lei: trata-se do principio da certeza legal ou tarifamento legal; III) 0

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valor das provas e atribuido livremente pelo juiz, a partir de sua convicc;ao pessoal, porque DaD ha como ser diferente, na estrutura atual do processo, mas todas as decis5es de vern seT fundamentadas: trata-se do principia do livre convencimento all da convicc;ao racionaI.

Daquila que serve de base aD pensamento hodierno sabre a materia e, de conseqiH~ncia, influencia 0 nosso, ha. de se ver que muitas IegisJac;6es aceitararn a previsao da possibilidade de 0 juiz incorrer em erro, no momento de valorac;ao dos meios de prova utilizados, razao pel a qual se fiXQll, oa lei, uma hierarquia de valores referentes a tais meios. Veja-se, neste sentido, 0 sistema processual inquisitorio medieval, no qual a confissao, no topo da estrutura, era considerada prova plena, a rainha das provas (regina probationum), tudo como fruta do tarif-amento previamente estabelecido. Transferia-se 0

valor do julgador a lei, para evitam-se manipula~5es; e isso funcionava, retoricamente, como mecanismo de garantia do argUido, que estaria protegido contra as abusos decorrentes da subjetividade. Sem embargo, a historia demonstrou, ao reves, como foram os fatos retorcidos, por exemplo, pel a ado~ao irrestrita da tortura.

Todavia, ap6s a Revolu~ao Francesa, passou-se a sustentar que 0 valor e a for~a dos meias de prova nao podem ser aferidos a priori, com base ern criterios legais, mas tao-s6 a partir da analise do caso concreto. Assim, passou-se a substituir, paulatinamente, a princfpio da valora'tao legal das pro vas pelo princfpio da livre aprecia~50 delas pelo juiz, corn a devida fundamenta'tao: teriamos chegado, com a livre convencimento, a fase cientifica.

No Brasil adotou-se 0 principio do livre convencirnento, conforme disp6e 0 art. 157 do CPP ("0 juiz formara sua convic'tao pel a livre aprecia~ao da pro va"), que deve ser conjugado com art. 93, IX, da CF: "todos os julgamentos dos 6rgaos do Poder Judiciario serao publicos, e fundamentadas todas as decisoes, sob pena de nulidade, podendo a lei, se o interesse publico 0 exigir, limitar a presen~a, em detenninados atos, as proprias partes e a seus advogados, au somente a estes~".

Vale salientar que, par evidente, tal principia do livre convencimento nao deve implicar uma valora~ao arbitraria da prova par parte do juiz. Ora, "se a aprecia~ao da pro va e, na verdade, discricionaria, tern evidentemente esta discricionariedade (como ja dissemos que a tern toda a discricionariedade jurfdica) os seus Iimites que nao podem ser licitarnente ultrapassados: a liberdade de aprecia~ao da pro va e, no fundo, uma liberdade de acordo com urn dever - 0 dever de perseguir a chamada 'verdade material' -, de tal sorte que a aprecia<;ao ha de ser, em concreto, recondutfvel a criterios objectivos e, portanto, em geral susceptivel de motiva<;ao e de controlo (possa embora a lei renunciar a motiva~50 e ao controlo efectivos)"~8.

Sabre a tema, ADA PELLEGRINI GRINOVER assevera, ainda, que "com a liberdade da valora~ao nao se pode confundir principio diverso, que e 0 da Iiberdade da produ~ao da prova, 0 qual resulta no poder inquisitivo do juiz de buscar e introduzir no processo ex officio elementos probat6rios, al!:;m do material produzido pelas partes"5~.

Por tim, faz-se imprescindfvel reconhecer que 0 principio do livre convencimento pode ser manipulado pelo julgador, razao por que a consciencia de tanto e necessaria a

58 FIGUEIREDO DIAS. Jorge de. Direilo ... Op. cit .. p. 202. 59 GRlNOVER, Ada Pelleglini. Liberdades publicas e processo penal: as intercep(a~oes tele/onicas, Rio de

Janeiro; Saraiva, 1976. p. 132.

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tim de controlar-se dando efetividade a garantia constitucional. Neste sentido, NILO BAIRROS DE BRUM afirma que, "geralmente, chegado 0 momenta de pradat~ _ a senten<;a penal, 0 juiz ja decidiu se condenani. au absolvera a r~u. Cheg~u ~ e~a ~cl~a? (ou tendencia a decidir) por vanos motivos, nem sempre 16g1coS au enva _ os a el. Muitas vezeS a tendencia de condenar esta fortemente influenciada pela extenls.ao d(a folh.a)

, I'" e determinado de Ito em SI de antecedentes do reu ou, ainda, pe a repugnancla qu . provoca no espirito do juiz. Por outro Iado, ~ tiel da bala~~a pode t~r pe~~ld~st~r~l: absolvi<;ao em razao da grande prole do reU all em vlrtude do at~ no cometido perfeitamente integrado na comunidade au, ainda, pelo fato de que 0 ell nenhuma repugnancia causa ao juiz, a que a faz visualizar. tal figura pena como excrescencia legislativa au urn anacronismo juridico. Sabe 0 Julgador, entretanto, que

. - - seriam aceitas pela comunidade jurfdica sem uma roupagem essas motIva~oes nao d 0 reu em razao de radonal e tecnicamente legitima. Se declarar francamente que con ena . filh

b lee trabalhador e tern mmtos lOS, seus pessimos antecedentes ou que 0 a so ve porqu . ~. ntao a sua senten~a fatal mente sera reformada par falta de bas~ J~ndlca. C .• ·) Busca~~, ~eio 'da 'ul ador outro caminho que pode ser atraves da avaha~ao da prova au P .. Jint:rpreta~ao da norma. Geralmente, pelo menoS e~tre n?s, as jUiz~~.f::~:e: °c~~~:~~r~ carninho ja que a prova e produzida longe dos tnbunals e a POSSI I I

, d'f: 'I ( ) Mas 0 J'ulgador tern de justificar sua escolha: tern de convencer _qu: mats I ICI. ... . ~. d nten~a que nao e elegeu a melhor prova. Surge aqui 0 primeiro requislto r~tonco a se,,6O ' outro senao a da verossimilhan<;a fatica. Trata-se de urn efelto de verdade. ~.

O ' t te enfim neste tema e ter-se urn julgador conscienle das suas propnas Imparan, , , . . I tos limita~oes (au tenta<;5es?), de modo a resguardar-se ~on~a.s~us eventua~s preJu gamen , que os tern naa porque e juiz, mas em fun~ao da sua mehnunavel humamdade.

60 BRUM, Nilo de Bairros. Requisi(os ret6ricOS da sentenra penal, Sao Paulo: RT, 1980, pp. 72-73.

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o "CRIME DE PORTE DE ARMA" A I,UZ DA PRINCIPIOLOGIA CONSTITUCIONAL E 00 CONTROLE DE

CONSTITUCIONALIDADE: TRES SOLUC;:OES A LUZ DA HERMENEUTICA

Lenio Luiz Streck Procurador de Justi"a no RS

Doutor em Direito Professor do ePGO da UNISLNOSIRS

. . 1: Vi~ando a atender aos recIarnos de setofes da sociedade que acredita(va)m na cfl~nahza9ao do porte de arma como fato de diminuis:fio da criminalidade, 0 Congresso NacIOna] ,aprovou ,a Lei 9.437/97, estabelecendo urn efetivo endurecirnento nas penas dess~ dehto (antenormente enquadrado como mera contraven9ao penal). Com efeito, 0

aludl?? art. 10 estabeleceu que configura crime "passuir, deter, transportar, fabricar, adqumf: vender, alugar, expor a venda au fornecer, reeeber, ter em dep6sito, transportar ceder, amda que gratuitarnen.t~, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda e ocult~ anna de fogo, de uso penmtldo, sem a autorizac;ao e em desacordo com deterrninac;ao legal au regulamentar".

~ 2: ?e pron~o, cabe referir (e denunciar) a extrema vagueza e ambiguidade com que esta ~edIgldo ° ~lspositivo. Qual a diferenc;a, por exempIo, entre possuir e deter uma anna. Qual a ~dlfer~n9a entre possuir uma anna ("m casa e transporta-la em vei'culo automotor? Alem dISSO, 0 dispositivo e antigarantista, porque estabelece, em outras palavras, q,ue q~em-de-qualquer-modo-se-aproxirnar-de-arrna_de_fogo estara sujeito as ~en~s ~a leI!!! Nao bastasse isso, como se vera mais adiante, trata-se de urn tipo penal que lTIcnnuna mera conduta, estabelecendo crimes de perigo abstrato, incompatfveis com 0 moderno Estado Democratico de Direi to.

3, Nao .se coloea em duvida, ab initio, a necessidade de criminalizar determinadas c~ndutas relaclOnadas ~o ,em~reg~ de armas: s~a f~bricac;ao, vendas, etc, Parece que nao ha como contentar a c~1TI1l.nahza9ao do uso (mdIscrurunado), venda e fabricac;ao de armas de fogo, 0 que deve clentJficamen~e ser question ado e a tabula rasa que fez 0 iegislador, ao (~~s)valorar, com 0 mesmo fIgor, condutas Como possuir, deter, portar, fabricar, adqulfJr: vender, alug~, expor it venda au fomecer, receber, ter ern dep6sito, transportar, ceder, aInda que gratUlta',llente, em~restar, remeter, empregar, manter sob guarda e ocultar arma de f~go, Fez 0 leglsIador, pOlS, uma isonornia as avessas (como 0 fez tambem na recente _Lei 9,714, ao colocar no mesmo patamar delitos como sonega9ao de impostos e ~or:u?9aO, que lesam bens de fndole transindividual, com delitos de fndole inter­mdivIdual, como furto e estelionato!).

REVlSTA DE ESTUDOS CRIMINAlS 1- 2001· Doutrlna 531

4. Nao e diffcil chegar a conclusao que 0 simples fato de alguem "possuir arma de fogo sem autoriza9ao" (tendo-a em casa ou transportando-a no seu veicuio, par exemplo) nao pode significar - per se -lesao a qualquer bern juridico, Nesse senti do, concordo com PAULO EDUARDO BUENO, para quem 0 delito em tela deve ser examinado sob 0

prisma da danosidade social: "Nas miios de urn crirninoso, a arrna ~ urn instrumento altamente perigoso, mas, nas miios de urn cidadiio honesto, a arrna e urn instrurnento de defesa, 0 grande problema da Lei 9.437/97 e ter atingido substancialmente nao os criminosos, mas aqueles cidadiios honestos que mantinham urna arma exclusivamente para a propria defesa, mesmo porque aqueles que vivem a margem da lei, via de regra, nao se subardinam as regulamenta90es administrativas, Na pnltica, portanto, 0 desejado contra Ie de armas de fogo veio prejudicar as possibilidades de defesa dos cidadaos honestos e nao resolveu 0 problema da violencia", Sem considerar 0 fato, acrescenta 0

autor, do elevado valor da tarifa cobrado para regularizar a arma, R$ 650,00' (cerca de U$ 300.00).

5. Mais ainda, e de registrar, por relevante - e 0 pensamento de BUENO (op, cit.) vai no mesmo sentido -, que a simples hip6tese de guardar ou possuir arma de fogo sem registro niio constitui qualquer violariio a bem jur{dico. Desnecessario dizer que nao ha crime sem viti rna. E nao se venha dizer que a vitima desse "crime e a sociedade, porque a sociedade e sempre vftima (a ideia de crime implica per se uma conduta anti-social), Ou seja, e muito simpl6rio dizer que a vftima, no caso sob analise, seja a sociedade, E a criminalizaC;ao nao pode ser produto de simples discricionariedade do legislador!

6. Acrescente-se, ainda, que e aplicavel a especie 0 principio da subsidiariedade, variante do principio da proporcionalidade, pelo qual nao esta permitida a intervenc;ao penal se 0 efeito se pode alcanc;ar mediante outras medidas menos drasticas2, Ou, como diz SANTIAGO MIR PUIG (ibidem), 0 direito penal deve ser a Ultima ratio, a ultimo recurso a ser utilizado, na falta de outros menos lesivos, 0 chamado carater fragmentario do direito penal constitui uma exigencia relacionada com a anterior. Ambos os postulados integram 0 chamado " principio de intervenc;ao minima".

7, Despiciendo dizer que no Estado Democcatico de Direito nao existe liberdade (ilimitada) de conformac;ao do legislador. Ou seja, 0 legislador niio e livre para estabelecer tipos ao seu bel~prazer. Deve, antes, obediencia it Constituic;ao, entendida em seu todo principiol6gico. Despiciendo tambem lembrar, como diz PAULO BONAVIDES, que princfpios val em, regras vigem. sendo a violac;ao de urn princfpio, como bern lembra CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO, mais grave que a viola,ao de uma norma. Alias, ja no ana de 1950, a Verfassungsgerichthof da Baviera decidia que "a nulidade inclusivamente de uma disposiC;ao constitucional nao esta a priori e por defini9ao exclufda pelo facto de tal disposic;ao, ela pr6pria, ser parte integrante da Constitui~ao, Ha princlplOs constitucionais tao elementares, que obrigam a pr6prio legislador constitucional e que, por infra9ao deles, outras disposic;oes da Constitui93.0 sem a mesma dignidade podem ser nulas", Relembre-se, nesse sentido, e para exemplificar, que 0

Supremo Tribunal Federal vern aplicando 0 princfpio da proporcionalidade desde 0 ano de 1951.

I Cf. BUENO, Paulo Eduardo. Anna de fogo - 0 crime de posse irregular de anna de fogo e a quesltio do bem jurfdico, in Revista Juridica jul.l1999, pp. 47-51.

2 Cf. JAKOBS, GUnter apud BUENO, op. cir.

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8. Varios principios, no caso em pauta, estao sendo violados: 0 principio da subsidiariedade, variante do princfpio da proporcionalidade, 0 princfpio da razoabilidade (afinal, e razoavel punir alguem com pena minima de urn ana porque tern, por exemplo, uma espingarda au urn rev61ver guardados em urn armario da sua residencia?), alem do princfpio da secularizac;ao (nao se esquecer que 0 Estado nao pode punir meras condutas e comportamentos).

9. Assirn, nao se pode admitir que 0 legislador (sic) in'crimine meras atividades (e cornportamentos) como ilicitos, sem exigir um eJetivo dana a algum bemjurfdico. DUo de outro modo, 0 art. J 0, em algumas de suas modalidades, int'roduz em nosso dire ito uma nova modalidade de crime: 0 crime de dana normativo! Ora, sera demais lembrar que somente a lesao concreta ou a efetiva possibilidade de uma lesao imediata a algum bern jurfdico e que pode gerar uma intromissao penal do Estado? Caso contnirio, estani 0

Estado estabelecendo responsabilidade objetiva no direito penal, punindo condutas in abstracto), violando os ja explicitados princfpios da razoabilidade, da proporcionalidade e da secularizaC;ao. conquistas do Estado Democratico de Direito. E de se perguntar: onde 0

perigo concreto decorrente da atitudelconduta do feU? Mais ainda: onde esta a razoabilidade da punit;iio de urn cidadao que guarda em sua casa uma espingarda ou urn rev6lver, ainda que sem autorizar;ao? E 0 que dizer dos carnponeses que tern em casa velhas espingardas e que mesmo assim est50 sendo condenados por "possu(rem" ou "transportarem" armas sem autorizac;ao legal? Nao se mostra, po is, despropositado trazer a lume 0 velho exemplo sobre 0 princfpio da razoabilidade da lavra de RECASENS SICHES: se urn norma estipula que e proibido carre gar caes na plataforma, nao e razmlvel supor que seja perrnitido ao cidadao trazer consigo urn urso ou urn tigre ... A pergunta sobre 0 porque de se proibir 0 urso, se a conduta nao esta expressamente proibida. a resposta que se imp5e e que nao e razoavel supor que a proibic;ao de cues possa ensejar salvo-conduto para ursos, cascaveis. tigres, panteras, etc.

10. Nao se deve olvidar que 0 C6digo Penal estabelece que 0 cidadao tern 0 direito de se defender, em caso de agressao atual ou iminente. E 0 caso, pois, da conhecida legftima defesa. A vingar a tese da tabula rasa produzida pelo tipo penal previsto no art. 10, estar-se-a, metafisicamente, estabelecehdo i-lma universalizaC;ao abstrata, impedindo, desde logo, a possibilidade de 0 cidadao exercer 0 direito penal-constitucional de auto­defesa.

11. Nesse sentido, e impartante registrar que hermeneutica e sempre cornpreensao e aplicac;ao. A partir da Nova Henneneutica, de vertente heideggeriana-gadameriana, interpretar e produzir/agregar/adjudicar sentido ao texto, que passani a ser norma a partir da interpretac;ao. Nao pode haver henneneutica sem relaC;ao social. 0 texto deve sempre ser interrogado e trazido para urn espac;o temporal, para mostrar as suas potencialidades;

3 0 Superior Tribunal de Justlf;a, ao examinar a epoca 0 problema decorrente das contravenyoes de transito _ cujo processo de criminaliza'i!ao foi jdentico ao da criminalizayao do porte de arma -, deixou clara sua posi~5.o em rel~50 a impossibilidade de puni~iio de delitos classificados como abstratos: "A infra'i!ao penal nao e s6 ~o~d~ta. Impoe·se, ainda, 0 resultado no sentido normativo do termo, ou seja, dana au perigo ao bern JundLcamente tulelado. A doutrina vern, reiterada, insistentemente, renegando os delitos de perigo abstrato. Com efeito, nao faz sentido punir pelas simples conduta, se ela nao trouxer, pelo menos, a probabiJidade (nao possibilidade) de risco aD bern juridico C".). A relevancia criminal nasee quando a conduta gerar perigo de dana. Ate entao, a conduta sera atipica" (REsp 34.322·0·RS, ReI. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro _ DJU 02.08.93, p. 14.295, in Revjsta Juridica 193/102).

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sornente entao sera compreendido em "seu" sentido, isso porque 0 jurista-interprete nao pode pensar na lei e nem captar 0 seu sentido. a nao ser mergulhando no rio de sua hist6ria, deslizando ate 0 presente de sua aplicac;iio (GADAMER). Ou seja, niio e possivel interpretar sem ter em conta urn caso concreto (nas suas especificidadest. Entender, v.g., que 0 simples possuir, deter ou transportar (sem qualquer violac;ao concreta de urn bern jurfdico) constituem crime. e 0 mesmo que estabelecer uma universalizar;ao rnetafisico­essencialista (aristotelico-tomista) ao texto da lei, perdendo-se 0 necessario carater ontico­onto16gico (e, portanto, hermeneutico) da interpretac;ao. Em sfntese, criminalizar de forma objetivista e abstrata a conduta de possuir anna. v.g., e dar ao texto urn sentido em si mesrno, enfim, aquilo que se chama na modema hermeneutica de Jetichizar;iio da lei (e como se 0 texto da lei - no caso, os verbetes "possuir", "deter", "transportar", para citar alguns - ja trouxesse em si mesmo 0 seu senti do, a-historico, atemporal e descontextualizado). Ao mesmo tempo, ter-se-ia uma especie de essencialidade legal­textual, onde 0 papel do interprete ficaria restrito a uma mera subsunc;ao (metaffsicat.

12. Em face de tudo isso, como resolver a controversia? DecIarar a inconstitucionalidade do art. 10 em sua totalidade e impossfvel, uma vez que somente em parte fere a Constituic;iio. Alias, ja de antanho, LUCIO BITI'ENCOURT, na classica obra o Controle da Constitucionalidade das Leis, afirmava que "quando, portanto, uma parte da lei e inconstitucional, esse Jato niio autoriza os tribunais a declarar tarnbem ineJicaz a parte restante". Assim, colocadas as premissas hermeneuticas anteriormente especificadas. ha que se fazer uma fusao de horizontes, buscando no direito alieni'gena e na jurisprudencia de nosso Supremo Tribunal Federal os caminhos para a soluc;ao da controversia. Com efeito, tres soluc;5es se colocam na especie:

a) A primeira das soluc;5es que podem ser aplicadas e aparentemente simples, representada pela declaraC;ao da inconstitucionalidade parcial do texto do art. 10, com redu~ao do texto, mediante a retirada das hipoteses consideradas incompativeis com os princi'pios constitucionais anterionnente elencados. Nesse caso, no controle difuso de constitucionalidade, par exemplo. 0 juiz pode deixar de aplicar qualquer das hip6teses criminalizadoras constantes no tipo penal e, em sede de apelac;ao, 0 orgao fracionario (Camara ou Turma) deve suscitar 0 incidente de inconstitucionalidade, em confonnidade corn 0 regirnento interno do Tribunal, sob comando do art. 97 da Constituic;ao Federal. Desnecessario dizer que nao ha obstaculo para que se fa~a a retirada de parte de urn dispositivo legal, uma vez que a jurisprudencia do Supremo Tribunal Federal demonstra varios casos em que urna palavra (ou parte de frase) fai expungida de urn textc.

4 Falo aqui de uma henneneutica de cunha produtivo (Sinngebung) e nao meramente reprodutiva (Auslegung) como, por exemplo. queria EMILIO BElT!. Ou seja. a tese gadameriana de que e imposslvel reproduzir 0

sentido do texto jurfdico assenta·se em uma profunda diaietica, como na maxima de Heraclito, de que e imposslvel banhar·se duas vezes na mesma agua do rio. Via hermeneutica, rompe-se com qualquer possibilidade de idealismo e realismo. 0 interprete nao esta fora da hist6ria efectual (Wirkungsgeschichte). Na fIlosofia da consciencia se dizia que 0 sujeito cognoscente poderia, de forma racional, determinar 0 objeto; com GADAMER, essa reJayao sujeit%bjeto e rompida/ultrapassada. pois 0 sujeito nao e uma manada, e, sim, o sujeito e ele e suas possibilidades de ser no mundo, e ele e suns circunstiincias, enfim, e ele e sua cadeia significante. Dai GADAMER dizer. homenageando LACAN em seus Kleine Schriften, que a linguagem n50 e em primeiro Jugar aquilo que 0 individuo fala e sim aquilo pelo qual 0 indivlduo e falado. Consultar STRECK, Lenio Luiz. Hermeneutica Jurfdica e(m) Crise, 2" ed .• ver. e ampJiada, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000.

~ Sobre a tematica "henneneutica crftica", consultar STRECK. HenneneUlicQ, op. cit.

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Nesse sentido, cabe ressaltar a importAncia do controle difuso de constitucionalidade. Muito embora insito ao nosso sistema (que e rnisto), a pnitica tern demonstrado que as jufzes e tribunais tem-se mostrado urn tanto quanto refratarios ao exercfcio dessa faculdade. Por vezes, ha casos em que as 6rgaos fracionarios fazem 0

contrale, sem, no entanto, suscitar 0 necessaria incidente, 0 que representa flagrante viola~1io do art. 97 da CF. Note-se que 0 6rgao fracionario somente esta desobrigado de suscitar 0 incidente quando a nonna for anterior a Constitui~ao ou nas hip6teses pre vistas no art. 481 do CPC, com a reda,ao que Ihe foi dada pela Lei 9.756. No caso sob comento, na medida em que 0 6rgao fracionario se inclinar pela inconstitucionalidade de alguma das hip6teses criminalizadoras do art. 10, torna-se imprescindivel a suscitac;ao do incidente de inconstitucionalidade.

b) A segunda possibilidade e a aplicagao do mecanismo da interpretar;ao COn forme a Constituigao. Nesse caso, 0 tribunal darla a interpretagao pela qual - e somente pela qual - 0 dispositivo (por exemp10, as modalidades de possuir, deter au transportar) serja compat(vel com a Constituirao (na sua materialidade principioI6gica). Nesse sentido, pode-se buscar na jurisprudencia europeia um precedente que pode trazer luz para 0

presente caso. Com efeito, 0 Tribunal Constitucional da Espanha, atraves da sentenr;a n° 105188, declarou a inconstitucionalidade do delito de porte de utensilios pr6prios para a cometimento de furto (gazuas e outros instrumentos), por violariio ao art. 24.2. da Constituir;iio (prindpio da presum;iio da inocencia). 0 art. 509 do Codigo Penal incriminava "el que tuviera em su poder ganzuas u otras instrumentos destinados especialmente para ejecutar el delito de robo y no diere descargo suficiente sabre sua adquisici6n 0 conservaci6n ( ... )". 0 TC declarou como contraria a Constitui<;ao qualquer interpretagao do referido tipo penal que viesse a castigar tao-somente a posse de instrumentos idoneos: "( ... ) en cuanto se interprete que la posesion de inslrumentos idt3neos para ejecutar el delito de robo presume que la finalidad y el destino que les da sua paseedor es la ejecuciQn de tal delita", Ou seja, entendeu 0 Tribunal espanhol que, sem a prova da possibilidade de efetivo dano, niio se pode punir. A presun<;ao de que alguem vai cometer urn furto, pelo fato de estar portando instrumentos proprios para tal, nao e razao suficiente para 0 enquadramento no tipo penal. Meras condutas nao podem ser punidas; tarnpouco se pode punir alguem com base em presun<;6es.

Registre-se, por relevante, que a senten<;a espanhola, mais do que uma declarac;ao de inconstitucionalidade, se aproximou daquilo que se entende par interpretac;ao confonne, porque especificou em que hipotese a norma seria constitucional. No caso da Lei 9.437, ora sob comento, ° Tribunal (ou 0 juiz de 1° grau) pode especificar, v.g., que 0

fato de alguem deter uma arma nao pode constituir, por si so, 0 crime previsto no art. 10, na mesma linha de raciocfnio usado pelo Tribunal Constitucional da Espanha. Ninguem pode ser punido pela presunrao de que a detenriio de uma arma possa constituir perigo para alguem ou para a sociedade. Do mesmo modo, 0 Tribunal espanhol entendeu que 0

fato de alguem possuir au portar instrumentos aptos para furtar nao podem constituir 0

crime previsto no tipo ter "en su poder ganzuas u otras instrumentos destinados especialmente para ejecutar eI delito de robe y no diere descargo suficiente sobre sua adquisici6n 0 conservaci6n." Dito de outro modo, 0 Tribunal din'i., usando a interpretagao confonne, que 0 tipo penal (na especificidade escolhida) somente sera constitucional se interpretado no sentido de que 0 ato do agente, ao deter ou possuir uma arma, constitua perigo concreto. .

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c) A terceira maneira de solucionar a controversia e a aplicagao da tecnica da inconstitucionalidade parcial sem redw;ao de texto. No caso em exame, 0 art. 10 da Lei 9.437/97 sera inconstitucional se aplicavel ii hip6tese do simples "possuir" "deter" au "transportar", sem que essa conduta coloque em risco qualquer bem jurldico, para citar apenas algumas hip6teses das tantas cominag6es constantes no aludido art. 10, tudo sob pena de estarmos incorrendo na responsabilidade penal objetiva. Assirn, nao e desaITazeado propor, para 0 problema ensejado pelo art. 10 da Lei 9.347/97, a aplica<;ao da deciaraft10 de nulidade (inconstitucionalidade) parcial sem reduftio de texto, tecnica, alias, que 0 STF ja vern adotando ern nosso direito (nesse sentido, especificamente ver ADIn n° 319, ReI. Min. Moreira Alves, RTJ 137, pp. 90 e segs; tambem as ADIns 491,

939 e 1.045). Trata-se de aplicar, mutatis mutandis, aquila que no direito partugues s,e denomina

de "decisao redutiva". Ou, melhor ainda, na acep,ilo JEAN-CLAUDE BEGUIN (Le controle de la constitutionnalite de lois em RepubUque Federale d'Allemagne), trata-se de "anulagao parcial qualitativa" (quando a norma, no seu conjunto, nao deve ser aplicada a certa situagao, por tal aplicac;ao ser inconstitucional). Nesse sentido, ha urn interessante precedente jurisprudencial da entao Comissao Constitucional (que antecedeu 0 Tribunal Constitucional portugues): face a uma norma que regulava as atenua<;6es extraordimirias previstas no art. 298, n, prevendo certas atenuag6es obrigat6rias, verificadas determinadas circunstancias, entendeu-se declarar a norma parcialmente inconstitucional na parte em que consagrava as referidas atenua~oes extraordinarias obrigatorias (ou legislativas, como sao designadas no texto do ac6rdao) considerando-se que seriam, porem, admitidas como meramente facultativas para os jufzes (Diano da Republica de 29 de dezembro de 1978, p. 40)'.

13. De ressaltar que 0 Supremo Tribunal Federal enfrenta quest6es similares par vezes aplicando a interpretagao confonne a Constituigao (Veifassungskonforme Auslegung) e outros aplicando a nulidade parcial sem redu<;ao de texto (Teinichtigerkliirung ohne Normtextreduzierung) (vejam-se, v.g., as Repr. nOs 948 e 1.417 e ADIns nOs 319 e 491). Em ambas as hipoteses, na esteira do que faz 0

Bundesfassungsgericht alemao, permanece a literalidade do dispositivo, sendo alterada apenas a sua incidencia7

14. Muito embora a confusao que se possa fazer entre a dec1aragao de nulidade parcial sem redugao de texto com a interpretagao con forme a Constituigao, deve ficar claro, com GILMAR FERREIRA MENDES, que, enquanto nesta se tern, dogrnaticamente, a declarac;lio de que uma lei e constitucional corn a interpretac;ao que lhe e conferida pelo 6rgao judicial, naquela ocorre a expressa exciusao, por inconstitucionaiidade, de determinada(s} hip6tese(s} de aplicafiio (Anwendungsfalle) do programa normativo sem que se produza alterafiio expressa do texlO legal8

, Mais ainda, diz MENDES (ibidem), se se pretende real,ar que determinada aplica<;ilo do texto normative e inconstitucional, dispoe 0 Tribunal da declara~ao de inconstilucionalidade sem reduft10 de texto, que, aiem de mostrar-se tecnicamente adequada para essas

6 Ver, para tanto, CANAS, Vitali no. IntrodufQo as decisoes de provimenro do Tribunal Constitucional. as efeitos em particular, Lisboa : Cognitio, t 984, p. 42.

7 Nesse sentido, ver STRECK. Henneneutica, op. cit, pp. 221 e 222, em especial notas n° 413 e 414. 8 Cf. MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdir;Qo Conslilucional, Sao Paulo: Saraiva, 1998, p. 275.

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situQ(oes, tern a virtude de ser dotada de maior c1areza e seguran~a jurfdica, expressa na parte dispositiva da decisao

15. Finalmente, se se tivesse ainda duvidas sabre 0 fato de a interpretacrao confonne a Constituicrao e a nulidade parcial sem redu<;3o de textos serem tecnicas de controle de constitucionalidade, estas foram espancadas com a recente edis:ao da Lei 9.868, que taxativamente as al<;a a categoria de fannas de contrale de constitucionalidade.

16. Vrna pergunta se imp5e, desde logo: a nulidade parcial sem reduS:3o de texto e a interpretacrao conforme a Constituis:ao podem ser aplicadas pelo jUlza singular e pelos demais Tribunais, au tal aplica<;ao se afigura como prerrogativa exclusiva do Supremo Tribunal Federal?9 Estou convencido que nao hii qualquer obice constitucional que imper;ajufzes e tribunais de aplicarem a interpretarilo conforme e a nulidade parcial sem re~ur;iio de tex~o. Entender 0 contnlrio seria admitir que juizes e tribunais (que nao 0 STF) estIvessem obngados a declarar inconstitucionais dispositivos que pudessem, no mfnimo em parte, ser salvaguardados no sistema. mediante a apJicac;ao das citadas tecnicas de controle. Observe-se que a Lei 9.868, no panigrafo unico do art. 28, ao estabelecer 0

efeito vinculante as decis5es decorrentes do controle abstrato de constitucionalidade, equiparou a declarac;ao de inconstitucionalidade stricto sensu a declarac;ao de inconstitucionalidade parcial sem reduc;ao de texto e ate mesmo a interpretac;ao conforme a Constituic;ao. Isso significa dizer que, no caso especffico, desde que obedecida a regra do art. 97 da CF, qualquer tribunal pode. ah~m de dec1arar a inconstitucionalidade de uma lei, entender, par exemplo, qUI! esta e sornente parcial mente inconstitucional, permanecendo 0 dispositivo em sua literalidade'o. Ou seja, assirn como a contrale de constitucionalidade nao e prerrogativa do Supremo Tribunal, os seus diversos mecanismos - inc1utdas at a interpretac;ao conforme e a nulidade parcial - tambem nao a sao. Porque urn Juiz de Direito - que desde a Constituic;ao de 1891 sempre esteve autorizado a deixar de aplicar uma lei oa integra por entende-Ia inconstitucional - nao pode, tambern hoje, em plena Estado Democnitico de Direito, aplica-Ia Hio-somente em parte? 0 mesmo se aplica aos Tribunais, que, neste caso, nao estao dispensados de suscitar 0 incidente de

<J P: perg.unt~ e .absoluram~nte irnpertinente no que concerne a primeira hip6tese acima aventada (mconstltu.clOnah~ad~ par~lal com redw;iio de texto), uma vez que e 6bvio que, se 0 juiz ou tribunal pode declarar a mconstItuclOnahdade total, pode tambem faze-Io parcialmente ...

IU Como exemplo, :a~e char 0 problema relacionado a recente Lei 9.714, que alterou, entre outros dispositivos, 0

art. 44, I, do COdlgO Penal. Segundo a nova Lei, lodos os delitos punidos com reclusao. cometidos sem vj~lencia ou grave amea~a, sao passiveis de substitui~ao por penas alternativas, 0 que acarretou, em uma Jeltura. apressada.e nao constjtu~ional, a in~lus1i.o, por exemplo, dos crimes hediondos nesse favor legal (isto para dlzer 0 mimmo, sem conslderar as cnmes de corrup~ao, lavagem de dinheiro, sonega(j:ao de tributos, etc.~. Suponha-se que 0 Tribunal de Justi(j:a, atraves de urn dos orgaos fracionarios, entenda que 0 crime hedlOndo de tnifico de entorpecentes nao e passivel de receber 0 beneficio das penas alternativas. Qual a solu(j:1i.o? Declarar a inconstitucionalidade de todo 0 dispositivo? Ora, isto sefia urn equivoco, eis que someme em parte a nova lei. fere a Constitui(j:iio. Deve, entao, Ser suscirado 0 incidente de inconstituciona!.idade, para ver declarada a nuhdade parcial sem redu~1i.o de texto do aludido dispositivo. Desse modo, 0 art. 44 do CP c~m a reda~ao que.lhe foi dada pela Lei 9.714, no seu inciso L e inconstitucional se aplicavei a seguint~ hlp6tese: cnme hedlOndo de trafico de entorpecente. ou, numa leitura a conlrario sensu, como fez 0 STF oa ADIn 491, a nonna impugnada s6 e constitucional se se the der a interpretar;iio que esle Tribunal enrende compal~'vel com a Constiruir;iio. Ou, ainda, seguindo 0 exemp!o do Tribuna! Constitucional alemao, "0 art. 44 do C6dlgO Penal: com a reda~ao que Ihe foi dada pela Lei 9.714, no seu inciso I, e inconstitucional, desde que po~sa ser entendldo como abrangendo os crimes definidos como hediondos". Para tanto, ver STRECK, Lenio LUI~. As nova~ pe~as alternativas a luz da principiologia da Constituir;iio, in A Socledade, a Violencia e a Socledade, Nel Fatet Jr. Org., Porto Alegre: Uvraria do Advogado, 2000, pp. 121-144.

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inconstitucionalidade, quando se tratar da tecnica da nulidade parcial sem redu~ao de texto.

17. Dito de outro modo, a possibilidade de os tribunais e ate mesmo 0 juiz singular fazer usa dos citados mecanismos fundamenta-se no controle difuso de constitucionalidade. Impedir esse uso pelos jUlzes e tribunais inferiores seria restringir a pr6pria modalidade de contrale difuso; seria uma especie de meio-contrale. E nao se objete com 0 exemplo dos Tribunais Constituciooais eurapeus, como, v.g., 0 da Alemanha, isto porque. no modelo tedesco, existe 0 instituto do incidente de inconstitucionalidade, pelo qual toda questao constitucional deve ser submetida diretamente a Corte Constitucional (Lei Fundamental, art. 100, I; Constituiyao austrfaca, art. 140, (1)). Na Alemanha, na Austria e na Espanha. para citar alguns modelos, as Tribunais Constitucionais detem 0 monopolio do controle de constitucionalidade. ]a no Brasil, nao existe esse monop61io stricto sensu, em face da vigencia do contrale difuso (incidental) de constitucionalidade. Desse modo, se entre os varios modos de controlar a constitucionalidade se inserem mecanismos como 0 da interpretac;ao conforme e 0 da nulidade parcial sem reduc;ao de texto, parece razoavel sustentar que tais instrumentos tambem podern ser manejados no dmbito controle incidenter tantum

18. Em apoio a tese da possibilidade de Tribunais e Juizes aplicarem a interpretac;ao can forme a Constituic;ao e a nulidade parcial sem reduc;ao de texto, vern a lic;ao de VITALINO CANAS, para quem, seja a interpretac;ao confonne a Constitui<;a.o uma regra para a concretizac;ao da Constituic;ao, uma regra de fiscalizac;ao da constitucionalidade, au uma regrn de interpretar;ao, sempre 0 juiz ordiniirio tera competencia para a sua utilizar;iio. Na verdade, tanto 0 juiz como os Tribunais encontrarn-se diretarnente subordinados a Constituic;ao, sendo, tambem, os Tribunais 6rgaos de fiscaliza<;ao da constitucionalidade e competindo-Ihes a interpretac;ao da leP'. No mesrno sentido, RUI MEDEIROS·2

, que entende que nao ha fundamento para atribuir ao fiscal da constitucionalidade (Tribunal Constitucional) uma maior liberdade no recurso ii interpretac;ao conforme do que aquela de que disp6em os tribunais em gera!.

19. Em sfntese. hi que se ter claro que a Estado Democratico de Direito, muito mais do que uma f6rmula ou modelo de Estado, e uma praposta civilizat6ria; e urn "plus normativo", vinculando a urn todo principiol6gico a agir dos demais entes estatais. Dai por que 0 legislador nao e livre para estabelecer tipos au favores penais. Deve, siro, obediencia a materialidade da Constitui~ao. E essa materialidade e traduzida fundamentalmente pelos principios, que sao a pr6pria condic;ao de possibilidade do sentido da Constitui<;ao. Por isso a necessidade de uma constante filtragem henneneutico­constitucional de todas as nonnas do sistema. Mais do que deonticas, as nonnas da ConstituiC;ao sao deonto16gicas. Obedece-Ias faz parte do compromisso etico do operador do Direito.

20. Dito de outro modo, e sendo mais especffico, no plano da hermeneutica estamos sempre em face de vdrias solur;oes que podem ser postas para a resoluriio de urn determinado problema. Vale lembrar que sentenc;as aditivas, manipulativas e construtivas nao sao novidade no direito alienigena. Nesse sentido, observe-se a sentenc;a n° 15, de 17 de fevereiro de 1969, do Tribunal Constitucional da Italia, que resolveu uma questao de

II Cf. CANAS. Op. cit., p. 38. 12 Cf. MEDEIROS, RuL A decisiio de inconstituclonalidade, Lisboa : Universidade Cat6lica, 2000, p. 309.

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160 REVISTA DE ESTUDOS CRIMINAlS 1 - 2001- Doutrlna

legitimidade eonstitueional acerea do art. 313.3. do C6digo Penal. Esse dispositivo tipificava 0 delito de desacato it Corte Constitucional e estabelecia que 0 processamento desse crime dependeria de autariza~ao do Ministro da Justi~a. 0 Tribunal entendeu que semelhante preceito vulnerava 0 art. 134 da Constituir;ao sabre a independencia e a autonomia do Tribunal ConstitucionaL Baseado nesse fundamento jurfdico, declarou inconstitucional 0 art. 313.3. do CP, substituindo 0 requisito da decisao (autorizar;ao) do Ministro da Justic;a por uma norma "canstrufda" peia pr6pria Corte Constitucional, in verbis: "Dichiara Ia ilIegitimita constituzionale dell' art. 313.3., terzo comma, cp., nei limiti in cui attibuisce i1 potere di dare l' autorizzazione a procedere per it delitto di viIipendio della Corte Constituzionale al Ministro di grazia e giustizia anziche aHa Corte stessa". Dutro exemp]o importante advern da senten~a n° 353, de 27 de julho de 1994, onde a Corte Constitucional italiana resolveu uma questa:o de legitimidade constitucional que dizia respeito ao art. 600, 3, do C6digo de Processo Penal. Esse dispositivo estabelecia a faculdade de 0 juiz da apela~ao condicionar a suspensao da execuyao provis6ria da sentenr;a condenat6ria ao pagamento de uma determinada quantia "cuando puedan derivarse danos graves e irreparables". A Corte entendeu que a norma impugnada violava 0 principio de "ragionevolezza" do art. 3 da Constituiyao, decidindo que deveria corresponder ao juiz de apela~ao urn amplo espac;o decis6rio sobre 0 fumus boni juris e 0

periculum in mora. Desse modo, substituiu 0 inciso "cuando puedan derivarse danos graves e irreparables" por urn corn a seguinte reda~ao: " ... cuando concurran motivos graves".

21. Tarnbem 0 Tribunal Constitucional espanhol fornece exemplos interessantes: a sentenr;a do TC 103/83, de 22 de novembro, resolveu uma questao de inconstitucionalidade instada pel a Magistratura do Trabalho de Madri sobre a art. 160 da Lei Geral da Seguridade Social, par possfvel violayao dos arts. 14 (princfpio da igualdade) e 41 (garantias de regime publico da Seguridade Social) da Constitui~ao. A questao de inconstitucionalidade tratava de uma demanda de urn cidadao frente ao Instituto de Seguros por haver-Ihe negado a pensao de viuvez decorrente da marte de sua esposa, sob o argumento de que 0 demandante ja percebia uma pensao de invalidez permanente absoluta. A Administrayao negou 0 pedido, aplicando 0 art. 160 da Lei da Seguridade, onde 0 § 1° regulava os requisitos para que uma viuva adquirisse 0 direito a pensao de viuvez (Terao direito a pensao de viuvez... a viuva, quando, ao falecimento de seu conjuge, estejam presentes os seguintes requisitos: prova da vivencia marital e perfodo de contribuiyao suficiente do conjuge causante.). Entretanto, mais adiante, no § 2°, eram exigidos outros requisitos para 0 viuvo (0 viuvo tera direito a pensao unicamente se, aIem de cumprir os requisitos anteriares, estivesse ao tempo da morte da esposa incapacitado para 0 trabalho). 0 Tribunal Constitucional entendeu como discriminat6ria e contraria ao princfpio da igualdade 0 fato de 0 direito a pensao do viuVQ sofrer mais Iimita~6es que 0

da viuva. Em conseqUencia, 0 Tribunal, junto as viuvas, adicionou os viuvos como sujeitos com direito a perceber a pen sao de viuvez, em condi~6es de igualdade. Em sentido similar, as senten,as nOs 116/87, 222/92, 204/88, 134/96, 154/89, entre outras, Especificamente como manipulativas, as senten~as nOs 5/81 e 97/9013

IJ Cf. LAFUENTE BALLE, Jose Maria. Lajudicializaci6n de la inlerpretaci6n cons{itucional, Madrid: Colex, 2000, p.136.

REVISTA DE ESTUDOS CRIMINAlS 1 - 2001- Doutrlna 6:1.

22. No direito brasiJeiro, registrem-se alguns ac6rdaos do Tribunal de Justic;a do RS, que, acatando pareceres de minha lavra, exerceu plenamente a jurisdic;ao

constitucional, mediante a aplica~iio da principi%gia da Constituiriio. Assim: com fundamento no princfpia da secularizac;ao do Direito, entendeu nao recepcionado peia Constituic;ao a crime de casa de prostituic;ao (art. 229 do C6digo Penal). No caso especfficQ, duas mulheres haviam side condenadas a 3 aDos de reelli.Sa?, cada um~, por manterem casa de prostituic;ao em lima pequena cidade. Por unamrrudade, a Camara deixou assentado que tipos peoais como 0 do art. 229 nao sao condizentes com 0 princfpio da seculariza~ao do direito propria do Estado Democnitico de Direito introduzido pela Constitui<;ilo de 1988 (Ae. 698383932 - ReI. Des. Newton Brasil de Leao). Adotando a mesma posi~ao, 0 Ac6rdao n° 699160826. Em outra decisao inedita, a 5' Camara Criminal do TJRS, por maioria de votos, entendeu ser inconstitucional (nao recepcionado) 0

dispositivo do C6digo Penal que regula a reincidencia, por ser urn ~is in id~m. e violar 0

principio da proporeionalidade (Ae. 699291050 - Senten<;a do JUIZ de Dlfelto Mauro Borba - ReI. Des. Amilton Bueno de Carvalho).

23. Dutro julgado, emanado da Sa Camara Criminal do TJRS e que tern gerado uma serie de criticas, discutiu se a qualificadora do concurso de pessoas, que no crime de furta tern 0 condao de duplicar a pena, podia continuar a ser aplicada literalrnente, uma vez qu~, no crime de roubo, a mesma circunstancia (concurso de pessoas) faz com que a pena seJa majorada em urn teryo. 0 ac6rdao ficou assim ementa~o: "FURT~ QU~IFICAD_O PELO CONCURSO. Agride aos principios da proporcionahdade e da lsonorrua. A fixa~ao de aumento maior ao furta em concurso do que ao roubo em igual condiyao. Aplica·se 0

percentual de aumento deste aquele. Atenuante pode deixar a pena aquem do minimo. Deraro parcial provimento aos apelos, Apela<;ao-Crime n° 70000284455 - TapeslRS (ReI. Des. Amilton Bueno de Carvalho)." 0 ac6rdao basicamente fixou que, nO caso, havla uma flagrante violayao do princfpio da proporcionalidade representada pela duplica9ii? da pena oa hip6tese de concurso de pessoas no crime de furta. Em meu parecer, sustentel que fere a Constitui~ao - entendida em sua principiologia (materiaJidade) - a previsao legal do C6digo Penal que detenninava a duplica~ao da pena toda vez que 0 fur~o for cometido por duas ou mais pessoas, 0 que, alias, acarreta urn paradoxo em nosso SIstema penal. Entre tantas distor~5es que existem no C6digo Penal (e nas leis esparsas), este e urn ponto que tem sido deixado de lado nas discussoes daquilo que hoje denorninarnos de necessaria constitucionaliza9Qo do direito penal. No caso em tela, enquanto 0 poder encarregado de Jazer as leis nao elaborar as necessarias readaptaroes legislativas, cabe ao Poder Judiciario, em sua fun~ao integradora e transfonnadora, tfpica do Estado Democnitico de Direito eJetuar as correr;6es (adaptar;6es) das leis, utilizando-se para tal dos modernos mecani~mas hermeneuticos, como a interpretac;ao conforme a Canstituir;ao (VerfassunskonJorme Auslegung), a nulidade parcial sem redu~ao de texta (Teilnichtigerklarung ohne Normtextreduzierung) e a declarac;ao da ioconstitucionalidade das leis incompatfveis com a Constituir;ao, para citar alguns. Eo caso dos autos: 0 texto da lei (art. 155, § 4", IV, do CP) continua vigente; sua validade, porem, e que vem canJortada por uma interpretar;QO constitucional, mediante 0 usa anal6gico - para os casos de furto qualificado por concurso de agentes - do percentual de acrescimo decorrente da majorarQO do concurso de pessoas no roubo. Alem de obedecer ao princfpio da isonomia, estar-se-a fazendo a readequa~ao da norma ao principio da proporcionalidade. Poder-se-a dizer que, no caso em exame, a sa Camara do TJRS fez

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mais do que uma interpreta~ao conforme a Constitui<;ao, "construindo" uma nova "no~a". (texto). NaG se desconhecem os limites da tecnica da interpretaC;30 confacme a COnStltUl<;ao. Entretanto, em face da pre valencia do principia da isonomia constitucional e da p?ssjbilid~de de se f~zer analogi a in bonam partem no Direito Penal, nao se afigurava passlvel contmuar a aphcar uma norma juridica (texto) que, frontalmente, feria a devida pr~porciona1idade e a razoabilidade que devem tee as interpreta<;oes. Nesse caso, 0

Tnbunal teve que optae entre a continuidade na aplica9ao de urn dispositiv~ vigente desde a,de:ada de 40 e 0 text? constitucional de 1988, que agasalha as aludidos principios. Nao ha duvl~a de que a decIsao em tela, alem da filtragem constitucional, operou uma adi~ao de. s~n~ldo, para compatibilizar 0 dispositiv~ que duplicava a pena de furto com 0

Pfl~ClPlO da proporcionalidade e a analogia que teve como parfunetro 0 dispositivo que maJo:av~ 0 concaurs~ de pessoas no roubo em apenas urn 1er~0. Agregue-se, ademais, que o acordao da 5 Camara do TJRS, mais do que efetuar uma filtragem hermeneutico­constitucional, fez urn apelo ao legislador, para que, de lege ferenda, efetue as devidas correr;6es no texto do C6digo Penal, cujo conteudo, de ha muito, demanda uma readequa~ao aos principios constitucianais.

24. Releva notar que interpretac;oes construtivas l4 como as que [aram apresentadas por certo sofrerao criticas como sofreu 0 Tribunal Constitucional da Alernanha, na decisao de 25 de fevereiro de 1975, que declarou nula uma lei de 1974, relativamente a punibilidade da interrup<;ao da gravidez (BVerfGE 39, I). Observe-se, par outro lado. que ° Tnbunal ConstltUClonal Federal e Os Tribunais Constitucionais estaduais alemaes ern casos em qu~ a vi~lar;ao da, ,?onstituir;ao par uma lei considerada tao grave que 'nem mesmo a contmuar;ao temporana da sua vigencia pareceu possivel, declararam nula a lei, e~tabelece~do, si~u!taneamente, eles proprios uma regulamenta~'iio transitoria, para vigorar ate a emlssao de uma nova lei, conforme a Constituic;iio, atuando, desse modo, como uma especie de sucedaneo do legislador.15

25. Nurna palavra: a Constituir;ao e a fundamento de validade do sistema juridico. A C?onstituic;iio constitui. Urn texto juridico (leis, regularnentos, etc.) sornente e valido se estIver em conformidade com a Constitui9ao, que deve ser entendida ern seu conjunto de val ores principiologicos. A jurisdir;ao constitucional, rnais do que urn mecanismo de controle dos poderes, e condi9ao de possibiIidade do Estado Democratico de Direito. 0 juiz tern 0 dever de aplicar a norma somente em seu sentido constitucional. La.rn::n~velrnente, examinando a tradir;ao jurfdica brasiIeira, e possIvel constatar a eXIstenCta de urn certo fascfnio em torno do Direito infraconstitucional, ao POnto de se adaptar a Constituir;ao as leis ordinarias .... e nao 0 con/rario! Enfim, continuamos a olhar o no~o .com. os olhos do velho... A Constituir;ao - e tudo 0 que representa a ~O~s~ltuclOnal.ls~o contemporan~o - ainda nao atingiu 0 seu devido lugar no campo Jundlco brasllelfO. Nesse sentIdo vern bern a prop6sito a indagar;ao de GISELE

14 R~leva . nota~, ainda, que, ~o plano da hermeneutica filos6fica, torna-se esteri! a debate ace rCa de se os !nbunms . cnam ~~ nao dtreito.. Do rnesmo modo, e esteril a debate sobre se as decisoes/sentenrras mterpretahv~, adltlvas ou redutlvas Sao au nao criadoras de direito. Ista porque toda nonna e sempre re~ultado da mterpretar;iio de urn texto, com a que ha sempre urn processo de produr;iio/adjudicarrao de sentido (Smngebung) e nao de reprodur;iio de sentido (Auslegung). Esse aspecto e 0 que diferencia fundamentalmente a nova hermeneutica da hermeneutica ciassica.

"V er, para tanto, BverfGE 39,1; Staatsgerichtshojde Baden-Wiirttenberg, EsvdH, 26,129, in BACHOF,

OUo. Estado de Direito e Poder Polrtico. Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, vol. LVI.

I REVISTA DE ESTUDOS CRIMINAlS 1- 2001" Doutrlna 63)

CITTADINO: au a Constitui<;iio e, na medida em que organiza a vida politico-estatal e regula a relar;ao Estado cidadao, apenas urn ordenamento marco e, portaoto, 0

entendimento dos direitos fundamentais se resume a direitos subjetivos de liberdade voltados para a defesa contra a ingerencia indevida do Estado. ou a Constitui9iio e a ordem juridica fundamental de uma comunidade em seu con junto e a isso corresponde uma concep9tio dos direitos fundamentais como normas obje/ivas de principio que atuam em todos os ambitos do Direito? Lamentavelmente. a cultura juridica brasileira (pensamento jurfdico-dogmatico dominante), positivista e privatista, defende uma concep9ao de Constitui'fao que esta inserida na primeira hip6tese l6

26. Nesse sentido, vale lembr.r 0 dizer de JORGE MIRANDA, para quem 0

Direito Publico passou por uma revolu9iio copernicana. au seja, a passagem de uma fase em que as nonnas constitucionais dependiam da interpositio legisfator~s a um~ fase e~ que se aplicam (ou sao suscetIveis de se aplicar) diretamente nas sltuar;oes de Vida - nao resultou s6 em mudanr;as do regime polftico ou da ideia de Constitui9ao. Resultou, sobretudo, no aparecirnento de uma justir;a constitucional, como tal estruturada e legitimada17. Por isso, assevera 0 mestre portugues, nao bastam proclamar;5es como as do art. 1°, n° 3, da Lei Fundamental da Alernanha, do art. ISO da Constitui'fao de Portugal, do art. 53°, n° 1, da Constituir;ao da Espanha ou do art. 50, § 1°, da Constituir;50 brasileira para assegurar a fon;a norrnativa dos preceitos constitucionais. Sem a justir;a constitucional, 0 principio da constitucionalidade fica sem tradu<;ao pratica.

27. Desse modo, 0 problema eficacial do texto constitucional passa, fundamentalmente, pelo tipo de justir;a constitucional praticado ern cada pais e pelo redimensionamento do papel dos operadores do Direito. Para tanto, deve ficar claro que a fun9iio do Direito - no modelo instituido pelo Estado Democratico de Direito - mio e mais aquela do Estado Liberal~Absentetsta. 0 Estado Democrdtico de Direito representa um plus normativo em relaC;iio ao Estado Liberal e ate mesmo ao Estado Social. A Constituir;ao brasileira, como a de Portugal, Espanha e Alemanha, por exemplo, em que pese 0 seu carater aberto, e uma Constitui'fao densa de valores, cornpromissaria e voltada para a transfonnar;ao das estruturas econ6rnicas e sociais l8

• Dito de outro modo, alem da carga elevada de val ores e do carater compromissario do texto da Constitui'fao brasileira, este traz em seu bojo os mecanismos para a implantar;ao dos direitos sociais e fundarnentais, compatfveis corn 0 atendimento ao principio da dignidade da pessoa humana. A tarefa de aplica-Ios e dosjuristas!

16 Cf. CllTADlNO, Gisele. Pluralismo - Direito e Justira DistribUliva. Elementos da Filosofia Constitucional Contemporiinea, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999, p. 32.

17 Cf. MIRANDA, Jorge. Apreciar;ao da dissertar;ao de doutoramenlO de Rui Medeiros, in Direito e Justir;a. vol. Xlll, 1999, tomo 2, Separata, Lisboa: Universidade Cat6Jica, 1999. .

18 Nesse sentido, ver comentfuio de JORGE MIRANDA ao art. 9". da Constituir;ao de Portugal, in Apreciarao, op. cit., p. 262.

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A';AO CIVIL PUBLICA VERSUS A';AO PENAL PUBLICA (OU 0 DEVIDO PROCESSO LEGAL VERSUS A

DISCRICIONARIEDADE DO TITULAR DE UMA A';AO)

INTRODUC;AO

Pedro Krebs Professor de Direito Penal na UNISINOS

Especializando em Ciencias Penais na UFRGS Procurador do Estado do RS

Suponhamos 0 seguinte exemplo: foi constatado que uma empresa pratica conduta lesiva ao meio ambiente, uma vez que a mesma da causa a poluiyao de urn rio. Pergunta­se: poderia 0 Ministeria Publico ingressar com uma ayao civil publica visando a condenayao da pessoa juridica a uma obrigayao de niio tazer (no caso, suspender a atividade poluidora)? A priori, a resposta e positiva, eis que estao presentes os requisitos previstos na Lei 7.347/85 (arts. 1", I, e 3"). Entretanto, atualmente, com 0 advento da Lei 9.605/98, a conduta acima referida resta caracterizada como criminasa1 (art. 54Y, cuja pena tambem pode ser a de suspensiio parcial de atividade (art. 22, 1)3. Assim seodo, e de se fazerem as seguintes indagayoes: a) qual a ayao que podera ser proposta: a ac;ao penal ou a ac;ao civil?; b) pode 0 auter - no caso, 0 Ministerio Publico - escolher qualquer uma das duas ayoes visando a buscar 0 mesmo efeito?; c) a eleiyao da demanda e atividade discriciomlria? Tais questionamentos e que serao analisados no presente estudo, dentro, e 6bvio, das suas limitag5es, a respeito da possibilidade de 0 6rgao do Ministerio Publico pretender buscar uma pena, nae atraves da a9ao penal, mas atraves de uma ayao civil publica.

o reconhecimento da pessoa jurfdica como autora de delitos e urn dos maiores embates do direito modemo. Dentro de uma visao tradicional da ciencia criminal, 0

entendimento e 0 da impossibilidade de se imputar urn fato delituoso a uma empresa.

''Tampoco pueden ser sujetos de acci6n penaimente relevante, aunque sl puedan serlo en otras ramas del Ordenamiento jurIdico, las personas juridicas (societas delinquere non potest). Desde el punta de vista penal, la capacidad de acci6n, de culpabilidad y de pena exige la presencia de una voluntad, entendida como facultad pSlquica de la persona individual, que no existe en la persona

I 0 presente estudo pressup6e 0 6bvio, qual seja, quando 0 agente for umn pessoajuridica, 0 preceito secund<irio dos tipos penais descritos na Lei Ambiental e aquele refendo nos arts. 22 e 23 da refenda lei.

2 "Art. 54. Causar polui¥ao de qualquer natureza em niveis tais que rcsultem ou possam resultar em danos it saude humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destrui¥ao significativa de flora: Pena - rec\usao, de urn a quatro anos e multa." '

J "Art. 22. As penns restritivas de direitos da pessoajurfdica sao: 1- suspensao parcial ou total de atividadcs;".

REVISTA DE ESTUDOS CRIMINAlS 1- 2001- Doutrlna 65

juridica, mero ente ficticio al que el derecho atribuye capacidad a otros efectos distintos a los penales."4

A altera~ao deste quadro nao esta sendo uma tarefa das mais faceis. E que determinados conceitos tidos como sacramentados para a teoria geral do de!ito (como conduta e culpabilidade) devem passar, necessariamente, por uma revisao. E pacifico, entretanto, que 0 maior problema para a ado~ao deste novo enfoque e a ausencia de ~ma san~ao eminentemente penal ao ente coletivo. A natureza da resposta estatal ao cnme praticado pelo autor e, se nao 0 maior, urn dos mais importantes entraves a este entendimento.

"Aunque el Derecho aleman repudia tambien la pena criminal contra las personas juridicas, hay desde hace ya mucha tiempo penas administrativas contra los colectivos. "S

Aqueles que nao admitem a responsabilizayao penal da pessoa juridica passam, cada vez mais, objetivando suprir a impunidade, a clamar pela intervenyao de outros ramos do direito.

"Esto no quiere decir que el Derecho penal deba permanecer impasible ante los abusos que, especialmente en el ambito econ6mico, se producen a traves de la persona juridica, sobre todo cuando esta adopta la fonna de sociedades an6nirnas. Pero en este caso precede castigar a las personas ffsicas individuales que corneten realmente tales abusos, sin perjuicio de las medidas civiles 0

administrativas que proceda aplicar a la persona juridica como tal (disoluci6n, multa, prohibici6n de ejercer en determinadas actividades, etc.)."6

o direito brasileiro reconhece, de alguns anos, a possibilidade de a pessoa juridica praticar crimes. Tal entendimenta resta consolidado, por exemplo, na Lei n" 9.100, de 29.09.9Y, que, em seu art. 68, assim disp5e:

"Art. 68. A pessoa juridica que contribuir de forma ilicita com recursos para campanha eleitoral, sen. aplicada multa de 10.000 a 20.000 UFIR ou de valor igual ao doado, se superior ao maximo previsto.

Paragrafo unico. 0 valor da rnulta pode ser aumentado em ate dez vezes, se a juiz considerar que, em virtude da situayao economica do infrator, e ineficaz a cominada nesta Lei."

A Lei n" 9.605, de 12.02.98 (Lei dos Crimes Ambientais), ern seu art. 3", reconheceu, de igual fonna, a pessoajuridica como sujeito ativo de crime:

"Art. 3" As pessoas juridicas serao responsabilizadas admioistrativamente, civil e penalmente confonne 0 disposto nesta Lei, nos casas em que a infrayao seja cometida por decisao de seu representante legal au contratual, ou de seu 6rgao colegiado, no interesse ou beneficio de sua entidade.

Panigrafo unico. A responsabilidade das pessoas juridicas nao exclui a das pessoas fisicas, autoras, co-autoras ou partfcipes do mesrno fato."

4 MUNOZ, Conde & GARCIA, Aran, p. 209. j JESCHECK. p. 205. 6 MUNOZ, Conde & GARCIA, Arlin. Id., ibidem. 1 Ver, tambem, Lei n" 8.173, de 30.09.93. art. 58 e panigrafo.

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. Sem arnbi~ionar discutir se e passivel OU naa tal imputar.;ao, a verdade e que 0

leglsiador deternunoll, no toeante as penas aplicaveis, a utilizar.;3o de sanr,;oes lipicamente administrativas ou civis.

Assim refere 0 art. 21 da Lei 9.605/98:

"Art 21. As penas aplicaveis isolada, cumulativa au alternativamente as pessoas juridicas, de acordo com 0 disposto no art. 3°, sao:

J- multa;

II - restritivas de direitos;

III - prest<l9lio de servic;os a comunidade."

, A ~iz-se "tipic,am,ente administrativas ou civis" porque nao e materia pacificada a eXlstenCI~ desla l111ScIgenac;ao de saoc;oes. Neste sentido, 0 magisterio de SERGIO SALOMAO SHECAIRA:

"0 direito penal, em linhas gerais, pode apresentar tres respostas efetivas para 0 ilfcito cometido pela ernpresa. A resposta tradicional preve medidas administrativas e/ou civis. Essa postura, mais recenternente, vern senda reformulada em algumas legislac;6es para intraduzir urn regime 'quase-penal'. Vrna posi<;lio intermediaria e a de se imporem 'rnedidas de seguran<;a' as e.mpresas po~ s~ entender que as reprova<;6es as empresas fazem parte do sIstema de dlrelto penal, sem negar, no entanto, sua procedencia do direito administrativo au de polfcia. A terceira res posta e a de apresentar uma verdadeira responsabilidade criminal, existente tradicionalmente nos paises do Common Law, mas que hoje torna corpo em todo a mundo."8

Assim sen do, e possivel afinnar-se que, embora nao consolidada a Sua natureza, as penas a s~r~m i~postas as pessoas juridicas, no minimo, assemelham-se a sanc;6es civis e/ou adIlli~lst:at~vas. Para tanto, faz-se suficiente a leitura dos arts. 22 e 23, dispositivos estes que disciphnam as penas referidas no art. 21:

"Art. 22. As penas restritivas de direitos da pessoajuridica sao: 1- suspensao parcial ou total de atividades;

II - interdi<;ao temporaria de estabelecimento, obra au atividade;

III - proihic;ao de contratar com 0 Poder Publico, bern como dele obter subsidios, subvenc;6es au doa<;6es.

§ IDA suspensao de atividades sera aplicada quando estas nao estiverern ob~decen~o as disposic;5es legais au regulamentares, relativas a protec;ao do melQ ambtente.

§ 2° A interdic;ao sera aplicada quando 0 estabelecimento, obra ou atividade estiver funcionando sem a devida autorizac;ao, au em desacordo com a concedida, ou com vioJa<;ao de disposic;ao legal ou regulamentar.

§ 3° A proibic;ao de contratar com 0 Poder Publico e dele obter subsidios subvenc;6es ou doac;5es nao podeni exceder 0 prazo de dez anos. '

Art. 23. A prestac;ao de servivos a comunidade pela pessoa juridica consistini em:

8 SHECAIRA, p. 103.

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1- custeio de programas e de projetos ambientais;

Il - execll9ao de obras de recupera.<;ao de areas degradadas;

III - manutenqao de espaqos publicos;

IV - contribui<;6es a entidades ambientais ou culturais publicas."

Tal procedimento, qual seja, 0 de confundir san<;oes penais com san<;5es civis e administrativas, decorre de uma verdadeira necessidade imposta pela propria natureza da pessoa que praticoll 0 deli to. Isto porque, por obvio, 0 Codigo Pena1 nao e suficiente para estabelecer sanc;oes as pessoas juridicas. Nao se poderia. pois, irnaginar a imposic;ao de uma pena privativa de liberdade a uma empresa. Nem seria possivel a aplica<;ao de uma pena restritiva de direitos, nos moldes existentes, eis que estas, de acordo com 0 art. 44 do C6digo Pena1, "sao autonomas e substituem as penas privativas de liberdade" (grifos nossos). 0 direito penal brasileiro, assirn, precisou sofrer uma mudanva de rnentalidade.

Ocorre, entretanto, que tal postura acabou por colidir dois interesses, no caso, a responsabiliza9ao civil e penal da pessoa juridica. Os problemas, pois, que aqui serao analisados, e saber, primeiramente, se pode 0 titular da demanda escolher qual a avao a ser ajuizada - se a a9ao civil ou penal - na hipotese de as san90es - ou 0 objeto do pedido -serem identicas. E em segundo lugar, se impossivel for a simples eleic;ao da demanda, qual das duas ac;5es e que devera prevalecer.

VA A9XO CIVIL PUBLICA

Nao sao raros os exemplos do ajuizarnento da ac;ao civil publica visando a proteger o meio ambiente. Tal procedimento, alias, esta previsto expressarnente na Lei 7.347, de 24.07.85:

"Art. 1°. Regem-se pelas disposic;5es desta Lei, sem prejuizo da a9ao popUlar, as ac;6es de responsabilidade por danos marais e patrimoniais causados:

1- ao meio ambiente;"

A ac;5.o civil publica - que e a ac;ao cabivel para proteger e tutelar os denominados direitos difusos au caletivos - possibilita que 0 seu autor - que, em regra, e 0 Ministerio Publico - requeira, na inicial, que 0 reu seja condenado a umfacere, a urn nonfacere, ou, par ultimo, em uma indeniza~ao em dinheiro. E 0 que nos indica a art. 3° da Lei 7.347/85:

"Art. 30. A ac;ao civil podera teT par objeto a candenac;ao em dinheiro ou 0

cumprimento de obrigac;ao de fazer ou nao fazer."

Nestes casos, em que se utiliza a ac;ao civil publica para tutelar 0 meio ambiente, a prdtica tern mostrado que essas obrigac;oes de fazer ou nao fazer se traduzem em atividades que, atualrnente, sao caracterizadas como autenticas sanc;6es penais9

o problema, pois, que aqui sera analisado, e se existe alguma incompatibilidade em se buscar uma pena (arts. 22 e 23 da Lei 9.605/98) atraves de uma a~ao civil, e nao par meio de uma a~ao penal.

9 Para tanto, e suficiente analisarmos os arts. 22, incisos I a ill, e 23, incisos I a IV, ambos da Lei 9.605/98, para conc1uirmos que os pedidos feitos, em regra, pelo MP, nas demandas civis publicas, praticamente se esgotam nas sanr;6es, hoje, caracterizadas como penais.

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DAS INCOMPATIBILIDADES

Da Competencia para Julgar a Lide

? primeiro 6bice encontrado e a questiio da competencia. Como se tern con~~Clme~to, a sua determina9~o e urn tema de ordem publica, Especialmente esta que aqUl, ~ ana~ls.ada, que se caractenza por ser absoluta, eis que a mesma se da: em razao da r:w ten.a _(cIvil au penal). Ora, a partir do momento que 0 legislador federal possibilitou a Imposl~~O de penas. (entendam-se sanfoes penais, e nao civis) aqueJas pessoas jurfdicas q~ ~mficam 0 melD arnbiente. e 16gico que 0 jUlZQ cornpetente para julgar a causa e 0 cn~nal, nao send~ pensav.el que 0 magistrado lotado em uma vara clvel passa impor uma sanc;ao pe.nal ao reu! De 19ual forma, nao se pOderia admitir que 0 autor da dernanda pU,d~ss~ .sIrn~le~men~e. m~dar 0 nome da a~ao - ern vez de uma ac;ao penal publica 0

MmIs~no :ubhco aJUlz~a .uma a?ao civil publica - para escolher este ou aquele jufzo. A ~e.terrrunac;ao da cornpetencla, replta-se, e questao de ordem publica - a lei determina 0

JUlZO competente -, descabendo a parte qualquer direito de eleic;ao.

_ Assim .seodo, se a pretensao do MP e buscar a condenac;ao da empresa a uma das sao,c;oes descntas nos arts. 22 e 23 da Lei 9.605/98, 0 juizo competente e a criminal, e nao o cIvel, sob pena de se buscar a imposi9ao de uma pena atraves de umjuiz incompetente.

Do Procedimento

. 0 segundo problema diz respeito ao procedimento a ser adotado. De que fanna pOlS, devera 0 reu ser processado? '

" A Lei 9.605/98, em seus arts. 26 a 28, determina 0 procedirnento criminal a que se sUJeItara a pessoa juridica:

. "~'. 26. Nas infrac;6es penais previstas nesta Lei, a ac;ao penal e publica IncondlclOnada,

.Art._ 2~. No~ crimes ambientais de menor potencial ofensivo, a proposta de ap~Ic~c;ao lrnedlata de pena restritiva de direitos ou muita, prevista no art. 76 da Lei n 9.099, de 26 de setembro de 1995, somente paden] ser fonnu1ada desde que tenha ha~ido a previa composic;ao do dane ambiental, de que trata 0 art. 74 da rnesma LeI, salvo ern caso de comprovada impossibilidade.

Art. 28. As disposi<;5es do art. 89 da Lei n° 9.099, de 26 de setembro de 1995, aplicam-se aos crimes de menor potencial ofensivo definidos nesta Lei com as seguintes modificac;oes: '

1.- a declara9aO de extin930 de punibilidade, de que trata 0 § 5° do artigo refe~do no caput, dependeni de laudo de constatac;ao de repara9ao do dana an:blental, ressalvada a impossibilidade prevista no inciso I do § 1° do mesrno artIgo;

II - n~ hip6tese de a laudo de constata9ao comprovar nao ter sida cornpleta a ~e~arac;ao, ? prazo de. suspensao do pracesso sera prorrogado, ate 0 perfodo maxImo prevlsto no artlgo feferida no caput, acrescido de mais urn ano, com suspensao do prazo da prescric;ao;

III - no perfodo de prorrogac;ao, nao se aplicarao as condi90es dos incisos II, III e IV do § 1 ° do artigo mencionado no caput;

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IV - findo 0 prazo de prorrogavao, proceder-se-a a lavratura de novo laudo de constata9ao de reparac;ao do dana ambiental, podendo, conforme seu resultado, ser novamente prorrogado 0 perfodo de suspensao, ate 0 maximo previsto no incise II deste artigo, observado 0 disposto no inciso III;

V - esgotado 0 prazo maximo de prorrogac;ao. a declara9ao de extinc;ao de punihilidade dependera de laude de constatac;ae que comprove ter 0 acusado tornado as providencias necessarias a reparac;ao integral do dana."

A ac;ao civil publica, por Qutro lado, apresenta urn rito especial, embora somente em relac;ao a urn aspecto, qual seja, 0 de poder ser concedida medida liminar (art. 12). No restante, segue 0 rito comum previsto no C6digo de Processo Civil.

Assim posto, e de faeil conclusao que os procedimentos entre as duas demandas sao totalmente diversos.

Nao restam duvidas. pois, que 0 procedimento a ser adotado para a irnposi9ao de uma pena e 0 do processo criminal, com todas as suas peculiaridades e principios, e nao 0

da Lei 7.347/85, que e uma aC;ao civil. Tal assertiva vern ao encontro dos interesses do demandado, especialmente pelos beneffeios procedimentais que the foram conferidos. Apenas para deixar consignada a importfrncia da analise deste confronto entre as dois procedimentos, passemos a enumerar, a tftulo de ex.emp)o, algumas medidas elencadas na a9ao civil publica que se caracterizam pela incompatibilidade com a aplicaC;ao de uma san9ao penal:

I) a primeira e 0 de restar como incabfvel a imposi<;5.o daquelas sanc;6es detenninadas no art. 21 da Lei 9.605/98, sob forma de medida liminar, nos termos do caput do art. 12 da Lei 7.347/85, que assim estabeleee: "Art. 12. Podeni 0 juiz conceder mandado liminar, corn ou sem justificaC;ao previa, ern decisao sujeita a agravo". Tal incompatibilidade decorre do fato em nao se conceber a ideia da imposic;ao antecipada de uma sanc;ao penal, salvo naqueles fundamentos descritos no art. 312 do CPP, 0 que, par 6bvio, nao e 0 caso;

II) em segundo lugar, vo-se que a pr6pria Lei Ambiental (arts. 27 e 28) possibilita a aplicac;ao da Lei 9.099/95 em muitos de seus aspectos, ao contrano da a9ao civil publica;

III) pDf terceiro, podernos argiiir a ilegitimidade da parte autora a firn de caracterizar a impossibilidade da substituic;ao das ac;6es. E que 0 art. 5° da Lei 7.347/85, possibilita a vanas pessoas 0 ajuizamento da a9ao civil publica.

"Art. 5°. A a~ao principal e a cautelar poderao ser propostas pelo Ministerio Publico, peIa Uni50, pelos Estados e Municfpios. Poderao tambem ser propostas por autarquia, empresa publica, fundac;ao, sociedade de economia mista ou por associac;ao que:

1- esteja constitufda ha peto menos urn ano, nos termos da lei civil;

II - inclua entre suas finalidades institucionais a protec;5.o ao meio ambiente. ao consumidor, a ordem economica, a livre concorrencia, au aD patrimonio artfstico, estetico, hist6rico, turfstico e paisagfstico;"

Entretanto, 0 art. 26 da Lei dos Crimes Ambientais determina, de forma ex.pressa, que somente existe um titular da a9ao penal, no caso, 0 Ministerio Publico. Assim, ve-se que em nada se identificam todos as titulares da ac;ao civil publica corn 0 tinico 6rgao capaz de ingressar corn uma ac;50 penal publica incondicionada. Neste sentido, nao e

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possivel entender como cabivel uma associa~ao, cuja personalidade jurfdica seja de direito privado, ingressar com uma demanda a fim de provocar 0 Poder Judiciario, pleiteando com que este aplique, ao reu, uma sanC;ao penal.

Conclui-se, pais, que a pedido feito pelo(s) titular(es) de uma a<;ao civil publica podera ser quaIquer urn no sentido de zelar pelo meio ambiente, desde que nao seja nenhuma daquelas penas descritas nos arts. 21 e seguintes da Lei 9.605/98;

IV) par ultimo, resta impossibilitado 0 ajuizamento da ac;ao cautelar prevista no art. 4° da Lei 7.347/85, quando 0 pedido a ser feito na a~ao principal for uma das sam;oes descritas na lei ambiental. Isto porque aquela a\=ao cautelar" somente podera ser ajuizada oa hipotese de a demanda principal ser uma ac;ao civil publica. Em segundo lugar, porque, pelo fato de nao ser permitida a concessao de liminar de uma pena, de igual fonna nao sera possivel 0 ajuizamento de uma cautelar visando ao mesma abjeto!

Dos Requisitos Subjetivos Necessarios para a Condena(iio no Processo-Crime

Outra incompatibilidade existente na aplicac;ao das sanc;oes descritas na Lei 9.605/98 atraves de uma ac;ao civil publica e 0 fato de 0 art. 3° da Lei Ambiental exigir, para a responsabiliza\=ao penal da pessoa juridica, urn dolo especffico da pessoa do "representante legal ou contratual, ou de seu 6rgao colegiado" sempre "no interesse ou beneficio da sua entidade". Assim 0 sendo, urn agir imprudente, por exemplo, de urn ernpregado da empresa nao possibilita a imposic;ao de uma pena a pessoa juridica, e, portanto, aquelas san\=oes que the seriam aplicadas nao poderao servir de utilizac;ao ern uma a\=ao civil publica. Entenda-se: a suspensiio parcial de atividade poluidora, por exemplo, e uma san<;ao penal (art. 22, I, da Lei 9.605/98) e somente podera ser aplicada a pessoa juridica se houver a comprovacrao do dolo especffico previsto no art. 3°. No caso de restar incomprovado este elemento subjetivo, a pena nao podera ser aplicada nem no processo criminal e, por 6bvio, nem em nenhum outro.

DA CUMULA<;Ao DAS RESPONSABILlDADES CIVIL E PENAL

Nao ha 0 que se [alar aqui na distin~ao das diversas responsabilidades que podem incidir na mesrna pessoa, a fim de justificar a substitui\=ao das ayoes. E sabido que a responsabilidade civil e distinta da penal e ambas sao distintas da administrativa. Esse, entretanto, nao e 0 objeto da discussao. Ve-se. por exemplo, que a multa pode ser utilizada tanto como san~ao penal (art. 21, I) como administrativa (esta rnodalidade esta prevista nos incisos II e III do art. 72 da Lei Ambiental: "Art. 72. As infrac;oes administrativas sao punidas com as seguintes sanc;oes, observado 0 disposto no art. 61: ( ... ) II - multa simples; II1- multa diaria;".

o alcance da regra pennite obter a conclusao de que 0 legislador concedeu ao Executivo - atraves de seus 6rgaos - e ao Judiciario a possibilidade de aplicar identica sanc;ao! Sob este enfoque, denota-se que nada ha de irregular, eis que tanto a atividade administrativa como a jurisdicional se confundem (ambas visam ao cumprimento da lei). Neste sentido, SEABRA FAGUNDES, citado por JOSE ALFREDO DE OLIVEIRA BARACHO, leciona:

"Enquanto 0 conceito da fUTI\=ao iegislativa decorre facilmente do contraste entre os fenomenos de forma~ao do direito e os de rea1iza~ao. 0 mesmo nao sucede com 0 das func;oes administrativa e jurisdicional. Constitui urn delicado problema doutrinario fixar para cada uma destas 0 conceito'especffico, pois que

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ambas, se prendendo a fase de realiza\=ao do direito, identificam-se como func;oes de execu<;ao."10

Assim sendo, conclui-se pela inexist~ncia de 6bice nesta cumulatividade, eis que a imposic;ao de ambas decorre da vontade do legislador.

DO DEVIDO PROCESSO LEGAL

Considerando, pois, a possibilidade de 0 Pader Judiciario aplicar a sanc;ao de suspensao parcial de atividade, por exemplo, resta saber qual a ac;ao que podera seT utilizada para 0 provocar. Sera a ac;ao civil ou a criminal? Em suma, qual 0 juizo

cornpetente, 0 procedirnento, etc.? ~ Na hip6tese de duas norrnas conflitarem, 6 ob:i~ que so~e?te uma ~el~ devera

preponderar. Para solucionarmos esta suposta contradl<;ao, necessano ~ue o.l~terprete se utilize de principios, nao com 0 objetivo de revogar este ou aqueJe dISPOSltIvO, mas de concluir pela utilizaC;ao de apenas urn deles. . .

E 16gico que, pelo principia da especialid~d~, d:n~ta-se que a leI amble~tal prevalece ern relac;ao a lei que regulamenta a ac;lio ~lv~1 .publIca. Isto ??~q.ue 0 art. 3 da Lei 7.347/85 possibilita a condena<;ao da pessoa ~undlca, p~lo ~udlclano, a q.ualquer obrigac;ao de fazer ou nao fazer. A Lei dos Cn~e~ .AmblentaIS, aD contr~no, pelo principio consagrado do nula poena sine lege, posslblhta apenas a con~enac;_ao do r~u naquelas sanc;5es descritas nos arts. 21 e seg~int~s .. Tais punic;oes, POlS, sao penQls,

descabendo, portanto, a sua aplicac;ao em uma alfao cIvIL . , De igual fonna, 0 art. 75 do C6digo Civil determina que a_ "todo _ 0 d~r~lto

corresponde uma a\=ao". Conclui-se, assim, que existe ap:nas uma a~a?; ~ nao vanas, como se fosse possive! a imposic;ao de uma mesma sanc;ao, pelo Jud?ClanO, atmve~ de mais de uma a~ao. Assim sendo, conc1ui-se que existe uma determmada e es~eclfica demanda para a imposi~ao das san\=oes descritas na Lei Amb~en~a~. Ingress~r, pOlS, com outra, objetivando a ap1ica~ao das mesrnas medidas, fere 0 pnnclplo do de.vldo proc~sso legal, preconizado em nossa Carta Magna, em seu art. 5°, ~IV, que aSSlrn d~ternnna: "Ninguem sera privado da liberdade ou de seus bens sem 0 devldo processo legal .

CONCLUSAo Assirn 0 sendo, qualquer ac;ao civil publica cujo pedido do autor se id~ntific,ar com

alguma das sanc;oes descritas nos arts. 21 e seguintes da Lei 9.6~5/98 tomara p.osslvel, ~e imediato, excepcionar a incompetencia do JUIZO, r~querendo se~a adotado 0 fltO pr6pno das a~5es penais, inclusive com a observancia dos dttames da Lei 9.099/95. . .

Podemos, pois, conc1uir que esta impossibilitado 0 Ministerio Publico de aJulzar ~ aC;ao civil publica para buscar, em senten~a, aquelas sanc;5es. determinadas na L_el 9.605198, em seus arts. 21 e seguintes. Isto se deve ao fato de a lei reconhecer uma a\=ao para a imposi\=ao daquelas penas, e nao duas. ,

Tais ponderac;5es evidenciam os problemas, apresentados pelo ieglslador ao resolver punir a pessoa juridica criminal mente. E que estav~~o~ acostu~ad?~ a vislumbrar a imposic;ao da pena a pessoa do socio e a san~ao Clvtl a pessoa Jundl:a. Agora, com 0 advento da Lei Arnbienta!, houve uma confusao de san~5es, ao mesmo reu,

10 BARACHO, p. 64.

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e. portanto, deveni ser utilizado apenas urn dos dois procedirnentos, no caso, 0 que se caracterizar pela especialidade.

REFERtNCIAS BIBLIOGRAFICAS BARACHO, Jose Alfredo de Oliveira. Processo constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1984,408 p.

CONDE, Francisco Munhoz & ARAN. Mercedes Garcia. Derecho penal- parle general, Valencia: Tirant 10 Blanch, 1993, 549 p.

JESCHECK. Hans-Heinrich. Tratado de derecho penal- parte general. Granada: Comares. 4- ed., 1993.913 p.

SHECAIRA, Sergio SalorrUlo. Responsabilidade penal dapessoajuridica. Sao Paulo: RT, 1998. 163 p.

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JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAlS:' o DESCUMPRIMENTO DA TRANSAGAO PENAL

1- INTRODur;iio

Eduardo M. Cavalcanti Promotor de JustilTa no RN

Professor da Escola Superior do Ministerio Publico do RN Especialista em Cnminologia pela UFRN

Mestrando em Ciencias Criminais pela PUC/RS

Irnbuido no espfrito reformador que de ha muito ja tinha convencido, mais particulannente, as comunidades politica e juridica patrias da necessidade de mudan~a da legisla~ao penal e processual penal brasileiras, precipuamente para adaptar-se a tendencia mundial, pete menos dos sistemas juridicos ocidentais, de despenaliza~ao e descarceriza~ao. 0 legislador brasileiro promulgou a Lei Federal n° 9.099, de 26 de setembro de 1995, visando a regulamentar a determina~ao constitucional estatuida no artigo 98, inciso I.

Esta tendencia polftico-criminal, que abrange os chamados crimes de bagatela, aqueles de pequena e media criminalidade, havia impulsionado varios paises dos continentes europeu e americano a criarem mecanismos para tomar realidade a ideia atual de que 0 "( ... ) encarceramento, a nao ser para os denominados presos residuais, e uma injusti9a flagrante (".)"'.

Assim, como saida, propugnaram os principais idealizadores deste novo pensamento por medidas que pudessem alcan~ar 0 objetivo ressocializador transformado em utopia diante da estigmatiza~ao que sofre 0 delinqtiente com a pena privativa de liberdade. Dentre as varias sugest5es, algumas chegaram a harmonia quase que plena entre os defensores de cada doutrina3

, como, por exemplo, a aplica~ao de substitutivos

1 Trabalho apresentado no 12° Congresso Nacional do Ministerio Publico, nos dias 26 a 29 de maio de 1998, em FortalezalCE, cujas conclusoes foram aprovadas em plenaria, por maioria.

1 BITENCOURT. Cezar Roberto, Juizados Especiais Criminais e Altemativas a Pena de Prisdo, 3" ed .• Porto Alegre: Livrariado Advogado, 1997, p. 22.

J Entre os discordantes, podemos char a Criminologia Crftica, a quai defende, segundo ALESSANDRO BARATTA. que "uma polftica criminal nao pode ser uma polftica de substitutivos penais que se circunscreva a uma perspectiva vagamente reformista e humanitaria. As circunstancias atuais requerem uma politica de grandes reformas sociais que propiciem a igualdade social, a democracia. as refonnas da vida comuniuiria e civil, oferecendo mais altemativas e que sejam mais humanas." Apud CEZAR ROBERTO BITENCOURT, Ob. cit., p. 28. Esta teona, alfim, proc\ama a impossibilidade de conseguir a ressocializul,fao do delinqilente numa sociedade capitalista.

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penais e a mitigac;ao au ate meSmo a extinc;l:io do principio da indisponibilidade da ac;l:io penal, que assevera a perseguic;l:ia pela Estada de tada e qualquer infra9ao penal4

Citamos, a tftuIo de exemplo, 0 guilty plea (declarar-se culpado) e a probatjon sistem, em que a instru9ao e realizada, ha dec1ara9aa de culpabilidade, suspendendo apenas a prolac;aa da sentenlfa condenat6ria e impondo ao acusado condic;6es, ambos do sistema angla-saxao. Ainda no continente europeu, temos a procedimento especial da "ordem penal", do direito alemao, e 0 procedimento por "Decreto", do direito italiano. No sistema jurfdico norte-americano, temos 0 plea bargaining (perrnite amplo acordo entre acusadar e acusada sabre os fatos, a qualifica9ao jurfdica e conseqUencias penais).

Com a irnplanta9ao dos Juizados Especiais Criminais, dois institutos foram criados justamente para efetivar este novo pensamento, quais sejam: a transac;ao penal e a suspensao condicional do processo.

D presente trabalho restringe-se a analisar 0 descumprimento do acordo realizado na audiencia preliminar, ou seja, da transac;ao penal. Parta, em urn primeiro instante, da sanc;ao penal, no sentido de vislumbrar a natureza da san9ao aplicada ao acusado no questionado acordo. De conseguinte, analiso aspectos formais, comparativos e praticos decorrentes da pr6pria transac;ao penal e da suspensao condicional do processo, visando justamente a concluir qual a correta soluC;ao do descumprimento daquele instituto penal.

2 - IUSTlFICATIVA

Entre os autores patrios, nota-se que inexiste divergencia quanto a admitir que a transac;ao penal longe esta do instituto norte-americano plea bargaining, que permite amplo acordo entre acusador e acusado sobre os fatos, a qualifica9ao juridica e as conseqUencias penais, posto que a atividade ministerial esbarra em Ii mites impostos pelo pr6pria diploma legal ern comento (artigo 76). A isto denomina-se discricionariedade regrada ou reguladas.

Diferentemente, porem, quando 0 assunto se trata da natureza da sanc;ao imposta ao acusado. Duas sao as teses que erigem profundas celeumas, a saber: tern ou nao natureza penal a referida sanlfao? E ainda mais: sendo negativa a resposta, qual, entao, a sua natureza? Entre os doutos, chega-se a conc1usao que prevalece ainda a posi~ao majorit:ir:ia. sendo a minoritaria defendida por aqueles que se posicionam pela natureza nao penal da obrigalfao acordada.

Classificando-os, sustentam a tese da natureza penal, entre outros, ADA PELEGRINI GRINOVER (ADA PELLEGRINI GRINOVER et al. luizados Especiais Criminais, I' ed., Sao Paulo: RT, 1995, p. 14), JULIO FABBRINI MIRABETE (in luizados Especiais Criminais, Sao Paulo: Atlas, 1997, p. 90), LUIZ FLAVIa GOMES (in SuspensCio Condicional do Processo Penal, 2' ed., Sao Paulo: RT, 1997, p. 199) e CEZAR ROBERTO BITENCOURT (in luizados Especiais Criminais e Allernativas a Pena de PrisCio, 3' ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 116). Grandes

4 Neste sentido, ver: GRINOVER, Ada Pellegrini. et ai. Juizados Especiais Criminais, 1& ed .• Sao Paulo: RT, 1995; MIRABETE, Jdlio Fabbrini. JUizados Especiais Criminais, Sao Paulo: Atlas, 1997; GOMES, Luiz Fl6.vio. Suspensao Condicional do Processo PenaL, 2& ed., Sao Paulo: RT, 1997; DEMERCIAN, Pedro Henrique & MALULY, Jorge Assaf. Teoria e Pralica dos luizados Especiais Criminais, Rio de Janeiro : Aide, 1997.

5 Denomina~ao utilizada por ADA PELLEGRINI GRINOVER, em Novas tendl!ncias do Direito Processual, Rio de Janeiro: Forense Universitnria, 1990, p. 403.

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nomes deveras. No entanto, de outro lado, de fundamentos nao menos razoaveis, citamos, tambem entre outros, PEDRO HENRIQUE DEMERCIAN e JORGE ASSAF MALUL Y (in Teoria e Pratica dos iuizados Especiais Criminais, Rio de Janeiro: Aide, 1997, pp. 74n5) e Luis PAULO SIRVINSKAS (in Conseqiitncias do descumprimenlo da transafao penal- solurao jurfdica ou pratica?, Revista APMP, Ano I, n° 09, agosto de

1997, pp. 25/27). Outro ponto delicado na doutrina envolve questao pertinente a culpabilidade, vale

dizer, com a transa~ao penal considera-se culpado aquele que foi apontado no termo como

autor do fato? Aqui outra divergencia entre os doutos. Alias, a institui9ao dos Juizados Especiais

Criminais, sem sombra de duvidas, motivou a doutrina brasileira a estabelecer diversas teorias ern torno dos institutos criados (transac;ao penal e suspensao condicional do processo), menos pela satisfa~ao pessoal das discuss6es academicas, muitas vez~s ate estereis, do que pela vagueza dos termos Jegais postos no diploma em comenta. Fnse-se, por oportuno, que 0 descobrirnento destas lacunas deve-se exatamente pela grande utiliza~ao dos referidos institutos na pratica forense.

A posi<;ao paradoxal de ADA PELLEGRINI GRINOVER (ADA PELEGRINI GRINOVER, el al. Ob. cit.) e de JULIO FABBRINI MIRABETE (op. cit.) encontra-se sustentada em alicerces que fundam a natureza penal da sanC;ao transacionada e, somente MIRABETEIi 0 efeito condenat6rio da homologayao do acordo, mas defendem que em sede de tran~a~ao penal nao se discute a culpabilidade. Concordo, neste p6rtico, com RICARDO WAGNER DE SOUZA ALCANTARA', para 0 qual "( ... ) esta op<;1io nos parece inconciliavel com os principios constitucionais relativos a aplicac;ao da pena. Ou se nega 0 carater de pena (circunscrita aos estreitos limites do direito penal) e, portanto, nao se fala em culpabilidade; ou se reconhece 0 carater penal das imposilfoes e aceita-se a

admissao da culpa". Portanto, aqueles que sustentam que a sanc;ao aplicada no consenso preliminar

possui carater penal, devem insistir na afirmac;ao de que 0 autor do fato, no momenta em que avenlfa com 0 Ministerio Publico a aplica9ao de sanlfao altemativa (note que nao menciono san~ao penal), esta assumindo a culpa. Assim devem posicionar-se justamente para roborar 0 carater penal da san9ao acordada.

Acompanham este pensamento, entre outros, CEZAR ROBERTO BITENCOURT (ob. cil.) e LUIZ FLAVIa GOMES (ob. cit.). E, por conseguinte, entre os que defendem posi<;ao contrana, estao PEDRO HENRIQUE DEMERCIAN e JORGE ASSAF MALULY (ob. cit.) e Luis PAULO SIRVINSKAS (ob. cit.).

Porem, devemos olhar sob outro angulo esta sanc;ao. Primeiro, frise-se, para respondermos suposto argumento contrario a tese ora defendida, que mesmo discordando da natureza penal, isto nao significa que tenhamos que negar a transa9ao 0 fnsito carater penal, tendo exatamente em vista a desistencia da a930 criminal pelo Ministerio Publico com 0 cumprimento dos tennos do acordo pelo acusado.

6 Apenas MIRABETE, pois ADA PELLEGRINI afirma que a senten9a nno e condenat6ria nem absolut6ria, mas

somente homologat6ria da transa9ao penal. 7 A transa9ao penal e os princfpios constitucionais relatiVOs a aplica9iio das penas. RCD . Revista do Curso de

Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, EDUFRN, vol. 01, n° 01, janeiro/junho, 1996, p.

169.

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Quando falamos em pena criminal, uma palavra precedente surge obrigatoriamente como condi'tao para a sua apIicabiIidade: crime. Pois bern, independentemente da teoria adotada para explicar 0 conceito de delito (enxugadas aqui na teoria classica, neoclassica, finalista e analftica), observa-se que, seja qual for a tese adotada para defini-Io, nao se pode prescindir dos elementos tipicidade e antijuridicidade, precipuamente a partir da cria'tao do Estado Modemo e, de conseqih~ncia, da obrigatoriedade da tipifica9ao legal de condutas repelidas pelas vias do direito penal.

E certo que cada uma das citadas teorias desvenda, na opiniao de sellS idealizadores, a verdadeira no\=1'1o de tipicidade e anLijuridicidade. Mas, mesmo fazendo uma escala de inicio e fim, partindo da escola classica a analitica, na qual se percebe a evolU93.0 da analise puramente fonnal do delito para 0 estudo dos elementos subjetivos e nonnativos do crime, tudo visando ao fim que a agente pretendeu com a empresa criminosa, 0 aspecto objetivo do crime deve ser decerto vislumbrado, haja vista que "a fragmentariedade do Direito Penal tern como conseqUencia uma constru<;3.o tipol6gica individualizadora de condutas que considera grave mente lesiva de determinados bens jurfdicos que devem ser tutelados"~. Alias, a valoriza~ao do tipo legal e conquista da sociedade, garantia assegurada constitucionalmente (artigo 5°, inciso XXXIX, da CF/88), imortalizada no epitome nullum crimen nula poena signe praevia lege.

E esta estreita caracterfstica do direito penal emerge justamente da notabilidade dos bens juridicos escolhidos pel a sociedade. Assim, outra razao nao poderia ser senao imprescindir de especffico procedimento que, atem de oportunizar a descoberta de uma verdade considerada juridicamente como "real", rege-se pelos seguintes principios constitucionalmente assegurados: ninguem sera privado da Iiberdade Oll de seus bens sem o devido processo legal (art. SO, inc. LIV); aos litigantes, em processo judicial au administrativo e aos acusados em geral sao assegurados 0 contradit6rio e arnpla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (art. SO, inc. LV) e ninguem sera considerado culpado ate 0 transito emjulgado de senten9a penal condenat6ria (art. 5°, inc. LVII).

Chegamos em uma dns pedras de toque da transac;ao penal, ou seja, reconhecer a san'tao consensuada como pena e a senten9a como condenat6ria estaria ou nao violando 0

princfpio do contradit6rio e da ampla defesa? Posi90es levadas a efeito pelo fato de a transac;ao penal estar expressarnente garantida pela Constitui~ao Federal de 1988 (art. 98, I) asseveram que, por isso, estao asseguradas as garantias fundamentais no momento do referido acardo. De outro lado~ afirmam que, na hip6tese de conversao em pena privativa de liberdade au titulo da divida ativa em razao do descllmprimento, respectivamente, da san9ao restritiva de direitos ou multa transacionada, este expediente apenas ocorrenl se forem observadas todas as garantias do devido processo legal no incidente execut6rio~.

Ab initio, afirmamos que a Constitui'tao Federal, em seu artigo 98, inciso I, estabeleceu deveras 0 devido processo legal para as crimes de menor potencial ofensivo, atraves dos luizados Especiais Criminais. Porem, isto nao pode ser utilizado como argumento para se defender a tese de que a pr6pria Carta Magna, estabelecendo 0 referido devido processo legal, autorizou a conversao em pena privativa de liberdade ou titulo da dfvida publica na esfera consensual dos citados Juizos Especiais.

S BITENCOURT, Cezar Roberto. Teoria Geral do Delila, Slio Paulo: RT, 1997, p. 82. ~ GRlNOVER, Ada Pellegrini e/ at., p. 173.

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Nao se pode deveras olvidar que 0 principal efeito ao se reconhc:cerda san<;~o o condenat6ria eo a conversao a san\=ao

~~:~~:;~~: ~~m;:ae;~V:ti~a s~;t~~~~d~~: ou em ti~ulo da divida at~va: ~t~en:~~~~; tambem deve-se notar que este entendimento esba.n:a Justam~~~~::o p::cl~ocedimentos dos Juizados Especiais Criminais, expressa na segumte frase. . . dP l'berdade"l0

. ~ I - ao impositora de pena pnvatIva e 1 • do Juizado deve conduzlr a so u~ao n d .,. 'trios posta que a

. osicionamento e avalizado par todos os outnnarlOS p~ '.. _ ~~:~~l~e:::eJ~iZadO Especial alberga a aplica<;ao de substitutivos penals ~:It~g~~;e~i~~ principi~ d~ indisponibilidade da a\=1 3.°st~~~a~o~~~~e~~:~:fe~~::~~;~~i'tad contraria ao conversao amda na seara consensua , e pr6prio espirito da Lei n° 9,099/95, , . , ' 'al

Noutro p6rtico observando do ponto de vista pragrnatlco, reputa-se c~~o pnncIPd

vantagem da referid~ lei a possibilidade de a indicada aut?r do fato h~rar-~e .ti~ sso" Mesmo com alguma posi9ao contnm.a a este entendlrnento, post~ ~a.o a nu

Pq~~~'algu·em convencido da sua inocencia, acehe, sem process.o, condtradltOnOI't amt~ol~ , , 'd ~ ·vativa de hberda e ou mu a, a

defesa e prova, a aplica'tao Imedl3ta e pena nao pn ~ ticipou,'Il d ' pagando pelo que nao cometeu ou par • somente para 'livrar-se 0 processo , ... ,. d d ua

. . d Iv· dar do reflexo de determinado 1OstltutO Jundlco quan 0 e s_ ~~~~~~io° p:~~l~ci~nar as conflitos sociais, pois .6 a par~ir ~ai que tra'taremos ~ soluc;ao juridica mais consentanea corn a realidade do menciOnado mstJtuto.

E os 0 eradores que lidam freqUentemente com a Lei n° 9.099/95 sabem que a maioria dos ciue enfrentam pela primeira vez uma audH~ncia judicial preferem resolver

logo 0 "problema", 'CESCO CARNELUTTI Aqui cabe paralelo c~m a image~ . descnta por

o ~~edivel autor italiano que

sobre a cronica judicial e a ltteratura pohcl3l. Lembra . t d informa~oes de "cada delito desencadeia uma onda de procura, de conJun uras, ~ idos rocura~ 0

indiscri~5es"12. E exatamente por causa deste tormento que as eovo v p rnais rapido possivel "se ver longe . . d

E ° receio de enfrentar este processo-crime, degenerado em su~s finahda :s . .. mo meio ara encontrar a efetividade da transa<;ao penal, nao

pnrnOr?laIS, serve ° co uerem al ~ns doutrinadares, encontra-Ia na conversao em pena

~;~::t~~:n~~'li~~:ad~ ou tit~l:.da divida ativa no caso de descurnprimento, violando, assim as garantias do contradlt6no e da ampla defesa. . .

, De outro lado antes do advento do diploma legal em comento, a maIon~ das infra 5es de menor ~otencial of ens iva sequer chegava a ser apllrada pela autondtade

I, C; 1 mais pela falta de interesse da propria vitima do que pela falta de estru ura

POlCl3, ... ,. I' , 1 que viabilizasse 0 procedlmento mvesugatono.

po lela , ' 'd d ' to de lei do Este fato foi urn dos motivos que influenc.IOu OS l~eahza . or~s. 0 proJe ..

I Lei n° 9 099/95. Nunca se tinha vista no sistema Jundlco penal br.as!lelf? .a qual resu t~u a ue teve ~ referido diploma com a vitima. Determina-se a composl'tao cIvil preocupa<;ao q

I(} FIGUEIRA JR .• Joel Dias & LOPES, Mauricio Antonio Ribeiro. Comentarios a Lei dos Juizados Especiais

. ' C·· . 2- ed Sao Paulo· RT 1997, p. 504. . d Le' • Glvels e nmmalS,.., . _ d' lritivas de direilos descumpridas no regime a I n

11 DUARTE MauricIO Alves. A execU/;ao as penas res 1/95 • loes controvertidas, RT 744/454. . 45

9.099. , .e ou/ras ques P I d dio de Jose Antonio Cardinalli, Campmas: Conan, 1995, p. . 12 As MlserlQs do Processo ena, tra uT

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no infcio cia audiencia preliminar bern como resc . nos casas de Iesao corporal leve e ~ulposa. P feve a necessldade de representac;ao

. Nao existe quem tenha atuado nos luizado E ,. '" ouvldo 0 indiciado reclamar que "nu . h ,8 SpeCIalS Cnxnmms e nae tenha Justi9a", As partes siro porque esta F:ca

oa _ffiJ? a vIda, Doutar, eu tive problema com a fato, mas tambem 'pela vftima que co rase nao e forrnulada apenas pelo suposto autor do

~ mparece, tentam salucianar d l' " • passivel, 0 que elas acham de "problema", • a lorma mats raplda

Sabe-se que predornina contra a versao da y' . " _ .. mesma forma que a vftima atie '. 111ma a propna versao do mdlCiado. Da terma circunstanciado tamb"mma ~xlds.tJ~ tdestem

l unhas para continnar os fatos descritos no

, com ICla 0 a ega ex' ti Como nao sao devidamente investigados t f IS rem testemunhas em sua defesa, dila~ao probat6ria neste marne t' es es at~s, COmo tambem inexiste qualquer J' d n 0, Justamente devldo a princip' I' , Ul~a os Especiais Criminais, nao se ode defender 10 o~gla que ahcen;a os

acetta pelo acusado encontram- P d qu~ na transa~ao penal a proposta , , se assegura as as garantIas f d ' mCISOS LIV LV e LVII artigo 5" d L M un ament3IS prescritas nos , , , a ex aterde 1988,

Questoes como a autoria do delito e I d , .. jUlzo de probabilidade Assim It ~xc u entes de Jitcltude nao chegam nem ao defesa na aplica~ao da san ~ vo 0 ~ repettr, nao se observa 0 contradit6rio e a arnpla Criminais. ~ao pena no consenso preliminar dos Juizados Especiais

Poder-se-ia fundamentar em defesa d -Carta de 1988, em seu artigo 9'8 I ., a tes~ d? ~an~a~ penal, que a pr6pria Magna reformulou toda a base principio16 '. InJ~gOU 0 pnnclplO da mdisponibilidade, bern como potencial ofensivo Concordo nest glca 0 ~oc~sso penal referente as infra~6es de menor 62 da Lei n° 9.099/95, refere-se a~ p~nto .. orem, esta n;o~ific~lfao, estampada no artigo Especiais Criminais Considerar p ?Ceddlmento sumanSSlffiO mstaurado pelos Juizados

, respeIta as 0 contradit6rio ] d < regras necessarias para a proIa aD d e a amp a elesa, Com suas aplica~ao de sanlfaO penal e~ f e sentel.nlf~ penal condenatoria, e, por ser 6bvio, para a

, . ' ase pre lITIlnar que nem seque ' t mlmmo posilfao descurada de qual '1' '. r eXIS e processo, e no quer ana Ise constltuclOnal. • Argumentar, ainda, no sentido de frisar a obedie' .

so haveni conversao em pena privativa d l'b d d nCIa a~ devldo processo legal, que descumprimento da Sanf"ao penal s .e dl er a e ou em titulo da dfvida ativa com 0

'J' e respelta a a ampla defesa no de es~uecer que a garantia da ampla defesa incide tambem processo e~ecu~ao, e seJa, ate a senten~a penal condenatoria. no processo de conheCimento, ou

Noutro portico, na~ se pode afinnar que COm a -jnfra~ao concorda tambem com a re b'l'd d . transa~ao penal 0 suposto autor da

d prova 1 t a e socIal de Sua conduta ' con: a ecretalfao de Sua culpabilidade. A ui d . ' au seJa, concorda teona escolhida, ou considerando a c I qb'l:d dO mesmo modo, mdependentemente da

u pa I I a e como elemento d ' pressuposto da pena a conduta d 'd" d 0 Cflme ou como

. . ' 0 In ICla 0 deve ser anaIis d pnmelramente a tipicidade e a a II" 'd' 'd d a a para se encontrar d n Jun ICI a e e de conseq'"'' •.

entro, e claro dos limites do de 'd ' uencla, 0 propno crime ampla defesa. 'Destarte inexistind

v1 0 processo .legal que assegure 0 contradit6rio e ~

. ' 0 esta garantla para se aplic -oportumdade do consenso prelimin - d ar a sanlfao penal na

A ' ar, nao po emos falar tambem em culpabilidade SSlm, emerge 0 questionamento' I - .

Cabe-nos lembrar com esta 'd _' qua, entao, a natureza da san9ao aplicada? , In agalfao que com a ne 'd d' .

encontrar novo tratamento para a . .' l'd d cessl a e. mms crescente de crmuna 1 a e de bagatela, sugerem alguns autores a

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transformalfao de algumas infra90es de natureza penal para 0 ambito de outros ramos do direito, Neste diapasao, buscamos .chegas na 1i9ao do ilustre Magistrado LUIZ FLA VIO GOMES I

3, nestes termos: "( .. ,) convem destacar (ainda no que se refere ao tratamento da criminalidade de bagatela) as de Direito Administrativo (descriminaliza~ao em sentido estrito, que traslada uma infrayao de natureza penal de pouca gravidade para 0 ambito do Direito Administrativo, aplicando as sanr;5es t{picas deste ordenarnento), assim como as de Direito Civil (pode-se falar aqui em civilizalfao do Direito Penal, fundada basicamente na repara'.;ao civil, fruto de uma concilia~ao, sem a participa~ao do juiz criminal; para esta via encaminham-se, por exernpIo, algumas iniciativas legislativas alemas, especial mente as que cuidam de 'furtos em supermercados' e da charnada 'justi~a de empresa'''.

Aliado ao lan'.;o de profunda inteligencia acima transcrito com os fundamentos expendidos no presente trabalho, utilizamos a mesma nomenclatura adotada por PEDRO HENRIQUE DEMERCIAN e JORGE ASSAF MALULY", qual seja: "sanc;ces especiais" ,

Mas. ainda, prepondera a vagueza, E, entao, qual a natureza destas san~oes

especiais? Observa-se, agora, que, como ocorre na suspensao condicional do processo, estas san'.;oes especiais sao, na realidade, condi~oes, as quais descumpridas cabe ao Ministerio Publico oferecer denuncia. A afirma'.;ao poden} levar alguns aD espanto, e, talvez com 0 raciocfnio repentino, proclamar que 0 artigo 89 da Lei n° 9.099/95 fala em condi'.;oes e 0 artigo 76 deste diploma legal, que trata da transalfao, menciona pena.

Neste ponto, concordo com aqueles que defendem teses contrarias a adotada no presente trabalho, mas apenas em seu aspecto literal, posto que as proprias condi96es estabelecidas no sursis, artigo 77 do C6digo Penal, instituto que inspirou 0 criador da suspensao condicional do processo, 0 ilustre WEBER MARTINS BATISTA1\ sao tarnbem consideradas como san'.;oes penais, de natureza restritiva de direito, entendimento este roborado apos a reforma penal de 198416

,

Assim, fixar 0 posicionamento de que as condi~6es da suspensao condicional do processo nao possui natureza de sanr;ao penal, pois, precipuamente, nao se analisa exisU~ncia de crime e de cuipabiJidade, haja vista nao serem produzidas pro vas para tanto, toma-se estranho admitir carater penal a san'.;ao consensuada em audiencia preliminar e tambem a culpa do indiciado, quando na transar;ao penal sequer foi instaurado processo, como tambem nao foi suscitada qualquer dialetica probat6ria. Ademais, frise-se que ambos os processos sao identicos quanto aos princfpios que os abalizam e a formalizar;ao, pois regem-se peia mitiga'.;ao do princfpio da indisponibilidade da a~ao penal e pela aplica~ao de penas substitutivas, bern como caracterizam-se pelo consenso (a concilia~ao).

Admitir que na transalfao preliminar aplica-se san'.;ao penal e considera-se culpado o citado autor do deli to, negando estas caracterfsticas para a suspensao condicional do processo, contraria qualquer raciocfnio 16gico. Dessarte, 0 mesmo criterio adotado para

13 Da transariio penal e da suspensiio condicional do processo (defesa de urn modelo de procedimento abreviado ou sumar(ssimo), RT 692/385.

14 Ob, cit., p. 75. IS BATISTA, Weber Martins & FUX, Luiz. Juizados Especiais Civeis e Cn·minais e Suspensiio Condicional do

Processo Penal, Rio de Janeiro: Forense, 1997, pp. 353/356. 16 Neste sentido, ver: FRANCO, Alberto Silva et at. C6digo Penal e sua Interpretar;iio Jurisprndencial, 6- ed.,

voL 01, t. I, Sao Paulo: RT, 1997, pp. 1227/1230.

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este instituto "( ... ) deve seT adotado em rela aD ' - . razoaveJ que 0 legislador tenha pret d'd . ~ a .transa~ao penal, POlS naD pareee potencial ofensivD, tratamento mais rig~~o;o~ ... lmpor. Justarnente as infra!foes de menor

Com certeza ao apIicar s - I . transac;ao, negand~ tais consea~~~~fa~na ; conslderar cu~pado 0 ~it.ado autor do fato na chegaremos a conclusao de q P a a suspensao condrclOnal do processo

que, sem sombras de duvida este i t't t" ' Nao interessa ao indiciado realizar IT _ ' ns 1 u a e mms benefico. processD, haja vista que em caso d

a d ansac;ao,. acordada com 0 fim de livrar-se do

privati va de liberdade Melhar . e ~scum~f1mento, the padera ser aplicada pena processo. " aSSlm, e e acel tar apenas a suspensao condicional do

Por isso, a conclusao de LUIZ FLAVIO GOME " ' _ , patna, in verbis' "( ) mesmo no" d S e tao sugestIva para a doutrina . ... JUlza 0 0 autor d i t d' , lugar da aplica~ao imediata de pena alte~ativ a a 0 po e apta: ?ela suspensao, em denuncia (art 77) F I d ~. a. Basta recusar esta ultIma e enta~ haver:i JOSE LEAL' ; . armu,toa a a denu~cla, abre-se a possibiIidade de Suspensao. JOAO

, emc:flto prolessor catannense s t t transa~ao (em Gazeta do Pavo Curit'b d 0 us en a que a suspensaa e melhor que a entanto, a entendimento de ~e a t/ a, ~ 6.12.95~ p. ~). ~sta cada vez mais forte, no entendimento predominante e~ ADA a;.Sd;~J~~~ nao slgmfica 'condenar;ao pena~' (v. transar;B.o nao seria pior que a s _ R etal., 1995, p. 134). Sendo aSSlm, a perfodo de prova de no minima d~~;:nsa~: (Po~~ue nesta. o acusado deve sujeitar-se a urn

nos gn,os acrescldos). Por derradeiro na~ consid '.

decisao que homol~ga a trans~r~mos, e~ sm!onta com a te~e aqui defendida, que a simplesmente homologa 0 acord c;fiao Pdena seJa condenat6na ou absolut6ria, mas

o Inna a entre 0 Ministeria Pub!, . d' , pronunciamento judicial e ce t -. ICO e 0 1Il IClado. 0 padeni 0 Juiz indeferir' 0 a~o~d~a~ se res.t~mg~ apenas em ~ero ~to homulogntorio, pais anteriormente a atividade .. . also VIS urn re alguma 1Iegahd~1(.k Como arirmado

, ITIlntstena possui Iimites na tr - I' propria Lei n° 9 099/95 (art' 76)' ansayao pen a , llnpoSlOs pela

. . 19O. E Justamente sabre I' I' , pronunCIamento 'udicial b _ . es es I miles que ° Publico. J su sume-se, e nao sobre a hnha de disponibilidade do Ministeria

Ainda no que tange a senten~a que hornologa 0 acordo entre 0 Mr'nr's'"r"o P 'bl' o suposto autOr do f t I . _ u;;: U ICO e suposta tese de que

a ~'o~!~~:e~~~s~~e~~S;:no;~c~!O n~ce~sarias, justa~mente para resp~nder

consenso preiiminar, of en de a coisajulgada. pe 0 arquet, apos a homologar;ao do

penal oO;~i~on~~ ~~~~!~~iV~~~ a:~m~c;ao de ~ue ~a sentenc;a homologat6ria da transac;ao Ocorrencia, a suposta con;enda sob~~ :e v~o~: !ca a cO,rno, autor do fata no Boletim de aos Iirni,tes objetivos da referida homologac;ao.c;ao da COl sa Julgada, portanto. restringe-se

doutrin; ~~~~S~~d~~~~~~~!~aS~b::troS Ii~te~ objetivos da coisajulgada envolve toda a

~~: :~r:~~~'t:~irieo~~~~~ \~~~S, mas :"~~:~d~i~~~:~:;~!i~~~~:~~~: :su~~:o~ec~~~~::~~ . , se a re,en a questao ( ... ) Resolveu- d d h ~

murtotempo,edemodoinsupenivel,PAULABATISTA(C "d' da, na ver a ~', a ompen 10 e Teona e Pratlca

" 18 fEMER::lAN, Pedro Henrique & MALULY, Jorge Assaf Db cit P 79 USpensao Condiciollai do Processo .... p. 203. "., . .

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do Processo Civil, 8' ed" Sao Paulo, 1935, § 185, nota I), quando afirmou que 'a autoridade da coisa julgada e restrita a parte dispositiva do julgamento e aos pontos al decididos e fieimente compreendidos em relar;3.o aos seus motivos objetivos"'19, menos problematico ainda sao os limites objetivos da coisa julgada na sentenc;a homologat6ria.

Independentemente da contenda sobre a classifica~ao das sentenr;as e suas respectivas eficacias, quando se traz a baiia os limites objetivos da coisa julgada, indaga­se sobre qual a parte da senten~a que transita em julgado, formal e materialmente. "Conjugando-se dois dispositivos de nosso C6digo, e passivel oferecer uma resposta para este intricado problema dos limites objetivos da coisa julgada2O." Primeiramente, 0 artigo 128 do CPC determina que 0 Juiz devera decidir a !ide nos limites em que foi proposta. De outro lado, 0 artigo 460 declara ser defeso ao Juiz preferir senten~a de natureza diversa da pedida.

Dessarte, limitando-se a pedido de homologa~ao do consenso preliminar nos termos do acorda aven~ado entre 0 Ministerio Publico e 0 acusado, toma-se clarividente que 0 oferecimento de denuncia, em razao do descumprimento da transa~ao penal, nao of en de 0 principio da coisa julgada.

Ora, 0 Ministerio Publico, ao oferecer a proposta de consenso, assim a faz tendo em vista a mitiga~ao do principia da indisponibilidade da a~ao penal, vale dizer, que 0

Promotor de Justic;a prep6e a seguinte acordo ao suposto aulor do fato: deixo de oferecer demjncia, pais os fatos descritas no Boletim de Ocorrencia autorizam-me a faze-la, enquanto voce, indicado como autor da conduta, cumpre determinadas condi~5es. Aceita a proposta, homologa-se 0 referido acordo. Descumprida a transa~ao, sera executado 0

acordo homologado, ou seja. sera oferecida a demlncia. e jamais canvertida em pena privativa de liberdade ou titulo da dfvida ativa, pais chegariamos a conclusao inaceitavel de que 0 acordo avefl\:ou-se nos seguintes termos; Eu, Promotor de Justir;a, deixo de aplicar determinada pena privativa de liberdade ou cobrar titulo da divida publica, se voce, suposto autor do fato, cumprir determinada pena restritiva de direito ou de multa.

3 - CONCLUSOES

Diante dos motivos acima expendidos, propugnamas pelas seguintes conclusoes:

1 - diante do posicionamento que surgio sobre a necessidade de tratamento diferenciado para a criminalidade de bagateia, do qual nasceram os luizados Especiais Criminais. tendo como conseqUencia a aplica~ao de san~6es substitutivas e a mitiga\=ao do principio da indisponibilidade da a~ao penal, qualquer questionamento que envolva a transa~ao penal deve ser solucionado com a nao-imposic;ao de pena privativa de liberdade;

2 - a conversao em pena privativa de liberdade ou titulo da dfvida ativa, respectivamente, em razao do descumprimento da sanc;ao restritiva de direitos ou de ITIulta, fere as garantias do contradit6rio e da ampla defesa, estatufdas nos incisos LIV, LV e LVII, artigo 5°, da Constituic;ao Federal de 1988, pois na transac;ao penal, alem de nao

19 LIEBMAN, Enrico Tulio. Eficdcia e Autoridade da Sentenqa, tradu~ao de Alfredo Buzaid e Benvindo Aires. tradw;ao dos textos posteriores a edi!Jao de 1945 e notas relativas ao direito vigente de ADA PELLEGRIN1 GRIN OVER, 3" ed .• Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 55.

20 SILVA, Ovidio A. Baptista da & GOMES, Fabio Luiz. Teoria Geral do Processo Civil, I" ed., Sao Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 325.

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estar fonnalizado qualquer processo, inexiste qualquer tipo de valora<;ao probat6ria suficiente para ensanchar a condena<;ao do supasto autor do fato;

3 - sem perder 0 fnsito carater penal, tendo em vista a desistencia da a<;ao criminal pelo Ministerio Publico com 0 cumprirnento dos termos do consenso prelirninar, a san<;ao acordada nao possui natureza penal, e sim devem seT consideradas como san<;oes especiais, igualando-as as condi~6es da suspensao condicional do processo;

4 - como os dois institutos sao identicos quanto aos princfpios que os abalizam e a fonnaliza<;ao, pois regem-se pela rnitiga<;ao do principia da indisponibilidade da a<;80 penal e pela aplica<;ao de penas substitutivas, bern como caracterizam-se pelo consenso (a concilia9ao), fixar 0 posicionamento de que as condi90es da suspensao candicianal do processo nao possuem natureza de san9ao penal, pois, precipuamente, nao se analisa existencia de crime e de culpabilidade, haja vista nao serem produzidas provas para tanto, naa se pode tambem admitir carater penal a san9aa consensuada em audiencia preliminar, pois na transa<;ao penal sequer fai instaurado processa, muito menos fai apresentada qualquer prova;

5 - em sendo descumprida a transa<;ao penal, vale dizer, a san<;ao de multa Oll

restritiva de direito acordada, deve a Promotor de Justi<;a, presentes as requisitos necessarios, aferecer den uncia;

6 - de conseqUencia, a decisao que homologa a transa9aa penal simplesmente homologa a acordo firmado entre 0 Ministerio Publico e a indiciado. 0 pronunciamento judicial, e certo, nao se restringe apenas em mera ate homo!ogat6rio, pois podera 0 Juiz indeferir 0 acordo caso vislumbre alguma i1egalidade. Como afirmado anterionnente, a atividade ministerial possui Iimites na transa'Yao penal, impastos pela pr6pria Lei n° 9.099/95 Cartigo 76). E justamente sobre estes Ii mites que 0 pronunciamento judicial subsume-se, e nao sobre a Iinha de disponibilidade do Ministerio Publico.

7 - a derradeira, 0 oferecimento da den uncia pelo Ministerio Publico, diante do descumprirnento da transa9ao penal, nao of en de 0 principio da coisa julgada, pois, dentro dos limites objetivos da senten'Ya que homologa a consenso preliminar, a Promotor de Justi~a prop6e ao suposto autor do fato 0 cumprimento de detenninadas condi<;6es, em troca do nao-oferecimento da denuncia, haja vista que os fatos descritos no Boletim de Ocorrencia autorizam-no a faze-lo. Descumprida, portanto, a transa<;ao, sera executado a acordo homologado, ou seja, sera oferecida a denuncia, e jamais convertida a condi9ao proposta em pena privativa de liberdade ou tftulo da dfvida ativa.

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Criminologia

1. Alguns Aspectos das RelaC;6es Sociais em Estabelecimentos Penitenciarios (Luiz Ricardo M. Centuriao) ................................. 87

2. Midia, Crime e Responsabilidade (Betch Cleinman) ..................................................... 97

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ALGUNS ASPECTOS DAS RELA<;OES SOCIAlS EM ESTABELECIMENTOS PENITENCIARIOS

Luiz Ricardo M. Centuriao

1 - DlMENSOES TE6RICAS DO DESVlO SOCIAL

o processo de rotula~ao social, entendido no caso como atribui~ao de trac;os negativos e condemiveis a urn indivfduo ou grupo, e nuclear na amllise das redes sociais que se estabelecem em institui~6es destinadas a cust6dia, internamento, abrigo ou tratamento de varias categorias de pessoas. 0 que caracteriza a perspectiva inerente ao estudo daquele processo e a transferencia do interesse do comportamento dito desviante para 0 esquema reativo que ele provoca (BECKER, 1977). Ou seja, a aten~ao do observador nao e mais direcionada para 0 infrator dos c6digos sociais, mas para a rea~ao experimentada, frente a violac;ao, peIa sociedade convencional. A rotulac;ao pode derivar tanto das organizac;oes oficiais de contrale como de algum tipo de grupo social como seria, por exemplo, 0 caso de grupos de relar;ao primaria, tais como grupos de parentesco, vizinhanc;a e outros (MALINOWSKI, 1976; LEWIS, 1970; PIERSON, 1966). Observe­se, por outro lado, que todo grupo social, seja qual for sua finalidade e natureza, desde que se auta-atribua algum tipo de legitimidade, detem 0 pader de rotular. Muitas vezes a autoconcessao desse poder e fundamental para a cansolidar;ao da identidade grupal. Tal fato tern a ver com a necessidade de regras experimentada pelos grupos humanos. pois sem etas tais grupos careceriam, TIa percepr;ao dos atores, de prop6sito e finalidade. Nao poderiam justificar-se. A esse fato soma-se a existencia, TIa vida social, de urn poder difuso de rotular;ao oriundo nao de agencias de controle ou grupos especificos. mas da sociedade como urn todo. Como que tomadas por urn espirito de cornunidade, ou Gemeinschaft, os indivfduos que compoem 0 todo diversificado e hierarquizado do organismo social reagem de modo homogeneo as condutas que eles entendem, desde uma base consensual, como ameac;adoras e ofensivas. Passa-se de uma consciencia adequada a contextos de solidariedade orgaTIica para urn modo de consciencia coletiva pr6prio de sociedades de solidariedade mecanica. Nao ha mais diferenr;as entre os indivfduos: todos se unem contra 0 of ens or cornum. Alem disso. havendo urn certo grau de convergencia, e comum ao contexto social a ocorrencia de simbioses entre agencias formais, por urn lado, e modos de controle local e tradicional, por outro (PIERSON, 1966). Mas se tal convergencia nao ocorrer, a simbiose pode ser suplantada pelo antagonismo entre modos fonnais e modos consensuais de controle social. De certo modo, tal antagonismo sempre esta presente em maior ou menor grau, pois a coincidencia absoluta entre costume e lei e uma impossibilidade. Esse fenomeno se acentua ern sociedades que, como a atual sociedade urbano-industrial, sao dotadas de urn carater multicultural. 0 que impossibilita a internalizac;ao de c6digos genericos, que sejam adotados por todos os indivfduos e subculturas.

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Observe-se que, pelo r6tulo, que comporta uma atribui~ao negativa por defini~ao, o indivfduo e colocado em uma posi~ao de extrema visibiHdade social (DEVEREUX, 1973; MERTON, 1971). Pelo seu desvio, emerge da massa indiferenciada dos anonimos, o que vern a Iimitar suas alternativas de comportamento, pois, de modo implicito, Ihe e exigido que represente os papeis apropriados ao r6tulo que the e aplicado. Este fenomeno de coa~ao difusa em dire~ao a conduta desviante, e que exige a coerencia entre r6tulo e papel desempenhado, tambem pode ser observado em estabelecimentos penitenchirios. Assim, nestes estabelecimentos, pode ocorrer uma imposi\=ao de papel sobre a interno, que se ap6ia em atributos idiosssincrasicos deste, sendo que tais atributos em princfpio neutros, como determinados tipos de expressao emitida ou transmitida (GOFFMAN, 1975), podem ser qualificados como sintomaticos e como materia-prima para uma redefinic;ao desviante. Nas institui~6es prisionais, essa redefini~ao estigmatizante da-se a partir de todos as nfveis da equipe dirigente, sejam estes nfveis fonnados por leigos, como agentes penitencianos, par exemplo, au por aqueles tidos como "especialistas" em cornportamento humano, como psic610gos. Observe-se que ha, nesses casos, a atribuic;ao de uma "substantividade" desviante ao interno. Esta e vista como irnpregnando todos seus atos e inten~6es, que se tornam passfveis de serem reinterpretados como evidencias de urn carater anomalo, independentemente do que 0 interne fa~a. Por exemplo, urn presol de "born comportamento" mostra interesse em uma atividade produtiva. Alt!m disso, se man tern dentro das regras fonnais e informais que estabelecem a disciplina dentro da prisao. Estes atos podem ser vistos como prova evidente de astucia e dissirnula~ao. Tal preso transformou-se em urn "eu-objeto", sua subjetividade foi devassada, anulada e estereotipada pelos "eu-sujeito", ou seja, por aqueles que detem 0 controle no processo de interac;ao. Entretanto, e importante lembrar que essas redefini<roes, observaveis no contexto carcerario, na realidade constituem-se em uma caracterfstica imanente a todo contexto relacional. Assim, na vida convencional e em quaisquer grupos sociais operam os mesmos mecanismos. Uma das conseqUencias reside no fato de que esse processo conduz a anula<rao, em termos de visibilidade social, da polifonia interna, da coexistencia de tra~os heterogeneos que compoem a totalidade de cada indivfduo.

Tal modo de redefinic;ao, por sua vez, pode ser conseqUencial au nao, em termos de represalia. Nao 0 sendo, cria-se urn padrao de tolerancia por meio do qual 0 individuo tido como a16m dos limites da nonnalidade passa a ter permissao para manifestar condutas que seriam rigorosamente punidas em outras pessoas, como ocorreria em uma reaC;ao de tipo conseqUencial. Assim, em qualquer estabelecimento prisional podem-se encontrar-se, internos que desfrutam de uma maior margem de tolerancia do que outros. Do mesmo modo, em grupos convencionais sempre sao encontrados aqueles indivfduos aos quais sao pennitidas condutas que seriam vistas como reprov3.veis se expressas por outros. Entende­se, a partir disso, que a visibilidade do desvio e uma necessidade vital em qualquer grupo ou contexto social. Essa visibilidade fomece os modelos identitarios e de referencia, consagrando, assim, a solidez dos principios de interac;ao culturalmente elaborados. Na cultura prisional, sejam quais forem as express6es de comportamento do interno, sua conduta tende a cair sob 0 contrale e observa<rao de grupos especializados da equipe dirigente. Mas por outro lado, pode ocorrer a alternativa da aplica~ao de "soluc;oes internas", ou seja, algum modo informal e nao sancionado no conjunto de praticas oficiais

I Os termos preso, apenado, detento e recIuso serao utiJizados, neste texto, como sin6nimos.

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da instituic;ao. Nesse quadro incluem-se tanto resoluc;6es do desvio a partir do pr6~rio grupo de detentos, como resoluc;6es por parte da equipe dirigente contranas as pratlcas oficializadas. Estes fenomenos fazem parte da ampla area de bastidores presente na cultura desse tipo de instituiC;ao.

o efeito da rotula'tao se acentua gra'tas a aceitac;ao do r6tulo pelo indivfduo, e essa aceitaC;ao normalmente sempre ocoere em urn ou outro nivel de seu psiquismo, seja de maneira auto-encoberta ou nao. A biografia de muitos criminosos encarcerados mostra esse processo, que pode se estender desde 0 primeiro internamento em alguma inst~tuj'tao para menores ate a culminac;ao da "maturidade" desviante, em algum estabele~~mento prisional de maxima segurans:a. Deve-se observar, tambem, que a forc;a coerCltlva do controle social, aliada a certo tipo de expectativa por parte da coletividade, pode levar as pessoas a assumir papeis que Ihe sao atribufdos pelos outros. Assim, os pacientes psiquiatricos, intencionalmente, transmitem as impress6es que 0 medico espera deles. (CLARK, 1973; GOFFMAN, 1975; FELDMAN, 1979). DAVID CLARK (1973) analisa detalhadamente como 0 paciente recem-internado e treinado pelos mais antigos no sentido de manifestar sintomas que supostamente "agradam" aos medicos. AMm disso, medicos e enfermeiros pressionam 0 paciente para que este se ajuste a "cultura da enferm~a". Isso inclui a manifesta~ao de comportamentos bizarros e a aceitac;ao da autondade do terapeuta. Desta forma, evitam-se condutas "desagradavelmente" nor~is. I?a m~sma maneira, funcionarios de uma institui~ao prisional podem agir no sentJdo de mduzlr os detentos a tipos de conduta desviantes no sentido de construir urn "desvio dentro do desvio" au, por outro lado, podem aplicar uma pre-rotul3\=ao de desvio, anterior a qualquer informas:ao que se tenha a respeito do individuo e a qualquer impressao transmitida por este. Nos dois casos, 0 detento sempre tera seu comportamento reinterpretado pela equipe dirigente para ajustar-se a expectativa desta.

Tais processos nao sao uma caracteristica unica do contexto de rela~6es que se estabelecem, em pris6es. Eles devem ser vistos como uma especificidade do processo mais amplo existente na sociedade em geral, e por meio do qual, quando os agentes de controle aplicam determinado r6tulo e este se torna conhecido por outros indivfduos que compoem a coletividade, as rea'1oes ao sujeito rotulado, que obviamente operam por uma serie de discriminac;oes, exclus5es e outras maneiras especfficas de interagir com ele, reduzem a possibilidade de comportamentos alternativos, e incrementam 0

comportamenlo desvianle. Sobre islo, GOFFMAN (1979) da exemplos de ex-presidiarios. FELDMAN (1979) refere 0 tralamenlo dado por policiais a suspeilos de classe baixa. Por outro lado, uma menor taxa de rejeic;ao social pode favorecer atitudes e auto-imagens alternativas, uma vez que 0 individuo nao fica preso ao modele desviante como resposta a uma exigencia monolftica do grupo ou gropos de referencia da coletividade ou das agencias de controle.

No entanto, deve-se considerar tambem que a fraca rejeic;ao social ao desvio, ou ausencia desta, como ocorre em determinadas subculturas urbanas, anuia 0 efeito intimidat6rio que poderia levar 0 indivfduo a uma substitui'1ao do papel "desviante" por urn papel "normal". Por sua vez, e isto e claro em contextos de mudan~a social, a existencia de uma fraca rejeic;ao social em re1a<rao a certas condutas antes fortemente desaprovadas indica que esta havendo urn processo direcionado a consideni-Ia nao­desviante. Os padroes de comportamento se alteram e as regras nao sao aplicadas coerentemente em circunstAncias concretas. Nesses casos, que podem ser evidencias de

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mudan~a~ cultur~is nipidas e mais abrangentes, 0 indivfduo deve operar uma socializa'tao secundana, que In'i atuar sabre uma estrutura psfquica e comportarnental pn!existente, opon~o-~e d:sse ~odo aos modelos de socializa\=ao primana. Registre-se que, embora a referencla seJa ~q~l a padr5es da sociedade mais abrangente, nao se deve perder de vista qu~ 0 espa~o pnslonai se constitui em uma area de reprodu't3.0 rnicrossocial dos modelos roms amplos.

~EMMER! ,(in FELDMAN, 1979) distingue entre desviantes primarios e se~un~anos. _Os ult~mos definem-se e percebern-se a si proprios como desviantes; as ~flm:lros, nao. VeJa-se que hat aqui. dais modelos diversos de auto-elabora'tao da Iden~l(lade, que cor;~spondem a modos de intemaliza'tao do r6tulo. A auto-defini<;ao dos desv~antes secundanos e conseqUente a rea~ao dos outros frente a suas atividades desvlantes, Con~onne LEMMERT, as desviantes secundarios sao desviantes primarios que foram. selec.lOna~os e transfonnados para agirem a maneira que a sociedade espera de1es. ASSlIl~, a IdentJdade pessoal e construida pelo individuo dadas as caracteristicas da resp~sta socIal que recebe do meio circundante, ern etapas relativamente precoces de sua carrelr~ moral. E cOmo todo indivfduo e a sfntese parcial de uma heterogeneidade mais ou me~~s ,I~tegrada, o?serva-se que a sua parte desviante atribui-se maior sjgnifica~ao social ~ vlslb~hd~de" Asslm, a p~te nao desviante, que equivaleria em tennos psicologicos a ar.ea pSlqUlca lIvre de conflltos e, sociologicamente, a area de representa~ao convencional e 19norada, tend~ndo a extinguir-se em termos de expressividade social. '

. . En~m, a r.otu,layao e urn processo, e este processo produz a identifica~ao e auto­Identlfica~ao. d~ .mdlvlduo corn uma imagem desviante e, freqUenternente, a escolha de redes de .~?cJa?I,~Idade .e por grup~s de _referencia dotados de uma subcultura par meio da q~al os ,Iguals desvtantes funclonarao como grupo de apoio. Assim, a conjunto de atltudes e posta em consonancia com a auto-imagem, produto de fatores endogenos somados ao entomo social. Nesse entomo, muitas vezes comportamentos do individuo que fazem parte de sua historia de vida e sao anteriores aos momentos iniciais e decisivo~ da ap~ic~~ao da rotula'tao desviante, passam a ser reinterpretados socialmente a post~r~n, em fun~ao da modifica~ao da realidade pelos esquemas cognitivos da coletlvldade, quando estes esquernas se voltarn para a ressignifica~ao dos eventos passados, pertencentes a historia de vida do indivfduo, como se deduz da'i analises de FOUCAULT, (1977), Portanto, na reconstru~ao da hist6ria de vida de delinqUentes encarc~rad~s mterpretam-se atos que, se tratando de outras pessoas, seriam tornados como n?~maJ.s e I~conse~(jentes. Mas, no caso de criminosos, todo evento passado, por mais futI.l qu~ ~eJa, e remterpretado Como antecipat6rio e anunciador das futuras tendencias antI-socialS,

Nao e impresci?df~el esperar no desviante secundario, tal como foi definido por ~~M~RT, um.a coerenCIa absoluta entre comportarnento e autopercep~ao. Ao contrario, e propna de mllltos desses casos a coexistencia em urn mesrno individuo de subsistemas va!or~tivos co~nitivos e. normativos contradit6rios, que fazem parte da heterogeneidade pSlqulca menclOnada ~clma. Deve-se mencionar, tambern, a fun\=ao social a que serve 0

co~port~rnento desvlante. Na verdade, este aspecto ja foi largarnente tratado na soclOlogJa, Conforme BOX (in FELDMAN, 1979), 0 tipo de comportamento desviante que e enquadrado como delito Iegalmente definido e tolerado e incentivado pelo grupo controlador de qualquer sociedade, porque assirn se mantem 0 cont(ole sobre a maioria confonnista. a fato de existirern condutas desviantes e inaceitaveis for~a a uma contInua

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defini'tao do que e aceimve1. Assirn, -0 desvio esclarece e mantern as nonnas sociais e agu'!a a autoridade da regra. Nesse quadro, 0 desvio pode ser apresentado como uma amea'ta ao modo de viver da rnaioria e, para que a funcionalidade dos mecanismos de contrale se mantenha, os limites entre comportamento convencional e nao convencional devern ser claros, sem ambigiiidades. E claro que essa ausencia de arnbigUidade e de areas confusas corresponde mais a modelos ideais socialmente elaborados do que a realidade social em si. Nesta, a linha fronteiri'ta movel e obscura, situada no continuum normal desviante, com as respectivas atribui~oes de identidade, sempre se caracteriza por urn certo grau de imprecisao.

2 - A SOCIEDADE CARCERi-.RIA

o meio cultural no qual urn individuo vive determina em grande medida a natureza de sua conduta e personalidade. Este meio exerce inumeras influencias que modelam e delimitam as atitudes com as quais cada urn enfrenta as experiencias basicas e de carater universal da vida humana. Muitas das experiencias que, por sua vez, sao produzidas par urn meio cultural especifico nao sao repetidas identicamente em outros. Diante deste fato geral, e necessario observar as m6ltiplas nuan~as e as aparentemente insignificantes varia'toes intraculturais que, integradas a totalidade da cultura, podem produzir diferen'tas significativas nas experiencias de seus membros, tanto em virtude de fatores pessoais idossincnisicos como de gropos de perten'ta.

Tambem, deve-se considerar que sob certas condi'toes de tensao, urn ser humano pode desenvoIver-se de uma maneira diferente da maioria convencional, e de uma fonna tal que se toma problematica sua convivencia corn eles. Assim, com uma maior ou menor margem de tolerancia, 0 individuo em quesmo pode expandir e consolidar padroes de comportarnento considerados desviantes pela mencionada maioria. No entanto, observe-se que todo sistema cultural tern seus "nichos", suas areas restritas que existem com a finalidade de possibilitar a manifesta'tao aberta de condutas desviantes. Slio momentos ritualizados em que a coletividade como urn todo pode apresentar-se como "desviante". Outra possibilidade de expressividade nao convencional, em nossa cultura, e de que a pessoa seja remetida a uma coletividade desviante. Assim, eIa podeni ser intemada em uma institui~ao que aceitani como fato basico sua "anonnalidade", e na qual se procurara manter sua conduta sob controle e reparar (seja 0 que for que se entenda por repara~lio) 0

dana infligido a sociedade e/ou a si pr6pria. Este evento pode ser considerado muitas vezes com sendo a fase terminal na carreira de urn individuo, e a institui'tao na qual ele foi internado podenl ser uma institui~ao especializada para tratar individuos psicoticos, delinqUentes, au ambas as coisas.

Como se sabe e foi extensamente abordado na literatura especializada, 0

transgressor delinqUente foi tratado, no contexto hist6rico dos estabe1ecimentos prisionais, das maneiras mais variadas, mas foi apenas em urn segundo momento que se buscou maximizar desde uma 6ptica cientifica, e nao mais religiosa, os recursos de recupera~ao oferecidos pela institucionaliza~ao. Assim, a custodia e a ideologia que alicer~aram 0

chamado tratamento de ressocializa'tao, supostamente cientifico, modificaram, ou tentaram modificar, as caracteristicas funcionais da prisao. Desse modo, uma boa parte da orienta'tao atual em institui~oes p-nsionais, voltadas para a cust6dia e vigilancia do preso, investe urn interesse maior na investiga<;ao cientifica e fermas de tratamento dela derivadas e aplicadas sobre 0 delinqUente, visando, em ultima instancia, a charnada

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recupera~ao, ou reeduca~ao. au ainda ressocializar;ao. Assim, se nas epocas roais variadas se pensou que 0 delinqtlente deveria ser separado da sociedade das mais divers~ maneiras; ~ais recentemente pensou-se Da institucionalizacrao como processo voltado para a recuperacrao e passivel ~tor~o a :,ida conven.cional, com base em tratamento psico16gico e soc~al, seoda ~s.te malS dlSSoctado de onen~5es de cunha religioso estritamente morahzante e pumtlve. Com a instauracrao de tratamento psicol6gico em algumas areas da vida pris~onal, a inteo\=3o inicial foi a de impedir que 0 detente voItasse a causar algum dano a 51 e a outros no transcurso de sua carreira moral. E. para isso, seria necessaria trata-lo. Este fato gerou uma serie de problemas de reajustamento na atuac;ao concreta e cotidiana da equipe dirigente.

D~sse modo, uma di~cussao antiga e ao mesmo tempo muito contemponlnea da-se em rel~c;ao ao confronto ex~stente em estabelecimentos penais, de princfpios que visam a cust6dta e ao ~ontrole do mtemo, frente aos princfpios que, alem disso, visam ao seu tratamento social e psicol6gico. as princfpios de controle\puni9ao par urn lado, e tratamento par outro, freqilentemente sao experirnentados na pnitica (embora idealmente sua alian9a ~eja vista como positiva) como excludentes e antagonicos, ou como diffceis de serem mantIdos em ~m equilibrio ~ceitavel (THOMPSON, 1970). Derivam dar alguns dos aspectos mats sombnos e canfhtu31s da pesada rotina carceniria.

• A • Cabem aqui alguns comentarios a respeito do conceito de ressocializa9ao e seu smo.mmo.' a re:duca~ao: Este conceito se ap6ia na cren9a de que urn individuo pode ter sofrido dlsto~90es pSlqUlCas e de conduta de tal ordem, durante sua existencia, que merece tornar-se obJeto de urn processo terapeutico e adaptativo passivel de conduzi-lo a modifica90es ps~col6gicas de can iter substantivo, capazes de permitir-Ihe 0 convivio com seres hu~an?s t1~OS como normais, ou seja, que ° adequem as representa90es de papel convenClQnals. H~ ~ma cren9a no p~deroso efeito corretivo do atendimento psicol6gico, que vern a substItulr a cren9a antenor na for9a moralizante e regenerativa da religHio dentro do contexto carcenirio.

Mas, supoe-se que, se tendo por conclufdas as modifica90es de personalidade e comportamento do apenado no sentido de se reduzirem significativamente suas tend~ncias ~ r~in~iden~ia, cessa a necessidade, ao menos nesses aspectos, de manter sua mstIt~clOnahzac;ao, a~ ~enos por ~lgu~ .tempo. Par outro lado, a distorc;ao responsavel pelo mgresso de urn mdlYiduo na mStItUlc;ao carceraria pode ser vista como oriunda de fatores constitucionais idiossinccasicos, ou como produto de urn meio cultural nao convencional ou, ainda, como resultante de uma combinas:ao desses dois fatores. No caso de entrar em questao 0 meio cultural, falar-se-a de patologia social ou dito em outras palavras,. d~ ~xist~nc.ia de subculturas tao anormais e psicopatogenicas ~ue e necessario qu.e urn mdivldu? seJa extremamente doente para conseguir adaptar-se a elas. Esse tema fOl tratado por dlversos autores, na area da etnopsicologia (DEVEREUX 1973' LEWIS 1970). Na antropologia orientada para temas de cultura e personalidade 'cabe destacar ~ contribui<;1io de MEAD, DUBOIS, KARDINER, BATESON, BENEDICT e outros. Paralelamente, a analise de MERTON (1968) sobre os tipos sociais gerados em conlextos de anorrua produZlram fecundos debates na area de patologia social.

, ~as ~lti.~ decadas, acompanhado-se 0 que ocorria nos estudos referentes a hosPlt~l~ ?Slqmatr1cos, desenvolveu-se a ideia de que, senda a prisao uma organizas:ao comumtana . com padroes especfficos de sociabilidade, au seja, seRdo 0 locus de uma cultora pecultar, deveria ser investigada e estudada em tal qualidade, com a finalidade de

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determinar sua estrutura e os efeitos desta sobre 0 intemo. Paralelarnente, 0 conceito de boa instituic;ao prisional deixou de apoiar-se apenas nas caracteristicas de segurans:a, controle e vigilancia. Enfatizou-se 0 estudo das relas:oes sociais imperantes na prisao e modificou-se a visao do apenado quando este foi transformado de transgressor, que estava ali para ser punido, em alguem portador de algum tipo de disturbio de ordem pSicodinamica ou psicossocial, que estava ali para ser tratado. Em algumas partes,. incentivou-se sua reorganizac;:ao para atender aos moldes de comunidade tera¢utica. E em rela9ao a esse fato que se passou a aplicar it prisao 0 modelo de instituic;ao que a caracteriza como prestadora de servis:os, cujo beneficiario seria 0 detento. Este modele inspirou-se no sistema de servic;os medicos observado na anaJise do contexto social de hospitais psiquiatricos, e tentou-se seu redimensionamento para abranger as instituic;oes penitenciiirias. Em linhas gerais, tal sistema parte do triangulo que inclui 0 profissional (medico), 0 objeto (a doen<;a) e 0 propriellirio desle objeto (0 padente). Idealmente, tenta­se evitar a inclusao de objeto e proprietario em uma unica categoria, 0 que conduziria a uma estigmatizas:ao total do indivfduo pela substantivac;ao do objeto na identidade pessoal. Vale aqui a n09ao de equipamento defeituoso e suas decorrencias, tal como foi abordada por GOFFMAN (1982).

Podem ser encontradas, trabalhando na prisao. diferentes categorias profissionais que, em virtude de sua localizac;ao especifica na organiza9ao interna da equipe dirigente, terao diferentes perceP90es do preso. Estas percep90es oscilam entre a condenac;:ao moral ate a visao do detento como sendo uma especie de injusti~ado social ou paciente psiquiatrico. Tais percep90es podem dar-se tambem de forma combinada, e a rela9aO entre elas, muitas vezes instAvel, pode depender das vicissitudes ocorridas em situ~oes concretas de intemac;ao. A primeira forma de identificar 0 interno, ou seja, a que 0 ve como condenavel moralmente, ocorre, de modo difuso, tanto em segmentos encarregados da direC;ao do estabelecimento prisional como em funciomlrios subalternos encarregados da vigiliincia, e sobre os quais recai a maior parte da rotina prisional. Ao mesmo tempo, urn gropo como 0 dos agentes penitencicirios, que teoricamente darla 0 modelo contrastivo a sociedade dos reclusos, e que exerce em principio 0 controle direto sobre estes, encerra caracterfsticas ambfguas. Situa-se em uma condi9ao de liminaridade. Por urn lado, utiliza os estere6tipos da sociedade civil, e manrem a distanciamento cultur'al em rela9ao ao recluso, enquanto representante dos valores, ou principios, atacados por este. Por outro lado, ocorre 0 contrano. Ou seja, compartilha da visao de mundo e das praticas do apenado. Assim, as canotac;Oes de distanciarnento cultural que seriam cabiveis pela oposic;:ao delinqUente/nao delinqUente sao anuladas, na medida em que 0 agente penitenciario atua como participante da subcultura carceniria e como informado, no sentido de sec alguem que tern urn conhecimento do mundo do crime que nao e compartilhado pelo publico leigo. Nessa condi9ao, ele compartilha em certa medida, e em alguns casos totalmente, com os valores do apenado, podendo unificar com este urn modelo de relac;:oes praticas e, nesse ambito, a distinc;ao entre apenado e agente muitas vezes e apenas uma distins:ao formal. Assim, 0 agente penitenciario pode ser apenas urn tipo especial de delinqUente que ocupa urna posi9ao estrategica na rede de praticas delictivas intracarceniria.

Deve-se considerar, por ~UtrO lado, a exist~ncia na equipe dirigente de urn pequeno grupo profissional formado por assistentes sociais, psic6logos e outros funciomirios cooptados par estes, que tentam manter uma perspectiva e estrutura terapeutica, de cujos

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servi~os 0 detento seria 0 beneficiario. Este grupo profissional esta enquistado, au aderido perifericamente, a institui'tao penitenciaria. Muitas vezes tern apenas uma utili dade para fins de "representa<;ao oficial" da institui<;iio, cnde sempre sera exagerada sua importancia, que oa verdade nao e significativa. Corresponde, assim, sua existencia mais para objetivos da "area de fachada" da institui<;ao. Mas este gmpo, oa medida em que quer afirmar-se e constituir uma identidade em urn tipo de institui<;ao oa qual 56 possui uma importfutcia periferica escolhe, para a manuten<;ao e caracteriza<;ao de tal identidade, a estrategia de opor-se a a93.0 repressiva e disciplinadora dos agentes penitenciaries. Opera, portanto, peIo modele contrastivo que se consolida peIo antagonismo, construindo sua identidade a partir do contraste e oposi~ao.

Sempre tern chamado a atens:ao dos pesquisadares a persistencia da subcultura carceraria, apesar das varia<;:oes e idiossincrasias existentes entre os presos e dos diferentes tratamentos que eles podem receber por parte da equipe dirigente nos mais variados estabelecimentos penitenciarios, sejam de regime fechado, aberto ou semi­aberto. As refonnas efetuadas na estrutura e funcionamento des estabelecimentos prisionais parece nao ter al terado em nada os tra~os basicos daquela subcultura, modificando apenas as tecnicas de ajustamento primario e secundario, tais como definidas por GOFFMAN (1974). Alem disso, seguindo os principios mais amplos de ajustamento a cultura, pode-se entender que essa subcuItura homogeneizaria a conduta dos individuos por mais diferentes que fossem entre si, desde que situados na condi~ao de detentos, ou seja, sujeitos aos mesmos processos gerais de institucionaliza~ao. A isto pode-se acrescentar que a maioria dos presos, antes de serem intemados, fazia parte de uma subcultura criminal da qual a subcultura carceraria seria urn prolongamento, nao havendo, portanto, altera<;ao dos elementos essendais de vinculas:ao a grupos de referencia e redes de socializa<;ao. Pode-se observar que mesmo delinqoentes primarios, que nao possuem urn passado criminal notavel, assumem quase que automaticamente, desde 0 inicio da reclusao, 0 desempenho que nao s6 os outros detentos, como tambem a equipe dirigente, espera deles a partir de certos modelos padronizados de rela~ao. Desenvolve-se entre os apenados urn ambiguo sentimento de solidariedade por compartilharern de situas:oes comuns. Essa solidariedade nao esta em contradi<;ao corn a existencia de relas:oes extremamente disruptivas mantidas entre si pelos detentos, pois elas sao culturalrnente sintonicas. Observe-se que idealmente atribui-se, entre os apenados, grande importancia a sentirnentos e atitudes que denotem lealdade e confian~a recipracas, mesmo que seja em nivel de pequenos grupos, cujos membros se associavam em torno de urn lider. No entanto, esses valores ideais s6 se manifestavam em urn nfvel muito abstrato e generico, muitas vezes POllCO tendo a ver com a concretude das rela<;oes dhirias. De qualquer modo, por esses val ores refors:ava-se a elaboras:ao da identidade contrastiva que opunha preso a nao-preso. Alc~m disso, por sua idealiza<;ao evidenciava-se a distancia entre cultura real e cultura ideal.

Tambem, e este e urn tras:o cultural generico, a soIidariedade pode desenvolver-se corn mais facilidade entre duas pessoas que passero a considerar-se como mais au menos a parte de qualquer grupo, porque a rela<;ao entre dois indivfduos exclui a possibilidade de qualquer tipo de cumplicidade intragrupo contra alguem deste, 0 que nao ocorre quando 0

gropo se amplia para uma tdade, por exemplo. Em urn caso destes, A pode estabelecer uma rela<;ao de cumplicidade com B contra C, ou com C contra B, ou simultaneamente as duas coisas, 0 que significa que A pracura manipular a situac;ao ambiguamente, usando

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sua capacidade de representa~ao em "duas frentes", par assim dizer. ':- cu~plicidade exige 0 contato entre dais elementos da triade com .exclusao do tercelra. I?lSS0 pode resultar uma microanomia interacional que se mamfesta, entre outras COlsas, pelas recfprocas desconfianc;as entre os representantes do grupo, 0 que parece ser urn padrao nas relac;oes humanas na comunidade carceniria.

Ao que parece, as atitudes que mais se aproximam aos valores iderus de leal~ade, confian<;a e coopera~ao surgem com mais freqUencia nas . duplas. Dess~ dlades desenvolve-se a possibilidade de construir uma alians:a subentendl~a, com a fina!ld~de de formar uma frente de resistencia a urn ambiente tido como hosul. A permanencm e a funcionalidade dessas microunidades sociais com forte coesao interna possivelmente pode ser verificada com freqoencia sempre que detenninados indivfduos devam viver ern .urn ambiente sentido como perseguidor, nocivo e gerador de inseguranc;as. Este fato ser vlStO como co-extensivo a rnaioria das modalidades de institui~ao total.

Por ultimo, cabe lembrar, ao termino desta resenha, a seguinte coloca<;ao referente It prisao: "C ... ) contem homens que nao percebem que a coope:~{iio com o~ c~mpanheiros poderia beneficia-los; homens que estao mentalmente desequllz~rados e sao mcapazes ~e uma a<;ao racional; homens psicoticamente cobi{osos e egolstas,' e homens que sao parias no mundo livre e mantem esse mesmo status ~a comunidad: de ~ec!us?s. A con~~ta entre companheiros, longe de ser uma rea<;iio conslstente frent~ as eXlgenc~as da p~l~ao, oscila num precario equiliorio inferno. Ou seja, num plano zdeal se aplzca a maxzma 'todos por todos', mas na realidade, a solidariedade depende das rea<;oes individuais de cada urn" (HOOD-SPARKS, 1970, p. 223).

Por essa citas:ao, vemos que as caracterfsticas basicas da cultura prisional nao diferem dos modelos culturais mms amplos, nos quais aquela se inscreve. Assim, em vez de urn repertorio de condutas que poderiam ser vistas como ex?ticas, anomalas ?u, de qualquer maneira, substantivamente diferentes daquelas eXIstentes na socledade convencional, encontramos no espa<;o prisional a reprodus:ao dos mesmos model?s d~ interac;ao e, basicamente, dos mesmos val ores encontrados no mundo ex.tenor a institui<;ao. Este fato confirma 0 ponto de vista de GOFFMAN, quando este autar afirma que 0 desvio nao e uma condi~ao substantiva, e sim uma perspectiva.

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REVISTA DE ESTUDOS CRIMINAlS 1 - 2001· Crlmlnologla

MIDIA, CRIME E RESPONSABILIDADE'

Betch Cleinman Jomalista juridica

Mestre em Cinema e Hist6ria pela Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales - Paris

Devido a quesroo tempo para tratar do terna proposto, You-me limitar a indicar apenas alguns aspectos do circuito midialern09ao/rea~ao punitiva - produ~ao de leis -, cria~ao de crimes e criminosos.

Funcionamenlo da m(dia: existe uma concorrencia selvagem entre os veiculos de comunica9ao pela conquista dos mesmos "clientes": anunciantes e publico consumidor. A partir da 16gica de mercado dominante, infonna9ao passa a ser urn bern informacional, uma mercadoria. A busca do aumento da audiencia e de circula9ao, a necessidade de atingir 0 maior numero de pessoas, resultam na simplifica9ao e esquematiza9ao de temas complexos, na consagra~ao de uma visao manjqueista do mundo. Alem da questao mercado16gica, essas escolhas editoriais tambem sao pautadas pela hegemonia atual da televisao sobre os outros meios, 0 que implica a constru9ao de narrativas baseadas na em09ao e na for~a das imagens. Para esse jornaiismo de resultados, saber, conhecimento, reflexao. entendimento, atividades que exigem urn tempo que nao pode ser comparado ao dinheiro, transformarn-se em meros figurantes. 0 protagonista e a noticia que vende, que mantem uma marca em evidencia2

Em qua1quer manual de estudante de Jomalismo, pode ser encontrada a seguinte defini9ao do que vern a ser noticia: urn cachorro que rnorde urn hornern nao e nenhuma novidade. Agora, urn hornem que rnorde urn cachorro, isso vale uma manchete. uma primeira pagina. Essa concep~3.o embute uma n093.0 do extraordinario. do diferente, da polemica. enfim, do sensacional como a pr6pria materia-prima do jornalismo comercial. Desse modelo originam-se os dois principais generos de sucesso do momento: 0

jornalismo policial e 0 dito de investiga9aO. o jornalismo policial. antes percebido como produto de mau gosto, voltado para as

camadas populares, ganhou ares de nobreza e estabeleceu-se nos hormos nobres, como uma das preferencias nacionais. Disseminando Visoes moralistas e conceitos estereotipados. esse genero jomaHstico transbordou das Patrulhas da Cidade ou dos Programas do Ratinho e derrama-se em primeiros cademos, nas se90es de politica, econornia, esportes, lazer e entretenimento.

I Trabalho apresentado na mesa sobre "Paran6ia, crime e responsabilidade" durante 0 XVIlI Congresso Brasileiro de Psiquiatria - 27.10.2000.

2 Ver meu artigo A muralha dos procedimentos inquisitoriais, in CPl: Os Novos Comites de Salvas:ao Publica, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, pp. 21-41.

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lei 0 jornalismo autoproclamado de investiga~ao poderia ser denominado de jomalismo de revelalYao, pais pressupoe sempre que uma "fonte". uma "garganta profunda", resolveu tomar publicas as vfsceras de personagens graudos, de alguma celebridade, polftica. empresarial au artlstica. Para a imprensa dita seria, esse genero seria o equivalente comercial da imprensa escancaradamente sensacionalista. Aflnat. a publica~ao do conteudo de grampos c1andestinos, da quebra ilegal do sigilo fiscal dos poderosos, confere aos veicuios, atem de altos lueros financeiros, uma imagern de protetores dos interesses pUblicos.

Assirn, apesar de aparentemente distintos, esses dais tipos de jornalismo funcionarn como motor de venda e de dissemina~ao de visoes de mundo que contrariam diretamente princfpios constitucionais e valores inscritos nos tratados internacionais dos direitos humanos ratificados pelo Brasil. A partir de eriterios rnereantis, travestidos de vigilantes do bern comurn, escanrlalos, sangue, violencia, passam a invadir nossas vi<;ias, fomentando espasmos de irracionaJidade, desejos de vingan~a privada, e dificultando a cria~ao e eonstru~ao ou a manuten~ao de urn espa~o para politicas publicas de pacifica~ao de canflitos,

NOf;fio de crime e criminoso: 0 Professor da Universidade de Roterda LOUK HULSMAN, urn dos pensadores do abolicionisrno - teoria que defende a aboli~ao do sistema penal -, indaga: "Por que ser homossexual, se drogar ou ser bfgamo sao fatos pun(veis em alguns paises, e nao em outros? Por que condutas que antigamente eram puniveis, como a blasfemia, a bruxaria, a tentativa de suicidio, etc., hoje nao sao mais? As ciencias criminais puseram em evidencia a relatividade do conceito de infra~ao, que varia no tempo e no espa\=o, de tal modo que 0 que e 'delituoso' em urn contexto e aceitavel em outro, Confonne voce tenha nascido num lugar em vez de outro, ou numa detenninada epoca e nao em outra, voce e passIvel - ou nao - de ser encarcerado pelo que fez, ou pelo que".

Nao ha nada na natureza do fato, na sua natureza intrfnseca que pennita reconhecer se se trata au nao de urn crime - ou de urn delito. 0 que ha em comum entre urna conduta agressiva no interior da famma, urn ato violento cometido no contexto anonimo das ruas, 0 arrombamento de uma residencia, a fabrica«ao de moeda falsa, 0

favorecimento pessoal, a recepta~ao, uma tentativa de golpe de Estado, etc,? Voce naa descobrira qualquer denominador comum na definiC;ao de tais situac;oes, nas motiva\=6es dos que nelas estao envolvidos, nas possibilidades de a~6es visualizaveis no que diz respeito a sua preven\=ao au a tentativa de acabar corn elas. A unica coisa que tais situac;5es tern ern comum e uma ligac;ao completamente artificial, ou seja, a cornpetencia Jonnal do sistema de justi~a criminal para examimi-Ias, 0 fato de elas serem definidas como "crimes" resulta de uma decisao humana modificavel; 0 conceito de crime nao e operacional. Urn bela dia, 0 poder politico para de ca~ar as bruxas e af nao existem rnais bruxas. ( ... ) De urn dia para 0 outro, 0 que era delito deixa de se-Io e aquele que era considerado delinqtiente se torna urn homem honesto, ou, pelo menos, nao tern mais de prestar contas a justi~a penal. E a lei que diz onde esta 0 crime; e a lei que cria a "criminoso. "3

3 HULSMAN, Louk & CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas Perdidas _ 0 sistema penal em quesliio, Niter6i : Luarn, 1997, pp. 63-64.

I REVISTA DE ESTUDOS CRIMINAlS 1- 2001· Crlmlnologl.

Para rnostrar 0 funcionamento da midia no caso concreto, usarei urn exemplo extrafdo aleatoriamente do caderno Cotidiano da Folha de S. Paulo, jomal de maior tiragem do pais. Eis os titulos das noticias publicadas na edi<;ao de 14.09.2000:

"Rio: estudante de direito e baleado e morto; Violencia: dois morrem e tres sao baleados em bar; Agressao: professor de hist6rla joga aluno no lixo; Osasco: adolescentes sao presos ap6s assalto; Saude: morte por meningite gera panico em escola; Seguran~a publica: Rio monta rede de delatores em favelas; Violencia: Unidade da Febem tern 373 onde cabem 62 - Adolescentes sao proibidos de ficar em pe e de conversar no pn!dio do Bras; ir ao banheiro exige autoriza~ao; Turista alema e detida Corn 31kg de cocaina; Executivo nao prova origem de dinheiro; Encontrada mais uma ossada de mulher na regifio nororeste de BH; Irnprensa: Pirnenta Neves se diz 'confuso' e nao depoe para juiza em Ibiuna - Jomalista e 'homem em frangalhos', diz advogado; Seguran~a: PMs farao exame de consumo de drogas; Discriminac;ao: empresaria e condenada por racismo na BA."

AMm da competencia formal da justi\=a criminal para examinar esses fatos ocorridos ern diversas cidades, corn protagonistas e motiva\=oes as mais distintos, eu diria que hA urn outro ponto comum entre todas essas situaC;5es: a fato de se encontrarem no espa~o da midia, selecionadas e apresentadas de acordo com as regras editoriais do jornalismo de mercado. Esse enfileiramento de acontecimentos extraordinarios gerado pela industria de produ\=ao e transmissao de id6ias e fatos cria no consumidor de informa~ao medo, paran6ia, a impressao nftida de ser a pr6xima vftima. Os frutos dessa campanha de dramatiza~ao da violencia acabam sendo 0 clamor publico pelo fim da impunidade, 0 apelo a vinganc;a contra os monstros soltos nas ruas. Nessas reac;5es irracionais, cadeia passa a ser considerada a soluc;ao milagrosa capaz de estancar a onda de crimes que amea\=a nos engolfar. Na falta da prisao, quem sabe: urn linchamento au a justic;amento pelas pr6prias maos?

Violencia legal: nesse contexto, 0 apelo a lei, como forma de limitar e barrar a barbarie, que poderia ser considerado como uma res posta racional e democnitica, acaba por desembocar, contudo, em urn processo de inflaC;ao legislativa. 0 Congresso. sede do Poder Legislativo, em vez de exercer seu papel de criador de leis que protejatn bens juridicos fundamentais, como vida, liberdade, honra, acaba par contribuir para uma situaC;ao de caos normativo.

A conjugaC;ao de democracia representativa e sociedade de espetaculo engendrou a necessidade de que os politicos profissionais tenharn de agradar ao publico e a patrocinadores potenciais de suas campanhas eleitorais. Assirn, a16m de t6cnicas de marketing e publicidade, eles usam 0 proprio sistema legislativo como forma de se elegerem representantes do povo. Corn essa estrategia, passam a criar leis emergenciais, de exce~ao, casuisticas, feitas sobretudo a partir de eventos que obtiveram muita repercussao em fun~ao da cobertura da midi a, Afina1, como resistir ao efeito de uma lente de aumento sabre determinados acontecimentos e do conseqtiente ocultamento de outros? E as conclusoes artificiais obtidas a partir das constantes repeti~5es em dimera lenta das cenas de maior impacto? 0 epis6dio do onibus 174, no Jardim Botanico, teria suscitado a mesma reac;ao de horror se nao fosse a presen~a da televisao, transmitindo ao vivo, ao longo de horas a fio, 0 tormenta dos passageiros. incluinda at 0 assaltante? Para qual outro acontecirnento a midi a brasileira consagrou tanto tempo no ar nos ultimos tempos?

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Nesse cHma de emocionaHdade, 0 direito penal· e a possibilidade de penas cada vez roais rigorosas vern senda acenados como a solu~ao para diminuir 0 Dumero de crimes e a ~a consistente para dissuadir criminosos de cameter delitos. Assistimos, entao, a uma crescente crimina1iza~ao de condutas e 0 resultado dessa paUtiea naD e 0 abrandamento da violencia, mas a continuidade dessas praticas delituQsas, 86 que agora de forma clandestina.

o jurista AUGUSTO THOMPSON esereve que a "decreta,lIo de leis violentas constitui a roais perniciosa violencia do Congresso. (, .. ) Tremenda, mesmo, e a violencia legftima, a que se perpetra com 0 usa de poderes legais, a que se protege, com 0 escudo do direito"~.

o Programa do Ratinho apresentou cenas de urn homem torturando uma menina, que culrninavam oa exibiltao da crian~a comendo suas pr6prias fezes provenientes do medo nela provocado. Essas imagens, inseridas em plena campanha de elei~ao do novo prefeito paulistano, em que urn dos candidatos pregava uma poHtica de puni~ao maxima e garantias minimas, foram acompanhadas de urn alerta aDs parlamentares "para que eles nlio deixassem criminosos como aquele salrem da cadeia, para que nao diminu(ssem, e sim aumentassem, a pena para os crimes hediondos". Entretanto, juristas nao se eansam de apontar 0 absurdo da lei que eriou a figura do crime hediondo, "pela qual se reduzem a farrapos institutos juridieo-penais conquistados a duras penas".

o direito penal esta sendo apresentado, e usado, como a solu~ao para as desiguaIdades sociais. Enquanto as arautos do direito penal maximo bradam em alta potencia 0 seu uso intensivo, eles silenciam que ° seu contraponto sao direitos sociais minimos. Para reduzir a criminalidade de subsistencia, rnais que 0 direito penal, que seleciona e estigmatiza pessoas e condutas, uma melhor distribui~ao de renda seria uma solu~ao mais recomendavel.

A midia, ao aceitar e difundir 0 paradigma da criminoiogia positivista baseado na investig3.\=ao das eausas cia criminalidade e na aceita~ao da id6ia do eriminoso nato, em vez de questionar quem tern 0 poder de definir condutas e assim exereer controle social, toma-se mais uma instancia interna e funcional do sistema penal. AMm de tratar cidadaos, entendidos como sujeitos de direito, de desejo e da hist6ria como objetos de gozo, uso e troca mercantis, a midi a participa ativamente dos processos de sele~ao e estigmatizaltao de condutas e pessoas, atuando acriticamente como urn dos principais elementos do controle social punitiv~ institucionalizado .

• THOMPSON, Augusto. A v;olencia legal, in CPI: Os Novas Comites de Salvru;:ao Publica, Rio de Janoiro : Lumen Juris. 2001, p. 16.

J urisprudencia Comentada

1. Furto Circunstancia Agravante Reincidencia

a) Ac6rdao do DRS (Des. Amilton Bueno de Carvalho) ....................................................... 1 03

b) Comentirio (Salo de Carvalho) ................... 109

2. Furto Qualificado pelo Concurso Aumento de Pena

a) Ac6rdao do DRS (Des. Amilton Bueno de Carvalho) ....................................................... 120

h) Comentirio (Lenio Luiz Streck) ................. .132

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REVISTA DE ESTUDOS CRIMINAlS 1- 2001- Jurllprudincla Com&ntada 103/

TRIBUNAL DE JUSTIGA DO RIO GRANDE DO SUL

FURTO· CIRCUNSTANCIA AGRAVANTE- REINCIDENCIA

Inconstitucionalidade por representar bis in idem. Voto vencido. Negaram provimento ao apelo da acusa~ao por maioria.

Apelariio·Crime n" 699.291.050 - 5" Camara Criminal - ReI. Des. Amilton Bueno de Carvalho - J. 11.08.99

ACORDAO

Acordam os Des. da sa camara Criminal do Tribunal de Justi~a do Estado, por maioria, em negar provimento ao apelo, vencido 0 Des. Vogal, ARAMIS NASSIF, que dava provimento, 0 qual fani declarac;ao de voto.

Custas na fonna da lei.

Participaram do julgamento, os eminentes Des. PAULO MOACIR AGUIAR VIEIRA (Presidente), AMILTON BUENO DE CARVALHO (ReI.) e ARAMIS NASSIF (Vogal).

RELATORlO

Des. AMILTON BUENO DE CARVALHO (Relator): 0 Ministerio Publico. por seu orgao, ofereceu demlncia contra Amilton Barbosa, com 28 (vinte e oito) anos de idade a epoca, porque:

"No dia 09 de agosto de 1994, as 17 horas, aproximadamente, no interior do estabelecimento comercial sito na Rua Joao Zanetti n° 59, Bairro Florestinha, nesta Cidade, 0 denunciado Amilton Barbosa subtraiu, para si, urn rev6lver rnarca Taurus, calibre 38, de propriedade de Amado Moraes, avaliado em R$ 180,00 (cento e oitenta reais), conforme auto de avalia<;ao da fl. 24 do caderno policial. A res furtiva nao foi apreendida."

Ern razao disso. pediu a condenac;3.o do apelado nas san<;oes do art. 155, caput, do C6digo Penal.

A denuncia foi recebida em 25.04.96. Citado. foi interrogado (fl. 46). Veio defesa previa (fl. 47). Coletou·se prova oral (fls. 49 e 49v).

No prazo do art. 499 do C6digo de Processo Penal, foram atualizados as antecedentes.

Em alegac;oes finais, 0 Ministerio Publico requereu a condena~ao. pois entende provada a hip6tese da denuncia. A defesa pediu a absolvi~ao porque ausente a certeza probat6ria para ensejar jUlZO condenat6rio.

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1104 REVISTA DE ESTUOOS CRIMINAlS 1 - 2001 - Jurlsprudincla Comentada

o ate decis6rio singular condenou 0 apelado pela pratica de furto simples. A pena­base foi estabeleeida em urn ano e qualro meses, tarnada definitiva parque ausentes eausas madificadoras, em regime inicial aberto, concedido sursis, suspendendo-se eondicionalmente a pena, pelo prazo de dois anos, mediante condic;5es.

Intimado 0 Ministerio Publico, manifestou interesse em apelar. Em razoes recursais, posta a reforma do decisium monocratico, porque a reincidencia nao foi considerada quando da dosirnetria. porque prevaleee a falta de condic;6es para a concessao do sursis, e porque impossivel a fixac;ao do regime inicial aberto. 0 apelado, intimado pessoalmente, nao ofereeeu recurso. Ern contraMrazoes', sustenta inexistir motivos juridieamente relevantes para a pretendida refonna, requerendo seja 0 recurso julgado improcedente.

Em 2° Grall, a Procuradoria de Jllsti~a, atraves do Dr. LENIO LUIZ STRECK, pugna pelo improvimento do apelo.

E 0 relat6rio.

VOTO

Des. AMILTON BUENO DE CARVALHO (Relator): Nada se acrescenta a exemplar decisao do colega Mauro, que vai adotada como razao de decidir:

"0 n!u negou a imputac;ao, dizenda que fai ate 0 bar da vftima cobrar-Ihe uma conta, tendo esta, nao 56 nao pago, como ainda Ihe deu dois dros com 0

revolver que lhe acusa ter furtado. Essa versao nao encontra a menor sustentac;ao probatoria nos autos. A

vitima disse que Amilton chegou e the propos a troea do rev6lver par uma TV. Como tOPOll, pediu-lhe para ver 0 revolver. De posse do mesmo, foi saindo, tendo corrido quando chegou a porta.

Darci de Andrade, uniea testemunha ouvida, eonfirma a versao da vftima. ao dizer ter visto 0 Amilton pedir 0 revolver para Amado (vitima) e, de posse dela, saiu do bar, nao mais voltando.

o fato de 0 reu apoderar-se do revolver e sair em disparada caracteriza a animo de subtrair a arma, configurando 0 delito de furto e nao de apropriac;ao indebita, posta que nao se estabeleeeu a posse no sentido juridieo. 0 que houve fai mera detenc;ao da arma pelo reu, ainda sob a vigiHlnc.ia da vftima. A apropriaC;aa indebita ocorre quando 0 aeusado, ja tendo a posse tranqtiila, inverte 0 seu carater, passanda a possui-la sem a intenC;ao de devolve-Ia.

Do expos to, condeno 0 reu Amilton Barbosa, pela pratiea de furta simples (art. 155, caput).

FIXM;:AO DA PENA

A eulpabilidade e relevante, pois Arnilton agiu eansciente do que fazia, e com a intenc;ao de subtrair 0 rev6lver.

Possui extensa folha de antecedentes, 0 que depoe contra sua conduta social. Dernais operativas sem relevancia.

Pena-base: 1 ana e 4 meses, que fica definitiva na inocorrencia de causa modifieadora.

REVISTA DE ESTUOOS CRIMINAlS 1- 2001- Jurlsprudincla Comentada 105

Regime Inicial: aberto. Esclarec;o que nao operei com a circunstancia da reincidencia, pais entendo

que eia nao tern aplicaC;ao, no caso, porque afronta a Constituic;ao Federal.

Explico. Conforme li~ao do sempre brilhante LENIO LUIZ STRECK (Tribunal do

Juri - Simbolos & Rituais, Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 3' ed., pp. 63 a 68, 1998), '0 Direito Penal hoje - em face da institui<;lio do Estado Democra.tico de Direito em nossa Constituic;ao - nao pode (mais) ser vista, como uma mera racionalidade instrumental. 'Para tanto, ha que se perquirir os criterios que fundamentam 0 estabelecimento dos bens jurfdicos tutelados peto Direito Penal, isto porque nao e livre 0 'legislador' para estabelecer tipos penais e penas e das exigencias fundamentais inseridas na ConstituiC;ao, inferem-se os limites tralfados, por eIa, para 0 Direito Penal' (CARVALHO, Marcia Dometila Lima de. Fundamentafiio Cons/itucional do Direito Penal, Porto Alegre: Fabris, 1992, p. 44).

o Direito Penal e tambern Processual Penal devem ser interpretados, assim, nao mais sob a 6ptica de urn modo liberal-individuaIista-normativista de produc;ao de direito, corn sua faceta hobbesiana-ordenadora, mas sim, sob a 6ptiea de urn Estado Social e Demoeratieo de Direito, de cunha intervencionista-promovedor-transformador. Por isso, a parte especial do C6digo Penal deve ser revista, repensando-se os seus bens juridicos, a vista da matriz constitucional.

Tudo isso significa dizer, mutatis mutantis, como bern assevera DOMETILA DE CARVALHO (obra jll citada), que a superioridade normativa do Direito Constitucional delimita 0 que deve ser considerado delito pelo Direito Penal, e, mais ainda, que na tipificac;ao delitual 0 acento dever ser dirigido para a Protelfao do valor constitucional maior, au seja, para a justic;a social.

Para tanto, ha que se fazer toda uma filtragern das nonnas anteriores a Constituic;ao. para compatibiliza-Ias com a nova ordem constitucional. Isto porque, como bern ilustra LUIGI FERRAIOLI (FERRAIOLI, Luigi. 0 direito eomo sistema de garantias, in 0 novo em Direi/o e Poli/iea, Porto Alegre : Livraria do Advogado, 1997, p. 97), em urna perspectiva 'garantista' do Direito, 'todas as direitos fundamentais - e nao s6 os direitos sociais e os deveres positivos par eles impastos ao Estado, mas tambem os direitos de liberdade e as eorrespondentes proibic;6es negativas que limitam a intervenlfao daquele - equivalem a vi'nculos de substancias e nao de forma, que condicionam a validade substancial das normas produzidas e exprimem, ao rnesmo tempo, os fins para que esta arientado esse moderno artiffcio que e 0

Estado Constitucional de Direito'. A partir desta 6ptica garantista, explica FERRAIOLI, 0 Juiz estil slljeito

somente a lei enquanto valida, isto e, coerente com a Constituilfao: 'A interpretac;aojudicial da lei e sempre umjuizo sabre a propria lei, relativamente a qual 0 Juiz tern 0 dever e a responsabiJidade de eseolher somente os significados validos, ou seja, (os significados que sao) eompativeis com as

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nonnas substanciais e com as direitos fundarnentais por ela estabelecidos'. Fazer isto, segundo 0 mestre italiano, e fazer 'uma interpreta~ao da lei conforme a Constituic;ao, e quando a contradic;ao e insanavel, e clever do Juiz (ou do Tribunal) dec1anl-Ia inconstitucional'.

.'E~xe~gar a direi.to p~los olhos da Constitui~ao significa, por exempl0, ver o dlrelto a Iuz do Pnnciplo da Proporcionalidade, ou Razoabilidade, que e urn dos mais importantes (se nao for 0 mais) princfpios albergados na Constituic;ao, o q~al canSlste num parametro de valorac;ao dos atos do Pader Publico, para afenr se eles sao informados pelos valores ditados pela Constituj~ao (B~OSO, Luis Roberto, lnterpretm;iio e Aplicafiio da Constituiriio, SaraIVa, p. 204, 1996).

Em sfntese, enseja a verifica~ao da compatibilidade entre 0 meio empregado pelo legislador e os fins visados, bern como a legitimidade dos fins do ato em discussao (idem, p. 200).

A valora~ao da razoabiIidade do ato se faz atraves de urn 'jufzo de ponderayao de resultados', cujo requisito e a adequa~ao entre os meios e os fins do ato em exame (STUMM, Raquel Denise. Princfpio da Proporcionalidade no Direito Constitucional Brasileiro, Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 81,1995).

Nesse contexto, como fica a reincidencia?

Como mais uma vez ensina LENIO STRECK (op. cit., pp. 66167):

'No nosso C6digo Penal, a reincidencia. alem de agravar a pena do (novo) d~lito, constitui-se em fatar obstaculizante de uma serie de beneffcios legais, tatS ~omo a suspensao condicional da pena, 0 alongamento do prazo para 0

defenmento da Iiberdade condicional, a concessao do privilegio do furto de pequeno valor, s6 para citar alguns. Esse duplo gravame da reincidencia e antigarantista, sendo, a evidencia, incompatfvel com 0 Estado Democnitico de Direito, mormente pelo seu componente estigmatizante, que divide os indivfduos em aqueles-que-aprenderam-a-conviver-em-sociedade e aqueles­que-nao-aprenderam-e-insistem-em-continuar delinqUindo.'

LENIO question., citando ZAFFARONI (ZAFFARONI, Raul Eugenio. Reincidencia: urn conceito do dire ito penal autoritario, in Livro de Estudos Iuridicos nO 3, lEI, 1991, pp. 55 e 56.) se:

.'Se pode aplicar uma pena mais grave do que a correspondente a dasse de dehto de que se e culpavel; se infligir a alguem que cometeu urn primeiro deli to pelo qual foi apenado uma nova pena par esse crime nao seria violar abertamente 0 non his in idem, que e uma das bases fundamentais de toda a legisla~50 em materia criminal'.

o mestre argentino, citado por LENIO, na esteira de FERRAJOLI, advoga a aboli~ao da reincidencia no Direito Penal:

'Quando 0 discurso jurfdico-penal pretende legitimar a san~ao ao homem pelo que e e nao pelo queJez, quebra urn principio fundamental do direito penal de garantias, que e a intangibilidade da consciencia moral da pessoa, sustentada corn a mesma enfase atraves de argumentos racionais e religiosos: trata-se de

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uma regra laica fundamental do Estado de Direito e, ao mesmo tempo, da proibi~ao etica de julgar evangelica (Mateus, VII, 1; Paulo, Epistola XIV, 4) -FERRAJOLI (cf. ZAFFARONI, op. cit., p. 57) - Por tudo isso, conc1ui ZAFFARONI (ZAFFARONI, Raul Eugenio. Sistemas Penales y Derechos Humanos en America lAtina - lnjorme final do programa de investiga(iio do lnstituto Interamericano de Direitos Humanos, 1982-1986 - Buenos Aires: Depalma, 1986, p. 89.), 'el registro de I. condena una vez cumplida y su relevancia potencial futura, colocan al condenado que cump1i6 sua condena en inferioridad de condiciones frente al resto de la poblacion, tanto juridica como facticamente. La gravaci6n de la pena del segundo delito es diffcilmente explicable en terminos racionalies, y la estigmatizacion que sufre la persona prejudica su incorporacion a la vida libre'.'

o exame do caso concreto, a Iuz de tais considerayoes, aponta, indubitavelmente, para a viola~ao do Principio da Proporcionalidade au Razoabilidade, se operada corn a reincidencia.

E que, sem a reincidencia, 0 sancionamento para 0 delito praticado seria urn, ao passo que, incidindo ela, 0 apenamento seria outro e as conseqiiencias da condena~ao tambem, muito mais gravosas para 0 reu, ocorrendo, pois, a desproporyao entre 0 resultado e 0 meio. Ou seja, a simples incidencia da reincidencia (meio) acarreta urn resultado (apenamento e conseqUencias mais gravosas ao reu) absolutamente desproporcional, ferindo, desta forma, a Principio da Proporcionalidade, conseqiientemente, ferindo a propria Constitui~ao. que, por ser a norma fundante de todo 0 sistema, retira 0 suporte de validade do dispositivo legal que preve a reincidencia, porque, material mente, com ela conflita.

DOSURSIS

Apesar da extensao da certidao de antecedentes (fl. 51), 0 que tern de ser levado em conta como 'antecedentes' e 0 processo no qual Amilton foi condenado. Os demais registros nao podem vir em prejufzo dele porque, ou ja prescreveram (cf. art. 64, I, do CP), ou houve absolviyao. Em sendo assirn, penso que aquele 'antecedente', por tudo que foi dito, nao e suficiente para vedar-lhe 0 beneficio do sursis, pelo que concedo-lhe a suspensao condicional da pena, pelo prazo de 2 aoos, mediante condi~6es de:" - fls. 63v a 66v.

Acrescenta-se, ainda, parte do parecer de LENIO:

"A brilhante senten~a, acrescentaria, ainda, que 0 proprio 'legislador' -tantas vezes refem dos movimentos de lei e de ordem - por ocasiao da ediyao da Lei 9.714 rendeu-se ao que se poderia chamar de relativiza~ao do instituto da reincidencia. Com efeito, se examinarmos 0 § 3° do art. 44 do C6digo Penal, com a redayao que Ihe foi dada recentemente, constataremos que 0 juiz podera aplicar a substitui(iio da pena privativa de liberdade mesrno quando 0 reu for reincidente, desde que a medida seja socialmente recomendavel. Ora, 0 que isto seniio a aplica~iio da de vida proporcionalidade? Por tudo isto, correta a senten~a de 1° grau" - fl. 90.

Nega-se provimento ao apelo, pais.

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Des. PAULO MOACIR AGUIAR VIEIRA (Presidente e Revisor): De acordo com o Relator.

Des. ARAMIS NASSIF - Com a Relator quanta ao merito. A condena,ao vai mantida pelos argumentos expendidos na sentenc;a e no voto.

Quanto a pena, especificamente, pelo afastamento dos efeitos da reincidencia, chissica agravante, confesso que, ao conhecer a ousada tese, preocupei-me com a extensao das conseqUencias desta decisao, mantida pela maioria, nos demais segmentos penais.

Primeiro, porque ainda entendo que a pena, derradeira medida para recupera~ao do agente, e ninguem contesta isto, tern na culpabilidade sua essencia e sua substancia interna.

Ora, mesmo com todos os argumentos, eruditos e alimentados pela filosofia jurfdica desenvolvida na sentenc;a e com 0 apoio dos demais membros desta Camara, vejo, ainda, que a reincidencia deve ser considerada, menos como urn plus gravoso ao agente pelo seu passado criminoso, mas como 0 fracasso da reprimenda anterior na sua ressocializac;ao.

Nao consigo afastar a convencimento de que, em reiterando a pnitica ilfcita, esta auto-resistindo a reinserc;ao social, e, par isto mesmo, agindo, na repetic;ao criticada, com especial carga de culpabilidade it qual deve corresponder uma resposta penal mais severa.

Assim, nao seria para majorar a apenac;ao vencida, mas para dar exata proporcionalidade da sanc;ao a quem imputavel, constiente da ilicitude e das conseqUencias de revogar 0 comportamento que se Ihe era exigfvel e, assim, dar exata protec;ao aos bens jurfdicos tutelados pelo direito.

Par isto, ainda que sensibilizado pelo texto transcrito na sentenc;a, de lavra do eminente e culto Procurador de Justi,a Dr. LENIO STRECK, nao vejo inconstitucionalidade na aplicac;ao da reincidencia como agravante.

Todavia, permito-me ficar aberto para alterar meu convencimento no futuro, se veneer esses ranc;os jurfdicos que exponho adma.

Assim, voto no sentido de aplicar a pena-base de urn (01) mes de reclusao, considerando presente a agravante do art. 61, I, do Codigo Penal.

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COMENTA.RIO:

REINCIDENCIA E ANTECEDENTES CRIMINAlS: ABORDAGEM CRiTICA DESDE 0 MARCO GARANTISTA

Salo de Carvalho Advogado

Mestre (UFSC) e doutorando (UFPR) em Direito Publico Professor de Direito Penal e Criminologia (UNISINOS e PUCRS)

Coord. de Pesquisa do Instituto Transdisciplinar de &tudos Criminais - ITEe. ([email protected])

§ ]0. Critica iluminista. 0 discurso juridico-penal do iluminismo foi estruturado sob a egide da seculariza\=ao e da tolerancia. A negac;ao do fundamento teologico (moral eclesiAstica) do direito, principaimente nos criterios de interpretac;ao e imputac;ao dos desvios punfveis, obteve como conseqU~ncia a radical substituic;ao da conce~ao ontol6gica do crime (mala in se) para a noc;ao garantista estruturada desde 0 princfpio da legalidade (mala prohibita). Assim, sao abandonados os criterios substancialistas de valorac;ao cognitiva do injusto no processo penal, principaimente na imposic;ao da pena. Crime passa a ser a descric;ao legal da conduta, criminoso e aqueia pessoa que violou livremente (capacidade, conhecimento e vontade) 0 contrato social, e a pena representa 0

limite retributivo de intervenc;ao do Estado na liberdade do indivfduo. A Riforma della legislazione criminale toscana, conhecida como Riforma

Leopoldina, publicada pelo Granduca PIETRO LEOPOLDO DI LORENA, em 30 de novembro de 1786, e urn dos textos que mais simbolizaram a influencia dos princfpios de racionalidade e humanidade advogados pelo pensamento garantista classico dos intelectuais da Academia dei Pugni, gropo de refonnadores lombardos liderados pelo intelectual PIETRO YERRI.

Apesar da brevissima vigenci. (foi ab-rogada pela riforma Fernandina em 1795), a Leopoldina atinge importancia como "0 grande manifesto de civilizac;ao penal", verdadeiro "monumento hist6rico de uma vigorosa inffincia da arte legislativa"l.

Lembra ZAFFARONI' que, em seu § 57, a estatuto penal dizia que, ap6s executada a sanc;ao imposta peJa pratica de conduta descrita como crime, as pessoas "nao poderao ser consideradas como infames, para nenhum efeito, nem ninguem podera jamais reprovar-Ihes por seu deli to passado, que devera se considerar plenamente purgado e expiado com a pena sofrida" (grifamos).

Cremos ser absolutamente pertinente 0 elogio a codifica\=ao, cuja principal virtude diz respeito a negativa de qualquer jufzo futuro de cunho negativo ao indivfduo que,

I RAMACCI. Corso di Diritto Penale: principi costituzionali e interpretazione della Legge penale, p. 47. 2 ZAFFARONI. Reincidincia: um conceito do direito penal autoritario. p. 56.

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luo REVISTA DE ESTUDOS CRIMINAlS 1- 2001 - Jurlsprudencla Comentada

condenado, ja tenha cumprido sua pena, au seja, exclui a antecedencia criminal. a reincidencia e as demais institutos an51ogos da esfera valorativa do rnagistrado.

Apesar de exortado do pensamento penal ilustrado, sabemos que 0 modelo inquisitorial do direito penal do autor, simbolizado em institutos como 0 da reincidencia, renasceni com absoluto vigor no movimento penal da segunda rnetade dos oitocentos: a criminoiogia etiol6gica da Escola Positiva italiana.

§ i. Critica funcional. A assun~ao do modele anti-secular de direito penal do autor pela criminoiogia etio16gica revigorani e fundamentani, sob 0 manto da cientificidade, inumeros institutos que permitem a subjetivactao dos' julgamentos, entre eles a reincidencia e os antecedentes criminais que, juntamente com as ju(zos sobre a personalidade e as mecanismos de classificactao de criminosos, consubstanciarao a noctao rnanique(sta de "periculosidade". Antecedentes criminais, incluindo a reincidencia, e os estudos sabre a personalidade do agente proporcionariam avaliactoes acerca das "tendencias criminosas".

Segundo ENRICO FERRI, "para a avaIiaC;ao da perieuIosidade do deIinqUente, e necessario ter em conta 0 seu grau, a sua provavel duractao e a sua tendencia"3. A vida pregressa indicaria a tracto da personalidade do delinqUente, correspandendo ao estudo mais relevante para a justi~a penaL Desta forma, "privar a justicta penal das notfcias sobre os precedentes do reu seria impedir ao juiz aquilo que mais the interessa para tranqUilizar a propria consciencia, isto e, 0 conhecimento da personalidade mais au menos perigosa do acusado, nao so para the medir a conden~ao, mas tambem para avaliar os indfdos sobre sua culpabilidade"4.

Com a superac;ao do modelo criminologico positivista peIo paradigma da reac;ao social, as farmas de averiguactao da personalidade e do passado do infrator recebem novas e renovadas cdticas, fundarnentalrnente atraves dos estudos sobre os efeitos do processo de criminalizac;ao e sobre a incidencia do sistema penal no indivfduo selecionado e rotulado como portador de urn passado criminaL

Desde 0 enfoque da criminologia da reac;ao social, denuncia-se a admissao legal da averiguactao da reincidencia e dos antecedentes criminais como mecanismo de reforc;o das percepc;oes sobre a qualidade do "ser", estabelecendo controle pedagogico-disciplinar de extrema carga estigmatizante.

o r6tulo da reincidencia estabeleceria papeis e estigmas - perverso, inadaptado, perigoso, hediondo -, gerando expectativas do publico que consome 0 sistema penal. Tal expectativa atua nitidamente como influencia, potencializando 0 comportamento futuro do "reincidente". Criar-se-iam novos status nas relac;oes em sociedade, e 0 "crime" e tambem urn status (negativo), que tendem a negar a finalidade oficial cia pena - ressocializactao.

Os efeitos da rotulac;ao foram amplamente expostos peIa teoria interacionista, base leoriea do Labeling Approach, fundamentalmente pelos eriminologos BECKER e LEMERT. Segundo ALESSANDRO BARATTA "os erimin6logos tradieionais examinam problemas do tipo 'quem e criminosoT, 'como se torn a desviante?', 'em quais condic;5es urn condenado se torna reincidente?', 'com que meios se pode exercer controle sobre 0 criminoso?'. Ao contnirio, os interacionistas, como em geral os autores que se

3 FERRI. PrinC£pios de Direito Criminal, p. 287. 4 FERRI. Gp. cit., p. 305.

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inspirarn no Labeling Approach, se perguntam: 'quem e definido como desviante?', 'que efeito decorre desta definic;ao sobre 0 indivfduo?', 'em que condic;5es este indivfduo pode se tomar objeto de uma definic;ao?' e, enfim, 'quem define quem?'''s.

Nota LOLA ANY AR DE CASTRO' que a mudanc;a nos questionamentos advindas da construc;ao academica das teorias sociologicas narte~americanas propiciou a percepc;ao do papel real operado pelo sistema de criminalizac;ao: a) a constrw;ao de carreiras criminosas; e b) a consolidac;ao do status social negativo do sujeito rotulado como criminoso, reincidente ou perigoso.

o etiquetamento, ensina a autora, e "( ... ) a processa pelo qual urn papel desviante se cria e se rnantem atraves da imposic;aa de r6tulos delitivos"7. 0 processo de rotulac;ao e, em realidade, processo de distribui~ao de etiquetas que obtem como efeito a gerac;ao de estigmas. A etiqueta e 0 principal instrumento de identifica~ao de uma pessoa. A etiqueta faz 0 sujeito diferente, 0 separa do grupo e retira a sua identidade: "A etiqueta, pais, obscurece e esconde todas as demais earacterfsticas do indivfduo"8. 0 sujeito rotulado por determinada etiqueta e expropriado do seu proprio "eu", sendo~lhe imposto urn "ser" diverso, sob 0 qual expectativas surgirao. A expectativa social sobre urn individuo etiquetado de homicida, por exemplo, e a esperanya de que este reincida na pratica do fato. 0 processo termina, parem, apenas quando 0 indivfduo assume para si 0 rotulo, passando a atuar conforme sua nova identidade em carreiras crirninosas: 0 processo de estigmatizac;ao, desta maneira, esta completo.

A punic;ao de urn comportamento atua, segundo a teoria da reac;ao social, como commitment to desviance. Neste sentido, desde uma visao cntica, a imposic;ao da etiqueta de reincidente consolicia a condic;ao de "criminoso" da pessoa, irnpulsionando-o a pratiea reiterada de delitos.

Esta tese foi refor,ada por MICHEL FOUCAULT na am,lise dos efeitos das condenac;5es a penas privativas de liberdade: "( ... ) a prisao foi sempre urn grande instrumento de recnitamento. A partir do momento em que alguem entrava na prisao se acionava urn mecanisme que 0 tornava infame, e quando saia, nao podia fazer nada senao voltar a delinqUencia. Caia necessariamente no sistema que dele fazia urn proxeneta, urn policial ou urn a1cagUete. A prisaa profissionalizava"9. No mesmo sentido, FERRAJOLI conclui que "uma rica literatura, confrontada par uma secular e dolorosa experiencia, demonstrou que nao existem penas recuperadoras ou terapeuticas, e que 0 carcere, em particular, e urn local crimin6geno de educactao e fomento ao deli to. Repressao e educac;ao sao, assim, entre si, incompativeis, como e a privac;ao da liberdade e a liberdade mesma, que da educac;ao fonna a substancia e 0 pressuposto; desta forma, 0 que se pode esperar do earcere e que seja 0 menos repressivo e portanto 0 menos dessocializante e deseducativo possivel"lo.

§ f. Antecedentes criminais. De acordo com 0 estatuido na lei penal brasileira, a antecedencia criminal adquire como principais caracterfsticas a amplitude, negatividade,

S BARATIA. Criminoiogia cn/jca e cntica do direito penal, p. 88. 6 CASTRO. Cn'minologia da Rear;iio Social. pp. 102/06. 7 CASTRO. Op. cit., p. 103. 8 [d. ibidem, p. 104. 9 FOUCAULT. Sabre aprislio, p. 133. [ij FERRAJOLI. Diritto e Ragione: teoria del garantismo penale, p. 260.

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1.12 REVISTA DE ESTUDOS CRIMINAlS 1- 2001- Jurlsprudencla Comentada

subjetividade. relatividade e perpetuidade. Essencialmente negativa e indeterminada co~ceitualmente. consti~ui instrumento de imposi~ao de r6tulos e consolidac;ao de estlgmas, acerca da vida do acusado, viabilizando ao juiz valorac;ao irrefutavel probatonamente sabre 0 autar do fato, e nao sabre 0 fato em si.

. Sustenta BISSOLI p,H que 0 conceito de antecedentes e amp/o, pais qualquer fato pret6nto envolvendo 0 acusado pade seT levantado pete juiz. Sua negatividade decorre da tendencia judicial em considerar apenas as "maus antecedentes" do autor. 13 subjetivo porque e 0 pr6prio julgador que seleciona as fatas anteactos e as val ores a serem avaliados, senda, portanto, relativos, uma vez que sao considerados basicamente registros policiais e civis.

. Importante, porern, a constatac;ao de que os antecedentes sao perpetuos, dado que, dlferentemente da reincidencia, nao sao limitados temporalrnente pela legislac;ao vigente.

§ 4-. Reincidencia: conceito e Justificativas. Nao se distancia das qualidades da antecedencia criminal 0 instituto da reincidencia. Tecnicarnente, como observa ZAFFARONI, e muito diffcil fomecer conceite satisfatOrio de reincidencia, pois teda a c~nst:ru!a~ dogm~tica tende a centralizar 0 debate nas tradicionais relac;oes entre remcldencla genenca eu especffica, ficta eu real, ou, ainda, nos paises que adotarn, na diferenciaC;ae e sistematizac;ao desta frente aos similares institutos da multirreincidencia, habitualidade, continuidade, profissionalidade ou tendencia delitiva. A reincidencia, alias, e uma esp6cie de reiterac;ao delituosa.

Segundo 0 art. 63 do CP brasileiro, "verifica-se a reincidencia quando 0 agente comete ,novo crime, depois de transitar em julgado a sentenc;a que, no Pais au no estrangelro, 0 tenha condenado por crime anterior",

o CP nao define, pertante, 0 que e reincidencia, apenas indica as condic;5es de sua verificabili.dade. A regra do art. 64 do CP estabelece que 0 efeito da reincidencia opera quando eXlste, entre a data do cumprimento au extinc;ao da pena e a infraC;ao posterior, lapso temporal inferior a 05 (cinco) anos. Assirn, a reincidencia, como nota ZAFFARONI, "( ... ) no es una relaci6n entre el primero y el segundo delite, pero sf entre el segundo delito y la condenaci6n anterior"12.

As justificativas do instituto sao fomecidas por inumeras correntes l3 , A teoria da dupla lesdo percebe no deli to a violac;ao de dois bens juridicos diferenciados _ urn individual e outro politico -, sendo a reincidencia provocadora de profundo dana ao ultimo (elemento mediato) pelo alarme social deflagrado. 0 grande problema desta teoria e a ruptura com 0 conceito de bern jurfdico baseado no principio da ofensividade urn dos piIares do garantismo penal. '

Do positivismo ferriano obtemos, como leg ado, a teo ria da periculosidade presumida. A justificativa atraves da periculosidade presumida, nao obstante tratar-se de concei~o incompre~nsivel, vago e lacunoso, "reduz 0 hornem a uma 'coisa' regida mecamcamente, retrrando-Ihe Sua qualidade de pessoa" 14. Este modelo te6rico difere da estrutura doutrinana da culpabilidade de autor, apesar de ambos estabelecerem julgamentos cia vida pregressa do reu, Enquanto naquele modele a pena e 0 valor da

:~ BISSOLI P. Estigmas da criminaJiza~iio: dos antecedentes a reincid~ncia criminal, pp. 64/6. 13 ZAFFARONI. Tr~/ado de .Derecho Penal. v. V, p, 360. 14 ZAFFARONI. Remcidincza: um conCeito do direito penal autoritario. p. 49.

ZAFFARONI. Op, cit .• p. 52.

I REVISTA DE ESTUDOS CRIMINAlS 1- 2001 - Jurlsprudincla Comentada 113 1

condena~ao sao voltados para 0 futuro na busca de ressocializa~ao, a irroga~ao da penalidade na teoria da culpabilidade de autor adquire feir;ao meramente retributiva,

Por ultimo temos as teorias de culpabilidade do ato, cujo criterio predominante na justificac;ao da reincidencia e a reprovac;ao pela ''recusa ao arrependimento" e pelo desprezo ao valor admonit6rio da condenac;ao anterior. Neste sentido, a maior intensidade da pena "( ... ) decorre da circunstancia de haver (0 auter) menosprezado a con~ena~~o anterior, e toda a for~a intimidat6ria da lei penal, que faz do condenado urn destmatano especial de ameac;as, ao vedar-Ihe, no caso do novo delito, uma serie de beneffcios"'~.

Pela observac;ao e direcionamento de nossa amllise, entendernos que, muito embora o discurso oficial tente ocultar tal justificativa, a teoria que melhor explicita nosso modele justificador da reincidencia e 0 da teoria criminol6gica derivada do positivismo. A explicac;ao decorre nao somente pela sua agregac;ao corn diversos institutos de natureza analoga (v.g, antecedencia, avaliac;ao de personalidade e condula social, jufzos e progn6sticos de periculosidade, classificac;ao tipol6gica de criminosos, et coetera), mas pelo pr6prio esquema discursivo que viabilizou e the deu sustental):ao na reforma da Parte Geral do C6digo Penal.

A reprovac;ao acentuada do reincidente, segundo os reforrnadores de 1984, ganhou relevo "(, .. ) tendo em vista a supressao do duplo binario, que conduzia a se descuidar da majorac;ao na aplicac;ao da pena, dada a obrigat6ria imposic;ao da medida de seguranc;a"16.

Demonstra 0 § 59 da Exposi<;'o de Motivos da Lei 7.209/84 que "( ... ) com a extinl):ao, no Projeto, da medida de seguranc;a para 0 imputavel, urge reforc;ar 0 s.istema destinando penas mais longas aos que estariam sujeitos a imposic;ao de medtda de seguranc;a detentiva e que serao beneficiados pela aboliC;ao da medida, A PoUtica Criminal atua, neste passo, em sentido inverso, a fim de evitar a liberaC;ao prematura de determinadas categorias de agentes, dotados de acentuada periculosidade".

o sistema do duplo binario, que vigerava na Parte Geral preterita, estabelecia medida de seguranc;a, como sanc;ao complementar, em conseqUencia da periculosidade presumida ou verificada do delinqUente. Ap6s 0 cumprimenta da pena principal, baseada no juizo de culpabilidade, executava-se a medida de seguranc;a, valorada desde a periculosidade do autor.

A periculosidade poderia ser presumida all averiguada. Segundo 0 art. 78 da revogada Parte Geral, seriam presumidamente perigosos: a) os inimputa:veis; b) os semi­imputaveis; c) os condenados por crimes cometidos em estado de embriaguez pelo alcool ou substfulcias de efeitos analogos, se habitual; d) os reincidentes em crimes dolosos; e e) os condenados por crime que hajam carnetido como filiados a associal):ao, banda au quadrilha. Presumida a periculosidade, sobrevem 0 estado perigoso, Cabe ressaltar, ainda, que nao havia limitac;ao no tempo para a reincidencia. Somente em 1977, com 0 advento da Lei n° 6.416, os efeitos da condenal):ao anterior foram restritos temporalmente (05 anos).

Constata-se, pois, que a natureza do instituto e a argumentac;ao da maior penalizaC;ao e fundada em tip os criminol6gicos de autor e em teorias dogmaticas enumeradas pelas no~5es de periculosidade social e/ou patologia individual - "A

15 REALE JR.; DOTTJ; ANOREUCCI & PITOMBO. Penas e Medidas de Seguran~a no novo C6digo, p. 176. 16 REALE JR.; oom; ANOREUCCI & PITOMBO. Op. cit .• p. 178,

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REV1STA DE ESTUDOS CRIMINAlS 1- 2001- Jurlsprudincla Comentada I

~eincidencia" - dizia HUNGRIA - "6 sinal de periculosidade, como a febre e sinal de mfec,ao, como a putrefa,ao e sinal de morte"". 0 fato de abandonar a imposi,ao complementar da medida de seguram;a (sistema do duplo binario) ao reincidente e s~bstitui-Ia pela maj?ra~aO da pena nao ameniza 0 substrato ideot6gico que conforma 0

sistema, pete contnirio, demonstra claTOs sinas de sua presen'ta.

. . ?e~ta ~onna, podemos comprovar, juntnmente com ZAFFARONI, que a remCidencIa s~ s~ explica "( ... ) nas abordagens juridico-penais na medida em que se ab~dona 0 dlrelto penal do ato, embora, as vezes, nem mesmo nestas posi~6es a exphca~ao se mostre coerente. Ao contrario, as tentativas de explica-la dentro dos limites de urn direito penal do ato sao todas insatisfat6rias"'8.

. § 5~. Reincidencia: efeitos legais. Muito ernbora ter sido desqualificada teoncamente pela matriz iluminista e desmistificada pela feroz critica funcional do inter.acionismo si~b6Iico, as valora~6es sobre a vida pregressa do reu (condenado) continuam a ser obJeto de valora'tao obrigat6ria pelo magistrado, tanto para aplicar a pena como para restringir direitos publicos subjetivos.

Ao . r~tular determinada pessoa como reincidente, ou como portadora de urn passado cnmlOOSO (antecedentes), 0 sistema de controle social fonnal produz de imediato alg~ns efeitos legais. No sistema penal brasileiro a reincidencia: a) agrava a pena privativa de h?~rdade (a;t. 61, I, do CP); b) impede substitui,ao de pen. privativa de liberdade por restntlva de wreltos, se especffica em crime doloso (art. 44, II, do CP): c) impede substitui,lio da pena privativa de liberdade pel. multa (art. 60, § 2', do CP); d) prepondera no concurso de circunstancias agravantes e atenuantes (art. 67 do CP): e) obstrui 0 sursis quando da pnitica de crime doloso (art. 77, I, do CP); f) aumenta 0 prazo de cumpriment~ ~a pena !,ara obten,.lio do livrarnento condicional (art. 83, II, do CP); g) e causa de mterrup,ao da prescn,lio da pretenslio punitiva (art. 117, VI, do CP) e execut6ria (art. 110 do CP); h) revoga 0 surs;s (art. 81 do CP), 0 livramento condicional (art. 87 do CP) e a reabilita,ao (art. 95 do CP); i) impede alguns casos de diminui,ao da pena (arts. 155, § 2·, 170 e 171, § I', do CP); j) impede a presta,ao de fian,a (art. 323, III, do CPP); I) nao permite apela,ao em liberdade (art. 594 do CPP); m) impossibilita a suspensao condlclOnal do processo (art. 89 da Lei 9.099/95), entre outros.

Identico aDs efeitos da antiga Parte Geral, a reincidencia imp6e junto com a pena, em alguns estatutos alienigenas, medida de segurao\=a. E 0 caso do ordenamento penal cubano (art. 55, 5) e boliviano (art. 43).

. ~ 6~. Critica.: in.te~pr~ta~ao garantista: relalivizariio do institulo. E indubitavel que os 1Os0tut05 da remcldencla e dos antecedentes sao algumas das maiores maculas ao m~delo penal de garantias proposto pela Carta Constitucional de 1988. Como percebe CANDIDO FURTADO MAlA NETO, ao confrontar a reincidencia com 0 modele ga:antista, "? ~nstituto da reincidencia e polemico e incompativel com os principios reltores do dlrelto penal democratico e humanitario, uma vez que a reincidencia na forma ~e agravante crimi.n~l configura urn plus para a condena'tao anterior ja transitada em Julgado. Quando 0 JUlZ agrava a pena na senten'ta posterior, esta, em verdade, aumentando o quantum da pena do delito anterior, e nao elevando a pena do segundo crime"19.

:: ApudMARQUES: T:atad~ de Direito Penal (vol. III), p. 121. 19 ZAFFARONI. Remcld2ncla: urn conceito do direi/a penal autoritario, p. 53.

MAlA NETO. Direitos Humanos do preso, p. 147.

REVISTA DE ESTUDOS CRIMINAlS 1 - 2001 - Jurlsprudancla Comentada 115

ZAFFARONI, com a propriedade que Ihe e peculiar, tarnbem advoga a barbarie que representa 0 agravamento da pena pela reincidencia. Afirma q~e "la a~avacI6n de la pena del segundo delito es diffcilmente explicable en tenmnos raclOnales, Y la estigmatizaci6n que sufre Ia persona perjudica su incorporacion a la vida libre"20.

BISSOLl, ampliando 0 universe cntico desde 0 aporte te6rico do Labeling Approach, desconstroi ambos institutos (reincidencia e antecedentes), afirmando, ao identifica-Ios com 0 modelo etiol6gico positivista de LOMBROSO e FERRI, serem instrumentos de verdadeiro apartheid social, pais uma vez detentores de antecedentes criminais os individuos passariam a pertencer a urn grupo especial de pessoas, diferentes dos demais cidadaos, diferenciados pelo seu estigma. "A verdade e que os antecedentes"­sustenta 0 Promotor de Justi~a catarinense -, "especialmente os negativos, e a reincidencia criminal constituem importante fatar de diferencia~ao do criminoso com os demais seres humanos, de tal sorte que 0 individuo que registra algurna espe~ie de antecedentes negativos ou e reincidente criminal, acaba rnerecendo, da parte do sIstema penal, urn teatamento diferencial, sendo considerado~ port~nto. pertencente a, um~ categoria especifica. Esta diferencia~ao visa a tomar nnida a lmha que separa os bons dos 'maus', confrontando-se, assim, com 0 principia da igualdade"l'.

Como resposta de lege lata aos problemas da assunyao ideo16gica das categorias reincidencia e antecedentes, CERNICCHIAR011 propoe que a circunstftncia do art. 63 do CP brasileiro (reincidencia) nao seja interpretada de forma meramente objetiva, dado que considerar a pluralidade de infrayoes implicaria projetar a pena de urn cri~e em.o~tro. Cre que a soluyao tecnica adrnissivel, e possivel estrategicamente ~ad~ . a Impo~wa~ legal, seria a leitura do dispositivo do art. 63 do CP de acordo com 0 prmclplO constltuczonal ~a individualizafcio judicial da pena. Desta forma, ,a reiocidencia n~o estabe~ec~~a obrigatoriedade de aumento oa pena baseado em dados estritament~ ~bj~tJvos." 0 pnnclplO da individualizayao limitaria a aplicayao do instituto, cabendo a JUrIsprudencIa, como visto no julgado em questao, estabelecer referenciais para sua nega'tao.

"A reincidencia, assim, nao e imperativo de aumento, baseada em dados meramente objetivos. Afetaria ate 0 principio da individualiza'tao da pena.

Nao faz sentido a cominayao ofertar grau minima e grau maximo, e a agravante nao ensejar oportunidade de analise especifica.

A reincidencia, assim, ha de ser analisada pelo juiz; decidira ser ou nao, no caso em julgamento. causa de majorayaO da pena.

( ... ) As considera'toes invocadas sao ajusUlveis ao C6digo Brasileiro, 0 texto,

sem duvida, imp6e ponderar a condena'tao anterior. Afaste-se, todavia, a mera interpreta~ao literal. A lei deve ser analisada segundo principios, momento de urn sistema. 0 juiz tern a nobre missao de fazer a traduyao sistematica, atualizar, se necessario, a norma posta pelo legislador ( ... )."23

20 ZAFFARONI. Sistemas penales y derechos humnnos en America Latina, p. 89.

21 BISSOU P. Op. cit., p. 162. 11 CERNICCHIARO. Questoes Penais, pp. 2201222. 23 CERNICCHlARO. Op. cit.

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116 REVISTA DE ESTUDOS CRIMINAlS 1 - 2001- Jurlsprudencla Comentada

Assim, CERNICCHIARO, antevendo • edi,iio d. Lei 9.714/98, sustent •• relativiza~lio do conceito de reincidencia. E a que advoga, no casa em analise 0

Procur.dor de Justi,. LENIO STRECK, .0 ensinar que, com. nov. reda,iio do § 3; do art. 44 do CP, 0 juiz podera aplicar a substitui,iio da pena privativa de liberdade mesmo quando 0 reu for reincidente.

.. Podemos perceber, portanto, que 0 efeito da relativiza,iio e duplice: a) pode ser utihzado contra a majora93.0 obrigat6ria da pena; e b) nao impede 0 gozD, por parte do condenado, dos direitos publicos que the sao proporcionados pelo sistema (v.g. sursis, pena substitutiva, etc.).

§ 1. Crftica: interpretarfio garantista: filtragem constitucional. Apesar da relevancia pnitica da reiativiza9lio do conceito de reincidencia pela doutrina e jurisprudencia de vanguarda. cremos que a avalia9ao do instituto merece reeeher tonalidade constitucional, devido a sua inadvertida e pasteurizada aplica<;ao pelos Tribunais nacionais. Entendemos, pois, que a ava1ia~ao da reincidencia deve superar sua mera relativiza~ao, alcan~ando sua absoluta deslegitima~ao em sede constitucional como paradigmaticamente sinaliza a decisao da 58 Camara Criminal do Tribunal de Justi~a do Rio Grande do SuI.

Inicialmente, e preciso chamar aten~ao que absolutamente toda agrava~ao de pena ou negativa de direitos pela reincidencia constitui viola~ao do principio do non his in idem. Em eonseqUeneia, existe profunda antinomia entre 0 instituto e a intangibilidade da cois. julgada, estabelecida no art. 5', XXXVI, da Constitui,iio Federal de 1988. Assim, "estabeleee-se 0 corolario 16gico de que a agrava~ao pela reincidencia nao e eompativel com os principios de urn direito penal de garantias, e a sua constitucionalidade e sumamente discutivel"24.

Todavia, apesar da virtude do argumento, pensamos que a avalia~ao pede adquirir maior qualidade substantiva.

A estrutura<;ao do direito penal moderno no principio da legalidade deeorre do proeesso laico de rfgida e extrema separa~ao entre 0 direito e a moral, e da conseqUente assun~ao do delito enquanto mala prohibita e nao mala in se (moral ou natural). A estrutura deste sistema e balizada pelo principio da seculariza~ao que, segundo EUGENIO RAUL ZAFFARONI", e urn princfpio metajuddico, de legitimidade externa do direito penal, cuja earacteriza<;ao e dada fundamentalrnente pela ado~ao dos modelos repubIicanos de governo.

Atraves do processo secularizador, eoube ao direito penal restringir a proibi~ao, comprov~ao e repressao de condutas lesivas a bens jur(dicos concretos, imunizando 0

cidadao de qualquer ingerencia na esfera de sua vida privada e de seus pensamentos _ modo de ser -, e excluindo qualquer possibilidade de 0 direito penal atuar como instrumento de imposi<;ao ou refor~o de determinada moral.

o rompimento dos v(nculos entre direito e moral passa a ser conditio sine qua non na formac;ao dos modelos constitucionais (garantistas) de direito penal e de direito processual penal.

: ZAFFARONI & PIERANGEU. Manual de Direito Penal Brasileiro, p. 841. ZAFFARONI. Sistemas Penales y Derechos Humanos, p. 27.

REVISTA DE ESTUDOS CRIMINAlS 1- 2001- Jurl.prudinela Comentada 117 [

Diferentemente do pensador portenho, entendemos estar 0 prinC£pio da seculariza~ao incorporado na Constitui~ao Federal de 1988, nao consistindo apenas uma metagarantia, mas uma garantia positivada sob 0 signo dos prinC£pios da inviolabilidade, da intimidade e do respeito a vida privada (art. 5', X), do resguardo da liberdade de manifesta~ao de pensamento (art. 5°, IV), da liberdade de consciencia e crenc;a religiosa (art. 5', VI), da liberdade de convic,iio filos6ftca ou politica (art. 5', VIII), da garanti. de livre manifesta,iio do pensar (art. 5', IX), do direito de reuniao (art. 5', XVI) e do direito de associa,iio (art. 5', XVII e XVIII).

FERRA10LI~ sustenta que a ado~iio do principio da seculariza,iio implica tres conseqtiencias axio16gicas ao direito penal e processual penal. Em rela'.;ao ao deli to, estabelece que 0 direito penal deve apenas impedir condutas danosas (dano concreto) para terceiros. Quanto ao processo e a jurisdiC;ao, exige que 0 juizo nao verse sobre a moralidade, carater ou outros aspectos substanciais da personalidade do reu, mas somente acerca dos fatos penalmente proibidos que Ihes sao imputados e que podem, por outra parte, ser empiricamente provados pela acusa~ao e refutados pela defesa. Quanto a pena e seu modo de execu~ao, 0 principio limita a san~ao penal em nao poder adquirir conteudo ou 'tim moral. Assim, "( ... ) a interioridade de uma pessoa - 0 seu carater, a sua moralidade, os sellS antecedentes criminais, as suas inclina~5es psicofisicas - nao deve interessar ao Direito Penal senao para deduzir 0 gran de culpabilidade de sUas a<;6es. Se entende que nao existe espac;o, em urn sistema garantista assim configurado, para categorias de periculosidade nem qualquer outra tipologia subjetivista Oll de autor elaborada pela criminologia antropo16gica e eticista, como capacidade criminal, reincidencia, tendencias criminosas, imoralidade, infidelidade e similares"27.

As normas que estatuem juizos subjetivados sobre 0 autor, como a reincidencia, sao nonnas penais constitutivas, i.e., nonnas que nao vetam condutas lesivas, mas que castigam imediatamente; normas que nao proibem atuar, mas ser. Sao normas que configuram hip6teses de desvio que nao consistem necessariamente fatos e que carecem do elemente rnaterialidade, como nonnalmente sao as figuras de perigo social (hediondos, perigosos, vagabundos, subversivos, hereges, etc.).

A constru'tao da norma penal no interior de urn sistema garantista (Sa) orienta-se pelo prindpio da regulatividade23

• Regulativa e a norma que determina urn comportamento, qualificando-o deonticamente como permitido, proibido ou obrigat6rio, condicionando sua comissao ou omissao a produ~ao de efeitos juridicos. 0 principio da regulatividade expressa, portanto, 0 aspecto substancial de estrita legaUdade penal (principio da taxatividade ou da previsibilidade mfnima). Fieam proscritas por tal principia nao s6 as leis penais constitutivas - que nao regulam comportamentos, mas estigmatizam elou qualificam como reus sujeitos ou classes mais peia seu modo de ser do que pelo seu modo de atuar -, mas, sobretudo, senten~as penais constitutivas, as quais nao decidem sobre pressupostos faticos legalmente predetenninados, mas constituem qualifica~5es penais mediante juizos de valor subjetivos que tern como objeto a identidade do imputado.

26 FERRAJOLl. Diritlo e ragione: leoria del garamismo penal, pp. 207/09. 'XI FERRAIOLI, Op. cil., p. 505. 23 Id. ibdem, pp. 508/515.

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1118 REVISTA DE ESTUDOS CRIMINAlS 1- 2001- Jurlsprudincla Comentada

Neste sentido, a estrutura normativa do instituto da reincidencia nao fere apenas a inviolabilidade da coisa julgada pela afronta ao principio do non bis in idem, como sustentam os julgadores gauchos, e da legalidade em sentido estrito (taxatividade). mas viola frontalmente a estrutura principio16gica constitucional fundada sobre 0 pressuposto da seculariza9ao.

§ 8~. Critica: interpretafiio garantista: uso alternativo do direito29• Nao obstante as

crfticas dirigidas ao instituto da reincidencia, entendemos pertinente amplia-las ao problema da antecedencia criminal. E not6rio que a natureza dos antecedentes guarda estreita sintonia com 0 da reincidencia, ou seja, ambos versam sobre graduar;oes valorativas (negativas) da vida pregressa do acusado.

A considera9ao dos antecedentes, porem, representa gravame penalogico de carater perpetuo, em total afronta ao principia constitucional da humanidade (art. 50, XLVII, alfnea b, da CF). Desta forma, atraves do recurso a analogia, cremos imprescindivel estabelecer, num primeiro momenta, sua temporalidade, fixando prazo identico ao do art. 64, I, do CP (cinco anos) para, em momento posterior, negar sua aplica9ao em decorrencia dos vicios de constitucionalidade ja demonstrados anterionnente na avalia9ao da reincidencia.

A prop6sito, no que diz respeito a primeira assertiva, ja decidiu 0 Superior Tribunal de Justi9a: "0 artigo 61, I, do CP detennina que, para efeito de reincidencia, nao prevalece a condena9ao anterior, se entre a data do cumprimento ou extin9ao da pena e a infra9ao anterior houver decorrido perfodo superior a cinco anos. 0 dispositivo se harmoniza com 0 Direito Penal e a Criminologia modernos. 0 estigma da san9ao criminal nao e perene. Limita-se no tempo. Transcorrido a tempo referido, evidencia-se a ausencia de periculosidade, denotanto, em principio, criminalidade ocasional. 0 condenado quita sua obriga~ao com a Justi9a Penal. Conclusao e valida tambem para os antecedentes. Seria il6gico afastar expressamente a agravante e persistir genericamente para recrudescer a san~ao aplicada'·30.

§ 9". Considera~6es finais: proje~tio po[(tico-criminal garantista. Desde uma perspectiva de lege ferenda surgem dais posicionarnentos diversos, porem nao conflitantes, quanta ao problema da reincidencia. Ambas as teorias fundam-se no

19 0 termo "uso alternativo do direito" e empregado no sentido proposto por Amilton Bueno de Carvalho (Direito Altemativo: leoria e pralica, pp. 55156). Leciona 0 autor que, "neste momento. a atuac;:ao ocorre dentro do sistema positivado, no ja institufdo. Consiste: a) na utilizac;:ao das contradic;::5es, ambigUidades e lacunas do direito numa 6ptica democratizante; e b) na busca, via interpretac;::ao qualificada, diferenciada, de espac;:os possibilitadores 1) do avanc;::o das lutas populares; e 2) da democratizarrao cada vez mais dos efeitos da nonna, atraves da cntica constante", Assim. busca "( ... ) levar a nonna ao seu limite mrudmo de tensao democratizante (leia·se irradiar seus efeitos benefices a um mlmero eOOa vez maior de pessoas), numa visao totalizadora, tendo sempre presente 0 horizonte ut6pico vida em abundancia para lodos. E tet consciencia da lic;:iio de SALEILLES: 'Comeya-se por querer 0 resultado para s6 depois procurar-se 0 principio que justifiea: essa, a genese de tada a interpretac;::ao judicial"'. Conclui demonstrando que os "atores principais, neste momento, sao os interpretes: juizes, promotores. advogados, defensores, professores, doutrinadores, que sao aqueles que colocam a detenninac;::ao na nonna, extraindo dela urn novo texto, fazendo sua leitura e nela atuando, dar por que na~ h<i 0 discurso do direito, mas muitos discursos sabre ° direito, com diversos pradutareslreprodutores, como ensinou 0 professor mexicano 6SCAR CORREAS, em conferencia no I Encontro Intemacional de Direito Alternativo do Trabalho (Florian6polis, setembro de 1992), E com esta consciSncia, busca-se a democratiz~iio do discurso sobre 0 direito". '

JO TORON. A ConstiluiplO de 1998 e 0 conceilo de bons antecedentes para apelar em liberade, p. 74.

REVISTA DE ESTUDOS CRIMINAlS 1- 2001- Jurlsprudencla Comentada 119

horizonte te6rico-crirninoI6gico. especialmente na matriz crftica do paradigma da rea~ao social, que proporciona visao otimizada do funcionamento das agencias de contrale penal.

A primeira vertente, ao constatar a a9ao crimin6gena do carcere e a a9ao deformadora cia prisao sobre 0 condenado, propugna inversao absoluta na concepr;ao nonnativa da reincidencia enquanto circunstftncia agravante. Entende JUAREZ CIRINO DOS SANTOS que "( ... ) se os efeitos crimin6genos da prisao siio reconhecidos, enttio a ineficacia da preven9ao especial reduz a execufiio penal ao terror retributivo. E a questtio e esta: se a pena criminal niio tem eficacia preventiva - mas, ao contrario, possui eficacia invertida pela afao crimin6gena exercida -, entao a reincidencia criminal nao pode constituir circunstancia agravante"J'.

Conclui CIRINO DOS SANTOS que seria necessario reconhecer, se 0 novo crime e cometido ap6s efetivo comprimento de pena, 0 processo de deforma~ao e embrutecirnento pessoal do sistema penitenciario, devendo-se "( ... ) incluir a reincidencia entre as circunstancias atenuantes"J2.

A segunda corrente, representada por LATAGLIATA33, considera viavel a aboli9ao da agravante da reincidencia e de todas as formas de maior gravidade punitiva fundada em delitos anteriores. Na America Latina, 0 exemplo de abo1i9ao da reincidencia e fomecido pelo legislador colombiano.

A exclusao das norrnas penais constitutivas traria, segundo ZAFFARONI, "( ... ) a vantagem de eliminar os antecedentes penais (que se tomaria desnecessario), com 0 que desapareceria a consagra\=ao legal da estigmatiza9aO. A recupera~ao de urn direito penal de garantias pleno daria urn passo extremarnente significativo com a aboli9ao da reincidencia e dos conceitos que the sao pr6ximos, conceitos estes sempre evocativos dos desvios autoritArios dos princfpios fundamentais do direito penal liberal e, especialmente, do estrito direito penal do ato"l4.

A otimiza9ao do direito penal do fato, moldado a partir do principio da seculariza\=ao, 6 a unica possibilidade de resgatar 0 direito enquanto instrumento de supera9ao de sua pr6pria crise, porque nao existe, como ensina FERRAJOLI, "( ... ) respuesta a la crisis del derecho que el derecho mismo. Este es el unico camino para responder a la complejidad social y para salvar, con el futuro del derecho, tambien el futuro de la democracia"J$.

Finalizamos, pois, rendendo justas homenagens aos julgadores gauchos. Nao apenas aos Desembargadores da corajosa 5a Camara Criminal do Tribunal de Justi9a do Rio Grande do Sui, mas tambem ao Procurador de Justi~a LENIO STRECK e, principalmente, ao magistrado de 10 grau MAURO BORBA, cuja atua9ao resplandece no cenario do direito penal brasileiro como representante da melhor tradi93.0 garantista, dignificando 0 trabalho e 0 papel social do juiz na tutela irrestrita dos direitos fundamentais do cidadao contra os poderes arbitrarios e selvagens.

31 SANTOS. Direito Penal: a nova parle geral, p. 245. J2 SANTOS. Op. cit. II LATAGLIATA. Contribuici6n al es/udio de La reincid€ncia, p. 29. l4 ZAFFARONI. Reincid€ncia: urn conceilo do direilo penal autoritario, p. 60. Jj FERRAJOU. EI derecho como sistema de garantias, p. 68.

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1120 REVtSTA DE ESTUDOS CRIMINAlS 1- 2001- Jurl.prudencla Comentada

TRIBUNAL DE JUSTIl;A DO RIO GRANDE DO SUL

FURTO QUALIFICADO PELO CONCURSO

Agride os princi'pios da proporcionalidade e da isonomia 0 aumento maior da pena ao furto em concurso do que ao roubo em igual condi~ao.

Aplica-se 0 percentual de aumento deste a .quele.

Atenuante pode deixar a pena aqut!m do minimo abstrato. Deram parcial provimento aos apelos.

Ape/afiio-Crime n' 70000284455 - 5' Camara Criminal - Rei. Des. Amilton Bueno de Carvalho

Ac6RDAO

Acordarn as Des. da 5' Camara Criminal do Tribunal de Justi~a do Estado, a unanirnidade, em dar parcial provimento aos apelos para fixar a pena de A. em aito meses de reclusiio e a de C. em nove meses de reclusao, substituidas par servic;os a comunidade e pecuniAria minima.

Custas na forma da lei.

Participou do julgamento. a16m dos signatArios, 0 erninente Des. Paulo Moacir Aguiar Vieira, Presidente.

Porto Alegre, 09 de fevereiro de 2000.

AMILTON BUENO DE CARVALHO - Relator ARAMIS NASSIF - Vagal

RELAT6RIO

Des. AMILTON BUENO DE CARVALHO (Relator): 0 Ministerio PUblico ofereceu denuncia contra C. S. G. e contra A. A. A., par incursos nas sanlYoes do artigo ISS, § 4', I e IV, do C6digo Penal.

Narrou a pec;a angular acusat6ria 0 seguinte fato delituoso:

"No dia 11.11.98, por volta da 01h30min, na loja Lebes, sita na Av. Assis Brasil, nle, os denunciados, de comum acordo e com previa ajuste de vontades entre si e com 0 inimputavel L. D. da S., vulga 'Gog6ia', subtrairam, para si, mediante arrombamento de uma janela superior da vitrina (auto da fl. 06/ip), urn bloco de notas fiscais da loja Lebes, filial 28, Tapes, serie D-4, de n's 4751 a 4800; urn televisor em cores, marca Philips, 14 pol.; uma filmadora marca Gradiente com controle remoto, 0,6 lux, serie nO 58N016002A7H; urn radio

I REVISTA DE ESTUDOS CRIMINAlS 1- 2001- Jurlsprudincla Comentada

com CD Synchro Star Recording, marca Philips, modelo n' AZ 1103/01, produto n' KZ039751006673; vanas pe~as de roupa; a quantia de R$ 1.212,67 em dinheira e urn cheque do Banco do Brasil, preenchido no valor de R$ 43,50, personalizado em nome de Henrique Severo Figuer6 (auto de apreensao a 27/ip), seoda que somente parte da res furtiva foi recuperada, tendo sido avaliada (fl. 51). Enquanto as denunciados entraram na loja, 0 inimputavel permanecia na frente cuidando a aproximacrao de terceiros."

Recebida a demlncia em 16.12.98.

Os acusados fcram citades e interrogados na presencra de curadores, face a menoridade. Vierarn alega~6es preliminares. Coletou-se prava oral (fls. 210/215). No praza do artigo 499 do C6digo de Processo Penal, 0 Ministl~rio Publico postulou a atualizacrao dos antecedentes.

Em aJegac;Oes finais, 0 Ministeno PUblica requereu a condenac;ao dos acusados, eis entende provada a hip6tese da demlncia (fls. 228/234). A defesa de Cleudiomar Santos postulou a absolviC;aa par insuficiencia de provas e altemativarnente 0 afastarnento da qualificadora de rompimento de obstaculo, pois nao veio aos autos exame pericial valido (fls. 242/244). A defesa de A., par seu turno, pugnou pela absolvi<;ao ante a fragilidade da prova carreada aos autos. Subsidiariamente, 0 reconhecimento das atenuantes da confissao e rnenoridade, com aplicac;ao de pena minima e concessaa de sursis (fls. 251/255).

o ato decis6rio singular condenou, cada acusada, a pena de tres anos de reclusao, em regime aberto e pecuniaria de 30 dias-multa, thada, a unidade, no minima legal, par incursos nas sanc;Oes do artigo 155, § 4°, IV, do C6digo Penal. As penas restritivas de liberdade restararn substituidas par presta~ao de servi~os a comunidade (fls. 257/265).

Inconfonnados. os reus apelaram. A defesa de A. manifestou desejo de apresentar as raz6es de inconformidade perante este Tribunal.

A defesa de C., em raz6es recursais. postulou a absolvic;ao do apelante. face a fragilidade da prova existente nos autos. Altemativamente, a diminuic;ao da pena impasta (fts. 2851289). Em contra-razoes, 0 Ministeria Publico requereu a manutenc;ao da decisao monocratica (fls. 296/301).

Nesta instancia, intimada a defesa do apelante A. para que apresentasse suas razoes recursais, esta deixou transcorrer a prazo in alb is.

Em parecer, exarado as fls. 305/319, a Procurador de Justi~a, Dr. LENIO LUIZ STRECK, manifestou-se pelo improvimento dos recursos no que atine ao menta no entanto, manifestou-se no senti do de que sejam reduzidas as penas dos apelantes, interpretando-se corretamente as cireunstfincias do artigo 59 do C6digo Penal, e aplieando-se a causa de aumento de pena do crime de roubo (1/3) para 0 crime de furto.

E a re1at6rio.

VOTO

Des. AMlLTON BUENO DE CARVALHO (Relator): 0 juizo de reprova~ao emergente do ato condent6rio singular merece confirmac;ao. A reforma a1canc;a 0

momento da qualificadora e 0 da dose da pena.

Duvida inexiste: os apelantes pratiearam 0 delito deserito na pec;a inaugural.

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REVISTA DE ESTUDOS CRIMINAlS 1- 2001- Jurlsprudincla Comentada I

o recorrente A. confessa, judicialmente, a autoria. E chama 0 co-reu Cleudiomar. as dais, mais 0 menor L. D., entraram no estabelecimento da vitima e subtrairam a coisa.

Par outro lado, tambem em juizo, 0 menor L. D. confinna a versao de A: os tres praticaram 0 deli to.

Em verdade, 0 apelante C. nega a autoria: estava na casa de L. D. quando ali chegou 0 apelante A. com os bens. Todavia, sua versao nao se sustenta:

uma, porque desmentida pelo apelante A. (e a chamada do co-reu e crivel porque nao-exculpativa);

duas, porque, alem da palavra do co-reu, ha 0 depoimento do menor na mesma diretiva; e

tres, parte da coisa foi encontrada em seu poder - indicia de autoria que, aliada a prova oral, conduz a certeza!

Assim, inexiste duvida processual - houve pnitica de furto em concurso.

Resta apreciar a tese Ievantada pelo Procurador de lustis:a Lenio: 0 sistema admite a qualificadora do concurso em delitos de furta?

o parecerista - brilhantemente como de costume - entende que 0 reconhecimento da qualificadora em pauta (que duplica a pena do furto simples) agride 0 princfpio da proporcionalidade em confronto com a majorat;ao do roubo (ambas identicas no concurso) que altera a pena de 1/3 ate metade. Ern tal contexto 0 aumento - em analogia e corrigindo a irracionalidade legislativa - no furto, deve ser igual ao roubo.

Eis a liS:30 de Lenio que e adotada:

"DO ACRESCIMO DA PENA DECORRENTE DA QUALIFICADORA DO FURTO (CONCURSO DE PESSOAS).

Com efeito, enquanto no merito a senten'fa esta correta, no que tange a entendimento acerca da qualificadora do crime de furto 0 processo merece uma reflexao mais aprofundada.

Neste caso, uma questiio de extrema relevdncia juridica deve ser posta a tona. Trata-se da flagrante violartlo do principio da proporcionalidade representada pela duplica~ao da pena na hip6tese de concurso de pessoas no crime de furto.

Tenho, pois, que fere a Constituis:ao - entendida em sua principiologia (materialid.de) - a previslio legal do C6digo Penal que determinada a duplicariio da pena toda vez que 0 furto for cometido por duas ou mais pessoas, 0 que, alias, acarreta urn paradoxo em nosso sistema penal. Entre tantas diston;6es que existem no C6digo Penal (e nas leis esparsas), este e um ponto que tern sido deixado de lado nas discussoes daquilo que hoje denominados de 'necessaria constitucionalizariio do direito penal'. Vale frisar, nesse sentido, que no recente Congresso de Direito Penal e Processual Penal ocorrido em Curitiba nos dias 10 ,2 e 3 de setembro de 1999, a questao atinente a discrepancia entre as diversas qualificadoras do C6digo Penal veio a baHa, em debate promovido entre AMILTON BUENO DE CARVALHO, SALO DE CARVALHO, AFRANIO JARDIM, JAMES TUBENSCHALCK e 0

Procurador de lustit;a signatario. A conclusao apontou para a urgente - e necessaria - releitura das majoraroes de pena decorrentes'das qualificadoras e

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das causas de aumento de pena, tendo por base 0 princfpio da proporcianalidade.

Com efeito, esse paradoxa decorre do fato de que, enquanto no furto a qualificadora do concurso de pessoas tern 0 condao de duplicar a pena, no roubo a majorante (causa de aumento de pena), neste caso de concurso de agente, e de (apenas - sic) 113, podendo ir ao maximo ate a metade. Atentemo­nos para a discrepancia: tanto no furto como no roubo, 0 concurso de agentes qualifica; no primeiro, a pena dobra; no segundo, a penafica acrescida de 1/3. Ora, no furto a presen~a de mais de uma pessoa nlio coloca em risco a integridade jisica da vitima, e, sim, facilita 0 agir subtraente; jti no roubo, a presen~a de mais pessoas colocam em risco sobremodo a integridade flsica da vitima. Niio obstante isto, 0 C6digo Penal valoriza mais a coisa (propriedade privada) que a vidalintegridadeflsica.

Por isto, e necessario fazer uma (re)leitura constitucional do tipo penal do furto qualificado (par concurso de pessoas) a luz do principio da proporcionalidade, que e insito e imanente a Constituis:ao Federal. Para tanto, mediante uma interpretariio con/orme a Constituiriio, e levando em conta 0

principio da isonomia constitucional, ha que se redefinir a norma do art .. 155, § 4 D, inc. IV, do C6digo Penal. Necessaria observaS:30: entendo, a partir da doutrina de FRIEDRICH MULLER, EROS ROBERTO GRAU e H. G. GADAMER, que a norma e sempre 0 resultado da interpretas:ao de u~ tex~o juridico - nesse sentido, meu livro Hermeneutica Juridica e(m) Crise, Llvrana do Advogado, 1999.

Nao se esta a propor aqui - e ate seria despiciendo alertar para este fato -que 0 ludiciario venha a tegislar, modificando 0 teor do dispositivo do C6digo Penal que estabelece a dup1icas:ao da pena nos casos de furto qualificado por concurso de pessoas. Na verdade, trata-se, nada mais nada menos, do que elaborar uma releitura da lei sob os parametros da devida proporcionalidade prevista na Constituis:ao Federal. a mecanisme apto para tal e 0 da interpreta~iio conforme a Constituiriio, que se originou da Alemanha, que vern sendo utilizado pelo Supremo Tribunal Federal ja ha mais de 10 anos.

au seja, 0 texto da Lei (CP) pennanece corn sua literalidade; entretanto, a norma, fruto da interpretaS:30, e que exsurgira redefinida em conformidade com a Constituis:ao. Desse modo, anaiogicamente, 0 aumento de pena decorrente do concurso de pessoas (circunstdncia especial de aumento de penal do roubo (art. 157, § 2", inc. 11), que e de 1/3 ale a melade, loma-se aplicavei ao furto qualificado por concurso de agentes.

E nao se diga que 0 concurso de pessoas nas duas hipoteses nao tern a mesma natureza jurfdica. 0 que muda e tao-somente a denominaS:30: no casa do furto, 0 concurso de pessoas e chamado de qualificadora; no caso do roubo, a participariio de mais de duas pessoas e chamada de causa de aumento de pena... Nao se olvide que, a uma, ambos os tipos penais ~retensamente protegem 0 mesmo bern juridico (0 patrimonio) e, a duas, IDllI.to embora 0

roubo seja urn crime bern mais grave, paradoxalmente 0 nosso sistema als:a a

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participa~ao de mais de uma pessaa a condi~aa de qualificadara COmo uma majara~aa de pena bern menar ...

De maneira bern mais simples, pade-se dizer que, para 0 'legislador' brasileiro, cameter urn furta mediante participar;aa de mais de uma pessoa e circunstAncia roais gravosa do que cometer urn roubo em circunstAncias semelhantes!!! E parece 6bvio que a modemo direito penal e 0 contemporfmeo direito constitucional mio podem compactuar com tais anomalias. Desnecessdrio referir que uma norma tern dois ambitos: vigencia e validade (FERRAJOLI). Pode ela ser vigente e niio ser vtllida. No caso dos autos, 0

dispositivo legal (textoj em questiio, que estabelece a duplicafiio da pena, e vigente,' entretanto, sua val Made deve ser aferida na confrontafiio com 0

princfpia da praparcionalidade e 0 da isonomia.

Dita de outra modo, no caso sob exame, a teoria garantista de FERRAJOLI pade oferecer urn importante e fundamental contributa para a deslinde da cantroversia. Com efeito, em tendo os textos juridicos sempre dois funbitos -vigencia e validade, uma norma SOmente sera valida se seu conteudo esti ver em conforrnidade com a Constitui~ao, entendida em sua materialidade e substancialidade. Ora, 0 legislador (ordimirio) nao e livre para estabelecer leis e tipos penais. 0 grande problema e que, mesmo com 0 advento de uma nova Constitui~aa, milhares de leis continuam 'em vigor' no sistema. Isto ocorre porque, de forma positivista, a jurista tradicional confunde vig~ncia com validade. Por iSIO, as correntes crfticas do Direita apontam para a necessaria filtragem hermeneutico-constitucional do sistema jurfdico, fazendo com que tado 0 ordenamento fique contaminado pelo 'virus' constitucional. A questao e tao grave que 0 grande jurista JIMENES DE AZUA chegou a propor que, quando da promulga.yao de uma nova Constitui~ao, todos as C6digos deveriam ser refeitos, para evitar 0 mau vezo de se continuar a aplicar leis nao recepcionadas au recepcionadas apenas em parte pelo novo topas de validade, que e 0 texto constitucional.

No caso em tela - e para tanto estou acompanhado da moderna teoria constitucional (CANOTILHO, HESSE, MULLER, BONA VIDES, RIBAS, VIEIRA, GUERRA FILHO, BANDEIRA DE MELLO, CLEMERSON CLEVE, L. R BARROSO, SOUTO MAlOR BORGES, somente para citar alguns) -, enquanto 0 poder encarregado de fazer as leis niio elaborar as necessan'as readaptafoes legislativas, cabe ao Poder Judiciano, em sua fun.yao integradora e transformadora, tfpica do Estado Democnitico de Direito, efetuar as correfoes das leis, utilizando-se para tal dos modernos mecanismos hermeneuticos, como a interpreta~aa confonne a Constituit;ao (Verfassunskonforme Auslegung), a nulidade sem reduc;ilo de texto e a declara~ao da inconstitucionalidade das leis incompatfveis com a Constitui~aa, para citar alguns. E a casa das autas: a texto da lei (art. 155, § 4", lV, da CP) continua vigente; sua valMade, porem, e que vern confortada por uma interpretafiio constitucional, mediante 0 usa anal6gico - para as casos de furto qualificado par concurso de agentes - do percentual de acrescimo decorrente da majorariio do concurso de pessoas no raub?, Alem de obedecer

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o princfpio da isonomia, esta-se-a fazendo a readequa~ao da nonna ao princfpia da proporcionalidade."

Contribuo com a debate agreganda aos argumentos de LENIO 0 quanto segue: a duplicac;ilo da pena em furto qualificado pelo concurso, agride espetacularmente 0

principia da isonomia - aqui centralizo a discussao. De logo e como substrata te6rico, entenda como Lenio: ha que se

canstitucionalizar 0 direito penal; toda analise penal deve ser banhada, atravessada, pelo vies constitucionalizante, Assim, ao contrario do que alguns poderao pensar, nao se esta violando leis, mas sim colocando-a no quadro maior: 0 do direito. E 0 princfpio da isonomia esta inserto na Constituit;iio, logo ha, ate no discurso kelseniano, obedi~ncia ao sistema.

No particular, entendo que a ''isonomia'' sequer teria necessidade de inser.yao no texto "final", porquanto, como princfpio que e, esta implicito em todo sistema democratico e mesmo que nao estivesse, e norma acima da Constitui~ao.

E os princfpios sao 0 limite ao interprete, ao juiz e tambem ao legislador -principalmente a este!

De outra parte (e tambem como base te6rica) segue-se FERRAJOLl ao dizer que ser garantista "incluye la critica a la ideologia mecaniscista de la aplicaci6n de la ley. En efecto, puesto que en ningun sistema el juez es una maquina automatica, concebirlo como tal significa hacer de el una maquina ciega, presa de la estupidez 0, peor, de los intereses y los condicionamientos de pader mas 0 menos ocultos y, en todo caso, favorecer su irresponsabilidad politica y moral" (Derecha y Raz6n, Madrid: Troia, 1995, p. 175).

Como por todos e sabido, isonomia e formada de isos - igual, e nomos - lei: quer dizer igualdade perante a lei.

CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO, em dois textos, a) Princfpia da lsonomia: desequiparafoes proibidas e desequipararoes permitidas, Revista Trimestral de Direito Publico, n" 1,79/83; e b) Canteada luridica da Principia da 19ualdade, 3' ed., 4a tiragem, Malheiros Editores, aquele mais didatico e este mais denso, teorico, ensina, em vies aristotelico, que isonomia "desemboca na assertiva segundo a qual a igualdade consiste em tratar igualmente as iguais e desigualmente os desiguais, na medida das respectivas desigualdades".

Seu conteudo "e impedir detenninadas discrimina'.toes, favoritismos au persegui'.tOes. Obstar agravos injustificados".

Quando uma norma atende a igualdade? CELSO diz que hoi "se 0 tratamento diverso outorgado a uns for justificavel, por existir uma correla~ao 16gica entre a fator de discr{men ... e 0 regramento que se the deu", se inexistir, ao contrario. "a congru~ncia 16gica au se nem ao menos houvesse urn fator de discrimen identificavel", ha agressao ao principio.

As discrimina'.toes - leia-se tratamento diferenciado - devem ser "16gicas, racionais, visivelmente justijicdveis".

EV ARlSTO DE MORAIS FILHO, in Cursa de Direita Canstitucianal da Trabalha, Capitulo 0 Principia de 1sanamia, segue a linha de CELSO, acre,~centa~do; a) a princfpio da isonomia garante a cidadao "contra 0 arbilno dos governantes (0 pnncIP.lO como limite ao legislador); b) nao ha agressao ao principio quando ha "fundamentos reats,

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racionais e 16gicos" para 0 discrimen; c) "6 invoca,vel em todos os casos em que nao haja igual tratamento diante da lei".

Aterrisso: ha quebra do principio da isonomia no aumento de pena, pelo concurso de agentes, no delito de furto em confronto com 0 roubo majorado? Sao tratados desigualmente iguais? Ha fundamento "I6gico, radonal, visivelmente justificavel". para 0

discrimen?

A quesHio primeira: sao de tal forma parecidos ou quase identicos os tipos?

Em nivel de caput, a unica marca diferenciadora e que no Toubo se exige "vioiencia, ou grave ameacta", porque as demais palavras sao identicas: subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia m6vel. Roubo, entao, e urn plus ao furta: subtra'tao mais violencia a pessoa. E par isso (agressao a pessoa) a pena 6 substancialmente diferenciada (de 1 a 4 anos e 4 anos a 10 anos).

Mas a proximidade entre eles e espetacular: sao crimes contra 0 patrimonio -fazem parte do mesmo Titulo - e estao, geograficamente, lado a lado. Nao irmaos, mas primos, tanto que admitidos como delitos da mesma especie para acolhimento da continuidade entre eles. Alias, sabre 0 tema ha precedente deste Tribunal, Ac6rdao n° 698465028, da lavra do ilustre colega SYL VIO BAPTISTA:

"CONTINUADO. FURTO E ROUBO. POSSIBILIDADE. 0 conceito de 'mesmo', previsto no art 71 do CP, nao se restringe s6 a ideia de identidade. Abrange. ainda, a de semelhanya ou parecenya. Desta forma, e de con vir que, entre as especies existentes dentro do genero patrimonio, as que mais se assemelham sao exatamente 0 furto e 0 roubo. Ocorre que 0 mlcleo dos dois tipos penms e expressado pelo verbo subtrair e peto objeto material da coisa alheia m6vel. 0 elemento, que afastaria a identidade entre as duas condutas criminosas, permitindo conceitua-las como duas especies autonomas, a violencia na execuctao, nao se traduz num trayo exclusivo de uma delas. Esta violencia tanto existe no roubo, quanto no furto, quando, par exemplo, ha rompimento de obstaculo a subtra~ao da coisa. 0 carater pessoal ou real dessa violencia impede que as duas figuras sejam identicas, mas nao nega a semelhanya que as vincula e autoriza indica-las como crimes da mesma especie."

Ve-se, pois, que se esta frente, em nfvel de caput, a delitos absolutamente pr6ximos. Agora vejamos 0 fator onde existe igualdade absolu/a - causa de aumento:

"Art. 155 ( ... ) ( ... ) § 4°. A pena e de reclusao de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa, se 0 crime e

cometido:

( ... )

IV - mediante concurso de duas ou mais pessoas. " "Art. 157 ( ... )

( ... ) § 2°. A pena aumenta-se de urn teryo ate metade: ( ... )

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IT - se htz 0 concurso de duas ou mais pessoas. "

Diferencta? Nenhuma. Tudo identico: no qualificar, no furto, e no majorar, no rouho, "concurso de duas ou mais pessoas".

Qual 0 discurso para 0 aumento de pena, pelo concurso? A faci1ita~ao do delito, impedir coligactao de for~as, ha maior perigosidade.

Mas a identidade e de tal fonna espetacular que os doutrinadores, como regra, comentam a hip6tese do § 4°, IV, do art.155, e no momento da analise do § 2°, do art. 157, simplesmente remetem para do que disseram acerca do furta qualificado ou se repetem.

Assim estao: a) WILIAM W ANDERLEI JORGE. Curso de Direito Penal, vol. II, 6' ed., Forense, 1989, pp. 407 e 432; b) MIRABETE. Manual de Direito Penal, vol. 2, Atlas, 1998, pp. 228 e 239; c) DAMAsJO, Direito Penal, 2° vol, Saraiva, 1997, pp. 325 e 342; d) FRAGOSO, Lifoes de Direito Penal, vol. I, Forense, 1988, pp. 330 e 351; e) HUNGRIA, Comentarios ao C6digo Penal, vol. VII, Forense, 1967, pp. 46 e 58; f) MAGALHAES NORONHA, C6diJIo Penal Brasileira Comentado, Saraiva, 1948, 5° vol., pp. 133 e 183; g) PAULO JOSE DA COSTA JUNIOR, em dois momentos, g. 1) -Comentarios ao C6digo Penal, Saraiva, 5' ed., 1997, pp. 472 e 478; e g.2) Curso de Direito Penal, vol. 2, Saraiva, 1991, pp. 79 e 83.

Ve-se, portanto, que a causa de aurnento tern palavras iguais, absoluta identidade doutrinana e a base te6rica que justifica sua edi'tao e exatamente a mesma.

Sao tratados, porem, igualmente os iguais? Pelo concurso, 0 furto dobra a pena, enquanto no roubo 0 aumento e de urn teryo it

metade. Os iguais sao tratados. pois, desigualmente! Questao seguinte: ha fundamento racional, 16gico. justificadar da discriminactao? No meu sentir, nada esta a justificar que 0 furto mediante concurso tenha

apenamento maior do que roubo em identica condi'tao. Alias, estaria ate justificado se ocorresse 0 inverso: roubo, delito mais serio ao agredir violentarnente a pessoa, mereceria (estariajustificado, leia-se) ate percentual maior (leia-se pena mais forte) do que furto.

Onde ° racional. 0 J6gico? Discriminayao injustificada, logo agressar a isonomia. Alias, corretamente (leia-se obediente ao principio) andou 0 legislador ao conceder

mesmo aumento do roubo a extorsao (art 158, § 1°, do CP) - delitos pr6ximos, ou em fixar percentual de apenas uma quarta parte em delitos sexuais, delitos distantes (nao estariam estes a merecer maior percentual peJa violencia a pessoa que se reveste?).

FERRAJOLI ate diz que muito pior do que conceder penas (= causa de aumento) iguais a delitos de gravidade diferente e fixar mais elevadas ao delito menos grave (p. 402).

Assim, procura-se, respeitosamente, "racionalizar" 0 sistema, fazendo presente 0

principia da isonomia. A forma de superar e 0 uso da analogia, para beneficiar, com aplicactao ao furto qualificado pelo concurso do mesmo percentual incidente no roubo majorado, ou seja, de urn tercto a metade.

A pena vai recalculada. Nada justifica base superior ao tIllDlmO (feitos em andamento ou inqueritos nao constituem antecedentes, pena de agressao ao estado de

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inoc~ncia): urn ano de recIusao para cada apeiante, em regime inicial aberto, e pecuniana minima ante a probreza.

A Camara tern por pacificado que atenuante pode fazer chegar a base aquem do minimo (ver julgados 1001143). Ambos os apelantes tern menos de 21 anos. Diminuem-se tres meses. A. ainda e confesso - Dutra diminui~ao de tres meses. Resultado parcial: A. seis meses de reclusao e Cleudiomar nove meses de reclusao.

Pelo concurso 0 aumento e de urn tenro. Final: Alexandre, aita meses de recJusao e Cleudiomar, urn ano de reclusao.

Finalmente, substitufdas as penas privati vas de liberdade por presta~ao de servi~os a comunidade, a ser fixada em execu~ao.

Diante do exposto, da-se parcial provimento aos apelos para fixar a pena de Alexandra em oito meses de reclusao e a de Cleudiomar em nove meses de reclusao, substituidas por servic;os a cornunidade e pecunhiria minima.

Des. PAULO MOACIR AGUIAR VIEIRA (Presidente e Revisor); De acordo.

Des. ARAMIS NASSIF (Vogal); 0 eminente Relator pretende consagrar a tese da necessaria proporcionalidade entre a figura do furta qualificado (art. 155, § 4°, inc. IV, do CP), e do roubo majorado (art. 157, § 2°, do CP), nas du.s hip6teses pelo concurso de agentes.

A materia ja fora enfrentada nesta Camara, e restei vencido porque defendi a seguinte pOSiC;30:

"0 raciocfnio de LENIG parte da gravidade da desproporc;ao da pena entre os dois delitos, enfatizando sua repercussao no de furto que, pelo equilibrio que se impunha ao legislador, nao poderia ser tao exasperada.

Mas. tentando alcanc;ar a mens legis - confesso que ainda preso ao pensamento juridico mais pura - lembro que a norma, em verdade, quer evitar que 0 delito de roubo - se qualificado fosse pela concurso de agentes -atingisse quantum inviavel, injusto e despraporcional. Partindo da exasperaC;ao pela qualificadora do furto, ter-se-ia uma pena, para 0 roubo ficticiamente qualificado pela concorrencia de agentes, entre oito (8) e vinte anos (20) de recIusao.

Este 0 valor que a legislador quis evitar: a pena para 0 roubo em patamar tao elevado, se qualificado fosse.

Vejo, na distinc;8.o entre qualificadora e causa de aumento, a inteligencia do legislador para evitar 0 dana penal ao condenado pela rapina violenta. E parece-me que agiu com sensibilidade juridica que, pela distim:rao, canseguiu minimizar a situac;ao do apenado pelo delito mais grave, e, assim, evitou incidir numa eventual inconstitucionalidade pelo desrespeito a princfpios inscuIpidos na Carta.

Nao e descanhecido que esta Camara tern rompido, em vanas oportunidades, com a interpretac;ao logocentrista, literal da lei, para dar, a luz de conceitos e preceitos mais nobres e justos, urn verdadeiro sentido ao princfpio da proporcionalidade na aplicac;ao do direito ao caso concreto.

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Mas a ruptura com 0 texto legal deve ocorrer em hip6tese de flagrante injusti<;a. com 0 sentido de preservar 0 cidadao, axiologicarnente considerado no contexto do Estado Democratico de Direito.

A inseguran<;a gerada, na precipitada convic'tao de alguns. quand.o da inaplicabilidade da nonna reconhecidamente injusta, nao abala a nec.essldade da seguranc;a que se empresta ao individuo, base sob a quaI constr61-se uma sociedade paritaria, isonomica, e limitadora do poder do Estado.

E nao me parece, todavia, que em todas as situa'toes colocadas nos textos legislativos, tenha que se buscar uma altemativa mais sirnpatica, menos s~vera, vez que, em qualquer hipotese, impoe-se 0 respeito a igualdade proporclOnaI, ou seja, que sejam tratados desigualmente os desiguais, 0 que nao sig~ifica, na integritude da norma, uma injusti~a, que, ao fim e ao cabo, deve ser eVltada.

No caso em debate, extraio e exponho 0 entendimento de qu~, efetivamente, as penas para os delitos contra 0 patrimonio sao exageradamente elevadas. Por isto que esta unidade judiciana. pela unanimidade de seus membros, tern acolhido teses como a possibilidade de, ante circunstancia legal atenuante, reduzir a pena aquem do minimo legal, nao aceitar 0 desprezo pelo preceito da individualizac;ao da pena exigindo a progressao do regime em crimes hediondos, descriminalizaC;ao de condutas inadequadas a modernidade, etc.

Mas exige-se do interprete uma visao horizontal, que nao se perca ~m vfnculo ideol6gico vertical ou circular (sempre considerado), nem no concelto silogistico do direito penal, e sem tomar-se refem de enunciados filosoficos que podem gerar preconceito como qualquer pensamento leigo.

A justi<;a que se busca nao expressa na interpretac;ao unilateral, mas na concretude do gesto e da coragem de mudar, ainda que desafie 0 texto legal positivado. Mas nunca em mao unica na pretensa evoluC;ao, porque esta, mormente quando se trata de interpretar nonnas jurfdicas, exige preocupaC;ao social, da qual nao se excluem os cuidados, sempre roais importantes, com 0

indivfduo. Para ousar divergir do entendirnento, jii avalizados pelos homens que,

verdadeirarnente, estao criando urn novo direito penal (JAMES, AMILTON, AFRANIo, SALO, LENIO), de cujas ideias tenho comungado em muitas passagens (e as aplaudo), trago Ii,ao de JORGE DE FIGUEIREDO DIAS;

'Quando porem, em seguida, se afronta a questao do criteria de valora<;ao, nao e suficiente dizer que 0 legislador a escolhe em inteira liberdade e que 0

interprete s6 teni de 0 ir buscar a lei. A soiuc;ao tera, antes, de se aIcan<;ar p~r uma via apontada para a 'descoberta' (hoc sensu, a "criaC;ao") de uma so1u9ao

justa do caso concreto e simultaneamente adequada ao (au comportavel pelo) sistema juridico-penal. 0 que sup6e a 'penetrac;ao axiologica' do problema jurfdico-penal, a qual, no ambito da dogmatica, tern de ser feita por apelo ou com referencia teleologica a finalidades valorativas e ordenadoras de nat~reza politico-criminal, numa palavra, a valorac;oes politico-c~mi~ais c~-~aturals ao sistema. Por esta via se rejeita 0 pura dedutivismo concettuahsta (tIPICO de uma 'jurisprudencia dos conceitos', ainda que "teleologica") que infelizment~ nao se pode dizer de todo ultrapassado na dogmatica juridico-penal. Mas por 19ual se

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1130 REVISTA DE ESTUDOS CRIMINAlS 1- 2001- Jutlaprudencla Comentada

rejeita a Jegitimidade para, a partir de estruturas onticas au 16gico-materiais pre-jurfdicas. se extrair del as, por necessidade, a soIu~ao de problemas juridico­penais praticos. Tarnbem nas questoes de que trata a dogmatica juridico-penal a aten~ao prioritaria deve sec concedida a considera~6es de concreta justi~a material no sela do sistema dirigido polftico-criminalmente (e nesta acepc;ao ao 'pensamento do problema'), naD a ila~6es retiradas dos dados pre-juridicos au do sistema fonnal-Iegal''' (Quesloes Fundamentals do Direito Penal Revisitadas, Ed. RT).

Na concIusao de seu livro, que adoto para encerrar as argumentos pela rejeictao da tese, conclui 0 professor de Coimbra:

"Por rnim, continuo a preferir as caminhos da dogmatica que a{ esta e progride a sedu9ao de "dogmaticas alternativas" que se podem, a todo 0 momento, volver em "alternativas a dogmatica" incompativeis com a regra do Estado de Direito e, como tal, democraticamente ilegftimas. Quando 0 afinno, nao e uma postura conservadora que me move, senao que, ao contrcirio, a atitude mais progressiva que, julgo, pede presidir a atividade do jurista: a de se esfor9ar por proporcionar as melhores condi90es possiveis a livre realiza9ao da pessoa na comunidade" (obra citada).

Todavia, na Apela<;ao 70000527127, 0 eminente Des. AMILTON BUENO DE CARVALHO !rouxe novos elementos e argumentos que, associados ~ posil'ilo de LENIO, abalaram a minha convic9ao a respeito do tema, e inclino-me a rever minha posi~ao e aderir a tese.

Li com atenc;ao a tese.

Os argumentos sao imbatfveis e, por isto mesmo, seria apenas intransigencia emulati va insistir na posi~ao anterior.

Todavia, entendo de, alem da admissao dos argumentos do Des. AMILTON e, a partir dele, traduzir minha voca'tao na adesao da tese, por outros tantos que se possa dissertar.

o actigo 30 do CPP ("a lei processual penal admitira interpreta~ao extensiva e aplicac;ao anal6gica, bern como 0 suplemento dos princfpias gerais de direito"), obriga a analise do Sistema da Livre Convic'tao do Juiz it luz do Procedimenta de Adequac;ao, para chegar ao entendimento de que eIe, ao formac a sua convic'tao par meio de urn julgamento que resultara na decisao a ser tomada, deve ter sempre presente a busca do objetivo maior do direito, qual seja, ajusti~a.

Para que se tenha uma decisao que atenda a tal ideal, 0 caminho mais correto e 0

da eqiiidade. E para que se tenha urn julgamento com eqiiidade e, conseqUentemente, uma decisao justa, e impositivo que 0 magistrado, no mister da interpreta'tao da lei processual ou material, lance mao do Sistema de Adequa't3.o, com 0 cotejo entre a norma e os Princfpios Gerais do Direito, a Constitui'tao Federal, as Tratados Internacionais, as Garantias do Homern e do Cidadao, etc.

E de pensar, ademais, que a a93.0 do agente quando pratica urn furto, e para sua consurna~ao mais facil e segura, busca apoio em ctirnplices, 0 faz para sua garantia, au seja, para sustentar, sem violencia contra pessoa, 0 cometimento do delito ou assegurar sua fuga.

REVISTA DE ESTUDOS CRIMINAlS 1- 2001- Jurlsprudincla Comentada 131

J3 no roubo 0 concurso de agentes e destinada a maior submiSS~O ou .subjuga9ao da vftima. E caract~rfstica da violencia ou grave amea9a a inten'tao .. int~nudat.6na que, pela presen9a de rnais de urn autor, e mais abrangente, e, via de conseqiiencla, maIS grave. .

Pode ser dito assim, que 0 conCurso de agentes no furta e exatamente 0 con~ano '. . d t poupa e preserva a vftima; do roubo, vez que aquele, eXlstente para garantla 0 agen e, .

neste, ao contrario, destina-se a ampliar a violencia ou grave amea'ta e, aSSlm, subrneter a

vitima com mais facilidade. Por todo 0 exposto, torna-me confortavel aderir a tes~,_ ppor que fa90

orgulhosamente, acompanhando ° voto do erninente Relator, sem restn'toes. Des. PAULO MOACIR AGUIAR VIEIRA (Presidente): De acordo com 0 Relator.

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132 REVISTA DE ESTUDOS CRIMINAlS 1- 2001- Jurisprudencla Comentada

COMENTARIo:

A FlLTRAGEM HERMENEUTICO-CONSTITUCIONAL DO DIREITO PENAL: UM AC6RDAO GARANTISTA

Lenio Luiz Streck Procurador de Justirra no RS

DOutor em Direito Prof. dos Cursos de Mestrado e Doutorado em Direito da UNISlNOS/RS

"FURTO QUALIFICADO PELQ CONCURSO. AGRIDE AOS PRINCjplOS DA PROPORCIONALIDADE E DA ISONOMIA 0 AUMENTD MAlOR DA PENA AD FURTO EM CONCURSO DO QUE AQ ROUBQ EM lGUAL CONDlC;Ao. APLlCA-SE 0 PERCENTUAL DE AUMENTO DESTE AQUELE. ATENUANTE PODE DEIXAR A PENA AQUEM DO MiNlMO ABSTRATO. DERAM PARCIAL PROVIMENTO ADS APEWS" (Apeiafiio-Crimei n" 70000284455 _ 5a Camara Criminal TJRS - Rei. Des. Ami/Ion Bueno de Carvalho - 09 de fevereiro de 2000).

, " 1. Algumas qu~st5es aparecem hoje como consensuais no plano dos debates Jundlcos err,t nosso PalS: a de que 0 Direito e sua instrumenta1iza~ao passam por uma profunda cnse, ,a? r:onto ~e 0 Congresso Nacional, a~odadarnente, tentar aprovar uma ~ef?nna do ~u~lcuino; cUJos r~flexos certamente ainda nao foram bern avaliados pelos J~rtStas brasJle~ros, (sumulas vlOculantes, arglii~ao de relevancia, extin.;ao do controle dlfuso de constItuclOnalidade, etc.).

2. ':- cri~e_ se estabelece no hiato existente entre uma Constituic;ao Federal que coloc~ a dlsposl-ta~ da comunid~de jurfdica urn conjunto de direitos e os mecanismos para a ~ua ,lmpleme~ta.;ao, e uma soc?edade carente de tais direitos, no interior da qual 0 acesso A J~Sti9a. tern sldo (s6)negado A Imensa maioria da popula9ao. A inefetividade do aparelho Jud~clarzo col,oca a lume um~ das junt;oes espec(ficas da funt;iio do Estado: a jurisdi{iio. !"1a~s ~o que IstO, e necessario que se questione a fun~ao do Direito nesse (novo) modelo mstltuldo ~ela C':/8~, que e 0 Estado Democratico de Direito, levando em conta a relevante Clrcunstancla de que a Constituit;tio e principiol6gica, dirigente e vinculativa,

. . 3. Em nosso Pais, nao M duvida de que, sob a 6ptica do Estado Democratico de Diretto - em que o,Dire,ito deve ser visto como instrumento de transformariio social _, oco~e ~ma des~ncl.on~l~dade (que para 0 establishment e a sua pr6pria funcionalidade) do DIretto e das mstItuI~oes encarregadas de aplicar a lei. A dogmatica jurfdica brasileira esta a,ssent,ada em urn paradigma liberal-individualista que sustenta essa desfuncl~na~tdade, Ou seja, niio houve ainda, no plano hermeneutico, a devida filtragem desse Dzrelto produto de urn modo (modelo) liberal-individualista-normativista de produt;iio de direito, '

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4. Lamentavelmente, 0 jurista tradicional naD se da conta dessa problematica. Resurnidamente, a crise (paradigmatica) do Direito pode ser explicada da seguinte forma: o "mercado" brasileiro de Direito gerou dernandaslexpectativas que nao tern mais condic;6es de serem atendidas pete modele (modo) liberal-individualista-normativista de produc;ao de direitol. E necessaria uma mudanc;a na postura dos operadores jurfdicos. Romper com este paradigma antigarantista de dogmatica jurtdica e/ou ultrapassar as obstdculos que impedem 0 resgate das promessas da modemidade e tarela que s~ impoe aos juristas (monnente as que tern pader para isso, como jufzes e promotores!). E dizer, em outras paIavras, que ha, hoje, "uma valori~ao das categorias jurfdicas (soberania) nao s6 para compreender as atribui~oes basicas do aparato estatal, mas como tambem para apontar no Direito satdas posstveis para superar a crise de legitirnidade atinente ao Estado Providencia"l,

5, A evid~ncia, esse rompirnento, enfim, essa rnudan~a de postura, passa pela visao de que a Constitui~ao e urn espa~o garantidor das rela~oes democniticas entre 0 Estado e a Sociedade (RIBAS VIEIRA), podendo/devendo ser vistalentendida "precisamente como zona mas 0 menos segura de mediaci6n, aparte de Ia habitual entre legalidad y legitimaci6n, tambien - mas radicalmente y vinculado a todo ello - entre legitirnidad y justicia"3. A partir disso, ha que se ter claro que pn'nctpios valem, regras vigem (BONA VIDES), sendo a violat;iio de um principia muito mais grave que a transgressiio de urna norma (BANDEIRA DE MELLO), tudo porque - e niio deveria haver qualquer novidade nisto - todas as nonnas constitucionais sao vinculativas e tern eficacia, podendo­se dizer que hoje niio hcl nonnas programaticas (CANOTILHO). Qualquer norma infraconstitucional deve passar, necessariamente, pelo processo de contamina~ao

constitucional (validade como questiio primaria e vigencia como questiio secundaria -FERRAJOLl).

6. Por inumeras razoes, a crise aqui descrita aparece com moos especificidade no campo do Direito Penal, onde cada vez mais a Longo brat;o da justit;a penal atinge as carnadas pobres da populat;iio. Nesse sentido, levando em conta os ditames constitucionais que apontam para a constru.;ao de uma sociedade justa e solidAria, com a erradica~ao da pobreza e as desigualdades regionais, e fundamental que os crimes que colocam em xeque esses objetivos sejam punidos com mais rigor do que aqueles que tern indole meramente interindividual. Por isso, devemos pugnar por urn direito penal minimo para condutas (bagatelares, de mera conduta4

, etc,) que nao lesam a comunidade e aDs objetivos do Estado Democratico de Direito, e por um direito penal interventivo naquilo que diz respeito a criminalidade economico-social, estes, sim, lesivos aos propalados objetivos desse novo modelo de Direito (como a igualdade, justi~a social, etc.), Como bern assevera FERRAJOLI, somente urn direito penal reconduzido unicamente as Junt;oes de tutela de bens e direitos jundamentais pode, de jato, conjugar garantismo, ejiciencia e certeza jurfdica! E isto que podemos chamar de relegitima~ao do direito penal.

L Nesse sentido, ver estudo que desenvolvo no livro Hermeneulica Jurfdica e(m) Crise. Vma exploraplo hermeneutica da constru~ao do Direito, 2- ed, revista e ampliada, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000.

2 VIEIRA, Jose Ribas. Teoria do Estado, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1995, p. 41. 1 cr. DIAZ, Elias. Etica contra poUtica, Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1990, p. 34, 4 D principio da secularizar;:ao do Direito - propria do Estado Oemocratico de Direito - e incompatfvel com

contravenrrOes penais e crimes de mera conduta. Nesse sentido. ver FERRAJOLI. Luigi. Derecho y Raz6n, Madrid: Trotta, 1998, pp. 480 e ss.

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7. Nessa linha, de pronto, tendo par base as premissas ate aqui delineadas, varios aspectos (pontuais) do direito penal devem seT questionados e colocados sob forte atrito doutrimirio, como, por exemplo:

a) a necessaria transfonna~ao em crimes de at;iio penal publica condicionada dos delitos contra 0 patrimonio (furta, estelionato, apropria~ao indebita, etc.) e os demais crimes classificados coma de menor potencial of ens iva, de cunha interindividual -obedecida, a tada evid~ncia, a principiologia constitucional -, trazendo tais deIitos tambem para 0 ambito dos Iuizados Especiais Criminais', ampliando~se, desse modo, a leque de delitos passiveis de composit;iio,' com isto, a vitima e trazida ao processo como sujeito, com 0 fito de compor a lide, se assim desejar; se antes ha uma substitui~ao da vitima in tatum pelo Estado, agora a vitima partilha com 0 Estado a titularidade da lide;

b) no mesmo diapasao, nos delitos de cunha interindividual passiveis de inclusaa no rol dos crimes que dependam de representar;aa, seja possibilitada a conciliar;ao em audiencia especifica, mediante media~ao do magistrado, do Ministerio Publico e doCs) defensor(es);

c) nessa mesma linha, na esteira do que vern sendo pennitido, desde ha muito, para o crime de estelionato por emissao de cheque sem fundos (Sumula 554 do STF) e para a sonega~iio de impastos (art. 34 da Lei 9.249)', seja admitida, nos delitos contra 0

patrimonio em que nao tenha restado prejuizo (por restituir;ao sponte sua ou nao), a extint;iio lin punibilidade' ;

d) a necessaria recep~ao doutrinario-jurisprudencial dos tratados e acordos internacionais, mormente 0 Pacto de San Jose da Costa Rica (observe-se, como exemplo, que 0 art. 414 do CPP, origimirio da decada de 40, e mais avan~ado que 0 art. 366 do CPP, introduzido apos a vigencia do Pacto de San Jose)8;

e) a discussao da (in)constitucionalidade da reincidencia9 ou a sua relativizar;ao, por constituir-se em urn his in idem 10 (observem-se os obstaculos que a reincidencia

, Esta providencia se justifica em homenagem ao principia da isonomia constitucional, uma vez que, se para 0

crime de les5es corporais se exige representa~ao, para urn crime menos grave (contra 0 patrim6nio) 0

tratamento deve ser igualitiirio. Nao se olvide que a integridade corporal, sob a egide do Estado Democnhico de Direito. deve ter uma protefi'io mais efetiva do que 0 palrimonio individual. No mesmo sentido a honra e urn bern juridico que se sobrepoe ao patrimdnio.

6 Ressa1ve~se, aqui, minha posiyiio no sentido da incompatibilidade do art. 34 da Lei 9.249/95 com a perspectiva de Estado-Fiscal- interventivo pr6prio do Estado Democnitico de Direito, devidamente delineada no artigo A Nova Lei do Imposlo de Renda e a Protefiio das Elites: Questiio de 'Coerencia', in Revista Doutrina nO 1, ID - Instituto de Direito, 1996, pp. 484-496.

1 Nessa linha, ver Ac6rdaos nOs 296026750 e 297019937, da 6" Cam. Crim. do TJRS. B A nova redar;ao do art. 366 do cpp estabeleceu urn paradoxo no sistema: em processo de crime de juri, a fuga

do reu nao acarreta qualquer prejuizo ao mesmo. na medida em que a prescriyao continua fluindo; ja com a nova lei que alterou 0 art. 366.0 autor de urn pequeno delito tera contra si, no caso de ser revel, a suspensao do prazo prescritivo, 0 que acarreta flagrante viola~ao do Pacto de San Jose.

9 Inconstitucionalidade entendida, evidencia, como niio-recep~ao do texto nonnativo infraconstitucional, uma vez que 0 Supremo Tribunal Federal nao admite a existencia de inconstitucionalidade superveniente (nesse sentido, ADIn n° 438).

10 Em recente julgamento, a 5" Cam. Crim. do TJRS julgou improcedente apela~ao do Ministerio Publico de 10

gran, inconformado com a nao-aplica~ao da reincidencia pelo juiz de direito Mauro Evelyn de Borba (Ac. 699291050 - ReI. Des. Amilton Bueno de Carvalho). 0 Ac6rdao ficou assim ementado: Furto. Circunstiincia Agravante. Reincidencia. Inconstitucionalidade par representar his in idem. Voto vencido. Ver tambem nesse sentido STRECK. Lenio Luiz. Tribunal do Juri - Simbolos e Rituais, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998,3" ed. ver. e ampliada, pp. 66 e ss.; e CARVALHO, Salo. Reincidencia e antecedentes criminais:

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representa para a concessao de sursis, a suspensao condicional do processo), e outros

beneficios; f) a rediscussao dos limites para 0 sursis ll

, possibilitando-se a concessao do

beneficio para penas acima de 2 anos; g) possibilidade de 0 apenamento ficar abaixo do minimo legal, sob os auspfcios

do principio da proporcionalidade; h) sob as auspfcios da teoria garantista l2

, to.ma-se ?e~essario .realizar urna ~1t~a~em das normas penais~processuais - em sua expressiva mruon.a anteno~es a CO~StltUlr;ao -adequanda-as ao novo fundamento de validade. Nesse se~t.ldo, adq~lr~ especIal releva a seculariza9do do Direito promovida pelo Estado Democratico de Direlto, com 0 que boa parcel a das contraven'tOes penais, embora vigentes, perdem a sua validade

13• •

i) 0 exame das qualificadoras a luz do principio da proporcionalidade; veJa-se, nesse sentido, 0 paradoxo que se estabelece no ordenamento juridico: enquanto no Jurto 0

concurso de pessoas duplica a pena, no crime de roubo 0 conc~rso de ag~ntes sen:~ c0n:.0

causa de aumento que vai de urn ter90 ate a metade, enos cnrnes sexuaJs a partlcI~ar;ao de mais de duas pessoas tern 0 condao de aumentar a pena em urn quarto, sem conszderar que, nos crimes contra a vida. a concurso de pessoas niio opera como qualificadora e tampouco como causa de aumento de pena. Nesse sentido, vale ~anscrever (~rn parte) 0

ac6rdao originmo da 5& Camara Criminal do TJRS, que se Insere naquilo que se denomina de filtragem hermeneutico-constitucional do direito penal, dentro de uma perspectiva garantista, onde a vigencia da norma perde espar;o para a validade, a qual. vern aferida em conformidade com a Constitui't3.o, entendida em seu todo rnatenal e

principiol6gico. Comefeito:

abordagem desde 0 marco garantista, in lnformativo do ITEC/Separata, Porto Alegre : ITEC,

outJnov.ldez.l1999. \I Nesse sentido ver ac6rdao 698145109, ReI. Des. Alfredo Foerster, 6" Cam. Crim do TJRS. 12 Enlendo 0 ga;anlismo como uma maneira defazer democracia dentro do Direito ; a partir do DireilO. C.0mo

tipo ideal, 0 garanrismo refon;a a responsabilidatie etica do operadordo Direito. E evide.nte que,: garantlsmo nao se constitui em uma panaceia para a cura das "males" decorrentes de urn Estado SOCial que nao houve no Brasil, cujos reflexos arrasadores deve(ria)m indignar os lidadores do Direito. 0 que ocorre e q~e, em face da aguda crise do positivismo juridico-nomuJtivista, niio se pode despreza.r 14m conlribut~ F~ra a operacionaJidade do Direilo do porte do garantismo, que prega, entre out;as COlsas, que a ~ons/l~ulfa~ (em sua totalidade) deve ser 0 paradigT1Ul henneneutico de defini~iio do que seJa UT1Ul nomUJ. valida 014 mv~ll?a (e iSIO, embora seja 6bvio, nao tem, ainda, a necessaria repercussiio no imagina.rio dos judstas braslle~ros), propiciando toda uma filtragem das nonnas jnfraconstitucion~is ?ue, embora vigentes, ~erdem sua v,~hda~e emface da Lei Maior. Dito de outro modo, 0 gar~n~ismo nlio slgmfica u~ retorno a. urn E,stado born q.ue JA houve. Nos parses avan~ados da Europa, beneficuinos do welfare stale, ISSO ate sena posslvel. No Br~sll, ao contrario, onde 0 Estado Social foi 14m simulacro, 0 garantismo pode servir de importante mecarus1f!o de construfiio das condi~aes de possibilidades para 0 resgate das promessas da modemidade. Sabre ~a~usmo, consultar: FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razon, Madrid: Trota, 1995, pp. 851-903; e 0 Dlr~Jto ~omo sistema de garantias, in 0 novO em Direito. Jose A1cebfades de Oliveira Jr. (org.), Porto Alegre: Livrana do Advogado, 1996, pp. 89-109; CADEMARTORI, Sergio. Estado de Direilo e Legitimidade: uma a~o~dagem garantista. Florian6polis : UFSC, 1997, ~es~ de Dou~o;ado; STRECK,.~nio Luiz .. 0 l~abalho ~os J~TlS~::~ perspecliva do Estado Democratico de Dlrello: da ulilldade de urna cnllca garantlsta, In Doutnna n 5,. Tubenscha1ck (org.), Rio de Janeiro: Instituto de Direito, 1998, pp. 41-48; CARVALHO, SaIo. G~ranll:~: ~ sistema carcerario: crlrica aosfundamentos e a execur;iio da pena privativa de libertklde no Brasil, Cuntl a.

UFPR, 2000, Tese de Doutorado. 13 Nesse sentido, ver nota n° to, retro.

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"VOTO: Des. AMILTON BUENO DE CARVALHO - Relator: 0 ju{zo de reprova~ao emergente do ato condenat6rio singular merece confirma~ao. A reforma alcan~a unicamente 0 momento da qualificadora. Duvida inexiste: as apelantes praticaram 0 deli to descrito na pe<ra inaugural. 0 recorrente Alexandre confessa, judicialmente, a autoria. E chama 0 co-reu Cleudiomar. Os dois, mais 0 menor Luis Dias, entraram no estabelecimento da vitima e subtrairam a coisa. Por outro lado, tambem em juizo, 0 menor Luis Dias confirma a versao de Alexandre: os tres praticaram 0 deli to.

Em verdade, 0 apelante Cleudiomar nega a autoria: estava na casa de Luis Dias quando ali chegou 0 apelante Alexandre com os bens. Todavia, sua versao nao se sustenta: uma, porque desmentida pelo apelante Alexandre (e a chamada do co-reu e crfvel porque nao-exculpativa); duas, porque, alem da palavra do co-reu, ha 0 depoimento do menor na mesma diretiva; e tres parte da coisa foi encontrada em seu poder - indicio de autoria que, ali ada a prova oral, conduz a certeza!

Assim, inexiste duvida processual- houve pnitica de furto em concurso.

Resta apreciar a tese levantada pelo Procurador de lustifa LENIO STRECK: 0 sistema admite a qualificadora do concursO em delitos de furto?

o parecerista - brilhantemente como de costume - entende que 0

reconhecimento da qualificadora em pauta (que duplica a pena do furta simples) agride a principia da proporcionalidade em confronto com a majorac;ao do roubo (ambas identicas no concurso) que altera a pena de 113 ate metade. Em tal contexto, 0 aumento - em analogia e corrigindo a irracionalidade legislativa - no furto deve ser igual ao roubo.

Eis a li~iio de LENIO que e adotada: 'DO ACRESCIMO DA PENA DECORRENTE DA QUALIFICADORA

DO FURTO (CONCURSO DE PESSOAS)

Com efeito, enquanto no merito a sentenc;a esta correta, no que tange a entendimento acerca da qualificadora do crime de furto 0 processo merece uma reflexao mais aprofundada.

Neste caso, uma questiio de extrema relevdncia jurfdica deve ser posta a tona. Trata-se da flagrante violarao do principio da proporcionalidade representada pela duplicariio da pena na hip6tese de concurso de pessoas no crime de furta.

Tenho, pois, que fere a Constituic;ao - entendida em sua principiologia (materialidade) - a previsiio legal do C6digo Penal que determinada a duplicariio da pena toda vez que a furta for cometido par duas ou mais pessoas, 0 que, alias, acarreta urn paradoxo em nosso sistema penal. Entre tantas distor~6es que existem no C6digo Penal (e nas leis esparsas), este e um ponto que tem sido deixado de lado nas discussoes daquilo que hoje denominados de 'necessaria constitucionalizafiio do direito penal'. Vale frisar, nesse sentido, que no recente Congresso de Direito Penal e Processual Penal ocorrido em Curitiba, nos dias 1°,2 e 3 de setembro de 1999, a questao atinente a discrep§.ncia entre as diversas qualificadoras do C6digo Penal veio a bai1a, em debate promovido entre AMILTON BUENO DE CARVALHO, SALO DE

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CARVALHO, AFRANIO JARDIM, JAMES TUBENSCHALCK e a Procurador de Justi~a signatario. A conclusao apontou para a urgente - e necessaria _ releitura das majoraroes de pena decorrentes das qualificadoras e das causas de aumento de pena, tendo par base a princlpio da

proporcionalidade. Com efeita, esse paradoxo decorre do fato de que, enquanto no furto a

qualificadora do concurso de pessoas tern a condao de duplicar a pena, no roubo a majorante (causa de aumento de pena), neste caso de concurso de agente, e de (apenas - sic) 1/3, podendo ir ao maximo ate a metade. Atentemo­nos para a discrepfmcia: tanto no furto como no roubo, 0 concurso de agentes qualifica; no primeiro, a pena dobra: no segundo, a penafica acrescida de 1/3. Ora, no furta a presenra de mais de uma pessoa niia calaca em risco a integridade fisica da vftima, e, sim, facilita 0 agir subtraente; ja no roubo, a presenra de mais pessoas coloca em risco sobremodo a integridade jfsica da vftima. Nao obstante isto, 0 C6digo Penal valoriza mais a coisa (propriedade privada) que a vidalintegridadejfsica.

Por isto, e necessario fazer uma (re)leitura constitucional do tipo penal do furta qualificado (por concurso de agentes) a luz do principia da proporcionalidade, que e fnsito e imanente a Constitui~ao Federal. Para tanto, mediante uma interpretariio con/orme a Constituiriio, e levando em conta 0

princfpio da isonomia constitucional, ha que se redefinir a norma do art .. 155, § 4", inc. IV, do COdigo Penal. Necessana observa~ao: entendo, a partIr da doutrina de FRIEDRICH MULLER, EROS ROBERTO GRAU e H.G. GADAMER, que a norma e sempre 0 resultado da interpreta~ao de urn tex~o jurfdico _ nesse sentido, meu livro Hermeneutica Jurfdica e(m) Crise, Livrana

do Advogado, 1999. Nao se esta a propor aqui - e ate seria despiciendo alertar para este fata -

que a Judiciano venha a legislar, modificando 0 tear do dispositivo do C6digo Penal que estabelece a duplica~ao da pena nos casos de furto qualificado por concurso de pessoas. Na verdade, trata-se, nada mais, nada menos, do que elaborar uma releitura da lei sob as parametros da devida proporcionalidade prevista na Constituic;ao Federal. 0 mecanismo apto para tal e 0 da interpreta~o conforme a Constituic;ao, que se originou da Alemanha, que vern sendo utilizado pelo Supremo Tribunal Federal ja ha mais de 10 anos.

Ou seja, 0 texto da Lei (CP) permanece com sua literalidade; entretanto, a norma, fruto da interpreta~ao, e que exsurgira redefinida em conformidade com a Constitui<;ao. Desse modo, analogicamente, 0 aumento de pena decorrente do concurso de pessoas (circunstancia especial de aumento de penal do roubo (art. 157, § 2", inc. /I), que e de 1/3 ate a metade, torna-se aplictlvel ao furto qualificado por concurso de agentes.

E nao se diga que a concurso de pessoas nas duas hip6teses nao tern a mesma natureza jurfdica. 0 que muda e tao-somente a denomina~ao: no caso do furto, 0 concurso de pessoas e chamada de qualificadora; no caso do roubo, a participafQo de mais de duas pessoas e chamado de causa de aumento de pena ... Nao se olvide que, a uma, ambos as tipos penais pretensamente

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protegem 0 mesmo bemjurfdico (0 patrimonio; e a duas, Inuito ernbora 0 rouho seja urn crime bern mais grave, paradoxalmente 0 nosso sistema a)ya a participayao de rnais de uma pessoa a condiyao de qualificadora como uma majora9ao de pena bern menor ...

De maneira bern mais simples. pade-se dizer que, para 0 'Jegislador' brasileiro, corneter urn furta mediante particip3yao de roais de uma pessoa e circunstancia mais gravosa do que corneter urn roubo em circunstancias semelhantes!!! E pareee 6bvio que 0 modemo direito penal e 0 contemporemeo direito constitucional niio podem compactuar com tais anomalias. Desnecessario relerir que uma norma tem dois amhitos: vigencia e validade (FERRAJOU). Pode ela ser vigente e niio ser valida. No caso dos autos, 0

d~spositivo legal (Iexto) em questao, que estabelece a duplicariio da pena, e Vlgente; entretanto, sua validade deve ser aferida na confrontariio com 0

prindpio cia proporcionalidade e 0 da isonomia.

Dito de outro modo, no caso sob exame, a teoria garantista de FERRAJOLI pade oferecer urn importante e fundamental contributa para 0 deslinde da controversia. Com efeito, em tendo os textos juridicos sempre dois arnbitos -vigencia e validade, uma nonna somente sera valida se seu conteudo estiver em conformidade com a Constituir;ao, entendida em sua materialidade e substancialidade. Ora, 0 legislador (ordinario) nao e livre para estabelecer leis e tipos penais. 0 grande problema e que, mesmo com 0 advento de uma nova Constituir;ao, milhares de leis continuam 'em vigor' no sistema. Isto ocorre porque, de fonna positivista, 0 jurista tradicional confunde vigencia com validade. Par isto, as correntes crfticas do Direito apontam para a necessaria jiltragem hermeneutico-constitucional do sistema juridico, fazenda com que todo 0 ordenamento fique contaminado pelo 'virus' constitucional. A questao e tao grave que 0 grande jurista JIMENES DE AZUA chegou a propor que, quando da promulgar;ao de uma nova Constitui~ao, todos os C6digos deveriam ser refeitos, para evitar 0 mau vezo de se continuar a aplicar leis nao recepcionadas ou recepcionadas apenas em parte pelo novo topos de validade, que e 0 texto constitucional.

No caso em tela - e para tanto estou acompanhado da modema teoria constitucianal (CANOTILHO, HESSE, MDLLER, BONA VIDES, RIBAS, VIEIRA, GUERRA FILHO, BANDEIRA DE MELLO, CLEMERSON CLEVE, L. R. BARROSO, SOUTO MAlOR BORGES, samente para citar alguns) -, enquanto 0 poder encarregado de fazer as leis niio elaborar as necessarias readapta(oes iegislalivas, cabe ao Poder Judiciario, em sua funr;ao integradora e transformadora, tipica do Estado Democratico de Direito, efetuar as corre(oes das leis, utiIizando-se para tal dos mademos mecanismos hermeneuticos, como a interpreta~ao conforme a Constitui~ao

(Verfassunskonforme Auslegung), a nulidade sem redu~ao de texto e a declara~ao da inconstitucionalidade das leis incompatfveis com a Constitui~ao, para citar alguns. t a caso dos autos; a texto da lei (art. 155, § 4", IV, do CP) continua vigente; sua validade, porem, e que vern confortada por uma interpretara.o constitucional, mediante 0 usa anal6gico - para as casos de furto qualificado por concurso de agentes - do perce~tual de acrescimo

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decorrente da majora(ao do concurso de pessoas no rouba. Alem de obedecer ao princfpio da isonomia, esta-se-a fazendo a readequa~ao da norma ao princfpio da proporcionalidade.'

Cantribua com a debate agreganda aas argumentas de LENIO a quanta segue: a duplica~ao da pena em furto qualificado pelo concurso agride espetaculannente 0 princfpia da isonomia - aqui centralizo a discussao.

De logo e como substrata te6rica, entenda como LENIO: hi que se constitucionalizar 0 direito penal; toda amilise penal deve ser banhada, atravessada, pelo vies constitucionalizante. Assim, ao contrario do que alguns poderao pensar, nao se estA violando leis, mas sim colocando-~ ~o _ quadro maior: 0 do direito. Eo princfpio da isonomia esta inserto na ConSt1tUl~ao, logo ha, ate no discurso kelseniano, obediencia ao sistema.

No particular, entendo que a 'isonamia' sequer necessaria sua inser~ao no texto 'final', porquanto como princfpio que e esta implfcito em todo sistema democnitico e mesmo que nao estivesse, e norma acima da Constituif1ao.

E os principios sao 0 limite ao interprete, ao juiz e tamb6m ao legislador -

principalmente a este! De autra parte (e tambem como base teorica) segue-se FERRAJOLI, aa

dizer que ser garantista 'incluye la critica a la ideologia rnecaniscista de la aplicaci6n de la ley. En efetco, puesto que en ningun sistema el juez es una maquina automatica, concebirlo como tal significa hacer de 61 una maquina ciega, presa de la estupidez 0, peor, de los intereses y los condicionarnientos de poder mas 0 menos ocultos y, en todo caso, favorecer su irresponsabilidad palitica y moral' (Derecho y Raz6n, Madrid: Troia, 1995, p. 175).

Como por todos e sabido, isonomia e formada de isos - igual, e nomoS - lei:

quer dizer igualdade perante a lei. CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO, em dais textas, a) Princfpio

da Isonomia: desequipara(oes proibidas e desequipara(oes permitidas, Revista Trimestral de Direita Publico, n" 1, 79/83; e b) Conte"do luridico do Principia da 19ualdade, 38 ed., 48 tiragem, Malheiros Editores, aquele ensina, em vies aristotelico, que isonomia 'desemboca na assertiva segundo a qual a igualdade consiste ern tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida das respectivas desigualdades'.

Seu conteudo 'e impedir determinadas discrimina~5es', 'favoritismos ou persegui~5es. Obstar agravos injustificados'.

Quando uma norma atende a igualdade? CELSO diz que ha 'se 0 tratamento diverso outorgado a uns por justificavel, por existir uma correla~ao 16gica entre o fator de discrimen ... e 0 regramento que se lhe deu', se inexistir, ao contrario, 'a congruencia 16gica ou se nem aO menos houvesse urn fatar de discrimen identificavel' ha agressao ao princfpio.

As discrimina~5es - leia-se tratamento diferenciado - devem ser '16gicas, racionais, visivelmente justificaveis'.

EV ARISTO DE MORAIS FILHO, in Curso de Direito Constitucional do Trabalho, Capitulo '0 Principia de Isanamia', segue a linha de CELSO,

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acrescentando: a) 0 principia da isonomia garante 0 cidadao 'contra 0 arbftrio d~s governantes' (0 principio como limite ao legislador); b) nao h:I agressao ao pn?C~pIO quando ha 'fundamentos reais, racionais e 16gicos' para 0 discrimen; c) e IDvocavel em todos os casas em que nao haja igual tratamenta diante da lei' .

Aterrisso: ha quebra do principia da isonomia no aurnento de pena, pelo c~ncurso de agentes, no deli to de furto em conftonto com 0 roubo majorado? Sao tratados desigualmente iguais? Ha fundamento 16gico, racionai, visivelmentejustificavel, para 0 discrimen? .

A questao primeira: sao de tal fonna parecidos ou Quase identicos as tipos? No caput, a unica marca diferenciadora e que no roubo se exige violencia.

ou grave amea~a, porque as demais palavras sao identicas: subtrair, para si au pa~a ou.tre~, .caisa alheia m6vel. Roubo, entao, e urn plus ao furto: subtrac;ao mats vlOJencla a pessoa. E por isso (agressao Ii pessoa), a pena e substancialmente diferenciada (de 1 a 4 anos e 4 anos a 10 anos).

Mas a proximidade entre eles e espetacular: sao crimes contra a patrimOnio - fazem parte do mesmo Titulo - e esHio, geograficamente, lado a lado. Nao irrna~s, mas primos,. tanto que admitidos como delitos da mesma especie para ac?lhlmento da contmuidade entre eles. Alias, sobre 0 tema ha precedente deste TrIbunal, Ac6rdao n° 698465028, da lavra do ilustre colega SYL VIO BATISTA:

'CONTINUADO. FURTO E ROUBO. POSSIBILIDADE. 0 conceito de 'mesrno', previsto no art. 71 do CP, nao se restringe 56 Ii ideia de identidade. Abrange, ain~a: a de. semelhan~a ou parecen~a. Desta forma, e de convir que, entre as especle eXlstentes dentro do genera patrimonio, as que mais se assemelham sao exatamente a furta e a roubo. Dcorre que 0 nucleo dos dais tipo~ penais e expressado pelo verba subtrair e pelo objeto material da coisa alheta m6vel. 0 elemento, que afastaria a identidade entre as duas condutas c~irr?no.sas, pennitindo conceitua-las como duas especies autonomas, a vlolencla na execuc;ao, nao se traduz num tra~o exclusivo de uma delas. Esta viole~cia tanto existe no TOubo, quanta no furta, quando, par exempl0, ha romplmento de obstacuJo Ii subtra~ao da coisa. D carater pessoal au real dessa violencia impede que as duas figuras sejam identicas, mas nao nega a semelhan<ta que as vincula e autoriza indica-las como crimes da mesma especie. '

Ve-se. pois, que se esta frente, em nivel de caput a delitos absolutamente pr6ximos. Agora vejamos 0 fato oode existe igualdade absoluta - causa de aumento:

'Art. 155 ( ... ) ( ... )

§ 4°. A pena e de reclusao de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa, se 0 crime e cometido:

( ... ) IV - mediante concurso de duas ou mais pessoas. "

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'Art. 157 ( ... )

( ... ) § 2°. A pena aumenta-se de urn ter<to ate rnetade:

( ... ) II - se hd 0 concurso de duas ou mais pessoas. '

Diferen~a? Nenhuma. Tudo identico: no qualificar, no furto, e no majorar, no roubo, 'concurso de duas ou mais pessoas'.

Qual 0 discurso para 0 aumento de pena, pelo concurso? A facilitac;ao do deli to, impedir coligayao de [oryas, h:i maior perigosidade.

Mas a identidade e de tal forma espetacular que os doutrinadores, COmo regra, comentam a hip6tese do § 4°, IV, do art.I5S, e no momento da amilise do § 2° do art. 157 simplesmente remetem para do que disseram acerca do furto qualificado ou se repetem.

Assim estao: a) WILIAM W ANDERLE! JORGE. Curso de Direito Penal, v. II, 6' ed., Forense, 1989, pp. 407 e 432; b) MIRABETE. Manual de Direito Penal, v. 2, Atlas, 1998, pp. 228 e 239; c) DAMAsIO. Direito Penal, 2° v., Saraiva, 1997, pp. 325 e 342; d) FRAGOSO. Li~{jes de Direito Penal, vol. I, Forense, 1988, pp. 330 e 351; e) HUNGRIA. Comentarios ao C6digo Penal, vol. VII, Forense, 1967, pp. 46 e 58; f) MAGALHAES NORONHA. C6digo Penal Brasileiro Comentado, Saraiva, 1948, 5° v., pp. 133 e 183; g) PAULO JOSE DA COSTA JUNIOR em dois momentos, g. 1) Comentarios ao C6digo Penal, Saraiva, 5' ed., 1997, pp. 492 e 478; e g.2) Curso de Direito Penal, vol. 2, Saraiva, 1991, pp. 79 e 83.

Ve-se, portanto, que a causa de aumento tern palavras iguais, absoluta identidade doutrimiria e a base te6rica que justifiea sua edi<tao e exatamente a mesma.

Sao tratados, parem, igualmente ou iguais?

Pelo concurso, 0 furto dobra a pena, enquanto no roubo 0 aumento e de urn ter~o a metade.

Os iguais sao tratados, pois, desigualmente!

Quesmo seguinte: ha fundamento racional, l6gico, justifieador da discrimina'rao?

No meu sentir, nada esta a justificar que 0 furta mediante concurso tenha apenamento maior do que rouba em identica condic;ao. Alias, estaria ate justificado se ocorresse a inverso: roubo, delita mais serio ao agredir violentamente a pessoa, mereceria (estaria justificado, leia-se) ate percentual maior (leia-se pena mais forte) do que furto.

Dnde 0 racianal, a 16gico? Discriminac;aa injustificada, logo agressor a isonomia.

Alias, corretamente (leia-se obediente ao principia) andou 0 legislador ao conceder mesmo aumento do roubo II extorsao (art. 158, § 1°, do CP) - delitos pr6ximos, au em fixar percentual de apenas urna quarta parte em delitos

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sexuais, delitos distantes (nao estariam estes a merecer maior percentual pela violencia it pessoa que se reveste?).

FERRAIOLI ate diz que muito pior do que conceder penas (= causa de aumento) iguais a delitos de gravidade diferente e fixar roais elevadas ao delito menos grave (p. 402).

Assim, procura-se, respeitosamente, 'racionaIizar' 0 sistema, fazendo presente 0 principio da isonomia._ A forma de superar e 0 uso da analogia. para beneficiar. com aplicac;ao ao furto qualificado pelo concurso do mesmo percentual incidente no roubo majorado. ou seja, de urn ten;o it metade.

A pena vai recalculada. Nada justifica base superior ao minimo (feitos em andamento au inqueritos nao constituem antecedentes, pena de agressao ao estado de inocencia): urn ano de reclusao para cada apelante, em regime inicial aberto, e pecunhiria minima ante a probreza.

A Camara tern por pacificado que atenuante pode fazer chegar a base aquem do minimo (ver julgados 100/143). Ambos os apelantes tern menos de 21 anos. Diminuem-se tres meses. A. ainda e confesso - outra dirninuic;ao de tres meses. Resultado parcial: A. seis meses de reclusao e C. nove meses de reclusao.

Pelo concurso 0 aurnento e de urn terc;o. Final: A., oito meses de reclusao e C., urn ana de reclusao.

Finalmente, substitufdas as penas privati vas de liberdade por prestac;ao de servic;os it comunidade, a ser fixada em execuc;ao.

Diante do exposto, da-se parcial provimento aos ape los para fixar a pena de Alexsandro em oito meses de reclusao e a de Cleudiomar em nove meses de reclusao, substituidas por servic;os it comunidade e pecunhiria minima."

Ac6rdao unanime. Participaram as Desembargadores Paulo Moacir Aguiar Vieira e Aramis Nassif, que fez dec1arac;ao de voto, agregando outros fundamentos (ac6rdiio 70000284455 - TJRS).

8. 0 ac6rdao em tela - e os demais pontos elencados retro - demonstra a dranultica (e por que nao dizer escandalosa) inadequayao do conjunto de leis infraconstitucionais (em especial 0 C6digo Penal) ao novo modele estabelecido pelo novo texto constitucional, o que deve provocar profunda angustia nos juristas preocupados com uma dogmatica juridica crftica e construtivista. GIMEZES DE ASUA chegou a sugerir que, a cada nova Constituic;ao, todos as C6digos deveriam ser refeitos. Como isto e impossivel, resta-nos implementar 0 novo texto constitucional, entendido como topos hermeneutica, expungindo-se do ordenamento todas as normas incompativeis com os preceitos e com os prindpios conslitucionais; outras normas podem ser mantidas ern sua literalidade, mas relidas em conformidade com a Conslituit;tlo (Verfassungskonforme Auslegung), au mediante a tecnica da nulidade sern reduftio de texto, a16m da aplicac;ao dos princtpios da proporcionalidade e da razoabilidade, conquistas insofismaveis do modemo constitucionalismo.

9. E nesse linha que proponho a encaminharnento da discussao para uma relegitimac;ao do direito penal, adaptando-o aos ditames do novo modelo de Direito estabelecido pele Estado Democratico de Direito: direito penal minimo para os delitos que

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firam bens jurfdicos de Indole interindividual (sem violencia contra a pessoa), a16m .da necessaria descrirninalizac;ao de condutas incompatfveis com esse novo modelo .(r:za.sszva deflariio dos hens penais e das proibifoes iegais, como co~dic;ao de ~ua. leglttnlldade polftica e jUrIdica, como ensina FERRAJOLI), reservando os ngores do dlre~to, pena~ p~a os delitos que colocam em xeque os valores que 0 Estado Democratic~ de Dlrelto obJ.e~lva implementar (a busca de uma sociedade justa, corn a redu~ao das deslgualdades soclals_ e saude como direito de todos, isto para dizer 0 minimo). Ou isto, ou teremos que ~ar razao ao dito do campones salvadorenho, de que "Ia ley es como la serpiente; solo pica a los

descalzos".

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Parecer

1. Pedido de Progressao de Regime (Andrei Zenkner Schmidt) .................................... 147

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PARECER DO CONSELHO PENITENCIA.RIO DO RIO GRANDE DO SUL

PEDIDO DE PROGRESSAO DE REGIME

147)

Processo de Execufdo Criminal n° 45787 - Comarca de Santo Angelo Apenado: Santo Amarildo Silva de Almeida - Conselheiro: Andrei Zenkner Schmidt

Andrei Zenkner Schmidt Conselheiro

o Conselho Penitenciario, por seu Conselheiro signatario, vern se manifestar acerca de pedido de progressao de regime, nos tennos que seguem.

Trata-se de apenado, atualmente cumprindo pena no Presidio Estadual de Santo AngelO, submetido a pena privativa de liberdade de 6 anos de reclusao em regime inicial fechado, tendo em vista a pratica, em 9 de junho de 1996, do crime de atentado violento ao pudor com viol~ncia presumida (art. 214 C.c. art. 224, a, do CPB).

o requerente deu inicio ao cumprimento da pena em 04.01.99.

Em 15 de mar~o de 1999, postulou trabalhos externos, sendo seu pedido indeferido em razao do cumprimento de pena em regime fechado (fl. 38, verso).

Foi-Ihe deferida a remi~ao de 66 dias da pena (fl. 71).

Seu pedido de saida temponiria foi negado, em razao do regime de cumprimento da pena (fl. 82).

Requerida a progressao de regime, opinou a CTC favoravelmente a concessao do pedido (fl. 87), enquanto que a ilustre representante do Ministerio Publico, alem de mencionar a necessidade de 0 exame ser reaHzado por psiquiatra, opinou negativamente ao pedide, nos seguintes tennos:

"Embora 0 laudo das fis. 84/87 tenha side favoravel a progressao do regime e ao servi<;o externo, nao e de se olvidar que na entrevista 0 apenado nao demonstrou qualquer critica ou arrependimento a sua conduta delituosa ( ... )."

o MM. Juiz determinou a realiza\=ao do exame par psiquiatra, caso em que 0

Diretor do Estabelecimento Prisional informou a inexistencia de tal profissional naquela cidade, destacando que somente em Porto Alegre, no Hospital Penitenci:irio, e que tal avalia\=80 poderia ser feita. Diante disso, opinou a representante do MP pela remo<tao do apenado para esta Capital, a fim de ser avaliada a sua condi<tao. Em parecer, a Promotora de Justi\=a rejeitou 0 laudo efetivado pela eTC pelas seguintes raz5es:

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"0 cond~nado foi submetido a exame pelo EOC, sendo conclufdo pela refenda ~equlpe q~e 0 apenado apresenta condic;5es de obter a beneffcio da p:ogressao de regIme, conforme laudo das fls. 84/87. Veritica-se que 0 laudo nao ,aprofu~d~u a analise d~ posicionamento de apenado em rela<;ao ao delito praucado, .l~rrutando-se a registrar que 0 sentenciado optou por eximir-se de sua n:sponsabdldade atraves de defesas psicol6gicas, tais como a negac;ao a distorc;ao e a proj~9ao; nenhuma analise psicol6gica foi feita em relac;a~ a pos~ra do ~~ntenclado frente ao crime praticado, 0 delito foi de extrema gravldade, vltlmando uma crianc;a de 12 anos, que era sobrinho do apenado ( .. ) .

Informado ao Jufzo que a SUSEPE possui psiquiatra no Hospital PemtencHi~o (fl. 91), opina 0 MinisU~rio Publico seja deterrninada a remoc;ao d~ ~entenclado S: A. S. para 0 Hospital Penitenciano ou para estabelecimento pnslonal da C~pltal, onde possa ser avaliado por psiquiatra da SUSEPE ( ... ) para que (co.nsideran~o a posi~ao do apenado frente ao crime praticado a outros asp,ect?~ ve~tic~dos) mforrne ao juizo a probabilidade de que 0 apenado volte a delm~Ulr, pnnclp,almcnte no que se refere a reincidencia em crimes da meSma eSpeCle do que fOl condenado" (fls. 94/95).

p 0 MM. Juiz, acoIhendo 0 parecer ministerial, deterrninou a remo~ao do apenado para orto Alegre, a tim de Ser avaliado par psiquiatra,

. . "A ~iretora do Departamento de Execw;ao Penal, em Porto Alegre comunicou a mexistencia no quadro de funci ,. d Ed' .' . onanos a sta 0, de psiquiatra com atribui~5es de atender ao ~ntenor d? .Estado, visto que apenas urn profissional, em Porto Alegre, dedica­se ao aten~~mento chOIco e aos que necessitam de acompanhamento (fl. 102).

POI Juntado aos autos exarne realizado pela Equipe de Observayao Criminol6 ic (fls. 10811.16), qu~ se manifestou negativamente quanto a progressao do regime. g a

FOI o:erecido novo ~arecer p.elo MP, que se manifestou, a luz do laudo do EOC pela denega,ao da progressao de regtme (fls. 118/119). '

:rem as autos ao Conselho Penitenciano para emissao de parecer. E a relat6rio.

Prelimi~arm.en~e, merece destaque que, pela_ letra fria da lei, nao e tarefa do Conselho Pe~Itencuirio . manifestar-se . acerca dos pedidos de progressao de re ime. ~on~:o, medIante uma mterpreta'tao sIstematica, pode-se perceber que 0 art. 70, i;c. II

a P, ao estabelecer ao Conselho Penitenciano a tafera de "in' ' estabelecimentos e serv' . " '" . spec~onar os subm . l~OS penms ,autonza, Implicltamente, que a progressao de regime d' eta-~e ao ~nvo deste 6rgao, ate mesmo porque esta etapa do cumprimento da pena I~ respel~, ~I~etament~, ao regular desenvolvimento da execu~ao penal, inserindo-se

pOlS, na atribuu;ao menclOnada. '

Tanto isso e verdade que a Lei Estadual n° 10 242/94 a d' b atribu' - d C Ih . . . ,0 Ispor so re as

lyOeS a onse 0 Pemtenclano, ressalva expressamente a pOder deste 6rgao de represen~ a au~~rida~e competente sabre irregularidades verificadas nos e~tabeleclmentos 0 p.nslOnais sediados no Estado, propondo, de imediato, as medidas a equ.a~~ (art 1 , I~C. II). Percebe-se, pais, a possibilidade de essa representa~ao dirigir­se ao JUIZ a execu~ao penal, na forma de parecer, COmo 0 que ocorre in casu.

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No merito, entendo cabivel a progressao para a regime semi-aberto.

Com efeito, dispiie 0 art. 112 da Lei de Execu,iies Penais:

149\

"Art. 112. A pena privativa de liberdade sera executada em forma progressiva, com a transferencia para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando a preso tiver cumprido ao menos urn sexto da pena no regime anterior e seu merito indicar a progressao.

Panigrafo unico. A decisao sera motivada e precedida de parecer da Comissao Tecnica de Classificac;ao e do exame crirnino16gico, quando necessaria."

Disso cesulla que a progressao de regime sujeita-se, apenas, a dais requisitos: cumprimento de 1/6 da pena e merito do condenado.

Quanto ao primeiro requisite, esta mais do que evidenciado nos autos a seu preenchimento, como se pode Dotar a partir da amllise da guia de execucrao penal de fl. 75, que informa 0 transcurso de tal interregna ja em 18.07.99.

o grande problema, na verdade, verifica-se na analise do segundo requisito, au seja, 0 merito do apenado. Trata-se de urn elemento que demanda uma opcrao, de parte dos operadores do Direito, que vai muito alem de urn mero dado dogmatico au juridico. Na verdade, a resposta a esse problema diz respeito, diretamente, a opcrao polftico-criminal adotada pelo juiz (e tambem pelo Ministerio Publico) quanto aos fundamentos do Direito Penal, e, mais propriamente, da pena privativa de liberdade.

Todo cientista, ao deparar-se com a objeto de estudo, necessita, inicialmente, estabelecer 0 metodo a ser utilizado na estrntura da formayao do conhecimento. Nao foram poueas as teses que, par partirem de uma base estrutural equivoeada, cairam em contradi~ao acerca de suas conclus6es finais. Nesse caso, incumbe ao cientista penal, ao enfrentar problemas em sua Area de conhecimento, optar pela melhor forma de abordar 0

objeto, nao se podendo esquecer, contudo, de que a Direito e uma vertente das Ciencias Humanas. Nesse caso, ao eontrario do que ocorre, p. ex., com as Ciencias Biornedieas, sujeita-se a jurista ao metodo dedutivo de form~ao de suas convic~5es, au seja, necessita ele de uma base ideol6gica da qual serao extrafdas todas as suas conclus5es, sob pena de fomecer respostas dispares a situa~5es que envolvem a mesmo objeto: 0 Homem.

Par viver em sociedade, esta a Homern constantemente sujeito as mais diversas nonnas (religiosas, morais, jurfdieas, etc.), posta que a convivio com seus semelhantes depende de eonstante regulamenta~ao. Nesse casc, ha que se atentar para a fate de que as nonnas marais e religiosas obrigam a propria consciencia do individuo, gerando, pois, rela~5es intra-subjetivas de condu~ao de vida. Ao Homem foi dado a atributo de pensar­nao que isso seja a unica condi~ao da sua existencia -, estando 0 eonteudo de seus pensamentos vinculado a limita~5es que s6 podem ser impostas pela sua pr6pria consciencia. Diferente e, entretanto, a fonna como se estabelece a regula~ao do Homern nao consigo mesmo, mas siro com seus semelhantes. Aqui, a Homem esta sujeito a padr5es de normalidade no que tange as suas rela~5es com os demais integrantes da sociedade, surgindo. pais, uma rela~ao inter-subjetiva a ser observada pelos seus atos, e e aqui a campo de atua~ao do ordenamento jurfdico. 0 convivio numa sociedade organizada submete as integrantes desse meio a uma obriga~ao de respeito padronizada juridicamente pelo Estado, a fim de que 0 convivio social aproxime-se a maximo possIvel da pacificidade necessaria para 0 seu desenvolvimento. Nesse caso, basta que a Hornem nao

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lese 0 Hornem, independentemente de tal respeito ser contra au segundo a sua vontade. Toda norma juridica que imp6e uma obriga'tao contenta-se com a observfincia externa do comando: em materia penal, tanto faz que "Au nao mate "B", voluntariamente au nao; 0

que interessa e que 0 evento morte nao seja produzido.

Contudo, se 0 respeito a uma proihicrao prescinde de qualquer exame moral do indivfduo a ela sujeito, 0 mesma naD se pade afinnar em rela~ao aquila que se pretende proibir. Se, por urn lado, 0 Homem necessita de regras de co'nduta, por outro, tais regras de conduta somente devem ser impostas quando 0 Hornem delas necessita, ou seja, tada norma jurfdica somente deve instituir comandos restritivos 'a interesses que demandam prote~ao. Do contnirio, serfamos obrigados a admitir nonnas jurfdicas proibindo condutas onde a propria sociedade nao clama par prote~ao, e, nesse caso, e aceitavel a hobbesiana conclusao no sentido de que todo delito e uma imoralidade, mas nem toda imoralidade e urn delito.

Essa rela~ao entre Direito e moral foi objeto das rnais acirradas discuss6es filosoficas: do jusnaturalismo, em linhas gerais, advem a conclusao no sentido de que 0

Direito deve estar submetido a moral, posto que deve tutelar os direitos natura is do Homem; do historicismo, principal mente 0 hegeliano, surge a asser~ao no sentido de que e a moral quem deve submeter-se ao Direito instituido pelo Estado; do positivismo juridico decorre a total separa~ao entre 0 ordenarnento juridico e 0 ordenamento moral; e, por fim, do neopositivismo, ressurge uma nova fusao entre Direito e moral, embora aquele sobreponha-se a esta. Dito isso, indaga-se: qual sera 0 melhor metoda dedutivo para a abordagem do Direito Penal?

A essa indagac;ao, cremos que a melhar respasta a ser dada - e isso e uma afmnac;ao de natureza deontologica, frise-se - e no sentido da parcial separaC;ao entre Direito e moral, nos seguintes termos: a) Direito nao se confunde com moral; b) toda restriC;ao a liberdade externa somente pode ser dada pelo Direito, e nao tambem pela moral; c) todo comportamento desvalorado pelo Direito ha de ser, tambem, desvalorado pela moral; mas d) nem todo desvalor moral deve ser proibido pelo Direito. Disso advem as seguintes conseqUencias: a) toda restri~ao a liberdade extema deve ser ditada tanto pela moral quanta pelo Direito, mas b) toda amplia~ao da liberdade externa pode ser efetivada pela moral, ainda que nao expressamente pelo Direito. A isso da-se 0 nome de secularizarao do Direito.

Essa primeira conclusao demanda complementa~ao. Afirmar que, par urn Iado, 0

Direita separa-se da moral, mas, pOr autro, a Direito e integrado pela moral, redunda num vicio fonnal capaz de fundamentar qualquer fiIosofia. Ha que se estabelecer, com efeito, 0

que se deve entender por moral (penal) e 0 que se deve entender por Direito (pena]), au seja, e cbegada a hora de darrnos Conteudo a nossa rnoldura.

o Homem viveu, vive e sempre vivera em sociedade. Por maiores que sejam as exemplos de isolamento primitivo, a verdade e que 0 Romem integra, atualmente, grupos saciais, que variam. substancialmente quanta a organiza<;ao e a institucionaliza<;3.o. Nesse caso, nao devemos esquecer, tambem, que 0 ser burnano nao possui aspira~oes, convic<;6es e necessidades identicas as de seus semelhantes, e, ern razao dessas diferen~as, a regulac;ao social imp6e-se. Nesse sentido e que deve ser cancebido 0 Estado, Ou seja, como urn ente capaz de administrar, da melhor forma passivel, as diferenc;as entre os individuos que a integram. A noc;ao de sociedade e uma decorrencia da no~aa de Estado,

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mas nao no sentido de que esta sociedade origine urn cnte superior de que dependcm os individuos que a integram. e sim como urn ente surgido do sim~les fen6meno da coexistencia necessaria. E missao do Estado, pois, administrar essa sacledade da qual ele mesmo faz parte, devendo toda a sua atua~ao regulativa restar justificada perante 0

interesse geral. Na busca dessa legitima~ao, deve 0 Estado, primeiramente, abandonar 0 ideal

ut6pico.abolicionista da sociedade perfeita, posto que 0 conflito, ~ litigio, a desaven~a, fazem parte da propria evolu~ao humana, demandando, ~01S, uma mterven~ao institucionalizada junto aos "focos" do conflito. Urn dos mecamsmos de que se vale 0

Estado para administrar a felicidade geral e 0 Direito Penal, ou seja, 0 ramo ~o ordenamento jurfdico que possui a potencialidade de, u~a vez desresp~ltada a obngac;ao imposta, lesionar a mais valioso de todos os valores da VIda humana: a hberdade.

VIDa fundamental base metodol6gico-dedutiva encontra-se na premissa de que 0

Estado, nessa regulaC;ao social, para justificar-se, deve atuar sempre na busca nao ~o. da maxima felicidade poss(vei da sociedade nao-desviada, como, ade~is, no ~lm.mo sofrimento poss(vel da sociedade desviada. Isso depende da percepc;ao, pelo clentIsta penal, de que a sociedade e integrada nao so pela vitima do delito, como, ademais, pelo proprio delinqUente, sendo que ambos merecem prote~ao estatal.

Nao e necessario urn grande esfor~o para admitir que toda essa base ideol6gica encontra-se amparada pelo nosso ordenamento constitucional. Com efeito, integram.o Estado Democratico de Direito nao so a vftima do deli to, como, ademais, a pr6pno delinqiiente, e disso resulta que os direitos fundamentais d~ Hornem, objeto de. tute!a estatal (que, antes do delito, sao as potenciais vitimas .do. dehto, e, ~pos a co~cretlza~ao deste, e a proprio criminoso), devem ser observados, pnnclpalmente, a luz do dlSpostO nos arts. 3° e 4° da CRFB/88.

Essa cansativa, mas necessaria, digressao politica serve para evidenciar que, no presente processo de execUC;ao, vem-se adotando uma politica criminal de exc1us.ivo apego a maxima felicidade poss(vel da sociedade, esquecendo-se, contudo, do m~mmo sofrimento poss(vel do delinqaente. Nao se nega que a apenado S. A. S. tenha pratIcado (ao menos em tese) urn delito barbaro, talvez at~ 0 ~ior ~eles, .ao abusar sex~alme~te de urn menino de 12 anos de idade. Contudo, 0 cnme J8 fOl pratlcado, e, daqlll em dlante, nada do que pudermos fazer ira restabelecer 0 status quo ante, ou seja, 0 mal do d~lito ja foi perpetrado, nao se podendo admitir que uma pena tenha par funda~ento (e finahdade) retribuir este mal, ate mesmo porque 0 que esta feito nao pode ser desfelto.

A pena, portanto, tern uma utilidade futura que sujeita os op:radar.es do d~reito a vislumbrarem a apenado como 0 epicentro da execu~ao penal, e nao roms a socledade, visto que, apos a pnitica do delito, esta ja foi lesada. Em outras palavras: a prote~ao da sociedade e uma finalidade a ser cumprida pela Direito Penal enquanto norma, enquanto proibi,iio. Caso esta niio seja observada (pela pnitica do delito), todo 0 fundamento do Direito Penal desloca-se, agora, para 0 delinqUente. A prova dessa afirma<;ao e que, uma vez cumprida a pena, deve, ao apenado, ser concedida a liberdade, par pier que tenha sido o delito par ele praticado, e por pior que seja a sua personalidade. Se eriginnos a defesa social como dogma intransponivel da execu~aa da pena, seremos obrigados, corn ta1 pretexto, a admitir que urn apenado cruel e com grandes chances de tomar a delinqilir jamais podera ser posto em liberdade.

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Com base nisso tudo, pode-se perceber que a preseote execuyao penal esta baseada (talvez ate de forma despereebida), por urn lado, num fundamento eminentemente retribucionista da pena, e, por outro, oa exclusiva defesa social. Note-se que a ilustre representante do Ministerio Publico, quando de seu primeiro parecer aeeTea do laudo da eTC favoravel a progressao do regime, manifestou-se negativamente com base oa "gravidade do deli to" e oa "ausencia de arrependimento" do delinqUente. Ora, a gravidade de urn delito nao pode ensejar a restri~ao de urn direito do apenado, ate mesma porque, do contnirio, teria ele de cumprir uma prisao perpetua em regime integralmente fechado. Alero disso, 0 arrependimento Oll naD do apenado e urn dado compietamente irrelevante ao processo. A pena nao pode ter por objetivo a conversao moral das pessoas, sob pena de esbarrarmos no metodo secularizado antes mencionado. A moral humana nao e objeto da tutela execut6ria pela singela razao de que 0 Direito contenta-se com a observancia extema de suas normas, ainda que, intemamente (rectius: em sua consci~ncia), 0 cidadao nao concorde com tais ditarnes.

Fica bastante clara a postura poHtica do Ministerio Publico no curso da presente execUlyao penal. A representante do parquet, na verdade, buscou a todo custo uma forma de manter 0 ,apenado em regime fechado, visto que, ao que tudo indica, ,a como~ao oriunda da gravidade do delito foi muito alern do ambito da(s) vitima(s). A busea desenfreada por urn psiquiatra para examinar 0 apenado serviu apenas de pretexto para negar-se a progressao de regime, como se a psic6Ioga que compos a Comissao Tecnica de Classifica9ao nao fosse dotada de compet~ncia profissional para manifestar-se acerca da progressao.

Alem disso, 0 pr6prio laudo efetivado pela EOC (e por urn psiquiatra!) nao pode servir de base a denega~ao do pedido do apenado. Isso porque 0 psiquiatra que analisou 0

apenado, por certo, nao tinha como manifestar-se no sentido da concessao da progressao de regime, principal mente ap6s ler os pareceres ministeriais. Deparamo-nos, na verdade, com tamanha pressao exercida sobre as integrantes da EOC que a confiabilidade do laudo resuItante passa a ser posta em duvida. Par certo, se eu fosse psiquiatra, tarnb6m opinaria pela aus~ncia de condi~6es que autorizam a progressao de regime, visto que essa era a opiniiio desejada peIo parquet. Bastam lembrar as paIavras exaradas no parecer de fls. 94/95: "Verifica-se que 0 laudo nao aprofundou a amilise do posicionamento de apenado em rela~ao ao delito praticado, Iimitando-se a registrar que 0 sentenciado optou par eximir-se de sua responsabilidade atraves de defesas psicoI6gicas, tais como a nega~ao, a distor~ao e a Proje93.0; nenhuma analise psico16gica foi leila em relariio a postura do sentenciado frente ao crime praticado, 0 delito foi de extrema gravidade, vilimando uma crianra de 12 anos, que era sobrinho do apenado" (grifei).

Primeiramente, como vimos, e irrelevante a postura psicoJ6gica do sentenciado frente ao crime praticado, visto que este ja ocorreu, e nao iremos, com a pena, reparar 0

trauma causado na vitima. Em segundo lugar, a gravidade do delito e irrelevante, na medida em que a quantum elevado da pena (6 anos) deve-se a isso.

o que se pretender afirmar, pais, e que 0 apenado tern merito no cumprimento da reprimenda, ja que a execu~ao esta sendo cumprida regularmente e sem que haja notlcia de qualquer irregularidade, par menor que seja, no cumprimento desta. Em que pese a gravidade do delito e a ausencia de arrependimento do apenado, parece evidente que perfaz ele 0 direito it progressao para 0 regime semi-aberto, pelo simples fato de possuir

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merito em sua conduta carcerana. Do contrmo, serfamos obrigados a mante-Io recluse para a resta de sua vida.

Issa posto, opin~ pela progress3.o do apenado para a regime semi-aberta.

Porto Alegre, 6 de setembro de 2000.

ANDREI ZENKNER SCHMIDT - Conselheiro