Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de...
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Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade
Associada ao programa de pós-graduação PROFLETRAS
da UPE-Garanhuns
N.° 16 - ESPECIAL - 2015 - ISSN: 2236-1499.
UPE/Garanhuns - PE – Brasil
D.O.I: 10.13115/2236-1499
ANAIS DO
VOLUME II
AUTORES DE F a L
11 a 14 de maio de 2015
Universidade de Pernambuco – UPE
Campus Garanhuns
Ficha catalográfica
REVISTA DIÁLOGOS, n.° Especial 16 - III Encontro Nacional e II Encontro Internacional de
Literatura e Lingüística da Universidade de Pernambuco (UPE), 3 vols, campus Garanhuns.
(2015, Garanhuns, PE). Vol. II
Anais (recurso eletrônico) / III Encontro Nacional e II Internacional de Literatura e
Lingüística da Universidade de Pernambuco (UPE), 11 a 14 de Maio de 2015 – Garanhuns,
PE, UPE.
Disponível em: www.revistadialogos.com.br/anais
1. Letras – eventos 2. Lingüística 3. Literatura 4. Teoria Literária
ISSN: 2236-1499
CDU 869.0(81)
CDD B869
UNIVERSIDADE DE PERNAMBUCO - UPE
Campus Garanhuns
REITOR
Prof. Dr. Pedro Henrique de Barros Falcão
VICE-REITORA
Profª. Drª. Maria do Socorro de Mendonça Cavalcante
DIRETOR
Prof. Dr. Cloves Gomes da Silva Junior
VICE-DIRETORA
Profª. Ms. Rosângela Falcão
COORDENADORA DO CURSO DE LETRAS
Profª. Drª. Jaciara Josefa Gomes
VICE-COORDENADORA DO CURSO DE LETRAS
Profª. Ms. Dirce Jaeger
COMITÊ DE ORGANIZAÇÃO
COORDENADORA
Profª. Drª. Silvania Núbia Chagas (UPE)
COMISSÃO ORGANIZADORA
Prof. Esp. Anderson de Souza Frasão (UFS)
Prof. Dr. Benedito Gomes Bezerra (UPE)
Profª. Ms. Dirce Jaeger (UPE)
Prof. Dr. Elcy Luiz da Cruz (UPE)
Prof. Esp. Erick Camilo da Silva Gouveia (UFS)
Profª. Drª. Jaciara Josefa Gomes (UPE)
Prof. Dr. Jairo Nogueira Luna (UPE)
Prof. Esp. José Aldo Ribeiro da Silva (UEPB)
Profª. Drª. Maria das Graças Ferreira (UPE)
Profª. Drª. Silvania Núbia Chagas (UPE)
COMISSÃO CIENTÍFICA
Profª. Drª. Ana Mafalda Leite (Universidade de Lisboa)
Prof. Dr. Carlos Reis (Universidade de Coimbra)
Profª. Drª. Jeane de Cássia Nascimento Santos (UFS)
Prof. Dr. Júlio Araújo (UFC)
Prof. Dr. Luiz Costa Lima (UERJ)
Profª. Drª. Rosângela Sarteschi (USP)
COMISSÃO EDITORIAL
Prof. Dr. Benedito Gomes Bezerra (UPE)
Prof. Dr. Jairo Nogueira Luna (UPE)
Profª. Drª. Silvania Núbia Chagas (UPE)
APOIO
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível superior – CAPES
Fundação de Amparo à Ciência e atecnologia do Estado de Pernambuco – FACEPE
SUMÁRIO
VOLUME I
PRÁTICAS DE LETRAMENTO: A LEITURA DELEITE COMO PROCEDIMENTO
ESTRATÉGICO NA FORMAÇÃO DE LEITORES.........................................................
Abda Alves Vieira de Souza (UFAL)
Maria Auxiliadora da Silva Cavalcante (UFAL)
23
GÊNEROS DIGITAIS E ENSINO DE LITERATURA: UMA EXPERIÊNCIA DE
LETRAMENTO LITERÁRIO............................................................................................
Adriana Nunes de Souza (IFAL/UFAL)
30
ESTUDO DELEUZIANO DE LITERATURA CONTEMPORÂNEA: LITERATURA
MENOR E AGENCIAMENTO EM ANTÓNIO LOBO ANTUNES E
FERRÉZ..............................................................................................................................
Adriano Carlos Moura (IFF)
40
O FILME DENTRO DO FILME. TEATRO, TV E CINEMA: UM ESTUDO SOBRE A
METALINGUAGEM EM “LISBELA E O PRISIONEIRO”, DE OSMAN LINS............
Adriano Siqueira Ramalho Portela (UFPE)
50
MUXE MARAVILHA E MULHER DEPOIS: DA GRAPHIC NOVEL À POESIA,
IDENTIDADE DE GÊNERO EM ANGÉLICA FREITAS...............................................
Ágatha Costa Salcedo (UFAL)
59
DECORAR OU APRENDER NO PROCESSO ENSINO-APRENDIZAGEM.................
Alaíde Marie Correia Barros (IFAL)
Nádia Mara da Silveira (IFAL)
67
OS GÊNEROS DIGITAIS NO ENSINO DE LÍNGUA DE MATERNA..........................
Albanyra dos Santos Souza (UFRN/CERES/DCSH)
74
ORALIDADE E ARGUMENTAÇÃO EM FOCO: UMA EXPERIÊNCIA DIDÁTICA
COM O GÊNERO TEXTUAL JÚRI SIMULADO............................................................
Alberto Felix da Hora (UPE)
86
POEMAS TIRADOS DE NOTÍCIAS, MAPAS, TABELAS... E OUTROS GÊNEROS
JORNALÍSTICOS: PROCEDIMENTOS LÚDICOS EM AULAS DE LITERATURA...
Alberto Roiphe (UFS)
98
INTERPRETANDO EM CONTEXTOS: UMA ANÁLISE DA PRESSUPOSIÇÃO
DISCURSIVA NO GÊNERO “FRASES”..........................................................................
Aleise Guimarães Carvalho (S.E.E.-PB)
108
Alessandra Magda de Miranda (S. E.E.- PB)
A ESCRITA DEMOCRÁTICA E RUMOREJANTE DE UMA NOVELA
NACIONAL, EM A BICICLETA QUE TINHA BIGODES: ESTÓRIAS SEM LUZ
ELÉTRICA..........................................................................................................................
Alice Botelho Peixoto (PUC Minas. CAPES)
119
A PRODUÇÃO DE TEXTOS EM SALA DE AULA: UM PROCESSO DE
RETEXTUALIZAÇÃO......................................................................................................
Aline Peixoto Bezerra (UERN)
131
A PALATALIZAÇÃO DAS OCLUSIVAS ALVEOLARES E A VARIÁVEL IDADE
EM MACEIÓ – AL.............................................................................................................
Almir Almeida de Oliveira (UFAL)
143
UTILIZANDO A MULTIMODALIDADE EM COMUNIDADE REMANESCENTE
QUILOMBOLA: NOVOS DESAFIOS?............................................................................
Aluizio Lendl-Bezerra (URCA/UERN)
Marcos Nonato de Oliveira (UERN/CAMEAM)
155
ESPELHAMENTOS IMPERFEITOS: OS REFLEXOS ENTRE OS
PERSONAGENS................................................................................................................
Amador Ribeiro Neto (UFPB)
Rafael Torres Correia Lima (UFPB)
164
CARPENTIER E A MÚSICA: ENTRE SONATAS, ROMANCES E ENSAIOS.............
Amanda Brandão Araújo Moreno (UFPE)
176
PRÁTICAS DE LETRAMENTO NOS ANOS INICIAIS: A FORMAÇÃO DE
LEITORES ATRAVÉS DO MOMENTO DA LEITURA DELEITE................................
Amara Rodrigues de Lima (SEEL – Recife)
184
METADE ROUBADA AO MAR, METADE À IMAGINAÇÃO:A CIDADE DO
RECIFE POR CARLOS PENA FILHO..............................................................................
Amarino Oliveira de Queiroz (UFRN)
189
DIALOGISMO INTERDISCURSIVO E INTERLOCUTIVO: COMENTÁRIOS
ONLINE NO FACEBOOK..................................................................................................
Ana Carolina A. de Barros (UFPE)
199
O CONCEITO DE GÊNEROS TEXTUAIS NO ENSINO MÉDIO: O QUE DIZEM OS
LIVROS DIDÁTICOS DE LÍNGUA PORTUGUESA?....................................................
Ana Cátia Silva de Lemos
Maria Margarete Fernandes de Sousa
211
O PAPEL DA TEORIA BAKHTINIANA NO CONCEITO DE LÍNGUA NA
CONTEMPORANEIDADE................................................................................................
Ana Cláudia Soares de Paiva (UNICAP)
222
QUESTÕES DE MULTIMODALIDADE EM CONTEXTO ESCOLAR: DESAFIOS
DO TRABALHO COM A IMAGEM.................................................................................
Ana Cláudia Soares Pinto (UFPB)
230
A PESQUISA EM METACOGNIÇÃO PARA UM ESTUDO DO GÊNERO
CRÔNICA NO ENSINO FUNDAMENTAL.....................................................................
Ana Lúcia Farias da Silva (UFRRJ)
239
LÍNGUA DISCURSIVA [E FORMAS DE VIDA] NOS MANUSCRITOS DE
SAUSSURE.........................................................................................................................
Ana Paula El-Jaick (UFJF)
250
DA LIBERDADE MASCULINA: REFLEXÕES SOBRE KAREN BLIXEN E ELENA
FERRANTE........................................................................................................................
Ana Paula Raposo (UFMG)
256
O USO DOS PROCESSOS EM TEXTOS LITERÁRIOS SOB A ÓTICA DA
LINGUÍSTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL: UMA ANÁLISE DA VOZ DO
NARRADOR E DAS PERSONAGENS EM CONTOS MODERNISTAS.......................
Anderson de Santana Lins (CELLUPE -UPE)
Maria do Rosário B. da S. Albuquerque (CELLUPE -UPE)
266
GUERREIRO DO POVO BRASILEIRO? CONTRADIÇÕES,
DES/CONTRA/IDENTIFICAÇÃO, RESISTÊNCIA E MEMÓRIA NO DISCURSO
SOBRE EDUARDO CAMPOS..........................................................................................
André Cavalcante (UFPE)
277
POESIA E MITO EM LUCILA NOGUEIRA....................................................................
André Cervinskis (UFPE)
287
O ENUNCIADO COMO ZONA DE DIÁLOGO ENTRE VOZES E VALORES: UMA
ANÁLISE DA CONSTITUIÇÃO JORNALÍSTICAS DA IMAGEM DE EDUARDO
CAMPOS NO PERÍODO PRÉ E PÓS MORTE................................................................
Andre Cordeiro dos Santos (UFPE)
294
O LIVRO DE LITERATURA INFANTIL NA SALA DE AULA: UM OLHAR PARA
A ESCOLHA FEITA PELO PROFESSOR DA EDUCAÇÃO INFANTIL E DO 1º
ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL...............................................................................
Andressa Silvestre Teixeira (UFRPE/UAG)
Leila Nascimento da Silva (UFRPE/UAG)
305
PEDRAS SOBRE RIOS: O LUGAR DO CORPO EM RAKUSHISHA DE ADRIANA
LISBOA...............................................................................................................................
Anne Louise Dias (PósLit/TEL/UnB)
317
A VOZ QUE AGORA FAL(H)A, OU A MEMÓRIA DE PORTUGAL NO CORPO
DO LIVRO E DO VELHO: UM ESTUDO SOBRE A MÁQUINA DE FAZER
ESPANHÓIS, DE VALTER HUGO MÃE.........................................................................
Annie Tarsis Morais Figueiredo (UEPB/PPGLI)
327
O “ESPELHO BAÇO E ESCURECIDO”: REFLEXÕES SOBRE A OBRA A HORA
DA ESTRELA.......................................................................................................................
Antonia Gerlania Viana Medeiros (UERN)
Roniê Rodrigues da Silva (UERN)
336
O ENSINO DE PRODUÇÃO DE TEXTO À LUZ DA CONCEPÇÃO DE ESCRITA
INTERACIONAL...............................................................................................................
345
Antonia Maria de Freitas Oliveira (UFRN)
INCONSCIENTE E SIMBÓLICO EM PERTO DO CORAÇÃO SELVAGEM..................
Antonielle Menezes Souza (UFS)
Marcio Carvalho da Silva (UFS)
355
O USO DOS SINAIS DE PONTUAÇÃO COMO MARCAS DISCURSIVAS................
Antonio Cesar da Silva (UFAL/UNEAL)
Cleide Calheiros da Silva (UFAL/IFAL)
363
O HUMOR INTRANQUILO DE ANDRÉ SANT’ANNA................................................
Ari Denisson da Silva (UFAL/IFAL)
375
A CASA DOS BUDAS DITOSOS: OS LIMITES DA IRREVERÊNCIA...........................
Arturo Gouveia (UFPB)
383
A REPRESENTAÇÃO DO FEMININO AUTORAL NAS OBRAS DE VIRGINIA
WOOLF: O ENSAIO COMO FORMA LITERÁRIA E ESTRATÉGIA DE
EMPODERAMENTO DA AUTORIA FEMININA...........................................................
Asenati Araújo de Melo (UNEB)
Juliana C. Salvadori (UNEB)
392
USOS DA LÍNGUA(GEM) NA INTERNET: O QUE ESTUDANTES DE
GRADUAÇÃO PENSAM SOBRE AS PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA NA
COMUNICAÇÃO VIA DISPOSITIVOS MÓVEIS?.........................................................
Benedito Gomes Bezerra (UPE/UNICAP)
Amanda Cavalcante de Oliveira Ledo (UFPE)
401
O MEDO E A FÚRIA ― MOVIMENTOS DE UMA POÉTICA DA PARTICIPAÇÃO.
Bianca Campello Rodrigues Costa (UFPE)
Bruno Eduardo da Rocha Brito (UFPE)
413
ENSINO DE ANÁLISE LINGUÍSTICA: REFLEXÕES DE BASE
SOCIOINTERACIONISTA................................................................................................
Bruna Bandeira (UFPE)
423
AS VOZES DISCURSIVAS NO DEPOIMENTO DE PEDRO BARUSCO NA CPI DA
PETROBRAS......................................................................................................................
Brwnno Gabryel de Araújo Silva (UFPE)
Rosilene Felix Mamedes (UFPB)
435
A PERSONAGEM LIA DE MELO, DO ROMANCE AS MENINAS, DE LYGIA
FAGUNDES TELLES, COMO RESISTÊNCIA FEMININA À DITADURA MILITAR
Caio Victor Lima Cavalcanti Leite (UPE)
Cristina de Barros e Silva Botelho (UPE)
446
A INTEGRAÇÃO IBERO-AMERICANA: O DISCURSO A FAVOR DE UMA
IDENTIFICAÇÃO..............................................................................................................
Camila da Silva Lucena (PPGL/UFPE)
455
AS MISSIVAS DA IMPRENSA NORTISTA: RETRATOS LITERÁRIOS DA SECA..
Camila M. Burgardt (UFPB)
465
O REGRESSO AO PASSADO E AS RAÍZES MÍTICAS NA OBRA O SÉTIMO
JURAMENTO......................................................................................................................
Camilla Rodrigues Protetor (UPE)
Amara Cristina de Silva e Barros Botelho (UPE)
477
NARRATIVAS HOMOERÓTICAS NOS COMPÊNDIOS DE HISTÓRIA
LITERÁRIA BRASILEIRA...............................................................................................
Carlos Eduardo Albuquerque Fernandes (UFRPE/UFPB)
487
A METACOGNIÇÃO NA LEITURA E AS INFERÊNCIAS SOCIOCULTURAIS:
UMA EXPERIÊNCIA COM ACADÊMICOS DO CURSO DE TURISMO DA
UNEB..................................................................................................................................
César Costa Vitorino (UNEB/FVC)
498
SOBRE O SAGRADO E O PROFANO EM BALADA DE SANTA MARIA
EGIPCÍACA, DE MANUEL BANDEIRA.........................................................................
Cícero Émerson do Nascimento Cardoso (UFPB)
509
DE GÊNESIS A SHAKESPEARE: MISTICISMO E SIGNIFICAÇÃO DO NÚMERO
SETE....................................................................................................................................
Clara Mayara de Almeida Vasconcelos (UFPB)
Eveline Alvarez dos Santos (UEPB)
519
ENSINO, ESCRITA E AUTORIA: A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO-AUTOR NO
CONTEXTO ESCOLAR....................................................................................................
Cleide Calheiros da Silva (UFAL/IFAL)
Antonio Cesar da Silva (UFAL/UNEAL)
528
FERDINAND DE SAUSSURE E EUGÊNIO COSERIU: PROPOSIÇÕES SOBRE O
TEXTO................................................................................................................................
Clemilton Lopes Pinheiro (UFRN)
540
DISCURSO E IDENTIDADE: ASPECTOS DA CONSTRUÇÃO POÉTICA EM
PATATIVA DO ASSARÉ..................................................................................................
Dalva Patricia de Alencar (URCA)
Romão Alisson de Almeida Morais (URCA)
551
FORMA E SUBSTÂNCIA: REFLEXÕES SOBRE LÍNGUA, ORALIDADE E
ESCRITA A PARTIR DE SAUSSURE E DE HJELMSLEV............................................
Dayanne Teixeira Lima (UFAL)
560
A EXPERIÊNCIA DO ENFRENTAMENTO NO ESPAÇO DA INTIMIDADE: UMA
LEITURA DO ROMANCE A PAIXÃO SEGUNDO G.H..................................................
Daysa Rêgo de Lima (PPGL/UERN)
571
DISCURSO CRONÍSTICO; IDEOLOGIA E MARGINALIZAÇÃO ÉTNICO-
RACIAL. REPRESENTAÇÕES DISCURSIVAS EM ACD – VAN DIJK E
ALTHUSSER......................................................................................................................
Dayvison Bandeira de Moura (UA-PY)
Cacilda Rodolfo de Andrade ( UA-PY)
Edair Gonçalves (IFECT-SP)
578
OS SERTÕES DE EUCLIDES DA CUNHA: RETRATO SÓCIOANTROPÓLOGICO
DO SERTANEJO NORDESTINO E DA GÊNESE DE ANTÔNIO CONSELHEIRO
COMO LÍDER MESSIÂNICO...........................................................................................
Deividy Ferreira dos Santos (UPE)
593
PROCESSO DE RETEXTUALIZAÇÃO EM SALA DE AULA: UM CAMINHO DE
APROPRIAÇÃO NA ESCRITURA DE GÊNEROS TEXTUAIS.....................................
Dennys Dikson (UFRPE/UFAL)
Wanessa Gomes Teixeira Maciel (UPE)
605
ANÁLISE DE GÊNEROS DA ESFERA JORNALÍSTICA NO CURRÍCULO DE
PORTUGUÊS PARA O ENSINO FUNDAMENTAL DO ESTADO DE
PERNAMBUCO.................................................................................................................
Diana Pereira Costa Alves (UPE)
Ecia Mônica Leite de Lima Freitas (UPE)
616
ENSINO DE LITERATURA EM WEBQUEST: O IMAGINÁRIO E O CRIATIVO
EM ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS..........................................................................
Diego Paulo da Silva (IFAL)
Nádia Mara da Silveira (IFAL)
628
ENTRE AS ESTRADAS QUE (NÃO) SE ABREM: TERRA SONÂMBULA,
LITERATURA E CINEMA................................................................................................
Diogo dos Santos Souza (UFAL)
Victor Mata Verçosa(UFAL)
639
FORMAÇÕES DISCURSIVAS E IDENTIDADE DO SUJEITO PROFESSOR EM
“QUE RAIO DE PROFESSORA SOU EU?”, DE FANNY ABRAMOVICH..................
Djamara Virgínia Ferreira da Rocha Silva (UFCG)
Aloísio de Medeiros Dantas (UFCG)
648
DE SELFIE A MINICONTO MULTIMODAL: ENSINO DE GÊNERO DIGITAL EM
SALA DE AULA................................................................................................................
Dorinaldo dos Santos Nascimento (UFS)
Vanusia Maria dos Santos Oliveira (UFS)
659
LACUNAS E DISTORÇÕES DO LIVRO DIDÁTICO “OFICINA DE
ESCRITORES”...................................................................................................................
Edilaine P. de Sousa (UPE)
Magna Kelly Sales (UPE)
670
VARIAÇÃO LINGUÍSTICA EM PERNAMBUCO: OCORRÊNCIAS LEXICAIS
PARA CIGARRO DE PALHA E TOCO DE CIGARRO.....................................................
Edmilson José de Sá (CESA)
684
O RISO IRÔNICO NA POESIA DE ANGÉLICA FREITAS............................................
Eduarda Rocha Góis da Silva (UFAL)
695
HISTÓRIAS DE RESISTÊNCIA: MEMÓRIA E IDENTIDADE NA LITERATURA
INFANTO-JUVENIL DE GRAÇA GRAÚNA E INALDETE PINHEIRO......................
Eidson Miguel da Silva Marcos (UFRN)
Amarino Oliveira de Queiroz (UFRN)
704
O MICROCONTO: UM PRODUTO DA ROMANCIZAÇÃO.........................................
Elias Coelho da Silva (UFPB)
713
A DESAGREGAÇÃO HUMANA EM MAÇÃ AGRESTE, DE RAIMUNDO
CARRERO..........................................................................................................................
Eliene Medeiros da Costa (UEPB)
725
A CONSTRUÇÃO DA PERSONAGEM FEMININA EM LAÇOS DE FAMÍLIA, DE
CLARICE LISPECTOR......................................................................................................
Elizabete Sampaio Vieira da Silva (PPGEL/UNEMAT)
Elisabeth Battista (UNEMAT)
736
ENTRE LENDAS E GUARANÁS: O IMAGINÁRIO SIMBÓLICO
BRASILEIRO......................................................................................................................
Eliziane Navarro (PPGEL/UNEMAT)
Olga Maria Castrillon-Mendes (PPGEL/UNEMAT)
746
MAINHA, VOU NO SHOPPING: UM ESTUDO DA VARIAÇÃO DA LÍNGUA
NUMA PERSPECTIVA LINGUÍSTICA E GRAMATICAL............................................
Eloir Geneci Castro da Silva (UNICAP)
Carla Moreira de Paula (UNICAP)
756
A TÉCNICA MODERNA NA VISÃO DE HEIDEGGER: NOVAS PERSPECTIVAS
DE INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA NO CAMPO DA
LINGUAGEM.....................................................................................................................
Emmanuella Farias de Almeida Barros (UFPE)
764
AS GRAMÁTICAS E DICIONÁRIOS RENASCENTISTAS E O SABER
LINGUÍSTICO OCIDENTAL............................................................................................
Enézia de Cássia de Jesus (UFAL)
776
AS DANÇAS DA LINGUAGEM, OS CAMINHOS DE UMA LEITURA POÉTICA....
Érica Thereza Farias Abreu (UFPE)
781
CIUMENTO DE CARTEIRINHA, DE MOACYR SCLIAR – UM JOGO FICTÍCIO E
INTERTEXTUAL...............................................................................................................
Everaldo Bezerra de Albuquerque (UFAL/PPGLL)
790
A LEITURA DE TEXTOS LITERÁRIOS: UMA ABORDAGEM PEIRCEANA...........
Expedito Ferraz Júnior (UFPB)
798
VOLUME II
O NEOLOGISMO EM CANÇÕES DE GILBERTO GIL.................................................
Fabiana Vieira Barbosa (UFRPE/UAST)
Adeilson Pinheiro Sedrins (UFRPE/UAST)
804
OS SENTIDOS DO DISCURSO DO ENSINO PROFISSIONAL COMO ACESSO AO
EMPREGO NO BRASIL....................................................................................................
Fabiano Duarte Machado (PPGLL-UFAL)
816
O SAGRADO NA POESIA FEMININA DE ADÉLIA PRADO E DIVA CUNHA.........
Felipe Assis Araujo (UFRN/CERES)
828
SOBRE CIMENTO E SANGUE: APROXIMAÇÕES E DISTANCIAMENTOS
ENTRE O NOVO BRUTALISMO E A LITERATURA BRUTALISTA.........................
840
Felipe Benicio de Lima (PPGLL/UFAL)
TRADUÇÃO MULTIMODAL: ASPECTOS ESTRUTURAIS DE ASSASSIN’S
CREED................................................................................................................................
Felipe Cezar Menezes (UNEB)
Juliana Cristina Salvadori (UNEB)
Adolfo Paiva de Andrade (UNEB)
852
CONSIDERAÇÕES SOBRE O HIPER-REALISMO DE ANDRÉ SANT’ANNA..........
Felipe de Castro Cruz (UFPB)
Jéssica Rodrigues Férrer (UFPB)
863
TENDÊNCIAS DA LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA......................
Felipe Vigneron Azevedo (IFF)
871
LITERATURA E NATUREZA EM MANOEL DE BARROS..........................................
Fernanda Bezerra de Aragão Correia (UFS)
883
“XANDRILÁ” SOB UM VIÉS SEMIÓTICO....................................................................
Flávio Passos Santana (UFS)
894
A PRESENÇA DOS GÊNEROS TEXTUAIS NAS QUESTÕES DE MATEMÁTICA
NO ANTIGO ENEM...........................................................................................................
Francielle Santos Araújo (UFS)
Fabíola dos Santos Lima (UFS)
906
RECLUSÃO E LIBERDADE NA TRAJETÓRIA FICCIONAL DE MAYOMBE............
Francigelda Ribeiro (UFMG)
Lila Léa Cardoso Chaves Costa (UFPI)
916
ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS: UMA ABORDAGEM INTERTEXTUAL E
MULTIMODAL DO GÊNERO..........................................................................................
Francilene Leite Cavalcante (UNICAP/IFAL)
Roberta Caiado (UNICAP)
924
O LETRAMENTO ACADÊMICO E O TRABALHO DOCENTE: OS CONFLITOS
VIVENCIADOS NA ELABORAÇÃO DE UM MATERIAL DIDÁTICO IMPRESSO
DA EAD..............................................................................................................................
Francineide Ferreira de Morais (UFPB\PROLING\GELIT)
936
RODAS DE CONVERSA COMO EVENTO DE LETRAMENTO PARA A
PRODUÇÃO E REFACÇÃO TEXTUAL NA EJA...........................................................
Francisca Aldenora Moreno Fernandes (UFRN)
Ana Maria de Oliveira Paz (PPgEL/UFRN)
948
O GÊNERO ENTREVISTA: UMA PROPOSTA DE RETEXTUALIZAÇÃO DA
FALA PARA A ESCRITA.................................................................................................
Francisca Fabiana da Silva (UFRN)
960
ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: ALGUMAS REFLEXÕES...............................
Francisco Canindé de Assunção (SABERES)
971
DO CORDÃO À WEB: O CORDEL-NOTÍCIA NA INTERNET..................................... 981
Francisco Leandro de Assis Neto (UEPB)
AS TRANSPARÊNCIAS DO TERROR............................................................................
Gabriel D. M. Moura Freitas (GELISC/CNPq/UFPB)
993
A UTILIZAÇÃO DO CONTO E SUAS IMPLICAÇÕES NAS PRÁTICAS DE
ESCRITA E REESCRITA DE TEXTOS EM SALA DE AULA.......................................
Gabriela Ulisses Fernandes (UNEAL)
1.002
A PERFOMANCE NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA DE MARCELINO
FREIRE...............................................................................................................................
Gérsica Cássia Ferreira Leite (UFPE)
1.011
ETHOS DO COTIDIANO FEMININO DE TEXTOS LITERÁRIOS DAS AUTORAS
CONTEMPORÂNEAS BRASILEIRAS IVANA ARRUDA LEITE E MARTHA
MEDEIROS.........................................................................................................................
Giovanna de Araújo Leite (BARÃO EAD - Ribeirão Preto/SP)
1.024
VOCÊ VIU TU, SENHOR? COMPETIÇÃO DE TRATAMENTO EM CARTAS DO
SERIDÓ E CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO...........................................................
Gisonaldo Arcanjo de Sousa (UFRN)
1.037
ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES DA ANÁLISE DIALÓGICA DO DISCURSO À
LEITURA DE POEMAS LÍRICOS....................................................................................
Helio Castelo Branco Ramos (IFPE)
1.048
INTENCIONALIDADE LINGUÍSTICA NAS CAMPANHAS PUBLICITÁRIAS EM
OUT-DOORS NAS CIDADES DE OLINDA E RECIFE..................................................
Heloisa Pedrosa de Araújo (UFPE)
1.061
RESUMO DE LEITURA: UMA ANÁLISE DO DOMÍNIO DO DISCURSO
TEÓRICO À LUZ DO ISD.................................................................................................
Hermano Aroldo Gois Oliveira (UFCG/PÓS-LE)
1.070
A VOZ DO SILÊNCIO INDÍGENA: O EXERCÍCIO DO PODER IDEOLÓGICO
SOBRE A REPRESENTAÇÃO DE ATORES SOCIAIS..................................................
Ilka da Graça Baía de Araújo (UEG)
Gláucia Cândido Vieira (UFG/UEG)
1.083
GÊNERO E RELAÇÕES INTERÉTNICAS NA CONSTRUÇÃO FAMILIAR
AFRICANA EM O ALEGRE CANTO DA PERDIZ, DE PAULINA CHIZIANE.............
Ilka Souza dos Santos (UPE)
Amara Cristina de Barros e Silva Botelho (UPE)
1.096
A ABORDAGEM SEMIÓTICA COMO MÉTODO PARA ENSINO DE ANÁLISE
DO TEXTO LITERÁRIO...................................................................................................
Ingrid Cruz do Nascimento (UFPB)
Dalva Sales Carvalho Cunha (UFPB)
1.109
O CURRÍCULO DE LÍNGUA PORTUGUESA COMO UM GÊNERO INSERIDO NO
CONTÊINER DAS PRÁTICAS DISCURSIVAS..............................................................
Isabela Bastos de Carvalho (IFF/CEFET-RJ)
1.113
PLANO PLURIANUAL DE ALFABETIZAÇÃO NO SISTEMA PRISIONAL NO
ESTADO DE SERGIPE: APLICAÇÃO NO PROCESSO DE FORMAÇÃO INICIAL
DE ALFABETIZADORES E COORDENADORES DE TURMAS.................................
Isis Mota Rodrigues Dantas (SEED – Secretaria de Estado da Educação)
1.126
A VIDA ÍNTIMA DA MORTE SUBVERTIDA NA POÉTICA CONTEMPORÂNEA
DE HILDA HILST..............................................................................................................
Ivon Rabêlo Rodrigues (FAFIRE)
Edigar dos Santos Carvalho (UFPE)
1.140
REPRESENTAÇÕES LITERÁRIAS DA MILITÂNCIA POLÍTICA: NOS, OS DO
MAKULUSU, DE JOSE LUANDINO VIEIRA E UN FUSIL DANS LA MAIN, UN
POEME DANS LA POCHE, DE EMMANUEL DONGALA............................................
Jacqueline Fernanda Kaczorowski Barboza (USP)
1.149
OS LETRAMENTOS NO CIRCO DO FUXIQUINHO E O PAPEL DO PROFESSOR..
Jaécia Bezerra de Brito (UFRN/PROFLETRAS)
1.159
O ÍCONE METAFÓRICO PEIRCIANO NO POEMA MORTE E VIDA SEVERINA.......
Janicreis Gomes de Souza (UFPB)
Expedito Ferraz Júnior (UFPB)
1.170
A CONCEPÇÃO DIALÓGICA DA LINGUAGEM E O DISCURSO PEDAGÓGICO
DO PROFESSOR: UMA AULA MAGNA DE ARIANO SUASSUNA...........................
Janielly Santos de Vasconcelos(UFPB)
1.180
PRODUÇÃO DE CHAMADAS TELEVISIVAS: O ENSINO DA ESCRITA NUMA
PERSPECTIVA PROCESSUAL........................................................................................
Jária Suéldes Alves de Lima (UFRN)
1.190
O JOGO ENTRE AS REMINISCÊNCIAS E O DESVELAMENTO NOS POEMAS
DE BANDEIRA DE TEMÁTICA ONÍRICA....................................................................
Jefferson Cleiton de Souza (UFPE)
1.203
COLONIALISMO E PÓS-COLONIALISMO EM O ALEGRE CANTO DA PERDIZ,
DE PAULINA CHIZIANE.................................................................................................
Jeferson Rodrigues dos Santos (UFS)
Anderson de Souza Frasão (UFS)
1.211
REPRESENTAÇÕES DA MULHER AMAZÔNICA NO ROMANCE DE MILTON
HATOUM............................................................................................................................
Joanna da Silva (UFAM)
1.218
INTERTEXTUALIDADE COMO METALITERATURA: ANÁLISE
COMPARATIVA DE VIDAS SECAS E “FAROESTE CABOCLO”................................
João Batista da Silva (UFRPE/UAG)
Nilson Pereira de Carvalho (UFRPE/UAG)
1.231
CHARGES SOBRE O CARNAVAL: UM RISO CARNAVALESCO?............................
Jociane da Silva Luciano (UFRN)
1.243
PRODUÇÕES TEXTUAIS DE ALUNOS GRADUANDOS INICIANTES EM
LETRAS..............................................................................................................................
Joelma da Silva Santos (UFPB)
1.255
GÊNEROS TEXTUAIS E ANÁLISE LINGUÍSTICA COMO PROCESSO DE
ORGANIZAÇÃO LINGUÍSTICA E IDENTIDADE SOCIAL.........................................
John Hélio Porangaba de Oliveira (UNICAP)
1.268
A ESTÉTICA NEOBARROCA NA CANÇÃO DE CHICO CÉSAR: UM LEITURA
DE A PROSA IMPÚRPURA DE CAICÓ..........................................................................
Jonathan Lucas Moreira Leite (UFPB-PPGL)
1.280
A AMBIVALÊNCIA DA CONFISSÃO NA ESCRITURA DE MIA COUTO................
José Aldo Ribeiro da Silva (UEPB)
1.287
ENSINO DE LEITURA E PRODUÇÃO DE TEXTOS NAS SÉRIES FINAIS:
PROCESSOS DE RETEXTUALIZAÇÃO COM O GÊNERO MEMÓRIAS...................
José Aurélio da Câmara (UFRN)
1.300
VIOLÊNCIA, REPRESSÃO E FORMA EM AVALOVARA..............................................
José Helber Tavares de Araújo (UFPB)
1.312
O JOGO DAS PALAVRAS NO POEMA “MY SWEET OLD ETCETERA”, DE E. E.
CUMMINGS.......................................................................................................................
José Vilian Mangueira (UERN)
1.325
ANALISANDO O DISCURSO E O HUMOR NAS CHARGES: DO MATERIAL
LINGUÍSTICO À MATERIALIDADE DISCURSIVA.....................................................
José Wellisten Abreu de Souza (PROLING-UFPB)
1.335
EQUÍVOCOS E CONTROVÉRSIAS DO LIVRO DIDÁTICO SOBRE O ENSINO DE
GÊNEROS PARA O ENSINO FUNDAMENTAL............................................................
Josefa Maria dos Santos (UPE)
Maria Alcione Gonçalves da Costa (UPE)
1.348
A TÉCNICA DO MONÓLOGO INTERIOR NA CONSTRUÇÃO DO SER DA
FICÇÃO EM ANGÚSTIA, DE GRACILIANO RAMOS...................................................
Josivaldo Silva Menezes (UPE)
1.361
A IMPORTÂNCIA DAS TIC NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE
INGLÊS...............................................................................................................................
Joyce Rodrigues da Silva Magalhães (IFAL/UFAL-PPGLL/ObservU)
Adriana Nunes de Souza (IFAL)
1.371
O IMAGINÁRIO FICCIONAL EM “A MORTE DE D.J. EM PARIS” DE ROBERTO
DRUMMOND.....................................................................................................................
Juceli da Cruz Carneiro (FAFICA)
1.382
O TRATAMENTO DADO ÀS VARIEDADES LINGUÍSTICAS NOS LIVROS
DIDÁTICOS DE PORTUGUÊS DO ENSINO FUNDAMENTAL (ANOS FINAIS)
APROVADOS PELO PNLD-2014.....................................................................................
Juciano Santos Soares da Silva (UFPE/FACEPE)
1.393
A PERSONAGEM ILUMINATA COMO A MANIFESTAÇÃO DA VOZ FEMININA
NA FICÇÃO DE LUZILÁ GONÇALVES FERREIRA....................................................
Júlio César Martins de Sales (UPE)
Amara Cristina de Barros e Silva Botelho (UPE)
1.406
IMAGENS DE NAÇÃO EM ODETE SEMEDO E CONCEIÇÃO EVARISTO..............
Karina de Almeida Calado (PUC-Minas)
1.417
NOVAS TECNOLOGIAS E FORMAÇÃO DOCENTE....................................................
Karina Kelly Amâncio (IFAL)
1.432
UMA ANÁLISE DA TEORIA ARGUMENTATIVA EM AVALIAÇÕES EM LARGA
ESCALA NO BRASIL – SAEB E PROVA BRASIL........................................................
Karine Alves David (UFRN)
1.438
VIOLÊNCIA E EXCLUSÃO SOCIAL EM MARCELINO FREIRE: UMA ANÁLISE
CRÍTICA.............................................................................................................................
Karla Karine Claudino Tenório (UPE)
1.450
A INTERVENÇÃO DIDÁTICA NO PROCESSO DE PRODUÇÃO TEXTUAL DE
ALUNOS PARTICIPANTES DA OLIMPÍADA DE LÍNGUA PORTUGUESA-OLP....
Karolynne Kaya Maria Amorim Moura (PPGE)
Adna de Almeida Lopes (UFAL)
1.463
CUTUCAR, CURTIR, COMENTAR, COMPARTILHAR: UMA ANÁLISE DOS
RELACIONAMENTOS AFETIVOS NA CONTEMPORANEIDADE NA REDE
SOCIAL FACEBOOK.........................................................................................................
Kassios Cley Costa de Araújo (UnP)
1.476
PRODUÇÃO DE TEXTO NA CONTEMPORANEIDADE –UMA VISÃO SOBRE O
ENSINO DE LINGUAS NA ERA DIGITAL………………….……………………...….
Kathia Maria Barros Leite (UFAL/IFAL)
Rita de Cássia Souto Maior (UFAL)
1.486
GÊNERO TEXTUAL COMO EIXO NORTEADOR DO ENSINO DE LÍNGUA
PORTUGUESA...................................................................................................................
Katiane Silva Santos (IFAL)
1.498
UMA ANÁLISE DE CONCEITOS E CONCEPÇÕES NOS REFERENCIAIS
CURRICULARES PARA O ENSINO MÉDIO DA PARAÍBA: A PRESENÇA DE
BAKHTIN...........................................................................................................................
Keila Gabryelle Leal Aragão (UFPB)
Ayanne Mayelle da Silva Ferreira (UFPB)
1.506
A LINGUAGEM DO PROBLEMA MATEMÁTICO.......................................................
Kelly Jane da Silva Tcham (PIBIC/IFAL)
Nádia Mara da Silveira (IFAL)
1.519
FACEBOOK E ENSINO DE GÊNEROS: UMA EXPERIÊNCIA MIDIÁTICA EM
REDE...................................................................................................................................
Laene Alves Pacheco Vaz (UPE)
Benedito Gomes Bezerra (UPE)
1.529
CRIADAS E MALVADAS: A IDENTIDADE VISUAL DAS LATINO-
AMERICANAS...................................................................................................................
Larissa de Pinho Cavalcanti (UFPE)
1.541
DESCONSTRUÇÃO E CONSTRUÇÃO DA REALIDADE EM “NOIVAS
PROIBIDAS DOS ESCRAVOS SEM ROSTO NA CASA SECRETA DA NOITE DO
TEMÍVEL DESEJO”..........................................................................................................
Laura Fernanda Vicente de Souza (FAFICA)
1.553
GÊNEROS DISCURSIVOS COMO FORMAS DE CONTEXTUALIZAÇÃO NO
ESPAÇO VIRTUAL: O CASO DO MOVIMENTO OCUPE ESTELITA........................
Laura Jorge Nogueira Cavalcanti (UFPE)
1.564
O USO DOS RECURSOS COESIVOS NA PRODUÇÃO DE TEXTOS DO
GÊNERO ARTIGO DE OPINIÃO EM INGLÊS: PROBLEMAS ENFRENTADOS
PELO APRENDIZ..............................................................................................................
Leane Mayara da Silva Santos (UNEAL)
Delma Cristina Lins Cabral de Melo (UNEAL)
1.575
MECANISMOS DE COESÃO REFERENCIAL EM PRODUÇÕES ESCRITAS: UMA
ABORDAGEM NO CONTEXTO ESCOLAR...................................................................
Leonildo Leal Gomes (UFRN)
1.587
GUIA DE LIVROS DIDÁTICOS E MANUAIS DO PROFESSOR: QUAL O
TRATAMENTO DADO ÀS QUESTÕES CONTEXTUAIS?...........................................
Lílian Noemia Torres de Melo Guimarães (UFPE)
1.596
BARROQUISMOS NA POESIA DE DRUMMMOND....................................................
Lindjane Pereira (UFPB)
Líllian Régis (UFPB)
1.608
A EXPERIÊNCIA DE LEITURA E O LEITOR EM FORMAÇÃO NO PRIMEIRO
CICLO DO ENSINO FUNDAMENTAL...........................................................................
Luana Machado (UFAL)
Léa Maria da Silva Borges (UFAL)
1.617
APOCALIPSES DA MODERNIDADE: O FIM DO MUNDO EM ENSAIO SOBRE A
CEGUEIRA E 2666.............................................................................................................
Lucas Antunes Oliveira (UFPE)
1.625
O CORVO DE EDGAR ALLAN POE – UMA ANÁLISE CONTRASTIVA DAS
TRADUÇÕES DE MACHADO DE ASSIS E FERNANDO PESSOA.............................
Lucélia Aparecida de Ávila Carvalho (IFTO)
1.637
UM CRIME DELICADO SOB A ÓTICA PÓS-MODERNA............................................
Luciana Bessa Silva (FALS)
1.648
A ÁFRICA QUE HÁ EM NÓS... IMPRESSÕES E EXPERIÊNCIAS
COMPARTILHADAS NO ENSINO FUNDAMENTAL..................................................
Luciana Maria Carvalho Medeiros dos Santos (UFRN)
Valdenides Cabral de Araújo Dias (UFRN)
1.659
UM ESTUDO SOBRE MARCADORES DISCURSIVOS NO GÊNERO
COMENTÁRIO DE BLOG FUTEBOLÍSTICO PERNAMBUCANO..............................
Lucineudo Machado Irineu (UNILAB)
Walison Paulino de Araújo Costa (UFRPE)
1.671
A REPRESENTAÇÃO DA MULHER EM O ESPELHO DIAMANTINO –
PERIÓDICO DE POLÍTICA, LITERATURA, BELAS ARTES, TEATRO, E MODAS
DEDICADO ÀS SENHORAS BRASILEIRAS.................................................................
1.679
Lucirley Alves de Oliveira (UFPE)
A REPRESENTAÇÃO FEMININA NA ESCRITA DE ANA MIRANDA......................
Luiz Renato de Souza Pinto (IFMT)
1.689
AS LITERATURAS AFRICANAS E AFRO-BRASILEIRAS NA SALA DE AULA –
UM NOVO FAZER PEDAGÓGICO.................................................................................
Lygia Maria Andrade Figueira dos Santos (UFRRJ)
Viviane de Araújo Nascimento (UFRRJ)
1.697
VOLUME III
CONTRIBUIÇÕES DO LIVRO DIDÁTICO DE LÍNGUA PORTUGUESA
PARA O LETRAMENTO LITERÁRIO E A FORMAÇÃO DO LEITOR.......................
Mabel Cristina Azevedo dos Santos (PROFLETRAS – UPE)
Amara Cristina de Barros e Silva Botelho (UPE)
1.707
O GÊNERO BLOG PEDAGÓGICO E O ENSINO DE LÍNGUA MATERNA: POR
UMA PRÁTICA EDUCOMUNICATIVA DE LEITURAS DIALÓGICAS DA MÍDIA
POLÍTICA...........................................................................................................................
Manassés Morais Xavier (UFCG)
Maria de Fátima Almeida (UFPB)
1.718
LITERATURA AFRICANA DE LÍNGUA PORTUGUESA: UMA POSSIBILIDADE
DE DIÁLOGO ENTRE BRASIL E ANGOLA..................................................................
Marcela de Melo Cordeiro Eulálio (POS-LE/ UFCG)
Josilene Pinheiro-Mariz (POS-LE/ UFCG)
1.729
A INFLUÊNCIA DA LÍNGUA MATERNA NA AULA DE LÍNGUA
ESTRANGEIRA: OS MARCADORES CONVERSACIONAIS E A ALTERNÂNCIA
DE LÍNGUA.......................................................................................................................
Marcelo Augusto Mesquita da Costa (UFPE)
Kazue Saito Monteiro de Barros (UFPE)
1.741
O TRABALHO COM O GÊNERO POESIA, O TEXTO E A ORALIDADE NO
ENSINO..............................................................................................................................
Márcia Nadja Oliveira de Medeiros Galvão (UFRN)
1.752
MR. POTTER E A VOICELESS DO SUJEITO COLONIAL: IDENTIDADE, RAÇA E
MARGINALIDADE EM JAMAICA KINCAID...............................................................
Márcia Oliveira (UFPE)
1.762
O ETHOS QUE QUEREMOS E O ETHOS QUE PODEMOS..........................................
Márcia Regina Curado Pereira Mariano (DLI – UFS)
1.772
CULTURA: VARIEDADES DA LÍNGUA NA CONCORDÂNCIA VERBAL E
INTERVENÇÃO PEDAGÓGICA......................................................................................
Márcione Teles de Melo Barros (ULHT)
1.783
CAMINHADO POR TERRAS HABITADAS POR FANTASMAS: A
PEREGRINAÇÃO DO NARRADOR NA OBRA ‘OS ANÉIS DE SATURNO’.............
Marcos Eduardo de Sousa (UFOP)
1.794
OS NOVOS REALISMOS NOVOS EM PRODUÇÕES LITERÁRIAS DE LÍNGUA
INGLESA............................................................................................................................
Marcus V. Matias (UFAL)
1.800
O FEEDBACK COLABORATIVO NA PRODUÇÃO DO GÊNERO E-MAIL: UMA
EXPERIÊNCIA COM ALUNOS DO ENSINO FUNDAMENTAL II..............................
Maria Angela Lima Assunção (UFRN)
1.812
SEQUÊNCIA DIDÁTICA POR GÊNEROS TEXTUAIS: UMA PROPOSTA PARA O
LETRAMENTO..................................................................................................................
Maria Aparecida Barbosa da Silva (UFPE)
Erivaldo José da Silva (UFPE)
1.823
SOLIDÃO E DESAMPARO EM OS CUS DE JUDAS DE ANTÓNIO LOBO
ANTUNES..........................................................................................................................
Maria Aparecida da Costa (UERN)
José Juvêncio Neto de Souza (UERN)
1.833
DO PRETEXTO PLÁSTICO À VERDADE PLÁSTICA: ANÁLISE DIALÓGICA DO
DISCURSO ESTÉTICO – POESIA, PINTURA E OUTROS GÊNEROS – LIÇÕES DE
ESPANHA...........................................................................................................................
Maria Bernardete da Nóbrega (UFPB)
1.841
O GÊNERO TEXTUAL CONTO COMO FERRAMENTA ARTICULADORA NAS
PRÁTICAS DE ESCRITA E REESCRITA EM SALA DE AULA...................................
Maria Claudicélia Curvelo da Silva (UNEAL)
1.851
A BUSCA DA IDENTIDADE CULTURAL NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO
DAS PERSONAGENS EM MÁRIO DE ANDRADE.......................................................
Maria da Conceição José de Sousa (UNEMAT)
1.859
MUNDOS LENDÁRIOS: LENDAS NEGRAS E URBANAS NO CONTEXTO DA
SALA DE AULA................................................................................................................
Maria das Graças da Costa (UFCG)
Ana Rafaela Oliveira e Silva (UFRN)
1.866
EVENTOS DE LETRAMENTO: O USO SOCIAL DA LEITURA E DA ESCRITA
NA SALA DE AULA.........................................................................................................
Maria das Vitórias dos Santos Medeiros (UFRN)
Maria Marlene dos Santos (UFRN)
1.875
MOVIMENTOS DE CONSTRUCÃO DA IDENTIDADE FEMININA NO GÊNERO
PUBLICITÁRIO DA NATURA: PERSPECTIVAS DIÁLOGICAS.................................
Maria do Carmo R. da Silva (UFPB)
Julia Cristina de L. Costa (UFPB-PROLING)
1.887
A ESTETIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA NA LITERATURA BRASILEIRA
CONTEMPORÂNEA: UMA LEITURA DE O MATADOR DE PATRÍCIA MELO........
Maria Fernandes de Andrade Praxedes (UEPB)
1.897
MEMÓRIA E LITERATURA: TRAUMA, ESQUECIMENTO E PÓS-MEMÓRIA NA
REPRESENTAÇÃO DO MASSACRE DOS ÍNDIOS EM A LENDA DOS CEM, DE
GILVAN LEMOS...............................................................................................................
1.909
Mariá Gonçalves de Siqueira (UFPE)
ANÁFORAS ENCAPSULADORAS NA VOZ DO NARRADOR DE MENINO DE
ENGENHO..........................................................................................................................
Maria José Cavalcanti de Andrade (UNICAP)
1.920
MUDANÇAS GRAMATICAIS DOS ITENS “E”, “AÍ”, “AGORA” NA FALA E
CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO..............................................................................
Maria José de Oliveira (IFRN- Caicó/ UFPB-PROLING)
Camilo Rosa da Silva (UFPB-PROLING)
1.929
ANA CRISTINA CESAR: A CONSTRUÇÃO DE UMA DICÇÃO AUTORAL.............
Maria Lúcia Colombo (UNIR/IFRO)
Sônia Maria Gomes Sampaio (UNIR)
1.942
“A ESCRAVA ISAURA” E “ROSAURA, A ENJEITADA”: IMAGENS QUE SE
CONFUNDEM NA OBRA DE BERNARDO GUIMARÃES...........................................
Maria Rosane Alves da Costa (UPE)
1.952
ENCAPSULAMENTO ANAFÓRICO E CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS NO
DISCURSO JORNALÍSTICO............................................................................................
Maria Sirleidy de Lima Cordeiro (UFPE)
1.963
LETRAMENTO DIGITAL: PARA TC DE VZ EM KNDO NA AULA DE
PORTUGUÊS......................................................................................................................
Maria Solange de Lima Silva (FCU/UNIFUTURO)
1.974
MAIS DO QUE “SENTIDO FIGURADO”: O EFEITO METAFÓRICO SEGUNDO
MICHEL PÊCHEUX..........................................................................................................
Mariana da Silva Gouveia (UFCG)
1.981
AQUILINO RIBEIRO E GUIMARÃES ROSA: PROPOSTAS LITERÁRIAS EM
DIÁLOGO...........................................................................................................................
Marília Angélica Braga do Nascimento (IFRN/UFC)
1.988
A VARIAÇÃO FONÉTICA DO [R] DO PORTUGUÊS BRASILEIRO NA FALA
DOS NATIVOS DE LÍNGUA INGLESA..........................................................................
Marília Gomes Teixeira (UFPE)
2.000
UMA PEDAGOGIA PARA UM PAÍS MULTILÍNGUE..................................................
Marinázia Cordeiro Pinto (UFRRJ)
Michele Cristine Silva de Sousa (UFRRJ)
2.010
O TRANSPOSITOR SEM: CRITÉRIOS PARA DETERMINAÇÃO DO VALOR
MODAL EM ORAÇÕES ADVERBIAIS REDUZIDAS...................................................
Marta Anaísa Bezerra Ramos (UEPB)
Camilo Rosa Silva (UFPB)
2.021
UMA BREVE ANÁLISE DISCURSIVA EM MÚSICAS CRISTÃS...............................
Max Silva da Rocha (UNEAL)
José Bezerra da Silva (FACESTA)
2.033
DICIONÁRIO ELETRÔNICO: UMA PROPOSTA PARA O ENSINO-
APRENDIZAGEM DE LÍNGUA.......................................................................................
2.044
Mayara Oliveira Feitosa (UFS)
Elaine Vieira Gois (UFS)
ANGÚSTIAS NO INFÉRTIL: CONSIDERAÇÕES SOBRE “NOS HAN DADO LA
TIERRA” DE JUAN RULFO…………………………………………….…...………….
Mercia Paulino Nicolau da Silva (UFPE)
2.052
ANÁLISE DIALÓGICA DO FILME FAHREINHEIT 451...............................................
Micheline Barros Chaves (UEPB)
2.062
DISCURSOS SOBRE O TRABALHO DOCENTE: O QUE DIZEM OS
PROFESSORES EM FORMAÇÃO INICIAL A RESPEITO DA DOCÊNCIA...............
Mirelle da Silva Monteiro Araujo (UFPB)
2.075
A CRIAÇÃO DE ESTRATÉGIAS PERSUASIVAS NA CONSTRUÇÃO DE AULAS
ARGUMENTATIVAS........................................................................................................
Nádia Mara da Silveira (IFAL)
2.087
O PROCESSO DE SUMARIZAÇÃO EM POSTAGENS DO FACEBOOK: O CASO
DA SÉRIE “JEAN COMENTA”........................................................................................
Nadiana Lima da Silva (UFPE)
Monique Alves Vitorino (UFPE)
2.098
DISCUTINDO A LEITURA A PARTIR DAS INICIATIVAS NA CIDADE DE
SERROLÂNDIA/BA..........................................................................................................
Naylane Araújo Matos (UNEB)
Juliana C. Salvadori (UNEB)
2.114
RETRATOS DA DESCOLONIZAÇÃO: O RETORNO DE DULCE MARIA
CARDOSO..........................................................................................................................
Nefatalin Gonçalves Neto (UFRPE/USP)
2.126
ATRAVÉS DA LITERATURA: LITERATURA SHAKESPEARIANA..........................
Patrícia Gonzaga da Silva (UNEAL)
Rosangela Nunes de Lima (UNEAL)
2.138
LEITURAS DE TEMAS POLÊMICOS NA SALA DE AULA: POR QUE NÃO
FAZER?...............................................................................................................................
Patrícia Lira Guedes de Oliveira (UFPB)
2.146
A LÍNGUA EM INTERAÇÃO: UM ESTUDO DE CADEIA DE
GÊNEROS EM CONTEXTO DE CONCURSO PÚBLICO..............................................
Patrícia Silva Rosas de Araújo (PROLING/UFPB)
Manassés Morais Xavier (UFCG)
2.158
A MOBILIZAÇÃO DE LINKS EM MATERIAL DE FORMAÇÃO CONTINUADA
DE PROFESSOR DO ENSINO BÁSICO..........................................................................
Patricio de Albuquerque Vieira (UEPB)
2.168
LETRAMENTO CRÍTICO E O ENSINO DE INGLÊS: REFLEXOS DENTRO E
FORA DA SALA DE AULA..............................................................................................
Paula Tenório dos Santos (IFAL)
2.179
A MECÂNICA, A POTÊNCIA E O ATO ENFÁTICO OU A PRODUÇÃO TEXTUAL
BARRETIANA...................................................................................................................
Paulo Alves (UFPB)
2.186
OLHARES SOBRE O FEMININO: A CONSTRUÇÃO DE UM DOCUMENTÁRIO
POR ALUNOS DO ENSINO MÉDIO DENTRO DE UMA EXPERIÊNCIA DE
ESTÁGIO SUPERVISIONADO........................................................................................
Pedro Felipe de Lima Henrique (UFPB)
Frederico de Lima Silva (UFPB)
2.198
ANÁLISE CRÍTICA DO CONTO “A CHINELA TURCA” SOB O VIÉS DA
ESTÉTICA DA RECEPÇÃO..............................................................................................
Pedro Santos da Silva (UFS)
2.210
POLÍTICAS LINGUÍSTICAS EDUCACIONAIS NO ESTADO DE PERNAMBUCO:
INTERPRETAÇÕES DOS PROFESSORES ACERCA DOS PARÂMETROS DO
ESTADO.............................................................................................................................
Rafaela Cristina Oliveira de Andrade (UFPB)
Terezinha de Jesus Gomes do Nascimento (UFPB)
2.216
“A PROSA DOS MEUS VERSOS”: SENTIDOS DO REAL NA POESIA LÍRICA
MODERNA.........................................................................................................................
Raquel Brandão do Sêrro (Universidade de Coimbra)
2.229
A MODALIDADE COMO ESTRATÉGIA DISCURSIVA: DO ENFOQUE
SISTÊMICO-FUNCIONAL AO DA ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA....................
Rebeca Sales Pereira (UFC)
2.240
A ABORDAGEM DOS GÊNEROS DISCURSIVOS EM SALA DE AULA...................
Renata Xavier Moreira (UFPB)
2.252
CARTÃO-POSTAL PUBLICITÁRIO: MARCAS TEXTUAIS E CONSIDERAÇÕES
SOBRE O GÊNERO...........................................................................................................
Renato Lira Pimentel (UFPE)
2.259
PERGUNTAS DO ALUNO AO PROFESSOR: FERRAMENTAS DE
APRENDIZAGEM E INTERAÇÃO..................................................................................
Renato Suellisom da Silva Medeiros (UFRN)
Marise Adriana Mamede Galvão (UFRN/DLC)
2.266
A NOÇÃO DE EXISTÊNCIA EM LA VIE EN CLOSE, DE PAULO LEMINSKI...........
Rodrigo Michell dos Santos Araujo (UFS)
2.277
CULTURA DIGITAL E ENSINO......................................................................................
Rosana Cardoso Gondim (UNEB)
2.286
REPRESENTAÇÃO DAS MINORIAS NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA:
VIOLÊNCIA E (DES) ENCONTROS URBANOS............................................................
Rosana Meira Lima de Souza (UFPE)
2.297
TODA NUDEZ (NÃO MAIS) SERÁ CASTIGADA: O DESNUDAMENTO DO
FEMININO EM NELSON RODRIGUES..........................................................................
Rosana Trevisol Seibt (IFAL)
2.308
A PARTICULARIDADE ESTÉTICA NA OBRA UMA APRENDIZAGEM OU O
LIVRO DOS PRAZERES (1969), DE CLARICE LISPECTOR..........................................
Rosilene Pimentel Santos Rangel (UFAL/ESTÁCIO FASE)
2.320
PRÁTICAS DE ESCRITA NO LETRAMENTO ESCOLAR: OS TEXTOS DA
DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA EM LIVROS DIDÁTICOS DE PORTUGUÊS DO
ENSINO MÉDIO................................................................................................................
Rosivaldo Gomes (UNIFAP/UNICAMP)
Eloiny Ptra Brasil Lazamé (UNIFAP)
2.328
A MULHER, O TRABALHO E AS NOVAS CONFIGURAÇÕES FAMILIARES:
ASPECTOS TEÓRICOS MATERIALISTAS E DISCURSIVOS NO DISCURSO
MIDIÁTICO........................................................................................................................
Samuel Barbosa Silva (UFAL)
2.344
ESTUDO ARGUMENTAL DO VERBO ARRUMAR........................................................
Sandro Luis de Sousa (IFRN/UFPB)
2.354
A ESCRITA DE ANA CRISTINA CESAR: UMA POÉTICA NEOBARROCA.............
Sara de Miranda Marcos (UPE)
2.366
DEIXA IR MEU POVO: GÊNERO E CULTURA............................................................
Sarah da Silva Barretto (UPE)
Amara Cristina de Barros e Silva Botelho (UPE)
2.379
ENSINO DE LÍNGUA MATERNA: A IMPORTÂNCIA DE FALAR, OUVIR, LER E
ESCREVER TEXTOS EM LÍNGUA PORTUGUESA NAS AULAS DE
PORTUGUÊS......................................................................................................................
Shania Jéssika Cavalcante Rodrigues (IFAL)
2.388
FRICÇÕES DAS VOZES LABIRÍNTICAS EM A DANÇA DOS CABELOS, DE
CARLOS HERCULANO LOPES......................................................................................
Shantynett Souza F. M. Alves (UNIMONTES)
2.400
O INTERDISCURSO COMO RELAÇÃO CONSTITUTIVA ENTRE FDS: O CASO
BOLSONARO E OS DIREITOS HUMANOS...................................................................
Sheila Alves de Oliveira (UFPE)
2.407
TEMPO, TRANSCENDÊNCIA, ENVELHECIMENTO: UMA LEITURA DA
CRÔNICA “NOS TRILHOS DO TEMPO” DE CAIO FERNANDO ABREU.................
Sidileide Batalha do Rêgo (UERN)
Antonia Marly Moura da Silva (UERN)
2.418
A RELAÇÃO SENSORIAL ENTRE O CORPO DO LEITOR E O TEXTO
LITERÁRIO: UMA ABORDAGEM REFLEXIVA ACERCA DO LETRAMENTO
LITERÁRIO NO CONTEXTO UNIVERSITÁRIO–
...........................................................
Silvio Nunes da Silva Júnior (UNEAL)
2.426
ESCRITA MULTIMODAL: UMA PROPOSTA DE MULTILETRAMENTO NO
ENSINO FUNDAMENTAL QUILOMBOLA...................................................................
Soraya Conceição Branco (URCA/UDCS)
Aluizio Lendl-Bezerra (URCA/ UDCS)
2.434
(RE) LENDO O ARQUIVO – A PROPÓSITO DAS BASES DOCUMENTAIS DO
DISCURSO “OFICIAL”.....................................................................................................
Sóstenes Ericson Vicente da Silva (UFAL)
Maria Virgínia Borges Amaral (UFAL)
2.442
TECENDO OS FIOS DA MEMÓRIA: PALAVRA E MEMÓRIA NOS ROMANCES
DE MIA COUTO................................................................................................................
Suelany C. Ribeiro Mascena(UFPE)
2.454
MÍNIMO, MÚLTIPLO E INCOMUM: O CONTO DE VERONICA STIGGER.............
Susana Souto Silva (UFAL)
2.464
ALFABETIZAÇÃO E/OU LETRAMENTO: COMO FUNCIONA A
APRENDIZAGEM DA LÍNGUA ESCRITA.....................................................................
Tamiris de Almeida Silva (IFAL)
Adriana Nunes de Souza (IFAL)
2.472
MODELO PARA DESARMAR: A ESCRITURA DE WALY SALOMÃO.....................
Tazio Zambi de Albuquerque (IFPB/USP)
2.481
SEMIOSES NÃO VERBAIS COMO TRAÇOS CONTEXTUALIZADORES DE
MICROCONTEXTO EM SALA DE AULA......................................................................
Thaís Ludmila da Silva Ranieri (UAST/UFRPE)
2.489
O RESSUSCITÓRIO DE ODORICO-PARAGUAÇU E SUAS OUTRAS GENTES,
UMA ESCRITA PALIMPSESTICA..................................................................................
Thais Rabelo de Souza (UFPE/CAPES)
2.501
UM OLHAR ATENTO SOBRE O COTIDIANO FRAGMENTADO E O FAZER
LITERÁRIO CONTEMPORÂNEO: MARIO LEVRERO, DO DISCURSO VACÍO A
NOVELA LUMINOSA.........................................................................................................
Thays Albuquerque (UEPB)
2.508
O PROCESSO DE FORMAÇÃO DO INDIVÍDUO ATRAVÉS DO RELATO DE
FUNDO BIOGRÁFICO: UMA LEITURA DE AVÓDEZANOVE E O SEGREDO DO
SOVIÉTICO, DE ONDJAKI..............................................................................................
Thiago da Camara Figueredo (IFPE/UFPE)
2.516
LETRAMENTO BUROCRÁTICO: PRÁTICAS DISCURSIVAS E GÊNEROS
TEXTUAIS NA ESFERA ADMINISTRATIVA ESTATAL............................................
Valfrido da Silva Nunes (UFAL)
2.525
A SUBJETIVIDADE DO NARRADOR ORAL NA PÓS-MODERNIDADE..................
Vanessa de Santana Vila Flor (UNEB)
2.536
LUANDA: CENÁRIO AFETIVO DA DISTOPIA PÓS-COLONIAL: UMA LEITURA
DAS OBRAS DE AGUALUSA E ONDJAKI....................................................................
Vanessa Riambau Pinheiro (UFPB)
2.549
SMARTPHONE, GÊNEROS DIGITAIS E ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA:
INTERAÇÕES MIDIÁTICAS NO APLICATIVO WHATSAPP.....................................
Vera Lúcia de Siqueira Lira (UPE)
2.559
SOB A TRIDIMENSIONALIDADE DA ANÁLISE DO DISCURSO CRÍTICA, A
LEITURA DE MUNDO COM BASE NOS GÊNEROS JORNALÍSTICOS....................
2.570
Vera Lúcia Santos Alves (FASJ)
A ESCRITA PROCESSUAL E O FEEDBACK COLABORATIVO ENTRE PARES
NAS AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA EM TURMA DO 6º ANO DO ENSINO
FUNDAMENTAL...............................................................................................................
Vilma Abdias de Lima Bezerra (UFRN)
2.581
SER EMPREGADO DOMÉSTICO NO BRASIL É SER ESCRAVO: UMA
METÁFORA SISTEMÁTICA DA SEGUNDA ABOLIÇÃO...........................................
Vinícius Nicéas do Nascimento (UFPE)
2.592
LITERATURA ERÓTICA: OU ISTO É ERÓTICO OU AQUILO É
PORNOGRÁFICO EM HILDA HILST.............................................................................
Wanderly Alves Ferreira (UPE)
José Laécio de Oliveira (UPE)
Jairo Nogueira Luna (UPE)
2.601
LÉXICO REGIONAL/POPULAR DE ZÉ VICENTE DA PARAÍBA: GLOSSÁRIO
DA CANÇÃO “DESTINO DE VAQUEIRO”....................................................................
Wellington Lopes dos Santos (UFPB)
2.612
CAMINHAR PARA DENTRO DE SI MESMO: A METALITERATURA EM
CONTOS DE MIA COUTO...............................................................................................
William Duarte Ferreira (UFRPE/UAG)
Nilson Pereira de Carvalho (UFRPE/UAG)
2.623
MOTIVAÇÕES SOCIOFONÉTICAS DO FONEMA LATERAL E FRICATIVO
PALATAL: CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO-APRENDIZAGEM DE ELE..........
Zaine Guedes da Costa (UFPE)
Rafael Alves de Oliveira (UFPE)
2.634
O VERBETE DE DICIONÁRIO COMO GÊNERO DISCURSIVO: UMA ANÁLISE
DISCURSIVA.....................................................................................................................
Zilda Maria Dutra Rocha (UERN)
Antônio Luciano Pontes (UERN)
2.645
Nas fronteiras da linguagem ǀ 804
O NEOLOGISMO EM CANÇÕES DE GILBERTO GIL [Voltar para Sumário]
Fabiana Vieira Barbosa (UFRPE/UAST)1;
Adeilson Pinheiro Sedrins (UFRPE/UAST)2.
1. Introdução
Antes de nos aprofundarmos sobre o tema o qual nos propusemos trabalhar, convém
que façamos uma breve reflexão acerca da evolução da língua, e para isso faz-se necessário
que admitamos a característica dinâmica de evolução das línguas, como esclarece Martelotta:
A mudança é um fator inerente às línguas naturais, que se desenvolveram para veicular a
comunicação entre os seres humanos. [...] Como essas concepções se estabelecem
culturalmente, com os humanos interagindo entre si e cristalizando formas de significar a
realidade, é na própria interação que essas concepções se alteram, motivando as mudanças
estruturais que as línguas sofrem com o passar do tempo. (MARTELOTTA, 2011, p. 122).
É fato que as línguas mudam. Essa mudança, é claro, não acontece da noite para o
dia, são necessárias décadas, e muitas vezes séculos para que elas sejam percebidas numa
dada língua. Assumindo uma postura linguística embasados na teoria sociofuncionalista, que
admite o caráter social e interativo da linguagem, poderíamos afirmar que no processo de
mudança linguística existem vários fatores envolvidos; tais como, questões históricas, sociais,
políticas, entre outras.
O ser humano, único da espécie animal com a capacidade cognitiva do uso de um
sistema linguístico, o que o diferencia dos demais, sente a necessidade de nomear e renomear
objetos, seres etc., daí um dos motivos da mudança linguística.
A mudança linguística acontece também através do fenômeno chamado neologismo
que, de acordo com Alves (2007), se subdivide em neologismo fonológico, neologismo
sintático, neologismo semântico e neologismo por empréstimo. Aqui nos deteremos ao
neologismo sintático que trata da criação lexical. A partir da premissa de que as palavras
sofrem alterações na sua forma escrita. Para isso, nosso corpus linguístico será formado a
1 Graduanda em Licenciatura Plena em Letras - Universidade Federal Rural de Pernambuco - Unidade
Acadêmica de Serra Talhada (UFRPE/UAST). 2 Professor Adjunto 3 de Língua Portuguesa da Universidade Federal Rural de Pernambuco - Unidade
Acadêmica de Serra Talhada.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 805
partir de palavras presentes em canções do cantor e compositor brasileiro Gilberto Gil. Após a
seleção de algumas palavras buscaremos classificá-las segundo as classes gramaticais
estabelecidas na gramática normativa e identificando o tipo de formação neológica.
O trabalho está organizado em cinco momentos: introdução, já apresentada;
desenvolvimento, com reflexões teóricas sobre o fenômeno, apresentação e análise dos dados;
conclusão, com algumas considerações finais e referências.
2. Algumas reflexões teóricas sobre o fenômeno
Apresentamos a seguir algumas reflexões teóricas acerca do fenômeno da neologia,
segundo a concepção de alguns estudiosos.
Para Castilho,
Na lexicalização por neologia, criamos uma nova palavra, não herdada da língua-
fonte, porém organizada de acordo com as regras morfológicas da língua-alvo. É o
caso de coisar, um verbo-omnibus, calcado num substantivo igualmente amplo,
coisa. (CASTILHO, 2010, p. 113).
Já Bechara destaca que
Os neologismos [...] penetram na língua por diversos caminhos. O primeiro deles é
mediante a utilização da prata da casa, isto é, dos elementos (palavras, prefixos,
sufixos) já existentes no idioma, quer no significado usual, quer por mudança do
significado, o que já é um modo de revitalizar o léxico da língua. [...] Outra fonte de
revitalização lexical são os empréstimos e calcos linguísticos, isto é, palavras e
elementos gramaticais (prefixos, preposições, ordem de palavras) tomados
(empréstimos) ou traduzidos (calcos linguísticos) ou de outra comunidade linguística
dentro da mesma língua histórica (regionalismos, nomenclaturas técnicas e gírias) ou
de outras línguas estrangeiras – inclusive grego e latim –, que são incorporados ao
léxico da língua comum e exemplar. (BECHARA, 2006, p. 351).
Em Castilho, “língua-fonte” refere-se à língua de origem da palavra, e não ao idioma
que o vocábulo faz parte atualmente, sendo assim, a maioria dos neologismos seriam criados a
partir de palavras em uso. É possível entender que em ambas as gramáticas o fenômeno é
tratado de forma muito parecida.
Voltando-se para a origem da palavra neologismo sua função se explicaria através de
sua estrutura, de acordo com publicação no site da Revista Nova Escola, “‘neo’, prefixo grego
que significa ‘novo’, une-se a ‘logo’, do grego ‘logos’, que exprime a ideia de palavra, e o
‘ismo’, sufixo também grego (ismos), que forma substantivos.”.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 806
Desde sempre todas as línguas vivas passaram e passam por transformações, assim
muitas palavras usadas em um determinado momento histórico acabam caindo em desuso e
desaparecendo do sistema linguístico. Mas não para por aí, a capacidade dinâmica das línguas
e o uso interativo de seus falantes, fazem com que algumas palavras já existentes ganhem
novos sentidos – passando por um processo chamado gramaticalização, que não abordaremos
aqui – e outras surgem através da junção de vocábulos pré-existentes ou do contato com
outras línguas. Embora existam críticas com relação à criação de neologismos, é inegável que
eles desempenham um papel de fundamental importância numa língua, uma vez que a
ampliação do léxico duma língua acontece através desse fenômeno. Referindo-se a isso
poderíamos retomar ao período Antiguidade Clássica onde Horácio na “Arte Poética” indaga:
“Por que haveria eu de ser repreendido por acrescentar algumas palavras ao vocabulário, se a
linguagem de Catão e de Ênio enriqueceu o nosso idioma pátrio com a introdução de novos
termos?”. Nesse contexto Horácio referia-se a criação de novas palavras, o que hoje
entendemos por neologismo. Na área da literatura contemporânea tem como destaque na
criação neológica o escritor João Guimarães Rosa, que além da sua genialidade na escrita
literária, era conhecido pela criatividade linguística com a capacidade de sempre inventar
novas palavras para nomear as coisas que compunham seu universo literário.
A formação de palavras por neologismo está dividido entre derivação e composição3.
Bechara (2006, p. 351), com um olhar sobre o processo de criação de novos vocábulos,
esclarece que “De todos [...] procedimentos de revitalização do léxico, merecem atenção
especial para a gramática a composição e a derivação, tendo em vista a regularidade e
sistematicidade com que operam na criação de novas palavras.”
Com base em Castilho (2010), para melhor compreendermos o fenômeno montamos,
a seguir, um diagrama contendo as categorias linguísticas abordadas:
3 É importante ressaltar que derivação e composição não são os únicos processos de formação de palavras, ainda
existem oniônimos, os acrônimos e as amálgamas, porém eles não têm tanto uso quanto derivação e composição.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 807
Figura 1: Diagrama de categorias linguísticas, com destaque em cinza para as categorias
trabalhadas.
A composição dá-se pela junção de dois vocábulos formais, independentes, esse
processo pode ocorrer por: aglutinação, quando há perda de material fonológico e
justaposição, quando conserva integralmente todas as partes, que em alguns casos vêm apenas
separada por hífen. Já a derivação pode ser caracterizada em sete classes: regressiva,
abreviação, sufixação, prefixação, parassintética, prefixação e sufixação e imprópria.
Resumindo, a derivação sempre ocorrerá pela união de base com um afixo e na maioria dos
casos ocorrerá mudança de classe gramatical. (cf. Basilio, 2005).
2.1. Neologismo musical
Há vários motivos para a criação de novas palavras na música, até mesmo questões
políticas, sociais, como a censura que vigorou na época da ditadura militar no Brasil onde
vários artistas encontraram na música subterfúgio para expressar sua arte e sua opinião
perante o que estava acontecendo na sociedade e tratando nelas os assuntos que não eram
permitidos pelo governo militar (cf. Revista Língua Portuguesa, p. 22-25).
Gilberto Gil, compositor e intérprete baiano, iniciou sua carreira na época da
ditadura militar, o que influenciou na sua obra e que consolidou seu destaque na cultura
brasileira, já que suas letras mostram que o compositor não recuou e continuou a produzir
suas canções altamente politizadas, revolucionárias e engajadas que iam contra o governo
militar, razão pela qual foi perseguido, mas isso não o intimidou, e mesmo assim ele
continuou a expor o que estava acontecendo na sociedade vigente.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 808
3. Apresentação e análise do corpus
O corpus do trabalho foi submetido a uma minuciosa pesquisa de verbetes presentes ou
não nas seguintes obras de referência:
Dicionário eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa que apresenta 228 mil verbetes e
308 mil acepções, e está disponível em: http://200.241.192.6/cgi-bin/houaissnetb.dll/frame; e
o
Novo Aurélio da Língua Portuguesa (2004), com sua publicação na 3ª edição,
revisada, com um total de 435 mil verbetes, definições, locuções e acepções.
Os dicionários apresentados acima foram escolhidos pela sua contemporaneidade no
mercado editorial brasileiro e credibilidade neles pregados pela comunidade acadêmica.
A nossa análise levará em consideração a interpretação dos dez casos de neologismos
encontrados em nove canções4 do cantor, compositor e intérprete Gilberto Gil. Devemos
considerar também que a maioria delas foram compostas durante o período da ditadura militar
(1964-1985) e do movimento Tropicalista (1967 – início), do qual Gil fez parte, movimento
este que tinha como principal objetivo utilizar a música como “arma” de combate político à
ditadura militar.
Figura 2: Tabela contendo a seleção e pré-análise do corpus linguístico5.
N
º
Casos
de
neolo
gismos
Formações por
composição
Formações por
derivação
Cl
asses atuais
1
.
Gang
amorada
Ganga (Subst.
próprio) + morada ([nesse caso,
Gir. para namorada] Subst.) –
aglutinação.
- Su
bstantivo.
2
.
Mini
mistério -
Mini (Pref. de
pequeno) + mistério (Subst.)
– prefixação.
Su
bstantivo.
3
.
Mini
mina -
Mini (Pref. de
pequeno) + mina ([Gir. para
menina] subst.) –
prefixação.
A
djetivo.
4
.
Viole
ntidão
Violenta (Adj.) +
lentidão (Subst. derivado) - -
Su
bstantivo.
4 Verificar, nos anexos de 1 a 9, as letras, integrais, das canções. 5 Verificar, no anexo 10, tabela de abreviações, retirada de Ferreira (2004), usadas na classificação das palavras
da figura 2.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 809
aglutinação.
5
.
Parab
olicamará
Parabólica (Subst.) +
camará[+da] (Adj.) –
aglutinação.
- A
djetivo.
6
.
Vira
mundo
Vira (V.) + mundo
(Subst.) – justaposição. -
A
djetivo.
7
.
Marm
undo
Mar (Subst.) + mundo
(Subst.) – justaposição. -
Su
bstantivo.
8
.
Demo
grafizada -
Demografi[+a]
(Subst.) + zada (Suf.) –
sufixação.
A
djetivo.
9
.
Gaivo
taria -
Gaivota (Subst.) +
ria (Suf.) – sufixação.
V
erbo.
1
0.
Zoiló
gico
Zoo (Abrev. de
zoológico) + ilógico (Adj.) –
aglutinação.
- A
djetivo.
3.1 Neologismo 1:
Namba, a gangamorada
(Gilberto Gil)
Namba deita pa Ganga
Olha nos olhos
[...]
Namorada de Ganga
Nambamorada
Nambamorada de Ganga
Nambamorada
No contexto musical de Gilberto Gil a palavra “gangamorada”, é composta pelo
vocábulo Ganga, que aparece como nome de pessoa, substantivo próprio, e morada que
aparece como uma espécie de gíria para namorada, substantivo comum. Com a junção desses
substantivos surge o neologismo: gangamorada. Sintetizando, Namba e Ganga seriam
namorados, a junção entre ganga+morada (no título) seria entendida como “Namba, a
namorada de Ganga”.
3.2. Neologismos 2 e 3:
Minimistério
(Gilberto Gil)
[...]
Ande por onde andam
Aquelas minas
Aquela velha gama
E aquela nova
Aquela nova minimina, flor do ministério
Quero dizer, do mistério
(Que mistério tem Clarice?)
[...]
Procure conhecer melhor
Seu minimistério interior
Procure conhecer melhor
Nas fronteiras da linguagem ǀ 810
O cemitério do Caju
Procure conhecer melhor
[...]
A palavra “minimistério” é composta pelo mini, prefixo de pequeno, e mistério,
substantivo comum. Aqui poderíamos supor que se trata do mistério envolvido no
desaparecimento de várias pessoas durante a ditadura, nesse caso, em especial, o
desaparecimento da “minimina, flor do ministério”, isto é, da pequena menina que poderia
trabalhar em uma repartição pública (ministério). Ao usar “minimistério” o autor nos faz
inferir que aos olhos dos ditadores o desaparecimento da garota era um pequeno mistério, sem
importância, mas na verdade para seus amigos e família se tratava de um grande mistério. No
caso de “minimina” a palavra é composta por mini prefixo de pequena e mina gíria que vem
do vocábulo menina (substantivo comum).
3.3. Neologismo 4:
Violentidão
(Gilberto Gil)
A do ladrão é a violência bruta
Não é a mesma da televisão
Televisão é violenta
Lenta, lenta
Violentidão
[...]
E com tanta ciência
Quem nem parece ser tão violenta
A violência que sofre o freguês
No caso de “violentidão” temos uma formação por dois vocábulos formais:
violência, adjetivo, e lentidão, substantivo derivado. Com a junção das duas palavras temos a
perda de alguns elementos fonéticos transformando duas palavras distintas em apenas uma.
Certamente o autor quis referir-se à “violência” transmitida, indiretamente, ao telespectador
de forma lenta, gradual, através da televisão. É importante destacar que nesse caso não
interpretemos como sendo uma violência física, mas sim algo parecido com uma violência
ideológica. As pessoas podem ser influenciadas por programas de televisão.
3.4. Neologismo 5:
Parabolicamará
(Gilberto Gil)
Antes mundo era pequeno
Porque Terra era grande
Hoje mundo é muito grande
Porque Terra é pequena
Do tamanho da antena parabolicamará
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 811
Ê, volta do mundo, camará
Ê, ê, mundo dá volta, camará
[...]
“Parabolicamará” vem de parabólica, substantivo comum, e camará(+da), adjetivo,
ou seja, uma “parabólica camarada” (amiga). Parabólica, na música, é um referente ao avanço
da tecnologia e informatização da época. Com essa tecnologia a terra passaria a ser pequena
como em um dos versos da canção: “Porque Terra é pequena”, isto é, a globalização seria
trazida aos lares através do sinal analógico.
3.5. Neologismo 6:
Viramundo
(Gilberto Gil e Capinan)
[...]
Gritando para assustar
A coragem da inimiga
Pulando pra não ser preso
Pelas cadeias da intriga
[...]
Sou viramundo virado
Pelo mundo do sertão
Mas inda viro este mundo
Em festa, trabalho e pão
Virado será o mundo
E viramundo verão
[...]
A palavra “viramundo” é formada por vira, do verbo virar, e mundo, substantivo
comum. Nesse caso, “viramundo” é referente à vontade do eu poético em transformar a
situação em que a sociedade vivia no momento da ditadura. No trecho “Mas inda viro este
mundo/ Em festa, trabalho e pão”, fica clara três das necessidades básicas ao ser humano:
festa (lazer), trabalho e pão (alimento), direitos estes que para muitos eram privados durante o
regime militar.
5.6. Neologismo 7:
Marmundo
(Gilberto Gil)
O mar do mundo sujou
Manda o mundo se limpar
O mar do mundo secou
Manda o mundo se molhar
O mar do mundo entornou
Manda o mundo se fechar
O mar do mundo acabou
Manda o mundo se acabar
O mar do mundo ficou
Um mar imundo demais
Nas fronteiras da linguagem ǀ 812
Se a barra mundo pesou
O mundo sabe o que faz
[...]
Em “Marmundo” temos uma palavra formada pela união de dois substantivos
comuns mar e mundo. Nesse contexto, mar está relacionado a pessoas, ou uma grande
quantidade de pessoas, como na expressão popular “um mar de gente” e mundo o lugar, a
sociedade, onde elas habitam.
3.7. Neologismo 8:
Banda Larga Cordel
(Gilberto Gil e Capinan)
[...]
Rio Grande do Sul, Germania
Africano-ameríndio Maranhão
Banda larga mais demografizada
Ou então não, não adianta nada
Os problemas não terão solução
Piraí, Piraí, Piraí
Piraí bandalargou-se um pouquinho
Piraí infoviabilizou
Os ares do município inteirinho
Com certeza a medida provocou
Um certo vento de redemoinho
[...]
A palavra “demografizada”, formada por demografi(+a), substantivo comum, e -zada,
sufixo, certamente, na canção, aparece com o sentido de levar a tecnologia da internet banda larga à
população (demografia), isso fica evidente nos versos “Piraí bandalargou-se um pouquinho/ Piraí
infoviabilizou”.
3.8. Neologismo 9:
A gaivota
(Gilberto Gil)
[...]
Gaivota, te amo e gaivotaria sempre em ti
Gaivotar seria poder te eleger para mim
Eu te quero, e se fosse o caso, quereria mais ainda
Ser, eu mesmo, gaivota sobre mim
Sobrevoar meus temores, meus amores
E alcançar o alto, alto, o mais alto dos teus sonhos
Dos teus sonhos de subir
[...]
A formação da palavra “gaivotaria” acontece pela junção de gaivota,
substantivo comum, e -ria sufixo. Esse neologismo surge na canção como um verbo e pelo
contexto pode tratar-se de um caso em que o eu poético expressa o amor pela sua “Gaivota”, e
certamente a concretização desse amor.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 813
3.9. Neologismo 10:
Zoilógico
(Gilberto Gil e Capinan)
Zoológico
Ilógico
Logo, sou
Zoológico
Ilógico
Logo, sou
O menino que abriu a porta das feras
No dia em que todas as famílias visitavam o Zoo
O Zoo, o Zoo
O Zoo, o Zoo
O Zoo
[...]
E por final, “zoilógico” é formada por zoo – abreviação de zoológico, que nesse caso
perde a última vogal pela aglutinação das palavras – e ilógico, adjetivo. Zoilógico estaria aqui
representando um “zoológico ilógico”, ou seja, um zoológico sem lógica, no sentido de que
pessoas estariam presas por grades como animais irracionais.
Sobre a análise das canções, é imprescindível mencionar que por se tratar de, em sua
maioria, músicas com letras muito extensas buscamos interpretar apenas o fragmento que o
neologismo aparece. É possível analisar de forma bem mais ampla, complexa e
contextualizada todas as letras.
4. Considerações finais
A música popular brasileira, na sua maioria, têm letras compostas de uma riqueza
semântico-lexical. A composição dessas letras é uma forma de “brincar” com todas as
possibilidades que a língua oferece e entre elas o neologismo que nos concede a possibilidade
de criar, reinventar a língua. Esse neologismo musical pode nos fornecer informações sobre
uma sociedade em determinado momento histórico-social, como é o caso do neologismo nas
canções de Gil, que nos faz conhecedores de seu engajamento político-social contra a
opressão causada pelo regime militar.
A lexicalização por neologismo, apresentada nas canções mencionadas anteriormente,
nos mostra a capacidade de Gil em juntar palavras que, se vistas separadamente, não têm
nenhuma relação lexical ou semântica, mas que em sua criação poética, contextualizada,
ganham forma e sentido. É isso que enfatiza Antunes:
[...]se cada texto, em alguma medida, cria sua própria coerência, no texto literário,
essa possibilidade é levada ao cúmulo. Nele, as unidades linguísticas ganham
autonomia de uso e de combinação; perdem [...] a subserviência a padrões impostos
Nas fronteiras da linguagem ǀ 814
pelas convenções do sistema. São peças de um jogo (ou de jogos), cujas regras
particulares se criam no próprio ato da enunciação, exatamente pela quebra do que
era regularmente previsível. (ANTUNES, 2012, p. 125).
Com este trabalho percebemos a complexidade do fenômeno de formação de palavras
e que a língua como sistema dinâmico que muda, renova-se para atender as necessidades de
seus falantes e essa necessidade está presente também em canções, tendo como princípio que
a música é uma forma de expressão de um indivíduo.
Num corpus com dez formações neológicas encontradas em nove músicas de Gilberto
Gil, observou-se dois vocábulos formados pelo processo de derivação prefixal, dois por
derivação sufixal e seis por composição, sendo quatro por aglutinação, onde há perda de
material fonológico, e duas por justaposição. Notamos também que o músico sempre coloca
os neologismos por aglutinação nos títulos de suas canções dando ênfase a nova palavra.
Vale ressaltar que o resultado constatado nesta pesquisa, assim como em qualquer
trabalho, não pode ser tomado como verdade absoluta, no entanto, serve como base para uma
análise posterior com uma avaliação mais abrangente de outras músicas de Gilberto Gil.
5. Referências
ALVES, I. M. Neologismos: Criação lexical. 3. ed. São Paulo: Ática, 2007.
ANTUNES, I. Território das palavras: O estudo do léxico em sala de aula. São Paulo:
Parábola, 2012. p. 21-22.
BASÍLIO, M. Teoria lexical. 7. ed. São Paulo: Ática, 2005.
BECHARA, E. Moderna gramática portuguesa. 37. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2006. p.
351.
BRYAN, G. Outras palavras: sucesso recente de canções como “Shimbalaiê” mostra o poder
da MPB de criar palavras que não existem. Revista Língua Portuguesa. ano 4, n. 55. São
Paulo: Segmento, 2010. p. 22-15.
CASTILHO, A. T. Nova gramática do português brasileiro. 1. ed. São Paulo: Contexto,
2010. p.113-114.
COSTA, A. C.; OLIVEIRA FILHO, C. G.; MAIA, F. L. Neologismo na música popular
brasileira: com defeito de fabricação, Tom Zé. Disponível em:
<http://www.revistaaopedaletra.net/>. Acesso em: 31 mar. 13.
CUNHA, C.; CINTRA, L. F. L. Nova gramática do português contemporâneo. 4. ed. Rio de
Janeiro: Lexikon, 2007. p. 97-131.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 815
FERRAZ, A. P. Neologismos no português brasileiro contemporâneo:
aplicação ao ensino de português para estrangeiros. Disponível em: <http://iberystyka-
uw.home.pl/>. Acesso em: 31 mar. 13.
FERREIRA, A. B. de H. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 3. ed. Curitiba:
Positivo, 2004.
GIL, G. Músicas. Disponível em: <http://www.gilbertogil.com.br/>. Acesso em: 31 mar. 13.
HORÁCIO. “Arte poética”. In: As poéticas clássicas, São Paulo: Cultrix, 1990. Trad. Direta
do latim de Jaime Bruna (p. 60-65).
MARTELOTA, M. E. Mudança linguística: uma abordagem baseada no uso. vol. 1. São
Paulo: Cortez, 2011. p. 91-123.
NUNES, R. Qual a diferença entre neologismo e estrangeirismo? Revista Nova Escola.
Disponível em <http://revistaescola.abril.com.br/>. Acesso em: 06 abr. 13.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 816
OS SENTIDOS DO DISCURSO DO ENSINO PROFISSIONAL
COMO ACESSO AO EMPREGO NO BRASIL [Voltar para Sumário]
Fabiano Duarte Machado (PPGLL-UFAL)
Este trabalho apresenta resultados iniciais do desenvolvimento da nossa pesquisa de
doutoramento que visa abordar questões relativas ao desvelamento dos sentidos dos discursos
produzidos pelo Estado brasileiro, em especial do atual governo, no tocante a sua política
educacional para a classe trabalhadora mostrando os mais variados sentidos, a partir dos
lugares em que são produzidos. Observando a engrenagem discursiva conforme esclarece
Cavalcante:
[...] o discurso é um modo de se pôr formas específicas de ideologia, que expressam
diferentes interesses de classes sociais, como por exemplo, a Política, a Religião, o
Direito, a Educação. Não nasce da vontade repentina de um sujeito, mas de um
trabalho sobre outros discursos com os quais o sujeito se identifica – repetindo,
reafirmando – ou desidentifica – negando, ressignificando. Assim, todo discurso
dialoga com outros que o precederam, incorpora elementos produzidos em outros
discursos, em outras épocas, que constituem uma memória discursiva. Na
perspectiva da AD, a memória discursiva compreende um conjunto de formulações
produzidas em outras épocas que constituem uma memória do saber discursivo.
Essas formulações são retomadas em novos discursos, produzindo diferentes efeitos
(de ratificação, de redefinição, de ruptura, de negação) do “já dito”. (Cavalcante,
2012, p.217).
Logo, a questão do ensino profissional, seus objetivos e a sua natureza não é um tema
novo no Brasil; remonta a uma memória discursiva que pode nos levar ao mundo colonial e às
rudimentares oficinas de artesãos ao lado das casas-grandes que eram responsáveis pela
transmissão, de maneira assistemática, de técnicas como tecer, esculpir, trabalhar o ferro,
passando por iniciativas do governo joanino como a de criação do “colégio das fábricas”, e
ainda, no segundo reinado com a fundação do Imperial Instituto de Surdos-Mudos ambos com
a finalidade de “dar profissão”.
Contudo, o que podemos perceber, a grosso modo, ao longo da história do ensino
técnico no Brasil, é a retomada de uma memória discursiva marcada pela tensão de sentidos
entre uma perspectiva defendida pela fração hegemônica da burguesia - de origem rural e
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 817
ligada ao agronegócio - no bloco de poder de um ensino técnico como estratégia de
apassivamento da luta de classes e lugar de redenção para as classes sociais subalternas e seus
extratos mais “desafortunados” e uma outra perspectiva de ensino profissional mais ligada às
necessidades de formação de técnicos para atender as demandas de mão de obra das frações
urbanas industriais da burguesia e seu projeto de industrialização nacional. Logo, a discussão
do ensino profissional está umbilicalmente ligada ao nível de desenvolvimento das forças
produtivas e suas particularidades e a correlação de força entre as classes sociais, em especial
a correlação de forças entre os movimentos proletários e as frações burguesas nacionais com
suas conexões com a burguesia mundial.
Ao tentar desvelar os sentidos dos discursos produzidos, pelo Estado brasileiro a
respeito do ensino profissional, mostrando os mais variados sentidos a partir dos lugares em
que são produzidos, recorremos a Orlandi que esclarece a relação dos sujeitos com os
sentidos:
Movimento dos sentidos, errância dos sujeitos, lugares provisórios de conjunção e
dispersão, de unidade e de diversidade, de indistinção, de incerteza, de trajetos, de
ancoragem e de vestígios: isto é discurso, isto é o ritual da palavra. Mesmo o das que
não dizem. De um lado, é na movência, na provisoriedade, que os sujeitos e os
sentidos se estabelecem; de outro, eles se estabilizam, se cristalizam, permanecem.
(Orlandi, 2001, p. 10).
Nosso objetivo, neste trabalho, é desvelar como os sentidos do discurso do ensino
profissional são controlados/administrados pelo Estado capitalista. A A.D. à qual nos
filiamos tem como entendimento que o discurso é práxis social; dito de outra forma, o
discurso tem como função a mediação das relações sociais entre os homens, e sua marca
fundamental é a relação entre o dizer e suas condições de produção (CP). Como já foi dito, o
discurso é entendido como práxis social, e como tal ocorre em um determinado momento
histórico, estando sintonizado com as necessidades de produção e reprodução do ser social,
logo, para entendê-lo, é necessário analisar as condições sócio-históricas que possibilitam seu
surgimento.
São consideradas condições de produção do discurso (CPD) às relações que
compreendem os sujeitos, a situação ou conjuntura histórica e a memória discursiva. Os
sujeitos são os produtores, no sentido estrito do enunciado do discurso, porém determinados
sempre pela exterioridade e pela sua relação com os sentidos produzidos na memória
discursiva.
Nessa perspectiva, há que se considerar as condições de produção imediatas e amplas,
levando sempre em consideração o momento histórico que se está vivendo no momento de
Nas fronteiras da linguagem ǀ 818
produção do discurso. E ficando a cargo da memória discursiva a tarefa de sustentar os
dizeres do discurso. Ou seja, tudo que já se disse sobre o assunto abordado.
No caso do nosso objeto em questão, trata-se de resgatar, a partir da produção
historiográfica da educação profissional no Brasil e de documentos oficiais e propagandas do
Estado brasileiro, a memória discursiva, ou o já-dito sobre a questão do “ensino técnico
profissionalizante”, e comparar com o agora, ou seja, com o dito no contexto do século XXI,
o discurso do “ensino técnico profissional como garantia de empregabilidade”. O fato de que
existe um já-dito que sustenta a possibilidade de dizer é fundamental para se compreender o
funcionamento do discurso e sua relação com os sujeitos, com a ideologia e com as condições
históricas do momento da produção do discurso.
Os fatores que constituem as condições de produção do discurso (CPD) compreendem
três fatores:
Um deles é o que se denomina ‘relações de sentido’. Segundo essa noção, os
sentidos resultam sempre de relações: ‘um discurso aponta para outros que o
sustentam, assim como para dizeres futuros.[...] não há, desse modo, começo
absoluto nem ponto final para o discurso. ’ [...]. Outro fator é o denominado
‘antecipação’ – mecanismo utilizado pelo sujeito para colocar-se no lugar do seu
interlocutor e avaliar os efeitos que suas palavras produzirão, orientando sua
argumentação de um modo ou de outro, conforme identifique seu interlocutor como
cúmplice ou adversário. Finalmente, o terceiro fator apresentado é o denominado
‘relações de força’. Segundo essa noção, podemos dizer que o lugar do qual fala o
sujeito é constitutivo do que ele diz. Assim se o sujeito ‘fala do lugar do Professor,
suas palavras significam diferente do que se falasse do lugar do aluno’ [...]. (Orlandi
apud Cavalcante 2007, p.38).
Para que possamos compreender melhor as relações entre: os sujeitos, os sentidos dos
discursos, a memória discursiva e a materialidade discursiva analisada, a discussão sobre essa
categoria fundante da AD, as condições de produção do discurso(CPD), torna-se
imprescindível, ainda que de maneira resumida, dentro dos múltiplos territórios da AD,
podemos concluir que essa categoria se refere às relações dos sujeitos com a infraestrutura e a
superestrutura da sociedade em um determinado momento histórico, como assevera
Cavalcante:
[...] concluímos que as condições de produção do discurso compreendem,
fundamentalmente, os sujeitos falantes em constante relação com a cultura, com a
sociedade e com a economia de um determinado momento histórico. Nessa inter-
relação os sujeitos assumem posições em relação a determinadas formações
ideológicas e discursivas. (Cavalcante 2007, p. 38).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 819
Por isso, a questão das CPD torna-se fundamental para penetrarmos nas brechas da
materialidade discursiva e entendermos as possibilidades do Tema da enunciação como
demonstra Bakhtin que nos diz:
“(...) O tema da enunciação é na verdade , assim como a própria enunciação,
individual e não reiterável. Ele se apresenta como a expressão de uma situação
histórica concreta que deu origem à enunciação”.(...) Conclui-se que o Tema da
enunciação é determinado não só pela formas linguísticas que entram na
composição( as palavras, as formas morfológicas ou sintáticas, o sons, as entoações),
mas igualmente pelos elementos não verbais. (Bakhtin 1981, p.128).
Ainda sobre a questão da importância das CPD e da processualidade histórica no
tocante a perceber os sentidos das palavras, Pêcheux, nos respalda com importante
contribuição quando assevera que:
O sentido das palavras [...] não é dado diretamente em sua relação com a literalidade
do significante; ao contrário, é determinado pelas posições ideológicas que estão em
jogo no processo sócio-histórico no qual as palavras e expressões são produzidas.
(Pêcheux apud Cavalcante, 2012, p. 216).
Ou seja, como nos ensina Bakhtin (1992) os discursos são compostos na sua
construção por milhares de fios ideológicos, não existindo assim, discursos imparciais, à
medida que os mesmos são construídos socialmente em um determinado momento histórico e
sintonizados com as necessidades criadas pelas relações sociais, como nos explica
Cavalcante:
Não há, pois discurso neutro ou inocente uma vez que, sendo socialmente produzido,
em um determinado momento histórico para atender às necessidades postas nas
relações entre os homens para a produção e reprodução de usa existência, veicula os
valores, as crenças, as visões de mundo que representam os lugares sociais, a
conjuntura política e ideológica que possibilitam o surgimento dos referidos
discursos. (Cavalcante 2012, p. 218)
Com base no que foi exposto até agora, buscaremos analisar o discurso do “ensino
técnico como acesso ao emprego” do governo do PT, em especial com a criação do Programa
nacional de acesso ao ensino técnico e emprego - PRONATEC, em um momento histórico
(entenda-se CPD) em que predomina uma profunda reestruturação produtiva, que comandada
pela sanha da hegemonia neoliberal do capital especulativo orquestra a ciência, a tecnologia e
a informação de tal forma que está desequilibrando a relação entre trabalho vivo e trabalho
morto. Esse fenômeno gera uma hipertrofia do último, colocando em cheque o próprio
funcionamento do modo de produção com o aumento crônico do desemprego estrutural, da
Nas fronteiras da linguagem ǀ 820
precarização do trabalho, aumento absurdo do exercito de reserva industrial, e para aumentar
a complexidade das CPD imediata o capitalismo no atual momento está imerso em uma
profunda crise econômica, a exemplo do que ocorreu em 1929, sem perspectivas concretas de
saída, pois até o presente momento vem tentando resolver os dilemas do capital com mais
capitalismo.
É a partir dessa compreensão que tomamos partido com o nosso exercício de análise
do discurso nos propondo a examinar o discurso do “ensino técnico como acesso ao emprego”
como momento de (re)significação e cooptação que desemboca na construção do efeito de
sentido de que “ emprego tem, o problema do desemprego é a falta de qualificação dos
trabalhadores”, como podemos observar o enunciado construído na peça publicitária a
seguir:
Como podemos ver, ocorre um processo de silenciamento na sociedade brasileira,
onde os aspectos sombrios do capitalismo hipertardio ao longo do seu desenvolvimento,
produziram e produzem constantes conflitos de classe, e por suas peculiaridades esses
conflitos não são apenas de classe, mas também raciais e de gênero, pois os séculos de
escravidão e autoritarismo produziram silenciamentos, tanto no sentido de negar a
manutenção de referências ideológicas, como objetivando a construção do mito do “ensino
técnico como acesso ao emprego” pelo governo e seu principal aliado o sistema S. A
propaganda a seguir confirma a construção do mito:
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 821
A engrenagem discursiva do “ensino técnico como acesso ao emprego” construída
pelo governo do PT e seus agentes constrói chamando as classes proletárias para que “MUDE
O RUMO DA SUA VIDA” um discurso aparentemente “novo”, mas se regatarmos à
memória discursiva a respeito do ensino técnico no Brasil traremos de imediato como
sequência discursiva nº1 (SD 1) o trecho inicial do decreto nº 7566 de 1909 que criou nas
capitais dos Estados da República, Escolas de aprendizes artífices, para o ensino profissional
primário e gratuito.
SD 1 [...]Considerando:
SD1.1 que o aumento constante da população das cidades exige que se facilite às
classes proletárias os meios de vencer as dificuldades sempre crescentes da luta pela
existência;
SD1.2 que para isso se torna necessário, não só habilitar os filhos dos
desfavorecidos da fortuna com o indispensável preparo técnico e intelectual, como fazê-
los adquirir hábitos de trabalho profícuo, que os afastará da ociosidade ignorante, escola
do vício e do crime;
SD1.3 que é um dos primeiros deveres do Governo da Republica formar cidadãos
úteis à Nação[...] (grifos nossos)
Onde na SD1 .1 já podemos observar as estratégias políticas do estado diante das
transformações que o Brasil passava no inicio do século XX com o surgimento das grandes
cidades, acirramento das dificuldades de sobrevivência do proletariado com as constante
transformações tecnológicas no mundo fabril e principalmente as contradições do processo de
transição do trabalho escravo para o assalariado, que somados ao processo inicial de
organização dos movimentos proletários que contavam com a forte presença dos imigrantes
europeus ampliavam as contradições do capitalismo hipertardio agroexportador brasileiro, e
Nas fronteiras da linguagem ǀ 822
assombrava as oligarquias que a todo custo tentavam se antecipar às contradições de forma
bonapartista.
A crescente organização dos sindicatos que acirravam as lutas entre o capital e o
trabalho nas fábricas, as rebeliões urbanas populares contra a urbanização conservadora, com
insurreições contra campanhas de vacinação e a carestia e as rebeliões rurais populares com
os movimentos messiânicos de luta pela terra pressionavam as oligarquias e seu bloco de
poder a tentarem, dentro dos limites da autocracia da Republica velha, a desenvolver
estratégias discursivas para as massas proletárias com o objetivo de “SD1.2[...] não só
habilitar os filhos dos desfavorecidos da fortuna com o indispensável preparo técnico e
intelectual, como fazê-los adquirir hábitos de trabalho profícuo, que os afastará da
ociosidade ignorante, escola do vício e do crime;, ou seja, afastar os trabalhadores e o
nascente exército de reserva das possíveis posições contra-hegemônicas que se desenvolviam
nos nascentes subúrbios de imigrantes europeus e ex-escravos que eram onde se
desenvolviam a teoria e a prática de correntes teóricas revolucionárias como o anarquismo e o
marxismo, daí a referencia do Presidente Nilo Peçanha a escola do vício e do crime.
Logo, a tática de usar a educação, em particular o ensino técnico, como política de
apassivamento das classes subalternas e manutenção da ordem é centenária como podemos ler
na SD1.3 que é um dos primeiros deveres do Governo da Republica formar cidadãos
úteis à Nação[...], ocorrendo assim um processo de silenciamento das contradições sociais e
das reivindicações do mundo do trabalho. Assim o discurso do atual governo com o
PRONATEC não nasce da sua vontade repentina, mas de um trabalho sobre outros discursos
com os quais o Estado, como representante dos interesses da classe dominante, se identifica
repetindo, reafirmando e readaptando as CPD imediatas. Relembrando Cavalcante:
Assim, todo discurso dialoga com outros que o precederam, incorpora elementos
produzidos em outros discursos, em outras épocas, que constituem uma memória
discursiva. Na perspectiva da AD, a memória discursiva compreende um conjunto
de formulações produzidas em outras épocas que constituem uma memória do saber
discursivo. Essas formulações são retomadas em novos discursos, produzindo
diferentes efeitos (de ratificação, de redefinição, de ruptura, de negação) do “já
dito”. (Cavalcante, 2012, p.217).
Assim, o discurso do governo federal a respeito do Programa nacional de acesso ao
ensino técnico e emprego – PRONATEC, realiza um processo de seleção do que é correto e
aceito. Nesse processo discursivo quase sempre se dá, de maneira velada nos enunciados dos
sujeitos envolvidos. Como podemos ver a seguir a SD.2 o primeiro pronunciamento da
Presidente Dilma Russef a respeito do PRONATEC: SD.2 “Pouca mais de um mês depois de
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 823
assumir a presidência. Tenho algumas coisas a anunciar na educação: vamos lançar ainda
neste trimestre o Programa Nacional de acesso à escola técnica o PRONATEC, SD.2.1 que
entre outras vantagens levará ao ensino técnico a bem sucedida experiência do
PROUNI. [...] Para concluir, reafirmo que a luta mais obstinada do meu governo será a do
combate à miséria. Isso significa fortalecer a economia. Ampliar o emprego e
aperfeiçoar as políticas sociais. SD.2.2 Isso significa, em especial melhorar a qualidade
do ensino. Pois ninguém sai da pobreza se não tiver acesso a uma educação gratuita
contínua e de qualidade. SD.2.3 Nenhum país, igualmente poderá se desenvolver sem
educar bem os seus jovens e capacitá-los plenamente para o emprego e para as novas
necessidades criadas pela sociedade do conhecimento”.
A estratégia retórica do governo do PT elabora uma materialidade discursiva com
frinchas ainda mais complexas de serem desvelada e com um efeito caleidoscópico radioativo,
porque além de encadear pode cegar os olhos mais atentos da intelectualidade critica
brasileira, por se trata de um partido que num passado próximo representava a formação
ideológica do trabalho e ao longo dos últimos 30 anos passou por uma profunda metamorfose.
Isso ocorre pela mudança de sua base social deixando de ser um partido de militantes e
ativistas dos movimentos sociais, como nos seus anos iniciais, e transformando-se ao longo
das décadas de 1990 e 2000 num partido de parlamentares que, controlando um exército
gigantesco de burocratas nas três esferas do poder e nos três poderes foram se aperfeiçoando
na corrupção do jogo estatal brasileiro, e de alianças e alianças foi-se convertendo em um dos
principais partidos da ordem no Brasil. Assim, os setores ligados aos movimentos sociais que
ficaram no seu interior ou foram cooptados pelo estado a exemplo dos sindicalistas, lideres
camponeses e estudantis ou foram reduzidos a uma ínfima minoria cada vez mais
marginalizada sem poder nenhum de decisão, que hoje tem a única função de justificar a
retórica de esquerda.
Podemos ler na SD.2.1 [...] que entre outras vantagens levará ao ensino técnico a
bem sucedida experiência do PROUNI. [...], ou seja, um dos maiores projetos neoliberais
para a educação brasileira já desenvolvidos nos últimos tempos, onde nem os governos do
PSDB conseguiram ir tão longe no repasse de recursos publico para o ensino privado e é
apresentado como uma “experiência bem sucedida”, contudo, cabe perguntar bem sucedida
para quem? Para os grandes grupos privados de ensino que puderam expandir seus domínios
por todo território nacional e consolidar a lógica da educação como mercadoria, oferecendo
cursos de nível superior precarizados( com raríssimas exceções), expandindo relações de
trabalho docente absurdamente precarizadas. No mesmo pronunciamento a retórica de
Nas fronteiras da linguagem ǀ 824
esquerda se resigna como vamos observar na SD.2.2 [...] Isso significa, em especial
melhorar a qualidade do ensino. Pois ninguém sai da pobreza se não tiver acesso a uma
educação gratuita contínua e de qualidade. É tudo que o PRONATEC não é, na prática.
Pois como o PROUNI tem uma lógica neoliberal de repasses de recursos públicos para o setor
privado, em especial o sistema S; não é educação contínua pois na prática é o aligeiramento
da formação técnica precarizando ainda mais o ensino profissionalizante que já vem sofrendo
uma crise profunda com a expansão (des)governada dos IF,s; e a qualidade passa longe pois,
faltam laboratórios, equipamentos, salas de aulas, e docentes nas áreas específicas. E para
coroar a adesão à hegemonia neoliberal no plano da educação a Presidente Dilma vai mais
além na SD.2.3 Nenhum país, igualmente poderá se desenvolver sem educar bem os seus
jovens e capacitá-los plenamente para o emprego e para as novas necessidades criadas
pela sociedade do conhecimento”. Logo, está implícito que a educação, ou melhor, a
“capacitação” é o caminho para o emprego, ou seja, mais uma vez a questão da educação é
apresentado numa perpectiva de reforçar a ordem da propriedade privada dos meios de
produção, onde o papel do processo educativo no discurso neoliberal como nos explica
Cavalcante:
Na perspectiva do discurso neoliberal, no entanto, a educação de qualidade é vista a
partir de uma ótica econômica, pragmática, gerencial e administrativa e está
vinculada a conceitos como produtividade, otimização de recursos e redução de
custos. Assim, cabe à escola fornecer ao indivíduo algumas informações, mínimas
que sejam, para sua sobrevivência. Nessa perspectiva, a escola exime-se de função
social de possibilitar ao educando o seu desenvolvimento como ser social, uma vez
que limita a apropriação do conhecimento pelo indivíduo, reprimindo o
desenvolvimento de suas faculdades criadoras. Essa opção nada tem a ver com uma
educação emancipatória. (Cavalcante, 2012, p.222).
Com base no que foi exposto, podemos afirmar que o projeto do governo da
Presidente Dilma Russef do PT, com o PRONATEC, em particular, para a Educação
Profissional, além de não significar uma ruptura com o discurso neoliberal, significa uma
subordinação ao capital e à lógica do mercado baseado em um modelo de desenvolvimento
econômico excludente, concentrador de renda, privatista e predatório.
Contudo, cabe as seguintes perguntas: Acesso a qual ensino técnico? E que tipo de
emprego? Acesso para quem ao ensino técnico e emprego? Numa conjuntura histórica em que
o mercado e o capital podem tudo e à imensa maioria da sociedade, que são os que vivem da
venda de sua força de trabalho, resta flexibilidade e desregulamentação dos direitos,
desemprego, subemprego e exclusão.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 825
Considerações finais
Como podemos observar na materialidade discursiva analisada ocorre uma tomada de
posição ideológica dos enunciados analisados que se identifica com o capital. Para além dos
silenciamentos e resignificações, o modelo de ensino técnico proposto pelo governo da
Presidente Dilma russef/PT com o PRONATEC, reafirma e reforça o histórico das políticas
elitista do Estado brasileiro para a educação em geral e, particularmente, para a educação
profissional esta destinada as classes subalternas em uma perspectiva de apassivamento da
luta de classes, adestramento, acomodação, cooptação. Mesmo que nos pronunciamentos e
decretos apareçam conceitos e noções como polivalência e politecnia( numa evidente
retomada da memória discursiva das bandeiras de luta dos trabalhadores da educação), a
estruturação da educação profissional está ideologicamente e estruturalmente subordinada aos
interesses da Burguesia industrial e na nova face da divisão sócio técnica do trabalho que visa
formar um “cidadão mínimo”, que pensa minimamente e que reaja minimamente.
Logo, o ensino técnico na perceptiva do governo, visa a uma formação de sujeitos
numa ótica individualista, fragmentária e que provavelmente após serem formados nos curso
profissionalizantes não irão conseguir ser nem mesmo um “cidadão mínimo” com direito a
um emprego, a uma profissão, tornando o apenas um mero “empregável” disponível no
mercado de trabalho sob a batuta do capital num pais de capitalismo hipertardio, em crise,
onde a educação e vista pelo Estado como estratégia de alívio da pobreza e de filantropia
social.
Como apontamentos iniciais de uma concepção de Educação Profissional voltada à
causa da emancipação humana, e que se contraponha ao atual projeto do governo do PT que
vê na Educação Profissional uma política pontual para uma virtual possibilidade de geração
de emprego, e um placebo preventivo ao desemprego para colocar o Brasil no mundo
globalizado como produtor e exportador de commodities.
Para nós, o eixo de uma política de inserção do Brasil, de maneira soberana, na
economia mundial, se dá a partir de um projeto socialista com base no controle dos meios de
produção pelos trabalhadores, onde o desenvolvimento humano fosse o centro dos objetivos e
não o lucro. Nessa perceptiva, um dos principais aspectos para uma concepção emancipatória
de educação profissional pública, gratuita, obrigatória e única para todas as crianças e jovens,
teria de romper com o monopólio do conheciento técnico, tecnológico e cultural da burguesia
e seus aparelhos privados de hegemonia.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 826
Onde ocorre-se, a simbiose de toda produção intelectual com a produção material para
superar o abismo produzido historicamente pela propriedade privada entre o trabalho manual
e intelectual. Logo, a humanidade passaria a ter uma compreensão integral do processo de
produção superando a alienação.
Por isso, a nossa luta por um ensino técnico que prime por uma formação omnilateral
da subjetividade humana, e que possibilite aos indivíduos se apropriar da ciência, arte,
técnica, ou seja de todo patrimônio de cultura e conhecimento desenvolvido pela humanidade,
superando assim o estranhamento entre as práticas educativas e as demais práticas sociais.
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Nas fronteiras da linguagem ǀ 828
O SAGRADO NA POESIA FEMININA DE ADÉLIA PRADO E
DIVA CUNHA [Voltar para Sumário]
Felipe Assis Araujo
(UFRN/CERES) - bolsista Propesq (IC)
Introdução
Dentro da história da humanidade têm-se estudos que comprovam que o homem desde
os tempos remotos cultua a um Ser superior, no qual se acredita que Ele seja o criador do
Universo, responsável pela origem humana e por tudo que o rodeia. Mircea Eliade lança seu
livro O sagrado e o profano (1992), com o objetivo de mostrar-nos não apenas o “sagrado”
por um ponto de vista de uma determinada religião e de um Deus, mas com o propósito de nos
apresentar um estudo baseado na história das religiões e dos povos. Apresentando a
experiência religiosa de cada povo, ou seja, como cada grupo acredita no “sagrado”, e como
ele se manifesta através de rituais, crenças, mitos, celebrações, etc. Preocupando-se também
em mostrar o lado oposto ao “sagrado”, denominado “profano”. Afinal, como o próprio autor
conceitua “(...) a primeira definição que se pode dar ao sagrado é que ele se opõe ao profano”.
(ELIADE, 1992, p.13). De acordo com Eliade (1992), o sagrado se manifesta ao homem por
meio da hierofania. Assim, esse processo dará a determinado “objeto” não apenas seu
significado real, visual, mas atribuirá a esse elemento uma adoração, tornando-o parte do
mundo sagrado, fazendo com que o homem religioso o adore e respeite. A hierofania
manifesta-se também por meio do espaço. O homem religioso está sempre em busca de um
espaço sagrado, no qual se utiliza de uma simbologia para representá-lo como o “Centro do
Mundo”. A sacralização de um espaço é feita por meio de uma ritualização inspirada na ação
dos deuses, ou seja, trata-se de uma ação inspirada no que se acredita que determinado deus
fez ao criar o mundo. Segundo o autor, o universo pode ser dividido em dois espaços o
“Caos” e o “Cosmos”. Podemos conceituar o cosmos como o local habitado, o nosso mundo
ao qual pertencemos povoado e organizado. Já o caos trata-se de um espaço desconhecido,
estranho à humanidade.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 829
Esse apreço por delimitar o “Centro do Mundo” se dá porque, de acordo com Mircea
Eliade (1992), a origem do Universo inicia-se a partir de seu centro, ele é o ponto de partida
para criação do Mundo. Dessa forma, cada povo possui uma forma simbólica de representar o
centro, como por exemplo, para os Judeus é a Terra Santa. Essa simbologia estende-se
também em algumas civilizações no momento da construção do lar, onde há uma preocupação
em construir a casa a partir de quatro pontos cardeais representando a divisão do Universo, e
alguma forma simbólica no teto que represente o céu. A passagem do “Ano Novo” também é
vista para o cristão como uma cosmogonia, para ele a cada nascimento de um novo ano há
uma regeneração do mundo, trata-se do nascimento de Cristo. Em suma, o homem religioso
dos mais variados lugares possui uma acessibilidade infinita a crenças, costumes e ações que
caracterizam o seu modo de viver. Para ele todo esse conjunto de valores é “sagrado”, ou seja,
pertencem a Deus, e é através da simbologia que eles procuram seguir e adorar ao seu Ser
superior. Mesmo o individuo estando inserido em uma sociedade contemporânea e não tendo
uma prática religiosa ativa, pode-se dizer que ele traz consigo alguma característica religiosa,
seja ela explicita, ou não; isso acontece porque ele é descendente e convive com pessoas
religiosas.
Após termos conhecimento de algumas simbologias do espaço sagrado apresentadas
por Mircea Eliade (1992), passamos a investigar sobre o espaço utilizado pelas poetisas em
suas respectivas obras, agora baseados no livro A Poética do Espaço de Gaston Bachelard
(2008). Essa obra se diferencia da obra estudada anteriormente, uma vez que o estudo do
espaço não é mais direcionado com o intuito de revelar alguma adoração íntima com Deus, e
sim com o objetivo de explorar a “imaginação poética” em cada uma, pois sabemos que a
poesia tem o poder de manifestar no poeta e no leitor imagens que tocam profundamente a
alma e o coração do ser humano. Assim, para tentar esclarecer esse problema da imagem
poética, Gaston Bachelard (2008), recorre a um estudo da fenomenologia da imaginação.
Para percebermos a ação psicológica de um poema, teremos pois de seguir dois
eixos de análise fenomenológica: um que leva às exuberâncias do espírito, outro que
conduz às profundezas da alma. (BACHELARD, 2008, p.7).
Diante desse interesse de investigação sobre o espaço, o livro, A Poética do Espaço
traz uma análise bastante interessante que busca esclarecer os valores que esses espaços
representam para o poeta no ato de sua criação. De uma forma geral, esses espaços
imaginados são espaços louvados, que carregam um valor de felicidade para o ser, é um
espaço vivido em sua intimidade e que possui uma forte carga de atração. Bachelard aborda
Nas fronteiras da linguagem ǀ 830
ao longo dos capítulos do seu livro diversas representações de imagens poéticas, como por
exemplo: A gaveta, Os cofres e os armários; O ninho; A concha; Os cantos; A miniatura; etc.
Porém, o nosso principal interesse aqui será nos dois primeiros capítulos de seu livro,
intitulados: “A casa”. “Do porão ao sótão”. “O sentido da cabana” e “Casa e Universo”. Isso
porque o nosso principal objetivo será trabalhar o sagrado e o profano e como se encontram
representados dentro da poesia de Adélia Prado e Diva Cunha.
A religiosidade ou o sagrado pode estar expresso nos mais diversos lugares e campos
de estudo. Nesse trabalho, o nosso objetivo será identificar a presença do sagrado dentro da
poesia, mas especificamente dentro da obra de Adélia Prado e Diva Cunha. De acordo com
DIAS (2013, p. 34), “Deus e os mitos estão, portanto, no princípio e no fim da Literatura
Universal, visíveis em maior ou menor grau”.
Adélia Prado é uma poetisa Mineira, forte seguidora da religião Católica. Suas poesias
destacam-se pela beleza e pela devoção ao descrever as coisas de Deus através dos versos. A
intertextualidade bíblica é explicita em sua obra, pois ao abrirmos seu livro nos deparamos
com lindas epígrafes. Neste caso, falo do livro Poesia Reunida, no qual a epígrafe de abertura
é a seguinte: “Louvai ao Senhor, livro meu irmão, com vossas letras e palavras, com vosso
verso e sentido, com vossa capa e forma, com as mãos de todos que vos fizeram existir”.
(PRADO, 1992, p.7). Nessa passagem a autora deixa claro o seu agradecimento a Deus por tê-
la inspirado a escrever esse livro. Para iniciar a primeira parte do livro, Adélia utiliza-se de
uma epígrafe retirada dos salmos da Bíblia: “Chorando, chorando, sairão espalhando as
sementes. Cantando, cantando, voltarão trazendo os seus feixes”. (PRADO, 1992, p.9). O
vocabulário usado por Adélia Prado em suas poesias mostra-nos como se processa a sua
ligação poética com Deus. Quando a mesma refere-se a Ele, notamos como o tem como um
Ser íntimo de si, e o chama com um carinho digno de quem o ama e o louva. Encontramos em
suas poesias o frequente uso do nome de Deus e da família Sagrada, como: Deus, meu pai,
Jesus, Mãe de Deus, Ave Maria. E também o nome de vários outros personagens bíblicos
como: João, São Paulo, José, além de diversas passagens bíblicas intertextualizadas dentro de
sua poesia.
De uma forma geral, percebemos na poesia de Adélia Prado a presença constante da
manifestação do sagrado, através do vocabulário, dos personagens e das passagens bíblicas.
Ao lermos sua obra, sentimos que o eu lírico está interligado à presença de Deus, carregado
de uma fé que o conduz a acreditar na existência do Pai Criador e o reconhecendo como o seu
salvador. De um ponto de vista geral, notamos que as suas poesias, além de retratarem o
cotidiano vivido, remetem sempre a um agradecimento ou uma oração íntima com Deus.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 831
Em Diva Cunha, a presença do sagrado gira em torno da figura de Deus, em toda a sua
dimensão, fazendo-a consciente das coisas do corpo e do espírito. Tarcísio Gurgel avalia a sua
poesia da seguinte forma:
Se é necessário eleger um leitmotiv para a sua poesia este será, certamente o da
perplexidade da menina de formação católica diante do tentador espetáculo da vida.
O seu desafio: optar sem remorso entre o ascetismo de uma vida burguesa e
descolorida e a sensualidade do dia-a-dia cá fora, com o correspondente risco.
(GURGEL, 2001, p. 141)
Por essa via, Diva Cunha transmuta sua poesia em resina, na secreção que cura as
feridas da alma e do corpo através do amor de Deus. Uma particularidade da poesia dessa
poetisa é a falta de títulos para muitos de seus poemas. Neste poema abaixo, a ligação íntima
com Deus aparece de uma forma bem explícita, não havendo dificuldades para perceber que o
sagrado manifesta-se através dele. Notamos o eu lírico totalmente interligado à religião,
demonstrando uma fé enraizada, onde Deus é o centro de tudo, o detentor de todo poder:
Quando Deus me habita cresço para todos os lados quando Deus me fala apuro os
ouvidos quando somos um desapareço na luz (CUNHA, p.25)
Observa-se nos versos: “Quando Deus me habita/ cresço para todos os lados”, a figura
de Deus representando uma segurança suprema para o eu lírico. Com Ele, o cristão acredita
que conseguirá tudo, pois nada é impossível para Deus. No terceiro verso: “quando Deus me
fala/ apuro os ouvidos”, fica claro a direção de toda sua atenção para o seu Ser superior, pois
tudo que Deus “fala” é verdadeiro e essencial para seguir na vida cristã e conseguir a
salvação, como disse Jesus: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vai ao Pai senão
por mim” (João, 14:6). Nos últimos versos: “quando somos um só/ desapareço na luz”, isto é,
quando sigo os ensinamentos bíblicos tornamo-nos um só, a habitação de Deus no corpo
humano torna-se completa, surgindo assim, o caminho da luz, o caminho de Deus. O corpo
como morada de Deus permite ao eu lírico vivenciar uma transfiguração.
A sagração do cotidiano
Seguindo a linha de raciocínio de Bachelard, podemos pensar, por analogia, que o
corpo é também uma espécie de aposento, ou seja,
Nas fronteiras da linguagem ǀ 832
Nosso inconsciente está "alojado". Nossa alma é uma morada. E, lembrando-nos das
"casas", dos "aposentos", aprendemos a "morar" em nós mesmos. Já podemos ver
que as imagens da casa caminham nos dois sentidos: estão em nós tanto quanto
estamos nelas. (BACHELARD, 2008, p. 20).
A casa, portanto, é para o poeta como um refúgio. Nela ele encontra seu campo de
proteção e estabelece um valor íntimo com o seu local de habitação, valor esse que não se
substitui por bens materiais, isto é, trata-se de um valor extremamente sentimental,
Porque a casa é o nosso canto do mundo. Ela é, como se diz amiúde, o nosso
primeiro universo. É um verdadeiro cosmos. Um cosmos em toda a acepção do
termo. Vista intimamente, a mais humilde moradia não é bela? (BACHELARD, op.
cit., p. 24).
Através da casa o homem é capaz de sonhar, nesse momento entra em jogo um
conjunto de lembranças, memória e imaginação se interligam e constroem a imagem desejada,
fazendo com que o homem reviva um passado que o atrai carregado de um bem-estar, e o
poeta se realiza revivendo essas lembranças que trazem um sentimento de proteção para si
próprio, ou seja,
Nessas condições, se nos perguntassem qual o benefício mais precioso da casa,
diríamos: a casa abriga o devaneio, a casa protege o sonhador, a casa permite sonhar
em paz. (...) É exatamente porque as lembranças das antigas moradas são revividas
como devaneios que as moradas do passado são imperecíveis dentro de nós.
(BACHELARD, 2008, p. 26).
Nesse jogo nostálgico de reviver o passado é que se apresentam os poderes do
inconsciente. De acordo com Gaston Bachelard, o inconsciente está instalado no espaço da
felicidade do ser, e ele é quem é o responsável por buscar as lembranças mais antigas. Ainda
de acordo com Bachelard, podemos dizer que a casa é “um estado de alma” que remete
sempre à intimidade do poeta. Assim veremos em Diva Cunha e Adélia Prado essa relação de
corpo como morada do ser, como espaço protetor dos sonhos.
Do corpo enquanto casa
No poema que se segue, o eu lírico demonstra uma sede insaciável pela palavra de
Deus; palavra esta que alimenta o espírito cristão e o refaz na fé. Notamos a fidelidade a
Deus, onde a leitura bíblica se faz presente o tempo todo, como afirma o verso: “Leio a Bíblia
até no banheiro/ irreverente e descuidada”. Há como uma dependência da palavra de Deus,
uma necessidade dela para viver no mundo em que está inserido, tendo a bíblia como fonte de
fortalecimento para não cair diante das coisas profanas. E ainda ressalta que, mesmo estando
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 833
distraído, o amor de Deus está presente nele. Habita os lugares inusitados da casa, como o
banheiro, que é o espaço sugestivo da limpeza do corpo. Uma segunda leitura podemos fazer,
sintetizando o poema: apesar da presença da Bíblia, o seu amor está profundamente voltado
para o lance da corporalidade, ou seja, a sua leitura bíblica não é garantia de santidade, mas é
um lance que habita a sua cotidianidade:
Leio a Bíblia até no banheiro
irreverente e descuidada
mas meu amor é profundo
com as pedras vive
firme e concentrado
no coração da matéria (CUNHA, 2009, p.38)
No próximo poema, mais uma vez notamos a temática da habitação do corpo. Nosso
corpo torna-se a casa de Deus na medida em que praticamos boas ações e o seguimos.
Tememos que Sua presença se desfaça e procuramos cultivar a semente do bem e o
visualizarmos nas coisas mais simples, para que Ele continue habitando nosso ser.
O corpo contém
o pequeno mundo de cada dia
casa de um Deus
que se teme amesquinhar
a cada gesto
para alcançá-lo
cultivo em silêncio
borboletas e formigas (CUNHA, 2009, p. 39)
No poema abaixo, o eu lírico reforça a ideia de que o que o mantém vivo é a presença
de Deus. Porém, utiliza-se de um argumento um pouco contestável pelo ponto de vista de
alguns cristãos, citando que as coisas da carne também são de Deus.
Deus me mantém
viva e ocupada
com as coisas da carne (CUNHA, 2009, p.67)
Em outro poema, percebemos mais uma intertextualidade bíblica relacionada ao
sétimo dia da criação. “No sétimo dia, Deus terminou todo o seu trabalho; e no sétimo dia, ele
descansou de todo o seu trabalho. Deus então abençoou e santificou o sétimo dia, porque foi
nesse dia Deus descansou de todo o seu trabalho como criador” (Gênesis 2: 2.3). Dia em que
Deus criou o “descanso”, o sábado. O eu lírico afirma ter Deus dentro de si próprio, e em seu
corpo Ele descansa, ou seja, há uma relação de penetrabilidade matéria/espírito completando a
criação. Assim também é o poeta diante de sua criação, conforme nos diz DIAS (2013, p. 37):
Nas fronteiras da linguagem ǀ 834
“crê na sua criação, pelo uso que faz da linguagem, é um ser transcendental, apresentando-se
como um deus, pelo poder que tem de criar, fazendo emergir seu próprio verbo, nomeando a
sua própria criação”:
Após o sétimo dia da criação
descansa um deus
em mim (CUNHA, 2009, p.148)
No poema abaixo o sagrado se apresenta por meio da figura da mãe do eu lírico. Esta
mãe deseja que sua filha viva uma vida santa, baseada nos princípios católicos e morais das
famílias tradicionais, não aceitando que ela tenha um comportamento diferente de sua época.
Para a mãe, as mulheres devem viver a exemplo das santidades do catolicismo, entregando
sua vida a Deus, não importando o quanto sofram. Tal pensamento não é compartilhado pelo
eu lírico, que não vê os santos e Deus como vingadores e, portanto, não aceita o sofrimento de
ninguém para obter a salvação:
Minha mãe diz
que eu sou da pá virada
da vida torta.
Os modelos dela são outros:
santa Terezinha do menino Jesus
santa Rita de Cássia, santas
fora as santas domésticas
que foram sacrificadas
no dia-a-dia e ninguém viu
sangradas como galinhas
maceradas em vinha d’ alhos
postas a dormir no sereno para secar odores
enfurnadas como bananas verdes
esfregadas nos ladrilhos claros dos banheiros
costuradas em botões de quatro furos
esbofeteadas e sacudidas
como colchões e almofadas
para desprender o pó da horas.
Secaram todas
Nos linhos brancos
Dos lençóis bordados
Ao morrer, não morrera
Entregaram a alma a Deus,
Que provavelmente não as perdoou
Pelo gasto inútil
Que fizeram dos seus talentos (CUNHA, 2009, p.262)
Já em Adélia Prado, temos uma relação com Deus mais intensamente espiritual. Em
alguns poemas o eu lírico demonstra um desejo exacerbado de ter um contato concreto com
Deus. Vontade essa que o faz sentir uma saudade profunda, parece que a única maneira de
confortar o eu lírico é o encontro pessoal com o seu Ser superior. Assim, dar-se a entender
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 835
que ele deseja ir para a casa de Deus, local louvado e sonhado por todos cristãos, o Céu, como
no poema Órfã na janela (p.211)
Estou com saudade de Deus, uma saudade tão funda que me seca.
Estou como palha e nada me conforta.
O amor hoje está tão pobre, tem gripe,
meu hálito não está para salões.
Fico em casa esperando Deus,
cavacando a unha, fungando meu nariz choroso,
querendo um pôster dele no meu quarto,
gostando igual antigamente
da palavra crepúsculo.
Que o mundo é desterro eu toda vida soube.
Quando o sol vai-se embora é pra casa de Deus que vai,
pra casa onde está meu pai.
No poema A treva (p.333), o eu lírico faz referência ao “Getsêmani” que nos é
narrado no evangelho1 segundo São Mateus 26:36. De acordo com a passagem bíblica, no dia
anterior a sua crucificação, Jesus levou seus discípulos a um lugar chamado “Getsêmani”,
sabendo que iria ser traído por um de seus doze discípulos e entregue nas mãos dos pecadores,
Jesus ora a Deus três vezes dizendo: “Meu pai, se este cálice não pode passar sem que eu o
beba, seja feita a tua vontade!” De acordo com o evangelho segundo São Lucas 22:44, neste
momento a agonia de Jesus foi tão intensa que: “Seu suor tornou-se como gotas de sangue que
caíam no chão.”
A relação do momento sagrado com o título do poema é como se o eu lírico estivesse
passando por uma situação de angústia assim como Jesus passou no “Getsêmani”.
Percebemos a sensação de sufocamento em sua condição como pecador que pressente que a
morte está perto, como podemos observar no seguinte trecho: “/São cruas claras visões/ às
vezes pacificadas,/ às vezes/ o terror puro/ sem o suporte dos ossos,/ que o dia pleno me dá./
A alma desce aos infernos,/ a morte tem seu festim”. Dessa forma, o que deixa o
eu lírico em agonia são os pecados que o rodeia, ou seja, aquilo que de acordo com o
catolicismo será julgado no julgamento final e o encaminhará ao céu ou inferno. É esse o
motivo do título ser “treva”, pois o eu lírico vê-se rodeado de pecados mortais e a
confirmação disso aparece nos dois últimos versos, observe: “o demônio come a seu gosto,/ o
que não é Deus pasta em mim”.
Me escolhem os claros do sono
engastados na madrugada,
a hora do Getsêmani.
1 BÍBLIA SAGRADA. Edição Pastoral. São Paulo: Paulus, 1990.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 836
São cruas claras visões
às vezes pacificadas,
às vezes o terror puro
sem o suporte dos ossos,
que o dia pleno me dá.
A alma desce aos infernos,
a morte tem seu festim.
Até que todos despertem
e eu mesma possa dormir,
o demônio come a seu gosto,
o que não é Deus pasta em mim.
No poema Sítio (p.74), temos uma sacralização de um espaço físico, o eu lírico exalta
a Igreja, vendo-a como um local sagrado e louvado (a casa de Deus), pois ela é o seu lugar,
transmitindo assim um valor íntimo que o atrai e o conforta. A Igreja é “a casamata de nós”, o
lugar onde reencontramos os demais cristãos; local carregado de simbologias; e onde é
encontrada a proteção necessária:
Igreja é o melhor lugar.
Lá o gado de Deus pára pra beber água,
rela um no outro os chifres
e espevita seus cheiros
que eu reconheço e gosto,
a modo de um cachorro.
É minha raça, estou
em casa como no meu quarto.
Igreja é a casamata de nós.
Tudo lá fora fica seguro e doce,
tudo é ombro a ombro buscando a porta estreita.
Lá as coisas dilacerantes sentam-se
ao lado deste humaníssimo fato
que é fazer flores de papel
e nos admiramos como tudo é crível.
Está cheia de sinais, palavra,
cofre e chave, nave e teto aspergidos
contra vento e loucura.
[...]
e canto com meu lábio rachado:
glória no mais alto dos céus
a Deus que de fato é espírito
e não tem corpo, mas tem
o olho no meio de um triângulo
donde vê todas as coisas,
até os pensamentos futuros.
Lugar sagrado, eletricidade
que eu passeio sem medo.
Se eu pisar,
o amor de Deus me mata.
Em Apelação (p.219), o eu lírico fala sobre o juízo final, em que seremos julgados por
todos nossos pecados praticados na terra. Ele acredita no perdão: “Mas Deus nos perdoará”.
Ao final do poema, o último verso: “Não sou digno, Senhor”, nos faz remeter ao texto narrado
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 837
no evangelho de Mateus: “Senhor, eu não sou digno de que entres em minha casa. Dize uma
só palavra e meu empregado será curado.” (Mateus 8:8).
É bom que uma vez se tenha usado bainha nas calças.
No juízo final nos servirá de defesa.
Em algumas coisas fomos tão inocentes...
Houve, é certo, sob nossos telhados,
ruidoso desamor,
fel em gotas de silêncio segregado.
Mas fazemos laços tão honestos com os cordões dos sapatos
e é tão coitado o nó de uma gravata
que ao pescoço logo se perdoa.
Mais Deus nos perdoará,
Ele que sabe o que fez: ‘homem humano’.
A boca que comeu e mentiu come Seu Corpo Santo.
Eu não sei o que digo,
mesmo se o que falo é:
Não sou digno, Senhor.
No poema Instância (p.228), percebemos uma intertextualidade direta com a oração
do “Eu pecador”, a qual nós cristãos seguidores da religião católica aprendemos durante o
catecismo para orarmos no momento de nossa primeira confissão. Assim como na oração, o
eu lírico reconhece-se como pecador e realiza uma confissão a Deus, pedindo que o perdoe de
todos seus pecados, pois necessita de sua misericórdia divina para “aliviar” sua consciência e
continuar sua vida como cristão. Há um desnudamento do corpo “estragável” diante do Deus
invisível, mas propenso ao perdão:
Eu cometi pecados,
por palavras, por atos, omissões.
Deles confesso a Deus,
à Virgem Maria, aos santos,
a São Miguel Arcanjo
e a vós irmãos.
[...]
Mas eu peço perdão:
a Deus e a vós, irmãos.
O meu peito está nu como quando nasci;
em panos de alegria me enrolou minha mãe,
beijou minha carne estragável,
em minha boca mentirosa espremeu seu leite,
por isso sobrevivi.
Agora vós, irmãos, perdoai-me,
por minha mãe que se foi.
Por Deus que não vejo, perdoai-me.
No poema O poder da oração (p.229), o eu lírico fala sobre a correria da humanidade
que, muitas vezes ocupada com seus afazeres pessoais, esquece-se de agradecer a Deus por
cada dia, preocupando-se apenas com os compromissos sociais. Porém, quando surge uma
Nas fronteiras da linguagem ǀ 838
dificuldade, um pequeno problema, o homem recorre a Deus imediatamente pedindo sua
intervenção. É por causa disso que a humanidade é considerada miserável, pois
cotidianamente prioriza as coisas materiais e acaba esquecendo-se da importância de
agradecer ao nosso Senhor. Finalizando o poema, uma prece reafirmando a consciência da
necessidade de orar para Deus e pedir perdão pelo esquecimento, ou pela desreza:
Em certas manhãs desrezo:
a vida humana é muito miserável.
Um pequeno desencaixe nos ossinhos
faz minha espinha doer.
Sinto necessidade de bradar a Deus.
Ele está escondido, mas responde curto:
‘brim coringa não escolhe’
E eu entendo comprido
e comovente esforço da humanidade
que faz roupa nova para ir na festa,
o prato esmaltado onde ela ama comer,
um prato fundo verde imenso mar cheio de estórias.
A vida humana é muito miserável.
‘Brim coringa não escolhe?’
Meu coração também não.
Quando em certas manhãs desrezo
é por esquecimento,
só por desatenção.
Conclusão
Desse modo, vimos nas duas poetisas que o sagrado se manifesta claramente, não
havendo dificuldade para que o leitor perceba essa temática religiosa dentro dos poemas.
Através da análise realizada, percebemos o quanto as autoras são ligadas à religião. Com o
auxílio dos textos teóricos que nos fundamentamos, podemos ver que essa relação pode ser
bem mais profunda do que aparenta em uma leitura superficial. Afinal, a poesia nos dá a
possibilidade de várias interpretações e nos faz tentar desvendar o verdadeiro sentimento do
eu lírico. O conteúdo expresso nos poemas aborda o cotidiano de uma forma excepcional, os
elementos do dia-a-dia se interligam com os costumes cristãos e reafirmam a presença de
Deus na vida dessas escritoras e repercutida em suas obras, pois Ele sempre estará presente
nos fatos mais simples, na vida dos seres humanos, em geral. De certa forma, a poesia dessas
duas escritoras desrezam para um Deus inatingível, transportando-o para um mundo mais
palpável, o que ratificamos com o pensamento de Eliade (1992, p. 63): “a experiência
religiosa torna-se mais concreta, quer dizer, mais intimamente misturada à Vida”.
Referências
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 839
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. 2 ed. São Paulo, SP: Martins Fontes, 2008.
BÍBLIA SAGRADA. Edição Pastoral. Sociedade Bíblica Católica Internacional e São Paulo-
SP: Paullus, 1990.
CUNHA, Diva. Resina. Rio de Janeiro, RJ: UNA, 2009.
DIAS, Valdenides Cabral de Araújo. O retórico do silêncio. Natal, RN: EDUFRN, 2013.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. [tradução Rogério Fernandes]. São Paulo: Martins
Fontes, 1992.
GURGEL, Tarcísio. Informação da literatura potiguar. Chapecó, SC: Argos, 2001.
PRADO, Adélia. Poesia reunida. São Paulo, SP: Siciliano, 1991
Nas fronteiras da linguagem ǀ 840
SOBRE CIMENTO E SANGUE: APROXIMAÇÕES E
DISTANCIAMENTOS ENTRE O NOVO BRUTALISMO E A
LITERATURA BRUTALISTA [Voltar para Sumário]
Felipe Benicio de Lima (PPGLL/UFAL)
Tijolos & tijoladas: à guisa de introdução
Este trabalho nasce de uma inquietação diante de um fenômeno da literatura brasileira
ainda pouco explorado por parte da crítica e da teoria da literatura: o brutalismo. A
designação “brutalista” foi empregada por Alfredo Bosi para descrever o estilo do escritor
carioca Rubem Fonseca. Desde que o termo foi utilizado pela primeira vez, na década de
1970, muito pouco foi dito a respeito do assunto, e menos ainda houve em função de um
aprofundamento ou de uma conceituação deste estilo literário. Pelo contrário, ao longo dos
últimos 40 anos, a designação “brutalista” parece ter sido utilizada de forma deliberada por
alguns estudiosos, e ao observarmos rapidamente os ficcionistas que foram agrupados sob tal
alcunha, nos deparamos com uma lista de escritores muito plural em termos de estilo –
Moacyr Scliar, Dalton Trevisan, Sérgio Sant’Anna, João Gilberto Noll. Essa pluralidade nos
leva a pensar que a melhor forma de entender o brutalismo é começando de sua gênese:
Rubem Fonseca.
No ensaio-prefácio da antologia Conto contemporâneo brasileiro (1977), Bosi afirma:
“Imagem do caos e da agonia de valores que a tecnocracia produz num país de Terceiro
Mundo é a narrativa brutalista de Rubem Fonseca” (BOSI, 1977, p. 18). Bosi elege o centro
urbano como cenário da narrativa brutalista: a cidade de becos escuros e rotas soturnas, a
cidade e sua palidez cinza de concreto, suas ásperas variações de cimento, suas colunas de
fumaça; uma cidade em que o perigo está sempre à espreita, onde não há bondade ou
maldade, apenas o instinto o humano – o que é bem pior.
O centro urbano fonsequiano é o Rio de Janeiro. O universo ficcional deste autor é
povoado por sociopatas, pervertidos, prostitutas, detetives particulares e demais personas
desviantes que normalmente estão às voltas com situações de contravenção e subversão
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 841
moral, personagens que misturam “no mesmo coquetel instinto e asfalto, objetos plásticos e
expressões de uma libido sem saídas para um convívio de afeto e projeto” (BOSI, 1977, p.
18).
Podemos afirmar que falar de brutalismo é falar sobre Rubem Fonseca,
inevitavelmente. Porém, ao utilizar a terminologia “brutalista” para caracterizar a literatura
deste autor, de forma consciente ou não, Bosi acabou abrindo as portas para um diálogo com
um movimento da arquitetura moderna chamado Novo Brutalismo. Neste trabalho, nos
propomos a explorar as relações existentes entre este movimento e a narrativa brutalista; a
partir disso, conceituaremos a narrativa brutalista com base na obra de Fonseca, seu precursor.
Da arquitetura, o Novo Brutalismo
O termo brutalismo deriva de béton brut (concreto bruto), que foi uma técnica bastante
utilizada e difundida pelo arquiteto e urbanista francês Le Corbusier. Cesar Grossman (2013)
afirma que o que caracteriza este movimento são as “construções despojadas, mostrando o
esqueleto de concreto armado sem nenhum tipo de acabamento, revelando até mesmo a
impressão deixada pela madeira que foi usada para criar a armação” (GROSSMAN, 2013,
n.p.).
De acordo com Kenneth Frampton (2003), a essência do movimento brutalista veio a
público pela primeira vez em 1953, através da exposição “Paralelo entre vida e arte” (ver
imagem 1), realizada no Instituto de Artes Contemporâneas, em Londres. Essa exposição foi
promovida pelo casal de arquitetos ingleses Peter e Alison Smithson, juntamente com o
fotógrafo Nigel Henderson e o escultor Eduardo Paollozi, e era composta por uma série de
fotografias que, segundo Frampton, “ofereciam cenas de violência ou visões desfiguradas ou
anitiestéticas da figura humana, e todas tinham uma grosseira textura granulada que era
claramente vista pelos seus colaboradores como uma de suas principais virtudes”
(FRAMPTON, 2003, p. 322). Ou seja, “um culto à feiura”, como afirma Reyner Banham em
seu artigo “The new brutalism” (2010). Se reside aí o ethos do movimento brutalista, se é do
abjeto que surge o seu gérmen, não é de estranhar que a linguagem desse movimento tenha
causado certa inquietação na arquitetura dos anos 60.
A linguagem impactante da exposição “Paralelo entre vida e arte” posteriormente
amalgamou-se em concreto através dos Smithson, que são nomes cruciais para o
entendimento do Novo Brutalismo, uma vez que o casal foi grande entusiasta desse
movimento na Inglaterra. Segundo Fernando Freitas Fuão (2000), o projeto dos Smithson para
Nas fronteiras da linguagem ǀ 842
a escola de Hunstanton, em Norfolk, construída em 1954, continha estratégias de composição
que viriam a se tornar características basilares do Novo Brutalismo: “[N]a escola [...] tudo
estava aparente, pelado, destacado, desde a estrutura em aço às instalações elétricas, de água,
calefação” (FUÃO, 2000, n.p.).
De acordo com Mariana Amorim (2008), os Smithson afirmaram que o Novo
Brutalismo deveria ser apreciado a partir de uma perspectiva ética e não estética. A ética
brutalista para Fuão “estava no trabalhar uníssono com os novos cenários culturais do pós-
guerra, na contemporaneidade da linguagem arquitetônica, na tecnologia e nas mudanças
sociais” (2000, n.p.). Já a estética brutalista, consistia na “franca exposição dos materiais,
vigas e detalhes como brises em concreto aparente, combinados com fechamentos em
concreto aparente ou com fechamentos em tijolos deixados expostos [...] com certa crueza
proposital do detalhamento e nos acabamentos” (Banham apud ZEIN, 2007, n.p.).
Essa interrelação entre ética e estética brutalistas pode ser claramente percebida no
projeto do banheiro da escola de Hunstanton, no qual as pias são pregadas à parede de uma
forma um tanto rústica e os canos de fornecimento e escoamento de água ficam expostos (ver
imagem 2). Nas palavras de Amorim:
Esta imagem das baterias de pias com a canaleta a mostra transmite uma sensação de
que elas estão ali também com a função de despertar o usuário para a economia do
consumo. Poder ver todo o percurso da água até o fim, remete a idéia [sic] de que
era impossível não se pensar na questão do desperdício no período pós-guerra
(AMORIM, 2008, p. 40-1).
Deixar este cano exposto, segundo Amorim, pode gerar efeito poético, retirando os
usuários deste espaço de um estado letárgico prosaico, uma vez que ao ver o cano de
escoamento, os usuários podem observar o caminho que faz a água da pia ao esgoto. Ao
contrário dos banheiros em que o cano fica “escondido”, lá a água não “some” quando passa
pelo ralo da pia. Ou seja, é a pia enquanto elemento que exerce uma função social e política.
O esforço para comunicar-se através de uma linguagem contemporânea que
contemplasse o momento social pós-guerra, bem como a ausência de revestimentos revelando
a nudez da estrutura e a opção por acabamentos em concreto aparente fazem com que o Novo
Brutalismo se caracterize como uma arquitetura do essencial, em que os elementos (éticos e
estéticos) encontram-se justapostos de maneira precisa e enxuta.
A literatura brutalista
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 843
Antonio Candido, em seu ensaio “A nova narrativa” (1987), faz uma análise daquela
mesma literatura matéria do ensaio-prefácio de O conto contemporâneo brasileiro. Se,
seguindo o encalço de Bosi, tomarmos a obra de Rubem Fonseca como elemento central na
compreensão do brutalismo, podemos considerar que a análise da literatura fonsequina feita
por Candido nos oferece subsídios para uma conceituação desse estilo. Para Candido, Fonseca
é um autor que agride seu leitor tanto pela temática quanto pela forma como a transmite. O
crítico refere-se aos recursos estilísticos da prosa fonsequiana como ultra-realismo sem
preconceitos e realismo feroz, que têm como características o uso da linguagem coloquial
(floreada de gírias e termos chulos), a “abolição da diferença entre falado e escrito [...], ritmo
galopante da escrita, que acerta o passo com o pensamento para mostrar de maneira brutal a
vida do crime e da prostituição” (CANDIDO, 1987, p. 211). Nessa prosa de realismo feroz,
segundo Candido, a violência contida no enredo encontra igual impacto na narrativa em
primeira pessoa, em que narrador e conteúdo narrado se fundem e confundem, de forma tal
que “a brutalidade da situação é transmitida pela brutalidade de seu agente” (CANDIDO,
1987, p. 212).
Porque foi muito bem diagnosticado por Bosi, e porque não deixou de habitar as páginas
da literatura brasileira, na contemporaneidade o brutalismo ainda provoca inquietação em
alguns teóricos. Um exemplo disso é o crítico Karl Erik Schollhammer, que abordou esse
tema em seu ensaio “Os cenários urbanos da violência na literatura brasileira contemporânea”
(2000), no qual ele afirma que o brutalismo caracteriza-se “pelas descrições e recriações da
violência social entre bandidos, prostitutas, leões-de-chácara, policiais corruptos e mendigos”
(SCHOLLHAMMER, 2000, p. 343), além de ressaltar a forma enxuta e direta através da qual
se perfaz esse estilo. Se se detivesse apenas a essa definição, Schollhammer nada estaria
fazendo senão parafrasear o brutalismo de Bosi e o realismo feroz de Candido; mas ele
acrescenta a sua discussão um conceito que ajudará a melhor delinear o fenômeno do
brutalismo na literatura: o transrealismo.
Para Schollhammer, a mimesis da narrativa contemporânea implica em um processo de
criação de “efeitos de ‘realidade’, através das emoções mais violentas” (SCHOLLHAMMER,
2000, p. 343). Para dar conta da complexidade da experiência urbana, a escrita precisa criar
efeitos sensíveis, beirar o gestual. É certo que a prosa brutalista está intimamente ligada à
cidade, mais precisamente ao obscuro urbano que é habitado pelos já citados arquétipos que
compõem a escória da sociedade, aqueles que estão de tal forma excluídos que parecem não
habitar a mesma realidade social. Nesse sentido, a narrativa brutalista funciona como um
desentupidor que mergulha fundo na fossa para trazer à tona aquilo e aqueles/as que são
Nas fronteiras da linguagem ǀ 844
excluídos/as da discursividade urbana moralizante-sensata: os/as desviantes/as. A esse
movimento de desvelamento de uma realidade social discursivamente apagada, Schollhammer
chama transrealismo, que ele define como “expressão do real além da realidade” e que
funciona “como uma contribuição concreta à ressimbolização de uma realidade incômoda e
incompreensível para o discurso ‘sensato’” (SCHOLLHAMMER, 2000, p. 350). Decorre
disso o fato de haver na narrativa brutalista uma imbricação lancinante e simbiótica entre as
personagens e a cidade.
Dessa forma, o brutalismo opera em duas vias de transgressão: uma no nível do discurso
social que, por meio dos seus mecanismos de significação, exclui não apenas a voz, mas a
completa figura daqueles/as que rezam pela cartilha do avesso da moral e da legalidade; e
outra no nível estético, uma vez que as situações extremas vivenciadas pelas personagens
dessas narrativas fazem a linguagem literária operar no limite, forçando, assim, a criação de
estratégias estilístico-estruturais para a efetiva realização do processo mimético.
Arquitetura & literatura brutalistas: sobre cimento & sangue
Com base no que foi exposto até aqui, é possível notar que há um forte diálogo entre a
narrativa brutalista e o Novo Brutalismo, principalmente se pensarmos a exposição “Paralelo
entre vida e arte” como aquela que contém o ethos desse movimento arquitetônico. Assim,
encontramos em ambos os brutalismos o gosto pelo abjeto, pelo feio, pelo explícito, por
aquilo que foge aos padrões; a busca por uma linguagem que comunique claramente aos seus
contemporâneos, levando em conta o momento histórico-social: se no Novo Brutalismo a
ideia era utilizar o concreto aparente (ou concreto bruto) e abrir mão dos revestimentos,
desnudando toda a estrutura dos edifícios, na narrativa brutalista impera a linguagem direta,
calcada na oralidade, nas gírias e nos termos chulos como forma de e concatenando-se com a
revelação das paixões violentas que fervem no atrito da pele das personagens com o cimento
das cidades.
Dessa forma, ambos os brutalismos apresentam um apelo ao abjeto, como forma de
opor-se ao engessamento da vida tecnocrática dos grandes centros urbanos. Este apelo, na
arquitetura, vem sob a forma de edifícios que não obedecem a um padrão convencional em
termos de disposição da estrutura, o que, em alguns casos, dá origem a construções de
desenho muito ousado (ver imagem 3); de forma concomitante, a preferência pelas texturas
rústicas, sem acabamento, comunica uma forma de arquitetura que se quer essencial e não
ornamental. A Igreja de Wotruba, na Áustria, é um exemplo disso: ao passo que temos várias
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 845
paredes e blocos dispostos de uma forma nada convencional, nenhuma dessas paredes
apresenta acabamento, apenas o concreto bruto e as longas janelas de vidro.
Esse apelo ao abjeto e a utilização de materiais não trabalhados também aparecem,
transmutados em palavras, na literatura brutalista, sobretudo nas questões temáticas e na
construção das personagens das narrativas: cenas de violência e sexo, personas paranoicas e
perversas estampam as páginas da obra de Rubem Fonseca que, assim como os arquitetos
brutalistas fazem uso da simplicidade e do inacabamento, este autor incorpora à sua narrativa
o discurso “das gentes” da cidade.
Embora seja possível encontrar certas similaridades e criar diálogos férteis entre a
arquitetura e a literatura, ambas exigem tratamentos específicos no que tange a análise de suas
particularidades. Depois de teorizar acerca das relações entre essas duas linguagens,
concentremo-nos agora na literatura, especificamente a de Rubem Fonseca.
A narrativa brutalista de Rubem Fonseca
Após analisar as características dos brutalismos – na arquitetura e na literatura –, bem
como as relações existentes entre eles, cabe agora averiguar em que medida estas
características podem contribuir para uma conceituação da narrativa brutalista. Para tanto,
serão analisados alguns fragmentos da obra do escritor Rubem Fonseca. Optamos por nos ater
aos livros deste autor que foram publicados até o final da década de 70, período em que veio a
público a antologia Conto contemporâneo brasileiro, organizada por Alfredo Bosi.
Acreditamos que este recorte temporal é importante porque estaremos debruçados sobre o
mesmo material que estava à disposição de Bosi quando ele caracterizou Fonseca como
brutalista, dando início ao que agora é tido como uma vertente da literatura brasileira
contemporânea – o brutalismo.
Dos livros que compõem o recorte temporal aqui proposto, merece destaque a
antologia de contos Feliz ano novo. Publicada em 1975, em plena a ditadura militar, a obra foi
vetada e, um ano após sua publicação, todos os exemplares foram recolhidos, retornando a
público apenas no fim do regime fardado. Na época, o senador Dinarte Mariz, em entrevista à
Folha de São Paulo, “justificou” a censura deste livro da seguinte forma: “Suspender Feliz
ano novo foi pouco. Quem escreveu aquilo deveria estar na cadeia e quem lhe deu guarida
também. [...] Não consegui ler nem uma página. Bastaram meia dúzia de palavras. É uma
coisa tão baixa que o público nem devia tomar conhecimento” (MARIZ apud ALMEIDA,
2002, p. 106).
Nas fronteiras da linguagem ǀ 846
Além de confessar sua ignorância, a fala de Mariz revela o impacto que o livro teve na
sociedade da época. Vale ressaltar que estamos nos referindo à mesma sociedade que acusou
de pornográfica a entrevista dada pela atriz Leila Diniz aO Pasquim, ocasião em que ela disse
“Transo de manhã, de tarde e de noite” – o suficiente para criarem o decreto Leila Diniz, que
proibia a veiculação de qualquer tipo de pornografia nos meios de comunicação. O irônico é
que Feliz ano novo foi censurado com base neste mesmo decreto, e embora houvesse
referência ao sexo em alguns contos, não era o bastante para caracterizar o livro como
pornográfico. Certamente, o que incomodou a censura fardada foi o quinhão transrealista da
obra: o mais baixo calão da miséria e a alta burguesia carioca retratados de forma
explicitamente sórdida. Na apresentação de Feliz ano novo, o editor Álvaro Pacheco afirma:
“um livro engraçado e mordaz, mas também cruel e violento, que mostra a realidade
inquietante de um mundo ameaçadoramente destrutivo e corrupto” (PACHECO apud
JÚNIOR, 2013, n.p.).
Abaixo, a “meia-dúzia de palavras” que foi lida pelo Senador Mariz: o conto “Feliz
ano novo” (FAN), que abre a antologia homônima de Rubem Fonseca:
Vi na televisão que as lojas bacanas estavam vendendo adoidado roupas
ricas para as madames vestirem no réveillon. Vi também que as casas de artigos
finos para comer e beber tinham vendido todo o estoque.
Pereba, vou ter que esperar o dia raiar e apanhar cachaça, galinha morta e farofa dos
macumbeiros.
Pereba entrou no banheiro e disse, que fedor.
Vai mijar noutro lugar, tô sem água.
Pereba saiu e foi mijar na escada.
Onde você afanou a TV?, Pereba perguntou.
Afanei porra nenhuma. Comprei. O recibo está bem em cima dela. Ô Pereba! você
pensa que eu sou algum babaquara para ter coisa estarrada no meu cafofo?
Tô morrendo de fome, disse Pereba.
De manhã a gente enche a barriga com os despachos dos babalaôs, eu disse, só de
sacanagem.
Não conte comigo, disse Pereba. Lembra do Crispim? Deu um bico numa macumba
aqui na Borges de Medeiros, a perna ficou preta, cortaram no Miguel Couto e tá ele
aí, fudidão, andando de muleta.
Pereba sempre foi supersticioso. Eu não. Tenho ginásio, sei ler, escrever e fazer raiz
quadrada. Chuto a macumba que quiser.
Acendemos uns baseados e ficamos vendo a novela. Merda. Mudamos de canal,
prum bangue-bangue. Outra bosta.
As madames granfas tão todas de roupa nova, vão entrar o Ano-novo dançando com
os braços pro alto, já viu como as branquelas dançam? Levantam os braços pro alto,
acho que é pra mostrar o sovaco, elas querem mesmo é mostrar a boceta mas não
têm culhão e mostram o sovaco. Todas corneiam os maridos. Você sabia que a vida
delas é dar a xoxota por aí?
Pena que não tão dando pra gente, disse Pereba. Ele falava devagar,
gozador, cansado, doente.
Pereba, você não tem dentes, é vesgo, preto e pobre, você acha que as
madames vão dar pra você? Ô Pereba, o máximo que você pode fazer é tocar uma
punheta. Fecha os olhos e manda brasa (FAN, 1994, p. 367-8).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 847
Se o leitor de hoje pode ficar chocado com este trecho, o que dizer daquele da década
de 70? A incorporação da linguagem falada, sobretudo, das gírias e expressões de baixo calão,
bem como o teor da conversa entre estes dois personagens evidenciam o fato de que a partir
de Fonseca há uma reviravolta na forma de retratar a periferia dos grandes centros urbanos.
Pois o que está em questão aqui vai muito além do mero palavrão, o que está em pauta é
desigualdade de classes. A linguagem utilizada pelo narrador e por Pereba vem explicitar o
lugar de onde se fala, vem reivindicar o espaço dessas personagens no discurso social. Não é
por acaso que o conto começa com o narrador vendo na TV que as “lojas bacanas” e as “casas
de artigos finos para beber e comer” tinham vendido todo o estoque para a festa de révellion,
enquanto ele planeja esperar amanhecer para comer “os despachos dos babalaôs” na praia.
E Rubem Fonseca não dá apenas voz a estes personagens, dá voz e ação.
Depois do diálogo citado, o narrador, Pereba e mais um amigo, o Zequinha, vão a uma
festa de réveillon “para os lados de São Conrado” e lá, não satisfeitos em roubar as pessoas
que estão na festa, violentam uma mulher, defecam nos lençóis e se divertem tentando pregar
um homem à parede com um tiro de uma arma calibre 12:
Seu Maurício, quer fazer o favor de chegar perto da parede?
Ele se encostou na parede.
Encostado não, não, uns dois metros de distância. Mais um pouquinho para cá. Aí.
Muito obrigado.
Atirei bem no meio do peito dele, esvaziando os dois canos, aquele tremendo trovão.
O impacto jogou o cara com força contra a parede. Ele foi escorregando lentamente
e ficou sentado no chão. No peito dele tinha um buraco que dava para colocar um
panetone.
Viu, não grudou o cara, porra nenhuma.
Tem que ser na madeira, numa porta. Parede não dá, Zequinha disse (FAN, 1994, p.
370).
Além do festival de torpeza apresentado, algo que é um tanto inquietante nesses dois
trechos do conto é o tom cínico adotado pelo narrador, que comete atos de verdadeira barbárie
e relata-os de forma muito direta, simples, quase suave. Ou seja, o modo como ele diz o que
faz tem uma simplicidade inversamente proporcional ao que ele faz. Ainda há o momento em
que ele, ao dirigir-se a Maurício, um dos burgueses da festa, incorpora à sua linguagem
expressões de pura gentileza e educação, tais como “por favor” e “muito obrigado”. Ou seja,
ele adequa e ao mesmo tempo ironiza essas expressões, uma vez que as utiliza em um
contexto improvável: o narrador está posicionando Maurício para atirar com a carabina em
seu peito.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 848
Em outro conto deste mesmo livro, “Passeio noturno (parte I)” (PN), o protagonista,
também narrador em primeira pessoa, é um executivo, não menos nocivo que os personagens
do primeiro conto. Isso porque este executivo descobre uma nova maneira de extravasar o seu
estresse diário: atropelar pessoas à noite:
Ela só percebeu que eu ia para cima dela quando ouviu o som da borracha dos
pneus batendo no meio-fio. Peguei a mulher acima dos joelhos, bem no meio das
duas pernas, um pouco mais sobre a esquerda, um golpe perfeito, ouvi o barulho do
impacto partindo os dois ossões, dei uma guinada rápida para a esquerda, passei
como um foguete rente a uma das árvores e deslizei com os pneus cantando, de volta
para o asfalto. Ainda deu para ver que o corpo todo desengonçado da mulher da
mulher havia ido parar, colorido de sangue, em cima de um muro, desses baixinhos
de casa de subúrbio (PN, 1994, p. 397).
A forma como este executivo sociopata descreve toda a sua ação deixa claro que esta é
uma atividade que lhe rende muito prazer, principalmente pelo fato de ele mencionar cada
detalhe, sem querer perder um pormenor sequer – “bem no meio das duas pernas, um pouco
mais sobre a esquerda” –, de uma maneira quase lascívia. Embora não utilize termos chulos
ou gírias, este narrador ainda conserva uma certa dose de humor negro em sua dicção, ao
utilizar expressões como “desengonçado” e “colorido de sangue” para referir-se ao corpo da
mulher que, com o impacto da batida foi parar “em cima de um muro, desses baixinhos de
casa de subúrbio”, ele afirma, tratando com certo exotismo e distanciamento este ambiente
estranho a ele.
Com base no que foi exposto aqui, podemos elencar algumas características presentes
nesses contos de Rubem Fonseca que podem nos ajudar a delimitar algumas características da
narrativa brutalista deste escritor. São elas: o centro urbano como cenário; cinismo e humor
negro do narrador; o apelo ao abjeto; a construção de personagens desviantes; contestação dos
valores sociais, morais, religiosos; o uso da linguagem direta, sem floreios, com fortes traços
de oralidade.
Dado que esta é uma pesquisa ainda em desenvolvimento, estamos longe de dar uma
resposta ou conceituar de forma definitiva a narrativa brutalista, porém, ao elencarmos essas
características, ainda que de forma sumária, propomos, ao mesmo tempo, uma agenda mínima
para a esta vertente da literatura brasileira cuja conceituação apresenta-se ainda de forma
turva e em processo de construção.
Referências
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 849
ALMEIDA, Maria Cândida Ferreira de. Tornar-se outro: o topos canibal na literatura
brasileira. São Paulo: Annablume, 2002.
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da ordem espontânea da vida. 2008. 154p. Dissertação (Mestrado em História) – Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005.
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conto contemporâneo brasileiro. São Paulo: Ed. Cultrix, 1977.
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<http://www.revistabrasileiros.com.br/2013/10/20-de-100-a-estetica-da-violencia-seminal-de-
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SCHØLLAMMER, Karl Erik. Os cenários urbanos da violência na literatura brasileira. In:
HERSCHMANN, Micael [et al.] (Orgs.). Linguagens da violência. Rio de Janeiro: Rocco,
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ZEIN, Ruth Verde. Brutalismo, sobre sua definição (ou, de como um rótulo superficial é, por
isso mesmo, adequado). Arquitextos. São Paulo, n. 084.00, mai. 2007. Disponível em: <
http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/07.084/243> Acessado em 25 de jan.
2013.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 850
Anexos
Imagem 1: Capa do catálogo da exposição “Paralelo entre vida e arte”
Imagem 2: Banheiro do edifício Hunstanton
Imagem 3: Igreja Wotruba (Áustria)
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 851
Nas fronteiras da linguagem ǀ 852
TRADUÇÃO MULTIMODAL: ASPECTOS ESTRUTURAIS DE
ASSASSIN’S CREED [Voltar para Sumário]
Felipe Cezar Menezes (UNEB)1
Juliana Cristina Salvadori (UNEB)2
Adolfo Paiva de Andrade (UNEB)3
Introdução
Baseado nos jogos Assassin’s Creed e Assassin’s Creed: Bloodlines, desenvolvidos
pela empresa Ubisoft, A Cruzada Secreta é o terceiro romance de uma franquia de livros
adaptados da série homônima de videogame por Oliver Bowden, historiador e escritor inglês.
Ambientado na Jerusalém do século XII, o livro narra a história de Altaïr Ibn La-Ahad, um
mestre assassino cujas atitudes arrogantes lhe custam seu alto posto na irmandade. O romance
faz parte de um gênero literário recente: as adaptações literárias de jogos eletrônicos. O
gênero, que conta com cada vez mais títulos, percorre o caminho inverso do usual, no qual os
livros são o hipotexto, na acepção de Genette (2010), levado a outras mídias. A franquia
adaptada abre as portas da literatura para um grupo de novos (e jovens) leitores, ao passo que
também realiza o papel inverso: levar ao mundo dos jogos aqueles habituados à literatura.
1 Graduando do 7º semestre em Licenciatura em Letras, Língua Inglesa e Literaturas na Universidade do Estado
da Bahia (UNEB), Campus IV, Jacobina. Bolsista no Programa Institucional de Bolsas para Iniciação Científica
no subprojeto AS TAREFAS DO TRADUTOR: confluência entre o papel do leitor e do escritor. Membro do
grupo de pesquisa Desleituras em série: da tradução como transcriação, adaptação, refração, diáspora. 2 Professora Assistente da Licenciatura em Letras, Língua Inglesa e Literaturas na Universidade do Estado da
Bahia, Campus IV, Jacobina. Professora Doutora em Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC Minas e mestre
em Inglês e Literaturas pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Coordenadora do projeto de
pesquisa e extensão Entrando no bosque: mapeamento e formação de redes de leitura. Líder do grupo de
pesquisa Desleituras em série: da tradução como transcriação, adaptação, refração, diáspora. 3 Professor Adjunto na Universidade do Estado da Bahia, atuando no curso de Jornalismo em Multimeios e no
Programa de Pós-graduação em Educação, Cultura e Territórios Semi-áridos (PPGESA). Doutor pelo programa
de Pós-graduação em Comunicação e Cultura Contemporânea da Universidade Federal da Bahia (UFBA), linha
de pesquisa em cibercultura e Mestre em Comunicação, linha de novas tecnologias da comunicação e
informação, pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Atualmente, desenvolve pesquisa sobre A
cibercultura pós-web, investigando novos caminhos para o uso da internet a partir das mídias locativas e da
computação ubíqua, adotando como referencial metodológico a teoria ator-rede.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 853
Este trabalho pretende, através do aporte teórico fornecido pela teoria literária, pela
literatura comparada e pelos estudos da narrativa de jogos eletrônicos e da indústria cultural,
estudar como se dá a transposição intersemiótica de dois jogos em um romance, focado na
narrativa da obra, de modo a compreender as possibilidades e limitações das mídias
multimodal dos jogos e logográfica da literatura, norteado pelas questões a seguir: como se dá
esta adaptação/transmidiação da narrativa? Para isso, é preciso estabelecer um contraste entre
os conceitos de tradução/adaptação e transmídia, de modo a reformular essa questão: qual
dessas modalidades de storytelling está em jogo na relação entre as obras estudadas? Quais
elementos estruturais são priorizados? Dito de outro modo, objetiva-se analisar como os
aspectos estruturais do hipotexto videolúdico, embasados nos estudos de Murray (2003),
Aarseth (1997) e Johnson (2012), foram adaptados/transmidiados, a partir das discussões
relativas aos conceitos de tradução intersemiótica de Roman Jakobson (1997) e transmídia de
Henri Jenkins (2009, apud PESSOA, 2011), avaliando os aspectos destas modalidades –
tradução intersemiótica e transmídia –, como e quando estes se manifestam na obra adaptada e
quais marcas da obra videolúdica foram deixadas no palimpsesto literário, na acepção de
Gérard Genette (2010).
ANIMUS e o Holodeck
Sendo o principal exemplo em se tratar de história multiforme, Jorge Luís Borges,
escritor, tradutor e poeta argentino, no conto Jardim dos Caminhos que se Bifurcam,
apresenta uma narrativa que não se mantém fixa a um único acontecimento, ou melhor, um
único evento, entre os vários que podem vir a compor um enredo, mas que reflete sobre os
eventos excludentes da vida cotidiana, pondo em conta os vários desdobramentos possíveis e
apresentando consequências causais das escolhas dos personagens. É possível observar que o
pensamento do século XX, traduzido em pressões ao formato uniforme e linear da ficção,
viria a ser aproveitado por um meio que, provavelmente, Borges não tinha em mente quando
escreveu esta obra; a narrativa eletrônica.
O próprio conceito de “caminho” está presente na palavra “ergódica”, nome atribuído
por Espen J. Aarseth (1997, p. 1), criado através da junção das palavras gregas “ergon” e
“hodos”, que significam “obra” e “via”, respectivamente. Na narrativa ergódica, presente mais
facilmente em jogos do que nos romances ou filmes, está a possibilidade maior de
experienciar a causalidade através de escolhas, sendo ainda permitido refazer o caminho em
caso de uma consequência mais fatal. Os jogadores, de uma certa forma, possuem uma certa
Nas fronteiras da linguagem ǀ 854
ciência de que o universo ficcional da obra jogada se dividirá em possibilidades a cada
escolha importante a ser tomada. Ao passo que a acepção de Aarseth enfatiza a característica
mecânica do texto, ou seja, a possibilidade de agir dentro da obra, Janet H. Murray, além de
também estudar esta possibilidade, como será discutido mais à frente, emprega esta
característica mecânica de navegação de espaço, envolvendo no conceito de navegação a
noção dos vários caminhos existentes, para discutir duas configurações narrativas que
orientam os ambientes eletrônicos dos jogos: “o labirinto solucionável e o rizoma
emaranhado” (MURRAY, 2003, p. 130).
Para Murray, o labirinto é o elemento que transforma o espectador passivo em um
explorador heroico. O labirinto ficcional dos jogos é físico e cognitivo, mas também pode ser
emocional, moral e psicológico; ele pode ser meramente exploratório, com passagens
secretas, becos sem saída, puzzles para abrir portas trancadas e avançar, e caminhos que
regridem o percurso do jogador personagem, como pode apresentar uma metáfora de labirinto
que apresente um personagem incluso num contexto social, com Quests4 a serem cumpridas
no lugar de “simples” quebra-cabeças. Pode-se destacar que nos jogos eletrônicos é cada vez
mais notável a presença de vários labirintos que constituem um todo narrativo. Dito de outro
modo, o que conhecemos por fase constitui um caminho parcial a ser percorrido, sendo
possível notar que a saída do labirinto geralmente significa a entrada em outro, gerado uma
cadeia de labirintos que formam uma narrativa ou o simples percurso de um jogo, no caso
deste não se apoiar em uma história. Em Assassin’s Creed podemos observar esta
coexistência de vários labirintos ainda que pensemos de forma superficial, tomando como
exemplo os mapas do jogo, abertos e exploráveis, que podem tanto significar um suborno
visual para o jogador, que aprecia cenários muito bem elaborados, graficamente
impressionantes e visualmente próximos dos lugares reais aos quais referem, como confundir
os mesmos nas metas a serem atingidas. Além disso, são por eles que os jogadores passam,
cumprindo metas menores, e mesmo o grande objetivo de curto prazo pode ser observado
como conclusão parcial do todo narrativo videolúdico.
Steven Johnson nomeia esta narrativa como construto de vários objetivos parciais e a
habilidade dos jogadores de administrar simultaneamente todos eles, mantendo as noções de
longo e curto prazo com o termo telescopia, “[...] pela maneira como os objetivos se encaixam
uns nos outros, tal qual um telescópio recolhido” (JOHNSON, 2012, p. 48). Um exemplo
amplo de telescopia no jogo Assassin’s Creed é ilustrado na figura dos vilões que o
4 Optou-se por manter o termo em inglês pela convergência de sentidos atribuídos na literatura e nos jogos, onde
um herói precisa passar por provações em busca de um tesouro ou outra recompensa.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 855
personagem Altaïr precisa combater; figuras chave na Terra Santa, em Jerusalém, cada um é
baseado em figuras históricas da Terceira Cruzada. Enquanto o personagem precisa entender a
ligação entre seus alvos menores e Robert de Sablé, seu grande antagonista até o momento, o
jogador precisa administrar todas estas tarefas, que abarcam as tarefas menores, também
organizadas em telescopia, a serem realizadas como cumprimentos parciais.
Numa história cujo desenrolar envolve a navegação do espaço e o cumprimento de
tarefas e objetivos de curto e longo prazo, elementos como a sondagem e a agência trazem
recompensas parciais, ou seja, a conclusão de etapas menores do enredo, como também a
passagem por uma parte do labirinto. Janet H. Murray chama de agência a experiência de
participar da narrativa, realizando tarefas que geram resultados tangíveis (MURRAY, 2003, p.
127). Esta é uma premissa básica que pode ser observada em todos os jogos eletrônicos, pois,
como aponta Aarseth (1997, p. 2), o papel do leitor/jogador no desenrolar da história é
justamente o diferencial da narrativa ergódica para as não-ergódicas. O pesquisador
norueguês ilustra essa diferença com a metáfora de um espectador de um jogo de futebol que
pode especular, supor, extrapolar, mas não terá o prazer da influência de um jogador: “Vamos
ver o que acontece quando eu faço isso” (AARSETH, 1997, p. 4). Frase que ilustra, também,
o processo de sondagem, cunhado por Steven Johnson, que se dá quando o jogador explora a
física do jogo de acordo com as instruções básicas oferecidas no início (JOHNSON, 2012, p.
40). Johnson explica melhor o processo de sondagem com a divisão feita por James Paul Gee,
pesquisador especializado em videogames, onde o jogador deverá sondar o mundo virtual;
refletir sobre a sondagem feita, de modo a desenvolver uma hipótese; sondar a veracidade da
sua hipótese nesse mundo virtual e avaliar o efeito para aceitar ou reavaliar a hipótese. Esse
ciclo é chamado por Gee de “sondar, criar hipóteses, sondar de novo, repensar” (GEE, apud
JOHNSON, 2012, p. 42).
Racionalizando os conceitos apresentados até o presente momento em função da
análise do jogo Assassin’s Creed, mais precisamente do cumprimento das tarefas já citadas,
podemos ver uma relação de interdependência ente sondagem e telescopia, se retomarmos
este segundo conceito como a forma de organizar as tarefas em conjunto com a noção de
sondagem, pensando-a como a forma de exploração que guiará o jogador no cumprimento
destas. Tomando como exemplo o momento em que Altaïr precisa atingir seu primeiro alvo,
Tamir, podemos acompanhar (seja como expectador ou participante ativo) o personagem
explorando a cidade de Damascus, onde o seu alvo se encontra; pedindo informações a
pessoas, observando, ouvindo conversas, etc. Todas estas tarefas podem ser incluídas tanto
como sondagem, dado o caráter explorador destas atividades, como telescopia, pois são
Nas fronteiras da linguagem ǀ 856
objetivos parciais para a chegada ao souk5, onde Tamir possui um comércio ilegal de armas. O
jogo, neste caso, apresenta um conjunto de enredos fixos aliados aos momentos de
participação do jogador. Dito de outro modo, a participação gera resultados tangíveis, sim, o
jogador explora a mecânica do jogo e, a partir disso, desenvolve suas estratégias, mas a saída
deste labirinto desencadeia um evento fixo, pré-concebido no enredo da história e comum a
todos os jogadores da obra.
A grande limitação do labirinto é conter apenas uma saída, inibindo percursos mais
ousados dos personagens. Aarseth atenta para os ecos das estratégias inacessíveis ou não
escutadas; caminhos não percorridos nos quais o jogador é constantemente lembrado, como
vozes que não foram escutadas (AARSETH, 1997, p. 3). “Cada decisão fará algumas partes
do texto mais, outras menos, acessíveis, você poderá nunca saber os resultados exatos das
suas escolhas; ou seja, o que você perdeu” (AARSETH, 1997, p. 3, tradução minha6). O
conceito é bastante provocativo ao caso dos jogos eletrônicos, que já apresentam
características mecânicas que implicam a possibilidade de existirem bifurcações no enredo e
finais menos limitados. Nesse ponto, os jogos de ação, gênero ao qual a franquia Assassin’s
Creed se encaixa, de modo geral, apresentam estruturas de enredo um tanto conservadoras; os
mapas são amplos e possuem vários caminhos, os objetivos/tarefas são mais abrangentes ao
jogo e extrapolam o enredo, mas os eventos fixos continuam limitando de forma causal os
resultados destas tarefas.
É inegável o avanço dos elementos cinematográficos dos videogames, possibilitando
que os títulos apresentassem dublagem e trilha sonora de qualidade, cutscenes e modelagens
3D que tornam os personagens e cenários muito próximos da realidade, que, somados à
sofisticação mecânica adquirida nas últimas décadas, demandam um esforço intelectual maior
do jogador, tanto em relação à manipulação de controles, que tem se tornado cada vez mais
complexa, quanto à leitura de códigos provenientes de diversas naturezas, como a imagem (e
isto inclui o movimento), o som, e os elementos textuais, que caracteriza o que chamaremos
de letramentos multimodal e ludológico7. Se por um lado esse avanço significou uma melhora
na forma como os jogos eletrônicos representam o mundo, por outro o investimento, em
grande parte dos casos, recaiu massivamente sobre estes recursos, em detrimento da atenção
5 Zoco, em português, termo que designa um uma feira periódica nos países árabes. Optou-se por manter no texto
a nomenclatura utilizada no jogo. 6 Each decision will make some parts of the text more, and others less, accessible, and you may never know the
exact results of your choices; that is, exactly what you missed. 7 O letramento multimodal refere-se à leitura de construções de significados provenientes de vários modos
semióticos enquanto o ludológico refere-se à leitura dos elementos de um jogo eletrônico.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 857
voltada à criação de rumos conflitantes, cuja visão estética é representada pela figura de um
rizoma.
Para os jogadores, este outro processo é igualmente desafiador e reconfortante, pois ao
mesmo tempo em que o seu percurso seria um tanto nublado; na ausência de um caminho
certo e definitivo, “[...] encena-se uma história de perambulações, de atração por rumos
conflitantes, [...] de uma sensação de impotência para se orientar ou encontrar uma saída; [...]
o fato de o enredo não se resolver significa que nenhuma perda irreparável será sofrida”
(MURRAY, 2003, p. 133). Devemos levar em conta, também, que liberdade dada pelo rizoma
ou mesmo a navegação com limites do labirinto, que também possui interatividade e seus
níveis de sondagem e agência, podem causar no jogador uma sensação de autoria sobre a
história. A interação com os lugares e outros personagens aliada aos efeitos causados pelas
suas ações dão ao jogador a ilusão de poder máximo sobre o mundo navegado. Espen J.
Aarseth define este desejo, muitas vezes frustrado, do jogador por algo que transcenda o ato
interpretativo, constituindo um controle sobre a narrativa: “Eu quero contar a minha história;
a história que não seria possível sem mim” (AARSETH, 1997, p. 4, tradução minha8). Ele
argumenta que de fato existe um certo controle, até certo ponto, mas que este senso de
consequência individual é, na maioria das vezes, ilusório. Janet Murray (2003, p. 149), por
sua vez, aponta uma distinção entre agir, ainda que de forma criativa, dentro de um ambiente
pré-concebido e construir seu próprio ambiente. A autora atenta para o fato de que os
jogadores recebem possibilidades prescritas pela programação, que delineia, também, os
limites da experiência de navegação, além de já ser um tanto limitada no processo de autoria
(o autor dificilmente conseguirá atender à demanda de todos os jogadores possíveis durante o
processo criativo). A este processo criativo, possível através do meio ludológico e reforçado
com a mídia digital a autora dá o nome de autoria procedimental.
Para Murray, autoria procedimental “significa escrever as regras para o envolvimento
do interator, isto é, as condições sob as quais as coisas acontecerão em respostas às ações dos
participantes” (MURRAY, 2003, p. 149). Isso quer dizer que as ações de personagens como
Altaïr e as atividades dos jogadores foram prescritas através de padrões e normas
estabelecidos. Enquanto o programador pensa em um repertório de ações e resultados, cabe ao
jogador fazer a história progredir através da sua interferência, improvisando um percurso
particular dentre as muitas ações possíveis previstas pelo autor e postas ao seu dispor através
da programação e prescrição de regras. Os jogos eletrônicos destacam-se das demais
8 "I want this text to tell my story; the story that could not be without me."
Nas fronteiras da linguagem ǀ 858
plataformas pela forma como estas regras são distribuídas e apresentadas; elas não são todas
entregues de cara, mas escondidas e apresentadas ao longo do jogo, de acordo com a sua
relevância para os objetivos mais imediatos.
Dados do manual do primeiro Assassin’s Creed para PC apresentam apenas o perfil
do(s) protagonista(s), seus controles básicos e modos de verificar o seu status, enfim o que
Janet Murray nomeia com o termo Interatividade; o jogador aprende como interagir com o
jogo, mas o que ele de fato terá que fazer com isso, os objetivos e as formas de alcançá-los só
serão revelados no momento em que forem relevantes, estes estarão mais ligados à
procedência da narrativa, uma vez que os objetivos serão revelados junto com a história e os
métodos são, na maioria das vezes, intuitivos, e precisam ser descobertos, através do já
apresentado processo de sondagem. “Essa é uma das razões pelas quais os videogames
podem ser frustrantes para os não iniciados. Você senta ao computador e pergunta: ‘O que
devo fazer?’ Quem costuma jogar vai responder: ‘Você precisa descobrir o que precisa fazer’
(p. 40)”.
Além do manual, o jogo apresenta um recurso chamado Memory Corridor, um cenário
multifuncional do jogo que, primeiramente, se apresenta como uma sala de treinamento dos
recursos do jogo e ações possíveis. Como o jogo é apresentado em camadas, onde você joga
com um personagem contemporâneo que acessará as memórias de Altaïr através de um
programa, processo que será melhor detalhado no capítulo a seguir, recursos como o Memory
Corridor podem ser vistos como uma forma metalinguística de ditar as instruções do jogo,
sem que isso o torne menos verossímil. Neste caso, o jogo Assassin’s Creed parece estar
visando não só os jogadores já letrados na mídia videolúdica, como também os jogadores
casuais e também os não-jogadores, o que talvez justifique, também, a existência da
adaptação literária do enredo dos jogos.
Uma Cruzada Multimodal
No presente trabalho, estudamos, até aqui, conceitos estruturantes da mídia
videolúdica, à qual pertence os jogos da série Assassin’s Creed. Este capítulo, então, dedica-
se à análise da tradução intersemiótica literária em contraste com os jogos. Para isso,
contaremos com a definição de Roman Jakobson, linguista russo que cunha o termo para
tratar da tradução em que signos verbais são interpretados e recriados por sistemas de signos
não verbais. O que acontece, no caso da adaptação estudada neste trabalho, é um pouco
diferente, senão contrário, uma vez que estes signos que são, desta vez, multimodais, levando
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 859
em conta que o significante das referidas obras videolúdica usam dos signos verbais e não-
verbais, foram reinterpretados por apenas signos verbais, que é o caso da mídia literária, ou
seja, a obra literária não é a fonte de adaptação, como geralmente ocorre, mas o texto
adaptado.
Como em muitos outros casos de jogos eletrônicos, em Assassin’s Creed,
acompanhamos uma narrativa ergódica, sim, dados os esforços não triviais para moverem a
história, porém como todos os grandes eventos fixos; o jogador até pode traçar o seu caminho
até estes eventos fixos e, até certo ponto, interferir no comportamento do personagem, mas os
pontos do enredo onde eles chegarão através destas ações já foram pré-concebidos. Isto não
quer dizer que apenas os jogos que seguem a linha narrativa da série possuem essa
característica. De certa forma, todos os jogos são desenvolvidos com ações e efeitos pré-
concebidos, esta é a própria noção de programação e desenvolvimento, abordada pelos
estudos complementares de autoria procedimental por Janet Murray e física do jogo por
Steven Johnson, a diferença é existem jogos muito mais abertos que dão a liberdade ao
jogador para não seguirem um script sem que isto torne o deixe estagnado no mundo ficcional
no qual está imerso. Por outro lado, isto denota, também, uma proximidade narrativa entre as
mídias, o que torna a relação dos textos como um ponto facilitador da adaptação, em questão
de enredo.
Gerard Genette, crítico literário francês e teórico da literatura, define esta relação entre
as obras como hipertextualidade. Genette chama o texto B, que neste caso é o romance A
Cruzada Secreta, de Oliver Bowden, de hipertexto, que está relacionado a um texto A, que
neste caso são dois jogos, Assassin’s Creed e Assassin’s Creed: Bloodlines. O crítico literário
defende que todo hipertexto carrega marcas do seu texto fonte, relação que nomeia a sua obra
Palimpsesto, na qual ele discute esta teoria. “Um palimpsesto é um pergaminho cuja primeira
inscrição foi raspada para se traçar outra, que não a esconde de fato, de modo que se pode lê-
la por transparência, o antigo sob o novo” (GENETTE, 2010, p. 7). A partir deste conceito, é
possível notar, além da fidelidade semântica, vestígios de processos característicos dos
videogames, já analisados no capítulo anterior, na obra literária.
Contrastando os jogos com o livro, podemos ressaltar que, primordialmente, a
perspectiva é o maior ponto de divergência entre as obras e mesmo assim, caracteriza uma
equivalência. O jogo é narrado em duas camadas: a primeira constituída pelo núcleo de
Desmond Miles, um jovem que é sequestrado pelas Indústrias Abstergo, por conta da sua
descendência. Na mitologia do jogo, as memórias dos seres vivos são passadas
hereditariamente, sendo possível acessá-las através de um programa chamado ANIMUS.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 860
Detentora do programa, a empresa sequestra Miles, descendente de Altaïr Ibn-La'Ahad,
membro de uma ordem de Assassinos surgida no mediterrâneo, para acessar as memórias
deste Assassino, que combateu os cavaleiros templários no período da terceira cruzada.
Desmond Miles e todos os elementos ficcionais do seu núcleo não existem na obra literária,
mas isto não quer dizer que o livro não tenha encontrado uma forma de manter a narrativa em
duas camadas. O livro mantém a narrativa em primeira pessoa, mas na perspectiva de Niccolò
Polo, pai de Marco, e aquele que vai contar a história de Altaïr.
Nesta segunda camada, podemos observar um fenômeno que transcende o conceito de
tradução intersemiótica e adaptação, quando a história de Altaïr contada no livro caracteriza
uma convergência entre os enredos de dois jogos, indo mais além, quando apresenta uma
história não contada do herói, que vai de segredos do seu passado, contando a sua origem,
infância e entrada na Ordem, ao fim da sua vida, não contida nos jogos, que conta os
desdobramentos de suas últimas batalhas. O jogo, neste sentido, acaba amarrando histórias
que já são complementos de formatos distintos, uma vez que Bloodlines foi lançado apenas
para o Playstation Portable, diferente do seu antecessor, lançado em vários outros consoles,
com exceção desse. O que tínhamos até o lançamento do livro era um caso de composto
narrativo transmidiático, pois, apesar de ambas as obras serem videolúdicas, o jogador
deveria migrar entre as várias plataformas onde uma história era contada em partes e o livro
tenta ao máximo manter os enredos dos jogos na adaptação. A obra acaba sendo, desta forma,
um ponto de convergência entre as histórias amarradas pela adaptação e acréscimo de detalhes
inéditos deste enredo que podem ser considerados, também, como outra parte da história.
Esse tipo de narrativa se caracteriza pelo uso de diferentes mídias na formação de
sua estrutura. Para explica esse fenômeno, Jenkins (2009) se reporta ao exemplo de
Matrix, em que partes da narrativa se encontram na sequência de filmes, no game de
mesmo nome e nos quadrinhos, The Animatrix (2003). Essas partes exercem uma
relação de complementariedade formando um todo narrativo. (JENKINS apud
PESSOA, 2011)
Como decorrência desta convergência de histórias, o livro acaba suportando uma
característica predominantemente videolúdica que pode acabar espantando os leitores não-
jogadores: a quantidade de vilões. É característico dos jogos eletrônicos a divisão da narrativa
em fases, objetivos menores a serem cumpridos que vão, parcialmente, construindo a história
do jogo e que, geralmente apresentam um Boss Character, popularmente conhecido no Brasil
como “Chefão”. Em obras literárias, o mais comum é que haja um grande vilão, então, os 9
alvos, apenas no primeiro Assassin’s Creed, recebidos em lista para serem combatidos por
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 861
Altaïr, que integram cada um o seu próprio enredo, podem tornar a narrativa um pouco mais
rápida e movimentada do que os leitores dos romances vitorianos, por exemplo, estão
acostumados. Ao mesmo tempo, esta “novidade” dá a esses leitores uma noção de como
funciona esta dinâmica ludológica de fases. O jogo também pode proporcionar um vislumbre
do que seria a sondagem através das estratégias de exploração dos lugares de Altaïr, seguidas
dos seus planos de ação, ou mesmo a hierarquização dos seus objetivos de longo e curto
prazo, que caracterizam a telescopia. Contudo, a noção de agência, ou seja, a sensação de
poder sobre o curso da narrativa jamais será vivenciada na obra literária.
Considerações Finais
Como desdobramento de uma pesquisa de Iniciação Científica, que também está sendo
reformulada como monografia para obtenção do grau de Licenciatura em Letras, Língua
Inglesa e Literaturas, este artigo surge como uma forma de organização parcial das referências
estudadas até o presente momento e desenvolvimento embrionário da análise dos objetos. A
pesquisa buscou estudar o fenômeno da tradução intersemiótica dos jogos Assassin’s Creed e
Assassin’s Creed: Bloodlines da desenvolvedora Ubisoft no livro Assassin’s Creed: A
Cruzada Secreta, amparadas nos conceitos estruturantes da mídia videolúdica e das teorias da
adaptação e transmídia. Fica então objetivado a reelaboração dos objetivos da pesquisa
anterior a partir das considerações deste trabalho.
É notável, através desta análise, que a obra adaptada assume um caráter que transcende
a noção de tradução/transmutação de Jakobson. Num primeiro momento, o livro aparenta
manter a fidelidade de um blockbuster cinematográfico, e sendo produzido no mesmo período
e, portanto, contexto cultural, pode deduzir-se que foi destinado ao mesmo público do jogo. A
teoria da cultura de convergência de Jenkins ajuda a reforçar esta ideia. Por fim, um olhar
mais atento enxerga uma tentativa de mediar não somente este enredo, como também o
gênero, visando um novo público. Pode-se considerar, ainda, que os vestígios observados, na
acepção de Genette, podem ter sido deixados de forma consciente. Neste caso, o autor
supostamente tivera em mente que parte do seu público não conhecia as convenções do
gênero videolúdico e não eram, portanto, letrados. A partir disso pôde-se delinear uma
pesquisa que visava a confluência de duas teorias que se combinam para explicar o fenômeno
estudado.
Referências
Nas fronteiras da linguagem ǀ 862
AARSETH, Aspen J.. Cibertext – perspectives on ergodic literature. London: The Johns
Hopkins Press Ltd., 1997.
ASSASSIN’S CREED. Ubisoft Montreal., Montréal - QC, 2007.
BOWDEN, Oliver. Assassin’s Creed: A Cruzada Secreta. Tradução de Domingos Demasi –
18ª edição. Rio de Janeiro: Galera Record, 2014.
GENETTE, Gerard. Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Tradução de Cibele Braga,
Erika Viviane Costa Vieira, Luciene Guimarães, Maria Antônia Ramos Coutinho, Mariana
Mendes Arruda, Miriam Vieira. Belo Horizonte: Edições Viva Voz, 2010.
JAKOBSON, Roman. Aspectos Linguísticos da Tradução. In: Linguística e Comunicação.
São Paulo: Cultrix, 2000.
JOHNSON, Steven. Tudo o que é Ruim é Bom para Você: como os games e a TV nos tornam
mais inteligentes. Tradução de Sérgio Góes. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
MURRAY, Janet H. Hamlet no Holodeck: o futuro da narrativa no ciberespaço. Tradução de
Elissa Khoury Daher, Marcelo Fernandez Cuzzio. São Paulo: Itaú Cultural: Unesp, 2003.
PESSOA, Marcos Paulo Lopes. De Volta ao Inferno: um caso de tradução entre literatura e
videogame. 2011. 143 f.. Dissertação (Mestrado em Educação e Contemporaneidade) -
Departamento de Educação, Universidade do Estado da Bahia, Salvador, 2011.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 863
CONSIDERAÇÕES SOBRE O HIPER-REALISMO DE ANDRÉ
SANT’ANNA [Voltar para Sumário]
Felipe de Castro Cruz (UFPB)
Jéssica Rodrigues Férrer (UFPB)
1. Introdução
André Sant’Anna nasceu em 1964, e é filho do também escritor Sérgio Sant’Anna.
Sua primeira publicação surge apenas em 1998, com a obra Amor. Sua escrita revela-se como
um conjunto singular de traços dentro da atual produção literária brasileira. Melhor
explicando, há aspectos na escrita do mineiro que apesar de serem compartilhados com outras
produções da mesma época, são intensificados, de modo a tornar a obra de André um objeto
de destaque dentre as demais. Neste sentido, é importante observar a importância deste autor
para a constituição do que hoje se resolveu chamar de literatura brasileira contemporânea.
Alguns autores citam André como um dos escritores fundamentais neste processo de
reconfiguração da literatura. Dentre eles, Beatriz Resende e Erik Schollhammer.
Resende, em Contemporâneos: Expressões da Literatura Brasileira no Século
XXI (2008), insere André num conjunto de novos escritores, ao qual a autora se refere como
produtor de uma “ficção de importância, que merece atenção, uma literatura robusta, com
propostas de criação inovadoras” (RESENDE, 2008, p. 23). Ora, para Resende, a literatura
brasileira contemporânea tem como marco inicial a publicação de Cidade de Deus, de Paulo
Lins, em 1997. Esta obra é a que primeiro reúne as características de toda uma produção que
se intensifica com o passar dos anos: a cidade como palco principal, a violência como aspecto
recorrente e a origem do escritor. Estas características, à exceção do aspecto da origem do
escritor, são contempladas e intensificadas na obra de Sant’Anna. A violência descrita beira
os limites do suportável, e a cidade passa a ser vista por olhos críticos e ácidos. A inovação na
escrita do mineiro se dá por meio de um realismo exacerbado, que extrapola o simples retrato
de uma realidade, e com isso adentra, também o universo metaficcional, aspecto que lhe dá o
devido destaque dentre os do seu tempo.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 864
É justamente este realismo intenso que é destacado por Erik Schollhammer em Ficção
brasileira contemporânea (2011), com relação a André Sant’Anna. Segundo o crítico, “não é
exagero dizer que a escrita de André não se parece com nada do que vem sendo produzido por
sua geração” (SCHOLLHAMMER, 2011, p. 71). Isto porque o realismo, que é um dos
aspectos mais marcantes da literatura contemporânea brasileira, extrapola o aspecto da
descrição, e passa a ser, também, constitutivo do próprio discurso construído pelo narrador. É
a este nível de realidade ficcional que o autor em questão aponta a obra de André Sant’Anna
como sendo hiper-realista.
Por estas características destaca-se o mineiro André Sant’Anna no cenário da
atual literatura brasileira. Alguns destes aspectos serão analisados daqui por diante, a partir de
um conto especificamente: A Lei (2006). O objeto estético que será estudado aponta para
abordagens diferentes na obra de André e põe em evidência aspectos emblemáticos dentro da
obra do autor, tais como o realismo levado ao seu grau máximo de efeito e a criticidade acerca
do tempo corrente, o que torna a obra do mineiro, seguindo os pensamentos de Agamben,
uma obra contemporânea.
2. Considerações sobre o realismo
Desde a publicação de Os Prisioneiros, em 1963, do escritor mineiro Rubem Fonseca,
um aspecto tem sido instituído como uma das principais vertentes da literatura brasileira: o
realismo. Este realismo tem início, primeiro, conceitualizado como brutalismo pelo crítico
Alfredo Bosi, devido ao alto grau de crueza nas descrições da violência urbana nos contos de
Fonseca. Boa parte desta brutalidade, também, tem como fundamento a presença de
personagens marginalizados. Logo, pode-se perceber a literatura de Fonseca como grande
marco inicial de uma forma de escrita singular que passou a ser configurada na literatura
brasileira contemporânea.
De certa forma, esta configuração passou a ser moldada conforme as necessidades do
contexto social. Desta maneira, o realismo não pode ser entendido como a mera transposição
descritiva de determinadas situações de violência. Ou ainda, como a exploração, no âmbito da
linguagem, de imagens violentas e desconfortantes. A arte, vale salientar, à esta altura, não
servia apenas como um simples instrumento de desconforto. O brutalismo ou realismo, como
se queira chamar, tinha, ao mesmo tempo, uma justificativa e uma função. Assim, este
realismo contemporâneo, que difere do realismo do século XIX, pode ser entendido como
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 865
mais engajado e consciente politicamente. É sobre este novo realismo que comenta
Schollhammer:
Diríamos inicialmente, que o novo realismo se expressa pela vontade de relacionar a
literatura e a arte com a realidade social e cultural da qual emerge, incorporando essa
realidade esteticamente dentro da obra e situando a própria produção artística como
transformadora.
Estamos falando de um tipo de realismo que conjuga as ambições de ser
“referencial”, sem necessariamente ser representativo, e ser, simultaneamente,
“engajado”, sem necessariamente subscrever nenhum programa político ou
pretender transmitir de forma coercitiva conteúdos ideológicos prévios.
(SCHOLLHAMMER, 2011, p. 54).
Revela-se, então, o realismo, como uma das principais tendências da
contemporaneidade, uma vez que a partir dele percebemos configurações artísticas que
mimetizam a realidade urbana, violenta, de um ponto de vista afastado, como se consciente,
criticamente, de que o todo apresentado enquanto narração se constitui, na verdade, como
uma denúncia. Isto é exatamente o que caracteriza o contemporâneo para Agamben (2009,
p.59): uma relação singular com o seu próprio tempo.
3. Considerações sobre a metaficção
A capacidade da literatura de refletir e chamar a atenção sobre si mesma, para seus
próprios processos linguísticos e de composição, sempre existiu. As narrativas metaficcionais
não constituem um fenômeno novo. Ainda assim, é inegável o fato de que essa forma artística
tem ganhado relevo na pós-modernidade, chegando a ser um dos fenômenos estéticos mais
característicos da arte contemporânea.
Mas o que vem a ser, afinal, a metaficção? Gustavo Bernardo (2010) a define como
“uma ponte interna, e nela se pensa a ficção dentro da ficção” (p.37), e ainda, “a metaficção é
uma ficção que não esconde o que é, mantendo o leitor consciente de estar lendo um relato
ficcional, e não um relato da própria verdade.” (p.42) Sendo assim, os chamados textos
metaficcionais, autorreflexivos, anti-ilusionistas ou mesmo, narcisistas, são aqueles que não
buscam camuflar o seus processos de construção, antes, porém, jogam com a linguagem de
modo que demonstram uma autoconsciência textual.
Linda Hutcheon, por sua vez, conceitua a metaficção como:
(...) ficção sobre ficção – isto é, ficção que inclui a si mesma um comentário sobre
sua própria identidade e/ou lingüística. ‘Narcisista’ – o adjetivo qualificativo
escolhido aqui para designar essa autoconsciência textual – não tem sentido
Nas fronteiras da linguagem ǀ 866
pejorativo, mas principalmente, descritivo e sugestivo, como as leituras alegóricas
do mito de Narciso. (HUTCHEON, 1984, p. 1)1
Assim sendo, a narrativa metaficcional demonstra uma profunda autoconsciência em
relação à produção artística e ao papel desempenhado pelo leitor. De acordo com Patricia
Waugh (1984: pág. 2), “metaficção designa e escrita ficcional que chama a atenção,
autoconcientemente e sistematicamente, para seu status de artefato com o objetivo de propor
questões sobre a relação entre ficção e realidade.” A narrativa metaficcional assume que a
escrita é sempre um discurso sobre a realidade, dessa forma, o ‘real’ do texto nunca deixa de
ser mediado e construído linguisticamente.
4. O hiper-realismo em André Sant’Anna
Desde Aristóteles2 a expressão literária é entendida como mimese, ou seja, uma
representação da realidade. Desta afirmação decorrem alguns implícitos, um deles o de que a
literatura deve representar o mundo visível tal e como o conseguimos apreender. Esta
interpretação parece ser um tanto exagerada, principalmente quando pensamos na literatura
como um meio artístico, portanto livre para ser configurado da forma como o autor preferir.
No entanto, a discussão que podemos levantar neste instante não gira em torno desta questão,
mas de outra tão importante quanto: por que representar a realidade?
Candido, em De Cortiço a Cortiço (1991, p. 111), já levanta um questionamento no
que diz respeito à crítica literária. Ora, entender a literatura unicamente como uma realidade
duplicada é entender que o “trabalho plasmador” é, na verdade, um trabalho sem grandeza, o
que dispensaria completamente o olhar crítico. Assim, “seria melhor a visão que pudesse
rastrear na obra o mundo como material, para surpreender no processo vivo da montagem a
singularidade da fórmula segundo a qual é transformado no mundo novo, que dá a ilusão de
bastar a si mesmo”. Em outros termos, a obra deve ser encarada como um mundo fechado, e
este mundo, longe de ser algo dispensável, tem uma significação.
A que realidades imita André Sant’Anna no conto por hora estudado? Ora, a escrita
parece ser um objeto de experimentação para o mineiro, uma vez que seu conto apresenta
aspectos tão inovadores quanto estranhos, no sentido dos Formalistas Russos. Por exemplo,
1 No texto original: “(...) is fiction about fiction – that is, fiction that includes within itself a commentary on its
own narrative and/or linguistic identity. ‘Narcisistic’ – the figurative adjective chosen here to designate this
textual self-awareness – is not intended as derogaty but rather as descriptive and suggestive, as the ironic
allegorical readings of the Narcissus myth which follows these introductory remarks should make clear.” 2 Cf.: ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Nova Cultural, 1987.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 867
ao iniciar o conto A Lei com a constatação de que é “burro” porque é da polícia, Sant’Anna
coloca em discussão um preconceito estabelecido socialmente, mas este preconceito não está
disposto de forma simples no texto, antes a partir de uma elaboração artística que torna
estranha a narrativa:
Eu nunca percebi isso, mas eu sou muito burro. Não parece nem que sou eu que
estou pensando isso tudo que eu estou pensando agora. E muito menos que sou eu
que estou pensando nessas palavras que estão saindo no papel. (...) Eu não estou
escrevendo. Eu só estou pensando que eu estou escrevendo. É que eu sou burro.
Sabe por quê? Porque eu sou da polícia. (SANT’ANNA, 2006, p. 39)
O primeiro impacto que o leitor tem é com a referência que se faz ao autor do texto.
Não o próprio Sant’Anna, mas o “eu” que aparece de súbito na primeira frase do texto. Seria
um recurso metaficional ou um exacerbado aspecto de realismo, em que o personagem se
coloca explicitamente como autor do texto? A segunda hipótese nos parece mais plausível na
medida em que o personagem-autor se identifica como policial, “burro” e corrupto. Ora, esta
forma de realismo apresenta um certo grau de criticidade trabalhada artisticamente. Ou seja,
não é apenas uma cópia da realidade, mas uma imitação com uma determinada finalidade.
Esta finalidade, assim como vem sendo com as demais obras da literatura contemporânea, tem
uma preocupação social, muitas vezes configurada ironicamente como uma denúncia. Assim é
que o policial autor do texto denuncia-se, narrando ações violentíssimas e de forma crua,
lembrando o que Bosi caracterizara como brutalismo (SANT’ANNA, 2006, p. 43):
Você já enfiou o seu pau na narina de uma mulher? Eu já, porque eu sou da
polícia. Então, a gente fica horas e mais horas fodendo a puta, batendo na puta,
rindo da cara da puta, enfiando coisas (...). A gente, polícia, é burro, mas tem
muita imaginação. Você já enfiou um livro no cu de alguém?
O realismo se configura, neste caso, também no nível da linguagem. A inserção de
palavrões associados ao ato hediondo praticado pelo policial atribui à narrativa um alto grau
de realidade, grau este que chega a incomodar, de fato, a recepção. Assim, podemos perceber
o realismo neste conto pelo menos de duas formas: do ponto de vista das cenas e também do
da linguagem, parecendo extrapolar a diegese da narrativa. O personagem totalmente
esvaziado, no que diz respeito às ideias e à reflexão, é um retrato, também, do modo como é
visto um determinado grupo social.
Podemos encontrar um aspecto crucial em A Lei: a consciência da escrita. No conto, o
autor do texto se define como um policial corrupto, que apesar de sua confessa falta de
consciência da escrita mostra-se totalmente a par dos instrumentos que compõem a narrativa,
de modo que o leitor passa a ter conhecimento da narrativa completa e, ao apreendê-la, tem
Nas fronteiras da linguagem ǀ 868
consciência da ironia que é a aparente burrice do policial. No entanto, fica como aspecto
crucial no texto algo que o torna ainda mais realísticos: a visão do texto ainda sendo
construído. Talvez seja este o diferencial entre André Sant’Anna e seus contemporâneos. Ora,
vejamos um trecho de A Lei:
Agora eu sou uma primeira pessoa pós-moderna, que não tem dono, que é
metalinguagem, que é o fascismo metalinguado dessa porra de autor fascista que leu
uma vez o Glauber Rocha dizendo que botava o Antonio das Mortes atirando no
povo (...).
Em A Lei, temos sempre a lembrança de que o que se está lendo é, na verdade, ficção.
Não existe qualquer preocupação por parte de Sant’Anna em convencer o leitor de que o que
ele está lendo é real, talvez garantindo um maior nível de verossimilhança. Pelo contrário:
existe a preocupação de lembrar, instante após instante, que o que se lê ali não é real. Há
também o foco no que Linda Hutcheon (1984) conceitua como mimese do processo. Segundo
essa autora, através da metaficção, a ligação entre vida e arte foi refeita em um outro nível –
no processo do contar a história e no novo papel exercido pelo leitor. Em outras palavras, a
mudança ocasionada pela narrativa metaficcional subdivide o conceito de mimeses. O que
ocorre é uma mudança de foco. Enquanto o romance realista do século XIX concentrava-se na
mimese do produto, na história contada, buscando realizar um espelhamento entre obra e
realidade externa, o texto narcisista evidencia a mimese do processo, ou seja, mais importante
do que a história contada é saber o como essa história é contada. Essa ênfase é dada no conto
A Lei, em que, como indica o trecho transcrito mais acima, o próprio personagem narrador se
reconhece enquanto tal, fazendo assim, uma alusão à figura de um autor por trás do artefato
literário, obrigando também o leitor a relembrar o status ficcional daquilo que se está lendo.
Quando o personagem diz ser “uma primeira pessoa pós-moderna” ele demonstra,
ironicamente, uma autoconsciência de seu papel na diegese.
Outro aspecto relevante no texto é justamente o dos personagens que são construídos,
em sua maioria, vazios de subjetividade. Este aspecto se mostra mais evidente em A Lei, à
medida em que os personagens são descritos extremamente esvaziados de qualquer pretensão
de interioridade, quando nem suas vozes são apresentadas para o leitor. A construção do texto
de Sant’Anna dá-se, desta forma, de maneira irônica, pois o texto se mostra mais real à
medida que lembra a farsa, se assim podemos classificar, que é a literatura, e mais que isso, o
autor faz brotar de personagens vazios pensamentos acerca da subjetividade humana. Afinal,
o que pensa o homem, ou mesmo quem seja o homem, não importa. O que importa é pensar a
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 869
condição deste homem na situação posta pelo narrador. Sobre este aspecto contraditório, vale
observar o que afirma Schollhammer (2011, p. 77):
É, paradoxalmente, por meio desse achatamento radical que o super-realismo de
André Sant’Anna consegue criar um jogo de alienação, uma construção artificial que
acaba apontando para algo atrás do signo, algo terrível abaixo do cinismo aparente.
Mais do que uma crítica ideológica da alienação e do estranhamento em potência
afirmativa – no lugar da falta de sujeito, aparece uma subjetividade, e, em vez dos
clichês banalizados e superficiais, sua repetição vigorosa faz emergir a sensação de
uma realidade , traumática talvez, intolerável e dificilmente significável.
É pensando neste paradoxo que não podemos aceitar a literatura – a escrita por André,
em especial – apenas como cópia de uma realidade. À medida que lemos seus contos, fica-nos
mais clara a convicção de que seu autor cria novos mundos, e essa criação, ou recriação, tem a
função de colocar em pauta a realidade na qual vivemos. Embora em A Lei o contexto social
seja aparentemente muito mais enfatizado, temos também outros aspectos relevantes como a
própria criação literária posta a nu. Este realismo de Sant’Anna é construído de forma intensa,
posto que fortemente trabalhado enquanto arte, e não se limita a espelhar realidades, mas
problematizá-las. Pensamos que composto desta forma, o realismo passa para um outro
patamar, este mais elevado, o de hiper-realismo, devido ao grau de dificuldade apresentado
em sua configuração.
Considerações finais
O presente estudo pretendeu esboçar uma análise acerca do hiper-realismo na escrita
do mineiro André Sant’Anna. Para tanto, utilizamo-nos de estudos que versam sobre
determinadas vertentes do realismo, mais especificamente aquele que surgiu, no Brasil, a
partir do brutalismo. Tentamos demonstrar de que forma este brutalismo passou a ser
configurado na literatura brasileira contemporânea. Como aporte teórico, baseamo-nos
principalmente em Schollhammer (2011) e Hutcheon (1984), que respectivamente abordam
questões sobre o hiper-realismo e a metaficção.
A principal contribuição do nosso trabalho foi a conclusão de que o realismo da forma
como é configurado na obra de Sant’Anna não se restringe apenas à mimese do produto, ou
seja, da própria realidade do mundo palpável; pelo contrário, o autor acrescenta a este tipo de
representação a mimese do processo. Melhor dizendo: Sant’Anna utiliza-se de um
instrumento da narrativa, a metaficção – que, em princípio, serve para quebrar a noção de
realidade da diegese do objeto literário –, e inverte sua função, reconfigurando o processo
Nas fronteiras da linguagem ǀ 870
realista baseado num aspecto cujo fundamento é a própria contestação da realidade interna da
obra.
Referências
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios . Tradução Vinícius
Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009
BERNARDO, Gustavo. O livro da metaficção. Rio de Janeiro: Tinta Negra, 2010.
CANDIDO, Antonio. De cortiço a cortiço. Novos Estudos CEBRAP, Nº 30, julho de 1991, p.
111-129.
HUCTHEON, Linda. Narcissistic narrative: the metaficcional paradox. 2 ed. New York:
Methuen, 1984.
JAKOBSON, Roman. Lingüística e comunicação. Tradução J. Blikstein e José Paulo Paes.
São Paulo: Cultrix, 1992.
RESENDE, Beatriz. Contemporâneos: expressões da literatura brasileira no século XXI. Rio
de Janeiro: Casa da Palavra, 2008.
SANT’ANNA, André. Contos cruéis. As narrativas mais violentas da literatura brasileira.
Org. Rinaldo de Fernandes. São Paulo: Geração Editorial, 2006.
SCHOLLHAMMER, Karl Erik. Ficção brasileira contemporânea. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2011.
WAUGH, Patricia. Metafiction. The theory and practice of self-conscious fiction. London and
New York: Routledge, 1984.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 871
TENDÊNCIAS DA LITERATURA BRASILEIRA
CONTEMPORÂNEA
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Felipe Vigneron Azevedo (IFF)
Antes de discorrermos acerca de algumas tendências da literatura brasileira
contemporânea, vale pensar o que significa, em si, o conceito de “contemporâneo”. Para
Beatriz Resende, o critério de contemporaneidade é o tempo presente:
Ao iniciarmos qualquer observação sobre a prosa de ficção brasileira
contemporânea, especialmente a praticada na metade dos anos 1990 até o correr
desta primeira década do século XXI, percebemos, de saída, que precisamos
deslocar a atenção de modelos, conceitos e espaços que nos eram familiares até
pouco tempo atrás. Teremos que deixar jargões tradicionais no trato do literário e,
saudavelmente, conhecer termos que vão da antropologia ao vocabulário do
misterioso universo da informática, tudo isso atravessado pelas necessárias reflexões
políticas, pois vivemos hoje, no Brasil e, de modo geral, em toda a América Latina,
um momento em que o viés político, felizmente, tende a atravessar todas as
atividades, o que é uma consequência positiva da volta à plena democracia
(RESENDE, 2008, p. 15).
Em outra posição, se encontra Nietzsche, um dos filósofos mais importantes da
história ocidental e um dos totens da modernidade. Mencionado por Giorgio Agamben, que
pretende, em seu ensaio “O que é o contemporâneo?”, propor uma definição filosófica,
Nietzsche serve não apenas como plataforma para um salto qualitativo, como também é o fio
condutor dos argumentos que serão desenvolvidos pelo filósofo italiano:
Uma primeira e provisória indicação para orientar a nossa procura por uma resposta
nos vem de Nietzsche. Numa anotação dos seus cursos no Collège de France,
Roland Barthes resume-a deste modo: “o contemporâneo é o intempestivo”. Em
1874, Friedrich Nietzsche, um jovem filólogo que tinha trabalhado até então sobre
textos gregos e, dois anos antes, havia atingido uma inesperada celebridade com O
nascimento da tragédia, publica as Unzeitgemässe Betrachtungen, as
“Considerações intempestivas”, com as quais quer acertar as contas com o seu
tempo, tomar posição em relação ao presente. “Intempestiva esta consideração o é”,
lê-se, no início da segunda “Consideração”, “porque procura compreender como um
mal, um inconveniente e um defeito algo do qual a época justamente se orgulha, isto
é, a sua cultura histórica, porque eu penso que somos todos devorados pela febre da
história e deveremos ao menos disso nos dar conta” (AGAMBEN, 2009, p. 58).
Nas fronteiras da linguagem ǀ 872
Especificamente sobre literatura, o professor Karl Erik Schøllhammer concorda com
Nietzsche quanto à definição de contemporâneo. A proposta nietzschiana é de uma
contemporaneidade como resistência. Assim, a definição histórica de marcação temporal de
Beatriz Resende pode ser confrontada com a adesão de Karl Erik a uma proposta mais
filosófica:
“O contemporâneo é o intempestivo”, diz Barthes, o que significa que o verdadeiro
contemporâneo não é aquele que se identifica com seu tempo, ou que com ele se
sintoniza plenamente. O contemporâneo é aquele que, graças a uma defasagem ou
anacronismo, é capaz de captar seu tempo e enxergá-lo. Por não se identificar, por
sentir-se em desconexão com o presente, cria um ângulo do qual é possível
expressá-lo. Assim, a literatura contemporânea não será necessariamente aquela que
representa a atualidade, a não ser por uma inadequação, uma estranheza histórica
que a faz perceber as zonas marginais e obscuras do presente, que se afastam de sua
lógica. Ser contemporâneo, segundo esse raciocínio, é ser capaz de se orientar no
escuro e, a partir daí, ter coragem de reconhecer e de se comprometer com o
presente com o qual não é possível coincidir (SCHØLLHAMMER, 2009, p. 9-10).
A definição de Beatriz Resende é mais ampla e cria uma ilusão de irrestrição: todos os
escritores em atividade nos anos de 1990 e de 2000 são nossos contemporâneos, o que
tornaria impraticável elencá-los, dada a profusão de novos escritores, alguns já estudados e
consagrados, outros tateando um lugar no panteão da literatura brasileira. Um exemplo disso é
o sulista Fabrício Carpinejar – haveria muitos outros, mas, por questão de economia, não são
listados aqui –, que, apesar de ser objeto de estudos acadêmicos e de apresentar uma vasta
produção em prosa, impressa e virtual, desde 1998, não foi contemplado pela referida
pesquisadora. Já a definição de Karl Erik, tomada de empréstimo de Barthes, é mais
delimitada – porém mais controversa, visto que “intempestivo” significa “fora do tempo” –, o
que o faz eleger um “cânone”, ao passo que Beatriz Resende não é afeita a cânones – por mais
que os autores estudados por ela no livro de Contemporâneos (2008) sejam basicamente os
mesmos que figuram no artigo “Possibilidades da nova escrita literária no Brasil”, do livro
homônimo, publicado em 2014, em que aparece também como organizadora.
Surge uma pergunta: o que faz do contemporâneo um contemporâneo, além de sua
intempestividade, em termos de literatura brasileira? Para Beatriz Resende (2008), há três
fatores que definem a literatura brasileira contemporânea: fertilidade, qualidade e
multiplicidade.
A fertilidade é quantitativa: a literatura estaria em alta. O jovem e o consagrado
escritor têm acesso aos mais diversos concursos literários, que oferecem prêmios variados; os
festivais recebem vários espectadores; os projetos de leitura se multiplicam em escolas e em
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 873
empresas; editoras e projetos editoriais emergem, além dos blogs, alimentados por milhões de
internautas, que desejam produzir sua literatura sem mediações de um editor, sem atender a
demandas de mercado, ou que ainda não tiveram a oportunidade de uma publicação impressa.
Beatriz ainda cita a inserção de livrarias em espaços de lazer.
Estamos longe de tal otimismo: ainda que haja proliferação de escritores e de editoras,
não há, visto que falamos do tempo presente, lastro para afirmarmos a sustentabilidade de
ambos. A editora Livros do Mal – liderada por Daniel Pellizzari e Daniel Galera –, por
exemplo, malogrou em pouco tempo. Aliás, justamente no ano de abertura da editora, Daniel
Galera lança, através dela, seu primeiro livro, Dentes guardados. Tornar-se editor foi um
caminho para publicar. Em 26 de março de 2007, em depoimento à Folha de S. Paulo,
caderno “Folhateen”, o escritor afirma: “Nossa vontade era ser lido. Não era vontade de
conquistar fama ou de receber convite de uma grande editora.” Desde 2006, Daniel Galera
fazia parte do catálogo da Companhia das Letras, uma das maiores editoras do país. É
importante citar um comentário de Beatriz Resende a esse respeito:
A verdade é que os jovens escritores não esperam mais a consagração pela
“academia” ou pelo mercado. Publicam como possível, inclusive usando as
oportunidades oferecidas pela internet. E mais, formam listas de discussão,
comentam uns aos outros, encontram diferentes formas de organização, improvisam-
se críticos (RESENDE, 2008, p. 17).
Talvez fosse necessário mencionar que há um desejo de ser lido, de se manifestar, de
se fazer ouvir – uma ânsia, que seja –, característico do escritor brasileiro contemporâneo,
forte a ponto de ele não esperar pelo mercado para publicar: busca os próprios meios,
inclusive chega a financiar suas próprias publicações. Contudo, é leviano afirmar que não haja
tal esperança, dado que mesmo o polêmico Ferréz, que rejeitou sair de sua comunidade em
Capão Redondo para estudar literatura no exterior, com uma bolsa, é vinculado à Editora
Planeta, do grupo Planeta, de origem espanhola, que em 2011 angariou a posição de sexta
maior editora do mundo em faturamento.1
Ainda a respeito da fertilidade: é fato que a FLIP – Festa Literária Internacional de
Paraty – agrega uma multidão. Entretanto, não se pode, levado pela apoteose, afirmar, sem
uma estudo mais sistemático e detalhado, que os festivais literários efetivamente
desempenham o papel de propagadores de literatura; ou que, ao menos, esse é o saldo
primordial desse tipo de evento. Com uma programação bastante heterogênea, incluindo
1 Cf.: <http://exame.abril.com.br/negocios/noticias/as-54-maiores-editoras-do-mundo-e-as-brasileiras-entre-
elas>. Acesso em: 30 jul. 2013.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 874
músicos, cineastas, escritores e outros diversos famosos, é importante considerar que o
glamour do espetáculo contribuiu bastante para a afluência de público, de modo mais
substancial do que a literatura por si mesma.
Karl Erik faz um contraponto interessante com o pensamento de Beatriz Resende,
seguindo o raciocínio da glamourização e corroborando a tese da insuficiência de elementos
para afirmar a fertilidade. Vejamos:
[A] atenção em torno da pessoa do escritor cresceu, e a figura espetacular do “autor”
tanto quanto o objeto livro ganharam maior espaço na mídia – o que não coincide
com ganho de leitores efetivos; tornou-se chique ser autor, e nada incomum ganhar
espaço na mídia mesmo antes de publicar o primeiro livro (SCHØLLHAMMER,
2009, p. 19).
Quanto à qualidade, segunda característica da literatura brasileira contemporânea para
Beatriz Resende (2008), há controvérsias. Por ser um critério estético, não há objetividade na
afirmação. Isso rendeu um debate entre ela e Alcir Pécora, em 2011. O crítico, em 2010, em
um artigo intitulado “O inconfessável: escrever não é preciso”, posicionou-se ferrenhamente
contra a exaltação da literatura brasileira contemporânea, situando-se em posição antagônica à
de Beatriz, em seu livro Contemporâneos: expressões da literatura brasileira no século XXI,
de 2008. Vejamos ambos os pontos de vista, em ordem cronológica:
A segunda constatação – mesmo sob o risco de representar algum namoro
extemporâneo com o cânone – diz respeito à qualidade dos textos e ao cuidado com
a preparação da obra. Esta poderia ser uma contradição em relação à primeira, mas
não é. Sobrevivendo às facilidades do computador, desprezando a obviedade dos
programas de criação de texto, a prosa que se apresenta vive um momento de
qualidade. Em praticamente todos os autores que estão surgindo revela-se, ao lado
da experimentação inovadora, a escrita cuidadosa, o conhecimento das muitas
possibilidades da nossa sintaxe e uma erudição inesperada, mesmo nos autores
muitos jovens deste início de século (RESENDE, 2008, p. 17).
A seguir, as colocações duras enumeradas por Alcir Pécora, das quais destacamos os
itens 2 e 3 apenas:
2. Antologias de autores promissores ou novos lançamentos de escritores
contemporâneos não cessam de aparecer, por piores que sejam. Alguns são jovens,
outros são célebres, outros são simples amigos do editor: qualquer coisa basta. Por
isso mesmo, nada é suficiente como critério de edição, e o publicado basicamente
ajuda a encobrir a percepção evidente de que não há nada de relevante sendo escrito,
nem mesmo há indícios de que essa relevância possa ser descoberta outra vez no
domínio da literatura.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 875
3. Não parece haver nada relevante sendo escrito, essa é a mais provável razão desse
poço, desse mar de coisa escrita.2
A polêmica ganhou as câmeras da série Desentendimentos¸ com a mediação de Paulo
Roberto Pires, editor da revista Serrote.
Um pouco mais acalorada foi a discussão protagonizada por Felipe Pena e Adriana
Lisboa, quando ele, em outubro de 2008, afirmou que a literatura brasileira contemporânea é
“chata, hermética e besta”. Ambos são escritores contemporâneos, mas defendiam posições
antagônicas. O saldo do debate foi o impasse. Citamos passagem de Adriana Lisboa em
resposta a Felipe Pena:
É difícil não enxergar nas entrelinhas de tais atitudes ressentidas o recado: ninguém
presta além de mim, que afirmo que ninguém presta. Quando concessões são feitas,
elas evocam um patrulhamento ideológico bastante fora de época. Só o autor que
vem da periferia é que presta. Os amigos-de-bar-do-fulano são uns oportunistas e, de
modo geral, não prestam. O autor que passou pela universidade não presta. Os
autores brasileiros atuais só escrevem para os seus pares. Generalizações levianas
que não resistem a uma argumentação mais consistente. E que perigam transformar
o mundo literário numa arena de bate-boca digna não de suplemento literário, mas
de revista de fofoca de novela (com a diferença de que literatura interessa a muito
menos gente do que novela).3
A terceira e última característica, segundo Beatriz Resende, seria a multiplicidade.
Concordamos, entretanto há divergências: “[...] o campo literário brasileiro ainda é
extremamente homogêneo” (DALCASTAGNÈ, 2012, p. 7). Regina Dalcastagnè (2012)
defende que os autores prestigiados são parecidos entre si quanto à cor, à classe social,
eventualmente às profissões, vivem nos mesmos locais e possuem o mesmo sexo. É
importante destacar, antes de retornarmos a Beatriz Resende, que essa situação está em
transformação: grupos anteriormente privados do acesso e do ofício da literatura estão
ascendendo e conquistando gradativamente espaços. Aqueles que passaram centenas de anos
à margem estão vivenciando um processo – e, como em todo processo, o efeito não ocorre
imediatamente – de inclusão com resultados visíveis. Um exemplo do que afirmamos foram
as coletâneas organizadas por Luiz Ruffato, nos anos de 2004 e 2005, em que ele reuniu
textos literários de um total de 55 mulheres, sendo que esse número poderia ser bem maior.
Nas palavras do organizador:
Instado em colocar à prova minhas impressões, organizei o volume 25
mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira, lançado em junho de 2004.
2 <http://sibila.com.br/critica/o-inconfessavel-escrever-nao-e-preciso/3977>. Acesso em: 30 jul. 2013. 3 <http://www.marcelomoutinho.com.br/blog/2008/10/a_fogueira_as_vaidades.php>. Acesso em: 09 jan. 2015.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 876
No final do prefácio, após tentar um panorama da história da participação da mulher
na literatura nacional, nomeava outras escritores que, por razões mais diversas, não
puderam ser incluídas naquela antologia, abrindo assim espaço para um possível
segundo volume, que se concretizou e ora é este que apresento. Ao longo das minhas
pesquisas, o número de autoras encontradas foi se multiplicando de tal forma, que
acabei selecionando, para este segundo tomo, não mais 25, mas outras 30 mulheres
(número que poderia ser de 35, 40, 50...) (RUFFATO, 2005, p. 9 - 10).
Retornando à Beatriz Resende, no tópico da multiplicidade: diversos são os temas, as
formas, as abordagens e as ideologias em jogo no cenário dos anos 2000. Essa multiplicidade
se torna possível, dentre outros fatores, pela influência da internet, que proporcionou a muitos
escritores a oportunidade de serem percebidos:
[A] multiplicidade de nossa literatura aparece como fator muito positivo, original,
reativo diante das forças homogeneizadoras da globalização. De algum modo, esse
pluralismo – que se constitui por acúmulo de manifestações diversas e não pela
fragmentação de uma unidade prévia – garantiria várias vozes diferenciadas em vez
de sonoridades em eco ou mero acúmulo reunido sem critério (RESENDE, 2008, p.
20).
A ideia de uma literatura de resistência é produzir diferenças, relativizações; no
entanto, não significa criar algo inteiramente novo, mas, a partir do padrão, criar uma estética
identitária, que faça transparecer a diversidade, a diferença, inclusive parodiando e
desglamourizando o discurso hegemônico.
É nessa obliqüidade de discursos anti-hegemônicos que aparecem recursos que dão
formas múltiplas à criação literária contemporânea: a apropriação irônica,
debochada mesmo, em alguns casos, de ícones de consumo; a irreverência diante do
politicamente correto; a violência explícita despida do charme hollywoodiano; a
dicção bastante pessoalizada, voltada para o cotidiano privado; a memória individual
traumatizada, seja por momentos anteriores da vida nacional, seja pela vida
particular; a arrogância de uma juventude excessiva; a maturidade altamente
intelectualizada; a escrita saída da experiência acadêmica e assim por diante, como
continuaremos vendo (RESENDE, 2008, p. 20).
Beatriz Resende, a partir disso, enumera algumas características dominantes entre os
diversos livros de literatura brasileira contemporânea: violência nas grandes cidades¸
presentificação e retorno ao trágico. Uma das tendências da literatura contemporânea é dar
voz ao excluído, aquele que, graças à força do padrão da mídia, tornou-se invisível e
marginal, inaudível, ou ainda mostrar um universo que estava banido das belas-artes.
Quanto à violência nas grandes cidades, pode-se afirmar que, hoje, a maioria dos
habitantes do Brasil se encontra em áreas urbanas, boa parte em áreas metropolitanas, sendo
oriundos das próprias cidades ou migrantes de cidades menores e de áreas rurais, em busca da
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 877
utopia de uma vida melhor. Entretanto a literatura de hoje não deixa espaço para utopias, pois
vivemos tempos, nas palavras de Flávio Carneiro, citando Haroldo de Campos, pós-utópicos.
O choque dessas identidades gera diversos conflitos, étnicos, ideológicos, etc., o que contribui
para a desilusão contemporânea.
Em meados dos anos 80, Haroldo de Campos tentava definir o sentimento geral de
uma época marcada pela descrença no projeto estético e ideológico proposto pelo
modernismo. De acordo com o termo criado por ele, estaríamos vivendo um tempo
pós-utópico (CARNEIRO, 2005, p. 13; grifos do autor).
Em concordância com Flávio Carneiro, segue Karl Erik, apresentando o paradoxo do
contemporâneo:
Ao exigir o presente e lançar mão da “agoridade” do presente estético, Lyotard viu
na arte e na literatura uma potência que, em vez de se abrir como a moderna
promessa de uma utopia radical no horizonte da história, se faz presente no instante
da experiência afetiva como pura possibilidade de mudança na relação entre o
sujeito e sua realidade e, simultaneamente, como uma ameaça de que nada vai
acontecer (SCHØLLHAMMER, 2009, p. 12).
Ambos – Flávio Carneiro e Karl Erik – concordam num ponto: vivemos o fim das
utopias. A literatura brasileira contemporânea é um recurso para aqueles que buscam mudar o
presente e apresentar o que não é visto. A desilusão com as utopias, já mencionada por
Haroldo de Campos nos anos de 1980, se estende até os dias de hoje na literatura e na
sociedade. O indivíduo já não tem razões para acreditar em um futuro melhor: este só ocorrerá
se houver combate, resistência, e não comodismo ou esperança.
A violência torna-se tema da literatura, conforme já mencionado, mormente a das
grandes cidades, como São Paulo, um lugar sem identidade, coberto por uma atmosfera de
desamparo, onde o trágico – bem lembrado por Beatriz Resende – reside em cada destino.
Luiz Ruffato, em 2001, lança seu consagrado livro Eles eram muitos cavalos, elegendo como
cenário a referida cidade. Na condição de um migrante, em sua vida real, dormindo na
rodoviária de São Paulo por um mês, o autor conhece as agruras do destino, e resolve
enveredar por esse mundo de anônimos – em perspectiva estilística –, tentando captar-lhes
alguma subjetividade, retratando-os sem aprofundamento psicológico. No fragmento 25,
temos a história de uma mulher traída pelo marido, que liga para a amante dele, porém os
recados são dados à secretária eletrônica. Um dos recados:
O que você ganha com isso?, cadela!, o quê? (Pausa) O quê que você ganha com o
sofrimento dos outros, hein? (Pausa) Ver um filho chorando... sem entender... o
Nas fronteiras da linguagem ǀ 878
pai... noites fora...A filha rebelde... a mãe... (Voz esgarçada) O pai... tem outra...
(Descontrolada) Desgraçada! Desgraçada! O que você ganha com isso? Filha-da-
puta! Filha-da-puta! (RUFFATO, 2010, p. 52; grifos do autor).
Em Ferréz, “Fábrica de fazer vilão”, do livro Ninguém é inocente em São Paulo¸ de
2006, a violência aparece de modo mais cruel, invasivo, e com ares de ódio de classes, um
ódio étnico. Narrado em primeira pessoa, o protagonista é rapper e morador de periferia; está
se preparando para dormir, após criar uma letra de rap, quando tem sua casa invadida e é
obrigado a descer para encarar os policiais, que o ofendem e aos outros, chamando-o de
“preto”, de modo agressivo, chamando-lhe a mãe de “macaca”, até que o capitão apaga a luz e
diz que vai atirar em alguém:
— É o seguinte, seus montes de bosta, vou apagar a luz, e vou atirar em
alguém.
— Mas capitão...
— Cala a boca, caralho, você é da corporação, só obedece.
— Sim, senhor.
— Ou tem algum familiar seu aqui, algum desses pretos?
— Tem não.
— Ah! Mas se eles te pegam na rua, comem sua mulher, roubam seus filhos
sem dó.
— Certo, capitão.
— Então apaga a luz.
O tiro acontece, eu abraço minha mãe, ela é magra como eu, ela treme como
eu.
Todo mundo grita, depois todo mundo fica parado, o ronco da viatura fica
mais distante.
Alguém acende a luz. Filho-da-puta do caralho, atirou no teto, grita alguém
(FERRÉZ, 2006, p. 13-14).
Outro nome da literatura brasileira contemporânea é Clarah Averbuck. Em seu livro
Máquina de Pinball, com um tom autoficcional, escolhe São Paulo como cenário para Camila
– que se deslocara de Porto Alegre –, sua protagonista, uma personagem sem domínio de seu
destino, lasciva, boêmia e tomada por conflitos amorosos. Sua literatura não é exatamente
social, contudo é simbolicamente violenta – contendo não violência urbana, mas subjetiva,
contra o próprio corpo e o espírito –, e existe graças à ambientação em uma grande cidade,
que lhe proporciona viver todas as aventuras e desventuras – principalmente esta última –,
sentir o dissabor da exclusão, do fiasco e de uma cidade violenta. A agressividade que a
protagonista de Clarah vive se deve ao seu desejo de viver libertinamente; trata-se de uma
hostilidade masoquista, com a finalidade de sentir prazer, conquanto o pesar surja
posteriormente. Camila sente o deslocamento na pele, na crise de identidade e, ainda, de
rumos:
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 879
Planeta: Terra. Cidade: São Paulo. Como todas as metrópoles, São Paulo encontra-se
hoje em desvantagem na sua luta contra o maior inimigo do homem: a poluição.
Caralho, que cidade suja.
Minha pele está podre. Não tive espinhas nem durante a adolescência, salvo uma ou
outra no período maldito do mês, sempre nas extremidades do rosto. Agora tem três
bem no meio da bochecha. Mas não pense que descobri no espelho, porque aqui
simplesmente não existe luz suficiente para isso. Meu cabelo também está um horror
por causa desta água ridícula. Lembra daquele peixe fluorescente de três olhos de
um episódio dos Simpsons? Pois seria bem mais fluorescente e teria uns cinco ou
seis olhos espalhados pelo corpo se dependesse dessa água idiota. Sim, sou
mulherzinha. Uso maquiagem, salto agulha, piercing no umbigo e esmalte com
glitter. E sou feliz assim. Mulherzinha. Mas com bolas (AVERBUCK, 2002, p. 13).
Uma característica que chama a atenção na nova literatura brasileira é o apego ao
realismo. Ainda que a década de 70 tenha acentuado, com o romance-reportagem e o new
journalism, o gosto pelo real na ficção, e a literatura dos anos 2000 mostre uma ruptura de
fronteiras entre o real e o ficcional, de modo que muitas obras espelham e – por que não? –
recriam o cotidiano com tamanha fidelidade que a trama se assemelha a uma figuração da
realidade, Luís Augusto Fischer vê na prosa literária brasileira uma tradição de realismo,
iniciada no século XIX e com ecos no presente. O crítico declara:
Realismo, esta a questão. Parece que aqui está uma das boas chaves gerais para ler a
literatura brasileira, muito especialmente a narrativa: um gosto acentuado pela
fotografia do real tal como ele se apresenta, uma vontade de contar a história
verdadeira ou, mais ainda, de revelar a verdade que está escondida em alguma parte.
Sérgio Buarque (ele é o pai de Chico Buarque de Holanda, sim) diagnosticou um
jeito de ser dos portugueses e, de quebra, forneceu uma ótima pista para entender a
narrativa entre nós (FISCHER, 2007, p. 15-16).
Karl Erik vai além: analisa os diversos tipos de realismo presentes na prosa literária
brasileira desde o século XIX, passando por Machado de Assis, até chegar ao realismo da
prosa contemporânea, inclusive se valendo de uma consulta ao mercado editorial e à mídia
para compreender o processo.
O que mais interessa à mídia de hoje é a “vida real”. Notícias em tempo real,
reportagens diretas, câmera oculta a serviço do furo jornalístico ou do mero
entretenimento, televisão interativa, reality shows, entrevistas, programas de
auditório e todas as formas imagináveis de situação em que o corpo-presente
funcione como eixo. Na literatura, a situação não é muito diferente nem melhor; o
que mais se vende são biografias e reportagens históricas, confissões, diários, cartas,
relatos de viagem, memórias, revelações de paparazzi, autobiografias e, claro,
autoajuda (SCHØLLHAMMER, 2009, p. 56).
Beatriz Resende utiliza como chave o conceito de presentificação, que encerra em si
dois outros conceitos antes apresentados: o de pós-utopia, de desilusão ou, ainda, de
Nas fronteiras da linguagem ǀ 880
resistência à ilusão modernista de um futuro utópico; o de realismo, dado que, se a intenção é
agir diretamente sobre o presente, tal perspectiva é a mais eficaz, contudo se fala de um
presente acidental, como um “encontro falho”, nos dizeres de Karl Erik, disso derivaria –
notemos que vários conceitos convergem no de presentificação – o retorno do trágico e a
tematização da violência na literatura brasileira contemporânea.
A primeira questão dominante que quero apontar é a presentificação, a manifestação
explícita, sob formas diversas de um presente dominante no momento de descrença
nas utopias que remetiam ao futuro, tão ao gosto modernista, e de certo sentido
intangível de distância em relação ao passado (RESENDE, 2008, p. 26-27; grifo da
autora).
Essa desilusão se manifesta na literatura brasileira contemporânea desde a escolha do
tema até a caracterização dos personagens, os quais, além de fadados ao fracasso, ao drama
irredimível, não apresentam a agudeza psicológica dos personagens tipicamente machadianos.
São sujeitos sofridos, acintosamente violentados pelo destino e esquecidos pelo mundo. Luiz
Ruffato, em suas obras Eles eram muitos cavalos e Inferno Provisório, se dedica a fotografar
essas realidades e montar um mosaico irregular – principalmente em Eles eram muitos
cavalos –, em que as histórias, apesar de não se disporem linearmente, criam a lógica interna
do “romance-mosaico”, na definição do próprio autor para a sua forma, fornecendo um
panorama global de São Paulo – local onde as tramas se situam –, que poderia ser, muito bem,
extensível a qualquer outra metrópole.
Em O mundo inimigo, Ruffato retrata o cotidiano de famílias esquecidas, invisíveis, de
Cataguases, Minas Gerais. Em “O barco”, somos apresentados a Zulmira, mulher casada, mãe
e estoica, responsável pelo lar, e que, como de costume nos textos do autor, é mais forte
emocionalmente que o homem. O fragmento que destacamos revela o desequilíbrio e a
infelicidade que a falta de perspectiva gera em Marlindo, marido de Zulmira, na ocasião de
um pedido da filha Hélia, que não podia ser atendido por ele, pois se encontrava em precária
situação financeira:
Um dia, chegou encachaçado em casa. Aniversário da Hélia, a filha. Ela perguntou
pelo presente. Presente? Tem presente nenhum. E foi destampar as panelas para ver
a janta. A menina desatou no bué. Ele, alto, enjerizou. Partiu para cima dela, corrião
na mão. Um bafafá. A Zulmira entreveio, Vai bater na menina não, cachaceiro
senvergonho! O Luzimar, um bostinha assim, também tomou as dores da irmã,
berrando. Percebeu, ali, que alguma coisa estava errada. E era com ele. Subiu o
beco, bufando. Pensou em se jogar debaixo das rodas do cata-níquel. Ou do trem.
Andou, andou, andou (RUFFATO, 2005, p. 44-45).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 881
O invisível ganhou lugar na literatura: o realismo chega aos confins do mundo, invade
os lares marginalizados e põe o foco naqueles que não aparecem na história. É lícito dizer que
os escritores contemporâneos estão reescrevendo a história do ponto de vista do “oprimido”,
como forma de compensação de uma dívida histórica. Escritores como Luiz Ruffato e Ferréz,
oriundos de uma camada social mais baixa – o primeiro viveu uma infância pobre em
Cataguases, como já mencionado, morou na rodoviária de São Paulo por um tempo, e o
segundo faz questão de manter as raízes, continua morando em uma comunidade no Capão
Redondo –, mostram as “veias abertas” da exclusão, o sofrimento e o dia a dia de personagens
que, até pouco tempo, se encontravam engavetados. A literatura brasileira contemporânea,
desse modo, aparentemente se converte em relatos da realidade, em testemunhos do real
empírico e pontual. É necessário um estudo mais extenso do que essas linhas gerais a respeito
das tendências – sobretudo na crítica – da literatura brasileira contemporânea, para se
investigar se a literatura está perdendo sua vocação universalista, na chave de Aristóteles
(2005), e caminhando para o particularismo: “[A] Poesia encerra mais filosofia e elevação do
que a História; aquela anuncia verdades gerais; esta relata fatos particulares”.
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LITERATURA E NATUREZA EM MANOEL DE BARROS [Voltar para Sumário]
Fernanda Bezerra de Aragão Correia (UFS)
Vimos na história da literatura que a natureza é um tema muito contemplado tanto por
poetas, bem como por filósofos. Mas como seria a mesma na sua forma una, ou seja, a sua
relação com o homem? E como analisá-la sob vários vieses ao mesmo tempo, quer dizer,
como a natureza serve de mediação entre a literatura e a filosofia?
A filosofia abre a nossa discussão com uma contemplação do homem para com a
natureza, enquanto que a literatura, através da linguagem vem representá-la com todo o seu
cenário, a saber: a fauna, a flora, a água, o campo etc., em um imaginário poético. É no íntimo
do ser, na imaginação poética subjetiva, que se capta o espaço poético, gerando imagens
poéticas, em meio a seus silêncios. E é preciso ler esses espaços poéticos, os silêncios e as
infinitudes do real, semioticamente falando (cf. PIGNATARI, 2004). Transcendendo o real
mediado por imaginação, pelo onírico, podemos afirmar que o homem é a natureza, assim
como a natureza é o homem, um duplo processo.
O filósofo francês Gaston Bachelard, em sua obra A poética do Espaço (2008), a partir
do método fenomenológico, identifica a intimidade do homem com o seu meio, o qual ele
vem chamar de topoanálise. Recorremos ao filósofo francês para destacarmos algumas
nuances da intimidade, para chegar à familiaridade dos espaços íntimos, revisitar os
aposentos, os abrigos, todas as moradas para chegar aos “valores oníricos consoantes”
(BACHELARD, 2008, p. 25)
Na busca de um diálogo entre a literatura e a filosofia acerca da natureza, precisamos
de um espaço de entremeio entre ambas e que só será possível se utilizarmos o pensamento
proposto pelo filósofo francês Maurice Blanchot, para então daí confluir os dois discursos. O
pensamento de Blanchot nos transporta para a “fecundação” do discurso literário no discurso
filosófico, onde é possível, no limiar de encontros, desvelar experiências-limite, “um lugar
mesmo do meio” (BLANCHOT, 2007, p. 26).
Na tentativa de caminharmos no labirinto do interdisciplinar, no espaço de entremeio
de Blanchot, adotamos como método o modelo de diálogo proposto por Benedito Nunes de
Nas fronteiras da linguagem ǀ 884
“método transacional”, uma transa “sem que cada qual esteja acima ou abaixo de sua parceira,
numa posição de superioridade ou inferioridade do ponto de vista do conhecimento
alcançado” (NUNES, 2010, p. 13). Assim, é nosso interesse ler a natureza na poesia de
Manoel de Barros de forma interdisciplinar e mais: tomar a natureza como mediação entre o
poético, o contemplativo, o filosófico – no que tange ao modus operandi do olhar na tradição
plotiniana. Deste modo, nossa ideia de olhar é puramente fenomenológica. Olhar é ver, mas
também é sentir, experienciar.
O poeta do presente artigo, Manoel de Barros, nasceu em Cuiabá-MT no ano de 1916
e passou a se inserir no campo da literatura brasileira a partir do ano de 1937, na chamada
segunda geração modernista. A poesia manoelina possui como ponto forte uma linguagem
imagética e ao mesmo tempo metalinguística, ou seja, o poeta através do seu olhar subjetivo
origina uma natureza poética colocando a mesma acima do real. O poeta escolhe a natureza
como o lugar em que o poético reside e pode-se dizer também como sendo o lugar em que é
possível a percepção da essência das coisas. Manoel de Barros utiliza os elementos da
natureza como ingrediente, voltando o seu olhar para o ínfimo, quebrando assim com todas as
convenções através de um novo arranjo linguístico. De acordo com Grácia-Rodrigues (2006, p.
70): “Valorizar o que não tem importância, apreciar as coisas no seu primitivismo, ser amante
do meio ambiente e estar em comunhão com os elementos que compõem a natureza, tudo isso
integra o projeto estético de Manoel de Barros”.
Estudar o poeta Manoel de Barros, relacionando ele à natureza e tudo o que faz parte
dela é uma forma subliminar de evitar o seu desgaste, uma vez que a mesma transcende as
nossas perspectivas. Segundo o filósofo Merleau-Ponty em A natureza (2006, p. 193-4) “a
Natureza é sempre nova a cada percepção, mas nunca é sem passado. A Natureza é algo que se
continua, que nunca é apreendida em seu começo, ainda que nos aparecendo sempre nova” . Deste
modo, é nesse horizonte que serão trabalhados poemas de três obras do poeta Manoel de
Barros, são elas: Compêndio para uso dos pássaros (1960), O guardador das águas (1989) e
Tratado geral da grandeza do ínfimo (2001).
1. A natureza Zen entre Plotino e Manoel de Barros
Na Antiguidade Clássica, encontramos o filósofo Plotino, um leitor e comentador de
Platão (por isso ele está inserido em um momento filosófico chamado neoplatonismo). Ele
tinha uma forte ligação com o filosófo grego, ao ponto de querer fundar uma Platonópolis
para se dedicar aos ensinamentos do mesmo. Plotino nasceu no Egito no século III, foi um
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 885
grande educador, era muito dedicado ao que fazia e naquela época já se percebia uma grande
magia no seu olhar. A obra de Plotino versa sobre os temas da alma, da natureza e da
metafísica. Um dos grandes temas de Plotino é o Uno. Mas o que seria o Uno? Muitos
entendem o Uno como Deus (criador), mas para Plotino o Uno é um, é o primeiro, é a origem
de todas as coisas, que Plotino chamará de “hipóstases”. O filósofo egípcio escreveu 54
tratados, mas o seu discípulo Porfírio os transformou em uma única obra chamada As
Enéadas, que significa “nove” em grego. Porfírio organizou os tratados em 6 tomos e cada
tomo com 9 tratados, onde vai do mais fácil ao mais difícil.
No presente artigo será utilizada a Eneáda III, a específica obra que Plotino tratará do
tema da natureza e da contemplação. Tratar da contemplação é tratar do olhar. Mas não o
olhar corporal, e sim o olhar com os olhos da alma, ou seja, “contemplar as belezas com um
olhar da alma e, ao vê-las, sentir um prazer, um tremor, uma comoção” (PLOTINO, 1982, p.
282)4. Contemplar é despojar-se de tudo.
Nessa Enéada III, constituída de 9 tratados, só um irá nos interessar, que é o tratado 8
“Sobre a natureza, a contemplação e o Uno”. Este tratado vem conceituar a contemplação e a
forma como a mesma transcorre em todos os níveis do real. No movimento de processão de
Plotino, que sempre é um movimento pra baixo, o Uno, que é o um, é independente. Dele é
gerado o dois, a Díada, o inteligível, que contempla o Uno. Da Díada é gerada a Alma, que
contempla a mesma. Uma parte da Alma irá criar o universo. Neste esquema pode-se perceber
que uma está sempre contemplando a anterior. Logo, o universo é criação da Alma em
contemplação. O que podemos tirar disto? A tese de Plotino é que o universo é fruto de uma
contemplação e ele próprio contemplação, como diz o filósofo no seguinte fragmento do
capítulo 3 do tratado 8: “Ela [a natureza] é o resultado da contemplação que se mantém
contemplação e nada faz além disso, produzindo, contudo, por ser contemplação”5. O que nos
interessa nesse movimento de processão é a modulação do olhar. O nosso crítico literário
Alfredo Bosi, em seu artigo intitulado “Fenomenologia do Olhar”, nos explica a diferença
entre o ver-por-ver e ver-depois-de-olhar, ou seja, uma apenas recebe e a outra capta. Nesse
artigo, Bosi vai fazer um percurso na filosofia platônica para nos ensinar outro tipo de olhar,
que é um olhar para as formas puras em um resgate da alma, passando pelo racionalismo e
pela filosofia contemporânea. A apoteose do texto de Bosi é quando ele fala do olhar na
4 Es preciso estarse contemplando tales bellezas com lo que El alma las mira y que, al verdas, sintamos um
placer, uma sacudida, uma conmoción [...]” Enéada I,6,4 [1]. Tradução literal nossa. Para as citações da Enéada
utilizaremos a referência Tratado-capítulo-numeração original do Tratado em colchetes (não a numeração feita
por Porfírio). Referente à edição do tradutor José Baracat Júnior, incluiremos a página do livro. 5 Enéada III, 8, 3 [30], p. 59.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 886
linguagem e diz que “contemplar é olhar religiosamente” (BOSI, 1988, p. 78, grifo do autor).
O que Bosi está querendo nos deixar é que o olhar está ligado ao sentido, à percepção.
Para Plotino, contemplar quer dizer contemplar em silêncio, na surdina, e essa
contemplação é sem limites: “não tem limites a contemplação nem o objeto de
contemplação”6. Mas ainda cabe a pergunta: o que é a contemplação em Plotino? Para quê ela
vai nos servir? De imediato nós podemos inferir que a essência da contemplação em Plotino
irá unir sujeito e objeto. Ora, se Plotino diz que na natureza tudo é contemplação (silenciosa)
e ela própria está em atividade contemplativa, quer dizer que todas as coisas da natureza são
passíveis de contemplação, logo, temos um sujeito contemplante diante de um objeto. Como
lembra José Baracat (2008, p. 147):
Todas as coisas desejam contemplar, porque esta é a herança genética que lhes
forneceram seus pais, que as produziram através da contemplação. E, quanto mais
intensa e autocentrada for a contemplação dos pais, mais perfeita e poderosa será a
produção dos filhos. Toda a produção é análoga à geração humana.
Esta ideia de contemplação em Plotino servirá de introdução para nossa investigação
na poética manuelina, e não só, mas de um íntimo diálogo. Por introdução nós queremos dizer
que há um solo muito propício na obra de Manoel de Barros para se problematizar o
pensamento Plotiniano, isto que dizer que há nas poesias do poeta pantaneiro uma íntima
relação com a natureza. Uma relação onírica, topofílica segundo Bachelard. Quando as
poesias do Manoel falam da natureza, cantam-na, contemplam-na, desejam-na, elas querem é
justamente entrar em estado meditativo e em silêncio. Quer dizer, quando a poesia contempla
a natureza ela quer unir sujeito e objeto.
Se já em Platão aprendemos a concepção de que a arte é um simulacro de uma cópia
de uma ideia por si pré-existente, já em Plotino, podemos enxergar que a arte não é essa
cópia, pois segundo ele o artista busca em si mesmo o modelo das coisas, e não simplesmente
as copia. Assim, podemos afirmar que Plotino insere o poeta na contemplação da beleza
compreensível. Isto retrata o poeta Manoel de Barros quando o mesmo se despoja de tudo
para contemplar a natureza no seu ínfimo, na sua forma mais simples e pura. Em seus poemas
podemos sentir através de sua linguagem a contemplação da natureza imagética.
Na sua obra Compêndio para uso dos pássaros, fica clara essa confluência entre
sujeito e objeto se tomarmos a seguinte estrofe do poema “Poeminhas pescados numa fala de
João”:
6 Enéada III, 8, 5 [30], p. 63.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 887
Escuto o meu rio:
É uma cobra
De água andando
Por dentro de meu olho.
(BARROS, 2010, p. 96).
Observa-se como, neste fragmento, sujeito e objeto são um só (o sujeito escuta o rio),
o que é impossível para a nossa lógica cartesiana e aristotélica escutar um rio, já que o rio é
para ser visto. Mas e o barulho do rio, não o ouvimos? O sujeito lírico do poema não nos
direciona para o barulho do rio, mas para o ver o rio. E a visão aqui está ligada à percepção.
“O meu rio” é rio do sujeito lírico, e é uma cobra de água que anda no olho. Como pode,
ainda no plano da lógica, um rio (objeto) entrar no olho? Aqui, estamos muito próximo não só
de um surrealismo (fortemente presente na obra de Manoel de Barros), como também de um
pensamento Zen-budista. Por Zen nos entendemos: Ver a árvore, mas também sentir as suas
raízes torna-se árvore. Se isto vai contra a lógica, é porque justamente “o Zen quer ultrapassar
a lógica” (SUZUKI, 1961, p. 39). O que Suzuki está querendo nos dizer é que devemos, de
acordo com o pensamento budista, devemos ultrapassar as barreiras linguísticas daquilo que
estamos habituados, dentro de um certo dualismo, já que para este sujeito e rio nunca podem
ser um só. Ainda de acordo com Suzuki (1976a, p. 21), e talvez esta colocação do mesmo seja
a que melhor ajude a compreender o budismo na poesia manuelina, “o enfoque Zen consiste
em penetrar diretamente no objeto e vê-lo, por assim dizer por dentro”. O que podemos
concluir deste pensamento budista com o poema supracitado? O que o Zen pode contribuir
aqui é ajudar a ver a realidade com outros olhos, é assim que procede o poema de Barros.
Já no poema “O menino e o córrego”, encontramos elementos da natureza:
A água
é madura.
Com penas de garça.
Na areia tem raiz
De peixes e de árvores.
Meu córrego é de sofrer pedras
Mas quem beijar seu corpo
É brisas...
(Op. cit., p. 103).
No poema acima, e na totalidade de sua obra, encontramos aquilo que no campo da
Teoria da literatura já o crítico literário Terry Eagleton (2006, p. 5) falava acerca do
estranhamento, ou seja, um estranhamento que se dá no plano da linguagem, “efeito de
estranhamento ou de desfamiliarização”. É esse o estranhamento (do leitor) ao se deparar com
uma “água madura”. Afinal, se boa parte da crítica de Manoel de Barros fala que sua obra é
metalinguística, só neste fragmento já se percebe isto, pois, para Eagleton é a literatura um
Nas fronteiras da linguagem ǀ 888
estranhamento. Ainda no plano da teoria da literatura, podemos também lembrar um Antoine
Compagnon, que, em O demônio da teoria, apresenta a íntima relação entre a literatura e o
mundo – como já falava o Antonio Candido, quando o externo está no interno (cf.
CANDIDO, 2006). Ora, esta é a matéria da poesia manuelina, esta íntima confluência entre
interno e externo, ou, como conclui o Benedito Nunes “A natureza, pois, tanto é exterior
como interior” (cf. NUNES, 2007).
Ainda neste poema, percebe-se que o eu lírico está contemplando a água. Na primeira
estrofe este sujeito poético descreve o cenário para na segunda estrofe confluir com o rio
(primeiro verso da segunda estrofe). No entanto, a conjunção adversativa “mas” (segundo
verso do terceto) é quem sugere a contemplação. Uma contemplação plotinianamente
silenciosa, meditativa, longa, onde o tempo está retido, suspenso, como diz Roland Barthes
n’O Neutro (2003).
Já na obra O Guardador de águas, no poema “Retrato quase apagado em que se pode
ver perfeitamente nada”, encontramos este peculiar poema:
Eu sou o medo da lucidez.
Choveu na palavra onde eu estava.
Eu via a natureza como quem a veste.
Eu me fechava com espumas.
(BARROS, 2010, p. 266).
O que é chover na palavra? De acordo com Alan Watts (2011, p. 52) “o Zen é mover-
se com a vida, sem tentar parar ou interromper o seu fluxo”. Quer dizer, o que pode nos
interessar do Watts é que natureza e palavra movam-se em um só movimento, isto é,
linguagem e natureza confluam. Isto precisa se dá nas malhas da linguagem, ou seja, que a
mediação seja a percepção. Ora, isto muito nos aproximará de uma figura que tem grande
presença na obra manuelina: o heterônimo Alberto Caeiro, do poeta português Fernando
Pessoa. Por que Caeiro? Ele é o mais simples dos heterônimos de Pessoa e a matéria com a
qual estamos lidando é com a simplicidade. O Zen é simples (e ensina a simplicidade). A
contemplação plotiniana é simples, no sentido de que sua contemplação silenciosa é de uma
simplicidade quase budista (e por isso em nossa investigação Plotino e Zen estão lado a lado).
A poesia de Caeiro é simples, porque o próprio Caeiro é simples, quer dizer, é um guardador
de rebanhos e de baixa escolaridade (eis a grande genialidade de Fernando Pessoa, seus
heterônimos têm personalidades muito próprias). No fragmento 24 de “O guardador de
rebanhos” (2011, p. 62), encontramos o seguinte:
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 889
O essencial é saber ver
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se ver,
E nem pensar quando se vê
Nem ver quando se pensa.
Caeiro aqui nos aponta para a fenomenologia do olhar: Saber ver algo mesmo sem
pensar no objeto, mesmo vendo de olhos fechados, sem pensamento: percepção. Afinal,
Caeiro não tem filosofias, tem sentidos: “Se falo na natureza não é porque saiba o que ela é /
Mas porque a amo” (Idem, p. 43). Essa é a poesia de Caeiro e também a poesia de Manoel de
Barros: “E a minha poesia é natural como o levantar-se do vento”.
A poesia manuelina é sem dúvida “um espaço íntimo de observação reverente e escuta
silenciosa de uma realidade desconhecida, misteriosa e sagrada” (ALMEIDA, 2012, p. 144,
grifo nosso), já que o poeta se integra à natureza de uma forma tão completa que une o sujeito
e o objeto. Segundo Sherry Almeida (Idem, p. 146) “em sua poesia, Manoel de Barros fala, ou
tenta falar na intenção da natureza; ‘com’ ela, pois, e não ‘sobre’ ela”. Pode-se dizer com isto
que a obra de Manoel de Barros fala com a natureza e não somente sobre a mesma. Quer
dizer, quando dizemos que sua poesia é um falar com a natureza, estamos querendo dizer que
a sua poesia fala junto a... E ambos, sujeito lírico e natureza, estão lado a lado, unidos,
entrelaçados, envolvidos, juntos, onde um fecunda no outro. Muito diferente do falar sobre a
natureza, que apontaria para um falar racional e científico sobe o objeto externo. E não é esta
a intenção da poesia manuelina.
2. A poesia do ínfimo
Ao ler a obra de Manoel de Barros percebemos que o mesmo vai até o fundo da
natureza, atrás da sua matéria-prima, para compor os seus poemas. É como se o poeta fosse
até o fundo da natureza e de lá buscasse as palavras, drummondianamente falando. Se há um
certo surrealismo na sua obra, é justamente o desafio à lógica pela via contemplativa que sua
poesia propõe. Logo, a ideia de ínfimo traduz sua poética. No ínfimo, a poesia desexplica –
afinal, parece próprio a todo fazer literário buscar desexplicar, isto se seguirmos a velha lição
da teoria da literatura de que é a própria literatura desvio da norma (cf. EAGLETON, 2006).
Na obra Tratado geral da grandeza do ínfimo (2001), na seção “O livro de Bernardo”,
segunda parte do seu livro de poesias, encontramos 52 fragmentos de poemas, estes que são
numerados na referida seção. Aqui trabalharemos com alguns deles como haikais, deixando
claro, que não podemos chamar os mesmos de haikais pelo fato de serem numerados e de
constituírem um grande poema, mas tentaremos aproximá-los do gênero poético japonês,
Nas fronteiras da linguagem ǀ 890
procedendo da seguinte maneira: como os fragmentos são de três linhas do ponto vista formal,
analisaremos estes “tercetos” não como um todo, como está no livro, mas isoladamente, por
isso nosso procedimento será de subversão do poema como um todo. Quer dizer, é
fragmentando esse grande poema que faremos ver o haikai. Abaixo, destacamos os seguintes
fragmentos:
2
Não tenho pensa.
Tenho só arvores ventos
passarinhos - issos.
(BARROS, 2010, p. 412).
No fragmento acima percebemos a interação do eu lírico com o meio em que vive. O
mesmo nos aponta que só tem árvores, ventos e passarinhos, ou seja, só natureza. E quando
ele diz “issos” no final, ele demonstra o seu envolvimento com a natureza e nada mais. Que
envolvimento é este se não um envolvimento topofílico. Quando o poema capta todo esse
envolvimento máximo em três versos, ele está justamente atendendo ao princípio do haikai,
que condensar o máximo no mínimo. Neste entendimento, seguimos a Luiza Lobo (1993, p.
45) quando diz que o haikai “é um encontro do ser humano com um sentido sagrado que se
encontra na natureza”. Vale ressaltar que Manoel de Barros, neste poema “O livro de
Bernardo”, não está escrevendo explicitamente haikais, mas no conteúdo nos encontramos por
completo com o haikai, até porque se partimos da definição básica de haikai (o encontro do
sujeito com a natureza), podemos dizer que toda a obra de Manoel de Barros aqui conflui. No
seguinte fragmento veremos como um clássico haikai de Bashô (difusor do haikai)
intertextualiza com o poema:
12
Uma rã me benzeu
Com as mãos
na água.
(Idem, 2010, p. 414)
A rã é a mesma do poema de Bashô, que tomba na água:
O velho tanque
Rã salt’ tomba
Rumor de água.
(BASHÔ, 1997, p. 80).
A rã, símbolo forte na cultura japonesa, mergulha, lança-se, no acaso, no acaso
mallarmaico, entrega-se a um lugar profundo do tanque, tão profundo como a profundeza do
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 891
armário descrito por Bachelard. A rã visita esse espaço profundo a partir de um salto-tombo,
um duplo movimento, movimento de êxtase. Rã entre o tanque e a água. Rã que vivifica o
tanque, se presentifica nele, pois não haveria rumor de água sem seu pulo, sem seu salto. Já a
rã do poema de Manoel abraça o sujeito pelo substantivo mãos. A mão é a ponte que liga
sujeito e objeto. Mão Zen.
A relação haikai e Zen budismo não é proposital, uma vez que o Zen é esse encontro
a-lógico entre sujeito e objeto em uma tradição cultural que mais contemplou a sua natureza.
Contemplação silenciosa, como vemos no seguinte fragmento:
15
O silêncio
está úmido
de aves.
(Op. cit., p. 415)
Estamos diante de um silêncio que não faz parte da nossa compreensão de silêncio
como vazio, mas de um silêncio perceptível, que sente, que está úmido. Esse silêncio é
experienciado pelo eu lírico. O que podemos concluir é que a obra poética de Manoel de
Barros aqui analisada não é uma definição ou conceituação de uma oniricidade com a
natureza, muito menos uma definição de contemplação plotiniana ou Zen budista. O que
argumentamos é justamente que antes de definir, os poemas aqui selecionados apontam para o
campo da experienciação, quer dizer, é preciso primeiro sentir, e só então depois poder
definir.
Conclusão
Podemos concluir que a obra manuelina é o lugar propício para um diálogo poético e
filosófico, onde a filosofia plotiniana, bem como certo pensamento bachelardiano se confluem
com a natureza fluida no poema. Um diálogo não só com tais filosofias, mas também com o
pensamento oriental Zen budista. Fruto de todas estas intercessões está um poeta intimamente
ligado com o seu meio e uma poesia que retoma ao ínfimo e ao primitivo das coisas e fazem
delas o seu material poético.
A grande dificuldade de se ler e entender Manoel de Barros é o seu desafio à lógica
aristotélica em que sujeito e objeto não podem estar ligados, em que natureza é algo distante
em que não possa ser contemplada, em que o silêncio é a ausência da voz. E todo desafio a
essa lógica traz sempre um estranhamento. O que queremos é justamente partir deste desafio
Nas fronteiras da linguagem ǀ 892
para compreender uma poética não apenas desafiadora à lógica, mas uma poética marcada por
experiência, sensações, percepções.
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WATTS, Alan. O Espírito do Zen. Trad. Murillo Nunes de Azevedo. Porto Alegre: L&PM.
2011.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 894
“XANDRILÁ” SOB UM VIÉS SEMIÓTICO [Voltar para Sumário]
Flávio Passos Santana7 (UFS)
1. Introdução
Partindo das particularidades referentes a Sergipe, mais especificamente, tomando
como base a produção de curtas-metragens no Estado e sabendo da importância que este dá às
produções audiovisuais, propomos analisar, neste trabalho8, o curta sergipano Xandrilá, com o
intuito de observar, por meio da Semiótica do Discurso, operando mais diretamente com o
percurso gerativo de sentido, como essa narrativa foi elaborada, criando enfim certos efeitos
de sentido, o que será identificado, no nosso estudo, por meio da análise dos três níveis desse
percurso – o fundamental, o narrativo e o discursivo.
No que se refere ao curta Xandrilá, nosso principal objeto de estudo, trata-se de uma
adaptação cinematográfica do conto homônimo, publicado no ano de 2010, do sergipano Isaac
Dourado. Por conta disso, atentamos para o fato de que o nosso objeto é uma produção
intersemiótica por ser baseado em um conto (texto na modalidade escrita/signos verbais) e
adaptado para as telas do cinema (texto nas modalidades escrita e oral e imagens/signos
verbais e não verbais).
Para tanto, elegemos como arcabouço teórico os estudos da Semiótica greimasiana,
baseando-nos em Algirdas Greimas e Joseph Courtés (2013), Diana Luz Pessoa de Barros
(2012), José Luiz Fiorin (1992) e Jacques Fontanille (2012), os quais serão agregados ao
nosso trabalho como sustentáculo para investigarmos de que forma foram construídos os três
níveis do percurso gerativo de sentido.
Para obtermos os resultados almejados, nossa atenção se voltará para a temática
desenvolvida no curta, que seria o “Estado de Totalidade Existencial”, bem como para os
discursos das personagens Renata e Pepper, observando quais são os valores, as crenças e as
ideologias que daí emergem. Assim, nosso objetivo é utilizar os estudos por nós já citados
7 Mestrando em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Sergipe. E-mail: [email protected]. 8 O presente artigo é um recorte do nosso Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) intitulado “Curtindo o curta
sergipano: um olhar semiótico sobre Xandrilá, em que tivemos a orientação da professora Dra. Márcia Mariano.
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para lermos semioticamente a sequência narrativa, bem como ler discursivamente as imagens
criadas, no curta, dos sergipanos, ao mesmo tempo em que nossas reflexões partem de dois
vieses principais: de um lado, a importância de os sujeitos refletirem – tanto dentro quanto
fora da academia – acerca da identidade, por tomarem conhecimento da realidade da
sociedade da qual fazem parte e também, por meio da reflexão, tornarem-se cidadãos mais
críticos e questionantes, não se deixando influenciar pelo que é difundido pelos discursos que
circulam no espaço em que vivem; e de outro, há a valorização das produções culturais locais
das pequenas e médias cidades brasileiras, que nem sempre são divulgadas pelas grandes
mídias.
2. “Xandrilá” e a Semiótica Discursiva
Inicialmente, dizemos que a Semiótica não trabalha com a palavra ou a frase apenas,
mas sim com o texto e tomando este como sendo um construtor de sentido. Assim sendo, a
Semiótica tenta observar como esses sentidos foram construídos a partir de mecanismos e
procedimentos utilizados e que são divididos no texto por meio de relações sócio-históricas.
Dir-se-á ainda que esse texto de que falamos pode ser tanto linguístico (oral ou escrito),
visual, olfativo e gestual quanto a união de diferentes expressões denominada de sincretismo,
a exemplo do cinema, dos quadrinhos e das canções.
Podemos dizer então que, em linhas gerais, a Semiótica pretende elucidar os sentidos
do texto. E, para tanto, faz-se necessário, segundo Barros (2012), analisar os seus mecanismos
e procedimentos no plano do conteúdo, visto que este é arquitetado pelo percurso gerativo de
sentido.
Adentrando mais especificamente o percurso gerativo de sentido, por seu turno, nota-
se que ele se desenvolve do nível mais simples e abstrato até o mais complexo e concreto;
nesse percurso, são determinadas três etapas, as quais podem ser explicadas separadamente,
mesmo o sentido do texto dependendo da relação entre os três níveis.
2.1. Nível Fundamental
De acordo com Fiorin (1992, p. 20), a “semântica e a sintaxe do nível fundamental
representam a instância inicial do percurso gerativo e procuram explicar os níveis mais
abstratos da produção, do funcionamento e da interpretação do discurso”. Ainda nesse nível, o
sentido do texto se dá a partir de uma “oposição semântica”, mediada pela existência de um
Nas fronteiras da linguagem ǀ 896
elemento básico e comum aos termos contrários entre si, tendo, então, as seguintes
possibilidades: quando há relações sensoriais do sujeito com os conteúdos – os termos
contrários – tidos como atraentes ou eufóricos e repulsivos ou disfóricos; quando eles são
negados ou afirmados por intervenções de uma sintaxe elementar; ou quando são concebidos
e vistos através de um modelo lógico dessas relações alcunhado de quadrado semiótico. Este,
segundo Fontanille (2012, p. 62) “apresenta-se como a reunião dos dois tipos de oposições
binárias em só um sistema que administra, ao mesmo tempo, a presença simultânea de traços
contrários e a presença e a ausência de cada um desses traços”.
Aplicando esses pressupostos ao contexto do curta Xandrilá, pode-se notar que a
categoria semântica fundamental é estabelecida por meio do Estado de Totalidade Interior do
sujeito Renata, por sua vez, representado pelos seguintes elementos opostos: a ausência versus
a plenitude. Sendo assim, uma leitura para esse esquema seria que a ausência para Renata é
tida como disfórica e a plenitude é representada como eufórica, portanto, a ausência é vista
como repulsiva e a plenitude como atraente. Nesse contexto, as intervenções de afirmação
bem como as de negação nos remetem ao trajeto abaixo:
AFIRMAÇÃO NEGAÇÃO AFIRMAÇÃO
Ausência Não-Ausência Plenitude
Disforia Não Disforia Euforia
Nesse sentido, temos a construção de uma historiazinha euforizante, isto é, ela parte da
disforia à euforia num trajeto em que a personagem termina “bem” até o momento em que nos
é mostrado o final da película. Vale ressaltar que esses termos não passam diretamente de um
para o outro, mas se constituem por meio de intervenções de afirmação e negação. Com
efeito, podemos sintetizar analiticamente o curta Xandrilá, a partir do nível fundamental,
mediante o seguinte quadrado semiótico:
Ausência Plenitude
Não Plenitude Não Ausência
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 897
Com base nesse esquema, podemos dizer que o sujeito Renata encontrava-se,
inicialmente (Seta 1), na ausência de um sentido existencial, sempre imaginando o porquê de
seu destino e vivendo a vida sem rumo, sem planos para o futuro e sem se importar com nada;
ao negar essa ausência (Seta 2), a partir do momento em que encontra Osvaldo e começa a
traçar um novo destino para a vida dela, chega à plenitude, com Osvaldo, ou “Pepper” (Seta
3), mas, com o tempo, percebe que não quer viver um relacionamento em que seu parceiro
viva consumindo drogas; logo, nega a plenitude (Seta 4), entrando no mundo da prostituição
em busca de um sentido; e volta para a ausência (Seta 5), para, finalmente, afirmar a plenitude
(Seta 6), tornando-se garota de programa, e se realizar (sexual e financeiramente), acreditando
viver feliz num ambiente em que nunca achou que viveria, já que ela se surpreende, um tempo
antes, ao se deparar com a amiga Camila saindo do carro e “fazendo ponto” na avenida, antes
de ela mesma firmar o contrato com o “sócio”.
Em suma, esse feixe de relações que sintetizam o percurso da protagonista dá conta da
passagem de um estado a outro, quando, com o desenrolar do enredo no tempo e no espaço da
narrativa, a ausência pouco a pouco é substituída pela sensação de plenitude do sujeito
Renata, que passa a se voltar principalmente para o culto da luxúria e do materialismo,
retirando daí a matéria que lhe traz uma aparente realização.
2.2. Nível Narrativo
Seguindo o percurso gerativo de sentido, chegamos ao nível narrativo. Neste, por seu
turno, dão-se três tipos de ocorrência: o ingresso do sujeito, sendo que, ao invés de
acontecerem operações lógicas fundamentais, ocorrem modificações na historieta exercidas
pelo sujeito; em seguida, as categorias semânticas existentes no nível fundamental passam a
ser valores do sujeito e serão implantadas nos objetos com que o sujeito tem contato; e, por
fim, as decisões tensivo-fóricas do nível anterior transformam-se em modalizações que
mudam as ações e os modos de existir do sujeito e de suas relações com os valores.
No curta em tela, o sujeito Renata atua nessa transformação ao colocar o sujeito
Osvaldo (ou Mr. Pepper) em situação de dominação. Renata, movida pelos desejos e
interesses para sair da Ausência de sentido existencial, quer realizar a transformação que vai
colocá-la em estado de Não Ausência. Com efeito, Plenitude é o valor com que esta
protagonista se relaciona por meio de objetos – principalmente de objetos que estão
relacionados à luxúria e ao materialismo –, sendo essa uma relação almejada por Renata e
Nas fronteiras da linguagem ǀ 898
modalizada pelo querer. Assim sendo, esse sujeito pretende alcançar a modificação de sua
situação inicial de ausência de sentido existencial, passando, portanto, a um estado de
plenitude com o sentido de sua vida.
Segundo Barros (2012, p. 191), “a narrativa de um texto é a historiazinha de um
sujeito em busca de valores”, sendo assim, para que esse sujeito possa conseguir os valores,
estes são inseridos nos objetos. E estes objetos, por sua vez, quando são carregados de
valores, circulam através dos sujeitos. Destarte, quando um sujeito adquire um objeto de
valor, outro sujeito é privado disso, consequentemente, a narrativa gira em torno de dois
sujeitos em busca dos mesmos valores almejados. Podemos entender esse sistema no curta
sob análise se tomarmos a Plenitude como sendo o objeto de valor tanto para Renata quanto
para Mr. Pepper. Ela, em busca da Plenitude por meio da música, enquanto ele encontra a
Plenitude por meio das drogas, destacando aqui que tanto o objeto música quanto o objeto
drogas representam, na narrativa, objetos necessários para levar à aquisição da Plenitude, a
qual seria a performance que ambos querem realizar.
Toda narrativa de um texto possui uma organização base ainda que nem sempre ela
esteja explícita, e é nela que três caminhos se relacionam por pressuposição: o da manipulação
(um destinador faz um contrato com um destinatário tentando persuadi-lo para que faça o que
ele lhe propõe); o da ação (o destinatário que se submeteu ao contrato tornar-se-á sujeito e
desenvolverá o que foi acordado); e o da sanção (o destinatário vai tentar mostrar para seu
destinador que cumpriu o acordo, no intuito de obter um julgamento positivo, e, por
conseguinte, o destinador vai observar se o contrato foi cumprido conforme combinado e vai
atribuir ao destinatário uma recompensa ou uma punição). Logo, todos estes elementos são
pressupostos pelo seu anterior.
No percurso da manipulação, segundo Barros (2012, p. 197), este percurso pode ser
entendido como uma ou mais transformações de estado, em que o sujeito que opera a
transformação é alcunhado de destinador e o sujeito sobre o qual aquele age, de destinatário.
Assim, o destinador propõe um acordo ao destinatário no intuito de modificar a competência
deste e fazer com que ele se torne sujeito operador da transformação final de estados.
Resumindo, o destinador pretende que o destinatário faça algo, e, para isso, ele precisa
persuadi-lo, levando-o a querer ou a dever fazer, a poder e a saber fazer, que são
competências básicas do sujeito.
Com base nisso e observando que Renata (sujeito destinador) propõe um contrato a
Osvaldo (destinatário), contrato este que é de eles formarem uma dupla musical, já que ela
canta e precisa de alguém que toque violão, e ela sabe que Osvaldo é competente para isso.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 899
Para que esse acordo ocorra, é necessária uma relação comunicativa9 entre os atores. Assim,
Renata vai se mostrar como competente e confiável tanto para cumprir o contrato quanto para
mostrar que seus valores são do interesse de Osvaldo ou que devem ser temidos por ele. Dá-se
que, um ano após o firmamento do acordo, Osvaldo começa a quebrar o contrato e entra um
novo destinador na história, o Empresário, que vai propor um acordo com Renata, e esta se
torna destinatário.
A respeito disso, listamos, a seguir, as estratégias de persuasão (as quais podem ser:
intimidação, tentação, sedução e provocação) utilizadas/recebidas por essa personagem em
dois programas narrativos que ocorrem, por um espaço de tempo, concomitantemente na
narrativa: Intimidação – são mostrados valores que o destinatário teme e quer evitar: o
sujeito Renata fala a Osvaldo que ele não pode continuar usando o dinheiro do cachê para
comprar drogas; Tentação – apresentação de valores desejáveis para o destinatário: o sujeito
“Empresário” fala ao sujeito Renata que ela pode se tornar uma garota de programa de
sucesso.
Nesse ínterim, na intimidação, o destinador Renata busca modificar a competência do
destinatário Osvaldo, levando-o a dever fazer (parar de comprar e usar drogas) para que eles
possam investir no futuro do casal e da carreira. Já na tentação, temos um querer fazer, em
que o sujeito Empresário faz uma proposta ao destinatário Renata para que eles possam
ganhar dinheiro “fácil”. Nesse sentido, Renata busca modificar o estado de conjunção de
Osvaldo de dever ou querer parar de comprar drogas para que ele passe então a um estado de
disjunção com esse comportamento autodestrutivo. E o Empresário, aproveitando-se da
possível disjunção de Renata com a música e com Osvaldo, intenta transformar esse estado de
disjunção da protagonista em um querer fazer programas, fazendo com que ela entre em
estado de conjunção com novas competências do sujeito realizado.
Nessa perspectiva, deve ser ressaltado que o destinatário realiza um fazer, que é
entendido como a interpretação da persuasão do outro, e isso ocorre por meio de seu
conhecimento sócio-histórico-ideológico e dos recursos que o destinador utilizou para que
possa julgá-lo ou não como digno de fé10
. No caso de Xandrilá, a manipulação por
intimidação não funciona, e isso pode ter ocorrido por Renata não ter oferecido valores
desejáveis (continuar com a banda e com o relacionamento) para que Osvaldo parasse de usar
drogas. Já na tentação, o destinador Empresário ofereceu valores que, a princípio, não eram
9 Segundo Barros (2012, p. 197), toda comunicação é uma forma de manipulação. 10 Aristóteles, 2011 [384-322 a.C.].
Nas fronteiras da linguagem ǀ 900
desejáveis para o destinatário Renata, no entanto, ao se deparar com a situação de Osvaldo e
com a tentação de poder ganhar muito dinheiro, ela aceita o acordo com o destinador.
Teoricamente falando, no percurso da ação, ocorrem dois tipos de programas
narrativos, sob a perspectiva do sujeito da ação, a saber: programas de performance e de
competência. O primeiro é entendido como a transformação de um estado de disjunção em
estado de conjunção, por meio de um sujeito transformador e realizado pelo mesmo ator do
sujeito que tem seu estado modificado. Ainda nesse programa, o valor do objeto é um valor
último ao qual aspira o sujeito da narrativa. Por sua vez, o programa de competência também
é conceituado como uma transformação de estado de disjunção para conjunção, sendo que a
diferença, nesse programa, é que o sujeito que pratica a transformação é um ator diferente do
sujeito de estado e, também, o valor do objeto é um valor modal (o querer, o dever, o saber e
o poder fazer), isso quer dizer que é um valor imprescindível para que o sujeito, nesse
programa, consiga realizar a performance principal.
Exemplificando isso no curta, pode-se ver que o sujeito Renata tenta alcançar uma
performance, que é transformar seu estado de disjunção com os objetos-valores música,
namorado, fama (dinheiro), que a levaria para uma realização plena (Plenitude) em estado de
conjunção: ela quer e pode chegar à Plenitude almejada. No programa de competência, de
acordo com o contexto do curta, não sabemos exatamente qual(is) o(s) motivo(s) que
levou(ram) Renata à ausência de sentido existencial, porém, podemos pressupor que, talvez,
as origens dela (problemas com os pais, falta de conselhos, etc.), pressupomos, portanto, que
num programa narrativo anterior à história de Renata contada na película, vários foram os
anti-sujeitos que fizeram com que a protagonista chegasse ao estado em que se encontrava no
início do curta – estado de Ausência –, e esse sujeito foi responsável pela sua transformação
em estado de conjunção com a ausência de sentido existencial.
Após a realização da performance, o sujeito cumpre o acordo que havia feito com o
destinador. Chegamos, então, ao terceiro percurso, o da sanção. Neste, o destinatário irá
receber o reconhecimento ou não pela realização do contrato e, consequentemente, a
recompensa ou a punição. Com base nessa explicação, podemos dizer que, no enunciado em
que Renata foi o destinador e propôs o acordo com Osvaldo, este não cumpriu o contrato
(drogava-se e comprava drogas com o dinheiro do cachê dos shows feitos pela dupla),
recebendo, como recompensa, a punição: ficar sem Renata e desfazer a parceria musical.
Ainda aqui, podemos afirmar que Osvaldo também assumiu um papel de anti-sujeito, daquele
que atrapalha a realização da performance. Já no enunciado em que Renata é o destinatário e o
Empresário é o destinador, ela acaba cumprindo o contrato e recebendo sua recompensa e seu
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 901
reconhecimento: dinheiro pelo seu trabalho, tornando-se assim uma garota de programa
famosa e desejada.
Finalmente, percebemos que, em Xandrilá, num primeiro momento, a narrativa
apresenta um sujeito (Renata) em conjunção com valores temíveis (querer não ser) ou que são
indesejáveis e em disjunção com valores tidos como desejáveis (querer ser): Renata se mostra
uma menina que não sabe o verdadeiro significado da vida e faz tudo sem pensar nas
consequências pelo fato de a ausência de sentido existencial permear seus pensamentos. Nesse
caso, a sua situação inicial (ausência de sentido) é um valor indesejável para ela porque é
obrigatório (dever ser) para que possa construir seu caminho até conseguir encontrar um
sentido e se realizar. Além disso, esse sujeito está em disjunção com a Plenitude na medida
em que esse é um valor desejável e, consequentemente, desconhecido (não saber ser), isto é,
ela talvez não saiba como chegar ao estado de Plenitude, pois ainda é uma menina imatura
que não conhece os caminhos e não tem alguém que a guie.
2.3. Nível Discursivo
Após percorrermos os dois níveis do percurso gerativo de sentido, chegamos ao nível
discursivo. Neste, a disposição narrativa é temporalizada, espacializada e actoralizada. Isso
quer dizer que as ações e os estados narrativos são localizados e programados temporal e
espacialmente, e os actantes narrativos são investidos pela categoria de pessoa. Ademais, os
valores nesse nível são difundidos no discurso, de maneira abstrata, revestidos pelos percursos
temáticos, que, por seu turno, podem ser investidos e concretizados em figuras.
A tematização e a figurativização correspondem, segundo Barros (2012), ao
“enriquecimento” dos sentidos do discurso. Assim sendo, na tematização ocorre a propagação
dos traços que são revestidos de sentidos e que são tomados de forma abstrata. Por sua vez, na
figurativização, esses traços semânticos são revestidos por traços semânticos “sensoriais” (de
cor, forma, cheiro, som, etc.) que são capazes de dar a eles “o efeito de concretização
sensorial”. Além disso, os discursos são qualificados pelas repetições de tipos de traços
semânticos, apresentados como percursos temático, figurativo e isotópico. Este, segundo
Greimas e Courtés é
[...] de caráter operatório, o conceito de isotopia designou, inicialmente, a
iteratividade*, no decorrer de uma cadeia sintagmática*, de classemas* que
garantem ao discurso-enunciado a homogeneidade. Segundo essa acepção, é
evidente que o sintagma* que reúne ao menos duas figuras* sêmicas pode ser
considerado como o contexto* mínimo que permite estabelecer uma isotopia. Assim
Nas fronteiras da linguagem ǀ 902
acontece com a categoria* sêmica que subsume os dois termos contrários*: levando-
se em consideração os percursos aos quais podem dar origem, os quatro termos do
quadrado* semiótico serão denominados isotópicos (GREIMAS & COURTÉS,
2013, p. 275-276). (Os asteriscos são utilizados no texto original)
Esclarecendo o conceito do último termo destacado por nós, este seria a repetição de
traços semânticos que fazem com que o discurso torne-se semanticamente coerente. De
acordo com os postulados de Fiorin (1992, p. 81-6), “em Análise do Discurso (AD), isotopia é
a recorrência do mesmo traço semântico ao longo de um texto. Para o leitor, a isotopia oferece
um plano de leitura, determina um modo de ler o texto”.
Ainda de acordo com Fiorin (1992), os textos figurativos são capazes de criar um
efeito de realidade, pelo fato de construírem “um simulacro da realidade”, correspondendo,
dessa maneira, ao mundo; por seu turno, os textos temáticos, buscam elucidar a realidade,
“classificam e ordenam a realidade significante”, formando relações e dependências. Desse
modo, para esse estudioso, os discursos figurativos possuem uma função descritiva ou
representativa, ao mesmo tempo em que os temáticos têm uma função predicativa ou
interpretativa.
Assim como o lexema “texto” corresponde à palavra tecido, como diz Fiorin, as
figuras estabelecem relações entre si. E o que vai interessar numa análise textual é esse
encadeamento de figuras, pois ler um texto não é apreender figuras separadas, mas poder
observar as relações existentes entre elas e avaliar a trama que estabelecem. De tal modo, esse
encadeamento de figuras e essa organização de relações denominam-se percurso figurativo.
Por sua vez, uma correlação de temas corresponde ao percurso temático. Vale
salientar que esses percursos só acontecem em textos que sejam temáticos. Desse modo, um
conjunto de lexemas abstratos e em que aparece um tema mais universal compõe um percurso
temático. Assim como os percursos figurativos, os percursos temáticos precisam estabelecer
uma coerência interna. E, quando isso não acontece, o texto se torna incoerente. É claro que
podemos mostrar num texto percursos temáticos antitéticos ou mesmo superpostos para criar
determinados efeitos de sentido. Dessa forma, do mesmo modo que nos textos figurativos, a
quebra de coerência nos textos temáticos pode ser um recurso para transmitir determinados
conteúdos.
Considerando então esses levantamentos e aplicando o que foi falado ao curta
Xandrilá, temos então um percurso temático em que o tema universal é caracterizado
fundamentando-se por meio do nível narrativo, que foi a Totalidade de Sentido Existencial
dos personagens Renata e Pepper, mediada pelos termos contrários Ausência e Plenitude.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 903
Como um percurso temático é um conjunto de lexemas abstratos em que se tem apenas um
único tema principal, desse modo podemos dizer que a sexualidade, o jovem transgressor, o
ilegal (proibido) e o materialismo são temas que revestem o tema universal.
Nesse ínterim, como a figurativização é responsável por recobrir os traços semânticos
da tematização por meio de traços sensoriais criando com isso um efeito de realidade e tendo
a função descritiva ou representativa, traremos na sequência as figuras apresentadas no curta-
metragem em tela, figuras estas que são responsáveis por revestir os temas:
TEMAS FIGURAS
Sexualidade O picolé; as unhas vermelhas de Renata; o sexo
oral na escola; os movimentos obscenos durante
a aula; a forma como Renata aborda Pepper na
praia; a blusa curta que deixa a barriga de
Renata à mostra, na escola.
Jovem transgressor (Rebelde) A maconha (droga); a bebida; os piercings; as
tatuagens; o pó (droga); o Rock (disco e música
da banda Karne Krua; guitarra, pulseira de
couro); o desinteresse pelos estudos.
Ilegal (proibido) A relação sexual na escola; o uso das drogas
(proibido no Brasil); o tráfego em vias proibidas
e em alta velocidade.
Materialismo O carro de Pepper; o dinheiro dos programas; o
champanhe; o vinho; a joia; o carro e a moto de
luxo (dos clientes); o Hotel.
Tabela 1: Relação entre temas e figuras representada com exemplos do curta.
Através desse quadro, podemos observar, por meio das figuras, como se sucederam os
temas e a sua importância para a construção de sentido da narrativa dando-lhe um efeito de
concretização sensorial.
Por meio das figuras dispostas acima, ficam comprovados os argumentos que
utilizamos para confirmar os temas que revestem o tema universal dessa narrativa, fazendo
com que nós, espectadores, consigamos identificar os elementos significativos que foram
utilizados para a construção do efeito de sentido do curta em análise.
A partir da abordagem do conceito de isotopia, esse curta-metragem determina que
leiamos a película como uma história de dois jovens que apresentam o traço /Busca da
Totalidade Existencial/. E, por meio dos traços semânticos que expomos acima, podemos
observar que esses jovens vivem uma vida de aventuras e quebrando os limites da proibição
que a sociedade impõe. Atentamos ainda que essa sociedade reproduzida no filme diz respeito
Nas fronteiras da linguagem ǀ 904
à sociedade sergipana por conta de seus produtores serem sergipanos e também por sua
gravação ter acontecido na cidade de Aracaju, capital do Estado de Sergipe.
Considerando esse espaço em que a narrativa é tratada, podemos inferir, por meio dos
discursos propagados, que essa sociedade pode ser entendida como preconceituosa e
tradicionalista, já que tratou dos problemas trabalhados no curta como uma censura didática.
Ou seja, os personagens e as suas atitudes são mostrados como “errados”, além de que há a
mensagem de que se nós (espectadores) seguirmos esse rumo, teremos uma sanção negativa
em nossa história. Ao mesmo tempo, os oradores provocam essa mesma sociedade, visto que
Renata termina feliz, fazendo programas, ganhando dinheiro, o que provavelmente não vai ser
aceito por aqueles que compartilham dos valores tradicionais. Ou seja, podemos falar que há
uma contradição presente no filme entre valores tradicionais e “transgressores” (não se aceita
as drogas, mas se aceita a prostituição...)
3. Considerações Finais
Com isso, esperamos que, desvendando imagética e verbalmente os discursos do curta
Xandrilá, seu enredo, seus valores, seus sentidos, haja uma abertura para a difusão de novos
estudos acerca desse tipo de produção audiovisual. Nesse contexto, as esferas acadêmica e
escolar, por exemplo, podem ser beneficiadas ou enriquecidas com a nossa pesquisa pelo fato
de os professores que tenham acesso ao nosso trabalho poderem discutir, em sala de aula, com
seus alunos, acerca de temáticas concernentes a problemas sociais e políticos que dizem
respeito ao Estado ou a situações humano-existenciais que sejam representadas nos curtas;
ademais, poder-se-á incentivar e valorizar a produção de curtas-metragens, tanto por parte de
pessoas que já os produzem, bem como de outras que possam despertar o desejo de passar a
produzi-los; e, ainda, se possível, teremos em vista também resgatar aspectos históricos,
sociais e culturais da região ou de figuras que aqui são relevantes, bem como observar os
valores que são difundidos por meio dos discursos veiculados na película cinematográfica em
pauta e refletir sobre eles.
Finalmente, esperamos fazer com que Xandrilá – essa mistura de conto, áudio,
imagem, vídeo, trilha sonora original e um enredo em que dramas pessoais se afloram numa
busca de sentido existencial – seja uma fonte de significações que levem à produção de
conhecimentos que sejam relevantes tanto para a comunidade acadêmica – na medida em que
ela pode passar a valorizar a produção de curtas sergipanos – quanto para o autoconhecimento
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 905
do sujeito enquanto ser social, pois, a partir da visualização da história do Outro, é possível
obter algum tipo de aprendizado ou de lição.
4. Referências Bibliográficas
ARISTÓTELES (384-322 a.C.). Retórica. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2011.
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Estudos do discurso. In: FIORIN, José Luiz (org.)
Introdução à Linguística II: princípios de análise. 5ª ed., 1ª reimpressão. São Paulo: Contexto,
2012. p. 187-219.
FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. 3ª ed. São Paulo: Contexto, 1992.
FONTANILLE, Jacques. Semiótica do Discurso. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2012.
GREIMAS, Algirdas. Julius; COURTÉS, Joseph. Dicionário de Semiótica. 2ª ed. 2ª
reimpressão. São Paulo: Contexto, 2013.
XANDRILÁ. Direção de fotografia: Arthur Pinto. Produção: André Aragão, Isaac Dourado e
Arthur Pinto. Colorização: André Franco. Efeitos Visuais: Samuel Bla. Engenheiro de Som:
Jefferson Andrade. Roteiro adaptado: Cibele Nogueira e André Aragão. Baseado no conto
homônimo de Isaac Dourado. Trilha sonora: Patrícia Polayne. Som 5.1 Estúdio Três. Gonara
Filmes e SeteNove AudioVisual, 2011.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 906
A PRESENÇA DOS GÊNEROS TEXTUAIS NAS QUESTÕES
DE MATEMÁTICA NO ANTIGO ENEM. [Voltar para Sumário]
Francielle Santos Araújo1(UFS)
Fabíola dos Santos Lima2(UFS)
1. Introdução
Os gêneros textuais têm um papel importante na sociedade e no espaço educacional,
pois têm sido um método ideal para o desenvolvimento da linguagem em relação às práticas
discursivas sociais, culturais e históricas. É também uma forma de levar para sala de aula um
modo diferente de ensinar, promovendo maior interação entre professores e alunos. Conhecê-
los ajuda aos alunos a melhor interpretá-los e consequentemente produzi-los. Esse artigo está
baseado nas teorias de Marchuschi e Bakhtin, bem como nos documentos oficiais sobre o
ENEM. O interesse da pesquisa é analisar e descrever quais gêneros estão presentes nas
questões de matemática do antigo ENEM. Fez-se uma computação dos gêneros que mais
apareceram, e descreveram-se as competências exigidas para a resolução das questões.
2. Considerações teóricas sobre gêneros e o ENEM.
Ler o texto é promover uma interação, uma vez que o texto é uma ação interativa e
interligada, ao mesmo tempo, linguística e socialmente. Nele inclui-se a interferência de um
sujeito, com intenções prévias e empenhos sucessivos, para que se crie e se mantenha o
aspecto funcional da produção linguística. Adotar os gêneros como instrumento para o
trabalho com a linguagem na escola, torna-se importante. Gêneros são os mais diversos tipos
1 Aluna do Curso de Letras Português/UFS bolsista do Grupo de Pesquisa: Gêneros textuais na prova do ENEM:
provas de Ciências da Natureza & Matemática E-mail: [email protected] 2 Aluna do Curso de Letras Português/UFS bolsista do Grupo de Pesquisa: Gêneros textuais na prova do ENEM:
provas de Ciências Humanas & Linguagens, Códigos e suas tecnologias. E-mail: [email protected]
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 907
de textos literários ou não, que podemos reconhecer pela sua forma organizada, seu contexto e
as funções a que se destinam. Mas, qual é a funcionalidade dos gêneros textuais?
Para um trabalho com a língua, pautado num gênero textual, os vários autores
argumentam que devem ser considerados três aspectos: os conhecimentos existentes sobre
gêneros textuais, as capacidades observadas dos aprendizes e os objetivos de ensino a que se
pretende atingir.
Os gêneros textuais constituem, portanto, repertórios de uso da linguagem, atualizados
a cada nova enunciação. Essa definição pressupõe a relação dialógica que Bakhtin propõe
para a utilização da língua e aponta para a historicidade dos gêneros, bem como para a
flexibilidade de suas características e fronteiras. Os enunciados constituem um gênero quando
atingem certo grau de estabilidade. O gênero é definido através de três elementos: o conteúdo
temático, o estilo e a estrutura composicional.
Partilhando das ideias de Bakhtin, Marcuschi (2002) considera que a expressão
“gênero textual” é vaga para aludir aos textos que são encontrados no cotidiano. Segundo este
autor:
Os gêneros não são entidades formais, mas sim entidades comunicativas. Gêneros
são formas verbais de ação social relativamente estáveis realizadas em textos
situados em comunidades de práticas sociais e em domínios discursivos específicos.
(Marcuschi, 2002, p. 22-25).
Esta perspectiva também se encontra em documentos oficias como os Parâmetros
Curriculares Nacionais do Ensino Médio (PCNEM), pois esse documento afirma que os
gêneros desenvolvem “no aluno seu potencial crítico, sua percepção das múltiplas
possibilidades de expressão linguística, sua capacitação como leitor efetivo dos mais diversos
textos representativos de nossa cultura.” (p.52) Esse documento tem o objetivo de discutir
modos de pensar e orientar o trabalho do docente e de ensinar a língua de modo adequado ao
contexto em que se está inserido. São através dessas discussões que analisaremos quais
gêneros estão inseridos nas provas do ENEM, conhecendo as características e a
intencionalidades dos gêneros nas questões. Mas, o que é o ENEM? Quais as suas
características e suas funções?
O ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) teve sua primeira aplicação em 1998,
foi exame realizado pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC) com a finalidade de
verificar a qualidade da educação no país. Pode fazer o ENEM quem já concluiu ou está
concluindo o ensino médio. A prova do ENEM caracteriza-se por questões contextualizadas e
interdisciplinares, diferencia-se, portanto, de muitas provas de vestibulares, pois os alunos não
Nas fronteiras da linguagem ǀ 908
precisam apenas saber conceitos, mas têm necessidade de saber aplicá-los. Esse tipo de exame
faz com que o processo de memorização desse lugar a um maior desempenho nas
competências e habilidades dos alunos.
O antigo ENEM corresponde ao período de 1998 a 2008. Nele a prova era composta
por 63 questões de várias áreas de conhecimento, aplicadas em um único caderno juntamente
com a redação. Esse modelo mudou a partir de 2009. No ENEM as questões são estruturadas
a partir de cinco (05) competências e vinte e uma (21) habilidades.
As competências são modalidades que usamos para estabelecer relações entre o que
desejamos conhecer e as práticas utilizadas para o desenvolvimento de respostas. Já as
habilidades são técnicas para realizar determinadas tarefas, para isso é necessário o domínio
de conhecimentos específicos. As cinco competências exigidas pelo ENEM são:
I. Dominar a norma culta da Língua Portuguesa e fazer uso das linguagens matemática,
artística e científica.
II. Construir e aplicar conceitos das várias áreas do conhecimento para a compreensão de
fenômenos naturais, de processos histórico-geográficos, da produção tecnológica e das
manifestações artísticas.
III. Selecionar, organizar, relacionar, interpretar dados e informações representados de
diferentes formas, para tomar decisões e enfrentar situações-problema.
IV. Relacionar informações, representadas em diferentes formas, e conhecimentos disponíveis
em situações concretas, para construir argumentação consistente.
V. Recorrer aos conhecimentos desenvolvidos na escola para elaboração de propostas de
intervenção solidária na realidade, respeitando os valores humanos e considerando a
diversidade sociocultural.
O antigo ENEM era aplicado em quatro provas de cores diferentes, prova de cor rosa,
azul, amarela e branca. Não existem diferenças entre as provas, as questões do caderno de
provas são iguais, o que existe é a alteração da ordem das questões, para dificultar uma
possível “cola” durante a prova. A partir de 2004, o ENEM passou a utilizar suas provas
como critérios de seleção para o Programa Universidade para todos (ProUni), que concede
bolsas de estudo integrais ou parciais em instituições de Educação Superior particulares.
A concepção do ENEM é a valorização de uma educação com conteúdos
comprometidos com a cognição, desenvolvimento do raciocínio, interdisciplinaridade e a
capacidade dos alunos de aprender, eliminando todo aquele processo de regras. Dessa
maneira, nota-se que o ENEM contempla a ideia de que a memorização não é a finalidade do
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 909
Ensino Médio. O ENEM tem como referências as orientações dos PCN (Parâmetros
Curriculares Nacionais), da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e das
Diretrizes do Conselho Nacional de Educação. Todos esses documentos mostram que é
possível trabalhar conteúdos de maneira transdisciplinar.
É pela leitura que a sociedade interage com o mundo, sendo, portanto um processo
ativo. As competências que as leituras trazem para o desenvolvimento do indivíduo e para a
sociedade são de fundamental importância. A leitura pode ser caracterizada como um
processo de compreensão de expressões formais e simbólicas que se dá a conhecer através de
várias linguagens (Martins, 2006). Então, a leitura não é apenas decodificação de códigos, vai
além, ler é mais que um processo cognitivo, uma atividade social e cultural que leva à
construção de conhecimentos.
A leitura envolve uma série de passos e permite que o sujeito tenha a compressão
necessária do que leu. De acordo com os PCN:
Um leitor competente é alguém que, por incentivo próprio, é capaz de
selecionar,dentre outros trechos que circulam socialmente, aqueles que podem
atender a uma necessidade sua.Que consegue utilizar estratégias de leitura
adequadas para abordá-las de forma a atender a essa necessidade.
(BRASIL,1998,p.41)
Ler é um processo dinâmico, busca no sujeito não apenas um leitor, mas um sujeito
crítico. A formação desse leitor não depende somente dele, existem outros fatores que ajudam
para isso, a escola, o modo como os professores trabalham essa habilidade, o modo de ensinar
em sala de aula pode ser um fator diferencial. Tendo o professor como mediador entre o aluno
e o texto, o aluno pode criar gosto pela leitura.
Lajolo (1994,p.121) explica que, “um professor precisa gostar de ler, precisa ler
muito, precisa envolver-se com o que lê”. Então, vai ser a partir do professor que o aluno
passa a ter o gosto pela leitura e consegue desenvolver essa competência.
Os PCN ainda postulam que a leitura
[...] é um processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo de construção do
significado do texto, a partir de seus objetivos, do seu conhecimento sobre o assunto
[...] não se trata simplesmente de extrair informações da escrita, decodificando letra
por letra, palavra por palavra. Trata-se de uma atividade que implica,
necessariamente, compreensão. (BRASIL, 1998, p. 41)
Para interpretação e compreensão de textos não se tem uma definição específica, mas
o que se sabe é que são aspectos presentes na interação comunicativa, tanto oral quanto
escrita. Para entender melhor a compreensão é preciso considerar os dois sujeitos o autor e o
Nas fronteiras da linguagem ǀ 910
leitor. Visando esses dois aspectos, tem-se o resultado final que mostra aquilo que o leitor
conseguiu entender do que o autor quis dizer.
A compreensão não é apenas uma ação cognitiva ou linguística, ela cria e recria
realidades que ainda nem sempre estão presentes no texto, mas que são inferidas pelo leitor.
Para Marcuschi:
“... se compreender não é uma atividade de precisão,isto também não quer dizer que
seja uma atividade imprecisa e de pura adivinhação.Ela é uma atividade de seleção,
reordenação e reconstrução, em quem a margem de criatividade é permitida”
(Marcuschi, 2009,p.256)
O leitor constrói seus sentidos, mas se limita ao significado que o texto traz. O texto é
produzido a partir dos significados do autor, mas é reconstruído pelo mundo do leitor. Dessa
forma, a compreensão de textos é um processo que se sustenta tanto no leitor como na sua
interpretação, sem deixar de levar em consideração aquilo que o autor quis dizer.
3. Descrições, levantamentos e análises.
Após levantamentos observou-se que há um grande número das questões de
Matemática. Não existe um número fixo de questões por disciplinas no ENEM. Por exemplo,
no ano de 1998, houve treze (13) questões de Matemática teve e apenas quatro (04) questões
de Química; já no ano de 2005, Matemática teve dez (10) questões, e Química teve cinco (05).
Essa diferença é comum em todos os anos.
Nas provas analisadas, ou seja, nas provas do antigo ENEM, os gêneros que mais
apareceram foram problemas, gráficos e figuras. Considerou-se gênero problema aquelas
questões em que seus enunciados exigem a utilização de técnicas já vistas, mas é preciso
saber aplicá-las e conhecer seus fenômenos. Já o gênero gráfico foi considerado como uma
ferramenta importante, pois facilita a análise e interpretação de dados ou valores numéricos. O
gráfico é composto por linhas e colunas, separadas por fileiras. O gênero figura utiliza-se
também da linguagem não verbal, mas apresenta ilustrações em que se transmitem
informações para se obter respostas.
O desenvolvimento das competências comunicativas dos alunos - falar, ouvir, ler e
escrever - é umas das grandes preocupações do professor de qualquer disciplina. Embora os
professores das outras disciplinas considerem que essas competências são apenas preocupação
do professor de Língua Portuguesa. Um método que abrange essas competências são os
trabalhos com gêneros textuais em sala de aula. Os gêneros são linguagens em uso,
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 911
instrumentos de comunicação indispensáveis a todos os sujeitos. O professor deve usar o texto
como instrumento de trabalho, é por meio deste trabalho que o aluno terá capacidade para
conceituar, questionar, interpretar, analisar e outras habilidades.
Nota-se que a disciplina de Matemática tem como características números, cálculos e
problemas. Mas, para qualquer entendimento ou resolução das questões é essencial que o
aluno seja capaz de interpretar e compreender o que é pedido, para assim chegar à resposta.
Por esse motivo, o professor de Matemática deve instigar em seus alunos a leitura dos
problemas, ensiná-los a interpretar os gêneros utilizados na disciplina, para que
compreendendo o que é pedido, apreenda as técnicas da Matemática. Como já foi dito,
compreender o que é lido não é obrigação apenas do professor de língua portuguesa. A língua
portuguesa é a base, mas cada disciplina tem suas peculiaridades e os professores de qualquer
disciplina têm responsabilidades de desenvolver em seus alunos as condições necessárias para
atingir os objetivos a serem atingidos.
A tabela seguir mostra a quantidade dos gêneros na disciplina Matemática das provas
do Enem dos anos de 1998 a 2008.
Tabela 1: Gêneros presentes nas provas de Matemática.
O gênero problema é considerado como uma questão em que seu enunciado é em
linguagem matemática e pode ter uma solução. Para resolver o problema é necessário
criatividade e utilização de técnicas aprendidas, como fórmulas, regras, equações etc. Nesse
gênero, os alunos necessitam além da competência 1, em que é preciso construir significados
para os devidos número, das habilidades de reconhecimento no contexto e a resolução da
situ
açã
o-
pro
ble
ma. Eis um exemplo:
Exemplo 1
ANO 98 99 00 01 02 03 04 05 06 07 08 TOTAL
Gêneros
Figura 1 1 1 1 2 1 2 0 1 1 2 13
Gráfico 2 2 0 0 1 3 3 2 0 1 1 15
Problema 4 0 5 2 1 2 3 4 2 1 0 24
Nas fronteiras da linguagem ǀ 912
Font
e: Exame Nacional do Ensino Médio(1998,p.4)
Para a resolução desse problema é necessário que seja feita a transformação dos
valores que estão em metros para centímetros. A transformação de m(metros) para
cm(centímetros) é feita pela multiplicação por 100. Em seguida, é necessário usar a regra de
três. Regra de três simples é um processo prático para resolver problemas que envolvam
quatro valores dos quais conhecemos três deles e o quarto classificamos como incógnita.
Sabe-se que a sombra da pessoa (que tem 180 cm de altura) mede 60 cm e a sombra do poste
mede 200 cm. Aplica-se a Regra de três simples 180 cm x 200 cm / 60 cm e tem-se a altura do
poste que é de 600 cm. Mais tarde, sabe-se que a sombra do poste (que tem 600 cm de altura)
que media 200cm, passou a medir 150 cm (pois diminuiu 50 cm), e sombra da pessoa (que
tem 180 cm de altura) será, aplicando também a Regra de três, 150 cm x 180 cm / 600 cm =
45 cm. Nessa questão, utilizaram-se os conhecimentos matemáticos de Regra de três e de
transformação de metro em centímetros além da compreensão do enunciado para se chegar à
resposta correta que é o item B, ou seja, 45 cm.
Outro gênero muito utilizado nas questões de Matemática é o gênero gráfico. Esse
gênero tem como objetivo expressar valores ou dados numéricos; seu formato é através de
linhas e colunas, separadas por filetes, mas também existe em formas circulares. Nesse gênero
utiliza-se mais da linguagem não verbal, porque a intenção é expressar valores, facilitando
uma melhor compreensão e permitindo ao leitor uma interpretação rápida e objetiva sobre os
dados apresentados. A competência 6 está presente nesse gênero, em que se deve interpretar
as afirmações obtidas na leitura do gráfico, realizando um significado, dentro, fora e além do
gênero. Já as habilidades utilizadas são expressas no gráfico, ou seja, a resolução da questão a
partir do gráfico e as análises das informações expressas para uma possível explicação. O
aluno com essas habilidades interpreta e analisa as informações aí contidas.
Exemplo 2
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 913
Fonte: Exame Nacional do Ensino Médio(1999,p.3)
A resolução dessa questão é simples. É preciso apenas comparar os dois gráficos e
observar que eles têm os mesmos valores. Entretanto é necessário que se observe que as
escalas são diferentes e, portanto, aparentam situações diferentes. Isso demonstra como uma
informação pode ser instrumentalizada. Uma escala é uma linha graduada, dividida em partes
iguais, que indica a relação das dimensões ou distâncias reais. É um instrumento muito usado
em desenho técnico. Assim o aluno que tem conhecimento do que é uma escala e como ela é
constituída chegará à resposta correta dessa questão que é a letra D.
O outro gênero também muito usado nas questões de Matemática é o gênero figura. O
gênero figura é parecido com o gráfico, pois se utiliza também de linguagem não verbal, mas
o aluno necessita dominar tanto a linguagem verbal quanto a não verbal para solucionar
fenômenos abordados para a disciplina. O gênero figura tem a competência 2 como
característica, porque além da realização da leitura o aluno precisa agir sobre ela. Para a
resolução desse gênero, é necessária a habilidade de interpretar a movimentação dos objetos e
identificar a característica da figura, como se vê no exemplo 3.
Exemplo 3
Nas fronteiras da linguagem ǀ 914
Fonte: Exame Nacional do Ensino Médio (2000, p.5)
Essa resolução é feita a partir dos valores apresentados na figura e no enunciado da
questão. Para se chegar ao resultado é preciso saber a fórmula de progressão aritmética. Sabe-
se que a progressão aritmética é uma sucessão em que a diferença entre dois termos
consecutivos é constante. Pode-se utilizar a seguinte fórmula Sn= x.(a1+a2) / 2, sendo o
primeiro termo a1=30, e o segundo a2=60 que equivalem ao primeiro e ao último degrau e x =
5 que é o número de degraus. Assim S= 5.(30+60)/2 = 225 que representa o comprimento
mínimo da peça linear de madeira. Como se viu algum conhecimento de matemática, como o
conceito de progressão aritmética e a fórmula Sn =x.(a1+a2) / 2 foram necessários para se
chegar à resposta correta que é a letra D.
4. Considerações finais
A partir do levantamento feito nas questões de Matemática nas provas do antigo
ENEM (de 1998 a 2008), notou-se que em todos os anos os gêneros que mais predominaram
foram problema (24), gráfico (15) e figura (13). Verificou-se também que as questões de
Matemática são sempre mais numerosas que as questões de Química ou Física.
É importante ressaltar que as atividades de leitura não se restringem apenas as aulas de
língua portuguesa. Existe um percurso que liga língua portuguesa, como língua materna, às
outras disciplinas.Para resolução das questões com os gêneros- problema, gráfico e figura - é
preciso não só dominar códigos e termos da linguagem matemática assim como compreender
e interpretar problemas, gráficos e figuras. A compreensão do enunciado da questão que
implica interpretação de texto e o conhecimento da disciplina Matemática favorece ao
desenvolvimento das competências e habilidades apresentadas em sua matriz. O professor não
deve ficar preso somente aos conteúdos da disciplina que ensina, nem fazer com que o aluno
memorize listas infinitas de gêneros, mas ele deve trabalhar esses gêneros como se dão na
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 915
realidade, em seu suporte específico. A utilização dos gêneros – problema, gráfico e figura -
em sala de aula facilita a compreensão deles na vida diária do aluno e favorece ao seu
crescimento como cidadão. Por isso a importância do conhecimento dos gêneros textuais
independente da disciplina que se ensine.
Referências
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BRASIL. Ministério da Educação. Inep. Edital do ENEM 2013.
BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de educação fundamental.
Parâmetros curriculares nacionais terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua
portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1998a.
BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de educação fundamental.
Parâmetros curriculares ensino médio: linguagens, códigos e suas tecnologias. Brasília:
MEC/SEF, 1998b.
DOLZ,Joaquim. Produção escrita e dificuldades de aprendizagem.Mercado de Letras,2010.
INEP. Disponível em <http://portal.inep.gov.br/web/enem/edicoes-anteriores/provas-e-
gabaritos> Acesso em: 21 deagosto 2014.
LAJOLO, M. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo: Ática, 1994.
MARCUSCHI,Luiz Antônio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São
Paulo: Parábola, 2009.
MARCUSCHI, L. A. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONISIO, A. P.;
MACHADO, A. R.; BEZERRA M. A.(Orgs.). Gêneros textuais & ensino. Rio de Janeiro:
Lucerna, 2002,p. 19-36.
MARTINS, M. H. O que é leitura. São Paulo: Brasiliense, 2006. 2006.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 916
RECLUSÃO E LIBERDADE NA TRAJETÓRIA FICCIONAL
DE MAYOMBE [Voltar para Sumário]
Francigelda Ribeiro (UFMG)
Lila Léa Cardoso Chaves Costa (UFPI)
Este texto traz uma análise do romance Mayombe, na qual será explorada a tensão
entre a postura impositiva do colonizador português e a luta do colonizado africano para
manter sua identidade, seu sentimento de pertença. Mayombe foi publicado em 1980, embora
tenha sido escrito entre os anos de 1970 e 1971, por Pepetela, alcunha de Arthur Carlos
Maurício Pestana dos Santos. Tal lacuna temporal se justifica pelo fato de o autor ter
mostrado os originais do referido romance ao poeta e líder marxista do Movimento Popular de
Libertação de Angola (MPLA), Agostinho Neto, futuro primeiro presidente de Angola.
Obviamente, não era de bom tom aos olhos de Agostinho Neto revelar desavenças internas no
movimento, o que macularia a integridade moral e ética do MPLA, diante do colonizador e,
sobretudo, diante dos outros movimentos que também lutavam, cada um com estratégias e
interesses próprios, pela libertação de Angola, quais eram: a Frente Nacional para a
Libertação de Angola (FNLA) e a União Nacional para a Independência Total de Angola
(UNITA).
O autor centraliza, em Mayombe, o enfrentamento do colonizado pela reconquista do
seu espaço, sem prescindir de trazer à liça as contradições que perpassaram a luta pela
libertação de Angola em diversas dimensões, mas, sobretudo, no que tange às diferenças
étnicas das tribos que a apoiavam, no caso, o MPLA. Ressalta-se aqui que o olhar do autor,
entidade literária, jamais poderia se desvincular da sua identidade política do guerrilheiro que
foi. Pepetela exerceu, dentro do MPLA a função de comandante e, posteriormente, com a
independência e implantação do regime socialista em Angola, em 1975, tomou posse, no
município de Benguela, do cargo de Diretor do Departamento de Orientação Política,
enquanto o partido ainda vivenciava o enfrentamento com a FNLA pelo governo de Angola.
Entre 1976 a 1982, Pepetela deixou as forças armadas e atuou como Vice-ministro de
Educação. Em se considerando suas experiências pessoais, a Floresta Tropical do Mayombe
detém, na sua ficção, uma força simbólica vital, faz-se metáfora, um constructo labiríntico
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 917
cujos mistérios não permitem aos guerrilheiros saberem com segurança se de lá sairiam vivos
ou se seriam devorados pelos predadores inimigos. A unidade dos colonizados, tanto nas
páginas da narrativa quanto nos registros históricos, se dá em prol de uma causa maior: a
exploração do colonizador português. No entanto, o autor, à luz da estética, reflete a
multiplicidade de vozes, de culturas, dialetos (ressaltando também a importância da língua
portuguesa como veículo de comunicação acessível a todos), as divergências políticas e falhas
éticas existentes em meio ao combate.
No âmbito deste artigo, serão abordadas, pelo viés de teorias que têm como foco
teórico a memória e a identidade, as fraturas do Movimento figurado no romance. Ademais,
será ressaltado o aspecto de a terra colonizada, como tantas outras, deter, para além de
exotismo, princípios próprios, etnias distintas e ideais particulares e coletivos.
O fato de o romance possuir um narrador em terceira pessoa e diversos narradores-
personagens – tais como, Teoria, Mundo Novo, Muatiânvua, André, Chefe do Depósito,
Lutamos e o Comissário – coaduna com a metáfora central exposta no título, pois o romance
surge como uma floresta composta por uma miríade de árvores, ou seja, há um misto de
narradores distintos, porém com aspectos comuns que concorrem para um todo. Teoria, após
breves palavras do narrador em terceira pessoa, é o primeiro a quem o autor faculta a palavra,
ele se apresenta nos seguintes termos: “Num universo de sim ou de não, branco ou negro, eu
represento o talvez. Talvez é não para quem quer ouvir sim e significa sim para quem quer
ouvir não” (PEPETELA, 2013, p. 14). É um posicionamento que reflete o tom de ironia,
presente no romance; neste caso, o personagem é exatamente por não ser: é negro sem sê-lo,
lato sensu. A mestiçagem do professor o atingiu em suas relações sociais dentro do
movimento, pois é ele o aliado que lembra o adversário. O autor revela suas rememorações
por meio de um jogo irônico. A ironia aqui está sendo concebida como elemento de ruptura
do universo centrado e elevado das narrativas épicas. Os fatos retomados, desse modo, pelo
narrador personagem Teoria vão outorgando ao romance maior independência, de outro modo
fossem expostos poderiam se fazer objeto da mais pura matéria histórica, conferindo tom
panfletário ao romance.
Tendo como base tais artifícios da criação, Pepetela inseriu sua narrativa no chamado
romance moderno. Modalidade já cultivada por escritores como William Faulkner, Henry
James, Guimarães Rosa, para citar apenas três grandes nomes. Essa técnica possibilita aos
personagens surgirem enquanto consciência central e, alternando o ponto de vista narrativo,
foi rompida com a estrutura tradicional do enredo. A obra passa então a ser plasmada por
meio de uma nova apreensão da realidade e da linguagem. Considerando, assim, alguns
Nas fronteiras da linguagem ǀ 918
aspectos do romance moderno, é válido retomar o que escreveu sobre Faulkner, Assis Brasil
(1992), ficcionista e crítico literário do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil:
Ao variar, desta maneira, o ponto de vista, Faulkner sacrifica a unidade tradicional
de um desenvolvimento em linha reta da complexa trama, mas, por outro lado,
ganha em unidade dramática dentro de cada uma das histórias individuais dos
distintos narradores (BRASIL, 1992, p.18).
Processo similar ocorre no romance de Pepetela. As memórias de Teoria, por exemplo,
promovem, elas mesmas, seu confronto com as situações que fizeram dele um guerrilheiro,
identidade que se formou por meio de inúmeras renúncias. No entanto, convém ressaltar que a
sua nova identidade não foge às imposições de poder, dadas as relações hierárquicas no
MPLA. Teoria se faz em meio às suas especulações dentro da luta armada. Para ele, a única
maneira de lutar contra o preconceito racial era se opor à exploração portuguesa. Queria
livrar-se da simbologia negativa que acreditava carregar por ser mestiço. Em função do
preconceito racial contra os mestiços na guerrilha, Teoria procura superar-se sempre, como se
pode observar no fragmento:
Um mestiço mostrar o medo? Já viste o que daria? [...] quando os outros estão lá, a
controlar-me, a espiar-me as reações, a ver se dou um passo em falso para então
mostrarem todo o seu racismo, a segunda pessoa que há em mim predomina e leva-
me (PEPETELA, 2013, p. 43).
Na sua condição fragilizada, Teoria sentiu-se obrigado a mostrar-se mais valente que
os demais, colocando-se à frente de situações perigosas, oferecendo-se para as missões
difíceis, como forma de ser aceito pelo grupo. Dispor-se de tal maneira não era senão uma
estratégia de firmação identitária do personagem. Afinal, torna-se “difícil falar de nossa
identidade sem fazer referências às raízes sociais e relacionais” (MELUCCI, 2004, p. 41), seja
com o passado, com o presente ou com relação às perspectivas de futuro.
Memória e identidade, portanto, não podem ser concebidas como instâncias
indissociáveis. A identidade de Teoria aponta para a urgência em articular o processo de luta
anticolonial, rompendo com as relações desiguais entre colonizador e colonizado. Nesse
sentido, podemos dizer com Jacques Le Goff que a memória não é “somente uma conquista, é
também um instrumento e um objeto de poder” (LE GOFF, 1994, 476). No caso de Teoria,
suas memórias lhe permitem compreender os complexos e preconceitos que também estão no
âmago do Movimento. À medida que ele reestabeleceu seu passado e se mostrou como
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 919
detentor de responsabilidades mais arriscadas, terminou por expor complexos, sentimentos de
inferioridade, temores e privações que não somente o afetavam, mas a toda sociedade
angolana.
Naquele contexto, as memórias representadas por sujeitos particularizados são, por
tal ótica, coletivas e os vínculos estabelecidos entre os guerrilheiros a partir do passado, na
representação de diversos modos de opressão, constituem uma pluralidade de vozes e
identidades que constroem o sentimento de grupo e estabelece a resistência anticolonial na
guerrilha, a despeito das divergências tribalistas. Assim, não se pode deixar de enfrentar aqui
uma questão crucial colocada pelo autor: a construção da identidade do grupo de resistência
que, nas páginas de Mayombe, é edificada a partir da memória coletiva. Embora os narradores
exponham suas identidades particulares e conflitantes, a memória coletiva é o que promove a
identidade de grupo, favorecendo a resistência via luta armada. Afinal, as memórias dos
guerrilheiros, em Mayombe, são frutos de um mesmo contexto histórico mediado pela
violência que os instiga a romper os silêncios, impulsionando a ressignificação da história da
Angola colônia. Pepetela evidencia preconceitos sofridos, perdas que jamais serão esquecidas
por aqueles que foram submetidos à tirania colonial. Contudo, sem ocultar as incoerências
internas de uma história que estava sendo vitalizada por homens lançados às vicissitudes, às
incertezas.
Os personagens tecem reflexões acerca dos entraves do passado suscitadas pelos
dramas existenciais e ideológicos da lógica colonial que sentencia o silêncio, subjugando o
colonizado. Sem Medo, personagem revolucionário que também abandonou seus projetos
particulares para se envolver no MPLA, mostra-se como um sujeito que luta pela unidade
entre os guerrilheiros, esforçando-se para eliminar as diferenças existentes no Movimento e
mobilizar a luta. Sua identidade é, pois, forjada por causas coletivas, busca sempre ofuscar o
peso das perdas pessoais, sobretudo, as consequências que lhe trouxeram a traição de Leli,
mulher a quem amou e a quem abandonou, após sua árdua luta para reconquistá-la.
Paradoxalmente, embora evidenciadas, as questões individuais dos personagens são
eclipsadas pelo desejo de livrarem-se de rótulos genéricos, tais como, escravos africanos, raça
inferior, entre outros. Enquanto Movimento, importava a identidade grupal de guerrilheiros,
queriam alterar as identidades que lhes eram impostas pelo regime colonial. Segundo Joël
Candau (2011), em se considerando o ponto de vista do grupo, a identidade é construída a
partir de acontecimentos; circunstância esta que enfatiza o modo como a memória ressignifica
o passado de um grupo. Dar vazão ao passado estritamente individual incorreria, no caso, na
impossibilidade de refutar a imposição colonial.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 920
O personagem narrador Chefe de Operações, camponês dos Dembos, região
quimbundo e terra do café, foi explorado desde a infância, lutou no Congo em março de 1961.
Estrategista e com tendências tribais, acreditava no apoio das armas contra o exército colonial.
Suas memórias articulam o passado dos colonos em meio à riqueza do café e ressalta as
perdas sofridas pelas invasões, fato que legitima a sua participação na luta armada.
Outro narrador personagem é o combatente Milagre, nascido em Quibaxe, região
quimbundo, com tendência tribal, aprendeu somente as primeiras letras e atribui seus
conhecimentos à revolução. Quando criança fugiu de Angola com a mãe, serviu ainda jovem
ao MPLA a chamado do tio. Suas memórias revelam os acontecimentos de 1961: a morte do
pai, enterrado vivo até o pescoço e outras causas marcaram um passado de dor, perdas e
violência. Observa-se, pelo que nos é dado a conhecer desses personagens, que memórias
coadunantes em muitos aspectos estão na base identitária de homens combatentes. Tornaram-
se guerrilheiros por se recusarem a aceitar as imposições da metrópole. De acordo com
Fanon, “[o] problema da colonização comporta assim não apenas a intersecção de condições
objetivas e históricas, mas também a atitude do homem diante dessas condições” (FANON,
2008, p. 84).
O marinheiro Muatiânvua, personagem narrador nascido em Luanda, centro de
exploração do diamante, é filho de pai bailundo e mãe kimbundo. O pai morreu vítima de
tuberculose, após um ano do seu nascimento, resultado do árduo trabalho nas minas de
diamante. Aderiu à guerra anticolonial e abandonou o mar, durante também os conflitos por
libertação em 1961 e a morte de Patrice Emery Lumumba1. No MPLA, busca mobilizar a
solidariedade entre os combatentes para atenuar os conflitos étnicos. Teoria, conforme já
mencionado, por sua identidade híbrida, no mesmo sentido, articula a conscientização na
guerrilha como professor da Base, politizando os militantes. Ao longo do romance, as
rememorações promovem, de certo modo, a integridade do Movimento.
A despeito de Paul Ricœur (2007) lembrar que uma longa tradição filosófica fez da
memória uma província da imaginação, procedeu ele, na contracorrente dessa tradição que
desvalorizou a memória, a uma dissociação entre memória propriamente dita (voltada para
uma realidade anterior) e imaginação (voltada para o fantástico). Elas teriam como traço
comum a presença do ausente e como traço diferencial, de um lado, a visão do real anterior e,
1Nacionalista revolucionário africano, Patrice Emery Lumumba (1925-1961) foi um mártir da independência do
Congo, assassinado por forças nacionais à serviço de potências estrangeiras, encabeçadas pelo chefe das Forças
Armadas congolesas, Joseph Désiré Mobutu, que seria o chefe de uma ditadura brutal e predadora no Congo
(MALAQUIAS, 2014).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 921
do outro, a visão do irreal. Assim, utilizando-se dos termos gregos mneme e anamnesis para
designar, respectivamente, a lembrança como afecção passiva (phatos) e a lembrança como
objeto de uma busca intencional (recordação), o autor difere a imaginação da rememoração
(daquilo que, de fato, ocorreu). A ameaça entre rememoração e imaginação afeta, segundo
ele, a ambição de fidelidade da memória, no entanto, conforme predicou, nada melhor que a
própria memória para garantir que algo, de fato, aconteceu, antes de se transformar em
lembrança.
A memória, reconheceu Ricœur, poderia se configurar como o equivalente fenomenal
de um acontecimento físico. Um dos pontos que asseguraria tal distinção seria exatamente a
ideia de que a memória pressupõe a existência de algo no passado. Para ele, só há “mimética
verídica ou mentirosa porque há, entre a eikon [imagem-lembrança] e a impressão [registro
dos acontecimentos], uma dialética de acomodação, de harmonização, de ajustamento que
pode ser bem sucedida ou fracassar” (RICŒUR, 2007, p.32, grifo do autor).
Mesmo considerando o risco de fracasso ressaltado por Ricœur, o estudo ora
apresentado só se tornou possível por se considerar, no universo da obra, a ideia de que a
memória pressupõe a existência de algo no passado, nos termos de Ricœur. Desse modo, a
memória é o elemento da trama que fortalece os sujeitos na luta, elemento básico nas ações de
resistência. É ao analisar a identidade de grupo que a memória ganha relevância na análise
aqui empreendida. Assim, a exploração do colonizador realça tal identidade, conforme se
pode perceber no fragmento:
Isso é exploração colonialista. O que trabalha está a arranjar riqueza para o
estrangeiro, que não trabalha. O patrão tem a força do lado dele, tem o exército, a
polícia, a administração. É com essa força que ele vos obriga a trabalhar, para ele
enriquecer (PEPETELA, 2013, p. 35).
Ao tomar consciência de um passado de exploração colonial, ao reconhecer que as
riquezas em Angola são construídas pelo colonizado e usufruídas pelo colonizador,
mobilizam-se os sujeitos no sentido de intervir naquele contexto de exploração, solicitando
uma nova postura diante das imposições coloniais. O trecho supracitado se refere a um grupo
de trabalhadores explorados no interior da floresta na derrubada de árvores para os
colonialistas. Com a chegada dos combatentes e a conversa estabelecida pelo Comissário, eles
não tentaram fugir, pois se sentiram seguros e confiantes em meio ao grupo que tentava
convencê-los do jugo imperialista a que estavam submetidos.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 922
As memórias individuais se coletivizam de modo bem mais complexo que
simplesmente um genérico amor à pátria, porque ancoradas em um passado comum de perdas,
dor, luto, sofrimento, exploração e miséria no contexto colonial em Angola. As mobilizações
efetivadas pela via da memória promovem reflexões, conflitos existenciais e desejo de
eliminar o jugo colonial, elementos que fortalecem a identidade de grupo, favorece a
resistência e projeta os combates a uma nova identidade, visto que se trata de um processo
ininterrupto assim como articula a resistência anticolonial do MPLA.
O presente explicita, pois, novas identidades, aspecto que fica bem evidenciado na
trajetória do Comissário, para dar um exemplo mais explícito. De acordo com o sociólogo
francês Maurice Halbwachs (1990), para que nossa memória se auxilie com as dos outros, não
basta que estas nos tragam seus depoimentos ou apenas revisite o passado, mas é necessário
que as memórias não cessem de concordar umas com as outras “e que haja bastante pontos de
contato [...] para que as lembranças [...] possam ser reconstruídas sobre um fundamento
comum” (HALBWACHS, 1990, p. 34). As representações das memórias e das questões
voltadas para a dominação portuguesa no romance estão alicerçadas na superação da
fragilidade do sujeito colonizado e das diferenças étnicas dos combatentes do grupo.
No processo histórico de colonização figurado no romance, a memória coletiva
fortalece a identidade de grupo na guerrilha, reverberando o testemunho da opressão e a força
que movimenta a busca pela libertação. A memória coletiva possibilita a ressignificação do
passado e das identidades dos sujeitos, reivindicando uma nova ordem social, alicerçando a
necessidade de Angola se constituir como nação livre, a despeito das diferenças étnicas. Desse
modo, pode-se ressaltar que “socialmente o indivíduo não para de enfrentar uma plêiade de
interlocutores eles mesmos dotados de identidades plurais [...] a identidade define-se sempre,
pois, a partir de relações e interações múltiplas” (GRUZINSKI, 2001, p. 53). A narrativa não
condena as identidades construídas socialmente ao longo do período de colonização ao
esquecimento. Ao contrário, coloca em cena as identidades múltiplas e uma plêiade de
narradores com identidades plurais, sempre em construção; contudo, interligadas por um ideal
comum. Esse mobiliário estético revela ambiguidades, os personagens já não surgiam
coerentes em suas ações, isso em virtude da eliminação do narrador onisciente e do
descentramento do ponto de vista da narrativa que, múltiplo – os personagens também
passaram a narrar –, se desloca do enfoque externo para o interno, algo que somente um autor
consciente de que deve agenciar de modo crítico, mas sem prescindir da pesquisa formal pode
empreender; conferindo, para além do caráter documental excelência literária à sua criação.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 923
Referências
BRASIL, Assis. A técnica da ficção moderna. Rio de Janeiro: Nórdica, 1982.
CANDAU, Joël. Memória e identidade. Tradução de Maria Letícia Ferreira. São Paulo:
Contexto, 2011.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo:
Cia das Letras: 2001.
HALBWACHS, M. Memória coletiva. São Paulo: Centauro, 1990.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Tradução de Bernardo Leitão. São Paulo:
UNICAMP, 1994.
MALAQUIAS, Sangwangongo. Patrice Lumumba: A ternura do herói de África. Angola:
Cultura - Jornal Angolano de Artes e Letras, 2014. Disponível em:
<http://jornalcultura.sapo.ao/dialogo-intercultural/patrice-lumumba-a-ternura-do-heroi-de-
africa>. Acesso em: 17 abr. 2015
MELUCCI, Alberto. O jogo do eu: a mudança de si em uma sociedade global. Rio Grande do
Sul: Unisinos, 2004.
PEPETELA, Artur Carlos M. P. Mayombe. São Paulo: LeYa, 2013.
RICŒUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alan François et al. Campinas:
Editora da Unicamp, 2007.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 924
ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS: UMA ABORDAGEM
INTERTEXTUAL E MULTIMODAL DO GÊNERO [Voltar para Sumário]
Francilene Leite Cavalcante1 (UNICAP/IFAL)
Roberta Caiado2 (UNICAP)
1. Introdução
No contexto atual, onde a atenção de diversos pesquisadores3 se volta para a análise, o
estudo, a descrição e a explicação dos mais variados gêneros textuais, objetivando possibilitar
meios e maneiras para que haja um ensino de língua preocupado com os gêneros, mediante
seu funcionamento em sociedade, parece pertinente e necessário que se ampliem os estudos
sobre os anúncios publicitários. Afinal, trata-se de um gênero que merece atenção especial por
se fazer presente nas mais diferentes esferas da atividade humana.
Assim, este estudo tem por objetivo analisar, especialmente, os gêneros da esfera
publicitária, dando ênfase às publicidades da Hortifruti por terem se destacado por sua
criatividade e originalidade na divulgação de seus produtos. Propõe-se, portanto, uma leitura
de anúncios publicitários visando demonstrar o critério da intertextualidade e da
multimodalidade, considerando que a produção de sentidos se torna possível não apenas
mediante o conhecimento linguístico dos seus leitores, mas também, na interação com o
conhecimento prévio trazido por eles. A presente análise propõe-se também a refletir de que
forma esses anúncios poderiam ser trabalhados em sala de aula, pela razão de exigirem um
conhecimento prévio por parte do aluno. Desse modo, a exploração do uso de palavras, do
sentido, das imagens, das cores, bem como, a percepção do intertexto podem contribuir para a
formação leitora desse estudante.
Em relação ao conceito de intertextualidade, nos apoiamos nos estudos de Bazerman
(2007) e Koch (2009; 2010). Enquanto para o entendimento da multimodalidade, utilizamos a
1 Professora do Instituto Federal de Alagoas (IFAL) – Campus Palmeira dos Índios e Mestranda em Ciências da
Linguagem – Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) [email protected]. 2 Orientadora, Professora e Coordenadora da Pós-Graduação – Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP)
[email protected]. 3 Entre os quais, podemos citar Buzen e Mendonça (2013), Marcuschi (2008), Rojo (2013), Kawoski, Gaydecza
e Brito (2011) numa proposta de interacionismo sociodiscursivo, voltada para o ensino de língua.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 925
teoria da Gramática Visual, a qual tem sido uma referência para analisar gêneros publicitários,
proposta por Kress e Van Leeuwen (1996), os quais defendem que o texto multimodal é o
significado que se realiza por mais de um recurso semiótico, por exemplo, palavras e
imagens; corroborando esta teoria, Dionísio (2011) e Dionísio & Vasconcelos (2013) trazem a
ideia de que todos os gêneros textuais são multimodais.
O presente artigo fundamenta-se, também, na Teoria Cognitiva da Aprendizagem
Multimodal de Mayer (2001, 2009), a qual afirma existir, no ser humano, uma dupla
capacidade de processamento de informação, a verbal e a visual, em situação de
aprendizagem.
Embora já haja trabalhos bastante significativos no campo da intertextualidade
(KOCH & ELIAS, 2009, 2010; MARCUSCHI, 2008; CAIADO e BARROS, 2014), a
multimodalidade é um campo que ainda precisa de mais investigações. Podemos afirmar que
o tema pode não ser tão recente, porém novo é o ângulo observado conforme proposto no
presente trabalho: a intertextualidade, o sentindo e a compreensão, associados ao
processamento cognitivo de aprendizagem multimodal. Desta forma, o trabalho busca trazer
uma contribuição original para o estudo do gênero anúncio publicitário.
2. Concepção de Língua, Texto e Sujeito
Como adentramos num estudo voltado para a linguagem, em uma concepção
sociodiscursiva, faz-se necessário assumirmos o conceito de língua que utilizamos nesta
pesquisa. Levamos em conta seu caráter dialógico, ideológico, social e evolutivo. Nesse
sentido, Bakhtin e Volochinov nos esclarecem que:
[...] a língua como sistema estável de formas normativamente idênticas é apenas uma
abstração científica [...] [Ela] não dá conta de maneira adequada da realidade
concreta da língua [que] se constitui num processo de evolução ininterrupto, que se
realiza através da interação verbal social dos seus locutores [onde] suas leis de
evolução linguística [...] não podem ser divorciadas da atividade dos falantes. [grifos
nossos] (BAKHTIN, 2009[1981] p.131).
Nessa perspectiva, a língua é vista não como um sistema abstrato de formas
linguísticas isoladas, pois é retirado seu caráter ideológico, considerando o signo com valor
imutável e essa abstração não preenche os requisitos necessários para dar conta dos usos reais
dela. Contudo, a língua acontece exatamente através do fenômeno social da interação verbal
que se realiza através da enunciação ou enunciações, tendo em vista que as leis de evolução
linguísticas estão completamente imbricadas às atividades dos falantes.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 926
A definição de língua perdurou muito tempo como um conjunto de regras, exceções,
nomenclaturas e classificações, ou seja, uma prática marcadamente prescritiva, centrada
prioritariamente na identificação e classificação de categorias gramaticais. Por trás dessa
prática, dita tradicional, houve uma concepção formalista de língua que deu origem a esse
conceito estruturalista e metalinguístico.
Percebeu-se dessa forma, que essa concepção formalista não auxiliou muito para a
formação de bons usuários da língua, em suas práticas diversas, visto que, não se fazem usos
reais dela como um processo dialógico que se constitui como um fenômeno vivo, dinâmico e
flexível. Observada por esse ângulo funcionalista, podemos afirmar que seja o mesmo que
compreendê-la de forma dinâmica, contextual, levando em consideração seus usuários, isto é,
dialógica, vai muito mais além de um mero sistema de signos, estático e cristalizado,
impassível de variações ou mudanças.
Nesse sentido, é pertinente ressaltar que uma definição de língua voltada para o
dialogismo requer, necessariamente, levar em conta os textos produzidos na interação, estar
atento não apenas à superfície textual, ao que se vê construído linguisticamente, mas
mobilizar um vasto conjunto de conhecimentos, não apenas linguístico, mas também em seus
aspectos cognitivo e social, tendo em vista trazer um olhar profundo para o não dito, imergir
nos implícitos que ocorrem, (Koch & Elias, 2009), sabendo que a construção do sentido
acontece a partir da interação desses textos com os atores comunicacionais, isto é, com os
sujeitos ideológicos social e historicamente situados, que são participantes ativos no processo
dessa construção comunicativa (Bakhtin, 2011).
A noção de sujeito por nós adotada se vale daquela que parece permear a concepção de
língua considerada por Bakhtin (2009), no que diz respeito ao sujeito participante ativo no
processo de interação verbal.
O posicionamento bakhtiniano se evidencia crítico à ideia de que o sujeito seja
determinado pelo sistema, assujeitado, caracterizado por uma “não consciência”, onde um
discurso estaria sempre predeterminado ao já dito, ocupando ele um posicionamento passivo,
submisso e neutro às outras vozes. A esse respeito:
Ademais, todo falante é por si mesmo um respondente em maior ou menor grau:
porque ele não é o primeiro falante, o primeiro a ter violado o eterno silêncio do
universo, e pressupõe não só a existência do sistema da língua que usa, mas
também de alguns enunciados antecedentes – dos seus e alheios – com os quais o
seu enunciado entra nessas ou naquelas relações (baseia-se neles, polemiza com
eles, simplesmente os pressupõe já conhecidos do ouvinte). Cada enunciado é um
elo na corrente complexamente organizada de outros enunciados. (BAKHTIN,
2011, p. 272)
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 927
Nesse sentido, não há ouvinte com compreensão passiva inserido na comunicação
discursiva, todavia, há sim compreensão dialógica ativa responsiva entre falante e ouvinte,
pois baseados nos relevantes conceitos bakhtinianos acerca de sua visão de sujeito, que ocupa
um lugar significantemente ativo e responsivo diante de quaisquer construções discursivas.
A concepção de texto por nós adotada se encontra em Beaugrande (1997, apud
MARCUSCHI, 2008) como sendo “um evento comunicativo em que convergem ações
linguísticas, sociais e cognitivas”, em outras palavras; não se trata de um amontoado de
palavras ou frases soltas, mas um evento interligado a vários elementos, que envolvem tanto
aspectos linguísticos como não linguísticos e aspectos sociais, ativando conhecimentos de
mundo dos interlocutores no processo da interação verbo/social. O que realmente faz um texto
sê-lo é “a discursividade, inteligibilidade e articulação que ele põe em andamento”
(MARCUSCHI, 2008, p.89), pois segundo Beaugrande, “um texto não existe, como texto, a
menos que alguém o processe como tal”. Corroborando desta ideia, Marcuschi afirma:
Primeiro: um texto não é um artefato, um produto, mas é um evento (uma espécie de
acontecimento) e sua existência depende de que alguém o processe em algum
contexto. É um fato discursivo e não um fato do sistema da língua [...]. Segundo: um
texto não se define por propriedades imanentes necessárias e suficientes, mas por
situar-se num contexto sociointerativo e por satisfazer um conjunto de condições que
conduz cognitivamente à produção de sentidos. Terceiro: a sequência de elementos
linguísticos será um texto na medida em que consiga oferecer acesso interpretativo a
um indivíduo que tenha uma experiência sociocomunicativa relevante para a
compreensão. (MARCUSCHI, 2008, p. 89)
Dessa forma, não temos como falar em texto sem mencionar os gêneros textuais, que
são utilizados em diversas práticas sociais, ou seja, são indissociáveis das interações geradas
pelos indivíduos. Cabe a cada um adaptar seu discurso conforme as necessidades e ao meio
em que está inserido, utilizando-se de formas “relativamente estáveis”. O que permite dizer
que “toda manifestação verbal se dá sempre por meio de textos realizados em algum gênero”
(MARCUSCHI, 2008, p.154). Esses gêneros textuais são compreendidos como entidades
sócio comunicativas, padronizadas e recorrentes, contudo, passíveis também de inovação.
Assim, eles devem ser explorados no tocante ao seu funcionamento discursivo, considerando
os sujeitos do discurso, a situacionalidade, a intenção discursiva, os propósitos comunicativos,
o suporte, o domínio discursivo, as tipologias predominantes, visto que são artefatos culturais.
Sendo o texto um acontecimento comunicativo, este deverá seguir segundo Marcuschi
(2008, p. 93) “um conjunto de critérios de textualização”, que para o linguista, constituem-se
não como princípios de boa formação textual e sim como critérios de acesso à produção de
Nas fronteiras da linguagem ǀ 928
sentido, o que significa que a ausência de um ou mais desses critérios não impede que se
tenha um texto.
Segundo Beaugrande/Dressler (1981, apud MARCUSCHI, 2008) estes critérios são:
coesão e coerência – orientados pelo texto; intencionalidade e aceitabilidade – relacionado ao
caráter psicológico; informatividade – alinhado ao aspecto computacional; situacionalidade e
intertextualidade – norteados pelo caráter sociodiscursivo. Detivemo-nos, apenas, no último
critério – intertextualidade - para fundamentar as análises e reflexões presentes neste trabalho.
3. A Intertextualidade e a Multimodalidade apresentadas como recursos de sentido
3.1 A Intertextualidade
A intertextualidade tem chamado atenção de vários pesquisadores4 que procuram
investigar as relações mantidas entre textos no processo de leitura e produção de sentido.
Existe hoje o consenso de que inexistem textos que não mantenham alguma relação
intertextual.
O termo intertextualidade surgiu de forma elementar, a partir dos estudos literários de
Julia Kristeva, em seu trabalho intitulado: Desejo em linguagem: uma abordagem semiótica
da literatura e da arte5. A intenção da autora foi considerar cada texto constituinte de um
intertexto, numa sucessão de textos já escritos, construindo o conceito de mosaico de citações,
posicionando-se “contra a originalidade radical de qualquer texto” (BAZERMAN, 2007, p.
94). Essa ideia começou a ser incorporada na análise linguística dos textos. Koch (1991, p.
532) traz à lembrança a noção introdutória de intertextualidade quando afirma: “qualquer
texto se constrói como um mosaico de citações e é absorção e transformação de um em outro
texto”. Antes mesmo desse pensamento introdutório da autora em relação à intertextualidade,
Bakhtin (2011[1992]) já analisava e mencionava o fenômeno, mas usando outras
nomenclaturas, como: “multivocalidade, dialogismo e polifonia”. Para ele, tudo isso não
ocorre só no diálogo face a face, mas vai além dele, nas relações humanas. Assim, para a
Linguística Textual, há intertexto na fala, na escrita e até em textos não verbais dentro de uma
interação social. A intertextualidade contribui para a construção dos sentidos do texto, ou seja,
ela ocorre quando um texto está em outro texto que já existe e faz parte da memória coletiva,
4 Dentre os quais, podemos citar Bazerman (2007); Marcuschi (2008); Koch (2009, 2010, 2013); Koch, Bentes e
Cavalcante (2008); Silva, Caiado e Barros (2014); Freitas (2012). 5 Desire in Language: a Semiotic Approach to Literature and Art, publicado na tradução inglesa em 1980.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 929
é parte constitutiva do mesmo. Afinal, nosso discurso é individual, mas não surgiu puramente
de nós, e sim a partir da continuidade de discursos anteriores, como uma enorme cadeia.
A partir de Koch (2010), podemos analisar a intertextualidade dos anúncios
publicitários tanto na ordem explícita quanto na implícita. A primeira ocorre quando a
intertextualidade pode ser percebida e se encontra no próprio texto, na superfície, como:
citações, referências, discursos relatados, entre outros. Para que a segunda ocorra, a ordem
implícita, é preciso ter um conhecimento prévio do que está sendo dito no texto, como
acontece nas alusões, paródias, certos tipos de paráfrases, entre outros.
3.2 A Multimodalidade
O termo multimodalidade está aqui sendo empregado como a combinação de recursos
semióticos no texto, onde os modos, sejam eles de: escrita, imagens, cores, tamanho, ritmos,
efeitos visuais, melodias são realizados num mesmo gênero e percebidos através de mais de
uma modalidade sensorial (visual, auditiva e olfativa), estabelecendo relação entre si, e, como
consequência, estabelecendo a construção do sentido pretendido.
Para Dionísio & Vasconcelos (2013, p 19), vivemos em “um grande ambiente
multimodal, no qual palavras, imagens, sons, cores, músicas, aromas, movimentos variados,
texturas, formas diversas se combinam e estruturam um grande mosaico multissemiótico”. Por
isso, “nossos pensamentos e nossas interações se moldam em gêneros textuais”.
A multimodalidade, que pode estar presente em todos os contextos da vida social,
comporta textos que realizam seus significados através da utilização de mais do que um
código semiótico, segundo Kress e Van Leuween (1996, apud DUARTE, 2010). Esses
autores propuseram a Gramática do Design Visual6, a qual analisa os elementos da linguagem
visual vinculados na semiótica social, que tem por base teórica a multimodalidade. Isso é
ainda mais visível em anúncios publicitários, visto que, além de compreensão, buscam,
também, persuasão.
3.2.1 A Teoria Cognitiva de Aprendizagem Multimodal
6 É imprescindível destacar que os autores, assim como Dionísio (2005), não defendem a prioridade de uma
linguagem sobre a outra, mas há uma relação harmônica entre a semiose verbal e a não verbal, funcionando em
um texto na forma como são combinados.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 930
Para Mayer (2001, 2009), os recursos semióticos ou a multimodalidade são essenciais
no processo ensino-aprendizagem em diversas áreas, a partir de sua Teoria Cognitiva de
Aprendizagem Multimodal (doravante TCAM). Estudantes, por exemplo, terão um maior
êxito no seu desempenho, trabalhando os dois campos, o visual e o verbal: palavras e
imagens, do que apenas um: palavras ou imagens.
Para a efetivação do sentido, o leitor ativa pelo menos dois canais de processamento da
informação: o visual e o auditivo, trata-se da teoria cognitiva de aprendizagem multimodal,
segundo Mayer7:
[...] existe uma dupla capacidade de processamento de informação, a verbal e a
visual, e que o aluno, em uma situação de aprendizagem, poderá ter melhor êxito se
estes dois canais forem utilizados de forma eficaz ou as questões enfatizadas pela
neuropsicologia referentes às funções neuropsicológicas envolvidas em cada
situação de aprendizagem. (MAYER, 2001, 2009, apud DIONÍSIO;
VASCONCELOS, 2013, p. 20)
Para essa teoria, os estudantes aprendem melhor a partir de uma explanação que se
utilize de palavras e imagens do que, propriamente, apenas de palavras e defende que a
utilização somente do modo verbal desconsidera o potencial do sistema humano de
processamento do modo visual. Isso nos leva a crer que o aluno está pronto a estabelecer um
entendimento mais eficaz com o uso de palavras e imagens simultaneamente.
4. Análise de textos publicitários: uma abordagem semiótica e intertextual
Os anúncios publicitários possuem a finalidade de nos convencer quanto a produtos,
serviços e marcas que devemos consumir. Esse efeito persuasivo, característica própria do
gênero, além de orientar nossas escolhas, também modifica comportamentos, modo de viver e
influencia os valores, a cultura, a política, enfim, a sociedade como um todo.
O intensivo apelo visual nesses textos é muito recorrente, as imagens dialogam com a
linguagem verbal, construindo inúmeros efeitos de sentidos com o intuito de fortalecer,
divulgar e vender seus produtos, que podem ser desde objetos consumíveis até a propagação
de uma ideologia. Por isso, é de suma relevância analisar o fenômeno da multimodalidade e
da intertextualidade no gênero anúncio publicitário, tanto em termos da sua natureza
7 É professor de Psicologia da Universidade da Califórnia, Santa Bárbara. Sua pesquisa sobre a Teoria Cognitiva
de Aprendizagem Multimodal apresenta três pressupostos quando se trata em aprender com a multimodalidade:
1. O ser humano possui canais de processamento de informação separados (visual e verbal); 2. A capacidade de
processamento da memória é limitado; 3. A aprendizagem requer um processamento cognitivo essencial em
ambos os canais, isto é, inclui prestar atenção, organizar a nova informação e integrá-la no conhecimento já
existente.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 931
constitutiva, quanto das implicações ideológicas em contextos de uso na aprendizagem,
principalmente, na atividade de leitura/compreensão.
4.1 Análise do corpus
Nosso corpus foi composto de dois anúncios publicitários da Rede Hortifruti, hoje,
considerada uma das maiores redes de hortifrutigranjeiros do país, com vinte e oito lojas
localizadas nos Estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Espírito Santo. Os textos publicitários
das campanhas são veiculados, em material impresso, na Revista O Globo – (encarte do jornal
O Globo), de abrangência nacional, e os produtos anunciados são legumes, verduras e frutas.
É inegável que o produtor desses anúncios utiliza uma linguagem marcadamente
multimodal, ou seja, usa fontes de letras diferenciadas, cores variadas, imagens diversas
associadas a trocadilhos de palavras, valorizando a multiplicidade de recursos, como os
intertextos, as metáforas, os jogos de palavras, as metonímias, as paródias, todos relacionados
às imagens que ilustram o texto que formam esses anúncios, com a finalidade de divulgar seu
produto, fazê-lo conhecido e, como consequência disso, espera-se a aceitação por parte do
consumidor e sua inevitável compra.
4.1.1 As propagandas da Hortifruti: Horta de Elite
Para a análise, selecionamos alguns anúncios publicitários veiculados no site da
empresa Hortifruti, encartes do jornal O Globo e outdoors, através da campanha Hollywood,
que busca se apoiar nos clássicos do cinema nacional e internacional. Passaremos a seguir às
suas apresentações:
Figura 1: Anúncio da Hortifruti8
Figura 2: Filme Tropa de Elite9
8Disponível em: <http://www.alunosonline.com.br/upload/conteudo/images/intertextualidade-com-filme-tropa-
de-elite.jpg>. Acesso em: 02-05-2014.
9Disponível em: <http://marcosself.files.wordpress.com/2010/11/tropadeelite1.jpg>. Acesso em: 02-05-2014.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 932
Observa-se que a figura 1, imagem da campanha, busca a retomada de elementos que
originam sentido quando o leitor traz à memória o texto que deu origem ao presente anúncio,
isso constrói um novo significado. No anúncio, a intertextualidade se faz presente a partir de
recursos semióticos: a imagem de um tomate com uma boina que remete à imagem original
do personagem “Capitão Nascimento”, interpretado pelo ator Wagner Moura, no filme Tropa
de Elite. Percebe-se, também, que as fontes das letras que são utilizadas no anúncio,
assemelham-se às do cartaz do filme; a presença das cores de fundo: preto e marrom, bem
como a linguagem verbal e não verbal que compõem a multimodalidade do texto.
Verifica-se que o produtor se utilizou da vasta possibilidade dos aspectos multimodais
para criar a campanha da Hortifruti, tomando como referência o símbolo de uma caveira que
representa a letra “o” na palavra “TROPA” e o símbolo do BOPE, no cartaz de divulgação do
filme, reconstruído a partir da mesma letra “o” na palavra “HORTA”, que nos remete a ideia
de talheres, dentro de um tipo de legume semelhante ao próprio tomate, criando-se um novo
símbolo. Há, também, a associação e a aproximação fônica entre “tropa” e “horta”.
Além disso, outro aspecto relevante é a frase contida no anúncio: “Se não for
Hortifruti, pede para sair”; trata-se de uma expressão empregada pelo personagem “Capitão
Nascimento” durante o enredo do filme, o qual tem por objetivo pôr à prova a permanência no
treinamento: apenas aqueles homens corajosos, destemidos, desprovidos de covardia ficam no
BOPE. Percebe-se, ainda, que o produtor não escolheu qualquer filme para utilizar como
intertexto em seu anúncio, mas sim um filme de grande repercussão, antes mesmo de seu
lançamento, sendo o primeiro nas bilheterias, isto é, um filme bem-sucedido, que chegou ao
alcance de grande parte dos brasileiros.
4.1.2 As propagandas da Hortifruti: Pepino Maluquinho
Nos dois exemplos abaixo, a linguagem verbal e não verbal remetem a enunciados já
conhecidos pelo leitor. As fontes, as cores, a própria arrumação/organização do título e a
imagem remetem a enunciados já conhecidos. Passemos para mais uma análise:
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 933
Figura 3: Anúncio da Hortifruti10 Figura 4: Filme O menino Maluquinho11
Nota-se, nesse exemplo, que na figura 3, a imagem publicitária da Hortifruti retoma
características que fazem o leitor se recordar do texto que se encontra na base da produção do
anúncio da figura 4 – “Menino Maluquinho”, objetivando construir um novo sentido ao que
foi dado anteriormente. Observa-se que o produtor do anúncio se utilizou, mais uma vez, da
associação de imagens e da aproximação fônica do título: “menino” e “pepino”. Outra
característica relevante é o subtítulo contido no anúncio: “O mais levado da Hortifruti” que
não é visualizado no título do cartaz do filme, porém, nos faz refletir acerca do significado
subtendido da palavra “levado” que, no intertexto, significa: arteiro, travesso, e nos leva a
associar a uma das características que o “Menino Maluquinho” possui. O significado dessa
mesma palavra “levado”, na figura 3, é distinta, pois trata-se de uma expressão utilizada com
o sentido de ser esse o mais levado, o mais comprado da Hortifruti, e não por ter
características de traquino.
Analisando o anúncio com sentido reconstruído, fica perceptível que se caracteriza
pela utilização de recursos semióticos, representados pela panela no pepino, semelhante à
utilizada pelo “Menino Maluquinho” na ilustração da capa do filme, tratando-se de um traço
peculiar da personagem. Percebe-se, também, a semelhança das fontes das letras e a
diversidade das cores, inclusive a cor amarela que aparece como pano de fundo nas duas
ilustrações, seguindo a sequência exata do título do filme representando a multimodalidade,
presente nos anúncios e prenunciando a intertextualidade também presente.
Considerações Finais
Esta pesquisa foi motivada pelo interesse em investigar como a intertextualidade e a
multimodalidade auxiliam na produção de sentidos dos anúncios publicitários da Hortifruti,
levando em consideração a seu propósito comunicativo de convencimento do leitor a uma
ação de compra do produto anunciado.
Consideramos que a compreensão de tais anúncios se torna possível mediante, não
apenas o conhecimento linguístico partilhado entre os usuários da língua, pois o gênero
estudado direciona o leitor a ativar outros conhecimentos como o cognitivo, aspectos
10Disponível em: <http://www.hortifruti.com.br/campanhas/hollywood.html>.Acesso em: 02-05-2014.
11Disponível em: <http://admgeral.files.wordpress.com/2013/03/menino-maluquinho-poster01.jpg>. Acesso em:
02-05-2014.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 934
históricos e sociais, que evidenciam o conhecimento prévio trazido por cada pessoa e
contempla as semioses verbal e não verbal do gênero. Dessa forma, torna-se o leitor
participante, de forma ativa, da construção do sentido.
O tratamento didático em atividades de leitura favorece a mobilização de capacidades
leitoras específicas dos alunos para esse gênero. A presente análise também se preocupou em
traçar uma abordagem de como esses anúncios poderiam ser trabalhados em sala de aula, pela
razão de exigirem um conhecimento prévio por parte do aluno, e considerando-se, também, a
teoria da aprendizagem multimodal, explorando os canais de processamento de informação
através do uso de palavras, das imagens, das cores, bem como, a percepção do intertexto, que
podem contribuir para a formação leitora desse estudante.
Assim, acreditamos que nossa pesquisa contribuiu para o estudo de gênero, no que
tange à verificação do sentido a partir da ativação de diversos conhecimentos do leitor,
associando novas informações através dos canais de processamento (visual e verbal),
tornando-se imprescindível a abordagem de que a leitura e a análise desses textos publicitários
auxiliam na formação leitora do indivíduo, deixando este de ser apenas um elemento passivo,
mas tornando-se sujeito ativo no processo da comunicação.
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Nas fronteiras da linguagem ǀ 936
O LETRAMENTO ACADÊMICO E O TRABALHO DOCENTE:
OS CONFLITOS VIVENCIADOS NA ELABORAÇÃO DE UM
MATERIAL DIDÁTICO IMPRESSO DA EAD1
[Voltar para Sumário]
Francineide Ferreira de Morais (UFPB\PROLING\GELIT)
Introdução
A partir das duas últimas décadas do século passado, a sociedade vem passando por
grandes mudanças nos vários campos que a constituem - político, econômico, social,
científico e tecnológico -, que incidem diretamente nas práticas culturais, nas interações
humanas e, em decorrência, nas educacionais. Tudo isso faz com que a prática docente sofra
modificações, exigindo do professor competências várias para atender às exigências tanto das
políticas públicas educacionais quanto de modernas formas de instrumentalização, como o
uso das novas tecnologias, como de novas maneiras de mobilizar conhecimentos e saberes,
implicando, assim, na apropriação de novas formas do saber-fazer. Além disso, ainda é
exigido do docente competência linguístico-discursivo-textual para promover a interação
através de instrumentos verbais e não verbais além das diversas mídias. Sem contar que toda
a sua ação, além de ser criativa e interessante, deve respeitar prescrições institucionais e do
coletivo de trabalho, por isso passa por ajustamentos os quais implicam em conflitos
constantes (CLOT, 2010), já que o professor precisa atender a três instâncias da atividade, a
saber: o trabalho prescrito, aquele representado pelas injunções do sistema educacional; o
planejado pelo sistema de ensino; e o efetivamente realizado pelas ações específicas do
contexto escolar (MACHADO, 2002; AMIGUES, 2004; BRONCKART, 2006, 2008). Em
vista disso, a prática docente torna-se uma atividade complexa, conflituosa, que mobiliza
entre outras "as dimensões cognitivas, afetivas, didáticas, sociais, históricas, psicológicas,
identitárias" (AMIGUES, 2004, p. 39), implicando na mobilização de saberes vários,
demandando, consequentemente, letramentos a eles correlacionados.
1 Os dados empregados na análise fazem parte do corpus da minha tese em andamento.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 937
Ciente desse cenário e restrigindo-me à educação a distância (EaD), especificamente
ao trabalho do professor-autor, responsável pela produção do material didático impresso
(MDI), proponho, neste artigo, analisar as ações desse profissional, recaindo as minhas
reflexões sobre o trabalho planificado e os conflitos que circunscritos naquelas. Para tanto,
valho das verbalizações sobre a experiência vivida naquele tipo de atividade, de modo que os
resultados possam trazer ponderações sobre os desafios inerentes à atividade autoral e a
necessidade de mais pesquisa científica com foco na EaD a fim de fortalecer essa modalidade
de ensino, que se expande cada vez mais na sociedade tecnológica.
Tive como colaboradora uma professora de Língua Portuguesa de um curso de
Letras, com mais de 20 (vinte) anos no ensino presencial em uma universidade pública de
Campina Grande-PB, e, há 05 (cinco) anos, atua na EaD, como professora e professora-autora
de mais de um MDI.
Os meus dados foram gerados por meio de uma entrevista semiestruturada, pois
acredito, assim como Bulea (2010, p. 38-9), na sua funcionalidade, pois trata de um
"dispositivo técnico" que oportuniza "compreender estratégias de interpretação do agir", por
meio da mobilização de mecanismos textual-discursivos os quais deixam evidenciar
"pensamentos dos atores concernentes a seus comportamentos sociais e de seus estados
mentais" Assim, a verbalização é certamente um caminho para observar conflitos nas
representações que o sujeito faz de si mesmo (a professora-autora) e do objeto em estudo (o
MDI).
Esta investigação, portanto, centrada na docência superior, apresenta breves
considerações sobre o letramento acadêmico e, em seguida, algumas sobre o trabalho docente
à luz do (ISD), conforme Bronckart (1999, 2006, 2008), Machado (2002, 2007) entre outros,
associando ainda as reflexões da Ergonomia (SAUJAT, 2004) e da Clínica de Atividade
(CLOT, 2010) sobre o trabalho enquanto atividade, a fim de verificar os efeitos e os conflitos
vivenciados pela professora-autora nos dados analisados.
1. Letramento acadêmico e a produção do MDI
Street (1984, p.1) designa letramento as "práticas sociais e concepções de leitura e
escrita" assumidas por um indivíduo ou grupo social. O letramento, segundo Barton e
Hamilton (2005), constitui-se de dois fenômenos: as práticas de letramento e os eventos de
letramentos. As primeiras estão correlacionadas às crenças, concepções e valores conferidos à
leitura e à escrita em determinado contexto. São, portanto, práticas culturais discursivas, logo
constituídas de poder ideológico, voltadas para a orientação e para a produção e interpretação
Nas fronteiras da linguagem ǀ 938
de textos nas suas esferas sociais2, haja vista refletirem as relações estabelecidas, normas e
poder de ação junto aos participantes da situação interativa. Já os segundos, os eventos de
letramento, são referentes a situações em que o texto escrito é o elemento essencial da
interação e produção de sentidos.
Sobre as práticas de letramento no contexto acadêmico, Street (2010, p. 5), defende
que essas mantêm relação direta com questões de "construção de sentidos, identidade, poder e
autoridade, e coloca em primeiro plano a natureza institucional do que “conta” como
conhecimento em qualquer contexto acadêmico específico". Tais questões são cruciais para o
professor saber lidar com novos eventos de letramento, que requeiram, além do domínio da
escrita e de práticas acadêmicas e de saberes didático-teórico-metodológicos, novas práticas
que exigem novas formas de saber e de fazer, como é o caso da produção de material didático
escrito realizada por um professor da EaD.
Este docente depara-se com atividades não só de ensino, que, por ser uma
modalidade a distância por si só já exige novas práticas, como também as tradicionais de
pesquisa, vivenciadas no ensino presencial, tais como relatórios, artigos, resenhas etc,
somando-se ainda a de elaboração do MDI - um misto de aula interativa e de livro didático.
Tal atividade exige do professor aptidões para a apropriação e transformação dos
conhecimentos tanto teórico-didático-metodológicos quanto simbólicos, o que requer daquele
tomada de atitudes e comportamentos próprios da profissão para reconfigurar sua prática e
demonstrar autonomia sobre ela.
Sobre o MDI, Aretio (2011\2001) observa que deve constar de algumas
características fundamentais: i) Apresentação clara dos objetivos que se pretende com o
material em questão; ii) Linguagem clara, de preferência coloquial; Redação simples,
objetiva, direta, com moderada densidade de informação; iii) Sugestões explícitas para o
estudante, no sentido de ajudá-lo no percurso da leitura, chamando-lhe a atenção para
particularidades ou ideias consideradas relevantes para seu estudo; e iv) Convite permanente
para o diálogo, troca de opiniões, perguntas.
Tais características deixam salientar a preocupação de Aretio com o emprego da
linguagem, para a elaboração do MDI, principalmente por se tratar da modalidade escrita, que
requer um conjunto de capacidades linguístico-discursivas próprias dos tipos de discursos,
segundo a perspectiva bronckartiana3: do mundo do NARRAR – a narração e o relato
interativo, e o do mundo do EXPOR - o teórico e o discurso interativo - que podem ser
2 Tomo aqui esfera social conforme concepção bakhtiniana 3 Sobre os tipos de discursos, conferir Bronckart (1999).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 939
conjuntos ou disjuntos, implicados ou autônomos, em relação à ação da linguagem; e as
unidades linguísticas empregadas para servir de interface entre o mundo da pessoa
(representações individuais) e os mundos sociais (representações coletivas) (BRONCKART,
1999/2003). Ou seja, a linguagem empregada no MDI se constitui do discurso misto
interativo teórico, aproximando-se, assim, do tipo de discurso característico da exposição
oral do ensino presencial.
Vale ressaltar, no entanto, que nem sempre isso é fácil, dado a prática da exposição
didática, por meio de texto escrito para o ensino superior ser relativamente nova enquanto
atividade responsável do professor universitário. Isso quer dizer que, mesmo ele tendo
registro de autoria em trabalhos acadêmico-científicos, não há garantia do êxito em sua
performance em didatizar conteúdos e retextualizar situações de ensino, ainda que lance mão
de instrumentos materiais e simbólicos para facilitar a compreensão e que domine o saber
científico e didático, porque os implícitos ou os silenciamentos próprios do discurso podem
ser um fator de embaraço para a interação. Tal situação ganha amplitude com a incerteza do
auditório social, graças à grande diversidade dos alunos EaD.
Não se deve esquecer ainda que todo trabalho com a linguagem é eminentemente
político e ideológico, então o MDI ultrapassa a concepção de instrumento de mero suporte
para o conteúdo programático, tornando-se um campo de tensões, que serve para debates,
argumentações entre as representações sócio-político-econômico-culturais entre os
interlocutores que o utilizam. Enfim, o MDI é mais uma das atividades do trabalho docente
da EaD e, como tal, passa pelos critérios prescritivos e de reconfigurações de acordo com as
aquisições de letramento do professor-autor, processo esse que provoca conflitos, angústias e
inquietações.
2. O MDI: as reconfigurações e os conflitos docentes
Para falar das reconfigurações e os conflitos provenientes destas no processo de
produção do MDI, parto das considerações do ISD sobre o conceito de trabalho docente como
uma atividade "governada por motivações, finalidades, regras e\ou normas de ordem coletiva
e social" (BRONCKART, 2006, p. 211) e que, por isso mesmo, tem implicações nos
comportamentos efetivos dos indivíduos, limitando-os, por um lado, em sua liberdade de
fazer, devido a concepções, valores, enfim suas histórias de vida, mas, por outro, também
representa um fator de desenvolvimento humano (BRONCKART, 2006, 2008).
Nas fronteiras da linguagem ǀ 940
Já a Ergonomia e a Clínica de Atividade evidenciam com mais precisão a sutileza do
trabalho educacional, como afirma Bronckart (2006, p. 208): a primeira "mostra o conjunto
das diferenças existentes entre o trabalho prescrito -representado pelas normas e regras,
textos, programas e procedimentos que regulam as ações- e o trabalho real (realizado) - ações
efetivamente realizadas -, enfatizando, sobretudo, o desconhecimento generalizado das
características do trabalho real "e, a segunda, através de métodos de análise de trabalho pelo
próprio sujeito observado, possibilita emergirem os "diferentes estilos adotados pelos
trabalhadores para realizar uma mesma tarefa, as astúcias ou os atalhos que inventam, apesar
das prescrições, os recursos cognitivos que mobilizam, as dimensões afetivas, relacionais e
identitárias de seu trabalho etc". Isso quer dizer que tanto a Ergonomia da Atividade como a
Clínica da Atividade consideram o trabalho realizado e todas as implicações que estão a ele
ligadas: sucessos, fracassos, adaptações etc., o que Clot&Faïta (2000) denominam de trabalho
real - diferentemente da concepção de trabalho realizado, é aquele cuja atividade não se
restringe ao que é observável, envolvendo também o não realizável, devido aos mais diversos
impedimentos, correspondendo, assim,ao real da atividade: "aquilo que não se fez, que não se
pôde fazer, que se tentou fazer sem conseguir, que se teria querido ou podido fazer, que se
pensou ou que se sonhou poder fazer, o que se fez para não fazer aquilo que seria preciso
fazer ou o que foi feito sem o querer" (CLOT, 2007, p. 16).
O trabalho, portanto, é influenciado pelas emoções e afetos do sujeito, fato esse que
concorre para (re)adaptações constantes influenciadas pelas condições subjetivas e objetivas,
referentes ao espaço/meio e aos artefatos/instrumentos empregados, implicando em um
redimensionamento do fazer agentivo sócio-historicamente situado, sem perder de vista o
prescrito. É esse olhar sobre a subjetividade que torna o trabalho uma atividade diferente de
outras, por ser uma atividade triplamente dirigida: pelo e para o sujeito, para o objeto e para
os outros, "mobilizando o gênero de atividades adequado à situação. No entanto, é necessário
vê-la como um todo singular em que cada um dos elementos tem sempre os dois outros como
pressupostos" (CLOT, 2007, p.102).
A concepção de gênero de atividade tem sua base na noção bakhtiniana de gênero
do discurso: “formas relativamente estáveis de enunciados”, que sofrem as interferências
sociais e subjetivas e, por isso, passa por permanente modificação. O gênero de atividade
profissional exerce a função social de mediar o indivíduo no contexto de trabalho e as suas
instâncias organizadoras e prescritivas. Nas palavras de Clot&Faïta (2000, p. 11), é “de algum
modo, a parte subentendida da atividade daquilo que os trabalhadores de um determinado
meio conhecem e veem, esperam e reconhecem, apreciam e temem”. O gênero de atividade
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 941
profissional seria, então, a própria história da atividade partilhada por um grupo de
trabalhadores, constituída por regras, modos de dizer, modos de fazer, anseios e perspectivas.
Embora guiada por um conjunto de normas, é sempre passível de intervenções particulares,
nas quais as ações imputadas pelo trabalhador mantêm uma relação dialógica com os pré-
construtos coletivos: ora mobilizando-os ora reconfigurando-os e até redefinindo-os, o que
determinaria a subjetividade ou estilo do saber-fazer.
Enfim, corroborando Clot (2007), ao falar do aspecto da subjetividade como um
espaço escondido da atividade que remete à consciência do saber-fazer, logo responsável pela
definição estilística do trabalhador, compreendo que esse processo de estilização é
acompanhado de conflitos, impedimentos, angústias, satisfações e insatisfações sobre o
trabalho realizado, pois o trabalhador sabe que aspectos importantes são avaliados, tais quais:
o cognitivo, porque é avaliado o conhecimento para poder saber-fazer diferente e coerente
com o já estabilizado; o psicológico, porque todo fazer é constituído de conflitos entre o
estabilizado e as especificidades subjetivas, demandando, assim, tomada de decisão; e o
social, porque explicita capacidade criativa e baliza a qualidade do trabalho (CLOT, 2007).
São conflitos desse porte que analiso a seguir, embora saliento que a separação analítica é
puramente metodológica já que eles são naturalmente imbricados.
3. Alguns conflitos representados na voz da professora-autora
Para analisar os conflitos emergidos das verbalizações que serviram de dados para
esta pesquisa, parto do conceito do termo agir, sob o ponto de vista teórico-metodológico do
ISD, que distingue o agir geral do agir de linguagem, embora exista uma relação indissociável
entre eles, o segundo vai além do observável, favorecendo interpretações do primeiro. Vale
salientar que todo actante do agir é dotado de recursos, fruto das apropriações dos pré-
construídos, dos mundos formais e das capacidades de agir (Bronckart, 2006, 2008), sendo
denominado de ator, quando lhe são conferidas capacidades, motivações e intenções, logo
passível de interpretações e avaliações por meio de aspectos linguísticos do texto. Sendo
assim, concebo à professora colaboradora desta pesquisa a função de atora.
Para análise, separei apenas quatro fragmentos da entrevista, mas que permitiram
observar alguns conflitos de ordem cognitiva, psicológica e social da professora ao refletir
sobre o trabalho realizado, ou seja, sobre a produção do MDI.
Representações de conflitos cognitivos
Nas fronteiras da linguagem ǀ 942
Várias partes da entrevista deixam transparecer a angústia da professora por ser
desafiada para uma atividade muito nova, para a qual ela não estava preparada, representando
um tipo de conflito, o cognitivo, quase sempre vivenciado por profissionais inexperientes ou
quando assumem uma função diferente da antes exercida, o que se depreende dos fragmentos
abaixo:
P: é, e como você chegou, a essa modalidade do Ensino a Distância?
C1: eu fui convidada por uma amiga, a produzir um livro, eu nem sa:bia/, eu sabia o
que era Educação a Distância, óbvio,ma eu na sabia,COmo, como isso acontecia,
como era, aí ela me chamou pra produzir um livro, e em seguida, pra ministrar a
disciplina do livro que eu produzi.
O trecho revela que a professora desconhecia até mesmo o procedimento de ensinar
por meio da EaD, quando ela eleva a voz para pronunciar o "COmo" deixa escapar o ápice do
seu conflito. De que maneira ensinar se nem sabia do que se tratava, "como isso acontecia" e
ainda mais ser convidada para produzir um livro e depois ministrar a disciplina desse próprio
livro? O temor aí deve ser por não ter nenhuma memória dos pré-construídos da EaD nesta
fase atual, com uso das tecnologias e, principalmente, por se tratar de um curso superior.
Sendo ela professora do curso de Letras presencial e consciente dos desafios desse trabalho,
imagina como seria trabalhar à distância e escrever um livro didatizando todo conteúdo
disciplinar. Normal os sentimentos de angústia, medo, incertezas de se envolver numa
atividade que, embora conflitante, é convidativa.
Num outro trecho, a colaboradora deixa transparecer a preocupação com a
planificação do trabalho, com o atendimento ao trabalho prescritivo:
P: humrum, e como é que foi essa preparação, pra você atuar,enQUANto professora
autora?
C1: bom, primeiro, eu/ a gente teve uma reunião, eu recebi a ementa (pega o livro e
começa a folheá-lo), e: a partir dessa ementa eu fiz o seguinte, eu vinculei conteúdo
à ementa, eu fiquei pensando “o que é que eu vou FAzer, como é que eu vou,
preparar aula pra um aluno que eu não sei quem é, eu não tenho a mínima ideia de
como seja/ de como é esse aluno, que/que perfil ele tem, então eu pensei o seguinte,
essa ementa, eu acho que esses alunos ((fecha o livro)), em reuniões anteriores eu
soube que ele vieram da Pla/Plataforma Freire, não fizeram vestibular: ((abre o livro
novamente)), entraram direto na universidade, e que as dificuldades eram muitas,
inclusive na hora até de preencher a fichinha... de matrícula, então eu fiquei
pensando, eu vou tomar como referência meus alunos do presencial, os feras que
também chegam com muita dificuldade na/na universidade,((folheando o livro))
Duas interpretações podem inferidas desse excerto. A primeira voltada para o
atendimento ao trabalho prescrito, tanto é que o único documento institucional apresentado
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 943
em reunião foi a ementa, a professora apegou-se a esse instrumento para definir a dimensão
do saber a ser ensinado, isto é, a seleção do conteúdo, representado pelo enunciado "vinculei o
conteúdo à ementa". Mas isso não seria suficiente para a dimensão praxiológica, o como
fazer, a inquietação em como construir modelos didáticos para EaD, em como realizar a
transposição didática para um MDI era bastante evidente na passagem "o que é que eu vou
FAzer, como é que eu vou preparar aula". A segunda situação é relativa ao desconhecimento
dos mecanismos de interação, aspecto determinante do MDI para promover a interlocução
com o aluno a distância, um estranho, como se compreende do enunciado "um aluno que eu
não sei quem é, eu não tenho a mínima ideia de como seja/ de como é esse aluno, que/que
perfil ele tem".
Esses fragmentos textuais deixam escapar a inexperiência da professora com a EaD, o
que ela pensa e sente, inclusive sua concepção e crenças sobre essa modalidade de ensino, o
que se pode depreender de "eu soube que ele vieram da Pla/Plataforma Freire, não fizeram
vestibular: ((abre o livro novamente)), entraram direto na universidade, e que as dificuldades
eram muitas, inclusive na hora até de preencher a fichinha... de matrícula". A concepção,
portanto, é de que o público da EaD é composto por alunos com pouco letramento formal, já
que não passaram por um processo de seleção para adentrarem na academia, enfim, alunos
sem nível intelectual mínimo para atender às prerrogativas daquele ambiente cultural. Isso
pode ser entendido pelas formas verbais "inclusive" e "até"que denominam alto grau de
argumentatividade, além do diminutivo "fichinha", que pode indicar a pouca preparação desse
aluno até mesmo numa ação que exige pouca intelectualidade como o fato de "preencher a
fichinha... de matrícula".
Enfim, conflitos cognitivos fazem parte da atividade docente, inquietações como essas
põem em relevo a necessidade da professora em querer desenvolver um trabalho responsável,
consoante com as prescrições, com os seus afins do coletivo de trabalho, sem perder a sua
subjetividade, aspectos esses que apenas o conhecimento do conteúdo temático não garante o
saber-fazer na EaD.
Representações de conflitos psicológicos
Esse segundo tipo de conflito, o psicológico, representa um jogo entre os pré-
construídos e as possíveis reconfigurações a serem realizadas, o que demanda tomada de
decisão de modo a demarcar a subjetividade no trabalho, alinhada à coerência com o já
estabilizado, processo em que angústias são manifestadas, como no excerto seguinte.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 944
P: humrum, e como é que foi essa preparação, pra você atuar,enQUANto professora
autora?
(...) e aí: eu peguei a ementa e fui tentan:do, produzir esse material, na verdade eu
só pensava nos alunos feras, por:que são aqueles que chegam com dificuldades, eu
não pensei neles, no/no aluno EAD não,quando eu comecei a atuar foi que eu fui
percebendo as dificuldades dele e algumas lacunas que ficaram no livro, eu fui
preenchendo, no Ambiente Virtual ((sempre que se refere ao livro, olha para ele e
folhea-o))
Os conflitos cognitivos, provenientes da falta de conhecimento específico da EaD,
implicaram em conflitos psicológicos, o que pode demonstra o segmento "eu peguei a ementa
e fui tentan:do, produzir esse material". Até mesmo a forma verbal "tentan:do" permite
acentuar o sentimento de dúvida da professora, a insegurança frente ao trabalho realizado,
como se não atendesse aos propósitos da EaD. Esse fato pode ser confirmado ao admitir
falhas ou ausências de determinadas ações no MDI produzido, tanto é que admite que
"algumas lacunas que ficaram no livro, eu fui preenchendo, no Ambiente Virtual". Tais
manifestações discursivas são resultados da ausência da utilização de um referencial próprio
da EaD, de modo que a professora ativa a memória do coletivo de trabalho do ensino
presencial como parâmetro para o seu agir na EaD, o que é depreendido do segmento
"pensava nos alunos feras,por:que são aqueles que chegam com dificuldades, eu não pensei
neles, no/no aluno EAD". Nessa correlação, passava a fazer as suas flexibilizações no próprio
Ambiente Virtual, como se faz na sala de aula presencial, revitalizando as suas ações docentes
com a sua memória pessoal, representada pela sua história sócio-profissional, seus valores,
suas intenções etc. VAle salientar que junção dessas duas memórias é carregada de conflitos,
exigindo posicionamento e escolhas, ao mesmo tempo que confere liberdade para adaptações
e flexibilizações no agir, determinando, assim, a subjetividade no fazer, demarcando, pois, o
estilo profissional.
Representações de conflitos sociais
Dos conflitos cognitivos e psicológicos decorrem os sociais, haja vista as inquietações
deste último ser de ordem avaliativa e de aceitação do trabalho realizado, tanto pelo coletivo
de trabalho quanto pelo corpo discente, o que pode ser detectado no fragmento abaixo.
P: certo, e:: sobre a tua preparação teórico-metodológica pra atuar enquanto
docen::te e principalmente enquanto professora autora?
C1: (...) E tem uma amiga minha, que já há muito tempo ela,ela tem essa
experiência com Educação a Distância, e eu pedi pra ela, pra gente se reunir, umas
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 945
três ou quatro vezes, pra ela me dar algumas dicas, mas com três reuniões eu fui até
a casa dela, ela explicou direitinho ((mexe no livro)), abriu o Ambiente, pra eu ver,
acho que era da Federal, da Universidade Federal, abriu o ambiente, mostrou como
era, ai eu parti pra minha produção e parti pra minhas aulas, aí já num, já os
problemas foram minimiZANdo, e eu fui, errava,acerta:va, errava, então nessa
tentativa de erros e de acertos, eu fui chegando,eu acho que hoje eu não tenho mais
nenhum dificuldade, em relação ao Ambiente e à produção de material.
As preocupações com a avaliação externa levou a professora a procurar caminhos para a
realização de um trabalho responsável e que pudesse ser aceito não só pelo público alvo, mas
também pelos seus afins profissionais. Na falta de uma orientação institucional, ela recorreu à
orientação de uma pessoa mais experiente, marcando encontros fora do ambiente de trabalho
para se apropriar do conhecimento e de estratégias, o que se vê em "(...) E tem uma amiga
minha, que já há muito tempo ela,ela tem essa experiência com Educação a Distância, e eu
pedi pra ela, pra gente se reunir, umas três ou quatro vezes, pra ela me dar algumas dicas".
Esse trecho demonstra o receio de uma avaliação negativa do seu trabalho, tanto é que se
reunião mais de uma vez, evidenciando não só vontade de aprender, mas um querer agir
conscientemente, sem se importar com a refacção no decorrer do processo de produção do
MDI e de execução das aulas, como se vê em "eu parti pra minha produção e parti pra
minhas aulas, aí já num, já os problemas foram minimiZANdo". Embora tivesse a clareza de
estar superando as suas deficiências com o saber-fazer na EaD, a angústia de ver o seu
trabalho balizado pela instituição contribuiu para uma autoavaliação severa, como explicita
em "eu fui, errava, acerta:va, errava, então nessa tentativa de erros e de acertos, eu fui
chegando". Enfim, a sua ansiedade era de um saber-poder-fazer com autonomia, para ela
mesma se convencer da sua capacidade para trabalhar na EaD, o que se compreende do
segmento "eu acho que hoje eu não tenho mais nenhum dificuldade, em relação ao Ambiente
e à produção de material".
Enfim, sabendo que as reconfigurações do seu trabalho são constantemente avaliadas,
a professora revela uma preocupação com a imagem profissional, por isso as suas
verbalizações são constituídas de conflitos, os quais demonstram conscientização do que é, do
que faz e do que é capaz de fazer para tornar o seu agir coerente com o métier da EaD. No
entanto, esses conflitos poderiam ser minimizados se houvesse uma preparação institucional
para o fazer autoral do MDI, levando esse profissional a conhecer o modus operandi da EaD e
os saberes e conhecimentos necessários para atuar não só como professor, mas como
professor-autor.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 946
Considerações Finais
Esta pesquisa, embora tenha apresentado uma análise simplificada do trabalho
docente, revelou o caráter conflitante do agir do professor da EaD, proveniente da pouco
conhecimento teórico-metodológico dessa modalidade de ensino. Vale salientar, porém, que a
pesquisa contribui para perceber duas nuances do agir docente. O primeiro se refere ao
letramento acadêmico voltado para EaD, demonstrando que é preciso se investir em
conhecimento teórico-didático-metodológico para os profissionais desse modelo de ensino,
visto as práticas de letramento provenientes do ensino presencial superior serem insuficientes
para o evento de escrever didaticamente para a EaD. O segundo alude à questão do trabalho
como instrumento para o desenvolvimento humano, pois, apesar dos conflitos, da falta de
orientação institucional, a dimensão subjetiva do agir docente revelou capacidade para gerir a
produção de conhecimento, mesmo que para isso tenha se valido das experiências
particulares, transformando a atividade de produção do MDI num processo de tentativas e
erros/acertos, o que demandou revisões constantes no Ambiente Virtual.
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Nas fronteiras da linguagem ǀ 948
RODAS DE CONVERSA COMO EVENTO DE LETRAMENTO
PARA A PRODUÇÃO E REFACÇÃO TEXTUAL NA EJA [Voltar para Sumário]
Francisca Aldenora Moreno Fernandes (UFRN)
Ana Maria de Oliveira Paz (PPgEL/UFRN)
1 Introdução
As práticas pedagógicas que envolvem situações de produção textual no contexto
escolar têm sido questionadas e amplamente discutidas por diversos estudiosos da linguagem,
que veem nessas situações de aprendizado os vazios de um ensino descontextualizado, que
ignora a realização da língua e o seu domínio como resultado de práticas sociais resultantes de
situações de interação, nas diversas esferas da atividade humana.
Diante dessa realidade, sabedores do papel da escola enquanto agência
institucionalizada de letramento, o evento “Roda de conversa” justifica-se pela necessidade de
criar situações de ensino em que os alunos vivenciem atividades de escrita significativas que
possam diminuir a distância entre os usos da escrita dentro e fora dos espaços escolares,
encorajando os alunos da EJA a interagirem e empregarem estratégias durante o processo de
produção, conscientes das finalidades que envolvem essa atividade de linguagem.
Como aportes teóricos para este artigo, recorreu-se aos pressupostos da abordagem
interacionista sociodiscursiva de BRONCKART (2012), aos estudos do letramento contidos
em HAMILTON (2000, MORTATTI (2004), KLEIMAN (2007), ROJO (2012;2013),
OLIVEIRA e KLEIMAN (2008), SOUZA, CORTI e MENDONÇA (2012), OLIVEIRA,
ALVES e SILVA (2008) e SOARES (2009).
Os estudos do texto fundamentaram-se em ANTUNES (2009), DOLZ e
SCHNEUWLY (2004), MARCUSCHI (2008) KOCH (2003), e nos suportes que versam
sobre a prática de refacção textual discutidos por PASSARELLI (2004), e RUIZ (2009),
recorrendo-se também aos documentos oficiais que evidenciam a importância da interação e
da cooperação nas situações de sala de aula, entre eles os PCN (1998), apoiando-se ainda na
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 949
discussão acerca do uso de rodas de conversa para construção de aprendizagens significativas,
contida em WARSCHAUER (1993).
O artigo se organiza a partir de uma breve discussão sobre o letramento e as práticas
que orientam a atividade escritora na escola, dos processos que devem envolver as produções
textuais, enfatizando a importância do encorajamento para práticas de produção processual do
texto escrito; segue apresentando uma experiência de produção textual colaborativa com
alunos da EJA e traz, por fim, algumas reflexões sobre o ensino da língua materna com esse
público, orientado por práticas de letramento.
2 O letramento escolar e a ressignificação das práticas de ensino da escrita
Conforme Bronckart (2012), o ensino das categorias e estruturas da língua têm tido
primazia sobre procedimentos metodológicos que assegurem a compreensão e processo de
produção dos textos orais ou escritos, deixando de levar em conta que as realizações da
linguagem sempre se darão por meio da elaboração do texto. Essa concepção faz com que o
ensino da língua aconteça desvinculado dos propósitos comunicativos dos falantes que já a
conhecem e a utilizam para suas práticas sociais.
Desse modo, as realizações da linguagem propostas no âmbito da escola, além de não
darem conta de ressignificar a escrita e ampliar a compreensão sobre a extensão dos usos da
língua como um objeto social, utilizável de forma intensiva nos contextos extraescolares,
frustram os alunos frente ao fenômeno da apresentação de uma língua estranha e à
impossibilidade de estabelecer um diálogo com os saberes que sistematizam suas ocorrências.
O ensino da língua materna com enfoque, sobretudo na metalinguagem provoca ainda
à aceitabilidade de que aquela língua é para os sábios, os cultos, os que já nascem “bons”; de
que aprender é quase um dom e, portanto para poucos, para os que podem e não para os que
queiram se aventurar em aprender esse “novo falar”, fazendo com que fiquem
“desacreditados de sua própria competência linguística” (PASSARELLI, 2004, p. 16)
Falta assim, a visão de um sujeito sócio histórico e cultural, cujas realizações da
linguagem são resultado dos processos interativos que imprimem significação aos registros
orais ou escritos, que age intencional e conscientemente a partir de um discurso que se amplia
e se refaz nessas constantes interações sociais. Nessa situação, além dos alunos, ficam
igualmente desacreditados a escola, quanto ao projeto de uma educação emancipatória, e os
professores, quanto à competência em convencer os aprendizes quanto à utilidade da língua e
a ampliarem os usos nas diversas situações sociocomunicativas.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 950
Nesse contexto, os estudos do letramento centram suas discussões nas práticas que
envolvem os usos da língua, evidenciando as exigências frente à sociedade grafocêntrica e às
demandas advindas do cotidiano, que requerem do sujeito o contínuo envolvimento com as
práticas sociais da escrita, de forma competente e atuante quanto às escolhas para realizá-la.
Isso porque o “letramento está diretamente relacionado com a língua escrita e seu lugar, suas
funções e seus usos” e, por isso, “assume importância central na vida das pessoas e em suas
relações com os outros e com o mundo em que vivem” (MORTATTI, 2004, P. 109).
Letramento, conforme afirma Kleiman (2012, p. 11) “ é um conjunto de práticas
sociais, cujos modos específicos de funcionamento têm implicações importantes para as
formas pelas quais os sujeitos envolvidos nessas práticas constroem relações de identidade e
de poder”. O letramento escolar é apenas uma, entre tantas outras formas de letramento que se
presentificam no nosso dia a dia. Nesse sentido, é preciso compreender que as “práticas de
letramento [...] são determinadas pelas condições efetivas de uso da escrita, pelos seus
objetivos, e mudam à medida que essas condições também mudam” (KLEIMAN, 2012, p.
19).
De acordo com Geraldi (2011), uma vez que a educação é um problema social e não
pedagógico - como compreende a escola que equivocadamente se propõe a ensinar a partir de
modelos uniformes, num processo de exclusão formalizada - a escola tem como desafio
possibilitar experiências de linguagem, de modo que os sujeitos desenvolvam suas
competências sociocomunicativas, compreendendo a função da língua enquanto objeto social.
Para tanto, torna-se necessário ações didático-metodológicas pautadas nos princípios
de um modelo ideológico de letramento1, em que o “ensino da escrita e de tecnologias das
sociedades letradas, como uma das formas de se potencializar o cidadão para lidar com as
estruturas de poder na sociedade” estejam incorporados aos fazeres do cotidiano escolar
(KLEIMAN,2006, p. 8). Requer, portanto, a adoção de práticas a partir das quais “aprender a
ler e escrever” seja uma oportunidade de “dizer a palavra: um comportamento humano que
envolve ação e reflexão. Dizer a palavra, em um sentido verdadeiro é o direito de expressar-se
e expressar o mundo, de criar e recriar, de decidir, de optar” (FREIRE, 2006, p. 59).
1Street(2012) fez a distinção entre o modelo autônomo, em que se evidencia os aspectos técnicos do letramento
dissociados do contexto social, do modelo ideológico de letramento em que as práticas de linguagem são
percebidas como estando indissociavelmente ligadas a estruturas de cultura e poder na sociedade em que está
inserida, cujas realizações de linguagem se constituem a partir das interações estabelecidas entre os sujeitos
constituindo-se, portanto, numa prática linguística crítica ou ideológica.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 951
O empoderamento através da palavra, defendido por Freire, é amplamente defendido
nos estudos do letramento, sobretudo nos espaços que, a priori, foram criados para fomentar
experiências com a palavra, ampliando e consolidando saberes, entre eles a escola.
3 Escrita processual: o texto do aluno como unidade significativa de ensino
Os caminhos para repensar o ensino da escrita, lembra Passarelli (2004), não se
limitam necessariamente à eliminação dos modelos de produção aplicados. Estes passam,
sobretudo, pela adoção dos novos paradigmas para o ensino das competências linguísticas que
permitam a ação criativa do sujeito, dando sentido aos usos imediatos e significativos da
língua, seja em sua manifestação oral ou escrita, ou seja, “um ensino de línguas que, em
última instância, esteja preocupado com a formação integral do cidadão, tem como eixo essa
língua em uso, orientada para a interação interpessoal” (ANTUNES, 2009, p.35)
A assertiva de Antunes evidencia o perfil de uma escola comprometida com a
formação cidadã do aprendente, em que o texto “é construção e interpretação de um dizer e de
um fazer” [tendo em vista que] “é o texto vivo, que circula, que passa de um interlocutor para
outro, que tem finalidades, que não acontece apenas para servir de treino” (ANTUNES, 2009,
p. 39).
Com essa perspectiva, a escrita processual é apresentada por Passarelli como um
conjunto de ações que possibilita planejar práticas de ensino que tratam o texto enquanto
conteúdo de ensino aprendizagem, capaz de materializar fazeres necessários à prática efetiva
de uso da língua e mobilizar a atenção dos alunos, apresentando “o texto sob o ponto de vista
do processo de produção” (PASSARELLI, 2004, p. 59). A partir dessa visão, são propostas
quatro etapas para direcionar o ensino da escrita enquanto processo: planejamento, tradução
de ideias em palavras, revisão e editoração, todos devidamente monitorados durante suas
realizações.
O planejamento diz respeito à etapa em que são pensados e selecionados todos os
elementos necessários para a produção de dados e geração das ideias que constituirão o texto,
em que “a seleção das informações requer que se colete o material, os fatos, as ideias e as
observações com os quais o texto será elaborado” (PASSARELLI, 2004, p. 89). Nesse
momento, a partir das escolhas de fontes, seleção e exclusão de materiais, busca de fontes e
registros, vai se delineando o tema a ser abordado.
Após a seleção das ideias passa-se para organização dos materiais obtidos de modo a
analisar e categorizar os tópicos em um plano textual. A preocupação centra-se na produção
da versão inicial do texto, registrando por escrito todas as ideias, organizando-as em
Nas fronteiras da linguagem ǀ 952
parágrafos e interligando esses parágrafos de modo a manter a unidade do texto. É a fase de
tradução das ideias em palavras, a segunda etapa da escrita processual.
Em seguida, o escritor deverá se debruçar sobre a etapa de revisão que requer o
retorno ao material produzido e o olhar atento para o exame da versão provisória do texto.
Nesse sentido, o escritor assume o papel de leitor e revisor da própria produção para que
possa avaliar a “adequação ao que a língua escrita convenciona, exatidão quanto ao
significado, e, tendo em pauta o leitor, acessibilidade e aceitabilidade” (PASSARELLI, 2009,
p. 64).
Realizadas as releituras para todas as intervenções necessárias, o texto produzido está
apto a passar pela etapa de editoração, momento em que será compartilhado com outros
públicos, extrapolando os espaços da sala de aula, o que requer do escritor a certeza da
adequação da produção para essa situação de circulação e socialização das ideias impressas.
A clareza do objetivo desse produto final fará com que os alunos compreendam a
necessidade de vivenciar todas as etapas do processo de escrita, se esforçando para atingir os
objetivos propostos. Caberá, portanto, ao professor assumir “os pressupostos da avaliação
formativa para ajudar o aluno a descobrir os processos que permitirão seu progresso em
termos de aprendizagem” (PASSARELLI, 2009, p. 99).
Para atingir esse fim, Ruiz indica como possibilidade de correção o tipo textual-
interativa, a partir do qual se constrói um diálogo em torno do texto,
quando o professor toma como objeto de discurso não mais apenas o dizer do aluno,
mas também o dizer desse aluno, ou a atitude comportamental desse aluno refletida
pelo seu dizer, a propósito da correção do professor ou, ainda a própria tarefa
interventiva que ele mesmo, professor, está realizando no momento. (Ruiz, 2001,p.
93)
O processo de correção requer, portanto do professor um papel cooperador, cuja
preocupação não se limita à superfície do texto, mas a indicar por escrito no próprio texto dos
alunos caminhos possíveis para as intervenções necessárias.
A abordagem da perspectiva processual para consolidação da competência escritora do
aluno também é alvo das discussões de Soares (2009) que descreve a abordagem processual
como um conjunto de ações que envolvem estágios. Para fins didáticos, esses estágios são
constituídos por três momentos: pré-escrita, escrita e revisão ou pós-escrita.
O primeiro, estágio da pré-escrita, se caracteriza pelo uso de atividades que motivem e
estimulem os alunos no surgimento das primeiras ideias, ajudando-o “a descobrir formas de
abordar a tarefa, a coletar as informações e a gerar ideias” (SOARES, 2009, p. 23), lançando-
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 953
se de atividades individuais ou coletivas como as sessões de tempestade de palavras. Essa é a
parte do planejamento, em que o autor deve ter em mente uma série de fatores como o leitor
para quem será endereçado e qual o contexto de circulação seu texto, para que assim possa
organizar suas ideias de modo atender um propósito comunicativo previamente definido e
conhecido por quem escreve.
Cumprida a primeira etapa, o sujeito entra no segundo estágio, o da escrita, que é
considerada cumprida quando as ideias geradas foram devidamente organizadas e o texto
encontra-se apto a passar pela fase da reavaliação: trata-se da primeira versão do texto.
Na terceira etapa, revisão ou pós-escrita, compreende o estágio em que o autor estará
preocupado em promover melhorias que atendam a seu objetivo inicial. Não é o momento,
portanto, do professor pensar em atribuir uma nota ao texto, tendo em vista que, a partir de
momentos de compartilhamento do texto com o público leitor inicial, alunos e professor, o
escritor fará uma leitura com olhar avaliativo, de modo a intervir no próprio texto,
reelaborando-o e fazendo os ajustes necessários.
Nessa perspectiva de trabalho com a produção textual, invocando os pressupostos de
O’brien, a autora adverte que
Devemos ter consciência de que não há uma entidade chamada de “pedagogia de
processo” e que esta é mais bem definida, não como uma teoria completa ou uma
abordagem pedagógica, mas como um conjunto de práticas pedagógicas que podem
ser adaptadas para qualquer forma de instrução com dois componentes essenciais: a
consciência (como se escreve) e a intervenção (o feedback durante o processo), que
não deve ser confundida com correção de erros. (SOARES, 2009, p.25)
Para fazer as intervenções necessárias no texto através das atividades de reescrita e
recorrência aos feedbacks, a realização da escrita processual requer a compreensão do tipo de
feedback que o professor deverá fornecer ao aluno e do consequente papel do ato de dar e
receber feedback. Torna-se necessário um processo de escrita dinâmico em todas as etapas de
realização, que leve em conta as intenções comunicativas inerentes.
Por isso,
O trabalho pedagógico deve privilegiar a construção conjunta do conhecimento
sobre o discurso escrito, por meio da participação ativa dos alunos, tanto como
autores quanto como leitores, analisando textos autênticos e lendo os seus textos
criticamente, buscando adequá-los às expectativas do seu público-alvo e ao seu
propósito comunicativo. (SOARES, 2009, p.44)
O professor deixa então de ter sua ação limitada ao papel de revisor e passa a ter
participações mais significativas que orientem as vivências dos alunos, de modo que essas
experiências corroborem para a formação de leitores e escritores proficientes. De acordo com
Nas fronteiras da linguagem ǀ 954
Trible (apud Soares, 2009) são quatro, os papéis a serem desempenhados pelos professores:
leitor, assistente, avaliador e examinador.
Dentro desses papéis estabelecidos, é possível comentar os textos dos alunos, dando
indicadores em relação ao gosto pelo texto e ao conteúdo ali expresso (papel de leitor); atuar
com o escritor, orientando as possíveis transformações requeridas pelo texto (papel de
assistente); tecer comentários sobre o desempenho do escrevente (papel de avaliador), de
modo que fiquem claros “os aspectos da escrita que foram bem desenvolvidos e os que
precisam melhorar” (SOARES, 2009, p. 54).
A apresentação para o aluno das habilidades de escrita que foram percebidas nos
textos escritos de modo claro, objetivo e preciso, a partir de uma avaliação formal, fazendo a
averiguação da produção textual, constitui o quarto papel que deve ser exercido pelo professor
para constatação do feedback requerido em cada fase de trabalho com o texto.
4 Roda de conversa: caminho para a escrita colaborativa
Antes de descrever a proposta de trabalho, tomando como referencial os novos
paradigmas para desenvolver a competência escritora do aluno, tornar-se necessário
contextualizar, ainda que de forma breve, a experiência com a atividade cooperativa realizada
com alunos do ensino fundamental, segmento da educação de jovens e adultos.
A experiência apresentada constitui-se em um recorte de proposta de ensino para o
ensino do gênero crônica, fundamentada nas proposições de Schneuwly e Dolz (2013) que
defendem a aplicação de sequência didática para que os alunos tomem conhecimento dos
inúmeros gêneros e, sobretudo, desenvolvam habilidades que lhes permitam adequar seus
usos a cada situação comunicativa.
A proposição da sequência didática para o ensino de gêneros na escola “ se articula por
meio de uma estratégia, válida tanto para a produção oral quanto para a escrita” em que, “as
sequências didáticas instauram uma primeira relação entre um projeto de apropriação de uma
prática de linguagem e os instrumentos que facilitarão essa apropriação. (SCHNEUWLY E
DOLZ, 2013, p.43)
O evento de Letramento “roda de conversa” é, portanto, um recorte de sequência
didática aplicada ao ensino do gênero crônica. No primeiro momento, procedeu-se com a
elaboração de um ofício convidando um jornalista que escrevia crônicas para uma revista
local para participar de uma roda de conversa com os alunos, de modo a compartilhar as
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 955
experiências vivenciadas e gerar possíveis reflexões para o próprio exercício escritor do
aluno.
Após a aceitação do convite, prosseguimos com o planejamento e organização do
evento “roda de conversa”, elaborando questionamentos, discutindo os aspectos formais e
informais como a recepção do convidado. De acordo com a Proposta curricular para a
educação de jovens e adultos (2002) o uso efetivo da palavra em situações de participação
social possibilita desenvolver as capacidades construtiva e transformadora dos alunos, a partir
do exercício do diálogo.
Apesar dos alunos não terem estabelecido nenhum contato pessoal com o jornalista, a
atividade se constituiu em momentos prazerosos de descontração e interação desde a
recepção, quando um dos alunos fez as saudações iniciais com a leitura de uma crônica do
convidado. A satisfação dos alunos era perceptível em cada indagação, respostas prontamente
fornecidas e intervenções realizadas, se estendendo para além do horário previsto. No
término, todos foram presenteados com uma edição atualizada da revista e com uma sessão de
autógrafos.
A roda de conversa reservaria uma última surpresa, um inesperado desafio para a
turma: produzir uma crônica coletiva para ser publicada em uma das edições seguintes da
revista de circulação regional. Visualizava-se a oportunidade do exercício da autoria, em que
partiriam para o exercício da produção coletiva e circulação da produção textual da turma
para além dos muros da escola.
Desafio aceito, o encontro pós-evento fora marcado inicialmente pela euforia do
encontro com o escritor, em que todos compartilhavam suas impressões. É certo que ainda
havia a resistência diante da tarefa de produzir textos e, em meio aos depoimentos, um dos
alunos, mesmo admitindo ter gostado da experiência, afirmou: “não é pra mim, esse negócio
de escrever crônica”. Após a socialização dessas impressões, realizou-se a primeira reunião
para discutir a crônica que iriam produzir.
Entre os aspectos evidenciados pelos Parâmetros Curriculares Nacionais que garantem
uma aprendizagem significativa, a autonomia, interação e cooperação são citados como
capacidades comuns a serem desenvolvidas no contexto escolar, como resultado de uma
prática educativa eficaz, em que
o desenvolvimento da autonomia como princípio educativo considera a atuação do
aluno, valoriza suas experiências prévias, buscando essencialmente a passagem
progressiva de situações em que o é dirigido por outras pessoas, a situações dirigidas
pelo próprio alunos. (PCN, 1998, p.89)
Nas fronteiras da linguagem ǀ 956
No roteiro estabelecido para o ensino de produção textual, Passarelli (2009) nomeia
esse momento vivenciado pela turma como sendo o do planejamento, em que serão definidos
os rumos iniciais para a atividade escritora. Apesar de se constatar que os alunos utilizam com
pouca frequência o planejamento ou até não se dão conta de sua importância, na produção
coletiva é praticamente impossível ignorar essa etapa, tendo em vista a necessidade de
estabelecer um diálogo em torno do que se pretende produzir como resultado de resoluções
consensuais.
Sabemos que o êxito de um projeto de natureza coletiva é resultado de um processo de
interação e cooperação estabelecidas entre as partes envolvidas, a partir dos propósitos
definidos pelo grupo. Para isso,
são fundamentais as situações em que se possa aprender a dialogar, a ouvir o outro e
ajuda-lo, a pedir ajuda, aproveitar críticas, explicar um ponto de vista, coordenar
ações para obter sucesso em uma tarefa conjunta etc.[...] Assim, a organização de
atividades que favoreçam a fala e a escrita como meios de reorganização e
reconstrução das experiências compartilhadas pelos alunos ocupam papel de
destaque no trabalho em sala de aula. (PCN, 1998, p.90)
Preocupados em definir os rumos do texto que produziriam, os alunos optaram por
reunir fragmentos de suas próprias histórias focalizando, sobretudo, as situações que os
obrigaram a se afastar da escola, tendo em vista que o grupo se constituía por sujeitos que
tentavam retomar suas atividades como estudantes. Com esse objetivo, a princípio,
escolheram uma aluna para exercer o papel de escriba tomando nota de seus depoimentos.
As decisões tomadas e os registros iniciais foram compartilhados na aula seguinte,
acrescentando depoimentos dos que estiveram ausentes na reunião anterior. Em seguida,
nomearam outro aluno para dividir a tarefa de escriba, iniciando-se o processo de construção
da crônica. A princípio, estabeleceu-se uma discussão em torno dos prováveis recortes que
precisavam ser feitos para o texto não ficasse tão extenso, afinal de contas, tinham apenas
uma página da revista disponível para publicação.
Para isso, à medida que o texto ia sendo redigido, se realizava a leitura dos
depoimentos, para possíveis ajustes. Era um momento desafiador em que as ideias
começavam a ser transformar em texto. White e Arndt afirmam que “o que faz a escrita ser
desafiadora é que os escritores, por si sós, têm de estabelecer os problemas certos para serem
resolvidos” (apud SOARES, 2009, p. 33).
Essa leitura revelou experiências de vida das mais diversas: traumáticas, de decepção,
de perdas e algumas engraçadas como a de uma aluna que disse deixar de estudar porque
gostava muito de namorar. Entre choros e risos, aquela turma, empenhada em reescrever a
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 957
muitas mãos a própria história, não parecia a mesma de outras situações diante da tarefa de
escrever, exercida com grande desânimo.
Nesse clima, os ajustes foram sendo feitos e, a partir das intervenções do grupo, a
crônica foi parcialmente elaborada. Na aula seguinte, num processo de elaboração e
reelaboração da escrita, o texto foi finalizado pela turma. Como se tratava de uma produção
para ser publicada em revista de circulação regional, em virtude ainda de estarmos encerrando
o ano letivo, a revisão final foi feita pelo professor
Passarelli (2012, p. 99) lembra que “sendo o próprio autor responsável pela revisão
observa-se que, quanto maior for o intervalo de tempo transcorrido entre a composição e a
revisão, mais produtiva ela será”. Diante das circunstâncias expostas, não pudemos contar
com o fator tempo para a revisão final, embora durante toda a produção coletiva estivesse
sendo feitas revisões constantes dentro da perspectiva do processo de revisão em que
o aluno-escritor passa a ser leitor de si mesmo, para manter a unidade de seu texto,
isto é, para não perder de vista o sentido global, enfim para burilar seu texto.[...] Ao
debruçar-se sobre a primeira versão de seu trabalho, lê e relê, ajusta daqui e dali,
alterando sucessiva e recorrentemente sua figura: de leitor para escritor e vice-versa.
(PASSARELLI, 2012, p.99)
. No entanto, a versão revisada foi apresentada aos alunos, de modo a serem feitos os
ajustes finais, contando com as intervenções resultantes daa participação efetiva da turma.
.
5 Considerações finais
A necessidade de transformar as práticas de escrita nas aulas de português requer que
as situações de aprendizagem se tornem dinâmicas e situadas, de modo a levar o aluno a atuar
como escritor e leitor dos próprios textos, cujas preocupações vão além de preencher espaços
vazios de uma folha, mantendo uma constante postura de reflexão mediada pela ação
interventiva do professor.
Diante dos novos paradigmas de ensino, tornar-se proficiente no uso da língua não é
uma tarefa fácil para os alunos que escrevem textos apenas como uma atividade para fins
avaliativos e não costumam refletir sobre a função social da escrita. Essa tarefa se torna mais
difícil quando se trata de jovens e adultos que estiveram longos períodos afastados da escola e
retornaram às salas de aula com a ideia de que são incapazes de escrever porque não dominam
regras gramaticais e ortográficas.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 958
Dessa maneira, os alunos não acreditam que conseguem realizar tarefas desafiadoras,
porque foram ensinados a conceber a escrita apenas como um produto. Diante disso,
demonstram muito desânimo e resistência para produzir textos e desinteresse em revisar suas
produções, pois atribuem ao ensino da Língua Portuguesa uma função puramente
metalinguística
No processo de escrita coletiva, percebeu-se que essa insegurança foi minimizada,
tendo em vista sentirem-se mais motivados a interagir com seus pares, a partir da proposta de
produção textual. Percebeu-se ainda que a possibilidade de compartilhar experiências e
conhecimentos tirou o foco e a preocupação extrema com o produto final. A necessidade de
ler, reler e intervir nos textos produzidos fez com que os alunos começassem a perceber a
importância das etapas de planejamento, escrita, revisão e editoração como partes
indispensáveis para a produção de um texto.
O fato de saber que a produção alcançaria outros públicos, e, consequentemente teria
outros leitores, a partir da publicação do texto final em uma revista de circulação regional foi
outro elemento motivador, fazendo com que a função social da escrita se tornasse mais
perceptível pela turma. O resultado dessa proposta tornou-se evidente nas práticas posteriores
de produção textual, em que demonstraram menos resistência em colocar no papel suas ideias.
Referências bibliográficas
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Editorial, 2009.
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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 960
O GÊNERO ENTREVISTA: UMA PROPOSTA DE
RETEXTUALIZAÇÃO DA FALA PARA A ESCRITA [Voltar para Sumário]
Francisca Fabiana da Silva (UFRN)
1 Introdução
Muitas são as problemáticas que envolvem diretamente o ensino da língua materna,
nas escolas brasileiras, nos dias atuais. Entre os diversos problemas e questões cruciais,
seguramente a mais preocupante está relacionada à aprendizagem da leitura e da escrita,
decorrentes em grande parte, da falta de investimentos na escola pública, bem como, na
formação dos professores, que possibilite uma boa compreensão dos estudos linguísticos, e na
sua valorização profissional.
No cenário atual, a linguagem oral e escrita constitui condição primordial para a
concretização de diversas interações sociais, como o acesso a conhecimentos e informações
que permitem a inserção do cidadão nos vários domínios que favorecem o exercício da
cidadania.
Considerando a necessidade urgente de se trabalhar a aquisição dessas duas
habilidades, em todos os níveis de ensino; este trabalho busca refletir sobre as relações
estabelecidas entre oralidade e escrita, em atividades de retextualização da fala para a escrita,
realizadas com o gênero entrevista, em que textos orais são transformados em textos escritos.
Nesse contexto, discutiremos conceitos relevantes para uma boa compreensão da
relação entre fala e escrita, vistas como duas modalidades da língua, que embora tenha suas
especificidades de organização, não constituem dois sistemas linguísticos diferentes, mas
práticas sociais de uma mesma língua usadas pelos falantes, para responder as suas reais
necessidades de comunicação, nos diversos contextos situacionais. Tal afirmação é enfatizada
por Marcuschi (2004, p. 37) “as diferenças entre fala e escrita se dão dentro do continuum
tipológico das práticas sociais de produção textual e não na relação dicotômica de dois polos
opostos”.
Para tanto, tomamos como pressupostos teóricos, os estudos de MARCUSCHI (2010),
FÁVERO, ANDRADE E AQUINO (1999) que defendem o tratamento da oralidade como
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 961
objeto de ensino, e os autores SCHNEUWLY E DOLZ (2004) que propõe procedimentos
didáticos e metodológicos para um trabalho com os gêneros orais e escritos.
Com base nos estudos realizados acerca da temática em discussão, propomos uma
sequência didática para um trabalho com o gênero oral entrevista, por constitui-se dentro das
relações entre fala e escrita, no intuito de contribuir com o aprimoramento de habilidades
textuais e na valorização da modalidade oral da língua na sala de aula. Assim, a proposta
terá como ponto de partida para produção escrita, o texto falado, por meio de entrevistas orais
que servirão para coletar informações sobre o tema proposto. Entendemos que o resgate de
informações de textos orais para elaboração de textos escritos, contribui para um novo olhar
para a língua oral e sua relação com a escrita. Ambas as modalidades são essenciais para que
o aluno desenvolva competências comunicativas, para assim, atuar adequadamente nos
diversos espaços sociais. Entretanto, verificamos que o ensino da oralidade ainda não é uma
prática efetiva nas salas de aula. Há pouca clareza por parte dos professores de como
relacionar esses saberes no seu cotidiano escolar.
Desse modo, a relevância deste estudo pode ser estabelecida no sentido de que a
oralidade se coloca como eixo imprescindível de ensino. Assim sendo, ações que visam
analisar as relações entre a oralidade e escrita, na perspectiva de desfazer equívocos
socialmente estabelecidos, que apresentam essas modalidades em posições dicotômicas,
contribui com reflexões que podem subsidiar mudanças na prática pedagógica dos professores
de língua materna, e constitui um instrumento para orientar futuras escolhas didático–
pedagógicas, bem como, a produção de materiais educativos comprometidos com o espaço da
oralidade na sala de aula, conforme advogam alguns autores cujas preocupações se voltam
para esta questão.
2 Atividades de retextualização da fala para a escrita
Uma das reflexões bastante pertinentes nos estudos atuais sobre o ensino da língua que
tem ocupado um espaço cada vez mais consensual nas discussões entre educadores, não
apenas envolvidos com o ensino da linguagem, mas das diversas áreas do conhecimento está
ligada a necessidade de se abordar a oralidade em sala de aula, tanto em seus aspectos
constitutivos, quanto como objeto de ensino e aprendizagem de língua materna, em todos os
níveis de educação.
Dessa forma, não podemos discutir atividades de retextualização em textos orais para
escritos, sem refletirmos sobre a língua falada e sua relação com a escrita, bem como, as
Nas fronteiras da linguagem ǀ 962
formas específicas de organização dessas duas modalidades. Essas reflexões decorrem do
reconhecimento da oralidade como uma das modalidades de uso da língua, que embora menos
prestigiada na sociedade, aparece na vida das pessoas como uma atividade muito mais
frequente que a escrita, ocorrendo em diversas esferas sociais, como uma habilidade
primordial para inserção do individuo na sociedade.
Para Marcuschi,
Oralidade e escrita são práticas e usos da língua com características próprias, mas
não suficiente opostas para caracterizar dois sistemas linguísticos nem uma
dicotomia. Ambas permitem a construção de textos coesos e coerentes, ambas
permitem a elaboração de raciocínios abstratos e exposições formais e informais,
variações estilísticas, sociais, dialetais e assim por diante. (MARCUSCHI, 2010, p.
17).
Nesse sentido, compreendemos que, ao lado da escrita, além de possibilidades de uso
como formas multimodais, as práticas orais são fundamentais para a construção da cidadania.
Tal fato é patente, na medida em que a participação, por meio da fala, é frequentemente
utilizada para expressar ideias e defender pontos de vistas em diversos domínios,
possibilitando que importantes decisões políticas, sociais e econômicas, que dizem respeito ao
bem comum, sejam tomadas a partir da participação social dos cidadãos por meio da defesa
de argumentos mediados pela fala. Assim, o desenvolvimento de habilidades orais contribui
efetivamente para que indivíduos atuem como protagonistas e sujeitos de sua história, na
medida em que utiliza a fala como instrumento para defender e garantir seus direitos, praticar
o controle social, exercendo assim, sua cidadania plena.
Embora tenhamos avançado nas pesquisas acerca da oralidade, este conhecimento
produzido pelos estudiosos ainda não se efetivou na prática pedagógica da maioria dos nossos
professores. (MARCUSCHI, 2010). Não há um trabalho organizado com a língua falada no
espaço escolar, onde a oralidade de fato se constitua um objeto de ensino.
Aprofunda-se nestas questões pode contribuir para a superação de inúmeros equívocos
construídos em torno da língua falada, vista ao longo do tempo, numa posição de
inferioridade frente à escrita; caracterizada como o espaço da desorganização e da
informalidade. No entanto, “a língua falada não possui uma gramática própria, suas regras de
efetivação é que são distintas em relação á escrita”. (FÁVERO, ANDRADE E AQUINO,
2012, p.73).
A falta de entendimento desses aspectos favoreceu para que durante muito tempo, a
língua falada fosse vista numa visão dicotômica, oposta à escrita. Para melhor caracterizar
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 963
essa perspectiva das dicotomias, que dividem a língua falada e a língua escrita, em dois blocos
distintos, Marcuschi (2010, p. 27) propôs o seguinte quadro, denominado de dicotomias
estritas:
Fala versus Escrita
Contextualizada Descontextualizada
Dependente Autônoma
Implícita Explicita
Redundante Condensada
Não planejada Planejada
Imprecisa Precisa
Não normatizada Normatizada
Fragmentada Completa
Esta visão das relações entre as duas modalidades da língua está intimamente ligada à
concepção tradicional de ensino da língua, centrado no ensino das regras e nomenclaturas da
gramática, sem que fosse estabelecida uma relação entre oralidade e escrita como
modalidades da língua que se completam e exercem papeis distintos na prática social. Para
Fávero, Andrade e Aquino (2012, p. 73) “ambas apresentam distinções porque diferem nos
seus modos de aquisição; nas suas condições de produção, transmissão e recepção; nos meios
através dos quais os elementos de estrutura são organizados”.
Em contraposição a essa concepção habitual de ensino, com a supremacia da escrita
sobre a fala, e um ensino da língua portuguesa que prioriza o trabalho com a escrita,
Marcuschi (2010, p. 9) defende que “falar e escrever bem não é ser capaz de adequar-se às
regras da língua, mas usar adequadamente a língua para produzir um efeito de sentido
pretendido numa dada situação”. Ou seja, são as situações comunicativas que definem os usos
mais adequados para o contexto em que o falante está inserido e não as regras gramaticais,
cabendo ao falante dominar os usos da língua falada e escrita e utilizar esses saberes
adequando a sua prática social. (MARCUSCHI, 2010)
No estabelecimento das relações entre fala e escrita, no que diz respeito aos processos
de condições de produção de cada texto, Fávero, Andrade e Aquino (2012, p. 78) instituem o
seguinte paralelo neste quadro comparativo:
Fala Escrita
-Interação face a face;
- Interação á distância (espaço – temporal)
Nas fronteiras da linguagem ǀ 964
-Planejamento simultâneo ou quase simultâneo à
execução;
- Planejamento anterior á produção
- Criação coletiva: administrada passo a passo - Criação individual
-Impossibilidade de apagamento
- Possibilidade de revisão
- Sem condições de consulta a outros textos
- Livre consulta
- A reformulação pode ser promovida tanto pelo
falante como pelo interlocutor
- A reformulação é promovida apenas pelo escritor
- Acesso imediato à reação do ouvinte;
- Sem a possibilidade de acesso imediato
- O falante pode processar o texto, redirecionando – o
a partir das reações do interlocutor
- O escritor pode processar o texto a partir das
possíveis reações do leitor
- O texto mostra todo o seu processo e criação - O texto tende a esconder o seu processo de criação,
mostrando apenas o resultado
Observamos que as características citadas pelos autores elucidam as especificidades da
modalidade oral e escrita, quanto à forma de produção e de organização dos textos. Esses
conhecimentos são fundamentais para uma compreensão adequada das relações entre fala e
escrita e dos processos de transformação do texto oral em escrito. Esse procedimento de
passagem da fala para a escrita é definido por Marcuschi como atividades de retextualização.
O autor diz que,
Atividades de retextualização são rotinas usuais altamente automatizadas, mas não
mecânicas, que se apresentam como ações aparentemente não problemáticas, já que
lidamos com elas o tempo todo nas sucessivas reformulações dos mesmos textos
numa intricada variação de registros, gêneros textuais, níveis linguísticos e estilos.
Toda vez que repetimos ou relatamos o que alguém disse, até mesmo quando
produzimos as supostas citações, ipsis verbis, estamos transformando, reformulando,
recriando e modificando uma fala em outra. (MARCUSCHI, 2010, p.48).
Dessa forma, é habitual fazermos atividades de retextualização no cotidiano para
darmos conta das necessidades da prática social: quando assistimos a um programa e
anotamos informações que nos parecem úteis, quando discutimos propostas para serem
elaboradas em forma de documentos escritos, de carta de reivindicação, de reclamação, entre
outros, estamos transformando textos orais em escritos. Esses são alguns poucos exemplos do
quanto é presente no nosso dia a dia as atividades de retextualização e o quanto com
frequência partimos de oral para concretizarmos a produção escrita que desejamos.
. Para o autor,
Em hipótese alguma se trata de propor a passagem de um texto supostamente
“descontrolado e caótico” (texto falado) para outro “controlado e bem – informado”
(texto escrito). Fique claro, desde já, que o texto oral está em ordem na sua
formulação e no geral não apresenta problemas para compreensão. Sua passagem
para a escrita vai receber interferências mais ou menos acentuadas a depender do
que se tem em vista, mas não por ser a fala insuficiente organizada. Portanto, a
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 965
passagem da fala para a escrita não é a passagem do caos para a ordem: é a
passagem de uma ordem para outra ordem. (MARCUSCHI, 2010, p.47).
Sobre as possibilidades de retextualização na passagem da fala para a escrita
Marcuschi (2010, p. 48) apresenta o seguinte quadro:
Quadro 1. Possibilidade de retextualização
1. Fala Escrita (entrevista oral entrevista impressa)
2. Fala Fala (conferência tradução simultânea)
3. Escrita Fala (texto escrito exposição oral)
4. Escrita Escrita (texto escrito resumo escrito)
Como podemos observar, muitas interações se concretizam na relação entre as
duas modalidades, dentro do continuum fala e escrita. Assim, para a produção de
determinados gêneros, seja oral ou escrito, muitas vezes há a necessidade do uso de outra
modalidade que exerce um papel fundamental na construção comunicativa.
Para o autor, a retextualização tal como definida em seu livro da fala para a escrita,
não é um processo mecânico, já que a passagem da fala para a escrita não se dá
naturalmente no plano dos processos de textualização. Trata-se de um processo que
envolve operações complexas que interferem tanto no código como no sentido e
evidenciam uma série de aspectos nem sempre bem-compreendidos da relação
oralidade-escrita. (MARCUSCHI, 2010, p. 46)
O autor apresenta um modelo de operações envolvidas com nove procedimentos de
como realizar o processo de retextualização para se trabalhar no ensino e na pesquisa. Sobre
isso, alerta que não se trata de uma receita pronta para ser aplicada, que dá conta de todos os
fenômenos, mas um esquema especifico que orienta o trabalho e que pode ser acrescido de
outras informações.
4 Proposta de sequência didática para o gênero oral entrevista
De acordo com Schneuwly e Dolz (2004) o ensino da escrita e da fala podem se
distinguir em pelo menos três maneiras comuns de se abordar: o fato de ser colocado como
central o problema do gênero, como objeto e as relações complexas que o ligam ás práticas de
referência.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 966
Para um trabalho de produção textual que se realiza a partir da relação da fala e escrita,
na perspectiva de retextualização discutida no trabalho, escolhemos o gênero oral entrevista,
por ser um dos gêneros de domínio público que favorece o aprofundamento de ambas as
modalidades, oral e escrita.
De acordo com os objetivos e o contexto situacional, as entrevistas podem assumir
diferentes formatos. Os tipos mais comuns são as entrevistas jornalísticas, cientificas, a
entrevista de emprego, a entrevista médica.
Por apresentar diferentes formas nas práticas sociais e atividades de linguagem, e tendo
em vista, os objetivos pretendidos, optamos pela entrevista jornalística, pois avaliamos que o
trabalho com este gênero favorece os resultados que almejamos. A entrevista jornalística é
considerada como “um gênero de longa tradição, que diz respeito a um encontro entre
jornalista ou uma pessoa que tem interesse particular num dado domínio.” (SCHNEUWLY E
DOLZ 2004, p.73).
As autoras Leal e Gois ressaltam que “outro aspecto que merece atenção na abordagem
da entrevista é um possível trabalho de retextualização da oralidade para a escrita”. (LEAL E
GÓIS, 2012, p.102). Esse será um dos aspectos que privilegiamos na produção proposta.
Nessa perspectiva, a sequência didática que apresentamos tem como objetivo principal
investigar a realidade social do bairro onde residem os alunos, no que diz respeito aos
serviços básicos de saúde oferecidos aos moradores, por meio das políticas públicas de saúde
presentes na comunidade.
Os objetivos específicos envolvidos no projeto são:
Promover o domínio do gênero entrevista na modalidade oral e escrita, bem como, suas
características e funções;
Refletir sobre as relações estabelecidas entre oralidade e escrita;
Apropriar-se de conhecimentos relacionados aos processos de retextualização da fala para a
escrita;
Produzir entrevistas orais e retextualizá-las para a escrita.
O trabalho pode ser realizado em turmas de nível fundamental e médio, com duração
de três semanas. Para realização das entrevistas os alunos precisarão de aparelhos de
gravação. O trabalho consiste na realização de entrevistas orais com alguns profissionais de
referência da área temática e representantes de moradores, para subsidiar a construção de um
texto escrito com informações obtidas nas entrevistas sobre a realidade da saúde do bairro e
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 967
posteriormente poderá planejar a divulgação e publicação das informações mais relevantes
para a comunidade escolar em geral.
Para elaboração da proposta didática tomamos como base os procedimentos de
elaboração de sequências didáticas para o ensino de gêneros orais e escritos, proposta por
Schneuwly e Dolz (2004). Segundo os autores sequência didática é “um conjunto de
atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero textual oral
ou escrito”. (SCHNEUWLY E DOLZ, 2004, p. 82).
Ilustramos o modelo proposto pelos autores da estrutura base de uma sequência
didática representada neste esquema:
Com base neste modelo proposto por Schneuwly e Dolz (2004, p.83), elaboramos a
seguinte sequência didática para um trabalho de produção escrita com o gênero entrevista.
Na apresentação da situação inicial será exposta de maneira detalhada para os alunos
a proposta de realização de um projeto coletivo, com todas as informações necessárias para
que os alunos conheçam o projeto e compreendam suas finalidades. Nesse momento
deverão ser definidas repostas para as seguintes questões:
Qual o tema da produção?
Qual o gênero a ser realizado?
Quais os objetivos?
Quais os destinatários?
Que forma assumirá a produção?
Quem participará da produção?
Quais as etapas da produção?
Na primeira produção será proposto aos alunos a realização de uma entrevista oral
com um colega de sala para saber o que ele acha sobre a vida dos moradores no bairro que
eles vivem. Os alunos serão estimulados a responder algumas questões entregues pelo
professor. As respostas serão anotadas pelo aluno que estiver fazendo o papel de
entrevistador. Após o momento das entrevistas, os alunos entrevistados organizarão as
ESQUEMA DA SEQUÊNCIA DIDÁTICA
Apresentação da situação
PRODUÇÃO INICIAL
Módulo
1 Módulo
2
Módulo n PRODUÇÃO
FINAL
Nas fronteiras da linguagem ǀ 968
respostas e apresentarão seus textos para a turma, enquanto o professor observa como os
alunos realizaram a atividade proposta, conduzindo e orientando cada momento.
As principais dificuldades detectadas durante a primeira produção irão determinar o
trabalho do professor nos passos seguintes. No primeiro módulo será discutido ás questões
relacionadas à oralidade, ás relações entre fala e escrita, as características, a forma de
organização e a produção do texto falado e escrito.
No segundo módulo os alunos serão convidados a assistir entrevistas orais em
programas de rádio e/ou TV selecionada pelo professor com objetivo de fazê-los observar os
aspectos trabalhados no primeiro módulo, além de explorar as características do gênero
entrevista e analisar os papéis dos principais envolvidos na realização desse gênero: o
entrevistador e entrevistado.
Nos módulos seguintes, tendo em vista o objetivo proposto de conhecer como
funciona o serviço de saúde do bairro dos alunos será feito um levantamento dos possíveis
entrevistados (agente comunitário de saúde do bairro, equipe PSF da unidade básica de saúde,
representante de associação de moradores, etc.), bem como a elaboração das questões
pertinentes as finalidades da entrevista. Nesse momento definem-se as equipes responsáveis
por cada entrevista e os papéis: quem ficará responsável pela gravação, agendamento com
profissionais, dias das entrevistas, fazer as perguntas e transcrever as respostas.
Após a realização das entrevistas conforme planejamento realizado junto com o
professor será o momento de avaliar as entrevistas, as dificuldades sentidas e a participação
dos entrevistados durante a realização do trabalho, esse trabalho inicia com a escuta das
gravações feitas. Neste momento os alunos poderão trazer informações presentes na entrevista
que não são possíveis de perceber por meio da escuta como: expressão corporal,
características pessoais dos entrevistados, local da entrevista etc. Concluída a parte de escuta
das entrevistas o professor junto com os alunos seleciona as falas mais significativas no que
diz respeito ao tema e objetivos estabelecidos para fazer a transcrição.
Nos módulos posteriores os alunos serão orientados com relação à realização das
transcrições das entrevistas. Nesse momento o professor reforça conhecimentos sobre os
aspectos da fala e da escrita e esclarece sobre o trabalho de transcrição a ser realizado.
Por fim, temos a produção final, os alunos irão selecionar as informações mais
interessantes das transcrições feitas com os entrevistados para a produção de um texto escrito
sobre o serviço de saúde do seu bairro. O texto será elaborado de forma coletiva por cada
grupo que foi composto para a realização das entrevistas e das transcrições.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 969
As produções serão corrigidas pelo professor considerando a perspectiva da correção
textual – interativa definida como a “forma alternativa encontrada pelo professor para dar
conta de apontar, classificar ou até mesmo resolver aqueles problemas da redação do aluno
que, por alguma razão, ele percebe que não basta via corpo, margem ou símbolo”. (RUIZ,
2001, p. 68). Os textos serão devolvidos para que os alunos façam o trabalho de reescrita
textual.
Passado pela etapa de planejamento, escrita e revisão textual, o professor pode
planejar junto com os alunos a apresentação das informações produzidas para a escola e
comunidade escolar, por meio de exposições e eventos realizados pela escola, bem como,
divulgar nos meios de comunicação local, como forma de tornar público as informações
coletadas sobre o funcionamento dos serviços de saúde do bairro, seus problemas e, assim,
chamar atenção de todos para a necessidade da participação da comunidade na reivindicação
de melhores condições de serviços de saúde para a população.
5 Considerações finais
Neste trabalho objetivamos refletir sobre a produção oral e escrita dos alunos, com
base na perspectiva da relação fala e escrita, em atividades de retextualização. Sabemos que
embora tenhamos avançado nos estudos linguísticos, e a língua falada tenha conquistado
espaço de objeto de ensino referendado pelos documentos oficiais, ainda há muitos equívocos
com relação à modalidade oral da língua, e muitas são as dificuldades que permeiam a prática
dos professores ao lidar com o ensino dos gêneros orais e suas relações com a escrita.
Como forma de contribuir com essa discussão que não se realiza apenas no plano da
teoria, mas buscando transpor os conhecimentos analisados para prática, elaboramos como
sugestão de ensino, uma proposta de produção de texto, que envolve processos de
retextualização da fala para a escrita com o gênero entrevista.
A intenção da proposta atende dois relevantes objetivos: levar os alunos a dominar o
gênero entrevista, compreendendo suas características e finalidades e colocar os alunos em
contato com a sua realidade social de forma investigava. Dessa forma, permite - se que os
estudantes conheçam as problemáticas de saúde do seu bairro, e assim, atuem como sujeitos
que a partir dessa experiência promovida pela escola, podem despertar para participação mais
ativamente das decisões politicas que dizem respeito às ações públicas da comunidade onde
vivem e que é de interesse de todos os moradores; agindo assim, como cidadãos plenos dos
seus direitos e deveres.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 970
Nesse sentido, acreditamos que a sequência didática proposta contribui para que o
professor na sua prática pedagógica possa integrar os conhecimentos referentes às
modalidades oral e escrita da língua a prática social dos alunos, na medida em que se
possibilita que o gênero entrevista seja trabalhado em situação real de uso, com finalidades
que dizem respeito à realidade social dos alunos.
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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 971
ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: ALGUMAS
REFLEXÕES [Voltar para Sumário]
Francisco Canindé de Assunção (SABERES)
Introdução
Não se pode compreender satisfatoriamente o processo de letramento e
alfabetização se não entendermos o que é educação, visto que todos os seres participam
de um processo educativo contínuo, sejam animais racionais ou irracionais. Sendo
assim, todos nós – seres humanos – vivenciamos experiências de aprendizagem nos
diversos setores da sociedade: em casa, na rua, na igreja e na escola e, com essas
experiências, aprendemos e ensinamos através da interação com as pessoas que
convivem conosco. Logo, a educação faz parte do convívio humano, e acontece mesmo
onde não há escolas, pois como afirma Brandão (2007, p. 13): por toda parte pode haver
“redes e estruturas sociais de transferência de saber de uma geração a outra, onde não
foi sequer criada a sombra de algum modelo de ensino formal e centralizado”.
A partir dessa concepção percebe-se que é dentro desse contexto educativo onde
acontecem a alfabetização e letramento. Segundo Ribeiro (2003) esses conceitos são
frequentemente confundidos ou sobrepostos, daí a importância de saber distingui-los e,
ao mesmo tempo, aproximá-los: a distinção é necessária porque a introdução, no campo
da educação, do conceito de letramento tem ameaçado perigosamente a especificidade
do processo de alfabetização; por outro lado, a aproximação é necessária porque não só
o processo de alfabetização, embora distinto e específico, altera-se e reconfigura-se no
quadro do conceito de letramento, como também este é dependente daquele.
O termo analfabetismo é bastante conhecido no Brasil para designar a pessoa
que não sabe ler ou escrever. De acordo com Soares (2009, p. 20) “o analfabeto é aquele
que não pode exercer em toda a sua plenitude os seus direitos de cidadão, é aquele que a
Nas fronteiras da linguagem ǀ 972
sociedade marginaliza, é aquele que não tem acesso aos bens culturais de sociedades
letradas”.
Este trabalho procura apresentar algumas reflexões de diferentes estudiosos que
nos levam a compreender que alfabetização e letramento são práticas distintas, porém,
indissociáveis, interdependentes e simultâneas e que a falta de compreensão desses
termos gera grande confusão em seu uso teórico e prático, trazendo sérios prejuízos ao
processo educativo.
Educação
Para se entender o que é educação é necessário compreender como se dá esse
processo que está presente em todas as sociedades, desde as mais remotas até as mais
modernas. As diferentes formas como os saberes são transmitidos às gerações futuras,
desde o homem pré-histórico até hoje, nos oferecem uma visão de como ocorre esse
processo educativo. Brandão (2007, p. 9) afirma que “não há uma forma única nem um
único modelo de educação; a escola não é o único lugar onde ela acontece e talvez nem
seja o melhor; o ensino escolar não é a sua única prática e o professor profissional não é
o seu único praticante”. Essa fala mostra que o processo educativo se dá de formas
diversas, nos mais distintos lugares e é praticado por quaisquer pessoas. A ideia de que
o surgimento da educação está associado à necessidade de ensinar e aprender,
independente do local, pessoas, etc., também era defendida por Freire (1979, p. 46) ao
declarar que “A educação tem caráter permanente. Não há seres educados e não
educados. Estamos todos nos educando. Existem graus de educação, mas estes não são
absolutos”.
Há diferentes concepções de educação, e neste momento é pertinente mencionar
a educação formal, uma vez que o objeto desta pesquisa (alfabetização e letramento)
está diretamente relacionado a essa esfera. Nesse sentido
A educação aparece sempre que surgem formas sociais de condução e
controle da aventura de ensinar-e-aprender. O ensino formal é o momento em
que a educação se sujeita à pedagogia (a teoria da educação), cria situações
próprias para o seu exercício, produz os seus métodos, estabelece suas regras
e tempos, e constitui executores especializados. É quando aparecem a escola,
o aluno e o professor. (BRANDÃO, 2007, p. 26).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 973
A falta de discernimento entre as concepções de alfabetização e letramento tem
gerado um grande problema que acaba refletindo na qualidade da educação brasileira,
uma vez que não são observadas as especificidades de cada processo, prejudicando
assim, o desenvolvimento cognitivo dos educandos.
Alfabetização
De acordo com Soares (2009), o termo Alfabetização, etimologicamente, refere-
se à aquisição do alfabeto, ou seja, ensinar a ler e a escrever. Assim, a especificidade da
Alfabetização é a aquisição do código alfabético e ortográfico, através do
desenvolvimento das habilidades de leitura e de escrita.
O processo de descoberta do código escrito pela criança passa pelas
significações que os diversos tipos de discursos têm para ela, ampliando seu campo de
leitura através da alfabetização. Antigamente, acreditava-se que a criança era iniciada
no mundo da leitura somente ao ser alfabetizada, pensamento este ultrapassado pela
concepção de letramento, que leva em conta toda a experiência que a criança tem com
leitura, antes mesmo de ser capaz de ler os signos escritos. Atualmente, não se considera
mais como alfabetizado o indivíduo que apenas consegue ler e escrever seu nome, mas
aquele que sabe escrever um bilhete simples. Essa concepção defende que
Alfabetização é o processo pelo qual se adquire o domínio de um código e
das habilidades de utilizá-lo para ler e escrever, ou seja: o domínio da
tecnologia – do conjunto de técnicas – para exercer a arte e ciência da escrita.
Ao exercício efetivo e competente da tecnologia da escrita denomina-
se Letramento que implica habilidades várias, tais como: capacidade de ler ou
escrever para atingir diferentes objetivos. (RIBEIRO, 2003, p. 91)
Através dos tempos houve um grande desenvolvimento no campo da
alfabetização, surgiram conceitos, teorias, metodologias etc. Mas, mesmo diante dessa
evolução, o Brasil e outros países não desenvolvidos, ainda enfrentam um grave
problema: a qualidade da educação básica, especialmente, a dos anos iniciais do ensino
fundamental, o que se comprova com os índices de fracasso, reprovação e evasão
escolar, que sempre existiram nessas sociedades.
Pode-se dizer que uma das causas dessa problemática é a perda da especificidade
da alfabetização, devido à falta de compreensão de novas perspectivas teóricas e suas
Nas fronteiras da linguagem ǀ 974
metodologias, que foram surgindo em oposição ao tradicional, e a grande abrangência
que se tem dado ao termo alfabetização.
[...] no Brasil a discussão do letramento surge sempre enraizada no conceito
de alfabetização, o que tem levado, apesar da diferenciação sempre proposta
na produção acadêmica, a uma inadequada e inconveniente fusão dos dois
processos, com prevalência do conceito de letramento, [...] o que tem
conduzido a um certo apagamento da alfabetização que, talvez com algum
exagero, denomino desinvenção da alfabetização [...]. (SOARES, 2009, p. 8)
Para que o processo de alfabetização seja significativo não se deve desprezar
determinada prática por estar centrada em diferentes concepções (tradicional,
construtivista, etc.), mas observar e avaliar que contribuições ela pode trazer para
auxiliar os estudantes nesse processo complexo.
Para Mortatti (2000) a alfabetização considerada como o ensino das habilidades
de “codificação” e “decodificação” foi transposta para a sala de aula, no final do século
XIX, mediante a criação de diferentes métodos de alfabetização – métodos sintéticos
(silábicos ou fônicos) x métodos analíticos (global) – que padronizaram a aprendizagem
da leitura e da escrita. As cartilhas relacionadas a esses métodos passaram a ser
amplamente utilizadas como livro didático para o ensino nessa área. No contexto
brasileiro constata-se a mesma sucessão de oposições.
Logo, a definição de alfabetização, conforme o exposto, está mais relacionada à
apropriação do alfabeto, da ortografia, ou seja, o domínio do sistema de representações
entre fonemas e letras em determinada língua.
Letramento
A expressão letramento é de uso recente no campo da educação brasileira. De
acordo com Soares (2009, p. 33), esse termo parece ter sido usado pela primeira vez no
país no ano de 1986 por Mary Kato, no livro “No mundo da escrita: uma perspectiva
psicolinguística”.
Ferreiro (2003, p. 30) diz que ao se dar preferência à expressão letramento, o
termo alfabetização virou sinônimo de decodificação. Letramento passou a ser o estar
em contato com distintos tipos de texto, o compreender o que se lê. Isso é um
retrocesso. “Eu me nego a aceitar um período de decodificação prévio àquele em que se
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 975
passa a perceber a função social do texto. Acreditar nisso é dar razão à velha
consciência fonológica”, diz a autora.
O letramento resulta, pois, da ação de ensinar ou aprender a ler e escrever, onde
a pessoa letrada é capaz de usar essas habilidades em diferentes práticas sociais. Essa
prática não se limita apenas ao domínio da leitura e escrita (decodificação e
codificação), mas o saber utilizá-los nas mais diferentes situações que vivenciamos na
sociedade.
Marcuschi (2007, p. 15) é enfático ao afirmar que “não se pode confundir as
diversas manifestações sociais do letramento com a escrita como tal, pois esta não
passaria de uma das formas de letramento”. Segundo ele é pertinente a expressão os
letramentos, no plural, de modo a demarcar a existência de diferentes práticas de
letramentos e níveis variados de letramentos: “deve-se ter imenso cuidado diante da
tendência à escolarização do letramento, que sofre de um mal crônico ao supor que só
existe um letramento. O autor acrescenta que o letramento não é o equivalente à
aquisição da escrita. Existem “letramentos sociais” que surgem e se desenvolvem à
margem da escola, não precisando por isso serem depreciados”. (2007, p. 15)
O letramento também é compreendido por Kleiman (2008, p. 18) como um
fenômeno mais amplo e que ultrapassa os domínios da escola. Segundo ela, “[...]
podemos definir hoje o letramento como um conjunto de práticas sociais que usam a
escrita, como sistema simbólico e como tecnologia, em contextos específicos, para
objetivos específicos”. O conceito da autora enfatiza os aspectos social e utilitário do
letramento.
Tfouni (2010) relaciona, assim, letramento com o desenvolvimento das
sociedades. Nesse sentido, a autora explica que, em termos sociais mais amplos, o
letramento é apontado como sendo produto do desenvolvimento do comércio, da
diversificação dos meios de produção e da complexidade crescente da agricultura. Ao
mesmo tempo, dentro de uma visão dialética, pode-se dizer que esse processo constitui-
se uma causa das transformações históricas profundas, como o aparecimento da
máquina a vapor, da imprensa, do telescópio, e da sociedade industrial como um todo,
conforme descreve Soares (2009, p.11).
Entretanto, o que lamentavelmente parece estar ocorrendo atualmente é que a
percepção que se começa a ter, de que, se as crianças estão sendo, de certa
Nas fronteiras da linguagem ǀ 976
forma, letradas na escola, não estão sendo alfabetizadas, parece estar
conduzindo à solução de um retorno à alfabetização como processo
autônomo, independente do letramento e anterior a ele.
Assim, letramento decorre das práticas sociais que leituras e escritas exigem nos
diferentes contextos que envolvem a compreensão e expressão lógica e verbal. É a
função social da escrita. Enquanto que a alfabetização se refere ao desenvolvimento de
habilidades da leitura e escrita.
Analfabetismo
É importante observar que Ferreiro (2002, p. 16) não nega a preocupação com o
letramento, mas sim, aponta para a necessidade dos países pobres se preocuparem,
prioritariamente, com o analfabetismo.
Os países pobres não superaram o analfabetismo, os ricos descobriram o
iletrismo. [...] Iletrismo é o novo nome dado a uma realidade muito simples:
a escolaridade básica universal não assegura a prática cotidiana da leitura,
nem o gosto de ler, muito menos o prazer da leitura. Ou seja, há países que
têm analfabetos (porque não asseguram um mínimo de escolaridade básica
a todos seus habitantes) e países que têm iletrados (porque, apesar de terem
assegurado esse mínimo de escolaridade básica, não produziram leitores em
sentido pleno).
A palavra analfabetismo apresenta o prefixo de negação a(n), o que nos leva a
deduzir que a palavra mais adequada para indicar o oposto a essa situação seria
alfabetismo. O termo alfabetismo foi utilizado na literatura especializada, como se
observa neste trecho, escrito em 1995, do livro “Alfabetização e Letramento” onde
Soares (2011, p. 29) esclarece:
O surgimento do termo literacy (cujo significado é o mesmo de alfabetismo),
nessa época, representou, certamente, uma mudança histórica nas práticas
sociais: novas demandas sociais pelo uso da leitura e da escrita exigiram uma
nova palavra para designá-las. Ou seja: uma nova realidade social trouxe a
necessidade de uma nova palavra.
Porém essa palavra não se estabilizou na literatura da área e foi, gradativamente,
sendo substituída pelo termo letramento. No entanto, o seu oposto, analfabetismo, é
largamente utilizado e compreendido facilmente, como explica Soares (2011, p. 19)
É significativo refletir sobre o fato de não ser de uso corrente a palavra
alfabetismo, "estado ou qualidade de alfabetizado”, enquanto seu contrário,
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 977
analfabetismo, "estado ou condição de analfabeto", é termo familiar e de
universal compreensão. O que surpreende é que o substantivo que nega –
analfabetismo se forma como prefixo grego a(n) – que denota negação – seja
de uso corrente na língua, enquanto o substantivo que afirma – alfabetismo –
não seja usado.
Como se percebe, a autora questiona a não utilização do termo alfabetismo –
oposto de analfabetismo, para expressar a condição de uma pessoa alfabetizada. No
entanto, vale lembrar que o emprego desse termo ou do seu substituto – letramento –
deve estar interligado ao processo e alfabetização para poder dar significado a essa
procedimento de aquisição e uso adequado dos mecanismos de leitura e compreensão
dos diferentes textos que circulam na sociedade.
Integração entre alfabetização e letramento
Os processos de alfabetização e letramento não podem ser desenvolvidos de
forma independente, pelo contrário, a introdução da criança no mundo da leitura e
escrita deve acontecer de forma integrada. Embora cada um desses eixos tenha sua
especificidade, tais atividades devem se desenvolver articuladamente. Desenvolver o
letramento sem a alfabetização ou vice-versa, leva a criança a ter uma visão distorcida
do mundo da escrita.
Na metodologia freireana de se alfabetizar, é possível compreender a
importância da indissociabilidade e simultaneidade desses dois processos. Em seu
método de alfabetização, ele propõe que se parta daquilo que é concreto e real para o
sujeito, tornando a aprendizagem significativa, mas utilizando também os mecanismos
de alfabetização. Freire (1996) destaca que o sujeito quanto mais amplia sua visão de
mundo, mais se liberta da opressão, ou seja, o sujeito letrado que já possui seus
conhecimentos prévios, com um determinado ponto de vista, quando alfabetizado, pode
modificar seus pensamentos, ampliando-os de forma que passa a refletir criticamente
sobre a prática social. Freire acreditava ser fundamental que as pessoas compreendam o
seu lugar no mundo e sua função social nele.
Sendo assim, o letramento vai além do ler e escrever, ele tem sua função social,
enquanto a alfabetização encarrega-se em preparar o indivíduo para a leitura e um
desenvolvimento maior do letramento do sujeito. Nessa perspectiva alfabetização e
Nas fronteiras da linguagem ǀ 978
letramento se completam e enriquecem o desenvolvimento do aluno. Já dizia Paulo
Freire (2001) que aprender a ler e a escrever é aprender a ler o mundo, compreender o
seu contexto numa relação dinâmica vinculando linguagem e realidade e ser
alfabetizado é tornar-se capaz de usar a leitura e a escrita como meio de tomar
consciência da realidade e de transformá-la.
Alfabetizar letrando é uma prática necessária nos dias atuais, para que se possa
atingir a tão almejada educação de qualidade, e produzir um ensino significativo, em
que os educandos não sejam apenas seres passivos que recebem conhecimentos prontos,
mas que possam ser pessoas atuantes, dotadas de censo crítico e, portanto, capacitadas
para exercerem sua cidadania na sociedade em que vivem.
Considerações finais
Embora a educação brasileira esteja enfrentando um momento difícil, onde se
percebe a falta de qualidade da alfabetização, é necessário e urgente o planejamento de
novas práticas que contemplem essa clientela que está sofrendo diretamente as
consequências de uma alfabetização ineficaz: os alunos. Os professores alfabetizadores
precisam estar habilitados, serem competentes, criativos e cientes de sua
responsabilidade de formação dos sujeitos como intelectuais e cidadãos comprometidos
com a transformação social.
Também e imprescindível que sejam fortalecidas as discussões sobre o tema
alfabetização e letramento nos cursos de formação de docentes, nas reuniões
pedagógicas, formação continuada, a fim de que se busquem soluções para problemas
específicos da alfabetização e letramento, de forma a proporcionar uma educação de
qualidade para as crianças que estão ingressando na escola. É importante ressaltar a
ideia de Mortatti (2004, p. 107) quando afirma que “[...] somente o fato de ser
alfabetizada, não garante que a pessoa seja letrada”.
Com base nas reflexões dos estudiosos citados neste artigo pode-se dizer que
alfabetização e letramento são dois processos distintos que devem acontecer de forma
integrada, considerando a alfabetização como um processo individual de aquisição da
leitura e escrita e o letramento como um processo mais amplo, relacionado aos usos da
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 979
leitura e da escrita por um indivíduo ou um grupo de indivíduos em suas práticas
cotidianas nas diferentes esferas sociais.
Para Soares (2000, p. 42) "alfabetizar letrando significa orientar a criança para
que aprenda a ler e a escrever levando-a a conviver com práticas reais de leitura e de
escrita".
Diante do exposto acredita-se também que é possível mudar o atual quadro da
educação brasileira, atingir a qualidade de ensino nas classes de alfabetização, com
práticas educacionais inovadoras, que proporcionem simultaneamente o
desenvolvimento da alfabetização e do letramento dos educandos, a fim de que possam
ser sujeitos atuantes na sociedade e exercerem mais a sua cidadania.
Referências
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação. 49 ed. São Paulo: Brasiliense,
Coleção Primeiros Passos, 2007.
FERREIRO, Emília. Passado e presente dos verbos ler e escrever. São Paulo: Cortez,
2002.
______. “Alfabetização e cultura escrita”, Entrevista concedida à Denise Pellegrini
In Nova Escola – A revista do Professor. São Paulo, abril, maio/2003.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
______. Educação e mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
______. A importância do ato de ler. 41 ed. São Paulo: Cortez, 2001.
KLEIMAN, Angela B. Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a
prática social da escrita. Campinas: Mercado das Letras, 2008.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. 7
ed. São Paulo: Cortez. 2007.
MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Os sentidos da alfabetização (São Paulo: 1876-
1994). São Paulo: Ed. UNESP; CONPED, 2000.
______. Educação e Letramento. São Paulo: UNESP, 2004.
RIBEIRO, V. M. (org.) Letramento no Brasil. São Paulo: Global, 2003.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 980
SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. 3 ed. Belo Horizonte:
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______. Letrar é mais que alfabetizar. Jornal do Brasil: São Paulo, 2000.
______. Alfabetização e letramento. 6 ed. São Paulo: Contexto, 2011.
TFOUNI, Leda Verdiani. Letramento e alfabetização. 9 ed. São Paulo: Cortez, 2010.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 981
DO CORDÃO À WEB: O CORDEL-NOTÍCIA NA
INTERNET [Voltar para Sumário]
Francisco Leandro de Assis Neto (UEPB)
As noções de gênero textual, bem como a de tipologia que lhe é correlata, vêm
sendo amplamente debatidas dede a década de 60, quando surgiu a linguística textual, a
análise conversacional e a análise do discurso. Os gêneros textuais passam a ser
observados como práticas sócio-históricas que contribuem na organização e
estabilização das atividades comunicativas cotidianas, por serem entidades sócio-
discursivas e formas de ação social incontornáveis em qualquer situação comunicativa.
Eles surgem, situam-se e integram-se funcionalmente nas culturas em que se
desenvolvem e caracterizam-se bem mais pelas suas funções comunicativas, cognitivas
e institucionais do que por suas peculiaridades lingüísticas estruturais. Faz-se necessária
então uma reflexão do gênero, por percebemos uma mudança, ainda que sutil, na forma
de circulação dos cordéis – eles vêm sendo comercializados e divulgados nos meios
digitais, por exemplo, e consumidos por um público novo: de internautas. Ainda
pretendemos apontar o cordel também como uma fonte de informação se assemelhando
ao gênero jornalístico mais precisamente com o tipo de notícia.
Bolter (1991) observa que a introdução da escrita conduziu a uma cultura letrada
nos ambientes em que a escrita floresceu. Na contemporaneidade, percebemos existir
semelhanças na introdução da escrita eletrônica nos campos culturais tradicionais,
inserindo o sujeito no que pode ser denominado cultura eletrônica. Esse impacto na
cultura letrada e nos consumidores de informação que esta nova modalidade produz
pode ser visto cotidianamente, basta observar o volume de expressões começadas por
“e-” como observa Crystal (2001, p.21), sendo eleita a expressão do ano em 1998.
A feira livre, os centros de cultura nordestina, casas de artesanato e outros
estabelecimentos urbanos populares do Nordeste, ou representantes de sua cultura,
foram por décadas os locais de venda e consumo da literatura de cordel. Com o advento
Nas fronteiras da linguagem ǀ 982
das novas mídias de comunicação, entre elas a internet, novas estratégias de divulgação
também foram adotadas por quem produz tal literatura. A prática de utilizar o meio
virtual como veículo de divulgação das suas produções por parte dos cordelistas pode
ser percebida na internet ao se digitar a palavra “cordel” no buscador Google e se obter
aproximadamente 10.100.000 de resultados relacionados ao assunto. Esses resultados
abrangem toda e qualquer menção à palavra, contudo podemos observar um grande
número de páginas pessoais de cordelistas (blogs), sites dedicados à poesia popular,
trabalhos publicados acerca do assunto etc.
A relação do cordelista com sua arte e seu público se adapta à realidade, quando
existe um considerável número de blogs, comunidades, sites, nos quais o internauta
pode opinar, discutir as produções, dar e escolher motes para a poesia. Nesta última
opção poderíamos citar o site www.cordelonline.com.br, no qual o internauta participa
ativamente desde o processo de produção escolhendo ou votando no mote, até as
discussões acerca do produto acabado, o cordel.
As múltiplas vozes contidas no processo de produção neste novo processo
convergem para o conceito bakhtiniano de polifonia, no qual autor e leitor se fundem
harmoniosamente numa entidade hipertextual, evidenciando múltiplas vozes sociais que
se entrelaçam. (BAKHTIN, 2000)
A necessidade de acompanhar as evoluções das mídias ou novas tecnologias recria
gêneros artísticos, os adapta a uma nova realidade, transmuta sua natureza em novos
aspectos a serem analisados.
Na América Latina, como aponta Canclini (1998), a cultura popular como forma
de sobrevivência sempre buscou uma forma de se legitimar, por ser vista como uma
cultura da margem. Este processo de legitimidade, que em certos momentos pode se
confundir com o de popularização tem usado no seu percurso todos os mecanismos
midiáticos para a manutenção da sua sobrevivência. Vislumbrar o cordel no meio digital
é, antes de tudo, uma forma de manter esse gênero artístico vivo, latente como
representante da cultura de um povo. Não podemos prever a extinção dos folhetos
convencionais, bem como o fim das bibliotecas físicas ou sua não utilização. Outrossim,
o cordel virtual não põe em “xeque” a natureza, tampouco a legitimidade da prática da
tradição do folhetim. O hipertexto obtido por essas novas práticas – através da mistura
de vozes autor/leitor, e sua interação no meio digital – revitaliza a arte do cordel, e o
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 983
coloca em um universo global, possibilitando o acesso que era limitado com os antigos
meios de consumo.
A análise dos processos comunicacionais das classes socialmente desfavorecidas
é algo relativamente ainda novo no nosso país, teve início em meados da década de
1960, quando pela primeira vez se denominou esse tipo de processo como
Folkcomunicação – estudos dos agentes e dos meios populares de informação de fatos e
de idéias.
Da mesma maneira que na maioria das sociedades modernas existem classes
sociais diferentes, a maneira como a informação chega até elas também se diferencia.
As classes sociais dominantes têm à sua disposição um aparato bastante desenvolvido.
TV-a-cabo, assinaturas de revistas, jornais e periódicos, acesso à internet, livros, redes
sociais em aparelhos móveis de comunicação etc. Todo esse aparato permite que as
informações adquiridas possam ser confrontadas a outras fontes, sejam abordadas por
um número maior de críticos da mídia, ou seja, o senso crítico pode ser trabalhado de
maneira a se ter uma seleção e uma análise plurais acerca das informações obtidas. Em
contrapartida, as camadas menos favorecidas dessa sociedade não tem o mesmo acesso
a toda essa gama de recursos. Contudo, esse público consegue, de maneira eficaz,
elaborar recursos que os permitem expressar suas idéias, sentimentos, modos de agir,
ideologias etc. Assim a produção da notícia, e a forma como ela é abordada, não é
exclusivamente das classes dominantes, as classes subalternas também constroem seus
meios de divulgação, inclusive meios de divulgação impressos, aqui nos referindo ao
cordel. Não temos a intenção de defender este ou aquele meio de produção midiática,
seja ele elitista, popular ou subalterno, uma vez que as notícias veiculadas pela classe
dominante não necessariamente tratam exclusivamente de sua condição. Da mesma
forma, não seria coerente dar credibilidade às notícias veiculadas por meios midiáticos
populares apenas por serem produzidas pelo povo.
O cordel pode ser interpretado dentro dos processos descritos acima como um
veículo de duas faces; poético-artístico e jornalístico – dentro da esfera temática (ASSIS
NETO, 2011) proposta neste trabalho. O cordel-notícia, como o denominamos, seria
uma espécie de jornal popular. Utilizamos o termo cordel-notícia por percebermos
nestes folhetos a recontextualização de fatos narrados nas mídias convencionais. Esta
categoria de cordel se apropria de fatos noticiados em meios midiáticos convencionais
Nas fronteiras da linguagem ǀ 984
como: jornais impressos, rádio e televisão e os recontextualizam de forma crítica e
particular. Rezende (2005) aponta que o cordel contemporâneo cumpre um papel
engajado no que se refere às questões sócio-políticas atuais, isto ocorre de duas
maneiras: o comentário de fatos ocorridos no Brasil e no mundo, ou a narrativa acerca
de problemas contemporâneos, acrescentando-lhe juízo de valor – esses, em muitos
momentos, são estetizados numa linguagem jocosa, preconceituosa, principalmente
quando a “notícia” aborda questões de gênero.
A prática da recontextualização promovida pelos cordelistas de materiais
simbólicos veiculado nas grandes mídias está de acordo com a observação e Thompson
(1998) acerca da recepção de produtos da mídia como uma atividade situada e criativa.
Situada, porque mesmo com a globalização dos produtos midiáticos, a abordagem dada
à noticia no cordel é localizada, ela sempre está inserida em contextos específicos no
tempo e no espaço. Criativa porque os autores trabalham o material midiático dos quais
se apropriam utilizando-os de acordo com seus propósitos, ou seja, são figuras
participativas e não simples espectadores da notícia. Thompson (1998) ainda aponta que
as mensagens podem ser retransmitidas para outro contexto de recepção, e
transformadas, sobretudo, por um processo de repetição, reinterpretação, comentário,
riso e crítica. A relação do cordel com a mídia não se limita apenas aos cordéis-online,
basta lembrar que cordéis relacionados com a morte do presidente Getúlio Vargas, em
1954, venderam em 24 horas aproximadamente 70 mil exemplares, tiragem bastante
elevada para uma obra até nos dias atuais. Quando utilizamos a nomenclatura cordel-
notícia, nos referimos aqueles que são construídos nessa perspectiva, encontrados na
internet, não estamos tentando criar um gênero novo, mas sim tentando classificar um
tipo de produção distinta dentro das esferas temáticas do cordel, a partir do suporte em
que o leitor o tem como objeto de estudo, da temática elaborada nos moldes clássicos ou
básicos da notícia.
O corpus de análise escolhido para este momento foi recolhido online, posto que
na rede, mas não só nela, observamos a velocidade e o imediatismo como características
da novidade da notícia. Dentre o grande número de autores, Henrique César Pinheiro
nos chamou atenção por recontextualizar acontecimentos sociais relacionado às
questões de gênero – eminentemente polêmicas – o seu trabalho abrange desde medidas
implementadas na saúde pública até transgressões sexuais. Os títulos escolhidos foram:
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 985
Em bacanal, sujeito é comido e pede indenização (2011), Governo compra lubrificante
para homossexuais (2011).
O fenômeno cordel-notícia
O autor dos cordéis selecionados não só se apropria de acontecimentos sociais
imprimindo-lhes outra contextualização, mas também agrega à sua obra
posicionamentos críticos a respeito do tema tratado, assim o diferenciando da posição
do jornalista habitual. Acerca desta posição jornalística Charaudeau (2009, p. 157)
aponta:
“A posição do jornalista é a de testemunha, o que aumenta sua
responsabilidade em relatar fielmente o acontecimento e, ao mesmo tempo, o
compromete ao poder prescindir da visada de captação.”
O cordel enquanto artefato literário possibilita percorrer caminhos de análises,
talvez insondáveis, por meio de outras fontes documentais. Percorremos um destes
caminhos comparando o modo como o cordelista enuncia sua obra ao modo como ao
assunto verídico aparece no meio midiático jornalístico oficial. Vejamos a notícia
publicada no dia 27/07/2004:
TJ-GO determina regras para orgias
BRASILIA. A sentença é insólita e inédita. O Tribunal de Justiça de Goiás
decidiu que o homem que, por vontade própria, participar de uma sessão de
sexo grupal e, em decorrência disso, for alvo de sexo passivo, não pode
declarar-se vítima de crime de atentado violento ao pudor. O acórdão do TJ
de Goiás, publicado no dia 6, é um puxão de orelhas no autor da ação que
reclamava da conduta de um amigo.
Luziano Costa da Silva acusou o amigo José Roberto de Oliveira de ter
praticado contra ele “ato libidinoso diverso da conjunção carnal”. Silva
alegou que, como estava bêbado, não pôde se defender. Por meio do
Ministério Público, recorreu à justiça. Mas o tribunal concluiu que não há
crime, já que a suposta vítima teria concordado em fazer sexo grupal.
O acórdão dos desembargadores é categórico: “A prática de sexo grupal é ato
que agride a moral e os bons costumes minimamente civilizados. Se o
indivíduo, de forma voluntária e espontânea, participa de orgia promovida
por amigos seus, não pode ao final do contubérnio dizer-se vítima de
atentado violento ao pudor. Quem procura satisfazer a volúpia sua ou de
outrem, aderindo ao desregramento de um bacanal, submete-se
conscientemente a desempenhar o papel de sujeito ativo e passivo, tal é a
inexistência de moralidade e recto neste tipo de confraternização”.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 986
Para o Tribunal de Justiça do estado, quem participa de sexo grupal já pode
imaginar o que está por vir e não tem o direito de se indignar depois. “(...)
não pode dizer-se vítima de atentado violento ao pudor aquele que ao final da
orgia viu-se alvo passivo de ato sexual”, concluíram os desembargadores.
Para o magistrado, todos do grupo estavam de acordo com a prática, que
definiu como desavergonhada. “A literatura profana que trata do assunto dá
destaque especial ao despudor e desavergonhamento, porque durante a orgia
consentida e protagonizada não se faz distinção de sexo, podendo cada
participe ser sujeito ativo ou passivo durante o desempenho sexual entre
parceiros e parceiras. Tudo de forma consentida e efusivamente festejada”,
esclareceu o relator” (Em:<HTTP://www.rrauri.com/index.php?act=...f=12&t
=8264&hl= > Acesso em 10, out. de 2010)
A notícia acima forneceu o mote para a recontextualização da realidade do fato por
Pinheiro no cordel intitulado Em bacanal, sujeito é comido e pede indenização
(PINHEIRO, 2010). A forma enunciativa com a qual o autor introduz o assunto a ser
tratado no seu cordel se assemelha à forma utilizada pelo texto jornalístico, situando o
assunto e resumindo-o:
Um sujeito em Goiás
Foi pra sexo grupal
Pensando só em meter vara
Mas lá também levou pau
E depois de ser comido
Apelou para o tribunal
(...)
Como foi contra vontade
“Reparação já” Pedia .[...]
(...)
O Juiz assim não entendeu
Disse que quem vai para orgia
Pra fazer sexo grupal
Não tem qualquer regalia [...]
(...)
Mas pior é que isso
Entulha o judiciário.
E o sujeito comido
Quis se tornar milionário
Mas vai ficar conhecido
Como veado e otário. (PINHEIRO, 2010)
São reconhecíveis as semelhanças entre a matéria publicada e a obra de Pinheiro,
vez que a primeira funcionou como mote da segunda. Podemos perceber como o
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 987
cordelista, assim como o repórter, introduz o assunto situando o fato a ser narrado,
indicando quem participa e qual o desfecho de suas ações. Entretanto, a liberdade da
qual goza o poeta é revelada na última estrofe de sua obra quando imprime seu ponto de
vista acerca da “desventura” do proponente da ação. Utilizando os vocábulos veado e
otário, por exemplo, ele atesta que todo aquele que mantém práticas eróticas paralelas à
heteronormatividade, e isto vêm a público, pode ser rebaixado, marginalizado.
Necessariamente, isto não implica que seja um apoiador desta postura, todavia, escreve
para um público que pode corroborar desse ponto de vista, ou provocar discussão junto
aqueles que divergem disto. Seja de um modo ou de outro, as discussões (favoráveis ou
não) promove a obra do poeta, o faz conhecido.
Uma relação semelhante de contextualização da notícia ocorre com a obra:
Governo compra lubrificante pra homossexuais. O autor neste cordel se utiliza de uma
medida do Ministério da saúde para construir a recontextualização crítica acerca do
tema. A notícia intitulada: Governo distribuirá 15 milhões de saches de gel lubrificante
em 2009 foi publicada no site da revista Época no ano de 2009.
“Governo distribuirá 15 milhões de saches de gel lubrificante em 2009”
O Ministério da Saúde gastou R$ 1,1 milhão no final do ano passado com a
compra de 15 milhões de saches de gel lubrificante que devem ser
distribuídos durante o ano de 2009. O produto é indicado para o uso em
relações anais de grupos mais expostos ao contágio do HIV: travestis,
homossexuais e profissionais do sexo.
O gel torna o uso do preservativo mais seguro nas relações sexuais de maior
atrito e maior risco de infecção, tais como são as relações anais. Nesses
casos, o produto diminui as chances de a camisinha se romper, oferecendo
assim proteção para os parceiros.
A primeira compra de sachês de gel foi feita em 2001, quando foram
adquiridas 200 mil unidades. Segundo o Programa Nacional de DST, esse
número vem aumentando, principalmente, pela ampliação do público que o
recebe. Antes o insumo se destinava a travestis e outros homens que fazem
sexo com homens. Hoje, mulheres no climatério e as pacientes de AIDS em
terapia anti-retroviral – por terem menos lubrificação vaginal – também se
beneficiam do produto.
Já foram adquiridos até o momento 21,2 milhões de sachês de gel lubrificante
– de 2001 a 2008. Desse total, a última compra foi de 15 milhões de unidades
(os produtos ainda serão distribuídos sob demanda, de acordo com a
necessidade de cada estado). O custo aproximado de cada unidade é de R$
0,21 (esse valor de acordo com cada licitação).” (Em
HTTP://revistaepocacasp.globo.com/Revista/época/SP/0..EmI25899-
15571,00-
GOVERNO+DISTRIBUIDORA+MILHOES+DE+SACHES+DE+GEL+LU
BRIFICANTE+EM.html> Acesso: 10 de outubro de 2010)
Nas fronteiras da linguagem ǀ 988
A linguagem utilizada na notícia é própria do jornalismo, imparcial, objetiva e
direta, posicionando o fato narrado no contexto de espaço e tempo: O Ministério da
Saúde gastou R$ 1,1 milhão no final do ano passado com a compra de 15 milhões de
saches de gel lubrificante que devem ser distribuídos durante o ano de 2009. A
contextualização que o cordelista faz acerca do fato noticiado, de fato, não possui a
mesma parcialidade velada que o texto jornalístico carrega. Nela o autor já expõe seu
ponto de vista crítico, parcialidade explicita, sobre o tema abordado.
“Brasil resolveu comprar
Muito gel lubrificante,
Vai gastar muito dinheiro
Com quem for dar o bufante [...]
(...)
Ministério da saúde
Vai fazer licitação
Pra comprar lubrificante
Pra fazer “ensebação”
Do pau que for entrar
No cu de qualquer cristão
(...)
Não importa se o sujeito
Use o rabo por profissão
Mas quem pagará a conta
Será qualquer cidadão
Assim como fizeram
Com o tal de mensalão”
(PINHEIRO, Henrique César. Governo compra lubrificante para
homossexuais. Em: HTTP;//WWW.usinadeletras.com.br/exibelotexto.php
cod =11086&cat=Cordel. Acesso: 10/03/2010)
Nas estrofes acima, o autor faz um pequeno introdução ao mote de sua poesia,
contextualizando-a como no texto jornalístico: Brasil resolveu comprar/Muito gel
lubrificante/Vai gastar muito dinheiro/...Ministério vai fazer licitação. A palavra
“Brasil” funciona como sinônimo para governo, não só dando uma idéia de local do
acontecimento, mas a coloca sob a ótica de instituição, posteriormente o cordelista
torna-se mais objetivo, mencionando o autor da medida Ministério da Saúde. A
expressão muito dinheiro também funciona com um instrumento de contextualização da
medida, posto que ela se refere à quantia de 1,1 milhões gasto pelo Ministério da Saúde,
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 989
mencionada no texto jornalístico. Contudo, percebemos uma diferença básica entre o
enunciado da notícia e o que foi enunciado nas estrofes: estas estão carregadas de
indicadores que aludem à posição do autor diante do tema, ao utilizar expressões como:
quem for dar o bufante/ Pra fazer ensebação/ Use o rabo por profissão.
Marcas de sua posição acerca do tema ficam evidenciadas nestas expressões, uma
vez que, por serem consideradas palavrões, tendem a manter uma relação pejorativa
como o sujeito, parte dele, ou prática a que se refere. Bufante, segundo Mário Souto
Maior no seu Dicionário do palavão e termos afins classifica o termo como: Ânus
(Nordeste, Centro-Oeste, Goiás) (p.45), logo, a prática de Dar o Bufante é uma outra
expressão linguística, de teor semântico mais pejorativo porque agride diretamente o
sujeito envolvido nessa prática, para significar o ato de fazer sexo anal, com a qual a
sociedade mantém uma relação ainda preconceituosa. “Fazer ensebação” significa o ato
de lubrificar os órgãos genitais para a prática sexual, afim de não causar danos aos
praticantes e reduzir o risco de contágio por DST’s/AIDS. “Usar o rabo por profissão”
pode significar a prática da prostituição tanto feminina quanto masculina. O escárnio
produzido por essas expressões provocam riso, uma vez que um dos efeitos do palavrão
também é o riso. Contudo, também demonstra o juízo de valor que o autor imprime nos
seus versos. Este juízo de valor é o que difere sua obra do texto jornalístico. No entanto,
este recurso é válido e não o faz avesso totalmente à notícia primeira, uma vez que já
observamos em Thompson (1998) que nos processos de recriação e retransmissão de
informações dois dos aspectos citados são os de riso e crítica.
Como vimos, o processo de produção do cordel que se apropria da notícia é
dotado de outros dois fatores, um de reconstrução da notícia, outro de desconstrução.
Sobre isso Charaudeau aponta:
“... o discurso relatado se constrói ao término de uma dupla operação de
reconstrução/desconstrução. De reconstrução, porque se trata de tomar um
dito para reintegrá-lo a um novo ato de enunciação, passando esse dito a
depender do locutor-relator. Assim, o discurso relatado opera uma
transformação enunciativa do já dito e, ao mesmo tempo, aponta para uma
apropriação ou rejeição deste último pelo locutor-relator. De desconstrução
porque o discurso relatado mostra que se trata realmente de um dito tirado de
um outro ato de enunciação, distinguindo o dito relatado do dito de origem e
operando uma reificação desde o último, que serve para provar a
autenticidade do discurso do relator”.(CHARAUDEAU, 2009. p.163)
Nas fronteiras da linguagem ǀ 990
Desta forma, o texto criado pelo cordelista não é uma cópia fiel do produto
midiático do qual ele se apropria. Com efeito, é outra obra, constituindo um ato de
enunciação diferente, norteado por outro enunciador. Ela desconstrói algumas imagens
contidas nos textos de origem inserindo novas imagens e informações, transformando o
enunciado. Contudo, o texto reconstruído estabelece uma relação semântica com seu
texto de origem. Nos casos apresentados, mesmo com a modificação das estratégias
enunciativas, aspectos da notícia nas obras de cordel foram preservado, no que diz
respeito à estrutura e ao conteúdo da notícia. As informações contidas nos textos
jornalísticos, através de uma reformulação, foram, de certa forma, preservadas em sua
ausência, mesmo o autor imprimindo seu ponto de vista crítico acerca do assunto.
Com as mudanças aceleradas nos meios midiáticos e o surgimento de novos
meios, é uma questão de “sobrevivência” a adaptação dos gêneros já existentes a esta
nova forma de exploração midiática. É na internet que o cordelista encontra a nova
geração de seu público e também no meio digital nasce uma nova geração de
cordelistas, que encontra nesse espaço um local de divulgação de um dos gêneros mais
antigos da literatura popular. Esta observação pode ser percebida nas palavras de
Thompson:
“Num mundo permeado pelos meios de comunicação, tradições se tornam
mais e mais dependentes de formas simbólicas mediadas, elas foram
desalojadas de lugares particulares e implementadas na vida social de novas
maneiras”. (THOMPSON, 1998, p.178)
Podemos perceber o “desenraizamento” e a nova “ancoragem” das tradições que
eles as modificam, descaracterizando sua essência, tornando-as inautênticas, nem as
condenam ao esquecimento ou extinção. Contudo, não nos enganamos imaginando que
uma nova “moda” surgiria entre as novas gerações, fazendo-os entrar na rede à procura
de folhetos de cordéis nem interessados em produzir cordéis online. Concordamos que
ao se alocar o cordel na rede o acesso à leitura seria rápido e imediato, mas hoje, a
procura ainda é feita por um público específico, um público interessado nas belas artes
ou nas belas letras, por conseguinte esse tipo de literatura é costumeiramente veiculado
em sites que se dedicam à arte literária e/ou representantes da cultura nordestina.
Assim, uma das possíveis estratégias utilizadas pelos autores seria a construção de
narrativas, como já foi visto, reestruturando e recontextualizando acontecimentos
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 991
sociais de forma crítica, muitas vezes irônica e jocosa, a fim de alcançar visibilidade
também em meios ainda não específicos da literatura de cordel como a internet. Aliado
a esses recursos está o comentário (crítica) do autor sobre o mote extraído da notícia.
Por meio do comentário o autor difere sua obra como uma simples narrativa em verso
de um fato ocorrido na sociedade. Neste momento nos deteremos à análise dos
comentários ou críticas feitas a respeito dos acontecimentos noticiados que funcionaram
de mote para sua produção.
Os comentários põem o leitor em questão: exige o raciocínio intelectual por
parte do leitor, um posicionamento contra ou a favor, e desta atividade não há ninguém
no fim que saia incólume (o comentário é histérico), assim aponta Charaudeau (2009).
Entendemos, então, que o cordelista utilizam termos que são familiares às
pessoas quem se dirige sua obra a fim de atingirem o maior número de leitores, eruditos
ou não. Os gêneros textuais são sensíveis à mudanças nas práticas sociais de que são
oriundos. Segundo Bakhtin (2000 [1979] p.285), “de uma forma imediata e ágil,
refletem a menor mudança na vida social”. A vida social é construída sobre uma rede de
práticas sociais. Deste modo, as transformações sofridas pelo gênero cordel refletem
transformações na articulação dessa rede de práticas sociais. Procuramos com este
trabalho, perceber o cordel como uma das engrenagens entre literatura popular e as
mídias “modernas”, bem como refletir os folhetos de maneira a não “cristalizá-lo” no
tempo e espaço, como faz a maioria dos manuais de literatura e crítica literária, tendo-o
como um gênero que segue os rumos da evolução dos meios midiáticos e dos produtos
culturais gerados pela globalização.
Referências
BAKHTIN. M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
BOLTER, J. D. The computer as a new writing space. In: Vitanza, Victor J.
CyberReader. Arlington: Longman, 1999.
CANCLINI, N. G. Culturas Híbridas – estratégias para entrar e sair da modernidade.
Tradução de Ana Cristina Lessa e Heloísa Pezza Cintrão. São Paulo: EDUSP, 1998.
CHARAUDEAU, P. Discursos das Mídias. Tradução de Ângela S. M. Corrêa. São
Paulo: Contexto, 2009.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 992
CRYSTAL, D. Language and the internet. Cambridge: Cambridge University Press,
2001.
PINHEIRO, Henrique César. Em bacanal, sujeito é comido e pede indenização. Em:
<http://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.php?cod=11247&cat=Cordel>. Acesso:
10 de março de 2010.
PINHEIRO, Henrique César. Governo compra gel lubrificante para homossexuais. Em:
<http://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.php?cod=11086&cat=Cordel> . Acesso:
10 de março de 2010.
RESENDE, V. M. Literatura de cordel no contexto do novo capitalismo: o discurso
sobre a infância nas ruas. Dissertação de Mestrado. Universidade de Brasília. Rio de
Janeiro: Graal, 2005.
THOMPSON, J. B. A mídia e a modernidade. Petrópolis: Vozes, 1998.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 993
AS TRANSPARÊNCIAS DO TERROR [Voltar para Sumário]
Gabriel D. M. Moura Freitas (GELISC/CNPq/UFPB)
A epígrafe do conto “A casa de vidro”, de Ivan Angelo, é representativa de um
dos aspectos centrais que caracterizam a narrativa. Este pequeno excerto relata castigos
públicos cuja severidade teria funcionado como “remédio” para “quaisquer revoltas” no
Brasil colonial. Assim, açoites sob o pelourinho, enforcamentos e esquartejamentos em
praça pública eram realizados para proporcionar “terror e exemplo” naquela população.
Neste sentido, o caráter arcaico destas práticas punitivas é ressaltado não somente pelo
breve inventário delas, mas, principalmente, pela ortografia antiga evidenciada naquele
texto.
Ao relacionarmos este fragmento com o conjunto da trama, perguntamos qual
seria o sentido de sua presença, a possível funcionalidade ou simbologia dele naquele
contexto narrativo. Afinal, em um primeiro momento, o relato de modalidades arcaicas
de punição pareceria despropositado, considerando-se uma ordem totalitária
materializada pelos mais avançados conhecimentos científicos. As diversas atrocidades
ocorridas no século XX demonstraram, portanto, que a barbárie é produzida pela própria
civilização. Em outras palavras, o mais arcaico se realiza ou materializa no mais
moderno.
Esta tese é defendida por Adorno e Horkheimer (1985) na obra Dialética do
Esclarecimento. Para eles, o esclarecimento (Aufklärung) não cumpriu sua promessa de
promover a emancipação dos sujeitos na modernidade. Deste modo, a potencialização
da racionalidade ao longo da história ocidental está relacionada à construção dos
campos de concentração na Alemanha nazista. Segundo aqueles pensadores, o triunfo
da racionalidade sobre os primitivos instintos humanos encontra sua prototípica
representação ocidental na figura de Ulisses, herói grego da Odisseia, de Homero.
Com base neste modelo, estes autores refletem acerca do processo que
proporciona a mitificação da razão no final do século XVIII (“o Século das Luzes”).
Nas fronteiras da linguagem ǀ 994
Assim, para Adorno e Horkheimer (1985), o próprio mito antigo já é esclarecimento,
representando alguma forma de entendimento de determinada coletividade sobre a
realidade. Por outro lado, como destaca Gagnebin (2006), a história da ascensão da
racionalidade se funda em “uma gênese violenta e violentadora”, pois necessita
recalcar instintos originários, encantos e feitiços primitivos.
Logo, este percurso histórico não se constitui apenas no “devir progressivo e
luminoso” pretendido pelo Iluminismo. Ao contrário, a tendência à autodestruição ou
regressão constitui a ratio desde sua origem. Desta forma, o “irracionalismo” do
antissemitismo e fascismo decorre dos próprios fundamentos da razão dominante. Em
outras palavras, segundo os dois filósofos alemães, o esclarecimento termina
revertendo à mitologia.
Na Alemanha nazista, o funcionamento dos campos de concentração engendrou
as mortes de prisioneiros de forma seriada, em escala industrial, no país onde nasceu o
filósofo que discutiu o conceito de esclarecimento. Tais circunstâncias sem precedentes
constituem o fundamento histórico para Adorno e Horkheimer (1985) desenvolverem
suas reflexões. Por sua vez, os meios de produção que permitiram a operação destes
complexos da morte foram reproduzidos e mesmo potencializados desde sua
desativação. Diante destes acontecimentos, a tese de Kant (1985) relativa ao
esclarecimento como a maioridade da razão se revelou severamente comprometida.
Neste sentido, “A Casa de Vidro” representa a potencialização dos meios de
produção que possibilitaram a existência dos campos de concentração nazistas.
Publicado em 1979, este conto de Ivan Angelo figura entre as narrativas mais
importantes produzidas no período pós-1964, ano em que um golpe de Estado instituiu
uma ditadura civil-militar no Brasil por 21 anos. Assim, esta narrativa pode ser
entendida como a representação distópica de um futuro indeterminado, mas
aparentemente muito próximo, da sociedade brasileira. A inspiração mais imediata para
esta distopia seria o autoritarismo político então vigente no país.
Após a apresentação da epígrafe, o texto literário é iniciado com uma sumária
afirmação sobre a realização de protestos e sua proibição. Para eliminar o ódio nascido
destas proibições, uma Casa de Vidro é construída no lugar da central de polícia de
alguma grande cidade. Como se pode perceber, esta nova edificação torna-se o destino
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 995
de todos aqueles considerados “perigosos” ou “inadequados” pelo respectivo regime
político.
A abertura desta narrativa indica, portanto, o processo de destruição completa da
alteridade ocorrido neste contexto social. Desde então, a instauração do terror é
sistematicamente aprofundada ao longo da trama. A propósito, o aprofundamento deste
estado de exceção decorre da progressiva e aparentemente completa transparência
evidenciada pela Casa de Vidro (posteriormente reproduzida nas edificações similares
construídas em outros Estados brasileiros). Nestas instalações, as rotinas dos presos e de
seus familiares, bem como as realizações dos depoimentos, são expostas, supostamente,
sem qualquer tipo de encobrimento.
A problematização à suposta transparência completa da Casa de Vidro se inicia
no terceiro parágrafo do conto. Neste momento, os dois tipos de vidro utilizados em
diferentes fases de seu funcionamento são comparados. Assim, o tipo mais moderno é
tão avançado que sua transparência não permite sequer ser percebida. Entretanto, esta
lâmina, mesmo invisível, segrega e obstaculiza, embora também mostre.
Deste modo, uma complexa dinâmica de exposição e ocultação constitui aquela
instituição prisional. Consequentemente, as motivações relacionadas à construção dela
jamais são reveladas para a população. Por outro lado, o que acontece com os presos
antes de eles prestarem depoimento permanece oculto ao público. Além disto, os
acontecimentos expostos publicamente não permitem troca audível entre o exterior e o
interior do cárcere de vidro.
A construção da Casa de Vidro é coordenada pelo Arquiteto, o primeiro
representante do governo totalitário a aparecer na trama. Neste contexto, o
desenvolvimento das obras transcorre gradualmente, a ponto de elas serem
interrompidas durante um mês. Esta gradação tem como finalidade despertar a
curiosidade e perplexidade da população diante daquele acontecimento inusitado. No
conto, tais reações iniciais aparecem em breves comentários entre parêntesis de
populares anônimos, entremeando o curso da narrativa por instantes.
O início desta construção desperta, paralelamente, outra reação entre as pessoas:
o medo. Tal efeito está indicado no modo disfarçado como os transeuntes olham para
ela ao passarem. Já os funcionários da então central de polícia se mostram constrangidos
diante da progressiva exposição do interior dela. Para evitar serem observados
Nas fronteiras da linguagem ǀ 996
externamente, eles procuram trabalhar onde ainda a alvenaria permanece. Assim, o
temor daqueles e o constrangimento destes demonstram que o poder simplesmente
instaura a Casa de Vidro sem qualquer aviso, explicação ou consulta prévia à sociedade.
Esta gradação na implantação da Casa de Vidro resulta, portanto, de uma
racionalidade institucionalizada. Tal institucionalização é evidenciada pela sigla PGP
(Programa Gradual de Pacificação), título do projeto coordenado pelo Experimentador,
o mentor científico e articulador da implantação daquela instituição penal. Outra
evidência do caráter racional desta práxis institucional está na forma como ele busca
persuadir os superiores de suas ideias.
Neste sentido, recorre a diversos materiais para demonstrar seus argumentos
com precisão (relatórios, dados, fotos, fitas e filmes). Para este fim, as gravações em
áudio de conversas entre populares são o material mais utilizado. Estes registros
atendem a uma dupla finalidade: exercer o controle estatal até mesmo sobre a
privacidade dos civis; evidenciar a eficácia daquele complexo prisional em instaurar e
aprofundar o terror naquela sociedade.
A propósito, a nomeação do projeto do Experimentador nos parece inspirada em
um momento político da ditadura militar brasileira. No governo do general Ernesto
Geisel (1974-1979), o então Presidente da República prometeu promover uma abertura
“lenta, gradual e segura” rumo à democracia. Publicado no último ano deste mandato,
“A Casa de Vidro” seria uma alegoria irônica e cética acerca deste processo de
distensão política. Por outro lado, este conto pode ser entendido também como uma
advertência, com vistas a se procurar evitar a materialização desta distopia além da
narrativa.
Em “A Casa de Vidro”, o poder é representado sob a forma totalitária. Assim, o
Experimentador quem o exerce de modo centralizado, embora, formalmente, ele pareça
estar subordinado aos Chefes. Neste contexto, eles não comentam ou contestam nenhum
dos argumentos apresentados pelo aparente subordinado. Logo, esta representação
poderia ser caracterizada como um totalitarismo sui generis. Ao contrário do nazismo e
do fascismo, por exemplo, não encontramos aqui um líder (Führer ou Duce) que seja
publicamente conhecido no exercício desta centralidade totalizante.
Os regimes totalitários, todavia, também se destacam pelo caráter impessoal de
seu funcionamento. Em “A Casa de Vidro”, este aspecto é representado sob duas
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 997
dimensões. No primeiro deles, a ausência de qualquer traço de particularidade ou
singularidade caracteriza quem exerce o poder estatal. Deste modo, seus mandatários
são nomeados pelos termos relativos aos cargos públicos exercidos (Arquiteto, Chefes,
Experimentador). Esta circunstância indica que o aparato totalitário funciona
autonomamente, dispensando qualquer característica intuitu personae para a realização
de tal fim1.
No caso da sociedade civil, mesmo os insurgentes não possuem sequer uma
nomeação que lhes possa conferir alguma distinção frente à massa anônima e
subjugada. Esta impossibilidade de diferenciação decorre do progressivo aniquilamento
completo da alteridade anunciado desde o início da trama. Neste sentido, as eventuais
tentativas de insurreição são anuladas seja pela implacável resistência material dos
vidros, seja pelo terror perpetrado nas dependências da Casa de Vidro ou por sua
enigmática existência.
Assim, esta representação de uma sociedade totalitária parece demandar alguma
atualização das teses de Schwarz (1992). Ao analisar obras de Machado de Assis, este
crítico literário afirma que a elite brasileira apresenta uma dupla conduta: na vida
pública, ela se dispõe a defender um discurso liberal e progressista, como tentativa de
convencimento acerca de sua suposta ‘casca civilizada’; já no âmbito privado, este
estrato social é sustentado por meio de relações sociais arcaicas e autoritárias, baseadas
na escravidão, na monocultura, no latifúndio. De todo modo, aquelas tentativas de
aparentar adesão a concepções modernas são cínicas, representativas de uma típica
desfaçatez de classe. Consequentemente, elas não conseguem convencer sequer como
aparência.
Para Pasta Jr. (2010), no Brasil, ao contrário dos países centrais europeus, a
escravidão não constitui uma metáfora, uma relação “senhor e escravo” hegeliana.
Neste país, os escravos desembarcavam, a céu aberto, acorrentados, arrebentados física
e psicologicamente, no cais do Valongo. Além disto, esta prática social podia ser
constatada por meio de certas situações ostensivas do cotidiano. O conto “Pai contra
mãe”, de Machado de Assis, é bastante ilustrativo em relação a isto. Seus cinco
1 Para um maior detalhamento sobre as raízes históricas, características e conceitos relativos ao
totalitarismo, recomendamos a leitura das seguintes obras: Origens do totalitarismo e Eichmann em
Jerusalém, ambas da filósofa alemã Hannah Arendt. As respectivas referências completas podem ser
encontradas ao final do trabalho.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 998
primeiros parágrafos são dedicados ao inventário dos “ofícios e aparelhos” utilizados
contra os negros. Desta forma, o ferro ao pescoço, aos pés, a máscara de folha-de-
flandres e as ofertas de recompensa pelos escravos fugidos podiam ser testemunhadas
sem qualquer dificuldade.
Em “Pai contra mãe”, o narrador evidencia uma postura complacente e cínica ao
comentar sobre as práticas escravagistas promovidas contra os negros no Brasil. Neste
caso, ele não demonstra preocupação alguma em se portar como suposto ‘humanista’ ou
crítico de tais perversidades. Ao contrário, chega mesmo a legitimar estas situações,
alegando que a ordem social precisaria recorrer ao grotesco, e algumas vezes ao cruel,
para ser alcançada.
Com esta característica, este conto representaria uma exceção diante de outras
narrativas machadianas analisadas por Schwarz (1992). Deste modo, a voz narrativa
reverbera um discurso típico de uma elite escravocrata, a qual já surge desnudada em
seu conservadorismo e autoritarismo.
Em narrativas brasileiras pós-1964, mesmo a tentativa da elite brasileira de
aparentar, pateticamente, uma máscara progressista desaparece. Nestes textos literários,
as práticas autoritárias e repressoras são representadas em proporções cada vez mais
brutais. Tais representações, por sua vez, estão relacionadas ao processo de
modernização conservadora instaurado após o golpe civil-militar no Brasil. Um dos
exemplos literários mais ilustrativos neste sentido é o romance Quarup, de Antonio
Callado, publicado em 1967.
Neste romance, encontramos uma cena na qual o protagonista Nando é
interrogado pelo Coronel Ibiratinga. Aqui, o oficial do Exército brasileiro defende a tese
de que faltaria “uma cinza de virtude em nossos campos”. Assim, os militares que então
estavam no poder não deveriam promover torturas às escondidas, constrangidos, mas
sim em praça pública, de modo exemplar para a população.
Deste modo, o respectivo militar pode ser entendido como um predecessor do
Experimentador de “A Casa de Vidro”, o qual, finalmente, materializa a aspiração
daquele personagem. Esta correlação entre os dois personagens fica evidenciada nesta
passagem do conto:
(...) Senhores Chefes: se precisássemos de uma oposição que nos legitimasse,
teríamos nós mesmos de escrever um editorial como esse, às escondidas! Diz
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 999
ele: “agressão à sociedade”. Mas é uma agressão. É um ponto básico do
projeto que essa agressão seja clara, nada dos antigos porões, aquilo sim, um
barbarismo. Depois ele fala do “terror do Estado”. Mas é isso mesmo. As
velhas palavras, as velhas idéias liberais – não serão os valores desse
liberalismo corrompido que irão orientar a sua destruição [do Programa
Gradual de Pacificação], certo? (...) (ANGELO, 2002, p. 170, grifos do
autor).
A alegação do Coronel Ibiratinga de que, no Brasil, nunca teria havido suplícios
em praça pública é equivocada (para não dizer cínica): a própria epígrafe de “A Casa de
Vidro” contraria a tese do militar, pois açoites ao pé do Pelourinho, enforcamentos e
esquartejamentos em praça pública eram comuns durante o período colonial brasileiro.
Todas estas práticas, por sua vez, já tinham como finalidade promover “terror e
exemplo” para a população.
Logo, a ditadura civil-militar brasileira desenvolveu as práticas mais arcaicas por
meio das tecnologias modernas mais avançadas. Em “A Casa de Vidro”, esta
combinação entre arcaico e moderno é potencializada no contexto da narrativa. Uma
evidência desta questão pode ser observada no diálogo entre dois populares. Neste
momento, eles percebem determinada ressonância do Brasil Colônia na exposição de
um preso sob custódia daquela instituição penal:
“Qual é essa de deixar um preso assim, sem explicar nada, hem? Parece coisa
da colônia, pelourinho.”
“Vai ver a idéia é essa mesmo, pelourinho. Aí tem sentido.”
“Cuidado. O pessoal daqui diz que eles estão escutando as conversas.”
“Papo furado. Isso é coisa de cinema. Não temos tecnologia para isso não.”
“Vai nessa.”
“E se escutar o que é que tem? Não devo nada.”
“Até provar, já se fodeu.”
“A gente é que tem de provar?”
(...)
(ANGELO, 2002, p. 166)
Em certo momento do conto, o Experimentador discute o perigo que os artistas
representariam para aquele projeto totalitário. Nesta cena, percebemos uma
reelaboração de determinada discussão encontrada na República, de Platão. Para este
filósofo grego, ao não representarem a realidade como ela é, os poetas constituem um
perigo para a pólis idealizada nesta obra. Consequentemente, eles deveriam ser expulsos
da respectiva cidade.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1000
Por outro lado, não observamos nenhuma perseguição aos artistas ao longo do
conto. Ao contrário, quatro diferentes poemas críticos a Casa de Vidro despontam
subitamente na trama em diferentes momentos. A propósito, os jogos de palavras
herméticos configurados neles nos parecem indicar, pelo menos, duas interpretações
possíveis: uma problematização à ordem totalitária representada por aquela instituição
penal; uma crítica ao esteticismo despolitizado promovido pela poesia concreta no
Brasil2.
De forma semelhante aos demais protestos, não sabemos quem são os autores
destas produções artísticas. Embora demonstrem tal caráter crítico, estas obras poéticas
não constituem uma ameaça àquele estado de coisas. Assim, aquela preocupação do
Experimentador termina sem razão de ser diante do aprofundamento daquela realidade
totalitária ao final do conto.
Neste sentido, tais poemas não são capazes de transformar as pessoas em
“bombas de inquietação, soltas por aí”. Ocorre justamente o oposto: ao final da trama,
dois populares reconhecem que a Casa de Vidro se tornou algo banal, costumeiro no
cotidiano daquelas pessoas (a ponto de os jornais quase não mais abordarem esta
questão).
Mesmo tendo havido uma ditadura civil-militar no Brasil, este país não
vivenciou propriamente uma forma totalitária de poder. Naquele período, eleições para
vereadores, deputados, senadores, prefeitos e mesmo governadores chegaram a
acontecer, ainda que questionáveis em sua legitimidade.
Sob este aspecto, a projeção daquela realidade distópica do conto pode não ter se
materializado desde sua publicação. Contudo, os fantasmas totalitários não deixam de
existir apesar do contexto mais democrático em que vivemos. Pelo contrário, eles
voltam a assombrar com alguma frequência, sendo necessário nos manter alertas diante
deles.
Referências
ADORNO, Theodor W. ; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Trad.
Guido de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
2 Para aprofundamento desta discussão, recomendamos o ensaio “Esteticismo e Participação”: as
vanguardas poéticas no contexto brasileiro (1954-1969), de Simon (1990). A referência completa pode ser
encontrada ao final de nosso trabalho.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1001
ANGELO, Ivan. A casa de vidro: cinco histórias do Brasil. 3. ed. São Paulo: Geração
Editorial, 2002.
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.
______. Eichmann em Jerusalém. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia
das Letras, 1999.
ASSIS, Machado de. Pai contra mãe. In: ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 1994. 2 v.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Homero e Dialética do Esclarecimento. In: GAGNEBIN,
Jeanne Marie. Lembrar, escrever, esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006. p. 29-37.
______. Após Auschwitz. In: GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar, escrever, esquecer.
São Paulo: Editora 34, 2006. p. 59-81.
KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: O que é Esclarecimento? In: KANT,
Immanuel. Textos seletos. Trad. Floriano de Souza Fernandes. Petrópolis: Vozes, 1985.
PASTA JR., José Antonio. Uma conversa com José Antonio Pasta. Revista Sinal de
Menos, ano 2, nº 4, 2010, p. 05-12.
PLATÃO. A República. Trad. Anna Lia Amaral de Almeida Prado. São Paulo: Martins
Fontes, 2006.
SCHWARZ, Roberto. As ideias fora do lugar. In:______. Ao vencedor as batatas. 3. ed.
São Paulo: Duas Cidades, 1992, p. 13-28.
SIMON, Iumna Maria. Esteticismo e participação: as vanguardas poéticas no contexto
brasileiro (1954-1969). Novos Estudos CEBRAP, nº 26, março de 1990, p. 120-140.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1002
A UTILIZAÇÃO DO CONTO E SUAS IMPLICAÇÕES NAS
PRÁTICAS DE ESCRITA E REESCRITA DE TEXTOS EM
SALA DE AULA [Voltar para Sumário]
Gabriela Ulisses Fernandes (UNEAL)
Introdução
Este trabalho propõe uma discussão acerca, da relevância e contribuições dos
gêneros textuais, mas especificamente o gênero conto no processo de escrita e reescrita
de textos, dando ênfase ao papel exercido pelo professor durante este processo, como
agente transmissor e mediador de conhecimentos. No desenvolver desta pesquisa
percebe-se a necessidade de se estabelecer mais projetos de leitura que envolvam de
maneira direta os discentes, pois é o que falta para que haja uma melhora em suas
habilidades linguísticas nas modalidades oral e escrita. Porém para que tais mudanças
ocorram no desenvolvimento do aluno é necessário que haja incentivo de todas as partes
envolvidas neste processo de aquisição de conhecimentos por parte do aluno.
Faz-se mister destacar aqui a relevância exercida pelos gêneros textuais neste processo
de escrita e reescrita,Azeredo (2005, p.40), “Gêneros textuais são portanto as formas
relativamente estáveis pelas quais a comunicação verbal se materializa nas diferentes
práticas sociais.” Estes estão presentes em muitos lugares de formas diferenciadas e que
chamam a atenção do discente na hora da leitura o que consequentemente irá influenciar
na sua produção escrita. Vale ressaltar mais ainda as contribuições do gênero conto, que
por possuir características como: Ser uma narrativa linear e curta, tanto em extensão
quanto no tempo no qual se passa, possuir linguagem simples e direta, e não se utilizar
de muitas figuras de linguagem ou de expressões com pluralidade de sentidos, dentre
outras. Tende a prender e chamar a atenção do alunoe por vezes ser selecionado como
opção de leitura, contribuindo de forma significativa, para o aprendizado dos discentes
no que tange à produção textual. Percebe-se através das atribuições acima citadas que
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1003
esta narrativa pode ser utilizada como suporte e auxilio para os discentes produzirem e
criarem seus textos acerca do que foi visto através dos estudos com gêneros textuais.
Considerações sobre a formação do professor
Atualmente, a sociedade exige que a educação esteja comprometida com as
transformações e evoluções sociais as quais somos expostos ao longo do nosso
desenvolvimento escolar. Entende-se que é de extrema relevância irmos em busca de
uma educação construída pelo homem em seu caráter histórico e social.
A formação apresenta-se nos como um fenômeno complexo e diverso sobre o
qual existem apenas escassas conceptualizações e ainda menos acordo em
relação às dimensões e teorias mais relevantes para a sua análise. [...] Em
primeiro lugar a formação como realidade conceptual, não se identifica nem
se dilui dentro de outros conceitos que também se usam, tais como educação,
ensino treino, etc. Em segundo lugar, o conceito formação inclui uma
dimensão pessoal de desenvolvimento humano global que é preciso ter em
conta face a outras concepções eminentemente técnicas. Em terceiro lugar, o
conceito formação tem a ver com a capacidade de formação, assim como com
a vontade de formação (GARCIA, 1999, p. 21-22)
Quando se pensa em educação automaticamente nos vem em mente o docente e
sua formação prática pedagógica que deve se dá de maneira adequada. O professor
necessita de uma formação qualificada que o prepare para atuar com coerência em sala
de aula como formador de cidadãos críticos e pensantes com opinião própria e
transformadora, porém infelizmente na maioria das vezes o docente não possui suporte
para atuar com tal eficiência em sala de aula.
O trabalho docente é atividade que dá unidade ao binômio ensino-
aprendizagem, pelo processo de transmissão-assimilação ativa de
conhecimentos, realizando a tarefa de mediação na relação cognitiva entre o
aluno e as matérias de estudo.(LIBÂNEO, 1994, p.88)
Em muitos casos sua formação é apontada como a principal responsável pelos
problemas encontrados na educação. O maior desafio a ser enfrentado pelos docentes, é
a precariedade e falta de estrutura das instituições, e a falta de interesse dos discentes
que é algo constante no ensino básico, é por estes e por muitos outros fatores que o
docente tem de estar preparado para enfrentar os desafios da profissão. É imprescindível
que o professor possua além do domínio dos conteúdos que serão transmitidos aos
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1004
alunos, seja um profissional preparado para se adaptar as diversas situações as quais
será exposto em sala de aula e na sociedade ao longo de sua carreira, e que esteja pronto
para tornar-se além de professor um mediador entre o saber o ensinar e o aluno.
Cabe ao docente despertar nos alunos o interesse pela educação, criando
propostas as quais favoreçam ao discente em seu desenvolvimento é necessário que o
docente enxergue além da realidade que lhe é proposta.
Cada um de nós é um ser no mundo, com o mundo e com os outros. Viver ou
encarar esta constatação evidente, enquanto educador ou educadora, significa
reconhecer nos outros – não importa se alfabetizandosou participantes de
cursos universitários; se aluno de escolas do primeiro grau ou se membros de
uma assembleia popular – o direito de dizer a sua palavra. Direito deles de
falar a que corresponde o nosso dever de escutá-los. De escutá-los
corretamente, com a convicção de quem cumpre um dever e não com a
malícia de quem faz um favor para receber muito mais em troca.(FREIRE,
1982, p.30)
Ser professor resume-se em uma troca de conhecimentos, pois o docente ensina
aprendendo e aprende ensinado, e está presente no dia de seus discentes preparando-os
para a vida, utilizando-se de práticas diferenciadas e libertadores que estejam dentro da
realidade dos discentes. Para tanto faz-se necessário que haja compreensão e respeito
entre ambas as partes e por cada indivíduo que esteja disposto a aprender, que seja dado
a estes o direito a palavra e a um espaço no qual ele se identifique em sala de aula.
Considerações acerca da escrita
A respeito da escrita pode-se dizer que esta é uma produção de ordem social. A
escrita possui como objetivo direto a leitura independente de tempo e espaço, esta
estende nossos conhecimentos à respeito de nós mesmos e do mundo no qual estamos
inseridos. “Depois de escrito, o texto tem uma existência independente do autor entre a
produção do texto escrito e a sua leitura, pode passar muito tempo.” (KOCH, 2009,
p.32).
Atualmente vivemos sociedade onde grande parte dos indivíduos é letrada,
portanto a função da escola neste contexto é mostrar para o discente o mundo das
produções escritas, para que estes tornarem-se mesmo que de forma lenta em um
indivíduo capacitado para se utilizar desta. A produção escrita exige muita dedicação, a
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1005
mesma é considerada uma tarefa árdua, pois alguns discentes apresentam muitas
dificuldades nesta, pelo fato de que para realizar uma produção adequada, necessita-se
fazer uso de um número maior de palavras com exatidão e assim consequentemente
partir de um ponto mais elevado que aquele o qual o discente está habituado. Por este
motivo faz-se necessário que o docente o auxilie nesse processo de aquisição de
conhecimento acerca da produção escrita.
Ao iniciar seu primeiro contato com a produção escrita, as crianças tendem a
acreditar que um texto baseia-se em uma transcrição, ou seja, para elas o texto se
constrói a partir da transferência do seus dados de fala para a escrita. Para converter esta
situação as escolas juntamente com os docentes precisam complementar as atividades
desenvolvidas com os discentes com ações relevantes que influenciem estes a operar em
níveis mais elevados e assim consequentemente levar os discentes para conviver e
conhecer outras variedades da língua e mostrar-lhes que além daquela modalidade a
qual ele faz uso em sua região à outros tipos variados da língua é importante que o
docente observe as limitações de seu aluno, pois, estes quesitos são essenciais para
determinar as necessidades do mesmo em seu desenvolvimento nas produções textuais.
Só assim com a colaboração e orientação do docente o aluno entenderá que quanto
maior for seu contato com as demais formas da língua maior será a sua compreensão e
percepção sobre o texto e suas deferentes visões e formações.
Faz-se mister que o discente compreenda que ao produzir o seu texto, este será
lido por outras pessoas por este motivo é relevante que o mesmo faça uso em suas
produções de uma linguagem clara, e que se expresse de maneira sucinta levantado
questões que despertem o interesse de seus interlocutores. Neste processo a presença do
professor é indispensável pois o mesmo terá um papel crucial onde será interlocutor,
orientador e mediador de seus alunos analisando e orientando-os nesse processo tendo
em vista que este irá indicar ao aluno o caminho para uma produção escrita completa
onde haja compreensão em ambas as partes tanto do autor, quanto do interlocutor.
Considerações sobre gêneros textuais
Gêneros textuais são estruturas que constituem o texto, sejam eles orais ou
escritos. Estes são facilmente reconhecidos por manterem-se, sempre parecidos, com
suas características comuns procuram sempre alcançar intenções comunicativas
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1006
congêneres e sempre surgem em situações peculiares no dia a dia. Podemos dizer que os
gêneros textuais tratam das diversas formas da língua existentes na sociedade a qual
estamos inseridos, sejam eles orais ou escritos, formais ou informais será quase
inevitável o seu uso em nossas conversas e produções textuais. Cada gênero possui um
estilo peculiar o que os diferencia dos demais.
Os gênero textuais são os textos que encontramos em nossa vida diária e que
apresentam padrões sociocomunicativos característicos definidos por
composições funcionais, objetivos enunciativos e estilos concretamente
realizados na integração de forças históricas, sociais, institucionais e técnicas.
Em contraposição aos tipos, os gêneros são entidades empíricas em situações
comunicativas e se expressam em designações diversas, constituindo em
princípio listagens abertas. (MARCUSCHI, 2008, p.155)
É grande o número de gêneros textuais existentes em nosso convívio social,
temos vários exemplos como a carta, romance, bilhete, horóscopo, receita culinária,
bula de remédio, resenha, resumos, textos da internet, poemas entre outros que podem
ser divididos entre primários e secundários, orais e escritos. Sendo os gêneros primários
o diálogo do dia a dia, e o secundário são: romances, dramas, pesquisas cientificas de
toda espécie, e os grandes gêneros publicitários, os gêneros primários são denominados
simples, já os secundários são complexos segundo Bakhtin(2011) existe uma diferença
entre estes dois gêneros.
A diferença entre os gêneros primário e secundário (ideológicos) é
extremamente grande e essencial, e é por isso, mesmo que a natureza do
enunciado deve ser descoberta e definida por meio da análise de ambas as
modalidades; apenas sob essa condição a definição pode vir a ser adequada a
natureza complexa e profunda do enunciado( e abranger as suas facetas mais
importantes); a orientação unilateral centrada nos gêneros primários redunda
fatalmente na vulgarização de todo o problema( o Behaviorismo linguístico é
o grau extremo de tal vulgarização). (BAKHTIN, 2011, p.264)
É evidente que entre estes dois gêneros à muitas divergências, mas estas são de
extrema relevância na hora de compreender cada um deles, é notório também que o
autor faz uma crítica a respeito da vulgarização no processo de aprendizagem do aluno,
em questionamento ao behaviorismo onde acredita-se que o indivíduo só aprende se
estimulado a tal atividade, porém o que de fato é verídico é que toda criança já nasce
provida do dispositivo da aquisição de conhecimentos, ou seja desde cedo já possui
capacidade de aprender e também transmitir conhecimentos diversos.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1007
No que tange ao estudo e reconhecimento dos tipos de gêneros faz-se necessário
que o leitor saiba distinguir o que é gênero textual, em suas modalidades: gênero
literário e tipo textual. Cada uma dessas classificações é referente aos textos, porém é
preciso ter atenção, cada uma possui um significado totalmente diferente da outra:
Gênero Literário – nestes são abordados apenas os textos literários, diferente do gênero
textual, que abrange todo tipo de texto. O gênero literário é classificado de acordo com
a sua forma, podendo ser da encaixa-se em gêneros líricos, dramático, épico, narrativo
dentre outros.
Tipo textual – este é a forma como o texto se apresenta, podendo ser classificado bem
como: narrativo, argumentativo, dissertativo, descritivo, informativo ou injuntivo. Cada
uma dessas classificações pode varia de acordo como o texto se apresenta e com a
finalidade para o qual foi produzido.
Os gêneros textuais existem em grande quantidade, sendo aparados essenciais
para nossa comunicação seja ela na modalidade escrita ou oral, nos auxiliando de
manheira significante cada um com seu próprio estilo que se adequa e adapta-se ao tipo
de leitor e ambiente ao qual encontra-se.
Gênero textual, mais especificamente, o gênero conto
O gênero textual conto é uma narrativa, que em sua grande maioria é ficcional
onde o que prevalece são as narrativas. Sendo este uma sequência de fatos e
acontecimentos, que envolve um número limitado de personagens.
“Um conto é uma narrativa curta. Não faz rodeios: vai direto ao assunto. No
conto tudo importa: cada palavra é uma pista. Em uma descrição,
informações valiosas; cada adjetivo é insubstituível; cada vírgula, cada ponto,
cada espaço – tudo está cheio de significado. [...]. (FIORUSSI, 2003. p.103)
O gênero conto possui uma riqueza de detalhes e uma imensa variedade, de
aspectos que fazem com que este acabe tornando-se uma das principais opções de
leitura, para os discentes de modo que cada aspecto existente eleve a curiosidade destes.
Possuindo como finalidade relatar fatos reais ou fictícios imaginários de forma que a
criatividade predomine com uma riqueza de detalhes que fazem toda a diferença para
seus leitores, visando assim transmitir lições de vida e de valores, de um jeito criativo e
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1008
realista que prende a atenção dos leitores. Existem outros tipos de gêneros que possuem
características semelhantes ao gênero conto, como a notícia e a crônica.
Possuindo como característica principal a imparcialidade a notícia tem por
finalidade fazer prevalecer a veracidade dos fatos abordados. Já a crônica possui
características semelhantes ao conto como a riqueza de detalhes, mas suas intenções a
diferem do conto. Embora ambos possuam o mesmo objetivo de entreter e ensinar algo
ao leitor.
Dentre os tipos de contos temos os que são estórias que não pode ser confundida
com a história, pois a história refere-se a narrativas onde os fatos apresentados possuem
comprovações cientificas, documentadas ou até convencionadas. Já a estória é a
expressão escrita de contos populares e tradicionais, normalmente possui aspectos
mirabolantes. Uma estória pode ser uma lenda, conto, fábula, novela, história em
quadrinhos dentre outros. (BATTELLA, 2006)[...] “cada conto traz um compromisso
selado com sua origem: “a da estória e com o modo de se contar a estória.” Os contos
são divididos entre populares e literários. Os populares são basicamente relatos
geralmente narrados pelo povo, por meio da oralidade estes são também conhecidos
como contos folclóricos ou causos. Os contos literários são ficcionais e já possuem uma
forma própria para organização e formatação, contendo autorias definidas.
Considerações Finais
No transcorrer desta pesquisa evidenciou-se a importância de se utilizar dos
gêneros textuais, mais especificamente o conto em sala de aula para despertar no aluno
o interesse pela leitura e assim consequentemente melhorar suas práticas de escrita
através das práticas de produção desenvolvidas a partir dos estudos feitos com os gênero
textual conto, pois este por sua praticidade e pouca extensão possui aspectos os quais
contribuem, de forma significativa, para o aprendizado dos discentes no que tange à
produção textual como sabemos há um grande número de gêneros textuais a nossa volta
eles fazem parte do nosso cotidiano do nosso convívio social e por isso são
reconhecidos com mais facilidade pelos alunos. A inserção do gênero textual conto nas
aulas como ferramenta facilitadora para a pratica da escrita e reescrita faz com que as
aulas tornem-se mais dinâmicas por causa da versatilidade que o envolve, pois este pode
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1009
de diversas maneiras ser absorvido pelos discentes através de atividades de leitura e
produção de textos.
Vale salientar aqui a importância do papel do docente e a sua formação no
processo de aquisição de conhecimentos por parte do discente, sabemos que a formação
do docente é repleta de inadequações no decorrer do processo, percebe-se que não á o
reconhecimento nem o investimento necessário nesse processo já que o docente possui
um papel fundamental no processo de formação de cidadãos que sejam críticos,
pensantes, formadores de opinião e capazes de saber se posicionar em qualquer
situação a qual sejam expostos.
Faz-se necessário para que haja melhoria no desenvolvimento das práticas de
escrita por parte dos discentes, a criação de projetos educacionais que propiciem melhor
aproveitamento do ambiente escolar por parte dos discentes, os incentivando e os
incluindo de maneira direta e significativa em sua produção e execução. Trazendo e
enfatizando a leitura em sala de aula e despertar no aluno o interesse por esta que é a
principal fonte de conhecimento e melhoria do discente não só em sala de aula nas
práticas de produções textuais, mas no decorrer de sua vida em sociedade como cidadão
crítico e formador de opiniões.
Referências
AZEREDO, José Carlos de. A quem cabe ensinar a leitura e a escrita?In:
PAULIUKONIS, Sigrid (Orgs). Da língua ao discurso: Reflexões para o ensino. Rio de
Janeiro: Editora Lucerna, 2005.
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich.Estética da criação verbal: Prefácio à edição
francesa tzvetan Todorov; introdução e tradução do russo Paulo Bezerra 6. ed. São
Paulo: editora WMF Martins Fontes, 2011.
BRITTO, L.P.L. Em terra de surdos-mudos: um estudo sobre as condições de produção
de textos escolares. In: GERALDI, J.W. (org). O texto na sala de aula. São Paulo: Ática,
1997.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 17. ed.
São Paulo: Cortez,1987.
FIORUSSI, André. In: Antônio de Alcântara Machado et alii. De conto em conto. São
Paulo; Ática, 2003.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1010
GARCIA, C. M. A formação de professores:novas perspectivas baseadas na
investigação sobre o pensamento do professor. In NÓVOA, António (Org.). Os
professores e sua formação. 3. ed. Lisboa: Dom Quixote, 1997. p. 51-76.
GOTLIB, Nádia Batella, 1946- teoria do conto/ Nádia BattellaGotlib.-11.ed. São Paulo:
Ática, 2006.
LIBÂNEO, J. C. Didática. São Paulo: Cortez, 1994.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão.
São Paulo: Parábola, 2008.
KOCH, Ingedore Villaça; ELIAS, Vanda Maria. Ler e compreender:os sentidos do
texto. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2009
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1011
A PERFOMANCE NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA
DE MARCELINO FREIRE [Voltar para Sumário]
Gérsica Cássia Ferreira Leite (UFPE)1
Introdução
A narrativa de Marcelino Freire é “ritmada e urgente”. Quase sempre soa como
um grito de desespero. O seu estilo inquieto tem como mola propulsora a violência
cotidiana dos oprimidos seja essa física, psicológica ou moral. Os personagens são
sujeitos que fazem parte de uma minoria política: pobres, negros, prostitutas, fora-da-
lei, analfabetos, desempregados, homossexuais, “trombadinhas”, donas de casa, etc.
“Escrevo porque escuto – um olhar para o humano, para o outro. Escrevo sobre
violência, personagens desajustados, desvalidos, sofridos”, afirma o escritor (apud
Santos, 2010). Marcelino diz, ainda, que escreve para se vingar: “para me vingar de um
amor que foi embora, para me vingar de uma paixão que não deu certo, para me vingar
de um governo que não caminha, não vai bem. Eu escrevo para me vingar das injustiças
sociais, das coisas que me afetam2”.
Autor de cinco livros de contos e um romance- Angu de Sangue (2000),
BaléRalé (2003), Contos Negreiros (2005), Amar é crime (2010), Rasif, mar que
arrebenta (2004) e Nossos ossos (2013), respectivamente- a grande influência de
Marcelino, mais que os grandes escritores, foi a sua mãe, com as críticas referentes à
situação que vivia com seus nove filhos, em Sertânia, interior de Pernambuco. Sendo a
família grande e pobre, a mãe teve que emigrar para o Recife, onde provavelmente os
filhos teriam a oportunidade de estudar e consequentemente melhorar de vida. Foi dessa
1 Mestranda em Teoria da Literatura do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de
Pernambuco (PPGL-UFPE). 2 Em entrevista concedida a Hélio Filho. Disponível em: http://blog.atelie.com.br/2012/11/o-poeta-vingador/#.VU-
eW-PIXKE
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1012
vivência, então, que Marcelino encontrou o caminho da sua escrita, compactuando com
a fala de sua mãe: “a fala da minha mãe, a ladainha dela, as dores dela contaminaram,
impregnaram a minha escrita. Uma escrita teatral, tragicômica, etc. Carreguei os gritos
dela no ouvido. E ainda carrego. Durma e se acorde com um barulho desses”3, afirma o
autor.
É importante ressaltar que Marcelino Freire, por sua origem, tem uma ligação
muito forte com a tradição oral pernambucana. Em suas narrativas, a musicalidade e a
oralidade presentes lembram as cirandas, os improvisos, a literatura de cordel, a
embolada, a ladainha, típicos da cultura sertaneja. É tamanha a influência que, no lugar
de contos, Marcelino chama de cantos as narrativas que constituem a obra Contos
Negreiros (2005), porque, segundo ele, são perfeitos para serem lidos em voz alta4. O
escritor trabalha muito com a memória musical, de ouvido: “tenho a coisa da oralidade
sertaneja, dessas ladainhas, queixas nordestinas. O que faço acaba sendo música, um
canto, um maracatu qualquer5”. Ainda nesse sentido, o autor reforça que o conto nasce
sempre de um som:
Eu não tenho muita história para contar imediata, de cara. Tenho sempre uma
frase ou alguma coisa que vai me remeter a um som. Acabo sendo guiado por
esse ouvido que o nordestino tem. A gente está muito próximo de uma
ladainha. O nordestino é de falar muito, reclamar, se queixar. Isso de alguma
coisa ficou na minha memória e meus textos acabam sendo muito orais,
monólogos prontos6.
Já os contos de BaléRalé (2003), o autor chama de 18 improvisos, por serem
contos muito curtos e em Rasif- mar que arrebenta (2004), encontramos “cirandas,
cirandinhas”, pois os contos parecem com cantos e são marcados pela musicalidade.
Os textos de Marcelino Freire também apresentam muita dramaticidade. Talvez
isso se deva a forte relação que ele tem com o teatro. Quem já viu ou assistiu a algum
vídeo do escritor lendo seus textos, ao fazer a leitura silenciosa, normalmente, é
impulsionado a buscar um ritmo e a entonação exata das palavras, imagina uma
performance. Isso também ocorre porque a presença da oralidade e da performance
ressoam na escrita do contista. Talvez como uma consequência por ter começado como
escritor de dramas, atentando sempre para a pontuação e construindo estratégias que
3 Entrevista concedida a Thiago Corrêa. Disponível no site: http://www.vacatussa.com/entrevista-marcelino-freire/ 4 Essa obra inclusive virou audiolivro, cujas leituras são acompanhadas do instrumento de percussão. 5 Entrevista concedida a Daniela Birman. Disponível em: http://www.jornaldepoesia.jor.br/danielabirman1.html 6 Entrevista concedida a Daniela Birman. Disponível em: http://www.jornaldepoesia.jor.br/danielabirman1.html
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1013
insinuem a presença de gestos, entonação, etc. Marcelino quis muito ser ator e fez um
curso para tal por 10 anos, dos 9 aos 19 anos, em Recife. Desistiu quando descobriu que
tinha pudor, já que se algum diretor pedisse para ficar sem roupa em público, não teria
coragem. A partir dessa convivência, Marcelino diz que quando escreve tira a sua roupa
e a roupa dos outros: “toda vez que eu escrevo algo, penso em um ator, uma atriz.
Enceno as cenas que crio7”
No decorrer desse trabalho buscarei discutir o conceito de performance,
sobretudo na visão de Zumthor ( 1993; 1997; 2014), e de que forma ela ressoa na
narrativa escrita de Marcelino Freire bem como se configura na leitura em voz alta do
autor. Para tanto, inicialmente esboçarei um breve histórico da performance, que se
inicia no período do Trovadorismo e permanece em recitais modernos.
1. Do Trovadorismo à performance moderna
Comecemos pelo conceito de performance. A performance implica a presença e
a conduta de um leitor real, e o intérprete, por sua vez, transmite sua mensagem com a
voz e corpo; é, pois, um acontecimento oral e gestual. Para Zumhtor (1997, p.33), “a
performance é a ação complexa pela qual uma mensagem poética é simultaneamente,
aqui e agora, transmitida e percebida”. Ou seja, locutor, destinatário e circunstâncias se
encontram concretamente confrontados. Ainda segundo Zumthor (1993, p.222): “é o
todo da performance que constitui o lócus emocional em que o texto vocalizado se torna
arte e donde procede e se mantém a totalidade das energias que constituem a obra viva”.
A performance é diferente da leitura porque alguma coisa dela transborda:
“elementos marginais, que se relacionam à linguagem e raramente codificados (o gesto,
a entonação), ou situacionais, que se referem à enunciação (tempo, lugar, cenário)”
(ZUMTHOR, 2014, p.73). Destarte, a performance recusa-se a funcionar como signo e
exige interpretação. É nesse sentido que Zumthor (2014) sugere a distinção entre obra e
texto. O texto seria a sequencia de enunciados e a obra “tudo o que é poeticamente
comunicado”.
É no nível da obra que se manifesta o sentido global, abrangendo, com o do
texto, múltiplos elementos significantes, auditivos, visuais, táteis,
7 Entrevista concedida a Cândido: http://www.candido.bpp.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=360
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1014
sistematizados ou não no contexto cultural; o que eu denominaria o barulho
de fundo existencial (as conotações, condicionadas pelas circunstâncias e o
estado do corpo e o estado do corpo receptor, do texto e dos elementos não
textuais). (ZUMTHOR, 2014, p. 74)
A performance, ou interpretação em público com o suporte da voz e do corpo,
tem sua origem em tempos remotos. No período do Trovadorismo (século XII- XV),
durante a apresentação poética, não havia uma separação entre o corpo e o intelecto. A
poesia precisava do corpo para se concretizar, “não havia outra maneira de ter contato
com a poesia a não ser através do corpo de outra pessoa, primeiro apenas em festivais
cortesãos e depois em eventos e lugares públicos das vilas” (ROSÁRIO, 2007, p.21).
Nesse período, a “’composição poética’ significa constituir um texto (como texto) e
realizar o texto com a voz, na verdade com todo o corpo” (GLUSBERG, 2005, p. 41
apud TELLES, 2007, p.10). A partir do século XV, com o desenvolvimento da
tipografia e da imprensa, no lugar da oralidade e da interação pessoal foi surgindo a
individualidade e privacidade, características que marcam a sociedade moderna. A
leitura silenciosa e solitária foi ocupando, portanto, o lugar dos palcos e as formas de
receber a obra, consequentemente, tornaram-se outras.
No século XX, a história da performance, contudo, ganha um novo episódio. O
futurismo, o Dadaísmo e o Surrealismo, vanguardas europeias, utilizaram a performance
“como um meio de provocação e desafio, na sua ruidosa batalha para romper com a arte
tradicional e impor novas formas de arte” (ROSÁRIO, 2007, p.12). Geralmente, as
performances surgiam de exercícios de improvisação. Mas havia, simultaneamente, a
adoção de técnicas do teatro, da dança, da fotografia, da música e do cinema. Os artistas
denunciavam a estagnação e o isolamento da arte. Sendo assim, buscavam o
envolvimento do público na atividade artística. Um movimento semelhante a esse
aconteceu na Semana de Arte Moderna , no ano de 1922, no Brasil quando os artistas
recorriam ao corpo e à voz para veicular o poema e suas ideias.
Dessa forma, as vanguardas europeias supracitadas recolocaram o corpo como
suporte da transmissão da poesia. Liderado por Fillipo Tommaso Marinette, que
publicou o Manifesto Futurista em 1909, o futurismo lutava contra a forma tradicional
de se fazer arte (GOLDBERG, 2006, p.46).
A performance era o meio mais seguro de desconcertar um público
acomodado. Dava a seus praticantes a liberdade de ser, ao mesmo tempo,
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1015
“criadores” no desenvolvimento de uma nova forma de artista teatral, e
“objetos de arte”, porque não faziam nenhuma separação entre sua arte como
poetas, como pintores ou como performers. Manifestos subseqüentes
deixaram essas intenções muito claras: instruíam os pintores a “ir para as
ruas, incitar a violência a partir dos teatros e introduzir o pugilato na batalha
artística”. E, fiéis ao ritual, foi exatamente o que fizeram. A reação das
platéias não foi menos anárquica – arremesso de batatas, laranjas e qualquer
outra coisa que o público exaltado conseguisse encontrar nos mercados mais
próximos.
Os futuristas tinham como objetivo também inovar técnica de declamação.
Diferente da “declamação antiga, estática, pacifista e nostálgica” (GOLDBERG, 2006,
p.8), o declamador futurista “deveria declamar tanto com suas pernas quanto com seus
braços. As mãos do declamador deveriam, além disso, brandir diferentes instrumentos
ruidosos” (idem, ibidem,p.8).
Segundo Rosário (2007), nos últimos trinta anos houve um avivamento da
apresentação- a performance- como meio de expressão poética. Paul Zumthor
elucidando seu interesse pelo estudo da voz nas manifestações artísticas
contemporâneas, afirma: “faço alusão a uma espécie de ressurgência das energias vocais
da humanidade, energias que foram reprimidas durante séculos no discurso social das
sociedades ocidentais pelo curso hegemônico da escrita (ZUMTHOR, 2014, p.40)”. O
Slam Poetry, eventos de declamações poéticas nos Estados Unidos, surgido na década
de 80, e os recitais alternativos no Brasil, bem como as baladas literárias revalorizam a
transmissão oral das obras literárias tal como acontecia no Trovadorismo.
No Brasil, na década de 70, com as restrições do governo militar e a consequente
censura, poesias consideradas “subversivas” precisavam se virar fora do mercado
editorial. Dessa forma, surgiram formas que derivariam diretamente nos recitais
alternativos urbanos na década de 80 e cujo desenvolvimento fez aparecer a poesia
performática contemporânea. Na década de 80, então, nas principais capitais brasileiras,
acontece um “boom” de recitais (ROSÁRIO, 2007).
Em Recife, o Movimento dos Escritores Independentes (MEI) se reunia em
bares da Rua Sete de Setembro para apresentar seus poemas na rua. Como já
foi visto, a cultura de recitais é antiga no Estado, o que faz nova a situação é
o reposicionamento que insere o contexto e o conteúdo da poesia marginal
acima exposta nas apresentações públicas – até então apenas comuns de duas
formas: na leitura de poemas em circuitos intelectuais (na Livraria Livro
Sete, por exemplo), onde o livro é nitidamente o centro ainda, e não o corpo;
e nas formas populares do repente, da embolada e da poesia sertaneja
(geralmente apresentadas na rua e em festivais), derivadas de formas da
culturas orais pré-modernas (ROSÁRIO, 2007, p. 45)
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1016
Os recitais urbanos continuam a se proliferarem e são marcados cada vez mais
pela performance dos escritores como Miró, Ronaldo Correia de Brito, Cida Pedrosa,
Ferrez, dentre outros. Marcelino Freire, o escritor aqui em debate, é curador de alguns
eventos e projetos nessa perspectiva. O seu projeto “AuTORES EM CENA”, por
exemplo, tem como propósito transformar escritores em atores. Dessa forma, em vez de
leituras se realizam apresentações teatrais e com toda uma estrutura cênica: diretores,
sonoplastas, iluminação, músicos e fotógrafos. Escritores como Lourenço Mutarelli,
Ferréz, João Silvérios Trevisan, Cínthia Moscovich, Micheliny Verunschk, dentre
outros, foram desafiados a interpretar o próprio texto e ver a reação da plateia8.
Marcelino também criou o projeto QueBras com o objetivo de percorrer quinze
capitais brasileiras, distante dos grandes centros, a fim de descobrir qual o espaço
literário que vem se formando nesse contexto, quem são os autores e agitadores
artísticas de cada região. Nas cidades visitadas, Marcelino desenvolve uma oficina
literária para conhecer os poetas, prosadores, cronistas e romancistas locais e ao fim
desta também realiza saraus e recitais, onde os artistas realizam suas performances.
Falar de Marcelino também é associá-lo ao grande evento que acontece desde
2006 em São Paulo, a balada literária, cujo objetivo é fazer a “literatura sair das
estantes, ir para as ruas, para os cafés, na companhia do leitor”. A balada conta com a
presença de grandes escritores e têm em sua programação saraus, recitais,
representações teatrais. Partindo desses pressupostos, notamos não só que Marcelino faz
performance como também fomenta a realização dessa pelos artistas contemporâneos.
2. A performance nas narrativas de Marcelino Freire
Ao ler Marcelino Freire “sentimos que uma voz vibra originariamente em sua
escritura e que ela exige ser pronunciada” (1997, p.40). Marcelino converte a violência
da realidade na organização interna do discurso, a partir de “um canto catártico, cuspido
e inquieto” (LIMA, 2008, p.163), no qual conseguimos sentir “cada palavra como um
tiro ou uma facada. Cada palavra e seu significado sangrento9”, utilizando as palavras
8 É possível assistir a todos esses vídeos em um canal do youtube intitulado “AuTORES EM CENA”. 9 Ariano Suassuna, em “História d’O Rei Degolado nas Caatingas do Sertão ao Sol da Onça Caetana”. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1977, p. 80.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1017
de Ariano Suassuna. Isto permite dizer que até mesmo na leitura solitária e puramente
individual há um grau performático, embora mais fraco, próximo do zero.
As marcas da performance aparecem na escrita literária do autor. O texto de
Marcelino Freire apresenta o mesmo caráter duplo dos textos medievais, é “oral ao
mesmo tempo que escrito” (ZUMTHOR, 1993, p.207). A oralidade é uma característica
marcante da produção literária do autor e se apresenta de duas formas: na reprodução
“fiel” da fala de seus personagens10
, sem impor a língua que seria gramaticalmente
correta, e no que diz respeito à transmissão de seus textos, lendo-os em voz alta com a
presença de um público. Para saber se seu texto está finalizado, Marcelino o lê em voz
alta, o que corrobora com o pensamento de Barthes (1996, p.40): “um texto só é escrito
na medida em que é lido, e uma leitura sensível pode transformá-lo em um texto de
escritura”. Em “O prazer do texto”, Barthes defende que para uma estética do prazer
textual é necessário a leitura em voz alta:
a escritura em voz alta não é fonológica, mas fonética, seu objetivo não é a
clareza das mensagens, o teatro das emoções, o que ela procura (numa
perspectiva da fruição) são os incidentes puncionais, a linguagem atapetada
de pele, um texto onde se possa ouvir o grão da garganta, a patina das
consoantes, a voluptuosidade das vogais, toda uma estereofonia da carne
articulação do corpo, da língua, não do sentido, da linguagem (BARTHES,
1996, p. 86).
Percebe-se, com a leitura das narrativas freireanas, que uma “energia transborda
do texto”, utilizando as palavras de Zumthor (2014). O autor trabalha as palavras de
forma a fazer do texto “uma epifania de voz viva, apesar dele e em aparente contradição
com seu status de escritura” (ZUMTHOR, 1993, p.210). Nesse sentido, afirmo que a
performance ressoa na letra.
As energias que transbordam desse texto operam segundo vários eixos
(ZUMTHOR, 1993). Partindo desse pressuposto, a marca da voz na produção escrita de
Marcelino Freire, aparece pela justaposição de elementos que não se subordinam;
afirmações breves, entrecruzadas por exclamações, expressões imperativas, séries
cumulativas descontínuas, predomínio das formas nominais sobre as verbais, um
vocabulário restrito e condensado, provocando inclusive um obscurecimento de sentido
e uma vulgaridade de tom que dá a impressão de conversa ou confissão. Essas
10 Nesse sentido, é preferível usar o termo vocalidade à oralidade, como sugere Zumthor (1993), pois aquele
considera a historicidade de uma dada voz, seu uso por um determinado grupo.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1018
características são o que define o primeiro eixo descrito por Zumthor (1993),
relacionado às qualidades sintáticas e lexicais. Em toda a narrativa de Marcelino é
possível encontrar essas características. No conto “Vaniclélia”, do livro Contos
Negreiros (2005), a título de ilustração desse eixo, numa espécie de desabafo a
protagonista argumenta porque prefere a antiga vida de prostituição à vida de casada:
Casar tinha futuro. Mesmo sabendo de umas que quebravam a cara. O gringo
era covarde, levava para ser escrava. Mas valia. Menos pior que essa vida de
bosta arrependida. De coisa criada. Qual é a minha esperança com esse
marido barrigudo, eu grávida? Que leite ele vai construir? [...] Agora que
valor me dá esse belzebu? Quanto vale ele ai na praça? Pergunta, pergunta. A
vida dele é me chamar de piranha e vagabunda. E tirar sangue de mim. Cadê
meus dentes? Nem vê que eu tô esperando uma criança. Agora, disso
ninguém tem ciência. Ninguém dá um fim (FREIRE, 2012, p.41).
É possível observar, portanto, as afirmações breves (“Casar tinha futuro”), as
expressões imperativas (“pergunta, pergunta”), a vulgaridade de tom (“vida de bosta
arrependida”; “ a vida dele é me chamar de piranha e vagabunda”).
O segundo eixo que mostra os índices de oralidade no texto está relacionado
com a sintaxe e a retórica. Diz respeito “ao uso dos tempos verbais e aos jogos de
mascaramento ou de perspectiva que ele permite” (ZUMTHOR, 1993, p.208). No
contos do escritor pernambucano, a recorrência do verbo no presente (temos sempre a
impressão de que alguém está gritando no momento em que se está lendo) assegura “a
permanência de uma palavra-testemunha” e a permanência da “instância da enunciação,
a presença carnal e a continuidade da voz” (idem, ibidem). Esse eixo também se
caracteriza pelo uso de interrogações, exclamações, travessões e apóstrofe, o que, na
situação performática indicam a entonação, os gestos, a mímica. É o que podemos
observar no conto “Nação Zumbi”, em que chama a atenção a quantidade de
interrogações que compõe o texto. Indignado, por ser impedido de vender o seu próprio
rim para não morrer de fome, o protagonista faz várias indagações:
Por que vocês não se preocupam com os meninos aí, soltos na rua? Tanta
criança morta e inteirinha, desperdiçada em tudo que é esquina. Tanta córnea
e tanta espinha. Por que é que não se aproveita nada no Brasil, ora bosta?
Viu? Aqui se mata mais que na Etiópia, à mingua. Meu rim ia salvar uma
vida, não ia salvar? Diz, não ia salvar? Perdi dez mil, e agora? (FREIRE,
2012, p.55).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1019
Uma característica marcante da narrativa freireana, e que podemos observar
nesse trecho, é o chamamento por um receptor não identificado, o que nos leva a pensar
que é o próprio leitor, convocado a uma atitude ética diante do desabafo ou confissão do
personagem.
A estética das narrativas freireanas são pensadas tendo em vista a performance
poética, isto é, a interpretação em público. Já na escrita o autor também determina o
ritmo, a pulsação e a dramaticidade para interpretação do texto:
eu escrevo mesmo em voz alta, gosto de falar, de “rezar” os meus textos.
Esse romance mesmo, Só o pó, eu não me canso de reler, de interpretá-lo pela
casa, como se eu estivesse “cantando” o texto. A prosa só me convence
quando passa por esse teste sonoro. Todo mundo que escreve deveria
fazer isto: ouvir, em bome alto som, o que está colocando no papel. Isso
determina ritmo, pulsação, dramaticidade do texto. Eu escrevo de ouvido...
Eu escrevo com o corpo inteiro. Nunca conto uma história, eu “componho”
uma história, entende? [Grifo meu]11
3. A performance de Marcelino Freire: voz, gesto, indumentária, local e
ocasião.
Marcelino Freire recria o universo de diferentes personas encontradas à margem
da sociedade e isso, por si só, já é bastante performático. A construção das vozes dos
sujeitos interfere na performance, seja com relação ao sotaque, às gírias, o ritmo ou os
trejeitos.
Para interpretar suas narrativas, o corpo de Marcelino, diante de uma
conferência, palestra, apresentação, exige soluções estéticas, que mesclam a utilização
da voz, do gesto e da música, o que amplifica a mensagem escrita. Com relação à
performance do autor, recentemente foi publicado pelo PublishNews12
um vídeo
intitulado “Marcelino Freire lê com emoção até bula de remédio”. O escritor costuma
ler seus contos em voz alta, incluindo gestos e, algumas vezes, ritmos musicais, que são
geralmente atrelados aos negros e pobres: o banto, o samba, o rap, o funk.
No espetáculo “Cantos negreiros”, que já tem mais de cinco anos, Marcelino
mistura músicas do repertório de Fabiana Cozza (cantora de samba) com trechos de seus
livros e histórias curtas sobre personagens negros e marginalizados inspirados em Lima
11 Entrevista concedida a Márcio Renato dos Santos. Disponível em
http://www.candido.bpp.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=360
12 Disponível no link: https://www.youtube.com/watch?v=NqT4D0-5sWM
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1020
Barreto, Cruz e Souza e Jorge de Lima. É um espetáculo politizado cujo “repertório”
denunciam o preconceito racial. “A palavra e o canto se misturam, um dando ritmo ao
outro”, explica Fabiana13
. Marcelino quase sempre usa a música de fundo, o que dá um
suporte rítmico e harmônico.
Contos Negreiros (2005) também virou um audiolivro. A gravação foi feita
pelo próprio autor, Fabiana Cozza (que faz a abertura e fechamento do livro) e tem,
ainda, a participação especial de Douglas Alonso, percussionista.
Como se sabe, a voz é o elemento mais importante da performance. A variação
dessa voz se dá por meio da entonação. A depender do conteúdo da narrativa, a leitura
de Marcelino pode ser mais lírica, desesperada, vingativa, debochada, erótica ou
melancólica. O conteúdo também dita o ritmo. Os contos “Socorrinho”, do livro Angu
de Sangue (2005); “Jéssica” e “Papai do céu” de BaléRalé (2004), que narram
estupros, não têm nenhuma pontuação, porque pretende ser dito de uma só vez,
encenando uma falta de ar, o que reforça o desespero da vítima.
Os protagonistas freireanos questionam bastante, o que é uma forma de manter
contato com o leitor14
. A entonação da pergunta, na performance do escritor, chama a
atenção do público, promovendo uma interação ainda maior. Como a maioria de suas
perguntas é acompanhada de indignação, a expressão facial e corporal ajuda a ampliar a
mensagem que se é pretendida. Nesse caso, há o que Zumthor denomina de
“performance completa”, pois há uma “visão global de situação de enunciação”, a
presença corporal do ouvinte e do intérprete é plena, “o que se opõe de maneira mais
forte, irredutível, à leitura de tipo solitário e silencioso” (ZUMTHOR, 2014, p.68).
No conto “Trabalhadores do Brasil”, cujo enredo versa sobre o trabalho escravo
no Brasil, por exemplo, no momento em que a pergunta “tá me ouvindo bem?” é feita,
Marcelino a faz devagar, quase soletrando, e dar uma pausa, demorando o seu olhar na
plateia, como se estivesse esperando uma resposta ou para ter a certeza da apreensão da
mensagem pelo público.
Enquanto Rainha Quelé limpa fossa de banheiro Sambongo bungo na lama e
isso parece que dá grana porque o povo se junto e aplaude Sambongo na
merda pulando de cima da ponte tá me ouvindo bem? Hein seu branco
safado? Ninguém aqui é escravo de ninguém. [Grifo meu] (FREIRE, 2012, p.
20)
13 http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/cultura/noticias/?p=1842 14 Inclusive através de expressões como: hein? Ham?
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1021
Outra observação interessante na performance desse conto é no trecho que diz:
“Enquanto Olorum trabalha como cobrador de ônibus naquele transe infernal de
trânsito” (FREIRE, 2012, p.19). Marcelino quando ler esse trecho repete umas três
vezes a palavra “transe”, alongando os fonemas, mexendo alvoroçadamente as mãos,
como para simular mesmo um estado de alucinação, e dizendo “transe” na terceira vez
finge perder o equilíbrio corporal, como se estivesse caindo para trás15
. O equilíbrio é
retomado por um estalar de dedos, semelhante a como faz o psicanalista para despertar
o paciente daquele estado. Sendo assim, percebemos que “o gesto é a extensão orgânica
do discurso poético performático, funcionando como um amplificador dos significados
que a voz emite” (ROSÁRIO, 2007, p.87).
No conto “Da paz”, que versa sobre uma mulher que perdeu o filho
violentamente, mas se recusa a ir à caminha da paz por achá-la “falsa”, “pálida”,
“branca”, o autor consegue com a voz e os gestos representar o estado de nervos, o
desespero em que se encontra a mulher. Marcelino interpretando esse conto junta as
sobrancelhas e fica com o olhar perdido no vazio, pensativo. Além disso, faz cara de
reprovação, raiva, desespero, indagação. O escritor também apresenta alguns tremores,
típico de alguém que está muito nervoso. Oscilando entre os tons altos e baixos. Alto ao
repetir, por exemplo, as frases “Eu não vou!”, “A paz precisa de sangue”, baixo quando
é revelado o porquê da revolta da mãe que não queria caminhar em prol da paz. Para
representar esse momento Marcelino traz uma melancolia e muita tristeza, percebido
tanto na entonação quanto na expressão facial de dor:
Quem vai ressuscitar meu filho, o Joaquim? Eu é que não vou levar a foto do
menino para ficar exibindo lá embaixo. Carregando na avenida a minha
ferida. Marchar não vou, muito menos ao lado da polícia. Toda vez que vejo
a foto do Joaquim dá um nó. Uma saudade. Sabe? Uma dor na vista. Um
cisco no peito. Sem fim. Uma dor. Dor. Dor. Dor. Dor. (FREIRE, 2008, p.27)
Logo no início do texto para dar ênfase ao que a mulher pensa da paz: “A paz é
uma desgraça. Uma desgraça” (idem, ibidem, p.25), quando está fazendo a performance,
Marcelino separa as sílabas, dando prolongamento a cada uma delas: “des-gra-ça”. O
15 É possível ver essa performance nos seguintes links: http://www.youtube.com/watch?v=TgC91Qbw46Y;
http://www.youtube.com/watch?v=Tes1GKmA0_k
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1022
mesmo acontece em “A paz está proibida. Proibida.”(idem, ibidem, p.26), em que o
autor diz lentamente “ pro-i-bi-da”.
Já na frase “A paz parece brincadeira. A paz é coisa de criança” (idem, ibidem,
p.27), para ampliar essa mensagem, Marcelino cruza os braços e sua expressão é a de
uma criança fazendo birra.
Durantes suas performances, Marcelino mexe muito os baços e as mãos, seja
para apontar algo, como sugere algumas expressões “lá, ali, aqui”, para expulsar “xô”,
ou simular objetos, tal como aparece no conto “Da paz”. No trecho “Eu que não vou
atirar uma lágrima” (FREIRE, 2008, p. 25), o autor posiciona as duas mãos de forma
que lembra alguém usando uma arma. Já em “A paz fica bonita na televisão (idem,
ibidem, p. 27)”, o autor desenha com os dedos uma televisão no ar.
No que diz respeito à indumentária, Marcelino costuma usar roupas do seu
cotidiano mesmo e não figurinos. Já com relação ao local e a ocasião, o autor
geralmente faz suas performances em recitais, saraus, baladas literárias, cafés, livrarias,
como vimos anteriormente.
Considerações finais
Marcelino atinge uma unidade entre a voz, o corpo e o sentimento dos contos
nas suas performances, o que amplifica a mensagem que segue impressa. A
performance é importante porque “percebemos a materialidade, o peso das palavras, sua
estrutura acústica e as reações que elas provocam em nossos centros nervosos
(ZUMTHOR, 1993, p. 222)”. Diante da oralidade poética, da performance, ao invés de
uma voz que fala, temos uma expressão corporal e então a “leitura torna-se escuta,
apreensão cega dessa transfiguração, enquanto se forma o prazer, sem igual” (idem,
ibidem, p. 87). É na performance que a função fática da linguagem realiza plenamente o
seu jogo: “jogo de aproximação, de abordagem e de apelo, ‘de provocação do Outro’, de
pedido” (idem, ibidem, p.87). No caso das narrativas freireanas, a performance ajuda a
ampliar o nosso olhar sobre a realidade dos que vivem à margem da sociedade.
REFERÊNCIAS
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1023
BARTHES, Roland . O prazer do texto. 4 ed. Tradução de Jacó Guinsburg. São Paulo:
Perspectiva, 1996.
FERRAZ, Flávia Heloísa Unbehaum. Marginalidade, violência e testemunho nos
contos de Marcelino Freire. 2009. 44f. Monografia.Universidade Estadual de Londrina,
Londrina.
FREIRE, Marcelino. Angu de Sangue. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005.
_____.BaléRalé. São Paulo: Ateliê Editorial, 2004.
_____.Contos Negreiros. São Paulo: Record, 2012.
_____. Rasif: mar que arrebenta. Rio de Janeiro: Record, 2008.
GOLDBERG, RoseLee. A Arte da Performance. São Paulo : Martins Fontes, 2006.
LIMA, Francesco Jordani Rodrigues de. Cantos e cantares em Contos negreiros, de
Marcelino Freire. VIA ATLÂNTICA Nº 12 DEZ/2007. Disponível em:
http://www.revistas.usp.br/viaatlantica/article/viewFile/50089/54208.Acesso em Janeiro
de 2015
ROSÁRIO, André Telles do. Corpoeticidade: Poeta Miró e sua literatura performática.
Dissertação de Mestrado. Recife: O Autor, 2007.
SANTOS, Elizangela Maria Dos. Do leito à margem, do aristo ao arisco: a verve do
narrador-marginal em Marcelino Freire – um estudo da obra Contos negreiros em
áudio livro. São Cristovão: Eduepb, 2011. 1-15 p. Disponível em: <http://pos-
graduacao.ascom.uepb.edu.br/ppgli/?wpfb_dl=205>. Acesso em: 20 Abril. 2015.
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. A “literatura” medieval. São Paulo: Companhia das
Letras, 1993.
____. Introdução à poesia oral. São Paulo: Hucitec, 1997.
_____. Performance, recepção, leitura. Tradução: Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich. São Paulo: Cosac Naify, 2014.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1024
ETHOS DO COTIDIANO FEMININO DE TEXTOS
LITERÁRIOS DAS AUTORAS CONTEMPORÂNEAS
BRASILEIRAS IVANA ARRUDA LEITE E MARTHA
MEDEIROS
[Voltar para Sumário]
Giovanna de Araújo Leite (BARÃO EAD- Ribeirão Preto/SP)
1 INTRODUÇÃO
Existem, na Literatura Universal, várias formas de abordar a questão do
cotidiano feminino. Mas, o que dizer sobre a produção literária de duas escritoras
contemporâneas brasileiras, uma paulista, Ivana Arruda Leite e outra gaúcha, Martha
Medeiros?
No blog da própria autora Ivana de Arruda Leite “Doidivanas”, consta um
fragmento extraído do jornal “Correio Braziliense”:
Ivana Arruda Leite não cabe no escaninho redutor da ‘literatura feminina’.
As narrativas, embora quase sempre protagonizadas por mulheres, recusam
o registro delicado e sentimental, nada têm da névoa cor-de-rosa que paira
sobre a chamada “chick lit”. Os livros trazem uma figura feminina
emancipada, livre, dona de si. Sexo frágil, sim, mas que não foge à luta.
(DOIDIVANA, 2014)
Os textos de Ivana são sempre irônicos e debochados com personagens
femininas que no dizer do jornal Folha de São Paulo “exorciza seus homens cachorros”.
Martha Medeiros, conhecida por escrever crônicas diversas para o jornal “Zero
Hora”, tem uma grande aceitação do público brasileiro, pois seus livros apresentam
grande número de vendas no cenário nacional, além de também apresentar em sua
linguagem, um tom realístico e debochado sobre o comportamento das mulheres e o
paradoxo de ser “mulher”.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1025
Neste sentido, destaque-se, que em ambas as autoras, há a presença, em seus
textos literários, de uma linguagem coloquial e urbana para retratar a mulher imersa em
um mundo chamado de contemporâneo, em que ela mesma já e contemporânea em si.
As narrações, descrições e argumentações giram em torno de emoções e racionalidades
femininas contemplando os comportamentos e as atitudes de uma mulher típica do meio
urbano.
Para se analisar a configuração imagética do cotidiano da mulher nos textos das
autoras supracitadas, buscou-se a teoria do Ethos defendida pelo analista de discurso
Dominique Mainguenau. A problemática deste estudo foi: como se configura o Ethos do
cotidiano feminino no texto literário destas duas autoras?
O objetivo central foi identificar as corporeidades imagéticas e discursivas
presentes nos textos literários de Ivana Arruda Leite e Martha Medeiros. E os objetivos
específicos foram analisar os textos de autoria feminina no Brasil; discutir aspectos da
literatura contemporânea das autoras supracitadas e construir, a partir das análises, o
Ethos do cotidiano feminino das escritoras nos textos selecionados.
A metodologia utilizada foi bibliográfica, documental e descritiva, de caráter
qualitativo, pois se escolheu apenas um livro de cada autora: “Alameda Santos”, de
Ivana de Arruda Leite e “Trem-Bala”, de Martha Medeiros. O primeiro, por se tratar de
uma coletânea de gravações fictícias de uma personagem falando em primeira pessoa
sobre os anos de 1987 a 1991, e, o segundo, por se tratar de uma coletânea de crônicas
que relatam sobre a mulher em vários contextos.
2 CONCEITUANDO A PALAVRA ETHOS
A palavra grega ethos nasceu na retórica de Aristóteles com um duplo sentido:
por um lado, designando as virtudes morais que garantiam credibilidade ao orador, tais
quais a prudência, a virtude e a benevolência. Por outro, comportando uma dimensão
social, na medida em que o orador convencia as pessoas ao se exprimir de modo
apropriado a seu caráter e a seu tipo social. Nos dois casos, tratava-se da imagem de si
que o orador produzia em seu discurso, e não de sua pessoa real.
Com o advento da Análise do Discurso, alguns estudiosos começaram a se
interessar pela linguagem de uma maneira particular, trazendo o estudo do ethos para o
texto escrito, pois, antes, o ethos era apenas observado na retórica de textos orais.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1026
Enquanto o ethos, na retórica, era apenas observado na oratória dos falantes, na
Análise do Discurso, o ethos passa a ser analisado também em textos escritos. Assim,
como o “tom”, marcadamente presente na fala são também identificados em textos
escritos graças aos estudos desenvolvidos por Maingueneau (2001).
Para este autor, o ethos se traduz no “tom” e se apoia em uma dupla figura do
enunciador como aquele que apresenta caráter e corporalidade próprios, uma vez que o
texto escrito passa a ser analisado como gênero de discurso, isto é, como “‘dispositivos
de comunicação que só aparecem quando certas condições sócio-históricas estão
presentes” (MAINGUENEAU, 2001, p.61).
Nesse contexto, o Ethos é válido para qualquer discurso, pois remete à imagem
de um enunciador que, por meio de sua fala, confere a si próprio uma identidade
compatível com o mundo que ele deverá construir em seu enunciado como se fosse um
“fiador” do discurso. É por meio do próprio enunciado do fiador que este deve legitimar
sua maneira de dizer. O reconhecimento dessa função do ethos permite que nos
afastemos de uma concepção do discurso segundo a qual os ‘contextos’ dos enunciados
seriam independentes da cena da enunciação que os sustenta.
Como no discurso escrito não existe oralidade, é possível identificar o seu Ethos
analisando a integração do corpo e da voz ao discurso escrito. No discurso escrito há
uma imposição de um ‘tom’ de seus autores que define a entonação que acompanha
seus lugares de enunciação.
Este estudo considera a escrita feminina como elemento fundamental para se
analisar o ethos, pois vem demonstrar uma “causa” em prol de que se realizem cada vez
mais análises envolvendo a autoria feminina, as questões apontadas na literatura
produzida pelas mulheres já que há muito tempo tal produção foi silenciada e
considerada “menor” por abordar questões intimistas das próprias mulheres e de menor
importância para homens já consagrados pela literatura universal. Silva (2010) afirma
em seus estudos que a produção literária escrita por mulheres relata um universo da
esfera privada do lar ou do corpo e a linguagem desse universo, a oralidade, os
monólogos, os diálogos corriqueiros relatam vivamente percepções advindas do
universo feminino.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1027
3 ANÁLISE DO CORPUS DE ESTUDO “ALAMEDA SANTOS” DE IVANA DE
ARRUDA LEITE
O primeiro corpus foi o livro “Alameda Santos”, da escritora Ivana Arruda
Leite. Como bem situa Mazzoni (1998, p.06):
[...] Existe sim, uma necessidade de utilizar instrumentos provenientes dos
estudos e das teorias feministas para trabalhar com um texto literário de
autoria feminina, uma vez que é uma teoria engendrada nas relações de
gênero que busca analisar a situação da mulher na sociedade dentro dessas
produções. [...] essa outra “forma” de representar o mundo, o olhar feminino,
merece um estudo diferenciado na atualidade por significar a condição de
vida da mulher, que, também, é diferenciada.
Nos trechos das nove gravações de “Alameda Santos” apresenta-se justamente
neste panorama de uma linguagem própria da mulher emancipada, solitária e em busca
do amor, uma personagem narradora que relata minuciosamente em forma de monólogo
nas fitas gravadas, suas experiências de vida.
Percebe-se, também, que a solidão é onipresente em todas as gravações, pois a
personagem narradora fecha-se em seu quarto para falar sozinha em frente ao seu
gravador e exprime sua angústia, tormento, dependência afetiva pelo outro de maneira
única ,ou seja, dramaticamente feminina.
Magalhães (apud SILVA 2010, p. 39) define escrita feminina como “a produção
literária que se centra em temáticas específicas do universo das mulheres e que foram
negadas a elas tempos atrás”.
Percebe-se na personagem narradora do livro, um relato dos aspectos íntimos
sobre sua própria vida, suas relações amorosas complicadas, complexas, da mesma
forma que ela mesma também é um ser humano imerso numa psique complexa e que
tudo isto desemboca na solidão, colocando-a numa condição de ser e estar solitária,
mesmo sendo uma mulher emancipada, inteligente, sensata, entre outros adjetivos.
Esta condição de solidão da personagem narradora de “Alameda Santos” revela
uma dependência do outro a fim de que não esteja imersa na solidão, “tudo vale, menos
a solidão” (grifo nosso).
Em “Alameda Santos” a protagonista é uma personagem narradora, típica
mulher paulistana, moderna e cheia de loucas aventuras para contar, pois enfrenta, ao
mesmo tempo, uma solidão terrível por não encontrar verdadeiramente o seu “príncipe
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1028
encantado”. Ela resolve gravar nove fitas de forma trágico-cômica expondo momentos
de tristeza e solidão, sempre tendo como companhias, o vinho, a cerveja, a vodca, os
cachorros e a própria “solidão” em seu quarto onde grava suas desgraças em tom
dramático, irônico, trágico e, cômico.
Na fita número um, a personagem inicia seu texto desejando uma “boa noite” a
todos os “presentes”, que os mesmos se divirtam e que não fiquem em paz nunca mais,
pois suas histórias são realmente muito loucas. Ela se queixa de como é ruim amar uma
pessoa e depois não ser amada ou valorizada, além disso, sugere dar fim à própria vida,
mas infelizmente nunca encontra o objeto que possa dar um ponto final em sua vida. A
ideia de suicídio está em várias passagens do romance.
Desta forma, a personagem narradora discorre inicialmente sua paixão por
Eduardo, colega de trabalho que se relaciona casualmente com ela, mas não quer nada
sério.
Tudo o que eu mais queria era esquecer esse cara que não me merece, que só me humilha, ofende e
maltrata. Mas quem disse que eu consigo? Ele tá acabando com a minha vida, com a minha pouca
vontade de viver (LEITE, 2001, p. 14).
Percebe-se que a personagem narradora desabafa dizendo que sua sina é se
apaixonar por caras que não a querem. Como ela mesma relata: “Vou inventando que o
meu príncipe encantado é o Eduardo, o Charles, o Miro, o Pedro, o Guto, o Tony, o Zé
das Couves” (LEITE, 2010, p.14). E até comenta sobre a possibilidade de gostar de
mulheres, presente no seguinte fragmento:
o que tem de mulher linda que é sapato, você não imagina. Atrizes, modelos,
cantoras. Aquelas supergatas que fazem os homens babarem nas revistas
masculinas estão todas lá, fazendo sabonetinho com a namorada. Um dia eu
gostaria de trepar com uma mulher. Deve ser legal. Eu bem que tento
paquerar com elas mas ninguém me leva a sério” (LEITE, 2010, p. 43).
A personagem dedica a fita número um a um alguém imaginário, que ela chama
de “meu amor que vai chegar um dia, tenho certeza” (LEITE, 2010,p.14). Trata-se de
uma busca constante, incessante, desesperada pela companhia desejada, pelo homem ou
amor desejado, contudo, ela conclui ceticamente que: “pra quem tá se afogando,
qualquer aceno é aceno, qualquer tábua é a de salvação. Infelizmente, as tábuas onde eu
me agarro são podres e mal aguentam a si próprias. Imagina uma mulher que pesa duas
toneladas nas costas de um homem” (LEITE, 2010, p. 14).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1029
O desabafo retrata a figura de uma mulher contemporânea, imersa em uma
solidão que não acaba, pois a mesma não encontra o homem que diga “era você mesmo
que eu queria. Era você que eu tava esperando” (IBDEM, p.14). Toda a desilusão de
não conseguir encontrar o tão sonhado amor torna-se desejo de morrer, mas que
ironicamente “toda vez que eu penso em me matar esbarro na mesma questão: eu não
tenho revólver” (LEITE, 2010, p.32).
O suicídio é recorrente, mas o fato em si não acontece pela ausência do revólver ou falta
de coragem. Na fita número dois em diante, a personagem relata as experiências de
1985 e reafirma sua solidão falando sozinha ao gravador e, mesmo assim,
paradoxalmente, se sente feliz e que não vale a pena “pirar”, mesmo que o ano de 1985
tenha sido completamente vazio de paixões. A narradora faz uma autoanálise sobre essa
angústia de todo ano querer morrer e também comenta que tudo isso é resultado também
da “sociedade de consumo, passa pelo capitalismo selvagem, pelo desencantamento do
mundo, pela Rede Globo e desemboca em mim” (LEITE, 2010, p. 38). Em várias
passagens de outras fitas, a personagem narradora também discorre sobre a situação
político, social e econômica em que o Brasil se encontrava nos anos de 1985 a 1992.
Observa-se que se trata de uma mulher lúcida que realiza uma autocrítica interna e
externa da sua solidão ocasionadas pela ausência de amor próprio. Ela mesma afirma
que “a angústia é um mal social que acomete a todos nós na pós-modernidade (LEITE,
2010, p. 38). Os comentários sobre o social surgem a partir das análises em que seu
país, o Brasil se encontrava, com as Diretas Já, a Morte de Tancredo Neves, o novo
presidente do Brasil, José Sarney, o prefeito de São Paulo ser Jânio Quadros, o Brasil ter
escolhido nas primeiras eleições com voto livre, o senador Fernando Collor de Melo
para presidente da república, e, depois, as decepções sobre as denúncias de corrupção, o
impeachment de Collor, tudo isso, ano após ano, é contextualizado em suas gravações
ao lado de suas experiências amorosas e familiares.
É interessante observar: ao mesmo tempo em que a personagem relata que sua
vida estava muito louca, paradoxalmente, no outro dia ela já consegue dar a volta por
cima, tal característica é de uma mulher pós-moderna, fluida e dinâmica.
É na fita número três que a narradora relata mais profundamente sobre sua
relação com Charles. Homem casado com Tereza, que consegue “dividir” o mesmo
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1030
homem com a narradora e o Mauro, mas sempre numa relação de muito ciúme e
mentiras.
Charles é o amigo, amante, companheiro de farras e grande “amor” da narradora,
mas um homem efêmero, que vive pelo momento “embora seja eterno enquanto dure”.
Mesmo assim, a narradora tem com Charles o mais duradouro dos casos, pois os dois se
divertem a cada encontro que se prolonga em outros encontros, sempre regados a muito
vinho, muito amor nos bares, nos apartamentos, nas chácaras por onde se encontram.
São muitos acontecimentos narrados entre Charles e a narradora, contudo, a
mesma sempre se decepciona com o caráter descompromissado e preguiçoso de
Charles. Na fita número seis, a narrador reserva um pouco da sua fala para relatar sobre
sua família, isto é, seus pais. Em alguns momentos da narrativa ela conta que precisou
mudar-se para a casa dos pais pois tinha perdido o emprego da Caixa. Daí, ela diz
perder um pouco da sua privacidade e diz que seu quarto é sua última chance de
encontrar-se a si mesma:
De vez quando eu tenho minhas depressões, acordo chorando sem coragem
de levantar da cama. Mas não tem nada a ver com eles (pais) [...] quando eu
canso da barulheira, vou pro meu quarto e fico lá lendo um livro ou vendo
televisão. Eles respeitam minha privacidade e me deixam em paz. Nunca
gostei de confusões familiares (LEITE, 2010, p. 99).
Em outro momento desta fita, destaca-se o amor pelos cachorros, a relação da
narradora com os animais de estimação da casa dos pais. “Não tem coisa melhor do que
amar um cachorro e ser amada por ele. É o único amor incondicional que existe neste
mundo. O que sempre quis ter e não consegui” (LEITE, 2010, p. 102). É quando no sítio
onde foi morar com os pais que descobre este amor pelos cachorros Barão e Princesa,
realmente muito presentes na vida dela. “Eles agora moram comigo” (LEITE, 2010,
p.112). Na fita número oito, a narradora faz uma autoanálise ao fato de nunca ter dado
certo com seu ex-marido, o Pedro, pai da Gabi. Pedro era um ótimo marido, os dois
eram católicos praticantes e levavam uma vida tranquila, até que a personagem diz ter
se cansado da monotonia da vida de casados. Eles se separam. Posteriormente, conta-se
que o Pedro contrai a doença Aids e o mesmo morre. Na sequência, a espiritualidade da
narradora também é abordada, pois a mesma já tinha participado ativamente da
carismática, de esoterismo, mas ao final de tudo preferia “rezar sozinha”, pois ninguém
do catolicismo a aceitaria do jeito louca de ser.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1031
Por mais que eu gostasse daquela espiritualidade, não tinha como
compartilhar minha vida com aquelas pessoas. Eles jamais me aceitariam
como eu era e eu não tava disposta a abrir mão disso por nada do mundo.
Abandonei o grupo e vim pra casa rezar sozinha. Essa história de confundir
religião com babaquice não tá com nada (LEITE, 2010, p. 140).
Neste contexto solitário, a narradora mostra a importância também de um
psicanalista na vida dela a fim de se entender melhor: comecei a análise dia 25 de março
e nunca mais parei. Duas vezes por semana, religiosamente, eu deito minha cabecinha
naquele divã abençoado e deixo o Camilo fazer o que quiser comigo. O cara tá me
pondo em pé de novo graças a ele, eu saí da pasmaceira que tava vivendo e tô voltando
à vida (LEITE, 2010, p.140).
A angústia da personagem em busca de paz, de companhia, de
autoconhecimento, espiritualidade, amor, tranquilidade profissional, independência não
cessam. A ausência de tudo isso no outro traduz-se na palavra solidão. Ela tem a
amizade de Charles nas farras, nas loucuras de amor, mas não encontra nele
responsabilidade e seriedade para viver um relacionamento sério com o mesmo.
Na fita número nove, a última do romance, retrata-se a última grande decepção
da personagem, saber que Charles, seu amante, ao ir à Europa conhece um rapaz pelo
qual se apaixonou e voltou ao Brasil dizendo que tinha encontrado a sua felicidade ao
lado de um moço chamado Juca.
Depois de um mês e pouco, uma noite toca o telefone de novo: ‘oi cheguei, tô
na Boca da Noite. Vem pra cá’. Eu me vesti e fui. Dessa vez sem tanta pressa. Quando
cheguei, ele contava as novidades da viagem pra uma mesa cheia de gente e todos
morriam de rir das trapalhadas que ele fez no Velho Mundo. Sentei ali perto e fiquei
ouvindo. Ao lado dele tinha um rapaz bonitão a quem ele se dirigia especialmente. Deve
ser o novo namorado, pensei. O Mauro tinha morrido há menos de um ano de Aids. Daí
a pouco ele me chamou pra mesa dele e fez questão de me apresentar: ‘Esse é o Juca,
um amigo meu’. Eu tomei dois chopps e fui pra casa ver televisão que eu ganhava mais
(LEITE, 2010, p. 155).
Aquele homem a quem ela tanto amava (Charles) e fizera tudo por ele durante os
momentos de amizade, farras, diversões, a trocara definitivamente por um rapaz. A dor
da solidão retorna e desfecha o livro com o desfecho de toda a cena:
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1032
Aquele homem a quem ela tanto amava (Charles) e fizera tudo por ele durante os
momentos de amizade, farras, diversões, a trocara definitivamente por um rapaz. A dor
da solidão retorna e desfecha o livro com o desfecho de toda a cena:
São 2 da manhã. Eu tô falando desde a meia noite sem parar. Meu copo tá
todo ensebado. Acho que bati as cinzas do cigarro nele sem parar. [...] O pior
é que Camilo tá de férias e amanhã eu não vou ter com quem falar. Se ao
menos a empregada tivesse acordada, eu conversaria com ela (LEITE, 2010,
p.157).
A solidão é sempre amenizada pelos cachorros Barão e Princesa, seus únicos e
incondicionais amores. A narradora afirma:
Não sei o que seria da minha vida sem esses cachorros. Isso sim é amor de
verdade. Esses dois nunca me decepcionam. Eles não dizem que vão ligar e
não ligam, que vão vir aqui e não vêm, que me amam e trepam com outra na
primeira esquina. Eles são capazes de matar se alguém me fizer mal (LEITE,
2010, p. 157)
É com este teor de nostalgia, decepção e ceticidade que a personagem narradora
mostra como encara a vida, os acontecimentos e experiências, desejos, inquietações.
“Alameda Santos” retrata de forma “crua e nua” o pensamento de uma mulher
solitária paulistana que recorre a todas as alternativas possíveis e impossíveis para
alcançar o amor, a paixão, a liberdade de ir e vir, mesmo que para isso ela tenha que
passar por tantas decepções.
Como afirma Silva (2010, p. 201), “[...] a obra de Ivana Arruda Leite é rica,
aborda com maturidade a violação de códigos sociais, associada à manutenção de
estruturas arcaicas, à medida que problematiza o assunto na representação literária”.
Percebe-se que a solidão é construída paulatinamente em cada fita gravada pela
personagem através das narrações decepcionadas da personagem relatando as
experiências amorosas, familiares e profissionais sempre queixando-se de que não
deram certo. A narradora demonstra uma dependência afetiva do outro e como não
encontra o que busca neste outro, a solidão é única companheira. sociais.
A construção da solidão nas narrações deste livro acontece a cada desilusão
amorosa da personagem. Ela não conseguiu encontrar o afeto desejado nos ex-
namorados, no ex-marido nem no ex-amante, pois os mesmos apresentavam aspectos
que não a tornavam feliz em sua plenitude. Como a própria narradora desfecha a sua
nona gravação:
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1033
Não sei o que seria da minha vida sem esses cachorros. Isto sim é amor de
verdade. Esses dois nunca me decepcionam. Eles não dizem que vão ligar e
não ligam, que vão vir aqui e não vêm, que me amam e trepam com outra na
primeira esquina [...] O Charles foi passar o natal em Ubatuba com o Juca e
me disse que me ligava quando voltasse pra gente passar o réveillon juntos
[...] Um dia ele vai sentir saudade do meu amor. Um dia eu vou esquecer dele
mas ele nunca vai se esquecer de mim. Pelo resto da vida ele vai lembrar do
tempo que foi amado por uma mulher que era capaz de matar e morrer por
ele. E vai sentir muita falta desse amor, tenho certeza. Vou desligar. Tchau.
(LEITE, 2009, 158).
A decepção por não ser vista como aquela que se doou ao máximo pelo outro em
busca do amor é traduzida pela tristeza e solidão, pois a narradora coloca que os
cachorros são sua única companhia, demonstrando, desta forma, que o peso da solidão
recai sobre a personagem. Destaca-se, neste sentido, a condição feminina de um Ethos
solitário da personagem, que ora também utiliza uma linguagem irônica, sarcástica, ora,
uma linguagem sentimental para representar sua condição solitária e dependente do
‘amor’.
4 ANÁLISE DO CORPUS “TREM-BALA”, DE MARTHA MEDEIROS
Tomou-se como segundo corpus, a coletânea de crônicas da autora Martha
Medeiros “Trem-Bala”. As crônicas foram também publicadas nos jornais O Globo e
Zero Hora. Ao todo, o livro é composto de 112 (cento e doze) páginas, só que destas
112 (cento e doze), extraíram-se 20 (vinte) crônicas em que relatavam especificamente
opiniões sobre a figura feminina nos dias atuais. Dentro destas 20 (vinte) crônicas,
foram selecionadas três crônicas como forma de ilustrar analiticamente a linguagem
utilizada para abordar sobre a mulher contemporânea na visão de Martha Medeiros.
Ao todo, foram 03 (três) crônicas analisadas da coletânea de 112 (cento e doze)
crônicas “Trem-Bala”, escrita por Martha Medeiros: “As boazinhas que me perdoem”;
“O que quer uma mulher” e “Mulher de um homem só”.
A crônica “As boazinhas que me perdoem”, destaca-se pela linguagem autêntica,
direta e clara da autora. Não é por acaso que é a primeira do livro: “Trem-Bala”. A
autora inicia seu texto com duas problemáticas a serem argumentadas detalhadamente.
Uma sobre qual o elogio que toda mulher adora receber e, outra, sobre o que faz uma
mulher detestar escutar.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1034
Em um único parágrafo, Martha Medeiros utiliza a linguagem coloquial
personificando-se no discurso da mulher contemporânea como aquela que gosta de ser
elogiada em todos os sentidos, desde os físicos ou morais, o que não se tolera é escutar
o adjetivo diminutivo “boazinha” originado de outros adjetivos diminutivos como
“queridinha, pequenininha, educadinha, ceguinha”.
Se a mulher dos séculos passados “engolia tudo”, “fingia” e “vivia rodeada de
panelinhas e nenezinhos”, a mulher contemporânea que Martha Medeiros aborda é uma
outra completamente diferente e alheia a tais adjetivos. A autora associa o vocábulo
“boazinha” a “coitadinha”, “comportadinha”, sempre “disponível, serena, previsível,
nunca foi vista negando um favor”. Trata-se de um ethos irônico quanto a este
comportamento “diminutivo”, ao qual a mulher se amparou durante muito tempo.
Para a autora, a mulher de hoje é uma mulher de atitudes velozes, que odeia ser
chamada de “boazinha”. A mulher atual é uma mulher “bacana, complicada,
batalhadora, persistente, ciumenta, apressada”. Trata-se de um ethos veloz, eficiente,
contemporâneo.
A própria autora, em sua crônica, insere-se no discurso, utilizando a 1ª
(primeira) pessoa do plural (nós) e afirma: “é isso que somos hoje. Merecemos adjetivos
velozes, produtivos, enigmáticos. As “inhas” não moram mais aqui. Foram para o
espaço, sozinhas” (MEDEIROS, 2012, p. 12).
Neste sentido, percebe-se que o olhar da autora sobre o feminino no contexto do
contemporâneo, é de que a mulher é um ser imperfeito e complicado e, por outro lado,
batalhador e persistente.
Na crônica “O que quer uma mulher”, Martha Medeiros discute o paradoxo do
pensamento feminino. Ao mesmo tempo em que a mulher contemporânea é este ser
veloz, “até as mais modernas e cosmopolitas têm o sonho secreto de encontrar um
príncipe encantado”.
Em outras palavras, argumenta-se que toda mulher deseja ser “resgatada da torre
do castelo [...] ouvir eu te amo só no ultimo capítulo”. E nesta busca na qual a autora
discute, nem sempre o homem consegue corresponder à expectativa de uma mulher,
pois “nenhuma mulher se sente amada o suficiente”.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1035
Com esta última oração, a autora desfecha sua crônica demonstrando o caráter
completo da mulher contemporânea, imerso em uma encruzilhada: de um lado, é uma
mulher veloz, de outro, uma mulher que busca o amor a todo custo.
Na última crônica analisada, “Mulher de um homem só”, Martha Medeiros
deflagra ainda mais o paradoxo que permeia o ser feminino: ao mesmo tempo em que a
mulher deseja ser raptada pelo amor, ela não gosta da monotonia, do mesmo, ela quer
ter uma vida agitada. Ela quer liberdade.
A mulher de um homem só casou virgem com um escritor que detesta
badalação. A última festa em que ele compareceu foi a do seu próprio
casamento, a contragosto [...] A mulher do homem só, então passou a ter
agenda cheia: o professor de computação, o gerente do banco, o dono do
posto de gasolina. Vivia para cima e para baixo com seus novos amigos:
cinema, shopping [...] Não corria o risco de encontrar o marido em nenhum
desses lugares. Começou a usar decotes, maquiagem e ria alto. Nunca se
sentira tão feliz (MEDEIROS, 2012, p. 28).
Na leitura de apenas três crônicas, observa-se que a abordagem sobre a mulher
contemporânea na visão de Martha Medeiros é de uma mulher que se apresenta em um
ethos corajoso, ativo, que está sempre buscando a felicidade e a liberdade, mas também
quer ser amada por um “príncipe encantando”.
5 CONSIDERAÇÕES
Ao longo da leitura de “Alameda Santos”, de Ivana Arruda Leite, fica evidente
que a solidão é a grande característica da mulher emancipada, aquela que tenta de todas
as vias ser feliz, encontrar o amor desejado, tentar equilibrar família, religião, amor,
amigos e trabalho.
Trata-se de uma mulher que cumpre seus deveres e reivindica seus direitos de
cidadã. Uma mulher transgressora que repudia qualquer tipo de discriminação ou
preconceito e tenta desconstruir modelos socioculturais de falso moralismo
condenatório do corpo feminino.
No dizer de Silva (2010, p. 16) “a natureza intrínseca do Feminino dita a
essencialidade do ser e do sentir como mulher, muitas vezes contrariando a ordem
sociocultural estabelecida pelo homem porque esse sentir percorre as profundezas do
corpo e da mente”.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1036
A dependência afetiva e o não preenchimento desta sensação deixam a
personagem narradora mergulhada em seus próprios pensamentos ao lado apenas de
seus animais de estimação. Isto mostra a condição solitária de uma mulher emancipada
em plena contemporaneidade onde a mulher tem toda a liberdade de ser o que quiser
fazer, o que lhe convém, mas que ainda enfrenta esta grande batalha, vencer a solidão e
encontrar seu verdadeiro afeto, ou, amor.
Trata-se de ethos contemporâneo em sua essência do feminino, no livro de Ivana
Arruda Leite, pois a mulher já ocupa sua independência financeira, mas ainda, não
consegue se “livrar” da dependência psicológica do “amor”. Em Martha Medeiros,
percebe-se este ethos de dependência na terceira crônica, quando ela afirma que a
mulher mesmo batalhadora, persistente, ainda sonha em ser raptada pelo “príncipe
encantado”.
O Ethos das crônicas de Martha Medeiros se caracteriza por traduzir um olhar
realista acerca da figura feminina na contemporaneidade. Defende-se a construção de
uma mulher determinada, que sabe o que quer que luta por seus ideais profissionais e
amorosos, sem deixar de ser autêntica. Apesar de todas as dificuldades pelas quais a
mulher dos dias atuais passa, seja passando por problemas interiores ou não, a mulher
atual é aquela que está sempre a procura da felicidade.
6 REFERÊNCIAS
DOIDIVANA. Blog de Ivana Arruda Leite. Disponível em:
https://doidivana.wordpress.com/. Acesso em: 15 abr. 2015.
LEITE, Ivana Arruda. Alameda Santos. São Paulo:Iluminuras, 2009.
MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. São Paulo: Cortez,
2001.
MAZZONI, Vanilda Salignac. A escrita feminina: em busca de uma teoria. In: Revista
Ramal de Ideias. N.1, 1998. Disponível em:
http://repositorios.ufac.br/index.php/ramal/article/viewArticle/12, acesso em 07 de jan.
2010.
MEDEIROS, Martha. Trem-bala. Porto Alegre: L& PM, 2012.
SILVA, Antonio de Pádua Dias da. Mulheres representadas na literatura feminina:
vozes de permanência e poética da agressão. Campina Grande: EDUEPB, 2010.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1037
VOCÊ VIU TU, SENHOR? COMPETIÇÃO DE
TRATAMENTO EM CARTAS DO SERIDÓ E
CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO [Voltar para Sumário]
Gisonaldo Arcanjo de Sousa (UFRN)
Introdução
A multiplicidade de formas atinge a língua portuguesa no que tange à codificação
linguística dos pronomes pessoais usados pelo seridoense, precisamente o
TU/VOCÊ/SENHOR (doravante, TVS) escritos em cartas pessoais da cidade de Caicó-
RN, nos anos de 1980, 1981 e 1982. Acredita-se que o caráter diversificador dos itens
da língua surge com a finalidade de atender às necessidades de comunicação dos
falantes porque a língua – qualquer uma – é dinâmica, não para, evolui, passa por
mudanças sofrendo (ou não) variações.
Busca-se, assim, neste artigo mapear a frequência do uso das formas em
competição Senhor, Você e Tu em amostras de cartas do Seridó, precisamente, escritas
em Caicó nos anos de 1980, 81 e 82, retiradas do Corpus do LABEL – Laboratório de
Linguagens do CERES, Campus de Caicó; observar se existe outro pronome capaz de
competir com os mesmos, neste caso o “a gente” – muito comum na fala local; observar
se os missivistas tenderiam a usar, indistintamente, o pronome de tratamento para
segunda e/ou terceira pessoa; refletir sobre o grau de intimidade, baseando-se no
conteúdo das cartas, precisamente, a relação de poder estabelecida entre os escribas.
É possível afirmar que há uma crescente utilização do você em substituição ao tu
como uma opção de tratamento e um declínio com relação ao Senhor. Tal escolha vem
alterando também a concordância e, de certa forma, provocando mudanças na maneira
de se expressar. Essa mudança já é notada a partir dos meados do século XIX.
A variação observada entre as formas pronominais do tu, você e senhor no
português brasileiro é uma questão já evidente. De forma tímida, no fim do século XIX,
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1038
percebe-se a coexistência do tu e do você em referência a um mesmo interlocutor
(BARCIA, 2004). Fenômeno também investigado por Duarte (1993) que, observando
amostras de peças teatrais do Rio de Janeiro, produzidas nos séculos XIX e XX, verifica
que o emprego de você supera o uso de tu. No entanto, Paredes e Silva (2000), afirma
que o tu regressou ao dialeto carioca, sem a flexão da forma verbal adequada de
segunda pessoa.
O interesse pela questão do tuteamento, do voceamento e do senhoramento tem
suscitado diversos estudos acerca dos fatores linguísticos que teriam provocado o
processo de mudança, por exemplo, de Vossa Mercê > você. Já se percebe que o você se
encontra integrado ao sistema de pronomes pessoais, às vezes, substituindo o tu ou
convivendo ao lado deste, se é que o verbo traga a marcação de segunda pessoa como
prescreve a gramática da norma. É notório também que o senhor, pronome de
tratamento por natureza, vem se distanciando de sua empregabilidade e ganhando outra
dimensão. Às vezes se flagra concorrendo com o tu e o você em contextos nada formais.
Sob o aparato da Sociolinguística Quantitativa ou Variação e Mudança
(WEINREICH, LABOV e HERZOG, 1968), observam-se muitas pesquisas no Brasil
que esclarecem, através de seus resultados, a temática ligada à mudança dos pronomes
de tratamento em estudo.
Dessa forma, tem-se como força propulsora investigativa nesta pesquisa
reflexões sobre o percurso da mudança ocorrida com o TVS na cidade formadora da
amostra. Pensa-se em uma investigação que possa evidenciar, identificar, documentar e
caracterizar uma (das várias) variantes linguística do Seridó, dando oportunidades para
se comparar com outros estudos do mesmo naipe do cenário linguístico nacional.
O suporte teórico se fixa prioritariamente na Sociolinguística variacionista
(WEINREICH, LABOV, HERZOG, 1968), que preza um estudo de variação e mudança
em uma determinada comunidade, baseando-se em dados reais de fala. Tal teoria julga
que toda língua pode sofrer variação de forma sistemática. Nada impede que se peça
ajuda à Linguística cognitivista, ainda, durante a investigação, para buscar, junto com o
arcabouço teórico variacionista a comprovação, ou até, quem sabe, refutar a tese de
competição dos pronomes de tratamento na Região do Seridó.
Para esta pesquisa, delimita-se um corpus composto por uma amostra de apenas
21 cartas escritas nos anos de 1980, 1981 e 1982 (sendo sete de cada ano) e dispostas no
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1039
antigo LABEL – Laboratório de Linguagens do CERES – Centro de Ensino Superior do
Seridó, Campus de Caicó. Salienta-se que o todo o banco de dados se encontra com o
pesquisador.
O trabalho se estrutura em uma introdução, referencial teórico, resultados,
contribuições para o ensino, considerações finais e referências.
Referencial teórico: A teoria da variação
O que se tem de mais relevante na Teoria da Variação e da Mudança Linguística
foi estabelecido no trabalho de Weinreich, Labov e Herzog (2006) publicado em 1968.
Tal trabalho rompeu com a ideia estabelecida pela corrente de estudos linguísticos que
prezava pela identidade entre estrutura e homogeneidade. Para substituir essa visão foi
proposto um estudo, baseando na heterogeneidade ordenada da língua, o que os autores
ditam como “a possibilidade de descrever a diferenciação ordenada dentro da língua”.
Labovianamente falando:
A existência de variação e de estruturas heterogêneas nas comunidades de
fala investigadas está certamente bem fundamentadas nos fatos. É a
existência de qualquer outro tipo de comunidade de fala que deve ser posta
em dúvida (LABOV, 2008, p. 238)
A variação é inerente à língua. É o que, segundo Labov (2008, p.313), traduz
duas ou mais formas distintas de dizer a mesma coisa. Tal fenômeno é chamado de
variante. Dessa forma, cada variável pode representar uma forma abstrata que se
materializa nas suas formas variantes. Na pesquisa em tela, a variável linguística se
configura na segunda pessoa do singular e nas forma variantes tu, você, senhor. Atenta-
se para a possibilidade de haver, em alguns casos, contextualmente, falando, variantes
sendo utilizadas de forma categórica, invariável, aí cabe os estudos da variação
descreverem como uma determinada variável linguística se configura.
O objetivo maior dos estudos variacionistas é a língua cotidiana, que para Labov
(2008, p.244) chama-se vernáculo, “o estilo em que se presta o mínimo de atenção ao
monitoramento da fala”. Vê-se, então, que o estudo da língua nesta teoria, acontece no
contexto social.
Outra temática valorizada na Teoria da Variação é o da mudança linguística.
Não se pode entender o desenvolvimento da mudança em uma comunidade sem levar
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1040
em consideração a vida social dos usuários da língua, pois pressões sociais exercem
pressão sobre a mesma. O que se observa é que não só os fatores internos devem ser
analisados para se compreender os padrões das manifestações das línguas, mas também
os externos.
Veja-se o que afirmam Weinreich et al (2006, p. 126):
Fatores linguísticos e sociais estão intimamente inter-relacionados no
desenvolvimento da mudança lingüística. Explicações confinados a um outro
aspecto, não importa quão bem construídas, falharão em explicar o rico
volume de regularidade que pode ser observado nos estudos empíricos do
comportamento linguístico.
Assim, grosso modo, o ato de estudar um fenômeno da língua deve considerar
tanto os aspectos da estrutura (fatores internos) quanto os sociais (fatores externos).
Sobre o exposto Guy (2007, p.19) afirma:
Um dos atrativos – e um dos desafios – da pesquisa dialetal é a de ter a visão
de Jano sobre os problemas da linguagem humana, simultaneamente olhando,
de um lado, para a organização das formas linguísticas, e, de outro, para a sua
significância social.
Entende-se, assim, que a análise das formas variantes de uma variável linguística
pode revelar comportamentos que são explicados pela ação de fatores linguísticos e
sociais; que a variação não é aleatória, mas estruturada e que pode ser explicada; e ainda
que uma análise das formas tratadas de segunda pessoa, como é esta, acontece em
interação, não podendo deixar de ser auxiliada pelas ciências da cognição.
À medida em que se propõe analisar a variação, e possível mudança, do TVS na
fala do seridoense, procura-se identificar também os fatores linguísticos e sociais
condicionantes desta variação. Desse modo, os pressupostos teórico-metodológicos da
sociolinguística variacionista de Labov se mostram essenciais e eficazes.
Esclarece-se que comunidade linguística é vista como um grupo de pessoas que
comungam de normas e atitudes com respeito à linguagem, mas não como um grupo de
pessoas que falam do mesmo modo (LABOV, 1972/1991/2011). Embora compartilhem
de uma variedade de língua e sua fala demonstre os recursos linguísticos disponíveis em
sua volta, elas podem apresentar grande diversidade entre si, quando se considera sua
performance objetiva.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1041
As variantes linguísticas são definidas como alternativas de dizer a mesma
coisa, num mesmo contexto, e com o mesmo valor de verdade. Dessa forma, elas têm,
portanto, igual valor de referência, mas às vezes podem diferir quanto ao seu valor
social (LABOV, 1972/1991).
O uso do você em detrimento do tu e do senhor na fala do seridoense, mais
precisamente em cartas pessoais de Caicó, pode ser considerado um caso de variação já
que, na perspectiva Laboviana, esta variação é sistemática, não-aleatória, na medida em
que é condicionada tanto por fatores internos ao sistema linguístico, como fatores
externos, de natureza social.
Os resultados...
Expõem-se aqui os resultados quantitativos das formas pronominais de
tratamento levantadas no corpus desta investigação com relação à frequência de uso,
seguido de análises qualitativas.
Quadro1: Frequência de uso das tvs
Formas utilizadas
tu você(s) senhor outros
2(1%) /172(100%) 158(93%) /172(100%) 12(6%) / 172(100%) 0 (0%)
Fonte: elaboração própria
A visível predominância do você sobre tu já era de certa forma esperado tendo
em vista que o Seridó experimenta, assim como todas as regiões e sub-regiões do país as
pressões advindas da dinamicidade da língua. O que é de fato importante apontar é a
predominância quantitativa do tratamento senhor sobre o tu, mesmo em cartas pessoais,
apesar dos dados significantemente escassos.
Veja-se no exemplo da carta (1):
A, meu abraço
A finalidade desta linha é para dartes ás minhas notícias que estamos todos com saúde
graças a Deus, ás mesmo desejo que vá ti encontra com os seus. Camp: recebir o dois mil Cr$
que o senhor mim enviou muito obrigado Deus lhe der muita saúde e o mente os seus dias de
registência... ( Carta 1)
O tratamento senhor é utilizado formalmente (pelo menos é o que preconiza a
gramática tradicional). Assim, cartas pessoais pela sua natureza menos formal não
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1042
deveria aparecer com certa evidência competindo com o tu. Talvez a escolha fora
condicionada pela dimensão de poder.
Segundo Brown & Gilmar (1960), quando uma pessoa interage com outra, está
exercendo uma sobre a outra, níveis de poder, o que pode acarretar uma assimetria no
tratamento. Dessa forma, o tipo de correspondência, assim como a relação emissor –
destinatário poderá influenciar na escolha de uma ou de outra forma de tratamento.
Uma pessoa pode exercer o poder sobre a outra na medida em que é capaz de
reger o comportamento da mesma, quer seja pela força física, quer seja pela situação
econômica, posição familiar, etc. Tal relação não se configura como recíproca uma vez
que pode variar de acordo com a área de atuação. O poder, ainda, pode estar relacionado
a outros fatores como diferença de idade, profissão, etc. Características às quais, por
vezes recorrentes, se atribuem ao valor social, dependendo, claro, de cada comunidade
linguística.
O uso do senhor que aparece nas amostras usadas como corpus deste trabalho
parece estar ligado à posição familiar. Entretanto, observando o fragmento abaixo,
observa-se outro entendimento:
Atente-se para a carta (2):
Caicó, 17 07-82
L Saudações.
Ao fazer desta fico gozando saúde juntamente com minha filha...(...)Olhe L
quero ti dizer que entre nós não existe mais nada tudo acabou certo? Foi você que quis
assim, não foi...Olhe não adianta o senhor fica mim telefonando nem mim escreva carta
dizendo que mim ama, que esta arrependido do que fez certo? Que eu não vou aceita ta.
Eu nunca vou esquecer o que o senhor fez comigo, o senhor mim maltratava, sabia que
eu amava o senhor e fez isso comigo. Coisa de menino mesmo...(...)
As cartas pessoais são remetidas para um destinatário individualizado e próximo.
Nelas poderão aparecer assuntos de natureza diária como saúde, tomadas de
empréstimos, conselhos, agradecimentos, relacionamento amoroso ou odioso, etc. No
fragmento acima, por exemplo, percebemos ironia no senhor utilizado. Tal suposição é
confirmada com a expressão “coisa de menino mesmo”.
Apesar de existir em uso outro competidor para as formas em estudo, por
exemplo, a gente, não foi encontrado nenhum dado que confirmasse tal uso.
Procurou-se condensar os dados na tabela abaixo. Nela observa-se o
mapeamento geral. O você aparece absoluto em quase todos os contextos das cartas,
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1043
quer visível, sob forma de pronome, quer invisível, através das disposições
combinatórias verbais que resulta no sujeito oculto você.
Quadro do Mapeamento dos usos de Tu, Você e Senhor
Natureza da carta Sexo – emissor Sexo - receptor Relação de poder Pronome
01 Amizade F – chefe F - empregada superioridade Você
02 Amizade F – chefe F - empregada superioridade Você
03 Familiar F – Mãe M – filho superioridade Você
04 Amizade F – amiga F – amiga Igualdade Você
05 Amizade F – amiga F – amiga Igualdade Você
06 Amizade F – amiga F – amiga Igualdade Você
07 Familiar F – mãe F – filha Igualdade Você
08 Amizade F – amiga F – amiga Igualdade Tu
09 Amizade F – amiga F – amiga Igualdade Você
10 Familiar F – irmã F – irmã Igualdade Você
11 Familiar M – sobrinho F – tia Igualdade Você
12 Familiar F – irmã M – irmão superioridade Você
13 Familiar M – sobrinho F – tia Igualdade Você
14 Amizade F – amiga F – amiga Igualdade Tu
15 Familiar F – irmã F – irmã superioridade Você
16 Familiar F – irmã F – irmã Igualdade Você
17 Familiar M – filho M – pai inferioridade Senhor
18 Amizade F – amiga F – amigo inferioridade Senhor
19 Amizade F – irmã F – irmã Igualdade Você
20 Amizade F – irmã F – irmã Igualdade Você
21 Amizade F – mulher M – homem superioridade Senhor
Fonte: elaboração própria
Contribuições para o ensino
Diante de uma realidade em que o aluno se depara com fenômenos em variação,
como o uso do TU, VOCÊ e SENHOR, é relevante que a escola se sinta preparada para
não reproduzir a discriminação linguística. (BRASIL, 2001). É papel do professor
favorecer o processo de reflexão da língua para que o aluno perceba que o processo
linguístico é interativo e dinâmico.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1044
Como dizem os PCNs (BRASIL, 2001, p. 82) “ é enorme a gama de variação e,
em função dos usos e das mesclas constantes, não é tarefa simples dizer qual é a forma
padrão (efetivamente, os padrões também são variados e dependem das situações de
uso”)
Pensando assim, as formas TVS devem ser tratadas em nível de igualdade, sem
espaços para preconceitos. Mesmo sabendo que existem diferenças em relação ao uso
dessas formas, gerado pelas avaliações subjetivas advindas do convívio cultural, todas
devem ser tratadas como legítimas. Veja o que diz os PCNs (BRASIL, 2001, p. 82):
É importante que o aluno, ao aprender novas formas linguísticas,
particularmente a escrita e o padrão de oralidade mais formal orientado pela
tradição gramatical, entenda que todas as variedades linguísticas são
legítimas e próprias da história e da cultura humana.
Inspirando-se ainda nos PCNs (2001, p.82-83), algumas atividades são salutares
para se trabalhar com a variação linguística, as quais passa-se a se transcrever com
adaptações:
Transcrição de textos orais, gravados em vídeo ou cassete, para
permitir identificação dos recursos linguísticos próprios da fala;
edição de textos orais para apresentação, em gênero da modalidade
escrita, para permitir que o aluno possa perceber algumas das diferenças entre
a fala e a escrita;
análise da força expressiva da linguagem popular na comunicação
cotidiana, na mídia e nas artes, analisando depoimentos, filmes, peças de
teatro, novelas televisivas, música popular, romances e poemas;
levantamento das marcas de variação linguística ligadas a gênero,
gerações, grupos profissionais, classe social e área de conhecimento, por
meio da comparação de textos que tratem de um mesmo assunto para
públicos com características diferentes: (...)
análise de fatos de variação presentes nos textos dos alunos;
análise e discussão de textos de publicidade ou de imprensa que
veiculem qualquer tipo de preconceito linguístico;
análise comparativa entre registro da fala ou de escrita e os preceitos
normativos estabelecidos pela gramática tradicional.
Sendo assim, o professor deve promover reflexões e análises de textos de
gêneros diversos, nas modalidades de fala e de escrita, nos níveis formal e informal,
abrindo espaços para variações da língua vernácula, estilos, regiões e condições sociais
também diversas. Desse modo, possibilita-se ao aluno momentos de reflexão e a
abertura para o contato com a diversidade e o respeito às diferenças, assim como, o
favorecimento do desenvolvimento da competência comunicativa do mesmo.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1045
Considerações finais
A análise realizada fornece algumas evidências acerca do uso das formas TVS
na cidade de Caicó, Seridó potiguar. De modo geral, pode-se dizer que a forma você é a
mais recorrente entre os informantes dispostos em cartas pessoais, usadas como
amostras.
Os resultados emergidos corroboram algumas hipóteses que nortearam este
estudo. Pelos dados, ousa-se dizer que os missivistas utilizam-se, indistintamente, o
TVS sem se preocupar com a concordância com a pessoa do discurso.
Não foram identificadas outras formas que pudessem competir com o TVS.
Nesse caso, esperava-se que o a gente, muito comum em falas coloquiais, aparecesse
nas análises.
Com relação ao grau de intimidade, o teor das cartas apontou para uma forma
igualitária no tratamento (13(62%)/21(100%)), no entanto, aparecem tratamentos
denotando superioridade (06(29%)/21(100%)) e inferioridade (02(9%)/21(100%)).
Relativamente às implicações para o ensino, o estudo das formas em variação,
como é caso das TVS, merece ser visto a partir do texto, promovendo-se situações de
gêneros e formalidades diversas para que o aluno entre em contato com uma diversidade
maior de situações linguísticas, sem margens para se desenvolver o preconceito.
É válido ressaltar que esta pesquisa está em andamento, daí a limitação dos
dados, sendo interessante, para o futuro, fazer um estudo mais pormenorizado sobre a
temática incluindo mais dados quantificadores, envolvendo não só a cidade de Caicó,
mas também, as demais cidades que compõem o Seridó.
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Nas fronteiras da linguagem ǀ 1048
ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES DA ANÁLISE DIALÓGICA
DO DISCURSO À LEITURA DE POEMAS LÍRICOS [Voltar para Sumário]
Helio Castelo Branco Ramos (IFPE)
Introdução
O processo de escolarização do texto literário tem sofrido críticas as mais
diversas. Na década de 1970, por exemplo, Osman Lins (1977) fez uma crítica severa à
seleção de textos literários presentes em livros didáticos, que ele julgou desprovida de
um critério estético, o que, na época, deixou de fora autores como José Lins Rêgo e
Graciliano Ramos. Outro aspecto também criticado pelo autor é o fato de o livro
didático subestimar a competência leitora do aluno, apresentando uma série de
quadrinhos para explicar fenômenos linguísticos que poderiam ser explicados apenas
verbalmente. Segundo ele, essa “Disneylândia pedagógica” poderia fazer com que o
aluno, hiper-exposto à leitura de quadrinhos, não se tornasse leitor do texto literário.
Uma terceira crítica, sobre a qual iremos nos deter, diz respeito a questões
teórico-metodológicas na Educação Básica. Várias pesquisas, entre elas, as de Aguiar e
Bordini (1993), Cosson (2006), Cosson e Paulino (2009) e Lajolo (2010) apresentam a
necessidade de um ensino que enfoque a leitura efetiva do texto literário, sem desprezar
o estudo acerca do fenômeno literário. De um modo geral, o que esses pesquisadores
defendem é que a escola não tem privilegiado a experiência com a leitura de textos
literários concretos, mas um estudo de elementos periféricos ligados à produção das
obras literárias. Ou seja, nela, tradicionalmente, tem-se discutido o contexto histórico
em que uma obra foi publicada, apresentado algumas características estilístico-
estruturais de determinada estética literária e uma lista de autores representantes dessa
estética, e, por fim, identificado no texto literário algumas dessas características (nos
raros casos em que o texto está na sala de aula). Ao assumir essa postura, a escola
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1049
brasileira não oportuniza uma leitura do texto literário como um evento discursivo, isto
é, como uma unidade de comunicação artística na qual o autor estabelece um diálogo
com o público leitor de sua época e com o público de outros contextos sócio-históricos.
Essa crítica de ordem teórico-metodológica não se limita à configuração das
aulas, mas se estende à abordagem da Literatura em livros didáticos. Pinheiro (2007;
2009), ao analisar essa abordagem, endossa a crítica de outros pesquisadores no que se
refere ao enfoque dado à identificação de elementos estilístico-estruturais de uma
estética literária na análise de um texto. Além disso, chama a atenção para outros
aspectos negativos, como o a omissão de referências bibliográficas importantes para a
abordagem dos textos e o caráter reduzido e fragmentário da antologia de textos
literários, sobretudo daqueles do gênero poema lírico.
Considerando que, atualmente, as coleções didáticas do Ensino Fundamental e
Médio têm sido avaliadas por universidades públicas através do Programa Nacional do
Livro Didático (PNLD), levantamos a hipótese inicial de que tal abordagem não
estivesse mais presente no trabalho com os textos literários de um modo geral e com os
poemas líricos em particular. Desse modo, escolhemos o terceiro volume da coleção
Português: linguagens, de Cereja e Magalhães, obra avaliada pelo PNLD e que adota a
Análise Dialógica do Discurso, entre outros pressupostos teóricos. Diante da
impossibilidade de fazer análise de um grande volume de dados num artigo científico,
selecionamos uma atividade representativa da abordagem de poemas líricos: um
exercício de compreensão leitora proposto para o poema Psicologia de um vencido, de
Augusto dos Anjos. Julgamos que a escolha dessa obra poderia nos fazer perceber: a)
em que medida se dava a articulação entre os diferentes aspectos que constituem a
compreensão leitora de um poema lírico num livro didático (LD) que adota uma noção
discursiva dos gêneros literários e b) observar a coerência entre a discussão teórica
presente no manual do professor e a proposta metodológica subjacente aos exercícios.
Os resultados apontaram que, apesar de se basear nos pressupostos da Análise
Dialógica do Discurso, o LD analisado ainda apresenta uma tradição de ensino que
busca inscrever os poemas em estilos de época. Contudo, também é possível perceber
um esforço para avaliar se o aluno possui algumas habilidades, tais como a identificação
da temática global do poema e do posicionamento discursivo do poeta, sem ensinar,
porém, como criar estratégias para o desenvolvimento de tais habilidades.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1050
Nosso trabalho divide-se em três momentos. Primeiramente, refletimos sobre
algumas ideias presentes na Análise Dialógica do Discurso que nos ajudaram a construir
um “olhar” para o gênero poema lírico e para o ensino da compreensão leitora desse
gênero. Em seguida, apresentamos uma análise para um exercício de compreensão
proposto para o poema de Augusto dos Anjos. Por fim, apresentamos algumas
considerações finais.
Pressupostos teóricos
De início, é preciso esclarecer que a Análise Dialógica do Discurso não se trata
de uma teoria na acepção tradicional do termo, com categorias pré-estabelecidas para
análise de dados, mas é antes uma proposta de trabalho cujas categorias são construídas
na e pela pesquisa. Poderíamos dizer que sua constituição como campo do saber resulta
da busca de alguns pesquisadores para encontrar uma unidade nos estudos
empreendidos pelos integrantes do que se convencionou chamar de Círculo de Bakhtin,
cujos representantes de maior repercussão na academia, até o momento, são Bakhtin,
Volochínov e Medviédev1.
Nossa escolha pela Análise Dialógica do Discurso se deve ao fato de que as
reflexões sobre língua(gem) do Círculo de Bakhtin tem sua gênese nos estudos
literários. Não se trata de uma reflexão a priori sobre língua(gem) que será depois
aplicada ao texto literário, mas de uma concepção de língua(gem) que nasce da própria
análise de obras literárias. Assim sendo, deparamo-nos com reflexões que podem
oferecer uma maior organicidade às relações entre língua(gem) e literatura. Dada a
extensão de nosso trabalho, iremos fazer um recorte de algumas ideias norteadores
presentes nos estudos do Círculo, a saber: a noção de discurso, gênero discursivo e
dialogismo, uma caracterização do gênero poema lírico e um conceito de compreensão
leitora.
Nos estudos de Bakhtin ([1934-1935] 2002), Bakhtin/Volochínov ([1926] s.d.;
[1929] 2009) e Medviédev ([1928] 2012), percebemos que é comum o interesse em
promover uma reflexão sobre língua(gem) cujo enfoque recaia em seu uso concreto, e
não em estruturas linguísticas abstratas. Interessa ao Círculo o estudo do discurso, que
1 Embora saibamos que exista outro modo de grafar os nomes de Volochínov e Medviédev, mantivemos a
grafia das obras que consultamos para a pesquisa.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1051
compreende uma dialética constitutiva entre o material verbal e a situação comunicativa
que o produziu. De acordo com Bakhtin,
Todos os diversos campos da atividade humana estão ligados ao uso da
linguagem. Compreende-se perfeitamente que o caráter e as formas desse uso
sejam tão multiformes quanto os campos da atividade humana, o que, é claro,
não contradiz a unidade nacional de uma língua. O emprego da língua efetua-
se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos
pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana (BAKHTIN,
[1952-1953] 2011, p. 261).
Dada a multiplicidade dos campos da atividade humana, teríamos muita
dificuldade para produzir e compreender discursos literários ou não literários de outrem,
caso não houvesse uma relativa estabilidade na organização desses discursos. Nesse
ponto, destaca-se o conceito de gêneros discursivos. Para Bakhtin, é possível fazer uma
classificação dos discursos que produzimos e compreendemos de outrem levando em
consideração que, além de pertencer a um ramo da atividade humana, os discursos
possuem uma temática, uma composição e um estilo, que estão articulados na produção
de sentido, de modo que podemos classificá-los em gêneros discursivos. Nesse ponto
caberia perguntar o que constitui o gênero discursivo poema lírico? Contudo, para
responder a essa questão, faz-se necessário refletir sobre o conceito de diálogo.
Para o Círculo, o diálogo face a face é apenas uma forma prototípica de um
fenômeno mais amplo, o dialogismo. Todo discurso representa, antes de tudo, uma
réplica a um discurso anterior e, ao ser produzido, fica sujeito a receber também uma
réplica, de modo que se insere numa cadeia discursiva. Assim, todo discurso estabelece
um “diálogo” como um discurso que o antecedeu e fica sujeito a dialogar com novos
discursos que o sucederão. Nem sempre esse “diálogo” é intencional, porém sempre
ocorre, pois, conforme Bakhtin/Volochínov afirmam,
não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou
mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou
desagradáveis, etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de
um sentido ideológico ou vivencial ([1929] 2009, p. 98-99, grifo dos autores).
Ou seja, nunca estabelecemos uma relação de neutralidade com as palavras,
porque elas nos chegam atravessadas por um sentido “ideológico ou vivencial”. Assim,
ao produzirmos nossos discursos, sempre estabelecemos uma relação de adesão parcial
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1052
ou integral com outros discursos, de contrariedade também de forma parcial ou não, de
inter-iluminação, entre outras, embora alguns estudiosos da literatura preceituem que as
palavras, ao ingressarem na atividade estética, adquiram neutralidade.
Apresentado o conceito do dialogismo, cabe-nos retomar a questão levantada
anteriormente, “o que constitui o gênero discursivo poema lírico?”. Pelo menos dois
fatores concorrem para essa resposta: primeiro, um fator de ordem histórica, e segundo,
um fator de ordem teórica. No tocante ao fator histórico, podemos observar que a
concepção de poema lírico não permaneceu a mesma ao longo da história, pois ela
dialogou com a produção poética e a crítica literária presentes nas diferentes épocas
correspondentes às estéticas literárias (CARA, 1989). No que se refere ao fator teórico,
a concepção do que é um poema lírico pode se restringir a aspectos estilístico-
estruturais, caso se adote uma perspectiva de base estruturalista, ou perceber esses
aspectos como parte de um todo maior, se adotarmos uma perspectiva discursiva.
Como adotamos uma perspectiva discursiva, interessa-nos perceber do ponto de
vista da construção do discurso o que torna um poema lírico diferente de outros gêneros
discursivos literários, como o romance, por exemplo. Consciente de que essa
caracterização do poema lírico só é possível através de um recorte da complexidade do
fenômeno, iremos discutir o que parece ser relativamente estável no gênero ao longo da
história.
Cremos que adotar uma perspectiva dialógica para a análise de discursos implica
em perceber que os discursos não são estanques, mas estabelecem uma interação
dinâmica, logo do mesmo modo que apresentam diferenças apresentam igualmente
semelhanças. Portanto, longe de apenas apontar diferenças entre o discurso de um poeta
e o de um escritor de ficção, interessa-nos perceber em que ponto eles também são
semelhantes.
A nosso ver, o primeiro ponto de semelhança entre a produção de um poeta e de
um escritor diz respeito a sua natureza estética. Em ambos os casos, existe um processo
de interação entre autor, referente da obra e leitor que determinam a escolha do tema, da
composição e do estilo de uma obra. De acordo com BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, “Pela
mediação da forma artística, o criador assume uma posição ativa com respeito ao
conteúdo ([1926] s.d., p. 10, destaque dos autores)”, mas essa posição ativa não deve ser
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1053
confundida com uma máxima ou proposição moral, política (ou de qualquer outra
espécie), trazida para o interior do conteúdo.
Poderíamos dizer que se trata de uma reflexão sobre a condição humana que
adquiriu um caráter simbólico através da forma estética, isto é o referente da obra
(algum aspecto da condição humana) não é meramente “julgado” como bom ou ruim,
mas problematizado e essa problematização encontra-se na composição e no estilo da
obra. Assim, por exemplo, quando um personagem é elevado à determinada posição, é
diminuído ou permanece no mesmo lugar, isso constitui um aspecto composicional que
implica numa avaliação do referente da obra. Em contrapartida, o leitor assume também
um caráter ativo nesse processo, o tempo todo ele é um elemento constitutivo desse
processo de hierarquização do personagem, pois o autor sempre leva em conta sua
capacidade de julgar que a “adequabilidade estilística tem em vista a adequabilidade
hierárquico-avaliativa da forma e do conteúdo” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, [1926]
s.d., p. 11).
Um aspecto crucial para a distinção entre a produção de um poeta e de um
escritor é o modo como cada um articula diferentes centros de valor em seu discurso.
Esses centros de valor dizem respeito aos vários discursos que circulam na sociedade e
que são inseridos na prosa de ficção e no poema lírico a partir de “vozes”, isto é, os
discursos que constituem o discurso do autor explicitamente ou em latência.
O que distingue em essência um escritor de um poeta é modo como cada um
articula essas diferentes vozes em seu discurso. É comum na história do romance que o
escritor crie um narrador e personagens, que representam diferentes vozes sociais em
interação na narrativa. Cada uma dessas vozes tem autonomia em relação ao escritor,
pois os “centros de valor” que representam vão se desvelando para o leitor à medida que
se dá sua interação ao longo da narrativa. O poeta, por seu turno, tradicionalmente tem
construído um ethos de que seu discurso é composto apenas por sua voz, faz parte dessa
atividade colocar-se como uma voz que representa uma espécie de sabedoria ancestral.
Todavia, ao longo da história do poema lírico alguns poetas romperam com esse status,
trazendo para o seu discurso outras vozes de forma explícita, o que o aproxima de um
escritor de ficção. Essa postura de ruptura de alguns poetas gera um processo de
hibridização dos gêneros, de modo que, para caracterizarmos um poema como lírico,
precisamos adotar uma postura não estanque. Da gênese do poema lírico até as
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1054
produções contemporâneas, é preciso traçar um continuum no qual encontraríamos
numa extremidade o poema lírico stricto sensu e o poema lírico “prosificado”. Portanto,
precisaríamos distribuir um poema de forma escalar nesse continuum, pois, a depender
do modo como o poeta articula as vozes em seu discurso, ele está mais próximo de um
poeta tradicional ou de um escritor.
Realizada essa discussão, resta-nos perguntar o que se entende por compreensão
leitora na Análise Dialógica do Discurso. Em consonância com as ideias do Círculo,
poderíamos dizer que o leitor
ao perceber e compreender o significado (linguístico) do discurso, ocupa
simultaneamente em relação a ele uma ativa posição responsiva: concorda ou
discorda dele (total ou parcialmente), completa-o, aplica-o, prepara-se para
usá-lo, etc.; essa posição responsiva do ouvinte se forma ao longo de todo o
processo de audição e compreensão desde o seu início, às vezes literalmente a
partir da primeira palavra do falante. (...) toda compreensão é prenhe de
resposta, e nessa ou naquela forma a gera obrigatoriamente: o ouvinte se
torna falante (BAKHTIN, [1952-1953] 2011, p. 271).
Desse modo, todo leitor precisa cumprir um papel ativo diante do poema lírico
que está lendo, fazendo questionamentos semelhantes aos seguintes: a) este poema
dialoga com que discursos literários e não literários e de que forma esses discursos
representam vozes implícitas ou explícitas na superfície textual?; b) qual aspecto da
condição humana foi trabalhado pelo poeta e que posicionamento ele assumiu diante
dessa temática?; c) como o poema foi organizado (seleção do título, metáforas, ritmo,
etc) para dar conta desse posicionamento?; d) qual a contribuição dos aspectos
linguísticos na construção da composição do poema?
Análise de exercício de compreensão leitora proposto pelo LD Português:
linguagens
O exercício seguinte foi encontrado no capítulo 1, O Pré-Modernismo, no qual é
apresentado para o leitor um apanhado crítico sobre essa “escola literária” e sobre os
autores julgados mais representativos. Esse capítulo apresenta uma apreciação crítica da
obra dos autores intercalada por exercícios de compreensão leitora de discursos que
possam exemplificar aspectos pontuados nessa apreciação crítica, organização que está
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1055
presente em 10 dos 13 capítulos dedicados à Literatura. O exercício de compreensão do
poema Psicologia de um vencido, de Augusto dos Anjos, encontra-se na seção “leitura”.
Leitura
Psicologia de um vencido
Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênesis da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.
Profundíssimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.
Já o verme — este operário das ruínas —
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,
Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há-de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!
(Augusto dos Anjos. Eu e outros poemas, cit., p.60)
epigênesis: teoria da formação dos seres por gerações graduais.
frialdade: frieza.
hipocondríaco: aquele se preocupa excessivamente com a própria saúde, aquele que se sente
deprimido ou com tristeza profunda.
rutilância: brilho intenso.
1. A linguagem do poema surpreende e modifica uma tradição poética brasileira, em grande parte
construída com base em sentimentalismo, delicadezas, sonhos e fantasias.
a) Destaque do texto vocábulos empregados poeticamente por Augusto dos Anjos e
tradicionalmente considerados antipoéticos. [Carbono, amoníaco, epigênesis, hipocondríaco,
verme, etc.]2
b) De que área do conhecimento humano provêm esses vocábulos? [Provêm da ciência,
particularmente da Química.]
2 O destaque em negrito corresponde à sugestão de resposta que os autores propõem para as questões.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1056
2. O poema pode ser dividido em duas partes: a primeira trata do próprio eu lírico; a segunda, da
morte.
a) Como o eu lírico encara a vida e a si mesmo nas duas primeiras estrofes? [Vê a vida e a si
mesmo de forma pessimista, pois entende que o homem é matéria, química, e considera
que tudo caminha para a destruição.]
b) Que enfoque é dado à morte nas duas últimas estrofes? [A morte é considerada o destino final
e fatal de toda forma de vida. Cabe ressaltar também a crueza do tratamento dado à
morte, representada pela imagem do verme a comer “sangue podre”.]
3. O título é uma espécie de síntese das ideias do poema. Justifique-o. [Embora o título contenha
a palavra psicologia, o poema detém-se a tratar da matéria das substâncias químicas que
formam o eu, evitando maior introspecção. Apesar disso, é possível constatar o
negativismo interior do eu lírico, que se considera “vencido” em virtude da fragilidade
física do ser humano e da força implacável da morte.]
4. O poema é centrado no eu. Apesar disso, pode-se dizer que suas ideias são universalizantes?
Justifique. [Sim, porque a condição humana retratada pelo poema (constituição e
fragilidade física do ser humano, fatalidade da morte) não é exclusiva do eu lírico, mas
universal.]
5. Identifique no texto ao menos uma característica naturalista e outra simbolista. [A
característica naturalista do poema está no cientificismo; a característica simbolista
encontra-se na visão decadentista do eu lírico sobre a vida.]
(CEREJA; MAGALHÃES, 2008a, p. 26)
Na primeira questão, é possível perceber que os autores pretendem estabelecer
um contraste entre a poética de Augusto dos Anjos e a poética romântica, solicitando
para isso que os alunos observem o vocabulário empregado pelo poeta e identifiquem a
área do conhecimento humano do qual esse vocabulário provém. Julgamos que seria
necessário para tal que o aluno tivesse acesso durante essa atividade a um poema da
tradição romântica que abordasse a mesma temática, a fim de que a seleção vocabular
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1057
pudesse ser percebida por meio do contraste entre os poemas, e não somente através do
poema de Augusto dos Anjos e do conhecimento de mundo/enciclopédico do aluno.
Na segunda questão, são abordados aspectos temáticos e composicionais
(organização) do poema, porém eles não são explorados de forma que o aluno possa
construir os sentidos na interação com o texto. Pois, de um lado, o enunciado inicial já
antecipa a temática global do poema – a morte – e, por outro, as sub-questões a) e b)
não fornecem orientações para que o aluno analise o texto, apenas avaliam se ele
consegue analisá-lo.
Como solução de abordagem, poderíamos articular essa questão com a primeira,
transformando-as numa única questão, da seguinte maneira: a partir da proposição de
uma tabela comparativa entre o modo como a voz lírica desse poema e o verme foram
caracterizados. Nessa tabela, seriam listadas as palavras e expressões que são usadas
para descrever essas duas instâncias no poema. Partindo dessa descrição, poderíamos
levantar um questionamento a partir do título: “A palavra “vencido” no título caracteriza
a voz lírica ou o verme? Explique sua escolha.” Com isso, articularíamos também a
terceira questão, como uma estratégia de leitura, para que o aluno pudesse interpretar
que a voz lírica se sente impotente diante da morte. A depender do grupo-classe com
que se trabalhe será importante, inclusive, levantar conhecimentos da Biologia, a fim de
que o aluno tenha condições de perceber que o verme é uma metáfora da morte, porque
os vermes se alimentam da matéria orgânica de corpos em decomposição. A estratégia
de construção de uma tabela também poderia ser adotada para análise do modo como a
voz lírica se caracteriza no poema romântico, para, em seguida, propor o confronto entre
as duas visões de mundo diante da mesma questão humana. Assim, ficaria mais
palpável para o aluno perceber a inovação estética de Augusto dos Anjos. Além disso, o
confronto entre os dois poemas não poderia deixar de contemplar as questões culturais
que os constituem.
A quinta questão é bem representativa do formato de abordagem criticado pela
academia, isto é, a mera identificação de características estilísticas. Não estamos com
isso desprezando a importância de tal identificação, porém cremos que seria necessário
perceber de que forma o poema de Augusto dos Anjos como um todo dialoga com as
estéticas naturalista e simbolista, desde a visão de mundo, passando por questões
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1058
estilísticas, até questões de ordem cultural, a exemplo do trabalho de confronto com o
poema romântico.
Por fim, a quarta questão funda-se num aspecto importante do trabalho com o
texto literário, que é estabelecer relações entre o poema e a vida do aluno, uma vez que
o aluno precisa perceber que sua condição é tão frágil quanto a condição da voz lírica.
Contudo, cremos que ela poderia ser proposta como um momento de pós-leitura no
qual, por exemplo, se problematizasse a questão da fragilidade do indivíduo diante da
morte ou mesma da existência.
Considerações finais
Tomando como base alguns pressupostos da Análise Dialógica do Discurso,
poderíamos afirmar que um trabalho de compreensão leitora de poemas líricos tem que
considerar, antes de tudo, o papel ativo do aluno. Colocá-lo na posição de “analista” do
poema lírico, o que implica dar enfoque a um ensino indutivo ao invés de dedutivo. Para
tanto, precisam ser desenvolvidas atividades que proporcionem ao aluno a possibilidade
de confrontar poemas de uma mesma estética literária ou entre estéticas distintas, de
modo a promover um diálogo que considere, entre tantos aspectos: a) de que forma o
poeta se posicionou diante da temática do poema, isto é, como foi avaliada determinada
questão humana; b) o modo como a composição do poema assegura esse
posicionamento do poeta (Como são caracterizadas as vozes presentes no poema? Que
figuras de linguagem são usadas e de que forma estão relacionadas com essas vozes? De
que forma os recursos sonoros se relacionam com a temática ou contribuem para a
criação de alguma imagem?); c) que recursos linguísticos são usados na composição
(elementos fonético-fonológicos, seleção lexical, construção sintática, etc); d) por fim,
como todos os aspectos anteriores estão relacionados com questões culturais (memória e
imaginário, acontecimentos históricos, fundamentos e princípios filosóficos,
sociológicos e antropológicos, entre outras) relacionadas à obra do poeta estudado.
É preciso salientar que nossa contribuição enfocou uma das etapas do processo
de leitura, a etapa de análise efetiva do texto, embora não desconheçamos que se fazem
necessárias também uma etapa inicial (pré-leitura), na qual há um processo de
mobilização para a leitura, e uma etapa final (pós-leitura), na qual são realizados novos
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1059
percursos interpretativos, como, por exemplo, a relação entre o discurso presente no
poema e sua relação com os discursos que circulam na contemporaneidade, sejam
literários ou não. Além disso, poder-se-ia (eu diria que “tem-se que”) também refletir
com o aluno qual a importância da síntese desses discursos para a sua existência.
Finalmente, faz também necessário esclarecer que o nível de análise e os
conhecimentos que iremos realizar através da leitura de poemas líricos irá depender da
formação do grupo-classe com o qual estamos trabalhando, de modo que alguns alunos
já irão dispor do conhecimento enciclopédico suficiente para a mobilização do trabalho
hermenêutico de determinadas metáforas (como a do verme no poema de Augusto dos
Anjos) e outros não, cabendo ao professor avaliar o fenômeno e propor ou atividades
que apenas ativem esse conhecimento enciclopédico ou que gerem a oportunidade de
construí-lo.
Referências
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Nas fronteiras da linguagem ǀ 1060
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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1061
INTENCIONALIDADE LINGUÍSTICA NAS CAMPANHAS
PUBLICITÁRIAS EM OUT-DOORS NAS CIDADES DE
OLINDA E RECIFE [Voltar para Sumário]
Heloisa Pedrosa de Araújo1
1 INTRODUÇÃO
O Trabalho visa esclarecer a impresso da linguagem utilizada, na forma da
escrita, que se apresenta em algumas campanhas publicitárias, nos suportes out-doors,
que revela a intencionalidade pretendida da comunicação, para atingir um público
específico, na apresentação de um produto ou serviço.
Nesses Gêneros textuais, especificamente nas mensagens de Instituições de
Ensino, dentre de outros artigos, apresentam direcionamentos da linguagem, e outros
argumentos utilizados, na construção do enunciado, como forma sugestiva aos leitores
consumidores dos produtos ou serviços, ao convencimento de qualidade, e
fortalecimento de escolha do mesmo, diante os concorrentes, expostas nos textos em
outdoor, na perspectiva da concepção sócio-interacionista de língua direcionada a um
grupo social específico.
Com o interesse em examinar a linguagem utilizada nos escritos dos meios de
divulgação, fundamentamos nossa investigação ao conhecimento em Marcuschi, com o
estudo dos gêneros textuais; em Koch, com a construção dos sentidos do texto;
Beaugrande e Dressler, com os fatores da textualidade, e a ênfase na intencionalidade;
entre outros que se fizeram necessários para esclarecimentos e compreensão das
possíveis variações em redações publicitárias. Para continuar o desenvolvimento do
1 Araújo, Heloísa Pedrosa de. Doutoranda em Linguística-UFPE/2014; Mestra em Ciências da
Linguagem-UNICAP/2012; Especialista em Linguística Aplicada ao Ensino de Língua Portuguesa-
UFPE/2007;Graduada em Letras-FUNESO/2005; Lecionou na UFE/2008; Lecionou na FALUB/2010;
Lecionou na Especialização FUNESO/2014; Leciona na Rede Estadual de Pernambuco – 2008/2015,
atual.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1062
trabalho, buscamos respaldo em outros autores sobre a pesquisa qualitativa, como
explica Novena (2008) que:
[...] a formulação e delimitação do problema (desenvolvem-se) a partir
da “percepção subjetiva do pesquisador em relação ao contexto e a
constituição de um referencial teórico” sobre o que se deseja pesquisar. Esses
processos, num movimento espiralar de fora para dentro, permitem o
encerramento dessa etapa com a explicação de uma pergunta que se deseja
responder. (p.173)
1.1 Estudo do Texto
Para o estudo do texto. Devemos de início avaliar a forma de escrita, e dos
propósitos da composição textual. De acordo com Antunes (2012, p.37), “O texto é um
traçado que envolve material linguístico, faculdades e operações cognitivas, além de
diferentes fatores de ordem pragmática ou contextual”.
Então, palavras soltas e sem sentido não podem constituir um texto. Antunes
(2010, p.33), citando Beaugrande e Dressler (1981), afirma que “...para ser um texto
precisa ter propriedades ou critérios da textualidade como: a intencionalidade, a
aceitabilidade, a informatividade, a intertextualidade, e a situacionalidade”.
Com esse pensamento acima, podemos fazer um comentário sobre fala e escrita,
de que são elementos de construção do discurso, ora seja expressão verbal, ora seja um
texto escrito. Como explica Koch (2012, p. 14),
Fala e escrita são, portanto, duas modalidades da língua. Assim, embora se
utilizem do mesmo sistema linguístico, cada uma delas possui
características próprias. Ou seja, a escrita não constitui mera transcrição da
fala, como muitas vezes se pensa. Cabe levar em conta, porém, que na
situação face a face também podem ocorrer textos nos quais as interações
apresentam um grau de coprodução bem menor.
Então, não teria sentido para algumas pessoas, o que poderia ser esclarecedor
para outras. Nesse pensamento, podemos relacionar ao que se refere ao conhecimento
de mundo do leitor, ou seja, ao que gera de informação lógica, ou de entendimento
positivo, as palavras utilizadas, nesse texto, e sua estrutura de construção, no sentido de
coesão e coerência. Para vender um curso, sua apresentação faz correlações com a vida,
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1063
ou das necessidades vitais do indivíduo, num contexto. Segundo Marcuschi, (2009,
p.27):
...a estrutura de um texto corresponderia à estrutura do mundo, devendo
obedecer a uma semântica contextual (intencional e extencionalmente visto)
da dimensão de mundo e a uma gramática especial não linearmente fixada,
mas de características gerativo-transformacionais.
1.2 Conteúdos de Gêneros
Os Gêneros textuais envolvem os tipos textuais, e apresentam características
sócio-comunicativas definidas por conteúdos, propriedades funcionais, estilo,
composição estrutural do texto, e seus objetivos de escritas, com seus significados
inseridos em cada texto. Daí, podemos fazer referências ao que se explana em Bakhtin
(1992, apud Koch, 2012, p.55), quando fala que,
Todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam, estão
relacionadas com a utilização da língua. Não é de surpreender que o caráter e
os modos dessa utilização sejam tão variadas como as próprias esferas das
atividades humanas[...] O enunciado reflete as condições específicas e as
finalidades de cada uma dessas esferas, não só por seu conteúdo temático e
por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua –
recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais – mas também, e sobretudo, por
sua construção composicional.
Dessa forma, queremos mostrar que tanto a leitura, como a escrita constituem-se
de eixos, como observação de extrema importância, e estão dentro das práticas sociais
cotidianas e principalmente mais formais, dentro de uma sociedade.
2 OBJETIVOS
2.1 Objetivos Gerais
A presente pesquisa procura revelar que, na composição de textos, em
divulgação publicitária, ocorre o uso da Língua informal, com aspectos diferenciados,
de conteúdo porposital, da intencionalidade, tão bem postulada pelos autores
Beaugrande e Dressler (1981), que não deixam de mostrar a importância dos outros
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1064
fatores textuais, como: situacionalidade, informatividade, aceitabilidade, e
intertextualidade.
2.2 Objetivos Específicos
• Ressaltar que diante do levantamento bibliográfico, com respaldo de
conhecimento de autores, do assunto em tela, e trazer informações para uma discussão;
• Fazer observações dos conteúdos apresentados em outdoors, sobre o tema
investigado, como revisão de redações dos anúncios de produtos e serviços;
• Procurar dessa forma a dialogicidade que existe entre a escrita, do anúncio
publicitário e a relação entre seu público leitor direcionado.
3 METODOLOGIA
Foi selecionado alguns outdoors, das cidades de Recife e Olinda, pela proximidade
de localização, e distanciamento na construção de escritos na exposição de mensagens
em outdoors.
Então, com o corpus selecionado, na região metropolitana do Recife, foram
avaliados itens na estrutura escrita, de alguns out-doors que expressam aspectos e
expressões diferenciadas nos escritos, com a intencionalidade direcionada aos objetivos
pretendidos, de alcance ao público consumidor.
Assim, vimos como distinção entre produtos, ou como confirmação de
qualidade. Juntamente com a visão da presença dos “princípios da construção dos
sentidos do texto”, abordado pelos autores Marcuschi e Koch(2002).
Começamos em dizer que fizemos uma pesquisa teórica, por procurar
referências de informações, na literatura nacional e internacional, à procura de registros
precisos. Como dizemos que, foi também uma pesquisa empírica, porque fomos aos
locais de exposição dos outdoors, registramos em foto alguns deles, e efetivamos
entrevistas em Empresas de Divulgação e Publicidade nas Cidades de Recife e Olinda.
Portanto, o trabalho é caracterizado em pesquisas bibliográficas e de campo.
Com o interesse em examinar a linguagem utilizada nos escritos dos meios de
divulgação, fundamentamos nossa investigação ao conhecimento em Marcuschi, com o
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1065
estudo dos gêneros textuais; em Koch, com a construção dos sentidos do texto;
Beaugrande e Dressler, com os fatores da textualidade, e a ênfase na intencionalidade;
entre outros que se fizeram necessários para esclarecimentos e compreensão das
possíveis variações em redações publicitárias. Para continuar o desenvolvimento do
trabalho, buscamos respaldo em outros autores sobre a pesquisa qualitativa, como
explica Novena (2008) que:
[...] a formulação e delimitação do problema (desenvolvem-se) a partir da
“percepção subjetiva do pesquisador em relação ao contexto e a constituição
de um referencial teórico” sobre o que se deseja pesquisar. Esses processos,
num movimento espiralar de fora para dentro, permitem o encerramento
dessa etapa com a explicação de uma pergunta que se deseja responder.
(p.173)
Assim, apresentamos como objetivo da investigação: qual a intencionalidade da
linguagem utilizada, com características de linguagem oral, nos escritos de mensagens
publicitárias, de Instituições de Ensino, expostas em outdoors e como se apresentam os
aspectos linguísticos na construção desses enunciados.
Com o interesse em desenvolver um perfil linguístico das mensagens em
outdoors, e da intenção dos produtores de anúncios de propaganda, na formação
escolar, cursos técnicos, graduações e pós-graduações, cursos de Línguas estrangeiras,
como também, analisar o propósito dessas composições. E ainda, com a finalidade de
investigar quanto à preocupação do uso da norma culta, da Língua Portuguesa, em
direcionar aos leitores, às possíveis interpretações, conforme interesses do alunado, em
relação aos diversos cursos oferecidos em geral.
Diante do conhecimento adquirido com as atividades das pesquisas, podemos
referenciar, segundo Silva(2010, p.75): “as ações desenvolvidas durante a investigação,
objetivaram tão somente o entendimento desse objeto, através da observação
participante”.
Nesse sentido, vemos que é de vital importância, que mostremos as fotos, do
registro de alguns outdoors, e entrevistas com profissionais da área de publicidade, que
correspondem a participação ativa nas etapas de construção do conhecimento adquirido,
com as pesquisas de campo realizadas para esse fim.
Assim, a participação do pesquisador no desenvolvimento da aprendizagem é
definida em Minayo (2009, p.70) como: “um processo pelo qual um pesquisador se
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1066
coloca como observador de uma situação social, com a finalidade de realizar uma
investigação científica”.
3.1 O Corpus: visualizamos nos escritos das mensagens de outdoors, o interesse
no estudo da linguagem que encontramos exposta na mídia publicitária, em vários locais
dos bairros das cidades de Recife e Olinda, nos quais observamos algumas divergências
da composição do enunciado em relação ao uso da língua oficial. Assim, foram
escolhidos alguns outdoors, que deixam essas marcas de oralidade, mais evidente, e
selecionamos em número de 15 (quinze) deles, para serem observados e analisados em
sua linguagem.
3.2 O Material: utilizamos material fotográfico, que fossem registrados alguns
dos outdoors, que pudessem ser visível às alterações de sentido, e as múltiplas
condições de interpretações efetivadas pelos leitores, com detalhes de significações na
escrita e na imagem de sua composição.
3.3 Os Procedimentos: começamos em observar o corpus anteriormente
selecionado, a estrutura de composição linguística, das palavras utilizadas nos anúncios,
como verificamos a tendência de se agruparem em três tipos básicos: primeiro, as
mensagem apenas com escrita do enunciado, de forma expositiva e com indagação; em
segundo, reconhecemos que algumas apresentam seriedade, na escrita de forma
convidativa; e a terceira forma de construção da mensagem, quando vimos imagem
exagerada visual, e escrita com variação nas expressões utilizadas.
No entanto, entrevistamos, recortamos dados, analisamos conteúdo teórico,
fizemos levantamento de expressões mais atrativas quanto a atenção do público leitor, e
a que se destina a variação de expressões da linguagem falada, utilizada na composição
de mensagens expostas em outdoors, e investigamos qual sua intencionalidade junto às
Instituições de Ensino, em relação aos cursos que oferecem. E examinamos a coerência
de escrita, e seus objetivos pretendidos junto aos seus públicos direcionados.
Então, fazer um parâmetro com o pensamento de coerência de Xavier (2001,
p.42), como explica que a Coerência:
É a possibilidade de se estabelecer um sentido para o texto. Ou seja, é a compatibilidade entre idéias e
conceitos que permite ao leitor acompanhar a continuidade de um raciocínio em desenvolvimento.
4 ANALISE DOS RESULTADOS
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1067
Independente do estilo da formação da mensagem do texto, sempre existirá um
sentido, ou uma intenção de comunicação pelo autor, direcionado a um público alvo.
Para o leitor, no que se é transmitido na mensagem, em qualquer um dos diversos tipos
e suporte do gênero publicitário, os textos obedecem a um pensamento com coerência,
para quem redige e deve fornecer elos de ligação no conteúdo expresso para facilitar a
sua interpretação.
Como explica Xavier, (2001) que: “Há um conjunto de fatores que colaboram
para dar uma certa lógica ao desenvolvimento do raciocínio do autor”. Esses fatores
podem ser considerados, como fatores decisivos para uma perfeita interpretação do
enunciado. São eles: Elementos linguísticos; Conhecimento de mundo; Conhecimento
partilhado; e Inferências; que os leitores precisarão efetivar para conceber o sentido que
o texto se propõe, e conforme Xavier (2001), depende da observação de:
A. Elementos lingüísticos: as palavras usadas no texto, além de acionar
conhecimentos arquivados na memória do leitor, funcionam como pistas da
língua que ajudam ao leitor a pescar o sentido pretendido pelo autor; B.
Conhecimento de mundo: todas as experiências vividas são guardadas na
nossa memória, de maneira que, quando lemos um texto só conseguimos
entendê-lo inteiramente, se reconhecemos as informações ali acionadas e
relacionarmos ao que já sabemos sobre o tema; C. Conhecimento
partilhado: cada indivíduo constrói sua própria enciclopédia de
conhecimentos, mais ou menos igual à aqueles que vivem num mesmo
ambiente social, político, econômico e cultural. E para que haja compreensão
entre dois interlocutores, por meio de um texto, é necessário que ambos
partilhem de alguns desses conhecimentos; e D. Inferências: é o um processo
de raciocínio através do qual se estabelece uma relação não explícita entre
dois enunciados e deles se chega a uma conclusão. É um dos tipos de
raciocínio mais utilizados no processo de interpretação, já que o texto, por ser
um mecanismo de economia linguística, não pode e nem deve dizer
tudo.(p.42)
Assim, consideramos ser relevante a aboragem de que todo texto depende do seu
público leitor, e envolve dessa maneira, seu escrito em sua composição gramatical, na
estrutura linguística adequada a leitor direcionado.
4.1. OUTDOORS DE ESCOLAS: (Local: Av Agamenon Magalhães, Derby)
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1068
(Local: Av Agamenon Magalhães, Derby - Recife)
(Local: Av Agamenon Magalhães, Paissandú – Recife)
(Local: Av. Av Agamenon Magalhães, Espinheiro – Recife)
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1069
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Assim, apresentamos o corpus selecionado para avaliar a presença de expressões
com marcas de oralidade, como marcadores discursivos, que são características da
língua falada, presente em conteúdos de textos escritos na divulgação de serviços de
ensino. Como também, analisar na estrutura linguística, a intencionalidade direcionada a
propósitos semânticos em duplicidade de interpretações.
Marcuschi (2002, apud Koch, 2012, p.56) afirma “que é impossível pensar em
comunicação a não ser por meio de gêneros textuais (quer orais, quer escritos),
entendidos como práticas socialmente constituídas com propósito comunicacional,
configuradas concretamente em textos”.
Para isso, adotamos a noção de Bakhtin(1992) gênero do discurso, de modo que se
possa abordá-lo enquanto uma forma padrão e relativamente estável de estruturação de
enunciados, codificada sócio-historicamente por uma determinada cultura.
REFERÊNCIAS
ANTUNES, I. Análise de textos: fundamentos e práticas – São Paulo: Parábola
Editorial, 2010. (Estratégias de ensino;21)
KOCH, I. V.; ELIAS, M.V. Ler e escrever: estratégias de produção textual - 2.ed., 1ª
reimpressão – São Paulo: Contexto, 2012.
_______. Ler e compreender: os sentidos do texto - 3. ed., 7ª reimpressão. – São Paulo:
Contexto, 2012.
MARCUSCHI, Luis Antonio. Linguística de Texto: o que é e como se faz? Recife:
Editora UFPE, 2002.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1070
RESUMO DE LEITURA: UMA ANÁLISE DO DOMÍNIO
DO DISCURSO TEÓRICO À LUZ DO ISD [Voltar para Sumário]
Hermano Aroldo Gois Oliveira (UFCG/PÓS-LE)
1 Introdução
O resumo afigura-se como o gênero textual mais solicitado no ensino superior,
uma vez que, constantemente, alunos são submetidos a produzi-lo para as mais
diferentes disciplinas, bem como para os mais diversos contextos de escrita, tais como
para registro de leitura, para compor textos mais densos (artigo, dissertações, teses),
para a publicação separadamente ao texto original ou até mesmo para a submissão em
eventos acadêmicos. Esse gênero é visto como um dos mais importantes na atividade
acadêmica a julgar pela sua função, nesse caso, reconstruir o que já foi dito por meio da
utilização, reconhecimento e desenvolvimento de estratégias de aprendizagem
adquiridas em função dos objetivos estipulados.
Nas últimas décadas, diversas são as pesquisas que elegem o resumo como
objeto de investigação. Em uma perspectiva sociorretórica (SWALES, 1990 apud
MOTTA-ROTH; HENDGES, 2010), esse gênero textual é estudado a partir da
identificação de movimentos retóricos que de modo particular abrigam passos básicos a
serem opcionais e/ou obrigatórios para a sua composição (BIASI-RODRIGUES, 1998;
MOTTA-ROTH; HENDGES, 2010). Em uma outra perspectiva, o interacionismo
sociodiscursivo (SCHNEUWLY; DOLZ, 2010; BRONCKART, 2012), a produção do
resumo é realizada a partir da construção de modelos didáticos com características
definidas pelo contexto de produção. O modelo de produção para o resumo se baseia no
uso de macrorregras (apagamento, generalização e substituição) (GUIMARÃES
SILVA; DA MATA, 2002; MATÊNCIO, 2003; ASSIS; DA MATA; PERINI-
SANTOS; 2003; MACHADO, 2010). Esse gênero textual também tem recebido atenção
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1071
na Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) e em materiais didáticos
representativos da área (MARCONI; LAKATOS, 1992; SEVERINO, 2007) que
orientam como ensinar e aprender conceitual e estruturalmente a redação e apresentação
de resumo.
Diante dessa constatação, não é sem razão que o resumo seja objeto de pesquisa
tão recorrente há alguns anos, o que induz a pensar que já não há mais o que se
investigar. Apesar desse gênero se apresentar constantemente como objeto de análise,
no qual se privilegiam mais os seus aspectos composicionais, sociais e discursivos,
pouco se têm enfatizado os aspectos da língua, nesse caso, os mecanismos linguísticos e
textuais utilizados para a sua produção.
Sendo assim, este trabalho se justifica pelo interesse em conhecer, em textos de
resumo, o domínio do discurso teórico postulado pelos fundamentos teóricos de
Bronckart (2012). Para isso, o presente estudo divide-se em cinco tópicos. No primeiro,
referente a esta introdução, situamos o amplo trabalho realizado com o gênero resumo
no universo acadêmico. No segundo, brevemente, detalhamos o tipo e a natureza do
estudo, bem como caracterizamos o domínio teórico como categoria de análise. No
terceiro, dedicamos à fundamentação teórica, a qual damos vez aos pressupostos
subjacentes ao estudo. No quarto tópico, dedicamos à análise do corpus. E, por fim, o
quinto tópico, explicitamos nossos apontamentos finais.
2 Metodologia
O estudo realizado é de natureza qualitativa. É qualitativa porque, de acordo com
Bortoni-Ricardo (2008), não busca relações entre fenômenos nem cria leis universais,
mas sim procura entender, bem como interpretar fenômenos e processos socialmente
situados em um dado contexto. Inserida na pesquisa qualitativa encontra-se a pesquisa
documental a qual tem por fonte documentos, escritos ou não, podendo ser realizadas
em qualquer local que sirva de fonte de informações para o levantamento de
documentos (MOREIRA; CALEFFE, 2008).
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1072
O corpus analisado é constituído por um conjunto de trinta exemplares de
resumo de leitura1 coletados durante o trabalho de investigação monográfica
(OLIVEIRA, 2013), dos quais são apresentados, nesse estudo, dois exemplares
representativos como um todo e, consequentemente, das exposições que fizemos. Por
sua vez, a categoria de análise compreende a caracterização do discurso teórico, o que
inclui: i) frases não declarativas; ii) uso do mesmo conjunto verbal (tempo); iii)
ausência de nomes próprios e pronomes adjetivo ou verbos em 1ª pessoa do
singular/plural; vi) uso de procedimentos de referência e encadeamento textual (coesão
verbal e nominal); v) uso de frases passivas, anáforas nominais ou de procedimentos de
referenciação dêitica (BRONCKART, 2012).
3 Resumo: um termo comum que abriga modalidades textuais e finalidades de
escrita particulares à dinâmica acadêmica
A NBR (Norma Brasileira) 6028 de versão 20032, da Associação Brasileira de
Normas Técnicas (ABNT), cuja função é orientar a produção e a apresentação de
resumo, o define “como uma apresentação concisa dos pontos relevantes de um
documento” (p. 1). Dessa maneira, a partir do que é estabelecido por essa norma, o
resumo é entendido como uma produção textual que se caracteriza pela precisão das
informações principais que estão presentes em um dado conteúdo, podendo ser
representado, na academia, por textos mais extensos, como artigos científicos, capítulos
de livros ou livros na íntegra, monografias, dissertações e teses.
Além dessa definição, a presente norma classifica o resumo, a partir da condição
de produção, em três tipos, a saber: crítico (também chamado de resenha), indicativo e
informativo. O resumo crítico é aquele elaborado por um escritor especialista que
apresenta conhecimento significativo de um documento a fim de que possa realizar uma
análise crítica. De acordo com essa norma, esse tipo de resumo também poderia ser
chamado de resenha3; ou ainda, de recensão, quando é elaborado com o propósito de
analisar apenas uma determinada edição dentre várias.
1 Chamamos aqui de resumo de leitura o definido pela NBR 6028 da ABNT (2003) de indicativo; ou de
escolar, por Machado et al. (2004), na coleção Resumo. 2 Esta versão vem substituir a NBR 6028 de 1990. 3 Neste caso, o documento parametrizador embora não se detenha a diferenciar o gênero resumo de
resenha, estudos recentes já vêm dedicando-se a isto, a exemplo de Machado (2010). A autora sustenta
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1073
O resumo indicativo – tipo a qual utilizemos para análise – é aquele texto que
apresenta a descrição das partes mais relevantes encontradas em um dado documento e,
por esse motivo, não dispensa, de modo geral, a consulta ao texto original. Além disso,
neste tipo de resumo não há presentes julgamentos avaliativos, diferentemente do
crítico, bem como dados que expressam ou determinam aspectos quantitativos.
O resumo informativo é aquele que apresenta as informações mais relevantes de
um documento, como os objetivos, os aspectos metodológicos, os resultados e as
conclusões. Sendo assim, por apresentar todas as informações presentes em um texto,
permite dispensar a leitura do texto original, diferentemente do resumo indicativo.
Logo, podemos afirmar que este é mais amplo que o resumo indicativo.
Assim como a mencionada norma, há manuais didáticos elaborados para orientar
a produção e apresentação de resumos, como os manuais de metodologia do trabalho
científico mais representativos da área, a exemplo o Metodologia do trabalho científico,
de Lakatos; Marconi (1992). Neste manual, o resumo é entendido como “a apresentação
concisa e frequentemente seletiva do texto, destacando-se os elementos de maior
interesse e importância, isto é, as principais ideias do autor da obra.” (p. 72). Dessa
forma, o resumo, nesta obra, é visto como um texto síntese de um outro texto, em que
apresenta na sua estrutura os elementos centrais e, por esse motivo, seletivos das ideias
essenciais do autor de um documento.
Além dessa definição, há uma classificação de resumo em três tipos: indicativo
ou descritivo, informativo ou analítico e crítico. Sobre o indicativo ou descritivo, no
manual dessas autoras, é aquele texto em que apresenta, na sua composição, a indicação
ou descrição das partes mais relevantes presentes em um documento. E não dispensa a
leitura do texto original por conter, exclusivamente, a descrição da natureza, da forma e
do propósito do texto.
O resumo informativo ou analítico contém as informações mais importantes
presentes em um texto e, por isso dispensa a leitura do texto original. Tem por efeito
informar os objetivos, os métodos e as técnicas, os resultados e as conclusões de um
dado conteúdo, bem como as ideias centrais do autor. Esse manual destaca que no
resumo não é permitido o uso de comentários avaliativos. Por sua vez, o resumo crítico
que o resumo “crítico” ao aparecer no gênero resenha, não pode ser entendido como tal, e sim, como parte
constitutiva da resenha. Entretanto, essa problemática não faz parte da nossa discussão, uma vez que
propomos dar conta do conceito apresentado por esta norma.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1074
é um texto que apresenta o julgamento de valor sobre dado documento. Nesse caso, a
crítica é feita do aspecto formal, isto é, voltada para os procedimentos metodológicos;
para as informações presentes; e para a técnica de apresentação das ideias centrais.
Diante da apresentação do que é indicado no supramencionado manual sobre a
redação do resumo, destacamos que a definição posta na NBR 6028/2003, bem como a
sua classificação acerca do resumo de texto, certamente influencia a produção desses
manuais, isso porque, ao que foi percebido, há mais proximidade do que distanciamento
entre as definições e classificações postas. Isto é, o resumo, em ambos os casos, refere-
se à síntese de um documento, no qual estão contidas as informações consideradas
relevantes.
Além desses manuais de redação científica, encontramos reflexos de o que está
posto na NBR 6028/2003 no trabalho de pesquisadores situados na Linguística
Aplicada, particularmente, os que têm investigado o conceito de resumo e o ensino da
sua produção (BIASI-RODRIGUES, 1998; CRISTOVÃO, 2001; GUIMARÃES
SILVA; DA MATA, 2002; MATÊNCIO, 2002; MACHADO; LOUSADA; ABREU-
TARDELLI, 2005; MACHADO, 2010; MOTTA-ROTH; HENDGES, 2010).
Destacamos, em especial, o trabalho de Machado (2010) para fundamentar a nossa
discussão.
Para Machado (op. cit), o resumo é um texto em que contém a apresentação
concisa dos conteúdos de outro texto; uma organização global que reproduz a do texto
original, com o objetivo de informar o leitor sobre esses conteúdos, cujo enunciador é
outro que não o autor do texto original.
Diante dessa definição, julgamos correspondência entre o que é investigado pela
pesquisadora com o que é posto na NBR 6028/2003. Entretanto, a pesquisadora
aprofunda a reflexão que gira em torno do conceito de resumo à medida que
inferencialmente se utiliza do gerenciamento de vozes, isto é, explicita que o que é dito
em um texto resumido não o é feito pelo próprio autor do texto original. Isso, caso esteja
referindo-se ao resumo indicativo, posto pela NBR/6028 ou didático, nos manuais de
redação; o qual é solicitado, normalmente, por um professor em contexto escolar e não
escolar com o intuito de desenvolver no produtor, neste caso, no aluno, a compreensão
de leitura e registro linguístico para tal compreensão (GUIMARÃES SILVA; DA
MATA, 2002).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1075
Nesse sentido, o resumo indicativo é visto como aquele tipo de resumo para fins
de instrumento de avaliação e/ou ensino por parte do professor de determinada
disciplina, ou de leitura e estratégia de estudo, por parte de ambos, professor e aluno.
Em outras palavras, esse resumo, o qual preferencialmente chamamos de resumo de
leitura, opera como uma atividade de avaliação de leitura através da qual, o aluno se
comprometerá a apresentar as ideias mais relevantes de um texto original, ajustados aos
objetivos de leitura traçados pelo professor (SILVA, 2012).
Em se tratando do resumo indicativo, a NBR 6028/2003 estabelece que para a
sua redação não se devem apresentar dados qualitativos e quantitativos, o que, a nosso
ver, está em consonância com o que Machado (2010) esclarece a respeito do discurso
teórico empregado em um resumo, isto é, relacionado ao distanciamento do objeto, a
não implicação do produtor ao que é apresentando, a impessoalização do texto, uma vez
que, ainda segundo a pesquisadora, ao texto resumido, não se permite acrescentar
nenhuma informação, além daquela do texto original, bem como nenhuma avaliação
explícita.
Ainda sobre o discurso teórico, para a produção do gênero resumo, bem como de
outros gêneros textuais da esfera acadêmica (resenha e artigo científico), a estratégia
mobilizada pelos produtores se caracteriza, principalmente, pela sua manipulação. Para
o Interacionismo Sociodiscursivo (doravante, ISD), esse tipo de discurso é, em
princípio, monologado e escrito, e esse caráter se expressa essencialmente por meio da
ausência de frases não declarativas; da exploração de um mesmo conjunto de tempos
verbais; da ausência de unidades que remetam diretamente aos interactantes, ou ao
espaço-tempo da produção; da ausência de nomes próprios e de pronomes e adjetivos de
primeira e de segunda pessoa do singular com valor claramente exofórico, ou ainda de
verbos na primeira pessoa do singular.
Logo, para essa teoria, de acordo com o gênero textual, os produtores têm a
disposição no intertexto as escolhas linguísticas que configuram o tipo de discurso a ser
utilizado, tais como: discurso interativo e relato interativo, discurso teórico e narração.
Para Bronckart (2012),
os tipos de discurso, como formas linguísticas que são identificáveis nos
textos e que traduzem a criação de mundos discursivos específicos, sendo
esses tipos articulados entre si por mecanismos de textualização e por
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1076
mecanismos enunciativos que conferem ao todo textual sua coerência
sequencial e configuracional (p. 149).
Além dessas, ainda são comuns, a presença de múltiplos organizadores com
valor lógico-argumentativos, modalizações lógicas, assim como a onipresença do
auxiliar de modo “poder”; a exploração de procedimentos de focalização de certos
segmentos de texto, bem como procedimentos de referência a outras partes do texto, ou
ao intertexto científico (procedimentos metatextuais, procedimentos de referência
intratextual, procedimentos de referência intertextual); a presença de numerosas frases
passivas, a maioria do tipo “passiva truncada” (BRONCKART, 2012, p. 171-173).
Desse modo, entendemos que a utilização do termo resumo abriga modalidades
textuais e finalidades de escrita que se particularizam na dinâmica acadêmica, os quais
são determinados pela modalidade textual e finalidades de escrita a que se destinam.
Além disso, Lopes-Rossi (2002) destaca as condições de produção e de circulação do
gênero na nossa sociedade como indispensáveis para a produção textual. A NBR
6028/2003, certamente já considerava essas características para a redação de textos
acadêmicos, ao se beneficiar da classificação do resumo em crítico, indicativo e
informativo como apresentado nesta seção.
4 Resumo de leitura: análise do domínio do discurso teórico
Os resumos analisados foram referentes ao artigo de opinião intitulado “Em
busca da cidadania”, de autoria de Luis Felipe Rubinato. Optamos por transcrever os
textos na íntegra e enumerá-los para facilitar a compreensão da análise. Vejamos os
resumos. Como procedimento didático, chamamos R 01 e R 02, de resumo 1 e resumo
2, respectivamente.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1077
A manipulação do discurso teórico que está relacionado a qualquer tentativa de
eliminar quaisquer tipos de marcas que permitam um vínculo pessoal e valorativo ao
resumo produzido, e para que isso aconteça, observamos que tanto na redação do R – 01
quanto da redação do R – 02 se utilizam da ausência de frases não declarativas para se
afastarem do texto base. Assim, observamos como na redação do R – 01 está
mobilizado este recurso:
Para o autor, em regimes autoritários não existe o exercício de cidadania
ativa. (linhas 6-7)
Rubinato cita a dificuldade na implementação da conduta cidadã em
nossa sociedade. (linhas 10-11)
Ele também exibe alguns dos grandes problemas encontrados na
sociedade brasileira. (linhas 12-14)
O advogado finaliza seu artigo, indicando que é providencial a luta da
sociedade brasileira. (linhas 18-19)
R – 02
1RUBINATO, Luiz Felipe. Em busca da
cidadania,
www.uol.com.br/embuscadacidadania, acesso:
30/04/2013.
2 O autor Luiz Felipe Rubinato inicia seu
artigo estabelecendo uma relação entre a
cidadania e a democracia, visto que a primeira é
um fator indispensável para que a segunda possa
ser exercida, além de deixar claro que a
cidadania precisa estar inserida em nossa
cultura.
6 Ele utiliza como exemplo a
Constituição de 88, a qual tem uma estrutura de
poder tradicional com participação popular de
maneira direta, para reforçar a ideia de que seria
impossível a cidadania ser exercida dentro de
um regime autoritário. Além disso, Rubinato
explica que a prática da cidadania, com uma
postura de defesa e cumprimento de direitos e
deveres, substitui as manifestações e revoltas
que ocorrem em regimes opressivos.
12 Embora ele reconheça que a cidadania
tem sido exercida em nosso país, destaca três
fatores que tem deixado a desejar no que diz
respeito a esta. A dificuldade de se implantar
uma constituição democrática após o fim
recente do regime militar, uma população sem
consciência política, capaz de trocar seu voto
por futilidade, e o descaso do próprio povo
diante das mazelas que assolam a sociedade,
como a violência e o desemprego, são alguns
dos inúmeros motivos que tem mostrado uma
cidadania deficiente em nosso país.
21 O autor conclui seu pensamento com a
ideia de que caberá à classe privilegiada lutar
para que futuramente possa ser reconhecido um
Estado democrático em nossa sociedade para
que, finalmente, venhamos ser vistos como
verdadeiros cidadãos.
R – 01
1RUBINATO, Luis Felipe. Em busca da
cidadania. Disponível em:
<www.uol.com.br/embuscadacidadania>.
Acesso em: 30 de abril de 2013
2 No artigo de opinião “Em busca da
cidadania”, de Luiz Felipe Rubinato é
apresentado o conceito de cidadania. Mostrando
que esta concepção há pouco foi implementada
em nossa sociedade e que tem uma estreita
relação com a concepção de democracia.
6 Para o autor, em regimes autoritários
não existe o exercício de cidadania ativa, pois
em países que exercem essa política regada a
manifestações agressivas e revoltas, não há
relação de parceria entre o poder de Estado e a
participação popular para reger a sociedade.
10 Rubinato cita a dificuldade na
implementação da conduta cidadã em nossa
sociedade, visto que recentemente o país
enfrentou o fim do regime militar e adquiriu
uma nova Constituição, em 1988. Ele também
exibe alguns dos grandes problemas
encontrados na sociedade brasileira, que ferem
o ideal de democracia, como a ausência de
consciência política, desinteresse e a falha na
conduta dos cidadãos quanto os vastos graus de
desemprego, violência, miséria e falta de
perspectiva. 18 O advogado finaliza seu artigo,
indicando que é providencial a luta da
sociedade brasileira, para que desta forma o
país se torne um real Estado democrático.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1078
Assim, quando se nota no texto “Para o autor não existe...”, “Rubinato cita...”,
“Ele exibe...”, “O advogado finaliza...”, isto é, usa da figura do autor do texto base para
declarar aquilo que não foi feito pelo produtor, está se distanciando do objeto e
demonstrando, assim, a manipulação do discurso teórico. Esse mesmo uso é percebido
na redação do R – 02, como podemos notar em:
O autor Luiz Felipe Rubinato inicia seu artigo estabelecendo uma relação
entre a cidadania e a democracia (linhas 2-3)
Ele utiliza como exemplo a Constituição de 88 (linha 6)
Rubinato explica que a prática da cidadania (linhas 9-10)
Embora ele reconheça que a cidadania tem sido exercida em nosso país
(linhas 12-13)
O autor conclui seu pensamento com a ideia de que caberá à classe
privilegiada lutar para que futuramente possa ser reconhecido um
Estado democrático em nossa sociedade para que (linhas 21-23)
Dessa maneira, quando na redação do R – 02 há declarações a partir da figura do
autor do documento, em “Luiz Felipe Rubinato inicia...”, “Ele (o autor) utiliza...”,
“Rubinato explica...”, ou em “O autor conclui...” está eliminando qualquer marca que
permita um vínculo pessoal com o texto produzido, isto é, por meio da ausência de
frases não declarativas há um distanciamento do objeto trabalhado.
Além dessa estratégia, o discurso teórico é traduzido pela exploração do mesmo
conjunto de tempos verbais e, neste sentido, podemos notar a mesma apresentação e uso
tanto na redação do R – 01 quanto na redação do R – 02. Dito isto, reconhecemos que
em ambos os resumos ocorre o emprego do presente do indicativo. Esse uso caracteriza
sequências expositivas em um texto, típicas desse gênero textual, nas quais há
envolvimento de um possível produtor ao texto produzido, como podemos observar na
produção do R – 01:
Para o autor (...) não existe (linha 6)
Rubinato cita (linha 10)
Ele (...) exibe (linha 12)
O advogado finaliza (linha 18)
Como visto o emprego de um mesmo conjunto verbal possibilita na redação um
distanciamento do objeto, como também não permite nenhuma interação, realizando
assim a exposição de uma informação. Na redação do R – 02 não há diferente, como
podemos observar:
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1079
O autor inicia (...) (linha 2)
Ele utiliza (...) (linha 6)
Rubinato explica (...) (linha 9)
O autor conclui (linha 22)
Como podemos notar, por meio de um conjunto de verbos conjugados no
presente do indicativo “inicia”, “utiliza”, “explica” e “conclui” permite distanciar, como
ocorre na redação do R – 01, do objeto, e assim caracteriza sequências expositivas. A
essas características do domínio do discurso teórico ainda se acrescenta a ausência de
pronomes adjetivos e/ou de verbos em primeira pessoa do singular/plural que implicam
o não envolvimento do produtor com o texto produzido, o distanciamento do objeto, ou
mais especificamente, a impessoalização do texto. Isto é, esse recurso prima pelo
afastamento do produtor em relação ao conteúdo exposto, tendo em vista que se trata de
uma reprodução dita por outro. Entretanto, notamos que há presente o uso desses
pronomes e/ou de verbos que marcam o posicionamento de um produtor diante do
objeto. Como podemos observar nos trechos abaixo, tanto na redação do R – 01 quanto
na redação do R – 02 há utilização do pronome adjetivo de primeira pessoa do plural
(nossa), o que lhes permitem um vínculo valorativo ao texto produzido:
R – 01
(...) esta concepção há pouco tempo foi implementada em nossa sociedade
(linhas 3-4)
(...) cita a dificuldade na implementação da conduta cidadã em nossa
sociedade (linhas 10-11)
R - 02
(...) são alguns dos inúmeros motivos que tem mostrado uma cidadania
deficiente em nosso país (linhas 17-19)
(...) um Estado democrático em nossa sociedade para que, finalmente,
venhamos ser vistos (linhas 21-23)
Na redação do R – 02 além de se utilizar de pronomes adjetivos, emprega um
verbo em primeira pessoa do plural (venhamos, linha 22), o que demonstra um
posicionamento em relação ao conteúdo do texto produzido. Entretanto, destacamos
que, embora o discurso teórico (ISD) e a ABNT não prevejam essa ocorrência, o uso da
primeira pessoa do plural tem se tornado frequente na produção de gêneros acadêmicos.
Ainda são comuns, em relação ao discurso teórico, o uso de procedimentos de
referência e encadeamento textual (coesão verbal e nominal), que permite evitar a
repetição de nomes e contribui para ativar a substituição deles, assim estabelece a
progressão textual. Sobre esse uso, nas redações há utilização da substituição do nome
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1080
do autor por referentes que indique conformidade, como podemos observar no trecho
extraído da produção do R – 01:
No artigo de opinião “Em busca da cidadania”, de Luiz Felipe Rubinato
(linhas 2-3) > O advogado finaliza seu artigo (linha 18)
Na arquitetura do texto, na redação do R – 01 inicia com a identificação do
material produzido, neste caso, um “artigo de opinião” e no último parágrafo, para
retomar essa informação, substitui pelo termo “artigo”, o que permite a progressão sem
“violação” na escrita. Além disso, notamos na mesma redação a substituição em outro
momento, para retomar o autor do texto base, nesse caso “Luiz Felipe Rubinato”, o
emprego do termo “advogado”, o que permite a progressão textual.
Na redação do R – 02 também há a utilização de procedimentos de referência e
encadeamento textual (coesão verbal e nominal), assim para referenciar o autor do texto
base, no resumo há a substituição por termos tais como “Ele”, “Rubinato” “o autor”.
Dessa forma, reforçamos o quanto o tratamento linguístico, aqui visto pela utilização de
procedimentos de referência e pelo encadeamento textual, marcado pela coesão
nominal, incide na organização do texto produzido.
Ainda marca o discurso teórico o uso de frases passivas que permitem na
redação o não comprometimento diante do que é exposto. Dito de outra forma, o
emprego desses tipos de frases não implica o produtor do texto sob o documento
produzido, como podemos comparar no trecho retirado da redação do R – 01:
No artigo de opinião (...) é apresentado o conceito de cidadania. (linhas 2-3)
Como visto, esse produtor, ao se utilizar do verbo “apresentar” na voz passiva,
marca neutralidade ao texto, e assim afastamento acerca da leitura efetuada sobre o
texto submetido ao resumo. Não identificamos essa recorrência na redação do R – 02.
5 Conclusão
Através da análise realizada, podemos concluir que não houve efetivamente
domínio discurso teórico. Afirmamos isso, tendo em vista a constatação de que em parte
das produções analisadas, identificamos marcas de posicionamento, o que parece ser
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1081
contraditório, uma vez que, em um resumo dever-se-ia evitar a apresentação de dados
quantitativos e/ou avaliativos, e para isso se utilizariam de uma linguagem característica
do gênero, tipicamente impessoal e objetiva, com verbos na terceira pessoa do singular.
Essas seriam estratégias que primariam pelo emprego do discurso teórico, visto como o
modo em que o produtor marca o distanciamento do objeto, a não implicação sobre o
que é apresentado, a impessoalização do texto, enfim.
Por esse motivo, acreditamos ser necessário maior investimento em discussões e
análises sobre a organização linguística e textual do resumo e isso requer do professor o
uso de procedimentos que favoreçam a percepção da administração do funcionamento
linguístico e textual da escrita desse texto, assim como requer, do aluno, maior empenho
com o que produz.
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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1083
A VOZ DO SILÊNCIO INDÍGENA: O EXERCÍCIO DO
PODER IDEOLÓGICO SOBRE A REPRESENTAÇÃO DE
ATORES SOCIAIS [Voltar para Sumário]
Ilka da Graça Baía de Araújo (UEG)
Gláucia Cândido Vieira (UFG/UEG)
Introdução
Este trabalho foi elaborado e apresentado ao Programa de Mestrado
Interdisciplinar em Educação, Linguagem e Tecnologias – MIELT/UEG, na disciplina
Análise do Discurso. Traz uma análise dos discursos alocados em uma notícia da
Revista VEJA – Abril Online. O objetivo é identificar na estrutura da narrativa, as
manifestações do “poder como hegemonia e ideologia”, quando do uso da linguagem
como instrumento de manipulação e apoderamento (RAMALHO; RESENDE, 2011,
p.11).
Segundo Caldeira (2011), a Análise de Discurso Crítica - ADC é “uma proposta
teórico-metodológica” caracterizada pela interdisciplinaridade e heterogeneidade.
Contempla reflexões a cerca da relação entre linguagem e sociedade e analisa problemas
sociais, discursivamente (WODAK, 2003 apud RAMALHO, 2009).
Para a construção da análise, o trabalho fundamentou-se nos pressupostos de
Fairclough (2000, 2003, 2010), Magalhães (2005), Ramalho e Resende (2006, 2011), os
quais serão utilizados para embasar a análise crítica. Quanto às concepções de
linguagem, o texto se estrutura em Bakhtin (2010) e em Fairclough (2001), na pretensão
de demonstrar a linguagem dentro da rede discursiva.
Conceitos e contextualização – o papel da ADC
Entender o papel da ADC dentro dos discursos constitui-se uma árdua tarefa. Ou
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1084
pelo menos assim o era antes da elaboração métodos criados por Fairclough, os quais
dessem suporte para uma análise mais consistente. Foi a partir da década de setenta, que
se desenvolveu uma forma de análise do discurso e do texto que identificava o papel da
linguagem na estruturação das relações de poder na sociedade (FAIRCLOUGH, 2001).
Evidente que não se pode deixar de registrar a contribuição de vários outros
autores, anteriores a Fairclough, os quais consolidaram em seus estudos, a importância
das mudanças sociais como perspectiva de análise.
Ramalho e Resende (2011, p. 12), afirmam que “a Análise de Discurso Crítica,
em um sentido amplo, refere-se a um conjunto de abordagens científicas
interdisciplinares para estudos críticos da linguagem como prática social”. Nesse
sentido, Fairclough (1999 apud Ramalho; Resende, 2011, p. 12) afirma que a ADC é
“comprometida em oferecer suporte científico para questionamentos de problemas
sociais relacionados a poder e justiça”.
Para Wodak (2003) é possível definir a ADC como uma disciplina que se ocupa,
fundamentalmente, de análises que dão conta das relações de dominação, discriminação,
poder e controle, na forma como elas se manifestam por meio da linguagem. Tem
características particulares que visam refletir a linguagem em suas manifestações
práticas dentro da sociedade. Não apenas uma análise superficial encomendada, mas
algo que contextualize os sujeitos, as causas explícitas e implícitas, situando os
problemas sociais com o poder, a ideologia e a linguagem.
A linguagem como prática social
Dessa forma, Bakhtin (2010, p.261) afirma que “todos os diversos campos da
atividade humana estão ligados ao uso da linguagem, sendo o caráter e as formas desse
uso tão multiformes quanto os diversos campos da atividade humana”. Isso nos leva a
entender a linguagem como forma de expressão das diversas atividades humanas e que
proporciona a “multiformidade” capaz de integrar vários outros sentidos e imbricações.
Em relação à perspectiva sociodiscursiva da ADC, Ramalho e Resende (2011,
p.13) afirmam que a “linguagem é parte irredutível da vida social”. Isso pressupõe haver
uma “relação interna e dialética” entre a linguagem e a sociedade, em que, tanto as
questões sociais são em parte “questões de discurso” ou vice-versa. Na concepção da
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1085
ADC, a linguagem como prática social é ligada a “uma entidade intermediária" e está
situada “entre as estruturas sociais mais fixas e as ações individuais mais flexíveis”. Por
essa razão, a ADC não pesquisa a linguagem como um “sistema semiótico”, nem como
textos isolados, mas sim, analisa o discurso, como um momento de toda prática social
(RAMALHO; RESENDE, 2011, p.14).
Ainda, segundo Ramalho e Resende (2011, p.15), a linguagem se manifesta
como discurso, uma parte irredutível da forma como se interage, representa e identifica-
se a si e aos outro por meio da linguagem. Isso justifica a necessidade de estudos que
relacionem dialeticamente a linguagem à sociedade e suas práticas. É nesse sentido que
o presente trabalho se constrói, trazendo a linguagem como uma forma articulada da
expressão humana, utilizada na estrutura dos discursos para naturalizar situações
adversas ao contexto social.
Objeto da análise – a notícia
O objeto de análise será a notícia veiculada no dia vinte e nove de maio, de
dois mil e quatro, pela Revista VEJA – Abril- Online, que apresenta em sua temática,
uma forma de protesto indígena realizado em Brasília, por ocasião da Copa do Mundo.
29 de maio de 2014 – veja.abril.com.br/tag/índios (data e origem do notícia)
Copa do Mundo (chapéu da notícia)
Protestos de índios viram rotina em Brasília – e agora têm até flechadas (título)
Movimento que reúne diversas etnias luta contra a aprovação de uma emenda à
Constituição que transfere ao Congresso a atribuição de decidir sobre demarcação de
terras protegidas (subtítulo)
Mariana Zylberkan (jornalista- nome preservado)
Índios acorrentados durante protesto em frente ao Ministério da Justiça, em Brasília (Lunae
Parracho/Reuters) (fotógrafos – nomes preservados)
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1086
1º - A cena de faroeste no país da Copa do Mundo, com índios disparando flechas contra
policiais a cavalo no Distrito Federal, na última terça-feira, faz parte de uma recente rotina de
protestos conduzidos por um grupo heterogêneo de etnias que integram a Articulação dos Povos
Indígenas do Brasil (Apib). Nesta quinta-feira, o movimento voltou a causar confusão com
índios se acorrentando em postes diante do prédio do Ministério da Justiça. A principal bandeira
é a luta contra da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215, que transfere ao Congresso
Nacional a atribuição de deliberar sobre demarcações de terras indígenas no país – hoje a cargo
da União.
2º -Nesta semana, 600 índios estão reunidos na capital federal na chamada "mobilização
nacional indígena", organizada anualmente. Na última terça, entretanto, parte desse grupo
resolveu se juntar a manifestantes que marchavam contra a realização da Copa do Mundo no
Brasil e entraram em confronto com a polícia – um policial foi ferido a flechada.
3º - As imagens da batalha campal entre índios das mais variadas tribos – alguns de calça jeans
e tênis de marca – e policiais rodaram o mundo. Mas o histórico de confusão é conhecido em
Brasília. Em outubro do ano passado, o mesmo movimento tentou invadir o prédio da Câmara
dos Deputados durante manifestação contra a aprovação da PEC 215. Houve empurra-empurra e
uma vidraça foi quebrada. Índios também furaram os pneus do carro do deputado Cândido
Vaccarezza (PT-SP) e obrigaram o parlamentar a descer do veículo. No mesmo dia, o
movimento promoveu um "tiro ao alvo" com arcos e flechas em um painel montado no gramado
da Esplanada. Os alvos, no caso, eram deputados da chamada bancada ruralista, favoráveis à
aprovação da PEC. Um cartaz atacava a senadora Katia Abreu (PMDB-TO), uma das
lideranças dos ruralistas no Congresso: "Katia Abreu, se agrotóxico não faz mal, então bebe".
4º - Integrante do comitê de imprensa da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, Renato
Santana afirma que a Copa do Mundo joga luz nas contradições do governo federal para lidar
com as questões sociais do país. Por isso, argumenta, os índios se juntaram aos manifestantes na
terça-feira. “Além disso, o cultivo de grãos, principalmente de soja, foi afetado pela construção
do estádio em Brasília”, diz. Santana nega que as flechadas foram um ataque à polícia: “Eles
estavam fazendo um ritual com cantos e dança para protestar quando os policiais jogaram os
cavalos e, para se proteger, fizeram isso”.
Para desvelar representações excludentes de atores sociais em determinados
contextos, Fairclough (2003) propõe “um diálogo com a teoria de representação dos
atores sociais de Theo van Leeuwen (1997; 2008)”, o qual considera que, na medida em
que tais representações ajudam a sustentar relações de dominação dentro de uma
determinada prática, estas se tornam ideológicas.
Assim, o percurso metodológico foi construído com finalidade da compreensão
da realidade social construída. A análise foi realizada com o método de pesquisa
qualitativa, de acordo Bauer e Gaskell (2008) sendo a mais apropriada para interpretar
realidades sociais. A pesquisa qualitativa não se preocupa em representar de forma
numérica a temática analisada, mas com o aprofundamento da compreensão de um
grupo social, de uma organização, entre outros. Para Denzin & Lincoln, (2006, p. 17
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1087
apud Ramalho; Rezende, 2011, p.15), a pesquisa qualitativa consiste no “um conjunto
de práticas materiais e interpretativas que dão visibilidade ao mundo”.
A análise será assim constituída: da narrativização - em que, segundo os
pressupostos de Fairclough (2001, p.226), o discurso é concebido de três modos nas
práticas sociais:
No primeiro, como parte da atividade social dentro de uma prática[...]
segundo, o discurso figura nas representações. Atores sociais inscritos em
qualquer prática produzem representações acerca das demais, bem como
representações (“reflexivas”) da sua própria, no exercício das atividades que
a constituem [...] terceiro, o discurso integra os modos de ser, a constituição
das identidades (Grifo nosso).
Assim, a manchete noticiada pela Revista VEJA – Abril Online, consta do
seguinte título: “Protestos de índios viram rotina em Brasília – e agora têm até
flechadas”; e subtítulo: “Movimento que reúne diversas etnias luta contra a aprovação
de uma emenda à Constituição que transfere ao Congresso a atribuição de decidir
sobre demarcação de terras protegidas”. Preservam-se neste trabalho os nomes da
jornalista, bem como dos fotógrafos.
A análise – categorias utilizadas
Para a análise textual, utilizaremos as seguintes categorias analíticas: a
narrativização, a ironia, a intertextualidade, a identificação relacional, a metáfora,
avaliação e a representação de atores sociais. O cerne da notícia seria descrever o
protesto indígena que luta contra a aprovação de uma emenda à Constituição, a qual
transfere ao Congresso a atribuição de decidir sobre demarcação de terras protegidas.
Porém, a partir do título, percebe-se que a intencionalidade da jornalista ao escolher a
forma sequencial da narrativa, vai sendo traçada no sentido de “desfocar” a luta e a
causa do protesto indígena, o qual coincidentemente ocorre no momento de
manifestações de “outros brasileiros”, que marchavam contra a realização da Copa do
Mundo no Brasil.
Percebe-se que a jornalista, ao intitular a notícia, opta por descrever uma
reação realizada pelos índios manifestantes, como se forma uma ação originária. Isso,
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1088
ao longo da narrativa, não se confirma, pois, quando o leitor segue em uma leitura mais
profunda nos parágrafos 3º e 4º, fica clara a intencionalidade da notícia.
Nesse sentido, entendemos que a jornalista, ao elaborar o texto, escolher o
título e subtítulo, assim como a forma de narrativa, faz uma inversão dos fatos e deixa
transparecer sua posição a favor de quem está no poder. Vejamos os trechos 1º e 2º:
No título e subtítulo, sequencialmente:
(1) Protestos de índios viram rotina em Brasília – e agora têm até flechadas.
(2) Movimento que reúne diversas etnias luta contra a aprovação de uma emenda
à Constituição que transfere ao Congresso a atribuição de decidir sobre demarcação de
terras protegidas.
´ No primeiro momento da leitura, a começar pelo título, a impressão que se
instala é que todo o texto vai desenvolver-se sobra a “violência indígena” exercida no
momento do protesto. Mas, qual protesto? Se a resposta fosse emitida somente pelo
título, ficaria claro que a vítima do protesto não eram os índios, e, sim, o governo
instalado em Brasília. No entanto, ao se proceder a leitura nos demais parágrafos,
percebe-se que o título “não condiz” com o cerne do acontecimento. Nos trechos 3º, 4º e
5º, apontaremos outro aspecto que julgamos relevante na análise. A ironia, que está
implicitamente no texto, através do uso de vocábulos intencionais:
No título da notícia:
(3) Protestos de índios viram rotina em Brasília – e agora têm até flechadas.
Parágrafo 2º, 2ª linha:
(4) [...] 600 índios estão reunidos na capital federal na chamada "mobilização
nacional indígena", organizada anualmente [...]
Parágrafo 3º, 7ª linha:
(5) No mesmo dia, o movimento promoveu um "tiro ao alvo" com arcos e flechas
em um painel montado no gramado da Esplanada. Os alvos, no caso, eram
deputados da chamada bancada ruralista, favoráveis à aprovação da PEC [...]
Constata-se aqui que, ao organizar a narrativa, há uma afirmação implícita sobre
a pessoa do indígena, o diferente. Demonstrar que, já não bastasse os protestos, agora
têm até flechadas. No entanto, em nenhum momento da narrativa é dito que os policiais
lançaram bombas de efeito moral contra “os manifestantes”, como consta em outras
fotos tiradas do protesto, anexadas ao final da notícia. A narrativa ainda coloca uma
dúvida irônica para o leitor quando se refere à “mobilização nacional indígena”,
colocado propositalmente, entre aspas. Isso faz com que, sejam gerados preconceitos e
opiniões de aversão ao manifesto indígena pelos leitores, naturalizando e reforçando a
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1089
diferença social entre o índio e o não índio. Outro fato que nos chama a atenção é que
em nenhum momento, a jornalista, refere-se à urgência de tratar a questão indígena, o
motivo do protesto que se arrasta desde o ano de 2013, como diz o 6º trecho:
Parágrafo 3º, 3ª linha:
(6) Em outubro do ano passado, o mesmo movimento tentou invadir o prédio
da Câmara dos Deputados durante manifestação contra a aprovação da PEC 215.
A narrativa elaborada expõe e reforça a situação dos “escolhidos” como
protagonistas do protesto, nesse caso, os indígenas. Ou seja, a identificação relacional,
em que, segundo Ramalho e Resende (2011, p.131) diz respeito à identificação dos
atores sociais, como podemos ver nos trechos 7º, 8º, 9º e 10º:
Parágrafo 1º, 1ª linha:
(7) A cena de faroeste no país da Copa do Mundo, com índios disparando
flechas contra policiais a cavalo no Distrito Federal [...]
Parágrafo 3º, 1ª linha:
(8) As imagens da batalha campal entre índios das mais variadas tribos –
alguns de calça jeans e tênis de marca [...]
Parágrafo 1º, 5ª linha:
(9) [...] o movimento voltou a causar confusão com índios se acorrentando em
postes diante do prédio do Ministério da Justiça [...]
Parágrafo 3º, 2ª linha:
(10) Mas o histórico de confusão é conhecido em Brasília [...]
(11) As imagens da batalha campal entre índios das mais variadas tribos –
alguns de calça jeans e tênis de marca – e policiais rodaram o mundo [...]
É perceptível que na sutileza do uso da linguagem utilizada na construção da
narrativa, os “indígenas” tornem-se os vilões, os baderneiros, os causadores de
confusão e o governo, a vítima. Vítima daqueles que ao longo da história do Brasil são
roubados e aniquilados pelo poder. São vítima daqueles que estão lutando para terem
seus “direitos” assegurados. Vítima, dos causadores de confusão que
constitucionalmente têm os mesmos direitos que o não índio, sendo estes também
brasileiros. Ao longo da narrativa, em nenhum momento a jornalista atribui a cidadania
de brasileiros aos indígenas. Percebe-se a determinação de “naturalizar o indígena”
como “alguém fora do contexto do país”. Ao indígena é atribuída a condição de
“causador de confusão”, que é reforçada no10º trecho.
Essa construção de identificação se propaga ao longo da narrativa, reforçada
pelo contexto social em que está inserido. Nesse sentido, percebe-se que a representação
dos atores sociais e a identificação estão em uma continuidade dentro do texto. E, ao
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1090
observamos o 11º trecho, veremos que novamente se coloca em cheque a identidade do
indígena, não como alguém que pode “usar”, “vestir” ou “calçar” uma roupa, um tênis
ou sapato de marca ou não. Por quê? Porque no entendimento de muitos brasileiros,
reforçado pela ideologia dominante, o índio tem que andar nu; descalço; pintado; com
adereços de plumagens. Outro questionamento que poderia ser feito é: De que forma a
jornalista chegou à conclusão que o tênis era de marca? Qual era a marca?. Tal fato
remete a outro elemento social que se julga importante citar. No Brasil, existe a entrada
de mercadorias importadas de inúmeros países; materiais fruto da pirataria e outros
originais que são vendidos a um preço acessível no mercado. Assim, como formar uma
opinião de que sendo índio, ele não possa obter um aparato como um “tênis de marca”.
Podemos perceber, que o juízo de valor feito por meio da vestimenta e do calçado
indígena foi determinante para que a jornalista fizesse suas conclusões. A questão é:
Quem ou o quê determina “quem pode usar ou não algo de marca?”. Outro fator
relevante é: as imagens “provam” tal afirmação? Deixo as conclusões destes
questionamentos com cada leitor. Seguidamente apresentamos outra categoria de
análise; a intertextualidade. Para exemplificá-la seguem trechos 12 e, 13:
Parágrafo 4º, 6ª linha:
(12) Renato Santana nega que as flechadas foram um ataque à polícia: “Eles
estavam fazendo um ritual com cantos e dança para protestar quando os policiais
jogaram os cavalos e, para se proteger, fizeram isso”.
Parágrafo 3º, 11ª linha:
(13) Um cartaz atacava a senadora Katia Abreu (PMDB-TO), uma das lideranças
dos ruralistas no Congresso: "Katia Abreu, se agrotóxico não faz mal, então bebe".
Segundo Fairclough (2001, p.114 apud Ramalho; Resende, 2011, p. 133), o
conceito de intertextualidade na concepção de Bakhtin (1997) diz respeito a propriedade
que têm os textos de ter outros fragmentos de textos. No trecho citado acima, podemos
ver a presença de vozes específicas que atravessam a narração, dando voz à quem está
no contexto da luta hegemônica. É o caso do representante indígena, Integrante do
comitê de imprensa da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, Renato Santana que,
ao ser “ouvido” e citado no “último parágrafo” da notícia, deixa claro que a motivação
para o enfrentamento indígena surge de uma ação da polícia montada.
Outro exemplo é a pressuposição de voz dos manifestantes, que aparece no texto
como ouvida ou entrevistada, mas supõe-se que esteja descrita no cartaz que é
direcionado a uma senadora, como citado no trecho (11), pessoa de representação do
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1091
poder governamental. Sobre tal pressuposição de vozes, Fairclough vai dizer que esta
não “é explicitamente atribuída a vozes ou textos específicos”, ele define as
pressuposições como “preposições tomadas pelo produtor do texto como já
estabelecidas ou dadas” e que podem ser engatilhadas por diversos recursos linguísticos
(RAMALHO; RESENDE, 2011, p. 1340).
Existe, ainda, a voz da jornalista que transcorre todo o texto, fazendo uso de
opiniões, ideias e escolhas próprias para formalizar uma interpretação que julga correta.
Percebe-se certa defesa em relação às reprimendas ao indígena pelo poder representado
pelos policiais.
Outra categoria a ser analisada é a Metáfora, que segundo Ramalho e Resende
(2011), “é, em princípio, um traço identificacional de textos, moldado por estilos
particulares”. Para Lakoff & Johnson (2002, apud Ramalho; Resende, 2011, p.146) a
essência da metáfora é “compreender uma coisa em termos de outra”. Para os autores
as metáforas podem ser conceituais, orientacionais e ontológicas. Para o exemplo que
vamos citar utilizaremos a metáfora conceitual, pela qual se compreende aspectos de
um conceito em termos de outro. Eis os trechos 14 e 15 que nos servirão de exemplo:
Parágrafo 1º, 1ª linha:
(14) A cena de faroeste no país da Copa do Mundo, com índios disparando
flechas contra policiais a cavalo no Distrito Federal, na última terça-feira, faz parte de
uma recente rotina de protestos conduzidos por um grupo heterogêneo de etnias que
integram a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
Parágrafo 3º, 1ª linha:
(15) As imagens da batalha campal entre índios das mais variadas tribos –
alguns de calça jeans e tênis de marca – e policiais rodaram o mundo. (grifo nosso)
Fairclough (2001) afirma que “todos os tipos de metáforas necessariamente
realçam ou encobrem certos aspectos do que se representa”. Assim, podemos perceber
que, ao utilizar as metáforas, a jornalista remete o leitor a um determinado tempo
histórico passado, enfatizado principalmente, no vocábulo “faroeste” citado no trecho
(13), que, ao se fazer o link, o leitor é remetido para outra notícia de mesmo teor,
porém, com a seguinte ênfase ao termo faroeste: Bonanza foi uma série de faroeste de
sucesso nos 1960 e 1970, protagonizada pelo patriarca Ben Cartwright (Lorne
Greene), que ao lado dos três filhos – Adam, Little Joe e Hoss – lutava para manter os
inimigos longe de seu rancho durante a guerra civil americana. O seriado teve vida
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1092
longa, ficou mais de dez anos no ar nos Estados Unidos e teve duas indicações ao
Globo de Ouro.
Dessa maneira, ao enfatizar este termo metafórico em sua narrativa, a
jornalista reforça ainda mais a naturalização dos indígenas, não como brasileiros, mas
como “índios”, e “baderneiros”. Nesse sentido, a ideia de que, como em uma luta de
faroeste, os polícias lutaram para defender “seu rancho”, dos indígenas, os quais
assumiam o papel de “inimigos”. Para retratarmos algumas afirmações e juízos de valor
emitidos no texto, faremos uso de outra categoria de análise, a avaliação. Segundo
Faiclough (2003ª, p. 172, apud Ramalho; Resende, 2011, p. 119), a “avaliação é em
princípio, uma categoria identificacional, moldada por estilos”, tal qual a metáfora
inicialmente, porém, com característica de “apreciações e perspectivas do locutor, mais
ou menos explícitas, sobre aspectos do mundo, sobre o que considera bom ou ruim, ou o
que deseja ou não” e assim sucessivamente.
Nesse sentido, na leitura dos trechos (16), (17), (18) e (19), percebemos que o
protesto dos índios, não se constituía da luta “contra a Copa do Mundo”, mas sim,
“contra” a aprovação da Emenda Constitucional 215. No entanto, a estrutura da
narrativa faz com que fique perceptível, ainda que “implicitamente”, a posição da
narrativa ao retratar os fatos; a intencionalidade. Observe:
Parágrafo 1º, 6ª linha:
(16) A principal bandeira é a luta contra da Proposta de Emenda
Constitucional (PEC) 215, que transfere ao Congresso Nacional a atribuição de
deliberar sobre demarcações de terras indígenas no país – hoje a cargo da União.
Parágrafo 2º, 3ª linha:
(17) Na última terça, entretanto, parte desse grupo resolveu se juntar a
manifestantes que marchavam contra a realização da Copa do Mundo no Brasil e
entraram em confronto com a polícia [...]
Parágrafo 1º, 1ª linha:
(18) A cena de faroeste no país da Copa do Mundo, com índios disparando
flechas contra policiais a cavalo no Distrito Federal, [...]
Parágrafo 3º, 1ª linha:
(19) As imagens da batalha campal entre índios das mais variadas tribos – alguns
de calça jeans e tênis de marca – e policiais rodaram o mundo. Mas o histórico de
confusão é conhecido em Brasília.
Os trechos acima chamam a atenção ao demonstrarem que o “país da Copa do
Mundo”, “o Distrito Federal”, “a cidade de Brasília”, onde se centraliza o poder estatal,
torna-se o palco para as manifestações sociais. Tais trechos demonstram que, sendo
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1093
Brasília, a Capital do País, local em que são articuladas as decisões, os projetos de leis,
agora passa a ser um palco de “luta”, um “faroeste”, uma “guerra campal”.
Dessa forma, o fato implícito deixa-se interpretar pela seguinte posição: a sede
do Governo, não deveria ser o alvo para tais manifestações; e ainda, em plena “Copa do
Mundo”. Acentua-se nesse aspecto, por as imagens das manifestações que rodaram o
mundo inteiro, seguida da conjunção adversativa “mas” - que diz respeito à oposição ou
contraste revela que “isso já é conhecido” pelo governo, e que não é uma novidade.
Esse traço reforça a ideia de que o governo “já sabe há muito tempo”, sobre as
reivindicações que norteavam os protestos, mas que, até agora, não propôs uma solução
e não deixa indícios que o fará.
Para finalizar esta análise, embora ainda tenhamos elementos que poderiam ser
analisados, faremos apenas uma análise breve na imagem posta na notícia, a qual leva o
leitor a fazer outras leituras. Sendo: a) depara-se com uma pessoa sendo acorrentada em
um poste por outras ao seu redor. Percebe-se que este gesto é utilizado para chamar a
atenção para as reivindicações do movimento. Reforça a ideia de flagelo, de vítima da
violência que a sociedade vivencia; b) observa-se que na imagem, não é possível
evidenciar em nenhum ângulo, a marca do tênis usado pelo índio, o que nos leva a
refletir sobre as razões que levaram tal fato a ser mencionado no texto; c) percebe-se
também que as fotos anexadas ao final da notícia, demostram as atitudes dos
manifestantes e do combate que se seguiu entre a polícia e os indígenas, e, no entanto,
ficaram em segundo plano, impedindo o leitor de tirar suas próprias conclusões sobre o
assunto.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesse sentido, considera-se que a ADC e suas categorias de análise possibilitam
o entendimento da forma com que a linguagem pode ser, e é utilizada para dar maior
apoderamento à sociedade dominante. A notícia em toda sua narrativa se constitui uma
clara demonstração de como os atores sociais são envolvidos e levados a uma
passividade e naturalização dos fatos que ocorrem na sociedade.
Em relação às categorias de análise escolhidas para fundamentar este trabalho,
percebeu-se que estas deram ao escopo do trabalho maiores possibilidades de
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1094
entendimento e interpretação. Não a interpretação de julgamento, mas de apreciação
daquilo que não foi escrito, mas que está implícito. E ainda, por meio da análise
percebemos dois tipos de atores sociais. Os que representam a ideologia dominante: a
jornalista, os policiais e a representatividade do governo e um grupo minoritário, os
indígenas. Estes atores revelaram em grande parte, a construção de uma identidade
legitimadora que ofusca, nega e apagam as diferenças sociais, naturalizando a opressão
a que são submetidos os grupos minoritários no Brasil. Ora por meio do processo de
marcação da diversidade, ou ainda, pela assimilação e aculturação social dos índios.
Outra fato que foi possível observar refere-se à construção de uma identidade de
resistência exercida pelos índios. Percebemos que apesar da não aceitação do não índio
na sociedade dominante, existe um movimento discursivo que se forma e luta pelo
reconhecimento e pertencimento dos indígenas; os próprios índios. Nesse sentido, a
afirmativa de Candau (2006) é propicia, pois, aceitar a diferença é reconhecer que
existem indivíduos e grupos com diversidades entre si, mas que possuem direitos
correlatos e que a convivência em uma sociedade democrática depende da aceitação de
que compormos uma totalidade social heterogênea, na qual não se pode excluir nenhum
elemento e que os conflitos e de valores devem ser negociados pacificamente.
REFERÊNCIAS
BAUER, Martim W.; GASKELL, George. Pesquisa Qualitativa com texto, imagem e
som – um manual prático. Editora Vozes: São Paulo, 7ª edição, 2008
CALDEIRA, Elaine. Representação dos atores sociais: discurso de reforço e
enfraquecimento na constituição discursiva de identidades étnicas. Revista Prolíngua –
ISSN 1983-9979. Volume 6 - Número 2 - jan/jun de 2011.
CANDAU, V. M. (org) Educação Intercultural e Cotidiano escolar. Rio de Janeiro: 7º
ed. Letras, 2006.
FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Trad. I. Magalhães. Brasília:
editora Universidade de Brasília, 2001.
GOLDENBERG, Mirian. A arte de pesquisar: Como fazer pesquisa qualitativa em
Ciências Sociais. 8.ed. Rio de Janeiro e São Paulo: Record, 2004.
MAGALHÃES, Izabel. Introdução: a Análise de Discurso Crítica. D.E.L.T.A. 21
(especial): 1-10, 2005.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1095
RAMALHO, Viviane; RESENDE, Viviane de Melo. Análise de discurso crítica. São
Paulo: Campinas, Pontes Editores, 2011
Site Disponível em: veja.abril.com.br/tag/índios – Acesso em: 01/07/2014.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1096
GÊNERO E RELAÇÕES INTERÉTNICAS NA
CONSTRUÇÃO FAMILIAR AFRICANA EM O ALEGRE
CANTO DA PERDIZ, DE PAULINA CHIZIANE [Voltar para Sumário]
Ilka Souza dos Santos (UPE)1.
Amara Cristina de Barros e Silva Botelho (UPE)2.
1. Introdução
Ao conhecer um pouco da literatura produzida na África, notamos que entre as
temáticas recorrentes estão os mitos, as crenças, a cultura popular, a emigração, o que
nos faz conhecer um pouco da realidade de diferentes locais deste continente. Na
literatura africana produzida por mulheres, destaca-se também a luta pelo espaço do
gênero feminino. A tradição oral se sobressai à escrita, fato que é possível compreender
através de indicadores sociais que destacam a pouca escolarização da população. A
produção da literatura em espaço africano caracteriza em si a presença do contato com o
mundo ocidental, o elemento híbrido; e a participação feminina neste processo
acrescenta o sentimento de reafirmação, de contestação, da busca de um lugar e de uma
voz que possa ser ouvida.
Em O alegre canto da perdiz (2008), Chiziane traz o eixo central da história
direcionado às mulheres, tendo a Zambézia como espaço principal – considerando a
criação do mundo advinda do ventre de uma mulher –, e o período colonial e pós-
colonial como tempo histórico, mostrando o impacto deste período na construção
familiar e identitária deste povo.
O artigo encontra-se dividido em dois tópicos, um sobre os conceitos que
definem os aspectos que norteiam o trabalho (gênero e relações interétnicas); outro que
possibilita compreender a aplicação destes conceitos no decorrer da narrativa do
1 Graduanda do curso de Licenciatura em Letras pela Universidade de Pernambuco (UPE); bolsista de
iniciação científica PIBIC/CNPq. E-mail: [email protected] 2 Professora Doutora adjunta do curso de Letras da Universidade de Pernambuco (UPE). E-mail:
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1097
romance. Dentre os autores referidos neste trabalho, temos Johnson (1997); Noa (2006);
Duarte (2011); Poutgnat; Streiff-Fenart (2011); Butler (2010); Louro (2010); Hall
(2011); Albernaz; Longhi (2009); entre outros que também trazem contribuições
importantes à abordagem das temáticas em questão.
2. Conceituando etnicidade e gênero
Considerados conceitos amplos e heterogêneos, etnicidade e gênero apresentam
alguns aspectos em comum, como a importância da identidade em sua construção.
Podemos partir, neste caso, de alguns pressupostos teóricos para compreender essas
noções. Na questão da etnicidade, por exemplo, Johnson (1997) diz que trata-se de
[...] um conceito que se refere a cultura e estilo de vida comuns,
especialmente da forma refletida na linguagem, maneiras de agir, formas
institucionais religiosas e de outros tipos, na cultura material, como roupas e
alimento, e produtos culturais como música, literatura e arte (JOHNSON,
1997, p. 100).
Para Weber os grupos étnicos
[...] alimentam uma crença subjetiva em uma comunidade de origem fundada
nas semelhanças de aparência externa ou dos costumes, ou os dois, ou nas
lembranças da colonização ou da migração, de modo que esta crença torna-se
importante para a propagação da comunalização, pouco importando que uma
comunidade de sangue exista ou não objetivamente (WEBER, [1921] 1971,
p. 416 apud POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011, p. 37).
Logo, Barth considera que
as distinções de categorias étnicas não dependem de uma ausência de
mobilidade, contato e informação. Mas acarretam processos sociais de
exclusão e de incorporação pelos quais categorias discretas são mantidas,
apesar das transformações na participação e na pertença no decorrer de
histórias de vidas individuais. [...] Em segundo lugar, [...] as distinções
étnicas não dependem de uma ausência de interação social e aceitação, mas
são, muito ao contrário, frequentemente as próprias fundações sobre as quais
são levantados os sistemas sociais englobantes. A interação em um sistema
social como este não leva a seu desaparecimento por mudança e aculturação;
as diferenças culturais podem permanecer apesar do contato interétnico e da
interdependência dos grupos (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011, p.
188).
Na questão de gênero, Louro (2011) interpretando Stuart Hall, afirma que
[...] gênero constitui a identidade do sujeito (assim como a etnia, a classe, a
nacionalidade, por exemplo) pretende-se referir, portanto, a algo que
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1098
transcende o mero desempenho de papéis, a ideia é perceber gênero fazendo
parte do sujeito, constituindo-o (LOURO, 2011, p. 29).
Este “desempenho de papéis” refere-se àqueles definidos socialmente pelas
diferenças sexuais, as quais englobam “papel de homem e papel de mulher” como algo
intrínseco ao sexo, mas que, como a própria Louro (2011) continua a discorrer, trata-se
de uma lógica hierarquizada e paradoxal, a qual consiste na relação de dominação do
marido sobre a esposa, mas que a mulher tem o papel de exercer dominação sobre o
filho, mesmo sendo ele do sexo masculino.
Albernaz e Longhi (2009), levando em consideração aspectos culturais, afirmam
que:
Gênero é uma operação de classificação cultural. Por meio da cultura usamos
o gênero para ordenar nosso pensamento para pensar o que é ser homem e o
que é ser mulher, mas não apenas isso. Por meio do gênero classificamos
muitas dimensões da vida em sociedade e da natureza. [...] Nesse sentido,
gênero conforma nossa subjetividade (ALBERNAZ; LONGHI, 2009, p. 83-
84).
“O gênero não deve ser meramente concebido como a inscrição cultural de
significado num sexo previamente dado [...] tem de designar também o aparato mesmo
de produção mediante o qual os próprios sexos são estabelecidos”. (BUTLER, 2003, p.
25). Judith Butler acredita na importância dessa descontrução e que é indispensável não
confundir gênero com sexualidade, além de combater a binariedade homem-mulher e de
considerar a importância do desejo para a construção do conceito.
3. Compreendendo o gênero e as relações interétnicas como influenciadores da
família no contexto ficcional do romance
O romance traz em seu enredo um contexto social resultante do processo de
colonização sofrido pelo território africano, a autora faz um retrato daquela sociedade
através da caracterização de quatro personagens: Maria das Dores, que é a protagonista;
Delfina, a deuteragonista; e as demais, Serafina e Jacinta, personagens secundárias. Esta
é, inclusive, a ordem de aparecimento delas na narrativa; porém, se fôssemos organizá-
las de acordo com sua cronologia na família e “importância” social, poderíamos ordenar
da mais velha para a mais nova: Serafina, Delfina, Maria das Dores e Jacinta. O
narrador é observador de onisciência neutra, que por vezes penetra nos pensamentos da
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1099
personagem, lendo-lhe os pensamentos, ou monólogos interiores. Cada uma apresenta
traços específicos de uma realidade marcada por opressão, dor, processos de
assimilação, prostituição, busca de identidade e relações de poder. Serafina, que é a
mãe de Delfina e representante da primeira geração da família, educa a filha de uma
forma que reflete os conflitos de quem presenciou e sofreu impactos graves gerados
pela colonização; Delfina, por sua vez, tenta executar aquilo o que a mãe a ensinou,
revolta-se com sua condição de negra não assimilada e prostituta, transfere, então, tais
sentimentos de forma latente à criação de seus filhos, segregando-os pela cor; Maria das
Dores e Jacinta são exemplos das ações de Delfina, sendo, respectivamente, uma negra
e outra mulata – que carrega consigo todas as esperanças de ascensão social da mãe, é
reflexo de uma nova raça, híbrida, que está a se formar.
Podemos reconhecer, a partir daí, a tendência da mulher africana de transmitir os
valores culturais que fazem parte do seu meio aos seus descendentes, sejam estes:
valores tradicionais ou transformados de alguma forma por processos históricos que
provoquem mudanças significativas no modo de vida em sociedade. Daí Duarte afirmar
ser a: [...] “situação da mulher africana historicamente ligada à transmissão de valores
culturais como hospitalidade, respeito aos mais velhos rituais, usos e costumes”
(DUARTE, 2011, p. 79).
Além disso, Chiziane busca mesclar capítulos de sua narrativa com relatos
tradicionais africanos que contêm traços de oralidade e descrevem a criação do mundo
pelo continente africano e considerando-o originado pelo ventre de uma mulher. Essas
passagens espelham o intuito de colocar a mulher numa posição de importância, muitas
vezes ignorada no desenvolvimento de diversas sociedades, contestando o gênero
feminino, assim como também ressaltam a questão mitológica presente no imaginário
africano.
A história se repete. As lendas antigas se reproduzem e se materializam.
Lendas dos tempos em que Deus era uma mulher e governava o mundo. Era
uma vez... Há muito, muito tempo, a deusa governava o mundo. De tão bela que era, os
homens da terra inteira suspiravam por ela. Todos sonhavam em fazer-lhe um
filho. [...] Chamou os homens um a um e agraciou-os com a divina dança. Engravidou
de apenas um, [...] Todos ficaram a saber que a deusa era uma mulher banal e
o divino residia no seu manto de diamantes. [...] Roubaram-lhe o manto e
derrubaram-na. Tomaram o seu lugar no comando do mundo, condenando
todas as mulheres à miséria e à servidão (CHIZIANE, 2008, p. 220).
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1100
O processo de colonização acarretou um impacto muito forte no modo de vida e
em tradições étnicas africanas, trazendo paradoxos na questão da identidade, afinal,
havia uma cultura considerada “superior” sendo imposta a outra que comportava
séculos de tradição. O crítico cultural Kobena Mercer, diz que “a identidade somente se
torna uma questão quando está em crise, quando algo que se supõe como fixo, coerente
e estável é deslocado pela experiência da dúvida e da incerteza” (MERCER,1990, p. 43
apud HALL, 2011).
Com a chegada dos europeus, a escravidão imposta por eles também adentrou
violentamente o cerne social africano. Jovens negros e fortes tinham preferência, pois
serviam para trabalhos pesados. Famílias foram dissipadas. As mulheres passaram a
querer, por consequência, gerar proles do sexo feminino, assim, evitariam passar pelo
sofrimento de perder um filho. Muitos maridos se foram como escravos ou morreram
em batalhas, o que fez com que o colonizador adentrasse o seio familiar nativo,
fecundando mulheres, gerando filhos que não eram pretos ou brancos, e sim híbridos.
Branquear a raça passou a ser um ato de sobrevivência, de ascendência social e, apesar
de todos os impactos, esta ação passou a afigurar-se como uma “contribuição” da
mulher no processo de colonização, utilizando seu ventre na criação de uma nova etnia.
A assimilação tornou-se uma das poucas alternativas viáveis de afirmação naquele
contexto, já que proporcionava um pouco mais de qualidade de vida aos que aceitavam
submeter-se ao processo, no entanto, ela vinha acompanhada de um preço alto: a cultura
nativa deveria ser renunciada.
Tendo em vista a abordagem de fatos historicamente reais, deve-se levar em
consideração a relevância do relato como sendo uma obra de ficção composta por seres
fictícios, por esta razão, limitada aos horizontes criados pelo narrador,
[...] A personagem é um ser fictício [...] Podemos dizer, portanto, que o
romance se baseia, antes de mais nada, num certo tipo de relação entre o ser
vivo e o ser fictício, manifestada através da personagem, que é a
concretização deste (CANDIDO, 2006, p. 52).
Três invariáveis, no contexto da ficção moçambicana, são consideradas por Noa
(2006), as linguagens, os espaços e os seres; dentro das linguagens estão: “a linguagem
do corpo quase sempre carregada de sensualidade e de erotismo”; “a linguagem da
imaginação, rememorativa e congeminativa, projectando, quase sempre, imagens de
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1101
inação e de inadaptação”; “a linguagem da oralidade” que envolve dramas e situações
do cotidiano, sobretudo no meio urbano e suburbano; e “a linguagem da tradição
ritualizada, quer pelas canções populares quer pela voz implacável dos mais velhos”.
Na representação dos espaços, os três que são mais englobantes são: a cidade, o
subúrbio e o campo. E sobre a representação dos seres podemos compreender que “[...]
quase todas elas [as representações das personagens] oscilam entre a individualização e
a socialização, facto que pode ser observado nas atitudes, nas acções que executam, nos
dramas que protagonizam, nas falas que realizam e nos nomes que ostentam” (NOA,
2006, p. 273).
A personagem Serafina, representante da primeira geração da família ficcional,
presenciou os fatos históricos mencionados. Ela perdeu três filhos homens para a
escravidão, carregava em si o estigma da raça, o qual passou às gerações seguintes de
sua família. Teve Delfina como filha, iniciou-a nas artes da prostituição, sua iniciação
sexual foi concebida por um homem branco em troca de uma taça de vinho para a mãe.
Delfina foi criada para seduzir, já trazia consigo uma beleza natural que lhe rendia
muita atenção, em sua descrição pode-se observar a linguagem do corpo:
[...] Porque é negra e é bela. Donzela. Lampariga, de acordo com os
linguarejos malandros dos homens, porque a rapariga brilha como uma
lamparina.[...] Porque era recheada, bonita e atrapalhava a concentração dos
rapazes. Na igreja ficava no banco de trás. A freira expulsou-a de novo
(CHIZIANE, 2008, p. 78).
Sua mãe ensinou-lhe a usar o corpo como arma de sobrevivência e ascensão
social, deveria seduzir os colonizadores no cais, ter filhos mulatos, assim, poderia
desfrutar das benfeitorias que julgava merecer. Delfina, contrariando a vontade da mãe,
casou-se com um negro, o José dos Montes, com quem teve Maria das Dores e Zezinho.
Alegava que queria destruir o amor que sentia por ele, e a melhor alternativa para atingir
este objetivo era o casamento, ou seja, ela acreditava que o amor não sobreviveria ao
matrimônio. O narrador aproveita a menção do casamento e faz uma crítica ferrenha à
posição inferiorizada que é destinada à mulher em sua vida conjugal:
Para o homem, a lua-de-mel é a tomada de posse de um corpo já conhecido
como legítimo proprietário. [...] Para as mulheres é a inauguração do estatuto
de serva. Agora traz-me o café, agora a sopa, agora engoma a minha roupa. E
ela sobe, amorosamente, ao seu trono de servidão, rainha de espinhos. Lua-
de-mel é balada de doces poemas, em que cada um tece uma canção secreta.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1102
Meu amor! Eu também te amo. Mas se me desobedeces eu esmurro-te
(CHIZIANE, 2008, p. 111).
Então, usou de sua influência e do amor cego que José demonstrava sentir por
ela para fazer com que ele se tornasse um assimilado, ele o fez. A assimilação prova-se
como um dos mais terríveis desafios éticos e étnicos na vida de José, tornar-se sipaio
significou não só deixar para trás todos os seus costumes, mas ajudar a apagá-los da
história. Ele matou seus irmãos de raça, abandonou seus deuses, e percebeu que o deus
dos brancos não dialogava da mesma forma com ele. É importante observar também,
que o José dos Montes era um condenado, foi tirado de sua mãe ainda criança para
trabalhar, então sua personalidade demonstra a necessidade de uma figura feminina que
remeta à materna, numa busca evidente de cuidado e atenção; sua condição estava
diretamente relacionada à de Serafina, que perdeu seus filhos homens de forma
semelhante à que ele foi tirado de sua mãe, “O José acaba de nascer do ventre de uma
esposa. Uma esposa bela, única” (CHIZIANE, 2008, p. 111). Eles passaram a conviver
“dignamente” em sociedade, apesar disso Delfina queria sempre mais, sempre estando
insatisfeita, o trocou, portanto, por um branco, o Soares, com quem teve Jacinta e
Luisinho, seus filhos mulatos. A mãe segregava os filhos dentro de casa, os mais
clarinhos tinham o direito de se alimentar bem, vestir-se bem, além de estudar e brincar,
enquanto os negros detinham para si as obrigações domésticas, como papel de servos
mesmo, principalmente Maria das Dores, que carregava em si o gênero feminino e a
pele negra. O estigma da raça novamente era refletido no dia a dia da família, o curioso
da situação é o fato de a própria Delfina agir dessa forma, enquanto o Soares, que era
europeu, branco, tratava todos os filhos com igualdade, até os que não eram dele,
admirava a esposa, inclusive, por suas características físicas e questionava sua tentativa
constante de querer parecer branca e discriminar as proles. As atitudes da mulher
acabaram por dissipar o encanto que ela detinha sobre ele.
Após o “pai branco” de seus filhos tê-la abandonado, Delfina ofereceu a
virgindade de sua filha negra, Maria das Dores, ao feiticeiro Simba, para que ele
trouxesse Soares de volta. O momento em que ela leva Maria ao encontro dele é
descrito de uma forma simbólica de separação do ser híbrido do puro, respectivamente
Jacinta e Maria das Dores:
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1103
Era um quadro bonito de ver. Duas irmãs sentadas na varanda entrançando os
cabelos uma da outra ao entardecer. Uma preta e outra mulata. Falando de
coisas do princípio do mundo, no desabrochar das vidas. [...] Maria das Dores
vai caprichando no penteado, colocando missangas coloridas em cada trança.
Em cada missanga um sonho. Delfina estremece, porque entardece. Daqui a
pouco anoitece (CHIZIANE, 2008, p. 254).
Iniciou-se a percepção da existência das diferenças motivadas pela raça por parte
de Jacinta. Neste momento, Delfina deixa implícitos os ensinamentos que lhe foram
passados em seu contexto social por intermédio de sua mãe, o qual estabelece um
estereótipo inferiorizado para a mulher negra, “O mundo dos brancos tem outros
códigos, não precisam desta viagem. Para eles é mais importante a escola dos livros que
a escola da vida” (CHIZIANE, 2008, p. 255), é o que a faz convencer-se do porquê de
usar a filha negra e não a mulata para arcar com suas dívidas. Mas Jacinta, a filha
silenciosa, passou a questionar sobre o paradeiro da irmã.
Delfina faz uso do corpo da filha como arma de sobrevivência, o que causaria,
diante do pensamento ocidental, uma dúvida acerca do amor que ela deveria sentir por
Maria das Dores; Campos (2008), em sua pesquisa sobre o amor materno, afirma que
Ao amor se seguem comportamentos esperados, atitudes, disposições e ações.
E a cada sociedade e/ou a cada cultura correspondem estruturas de relações e
práticas sociais específicas, em meio e por meio das quais as emoções são
expressas, controladas, normatizadas (CAMPOS, 2008, p. 135).
O contexto em que se encontram aparentemente contribuiu para atitudes
extremas como esta, assim como também, é claro, a ambição sem limites de Delfina, o
que a faz se arrepender duramente tempos depois. Simba passa a manter Maria das
Dores num regime de poligamia forçado, ela tem filhos com ele, mas vive novamente
em um contexto de submissão, neste caso, relacionado à questão de gênero, pois ela
desempenha a função de esposa que apenas procria e serve ao marido sexualmente, sem
direito à contestação.
Maria das Dores traz em si uma representação concreta do contexto da mulher
negra,
Maria das Dores é o seu nome. Deve ser o nome de uma santa ou uma branca
porque as pretas gostam de nomes simples. Joana. Lucrécia. Carlota. Maria
das Dores é um nome belíssimo, mas triste. Reflecte o quotidiano das
mulheres e dos negros (CHIZIANE, 2008, p. 16).
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1104
Seu nome tem características da representação dos seres teorizada por Noa
(2006), que é espelhada também através das ações que as personagens praticam e nos
nomes que ostentam, além de seus conflitos e sentimentos de mundo. Outros traços
étnicos que ela possui são refletidos nas tatuagens que carrega no corpo, que, segundo o
narrador, referem-se ao povo lómwè, oriundos das montanhas:
As tatuagens remontam ao tempo do esclavagismo, a velha sabe. Os povos
africanos tiveram de carimbar os corpos com marcas de identidade. Cada
tatuagem é única. É marca de nascença. No corpo, desenhando-se o mapa da
terra. Da aldeia. Da linhagem. Em cada traço uma mensagem. Árvore
genealógica. A tatuagem ajudou à reunificação dos membros da família, em
São Tomé. Na América. Nas Caraíbas. Nas ilhas Comores, em Madagáscar,
nas Maurícias e em outros lugares do mundo. Mudaram-se os tempos, os
africanos não precisam mais de tatuagens, terminou o tempo da escravatura
(CHIZIANE, 2008, p. 31).
As tatuagens reescrevem a história africana, marcam o corpo da mulher com sua
participação social, elas fundem mulher e espaço. Provam sua atuação no contexto
colonial, elas são um grito silenciado de vida.
Quando Maria das Dores, enfim, consegue libertar-se, vai à região dos Montes
Namuli, que representa o campo, a região das montanhas, e é coberta pelo misticismo
popular. Os Montes Namuli simbolizam a resolução de todos os problemas, o local onde
todos se encontram e confraternizam e faz parte, junto à Zambézia, da representação do
espaço. Chiziane não escolheu este espaço geográfico por acaso,
[...] divide o país em duas polaridades distintas: o sul patriarcal e o norte
matriarcal. Chiziane, ao eleger a Zambézia como metonímia da África [...]
apresenta-nos uma ideia de nação baseada em critérios de gênero. A
Zambézia como o umbigo do mundo, o grande útero que gerou a humanidade
(GONÇALVES; LA GUARDIA, 2010).
Ao chegar aos Montes Namuli, Maria perde os seus filhos, adentra um estado de
transe que faz com que passem a chamá-la de a louca do rio, pois aparece nas águas nua
e evidenciando as marcas tatuadas de seu corpo. Sua nudez causa espanto às outras
mulheres, demonstrando como a exposição do corpo feminino, inclusive no mundo
ocidental, é tratada como tabu. A loucura de Maria das Dores é a forma que a
personagem encontrou para resistir a todas as perdas e situações de subserviência e falta
de controle sobre seu corpo; Maria escondeu-se dentro de si, o único lugar em que não
poderia ser julgada ou explorada.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1105
A personagem Jacinta, como mulata, representa a mistura de raças. Sua
participação na narrativa ganha mais relevância quando ela se percebe híbrida, quando
reflete sobre as diferenças de sua criação e de seus irmãos negros. Quando percebe que
quando estava com as crianças negras da vizinhança, era ignorada, pois tinha a pele
clara, e quando estava no meio dos brancos era considerada escura demais. O narrador
diz que ela chegou a desejar que existisse uma nova raça, onde houvesse pessoas iguais
a ela. Jacinta admirava sua irmã Maria das Dores, queria ter o cabelo como o dela,
orgulhava-se de sua força naquele meio de submissão familiar ao qual tão injustamente
era submetida. Ela começou a ter uma visão amalgamada de mundo:
Era estranho viver numa casa de todas as raças. Fazia-lhe confusão absorver
o comportamento de pretos e brancos em simultâneo. Era mais complicado
ainda estar numa refeição dividida. O pior de tudo era não haver ninguém
para responder aos seus dilemas. O discurso da mãe ela conhecia. Se o pai
estivesse perto, também não responderia (CHIZIANE, 2008, p. 248).
Quando Maria sai de casa e Delfina entrega-se ao álcool, culpada pelo
desaparecimento da filha, Jacinta demonstra ter uma força e uma autonomia que até
então desconhecia. Ela deixa de lado os conflitos de cor, que em sua mente não se
justificavam. No entanto, o momento do seu casamento, mesmo não sendo sua intenção,
representa o triunfo da vida de sua mãe.
[...] Delfina estava ali para mendigar o perdão de uma filha, dialogar com o
passado e selar a reconciliação. Não recebeu convite para aquela boda, mas
foi. Estava decidida a ficar até ao fim, nem que caíssem sobre ela todas as
pedras do mundo. Enquanto Jacinta subia ao altar, Delfina chorava. Aquele
momento era o coroar de todos os sacrifícios. Vê no rosto dela todas as
marcas da família. Os olhos do pai, o Soares. A boca da avó, a Serafina. E
revê a sua Maria das Dores. São muito parecidas uma com a outra. Uma preta
e uma mulata. Todas filhas dela (CHIZIANE, 2008, p. 282).
Jacinta casa-se com um homem branco, Delfina enfim conseguira, por meio da
filha, apagar o negro de sua descendência. Apesar de a cria ter renunciado à mãe, este
foi o instante em que, de certa forma, “os fins justificaram os meios”. Os laços
familiares nunca seriam apagados. Cada uma delas carregava história e árvore
genealógica no sangue que corria em suas veias, nas características étnicas evidentes em
seus corpos, na visão que tinham de mundo.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1106
4. Considerações finais
Sob um arcabouço literário muito rico, Paulina Chiziane trouxe em O alegre
canto da perdiz (2008) várias questões pertinentes à sociedade colonial africana, e que
deixaram reflexos que permanecem presentes até hoje na identidade e cultura do povo
local. O próprio processo de construção do romance e suas características evidenciam os
dois temas propostos por este estudo, afinal, o texto foi escrito por uma mulher negra,
ou seja, gênero e etnia. O fato de ser considerada a primeira moçambicana a lançar um
romance agrega em si o poder de contestação do discurso feminino em uma sociedade
que não costuma dar voz às mulheres, tanto culturalmente como intelectualmente, além
disso, configura-se como uma oportunidade de conhecer, através de um olhar empírico e
esteticamente crítico, traços sociais recorrentes àquele povo, e tradicionais, mantidos
através de rituais, ditados populares, crendices, ações. Vale salientar também que, pelo
fato de haver uma maior divulgação da obra literária moçambicana, e africana em geral,
em território ocidental (ainda que precise tomar proporções maiores), o estilo de escrita
passa a ser influenciado em alguns aspectos, tornando-se muitas vezes híbrido.
Diante de uma abordagem de gênero e relações interétnicas e seus impactos na
construção familiar africana, são perceptíveis uma série de artifícios estéticos utilizados
pela autora, que possibilitaram trazer à tona diversas temáticas. Por exemplo, a escolha
do espaço geográfico da Zambézia, com um viés metonímico da África e do gênero
feminino; as características das personagens principais, que trazem significados
agregados às condições sociais vividas por elas; a linguagem poética, que conseguiu
mesclar relatos pesados a uma leveza capaz de despertar percepções no leitor que vão
além do que é dito abertamente, mas que instigam a reflexão e a investigação; a
abordagem dos fatos narrados misturados a mitos que descrevem o surgimento do
mundo sob o comando feminino.
Chiziane trabalha também o psicológico de suas personagens, a forma como
elas se adaptam a situações extremas, além de como suas atitudes refletem em suas
realidades sociais. Corpo, loucura, matrimônio, sexo, tradição, a obra abrange a todos
esses assuntos, dentre outros pontos que, só com uma experiência de leitura contínua,
pouco a pouco se revelam ao leitor, possibilitando, sem dúvidas, uma vivência
enriquecedora e única.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1107
Em suma, o romance representa a oportunidade de divulgação de uma cultura
que é tão antiga quanto pouco conhecida por muitos ocidentais, é uma chance de
enfatizar a importância da preservação do antigo para a construção do novo, além de, é
claro, trazer à tona a grandiosidade da escrita feminina em um contexto
predominantemente masculino, como o que há muito tempo compõe a produção literária
moçambicana. Conhecer, preservar e divulgar faz-se muito necessário ao combate
contra a submissão feminina, étnica e cultural nos mais diversos âmbitos sociais.
5. Referências
ALBERNAZ, Lady Selma Ferreira; LONGHI, Márcia. Para compreender gênero:
Uma ponte para relações igualitárias entre homens e mulheres. In SCOTT, Parry;
LEWIS, Liana; QUADROS, Marion Teodósio de. Gênero, Diversidade e
Desigualdades na Educação: Interpretações e Reflexões para Formação Docente.
Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2009.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: Feminismo e subversão de identidade.
Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 5
ed. Revista. São Paulo, Editora Nacional, 1976.
__________A Personagem de Ficção. São Paulo: Editora Perspectiva, 2006, 5ª edição.
CHIZIANE, Paulina. O alegre canto da perdiz. Lisboa: Editorial Caminho, 2008.
COSTA, Pollyana dos Santos Silva. Assimilação, identidade e memória na obra O
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de Brasília, 2013.
GONÇALVES, Anamélia Fernandes; LA GUARDIA, Adelaide. Corpos
transfigurados: Uma análise do corpo Mestiço em O alegre canto da perdiz, de
Paulina Chiziane. IPOTESI, Juiz de Fora, v.14, n. 2, p. 215-226, 2010.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução: Tomaz Tadeu
da Silva, Guacira Lopes Louro - 11 ed., 1 reimp. - Rio de Janeiro: DP&A, 2011.
JOHNSON, Allan G. Dicionário de Sociologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor
Ltda, 1997.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1108
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: Uma perspectiva pós-
estruturalista. 13 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
NOA, Francisco. Modos de fazer mundos na actual ficção moçambicana in
CHAVES, Rita; MACÊDO, Tania. (orgs.) Marcas da diferença: as literaturas
africanas de língua portuguesa. São Paulo: Alameda, 2006.
POUTIGNAT, Philippe; STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da Etnicidade. São
Paulo: Fundação Editora da UNESP (FEU), 1997.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1109
A ABORDAGEM SEMIÓTICA COMO MÉTODO PARA
ENSINO DE ANÁLISE DO TEXTO LITERÁRIO [Voltar para Sumário]
Ingrid Cruz do Nascimento (UFPB)
Dalva Sales Carvalho Cunha (UFPB)
Introdução
A Semiótica nos fornece meios para repensar a linguagem de forma geral e
como cada linguagem é capaz de influenciar outra, reconhecendo que todo tipo de
signo, linguagem e acontecimento cultural é capaz de comunicar, de produzir
significado. Nesse processo, a linguagem visual, por exemplo, não é subjulgada à
linguagem oral e esta, por sua vez, não é subjulgada à linguagem escrita. Assim, a teoria
desenvolvida por Charles Sanders Peirce, segue essa mesma linha científica e afirma
que toda e qualquer linguagem desenvolve-se sempre em uma relação triádica: signo –
objeto – interpretante.
Eu estava ali deitado
eu estava ali deitado olhando através da vidraça as roseiras no jardim, fustigadas pelo
vento que zunia lá fora e nas venezianas do meu quarto e de repente cessava e tudo
ficava tão quieto tão triste e de repente recomeçava e as roseiras frágeis e assustadas
irrompiam na vidraça e eu estava ali o tempo todo olhando estava em minha cama com
a minha blusa de lã as mãos enfiadas nos bolsos os braços colados ao corpo as pernas
juntas estava de sapatos Mamãe não gostava que eu deitasse de sapatos deixe de
preguiça menino! mas dessa vez eu estava deitado de sapatos e ela viu e não falou nada
ela sentou-se na beirada da cama e pousou a mão em meu joelho e falou você não quer
mesmo almoçar? eu falei que não não quer comer nada? eu falei que não nem uma
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1110
carninha assada daquelas que você gosta? com uma cebolinha de folha lá da horta um
limãozinho uma pimentinha? ela sorriu e deu uma palmadinha no meu joelho e eu
também sorri mas falei que não não estava com a menor fome nem uma coisinha meu
filho? uma coisinha só? eu falei que não e então ela ficou me olhando e então ela saiu
do quarto eu estava de sapatos e ela não falou nada ela não falaria nada meus sapatos
engraxados bonitos brilhantes ele não quer comer nada? escutei papai perguntando e
mamãe decerto só balançou a cabeça porque não escutei ela responder e agora eles
estavam comendo em silêncio os dois sozinhos lá na mesa em silêncio o barulho dos
garfos a casa quieta e fria e triste o vento zunindo lá fora e nas venezianas de meu
quarto.
- você precisa compreender isso, Carlos
- não posso, Miriam
- não daria certo
- não daria certo?
- nossos temperamentos não combinam
- não é verdade
- assim será melhor para nós dois
não Miriam não é verdade Miriam não é certo Miriam não pode Miriam não pode não
pode! ó meu Deus não pode
Papai estava parado à porta pensei que você estava dormindo ele falou eu sorri que
vento hem! ele falou e eu olhei para a vidraça e lá estavam as roseiras frágeis e
assustadas, fustigadas pelo vento esse mês de junho é terrível ele falou ele estava parado
no meio do quarto estava de paletó e gravata de pulôver esfregava as mãos eu vou lá no
Jorge você não quer ir também? ele ficou olhando pra mim esperando não papai dar
uma volta? não obrigado você vai virar sorvete aí dentro ele brincou e eu ri e ele riu e
então ficou sério de novo esfregava as mãos fiquei com pena dele eu sabia que ele
queria me dizer alguma coisa sabia quase o que ele queria me dizer mamãe devia ter
dito a ele Artur chama o Carlos para dar uma volta e ele dissera isso mas agora era
diferente era ele mesmo que queria me dizer alguma coisa e estava atrapalhado ficava
atrapalhado quando queria conversar essas coisas com um filho e então esfregava as
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1111
mãos não era por causa do frio Carlos eu sei o que você está sentindo ele falou Eu sei
como é é muito aborrecido mesmo mas há coisas piores sabe? eu olhei para ele e então
ele abaixou a cabeça e de novo estava atrapalhado e de novo eu fiquei com pena dele eu
sei que você gosta muito dela eu sei eu sei que isso é muito aborrecido mas ele olhou
pra mim não se preocupe papai eu falei não precisa se preocupar não é nada eu sei mas
você não almoçou eu estava sem fome pois é e então nós dois ficamos calados ele tirou
o relógio do bolso e olhou as horas você não quer ir mesmo no Jorge? ele perguntou e
eu falei que não então ele saiu do quarto escutei ele abrindo o portão e depois os passos
dele na calçada o vento zunia lá fora eu estava olhando para os meus sapatos ela gostava
deles assim engraxados bonitos brilhantes você é tão cuidadoso Carlos como gosto de
você você não pode calcular o tanto que eu gosto de você se te acontecesse alguma
coisa se te acontecesse alguma coisa eu não sei o que eu faria mas não vai acontecer
nada bem vai? não não vai não pode se te acontecesse alguma coisa acho que eu
morreria eu gosto demais de você demais demais
fechei os olhos e contei até quinhentos e recordei os nomes de todas as capitais do
Brasil e da Europa e recordei os nomes das dezenas de rios e dezenas de montanhas e
deitei de bruços e deitei do lado direito deitei do lado esquerdo e deitei de bruços outra
vez e pus o travesseiro em cima da cabeça e pus o travesseiro de baixo da cabeça e
apertei a cabeça contra a parede e apertei mais ainda a cabeça contra a parede que ela
doeu e então virei de costas outra vez e enfiei as mãos nos bolsos colei os braços ao
corpo juntei as pernas abri os olhos e estava de novo olhando através da vidraça as
roseiras frágeis e assustadas fustigadas pelo vento que zunia lá fora e nas venezianas de
meu quarto
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1112
O conto é escrito, majoritariamente, com letras minúsculas e sem pontuação.
Esse recurso utilizado pelo autor, denominado de fluxo de consciência, ratifica a
sensação de pequenez, finitude e confusão que o garoto estava sentindo em seu
relacionamento com as pessoas e com o mundo. Vilela, possuindo formação em
Filosofia, tem um jeito bastante peculiar de trabalhar questões do íntimo do ser humano
– mesmo que este ser seja um adolescente. Este possui, por motivos biológicos, a
transformação do corpo, ocasionada pela ebulição dos hormônios, fazendo com que a
mente seja transformada concomitantemente e isso reflete diretamente, por exemplo, na
discrepância de humor característica dessa fase da vida. REESCREVER
No segundo parágrafo, por exemplo, temos uma presença marcante de
diminutivos proferidos ao menino por sua mãe. Isso nos leva a questionar se os
diminutivos são porque a mãe percebeu o estado de espírito do filho, se a sensação de
pequenez que o menino sentia dizia respeito apenas ao que acontecera com ele ou se
essa sensação era motivada por seus familiares há tempos. Além disso, o tempo
climático contribui para a representação da tristeza do menino: é noite, está escuro, frio
e barulhento; chove lá fora, mas também chove dentro do menino, ou seja, a escolha do
temporal para construção da espacialização do conto não é meramente arbitrária. Além
disso, percebemos a alternância entre ruído e silêncio, o que nos remete,
consequentemente, aos pensamentos confusos do garoto – “e agora eles estavam
comendo em silêncio os dois sozinhos lá na mesa em silêncio o barulho dos garfos a
casa quieta e fria e triste o vento zunindo lá fora e nas venezianas de meu quarto.”
Referências
VILELA, Luiz. No bar. Rio de Janeiro Rio de Janeiro: Bloch, 1968. 2. ed., São Paulo:
Ática, 1984.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1113
O CURRÍCULO DE LÍNGUA PORTUGUESA COMO UM
GÊNERO INSERIDO NO CONTÊINER DAS PRÁTICAS
DISCURSIVAS [Voltar para Sumário]
Isabela Bastos de Carvalho (IFF / CEFET-RJ)
O contêiner1
Antes de iniciar as discussões propostas, é interessante explicitar a ideia de
contêiner que aqui está sendo utilizada. O objeto mencionado é grande, retangular,
vedado, restrito, e é utilizado para transportar outros objetos menores, limitados ao
espaço disponibilizado. De acordo com o dicionário on-line Priberam2, contêiner é um
“recipiente, tara ou invólucro, geralmente padronizado, destinado ao acondicionamento
ou transporte de mercadorias ou materiais”. Pensando nas práticas de sala de aula,
sustentadas pelo currículo vigente, esse perfil de objeto nos provoca uma associação
metafórica imediata. Assim como o contêiner, o currículo dominante, que tem vigorado
nas escolas brasileiras, apresenta características associativas semelhantes: é grande,
porque valoriza o saber enciclopédico e universal; é retangular, pois apresenta uma
forma rígida quanto à defesa dos conteúdos; é, por isso, vedado, pois não aceita as
trocas impostas pela mobilidade social; é restrito, porque acredita em um valor de
verdade único; é limitado, pois não flexibiliza a negociação do saber. Além disso, o
contêiner é mero objeto de transporte, redundantemente falando, fechado.
Para permitir o aprofundamento das discussões, é importante trazer aqui o
conceito primeiro da palavra currículo, cujo significado tem uma relação conceitual
estreita com o objeto que se quer denominar. De origem latina, curriculum é um
1 Imaginar línguas impermeáveis é impossível. Termos estrangeiros entram na língua por processos
culturais diversos, que não julgamos pertinente aqui discutir. Se já existe a forma aportuguesada
(contêiner), não vemos a necessidade de utilizar sua correspondente em inglês (container), mais usual. 2 Disponível em <http://www.priberam.pt/dlpo/cont%C3%AAiner>, consultado em 04-01-2015.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1114
substantivo derivado do verbo currere (correr), o que acena para a ideia de mobilidade,
compreensão inicial, relacionada ao termo em questão, apagada ao longo de muitos
séculos. O currículo, então, engessado, passa à condição de contêiner. Deixa de correr
livremente por espaços sociais abertos, para ser meio de transporte de um saber, não por
acaso identificado como “matéria”.
Nesse sentido, chamamos atenção para o seguinte paralelismo: os materiais estão
para o contêiner (instrumento de transporte) assim como o currículo “conteinerizado”
está para a matéria3, administrada de modo disciplinar. Vejamos que a palavra
disciplinar também não surge aleatoriamente. Todas essas palavras traduzem uma
compreensão assujeitada que se tem do conhecimento, em que a produção histórica da
seleção curricular está apagada. Referimo-nos ao conhecimento (matéria) tomado como
verdadeiro, em que não vem à tona quem produz, para quem produz, o que produz, o
que se quer quando produz. Ainda em outras palavras, apagam-se as relações de poder
que estabelecem os conteúdos tomados como válidos, e que deverão, pelo caminho da
disciplina (no sentido ambivalente), ser firmemente defendidos, (ad)ministrados. Vale
lembrar que o gestor desse conhecimento, menos docente que deveria, é o ministro.
Historicamente falando, o currículo “conteinerizado” vem priorizando formar
identidades sociais que atendam aos interesses do mercado, e não trabalhadores/
cidadãos questionadores, capazes de interferir na sociedade em que vivem. De acordo
com Silva (2006), o currículo não pode ser visto simplesmente como um espaço de
transmissão de conteúdos, ou, segundo incontáveis versões do mesmo argumento,
saberes necessários ao mundo do trabalho. Esta concepção se sustenta na não
mobilidade dos conhecimentos e, porque validados por sua perenidade, traduzem uma
concepção que gera um sentido de verdade objetiva. Silva (2006) contesta essa visão e
afirma que “o currículo é seleção”, feita em virtude de um determinado projeto político,
de uma cidadania desejada.
O currículo visto como produto acabado, concluído, não pode deixar de
revelar as marcas das relações sociais de sua produção. Desde sua gênese
como macrotexto de política curricular até sua transformação em microtexto
de sala de aula, passando por seus diversos avatares intermediários (guias,
diretrizes, livros didáticos), vão ficando registrados no currículo os traços da
disputa por predomínio cultural, das negociações em torno das representações
3 A palavra matéria está sendo empregada como sinônimo de conteúdo de um componente curricular
(disciplina).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1115
dos diferentes grupos e das diferentes tradições culturais, das lutas entre, de
um lado, saberes oficiais, dominantes e, de outro, saberes subordinados,
relegados, desprezados. (SILVA, 2006, p. 22)
E se o currículo se faz a partir das relações sociais – desiguais –, envolverá
relações de poder. Vale indagar, por conseguinte, àqueles que defendem um currículo
de conteúdos sacralizados: como toda relação de poder, o indivíduo que defende esse
currículo tem claro, para si próprio, que o que permeia esse currículo é sempre uma
ideologia, representante de interesses restritos? É importante registrar que em qualquer
concepção de currículo, haverá, sempre, uma ideologia atravessando o objeto. A
questão é estar ciente dos fundamentos ideológicos da organização curricular e que
opção de currículo se tem ao escolher determinado currículo. Não existe, na escolha de
qualquer conteúdo, portanto, a neutralidade. É interessante ressaltar, ainda, que o
currículo é elaborado por seres humanos. De acordo com Bakhtin (1997ª), “No
acontecimento singular e único da existência, é impossível ser neutro” (p.143).
Quando ressaltamos a importância que se tem de conhecer o objeto com que
lidamos, a fim de saber que ele é produto de uma criação, produzido em um tempo
específico, para atender a interesses daquele momento, estamos afinados com Foucault.
Segundo ele, é necessário problematizar a realidade, pois em nenhum segmento há uma
verdade absoluta e incontestável. As verdades são discursivamente construídas, assim
como a própria história, e estão intimamente relacionadas ao poder (Portocarrero, 1994).
Acreditamos que assim deva ser visto o currículo, como um texto, que, como tal,
sustenta um discurso, pois o currículo é um gênero do discurso. Conforme afirma
Bakhtin (1997ª),
Todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam, estão
sempre relacionadas com a utilização da língua. [...] efetua-se em forma de
enunciados (orais e escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes
duma ou doutra esfera da atividade humana. O enunciado reflete as condições
específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas, não só por seu
conteúdo (temático) e por seu estilo verbal [...]. Qualquer enunciado
considerado isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilização
da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso
que denominamos gêneros do discurso. (p. 279)
Olhando o currículo na perspectiva bakhtiniana, podemos concluir que o
currículo tende ao discurso estável, já que está subjugado a forças decorrentes do poder.
Nas relações assimétricas, mantém-se aquele que mais poder tem para se impor. A
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1116
consciência desse processo é essencial para que se possa voltar à ideia original da
mobilidade, do currere. É importante registrar que a estabilidade não é exclusiva do
currículo clássico – aquele a que chamamos engessado –, mas das lutas que envolvem
as relações de poder. A estabilidade é, portanto, uma consequência. Corre esse mesmo
perigo, caso não estejamos sensíveis ao jogo do poder, qualquer outro currículo que
venha substituir o clássico. O currículo como discurso é prática, é negociação, é
atualização.
Pelo que até aqui discorremos, podemos afirmar, com segurança, que o currículo
deve ser sempre repensado. Perceber sua mobilidade permite ao educador instaurar, na
sua prática, fundamentos que esvaziem argumentações validadoras de um currículo
desatualizado, centradas em conteúdos obsoletos, conservadores, excludentes, para dar
lugar a uma prática em direção aos conteúdos que atendam aos interesses sociais
plurais. Retomando Silva (2006), “o currículo está centralmente envolvido naquilo que
somos, naquilo que nos tornamos, naquilo que nos tornaremos. O currículo produz, o
currículo nos produz” (p.27).
O que se vê, na maioria das instituições de ensino brasileiras, são currículos
estagnados, produtores de cidadãos estagnados, que não contribuem para as
transformações sociais que se fazem necessárias. É interessante pensar o currículo, por
que não, como um fetiche, como propõe Silva (2006). Na realidade, esse autor afirma
que o currículo já é um fetiche, pois é uma coisa inerte a que se atribui poderes.
Pretende-se, no entanto, encarar o currículo como outro tipo de fetiche, que significaria
“reconhecer as características comuns de todas as nossas formas de conhecimento”
(p.103). Um novo currículo, fetichizado, contribuiria, por causa da curiosidade que os
fetiches despertam e da ausência que sinalizam, para um novo modelo de educação, em
que há total ligação entre as coisas e o homem, que faz as coisas.
Ver o currículo como fetiche significa questionar a hipótese da autonomia do
sujeito pedagógico. Significa supor uma relação muito mais complicada não
apenas entre o sujeito e as coisas, mas, sobretudo, entre o sujeito e as coisas
que ele cria – entre o sujeito e seus fetiches. (SILVA, 2006, p.107)
O currículo, então, pode ser entendido como um discurso que foi socialmente
construído, com fins políticos e ideológicos, mas que pode ser desconstruído,
reconstruído, fetichizado. Vale lembrar, ainda, que o currículo envolve o não-dito. À
medida que se escolhem determinados conteúdos para serem ensinados, outros são
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1117
silenciados. Para Orlandi (1997), “a política do silêncio se define pelo fato de que ao
dizer algo apagamos necessariamente outros sentidos possíveis, mas indesejáveis, em
uma situação discursiva dada.” (p.75) Por meio do currículo se mantêm ou se
transformam identidades. O currículo pode ser grade, prisão, contêiner, mas pode ser
liberdade. É preciso, então, escolher que currículo seguir, ou que currículo construir, e,
mais importante, como construir. O silêncio? A negociação?
O contêiner da Língua Portuguesa no Brasil: currículo e ensino
No Brasil, o currículo – não só de Língua Portuguesa, mas das disciplinas em
geral – é contêiner para os saberes. Desde que os jesuítas foram expulsos da colônia
portuguesa, hoje Brasil, o ensino de Língua Portuguesa tornou-se obrigatório. O que se
priorizava era o estudo da gramática, da boa gramática presente nos textos literários de
Portugal. Essa ideia foi se fortalecendo no imaginário coletivo, transformando-se em
uma verdade que se perpetua ainda nos dias de hoje.
O que se vê, no ensino de Língua Portuguesa dos cursos de Licenciatura em
Letras e da Educação Básica, é, ainda, a prioridade pelo ensino do código linguístico,
fechado em si mesmo, “conteinerizado”, distante dos falantes, distante até, muitas
vezes, da literatura contemporânea. Esse tipo de ensino tem ênfase no estudo da frase,
apesar de se reconhecer que o conhecimento linguístico envolve, pelo menos, níveis de
saber textual e discursivo. Não fosse essa uma questão bastante relevante que tem sido
praticamente desconsiderada, a língua prescrita pelas gramáticas continua sendo
entendida como superior, a melhor possibilidade para a eficácia da comunicação,
independentemente do contexto. Para Leite (2011),
Na medida em que a escola concebe o ensino da língua como simples sistema
de normas, conjunto de regras gramaticais, visando à produção correta do
enunciado comunicativo culto, lança mão de uma concepção de linguagem
como máscara do pensamento que é preciso moldar, domar para, policiando-
a, dominá-la, fugindo ao risco permanente de subversão criativa, ao risco do
predicar como ato de invenção e liberdade (p.24)
Os estudos variacionistas até mostram que há outras possibilidades linguístico-
sociais. Apesar de os livros didáticos acenarem para a perspectiva dos usos da
linguagem, em muitos deles ainda se encontra o discurso da norma culta como a ideal,
sem muitos aprofundamentos sobre expressividade e adequação ao contexto.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1118
Se nos ativermos ao livro didático, podemos perceber, também nele, a metáfora
do contêiner. Expliquemo-nos: dividido em capítulos, esse material apresenta, em um
compartimento, o tópico sobre usos da linguagem, com textos para introduzir e ilustrar a
temática, além de exercícios para fixação. Daí por diante, todos os tópicos são tomados
sob a perspectiva da norma padrão, sem fazer relação com a característica variacionista
da língua. Em nenhum momento se relaciona o que se aprendeu ao que se está
aprendendo como um processo de saber que precisa estabelecer relações. Nada é
retomado como rede de relação de saber, e os capítulos são organizados em conteúdos
restritos e limitados ao espaço vedado, independentes uns dos outros, apesar de estarem
dispostos no contêiner, aqui, entendido como o livro. É a perspectiva da
matéria/material que tem lugar no livro do currículo fechado – o contêiner. Se
continuarmos associando o currículo, enquanto elemento do processo educativo, ao
contêiner, poderemos dizer que os seus avatares4 também apresentam as mesmas
características de objeto fechado.
Silva (2010), refletindo sobre o modo como a escola vem trabalhando os
saberes, estabelece distinção entre dois tipos de atitude que podem organizá-los: a
molecular e a molar. A primeira delas, a molecular, caracteriza-se por apresentar os
conteúdos em forma de sequência, em que os elementos internos se superpõem, não
apresentando, de forma explícita, nenhuma ligação. A segunda, a molar, é caracterizada
como uma atitude mais flexível, elástica, uma vez que possui a propriedade de agrupar
em categorias aquilo que, a princípio, parece não ter relação entre si. O critério desse
agrupamento se dá pela observação de semelhanças e diferenças. Além do objetivo de
sistematizar para reter, essa atitude promove, em quem assim age, um processo
significativo de associação, o que permite sair da instância pura da memorização
(passível de ser esquecido por não fazer sentido) para a ressignificação, devido à
constante relação entre as partes do saber.
A atitude molar é resultado de uma percepção mais madura quanto ao fato de
reconhecermos aquilo que somos: “seres em falta” (Silva, 2010). O conhecimento não é
verdade absoluta, intocável; ele faz e se refaz. Ao adotar uma atitude desse tipo em sala
de aula, se não valesse pelos conteúdos que o aluno aprende, valeria por um
aprendizado mais ético-filosófico: a dessacralização do saber. Não sabemos tudo e
4 Conceito de Silva (2006) já mencionado em uma citação deste trabalho.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1119
podemos esquecer o pouco que aprendemos. O conhecimento, além do mais, precisa ser
lacunar para que o processo de saber possa continuar.
Apesar da discussão a respeito dos saberes, é fácil verificar que os conteúdos
ainda são organizados, no currículo “conteinerizado”, de forma predominantemente
molecular, o que, para Silva (2010) leva à falsa ilusão de completude. Não há,
geralmente, na escola, uma ligação dos conteúdos com a vida. Como Silva (2010),
concordamos que é necessária uma atitude molar:
A atitude molar é mais holística e categorial, isto é, preocupa-se com o
conhecimento do todo e tenta agrupar o aparentemente estanque e separado
em classes através de suas características comuns. [...] Está mais ligado ao
estabelecimento de relações (p.2)
A escola, molecular como tem sido, assume um papel autoritário e não
democratiza o saber. Reforça, pois, o currículo “conteinerizado”. Os docentes, por sua
vez, inseridos em uma Formação Discursiva5 cujo discurso vigente é o acima
apresentado, reproduzem-no em suas práticas, e o resultado disso é a formação discente
tecnicista. Os alunos saem da escola sabendo, quando muito, sujeito e predicado, mas
sem a competência de investigar as ideologias que perpassam o texto e a não
neutralidade das palavras. Saem sem saber fazer leituras críticas. Saem despreparados
para agir na sociedade. Saem com uma visão de mundo limitada. Saem acreditando que
a escola é realmente detentora dos saberes essenciais. Saem acreditando que estão
prontos para os desafios do mercado de trabalho e da vida. Saem sem saber que o saber
é muito mais complexo. O docente, sem ter consciência de seu poder, contribui para
manter a escola como um contêiner, um espaço fechado para transformações. E usa o
texto como pretexto para ensinar gramática. Não que o ensino da gramática deva ser
eliminado, mas novas perspectivas para o ensino de Língua Portuguesa podem ser
propostas.
Em relação ao ensino superior, os cursos de Licenciatura em Letras, geralmente,
também enfatizam o ensino da norma padrão da língua e da literatura canônica,
formando professores limitados, valorizadores da cultura hegemônica. Nos cursos de
5 Conceito baseado nas ideias de Foucault, nas quais a Formação Discursiva é o resultado de “discursos
reais, que foram efetivamente pronunciados e que se apresentam com uma materialidade” (Portocarrero,
1994). No próximo tópico, aprofundaremos esse conceito.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1120
dupla habilitação (Português / Língua estrangeira), a situação ainda é mais grave. Na
maioria das vezes, os alunos só têm contato com a variedade linguística de prestígio da
língua estrangeira (por exemplo, quase não se estuda a língua e a literatura da Colômbia,
mas da Espanha). Como foi dito anteriormente, e vale reforçar, o currículo deve, então,
ser repensado, para uma nova formação docente, e, consequentemente, discente.
De acordo com Tinoco (2013), é necessário ressignificar o ensino de Língua
Portuguesa, percebendo a leitura e a escrita como práticas sociais, pois, desta forma, a
escola pode formar cidadãos preparados para agir no mundo. Leite (2011) afirma que
[...] é o conceito de trabalho (não alienado) que supera a concepção
tradicional de literatura, de língua e de saber. Se conseguimos que ele esteja
no centro de nossas preocupações pedagógicas, entendido como prática de
um sujeito agindo sobre o mundo para transformá-lo e, para, através da sua
ação, afirmar a sua liberdade e fugir à alienação, estaremos talvez
conseguindo formar uma capacidade linguística plural nos nossos alunos,
pela qual poderão, inclusive, de quebra, dominar qualquer regra gramatical,
qualquer rótulo fornecido pela retórica ou pela história literária. (p.25)
Se é necessário ressignificar o ensino de Língua Portuguesa, é preciso, então,
perceber que a prática docente e o currículo dessa disciplina são como são porque foram
discursivamente construídos enquanto práticas sociais.
O ensino e o currículo como práticas discursivas – entendendo o contêiner
Se o currículo e o ensino são práticas discursivas, a colocação feita no último
parágrafo do tópico anterior carece de mais algumas reflexões. Para tal fim, é necessário
definir o que entendemos por discurso.
Podemos começar dizendo que não existe transmissão de ideias fora do corpo da
linguagem. Também podemos afirmar que tudo que expressamos traduz um ponto de
vista, o que nos leva a compreender que, no exercício da linguagem, está afastada a
ideia de neutralidade, e, por isso, o discurso é sempre ideológico. Fiorin (1998), em
conformidade com o que preconiza Foucault, para discutir a constituição de formação
discursiva, parte da noção de formação ideológica, definindo-a:
Uma formação ideológica deve ser entendida como a visão de mundo de uma
determinada classe social, isto é, um conjunto de representações, de ideias
que revelam a compreensão que uma dada classe tem do mundo. Como [...]
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1121
essa visão de mundo não existe desvinculada da linguagem [...], a cada
formação ideológica corresponde uma formação discursiva. (p.32)
As práticas docentes, incluindo o currículo, estão necessariamente inseridas em
uma formação ideológica/ discursiva. Isto porque implica defesa de um ponto de vista
em detrimento de outras disputas na “arena dos conflitos” (Fiorin,1998). Nesse ponto,
cabe indagar a formação discursiva a que estão filiadas as instituições de ensino. Se
entendemos que a escola é uma instituição do Estado, entendemos também que é uma
instituição inserida em relações de poder, necessariamente assimétricas. Assim, o
discurso que vigora na escola é o discurso do poder dominante, que é o da classe
dominante. A manutenção dos valores de verdade dessa classe não é pacífica: ela se dá,
entre outros, pela imposição dos aparelhos ideológicos (Althusser, 1974).
As estratégias de naturalização de valores da classe dominante determinam as
práticas sociais que irão ser recorrentes. Elas serão um sustentáculo e um alicerce das
práticas discursivas em termos das verdades (?) do currículo, do conhecimento, do
ensino e das relações interpessoais. É nesse sentido que Spink (2010) entende “práticas
discursivas – as maneiras pelas quais as pessoas, por meio da linguagem, produzem
sentidos e posicionam-se em relações sociais cotidianas” (p.27). Em outras palavras,
mesmo as relações cotidianas mais triviais envolvem relações de poder.
Na escola, portanto, como instituição organizada, essas relações são muito mais
estruturadas e aparecem sob formas fixas de enunciados para resguardar os interesses do
contêiner: “Literatura africana não cabe em nossa grade”, “História da África foge ao
tempo disponibilizado para ministrar os conteúdos curriculares”, “Questões de gênero
dizem respeito à educação familiar”. Esses e outros discursos mantém o contêiner
lacrado. O grande desafio é a negociação das práticas discursivas que permitam a
fragilização das estruturas desse contêiner. No que tange ao ensino de línguas, o texto é
o limite, melhor dizendo, não há limite, e a transversalidade de temas nos favorece.
A formação humana integral e novas perspectivas para o ensino de Língua
Portuguesa
A formação docente e discente, no Brasil, segue uma perspectiva ainda muito
conteudista, cujo saber enciclopédico é supervalorizado. As instituições de ensino se
propõem a formar pessoas preparadas para o mercado de trabalho e para concursos, e
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1122
pouco se preocupam com a formação de cidadãos pró-ativos. A reflexão é pouquíssimo
estimulada, e os saberes apresentados, numerosos, parecem prontos e acabados. Os
conteúdos apreendidos são muitos, mas desconectados entre si e desconectados do
contexto sócio-histórico. Tal desconexão interfere no aprendizado e traz uma sensação
de frustração aos estudantes, que quase nunca conseguem deter totalmente o que é
apresentado como sendo de suma importância para sua formação e para sua vida.
Esses estudantes são clivados de sua autoestima e de sua autoconfiança. É um
dado da prática discursiva que atinge um aspecto psicológico necessário ao
investimento da aprendizagem. Assujeitados à estrutura filosófica escolar, à estrutura
curricular, a determinadas metodologias, a determinados processos avaliativos, não
percebem que estão presos à armadilha da ideologia dominante, que é suporte para
validar o sucesso ou o insucesso dos estudantes e os discursos que o legitimam
(Possenti, 2004).
Essa realidade, que se pode chamar, também, de prática discursiva, tem-se
transformado muito pouco ao longo dos anos. A educação brasileira, consequentemente,
vem apresentando resultados muito negativos, até mesmo nos exames para os quais a
escola diz se propor a formar.
Além disso, a escola, como um aparelho ideológico, teria que contribuir de
forma relevante para a formação cidadã, mas pouco se vê o exercício da cidadania nas
cidades do Brasil. De modo geral, há pessoas que jogam lixo no chão, não respeitam o
próximo, abandonam crianças e animais, não entendem a importância de recorrer à
justiça, mesmo quando em situações em que são vítimas... Seria possível enumerar
muitas outras ações que podem exemplificar o não exercício da cidadania. E pessoas
com essas atitudes, muitas vezes, passaram mais de dez anos na escola.
Aqui ficam alguns outros questionamentos, que entendemos ser problemas de
responsabilidade que poderiam ter sido problematizados na escola: que atenção é dada
àquele papel amassado que passa despercebido no canto da sala de aula? Que atenção é
dada à ação do estudante que distraidamente rabisca a carteira escolar no decurso da
aula? A discussão que se poderia travar com o aluno, entre outras, poria em relevância a
noção de público X privado, chamando a atenção para o fato de o público ainda nos
pertencer. Nossas indagações nos permitem concluir que se faz necessário refletir qual
tem sido o papel da escola no cenário atual.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1123
Mais do que oferecer um diploma ou preparar para concursos ou para uma vaga
no mercado de trabalho, é preciso que o currículo seja repensado para proporcionar uma
formação humana integral. Esse tipo de formação prioriza a ética e a cidadania. Para pô-
la em prática, o saber deve ser percebido como algo complexo, e complexo, de acordo
com Morin (2000), é, também, o pensamento unificador e capaz de religar os saberes.
Não há como se propor uma formação humana integral sem propor a
transversalidade de temas nas aulas, para ser possível que a cultura científica esteja em
diálogo com a cultura humanística. Assim, o currículo e os saberes escolares estariam
articulados aos conteúdos da vida. Essa religação proporcionaria a formação de sujeitos
pró-ativos, preparados para enfrentar os desafios de seu tempo com ética e solidariedade
que os temas requisitam.
Considerações finais – fragilizando as estruturas do contêiner
Nessas últimas considerações, fazemos uma declaração na qual acreditamos
plenamente: o currículo vigente não dá conta das demandas sociais. Essa percepção
tende a nos deixar perplexos, pois a sua negação, ou subtração, pode nos colocar no
vazio não só pedagógico, mas também político.
Essa lacuna só pode ser resolvida se olharmos para um outro currículo.
Percebemos, pois, a necessidade de estudar o que se vem produzindo nos estudos sobre
currículo. Esses estudos nos fornecem uma concepção de currículo como práticas
discursivas que envolvem relações de poder, relações essas comprometidas com
formações discursivas. Tais práticas, dialógicas, defendem interesses em confronto. Só
com o confronto, o professor poderá decidir a qual formação discursiva se filiará para
não estar assujeitado a um currículo que trabalha, inclusive, contra os interesses de
classe a qual ele próprio pode pertencer. Afinal, conhecemos as condições sociais nas
quais a maioria dos docentes está inserida.
Entender currículo como prática discursiva, que se insere em formações
discursivas, é fundamental para que não sejamos falados por interesses que não nos
interessam. Currículo é seleção, é tomada de posição. O argumento do conteúdo para
deixarmos de fazer determinadas aventuras cidadãs deixa de valer. Em outras palavras –
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1124
as últimas – as mudanças do currículo só ocorrerão a partir do entendimento de suas
engrenagens de produção e de poder. Currículo não pode ser contêiner.
Referências
ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Lisboa: Presença,
1974.
BAKHTIN, M.. Os gêneros do discurso. In Estética da criação verbal. 2ª ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1997.
BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1997.
FIORIN, J. L. Linguagem e Ideologia. São Paulo: Editora Ática, 1998.
HALLEWELL, L. O livro no Brasil: sua história. São Paulo: Edusp, 1985.
LEITE, L. C. de M. Gramática e literatura: desencontros e esperanças. In: Geraldi, J.W.
(org.), O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 2011.
MORIN, E. A Cabeça Bem-Feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
ORLANDI E. P. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 4ª ed. Campinas:
Editora da UNICAMP, 1997.
PORTOCARRERO, V., Foucault: a história dos saberes e das práticas. In Portocarrero,
V. (org.), Filosofia, história e sociologia das ciências I: abordagens contemporâneas.
Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 1994.
POSSENTI, S. Análise do discurso: um caso de múltiplas rupturas. In Mussalim, F. e
Bentes, A. C. (Org.). Introdução à lingüística: fundamentos epistemológicos. São
Paulo: Editora Cortez, 2004.
SPINK, M. J. Linguagem e produção de sentidos no cotidiano. Rio de Janeiro: Centro
Edelstein de Pesquisas Sociais, 2010.
SILVA, M. da. Atitude MOLAR X Atitude MOLECULAR: duas formas de organizar
conteúdos em geral. Disponível em <http://www.profmauriciodasilva.pro.br
/pdf/MOLAR_MOLECULAR_COMPLETO.pdf>, acesso em 04/01/2015.
SILVA, T. T. da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo.
Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1125
SILVA, T. T. da. O currículo como fetiche: a poética e a política do texto curricular.
Belo Horizonte: Autêntica, 2006.
TINOCO, G. A. Usos sociais da escrita + Projetos de letramento = Ressignificação do
ensino de Língua Portuguesa. In: Gonçalves, A. V. e Bazarim, M. Interação, Gêneros e
Letramento: a (re)escrita em foco. Campinas: Pontes Editores, 2013.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1126
PLANO PLURIANUAL DE ALFABETIZAÇÃO NO
SISTEMA PRISIONAL NO ESTADO DE SERGIPE:
APLICAÇÃO NO PROCESSO DE FORMAÇÃO INICIAL
DE ALFABETIZADORES E COORDENADORES DE
TURMAS [Voltar para Sumário]
Isis Mota Rodrigues Dantas (SEED – Secretaria de Estado da Educação)
O Plano Plurianual de Alfabetização (PPALFA) do Sistema Prisional do estado
de Sergipe é o documento síntese da proposta político-pedagógica do Programa Sergipe
Alfabetizado. O mesmo compreende que a alfabetização não se reduz a um processo de
aquisição das habilidades de leitura/escrita e cálculo matemático. Entende-se que resulta
da interação do indivíduo num contexto cultural, das abordagens técnico-metodológicas
da ação alfabetizadora. Nesse sentido, o Programa por meio da formação inicil dos
Alfabetizadores e Coordenadores de Turmas, norteam suas ações para a exploração de
referências sobre a realidade local e/ou regional. Além disso, considera-se também o
aprendizado da fala, do ler e do escrever, da construção numérica, do domínio das
operações fundamentais presentes no ensino matemático, além da ampliação do código
linguístico, que se estabelece na vivência diária e nas relações sociais.
Segundo Paulo Freire (1990), a alfabetização é capaz de contribuir para que o
homem se descubra no lugar que efetivamente ocupa, constituindo-se, assim, em meio
de autoconhecimento e do grupo a que pertence. É um processo que não pode ser
reduzido a decifrar códigos, por ensejar a emancipação, a conscientização e a
participação crítica e criativa dos sujeitos na sociedade, que, por sua dinâmica
econômica e política, divide as pessoas segundo a propriedade dos meios de produção,
exclui grupos, como as turmas do sistema prisional. A língua escrita, não poderia deixar
de ser, a expressão dessa mesma situação. Portanto, a necessária transformação social
virá através desse processo de conscientização cultural e política, ou seja, da
emancipação.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1127
Nesse sentido, o Plano Plurianual de Alfabetização – PPALFA do Sistema
Prisional do estado de Sergipe está fundamentada em uma visão crítica da sociedade e
dos homens que a compõem, buscando caracterizar-se pela perspectiva da educação
problematizadora, o que significa dizer que o processo ensino-aprendizagem não está
alicerçado somente nos conhecimentos trazidos pelo custodiado, mas também nas
situações de vida dos mesmos.
O pressuposto do programa é que o conhecimento, historicamente acumulado
pela humanidade, é sempre produzido nas relações entre as classes sociais, por isso o
seu acesso é um direito de todos. Bem salientado na VI CONFITEA - Conferência
Internacional sobre Educação de Adultos, conhecida como Marco de Ação de Belém
(Brasil) em 2010, quando foi afirmada que “a alfabetização é um instrumento essencial
de construção de capacidades nas pessoas para que possam enfrentar os desafios e as
complexidades da vida, da cultura, da economia e da sociedade.” (CONFITEA, 2010; p.
08). Ou seja, aprendizagem de jovens e adultos de qualidade e no fortalecimento do
direito à educação ao longo da vida para todos. Alguns elementos são pertinentes para
contribuirem na estruturação de uma prática pedagógica para atuação junto aos
custodiados, sendo assim organizados:
1. Qualquer processo pedagógico para fazer o custodiado avançar, deve partir
do que esse mesmo sabe e não do que ele não sabe;
2. O sujeito aprende na interação com o meio, com o objeto e com o outro
sujeito;
3. O indivíduo adquire autonomia, caso ele seja um construtor do seu processo
de aprendizado e participe na busca de seu conhecimento;
4. O custodiado deve se expressar a partir de suas próprias hipóteses;
5. Cada sujeito possui um ritmo próprio de aprendizagem que deve ser
respeitado;
6. A educação só se estabelece num ambiente de diálogo.
Tais pressupostos que consideramos em nossa prática pedagógica, só serão
levados em conta por meio de uma dialética capaz de ajuda-lo a pensar, uma prática que
transforme a sala de aula em um autêntico ambiente de autonomia, onde o Alfabetizador
e custodiado são parceiros em busca do conhecimento.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1128
Vygotsky, apud Rego, 2002 também contribui para o embasamento desta
proposta de trabalho, considerando que o homem recebe suas primeiras influências no
meio local, ponto de partida para a ampliação de sua compreensão “entre si e o mundo
que o cerca”, através da capacidade de fazer relação entre o local e o universal. Nessa
dialética do saber e o não saber, o “ainda não sei” emerge como categoria, que abre
espaço para que o processo de aprendizagem possa acontecer resguardado a autoestima
do custodiado.
A Formação Inicial de Alfabetizadores e Coordenadores de Turmas do Programa
Sergipe Alfabetizado concebida no PPALFA tem por objetivo: capacitar oa agentes para
trabalhar nas turmas de alfabetização de jovens e adultos junto ao sistema prisional do
estado de Sergipe, cadastrados no Sistema Brasil Alfabetizado - SBA, na perspectiva
dialética. A descrita formação possui a duração de 06 (seis) dias consecutivos, com 08
(oito) horas/diárias. No total de 48 horas de efetivo trabalho pedagógico.
Durante o curso, os Alfabetizadores e Coordenadores de Turmas devem adquirir,
nas atividades pedagógicas e culturais, o aporte teórico e metodológico necessários ao
desempenho do processo de alfabetização que serão desenvolvidos junto às classes de
alfabetização no sistema prisional. A metodologia adotada fundamenta-se na relação
dialógico-dialética, numa concepção de educação problematizadora, oportunizando a
vivência dos pressupostos básicos, a saber: partir da realidade do custodiado, troca de
experiências, orientação para a construção coletiva do conhecimento, além do trabalho
com a oralidade e o senso crítico, estimulando o resgate da cidadania.
O PPALFA - Exercício 2012/2013 do Programa Sergipe Alfabetizado está
em conformidade com os princípios e diretrizes da Formação Inicial e Continuada
estabelecido pelo MEC/SECADI, a saber:
Compreensão do PBA como parte da política de EJA na perspectiva da
continuidade.
Discussão do Plano de Formação entre a instituição formadora e o Ente
Executor, e desta forma contemplar: as especificidades de cada localidade e a
diversidade dos sujeitos envolvidos.
Realização da seleção de formadores tendo por base critérios técnico-
pedagógicos e compromisso social.
Utilização de perspectiva emancipadora dos sujeitos.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1129
Integração entre Formação Inicial e Continuada, preferencialmente, que a
entidade responsável pela formação inicial também seja responsável pela
formação continuada.
Conciliação dos aspectos teóricos e práticos, para que a partir da reflexão sobre a
prática se realize melhoria no processo e nas próximas práticas a serem
desenvolvidas.
Apresentação de estratégias para potencializar o uso do resultado do teste
cognitivo de entrada para planejar e encaminhar o trabalho de alfabetização em
sala de aula.
Apresentação de estratégias de utilização das competências indicadas na Matriz
de Referência do teste cognitivo como elemento para a definição das ações
pedagógicas a serem desempenhadas.
Utilização de perspectiva de intersetorialidade, tratando de ações relacionadas ao
pacto firmado entre governadores e o presidente da república.
Os conteúdos a serem trabalhados visam ao desenvolvimento de atividades
teóricas e práticas com o objetivo das turmas aprimorarem os conhecimentos voltados
para o processo de alfabetização, letramento, educação matemática, além de um
conjunto de ações pedagógicas voltadas para a conquista da cidadania. Nesse sentido, o
Curso de Formação Inicial é fomentado em dois momentos: no primeiro as classes serão
compostas apenas por Alfabetizadores; no segundo, classes compostas de
Coordenadores. Os conteúdos serão específicos a serem ministrados para cada grupo de
acordo com os quadros e ementas abaixo.
QUADRO N º 01: Disciplinas para Formação Inicial
Disciplinas
Alfabetizador
Coordenador
de Turmas
Princípios, fundamentos e ações no processo de
alfabetização.
10h 08h
Concepção e metodologia de leitura/escrita no
processo de alfabetização de jovens, adultos e
idosos.
]
12h
16h
Alfabetização Matemática. 10h Práticas para o ensino das Ciências Sociais e
Naturais no processo de alfabetização de jovens,
idosos e adultos.
04h
-
Planejamento Pedagógico com abordagem ao
material didático do PBA.
08h 12h
Avaliação da Aprendizagem (Matriz de
Referência - Teste cognitivo).
04h 04h
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1130
Gestão local do PBA. - 08h
TOTAL 48h 48h
Fonte: PPALFA, 2012.
Disciplinas para Formação Inicial de Alfabetizadores
1. Princípios, Fundamentos e ações no processo de Alfabetização.
Histórico da Educação de Jovens e Adultos no Brasil. Estudo do (s) conceito (s) de
analfabetismo no Brasil, refletindo sobre causas/consequências desse fenômeno.
Concepções de aquisição do conhecimento (consciência fonológica X método
fônico X método global) e os desafios dos processos pedagógicos adotados na
alfabetização em língua materna (fonético, fônico, global de silabação e "método
de Paulo Freire").
Pressupostos epistemológicos da Psicogênese da língua escrita de Ana Teberosky
e Emilia Ferreiro: possibilidades e propostas de intervenção a partir dos níveis,
envolvendo o jovem/adulto/idoso.
2. Concepção e metodologia de Leitura/Escrita no processo de Alfabetização de Jovens,
Adultos e Idosos.
Conceitualização e exploração das múltiplas linguagens na alfabetização e
letramento (a linguagem oral como meio de comunicação de ideias/pensamentos e
os modos de falar dos sujeitos poucos e não escolarizados).
Métodos (analítico, sintético e analítico-sintético) e metodologias a partir dessas
visões (abordagens interacionista, construtivista e sócio construtivista).
Leitura como processo cognitivo, ação de ler e suas implicações em pertinência
aos diferentes discursos com os diferentes sujeitos do texto lido - introduzindo o
alfabeto, partindo de experiências significativas (diferentes tipos de letras;
identificação de letras, sílabas, palavras e segmentação das palavras, sentido e
posição; momento da escrita na página).
Material de leitura – textos e portadores de texto existentes em diferentes espaços
sociais e implicações metodológicas do ensino da leitura e da escrita.
Contribuições da (s) linguística (s) no processo de aprendizagem da leitura/escrita
(utilização de textos orais produzidos pelos alfabetizandos; identificação e
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1131
utilização da narração/descrição; leitura em alta voz; instrução, perguntas e
respostas, argumentação e debate; como avaliar a linguagem oral).
Técnicas de leitura (utilidade da leitura e da escrita; finalidade da leitura e da
escrita; cuidados e sugestões no incentivo da leitura; trabalhando a leitura e a
escrita partindo do texto, como avaliar a leitura/escrita, utilização da cópia e do
ditado com significado).
Diversidade textual - identificação e produção de textos: listas; receitas,
instruções; formulários/questionários; anúncios, folhetos, cartazes; versos,
poemas, letras de músicas; bilhetes, cartas; jornais; contos, fábulas e anedotas;
relatos, biografias; textos de informação científica, com estruturação do trabalho
com a leitura e escrita partindo do universo vocabular do alfabetizando.
3. Alfabetização Matemática
Alfabetização Matemática e os processos de numeralização (diferentes
concepções entre ensino de matemática e educação matemática).
Matemática e alfabetização (compreender seus códigos e regras - ler, escrever
números naturais, ordenando-os na forma decimal, pela interpretação do valor
posicional de cada uma das ordens).
Teoria da Aprendizagem Significativa (representação de conceitos matemáticos e
suas implicações na aprendizagem: demonstração, o cálculo e o algoritmo -
métodos de ensino/aprendizagem).
Linguagem matemática: leitura, interpretação, escrita e autoria (representações
matemáticas: representações sociais e representações semióticas na interpretação
da matemática).
Estudo da etnomatemática voltada para o processo de alfabetização.
Relações entre aspectos subjetivos e objetivos da aprendizagem da Matemática.
Estruturalismo e construtivismo na aprendizagem da Matemática.
A questão do erro da aprendizagem da Matemática.
Resolução de situações-problemas que envolvem contagem, medidas, os
significados das operações, utilizando estratégias pessoais de resolução e
selecionando procedimentos de cálculo.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1132
Construção e interpretação de representações espaciais simples (mapas,
itinerários, maquetes) utilizando-se de elementos de referências e estabelecendo
relações entre eles.
4. Práticas para o ensino das Ciências Sociais e Naturais no processo de alfabetização de
jovens. adultos e idosos.
As ciências sociais e naturais com foco na alfabetização: concepção,
problematização, exploração dos fatos da vida e desmistificação dos fatos na
construção de um caminho investigador dos fenômenos sociais e naturais.
A alfabetização científica e estudo do senso comum a respeito da vida dos seres
vivos e as produções humanas (a relação entre Ciência, Tecnologia e Sociedade).
Possibilidades de informação e reflexão no campo da História:
a) Por que estudar História e o como fazê-lo.
b) História Local como fonte de compreensão.
c) Fazer História enquanto apropriar-se do que já se é: um sujeito histórico.
Estudo a respeito da participação e cidadania dos indivíduos nas suas
comunidades (processo histórico de ocupação do território brasileiro; formação do
povo brasileiro; as relações de produção e trabalho no processo histórico
brasileiro; as manifestações culturais; organização e participação na sociedade;
história da localidade; patrimônio cultural; fundamentos da cidadania e da
democracia aos valores na vida cotidiana).
Orientação e localização geográfica (formas de representação do espaço
geográfico).
Estudo das relações do homem com o meio em que vive com foco: objeto de
estudo da Geografia; noções de lugar e localização; bairro, município e estado,
caracterização geográfica; o homem e as transformações das paisagens naturais;
região e micro região.
Aspectos históricos e normativos da educação ambiental no mundo e no Brasil.
O mundo do trabalho e suas relações sociais.
Epistemologia ambiental (ambiente crise ambiental e o movimento ambientalista).
Dimensão educativa dos estudos ambientais:
Nosso meio ambiente.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1133
A problemática do lixo - consequências.
A reciclagem - uma alternativa ao desperdício e uma fonte de renda.
Receitas alternativas – melhor utilização dos alimentos.
A água/energia – utilidades e cuidados.
A questão do aquecimento global.
Estudo sobre saúde e higiene – foco nas principais doenças do século (estudo e
prevenção): A dengue - A teníase - A ascaridíase - A amebíase – Esquistossomose
– Sexualidade e Hipertensão/colesterol/diabete/hepatite entre outros.
5. Planejamento Pedagógico do material didático do Programa Brasil Alfabetizado -
PBA
Tipos de planejamento educacional.
Principais elementos constitutivos de um planejamento.
Os projetos de trabalho como uma proposta integradora de alfabetização.
A construção do conhecimento em rede – Planejamento mensal.
Elaboração do Planejamento mensal do PBA/Sergipe.
Instrumentos de avaliação do Programa.
6. Avaliação da aprendizagem (Matriz de Referência - Teste Cognitivo)
Orientações para aplicabilidade e correção dos Testes cognitivos de entrada e
saída (Leitura/Escrita e Matemática).
Estudo da matriz de referências dos testes cognitivos
A avaliação como instrumento de diagnóstico e reflexão permanente do processo
educativo dos alfabetizandos.
Disciplinas para Formação Inicial de Coordenadores de Turmas
1. Princípios, Fundamentos e ações no processo de alfabetização.
Histórico da Educação de Jovens e Adultos no Brasil.
Estudo do(s) conceito(s) de analfabetismo no Brasil, analisando e refletindo
sobre as causas e consequências desse fenômeno na sociedade brasileira.
Análise das concepções de aquisição do conhecimento (consciência fonológica
X método fônico X método global).
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1134
Conhecer os problemas, dificuldades e desafios dos métodos e processos
pedagógicos adotados na alfabetização em língua materna (fonético, fônico,
global de silabação e "método de Paulo Freire") e as possíveis conexões com a
Educação Popular.
Pressupostos epistemológicos do desenvolvimento da escrita a partir da
Psicogênese da língua escrita de Ana Teberosky e Emília Ferreiro:
possibilidades e propostas de intervenção a partir dos níveis, envolvendo o
jovem/adulto/idoso.
Concepções sobre ensino e aprendizagem (abordagem tradicional,
comportamentalista, humanista, cognitivista e sociocultural).
Estudo sobre a Teoria Comunicativa de Habermas.
Estudo sobre a Teoria de inteligências múltiplas de Howard Gardner (linguística,
lógico-matemática, interpessoal, intrapessoal, musical, cinéstico-corporal, de
espaço, naturalista) com foco para as aprendizagens para elaboração dos projetos
de trabalho.
2. Concepção e metodologia de leitura/escrita no processo de alfabetização/letramento,
alfabetização matemática aplicadas no processo de alfabeização de jovens, adultos e
idosos.
Métodos (analítico, sintético e analítico-sintético) e metodologias a partir dessas
visões (abordagens interacionista, construtivista, socio-construtivista ao
sociointeracionismo).
Análise dos pressupostos teóricos de Piaget, Emília Ferreiro, Vygotsky, Bakhtin
com foco nas teorias de categorização e conceptualização na construção do
conhecimento e na hipótese sócio cognitiva da linguagem.
Estudo da leitura como processo cognitivo ação de ler e suas implicações em
pertinência aos diferentes discursos lidos do leitor com os diferentes sujeitos do
texto lido - introduzindo o alfabeto, partindo de experiências significativas
(diferentes tipos de letras; identificação de letras, sílabas, palavras e segmentação
das palavras, sentido e posição; momento da escrita na página).
Foco no material de leitura – textos e portadores de texto existentes em diferentes
espaços sociais e implicações metodológicas do ensino da leitura e da escrita.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1135
Contribuições da (s) linguística (s) no processo de aprendizagem da leitura/escrita
(utilização de textos orais produzidos pelos alfabetizandos; identificação e
utilização da narração/descrição; leitura em alta voz; instrução, perguntas e
respostas, argumentação e debate; como avaliar a linguagem oral).
Trabalho com técnicas de leitura (utilidade da leitura e da escrita; finalidade da
leitura e da escrita; cuidados e sugestões no incentivo da leitura; trabalhando a
leitura e a escrita partindo do texto, como avaliar a leitura/escrita).
Trabalho com índice de oralidade (o dizer e escutar, desempenho da voz e a
leitura): postura frente àquilo que conta, discurso identitário, ou seja, autoridade
(relação frente ao público) e autoria (atualização do texto que ouviu), ritmo,
envolvimento dos ouvintes pelo lido e/ou enunciado, entre outros aspectos.
Estudo da teoria de gêneros (narrativo, argumentativo-dissertativo, expositivo-
explicativo, descritivo, dialogal-conversacional e injuntivo-instrucional) sob a
orientação bakhtiniana, e suas propostas de aplicação fundamentada em torno da
explicitação de conceitos chave como: progressão, transposição e sequência
didática.
Concepções sobre o ensino e a aprendizagem da Matemática: concepções
explicitadas em termos abstratos e não referidas a situações concretas de ensino-
aprendizagem — concepções manifestadas — e as concepções que se reportam
às suas práticas, aquelas que estão contextualizadas num dado momento e num
dado local — concepções ativas.
Alfabetização Matemática e as práticas de ensino, relativamente aos seguintes
aspectos: (1) objetivos do ensino da Matemática; (2) visão da aprendizagem; (3)
situações de ensino/aprendizagem; (3) tarefas/atividades e meios; (4) papel do
professor; (5) papel do alfabetizando frente a resolução de situações problemas.
Abordagens de aprendizagem matemática: (i) aprendizagem por rotina e
memorização, com a intenção de reproduzir conhecimento e procedimentos; (ii)
aprendizagem através da resolução de muitos exemplos com a intenção de obter
um entendimento relacional da teoria e dos conceitos; (iii) aprendizagem através
da resolução de problemas difíceis, com a intenção de estabelecer um
entendimento relacional de toda a teoria e interligado com conhecimentos
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1136
anteriores; (iv) aprendizagem com a intenção de obter um entendimento relacional
da teoria e buscando situações onde ela possa ser aplicada.
Matemática e alfabetização (compreender seus códigos e regras para poder
comunicar as idéias advindas dessa compreensão - ler, escrever números naturais,
ordenando-os na forma decimal, pela interpretação do valor posicional de cada
uma das ordens).
Teoria da Aprendizagem Significativa (representação de conceitos matemáticos e
suas implicações na aprendizagem: demonstração, o cálculo e o algoritmo -
métodos de ensino/aprendizagem).
Linguagem matemática: leitura, interpretação, escrita e autoria (representações
matemáticas: representações sociais e representações semióticas na interpretação
da matemática).
Resolução situações-problemas que envolvem contagem, medidas, os significados
das operações, utilizando estratégias pessoais de resolução e selecionando
procedimentos de cálculo.
Construção e interpretar representações espaciais simples (mapas, itinerários,
maquetes) utilizando-se de elementos de referências e estabelecendo relações entre
eles.
Estudo da etnomatemática voltada para o processo de alfabetização.
Estudo com modelagem na perspectiva de Burak a partir das etapas: 1) escolha do
tema; 2) pesquisa exploratória; 3) levantamento dos problemas; 4) resolução dos
problemas e o desenvolvimento do conteúdo matemático no contexto do tema; 5)
análise crítica das soluções.
Estruturalismo e construtivismo na aprendizagem da Matemática.
3. Gestão Local do PBA
Histórico do Programa Brasil Alfabetizado – PBA.
A intersetorialidade na Educação de Jovens e Adultos.
Noções de informática. Acesso e operacionalização do Sistema Brasil
Alfabetizado e do Sistema de Gerenciamento de Bolsas.
Estudo dos instrumentais do PBA/Sergipe (preenchimento e arquivamento) dos
documentos: Relatório mensal do Coordenador de Turmas (pedagógico e
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1137
administrativo), freqüência dos alfabetizandos, Relatório mensal dos
Alfabetizadores, Caderno de Vivências Pedagógicas.
Orientações administrativas e didáticas para elaboração das pautas de reuniões de
formação continuada, seguindo o planejamento temático do PBA/Sergipe.
Aplicação e estudo a partir das redações mensais dos alfabetizandos levando em
conta a psicogênese da leitura/escrita nas mesmas e seu arquivamento.
Estratégia de mobilização e encaminhamento dos egressos do PBA nas redes
municipal e estadual de educação.
4. Elaboração de projetos e planejamento didático-pedagógicos
Principais elementos constitutivos de projeto de trabalho vinculado ao
PBA/Sergipe interligado com o planejamento mensal.
Elaboração do Planejamento mensal do PBA/Sergipe.
Os projetos de trabalho como uma proposta integradora de alfabetização.
A construção do conhecimento em rede – Planejamento geral do PBA/Sergipe.
Instrumentos de avaliação do Programa.
5. Avaliação da aprendizagem (Matriz de Referência - Teste Cognitivo)
Orientações para aplicabilidade, correção dos gabaritos e arquivamento dos Testes
Cognitivos de entrada e saída (Leitura/Escrita e Matemática).
Estudo da matriz de referências dos testes cognitivos e sua avaliação como
instrumento de diagnóstico visando à melhoria da prática (significados dos
termos: medir e avaliar enquanto processo de reflexão permanente da
aprendizagem dos custodiados).
Resultados e avaliação
Após a sua elaboração o PPALFA é enviado ao MEC/SECADI para análise e
aprovação. O PPALFA do Programa Sergipe Alfabetizado já realizou a citada
tramitação e obteve a sua aprovação pelo MEC/SECADI. A próxima ação é a formação
inicial de alfabetizadores e coordenadores de turmas. No decorrer da mesma
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1138
aplicaremos questionários para avaliarmos o desempenho do curso e o processo de
aprendizagem dos envolvidos.
Outros resultados esperados da aplicabilidade do PPALFA por meio da
formação inicial dos alfabetizadores e coordenadores de turmas são; a) a compreensão
por parte dos cursistas das concepções de alfabetização de pessoas jovens, adultos e
idosos, bem como o entendimento que o processo de educação de pessoas jovens
adultas e idosas ocorrerem ao longo da vida; b) o aporte metodológico para o
desenvolvimento das aulas de alfabetização; c) instrumentalização dos coordenadores
de turmas para que os mesmos possam desempenhar as suas funções mediante aos
princípios e diretrizes do PPALFA referente ao exercício 2012/2013.
Referências Bibliográficas
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MEC (Coordenadores).São Paulo, 2004.
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1995.
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Brasiliense, 1981.
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República Federativa do Brasil, n. 248, de 23 de dez. de 1996.
BOGO, Orlando. (PUC-PR) In SILVA, Lenaldo. Curso de Língua Portuguesa: Leitura e
Produção de Texto. – Arcaju, SE: Faculdade Atlântico, 2007.
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São Paulo: UNESCO/MEC, 1996.
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OLIVEIRA, João Batista Araújo e. Avaliação em Alfabetização. V. 13, N. 47, Jul-Set
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Hamburgo (Brasil), 2002.
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Unitrabalho - Fundação Iteruniversitária e Estudos e Pesquisas sobre o trabalho; Brasília,
DF: Ministério da Educação. SECADI - Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade, 2007. (Coleção Cadernos de EJA: Emprego e Trabalho,
Mulher e Trabalho).
Revista Exame, edição 734 de 21 de abril de 2001, pág. 18. - São Paulo: Editora Abril,
2001.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1140
A VIDA ÍNTIMA DA MORTE SUBVERTIDA NA
POÉTICA CONTEMPORÂNEA DE HILDA HILST [Voltar para Sumário]
Ivon Rabêlo Rodrigues (FAFIRE)
Edigar dos Santos Carvalho (UFPE)
A grande realidade
Desde os antigos egípcios politeístas, o homem sempre manteve um intenso
respeito em relação à morte, sendo ela, por vezes, considerada não o fim da própria
vida, mas apenas uma passagem para outra etapa. Morte, óbito ou falecimento são
termos que podem referir-se tanto ao término da vida de um organismo como ao estado
desse organismo após o advento do fenômeno.
A morte é o acontecimento natural que mais se tem discutido pela humanidade,
gerando opiniões diversas. Existem numerosos estudos e visões sobre ela, abordando
vários aspectos e situações, tais como a consequência social e psicológica, as visões
religiosa, intelectual, filosófica e artística, sendo caracterizada sempre com misticismo,
magia, mistério, segredo, tabu, aversão e sobriedade.
A contemplação do fenômeno da finitude de um ser humano tornou-se também
uma motivação importante para o desenvolvimento de sistemas de crenças e religiões
organizadas. As alegorias são inúmeras e muito comuns ao referir-se ao fato da morte,
como a foice, a cor negra, a caveira, o túnel com luminosidade ao fundo, por exemplo.
Para muitos, crenças e informações sobre a morte tornaram-se uma consolação em
relação à morte de um ente querido ou à prospecção da nossa própria morte. Por outro
lado, o medo do insólito e do incognoscível ou de outras consequências negativas pode
tornar a morte algo mais temido. Entretanto não para a poesia.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1141
A poeta, ficcionista, cronista e dramaturga brasileira Hilda Hilst (1930-2004),
revelou em seus escritos uma visão extremamente peculiar sobre a morte,
especificamente em uma obra publicada em 1980 e intitulada Da Morte. Odes Mínimas.
No conjunto de poemas citado, a poeta se entrega ao desafiante constructo de
uma interlocução com a Morte, mas não a morte como alegoria filosófica, porém uma
entidade a ser enfrentada cara a cara como a grande realidade multifacetada que
permanece, por isso mesmo, tão enigmática para os homens de hoje como era na origem
dos tempos:
Ferrugem esboçada
Perfil sem dracma
Crista pontuda
No timbre liso
Um oco insuspeitado
Na planície
Um cisco, um nada
À tona das águas
Brevíssima contração:
Te reconheço, amada.
(HILST, 2003, p. 34)
Nessa aproximação (que conduz a um processo de renomeação do fenômeno)
não há, aparentemente, nenhum horror na morte que já não a tenha tornado uma
companhia íntima da própria vida. Essa tendência que a instância autoral mostra
assumir em trabalhar o reconhecimento da entidade a partir de inúmeras figurações
colhidas no mundo da experiência viva (“ferrugem”, “perfil”, “crista”, “timbre”, “oco”,
“planície”, “cisco”, “águas”) compõe o vocabulário do campo semântico escolhido pela
poeta para eleger a morte como mero acontecimento imbricado na efemeridade
(“Brevíssima contração”) de uma existência ordinária.
Ao propormos investigar um tema inerente ao ser humano, bem como a todos os
organismos vivos, por intermédio da realização artística, de maneira consciente e com
criticidade científica, nos imbuímos da responsabilidade, para com nós mesmos, de
refletirmos sobre a existência, uma vez que, ao tratarmos do fenômeno da morte, somos
compelidos a nos posicionarmos perante a vida: “Não é possível analisar o sentido da
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1142
vida sem se deparar com o problema do sentido da morte e vice-versa. Ambas as
análises conduzem ao mesmo resultado” (MARANHÃO, 2008, p. 63).
Ao sabermos que há algo de imanente à vida e à permanência quando se trata da
morte, nos tornamos capazes de relativizar o que se considera absoluto, por intermédio
do pensamento e das opiniões, como também modularmos nosso comportamento diante
daquilo que elegemos como prioridades e valores, naquilo que ambos têm de mais geral
e de mais particular.
Segundo atesta o historiador francês Philippe Ariès (2003), o estudo do
fenômeno da morte e a observação da variação da consciência que temos de nós
mesmos e do outro, assim como de nossas atitudes durante o percurso de uma
existência, justificam-se pelo fato de buscarmos imprimir sentido à grande “destinação
individual ou [...] destino coletivo” (p. 19).
Sobrevida lúcida
Ao tratarmos da temática da morte alinhavada pela linguagem poética, devemos
ter como escopo a certeza de que se fala e pensa-se a morte de maneira reconfigurada
em relação à vida, em relação à brevidade da vida e em relação à visão que
conservamos acerca do que podemos e precisamos realizar neste curto espaço de tempo
que nos foi dado para tal.
De difícil investigação, a morte sobrevive aos nossos pensamentos e divagações,
tornando-se a certeza inelutável de um destino para o qual são conduzidos todos os seres
vivos, homens, animais e vegetais. A vantagem virtual de que nós, humanos, dispomos
em relação a outras espécies é a consciência que temos dela.
Aos poetas, de certo modo licencioso, foi e continua sendo concedida a
faculdade de perceber e aceitar a presença universal da aniquilação da vida, no entanto
unida à própria vida, pois que essa certeza de finitude está no decurso das obras
naturais, na observação do cotidiano fugidio e voraz, em todos os tempos e lugares,
gerando turbulências ou aquiescências, como tão objetivamente nos faz perceber a
poética de Hilda Hilst:
Te sei. Em vida
Provei teu gosto.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1143
Perdas, partidas
Memória, pó
Com a boca viva provei
Teu gosto, teu sumo grosso.
Em vida, morte, te sei.
(HILST, 2003, p. 57)
Essa visão lúcida da falsa perda da vitalidade em face da presença da morte
proposta pela poeta brasileira desloca nosso olhar para uma realidade ao mesmo tempo
benquista e até sensualizada pela dicção orgânica a que se entrega a linguagem poética
utilizada pela autora (“gosto”, “boca”, “sumo”).
Em Hilda, não mais existem assomos de pavor ou indiferença, contrariando a
ideia de que hoje em dia a morte foi relegada ao esquecimento. A familiaridade de
antes, resquício de nossa mentalidade medieva, diluiu-se na sombra distante projetada
pela figura da morte já distanciada de nós, devido ao fato de vivermos em um ritmo
alucinado que não nos permite pararmos para repensar a finitude como algo próximo.
Na poética da contemporaneidade, o gosto agridoce da morte é arroubo de
sensação, é uma quebra do paradigma que a coloca como amedrontadora, conforme
salienta Ariès:
A antiga atitude segundo a qual a morte é ao mesmo tempo familiar e
próxima, por um lado, e atenuada e indiferente, por outro, opõe-se
acentuadamente à nossa, segundo a qual a morte amedronta a ponto de não
mais ousarmos dizer seu nome. (ARIÈS, 2003, p. 36)
O aspecto maléfico de clímax de um processo/percurso que a imagem da morte
encerra em seu bojo é percebido e mesmo antecipado por pequenos insights no
cotidiano, perpassando, a todo instante, nossa consciência ao longo de nossas vidas.
Esses pequenos e suaves desconfortos nos dão uma clara segurança diante da
fugacidade e aniquilamento da nossa existência, sem que, devido a isso, haja qualquer
pretexto para o desespero.
O efeito provocado pela análise cuidadosa e cotidiana do prenúncio da morte e o
seu subsequente desmascaramento à luz do dia ultrapassa qualquer possibilidade de
histeria ou sofreguidão, gerando apenas uma reação de assombro que se instala de
maneira sutil no contato especular entre o ser poeta e a iminência da finitude. Ao
olharem-se, a morte e a poeta descobrem-se refletidas em seus silêncios de observação
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1144
mútua, estejam ou não adornadas pela beleza de uma flor ou pela crueza de se sentir
ainda vivente:
Durante o dia constrói
Seus muros de girassóis.
(Sei que pretende disfarce
E fantasia.)
Durante a noite,
Fria de águas
Molhada de rosas negras
Me espia.
Que queres, morte,
Vestida de flor e fonte?
- Olhar a vida.
(HILST, 2003, p. 54)
Ao buscarmos uma síntese da vida no próprio ato de viver intensamente aquilo
que se analisa, tornamo-nos dignos da luta, essa “brincadeira” cotidiana e desenfreada
pela busca, captura e aprisionamento do que se entende por perpetuidade. Dessa forma,
surgem as diversas manifestações de recusa de nossa destruição, mimetizadas sempre
pelo anseio de eternidade fortemente apoiado na crença de uma possível condição de
imortalidade, mesmo não sabendo ao certo de que maneira poderemos nos tornar
imorredouros.
Denegar a morte
Em uma obra seminal para se compreender a “paranoia moderna” da não
aceitação da morte, o antropologista estadunidense Ernest Becker (1924-1974) discute
em A Negação da Morte (1974) o valor do indivíduo diante do fato da morte,
acreditando que o caráter de cada um é formado, essencialmente, em torno do processo
de negar a sua própria mortalidade.
Essa negação, na visão de Becker (2007), é necessária para que o ser humano
possa agir no mundo, defendendo-o contra o desespero que pode gerar a insanidade,
face à condição de criatura entristecida pela ideia de mortalidade. Infunde-se nesse
ponto o grande mal: a impossibilidade de realização do genuíno autoconhecimento,
como consequência da necessidade dessa negação.
O pensamento de Becker se alinha ao do filósofo alemão Arthur Schopenhauer
(1788-1860), ao acreditarem ambos que a dinâmica do mal é intrínseca à morte, uma
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1145
vez que ao abandonar essa armadura posta pelo caráter, o homem recorre a uma
abertura que permite a entrada do mais “puro terror”.
De acordo com Schopenhauer (2001), há na morte uma experiência de natureza
filosófica intimamente ligada à imanência, sendo isso o que outorga o medo e a recusa
de uma dura condição imutável de nulidade em nossa contemporaneidade:
Se o que faz a morte nos parecer tão assustadora fosse a ideia do não-ser,
então deveríamos experimentar o mesmo temor diante do tempo em que
ainda não éramos. Pois é incontestável que o não-ser do depois da morte não
pode ser diferente daquele anterior ao nascimento; ele não merece, portanto,
ser mais lamentado. Toda uma infinidade de tempo fluiu quando ainda não
éramos, mas isso não nos aflige de modo algum. Mas, ao contrário, o fato de
que após o intermédio momentâneo de uma existência efêmera uma segunda
infinidade de tempo deva se seguir, na qual não seremos mais, para nós
parece uma dura e até mesmo intolerável condição. (SCHOPENHAUER,
2001, p. 27)
Na poética cônscia de Hilda Hilst, a morte em sua atraente fantasia é também,
paradoxalmente, por vezes protelada como se fosse um intenso malefício, uma erva
daninha ao íntimo da vida, ao florescer e amadurecer: um obstáculo ao total
desenvolvimento do ser.
Para representar essa incongruência, a autora se utiliza de brilhos e fulgores
diurnos, em contraponto ao percurso inevitável traçado pela morte em sua trajetória
infalível. Intensificando sua recusa e repúdio àquilo que se torna insidioso, a poeta livra-
se do mal refugiando seus sentidos nos “sons da vida”, clamores advindos de inúmeros
lugares que a circundam e de seres que habitam “sob o sol”:
No meio-dia te penso.
Íntima te pretendo.
Incendiada de mim
Contigo morrendo
Te sei lustro marfim e sopro.
E te aspiro, te cubro de sussurros
Me colo extensa sobre tua cabeça
Morte, te tomo.
E num segundo
Ouvindo novamente os sons da vida
Nomes, latidos, passos
Morte, te esqueço.
E intensa me retomo sob o sol.
(HILST, 2003, p. 52)
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1146
As opiniões dessa voz poética mudam segundo o tempo e o lugar, mas a voz da
natureza permanece igual, sempre e em toda parte; é por essa razão que deve ser ouvida
antes de tudo. Dentro da linguagem da natureza, morte significa aniquilação. Então aqui
ela parece pronunciar claramente que a morte é um grande mal.
Que a morte é uma coisa séria, já se deixa concluir pelo fato de a vida, como
todos nós sabemos, não ser uma brincadeira. Sem dúvida, nada temos de mais digno a
receber do que ambas. E a isso a autora se submete, aquiescendo e deixando-se inebriar
por ambas, vida e morte, em um processo poético cáustico de busca, perquirição, quase
exaltação e repúdio, formatado pela configuração de suas (mínimas) odes.
O oco irremediável
Ao tratar da temática da morte em seus poemas, associada ao formato poético da
ode, Hilda Hilst exercita-se no gênero de maneira não ortodoxa, não se limitando ao que
classicamente reconhecemos constar como temáticas exploradas nesse gênero, seja nos
seus primeiros formatos, quando os temas giravam em torno dos prazeres da mesa e do
amor ou nos momentos históricos seguintes, quando incorporaram, com uma dicção
épica, os feitos memoráveis dos membros de raças heroicas.
A ode, na poética hilstiana, adquire o valor de uma breve e íntima exaltação, um
instante fugaz de louvação peculiar, aproximando-se da feição dada ao gênero pelo
poeta latino Horácio (século I a. C.), quando este a tornou “objeto não de recitação mas
de leitura individual”, instilando-lhe “assuntos pessoais, biográficos ou intimistas”
(MOISÉS, 2003, p. 266).
Nesse sentido, é lícito ao nosso estudo afirmar que Hilst transgride e reinventa a
configuração estrutural bem como a função que se espera de um tipo poético com
características muito próprias denominado de “ode”, reconhecendo e legitimando o fato
de que na contemporaneidade os seus limites, por assim dizer, flutuam e vagam em
direção aos impulsos do próprio sujeito criador do texto:
Nos dias que correm, não sendo possível o poema épico dentro dos modelos
tradicionais, e não podendo recusar-se a oferecer um testemunho pessoal
numa época de extremado individualismo, os poetas atiram-se à ode, visto
proporcionar-lhes o meio de fundir num corpo só uma visão épica da
existência e os impulsos profundos da individualidade. (MOISÉS, 2003, p.
269)
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1147
Ao largo dessa metamorfose histórica de natureza temático-estrutural, a ode
praticada por Hilst em seu conjunto de poemas dedicados à morte mantem seu caráter
grave, solene, nobre, sendo esse o reflexo e a representação de uma entrega lírica
intensa. Observemos o poema final do conjunto:
Lego-te os dentes.
Em ouro, esmalte e marfim.
Entre sarrafos e palha
O baço dos meus ossos.
Procura na tua balança
Minha couraça. Meu bandolim.
Escrita e torso.
Pesa-me a mim. Minhas funduras.
E o gume do meu desgosto.
Procura, na minha hora,
Entre sarrafos e palha
O que restou de mim
À tua procura.
(HILST, 2003, p. 68)
No poema acima, a autora refaz seu percurso e retorna à posição inicial de
sujeito intrincado “entre sarrafos e palhas”, elementos utilizados por transnominação
para deflagar a busca infinda pelo fenômeno indiscernível que se pereniza nas suas
“funduras”, quando se completa a aventura de viver e a voz da poeta se extingue,
restando apenas dedicar-se a inventariar o que conseguiu reunir de relevante, em meio
ao silêncio oco das perguntas sem respostas e em meio às sobras do que foi, um dia, seu
arsenal de busca pela compreensão do incongnoscível.
Referências
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Nas fronteiras da linguagem ǀ 1148
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MARANHÃO, José Luiz de Souza. O que é Morte. São Paulo: Brasiliense, 2008.
MOISÉS, Massaud. A Criação Literária: poesia. São Paulo: Cultrix, 2003.
SCHOPENHAUER, Arthur. Da Morte/Metafísica do Amor/Do Sofrimento do Mundo.
São Paulo: Martin Claret, 2001.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1149
REPRESENTAÇÕES LITERÁRIAS DA MILITÂNCIA
POLÍTICA: NOS, OS DO MAKULUSU, DE JOSE
LUANDINO VIEIRA E UN FUSIL DANS LA MAIN, UN
POEME DANS LA POCHE, DE EMMANUEL DONGALA [Voltar para Sumário]
Jacqueline Fernanda Kaczorowski Barboza (USP)
Embora o campo dos estudos literários das produções africanas tenha se
desenvolvido muito no país nos últimos anos, e com diversos resultados excelentes, são
ainda escassos (também internacionalmente) os estudos que comparem romances
africanos escritos em língua portuguesa e língua francesa. O presente trabalho pretende
contribuir para paliar essa rigidez, contribuindo para um aprofundamento diferenciado
do fato literário em contextos africanos vizinhos, como é o caso de Angola e da
República do Congo.
Tendo em vista que o trabalho científico ao inserir-se em um campo de estudos
deve, necessariamente, dialogar com ele e buscar oferecer contribuições e, ao mesmo
tempo, considerando este espaço, que interessa explorar e ampliar, buscou-se, ao eleger
como corpus uma obra literária produzida em língua francesa para comparação com a já
expressiva produção intelectual brasileira acerca de Angola, contribuir para o
crescimento e diversificação de uma área de estudos em franco crescimento no Brasil.
O estudo de diferentes formas como a militância política1 pode ser representada
na literatura é o objeto principal deste estudo, tendo como recorte a análise deste objeto
em duas obras literárias produzidas em contextos históricos próximos, porém muito
diferentes: Nós, os do Makulusu, romance do escritor angolano José Luandino Vieira,
escrito no campo de concentração do Tarrafal em 1967 e Un fusil dans la main, un
poème dans la poche, do congolês (de Brazzaville) Emmanuel Dongala, escrito em
1973. O tema das possíveis representações da militância política em textos literários
1 Entenda-se, neste caso militância política anticolonial, dado o recorte estabelecido.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1150
africanos já foi abordado anteriormente, devido à sua presença muitas vezes incisiva nos
textos literários, pela qual não é possível passar indiferente. A escolha do corpus para
análise, no entanto, foi norteada pela busca por agregar algo novo ao eleger um autor
congolês pouco lido no Brasil para comparação com o já consagrado Luandino Vieira e,
ainda, ao escolher um olhar para compará-los que, embora parta de um ponto em
comum, busque nas diferenças seu maior enriquecimento.
Os dois livros parecem ter partido de uma busca por deseroicizar a militância
anticolonial, não para questionar a importância da luta ou o mérito daqueles que
aderiram radicalmente a esta empreitada, mas, pelo contrário, para complexificar a
representação deste processo e, assim, citando Candido (2006), humanizá-lo em sentido
profundo.
A escolha dos autores é por representar as personagens em situações tensas e
profundamente humanas – de medo, indecisão, fragilidade; com falhas e desvios – em
vez de afastá-las, ao aproximá-las de um ideal ético infalível, pouco verossímil e
dificilmente alcançado mesmo pelos seres humanos de caráter mais firme e maior boa
vontade. No entanto, ainda que mostrando as falhas e mesmo os deméritos das
personagens, os autores não diminuem a força e o mérito da empreitada anticolonial,
mas, pelo contrário, tornam esta História, que, de alguma maneira, reescrevem através
da Literatura, ainda mais pungente. A força da representação parece residir nesta
escolha, que também é uma escolha estética – a escolha pela complexidade.
Esta escolha pela complexidade demanda das obras escolhas representativas que
resultam, de modo diverso, em situações narrativas diante das quais é praticamente
impossível permanecer impassível. Como exemplo, vale mencionar o fato de que, ainda
que trilhando caminhos estéticos diferentes, as duas obras acabam colocando o leitor
diante de situações-limite, em que as personagens são conduzidas, pela força das
circunstâncias, a lutarem contra e matarem seus iguais. Este é um dos elementos de
complexidade que impedem que se faça uma leitura maniqueísta das situações
apresentadas e parece merecedor de um aprofundado tratamento comparatista.
Em Nós, os do Makulusu há quatro personagens principais que cresceram juntas
no musseque: Mais-Velho, Maninho, Paizinho e Kibiaka. Companheiros de brincadeiras
na infância, tensões sociais os levam a escolher caminhos diversos: Maninho, branco
nascido na metrópole (assim como seu irmão Mais-Velho) vai lutar no exército colonial
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1151
português, acreditando que “só há uma maneira de a acabar, esta guerra que não queres
e eu não quero: é fazer-lhe depressa, com depressa, até no fim, gastá-la toda, matar-lhe”
(VIEIRA, 2004, p. 26). Paizinho, meio-irmão mulato dos dois, participa de ações
clandestinas e é preso pela PIDE. Kibiaka, colega negro morador do Bairro Operário,
entra para a guerrilha, partindo para o mato. Mais-Velho, narrador onisciente,
testemunha e protagonista da narrativa, é aquele que segue do início ao fim do romance
imerso em dúvidas; o “escrupuloso” que não teve coragem suficiente para tomar uma
decisão radical como as de seus companheiros de infância:
Então para quê estudos, papéis, para quê reuniões e esse teu medo chapado
que tens nos olhos e nessa cara bonita que eu gosto, porque o Paizinho não
vem, não chega e todo o teu corpo treme e são só panfletos? Entrar numa
mata, Mais-Velho, isso não fazes. Sei que tens medo, mas que tens mais
dignidade que medo e que vencerias o medo e iria (...). Não, Mais-Velho, não
é medo – eu sei, é mais pior. Podes vencer o medo mas nunca a falta de
certeza, és assim: matemático e objectivo. E não tens a certeza de te
aceitarem, Mais-Velho, nem ta podem dar porque também não a têm. Só indo
fazendo-lhe a terão. E só se tem enquanto se constrói. Construída, ela vira
dúvida outra vez. E então só tem um caminho...(...) Espalha os teus panfletos,
que eu vou matar negros, Mais-Velho! E sei que eles te dirão o mesmo:
‘espalha os teus panfletos, vou matar nos brancos’. (VIEIRA, 2004, p. 23-
26).
As personagens, companheiras de infância, são colocadas em uma situação
diante da qual não há neutralidade possível. Deflagrada a guerra, não há mais
possibilidade de conciliação e cada um precisa escolher seu lado. A conjuntura que, por
fim, obriga os companheiros de infância a se enfrentarem na guerra impede que o leitor
faça uma leitura irrefletida, impelindo-no a pensar na complexidade da situação colonial
que, como fato social total, abarca tudo e todos, em todas as instâncias, de modo
inevitavelmente violento.
Em Dongala, o contexto é bem diferente, embora não menos tenso. Já na
primeira página do romance, temos diante de nós Mayéla dia Mayéla, o seu
protagonista, prestes a ser executado.
Enquanto no começo da narrativa seu percurso na luta contra os brancos parece
exemplar, ao longo de seu desenvolvimento somos colocados diante de todas as
fragilidades, incertezas e vaidades de Mayéla. Ele sobrevive à luta armada e à tortura,
percorre milhares de quilômetros dentro do continente africano, em vários países; chega
mesmo a ser presidente do governo revolucionário da “República Popular e
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1152
Democrática de Anzika”, país fictício onde o autor situa a pátria de origem do
protagonista. A narrativa evoca figuras históricas exemplares na luta contra a
colonização: Patrice Lumumba, Frantz Fanon, Kwame Nkrumah, Amílcar Cabral,
Nelson Mandela, entre outras. A discussão política aparece muitas vezes em primeiro
plano, de forma didática, aproximando muito ficção e realidade no que diz respeito às
ideologias que circulavam pelo continente no período.
A personagem, no entanto, quando chega ao poder, não consegue conduzir o
país de acordo com as ideologias que defende ao longo da narrativa. Durante seu
governo, a economia entra em colapso, ocorrem prisões arbitrárias e, até mesmo, tortura
dentro das prisões. Os conflitos étnicos internos se acirram, a mídia, controlada por ele,
distorce informações e a população começa a se revoltar, manifestando-se contra seu
governo, inclusive por meio de um atentado contra sua vida. Mouyabi, opositor de
Mayéla, reúne um grupo de partidários e consegue dar um golpe militar que coloca
outro “governo revolucionário” no poder – cuja diferença ideológica do partido que já
se encontrava no poder, ironicamente, é imperceptível. Mayéla é preso pelos golpistas e
condenado à execução pública. A cena final do romance, em que ele corre em direção a
uma colina, para não se “deixar arrastar para a morte como um carneiro” (DONGALA,
1974, p. 213), é acompanhada pela mesma multidão que outrora o colocou no poder
uivando e lhe apontando o dedo, enquanto ele é atingido, pelas costas, pelas balas que
finalmente o derrubam no chão.
Nota-se assim que, os dois romances, embora com contextos bastante diversos,
mostram situações análogas no que diz respeito à luta armada entre iguais, no caso,
conterrâneos sendo levados por duas situações muito distintas a se matarem entre si;
seja pela posição tomada em relação à luta colonial, seja pela posição, após a
independência, tomada diante do processo espinhoso de construção de uma nação.
Aproximar os dois textos, parece, assim, permitir analisar não só a diversidade
de representações possíveis da militância política, como, também, compreender como o
contexto de produção interfere na organização formal dos textos. Há muitas diferenças
interessantes, que vão desde a língua adotada para a escrita até a organização formal,
vereda em que os autores trilham rumos estéticos diversos. Parece produtivo aproximá-
las pelas diferenças porque tal aproximação pode revelar de modo exemplar como o
processo social está intrincado, dialeticamente, na produção da escrita, uma vez que as
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1153
duas obras, cada uma à sua maneira, entrelaçam intensamente à tessitura formal do texto
as condições e contradições a que estão sujeitas.
Sabendo que não é possível ignorar as condicionantes históricas, ainda que
devam sempre ser tratadas com o cuidado de buscar compreender toda a sua
complexidade (evitando cair em simplificações deterministas), parece profícuo também
um estudo sobre os autores que os considere “produtores” (BENJAMIN, 1994, p. 120-
136), no sentido em que define Walter Benjamin. Ao trazer para a análise um ser social
que carrega consigo todo um repertório coletivo a ser mobilizado no momento da
escrita, Benjamin ecoa Marx e Engels em A Ideologia Alemã, obra em que aparece a
modelar definição de que não é a consciência dos homens que determina sua existência,
mas, ao contrário, é sua vida, seu ser social imerso em um contexto, que determina sua
consciência. É esta consciência, construída historicamente, que os autores terão como
matéria-prima para a construção de suas obras:
As linguagens e as técnicas que um escritor tem à mão já estão saturadas de
certos modos ideológicos de percepção, certas maneiras codificadas de
interpretar a realidade; e o grau em que ele pode modificar ou recriar essas
linguagens não depende apenas do seu gênio pessoal. Depende da
‘ideologia’, em um determinado momento histórico, ser tal que essas
linguagens devam e possam ser alteradas. (EAGLETON, 2011, p. 54).
Apontamentos metodológicos
Segundo Benjamin Abdala, que defende sempre uma postura política diante do
objeto de estudo literário, o estudo comparativo parece tanto mais interessante quanto
mais se afaste do olhar hegemônico para se aproximar daquilo a que ele chama “uma
literatura comparada descolonizada” (ABDALA, 2007, p. 14), pautada por “articulações
de solidariedade entre atores de um campo intelectual supranacional” (ABDALA, 2007,
p. 15). A este tipo de olhar comparativo interessa criar condições para perspectivas
descentradas, “tendo em vista reverter a assimetria da vetorização dos fluxos”
(ABDALA, 2007, p. 17) – que, em geral, tende a considerar os países outrora
colonizados sempre como “devedores” quando comparados aos países cuja produção
literária é dominante.
Considerando que o método escolhido para tratar a realidade carrega sempre um
olhar partidário, de acordo com aquilo para que escolhemos olhar (e como escolhemos
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1154
olhar), a escolha metodológica pelo “comparatismo comunitário”, ao aliar o aparato
teórico materialista histórico e eleger como corpus dois textos africanos, carrega
intrinsecamente uma posição política contra a dominação cultural e ideológica a que os
povos africanos foram submetidos durante tanto tempo.
A escolha pelo aparato teórico materialista histórico, neste contexto, vem
reforçar a posição tomada. Pretende-se mobilizar os elementos fundamentais desta já
consolidada teoria crítica para uma leitura da situação literária e social dos contextos
africanos estudados, unindo suas ferramentas interpretativas ao estudo das
especificidades dos contextos africanos.
Para embasar esta reflexão, é necessário aprofundar os estudos também no
campo da História. Neste caso, além dos estudos de contextualização da situação
histórica africana, foi estabelecido como recorte, para um enfoque mais detalhado, o
contexto das disputas políticas no continente africano dos anos de 1960 a 1975, tendo
em vista que 1960 é o ano em que o Congo-Brazzaville negocia sua independência
oficial; 1961 é o ano em que se acirram as tensões e começa de fato a luta armada em
Angola; 1967 é o ano em que Luandino Vieira escreve Nós, os do Makulusu; 1973 é o
ano em que Emmanuel Dongala publica Un fusil dans la main, un poème dans la poche,
com grande e rápida repercussão (inclusive internacional) e, finalmente, 1975 é o ano
em que Angola é declarado oficialmente um país independente.
Formado um repertório crítico, ao qual se juntará naturalmente referências aos
estudos já realizados sobre ambos os autores, o processo de análise comparativa da
construção da representação da militância nas obras em questão buscará compreender
todo o processo social do qual os textos fazem parte, atentando para o fato de que,
compreender uma questão literária,
Significa, antes de tudo, compreender as relações complexas e indiretas entre
essas obras e os mundos ideológicos que elas habitam – relações que surgem
não apenas em ‘temas’ e ‘questões’, mas no estilo, no ritmo, na imagem,
qualidade e (...) forma. (EAGLETON, 2011, p. 20).
Apontamentos finais: caminhos
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1155
A principal pergunta que norteia este trabalho poderia ser resumida da seguinte
maneira: enfocar dois textos formalmente muito distintos a partir de um mesmo ponto
de vista pode ajudar a revelar como se dá a determinação social2 da escrita?
Utilizando, mais uma vez, Antonio Candido, quando afirma, sobre o fator social
da escrita, que “não se trata de afirmar ou negar uma dimensão evidente do fato
literário; e sim, de averiguar, do ângulo específico da crítica, se ela é decisiva ou apenas
aproveitável para entender as obras particulares” (CANDIDO, 2006, p.21), chega-se à
principal hipótese que norteia a pesquisa até o presente momento: nos dois textos
escolhidos para o estudo comparativo, o fator social parece ser, mais que aproveitável,
decisivo para compreender integralmente as obras.
A partir dos desdobramentos decorrentes desta hipótese, busca-se compreender
quais os fatores que atuam na organização interna do texto, de modo a constituir uma
estrutura peculiar, investigando qual a função que o fator social e histórico (externo)
exerce na economia interna da obra, já que o maior interesse da crítica parece ser
quando é possível compreender “a integridade da obra (...) fundindo texto e contexto
numa interpretação dialeticamente íntegra” (CANDIDO, 2006, p.12.).
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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1159
OS LETRAMENTOS NO CIRCO DO FUXIQUINHO E O
PAPEL DO PROFESSOR [Voltar para Sumário]
Jaécia Bezerra de Brito (UFRN/PROFLETRAS)
1.Introdução
O termo “mundo do circo” bem se aplica a essa atividade artística, no circo
temos a representação de diversos povos, falares, práticas sociais, visões muito
peculiares do mundo, delimitados por uma cerca e ampliados por diversos povos de
culturas bastante diferenciadas, aos quais os circenses têm acesso. Mesmo sem
especificar os diversos grupos que coabitam sob a lona, é urgente uma mudança
daqueles, os quais devem acolher o aluno circense na escola, primordialmente o
professor, que não consegue atender às diversidades, aos múltiplos letramentos, muito
menos perceber a enorme contribuição que cada aluno pode dar para o conhecimento
dos diversos grupos que interagem no espaço escolar.
O circense em seu cotidiano vivencia práticas sociais que extrapolam as
vivenciadas por alunos de uma cidade, mesmo que esta seja de grande porte. O simples
ato de ir às compras exige desse nômade atenção ao itinerário, ao estacionamento de
veículos, à disposição das lojas e mercadorias, a serviços oferecidos no ambiente
escolhido, à variação linguística, à forma de atendimento aos clientes, ao custo de vida
e, consequentemente, às melhores ofertas, bem como à procedência e a qualidade dos
produtos, entre outras informações que a escrita pode auxiliar numa melhor escolha.
Para que o espetáculo se realize também existem as demandas de leitura e
escrita tais como: licenças expedidas por órgãos públicos e particulares quanto ao local,
segurança, energia, água, propaganda, ingressos, contabilidade de produtos oferecidos
no intervalo do espetáculo, texto da apresentação do espetáculo, roteiro da programação
diária, entre outras. O circense também pesquisa, faz leituras diversas e escreve por
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1160
prazer seja em cadernos ou blocos, seja na internet. Enfim, em todos os momentos e
circunstâncias, o circense faz leituras e interpretações, noutros realiza práticas de
escrita, e nessas interações assume uma atitude responsiva frente às demandas com as
quais se depara.
Frente ao exposto, o presente trabalho objetiva abordar a atuação do professor do
sistema regular de ensino público em relação à inserção do aluno circense nesse sistema,
bem como de que maneira esse docente contempla as práticas de letramento do
mencionado discente.
Nessa perspectiva, o referido trabalho segue os moldes da pesquisa qualitativa
na medida em que descreve a realidade investigada, a atuação de seus integrantes e o
que eles têm a dizer acerca do que realizam no tocante ao letramento escolar. Para tanto,
adotamos como instrumentos de geração de dados, entrevistas, observação do processo
ensino aprendizagem, com foco no trabalho do professor quanto ao procedimento frente
aos letramentos apresentados pelo aluno circense nas atividades do cotidiano escolar.
Teoricamente, baseamo-nos nos postulados apresentados pelos Estudos de
letramento, especificamente no que diz respeito à inserção efetiva do aluno circense no
universo escolar.
2. Aspectos metodológicos da pesquisa
A pesquisa qualitativa é a que melhor retrata a relação entre aluno circense-
professor-letramento; para mostrar como se dá esse processo escolhemos a entrevista.
Para Günther (2003) essa análise dos dados levantados é confiável, pois estudar o
fenômeno na contextualidade natural deixa o pesquisador diante de variáveis
importantes tais como comportamentos e estados subjetivos, os quais levam o
pesquisador a ter uma visão mais humana.
BOGDAN e BIKLEN (1996) endossam esse pensamento de os investigadores
qualitativos compreenderem melhor as ações no ambiente habitual de ocorrência, por
perceber o significado do local no contexto da história das instituições.
As entrevistas foram feitas com circenses que estão estudando, estudaram e/ou
acompanham seus parentes na vida escolar. Os questionamentos abertos deram à
pesquisa o tom de conversa. Nesse sentido, os circenses ficaram à vontade para
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1161
discorrer sobre o ensino aprendizagem e as interações com as pessoas da praça (cidade).
A faixa etária dos entrevistados varia dos 16 aos 40 anos. A investigação perpassa
camadas sociais variadas, como também etnias distintas com seus níveis de letramento
também diversos. A pesquisa foi feita, durante dois meses do ano de 2014, e se tornou
eficiente ao investigarmos, também, a ótica do professor, que recebe o aluno circense.
Na interação do circense com o mundo exterior, toda atitude responsiva dos
cidadãos sedentários deve ser considerada, não como fator de inclusão/exclusão, mas
como aspectos positivos/negativos para o letramento do circense. Por isso, ao
intermediar saberes todas as atitudes dos envolvidos no processo ensinoaprendizagem
são levadas em consideração.
3. No circo e no sistema regular de ensino
Ao analisar relatos de circenses podemos perceber entraves no processo ensino
aprendizagem, porque a referida legislação não evidencia aspectos singulares em
relação às práticas inclusivas que a escola deve exercer a fim contribuir para o
desenvolvimento do aluno no período em que se encontra matriculado na escola. Assim
sendo, não se observa maiores esclarecimentos em termos da proposição de atividades e
da sistemática de avaliação a ser seguida pela escola frente aos referidos alunos.
Essa ausência de parâmetros norteadores no âmbito da legislação leva a escola e,
por consequência, o professor a não ter orientações para trabalhar com essas
especificidades, o que acarreta equívocos no tratamento dado a esse aluno que tem
muito a contribuir para a ampliação de conhecimentos, práticas culturais e vivências
humanas dos demais sujeitos envolvidos no processo educacional.
A série de lacunas existentes na legislação não muda a condição de ouvinte e/ou
invisível assumida pelo aluno circense, haja vista que, muitas vezes, a inserção desse
aluno na instituição de ensino, apesar de parecer relevante, estimuladora e cativante,
causa estranhamento e desacomodação tanto para a escola, como para o professor e suas
práticas, inclusive para os demais alunos por implicar em mudanças no processo de
ensino.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1162
A partir desse contexto é que começo a discorrer como o professor encaminha
suas práticas para atender a esse aluno e, consequentemente, aos seus letramentos num
sistema de ensino que pratica a homogeneização da aprendizagem.
4. O circo, os letramentos múltiplos e as práticas escolares
Os estudos de letramento como práticas sociais concebem as pessoas e os grupos
sociais como heterogêneos. Assim sendo, as múltiplas atividades desenvolvidas entre as
pessoas acontecem de modos muito variados. Essa heterogeneidade não encontra espaço
no sistema tradicional da escola em que o professor, falante privilegiado, figura de
relevância no contexto escolar, ministra aulas de acordo com um currículo padrão para
todas as turmas em que há, inclusive, alunos circenses, dentre outros grupos sociais.
Outra questão importante diz respeito ao letramento escolar; se por um lado a
escola funciona como ferramenta para a inserção social, no caso do mercado de
trabalho, ou em relação aos conhecimentos valorizados legal e culturalmente, por outro
ela tem deixado de ampliar e democratizar as práticas e eventos de letramentos
escolarizados. (ROJO, 2009)
A escola, segundo Kleiman (2007), deve constituir agência de letramento por
excelência de nossa sociedade, assumindo os múltiplos letramentos da vida social, como
objetivo estruturante do trabalho escolar em todos os níveis. Ao observar o ambiente
escolar e como se dá a interação entre professor e aluno percebemos a dissonância entre
o fazer pedagógico e a necessidade de interação do indivíduo no meio social; a partir
dessa observação compreendemos o dizer de KLEIMAN (2006, p.4)
Um agente social é um mobilizador, dos sistemas de conhecimentos
pertinentes, dos recursos, das capacidades dos membros da comunidade: no
caso da escola, seria um promotor das capacidades e recursos de seus alunos
se suas redes comunicativas para que participem das práticas sociais de
letramento, as práticas de uso de escrita situadas, das diversas instituições.
Em virtude de seu nomadismo, o aluno circense, segundo Silva (1996), é dotado
de muitas vivências face às particularidades e necessidades de sua vida. Além disso, são
portadores de saberes e práticas que os balizam, que os definem como grupo, com uma
historicidade singular. Os circenses, em sua essência, não pertencem a uma determinada
religião, etnia ou classe social. Os determinantes de seu processo de adequação no circo
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1163
traduzem uma postura flexível em processos concomitantes de construções de saberes
oriundos de diversos grupos, mesmo porque os circenses são oriundos de diversas
origens.
Seguindo essa orientação o aluno circense não é um organismo estranho, mas
um indivíduo com seus letramentos e práticas sociais específicas. Face a essa realidade,
Kleiman (2007) preconiza que:
Professor que adotar as práticas sociais como princípio organizador do ensino
enfrentará a complexa tarefa de determinar quais são essas práticas
significativas para cada indivíduo que traz consigo características próprias no
que concerne à bagagem cultural, e diferentes modos e níveis de participação,
pertencentes ou não a uma sociedade tecnologizada e letrada. (KLEIMAN,
2007, p. 6)
Essa perspectiva é compatível com o letramento ideológico proposto por
STREET (1984, p.7) que concebe as práticas de letramento como indissociável às
estruturas culturais e de poder da sociedade, reconhecendo a variedade de práticas
culturais associadas à leitura e à escrita em diferentes contextos.
Em relação às práticas sociais do aluno circense, elas se distinguem daquelas do
aluno regular, por diversas razões, entre elas estão o desenvolvimento linguístico-
discursivo do circense, que perpassa experiências constantes de variação lingüística; a
diversidade do uso de gêneros textuais, seja pela variedade dos diferentes espaços
geográficos em que circulam, seja pelos níveis de complexidade; a proximidade com
diversos modos de significar os textos em cada região ou país por onde passam e
finalmente pelos enunciados implícitos no seu discurso, os quais mostram uma força
identitária do circense para com o mundo exterior e sua fragilidade para o mundo do
circo nas relações de poder.
Tratando do ensinar, Paulo Freire (1996) nos leva ao conceito dessa prática
docente, da radicalidade metafísica, de seres históricos e inacabados envoltos no
processo de conhecer, ensinar; um ensinar que se dilui no aprender por se refazer
constantemente. E, nesse ensinar-aprender, temos a possibilidade de participar de uma
experiência total, diretiva, política, ideológica, estética e ética, na qual a boniteza, a
decência e a seriedade se acham de mãos dadas.
É também, na hora da avaliação que o circense e seus saberes são ignorados,
nenhum segmento da escola procura se inteirar sobre o conhecimento desse aluno,
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1164
inúmeras vezes ele estuda os mesmos conteúdos nas diversas cidades por onde passa, e
faz avaliações dirigidas especificamente aos alunos da cidade, pois são raras às vezes
em que o aluno circense é ouvido em suas necessidades, o que contradiz os vários
conceitos de letramento.
5. Vozes e reflexões
A pesquisa sobre os letramentos do circense e o papel do professor como um
agente de letramentos ampara-se em entrevistas orais concedidas por circenses do Circo
do Fuxiquinho, companhia de circo originada na cidade de Mossoró, no estado do Rio
Grande do Norte, empreendimento da família Campelo. As entrevistas focam na relação
aluno-contexto social-leitura e escrita; escola-professor-aluno, e visam à compreensão
da complexidade do letramento do circense e sua implicação no ambiente escolar.
Das várias perguntas formuladas, algumas se referem aos materiais escritos os quais o
circense faz uso, a forma como o professor se conduz na interação com o circense e
como é feita a avaliação desse aluno.
A dinâmica da vida do circense diferencia-os dos demais grupos sociais, porque
são pessoas de origens diversas, suas vivências se dão num espaço fechado e, ao mesmo
tempo, se interligam com grupos sociais muito diversos e em tempo muito variável. Em
algumas cidades (praças), as apresentações se estendem por alguns meses (grandes
centros urbanos), noutros reduzem-se a poucos dias (cidades de pequeno e médio porte).
Dada à diversidade dessa dinâmica, a interação entre circenses e pessoas da praça, seja
na escola ou em outras esferas, pode gerar encantamento, amizades, mas também,
desconfortos e, até mesmo, discriminação. A esse respeito, podemos mencionar o dizer
de C1, ao afirmar que “[...] Já aconteceu da gente ter que falar na lei que obriga a
escola a receber o aluno do circo pra diretora matricular o menino [...]”.
Ou C3 quando diz: [...] O povo se surpreendia nas cidades:_ Rolinha num sei quê, você
sabe escrever? _ É lógico que eu sei! Eu estudo[...]
A despeito de nomadismo e da mobilidade que envolve sua trajetória escolar, os
circenses reconhecem, tanto a relevância do letramento propiciado pela escola, quanto o
letramento vernacular. Assim sendo, C1 diz que:
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1165
[...] Os estudos ajudam muito, mas a comunicação visual e oral e todos os
outros como leitura de revistas e jornais, TV, cinema e outros tipos de
comunicação são fundamental e no meu trailer temos todos os tipos de
leitura [...].
Nesse dizer, podemos perceber que os circenses valorizam os conhecimentos
escolares, mas também ressaltam a importância de se vivenciar outras práticas de leitura
e de escrita que ultrapassam o domínio da instituição escolar. Como exemplos disso,
temos os depoimentos de C2 e C3, o primeiro no sétimo ano e o último que já concluiu
o Ensino Médio:
[...] Sempre leio alguma coisa, sabe [...]nem que entra na internet, como
todo mundo entra hoje, eu sempre leio as coisas, eu tenho uma bíblia, a
bíblia das princesinhas, eu tava lendo aí eu viajei, aí eu parei mais de ler,
mas aí eu posso voltar [...]também vou olhando os álbuns aí vou escrevendo
as coisas[...]sempre quando eu viajo, sempre quando eu vejo gibi eu peço
pro meu pai comprar [...] eu gosto da Mônica[...] (C2)
[...] De revista eu nunca gostei de ler, não, livro eu li poucos, só quando a
professora mandava mesmo, sou preguiçoso pra ler [...] pra não dizer que
não tenho livro, tenho quatro ou cinco livros do Evangelho, eu tenho, eu
ganho de presente... eu vou e leio. Só escrevo na internet, eu não curso uma
faculdade, mas, pior que eu estudo, eu estudo do meu jeito, quando eu pego o
notebook, eu pego e começo a pesquisar as coisas, História do Brasil,
história internacional, história de um país, eu boto[...] eu não leio livro, mas
eu leio outras coisa normal, aí eu boto no canal da sky que é falando das
história, história disso, história daquilo, é o history [...].(C3)
Essa realidade propicia ao circense o contato com os mais diversos materiais
escritos, como os mais variados propósitos, seja para se conduzir, se entreter, suprir as
necessidades cotidianas, trabalhar, enfim para conviver em sociedade.
Podemos perceber essa realidade através dos fragmentos das entrevistas
concedidas por C1 e C2:
[...] Meus pais escrevem as cidades por onde passamos, as que foram
melhores, as que foram piores [...] anotam as coisas que vende [...] Meu pai,
minha irmã, também, fazem a programação [...].(C1)
[...] Em toda cidade precisamos do alvará de funcionamento, a licença dos
bombeiro, tá tudo legalizado, tudo direito. A companhia de luz e de água tem
que ter a autorização [...] aí eles vêm ligar[...](C1)
[...] Eu e minha filha participamos de programas de televisão, a gente
também se apresenta em escolas, clubes [..]Aqui, eu, meu pai, e mais outros
fazem a propaganda do circo. As crianças são muito espertas, com a história
e a cultura desenvolvem uma facilidade de se acostumar e se comunicar com
todos [...](C1)
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1166
O circense ver a escrita como instrumento de inclusão social, como percebemos
nas vozes de C2 e C4:
[...] Se um dia não tiver mais o circo eu posso ter outra profissão [...] C2
[...] Eu tô sem estudar agora, mas eu vou voltar, porque eu sei que vou me
comunicar melhor com as outras pessoas [...] C4
O sistema de ensino não concede ao educador a formação continuada necessária.
Sem acesso a essa formação e desmotivado, o professor não atua como um agente de
letramento perante o circense, visto que não procura tomar conhecimento sobre o
letramento escolar, bem como do letramento vernacular desse aluno. Dessa forma, deixa
de promover, de modo satisfatório, o contato desses alunos com os mais diversos textos
advindos das inúmeras situações do cotidiano.
Essa realidade pode ser observada nas vozes dos C1 e C2:
[...] A maior dificuldade é o tempo de permanência dos professores com as
crianças circenses [...] (C1)
[...] Essa é uma das maiores dificuldades, porque tem cidade, pronto , que tá
fazendo prova, só que, por exemplo[...] eu tô aqui, aí aqui tá terminando o
segundo bimestre, aí na outra cidade já tá fazendo uma coisa muito mais
adiantada do terceiro aí essa é uma das maiores dificuldades [...]
A esse respeito é importante ressaltar o que dizem Xavier e Santos (2009) acerca
da situação do circense na escola. Segundo esses autores, o aluno não tem a devida
atenção nem por parte do sistema educacional nem por parte do professor que, por
vezes, relega esse aluno à condição de ouvinte, sob a justificativa de que o circense, face
o curto espaço tempo de permanência na escola, não aprenderá os conteúdos, tampouco
contribuirá para o desenvolvimento geral da turma em que se insere interinamente.
Essa mesma prática homogeneizadora e excludente se repete no tocante ao
processo avaliativo dos alunos. Acerca disso, podemos mencionar a voz de C2 sobre o
processo de aquisição da escrita, da colega circense, que tem 10 anos e está no quinto
ano: [...] assim, ela ainda tá aprendendo a ler [...] mais ou menos [...] com nove anos
ela já sabia muita coisa assim [...].
Conforme observamos, todas as dificuldades enfrentadas pelos alunos no tocante
ao letramento escolar são compartilhadas pelos que constituem a esfera familiar do
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1167
circense. Assim sendo, são esses membros que buscam alternativas para atenuar tais
dificuldades e, consequentemente, melhorar o rendimento desse aluno frente às
demandas apresentadas pela escola. Prova disso, é o dizer de C1, ao declarar: [...] Ajudo
a elas (filhas) a pesquisar na internet o assunto que tem passado, a mãe também ajuda,
aí elas veem em livros, e o que eu sei assim, eu também ajudo [...].
A partir dessa realidade percebemos que, diferente do aluno sedentário que
muitas vezes associa a permanência no ambiente escolar à inserção no mercado de
trabalho, o circense tem motivações relativas à sua eficiência em sobreviver numa
sociedade grafocêntrica. Logo, é necessário que os profissionais do sistema educacional
tenham uma atitude respeitosa a começar pela coordenação pedagógica no acolhimento
ao aluno, na análise de conteúdos trazidos da cidade anterior pelo aluno circense, como
também no apoio nas tarefas de casa. Em sala de aula o professor que procurar interagir
com o circense e valorizar sua cultura também estará contribuindo para um melhor
aproveitamento do letramento desse aluno.
6. Considerações finais
Os estudos de letramento têm nos possibilitado enxergar as particularidades que
envolvem os usos da leitura e da escrita, não especificamente nas esferas institucionais,
mas em todos os demais segmentos que compreendem as atividades humanas.
Nesta investigação, em particular, centramos foco no letramento desenvolvido
na instituição escolar e no ambiente circense, envolvendo o trabalho circense, o lazer, o
cotidiano, e mais precisamente em salas de aula em que se observa a presença de alunos
pertencentes ao mundo circense envoltos por suas especificidades, expectativas e
necessidades, no intuito de compreender como eles são conduzidos em seu processo
ensino aprendizagem.
É possível concluir, a partir dessa pesquisa, que a escola da rede pública de
ensino, em sua maioria, não tem atendido às necessidades do aluno circense quanto à
valorização de suas práticas de letramento, como também não tem dado importância ao
seu conhecimento de mundo e seus aspectos socioculturais.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1168
A nosso ver, parece faltar humanização nas práticas em que os indivíduos
necessitam interagir com o outro; nas relações pessoais, intelectuais, religiosas,
educacionais, entre outras. As relações estão sendo regidas pelo egocentrismo e pelo
capital. Os profissionais não usam nem a razão para nortear suas ações. A cada lapso, a
cada falta de desvelo no trato com o próximo, perdemos a chance de ter um mundo
melhor. É natural e louvável que o educador exija do Estado melhores condições de
trabalho, bons salários e uma formação continuada adequada, porém qualquer professor,
ou profissional da educação, deve pautar-se no sentimento que permeia a relação
educador-aluno: o respeito.
A escola deve comunicar à comunidade escolar, principalmente nas séries em
que há vários professores, sobre a presença do aluno circense. A situação requer um
olhar mais acurado para a visão de mundo desses nômades. Nesse sentido, os agentes
de letramentos, no caso os professores das diversas áreas do conhecimento, podem
suscitar discussões nas quais as vivências dos circenses, possam agregar sentido ou
funcionalidade aos enunciados dos conteúdos estudados.
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Editorial, 2003.
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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1169
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Artigos. ISSN 1982-7199. Programa de Pós–Graduação em Educação. Disponível em
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Nas fronteiras da linguagem ǀ 1170
O ÍCONE METAFÓRICO PEIRCIANO NO POEMA
MORTE E VIDA SEVERINA [Voltar para Sumário]
Janicreis Gomes de Souza (UFPB)
Expedito Ferraz Júnior (UFPB)
A Semiótica, Ciência Geral dos Signos, que estuda os fenômenos culturais a
partir da sistematização sígnica destes, existe, na prática, desde a Idade Média, quando o
referido nome se aplicava a uma disciplina médica. Porém, em inglês, a expressão
Semiótica foi usada pela primeira vez em 1670, por Henry Stubbes, para indicar o ramo
da ciência médica que estudava a interpretação de sinais. Mas foi o norte-americano
Charles Sanders Peirce (1839-1914) quem iniciou os estudos da Semiótica nos EUA
com o objetivo de investigar os fenômenos produtores de significação e de sentido,
ocasião em que recebeu a denominação de Ciência Geral dos Signos. Na Europa, a
ciência que se dedicava ao estudo dos signos recebia o nome de Semiologia. Porém,
apesar de possuírem um objeto comum, Semiótica e Semiologia se distinguem em se
tratando de enfoque e metodologia.
Diferentemente da Semiologia, cujas bases teóricas provêm da Linguística, a
Semiótica parte de um modelo próprio, no qual as categorias se aplicam a todas as
linguagens possíveis, incluindo as artes visuais, a música, a fotografia, a literatura, o
cinema, o vestuário, os gestos, a religião, o teatro, a ciência, entre outras.
Para fins de estudos, a Semiótica se subdivide em três vertentes distintas:
greimasiana, também denominada de semiótica francesa, fundamentada no pensamento
do francês Algirdas Julien Greimas; russa, embasada nos estudos de teóricos como
Mikhail Bakhtin e Yuri Lotman, também denominada de semiótica da cultura e; por
fim, a americana, ou semiótica peirciana, cujo nome recebido se deve à raiz teórica que
a alicerça: Para fins de estudos, a Semiótica se subdivide em três vertentes distintas:
greimasiana, também denominada de semiótica francesa.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1171
O presente trabalho apresenta a análise de alguns aspectos da Semiótica Peirciana
aplicada à Literatura, usando para tal fim o estudo de um fragmento do poema Morte e
Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto: O retirante tem medo de se extraviar
porque seu guia, o Rio Capibaribe, cortou com o verão.
A teoria da semiótica peirciana se pauta no princípio de que tudo que cerca o
homem é interpretado por ele sob três categorias, denominas por Peirce de categorias
universais da percepção: Primeiridade, Secundidade e Terceiridade. A primeira delas é
a consciência imediata do intérprete sobre tudo que está presente. É nesse estágio que
acontece a qualificação do signo em relação a ele próprio (quali-signo), e em relação ao
objeto que representa (ícone). De acordo com o pensamento peirciano, o ícone se
subdivide em três categorias: imagético, diagramático e metafórico; e se caracteriza pela
representação através da reprodução de qualidades do objeto representado. A segunda
categoria é a significação atribuída ao signo, a relação estabelecida em ele mesmo (sin-
signo), e entre o objeto representado (índice). O índice se caracteriza pela representação
através de indícios da existência do objeto representado. Por fim, a Terceiridade, que é a
representação do signo em si mesmo (legi-signo) e em relação ao objeto representado
(símbolo). As representações simbólicas acontecem por meio de regras (individuais ou
coletivas) pré-estabelecidas. Por essa razão, faz-se necessário que o intérprete conheça
essas regras para atribuir significado ao objeto representado; é a representação e
interpretação do mundo por meio da chamada inteligência em signos.
Para que melhor compreendamos as categorias acima mencionadas, vejamos:
uma escultura que representa uma mulher, por exemplo, carrega consigo todas as
características da imagem feminina; essa representação acontece por meio da
reprodução das qualidades do objeto representado. Portanto, trata-se de uma
representação icônica. Um exemplo de índice são as pegadas dos dinossauros, existentes
no Sertão da Paraíba; essas pegadas são indícios que apontam a presença dos referidos
animais naquele local. Alguns signos convencionais, como palavras, frases, livros são
exemplos de símbolos; isso porque estabelecem, por meio de uma regra convencional
preestabelecida socialmente, a relação entre signo e objeto representado. Peirce enfatiza
a importância da experiência colateral do intérprete na produção de semiose1
1 Termo introduzido por Charles Sanders Peirce para designar o processo de significação, a produção de
significados.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1172
Ainda segundo o pensamento peirciano (2010), o signo é composto por três
partes essenciais: representâmen, objeto e interpretante, sendo esta última o resultado
que lhe é atribuído por parte do intérprete “o signo não pode exprimir, ele pode apenas
indicar, deixando ao intérprete a tarefa de descobri-lo por experiência colateral” (Peirce,
2010, p. 168). Com base nessas informações, compreendemos que atribuição de
significados acontece de acordo com o contexto sociocultural no qual esse intérprete
está inserido, ou seja, que a produção de significados e determinada pela cultura.
Peirce argumenta que a cognição nunca se origina em si mesma, mas em outra.
Em síntese, a percepção do sujeito em relação ao mundo que o cerca não acontece de
dentro para fora, mas de fora para dentro de sua consciência. Isso significa que não é
esse sujeito quem determina os fatos e fenômenos que estão ao seu redor, pois esses já
existem previamente, a ele cabe a tarefa de atribuir-lhes os devidos significados.
No livro O método anticartesiano de C. S. Peirce (2004), Lúcia Santaella faz
um estudo detalhado sobre o pensamento de Peirce a respeito dos signos e das
categorias fenomenológicas universais, denominadas por ele de primeiridade,
secundidade e terceiridade. Segundo Santaella, essa são constituídas por três
elementos essenciais: qualidade, relação e representação.
Após conceber suas categorias universais, Peirce enveredou no campo da
“metodologia filosófica, colocando a hegemônica herança cartesiana sob interrogação.”
(Santaella, 2004, p. 31), lançando-se contrário ao conceito de intuição de René
Descartes. O cartesianismo defendia a ideia de que toda a construção do conhecimento,
pelo homem, resultava da intuição.
Ainda de acordo com o que nos revela Santaella, em conformidade com o
pensamento peirciano, a interpretação desses signos depende exclusivamente do
processo inferencial ocorrido na por parte do indivíduo, o qual acontece por meio da
cognição. A autora acrescenta que para atribuir significado(s) a um signo o intérprete
sempre cria outro signo. É a chamada semiose ilimitada. A autora afirma ainda que o
mundo é todo constituído por signos; que o próprio homem é um signo. Portanto, ele em
si está incluído no processo inferencial cognitivo de interpretação e atribuição de
significados.
De acordo com Expedito Ferraz Junior, no livro intitulado Semiótica Aplicada à
linguagem literária (2012), as representações sígnicas podem formar a construção de
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1173
ícones metafóricos. Isso acontece em “uma situação de linguagem em que dois signos
que, a princípio, teriam objetos distintos podem equiparar-se semioticamente” (Ferraz
Júnior, 2012, p. 71). O artigo intitulado A Leitura do Texto Literário: uma abordagem
Semiótica (2012), do mesmo autor, apresenta um estudo relacionado às categorias
icônicas, incluindo o ícone metafórico. De acordo com o referido texto ( p. 77):
O signo icônico metafórico, como definido por Peirce, pode ser entendido
como uma representação de um paralelismo (ou seja, de uma equivalência
semiótica) que induz ao reconhecimento de uma qualidade comum entre dois
signos — qualidade que permitiria a ambos representar um mesmo objeto.
Diferentemente das imagens, cujas relações signo-objeto devem produzir
interpretações inequívocas, as metáforas implicam uma necessária
ambivalência representativa.
Ainda de acordo com o texto de Expedito, o ícone metafórico está muito além
dos “limites código linguístico” (Feraz Júnior, 2012, P.71). Isso significa que a
linguagem verbal é apenas uma das diversas facetas que envolvem a metáfora, uma vez
que esta ultima está presente em tudo que envolve o homem, o intérprete dos signos.
Segundo ele, é nas imagens que se concentram muitos dos processos semióticos que
resultam na construção da metáfora.
Winfriend Nöth, No livro Panorama da Semiótica – de Platão a Peirce (2003)
explica detalhadamente cada uma das três categorias universais, mencionadas
anteriormente no texto de Santaella, bem como, o funcionamento da tricotomia do signo
peirciano. O autor aborda em seu livro a teoria de Peirce sobre o processo de
interpretação dos signos e produção de semiose. Segundo Nöth, não é o signo o
responsável pela produção de significados, e sim o intérprete, que o realiza através de
um processo cognitivo que permite a este último fazer inferências relacionadas ao signo,
propiciando-lhe as condições necessárias para interpretá-lo.
Existe ainda outro trabalho de Expedito Ferraz Júnior, publicado em 2011 no
site: http://www.fflch.usp.br/dl/semiotica/es. O artigo é intitulado O conceito peirceano
de metáfora e suas interpretações: limites do verbocentrismo, e aborda exclusivamente
as representações de natureza icônica metafórica. De acordo com o texto, a tríade
icônica se subdivide em três hipoícones, denominados de imagem, diagrama e
metáfora. Segundo o autor, o conceito peirciano de metáfora transcende a ideia
aristotélica de que esta se limita ao domínio da linguagem verbal, embora esta última
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1174
seja de suma importância no processo das equiparações paralelas que constituem a
metáfora.
Analisamos o fragmento do poema de João Cabral de Melo Neto, Morte e Vida
Severina, buscando compreender como a teoria da percepção peirciana se faz presente
no texto, enfocando a construção do ícone metafórico a partir da perspectiva do
intérprete. Concentraremos nosso estudo nas relações de sentido estabelecidas entre os
signos que representam mais de um objeto e suas possíveis nuances representativas, ou
seja, analisamos como acontecem as relações paralelas que possibilitam a construção do
ícone metafórico, tomando como princípio a linha de raciocínio peirciano que afirma “o
signo não pode exprimir, ele pode apenas indicar, deixando ao intérprete a tarefa de
descobri-lo por experiência colateral” (Peirce, 2010, p. 168).
Análise:
O retirante tem medo de se extraviar porque seu guia, o Rio Capibaribe, cortou com o
verão
Considerando o intérprete como principal responsável pela construção de significados,
podemos dizer que um signo linguístico pode carregar em sua essência diversas
possibilidades de interpretação, que podem assumir a forma de outro signo linguístico
ou de um signo não-verbal. Assim sendo, a representação simbólica (determinado por
regra de convenção) pode se transformar, através de um processo cognitivo
desenvolvido por parte do intérprete, em representação icônica (determinada por
semelhança), e dentro dessa iconicidade ocorrer a representação da metáfora, uma
subcategoria do ícone.
Para compreendermos melhor o processo cognitivo capaz de metamorfosear o
signo verbal (simbólico) em signo não-verbal (icônico) e transformar os dois modos de
representação em metáfora, analisamos o fragmento abaixo:
- Antes de sair de casa
aprendi a ladainha
das vilas que vou passar
na minha longa descida.
Sei que há muitas vilas grandes,
cidades que elas são ditas;
Sei que há simples arruados,
sei que há vilas pequeninas,
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1175
todas formando um rosário,
cujas contas fossem vilas,
todas formando um rosário
de que a estrada fosse a linha.
Devo seguir tal rosário
até o mar onde termina,
saltando de conta em conta,
passando de vila em vila.
(Melo Neto, 2007, p. 97-98)
http://contracenario.wordpr
ess.com/2013/09/04/morte-e-vida-severina-na-final-do-japan-prize/
Acima, temos duas maneiras distintas de representação do ícone metafórico: a
primeira acontece através dos versos escritos, ou seja, da representação por meio dos
signos verbais, a qual se materializa por meio da impertinência entre signo
representativo e objeto(s) representado(s). Isso significa que, simbolicamente, ou seja,
por regra de convenção, não há como povoados, vilas e/ou cidades formarem um
rosário. Cabe ao intérprete a tarefa de analisar as características (físicas e/ou funcionais)
desse objeto e emparelhá-las semioticamente a outros objetos, que possuam em comum
com o primeiro pelo menos uma características.
Já na figura, temos uma representação metafórica por meio da imagem. Trata-se
de uma ilustração do mesmo conteúdo expresso pelos versos escritos, ou signos
linguísticos, analisados anteriormente. Observamos que, da mesma forma que a
primeira, esta última requer do intérprete todo um alicerce colateral para fazer sentido;
é ele quem deve processar cognitivamente, embasado em seu conhecimento sígnico
prévio, as informações contidas na imagem e construir seus próprios significados sobre
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1176
o que está visualizando, até chegar à conclusão sobre o objeto que está sendo
representado.
Observamos que, na imagem, o personagem tem nas mãos um objeto cuja aparência se
assemelha a um rosário. Para chegarmos a essa conclusão, realizamos uma reflexão
sobre o objeto rosário e suas diversas possibilidades de interpretação. Inicialmente, na
condição de intérpretes, consideramos a função desse objeto no contexto religioso do
catolicismo. Trata-se de um objeto cujas contas são utilizadas como uma espécie de
ábaco, para contar e classificar as orações que são rezadas para cumprimento do ritual
do terço. Observando a imagem analisada, percebemos que metade dos elementos que
constituem o rosário é formada por contas e a outra metade por representações de casas.
Esse conjunto de casas representa cada povoado, vila, cidade por onde Severino
(personagem do poema) deve passar até seu destino final, a cidade do Recife.
Ainda considerado as crenças católicas, o rosário representa a submissão do fiel
a uma penitência, cujo término representa remissão dos pecados, a libertação do mal.
Nos versos escritos, Severino afirma que deve “seguir tal rosário até o mar onde
termina”. A metáfora se constitui quando o personagem coloca sua viagem na mesma
condição do rosário. Ou seja, se a penitência acaba ao término das contas deste último, o
sofrimento do personagem também cessaria com a chegada ao Litoral.
Para associamos as qualidades comuns entre os objetos representados por
rosário e o Rio Capibaribe, tomamos como ponto de partida a visão de mundo do
personagem: no sentido convencional, sabe-se que o primeiro objeto é utilizado como
guia para conduzir o fiel católico que reza terço, no sentido de não permitir que este se
perca na quantidade de orações declamadas. Conhecedor dessa informação, o
personagem se refere ao Capibaribe, atribuindo-lhe a mesma função do rosário. Essa
comparação gera cognitivamente no intérprete a imagem do primeiro objeto e suas
características comuns em relação ao segundo.
Considerando o contexto semântico da viagem, sabe-se que o objeto rosário não
se aplicaria a ele, a princípio. Cabe ao intérprete abstrair as características comuns entre
os dois rio e rosário, e as transformar em uma única qualidade, a de guia; ou seja, do
mesmo modo que o rosário conduz o fiel, o Rio conduz Severino até Litoral de
Pernambuco. A partir do instante em que rio e rosário se fundem em um único signo
graças à junção por parte do intérprete da qualidade comum entre eles, deixam de ser
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1177
comparados, isto é, deixam a condição de dois signos distintos com objetos também
distintos e se tornam signos equivalentes para um mesmo objeto (os dois representam
um guia). Essa fusão culmina no surgimento de um único signo, denominado de
metáfora.
O gráfico abaixo, contido no artigo intitulado O conceito peirciano de metáfora
e suas interpretações: limites do verbocentrismo (Ferraz Jr., 2011, p. 73) ilustra o
processo das representações paralelas que resultam na junção qualitativa que dá origem
à metáfora. Vejamos: inicialmente temos dois signos (S1 e S2) e dois objetos (O1 e O2),
um signo para representar cada objeto; em seguida, observamos que esses objetos
possuem alguma qualidade (uma ou mais) em comum; essa qualidade, mesmo não
sendo evidente, é parte dos conceitos (I1 e I2) que formamos anteriormente sobre esses
objetos. O fato de os dois objetos possuírem essa qualidade comum possibilita-lhes as
condições necessárias para que qualquer um dos dois signos possa representá-los,
resultando na construção da metáfora. Portanto, o signo icônico metafórico é o resultado
da qualidade comum existente entre dois objetos distintos.
http://www.fflch.usp.br/dl/semiotica/es/eSSe72/2011esse72_eferrazjr.pdf
Com base nas teorias estudadas e na análise do fragmento do poema Morte e
Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, observamos que o texto evidenciado neste
trabalho apresenta diversos signos que podem ser reconhecidos como ícones
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1178
metafóricos. Isso acontece graças às qualidades comuns existentes entre dois ou mais
dos objetos representados por estes signos, o que possibilita ao intérprete relacioná-las
paralelamente e concluir que um signo pode estar representando mais de um objeto,
assim como dois ou mais signos podem representar um único objeto.
Constatamos ainda que as convenções simbólicas adquiridas pelos falantes da
Língua Portuguesa Brasileira, assim como a experiência colateral acumulada pelos
intérpretes hipotéticos, leitores virtuais de Morte e Vida Severina, propiciam-lhes as
condições necessárias para estabelecerem as relações de paralelismo entre as qualidades
comuns dos objetos representados e suas relações com os signos que os representam.
Referências
PEIRCE, Charles Sandrs. Semiótica; [trad. José Teixeira Coelho Netto]. 4 ed. São
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Nas fronteiras da linguagem ǀ 1180
A CONCEPÇÃO DIALÓGICA DA LINGUAGEM E O
DISCURSO PEDAGÓGICO DO PROFESSOR: UMA AULA
MAGNA DE ARIANO SUASSUNA [Voltar para Sumário]
Janielly Santos de Vasconcelos(UFPB)
1 Considerações iniciais
No que se refere ao ensino de língua portuguesa em se tratando das questões de
linguagem é imprescindível que a discursividade linguageira se sobressaia sobre o
ensino das formas linguísticas. Dessa forma interligada à concepção de linguagem, a
prática do professor de língua portuguesa deve ser baseada natríade discursiva da teoria
dialógica: o diálogo, a interação e a enunciação, ambos assim contribuindo para a
construção de sentidos.
Ao adotar a visão da linguagem como lugar de interação, a teoria dialógica da
linguagem representada pelos ideais teóricos de Bakhtin e o círculo nos leva a refletir
que a sala de aula é por excelência um lugar privilegiado de interação social e de
construção de conhecimento. Um fator recorrente e importante como motivação para os
estudos sobre linguagem/ensino é que no âmago desses estudos não é enfatizado a
atenção ao discurso pedagógico do professor e este muitas vezes não tem conhecimento
de tal noção como sendo um mecanismo constitutivo de sua prática para construção de
novos sentidos, aprendizagens e conhecimentos.
O ponto de partida para a constituição do processo interativo do ensino que
compete para instituir estratégias discursivas está no discurso pedagógico.
Considerando-se o caráter dialógico, dialético e ideológico da linguagem é possível
questionar os aspectos didáticos do professor, evidenciando os movimentos
constitutivos da relação sujeito/linguagem que produzem, a partir de tais compreensões,
as múltiplas aprendizagens.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1181
Compreendemos o discurso pedagógico como sendo plural, e não restrito apenas
ao contexto escolar, sob a noção de que se deve ter na linguagem, como discorrem
Bakhtin/ Volochínov (1981), o fruto das relações do eu com o outro e, portanto, o outro
exercendo papel fundamental nesse processo.
Entendemos a discursividade como característica essencial para compreensão da
concepção de linguagem proposta por Bakhtin e o Círculo, trazemos como
procedimento metodológico o estudo da pesquisa bibliográfica da teoria de alguns
autores que consideramos relevantes em abordar os conceitos e concepções tratados ao
longo deste trabalho. São eles: Bakhtin (1979), Bakhtin/Volochínov (1981), Sobral
(2009), Fiorin( 2006) entre outros, bem como o autor-chave do nosso corpusde estudo,
Suassuna (2007).
Ainda que não perceba, o professor norteia sua prática em sala de aula, mediante
o uso de uma concepção de linguagem que pode valorizar as questões discursivas
envolvendo leitura, escrita e oralidade quanto às questões puramente linguísticas. Assim
torna-se exequível um processo de ensino e aprendizagem que compreenda a
possibilidade da relação sujeito/sujeitos, em que esses possam interagir proporcionando
novos espaços de significações.
2 Reflexões teóricas
A linguagem assume sua essencialidade no contexto educacional,
proporcionando aos sujeitos historicamente construídos, professor/aluno, habilidades e
competências que resultam na ação de atribuir significados às discussões, práticas e
formações no ambiente, por excelência interativo, que é a sala de aula. Desse modo, a
aprendizagem é tida como a internalização das interações realizadas no plano social,
sendo as interações compreendidas em seus discursos peculiares e contraditórios.
Como bem se observa, a marca de um processo de interação entre sujeitos é a
determinação do diálogo, dado que a palavra comporta duas faces, ou seja, parte de
alguém e procede, destina-se a outro alguém. Ao considerar que as condições de
enunciação arquitetam e concebem o sentido do enunciado, entende-se que este sentido
distribui-se em vozes que povoam o tecido da linguagem.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1182
O diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui, é claro, senão uma das
formas, é verdade que das mais importantes, da interação verbal. Mas pode-
se compreender a palavra “diálogo” num sentido amplo, isto é, não apenas
como a comunicação em voz alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda
comunicação verbal, de qualquer tipo que seja. (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV,
1981 p.123)
Como resultante da relação com o outro a linguagem se constitui como produto
social. Sobre a definição do diálogo é preciso compreender que definir linguagem como
interação requer necessariamente a observação de que a verdadeira substância da língua
não reside num sistema único e objetivo nem é recuperada pelo individualismo,
fundamenta-se a enunciação como “o produto da interação de dois indivíduos
socialmente organizados” BAKHTIN/VOLOCHÍNOV (1981 p.112), é um fenômeno
social, portanto fora do contexto sócio-ideológico ela não existe.
O princípio dialógico é eleito por Bakhtin como sendo seu objeto de estudo.
Ainda segundo Bakhtin (1963) a vida é dialógica por natureza, viver significa participar
de um diálogo. Tal princípio é característica imprescindível da linguagem permitindo-
nos observar esta, como lugar de retomada do sujeito histórico, social e discursivo; e
entendendo-a como lugar de interação. Trazendo junto a essa temática a noção do
enunciado, e compreendendo-o como sendo produzido de alguém para alguém, resume-
se que o discurso não é apontado como fala ímpar, singular e individual, mas pautado
nas relações dialógicas que são compostas por vozes que perpassam as enunciações.
Assim como descrição maior do conceito de dialogismo apreende-se a reflexão de que:
Não existe a primeira nem a última palavra, e não há limites para o contexto
dialógico (este se estende ao passado sem limites e ao futuro sem limites).
Nem os sentidos do passado, isto é, nascidos no diálogo dos séculos
passados, podem jamais ser estáveis (concluídos, acabados de uma vez por
todas): eles sempre irão mudar (renovando-se) no processo de
desenvolvimento subseqüente, futuro do diálogo. (BAKHTIN, 2003, p.410)
Adotando esta visão de que o diálogo é inconcluso, infinito e infindável em que
os sentidos não se delimitam e nem acabam, denota-se a ele as características de
pluralidade, multiplicidade, e recriação de sentidos. Alguns estudos em torno da obra de
Bakhtin, arespeito do dialogismo, escolhem por dividi-lo sob duas formas: a primeiro
embasado na fundamentação da linguagem que é a interação, adotando o diálogo entre
interlocutores e o segundo fundamentado na noção de vozes constituintes do discurso,
ou seja, que baseia-se na polifonia determinada das relações entre discursos.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1183
Entendemos que o discurso pedagógico está articulado junto à escola, e que
todas as vozes dos que compõem a escola devem ser ouvidas. Cabe ao professor o papel
de fundamental importância: propiciar a interação na sala de aula, com resgates e
diálogos entre os sujeitos historicamente sociais.
O termo discurso carrega consigo pluralidade, o que o faz ocupar lugares e
posições nos estudos científicos, literários e linguísticos. Seus sentidos são produzidos,
significados, contextualizados consoante a provocação do enunciador. Bakhtin (2003)
concebe o discurso como um fato concreto, muito complexo e multifacetado,
notabilizado pela interação entre o eu e o outro, uma vez que linguagem e sujeito, em
um processo de análise, são inseparáveis.
Dessa forma é que o discurso sempre é levado dialogicamente ao discurso do
outro. Contudo, consideramos o discurso como sendo resultante das relações sociais,
linguísticas, ideológicos e culturais definido na interação, construído por vozes e pela
incompletude, e sua face interpretativa varia de acordo com as posições dos sujeitos
sociais que interpelam esses discursos. O discurso pedagógico, segundo Freitas e
Sampaio (2013) é aquele que se usa para provocar os processos de ensino e
aprendizagem. Vemos que neste discurso o tema da educação é abrangente e suscita
diversas reflexões sobre conceitos e práticas.
Sendo o discurso pedagógico não restrito apenas a disciplinas e a escola, não se
pode declarar que este é um retrato da realidade sem antes considerar a pluralidade que
lhe deveria ser atribuído. Assim, situamos o discurso pedagógico como um instrumento
que suscita sentidos quando propomos relações entre ideologias e práticas em sala de
aula. Antecedendo o estudo do gênero, entender a linguagem como esfera maior no
movimento de análise e reflexão é essencial.
Antecedendo o estudo do gênero, o entendimento da linguagem como esfera
maior no movimento de análise e reflexão é essencial, posteriormente, denotar
importância a contextualização do discurso pedagógico vem como fator determinante
para a compreensão do que se constituíra como nosso corpus base de pesquisa, a Aula
Magna (2007) de Ariano Suassuna.
3 Contextualização e proposta de análise
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1184
Grande ícone da cultura e literatura brasileira nordestina, dramaturgo, poeta e
romancista, Ariano Suassuna
Ariano Vilar Suassuna nasceu em Nossa Senhora das Neves, hoje João
Pessoa (PB), em 16 de junho de 1927 e faleceu em 23 de julho de 2014 aos
oitenta e sete anos, filho de Cássia Villar e João Suassuna. A partir de 1942
passou a viver no Recife, onde terminou, em 1945, os estudos secundários no
Ginásio Pernambucano e no Colégio Osvaldo Cruz. No ano seguinte iniciou a
Faculdade de Direito, onde conheceu Hermilo Borba Filho. E, junto com ele,
fundou o Teatro do Estudante de Pernambuco. Era o sexto ocupante da
Cadeira nº 32 da Academia Brasileira de Letras. Eleito em 3 de agosto de
1989, na sucessão de Genolino Amado e recebido em 9 de agosto de 1990
pelo Acadêmico Marcos Vinicios Vilaça.( Academia Brasileira de Letras)
O grande Ariano Suassuna sempre concebeu um ideal de luta e reflexões sobre a
educação brasileira e sobre a cultura popular, que é nosso patrimônio imaterial.
Dramaturgo de várias criações trazia em seu universo uma representação do Movimento
Armorial1 que exaltava a união da erudição através da cultura popular nordestina com
aluta pela valorização da identidade cultural nordestina.
Sob a influência da cultura oral, elemento constante na maioria de suas obras,
Ariano Suassuna, sempre se expressou através de suas aulas-espetáculos, colocando-se
como professor, escritor, artista, dramaturgo, teatrólogo e romancista.
Em suas várias Aulas Magnas, Ariano Suassuna deleitou-se em memórias e
habilidades em diferentes vertentes da arte, seja na escrita refletindo a oralidade, seja no
teatro respaldando críticas e sentidos.
Abordando minimamente alguns conceitos bakhtinianos, construímos nossa
proposta de análise relacionando o estudo de uma conferência que se encerra sob o
gênero discursivo conferência, a Aula Magna (2007), juntamente com a valorização do
discurso pedagógico do professor, aqui representado pelas ideias e proposições de
Ariano Suassuna que proferiu tal conferência.
Os conceitos desenvolvidos anteriormente embasam análises e observações
sobre os discursos realizados em forma de textos, e sabendo-se que a compreensão é
uma forma de diálogo assim como afirmam Bakhtin/ Volochínov (1981), observamos
1O Movimento Armorial, fundado em 18 de outubro de 1970 se alinha com os demais movimentos
artísticos brasileiros pela busca de uma arte erudita que plasme a nossa identidade cultural.Fonte:
http://entretenimento.uol.com.br/noticias/redacao/2014/07/24/sertao-fantasioso-e-colorido-foi-maior-
contribuicao-de-suassuna-as-letras.htm Acesso em 24/07/2014
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1185
que interligado ao entendimento dos modos sociais de fazer está o aprendizado dos
modos sociais do dizer,assim realizados em gêneros discursivos.
No movimento de análise, sob a contextualização do discurso pedagógico, a
constituição do fazer pedagógico dialógico a partir da Aula Magna de Ariano Suassuna
se dá pelas formas em posições que este autor assume ao proferir sua conferência. O
professor deve eleger o caráter da discursividade como elemento chave para
estruturação de suas aulas, deve entender a educação sob o caráter discursivo que vai
além dos horizontes dados pelas teorias e como tal, deve saber articular, assim como
Ariano Suassuna em sua conferência, saberes e relações sociais. Não deve eleger
categorias mecânicas para entender os textos. Deve, contudo, conceber formas de
propagar o aspecto dialógico da linguagem. Ele precisa considerar asformas de visão
sobre o mundo, trazerconsigoo diálogo e a interação,validando e valorando seu discurso
pedagógico.
Sob a contextualização do gênero conferência, refletimos inicialmente os ideiais
de Bakhtin (2010) em Para uma filosofia do ato responsável. Ele constrói a noção de
arquitetônica como norte para as análises de objetos verbo-visuais. Sobre essa noção
compreende-se que uma sequência de análise deve identificar objetos e sentidos
constitutivos.
Relacionando estrutura e conteúdo, entendemos que os gêneros discursivos
significam e se constroem em sentidos quando o leitor entende o contexto de produção
de determinado gênero. Para a orientação de análises teórico-metodológicas, à luz da
teoria bakhtiniana, recortamos aspectos gerais para análise de enunciados e criamos uma
espécie de esquema analítico para os gêneros discursivos em geral:
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1186
Fonte e organização: Janielly Santos (02/07/2014)
Sobre o aspecto da caracterização, remetemo-nos a teoria do gênero proposta por
Bakhtin, através de três pontos caracterizadores do gênero: a estrutura composicional, o
conteúdo temático e o estilo. Sobre a contextualização reportamo-nos a situar o gênero
estudado conforme a esfera discursiva (elemento situacional maior), o discurso
específico em que o gênero está situado, (pedagógico, religioso, político, etc.) e a
determinação do gênero discursivo a ser analisado. A respeito do propósito enunciativo
sugerem-se as análises de elementos construtores do sentido do gênero, através da
observação das situações de interação, da localização do horizonte enunciativo e
explicitação de alguns elementos linguísticos e semânticos que colaboram para
construção dos enunciados. Por último, propomos a análise das relações enunciativas,
tal processo demarca e caracteriza a abordagem dialógica do gênero através
movimentos dialógicos presentes no gênero estudado.
Para iniciar o movimento de análise da conferência Aula Magna (2007) neste
artigo, é preciso ressaltar que traremos aqui apenas um recorte, isso porque tais análises
corroboraram em longas reflexões e delimitações a respeito da estrutura e constituição
de um gênero discursivo
Trazemos a caracterização como primeiro elemento analítico. A estrutura
composicional que é demarcada por: abertura, exposição temática e encerramento no
próprio texto. O conteúdo temático que o autor sempre traz em suas obras e em suas
aulas-espetáculo é reflexivo e comumente refere-se à cultura nordestina brasileira
revelada em sua arte e artistas. O estilo consagrado como sendo motivador é o traço
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1187
diferencial de Ariano Suassuna com relação a outros autores que discorrem sobre a
identidade cultural e a formação brasileira através da literatura. Os elementos
linguísticos selecionados pelo autor permitem-nos a observar a linguagem de um “Dom-
Quixote contemporâneo”, que utiliza sua língua para defender, criticar, enfrentar
dilemas e expor suas opiniões.
Sobre a contextualização da análise, delimitada na esfera Acadêmica, a
conferência foi realizada em um auditório na UFPB em comemoração a inauguração do
Fórum Acadêmico desta mesma instituição em 1992. Sob o gênero discursivo
conferência, observa-se que a estrutura deste gênero, se adéqua de acordo com o seu
desenvolvimento às estruturas previamente planejadas ou de caráter livre, conforme o
conferencista, em outras palavras, a estrutura existe como norte para realização de uma
conferência, o que não significa que esta, não possa seguir outra forma de organização.
A aula selecionada situa-se no discurso acadêmico, tem características pedagógico-
educacionais que contribuem direta ou indiretamente com o processo de ensino e
aprendizagem de determinado tema.
A Aula Magna em questão, por ser uma das primeiras conferências realizadas
por Ariano Suassuna, traz à superfície diferentes materialidades linguísticas, históricas e
ideológicas no que respeita à temática universal adotada pelo autor em toda a sua
bagagem de produção artístico-literária: a exaltação do Nordeste elevando elementos
culturais considerados eruditos frente à cultura nacional elitista.
Na análise o denominado propósito enunciativo, que expõe no primeiro
momento uma análise das situações sociais e das esferas de interação, destaca na Aula
Magna as situações sociais, os tipos de interação que acontecem no decorrer do texto, os
horizontes enunciativos e as materialidades linguísticas que constituem o estilo
empregado pelo autor. Dessa forma categoricamente vemos que em geral o propósito
enunciativo do autor é falar sobre o “problema da cultura brasileira” Suassuna (2007, p.
21).
Os valores exaltados no discurso de Ariano Suassuna remontam uma sociedade
de cultura, que reage ao material e valorizam a história. Esse autor traz realidades
imagéticas dos espaços que levam o seu auditório e seu leitor a refletirem a respeito da
valorização e sobreposição de um olhar diferenciado sobre a criação popular.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1188
As materialidades linguístico semânticas da aula em estudo são determinadas a
partir da observação daquilo que é recorrente no gênero discursivo, na linguagem do
autor, como sendo mais estável e visível estruturalmente no movimento de análise.
Reportando-se a outros discursos (orais e imagéticos), o autor nos leva a refletir a
respeito da orientação dialógica do discurso refletida na noção de um interdiscurso.
Finalizando, conforme o esquema desenvolvido, denominamos o movimento de
análise de relações enunciativas. Os enunciados do autor são essencialmente dialógicos
em que a situação social de interação e a compreensão por parte dos interlocutores
definem o sentido do discurso.
Considerações Finais
Para que o processo de ensino aprendizagem de Língua Portuguesa se concretize
é necessário que ambos os sujeitos envolvidos neste processo assumam posições
ideológicas e de responsividade na construção do conhecimento. O ensino e
aprendizagem de Língua Portuguesa embasados na interação implicam primeiramente,
no ato de entender a língua situando o seu uso concreto nas interações, resultando em
enunciados que se adéquam a diversos contextos sociais através das enunciações. A
saber, que outra forma de uso é entender a língua sob suas características estruturais.
O que se observa em sala de aula é o papel marcado do aluno e do professor e o
diálogo em igualdade não acontece entre o professor e o aluno, em que o segundo
aprende se puder, esquecendo que a sala de aula é um contexto social propício para as
trocas entre sujeitos (eu/tu). Assim, o entendimento da concepção dialógica da
linguagem relacionando diálogo e interação entre os sujeitos escolares é o próprio
princípio constitutivo do social e da vida.
A prática do professor de Língua Portuguesa deve ser ressiginificada,
possibilitando responsividade aos alunos/sujeitos. Entendendo a linguagem como
mecanismo fundamentador de sua prática o professor deve modificar o processo de
ensino e aprendizagem da língua para que este proporcione a interação dialógica como
elemento infinito de possibilidades revelando novas formas de significar a Língua
Portuguesa.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1189
A Aula Magna de Ariano Suassuna (2007) serviu como pontapé para o
entendimento de que o professor mantém uma relação de interação com a palavra, não
se apropria nem a torna individual, nem a entrega totalmente ao seu falante. Ariano
suscita, para o professor de Língua Portuguesa, a noção de que se deve repensar o
ensino de língua a partir de uma visão que considere a linguagem e suas diferentes
possibilidades de uso, em outros contextos, gêneros e em outras línguas, sendo este
ensino bastante claro a respeito dos objetos de comunicação discursiva, escolhas
linguísticase dos processos de produções de gêneros.
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Nas fronteiras da linguagem ǀ 1190
PRODUÇÃO DE CHAMADAS TELEVISIVAS: O ENSINO
DA ESCRITA NUMA PERSPECTIVA PROCESSUAL 1
[Voltar para Sumário]
Jária Suéldes Alves de Lima (UFRN)
Introdução
Há tempos que o ensino da Língua Portuguesa como língua materna vem sendo
foco de estudos e discussões, principalmente quando se almeja alcançar objetivos
constitutivos da educação do país: “Toda educação comprometida com o exercício da
cidadania precisa criar condições para que o aluno possa desenvolver sua competência
discursiva” (BRASIL, 2001, p. 23).
Portanto, ao lecionar aulas de Português o objetivo de ensino e as práticas
pedagógicas desenvolvidas são inevitavelmente postos em discussão, principalmente,
por se observar que muitos dos alunos chegam à etapa final de sua formação básica e
não se tem consolidada a sua competência comunicativa, ou seja, demonstram domínio
precário quanto ao ato de ler, compreender e produzir textos.
Inserido numa sociedade extremamente competitiva e tecnológica, o indivíduo
dispõe da língua(gem) como importante ferramenta para ser ouvido, agir e interagir
nesse meio. Portanto, saber produzir e compreender bons textos não se configura apenas
numa necessidade de formação acadêmica do indivíduo, mas sim, de um importante
componente de condição de inserção social e, consequentemente, de cidadania, como
afirma Soares (2013):
[...] Em síntese: não há, em sociedades grafocêntricas, possibilidade de
cidadania sem o amplo acesso de todos à leitura e à escrita, quer em seu papel
funcional ─ como instrumentos imprescindíveis à vida social, política e
profissional ─ quer em seu uso cultural ─ como forma de prazer e de lazer.
[...] Justifica-se, assim, a afirmação de que a alfabetização é um instrumento
1 As reflexões aqui apresentadas integram a pesquisa “Projetos de letramento: implicações para o
aprimoramento da competência comunicativa do aluno (9º ano / ensino fundamental)” cuja geração de
dados ocorreu no período de abril a dezembro de 2014.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1191
na luta pela conquista da cidadania, e é fator imprescindível, filiando-se ao
exercício da cidadania (SOARES, 2013, p. 58-59).
Sendo assim, o ensino da Língua Materna (LM) deve propiciar ao sujeito
atividades significativas que, de fato, possam desenvolver as competências e habilidades
necessárias do indivíduo para o uso efetivo e satisfatório da língua frente às suas
necessidades em diferentes contextos de comunicação.
Para Travaglia (2001) o ensino da língua materna justifica-se pelo
desenvolvimento da competência comunicativa dos usuários da língua e que esta
competência, por sua vez, envolve duas outras: a gramatical e a textual2. Ambas,
extremamente necessárias ao desenvolvimento comunicativo do indivíduo.
Nessa perspectiva, compete à escola e aos professores – não apenas os de Língua
Portuguesa (LP) − buscar meios, estratégias e, principalmente, aportes teóricos que
sustentem e orientem a prática pedagógica, a fim de se atingir metas relevantes no
contexto educacional, dentre elas, auxiliar os alunos nessa dificuldade de produção e
compreensão de bons textos.
Portanto, frente a essa discussão, o presente estudo se propôs a investigar o
desenvolvimento da prática processual da escrita em sala de aula a fim de analisar
algumas de suas implicações na competência comunicativa dos alunos.
2 Abordagem teórica-metodológica
Em termos metodológicos, esta é uma investigação qualitativa, uma vez que sua
produção se deu pela inserção do pesquisador no ambiente de pesquisa, com dados
coletados através de produção de textos, de fotos e gravação de vídeo [chamadas].
Quanto a essa abordagem de pesquisa, Moreira; Calleffe (2006) diz que a investigação
explora verbalmente as características dos indivíduos e cenários, cujos dados são
coletados através de observações, descrições e gravações e não podem ser descritos
numericamente.
Contudo, a primeira ação realizada foi a leitura bibliográfica dos fundamentos
teóricos quanto à escrita processual e colaborativa e os estudos de Letramento, com
2 A gramatical ou linguística refere-se à capacidade de gerar sequências linguísticas gramaticais. Já a
textual configura-se na capacidade do indivíduo de produzir e compreender textos nas mais diversas
situações de comunicação.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1192
ênfase nas práticas pedagógicas no ensino da Língua Portuguesa. Em seguida, após as
discussões e trabalho desenvolvido com o tema corrupção, aplicou-se a atividade de
produção do gênero chamada, destacando sua funcionalidade e relevância social.
Por fim, efetivou-se a análise dos dados, tomando-se por base o seguinte
referencial teórico OLIVEIRA, TINOCO, SANTOS (2011), no qual explicita objetivos
claros quanto à escrita nos âmbitos de um Projeto de Letramento; PAZ (2010) à luz de
Hayes e Flower (1980;1986); PASSARELLI (2004) com as etapas que compõem o
processo de construção da escrita e o feedback colaborativo proposto por SOARES
(2009) entre aluno e professor e entre aluno e aluno. Além disso, traz como teórico
central na discussão de gêneros BAKHTIN ([1992] 2011).
Dessa forma, buscou-se construir um corpus para análise com o objetivo de
descrever as etapas da produção textual, levando em consideração a formulação
sequencial do texto, a participação dos envolvidos e a contribuição desta prática na
construção da competência comunicativa dos alunos participantes desta pesquisa. Além
de propiciar aos estudantes a oportunidade de melhoria na escrita e uma aprendizagem
mais significativa e reflexiva quanto ao uso da Língua Portuguesa3.
O grupo de colaboradores envolvidos nesta pesquisa trata-se de uma turma de 9º
ano, de uma escola da rede pública estadual, situada no município de Currais Novos /
RN, composta por 28 alunos, na faixa etária de 13 a 15 anos.
Quanto ao campo de pesquisa, esta ação não ocorreu apenas no contexto de sala
de aula, os alunos efetivaram atividades em outras esferas sociais e vivenciaram
diferentes contextos de interação comunicativa, evidenciando práticas de letramento
significativas a sua formação comunicativa.
3 Os estudos de letramento e o ensino dos gêneros na escola
Ao enfatizar que o ensino da Língua Portuguesa (LP) deva ser mais significativo
está se fazendo jus ao contexto social contemporâneo em que se vive, pois a sociedade
encontra-se cada vez mais grafocêntrica e tecnológica e dificilmente encontrar-se-á um
espaço em que a linguagem, seja ela verbal ou não verbal, bem como as próprias mídias,
3 Esse momento constitui-se, também, em uma excelente oportunidade de se enfatizar além da função
social da escrita, o ensino sistematizado da oralidade, uma vez que todos iriam participar da gravação dos
textos em uma rede de TV a cabo local.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1193
não estejam presentes. Portanto, não é mais eficaz estudar a língua e os seus aspectos
formais sem qualquer contextualização, ou o texto dissociado de sua função.
Sendo assim, para que o ensino “acompanhe” esta realidade e não fique
desprovido de significado é necessário destacar o aspecto social da escrita, priorizando
o letramento do indivíduo4.
Contudo, coube a escola o espaço designado e mais apropriado para que o
indivíduo possa vivenciar diferentes práticas de linguagens, uma vez que essa tem como
objeto de ensino os gêneros discursivos, como afirma Lorenzi; Pádua (2012):
O conceito de letramento abre o horizonte para compreender os contextos
sociais e sua relação com as práticas escolares, possibilitando investigar a
relação entre práticas não escolares e o aprendizado da leitura/escrita. Se este
é um fenômeno social, devemos trazer para o espaço escolar os usos sociais
da escrita e considerar que a vivência e a participação em atos de letramento
podem alterar as condições de alfabetização (LORENZI; PÁDUA, 2012, p.
36).
No entanto, há um desdobramento no ensino dos gêneros nas escolas, ou seja, os
gêneros passam a ser não apenas instrumento de comunicação, mas também objeto de
ensino e aprendizagem. Em outras palavras, ocorre a didatização no ensino dos gêneros
quase que esvaziando sua principal função que é a mais autêntica da língua ─ a
interação entre os falantes, como ressalta Schneuwly; Dolz ([1997]1999):
[...] há um desdobramento que se opera, em que o gênero não é mais
instrumento de comunicação somente, mas, ao mesmo tempo, objeto
de ensino/aprendizagem (SCHNEUWLY; DOLZ, [1997]1999, p. 7).
No desdobramento mencionado, é produzida uma inversão em que a
comunicação desaparece quase totalmente em prol da objetivação e o
gênero torna-se uma pura forma linguística cujo objetivo é seu
domínio (SCHNEUWLY; DOLZ, [1997]1999, p. 8).
Nota-se, portanto, que essa prática escolar não contempla totalmente as
especificidades do texto e nem satisfatoriamente a significação do ensino da LP. O
propósito real e a funcionalidade do texto se escoam seja devido à simulação de uso que
ocorre no contexto escolar, ou a demasiada valorização que é dada apenas aos seus
aspectos composicionais.
4 Nesse sentido, evidencia-se o tão importante que são os estudos de Letramentos na formação e na
prática docente.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1194
Segundo Oliveira; Tinoco; Santos (2011) em um Projeto de Letramento a
aprendizagem é situada, ou seja, “ocorre numa atividade, na qual contexto e cultura são
específicos, realizando-se na interação, num processo de coparticipação” (OLIVEIRA;
TINOCO; SANTOS, 2011, p. 50). Portanto, nesse contexto de ensino e aprendizagem,
não deve haver simulação de interação comunicativa na construção do gênero. Os
alunos escrevem não para serem apenas avaliados, eles escrevem para um destinatário
real e com propósitos específicos, pois escrevem sob a perspectiva do uso social da
escrita. Quanto à explicação sobre esse tipo de projeto, Kleiman (2001) em discussão
sobre o ensino da escrita e consequentemente de texto, define Projeto de Letramento
como:
[...] uma prática social em que a escrita é utilizada para atingir algum outro
fim, que vai além da mera aprendizagem da escrita (a aprendizagem dos
aspectos formais apenas), transformando objetivos circulares como “escrever
para aprender a escrever” e “ler para aprender a ler” em ler e escrever para
compreender e aprender aquilo que for relevante para o desenvolvimento e
realização do projeto (KLEIMAN, 2001, p. 238).
Cumpre ressaltar que, nos Projetos de Letramento, o estudo de um determinado
gênero emerge de uma necessidade do desenvolvimento das atividades do projeto e dos
participantes-agentes dele, ou seja, os gêneros estudados não são preestabelecidos e
escolhidos pelo professor, eles surgem à medida que as atividades são desenvolvidas e
sob a sugestão de todos os participantes5.
4 A prática da escrita processual
Indiscutivelmente, escrever não é tarefa simples, requer do escritor/produtor
esforço e competência textual, no entanto, a ideia de que a escrita seja um dom de
poucos, já foi destituída há algum tempo e enfatizar a produção de texto como um ato
processual é, no momento, a metodologia mais apropriada para o desenvolvimento da
competência textual dos educandos.
Alguns estudiosos da língua se dedicaram ao processo de investigação da prática
escrita do indivíduo, dentre eles, pode-se citar, Edwards e Malloy (1992), Calkins
5 O que justifica o estudo desse gênero foi o convite feito pela repórter ao visitar e exibir aos
telespectadores da emissora local outra atividade deste mesmo projeto.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1195
(1989), Serafini (1991) e Hayes e Flower (1980), todos especialistas e defensores da
prática da escrita como um processo.
Segundo Paz (2010) o modelo mais tradicional é aquele apresentado por Hayes e
Flower (1980), construído “por análise de protocolos verbais de sujeitos com
proficiência na escrita” (PAZ 2010, p. 151). Segundo a autora, a proposta contempla
como etapas no processo de construção de um texto: o planejamento, a tradução e a
revisão, o que seria posteriormente, em 1986, retomado pelos autores e, a partir de
então, considerariam como fases e componentes básicos do processo de construção da
escrita o planejamento, a geração de frases e a revisão. Etapas essas permeadas por
outro elemento, chamado de monitor. Ele é quem controla o fluxo da produção e
reescrita do texto.
Vale ressaltar que essas etapas são flexíveis, ocorrem de maneira não linear e
cada etapa pode interromper no processo de produção da escrita, uma vez que o escritor
pode fazer diversas alterações, caso julgue necessário para a construção de um bom
texto, constituindo, assim, em um processo interativo.
Semelhante a essa abordagem, Passarelli (2004), partindo de alguns estudos
sobre a escrita processual, inclusive os estudos de Hayes e Flower (1980), também tece
reflexões acerca da escrita processual, mas observando a prática de ensino e
aprendizagem no contexto escolar. Dessa forma, propõe um roteiro de ensino acerca da
produção textual constituído em quatro etapas: planejamento, tradução das ideias,
revisão e editoração.
A primeira, que corresponde à fase de planejamento, seja ele escrito ou mental,
o autor busca as informações, as organizam e traceja algumas linhas, mesmo de cunho
provisório. No entanto, segundo a autora, essa fase é pouco utilizada pelos estudantes,
pois, o mais comum nas aulas de produção textual é iniciarem a redação logo que
recebem o tema, ou esperam alguma inspiração vinda não se sabe de onde. Planejar o
que vai escrever pode parecer para alguns, perca de tempo, mas Passarelli (2004)
enfatiza justamente o contrário:
Planejar, todavia, é justamente o contrário, pois fornece meios de economizar
e distribuir o tempo disponível, diz Serafini (1991:3). No caso da escola, esse
aspecto é de absoluta pertinência, já que distribuir o tempo é fundamental
para se escrever dentro do prazo de que se dispõe. (PASSARELLI, 2004, p.
90).
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1196
Portanto, fazer planos sobre o que se propõe a escrever não é uma fase da escrita
bem explorada no contexto de sala de aula. Precisa-se mostrar aos estudantes a
importância dessa etapa na construção do texto e, por conseguinte, no desenvolvimento
de sua competência comunicativa.
A segunda etapa configura-se no “momento em que se começa a escrever o
primeiro esboço, o trabalho está apenas no início” (PASSARELLI, 2004, p. 92). Neste
momento, as ideias organizadas na etapa anterior se convergem na escrita, o texto é
provisório e sofrerá futuras modificações pela etapa seguinte: a revisão.
Na revisão, o propósito é averiguar se as ideias foram expressas de maneira
clara, coesa e organizadas. Segundo a autora, esta etapa, apesar de suma importância, é
pouco praticada na escola, os alunos não a apreciam, ocorre pouca leitura nos rascunhos
dos textos, faz-se poucas correções e o texto final pouco se difere dos rascunhos. Isso
quando há a preocupação de se rascunhar.
Na última etapa do roteiro proposto por Passarelli (2004) refere-se à editoração,
na qual requer alguns cuidados do escrito haja vista o caráter público, mesmo que
relativo, que o texto adquire. Para a autora, nessa etapa ocorre outra revisão e propõe
como estratégia um intervalo entre essas etapas ─ revisão e editoração ─ para que o
produtor possa ser mais crítico ao reler o que escreveu.
Na escola, Passarelli (2004) sugere que o professor possibilite a socialização
desse produto final com outros leitores, para que esta etapa não se resuma apenas na
tarefa de passar a limpo e atribuir nota. Além disso, enfatiza a importância de se
apresentar o objetivo da tarefa aos alunos, para que possa conscientizá-los quanto à
prática da escrita e, por conseguinte, desenvolver o ponto de vista crítico do alunado.
Ao final do roteiro, a autora discorre também acerca de um componente presente em
todas as etapas: o guardião do texto. Quanto a isso, a autora propõe:
[...] a primeira observação a ser feita aos estudantes recairia em mostrar-lhes
que uma espécie de noção intuitiva perpassa todo o processo de escritura.
Como se fosse um elemento de “vigilância” que opera durante todo o
processamento do texto, trata-se de um componente que está em constante
estado de alerta, dando um acompanhamento permanente de controle para
verificar todos os aspectos e ângulos do que está sendo produzido, ou seja, se
as condições da produção estão sendo satisfatórias. Esse componente serve
para orientar o produtor-escritor, para a manutenção de metas daquilo que ele
propôs a escrever (PASSARELLI, 2004, p. 100).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1197
Nessa perspectiva, o aluno deve estar bem informado quanto às características de
cada etapa, que as angústias e anseios que ocorrem durante o processo lhes são inerentes
e que tais dificuldades são comuns a todos que se dispõem a executar a tarefa de
escrever. Isso ajuda a conscientizá-los de que escrever não depende de um dom
sobrenatural pertencente a alguns, mas depende da disposição que se dá ao processo.
Vale ressaltar que, todos os autores que se dedicam a estudar o processo da
construção da escrita enfatizam bastante a questão da motivação de escrever. É “a partir
da motivação, espontânea ou imposta, para criar um texto, o escritor inicia seu percurso
da produção textual formando uma representação mental do(s) aspecto(s) dos
fatos/realidade a que quer se referir” (MEURER, 1997, p. 19 apud PAZ, 2010, p. 154).
5 A construção e análise dos dados
A produção do gênero chamada neste estudo, não foi imposta pela professora,
nem muito menos sugerida por um livro didático. Ela surgiu do desenvolvimento de
atividades realizadas decorrentes de um Projeto de Letramento na referida sala de aula6.
Segundo o verbete do dicionário, chamada configura-se “[...] 6. Jorn. Texto
curto, publicado na primeira página, que resume as informações publicadas em outra
página do jornal. [...] 8. Pop. Censura, advertência, pito” (RIOS, 2001, p. 149). Em
miúdos, são textos curtos, em que se objetiva uma mensagem de conscientização aos
telespectadores. Logo, a tarefa dos alunos seria de produzir esses textos em sala de aula
e depois retornarem para gravarem na emissora local.
Movidos pela possibilidade de poder participar de uma emissora a cabo do
município e pela experiência de vivenciar uma atividade diferente das que normalmente
são realizadas em sala de aula os alunos iniciaram a produção dos textos através do
planejamento.
Primeiramente, de maneira colaborativa, foi feito um esboço de como iniciar o
texto, criando-se algumas linhas iniciais, frases incompletas, que seriam posteriormente
preenchidas pelas ideias e aprendizagem de cada um:
6 Anteriormente a essa produção, outras atividades foram precedentes e decisivas. Uma palestra realizada
na escola suscitou aos colaboradores um convite para assistirem ao filme de curta metragem na sede do
Ministério da Justiça da cidade e, em seguida, gravarem chamadas na emissora local.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1198
Figura 2: brainstorming Ocorreu, portanto, o brainstorming que segundo Soares (2009) corresponde a:
[...] (tempestade mental): atividade em que o sujeito verbaliza, oralmente ou
por escrito, todas as ideias que lhe vêm à mente sobre determinado estímulo,
que pode ser algum tópico, elemento visual, som ou palavra, por um período
de geralmente curto. Esta técnica visa ativar o conhecimento de mundo que o
sujeito tem e prepará-lo para uma atividade pedagógica onde este
conhecimento será utilizado (SOARES, 2009, p. 24).
Os pensamentos gerados pela turma foram organizados em forma de um
esquema, um roteiro de ideias, na qual auxiliaria a todos em suas produções. Em
seguida, os alunos tracejaram algumas linhas na tentativa de formular o texto, como
mostra a imagem abaixo:
Figura 3: Primeiras ideias Nesse momento, o aluno foi “encorajado a escrever de forma despreocupada
sobre um assunto do qual ele tenha o que dizer, cuidando apenas de deixar as ideias
fluírem naturalmente” (SOARES, 2009, p. 30). A preocupação maior era com a
informação e o telespectador e não apenas com as questões formais da língua e nem
com a nota que o professor atribuiria as suas produções7. Em seguida, após as primeiras
ideias surgidas e postas no papel, ocorreu o desenvolvimento do que se havia escrito, ou
seja, a reescrita e o aperfeiçoamento na expressão do texto:
7 Este estudo traz como exemplo a análise da construção de apenas uma das três chamadas produzidas
pelos participantes, no entanto, vale ressaltar que todos os textos foram construídos do mesmo modo e, no
momento da gravação, desmembrou-se em cinco chamadas.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1199
Figura 4: Desenvolvimento das ideias Na figura 3 observa-se não apenas o desenvolvimento das ideias, mas também as
revisões e correções constantes no texto, como postula Paz (2010):
Embora a sequência natural do modelo apresentado por Hayes e Flower
(1980, 1986) englobe vários componentes como planejamento, geração de
frases e avaliação, a ordem em que eles se efetivam é bastante flexível, visto
que tanto a fase de geração quanto a de revisão podem interromper o curso do
processo da escrita, caso o escritor identifique impropriedades e decida
efetuar alterações no texto (PAZ, 2010, p. 152).
Analisando a imagem seguinte, observa-se que o aluno organizou as
informações que julgou mais relevantes e as transformaram em um único texto:
Figura 5: Um único texto Com outra lida e revisão juntamente com a professora e os colegas de classe
chegou-se ao texto satisfatório:
Figura 6: Texto satisfatório Essas imagens mostram a preocupação constante em melhorar o texto, dando
relevância aos aspectos do contexto, tais como: o que dizer, a quem, como, a função do
gênero discursivo, dentre outros. Além disso, percebe-se sua produção processual, na
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1200
qual o feedback8 colaborativo entre os alunos e o professor foi fundamental, para se
chegar ao produto final desejado. “As atividades de revisão e pós-escrita, incluem um
período de leitura e avaliação do que se escreveu, e o recebimento do feedback, do
professor e dos colegas, sobre o conteúdo do texto para que o autor possa melhorá-lo”
(SOARES, 2009, p. 24).
6 Considerações finais
Trabalhar com a escrita de forma processual e colaborativa, enfatizando suas
etapas de construção, oferece ao aluno a oportunidade de pensar sobre sua própria
escrita, observar criticamente suas produções, compartilhar dúvidas e capacidades, além
de possibilitar ao estudante um crescimento individual e coletivo, aguçando assim a sua
criticidade.
Além disso, proporciona o estudo dos aspectos gramaticais da língua de maneira
significativa e contextualiza, pois o aluno ao analisar seus próprios desvios apreende a
funcionalidade daquele termo, ao mesmo tempo em que desenvolve sua competência
escritora. Isso se reflete não apenas no campo sintático do texto, mas nos aspectos
semânticos, lexicais, morfológicos, na sua funcionalidade, dentre outros.
Outro aspecto relevante refere-se à responsabilidade do aluno com a
aprendizagem da escrita, pois nessa prática ele se ver também responsável pelo que
produz; ele ler e reler quantas vezes achar necessário se sentindo capaz de realizar tais
mudanças.
Por fim, este estudo proporcionou uma significativa reflexão em torno do uso da
Língua Portuguesa, tanto na oralidade, quanto na escrita, bem como na função social do
gênero discursivo, acarretando em mudanças relevantes na competência textual do
aluno, bem como na prática do professor e atingindo senão o propósito do ensino da
língua materna, mas chegando bem próximo dele.
Em síntese, o ensino da escrita na perspectiva processual e colaborativa exige
tanto do aluno como do professor. É necessário entender que a produção textual envolve
etapas e que refletir sobre sua própria escrita é, no momento, a metodologia mais viável
para o desenvolvimento da competência comunicativa dos educandos. 8 É bom ressaltar que, o termo feedback simboliza a intervenção que se faz nas ideias do texto durante o
processo e não deve ser confundido com correção de erros.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1201
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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1203
O JOGO ENTRE AS REMINISCÊNCIAS E O
DESVELAMENTO NOS POEMAS DE BANDEIRA DE
TEMÁTICA ONÍRICA [Voltar para Sumário]
Jefferson Cleiton de Souza (UFPE)
Quarenta anos lá vão. De teu moreno
Encanto hoje que resta? O eco pequeno,
Pequeno de teu sonho – um sonho branco!
(Manuel Bandeira)
Com o Surrealismo, movimento de vanguarda do século XX, a atividade onírica
deixou de se restringir, apenas, às elaborações noturnas individuais, para se tornar uma
fonte de pesquisa estética para os artistas. Conscientemente, os surrealistas “inspiraram-
se” na hegemonia da atividade do inconsciente sobre a do consciente na produção dos
sonhos, para adentrar e explorar regiões obscuras da existência humana, como a do
desejo, a da transgressão moral, a da fantasia, entre outras. Por essa razão, André
Breton, nascido em 1896 e morto em 1966 e um dos mentores dessa estética, – em seu
Manifesto surrealista (1985 [1924]) – reconheceu índices de antecipação da atitude
surrealista na relação de Sade com o sadismo; na de Poe com a aventura; na de
Baudelaire com a moral; na de Rimbaud com a vida prática e alhures. Tal constatação
levou Breton a firmar que o pensamento tende a se manifestar em sua plenitude, quando
se processa livre da tirania da razão e dos limites impostos por regras de natureza
estética ou moral (1985 [1924]).
No Brasil, as descobertas da estética surrealista, por sua vez, debitária da
Psicanálise de Freud, parece ter encontrado eco na produção poética do escritor
pernambucano Manuel Bandeira (1886-1968). No entanto, o que a fatura da produção
poética desse autor comprova é que ele se apropriou de uma maneira muito peculiar das
sugestões do Surrealismo. Comprometido, simultaneamente com a subjetividade, com a
técnica poética e com a comunicação artística, Bandeira viu-se na tarefa de transmutar
os domínios inapreensíveis do mundo íntimo, tão caros ao Surrealismo, num corpo
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1204
formal comunicável a outrem, isto é, em poema. Foi, portanto, no interior do organismo
verbal do poema, que Bandeira, sob a “máscara” de uma entidade de papel (o eu-lírico),
empreendeu sutis descobertas sobre a constituição do sentido existencial.
Para empreender essas descobertas, Manuel Bandeira elegeu o sonho (domínio
do inconsciente) como região a ser explorada. Na realidade, ele promoveu a temática
onírica à condição de motivo poético, isto é, a uma “situação [poética] significativa”
(KAISER, 1985, p.59) e digna de ser visitada e revisitada. Entretanto, ele não
desenvolveu essa temática, recorrendo ao mero confessionalismo, mas, pelo contrário,
instaurou – no interior do discurso poético – a imagem de um eu-lírico que mobiliza
seus antigos afetos e luta para ressignificá-los.
Nesse sentido, tal expediente poético da economia dos afetos humanos face aos
conteúdos oníricos aparece na poesia de Manuel, em 1919, com o poema Sonho de uma
terça-feira gorda, do livro Carnaval, editado pelo próprio autor. Vejamos a sua
transcrição:
Sonho de uma terça-feira gorda
Eu estava contigo. Os nossos dominós eram negros, e negras eram nossas
[máscaras.
Íamos, por entre a turba, com solenidade,
Bem conscientes do nosso ar lúgubre
Tão contrastado pelo sentimento de felicidade
Que nos penetrava. Um lento, suave júbilo
Que nos penetrava... Que nos penetrava como uma espada de fogo...
Como a espada de fogo que apunhalava as santas extáticas!
E a impressão em meu sonho era que se estávamos
Assim de negro, assim por fora inteiramente de negro,
- Dentro de nós, ao contrário, era tudo claro e luminoso!
Era terça-feira gorda. A multidão inumerável
Burburinhava. Entre clangores de fanfarra
Passavam préstitos apoteóticos.
Eram alegorias ingênuas ao gosto popular, em cores cruas.
Iam em cima, empoleiradas, mulheres de má vida,
De peitos enormes – Vênus para caixeiros.
Figuravam deusas – deusa disto, deusa daquilo, já tontas e seminuas.
A turba, ávida de promiscuidade,
Acotovelava-se com algazarra,
Aclamava-as com alarido
E, aqui e ali, virgens atiravam-lhes flores.
Nós caminhávamos de mãos dadas, com solenidade,
O ar lúgubre, negros, negros...
Mas dentro em nós era tudo claro e luminoso!
Nem a alegria estava ali, fora de nós.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1205
A alegria estava em nós.
Era dentro de nós que estava a alegria,
- A profunda, a silenciosa alegria...
(BANDEIRA, 1993 [1919], p. 99)
Já pela enunciação do poema, constatamos que o eu-lírico orienta o seu discurso
para o passado. Percebe-se que ele, em estado de vigília, rememora “impressões” de um
sonho sonhado, pretendendo dar-lhe sentido. Em outros termos, evoca reminiscências
de um sonho, por sua vez, imprecisas, para interpretá-las à luz da consciência. Assim, o
poema de Bandeira não toma o sonho apenas como vestígio de um desejo latente, como
preconizava Freud, mas o transforma também em “aurora do sentido” (RICOEUR,
1977, p. 405), isto é, em produção de um novo sentido para a consciência.
Então, Bandeira, ao unir arte e sonho, em seu poema, promove uma dialética
entre o vetor regressivo da produção do sentido humano (hegemônica no sonho) e o
vetor prospectivo – desvelador – (hegemônico na arte), para nos oferecer uma imagem
plena do sentido existencial. Conforme elucida Ricoeur:
Existe, com efeito, um só sonho que não tenha também uma função
exploradora, que não esboce ‘profeticamente’ um caminho de saída para
nossos conflitos? E vice-versa: existe um só grande símbolo, criado pela arte
e pela literatura, que não mergulhe e não volte a mergulhar no arcaísmo dos
conflitos e dos dramas, individuais ou coletivos, da infância? (RICOEUR
apud REALE & ANTISERI, 2006. p. 273-274).
Nesse sentido, se, por um lado, o poema Sonho de uma terça-feira gorda, de
Bandeira, pode ser lido como uma expressão melancólica do eu-lírico face ao tempo que
já passou; por outro, também pode ser recepcionado como a ampliação da consciência
do eu-lírico, já que ele pôde nomear e caracterizar a experiência da “alegria” depois do
trabalho consciente da escrita. E com ela preencher de significados mais precisos e
novos uma falta inominável e descaracterizada. Essa dupla orientação de sentido do
poema situa-o na problemática da existência, já que o existir se funda no desejo e no
esforço por existir. Como ressalta, pois, Ricoeur, “A existência [...] é desejo e esforço.
Chamamo-la de esforço para ressaltar sua energia positiva e seu dinamismo; chamamo-
la de desejo para designar sua carência e sua indigência: Eros é filho de Póros e de
Pênia” (RICOEUR, 1978, p. 22).
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1206
No entanto, não se deve, por isso, concluir que o eu-lírico do poema Sonho de
uma terça-feira gorda tenha alcançado um estágio de plena consciência, porque se sabe
que, através das reflexões de Ricoeur, a consciência é uma tarefa em constante processo.
Para se perceber, no poema, a falibilidade da consciência do eu-lírico, basta
abandonarmos a perspectiva do eu-lírico e adotarmos a do leitor, ou seja, um ponto de
vista que vê mais que o próprio eu-lírico. Lançando mão dessa visada, constata-se que
o poema – mimetizando a astúcia do sonho – opera majoritariamente por ocultamentos
(latência) do que por desvelamentos. Nesse sentido, a presença da cor preta no poema
parece camuflar o sentido de perda vivenciado pelo eu-lírico. Isto é, a camuflagem de
um luto ainda não elaborado. Do ponto de vista simbólico, sabe-se que
o preto é a cor do luto; não como o branco, mas de uma maneira mais
opressiva. O luto branco tem alguma coisa de messiânica. Indica uma
ausência destinada a ser preenchida, uma falta provisória. [...] O luto preto,
por sua vez, é, poder-se-ia dizer, o luto sem esperança (CHEVALLIER;
CHEERBRANT, 1990, p. 740-741).
Diante disso, pode-se inferir que, para além do esforço do eu-lírico de
conscientizar-se de seus afetos, há, na linguagem do sonho por ele poetizado uma “sigla
estenográfica [taquigráfica]” (RICOEUR, 1973, p. 402), que parece codificar um
terrível sentimento de falta. Mensagem essa que parece escapar ao eu-lírico, mas
disponível à decifração do leitor.
A temática do sonho volta a aparecer na poética de Bandeira, no poema Tema e
variações, do livro Opus 10, editado pela editora Hipocampo, em 1952. Leiamo-lo
Temas e variações
Sonhei ter sonhado
Que havia sonhado.
Em sonho lembrei-me
De um sonho passado:
O de ter sonhado
Que estava sonhando.
Sonhei ter sonhado...
Ter sonhado o quê?
Que havia sonhado
Estar com você.
Estar? Ter estado,
Que é tempo passado.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1207
Um sonho presente
Um dia sonhei.
Chorei de repente,
Pois vi, despertado,
Que tinha sonhado.
(BANDEIRA, 1993 [1952], p. 214-215)
Nesse poema, o eu-lírico encontra-se numa dupla dimensão temporal e afetiva,
na primeira delas ele está – em sonho – relembrando outro sonho prenhe de significados
afetivos; noutra, está, em estado de vigília, decepcionado com a irrealidade da produção
onírica. Diante de tal sobreposição de estados afetivos, põe-se em relevo o papel que a
atividade racional desempenha na economia do sentido no poema Tema e variações.
Primeiro, urge elucidar – tomando por base a sugestão do título do poema – que
Manuel parece retomar um tema já visitado por sua poética: o sonho. Além disso, o
título do poema, juntamente com o confronto entre os versos “Que havia ter sonhado/
estar com você”, de Temas e variações, e o início do primeiro verso de Sonho de terça-
feira gorda – “Eu estava contigo” – indicam a natureza intertextual do poema de 1952.
Fenômeno esse que, segundo Julia Kristeva, se estabelece quando
O significado poético remete a outros significados discursivos, de modo a
serem legíveis no enunciado poético vários outros discursos. Cria-se, assim,
em torno do significado poético, um espaço textual múltiplo, cujos elementos
são suscetíveis de aplicação no texto poético concreto. (KRISTEVA, 2005
[1969], p.185)
Desse modo, como o poema Sonho de terça-feira gorda serviu de base
intertextual para Tema e variações, percebe-se logo que o eu-lírico recupera as
reminiscências do conteúdo onírico do primeiro para ser trabalhado no segundo.
Diferentemente do poema incluído em Carnaval, que mimetizou os ardis simbólicos da
atividade onírica, o poema de Opus 10 ocupa-se, num primeiro momento, da
metalinguagem da experiência onírica do eu-lírico; num segundo, na expressão direta e
lúcida da falta de um ser querido que se “petrificou” num passado e que parecia
presente na duração do sonho.
Mas, dessa vez, o eu-lírico assume as lágrimas diante dos leitores, como se
rasgasse o véu fabuloso do sonho e interrompesse a magia do transe poético. Depois do
intervalo de 33 anos existente entre os dois poemas, em Temas e variações, a porção
Pênia do homem, com as suas lacunas afetivas, parece vencer a sua contradipartida, a
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1208
poção Póros, plena de riqueza de sentidos prospectivos. Em suma, os afetos arcaicos
esmaecem a força do verbo e a “clarividência” da razão.
No livro Estrela da tarde, publicado em parte, em 1960, pela editora Dinamene,
Salvador, e, em 1963, completo, pela José Olympio, encontra-se o poema Sonho
Branco, cuja temática remete novamente à experiência onírica do eu-lírico bandeiriano.
Vejamos a transcrição dele:
Sonho branco
Não pairas mais aqui. Sei que distante
Estás de mim, no grêmio de Maria
Desfrutando a inefável alegria
Da alta contemplação edificante.
Mas foi aqui que ao sol do eterno dia
Tua alma, entre assustada e confiante,
Viu descender à paz purificante
Teu corpo, ainda cansado da agonia.
Senti-te as asas de anjo em mesto arranco
Voejar aqui, retidas pelo aceno
Do irmão, saudoso de teu riso franco.
Quarenta anos lá vão. De teu moreno
Encanto hoje que resta? O eco pequeno,
Pequeno de teu sonho – um sonho branco!
(BANDEIRA, 1993 [1960/1963], p. 204)
Em Sonho branco, Bandeira volta a conjugar reminiscência do passado, ausência
de um ser querido e o trabalho do sonho. Nele, perbece-se claramente um trabalho
sublimatório realizado pelo eu-lírico, já que ele assimila a ausência do ser querido
espiritualizando-o. Conforme Paul Ricoeur, em Da interpretação – ensaio sobre Freud,
“é com desejos impedidos, desviados, convertidos que nutrimos nossos símbolos menos
carnais” (RICOEUR, 1977, p. 401). Nesse sentido, o eu-lírico elabora o seu luto,
transferindo o sentimento de falta para o culto contemplativo de um ser ausente
investido de significado sagrado. Com efeito, a falta afetiva é ressignificada, em Sonho
branco, pela saída do sagrado. Isso significa dizer que o eu-lírico busca preencher de
sentido sagrado o vão afetivo, pois como lembra Mircea Eliade: “o sagrado está
saturado de ser” (ELIADE, 2011 [1957], p.18).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1209
Diferentemente do poema Sonho de terça-feira gorda, cujo investimento
simbólico privilegiou a cor preta, remetendo à noção de luto, o poema Sonho branco,
haja vista o título, imantou-se da simbólica da cor branca. De acordo com o Dicionário
de símbolos, de Jean Chevalier & Alain Gheerbrant (1990, p.141), “o branco – candidus
– é a cor do candidato, i.e., daquele que vai mudar de condição (os candidatos às
funções públicas vestiam-se de branco).” Ao relacionar essa informação à sintaxe
semântica do poema de Bandeira, percebe-se uma dupla mudança de condição, a do eu-
lírico, que parece sair da condição de enlutado, – através do trabalho proporcionado pela
sublimação – e a do ser querido (objeto de investimento do eu-lírico), que transcende a
condição humana para pertencer ao panteão dos seres sagrados. Desse modo, o branco,
no poema de Bandeira, ganha uma conotação positiva e iniciática, pois nele “o branco,
cor iniciadora, passa a ser, em sua acepção diurna, a cor da revelação, da graça, da
transfiguração que deslumbra e desperta o entendimento...” (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 1990, p.144).
Consequentemente, a questão da carência afetiva simbolizada na atividade
onírica não se caracteriza, em Soneto branco, pelo embate travado entre a consciência e
o inconsciente, tal como se viu em Soneto de uma Terça-feira gorda, nem pela
hegemonia da porção Pênia do homem na economia dos afetos, conforme vimos em
Temas e variações, mas por uma saída (clareira) conquistada pelo eu-lírico: a não
repetição dos afetos dolorosos de um passado. Nesse sentido, o eu-lírico bandeiriano
parece construir sua história e escapar das rédeas do destino existencial, pois, como nos
lembra Paul Ricoeur,
a consciência é história e o inconsciente, destino. Destino-retaguarda da
infância, – destino retaguarda das simbólicas já presentes e reiteradas, destino
da repetição dos mesmos temas em espirais diferentes da espiral. No entanto,
o homem é responsável por sair de sua infância, por quebrar a repetição, por
constituir uma história polarizada por figuras-vanguardas, por uma
escatologia. O inconsciente é origem, gênese; a consciência é o fim dos
tempos, apocalipse (RICOEUR, 1978 [1969], p. 102).
Assim, percebe-se – nesse último texto – que o eu-lírico transforma seus afetos
arcaicos – que, em geral, tendem a nos paralisar – num sentido mais rico para suportar a
sua lacuna fundante. Em outros termos, o eu-lírico, ao invés de investir energia na
nadificação de um corpo sepultado, devolveu a ele outro significado, o de ser sagrado.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1210
Bandeira, ao concretizar – em seus poemas – o embate do homem dividido entre
a sua consciência e inconsciência, oferta-nos uma imagem plena do sentido existencial
do homem, que se caracteriza por lacunas e poder de superação. Para tanto,
contextualiza esse embate numa região que é, ao mesmo tempo, oráculo do passado e do
futuro: o sonho, a fim de consagrar o humano em nós.
Referências
ANTISERI, Dario; GIOVANNI, Reale. História da filosofia: de Nietzsche à escola de
Frankfurt. São Paulo: Paulus. vol.6, 2006.
BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro,
1990.
ELIADE, Mircea. O sagrado e profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins
Fontes, 2011.
KAYSER, Wolfgang. Análise e interpretação da obra literária. Coimbra: Arménio
Amado, 1985.
KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. São Paulo: Perspectiva, 2005.
RICOEUR, Paul. O conflito das interpretações: ensaios de hermenêutica. Rio de
Janeiro: Imago, 1978.
_____. Da interpretação: ensaio sobre Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1977.
TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e modernismo brasileiro:
apresentação e crítica dos principais manifestos vanguardistas. Rio de Janeiro: Vozes,
1985.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1211
COLONIALISMO E PÓS-COLONIALISMO EM O
ALEGRE CANTO DA PERDIZ, DE PAULINA CHIZIANE1
[Voltar para Sumário]
Jeferson Rodrigues dos Santos (UFS)
Anderson de Souza Frasão (UFS)
Em Moçambique, a relação entre os valores tradicionais e as diretrizes sociais
ocidentalizadas tem sido conflituosa e responsável por um hibridismo cultural complexo
que permite vislumbrar os processos de modificação e adaptação das tradições locais.
No palco da colonização, impasses e enfrentamentos resultaram numa série de
convulsões socioculturais que acabam por redimensionar as configurações das culturas
nacionais.
Entre tradições e contradições, marcas representantes dos confrontos entre dois
universos culturais distintos, as relações sociais foram se estabelecendo, não raro, no
plano do conflito. Esse lugar das diferenças, que demarca a fragilidade do processo de
construção das identidades, conduz a produção literária da escritora moçambicana
Paulina Chiziane, que desde a sua primeira publicação, Balada de amor ao vento
(1990), tem refletido sobre questões caras à História da África, dentre elas a análise de
espaços sociais, econômicos, culturais e políticos, todas elas trançadas pelo jogo de
gênero, o que faz da sua composição muito mais complexa e polêmica, pois, num
espaço narratológico predominantemente masculino, como é o africano, soma-se a
questão da autoria feminina a construção de personagens-sujeito de seu próprio
discurso, portadoras de dizibilidades que demarcam um lugar de enunciação altamente
crítico e reflexivo da realidade de seu país.
Mergulhar na “história oficial” a fim reinterpretá-la a partir da ótica dos
periféricos parece ser uma das múltiplas leituras que o romance O Alegre canto da
perdiz, de Paulina Chiziane, autoriza, através de construção de personagens que
1 Este trabalho é um breve recorte de uma pesquisa ainda em andamento, que uma leitura atenta poderá
facilmente atestar.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1212
metaforizam períodos históricos de Moçambique e que subvertem os sentidos
processados pelo colonialismo para questionar e refletir a condição da mulher
moçambicana na história, tendo em vista as suas relações com o poder político e as
tradições ancestrais, os colonizados e os colonizadores.
No quadro em que se desenha as personagens, interessa-nos, neste trabalho, as
femininas Serafina, Delfina e Maria das Dores, que são situadas em tempos e espaços
que se cruzam: o pré-colonial, o colonial e o pós-colonial/Gurué e Zambézia.
Serafina é a representação da geração que sofreu transformações em
consequência de eventos históricos como a escravização e a colonização. É arquétipo
dos negro-africanos que tentaram resistir às agruras do sistema colonial, indo contra a
corrente até não poder resistir – parafraseando a canção Roda viva, de Chico Buarque –,
pois mesmo que não tenham aceitado a assimilação, perceberam que o caminho se
tornaria mais “fácil” se não fossem de contra aos desejos do colonizador, submetendo-
se ao que Frantz Fanon (s/d) chama de “complexo de inferioridade”. Note-se o que diz
Serafina a sua filha:
– Vida de negra é servir, minha Delfina. Nos campos de arroz. Nas
sementeiras e na colheita de algodão, para ganhar um quilo de açúcar por mês
ou uma barra de sabão que não cabe na palma da mão. Uma negra é força
para servir em todos os sentidos. Foi uma grande sorte teres nascido bela,
senão estarias a penar sob o sol abrasador, onde sanguessugas invisíveis
provocam doenças e mortes nos pântanos. Tens sorte, tu serves na cama, tens
mais rendimento. Por que deitas fora a tua sorte? (CHIZIANE, 2008, s/p).
O ser colonizado, vítima de violências física e epistêmica, introjeta os hábitos e
os costumes dos brancos como sendo positivos em relação aos seus. Nos diz Frantz
Fanon que o colonizado “quer ser branco” (FANON, s/d, p. 38) porque se identificar e
se afirmar perante ele parece o único caminho que conduz a libertação das agruras
provindas do colonialismo.
A voz narrativa se refere ao genocídio cultural provocado pelo colonialismo
quando diz que “colonizar é mesmo isto: desviar o curso do rio, matar de sede os peixes
[...], fechar as portas e deixar apenas uma” (CHIZIANE, 2008, s/p).
Serafina carrega a dor de ter seus filhos escravizados e deportados, com exceção
de Delfina, e vê na miscigenação das raças uma oportunidade para sair da miséria. Por
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1213
tal razão se coloca contra o casamento de sua filha sua filha com o preto José dos
Montes.
Na tessitura narrativa, Serafina é inserida num espaço que possibilita a
visualização do entre-lugar, o espaço fronteiriço da recusa e da aceitação. Ela é uma das
personagens mais complexas deste romance por ser portadora de um leque de sentidos
que são orientados pela “oscilação de sensações e as contradições da cena social, tanto
por ser mulher, como por ser negra” (MEDEIROS & SECCO, 2014, p. 24).
Delfina, por sua vez, é mulher de muitos homens. Busca a assimilação para
alterar a condição de “condenados da terra” (FANON, 2005), introjetando os valores do
colonizador por meio do ideal do branqueamento, como nas reflexões efetuadas pela
voz narrativa e pela própria personagem:
Minha preta, negrinha. Uma expressão ofensiva, humilhante, redutora.
Porque já tinha ultrapassado as fronteiras de uma negra. Ela já tinha um
homem branco e filhos mulatos. Ela já falava bom português e tinha a pele
clareada pelos cremes e cabeleira postiça. Sou preta sim, só na pele. Já sou
mais do que uma preta, casei com branco! (CHIZIANE, 2008, s/p, grifos
nossos).
Antes vestindo a indumentária de mulher excluída e oprimida, condições que
acompanham as mulheres por diversas gerações e culturas, ela consegue burlar tanto os
preceitos tradicionais, como os da modernidade ocidental, sendo expressão, diversas
vezes, de hibridismo cultural:
Tomei todas as poções mágicas contra a pobreza e afastei todas as rugas do
meu corpo. Bailei nua nas noites de lua e hipnotizei os homens da terra
inteira, cumprindo o meu supremo castigo. (CHIZIANE, 2008, s/p)
Delfina representa um imaginário sociocultural feito de interrupções que rejeita
os antigos usos e costumes tradicionais por serem estes, na sua concepção, arcaicos, mas
acaba recorrendo a eles em momentos cruciais. A complexidade com que esta
personagem é construída evidencia uma relação de enfrentamento e de conflitualidade
que se aproxima da experiência do povo moçambicano.
Maria Paula Meneses, ao discutir os processos identitários em Moçambique, fala
que a descolonização “exige as análises das lutas, compromissos, promessas e o
repensar dos conceitos fundamentais que ligavam espaços e tempos” (2012, p. 319). É
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1214
considerado, pois, o retorno ao passado para entender o funcionamento do colonialismo
e, por conseguinte, refletir o presente, até porque há uma “disputa permanente sobre as
representações e políticas nas ex-colônias [...], num complexo jogo de espelhos onde o
desdobrar dos sentidos do império é urgente” (idem).
Evidentemente, há o entrechoque dos traços tradicionais e modernos,
tensionados a partir do contato entre os povos que os trilham em meio às diversas
representações culturais. Assim, Delfina sugere a articulação entre a tradição e a
modernidade, haja vista as transformações no território moçambicano intrínsecas aos
eventos históricos, para refletir as continuidades e rupturas.
A narrativa conduz a crítica ao colonialismo e satiriza o pós-colonialismo a
partir da presença de outra mulher, que se apresenta nua no rio Licungo. Maria das
Dores, filha de Delfina se apresenta na narrativa como ferramenta de questionamentos
aos “hábitos da terra”, da mesma forma em que provoca o grito coletivo das mulheres e
a “desordem da moral pública”:
- Mulher, não tens vergonha na cara? Onde vendeste a tua vergonha? Não
tem pena de nossas crianças que vão cegar com a tua nudez? Não tens medo
dos homens? Não sabes que te podem usar e abusar? Oh, mulher, veste lá a
tua roupa que a tua nudez mata e cega! (CHIZIANE, 2008, s/p)
Este grito traz consigo a simbologia de “vozes” de mulheres numa zona
construída em torno da participação do colonizador.
Mas a mulher permanece incólume, pois “está demasiado cansada para
responder. Demasiado surda para ouvir.” (CHIZIANE, 2008, s/p). As outras, assustadas
e escandalizadas, como se tivessem visto o papão, dirigem-se à casa do régulo, a fim de
desvendar os segredos daquela estranha visita. Na ausência deste, encontram em sua
esposa compreensão e acalanto.
Referências indiretas às vivências reais de hábitos e crenças tradicionais
parecem, com frequência, refletir contextos intencionais. Percebe-se, por exemplo, a
alusão ao papão, animal imaginário que ocupa lugar relevante nos contos indígenas.
Esses, geralmente narrados em volta das fogueiras pelos mais velhos, são dotados de
alto valor pedagógico. A partir disso, nota-se o tratamento de temas estrategicamente
utilizados para recuperar a mundividência autóctone e as simbologias ligadas a ela, mas
sem deixar de captar as diversas influências, sobretudo as da modernidade. Veja-se:
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1215
A mulher do régulo reconhece rapidamente as razões da zanga colectiva e
responde com um arco-íris. Histórias de vida soltam-se dos arquivos da
memória como files de computador. Cada um tem o seu percurso, cada um
tem a sua história. A presença dessa alma penada tinha uma razão óbvia. O
mundo está às avessas, devasso. A humanidade é expulsa a uma velocidade
assustadora, e as pessoas se tornavam selvagens, canibais. (CHIZIANE,
2008, s/p, grifos nossos).
É através dessa adoção intencional, dotada de intenção moralizante e didática,
características da oratura que, segundo Ana Mafalda Leite
Chiziane reinveste na sua prática narrativa a intencionalidade da prática as
narração oral de contos e fábulas, formadores de valores éticos e
comportamentais, dramatizando com esse aparato narrativo relatos
vivenciais” (2012, p. 201).
E isso fica bem claro quando a mulher do régulo profere alguns relatos, sinalizando para
uma tomada de consciência das mudanças que estão a acorrer, pois, segundo ela,
"Aquela louca simboliza o mundo novo da guerra, das doenças, da exclusão social, ao
qual todos encontram sujeitos." (CHIZIANE, 2008, s/p).
A história dessa personagem, que enlouquece após ter perdido a posso de seus
filhos, é portadora de um amálgama de tantas outras nas quais imperam dor e
sofrimento envoltos em relações sociais bastante complexas. Histórias que permitem
vislumbrar o trânsito de valores coletivos para valores individuais, principalmente se os
compararmos àqueles das sociedades tradicionais, o que nos fará perceber uma
acentuada alteração, haja vista que um dos principais aspectos que os caracterizam é a
preservação.
Fruto do casamento de Delfina e José dos Montes, Maria das Dores foge das
duras condições que lhes são impostas. Quando em Gurué recua no tempo para narrar
momentos difíceis de sua vida, dá conta da relação de sua mãe com dois homens, um
negro e um branco, da utilização que aquela fazia dos poderes mágicos para conquistar
seus objetivos e, também, de quando ela a vendeu ao amante feiticeiro. Rememorar tais
momentos lhe causam dores imensuráveis que conduzem a uma possessão. Mas ao
vencer as barreiras do tempo e presentificar o passado, permite que ela encontre seus
filhos, que lhes foram roubados quando ela fugiu do feiticeiro.
Por um lado, das Dores preenche e reconstrói as lacunas e, nesse movimento,
expõe a alienação, o deslocamento e o exilamento dos moçambicanos dentro do próprio
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1216
território. Por outro, ela se desfaz dessa identificação identitária para se formular com
outras, o que alude, mais uma vez, ao hibridismo cultural. É nesse momento que se
instala a reflexão da nação moçambicana pós-independência.
Este romance insere a ironia por meio da inserção da “voz” da mulher
moçambicana, pois, ao mesmo tempo em que crítica o colonialismo, aponta as relações
que muitos moçambicanos tiveram no sistema colonial. Reconhecendo esse caminho, o
enredo é construído pelo olhar duplo, isto é, de dentro e de fora: a análise do colonizado
a partir da sua própria perspectiva aponta como foi a sua participação e a do colonizador
nos eventos da História. Eis um trecho:
— Veja só a ironia desta vida, José. É a língua antes rejeitada que se busca e
se acarinha. Nós os assimilados remetemos o povo ao sofrimento.
Facilitámos a opressão, o exílio, a deportação. O povo lutou, resistiu e a terra
é livre. Quando tudo estava pronto assaltámos de novo o comando. São os
nossos filhos, nós, os assimilados, que lideram a vida com o saber e a
língua dos marinheiros. (CHIZIANE, 2008, s/p, grifos nossos).
Para tanto, os grifos remetem ao título do romance: O alegre canto da perdiz. O
canto é o de Delfina que desejou a assimilação e, para a mudança do estatuto, trilhou
passos de recusa à tradição, assim como de aceitação, pois teve Jacinta (filha mulata)
com Soares e Maria das Dores (filha negra) com José dos Montes, além dos demais
filhos.
Aqui, a crítica ao pós-colonial é mediada por compreender a ausência da
descolonização e a continuidade das prerrogativas coloniais. Moçambique é plural,
mestiça, mas segue os meandros da condição neocolonial, pois, pensando a
escravização, a colonização, a independência, a guerra civil, o privilégio permanece nas
mãos de uma minoria, a elite moçambicana, a classe assimilada que continua aos
moldes coloniais, principalmente quando propuseram a ruptura com a tradição, quando,
na verdade, ainda é muito forte em Moçambique, na África como um todo.
Através dO alegre canto da perdiz, vê-se a representação dos efeitos da
colonização no território moçambicano numa leitura crítica do colonialismo e ironia ao
pós-colonialismo. Com vistas nas personagens, parte-se da análise das estratégias de
dominação e do jogo da manipulação psicossocial do colonizado, averiguando a
condição da mulher moçambicana no cruzamento dos tempos colonial e pós-colonial.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1217
Conduz, também, ao passado e ao presente, tempos que confluem, para pensar as
epistemologias do lugar.
Entre a crítica e a ironia, a narrativa, por meio dos encaixes narrativos – das
histórias das personagens –, sugere um “futuro”: articulação das diferenças para pensar
a igualdade. E no espaço de negociação das identidades, haja vista o enlace final da obra
(reconhecimento e reconciliação dos laços afetivos), que se vislumbra a equidade dentro
da Moçambique plural e diversa, possível através da aceitação do hibridismo cultural,
do multiculturalismo.
REFERÊNCIAS
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Editora UNESP, 2009.
CHIZIANE, Paulina. O alegre canto da perdiz. Portugal: Caminho, 2008. E-book.
ISBN: 9789722121873.
FANON, F. Os condenados da terra. Trad. Enilce Albergaria Rocha, Lucy Magalhães.
Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2005.
_______. Pele Negra, Máscaras Brancas. Porto: Orgal/Paisagem, s/d.
LEITE, Ana Mafalda. Oralidades & escritas pós-coloniais: estudos sobre literaturas africanas.
Rio de Janeiro: EDUERJ, 2012.
MACÊDO, Tânia.; MAQUÊA, Vera. Literaturas de língua portuguesa: marcos e marcas –
Moçambique. 2ª ed. São Paulo: Arte & Ciência, 2011.
MENESES, Maria Paula. Nação e narrativas pós-coloniais: interrogações em torno dos
processos indentitários em Moçambique. In: LEITE et. al. Nação e narrativa pós-
colonial: Angola e Moçambique. Lisboa: Edições Colibri, 2012, p. 311-322.
QUIJANO, Aquino. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS,
Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula [orgs.]. Espitemologias do Sul – São
Paulo: Cortez, 2010, p. 84-132.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a
uma ecologia de saberes. In: In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria
Paula [orgs.]. Espitemologias do Sul – São Paulo: Cortez, 2010, p. 31-83.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1218
REPRESENTAÇÕES DA MULHER AMAZÔNICA NO
ROMANCE DE MILTON HATOUM [Voltar para Sumário]
Joanna da Silva (UFAM)
Introdução
Muito bem aceitas pelo público, as obras de Milton Hatoum, num total de quatro
romances, um livro de contos e um de crônicas, consagram-no como um dos autores
brasileiros contemporâneos mais traduzidos e premiados no momento. Suas narrativas
geralmente focalizam uma época específica, a década de 1950 a 1960, e têm como
cenário a região amazônica – sobretudo a cidade de Manaus.
Além de suscitar temas diversos como memória, cultura, identidade,
regionalismo e drama familiar, sua obra desperta a atenção para a construção e a
representação de suas personagens femininas, uma vez que o texto hatouniano é
povoado por mulheres de origens diversas (libanesas, amazonenses, indígenas) que,
juntas, dividem o mesmo espaço e protagonizam distintos papéis, nos quais definem e
seguem regras e costumes relativos à época e ao meio social em que estão inseridas.
A diversidade cultural presente nas personagens hatounianas corrobora, de
maneira significativa, com a questão sociocultural e relacional da mulher imigrante e da
mulher nativa no espaço amazônico. Essa diferença cultural motiva conflitos diversos,
abrindo, assim, a possibilidade de visualizar, através das personagens femininas, as
relações de gênero interseccionadas com os conceitos de classe e etnia que caracterizam
a atuação do poder na configuração identitária dessas mulheres.
A partir deste pressuposto, este trabalho tem como objetivo principal analisar,
sob o enfoque das relações de gênero, como se dá a construção e representação da
mulher amazônica nos quatro romances de Milton Hatoum, a saber: “Relato de um certo
Oriente” (1989), “Dois irmãos” (2000), “Cinzas do Norte” (2005) e “Órfãos do
Eldorado” (2008). Vale ressaltar que isso implica uma análise da construção e
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1219
representação da mulher não como categoria homogênea, mas multifacetada, que nos
permite verificar de que forma as questões relacionadas à etnia e à classe social se
entrecruzam com as relações de gênero no romance hatouniano, produzindo a diferença
que se pode perceber na representação dessas mulheres personagens.
Questões metodológicas: gênero, classe e etnia.
Os estudos de gênero, advindos dos desdobramentos da crítica feminista a partir
da segunda metade da década de 1970, constituem uma abordagem de extrema
relevância para o entendimento das hierarquias e relações de poder travadas no âmbito
da cultura. O conceito de gênero surge como tentativa de se superarem os problemas
relacionados à utilização de algumas noções centrais nos estudos sobre mulheres, tais
como o patriarcado. Nesse sentido, a categoria gênero foi responsável por atualizar e
ampliar as discussões em torno do tema da desigualdade e da opressão, incluindo os
estudos acerca das mulheres negras, dos gays e lésbicas, também sobre masculinidade e
mulheres do terceiro mundo.
Sendo uma categoria de análise útil, o termo “gênero”, para Joan Scott (1990),
passou e ser utilizado em contraposição a uma visão demasiado estreita sobre as
mulheres, ao “introduzir uma noção relacional em nosso vocabulário de análise”
(SCOTT, 1990, p. 5). Para Scott, o gênero, enquanto categoria relacional de análise,
mantém uma estreita relação com outras categorias, como classe e etnia. Estas, por sua
vez, encontram-se sempre ligadas a questões socioculturais.
Essa ideia é também corroborada por Audre Lorde (1994), ao afirmar que, nas
relações de poder entre os sexos ou entre as próprias mulheres, é definido um padrão de
feminilidade e valor geralmente associado à mulher branca das classes abastadas,
enquanto as mulheres que diferem em termos de cor ou raça são colocadas à margem.
A observação das representações de gênero na literatura, bem como em outras
produções culturais, permite identificar imaginários e atitudes legitimadas referentes ao
lugar ocupado pela mulher ou a ela designado, sobretudo em um país de tradição
patriarcal como o Brasil. Stuart Hall (2000), destaca que isso ocorre porque as
produções culturais, enquanto práticas sociais, constituem um campo de luta pela
construção de significados, de forma que é na esfera cultural que se produzem,
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1220
reproduzem, legitimam ou contestam noções de masculinidade e feminilidade
ideologicamente marcadas.
Para analisarmos a problemática levantada acerca da representação da mulher
amazônica e das relações de gênero que se fazem presentes no romance de Milton
Hatoum, a presente análise será organizada em duas partes: na primeira, intitulada
“Cunhantãs resignadas: subalternidades femininas”, focamos as empregadas domésticas
presentes nos quatro romances. Já na segunda parte, intitulada “Do mistério à perdição:
mulheres amantes”, analisamos as personagens amantes do “herói”.
Cunhantãs resignadas: subalternidades femininas
A relação entre gênero e classe - acrescida da noção de etnia - é fortemente
evidenciada na condição subalterna que caracteriza as empregadas domésticas presentes
no romance de Milton Hatoum: Anastácia Socorro (RO, 1989), Domingas (DI, 2000),
Naiá (CN, 2005) e Florita (OE, 2008). Descendentes da etnia indígena, elas
personificam, no romance hatouniano, a figura da mulher submissa e servil. São
mulheres humildes e desprovidas de recursos próprios, cuja condição étnica atua como
marca da sua alteridade e fator de discriminação a permear o convívio com o Outro.
A própria condição étnica dessas mulheres, em princípio, já pode ser vista como
marca da alteridade e fator de discriminação, revelando a ausência de uma generosidade
que se revele ou se esconda no trato com o Outro, na aceitação ou recusa do Outro. Elas
compartilham das mesmas condições subumanas antes relegadas ao negro nas regiões
servidas pela escravidão africana no Brasil, durante o período colonial. Em se tratando
da Amazônia, essa marginalidade é relegada ao descendente indígena, que se transforma
em mão de obra doméstica, um produto pouco valorizado pelo capitalismo, porém
imprescindível a seu funcionamento.
Gayatri Spivak, no ensaio “Can the subaltern speak?” (1988), chama a atenção
para a falta de autoridade que caracteriza o indivíduo subalterno em sua própria
representação, principalmente em se tratando de mulheres oprimidas. No caso das
empregadas domésticas analisadas, o deslocamento de seu habitat natural, ou seja, a
transposição para um ambiente de certa forma hostil à sua cultura, também acarretará
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1221
um segundo deslocamento, representado pela transposição social de valores, que
constituirá com maior intensidade o seu silenciamento.
No romance “Relato de um certo Oriente” tal condição é denunciada por
intermédio do olhar crítico do personagem Dorner, o fotógrafo alemão. Homem
estrangeiro e culto, Dorner vem para o Amazonas com o propósito de pesquisar a
cultura local e o comportamento dos índios e caboclos em convívio com os brancos.
As observações críticas de Dorner acerca dos privilégios provenientes da posse
de riquezas se comprovam através do regime de escravidão ao qual as subalternas locais
eram submetidas, fazendo-se revelar a lógica de um Brasil onde “reina uma forma
estranha de escravidão - A humilhação e a ameaça são o açoite; a comida e a integração
ilusória à família do senhor são as correntes e golilhas” (RO, 2002, p. 88).
Essa prática também é reconhecida por Hakim no espaço familiar ao constatar o
tratamento discriminatório dispensado às empregadas domésticas e a falta de
remuneração pelo trabalho que desempenhavam: “[...] devo dizer que as lavadeiras e
empregadas da casa não recebiam um tostão para trabalhar, procedimento corriqueiro
aqui no norte” (RO, 2002, p. 83). As palavras de Hakim reforçam a ideia de
subordinação em que os empregados da casa viviam, uma vez que Anastácia Socorro
vivencia a chamada “integração ilusória” de que fala Dorner, pois, apesar de adotada,
ela jamais chega a ser integrada como membro da família. Habitava um quartinho nos
fundos do quintal e, como os demais serviçais, também era discriminada e maltratada.
Em raros momentos de pausa no labor diário, patroa e empregada sentavam-se
para costurar ou bordar, de modo que se estabelecia entre ambas um instante de
cordialidade. Nessas ocasiões, Emilie contava as proezas dos homens de sua terra natal,
um mundo distante e desconhecido da empregada. Anastácia, por sua vez, ao apoderar-
se da fala expõe lembranças que povoavam seu passado de igualmente expatriada,
distante de seu povo. Através da fala ela busca atenuar a fronteira dos papéis sociais que
ambas representam, assim como desconstrói a ideia de que a diferença se converte
sempre em submissão.
Sob esse prisma, a “resignação” de Anastácia pode ser vista também como
estratégia de sobrevivência. Ela não entra em conflito com a patroa, mas também não se
deixa anular por completo e, nos momentos propícios, sabe como agir para se fazer
ouvir em sua alteridade. Segundo Lorde (1994), este reconhecimento da posição e
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1222
diferença social dá continuidade a uma forma de relacionamento humano caracterizada
pela relação dominante/dominado. Nela, o oprimido é levado a reconhecer a sua
inferioridade/diferença em relação ao “Senhor” (patrão), submetendo-se à
subalternidade como estratégia para sua própria sobrevivência.
A condição servil de Anastácia é, contudo, um elemento que ilustra a
supremacia da mulher branca de classe superior e revela o quanto esta, quando em
situação de poder em relação a outra, compactua com o regime opressor ao exercer o
poder sobre a empregada, contribuindo, portanto, para a perpetuação das estruturas
hierárquicas de opressão social.
O mesmo regime escravocrata e injusto destinado ao subalterno, denunciado por
Dorner, também se repete nas outras três obras. Assim como Anastácia Socorro,
Domingas, Naiá e Florita vivem sob o mesmo regime de “cárcere privado”. Aliás,
Domingas e Anastácia possuem uma trajetória muito semelhante: provenientes de
algum orfanato de Manaus, foram, ainda crianças, morar com as famílias libanesas.
Viviam à margem desses lares, morando em quartinhos nos fundos dos quintais. Daí já
se observa a situação de exclusão e orfandade que essas mulheres trazem como marca
de uma existência miserável e sem perspectivas.
A condição subalterna e excludente vivida por Domingas, a empregada
doméstica de Zana no romance “Dois irmãos” (2000) é denunciada através da voz
inconformada de seu filho Nael, o que reitera mais uma vez a falta de autoridade
representativa do sujeito subalterno de que fala Spivak (1988). Narrador do romance,
Nael não só é filho da empregada indígena, como também, possivelmente, filho de um
dos gêmeos da patroa. A voz de Nael serve de mediação para denunciar as condições de
vida que levava junto à mãe, uma pessoa que, segundo ele, não fez escolhas, que
vivenciava em seu dia a dia a experiência da divisão social entre pobres e ricos, patroa e
empregada.
No romance “Cinzas do Norte” (2005), a personagem Naiá também se mantém
fiel e dedicada aos patrões durante toda a sua vida. Esta personagem difere um pouco
das outras duas empregadas no tocante à relação entre submissão e autoridade. Naiá,
que tanto se dedicava à patroa e ao filho desta, também cuidava do patrão, dava-lhe
remédios, fazia-lhe companhia. Confiante nos anos de convivência e serviços prestados,
exigia que a patroa desse mais atenção ao marido doente.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1223
Além de empregada, Naiá era também cúmplice e alcoviteira do romance
clandestino que a patroa mantinha com Ranulfo. Apesar do apreço que sentia pelo
patrão, era ela quem levava os recados de um para o outro. Através dessa relação de
cumplicidade, criava-se entre patroa e empregada uma complexa relação de
interdependência que interessava a ambas e garantia a cada uma a satisfação de suas
respectivas necessidades e desejos.
Também Florita, na obra “Órfãos do Eldorado” (2008), tem sua vida marcada
pela miséria e pela falta de perspectiva. Era ela quem cuidava do pequeno órfão,
Arminto Cordovil, e também da casa e de seu patrão. Como as demais serviçais dos
romances de Hatoum, Florita também atua como mediadora das conflituosas relações
familiares, e negociando continuamente seu status com cada membro.
Assim como Arminto, abandonado pelo pai e quase reduzido à condição de
mendicância, Florita também foi atingida pela ruína, após a morte do patrão. Ao longo
da narrativa, o corpo de Florita, já em processo de envelhecimento, apresentava marcas
do cansaço, do sofrimento e da miséria, como relembra Arminto, ao visitá-la pouco
antes de morrer: “Olhei para o chão e vi os pés de Florita. Inchados, sujos de terra, as
pernas também inchadas. O rosto já não escondia a velhice” (OE, 2008, p. 89).
A atenção de Arminto, dirigida ao corpo da empregada, demonstra o quanto o
homem necessita do corpo da mulher para mediar a sua relação com a natureza e o
mundo (BEAUVOIR, 1980), o que sugere que o corpo feminino está revestido de um
caráter meramente imanente. Enferma, feia, velha, a mulher sempre causa horror.
Como uma planta que murcha e seca, a mulher decrépita atemoriza o homem. É nesse
corpo que lhe é destinado que o homem experimentará sensivelmente a decadência da
carne, algo que suscita o medo e, não raro, um ódio profundo. Em contrapartida, o corpo
de outro homem jamais evocará nele essas mesmas sensações.
Pouco depois, Arminto é surpreendido pelo vizinho de Florita, que empurrava o
tabuleiro com o cadáver da empregada. O corpo abjeto de Florita, estendido no
tabuleiro, testemunha sua condição de servidão, assim como o corpo de Domingas (DI,
2000), que foi esmorecendo ao ritmo da labuta diária, até o dia em que se paralisou por
completo, inerte na rede desbotada. Como os demais corpos servis descritos por
Hatoum, destinados unicamente à produção, o corpo de Florita serve como instrumento
de denúncia de seu status “reificado”, na ordem exploratória em que se insere, como
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1224
sugere o corpo inerte estendido sobre o tabuleiro, seu derradeiro instrumento de
trabalho.
Do mistério à perdição: mulheres amantes
Uma das características marcantes do romance hatouniano é a heterogeneidade,
o que torna inviável uma classificação homogênea da mulher enquanto foco de análise.
Essa diversidade não só inviabiliza uma categorização genérica, como também nos leva
a questionar a alteridade que se faz presente no universo feminino, principalmente no
tocante a questões familiares e às hierarquias sociais, inseridas em conceitos de classe e
etnia.
Dentre os vários aspectos de categorização feminina que permeiam os quatro
romances analisados, destaca-se também a figura flamejante e conflituosa da “mulher
amante”. Ela é concebida como uma espécie de antagonista, principalmente aos olhos
das “sogras”, mães dos “heróis”, que se sentem ameaçadas em sua estabilidade
emocional. Responsáveis pela quebra da ordem dentro dos lares, as pretensas noras
passam a ser desqualificadas, tendo sua imagem exposta de maneira negativa pelas
sogras, que resistem em aceitar sua integração no seio familiar.
A construção do perfil feminino na narrativa hatouniana se dá em geral de forma
maniqueísta, uma vez que oscila entre o céu e a terra, o bem e o mal, de maneira
formular: enquanto a esposa e mãe é investida de beleza, candura e amor imensurável (e
no entanto passível de ter sua honra maculada), as amantes são excluídas e
discriminadas, chegando a ser demonizadas e associadas a Eva, símbolo do pecado e da
tentação. Essas mulheres nunca estão à altura do modelo ideal almejado pelas mães dos
“heróis”. Ao contrário, são frequentemente qualificadas como “putas”, e exercem,
segundo as sogras, o poder de enfeitiçar os homens, produzindo, assim, a desgraça e a
perdição masculina. Trata-se de uma representação que segue os moldes da estereotipia
do “monstro”, tradicionalmente apontada nas representações masculinas da mulher,
conforme apontam Sandra Gilbert e Susan Gubar, na obra The madwoman in the attic
(2000).
Relevante para a nossa compreensão dessas representações femininas nos
romances hatounianos é o mito, que povoa o imaginário popular na Amazônia. Este se
insere na narrativa contextualizando-se com a cultura da região amazônica. A cidade de
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1225
Manaus, cercada pelas águas escuras do rio Negro e pela floresta amazônica, torna-se o
berço de onde o mito emerge e se anuncia na fronteira entre a verdade e a mentira, a
história e a ficção, e ganha força nas paixões inacessíveis de homens e mulheres que
oscilam entre a realidade e a imaginação, o concreto e o abstrato.
Ao confrontar natureza e cultura por meio de um mundo primitivo e ao mesmo
tempo mágico, que ainda sobrevive na Amazônia através de suas tradições culturais,
Marcos Fredrico Krüger (2009), afirma que o mito, enquanto expressão das sociedades
primitivas, vem perdendo suas características, na modernidade, por influência de uma
nova ordem econômica, uma vez que os seres humanos estão submetidos ao transcurso
histórico. No entanto, a literatura, por meio da mitologização que se faz presente em
obras literárias contemporâneas, ganha uma nova roupagem pela busca de uma
sociedade diferente, uma vez que, através do mito, torna-se possível a recuperação do
paraíso perdido:
No imaginário amazônico, o boto representa o ser mítico masculino que tem o
poder de seduzir as moças e engravidá-las. Devido ao seu forte poder mitológico, o olho
do boto serve como amuleto e talismã na conquista da mulher amada. Essa crença é
resgatada por Hatoum em alguns episódios, como aquele em que Arminto parte em
busca de sua amada Dinaura: “Viajei numa embarcação velha [...] Pendurei no pescoço
o olho de boto que ganhei de Florita e enfiei no bolso da calça a fotografia de minha
mãe” (OE, 2008, p. 100).
Assim como existe no imaginário os seres que simbolizam a conquista
masculina, existem também aqueles que se ligam ao fascínio feminino, é caso, por
exemplo, do amor não concretizado pelo homem, que será referenciado na figura da
lendária “cobra grande”. Ela simboliza a história das paixões alucinadas, irrealizáveis, o
desvario masculino, que devastam e ameaçam as estruturas familiares. Por isso, o poder
de sedução feminina entra em choque com a visão das guardiãs das estruturas
familiares, associando a imagem de mulher sedutora aos encantos e perigos de seres
mitológicos.
A figura feminina, associada ao mito, adquire um sentido ambivalente e oposto
em determinados momentos: enquanto Dinaura representa a perdição aos olhos de
Florita, a figura materna de Angelina adquire um sentido maculado para o filho.
Arminto, por meio de uma fotografia, invoca sua proteção, como se recorresse à
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1226
imagem da Virgem Maria, aquela que, cheia de misericórdia, protege seus filhos
durante as caminhadas por veredas desconhecidas e misteriosas. Segundo de Beauvoir,
“Esse papel misericordioso e terno é um dos mais importantes que foram atribuídos à
mulher” (BEAUVOIR, 1980, p. 225).
Em Dois irmãos (2000), quando Omar se envolve com Dália, Zana sente-se
afrontada com a presença da namorada do filho, qualificando-a como “uma dançarina
vulgar. Aquela mulher ia te levar para o inferno” (DI, 2000, p. 106). Ao se desviar do
perfil idealizado, as namoradas e amantes tem sua imagem associada aos mitos da
natureza, seres que seduzem e enfeitiçam os homens, imagens que atuam como
elementos de exclusão, principalmente em relação à mulher nativa.
Com a morena Pau-Mulato, moça bonita e atraente, não foi diferente. Zana se
sentia ameaçada pela rival e tentava, sem êxito, persuadir Omar a se afastar da mulher
que, segundo ela, seria sua perdição: “ela vai te sugar, te enfeitiçar” (DI, 2000, p. 144).
Para Zana, eram mulheres que jamais ocupariam o lugar digno de esposa dos filhos:
“desconhecidas que não freqüentavam os salões de beleza famosos... moças que nunca
tinham saído de Manaus, nunca viajaram ao Rio de Janeiro” (DI, 2000, p. 100).
Percebe-se também que a consciência de classe da protagonista a faz ver as pretendentes
de seu filho como candidatas desqualificadas por serem socialmente inferiores a ele.
A atitude dessas mães de discriminar e rejeitar a mulher nativa, por questões de
ordem econômica, social e comportamental, pode também ser analisada como uma
herança do período colonial na região. De acordo com Heloisa Lara C. da Costa (2005),
essa atitude de discriminação à mulher nativa era típica da elite estrangeira na época, o
que não só as diferenciava, como também obrigava uma mudança de comportamento
para que a mulher manauara pudesse se afirmar perante a elite:
[...] É muito freqüente no registro dos viajantes a referência à lascívia e
luxúria encontradas nas mulheres nativas. O espontaneísmo sexual dessas
mulheres indígenas e caboclas, na visão de estrangeiros, em sua maior parte,
de formação calvinista, etnocentricamente era visto como imoralidade. Para
uma elite regional que pretendia se afirmar perante o colonizador, cumpria se
distanciar dessas formas de comportamento, utilizando-se de símbolos como
roupas, jóias, objetos de decoração, atitudes de recato que cumpriam o papel
de diferenciá-las do resto da população empobrecida (COSTA, 2005, p. 152).
Com Arminto (OE, 2008), não foi diferente. Apesar de não ter a mãe em seu
convívio, Florita assume para si o papel de opinar e interferir em seus relacionamentos,
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1227
graças à autoridade que o próprio Arminto lhe conferia por ela tê-lo criado. Confiante
em sua influência sobre Arminto, Florita achava-se no direito de interferir em sua
paixão por Dinaura, a qual ela renegava e discriminava, insistindo que a órfã era só
feitiço – o que a aproxima do estereótipo da bruxa ou monstro.
Dinaura, mais que todas as outras mulheres presentes nos demais romances,
simboliza a força da lenda e do mito amazônico: a moça de origem desconhecida torna-
se alvo das investidas de Florita: “parecia uma dessas loucas que sonham em viver no
fundo do rio” (OE, 2008, p. 31). O fundo do rio simboliza o mistério e a riqueza, o
Eldorado, a cidade encantada. Dinaura, na obra de Hatoum, é a reencarnação viva dessa
lenda. Ela representa o mito da mulher idealizada e inacessível, que se faz presente nas
relações abstratas, como um produto da própria existência humana, cujo estímulo se fixa
justamente na impossibilidade de realização.
Com o desaparecimento de Dinaura, ficou a dúvida lançada por Estiliano ao
revelar que a órfã era protegida de Amando, que este a trouxera, não se sabe de onde,
dizendo ser sua afilhada, entregando-a no convento. Dinaura seria então filha de
Amando? Ou sua amante? Seria ela, então, meio-irmã de Arminto? Ou sua madrasta?
Segundo o próprio Estiliano, “Tinha idade para ser as duas coisas” (OE, 2008, p. 98).
Esse mistério sobre Dinaura não é desvelado e se constituiu como mais um dos enigmas
indecifráveis apresentados por Hatoum em suas narrativas.
Dinaura representa o enigma da mulher cobiçada, idealizada e do amor não
realizado, é mais uma das mulheres/amantes de passado e origem desconhecidos, cuja
beleza e poder de sedução faz dela uma figura estigmatizada e cercada pelo mistério.
Seus atributos sedutores encontram equivalência no encantamento dos seres
sobrenaturais que povoam o imaginário amazônico e ganham espaço na narrativa
hatouniana. Dinaura representa o corpo belo e sensual da mulher nativa, permitindo aos
mitos a metaforização dos sentimentos mais profundos e inacessíveis dos homens.
Porém, a construção maniqueísta da “mulher boa”, associada à mãe e à esposa, e
da “mulher má”, associada à amante, escapa ao controle autoral, produzindo uma
ambigüidade quando se incluem as empregadas domésticas na categoria
namoradas/amantes, ou casos eventuais, uma vez que elas transitam por estes dois
grupos. Apesar de serem submissas e discriminadas, elas também são admiradas por sua
beleza, candura e amor, como é o caso de Domingas, cuja dedicação e afeto para com
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1228
Yaqub e Omar desperta suspeita de um consentido relacionamento amoroso entre ela e
os gêmeos. Outro caso seria o de Florita, por quem Arminto não escondia sua
admiração, a mulher que o iniciara na arte do amor, mas que também fora responsável
por afastá-lo ainda mais do pai, aspectos que fazem dela um misto de bem e mal.
Atitudes dessa natureza, presentes nas empregadas domésticas, as situam ora no
patamar da “mulher boa”, amorosa, protetora e servil, ora no patamar da “mulher má”,
aquela que enfeitiça e seduz o homem, levando-o à “perdição”.
Considerações finais
Sendo os estudos de gênero subsidiados pelo caráter relacional, como nos aponta
Joan Scott (1990), é a partir do entrelaçamento da vida de homens e mulheres que se
derivam as complexas relações de gênero, identidade e poder. A partir deste
pressuposto, a presente análise tomou como ponto de partida a forma como o autor
enfatiza a presença da mulher frente aos conflitos domésticos e familiares que se
desenvolvem no interior da esfera doméstica e que constitui, dentro da narrativa, um
locus de produção e reprodução de ideologias de gênero, classe e etnia.
A estratégia de Hatoum em colocar sempre uma figura feminina no eixo central
da narrativa propicia uma análise das representações de gênero e do funcionamento do
poder centrados nas personagens femininas. Desta forma, as empregadas domésticas e
as pretensas noras tornam-se oprimidas e discriminadas, sendo o principal opressor uma
outra mulher. Este constitui, portanto, fator recorrente entre as obras: a mulher como
figura central nas relações familiares e detentora e propagadora das relações de poder
sobre os demais membros da hierarquia familiar, principalmente sobre outras mulheres.
Os determinantes de classe e etnia presentes na narrativa, bem como na estreita
relação que mantêm com as noções de gênero, se revelam na discriminação das
empregadas “nativas” e pobres, que dedicam toda uma vida em prol do trabalho servil,
sem reivindicar nada em troca, e também nas relações sociais e familiares que envolvem
as namoradas dos “heróis”, nas quais os fatores classe e etnia interagem de forma direta
na configuração de relacionamentos assimétricos.
Em se tratando da construção e representação da mulher por Hatoum, é válido
também apontar como se dão as duas vertentes da oposição na qual as mulheres são
situadas no decorrer dos romances: ora como dominadoras e opressoras, ora como
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1229
discriminadas e oprimidas. Porém, nenhuma das mulheres/personagens consegue se
situar plenamente em qualquer uma dessas posições, pois tudo depende da relação que
se estabelece entre elas e os outros personagens. As empregadas, por exemplo, são
oprimidas por sua condição de pobreza, marginalidade social, mas têm certa ascensão
sobre os patrões e filhos destes – que as adotam, possivelmente as amam, ou as colocam
no lugar materno, embora essas personagens em geral, terminem desvalidas. Como
resultado disso sua caracterização é perpassada de ambiguidades, uma vez que oscilam
entre o “bem” e o “mal”, sendo ainda “inacessíveis” ao controle masculino.
Desse complexo de relações de gêneros emerge uma visão contundente dos
diversos papéis que as personagens femininas desempenham dentro do contexto
romanesco, do qual deriva uma submissão feminina relativa, determinada pelas
categorias de gênero, classe social e etnia, reiteradas frequentemente através da
essencialização das identidades femininas. Porém, diversas estratégias são utilizadas
pelas personagens oprimidas para compensarem a exclusão e a discriminação. A leitura
das relações gênero, no complexo universo ficcional de Milton Hatoum, evidencia a
significativa interação entre os fatores classe social e etnia, além do gênero,
responsáveis pela subordinação e discriminação da mulher amazônica e, ao mesmo
tempo, as formas de resistência, associadas principalmente às trocas afetivas, que
atenuam ou problematizam o exercício do poder e do controle social.
Referências
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Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
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Press, 2000.
HALL, Stuart. Quem precisa da identidade? In: SILVA, Tomaz T. (Org.). Identidade e
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HATOUM, Milton. Dois irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
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HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. 2 ed. São Paulo: Companhia das
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HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
KRÜGER, Marcos Frederico. Amazônia: mito e literatura. 3 ed. Manaus: Valer, 2009.
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McCLINTOCK, Anne; MUFTI, Aamir, SHOHAT, Ella (eds.) Dangerous liaisons:
gender, nation, and postcolonial perspectives. Minneapolis/London: University of
Minnesota Press, 1997, p. 374-380.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & realidade.
Porto Alegre, 16(2), p. 5-22, julho/dezembro 1990.
SPIVAK, Gayatri. “Can the subaltern speak?”. In: NELSON, Cary; GROSSBERG,
Layrence (eds.). Maxist interpretation of culture. London: Macmillan, 1988, p. 24-28.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1231
INTERTEXTUALIDADE COMO METALITERATURA:
ANÁLISE COMPARATIVA DE VIDAS SECAS E “FAROESTE
CABOCLO” [Voltar para Sumário]
João Batista da Silva (UFRPE/UAG)290
Nilson Pereira de Carvalho (UFRPE/UAG) 291
Introdução: intertextualidades como aspecto metaliterário
É notável como pode haver remissão de uma obra literária à outra, ainda que não
completamente; mas um estilo, um tema, ou até mesmo uma personagem. Porém, o mais
intrigante é que muitas vezes as obras que fazem remissão foram produzidas em épocas,
países e contextos distintos uma da outra, ou seja há uma “rede de conexões”, direta ou
indireta, entre as obras, a intertextualidade.
De acordo com Sandra Nitrini (2010), Kristeva apoiou-se em reflexões propostas por
Bakhtin, em La poétique de Dostoievski, para criar o conceito de intertextualidade, teoria que
prioriza a totalidade do texto, ou seja, que engloba o sujeito, o inconsciente e a ideologia,
numa perspectiva semiótica, em que o texto literário relaciona-se com vários outros textos; o
que implica afirmar que não existe um texto totalmente inédito.
Todavia, se não existe texto inédito, o que vai definir o caráter de originalidade de um
texto literário em relação a outro? Em resposta a este questionamento, Valery (In: NIITRINI,
2010) afirma que a originalidade é um caso de assimilação, ou seja, a capacidade de um autor
fazer uso do “substrato” dos outros vai definir o que é o original e o que é plágio. Entretanto,
a assimilação de um autor por outro nem sempre acontece de forma direta. Nesse sentido, para
Cionarescu (Apud NITRINI,2010), a influência apresenta duas acepções. A primeira está
assoviada à ideologia, ou seja, umas conversas, uma leitura, além das experiências de mundo
podem influenciar na escrita de um autor. Por sua vez, a segundo acepção diz respeito às
290 Graduado em Letras pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), Unidade Acadêmica de
Garanhuns. 291 Professor Adjunto da Universidade Federal Rural de Pernambuco - Campus de Garanhuns-PE
(UAG/UFRPE).
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1232
similaridades entre as obras, sem que um haja lido a obra do outro. Nesse sentido, a segunda
acepção.
Por sua vez, Culler (1999) afirma que ler uma obra literária é fazer relações com
outras obras literárias e contrastar as formas como cada uma faz sentido. Assim, segundo este
autor, a Literatura é uma prática na qual os escritores buscam fazer avançar e renovar a
própria literatura. Essa prática corresponde a uma reflexão da Literatura sobre ela mesma, ou
metaliteratura.
Em relação ao conceito de Metaliteratura, os pesquisadores do projeto “Metaliteratura
e suas metáforas”292
trazem discussões mais específicas sobre o fenômeno da
autorreferenciação da Literatura, e afirmam que uma obra pode remeter a elementos que
fazem a literatura operar, são eles: a obra, o escritor e o leitor, assim como a processos que
compõe a obra literária: ato de escrever, ato de ler etc.
A partir das discussões apresentadas, pode-se concluir que a relação intertextual
realiza-se mais na leitura (recepção) do que propriamente na produção (criação), pois um
autor, muitas vezes, não percebe que sua obra remete à outra, num processo de assimilação da
cultura. No entanto, as suas experiências de leitura, assim como o seus conhecimentos de
mundo tornam possível a relação intertextual.
Assim, é perceptível que a intertextualidade se comporta como um aspecto
metaliterário, na medida em que há uma remissão intertextual de uma obra a outras e, com
isso, torna possível a renovação da Literatura. Esse aspecto de renovação sem a necessidade
coercitiva de leitura anterior verificável (de um autor a outro), portanto, pode ser empreendida
por uma análise comparativa de força intertextual, tal qual a que será demonstrada a seguir.
1. Leitura intertextual de Vidas Secas e “Faroeste Caboclo”: análise comparativa
Antes de qualquer coisa, faz-se necessário deixar claro que o aspecto que mais
aproxima as duas obras é a narratividade. Nesse sentido, por mais que “Faroeste Caboclo”
possa ser classificada como uma “poesia moderna”, ou seja, por estar disposta em versos e por
possuir características tanto líricas, quanto épicas e dramáticas, essa letra de música é
predominantemente uma narrativa (épica). Dessa forma, os elementos líricos (assonância,
292
Projeto de Pesquisa “Metaliteratura e suas metáforas”. Projeto de Pesquisa da Universidade Federal Rural de
Pernambuco, 2011. Fizeram e/ou fazem parte deste projeto os pesquisadores: Nilson Pereira de Carvalho
(coordenador), Jaime de Queiroz Viana Neto (bolsista de Iniciação científica do CNPq), João Paulo de Souza
Araújo (bolsista de Iniciação científica do CNPq) e João Batista da Silva (autor deste artigo, bolsista de Iniciação
científica do CNPq).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1233
aliteração, etc.) e dramáticos (diálogos), até mesmo a variação rítmica, quando a letra está
sobreposta à música, corroboram com a narratividade. Em relação a Vidas Secas, por ser um
romance, a narratividade é a sua característica principal, mas isso não implica dizer que a obra
de Graciliano Ramos não possua características dramáticas e líricas, muito pelo contrário.
Entretanto, assim como ocorre em “Faroeste Caboclo”, os aspectos líricos e dramáticos de do
romance de Graciliano Ramos também contribuem com a narratividade da obra.
Assim, essa análise se debruçará sobre o elemento que mais aproxima as obras a serem
analisadas, a narratividade. Com isso, pretende-se analisar os dramas, os sonhos e as
decepções de personagens que buscam por um lugar melhor, mas que esbarram no meio
social, por isso, enfrentam várias idas e vindas em suas trajetórias e, no final, não atingem o
objetivo.
Segundo Antônio Candido (2005), os romances modernos procuraram diminuir a ideia
de sistemas fixos das personagens, assim como ocorre nos romances tradicionais. Segundo o
autor, o trabalho de seleção do romancista é responsável pela criação de personagens mais
parecidos com as pessoas do mundo objetivo, logo, mais complexas.
Nessa perspectiva, as personalidades das personagens de Vidas Secas e “Faroeste
Caboclo” vão ao encontro desta afirmação, assim, para demonstrar o que está sendo
defendido, e para fins de análise comparativa, quatro categorias de personagem que merecem
destaque em ambas as obras são trazidas à tona: o protagonista, o antagonista, as mulheres e o
doador.
Em Vidas Secas, o protagonista é um vaqueiro ruivo e pele queimada pelo sol. Rude,
acostumado a estar junto com os animais e que não consegue falar direito, tampouco
raciocinar sobre as coisas que acontecem ao seu redor, este é Fabiano. Vive no sertão e, para
sobreviver nesse lugar tão seco de vidas e de esperança de dias melhores, tanto sua aparência
quanto suas atitudes assemelham-se a animais: forte no mato, mas indefeso na cidade grande:
“Vivia longe dos homens, só se dava bem com os animas. Os pés duros quebravam espinhos e
não sentiam a quentura da terra. Montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele”
(RAMOS, 2005, p.20).
Por outro lado, o protagonista de Faroeste Caboclo é João de Santo Cristo, jovem
negro do interior que, desde pequeno, praticava crimes, “ia para igreja só para roubar o
dinheiro que as velhinhas colocavam na caixinha do altar” (RUSSO, 1987). Além disso, ao
contrário de Fabiano, João de Santo Cristo pensa, pois elabora planos para ir em busca das
“coisas que ele via na televisão” (RUSSO, 1987). Santo Cristo possui um caráter
contraditório, pois é descrito de várias formas na letra de música: como malvado, vitima,
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1234
cruel, protetor e como herói. Além disso, diferentemente do que acontece com Fabiano, Santo
Cristo sofre tanto por ser sertanejo quanto por ser negro: “Não entendia como a vida
funcionava/Discriminação por causa de sua classe e sua cor” (RUSSO, 1987).
Em se tratando da figura do antagonista, Vidas Secas possui o Soldado Amarelo,
personagem que engana Fabiano e o prende por motivo torpe. Por sua vez, em “Faroeste
Caboclo”, não existe apenas um antagonista, mas dois. Nesse caso, Jeremias, “traficante de
renome”, com quem Santo Cristo protagoniza um duelo sem vencedores (ambos morreram); e
o General de dez estrelas, personagem que faz uma “proposta indecorosa” a Santo Cristo.
O Soldado Amarelo é uma personagem frágil fisicamente, mas que faz uso de sua
autoridade para amedrontar os vaqueiros. Ao contrário de Fabiano, o Soldado é valente na
cidade, mas covarde no sertão. Além disso, para Fabiano, ele é tido como um representante do
governo, mas que faz uso da autoridade investida a ele para agir em benefício próprio, uma
espécie de “governo paralelo”.
Por outro lado, Jeremias, como é descrito na canção, é um “maconheiro sem
vergonha” que “desvirginava as mocinhas inocentes” e “se fingia que era crente, mas não
sabia rezar”. Essa personagem protagoniza algumas disputas com João de Santo Cristo, dentre
elas o “amor” de Maria Lúcia e o duelo final. Por sua vez, o General de dez estrelas tem a
mesma representatividade que o Soldado Amaro tem para Fabiano (autoridade que oprime os
mais fracos). Trata-se de um militar reformado, que surge quando João do Santo Cristo se
arrepende de seus “pecados” e passa a viver, em paz, com Maria Lúcia, e o faz sair
novamente da “zona de conforto”; ou seja, ao recusar a “proposta indecorosa”, Santo Cristo
perde tudo que havia conquistado até então. Sem saída, o protagonista torna-se traficante.
Em relação às personagens mulheres que merecem destaque, Vidas Secas tem Sinha
Vitória; mulher forte, mas também ingênua. Forte, pois ela é o cérebro de Fabiano, cuida dos
filhos, da casa e sobrevive ao sertão opressor. Mas ingênua por achar que a felicidade dela e
de sua família depende da aquisição de uma cama de couro, igual a que Seu Tomás da
Bolandeira tinha.
Por outro lado, Maria Lúcia é maliciosa, pois a princípio surge como “a figura do
amor” para Santo Cristo, capaz de tirar a alma do protagonista “das trevas” em que estava
imersa. Entretanto, não demora muito, e Maria Lúcia transforma-se na figura responsável pela
derrocada da personagem principal ao casar-se com Jeremias, principal rival do protagonista.
Assim sendo, ela é responsável despertar todo o ódio de Santo Cristo, e o faz “ir ao
inferno”. Todavia (novamente), ao ver protagonista agonizando sob o sol (após levar um tiro
pelas costas), ela arrepende-se e leva a arma Winchester-22 (presente que Pablo deu ao Santo
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1235
Cristo) até ele. De santa a Vilã, e de vilã a Santa, essas são as representações de Maria Lúcia
na Letra de Russo.
Em relação à figura do doador, as obras apresentam Tomás da Bolandeira (Vidas
Secas) e Pablo (“Faroeste Caboclo”). Essas personagens correspondem aos exemplos de
sucesso para as personagens principais. O primeiro é tido como uma pessoa culta, que fala
palavras difíceis e que tinha uma cama de couro, por isso é um exemplo para Fabiano e sua
esposa. Porém, Tomás da Bolandeira morrera no sertão e é evocada pelo fluxo de desejo tanto
de Fabiano quanto de Sinhá Vitória. Nesse caso, Tomás da Bolandeira é o exemplo de que
diante do sertão, não adianta ser culto ou bruto, pois todos parecem caminhar em uma única
direção; a direção da morte.
Na outra obra, Pablo é “um peruano que vivia na Bolívia” que, além de primo,
corresponde também a um exemplo para Santo Cristo; um exemplo de criminoso, é verdade,
mas ainda assim um exemplo. Ao contrário do que acontece com Tomás da Bolandeira (que é
evocado), Pablo está vivo; e se Tomás da Bolandeira, mesmo que morto, é um exemplo de
pessoa bem sucedida no sertão, Pablo é a personificação do sucesso para quem quer vencer na
vida em uma metrópole capitalista e violenta. Além disso, Pablo é quem cede a arma para que
Santo Cristo tenha o seu desfecho final.
Com isso, conclui-se que as personagens de Vidas Secas e “Faroeste Caboclo” vão ao
encontro dos conceitos de personagens de romances modernos, ou seja, personagens que
possuem características complexas e que sempre surpreendem o leitor. Nesse sentido, fica
nítida a preocupação dos autores em criar personagens que se aproximam de pessoas reais, e
com problemas reais, pois quanto mais às personagens têm essa aproximação
(verossimilhança), mais complexas elas serão.
2. O Eldorado e a Via Crucis
Durante séculos o mito do Eldorado teve muitas versões; na antiguidade clássica, por
exemplo, muitos buscaram a famosa “Atlantida”, e até mesmo o Brasil, no período colonial,
já foi considerada “a terra prometida”, devido às suas minas de ouro. Outra versão desse mito
é que na Floresta Amazônica havia uma cidade feita de ouro e que virou objeto de cobiça de
muitos exploradores que saíram a sua procura. Procuraram, mas sucumbiram diante da vida
selvagem.
Nesse caso, tanto em Vidas Secas quanto em “Faroeste Caboclo”, há também uma
procura por uma espécie de Eldorado. Porém, a busca de Fabiano e de sua família não é por
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1236
uma cidade feita de ouro, mas por um lugar onde possam estar livres da seca e onde possam
“engordar” e serem tratados como “gente”. Já em “Faroeste Caboclo”, a busca de João de
Santo Cristo não é só por um lugar melhor, mas também pelas “coisas que ele via na
televisão”, ou seja, pelas vantagens que uma sociedade capitalista pudesse oferecer.
Entretanto, pesa contra essas personagens o meio social (espaço), o qual age como o maior de
todos os inimigos, pois as transforma e não permite que consigam chegar ao Eldorado. Em
Vidas Secas, o algoz das personagens é o sertão e a seca, enquanto em “Faroeste Caboclo”, a
metrópole representa a “ida ao inferno” de João de Santo Cristo.
De acordo com Lins (Apud CARVALHO, s/data.), o espaço age sobre as personagens
e as modifica tanto fisicamente como mentalmente. Neste sentido, o autor afirma que o
espaço traça as particularidades dos personagens (físicas e comportamentais) e os influencia,
provocando suas ações.
Assim, ao analisar a ação das personagens de Vidas Secas no espaço em busca da
“terra prometida”, percebe-se que elas começam migrando (capítulo “Mudança”) e terminam
migrando novamente (capítulo “Fuga”). Nesse caso, esse “girar em círculo” das personagens
corresponde a uma ação do espaço sobre Fabiano e seus familiares, pois, para “os infelizes”,
só restavam duas opções: ficar e morrer na seca, ou migrar e tentar sobreviver em um local
que eles não conheciam, mas tinham esperança que existisse: “Não obstante, há sempre um
pensamento de um espaço em que a família venha a se satisfazer completamente. Será o céu?
Será o sul? Ambos?” (CARVALHO, s/data, p.4). Além disso, no ato de migrar e tentar
sobreviver, o meio opressor faz com que pareçam animais, fortes, mas incapazes que
encontrar algo melhor para suas vidas, afinal de contas “bicho do mato” não vive em
sociedade.
Por ironia, o ser mais humanizado da obra é Baleia (a cachorra), pois ela brinca com
os filhos, caça com Fabiano, acompanha Sinhá Vitória nos afazeres domésticos e cuida da
família. Além disso, vale lembrar que no começo da jornada, a família seguia a cachorra, ou
seja, ela mostrava a direção pela qual os “infelizes” deveriam seguir. Aliás, para não dizer que
nem todos os personagens conseguiram chegar ao Eldorado, a cachorra consegue chegar,
ainda que no seu leito de morte.
Baleia respirava depressa, a língua pendente e insensível [...] Baleia queria dormir.
Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um
Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio
enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos,
enormes. (RAMOS, 2005, p.91)
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1237
Nesse caso, com os delírios de morte de Baleia, vem à tona a ideia de morte como
libertação de todos os sofrimentos, ou seja, a morte é tida como o verdadeiro paraíso, pois só
com ela os infelizes poderiam se libertar daquele meio tão opressor.
Em “Faroeste Caboclo”, o pouco desenvolvimento e o “marasmo da fazenda”, além da
gana de conseguir “as coisas que ele via na televisão”, fazem com que João do Santo Cristo
saia da “cercania onde morava” e busque o seu Eldorado (ação do espaço sobre o
personagem). Porém, ao contrário do que acontece em Vidas Secas, em que as personagens
não sabem para onde vão, João do Santo Cristo, logo quando chega a Salvador, encontra um
boiadeiro que lhe orienta a ir a Brasília, pois segundo ele: “neste país lugar melhor não há”.
Na capital Brasil, alimenta a esperança de ter uma vida diferente da que tinha antes.
Entretanto, durante sua estada ali, o protagonista passa a ter contato com uma metrópole
capitalista, na qual as pessoas agem em benefício próprio e em prol do poder monetário; não
demorou e ele próprio se tornou um contraventor. Resultado: sua busca pelo Eldorado
termina com sua morte sob o sol escaldante.
Dessa forma, assim como o sertão fez com que Fabiano e a sua família migrassem e se
“animalizassem” para sobreviver à seca, Brasília fez com que João do Santo Cristo se tornasse
um fora da lei. Desta forma, em ambos os casos, houve a busca pelo tão sonhado Eldorado,
mas assim como aconteceu com as pessoas que tentaram encontrar a cidade de ouro, não
tiveram sucesso. Fabiano e sua família voltaram para o local onde estavam (Sertão) e João de
Santo Cristo caminhou rumo à morte. Portanto, a trajetória das personagens de ambas as obras
pelo espaço esboça um enredo penoso.
Nesse sentido, ressalta-se a compreensão da expressão Via Crucis, atribuída ao
percurso tortuoso enfrentado por Jesus Cristo até a sua crucificação. Tal expressão foi trazida
ao contexto deste artigo com o intuito de demonstrar que, da mesma forma que Jesus Cristo,
Fabiano e sua família, assim como João do Santo Cristo, também enfrentam uma caminhada
em direção ao sue próprio “calvário”. Entretanto, a cruz que as personagens de Vidas Secas e
“Faroeste Caboclo” carregam não é de madeira; mas social, afinal de contas, viver em um
meio que lhes oprime e que não os permite “ser gente”, sem infringir a lei (caso de “Faroeste
Caboclo”), parece ser um peso insuportável. Com isso, esta etapa da análise mostrará a ação
das personagens tanto de Vidas Secas quanto de “Faroeste Caboclo”, até as suas respectivas
“crucificações”.
Segundo Silva (1973), a narrativa moderna busca representar o mundo objetivo e as
ações dos homens na realidade externa. Assim, nos dias atuais, o narrar tende a caracterizar as
personagens, o espaço e as ações de forma mais verossímil possível. A narrativa moderna
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1238
apresenta personagens que, muitas vezes, não têm um final feliz, ou seja, elas podem começar
em uma situação difícil, ascender e atingir a felicidade, mas no final, podem acabar em um
“calvário” igual ou maior do que o do início.
Nessa perspectiva, as ações das personagens de Vidas Secas fazem jus ao título da
obra, pois, Vidas Secas remete a algo que necessita de água para florescer novamente. Nesse
caso, as personagens da obra começam em grande estado de “secura”, tentando sobreviver na
imensidão e na seca do sertão:
Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do
rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma
sombra [...] A caatinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas
brancas que eram ossadas. O voo negro dos urubus faziam círculos altos em redor de
bichos moribundos. (RAMOS, 2005, p. 9 - 10)
Porém, depois de tanto caminhar, conseguem chegar a uma fazenda abandonada e
descansam sob a sombra dos juazeiros. As coisas, enfim, começavam a dar certo para eles; lá
eles fazem planos: “iriam engordar” e Fabiano seria “o vaqueiro daquela terra”. Dessa forma,
as personagens atingem a felicidade plena, não com muito, mas com o máximo que eles
poderiam conseguir, diante daquele meio tão desumano. Nesse instante, as “Vidas” até então
“Secas”, recebem uma grande dose de água (ou melhor, de chuva) e florescem novamente:
A fazenda renasceria e ele, Fabiano, seria o vaqueiro, para bem dizer seria dono
daquele mundo [...] Uma ressurreição. As cores da saúde voltariam à cara triste de
Sinhá Vitória. Os meninos se espojariam na terra fofa do chiqueiro das
cabras.Chocalhos tilintariam pelos arredores; a caatinga ficaria verde (RAMOS,
2005,p.16).
Durante a estada dos “infelizes” na fazenda, suas vidas apresentaram muitas idas e
vindas, narradas pelos capítulos da obra. Nesse caso, os capítulos: “Fabiano”, “Sinhá Vitória”,
“O menino mais novo”, “O menino mais velho” e “Baleia” mostram as características de cada
uma dessas personagens tentando fixar-se no espaço. Nesses capítulos, são descritos os
desejos, os sonhos e as angústias, dessas personagens, diante da possibilidade de conseguir,
enfim, ter um lugar para ficar. Além disso, no capítulo “Baleia”, as personagens têm que
superar a morte daquela que os guiava e que, apesar de ser uma cachorra, era o “ser mais
humano” dentre aqueles infelizes.
Os capítulos: “Contas”, “Cadeia” e “Festa” apresentam o contato dos sertanejos com a
cidade e com o capitalismo. Em “Contas”, Fabiano e sua família têm contato com o dono da
fazenda, homem egoísta, que os explora com o seguinte pretexto: “aceita ou vai embora”.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1239
Fabiano não entendia o que era certo nem errado, sabia que não queria voltar ao sertão, por
isso, aceitava. Já “Cadeia” destaca-se por mostrar o primeiro contato de Fabiano com a
cidade. Nesse capítulo, depois de ser preso por fugir da mesa de jogo, o sertanejo vai parar em
um lugar que lhe é estranho. Dessa forma, a cadeia para Fabiano pode ser comparada a uma
jaula para um animal selvagem, ambos presos em um espaço que não lhes pertence.
No Capítulo “Festa”, acontece o segundo encontro de Fabiano com a cidade, mas,
dessa vez, junto de sua família. Na festa, os sertanejos conseguem, apesar da bebedeira de
Fabiano e do sumiço de Baleia, ter um pouco de alegria, mesmo longe do “habitat natural”.
Por fim, dois capítulos que também demonstram as idas e vidas, e também merecem
destaque são: “O Mundo Coberto de Penas” e “Fuga”. No primeiro, surgem os sinais de que a
seca estava voltando, e com ela, o “pesadelo da fome”. Por fim, “Fuga”, como o título já
indica, descreve a saída das personagens em busca (novamente) de um lugar melhor, pois a
permanência ali seria a certeza da morte. Partiram pela manhã. Destino? A cidade:
Iriam para adiante, alcançariam uma terra desconhecida. Fabiano estava contente e
acreditava nessa terra, porque não sabia como ela era nem onde era [...] andavam
para o sul, metidos naquele sonho. Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes
(RAMOS, 2005, p.127).
Como pode ser verificado, a obra encerra-se com as personagens no sertão, “do sertão
vieram e para o sertão voltaram”. Por isso, não é possível afirmar o que aconteceu depois (se
morreram ou não). A única certeza é de que a cruz que carregam (o sertão) transformou suas
almas de tal forma que, por mais que tentem mudar seus destinos, acabarão como “cachorros,
inúteis, acabando como Baleia” (RAMOS, 2005, p.128).
A história de Santo Cristo, diferente do que acontece em Vidas Secas, começa em uma
cercania no interior da Bahia, ou seja, Santo Cristo possuía um lugar que era seu. Entretanto,
por mais que tivesse onde viver, o marasmo, a violência, o racismo e o pouco
desenvolvimento de sua terra, fizeram com que esse herói nordestino partisse em busca de
uma vida melhor, por isso, rumo a Salvador. Lá, João de Santo Cristo conhece um
“boiadeiro” que o orienta a ir a Brasília. Ao chegar à capital, ele encontra uma cidade toda
iluminada, como se estivesse esperando por ele: "Meu Deus, mas que cidade linda /No Ano-
Novo eu começo a trabalhar/Cortar madeira, aprendiz de carpinteiro /Ganhava cem mil por
mês em Taguatinga” (RUSSO, 1987).
Desde sua chega a Brasília, João de Santo Cristo traçou “planos santos” para
conquistar seus objetivos. A princípio tenta vencer na vida honestamente, mas aos poucos,
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1240
Santo Cristo (ao contrário de Jesus), cede às “tentações diabólicas” do meio em que estava
inserido, e torna-se um fora da lei. Contudo, como todos têm direito ao perdão, Santo Cristo
arrependeu-se de seus pecados graças à Maria Lúcia, e tentou viver decentemente, mas por
mais que evitasse, Santo Cristo já havia “vendido sua alma ao diabo”, por isso, “Decidiu
entrar de vez naquela dança” (RUSSO,1987). Seu destino? A morte.
Todavia, algo muito interessante que acontece é que uma letra de música carece da
riqueza narrativa possível em um romance. No caso de “Faroeste Caboclo”, ganham
importância os ritmos, pois, na execução da letra sobreposta à música, a variação de ritmos
supre as carências da narrativa, ou seja, elementos como o espaço, a aventura, tensões, assim
com as decepções, o amor e até mesmo o clímax, são delineados pela variação de ritmos.
Nesse caso, alguns exemplos podem ser verificados facilmente, como por exemplo, a
balada inicial (com triângulo) descreve a partida de Santo Cristo, herói nordestino rumo à
capital; o reggae (associando o ritmo aos usuários de maconha) serve como “pano de fundo”
no momento em que Santo Cristo torna traficante; a balada romântica quando ilustra o
momento em que a personagem principal conhece o amor nos braços de Maria Lúcia; assim
como o rock nos momentos de aventura e/ou fúria do protagonista.
Em tempo, outro aspecto muito interessante diz respeito ao último verso, pois ao gritar
a palavra “sofrer”, ao invés de cantar, Renato Russo enfatiza o aspecto de denúncia da letra, e
revela o descontentamento com o fato de que muitas pessoas ainda sofrem em suas
“cercanias” e continuam migrando para as capitais e, pior, acabam como João de Santo Cristo.
Assim, a letra de “Faroeste Caboclo” denuncia que, assim como acontece em Vidas Secas, o
ciclo de migração continua.
Além disso, os textos parecem indicar que o caminho percorrido pelas personagens
não importa, pois a opressão é interna, o meio modifica as personagens em seus múltiplos
aspectos. Assim, por mais que tentem fugir dos seus destinos, não o conseguem, pois a
opressão já os havia transformado física, sócio e psicologicamente.
Considerações finais
Assim, ambas as obras analisadas narram o sofrimento do imigrante, em épocas e
contextos sociopolíticos diferentes. Em Vidas Secas, Graciliano Ramos descreve o drama
enfrentado por uma família; e “Faroeste Caboclo” apresenta o drama de um imigrante. Todos
tentando melhorar de vida.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1241
Nesse caso, é bem verdade que não é possível afirmar com veracidade documental que
Renato Russo leu a obra Vidas Secas para escrever “Faroeste Caboclo”. Porém, diante dos
temas que aproximam as duas obras apresentados neste trabalho, é inegável que haja uma
influência, direta ou indireta, da obra de Graciliano Ramos sobre a de Renato Russo.
Entretanto, apesar de apresentarem temáticas semelhantes, as obras possuem algumas
características contrastantes, pois Vidas Secas é um romance (gênero épico) e descreve
sertanejos que tentam sobreviver na imensidão do sertão, enquanto “Faroeste Caboclo” é uma
letra de música, que, apesar de disposta em versos, é uma narrativa e mostra o drama de um
sertanejo tentando vencer na vida em uma grande cidade.
Nesse sentido, o caráter de originalidade de “Faroeste Caboclo” em relação a Vidas
Secas ocorre devido ao fato de Renato Russo conseguir expressar o mesmo drama e o mesmo
teor de denúncia trazida por Graciliano Ramos, mas em uma letra de música. Ou seja, uma
tarefa difícil de ser realizada, pois enquanto o romance prioriza a narrativa e a riqueza de
detalhes, a letra tende a ser curta, pois é feita para ser musicada.
Além disso, de certa forma, “Faroeste Caboclo” traz à tona a continuidade do ciclo de
imigração dos sertanejos, iniciado na obra de Graciliano Ramos, afinal de contas, as
personagens de Vidas Secas, no final da obra, migram em direção à cidade alimentando o
sonho de que, lá, pessoas como eles teriam dias melhores. Entretanto, “Faroeste Caboclo”
narra o percurso João do Santo Cristo, que consegue chegar à cidade, mas, ao contrário do que
pensavam Fabiano e Sinha Vitória, depara-se com uma cidade sem oportunidades; sem ter
escolha, torna-se um fora da lei e acaba morrendo baleado.
Nesse caso fica perceptível que Renato Russo sofreu influência, direta ou
indiretamente, de Graciliano Ramos, porém, fez-se valer, conscientemente ou não, de tal
influência para produzir uma obra que trouxe elementos de originalidade.
Referências
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NITRINI, Sandra. Literatura Comparada, História, teoria e crítica. 3ª. Ed. São Paulo:
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RUSSO, Renato. Faroeste Caboclo. In: Que país é este. Emi-Odeon Brasil, 1987.
SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. Lírica, narrativa e drama. In: Teoria da literatura. 3ª ed.
Coimbra, 1973, p. 227-242.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1243
CHARGES SOBRE O CARNAVAL: UM RISO
CARNAVALESCO? [Voltar para Sumário]
-Jociane da Silva Luciano (UFRN)
Introdução
O carnaval é uma festa popular que teve sua origem na Antiguidade, acredita-se
que na Grécia em medos dos anos 600 a 520 a. C., através da qual os gregos realizavam
seus cultos em agradecimento aos deuses pela fertilidade do solo e pela produção. Os
festejos, desde o século VIII, passaram a ser realizados nos dias anteriores ao período
religioso da quaresma.
Os festejos do carnaval apresentam uma relação com o cômico, por meio dos
atos e ritos e por isso apresentam uma ligação com o riso. De acordo com Bakhtin
(1987, p. 4) “os festejos do carnaval, com todos os atos e ritos cômicos que a ele se
ligam, ocupavam um lugar muito importante na vida do homem medieval”. O carnaval
é a segunda vida do povo, baseada no princípio do riso, riso esse carnavalesco, que é um
dos interesses da nossa pesquisa. Para tratar do carnaval e do riso carnavalesco,
recorremos a Mikhail Bakhtin (1987), contudo nem todo riso é carnavalesco, desse
modo recorremos também a Vladimir Propp (1992) que trata do riso de zombaria.
Procuramos compreender, sob essa perspectiva, como os aspectos cômicos, com
especial atenção para o riso carnavalesco estão presentes no gênero discursivo charge.
Assim, analisaremos se as charges ensejam um riso carnavalesco com o seu aspecto
universal e ambivalente (renega e regenera) ou um riso de zombaria que renega.
O presente artigo se organiza da seguinte maneira: primeiramente, expomos
algumas considerações sobre a charge como um gênero humorístico e em seguida,
discorremos sobre o riso carnavalesco e o riso de zombaria. Após os pressupostos
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1244
teóricos, apresentaremos a análise de duas charges, publicadas durante o carnaval de
2015, procurando mostrar que riso engendra-se nesse gênero.
Charge: Um gênero humorístico
É cada vez mais evidente no universo acadêmico o interesse de se trabalhar com
gêneros humorísticos, dentre eles podemos citar: a tirinha, o cartum, as histórias em
quadrinhos, a piada e a charge, que pertencem ao mesmo campo discursivo – o
humorístico.
Ao falar sobre charge não podemos deixar de tocar na questão do humor, tendo
em vista que é um gênero que visa causar uma crítica por meio desse recurso. O humor
é uma condição humana e manifesta-se numa dimensão linguística e discursiva. E ainda
que não se encontre em todas as manifestações discursivas, necessariamente, passa pela
linguagem (MUNIZ, 2013). Há quem diga que a capacidade de compreender e procurar
solucionar as estruturas linguísticas, sociais e culturais que compõem o humor é uma
das poucas e valiosas qualidades que nos diferenciam dos outros seres vivos.
O humor pode ser entendido como uma ferramenta social, pois descortina aquilo
que poderia estar encoberto pelos discursos considerados sérios. De acordo com Brait, o
discurso humorístico “possibilita o desnudamento de determinados aspectos culturais,
sociais ou mesmo estéticos, encobertos pelos discursos mais sérios e, muitas vezes, bem
menos críticos” (2008, p. 17). Ele desmascara assuntos e trata de temas tabus que se
instauram histórico-socialmente, esses temas muitas vezes não podem ser tratados da
mesma maneira em outros campos discursivos, como por exemplo, o religioso, o
científico ou o político. É como se existisse uma espécie de contrato entre a sociedade e
o campo humorístico para que a charge possa tratar de determinados assuntos
polêmicos.
Dessa forma, o discurso humorístico:
[...] como qualquer outro, traz as marcas sócio-históricas – as diversas
manifestações culturais e ideológicas, valores arraigados que nele se
manifestam e, por isso, ele não deve ser entendido apenas como um
instrumento de diversão; o que nele está sendo dito não pode ser
simplesmente ignorado (FOLKIS, 2004, p. 01).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1245
Mas será que o discurso humorístico pode mesmo ser considerado como um
campo discursivo, assim como temos o campo discursivo religioso, político e científico?
As considerações do estudioso da linguagem Sírio Possenti (2010) apontam para o sim.
De acordo com Muniz (2013) a noção de campo esteve inicialmente ligada a Pierre
Bourdieu (1998) e seus estudos eram voltados para determinadas regras que os
membros de um campo tinham que seguir.
Na Análise do Discurso francesa, quem mais se debruçou sobre esse conceito foi
Dominique Maingueneau, propondo a noção de campo discursivo. Para ele, o campo
discursivo é “um espaço no interior do qual interagem diferentes “posicionamentos”,
fontes de enunciados que devem assumir os embates impostos pela natureza do campo,
definindo e legitimando seu próprio lugar de enunciação” (2010, p. 50), portanto, essa
noção está intrinsicamente relacionada a de posicionamento. Determinado indivíduo só
pertencerá a um campo específico se cumprir certos princípios e adotar certos
posicionamentos que o legitimem nesse segmento da sociedade, por exemplo, para que
uma pessoa possa se enquadrar no campo discursivo do humor, ele precisa produzir
algum gênero discursivo humorístico, possuir um senso crítico, publicar seus trabalhos
em jornais, em livros ou na internet, participar de eventos que façam parte desse
universo, etc.
De acordo com Possenti (2010), mesmo sabendo que há procedimentos
relativamente claros, embora instáveis que caracterizam cada campo é preciso
compreender estes como sendo internamente heterogêneos, por exemplo, no campo
filosófico em que se tem diversas escolas ou ainda no literário em que tendências vão e
voltam ao longo do tempo.
Comparando por analogia o humor e a literatura, Possenti (ibidem) propõe
alguns traços que podem definir o humor como um campo discursivo: primeiramente
temos as práticas do sujeito: os humoristas não se formam assim como os médicos ou
advogados, humor não se aprende na escola ou até mesmo na universidade, esses
autores podem surgir em qualquer espaço e ter outras atividades que podem ser
próximas da profissão de humorista.
Um segundo elemento definidor é o tema (assunto que o campo humorístico
aborda), o humor trata de qualquer assunto e inclusive luta para que nenhuma proibição
possa atingir suas produções. Este tenta fugir do “controle do politicamente correto”
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1246
(2010, p. 175) por defesa de funções e práticas específicas. Inclusive, mesmo que
implicitamente, traz à tona temas tabus, ou seja, aqueles que não podem ser tratados de
qualquer maneira e por qualquer um, uma vez que geram na sociedade preconceito de
indivíduos e/ou grupos políticos. Frequentemente as charges trabalham com negros,
homossexuais, com religião e principalmente com a política.
O terceiro traço são os modos de enunciação (os gêneros preferenciais do campo
humorístico). O humor é um campo agregador de vários gêneros. Em suas palavras:
O humor, como a literatura, é um campo em que se praticam gêneros
numerosos, da comédia à charge, passando pelas “crônicas” e narrativas,
histórias em quadrinhos, tiras, pelas piadas e pela exploração humorística de
numerosos outros tipos de textos (provérbios alterados, pseudoaforismos),
“comédias em pé”, programas de rádio e televisão... Além de os gêneros
humorísticos serem muito numerosos, pode haver manifestações humorísticas
no interior de todos os tipos de texto (dos tratados aos ensaios, da Bíblia aos
romances) (POSSENTI, 2010, p. 175).
Consideramos ainda o fator da profissionalização e mercantilização do humor, o
que possibilita a expansão, favorecendo também sua legitimação como campo
discursivo.
O riso carnavalesco e de zombaria
O estudioso russo Mikhail Bakhtin tratou do riso no contexto da Idade Média e
Renascença através da carnavalização literária na obra de François Rabelais, chamando
a atenção para a “alegre relatividade de tudo” (1987, p. 125). Neste trabalho, Bakhtin
considera o riso como o elemento mais emblemático da cultura popular medieval e
renascentista, principal instrumento de manifestação de uma cosmovisão carnavalesca.
Observando o carnaval, entre os séculos XIV e XVI, ele o compreende como a
afirmação festiva e ritual da relatividade do mundo, marcado por elementos como o
livre contato familiar entre os homens, a excentricidade, as alianças e a profanação
(BAKHTIN, 1997).
O carnaval é narrado em Bakhtin como uma festa onde não há divisão entre
atores e espectadores. O carnaval não é, portanto, uma festa que deve ser observada,
mas vivida. “Essa vida carnavalesca é uma vida diferente da cotidiana, pois ela desvia a
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1247
ordem habitual, transformando-se em uma ‘vida às avessas’, ‘num mundo invertido’”
(ROMUALDO, 2000, p. 51).
O conceito de carnavalização bakhtiniana abrange vários pontos, como
exposições de corpos, dessacralização, destronamento, dualidades, entre outros,
inclusive o que está presente nesse estudo, o ritual de coroação-destronamento
(ROMUALDO, 2000).
Segundo Roberto Stam (1992) em seu livro Bakhtin: da teoria literária à cultura
de massa:
No carnaval, todas as distinções hierárquicas, todas as barreiras, todas as
normas e proibições são temporariamente suspensas, estabelecendo-se um
novo tipo de comunicação, baseado no ‘contato livre e familiar’. O carnaval,
para Bakhtin, gera um tipo especial de riso festivo. Mais do que uma reação
individual a um evento cômico isolado, é uma espécie de alegria cósmica, de
âmbito universal, dirigido a tudo e a todos, inclusive aos participantes do
carnaval. Para Rabelais e para o espírito carnavalesco em geral, o riso tem um
profundo significado filosófico; é um ponto de vista particular sobre a
experiência, não menos profundo que a seriedade. É uma vitória sobre o
medo que torna comicamente grotesco tudo o que aterroriza. O riso popular
festivo triunfa sobre o pânico sobrenatural, sobre o sagrado, sobre a morte;
provoca a queda simbólica de reis, de nobrezas opressoras, de tudo o que
sufoca e restringe. Em Rabelais, o riso assumiu o papel de uma nova
consciência, uma consciência crítica, através da qual o dogmatismo e o
fanatismo eram ridicularizados. A filosofia de Rabelais, para Bakhtin, não
deve ser procurada nos trechos em que ele parece mais sério, mas sim quando
ele ri com mais vontade (1992, p. 44).
A partir desses estudos, Bakhtin conclui que o riso carnavalesco da Idade Média
e Renascimento é um riso do povo, em que todos riem, além disso, é geral, universal e
ambivalente, universal porque o mundo inteiro parece cômico e é percebido e
considerado em seu aspecto jocoso, ambivalente porque nega e afirma, amortalha e
ressuscita simultaneamente (1997).
Outro estudioso que também se dedicou ao estudo do riso foi Vladimir Propp.
Em seu trabalho “Comicidade e Riso”, Propp (1992) parte da concepção de que não é
possível estudar comicidade fora da psicologia do riso e da percepção do cômico. Para
ele, a comicidade acontece devido a uma contradição entre a forma e conteúdo,
aparência e essência. A contradição costuma estar associada ao descobrimento de
defeitos, segredos, daquele ou daquilo que suscita o riso.
A partir do pressuposto de que o riso e o cômico não são abstratos, pois o riso
faz parte do comportamento humano e o homem é o único ser com capacidade de rir de
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1248
algo que seja humanamente ridículo, Propp (ibidem) cita três casos em que o riso surge
a partir da manifestação repentina de defeitos ocultos: pode ser algum defeito
encontrado no corpo, pode ser pela semelhança, quando vemos duas pessoas iguais,
pensamos que elas não têm diferenças internas, ou pode ser pela diferença, uma
particularidade ou estranheza que distingue uma pessoa do meio em que vive.
Para ele existem vários tipos de riso, o riso bom, maldoso, cínico, alegre, entre
outros que surgem quando são observados defeitos no mundo em que o homem vive e
atua. No entanto, o riso de zombaria é o aspecto que está permanentemente ligado à
esfera do cômico e é esse tipo o que mais se encontra na vida e dentre as coisas que
podem suscitar o riso no ser humano a mais comum e natural é rir daquilo que é
ridículo, podem ser ridículos o rosto de uma pessoa, sua silhueta e até os movimentos.
Algumas vezes é o próprio indivíduo que revela inconscientemente os lados cômicos de
sua natureza, mas em outros casos quem zomba o faz propositalmente (PROPP, 1992).
Reafirmando a ideia de que o cômico está intimamente relacionado aos textos
humorísticos Propp coloca que:
Para resolver o problema da comicidade não podemos nos limitar à obra dos
clássicos e aos melhores exemplos do folclore. Foi necessário conhecer a
produção corrente das revistas humorísticas e satíricas, incluindo-se os
folhetins publicados em jornais. As revistas e a imprensa refletem a vida
cotidiana (1992, p. 17).
O autor explica que as condições para suscitar a comicidade são, primeiramente,
quem ri tem pelo menos uma noção das exigências morais da natureza humana, algumas
concepções do que seja justo e correto, e, por último, quando rimos é porque
encontramos algo que contradiz o que consideramos certo dentro de nós, ou seja, algum
defeito no mundo.
Análises
O objetivo dessa seção é analisar como os aspectos cômicos, com especial
atenção para o riso carnavalesco e o de zombaria engendram-se nas charges
selecionadas e constituem os possíveis efeitos de sentido. Observemos a primeira
charge:
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1249
Disponível em: <http://fotografia.folha.uol.com.br/.> Acesso em 16/02/2015.
Nesta charge publicada na Folha de São Paulo durante o carnaval do ano de
2015, evidenciamos que esta é composta por dois quadrinhos que constituem momentos
diferentes. No primeiro, temos um cenário visual que remete a uma festa carnavalesca,
isso se comprova pela animação das pessoas, pela presença das serpentinas e dos
confetes (elementos característicos desse período) e por fim pela linguagem verbal que é
composta pela legenda: “Durante o carnaval”.
Recorrendo ao nosso conhecimento de mundo, compreendemos que essa
imagem se refere a um dos momentos mais marcantes do carnaval brasileiro, o desfile
das escolas de samba, que ocorrem mais precisamente nas cidades do Rio de Janeiro e
São Paulo. Sempre ao término dos desfiles, os garis (responsáveis pela limpeza dos
locais) “desfilam” – ao som de muito samba, recolhendo toneladas de lixo que são
produzidas durante e após os desfiles. Podemos visualizar esse cenário na imagem do
carnaval – 20151.
1 Disponível em: http://www.naturalfashion.com.br/site/wp-content/uploads/2015/02/gari-
sapuca%C3%AD.jpg. Acesso em 26/04/2015.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1250
No segundo quadro, formado também pela junção da linguagem verbal e não
verbal temos a legenda “Depois” mostrando o espaço temporal que se dá após a festa
caranavalesca. Agora nesse ambiente urbano, vemos as pessoas andando, assim como os
carros circulando nas vias. Diferentemente do primeiro quadro, as feições dos homens e
mulheres não são de alegria, mas sim de desânimo e até mesmo de indiferença para com
o gari que está varrendo a rua, já que um indivíduo passa ao lado do depósito de lixo e
mesmo assim joga-o no chão.
A imagem dos garis no Sambódromo após a passagem de cada escola já é um
elemento característico dessa festa. Demonstram ser tanto profissionais da limpeza
quanto artistas do samba. Mas, curiosamente, ao sambar durante o trabalho, ocupam um
espaço que lhes era negado.
Relacionando a charge com a carnavalização podemos identicar nesse exemplar
uma das características do carnaval: o mundo às avessas. Isso está representado
claramente pela oposição dos momentos na charge. Durante o carnaval há um contato
aproximado e sem hierarquias entre os garis e os foliões, um rompimento de barreiras
entre as classes sociais, os personagens encontram-se próximos, sem a distância da vida
cotidiana. No carnaval todos os participantes são ativos, vivem em vez de assistir. E
essa vida carnavalesca tem leis que diferem do caráter oficial, tornando-se uma vida às
avessas. As leis revogavam-se durante o carnaval e as distâncias entre os homens
deixavam de existir, ocorrendo um leve contato familiar em praça pública (BAKHTIN,
1997). É o que acontece com o gari no carnaval, ele participa, vive a festa.
Outra ação carnavalesca é a coroação e o posterior destronamento do rei do
carnaval, revelando dessa forma o sentido de morte e renovação do carnaval, o mundo
carnavalesco às avessas e a consciência de que nada é absoluto, mas relativo. Nesse
caso, o gari torna-se uma espécie de rei coroado na avenida, onde todos riem junto com
ele, mas logo após as festividades ele é destronado e volta a “vida real”, em que é
muitas vezes, assim como nos mostra a charge, inferiorizado pelo trabalho que realiza.
A coroação do bobo com data previsível para seu destronamento evidência o sentido de
mudança, morte e renovação que acompanha o sentido de ambivalência carnavalesca e
influencia tanto produções literárias como outros gêneros, e no caso aqui explanado, a
construção da charge.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1251
Desse modo, considera-se que o riso carnavalesco faz-se presente nesta charge,
uma vez que, é um riso do povo, em que todos riem (os garis e a plateia, os ricos e
pobres), além disso, é universal e ambivalente, universal porque o mundo inteiro parece
cômico, ambivalente porque nega e afirma, amortalha e ressuscita simultaneamente (o
gari é coroado e destronado, lembrado e esquecido).
Segunda charge:
Disponível em: <http://www.capasface.com.br/buscar/1/pulando.html.> Acesso em 13/02/2015.
Na charge acima, que também traz a temática envolvendo o carnaval, temos um
personagem que está “pulando” o carnaval. No verbal temos três enunciados, a legenda
no canto esquerdo que diz “Pulando o carnaval”, a palavra “CARNAVAL” e a fala do
personagem com a expressão “Tô fora!”.
A charge foi publicada antes do início do carnaval, mais precisamente na sexta-
feira dia 13 de fevereiro. O carnaval chegou ao Brasil em meados do século XVII, sob
influência das festas carnavalescas que aconteciam na Europa. A festa ocorre em
diversos estados brasileiros, contudo aqueles em que o período toma proporções
nacionais e até internacionais são Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia e Pernambuco. Nos
dois primeiros, o carnaval é conhecido pelos grandes desfiles e campeonatos das escolas
de samba, já o Pernambuco permaneceu com as tradições originais do carnaval de rua
em Recife e Olinda, e na Bahia o carnaval fugiu da tradição e conta com trios elétricos
embalados por músicas dançantes.
Todo ano, milhares de pessoas participam das mais variadas festividades nesse
período, mas há também aqueles que acham que esse tempo deveria ser usufruído de
outra maneira (sem o barulho intenso, sem pessoas alcoolizadas, etc.) e principalmente
que parte do dinheiro público envolvido poderia ser destinada para outros setores que
necessitam de recursos.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1252
Primeiramente, observamos que o cômico dessa charge se dá por meio da
técnica de humor denominada de ambiguidade, procedimento que ocorre quando há o
duplo sentido em uma palavra, expressão ou frase. Possenti (1998) afirma que essa
técnica é o equívoco que a linguagem pode produzir. Nesse caso, a ambiguidade está
presente na expressão “pulando o carnaval”, uma vez que podemos entender o termo
tanto no sentido de festejar, participar do carnaval, assim como no sentido de não
participar da festa, cair fora. Analisamos ainda, outra técnica de humor que é a do
deslocamento, que consiste na quebra de expectativas por parte do leitor, em que um
esquema de raciocínio se sobrepõe a outro (MUNIZ, 2013). A cena apresentada sugere
um raciocínio que é a de pular o carnaval (cair no samba, saltar atrás do trio elétrico),
mas que é quebrado em seguida pela fala do personagem “Tô fora!”.
Essas técnicas linguísticas e discursivas convergem para o aspecto do humor que
leva o ser humano a zombar, depreciar e ridicularizar o próprio homem – a zombaria.
Como o próprio nome já afirma, o riso de zombaria traz em si a matriz da zombaria e do
deboche.
O chargista constrói sua crítica ao carnaval e as pessoas que participam dele, por
meio do riso de zombaria, pois zomba e ridiculariza das atitudes e dos comportamentos
sócio-histórico-culturais de determinados indivíduos nesse período. Propp compreende
que “todo o vasto campo da sátira baseia-se no riso de zombaria” (1992, p. 28). “O
escárnio presente no riso de zombaria está na constituição do caráter do homem, pelo
âmbito de sua vida moral, de suas aspirações, de seus desejos e objetivos” (1992, p. 29).
Em outras palavras, é o riso de zombaria profundamente relacionado com as condições
sócio-histórico-culturais do homem em sintonia com seu meio.
Assim, diferentemente da primeira charge, observamos aqui um riso que renega,
renega esse período de festa popular. Isso é importante para mostrar que nem todo riso
regenera, que nem todo riso é carnavalesco, mas há também aquele que critica, que
zomba. Ao comentar sobre a comicidade, Romualdo (2000) destaca que o riso de
zombaria, no discurso chargístico, é provocado pelos defeitos da personagem ou da
situação da qual se ri, que é o que acontece na charge em questão. A própria diferença
entre coisas, pessoas, comportamentos, faz surgir o riso e nesse caso a diferença
existente é ironizada e criticada.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1253
Considerações finais
Este trabalho teve por objetivo analisar os aspectos cômicos, com especial
atenção para o riso que se engendra nas charges que trazem a temática do carnaval. Com
base no que foi apresentado e respondendo a pergunta feita no título do trabalho,
destaca-se que os conceitos de riso de zombaria e de carnavalização foram percebidos
no corpus deste artigo.
Com o rompimento das barreiras sociais do dia a dia durante o carnaval, as
pessoas riem juntas, não assistem à festa, mas a vivem, mesmo que depois isso acabe
como ocorreu na primeira charge, o que mostra que o carnaval tem o poder de criar
outra vida, uma segunda vida. Observamos ainda que nem só o riso carnavalesco
constituiu as charges que compuseram nosso corpus, mas tivemos também o riso de
zombaria, o que confirma a compreensão de que nem todo riso é festivo, mas há
também o que renega e critica.
Assim, fica claro que o riso não serve apenas para fazer rir, ele vai além. A
charge é a todo momento construção de sentidos e esses risos convergem para essa
constituição de significações.
Referências
BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e Renascimento: o contexto de
François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora da
UnB, 1987.
_______. Problemas da poética de Dostoiévski. 2ª ed. Tradução de Paulo Bezerra. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 1997.
BOURDIEU. Pierre. A Economia das Trocas Linguísticas. Tradução de Sérgio Miceliet
al. São Paulo: EDUSP, 1998.
BRAIT, B. Ironia em Perspectiva Polifônica. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2008.
FOLKIS, G. M. B. Análise do discurso humorístico: as relações marido e mulher nas
piadas de casamento. Tese (Doutorado em Linguística) – Universidade Estadual de
Campinas, Campinas: SP, 2004.
MAINGUENEAU, D. Campo Discursivo – A propósito do campo literário. Tradução
de Fernanda Mussalim. In: _______ Doze Conceitos em Análise do Discurso.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1254
Organização de Maria Cecília Perez de Souza-e-Silva e Sírio Possenti. São Paulo:
Parábola Editorial, 2010.
MUNIZ, Cellina. Na tal cidade do humor. Natal: Sebo Vermelho, 2013.
POSSENTI, S. Os humores da língua: análise linguística de piadas. Campinas:
Mercado de Letras, 1998.
_______.Humor, língua e discurso. São Paulo: Contexto, 2010.
PROPP, Vladímir. Comicidade e riso. São Paulo: Editora Ática, 1992.
ROMUALDO, Edson Carlos. Charge jornalística: intertextualidade e polifonia: um
estudo de charges da Folha de São Paulo. Maringá: Eduem, 2000.
STAM, Robert. Bakhtin: da teoria literária à cultura de massa. São Paulo: Editora Ática,
1992.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1255
PRODUÇÕES TEXTUAIS DE ALUNOS GRADUANDOS
INICIANTES EM LETRAS
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Joelma da Silva Santos (UFPB)
Introdução
Nosso trabalho tem como foco a escrita em processo de transição do Ensino
Médio (EM) para o Ensino Acadêmico (EA). Sabemos que escrever consiste em uma
prática social que é realizada por pessoas com domínio da língua na sua modalidade
escrita, tendo como finalidade a interação com outrem, a fim de atender o que a situação
comunicativa exige mediante os diferentes gêneros textuais presentes em nossa
sociedade. Sendo assim, a escrita é, portanto, concebida como prática social,
compreendendo que se escreve, atendendo-se a um conjunto de condições, tais como:
para quem se escreve, o que se escreve e como se escreve, numa perspectiva
sociointeracionista de linguagem.
Ante o exposto, considerando que escrevemos em contextos diferentes e que
estes, por sua vez, exigem de nós capacidades distintas, haja vista não escrevermos
sempre da mesma maneira nem com o mesmo objetivo, nosso trabalho tem como
pretensão apresentar e discutir os impactos sentidos pelos alunos recém-ingressos no
curso de Letras no que se refere às suas primeiras produções textuais acadêmicas.
Gênero: objeto de ensino-aprendizagem na educação básica e na graduação em
Letras
Os gêneros textuais na abordagem do ISD se configuram mediante a apropriação
de práticas sociais, os quais com o tempo se modificam, devido às formações sociais de
linguagem (BRONCKART, 2006). Nessa abordagem, nossos textos devem estar
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1256
interligados às representações sociais vigentes. É nossa ação social que determina
nossas produções.
Podemos inferir que, para cada produção, o sujeito interage com o contexto e a
situação de produção. Daí ser um equívoco abordar os gêneros textuais, na sala de aula,
sem considerá-los como parte integrante da realidade do aluno. Infelizmente, a maioria
de nossas escolas continuam abordando o ensino de gêneros textuais como uma prática
baseada em estruturas, ou seja, ao invés de ensinar a escrever a partir do uso efetivo dos
gêneros textuais, visando sua funcionalidade, pautada na situação comunicativa, elas
têm ensinado aos alunos a estrutura do gênero, a exemplo: as características que têm
uma carta, um conto, um bilhete, entre outros, mas sem colocar em uso essas situações
de comunicação.
Para Marcuschi (2005, p.10) “não se ensina um gênero como tal e sim se
trabalha com compreensão de seu funcionamento na sociedade e na sua relação com os
indivíduos situados naquela cultura e suas instituições”. É preferível que se ensine a
escrita mediante o uso dos gêneros, pois a todo o momento falamos e/ou escrevemos
baseados nos gêneros textuais, sejam eles orais ou escritos, isto é, para cada situação
comunicativa produzimos textos diferentes.
Cabe à escola, portanto, colocar em ação processos de aprendizagens e de
desenvolvimento, que visem o ensino dos gêneros como “atividade linguajeira
significativa; que um gênero pode transmutar-se em outra estrutura relativamente
estável” (BALTAR, 2006, p. 182).
Vale destacar que, principalmente na escola, os alunos, geralmente, não se
sentem motivados a escrever, pois a escrita ensinada nesse contexto, na sua maioria, se
restringe a uma escrita imposta. Daí ser relevante que fique claro para o aluno o que ele
vai escrever, para quem e como. Razão esta em que o importante não é mostrar para eles
a variedade dos gêneros que circulam socialmente e sim sua funcionalidade social.
Partindo dessa premissa, acreditamos que é de suma importância enfatizar a
aplicabilidade dos gêneros em sala de aula, uma vez que estes visam ordenar e
estabilizar as diferentes formas de comunicação presentes no nosso dia-a-dia.
Concordando com Vian Jr (2006) vemos, na maioria das vezes, que os alunos
chegam à academia com dificuldade de aprendizagem em relação aos gêneros textuais.
Um estudo feito por Silva (2009, p. 150) constatou que os alunos que não possuíram
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1257
experiências, durante o letramento escolar, com outros gêneros textuais, além do texto
dissertativo “demonstraram um efeito retroativo no desempenho quanto às provas de
redação” aplicadas por algumas instituições tais como UFRN, UNB, UEPB, UFCG e
UFPB, as quais exigem outros tipos de práticas de letramentos, quanto à produção de
gêneros textuais diversos, do tipo carta protesto, relato de experiência, carta-denúncia,
memorial, resenha e palestra, em detrimento, apenas, da produção de uma dissertação.
Esses alunos, quando ingressam no ensino superior, além de sentirem
dificuldade de adequar suas escritas aos moldes da academia, continuam, muitas vezes,
produzindo textos apenas com função acadêmica, isto é, para obtenção de uma nota, e
assim, permanecem sem entender a relevância do ensino-aprendizagem dos gêneros.
Concordando com Motta-Roth (2006, p. 504), entendemos que
o ensino de produção textual depende de um encaminhamento conceitual da
representação do aluno sobre o que é a escrita, para quem se escreve, com
que objetivo, de que modo e sobre o quê [...] as atividades de produção
textual propostas devem ampliar a visão do aluno sobre o que seja um
contexto de atuação para si mesmo.
Desse modo, no contexto acadêmico o ensino de gêneros textuais deve ser
situado e, portanto, faz sentido ensinar resenha, relatórios, artigos, resumos, se o curso
for de Letras ou Educação. Contudo, o docente necessita conduzir o aluno para a
reflexão de que os gêneros são diversificados e instáveis, ou seja, muda conforme o
contexto de comunicação. Ainda de acordo com Motta-Roth (2006, p. 505) é
fundamental que o aluno entenda o contexto em que escreve, por exemplo,
compreendendo as seguintes indagações: “para que serve esse gênero? Como funciona?
Onde se manifesta? Como se organiza? Quem participa e com que papeis? (quem pode
ou deve escrever e quem pode ler)?”. Não queremos mencionar um ensino de fórmulas,
pois não há como apresentarmos uma estrutura única de um determinado gênero, haja
vista o mesmo não ser algo estático, mas que se adequa “conforme as diferentes funções
que se pretende cumprir” (ANTUNES, 2003, p. 49).
Em outras palavras, os gêneros são infinitos e como tal não dá para apreender a
todos, mas apropriar-se daqueles que circulam em nosso meio, que podem ser os
gêneros acadêmicos: resenha, resumo, para alunos de Letras; relatórios diários, para
alunos da Medicina; relatório de condicionamento físico, para alunos de Educação
Física; e assim, por diante (BALTAR, 2006).
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1258
Dessa forma, entendemos que gênero não é só o texto, mas o conteúdo, sua
forma organizacional e situação comunicativa. Marcuschi (2005, p. 243) defende que
“os gêneros não são simples formas textuais, mas formas de ação social”. Concordando
com o grupo Didactext (2006, p. 114) acreditamos que ensinar a escrever implica
considerar as práticas de escrita que os alunos têm em seus cotidianos, a fim de que eles
escrevam objetivando a comunicação com o outro, haja vista, na maioria das vezes, “os
alunos associarem a escrita escolar apenas com os aspectos formais e normativos
(caligrafia, ortografia) e como realização de seus deveres”.
Os alunos para escreverem necessitam estar situados em um contexto sócio-
histórico, ninguém escreve no vazio, isto é, sem um interlocutor. A proposta defendida
por Bakhtin (1997), Antunes (2003), Marcuschi (2008), Schneuwly e Dolz (2004),
Bronckart (1999) é que todos os textos produzidos são baseados em gêneros. Para tanto,
priorizamos o ensino e o estudo da escrita pautado a partir da diversidade dos gêneros
que permeiam nossa sociedade. Para Motta-Roth (2006, p. 501) é o contexto que
determina o “critério para se escolher o que e como dizer ou escrever”.
Quando falamos ou escrevemos, somos conduzidos a nos adequarmos à esfera
comunicativa, considerando, portanto, o contexto, ou as condições de produção – o que
dizer, para quem dizer e como dizer. Confirmando, assim, a fala de Marcuschi (op. cit.
p. 174), quando diz: “o conteúdo [do dizer] não muda, mas o gênero é sempre
identificado na relação com o suporte”, ou seja, dependendo de onde falamos ou
escrevemos o gênero é moldado.
No entanto, devido às práticas de ensino-aprendizagem de escrita voltarem-se,
muitas vezes, apenas, para cumprir obrigações escolares, como por exemplo, obter uma
nota, nossos alunos acabam sendo, portanto, submetidos ao ato de escrever, contudo
sem saberem por que escrevem, bem como não compreenderem o sentido de suas
escritas.
É função, pois, tanto das instituições de ensino básico como superior oferecerem
situações de ensino-aprendizagem da escrita, pautados na diversidade dos gêneros
discursivos, que incitem o aluno a escrever, atendendo as suas reais necessidades, a fim
de que não seja uma escrita apenas, como produto, mas dinâmica e significativa. Ou
seja, que os alunos escrevam, compreendendo a relevância de seu texto para o contexto
a que está sendo produzido, embora sua produção consista em uma obtenção de uma
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1259
nota, o aluno precisa escrever de forma coerente, concisa e argumentativa,
demonstrando domínio no que escreve (ou fala – se for um texto oral).
É imprescindível que o professor deixe claro para o aluno que gênero está sendo
solicitado, seja um resumo, uma resenha, um artigo, uma monografia etc; assim como
que finalidade tem cada gênero, como se estrutura e qual seu destinatário. Essas
questões são relevantes, pois os alunos precisam produzir seus textos compreendendo o
que vão escrever, para quem e como vão escrever.
Contextualizando a pesquisa
O corpus de análise foi coletado com alunos recém-ingressos no curso de Letras,
de uma universidade pública do Estado da Paraíba. Estes alunos estavam cursando as
primeiras disciplinas relacionadas à leitura e a escrita – Leitura e Produção Textual I
(PLPT I) e II (PLPT II).
Para compor os dados de análise, observamos algumas aulas da disciplina PLPT
I, bem como entrevistamos e aplicamos questionários com toda a turma. Contudo, nos
detemos nos dados obtidos apenas de três alunos, os quais foram escolhidos em
conjunto com a professora ministrante. Essa escolha se deu após a docente ter feito
análises prévias acerca do nível de proficiência de escrita que cada aluno se encontrava,
no momento da pesquisa, estabelecendo-se assim, níveis de proficiência de escrita para
os três alunos, com base nos seguintes critérios que foram observados em suas primeiras
produções acadêmicas: adequação ao gênero a ser produzido; pertinência ao tema
proposto; adequação de mecanismos de textualização e, por fim, adequação à variedade
linguística e às convenções da escrita. Ficando, assim, de forma situada e provisória, a
seguinte classificação: aluno iniciante na escrita acadêmica (I) – o que apresentou mais
dificuldades em suas produções; aluno mediano (M) – ora demonstrava proficiência ora
demonstrava inconsistência em sua escrita e, por fim, o aluno proficiente (P) – que
apresentou mais adequação e proficiência em suas produções.
Impactos sentidos pelos alunos recém-ingressos no curso de letras ao receberem
seus primeiros textos acadêmicos
Passaremos a analisar neste subtópico o que os alunos sentiram quando se
depararam com a metodologia acadêmica de correção de textos, demonstrando,
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1260
inclusive, nos seus próprios comentários, como veremos adiante, que no Ensino
Fundamental e Médio não existia a prática de correção textual de forma evidente como
existe na academia. Daí, a mudança na forma de ver, refletir e escrever.
Vejamos o que os alunos I, M e P responderam, quando perguntamos: Quando
chegou à universidade sentiu diferença(s) no ensino de escrita? Qual (is)?
Exemplo 1:
“Muito, e assim por tá no curso de letras, né? que eu acho que prioriza muito isso, a questão da
leitura e da escrita né? eu acho que talvez se fosse outro curso a dificuldade não seria tanta, mas
assim é:: no curso de letras eu acho que eu tô sofrendo ((risos)) muito viu?”
(Aluno I)
“Sim, bastante. Você escreve mais e o tipo de correção não é só ortografia. Você :: .é :: tem que
corrigir as ideias se tiver e as próprias opiniões do professor lhe ajuda a escrever melhor e é fácil
você reescrever tudinho, coisa que no ensino médio a gente não tinha”.
(Aluno M)
“Eu senti, porque eles puxam :: eles requerem mais coisas de você :: eles ensinam mui :: eles
mostram muito da teoria e querem a prática também e isso difere muito da escola, porque na
escola você só tem aqueles modelos prontinhos e aqui não você vai trabalhando com a mente,
vai vendo várias perspectivas para fazer você poder fazer seu texto. É bem mais complexo”
(Aluno P)
As respostas dadas, quanto ao ensino de escrita em transição do EM para a
academia, nos evidenciaram os impactos concernentes ao modo como os alunos veem o
processo de escrever, nos mostrando, assim, que os alunos recém-ingressos no curso de
Letras, de fato, se sentem impactados nesse período de transição, já que a academia
propõe um ensino pautado na concepção de escrita sociointeracionista, diferindo do
oferecido no EM, principalmente, se o curso é de Letras, como destaca o aluno I.
Analisando as respostas dos alunos I, M e P, exemplo 1, percebemos que eles
reforçam que o ensino de escrita que tiveram no EM foi de ordem estritamente escolar e
com função de se obter uma nota para passar de ano, assim como, para que
posteriormente concorresse a uma vaga na universidade. Podemos ver essa questão mais
evidente quando dizem:
Exemplo 2:
“Pra mim a escrita no Ensino Médio era só para concretizar as atividades. A escrita era isso :: é::
digamos concretização de uma atividade na escola :: acho que a escrita era mais voltada para a
escola, né?”.
(aluno I)
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1261
“Acho que era apenas criar um texto, fazer um texto qualquer POR obrigação ::”
(aluno M).
“No ensino médio era basicamente a redação do vestibular. Eu achava assim: eu sei escrever
bem, porque quando eu faço um texto nos moldes do vestibular a professora diz que está bom”.
(aluno P)
Seus depoimentos reforçam a ideia de um EM focado em “preparar” o aluno
para ingressar na universidade, no entanto o faz de maneira equivocada, tendo em vista
os gêneros textuais solicitados hoje em concursos de vestibular não serem, apenas, o
texto argumentativo ou dissertativo como costuma ser explorado na escola, visando à
preparação do aluno, mas propostas outras, como: carta protesto, palestra, resenha e
outros.
Essa prática, que ainda há no EM provoca no aluno recém-ingresso na academia
um impacto, pois o aluno passou nove anos estudando escrita, basicamente, como
produto e após as discussões teóricas acerca do que é escrever de forma situada – escrita
sociointeracionista –, seus textos serem passíveis de reformulações, que praticamente
não havia no EM, o aluno entra em conflito com suas concepções e, assim, acaba,
passando por um processo de reaprendizagem de escrita, ou seja, torna-se um impacto.
É o que nos mostra o depoimento do aluno I, ao dizer:
Exemplo 3:
[...] é tanto que quando eu comecei a escrever, eu cheguei aqui a produzir meus primeiros
textos, tudo que eu sabia é como se eu não soubesse de nada e eu sentia uma angústia tão
grande: como é que eu não sei de nada? Assim, quer dizer, é:: esse contato que eu tô tendo aqui,
tipo assim, eu desaprendi o que eu sabia pra aprender algo novo então tá sendo assim pra mim
todo tempo [...] Eu tô desconstruindo muitas coisas pra poder construir novas e eu acho assim,
que a partir disso, né, talvez eu venha a desenvolver mais, mas antes é:: eu eu sentia dificuldade,
toda vez que construía um texto que pegava o texto que me dava o texto todo, eu digo não, eu
sabia fazer alguma coisa, e hoje eu não sei fazer nada [...] como se tudo que eu produzisse tava
errado, tava errado, tava errado, mas agora assim, até que eu tô me adaptando, não sei [...].
[grifos nossos]
(Aluno I)
Vejamos como o aluno I se sente impactado ao receber seu texto, supostamente
com as correções da professora. Fica claro, nos trechos de seu depoimento, esse
impacto, quando revela sua angústia: “eu sentia uma angústia tão grande [...] como é
que eu não sei de nada? [...] hoje eu não sei fazer nada [...] tudo que eu produzisse tava
errado, tava errado, tava errado [...]”, talvez toda essa indignação se deva ao fato de
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1262
considerar que nada do que estudou anteriormente à academia serviu. Isso nos mostra a
disparidade do ensino de escrita na academia, em particular, no curso de Letras, em
comparação com os anos estudados no EF e EM, daí esses alunos recém-ingressos
sentirem diferenças tanto no momento da sua escrita quanto na correção da mesma, o
que provoca um impacto.
A resposta do aluno M, exemplo 2, demonstra que a escrita vivenciada no EM
era uma escrita imposta – POR obrigação –, vejamos que ele enfatiza isso na sua
resposta, o que implica dizer que escrever é algo desagradável, uma vez que só se
escreve para atender a um determinado fim, como obter uma nota. O que não implica
ser uma prática incorreta, porém se é feita sem funcionalidade ou objetivo, torna-se
insuficiente para a apreensão da escrita formal e desejável, que é a escrita que cumpre
funções sociais distintas.
Como impacto na fala do aluno P, percebemos que ele passa a entender que
antes, no EM, havia um modelo pronto a ser seguido, exemplo 2, enquanto que na
academia, o texto que se fazia uma só vez no EM, é em algumas situações, refeito
quantas vezes for preciso, ou seja, a escrita é um processo contínuo.
Outro ponto a ser observado diz respeito aos impactos sentidos pelos alunos no
momento em que recebiam seus textos acadêmicos corrigidos. Veremos essa questão no
subtópico que se segue.
Correção como impacto
Analisando as respostas dos alunos, principalmente do aluno I e P, verificamos
que as correções de suas atividades, quando estavam iniciando o curso de Letras,
consistiram em um dos mais fortes impactos sentidos por eles. Vejamos o que eles
responderam à pergunta Como você reage às correções de seu texto na disciplina de
PLPT I? E por quê?, do questionário aplicado na disciplina PLPT I:
Exemplo 4:
[...] causa mal-estar, eu mim sinto como uma pessoa incapaz é como se tudo que eu aprendi
está sendo desconstruído [...]
(Aluno I)
É confortável, pois é indicado os erros e consequentemente poderei corrigi-los.
(Aluno M)
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1263
Agora estou mais tranquila, porque compreendo melhor a proposta da disciplina. No começo eu
ficava simplesmente desesperado – por mais que eu tentasse, não conseguia escrever um texto
bom – e isso me causava mal-estar.
(Aluno P)
As declarações dos alunos I e P nos mostram um desconforto quanto às
correções de seus textos. Verificamos que tanto o aluno I como o aluno P se utilizaram
do vocábulo “mal-estar”, ao se referirem a essas correções, indicando não a esperarem,
o que nos faz inferir que, ao entrarem na academia, acreditavam saber escrever; no
entanto, ao receberem seus textos corrigidos, sentiram o impacto do “não saber
escrever”. Essa sensação de incapacidade e de processo de reaprendizagem ocorre com
a maioria dos alunos recém-ingressos na academia, principalmente, nos cursos que
exigem mais dedicação à língua, na sua modalidade escrita culta, como é o caso do
curso de Letras.
O aluno P demonstra essa angústia ao afirmar que por mais que tentasse escrever
um texto bom não conseguia. Para esse aluno, talvez, sua escrita já estivesse
consolidada, não esperando, assim, “falhas” em suas produções, supostamente porque
nunca eram apontadas durante sua trajetória escolar. Vejamos o seu depoimento, feito
em PLPT II,
Exemplo 5:
“Eu acho que escrevia bem, em relação a muitas outras pessoas que eu conheci, que passaram
também no vestibular, não só pra cá mas também pra outras universidades, eu creio que eu
escrevia bem. Agora em relação ao que a academia pede eu ainda tenho que melhorar muito,
ainda falta melhorar bastante”.
(trecho da entrevista feita em PLPT II, aluno P)
Constatamos em seu depoimento, que o aluno P, de fato, ingressou na academia
com a crença de que escrevia bem; contudo, partindo do pressuposto de que escrever é
um contínuo e de que se desenvolve de acordo com o contexto social, o aluno P
reconhece e alega que, após entrar na academia, precisa melhorar muito sua escrita. E
esse reconhecimento se deu mediante as correções feitas em suas atividades. Daí, ser
um impacto as correções da professora, pois provocaram no aluno a reflexão e a
desconstrução de saberes até então consolidados.
O aluno M nos pareceu o mais receptivo às correções feitas em seus textos,
conforme vemos na palavra grifada do exemplo 4. Embora os textos desse aluno tenham
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1264
tido também consideráveis correções, ele demonstra considerá-las positivas, para seu
crescimento acadêmico, ou seja, os erros são apontados e a partir deles se pode melhorar
o texto, proporcionando, assim, domínio de modelos de escrita que circulam na
academia.
Nesse sentido, as correções da docente foram de extrema relevância para o
ensino-aprendizagem de escrita dos alunos, lhes provocando um impacto, tendo em
vista não estarem afeitos a tal prática, uma vez que seus textos não eram passíveis de
correção no EM.
Os exemplos a seguir nos mostram que os alunos I, M e P, respondendo à
pergunta da entrevista em PLPT II (Como você reagiu às correções de seu texto na
disciplina de PLPT I? e reage às correções em PLPT II? E por quê?), reafirmam suas
angústias sentidas no primeiro período letivo, mas de maneira mais consciente, ou seja,
confirmam o impacto, no entanto demonstram aceitação desse tipo de correção por parte
da professora. Vejamos os exemplos que se seguem.
Exemplo 6:
Ah em PLPT I, como eu já disse, foi a desconstrução de tudo que eu já conhecia [...] hoje não
((risos)) acho que eu já estou madura aqui :: mais madura não no sentido escrever, mas de
aceitar esse não tá certo, vamos melhorar e antes eu não aceitava :: assim, aceitava com aquela
tristeza, porque assim, tudo que eu aprendi não tá valendo de nada, né? Vamos quebrar tudo,
mas agora não, eu vejo que é preciso melhorar.
(Aluno I)
Eu geralmente aceito as correções, porque assim, como eu errei eu vou aceitar o que a
professora está dizendo e as vezes se discordar de alguma coisa tentar ver o que eu errei e tentar
falar com a professora, por quê isso aqui ta errado?
(Aluno M)
Aceitei. Não, eu concordei, eu concordei. Até porque, as vezes, quando eu escrevo um texto eu
quero me livrar logo do texto para entregar, eu escrevo, mas eu olho e digo: esse texto não ta
bom, mas eu vou entregar assim mesmo (risos), sei que ela vai falar alguma coisa [...] mas eu
nunca tive problemas com... as correções de professor, se o professor dizia que estava errado,
tudo bem, eu ia tentar melhorar.
(Aluno P)
Essas respostas indicam ser o aluno I, justamente o que demonstra menos
domínio de escrita formal, o que teve mais dificuldades em aceitar as correções de seu
texto, principalmente ao dizer: vamos quebrar tudo, por receber seus textos com várias
correções, quando cursava a disciplina PLPT I. Entretanto em PLPT II demonstra estar
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1265
consciente e aceitar as correções como um fator positivo, com vistas a um crescimento
na escrita, uma vez que reconhece que precisa melhorar.
O aluno M manteve-se com a mesma opinião dada ao cursar PLPT I, exemplo 4.
Analisando suas respostas, em nenhum momento vimos à correção como um impacto
negativo, de forma explícita, mas como um recurso propiciador de desenvolvimento da
aprendizagem escrita. Vejamos que, no exemplo 4, o aluno declara que é “confortável”
e, agora, já na disciplina PLPT II, permanece dizendo: “eu aceito as correções [...]”. Ele
demonstra que a correção aponta os erros e o ajuda na aprendizagem da escrita, o que
também é um impacto percebido, pois há aprendizagem e reconhecimento por parte do
aluno de que forma ela está ocorrendo.
Já o aluno P, por sua vez, apresenta uma voz modalizada, que se diferencia de
seu primeiro posicionamento, exemplo 4, em que se mostrou bastante incomodado por
ver seus textos com algumas correções; no entanto agora, no exemplo 6, o aluno a fim
de não revelar de forma tão afirmativa sua rejeição pela correção em PLPT I, ele diz que
aceitou, mas depois refaz o que disse, alegando “Não, eu concordei, eu concordei”. Ou
seja, ainda demonstra o impacto recebido em PLPT I, na verdade não houve uma
aceitação plena, mas um reconhecimento de que precisava melhorar. De sua fala ainda
encontramos resquícios do impacto sofrido.
Considerações finais
De um modo geral, percebemos que os alunos I, M e P sentiram-se impactados
quando ingressaram na academia e viram que não escreviam no Ensino Fundamental e
Médio, muitas vezes, atendendo aos propósitos comunicativos: o que escrever, para
quem escrever e como escrever, tendo em vista os textos produzidos anteriormente à
academia terem sido apenas com o intuito de cumprir obrigações da escola, ou seja,
atribuição de uma nota.
A partir da análise feita, dos comentários dos alunos I, M e P, o que se constata é
que escrever na academia é algo complexo e trabalhoso, isto é, a escrita acadêmica
exige mais, uma vez que nesse contexto os alunos precisam ler mais textos teóricos,
muitas vezes densos e complexos, escrever a partir de gênero textual (resumo, resenha,
fichamentos, relatórios, artigos, monografias etc), bem como escrever para um
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1266
determinado interlocutor, seja ele o professor, uma banca de revisores de uma revista ou
de um congresso, enfim, na academia os alunos escrevem com objetivos e para um
interlocutor que vai, de fato ler o seu texto, o que parece que na escola do ensino
fundamental e médio essa escrita não existe ou se existe ainda não prepara efetivamente
os alunos para ingressarem na universidade, principalmente, no curso de letras.
Em suma, fica evidente que os alunos I, M e P sentiram-se impactos com o
ensino de escrita da academia. Para esses alunos a escrita passou de ser uma escrita
meramente com funções de atingir uma determinada nota para a escola para uma escrita
social, em que para escrever é necessário uma base teórica, metodológica e processos de
reescritas, a fim de atender aos mais diversos gêneros textuais sejam eles acadêmicos
e/ou não.
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Nas fronteiras da linguagem ǀ 1268
GÊNEROS TEXTUAIS E ANÁLISE LINGUÍSTICA COMO
PROCESSO DE ORGANIZAÇÃO LINGUÍSTICA E
IDENTIDADE SOCIAL [Voltar para Sumário]
John Hélio Porangaba de Oliveira (UNICAP)1
Considerações iniciais
Diante do crescente desenvolvimento tecnológico e aproximação da
globalização, são grandes as necessidades de comunicação em todo o mundo, entre os
países, etc. Assim, diante deste contexto, a educação é um meio de promover uma
comunicação e relacionamento mais amigáveis, uma vez que as necessidades de
informação, mão de obra qualificada, viagens, dentre outros aspectos, motivaram os
estudos da língua e da linguagem de cada povo e de cada país.
Dessa forma, os estudos de gêneros textuais e ou discursivos estão ganhando
espaços cada vez maiores ao passo que os gêneros são definidos como todo ato de
comunicação e interação social, dentro das diversas atividades humanas, os quais se
modificam de acordo com a necessidade e aperfeiçoamento da língua, portanto são
infinitos, variáveis e presentes na determinação de uma linguagem especifica a cada
campo de atividade, bem como importante para a organização e interpretação da
interação (CASSANY, 2008; BAKHTIN, 2011; BAZERMAN, 2007; MARCUSCHI,
2008).
Dentro desta perspectiva, o tema proposto para discussão aprecia as formas de
linguagem através da análise linguística dos gêneros textuais e ou discursivos para um
melhor entendimento e aprofundamento das diferentes maneiras de comunicação em
uso real e contextualizado da língua e da linguagem, nas mais diversas situações de
interação.
1 Mestrando em Ciências da Linguagem pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1269
Soma-se a isto o estudo da língua que carece de constantes olhares voltados para
o ensino aprendizagem, onde o desenvolvimento tecnológico e os meios de
comunicação necessitam de uma atenção especial quanto ao entendimento de uso e
entendimento das informações como formador do processo de organização linguística e
identidade social.
Este estudo se justifica pela necessidade de compreensão das construções de
sentido no uso de uma língua, provenientes do trabalho com gêneros textuais ou
discursivos, objetos deste estudo, no processo de ensino aprendizagem de língua e
discussão deste ensino como relevante para a estruturação comunicativa, organização
linguística e identidade social dos sujeitos da aprendizagem.
Uma problemática considerada relevante para a realização deste estudo centra-se
em saber se o estudo de gêneros textuais ou discursivos aliado a análise linguística pode
ser favorável ao processo de organização linguística e identidade social no desenvolvimento
do ensino aprendizagem?
A partir do problema exposto, tem-se como hipótese que o estudo de gêneros
textuais ou discursivo aliado à análise linguística pode sim ser favorável ao processo de
organização linguística e identidade social no desenvolvimento do ensino
aprendizagem, pois o estudo de gêneros discursivos precisa ser dinâmicos, situados,
desenvolver um proposito, estarem organizados em forma e conteúdo, delimitar
comunidades discursivas com suas normas, conhecimento e práticas sociais, construir e
reproduzir estruturas sociais.
Assim, de modo geral objetiva-se apresentar os gêneros textuais ou discursivos e
análise linguística como processo de organização linguística e identidade social no
desenvolvimento do ensino aprendizagem. Nessa perspectiva, objetiva-se mais
especificamente: expor considerações sobre gêneros e análise linguística, discorrer
sobre o processo de organização linguística e identidade social a partir do estudo de
gêneros e análise linguística, e mostrar o ensino aprendizagem de gêneros como
importante paro o processo de organização linguística e identidade social.
Para realização deste estudo, tomou-se como metodologia um levantamento
bibliográfico que consta de exposição de um relato teórico. Assim, destaca-se o estudo
dos teóricos: Bakhtin (2011); Marcuschi (2008); Mendonça (2006); Bezerra e Reinaldo
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1270
(2013); Cassany (2008) e Bazerman (2007), no conjunto das discussões apresentadas no
discorrer deste trabalho.
Assim, mediante as teorias apresentadas e discussões levantadas, é possível
considera que o estudo de gêneros e análise linguística possuem um papel fundamental
para o processo de organização linguística e identidade social, bem como no
desenvolvimento do ensino aprendizagem, organização e interpretação da interação por
meio de linguagem especifica a cada comunidade discursiva.
Dessa forma, este estudo possui uma característica de entendimento do contexto
e interação social na educação a partir dos diversos tipos de estudo que a análise
linguística pode favorecer através do estudo da língua e da linguagem proveniente do
trabalho com gêneros. Desse modo as discussões são pertinentes ao processo de organização
linguística e identidade social além de promover o ensino aprendizagem de língua. Por outro
lado, o estudo aqui apresentado abre caminhos para novas pesquisas e discussões pertinentes ao
estudo de gêneros e análise linguística.
Breves considerações sobre gêneros
As teorias de gêneros textuais e ou do discurso que se tem atualmente são
provenientes das teorias de gêneros do discurso, produto do teórico Mikhail Bakhtin,
um crítico e pensador russo que se dedicou ao estudo da interação verbal e, por ventura,
veio a interpretar o enunciado como unidade de comunicação verbal, visto que gêneros
são enunciados orais e escritos que ajudam na comunicação humana.
O tratamento de gêneros por Bakhtin é voltado para o processo de produção,
assim, é caracterizado pelo autor como gêneros do discurso o que não diferencia da
abordagem de Marcuschi que se utiliza do pseudônimo de gêneros de texto. A diferença
é que gêneros discursivos abrangem todos os termos, desde a oralidade a escrita e
gêneros de texto torna-se necessário o uso de uma especificação para o oral e para o
escrito.
Nesse contexto, Bakhtin (2011) veio introduzir os estudos de gêneros como
característicos da língua e produção de sentido através de um conteúdo temático, um
estilo e uma construção composicional presente na linguagem dos participantes da
comunicação em uma abordagem mais teórica. Do mesmo modo, Marcuschi, no
entanto, trata o gênero na produção de textos voltado para o ensino.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1271
Para Bakhtin (2011), os gêneros do discurso são unidades de sentido que se
desenvolve a partir das interações humanas e se complexificam à medida que cresce a
necessidade de comunicação nos diversos campos da ação do homem, são divididos em
formas de enunciados ou gêneros primários envolvendo em sua maioria a comunicação
oral simples como o diálogo, a carta, dentre outros, e em gêneros secundários
característicos de uma realização mais complexa como romances, dramas, pesquisas
cientificas, etc.
A definição de gêneros textuais proposta por Marcuschi, vem propor que há uma
união de interação e comunicação com todos os fatos do dia a dia, mediada, portanto,
com as interconecções discursivas, tais como: cultural, politica, religiosa e social desse
ou daquele campo de convivência humana. Assim, o autor diz que:
Os gêneros textuais são os textos que encontramos em nossa vida diária e que
apresentam padrões sociocomunicativos característicos definidos por
composições funcionais, objetivos enunciativos e estilos concretamente
realizados na integração de forças históricas, sociais, institucionais e técnicas.
São entidades empíricas em situações comunicativas e se expressam em
designações diversas, constituindo em princípio listagens abertas. [...] são
formas textuais escritas ou orais bastante estáveis, histórica e socialmente
situadas (MARCUSCHI, 2008, p.155).
Os gêneros textuais e ou discursivos abrem um grande leque possíveis de estudo
nas mais diversas áreas de conhecimento, o que permite a abrangência deste no ensino
de língua por um contexto interativo real e possível a todos os integrantes da língua.
São denominados gêneros do discurso todo enunciado que tem em sua estrutura
o objetivo de comunicar alguma coisa. Desse modo, cada campo do conhecimento e
cada atividade humana que se utiliza da língua, utiliza também tipos de enunciados
característicos específicos da área de atuação dos sujeitos escritores ou falantes, o que
determina tipos relativamente estáveis de enunciados.
Bazerman (2007), um estudioso de gêneros é Professor de Educação nos Estados
Unidos (EUA), que se interessa pela dinâmica social da escrita, pela teoria retórica e
pela retórica da produção e uso do conhecimento. Ele elabora uma teoria de gênero e
atividades diferenciadas das demais, pois, “o gênero fornece um meio para a
compreensão dos processos e atividades do escritor, dos desafios de aprender a escrever
e dos sistemas sociais de que a escrita nos permite participar” (BAZERMAN, 2007,
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1272
p.11), pois esta teoria difere em relação à força positiva do enunciado mais do que as
limitações e traços textuais.
Outro autor que se faz necessário apresentar é Daniel Cassany (2008), que
trabalha com Oficina de Textos, ele mostra uma proposta prática que ajuda a facilitar a
aprendizagem de leitura e escrita de gêneros, onde o domínio destes gêneros, que são
específicos a cada área ou comunidade discursiva, ajuda os sujeitos da aprendizagem a
tomarem consciência da função que desempenha cada discurso, bem como identifica
quem escreve, os utilizam, visto que revela a identidade profissional, social, cultural e
intersubjetiva das diferentes formas de compreensão de mundo e interpretativa das
situações propostas pelo meio em que vive.
Desse modo, Cassany vem fazer uma apresentação ao estudo do gênero como
importante ao ensino.
O interesse em estudar cada gênero está em que, ao conhecer como [é e como
funciona], podemos melhorar seu ensino e aprendizagem: aprender a utilizar
um gênero é aprender a desenvolver as práticas profissionais que se
desenvolvem com ele (CASSANY, 2008, p. 17).
Nesse sentido, a autora destaca que alguns dos traços mais relevantes dos
gêneros discursivos é que eles são dinâmicos, estão situados, desenvolvem um
proposito, estão organizados em forma e conteúdo, delimitam comunidades discursivas
com suas normas, conhecimento e práticas sociais, e constroem e reproduzem estruturas
sociais. Ainda nesse contexto, os gêneros desempenham basicamente três funções, a
saber: função cognitiva, função interpessoal e função sociopolítica. Desse modo, o
gênero contribui para a elaboração do conhecimento e para desenvolver a atividade
profissional.
Quando se trabalha com a escrita de gêneros, o autor do texto deixa suas marcas
pessoais, onde os escritos contribuem para a elaboração da imagem, revelando seus
conhecimentos, habilidades e competências não só da produção escrita mas da
linguagem acerca do conteúdo e de suas relações com o mundo.
Análise linguística: prática reflexiva no ensino de gêneros
O termo análise linguística tem sido utilizada desde que a linguística tomou
como objeto de estudo a língua, como estabelecido por de Saussure (2006), no livro
“Curso de Linguística Geral”, organizado e publicado três anos após a sua morte por
dois discípulos em 1916.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1273
No entanto, a análise linguística tem sido utilizada para análise de diferentes
aspectos da língua, tendo como objeto de análise aquilo que o pesquisador pretende
demonstrar para sustentar suas teorias quanto ao assunto estudado. Assim, tem surgido
no contexto educacional uma nova forma de estudo de língua.
Desse modo, Mendonça (2006) vem dizer que o termo análise linguística foi
apresentado como pressuposto de estudo dos usos da língua no sistema linguístico,
visando o tratamento dos fenômenos gramaticais, os fenômenos textuais e discursivos
voltados para o ensino de língua na escola e nas universidades, a partir dos anos 1970,
para tratar da apropriação dos recursos linguísticos na consciência das diversas
possibilidades de uso em confronto com o ensino tradicional.
Assim, Mendonça (2006) enfatiza que a análise linguística, denominada pela
autora na sigla AL, consiste numa reflexão dos aspectos linguísticos e estra linguísticos
da língua na constituição das competências e habilidades no uso das mais diversas
linguagens nas atividades comunicativas, estabelecidas no momento de interação e
produção de conhecimentos. Desse modo, a autora diz:
Por isso, pode-se dizer que a AL2 é parte das práticas de letramento
escolar, constituindo numa reflexão explícita e sistemática sobre a
constituição e o funcionamento da linguagem nas dimensões sistêmica (ou
gramatical), textual discursiva e também normativa, com o objetivo de
contribuir para o desenvolvimento de habilidades de leitura/escuta, de
produção de textos orais e escritos e de análise e sistematização de
fenômenos linguísticos (MENDONÇA, 2006, p.208).
Dessa forma, a análise linguística é um tema fundamental para o ensino, pois
propicia o desenvolvimento de competências comunicativas dos alunos tanto de língua
portuguesa quanto de língua estrangeira, bem como desenvolve a essência da
interpretação, produção oral e escrita e a comunicação nos diversos contextos de
interação da língua pelas diferentes formas de linguagem situadas ou não no processo de
expressão e atividade em cada campo do conhecimento, pois os gêneros são enunciados
orais e escritos.
Esses enunciados refletem as condições especificas e as finalidades de cada
referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo de
linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e
2 Grifo da autora.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1274
gramaticais da língua mas, acima de tudo, por sua construção composicional
(BAKHTIN, 2011, p.261).
Assim, a análise linguística se encaixa a uma abrangência de desenvolvimento
pedagógico, uma vez que a riqueza e diversidade de gêneros são infinitas e se misturam
a vida através da língua. O que pode-se, pois ir além dos estudos já descritos acima
como promover interações interdisciplinares “com atenção especial para o
funcionamento da língua e para as atividades culturais e sociais” apresentadas por
Marcuschi (2008, p.155-156).
Em Mendonça (2006) a análise linguística abrange os estudos gramaticais e
adiciona novos modelos de estudo à medida que os objetivos pretendidos pelo professor
se encaixam a outros aspectos fora dos conteúdos centrados na gramática, assim, análise
linguística faz uma reflexão sobre o sistema linguístico e usos da língua, com vistas ao
tratamento escolar de fenômenos gramaticais, textuais e discursivos.
Ainda na perspectiva de um esclarecimento de análise linguística as autoras,
Bezerra e Reinaldo (2013), referente aos estudos linguísticos, comentam que a análise
linguística é dividida em dois tipos de práticas, as quais:
A primeira refere-se ao ato de descrever e explicar ou interpretar aspectos da
língua, [...] trata-se do fazer próprio do estudo científico da língua, a respeito
de suas diversas unidades (o fonema, o morfema, a palavra, o sintagma, a
frase, o texto e o discurso) e se desenvolve com base em estudos descritivos
de diversas tendências teóricas, desde o estruturalismo até tendências
funcionalistas atuais, passando por teorias gerativistas, semânticas e textual-
interativas, por exemplo. E a segunda também se volta para a descrição, mas
com fins didáticos (BEZERRA & REINALDO, 2013, p.21).
Assim, a análise linguística de gêneros apresenta-se como suporte teórico-
metodológico favorável para o ensino aprendizagem de língua, tanto no ensino básico
quanto no ensino superior, bem como uma ferramenta indispensável para professores
em sua prática pedagógica nas mais diversas formas de tratamento da língua, seja ela
materna ou estrangeira, pois se fundamentam no princípio de produção, entendimento e
situação comunicativa.
O gênero como um recurso organizador da linguagem: processo de organização
linguística, identidade social e ensino aprendizagem
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1275
Os estudos de organização de gêneros de texto ou de discurso com base nas
contribuições da análise linguística, como aspecto de reflexão dos constituintes
comunicativos e sociais, implementa o papel da linguagem na construção do
conhecimento, da organização social e cultural fortemente representada pela
competência linguística, pela identidade social e pelo ensino aprendizagem que se
caracteriza em letramentos.
Para Bazerman (2007) os estudiosos possuem a tarefa de entender como cada
sociedade elabora um modo de vida a partir do letramento, e a participação destes
membros no sistema letrado de leitura e escrita. O autor diz que as instituições escolares
vem promover um desenvolvimento de mobilidade social, de vantagens de classe que
seguem caminhos diversificados no domínio da criatividade e da cultura nos mais
diversos espaços de tempo, particular a cada modo de vida em mudanças constantes da
sociedade.
Assim, Bazerman acredita que essa infraestrutura fornece a maior implicação da
história social. Pois, a leitura e a escrita como formas de letramentos, são essenciais
para a sociedade contemporânea, onde o gênero é “um dos mecanismos-chave para a
estruturação de mensagens e ações dentro das formas culturais” (BAZERMAN, 2007,
p.19), visto que desenvolve não apenas a competência linguística mais a identidade
social do ser humano.
Nesse sentido, os gêneros estruturam situações, relações e ações sociais
possibilitadas pelo letramento, pois na teoria do gênero, a escrita torna as ações mais
convincentes, elaboradas, confiáveis e frequentes a depender de uma leitura ampla da
mensagem exposta no texto escrito (BAZERMAN, 2007).
O letramento em seu uso depende das escolhas agentivas e estratégicas dos
autores, visto que, “o letramento oferece algo diferente do que anteciparam”
(BAZERMAN, 2007, p.21), pois o letramento é uma forma de conhecimento subjetivo
que se manifesta de dentro para fora na hora de exercer uma atividade em confronto
com as situações sociais. Assim em uma atividade planejada, o letramento do sujeito
executor da ação, vai permitir a inteligência criativa para exercer uma atitude ideal a
situação e ao contexto.
Para este autor que segue um grupo de teóricos e pesquisadores dos estudos da
escrita e da retorica, os gêneros assumem um papel central e visível na sociedade
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1276
contemporânea porque são reconhecíveis de uma sociedade que fornece um repertorio
disponível de formas, ações e motivos, visto que, “Essas formas são maneiras de ver
quais atos são disponíveis e apropriados ao momento como você o percebe – aquilo que
você pode fazer, aquilo que você pode querer fazer” (BAZERMAN, 2007, p.22).
O poder social do letramento é o domínio de informações, realizado somente
através do manejo dos sistemas pela produção, recepção e usos ativos de textos
particulares de cada área. Um texto escrito, por um indivíduo letrado que contém uma
informação pode atravessar gerações sem perder seu valor, pois as informações
produzidas dentro de um tipo particular de documento são enunciadas na ideologia de
um dado gênero (BAZERMAN, 2007).
Assim, Bazerman diz que para “compreender o que é a informação, como a
usamos, como a comparamos e calculamos e como chegamos à conclusão sobre ela, é
entender muito sobre como pensamos hoje” (BAZERMAN, 2007, p.35-36). Dessa
forma, o entendimento, compreensão e uso das conclusões informativas é que determina
o verdadeiro letramento.
Como dito, o letramento é um conhecimento processado por informações de
determinado assunto ou atividade. Nas mais diversas áreas de ação humana, o homem
produz conhecimentos expostos nos mais variados gêneros, típicos a cada atividade em
especifico, o que faz do gênero um recurso organizador da linguagem. Portanto, o
estudo, bem como a compreensão e uso de gêneros através da análise linguística,
favorece ao processo de organização linguística e identidade social movido pelo ensino
aprendizagem.
O que se pode perceber no texto de Bazerman é que o conjunto de
conhecimentos é entendido como agência de muitos indivíduos e organizações. O autor
diz que tal agência de conhecimento é ao mesmo tempo uma indústria internacional e,
portanto, o cultivo do ambiente letrado passa por mudanças, intertextualidade e que é
usada para orientar a vida na atualidade.
Assim, a invenção dos gêneros e das formas de atividades socialmente
organizadas é grandes instituições das diversas ciências, construídas a partir do
letramento e da invenção de formas complexas de interação letrada ou social, ou seja,
como sistemas baseados no letramento. Igualmente, vê-se em Bakhtin (2011) que a
existência dos gêneros do discurso torna a comunicação verbal possível.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1277
O letramento é uma forma de conhecimento que permite pensar, conhecer e agir
bem como modificar a forma de se viver, de se criar e recriar as coisas, pois é o
letramento que fornece as mais diversas formas de significar o mundo. Assim, as
manifestações de letramento são possíveis a partir da produção de enunciados, gêneros
discursivos ou textuais.
Para tanto, vale considera que as relações que o homem estabelece com o mundo
identificam sua posição social, seu repertorio linguístico, suas aptidões e aprendizagem
cultural, permeada por diferentes manifestações ideológicas, formas viventes,
organização social, organização física, hábitos pessoais e cotidianos de seu espaço.
Nesse exposto das questões de letramento, Bazerman chama atenção para as
necessidades do mundo moderno, no dizer que “hoje as crianças precisam não somente
achar seu caminho no ambiente construído das cidades, dos subúrbios, do campo, e das
escolas, elas precisam achar seu caminho no ambiente simbólico construído dos livros,
da mídia, dos símbolos nos muros” (BAZERMAN, 2007, p.44).
O estudo de gêneros com base em uma reflexão dos sistemas de comunicação
verbal constitui conhecimentos e estímulos de desenvolvimento linguístico e de
identidade para os estudantes, que carecem de diversos conhecimentos para uma
comunicação, interação e interpretação dos mais diversos símbolos, escritos, orais e
visuais, próprio do sistema de letramento, útil às necessidades da vida em sociedade e
funcionamento da linguagem (BEZERRA & REINALDO, 2013; MENDONÇA, 2006).
Nessa perspectiva de compreensão do gênero e análise linguística como
processo de organização linguística e identidade social, a partir da escrita de gêneros
textuais ou discursivos possui uma influência no sistema mental, na produção escrita e
publicação de variados textos, pois na produção, o sujeito escritor, deixa uma imagem
de seu desempenho em determinada área.
Para Cassany “o gênero é a estrutura discursiva, o recurso retórico ou a ação
comunicativa que utiliza os profissionais para resolver boa parte das tarefas ou
atividades de nossa disciplina e em nosso ambiente de trabalho” (CASSANY, 2008,
p.18). Desse modo, conhecer os gêneros como eles são e como funcionam facilita o
ensino e a aprendizagem, pois, vê-se neste estudo, que eles são relevantes para o
processo de organização linguística, identidade social e ensino aprendizagem.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1278
Na escrita de gêneros em sua composição tanto discursiva quanto textual deixa
registradas as marcas pessoais de seu enunciador ou escritor, pois há uma elaboração da
imagem, dos conhecimentos, das habilidades e das competências de produção escrita de
uma linguagem especifica, bem como acerca do conteúdo e de suas relações com o
mundo, com sua comunidade, com sua cultura, etc. em uma interconecção com diversas
formas de pensamento, interpretação e espaços de ação humana as quais este sujeito ou
individuo se insere.
Considerações finais
O objeto deste estudo, gêneros textuais ou do discurso, compreende as
construções de sentido no uso de uma linguagem, no processo de ensino aprendizagem
de língua e discussão deste ensino como relevante para a estruturação comunicativa,
organização linguística e identidade social dos sujeitos da aprendizagem, o que tornou a
hipótese inicialmente levantada um ponto de partida para este estudo bem favorável
para as discussões levantadas.
Quanto aos objetivos do trabalho, foi possível entender que a exposição de
considerações sobre gêneros e análise linguística, discorrida sobre o processo de
organização linguística e identidade social a partir do estudo de gêneros e análise
linguística, é amplamente influente paro o processo de organização linguística,
identidade social e imprescindível no ensino aprendizagem de língua.
A exposição do relato teórico em detrimento as discussões a respeito da
temática, considera-se que o estudo de gêneros e análise linguística possuem um papel
fundamental para o processo de organização linguística e identidade social, bem como
no desenvolvimento do ensino aprendizagem, organização e interpretação da interação
por meio de linguagem especifica a cada comunidade discursiva.
Nessa perspectiva, os gêneros textuais ou de discurso e a análise linguística,
abordam teorias metodológica capaz de transformar o ensino aprendizagem em um
momento de estudo motivado pelas diferentes situações comunicativas e realização da
língua, criando espaços de interação e promovendo o letramento, ou seja, construindo
competências uteis para a ação independente e autônoma dos indivíduos.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1279
Assim, a análise linguística seve como instrumento de apoio para o
conhecimento produção, desenvolvimento e interpretação tanto das informações que
circulam quanto da identificação pessoal voltada para o contato e contexto social, onde
todo enunciado proferido pelos integrantes da comunicação e materializado em forma
de gêneros textuais e ou discursivos.
Referências
BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. São
Paulo: Martins Fontes, 2011.
BAZERMAN, Charles. Escrita, Gênero e Interação Social. HOFFNAGEL, Judith C. e
DIONISIO, Angela P (Orgs.). São Paulo - SP: Cortez, 2007.
BEZERRA, Maria Auxiliadora; REINALDO, Maria Augusta. Análise linguística:
afinal, a que se refere? São Paulo: Cortez, vol. 3, 2013.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação. Linguagem códigos e suas
tecnologias: conhecimentos de língua estrangeira moderna. In; Parâmetros Curriculares
Nacionais: Ensino Médio. Brasília, 2000.
CASSANY, D. Oficina de textos: compreensão leitora e expressão escrita em todas as
disciplinas e profissões. [Tradução: Valério Campos]. Porto Alegre: Artmed, 2008.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. Sã
Paulo: parábola, 2008.
MENDONÇA, M. Análise Linguística no Ensino Médio: um novo olhar, um outro
objeto. In: Clécio Bunzen e Márcia Mendonça (Orgs). Português no ensino médio e
formação do professor. São Paulo. Parábola Editorial, 2006.
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística Geral. São Paulo: Citrix, 2006.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1280
A ESTÉTICA NEOBARROCA NA CANÇÃO DE CHICO
CÉSAR: UM LEITURA DE A PROSA IMPÚRPURA DE
CAICÓ [Voltar para Sumário]
Jonathan Lucas Moreira Leite (UFPB-PPGL)
1. Canção (e) poesia: uma leitura
Antes de adentrarmos no foco desse trabalho, uma leitura neobarroca sobre a
canção do compositor paraibano Chico César, faz-se necessário abordarmos, ainda que
brevemente, a relação entre letra de música e poesia. Na música brasileira existem
diversos letristas que fazem canções com um elevado grau de poesia, podemos citar
Noel Rosa, Edu Lobo, Itamar Assumpção, Djavan e Alceu Valença. De outra parte
existem poetas que se propuseram, também, a escrever letra de música, entre eles está
Paulo Leminski, Antônio Cícero e Wally Salomão.
A relação entre canção e poesia, além de antiquíssima, é fronteiriça. Lembramos
que na tradição poética dos trovadores provençais do século XII música e poesia eram
indissociáveis, a literatura ainda não havia conquistado a autonomia que conhecemos
hoje, vinda com a ascensão da burguesia. As cantigas dos trovadores eram feitas para
serem recitadas e/ou cantadas. O poeta e compositor popular Vinicius de Moraes, em
entrevista concedida à Clarice Lispector, publicada originalmente na revista Manchete,
afirma: “Não separo a poesia que está nos livros da que está nas canções” (HOMEM,
2013. p.16.). Tal assertiva reitera que a linha que separa letra de música da poesia dos
livros —se é que exista tal necessidade de distinção— é bastante ténue.
Existe uma difícil discussão quando pensamos em determinar um veredito sobre a
plenitude da análise de letra de música apenas como texto poético, sem analisarmos a
tessitura músical que aquele texto está sendo vinculado (instrumentos, harmonia,
melodia...). O brasilianista Charles Perrone descreve a canção popular como uma
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1281
literatura de performance, segundo o autor “se um texto é criado com a finalidade de
ser cantado, e não para ser lido ou recitado, ele deve ser estudado na forma dentro da
qual foi concebido”. (PERRONE, 1988, p. 23).
Corroboramos que os aspectos musicais da canção popular são muito relevantes
para a apreciação do objeto artístico e também a análise destes elementos pode ser
muito enriquecedora. Os estudos semióticos são uma possibilidade de abordar a canção
na sua duplicidade de signos, como tão bem faz o crítico Luiz Tatit1. Porém, não
concordamos com a impossibilidade da análise da letra de música dissociada da parte
musical. Entendemos que é necessário relativizar o absolutismo dessa premissa uma vez
que a letra de música pode ter uma infinidade de elementos textuais a serem analisados.
Canções como “Construção”, de Chico Buarque, e “Os quereres”, de Caetano Veloso,
são exemplos da riqueza do signo verbal na canção popular.
Pensamos, ainda, nos casos dos diversos poemas que são musicados, ou ainda dos
textos que se conceberam inicialmente como canção e se tornaram poesia de livro.
Textos como “Poema dos olhos da amada” ou “Rosa de Hiroshima”, ambos nasceram
como poemas “de livro” de Vinicius de Moraes e depois foram musicados. Sobre essa
discussão, o professor e semioticista Amador Ribeiro Neto2 nos atenta para alguns
cancionistas, e entre eles o caso de Arnaldo Antunes que, além de compositor de MPB,
é poeta de livros. Temos o exemplo do poema-canção “O quê?” que foi concebido e
publicado como música e depois foi transposto para livro, como um poema de
influência concretista. O próprio Arnaldo Antunes transformou o poema “Budismo
moderno”, de Augusto dos Anjos, em uma canção.
Como podemos observar nos exemplos citados, se concordássemos
completamente com a assertiva de Perrone não poderíamos analisar as canções como
textos poéticos, apenas a partir dos signos linguísticos, mesmo sendo estes
extremamente ricos para uma análise. Atentamos, ainda, que tal veredito inibiria o
campo de estudo da literatura para a análise da poesia trovadoresca, uma vez que os
textos eram orais e criados, geralmente, para a execução acompanhada de instrumentos
musicais. Tão pouco vemos uma arte maior do que a outra, o fato de um texto ser poesia
não o faz, intrinsecamente, melhor do que o texto de uma canção.
1 VER: TATIT, Luiz. Semiótica da Canção: Melodia e Letra. São Paulo: Ed. Escuta, 1994. 2 VER: RIBEIRO NETO, Amador. Uma levada maneira: ao ar, poesia e música. In Conceitos, v.3, João
Pessoa: ADUFPB, p; 21-27, 2000.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1282
Esclarecida nossa perspectiva de que é possível analisar o texto poético da canção
sem, necessariamente, discorrer sobre as questões musicais, este trabalho se voltará para
uma breve discussão sobre o barroquismo presente na poética de Chico César, trazidos à
baila com a análise da canção “A prosa impúrpura do Caicó”. Atentaremos, mais
especificamente, para as relações entre a canção e alguns conceitos da estética barroca
alinhavadas Severo Sarduy (1979).
2. Uma leitura neobarroca d’A prosa impúrpura do Caicó
Exuberância, desperdício e dualidade são palavras muito gratas ao estilo
seiscentista. Os espelhamentos e as oposições de luz e sombra, característicos do
barroco, podem ser vistos desde a arquitetura das igrejas católicas do período, até os
poemas de Gregório de Matos. Perpassam, na verdade, para muito além do poeta
baiano, uma vez que a história da arte é feita de rompimentos e reaproximações com
estéticas anteriores; rompe-se com algumas, dialoga-se com outras. Sobre a estética
barroca Sarduy afirma:
Desde seu nascimento, o barroco estava destinado à ambiguidade, à difusão
semântica. Foi a grossa pérola irregular – em espanhol barrueco ou berrueco,
em português barroco – a rocha, o nodoso, a densidade aglutinada da pedra –
barrueco ou berrueco -, talvez a excrescência, o quisto, o que prolifera, ao
mesmo tempo livre e lítico (SARDUY, 1979, p 161)
O homem barroco é essencialmente feito de dualidade, sabe da efemeridade da
vida e sofre da tensão entre aproveitar os prazeres que dispõe e a esmagadora culpa
cristã. O homem do entre-lugar, em tanto similar com estes tempos líquidos. As canções
do cantor e compositor paraibano Chico César, por diversas vezes, trazem essas
inquietações, essas tensões provocadas pelas dualidades tão marcadas pelos eu-líricos.
Nas letras do compositor cabem todos os, supostamente, opostos: São Paulo e Catolé do
Rocha; Mallarmé e Zabé da Loca. Encontram lugar na sua canção os bantos, os curdos,
Nelson Mandela e José Lins do Rego. O mundo é quintal e o quintal é mundo na canção
do paraibano.
Tendo em vista a possibilidade de uma visada neobarroca sobre as canções de
Chico César, tomaremos como guia, principalmente, os conceitos explicitados por
Sarduy (1979) para analisar a canção A prosa impúrpura do Caicó presente no disco
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1283
Aos Vivos de 1995. A canção apresenta um eu-lírico cercado pelos antagonismos. O
regional e o cosmopolita; a tradição e a modernidade; o popular e o erudito. Nossa
análise se deterá, principalmente sobre dois conceitos: i) a intertextualidade; ii) a forte
construção antitética das percepções e sentimentos do eu-lírico. Vamos à canção:
A prosa impúrpura do Caicó
Ah! Caicó arcaico
Em meu peito catolaico
Tudo é descrença e fé
Ah! Caicó arcaico
Meu cashcouer mallarmaico
Tudo rejeita e quer
É com, é sem
Milhão e vintém
Todo mundo e ninguém
Pé de xique-xique, pé de flor
Relabucho, velório
Videogame oratório
High-cult simplório
Amor sem fim, desamor
Sexo no-iê
Oxente, oh! Shit
Cego Aderaldo olhando pra mim
Moonwalkmam
(CÉSAR 1995)
Uma das principais características neobarrocas, segundo Sarduy (1979), é a
intertextualidade, não como mero adorno ou excrecência, mas como traço estruturante
na obra. Na discografia de Chico César abundam os exemplos de textos que são
formados a partir de uma marcada intertextualidade, podemos citar como exemplos
Papo cabeça, presente no disco Beleza mano (1997) e moer a cana, do disco De uns
tempos pra cá (2006).
Na canção analisada observamos que a incorporação de textos estrangeiros
acontece desde o título “A prosa impúrpura de Caicó” relembrando o filme de Woody
Allen “A rosa púrpura do Cairo” (1985). Lembramos que o filme de Allen se constrói a
partir da metalinguagem e do jogo com os planos ficcionais, uma linguagem debruçada
em si mesma, não nos parece haver gratuidade nas relações estabelecidas pelo
compositor. Durante toda a canção o autor estabelece um jogo com a recepção dos seus
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1284
ouvintes/leitores a partir da incorporação de vários elementos que estão além do seu
próprio texto. Para esclarecer tais afirmações, analisaremos mais atentamente verso a
verso.
A canção inicia-se com o anagrama “Ah! Caicó arcaico” reiterando o antigo, a
tradição dentro de Caicó, a cidade como um símbolo do regional ou ainda o Caicó
dentro do (ar)caico. No verso seguinte o eu-lírico se refere ao próprio peito como
“catolaico”, há nesse caso uma condensação, pensada aqui nos termos explicitados por
Sarduy: “permutação, miragem, fusão, intercâmbio entre elementos – fonéticos,
plásticos, etc. – de dois termos de uma cadeia de significante, choque e condensação dos
quais surge um terceiro termo que resume semanticamente os dois primeiros”. (1979, p.
167) Os significados de católico e laico são contemplados no mesmo significante,
catolaico. A dualidade do eu lírico é transportada para essa fusão, para a linguagem
utilizada pelo autor. Essa interpretação ganha força quando pensamos no verso seguinte:
“tudo é descrença e fé” Se instala, então, a profunda duplicidade do eu-lírico que irá
estender-se ao longo da composição.
No quinto verso o eu-lírico refere-se (assim como ao seu “peito catolaico”) ao seu
“cashcouer mallarmaico”. O cache-coeur é uma indumentária que protege o peito, mas
não podemos deixar de atentar para a uma possível condensação das palavras cash,
dinheiro em inglês, e coeur, coração em francês. Esse artifício reafirma um dos lados da
antítese estabelecida entre o cosmopolita e o regional. Também podemos observar a
relação dicotômica entre dinheiro e coração, entre a materialidade e a subjetividade do
eu-lírico. Seguindo o seu cashcoeur temos o mallarmaico o adjetivando. Fica explicita a
referência ao poeta francês Mallarmé e assim como em catolaico, há uma condensação
entre os possíveis significados que a obra e a figura do poeta trazem e o significado de
arcaico, formando o significante já mencionado. Na canção Paraíba, meu amor,
presente no disco Beleza mano (1997), o compositor também se refere ao lance de
dados de Mallarmé no verso “o acaso da minha vida um dado não abolirá”. A
intertextualidade, o dialogo entre o telúrico e o mundo são marcas muito presentes nas
canções do autor analisado.
Do sexto verso até o decimo quarto a antítese se torna a coluna vertebral da
canção. O jogo de luz e sombra barroca se reflete e se esconde nos versos “É com, é
sem/ Milhão e vintém/ Todo mundo e ninguém”. A partir de então as antíteses
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1285
abandonam os seus pares óbvios e passam a assemelhar-se ao procedimento de
substituição no qual, segundo Sarduy (1979), o significante correspondente a um
determinado significado que foi escamoteado da sentença e substituído por outro
afastado semanticamente daquele e que só funciona como o primeiro no contexto em
questão. Sabemos das diferenças discrepantes entre os pares apresentados (“Pé de
xique-xique, pé de flor// Relabucho, velório/ Videogame oratório”), porém eles tornam-
se semanticamente antitéticos apenas no contexto da canção.
Durante o referido jogo de antíteses a relação entre as partes, teoricamente
antagónicas, também surpreende a partir do olhar mais atento. Alguns pares são
separados pela vírgula (“É com, é sem”; “Pé de xique-xique, pé de flor”) outros pela
preposição ‘e’ (“Milhão e vintém/ Todo mundo e ninguém”) e por fim existem os pares
em que não há nada entre eles (“Videogame oratório/ High-cult simplório”). O terceiro
caso nos chama atenção pela dubiedade da própria antítese, uma vez que podemos ler
como um só termo, ou um termo servindo de adjetivo para o outro. Nesse caso o high-
cult tanto pode ser lido como opositor ao simplório, como ele mesmo sendo simplório.
Na última estrofe a intertextualidade retoma a figura central da canção. No verso
“sexo-no-iê” fica clara a referência à doutrina filosófica oriental Seicho-no-iê. No verso
seguinte “Oxente, oh! Shit” as interjeições da língua portuguesa e inglesa se aproximam
foneticamente (re)criando a ideia de oposição entre o cosmopolita e o regional. A
referência ao poeta popular Cego Aderaldo é seguida pelo verso de desfecho
“Moonwalkman”. O Monwalk, como sabemos, é o famoso passo De Michael Jackson,
onde na simulação de caminhar para frente o dançarino se movimenta para trás, tal
imagem reitera os jogos presentes durante toda a canção. O Walkman é um dispositivo
de reprodução de música portátil, muito usado nos anos 80 e começo dos 90 (e nem tão
portátil assim para os dias de hoje).
Considerações finais
Como podemos observar durante a análise, a canção demonstra, do título ao
último verso, a artificialização tão grata a estética barroca e neobarroca. A forte
intertextualidade e os jogos antitéticos se mostram fundamentais na construção dos
sentimentos antagônicos do eu-lírico. Alguém entre a tradição dos cantadores e o pop
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1286
estadunidense; entre o erudito e o popular; entre o moderno e o arcaico. O eu-lírico
mostra-se (neo)barroco dentro das inúmeras dubiedades que transmite, homem que
dialoga com os extremos e, talvez, por isso seja estrangeiro em toda parte. O eu-lírico
revela-se perdido nesse entre-lugar, isso demonstra-se na canção através dos recursos
estéticos. Estes não funcionam como mero adornamento para o conteúdo, antes, forma e
conteúdo unem-se de maneira indissociável.
REFERÊNCIAS
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http://www.chicocesar.com.br/disco_ver.php?titulo=Aos%20vivos. Acessado em 26 de
março de 2015
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c%C3%A1%202006 Acessado em 26 de março de 2015
PERRONE, Charles. Letras e Letras da MPB. Rio de Janeiro: BookLink, 2008.
POUND, Ezra. ABC da literatura. 11.ed. Tradução de Augusto de Campos. São Paulo:
Cultrix, 2006.
RIBEIRO NETO, Amador. Uma levada maneira: ao ar, poesia e música popular. In:
Conceitos, v3, João Pessoa: ADUFPB, p. 21-27, 2000.
SARDUY, Severo. O barroco e o neobarroco. In: MORENO, César Fernández (org.)
América Látina em sua literatura. Tradução de Luiz João Gaio. São Paulo: Perspectiva
(Col. Estudos, v. 52). 1979.
TATIT, Luiz. Semiótica da Canção: Melodia e Letra. São Paulo: Ed. Escuta, 1994.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1287
A AMBIVALÊNCIA DA CONFISSÃO NA ESCRITURA DE
MIA COUTO [Voltar para Sumário]
José Aldo Ribeiro da Silva (UEPB)
Eu e o outro nos encontramos mutuamente na
contradição absoluta do acontecimento.
(Mikhail Bakhtin)
A imagem do homem que confessa é constante na trajetória escritural de Mia
Couto. Segredos, crimes, culpas e angústias são externados por personagens que, ao se
desnudarem diante de um leitor-ouvinte, almejando acima de tudo a consolação de uma
escuta, deixam entrever em seus “corpos” as marcas deixadas pelo convívio em
sociedades nas quais crenças e valores de proveniências diversas dividem espaço.
“Vozes” narrativas se erguem em meio a estórias que promovem um encontro, muitas
vezes conflituoso, com a diferença, no qual o contato entre seres com mundivivências
distintas coloca em face do confessor a efígie do “outro que é ele mesmo” (PAZ, 2012,
p. 119). Os discursos de confissão têm um papel ambivalente nas narrativas do autor,
pois registram a admissão de culpas com a mesma intensidade com que promovem
reflexões sobre a fragilidade das certezas humanas. Refletir sobre o caráter dialógico
desses discursos, a partir da análise do conto Afinal, Carlota Gentina não chegou de
voar?, é o objetivo central deste trabalho.
Em Afinal, Carlota Gentina não chegou de voar?, narrativa de Mia Couto
publicada em Vozes anoitecidas, seu primeiro livro de contos, deparamo-nos com a
emblemática figura de um narrador que, logo nas primeiras páginas de seu relato,
proclama-se “mulato”, não de raças, “mas de existências” (COUTO, 2013: 75) e ao
contar sua história revela-nos o caráter plural de sua identidade, forjada a partir do
diálogo entre visões de mundo distintas. Diálogo este, que transparece em meio à
ambígua confissão de um homem que embora admita ser o responsável pelas ações que
levaram sua esposa, Carlota Gentina, à morte, não se considera merecedor da
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1288
condenação que lhe é imposta, pois afirma ter agido de acordo com os preceitos de sua
tradição. Ao longo do relato conduzido pelo narrador-personagem, edifica-se um
discurso ambivalente, no qual se sobressai um intenso diálogo de consciências que a um
só tempo legitima a sua culpa e denuncia a injustiça de sua condenação.
Na narrativa, tem-se a história de um homem que ao saber que o cunhado
aparentemente descobriu que a esposa era uma “nóii” (feiticeira que, de acordo com as
crenças da tradição, sai à noite deixando em seu lugar um animal para o qual transfere
sua aparência1) começa a desconfiar que Carlota Gentina, sua esposa, também poderia
ser uma feiticeira. E, para livrar-se da desconfiança que o atormenta, decide submeter a
mulher a uma provação, causando-lhe uma dor física profunda durante a noite, para que,
caso ela tenha colocado um animal em seu lugar, este se revele quando torturado. Para
levar adiante o plano, o homem utiliza-se de água fervente: surpreende a esposa com um
banho de “fervuras”. O resultado de tamanha tortura é o falecimento de Carlota Gentina.
A esposa do narrador-personagem morre sem externar seu sofrimento: o silêncio é a
única resposta da mulher diante da dor que lhe é infligida; e esse ato de total submissão
aos desígnios do esposo tanto comprova para ele que Carlota não era uma feiticeira,
quanto se converte em uma lembrança dolorosa que persegue o narrador-personagem
durante todo o seu relato. A morte silenciosa de Carlota faz com que o narrador passe a
considerá-la um pássaro, que cala sem externar as razões que o levaram ao silêncio. A
mulher é metaforizada na narrativa: convertida em pássaro pelas dores que lhe são
causadas pela provação a que é submetida. Se o homem tira a vida de sua esposa ao
causar-lhe dores de proporções imensas, a imagem dela torna-se uma espécie de
constante na memória do narrador; seu falecimento transtorna o homem, roubando-lhe a
alegria e afastando-lhe de qualquer perspectiva de reconstrução de sua vida. Tem-se na
narrativa de Mia Couto, um narrador-personagem situado em uma espécie de situação-
limite: a solidão causada pela morte de Carlota faz com que o homem se entregue a
polícia e passe seis anos recluso, aguardando um julgamento. A sua história é por ele
contada em meio a uma espécie de carta que escreve para o advogado que assume a
incumbência de cuidar de seu caso e defendê-lo em juízo. Como fruto dessa singular
1 A esse respeito, a análise empreendida por Silvania Núbia Chagas (2011: 101-108) é elucidativa, por
demonstrar as relações entre os atos do narrador-personagem no conto de Mia Couto e as crenças
presentes no sul da África, estudadas por Henri Junod, em seu livro Usos e costumes dos bantu (2009).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1289
epístola, edifica-se um discurso ambíguo, um relato que é, de uma só vez, confissão da
culpa e testemunho da inocência do narrador-personagem.
A narrativa inicia-se com a seguinte observação:
Eu somos tristes. Não me engano, digo bem. Ou talvez: nós sou triste?
Porque dentro de mim, não sou sozinho. Sou muitos. E esses todos disputam
minha única vida. Vamos tendo nossas mortes. Mas parto foi só um. Aí, o
problema. Por isso, quando conto a minha história me misturo, mulato não
das raças, mas de existências (COUTO, 2013: 75).
As primeiras linhas do texto remetem justamente ao caráter plural da
identificação do narrador-personagem e demonstram a pertinência da constatação de
Stuart Hall, de que “dentro de nós há identidades contraditórias empurrando em
diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente
deslocadas” (HALL, 2006: 13). A figura de um “mulato de existências” coloca em
evidência não só o homem fruto do contato entre diferentes povos, mas o ser resultante
da convergência entre distintas visões de mundo que, direta ou indiretamente, exercem
influência na maneira como este se posiciona em relação aos acontecimentos com os
quais convive ao longo de sua existência. A incerteza que transparece na alternância
entre o uso das construções “Eu somos triste” e “Nós sou triste” (intercaladas pela
assertiva “Não me engano, digo bem”, que reforça os sentidos expressos pelas duas
frases), demonstra a dificuldade encontrada pelo homem ao tentar definir-se: o ser
percebe a pluralidade que traz em si, mas não sabe se ela provém de sua gênese (que
poderia estar representada nas orações supracitadas pelos pronomes pessoais eu e nós)
ou se ela é fruto dos elementos externos indispensáveis à construção de sua
subjetividade (que poderiam ser representados nas mesmas orações pelas formas verbais
somos e sou, que se associam com os pronomes pessoais). A falta de concordância entre
sujeito e verbo, presente nas duas orações analisadas, aponta para as contradições que
assinalam os processos de identificação, daí a pertinência da afirmação “Sou muitos”,
que as sucede na composição do parágrafo transcrito. A idiossincrasia dessas
combinações sugere a falta de coerência entre o “sujeito” e as “leis” do mundo em que
ele se insere (que parece ser uma das mais relevantes temáticas presentes na narrativa
em análise), lembrando-nos a premissa bakhtiniana de que “No homem sempre há algo,
algo que só ele mesmo pode descobrir no ato livre da autoconsciência e do discurso,
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1290
algo que não está sujeito a uma definição à revelia, exteriorizante” (BAKHTIN, 2013:
66). Ao longo da elaboração do discurso do narrador, impressões das quais ele próprio
não parece estar seguro são desnudadas. O processo de abstração que dá origem ao
relato traz à tona aspectos do humano que parecem estar se revelando aos olhos do
narrador no exato momento em que ele procura os termos adequados para contar sua
história, daí a profundidade do texto que resulta de suas reflexões sobre o passado. Na
passagem que transcrevemos acima, é extremamente significativa a seguinte
constatação feita pelo homem: “quando conto a minha história me misturo”. Aqui
vemos a insinuação de que é o próprio ato de narrar que proporciona o intenso diálogo
de consciências que permeia a elaboração do conto. O processo de abstração necessário
para a tessitura da narrativa deságua em uma profunda reflexão sobre o passado, sempre
marcada pelo diálogo com o outro, do qual resulta um constante entrelaçar de vozes que
se perfaz na narrativa. Ao escolher palavras para narrar a sua história, a “voz” que
conduz o relato dialoga com outras vozes e, como demonstraremos mais adiante,
mistura-se a elas sem necessariamente aceitar de forma passiva as supostas “verdades”
que se exprimem através das mesmas.
E em linhas posteriores do conto, o narrador assume a autoria do suposto crime
que leva Carlota Gentina à morte:
A minha mulher matei, dizem. Na vida real, matei uma que não existia. Era
um pássaro. Soltei-lhe quando vi que ela não tinha voz, morria sem queixar
(COUTO, 2013: 75).
O discurso de confissão é ambíguo, uma vez que ele admite ter matado a esposa,
mas com a ressalva de que a culpa pelo assassinato de Carlota Gentina lhe é atribuída
pela voz de outrem, haja vista o emprego da forma verbal dizem. Ao enfatizar que “na
vida real” matou uma mulher que não existia, o homem chama a atenção para o fato de
que existe uma disparidade entre os fatos tais e quais ocorreram e a maneira como eles
são vistos e julgados pelas pessoas e, com isso, coloca em evidência que qualquer tipo
de recordação ou recorrência ao passado é sempre influenciada por questões de ordem
subjetiva. Questões ideológicas exercem forte influência na maneira como as pessoas
veem e encaram os acontecimentos que se desenvolvem ao seu redor. Convergem para o
discurso narrativo pontos de vista divergentes sobre o acontecimento relatado e a
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1291
distância entre essas visões torna-se mais perceptível no momento em que ele esclarece
as razões que o levaram a escrever sua história em uma missiva destinada a seu
advogado de defesa:
O senhor, doutor das leis, me pediu de escrever a minha história. Aos poucos,
um pedaço cada dia. Isto que eu vou contar o senhor vai usar no tribunal para
me defender. Enquanto nem me conhece. O meu sofrimento lhe interessa,
doutor? Não me importa a mim, nem tão pouco. Estou aqui a falar, isto-isto,
mas já não quero nada, não quero sair nem ficar. Seis anos que estou aqui
preso chegaram para desaprender a minha vida. Agora, doutor, quero só ser
moribundo. Morrer é muito de mais, viver é pouco (COUTO, 2013: 75-76).
Nesse ponto de seu relato, o narrador afirma que está escrevendo porque “o
senhor, doutor das leis,” lhe solicitou que o fizesse. Também diz que após passar seis
anos confinado, já não sabe como viver, perdeu o gosto pela vida. Entretanto,
desenvolve uma narração que justifica os atos que originaram o suposto crime e essa
atitude vai de encontro a sua fala, pois embora se diga indiferente ao que possa lhe
acontecer, o homem busca na figura do outro a compreensão, e com ela a confirmação
de que não é o grande responsável pela morte da esposa.
Ainda no fragmento supracitado, observa-se que o advogado pediu para que o
narrador escrevesse sua história e, apesar de encontrarmos marcas textuais na narrativa
que a aproximam do gênero epistolar, vemos, no fragmento transcrito, a ressalva de que
o homem está “falando” ao desenvolver seu texto escrito, o indivíduo faz questão de
salientar que está fazendo uso da fala, da oralidade, como que para ressaltar sua
resistência em render-se à escritura e abrir mão do texto oral, tão importante para a
propagação de saberes. Temos aqui um índice que evidencia que oralidade e escritura
mesclam-se na composição da narrativa – esse, aliás, é um dos traços que singularizam
a escritura de Mia Couto: seus textos promovem uma aproximação entre voz e letra e
convertem em palavra escrita elementos geralmente comuns ao universo da oralidade.
Outro interessante elemento presente no discurso do narrador-personagem é a
inserção do questionamento: “O meu sofrimento lhe interessa, doutor?” (COUTO, 2013:
75). Não podemos perder de vista que estamos diante de um homem que cometeu um
assassinato motivado por inquietações relacionadas às crenças de sua tradição. Ao
declarar que, mesmo que lhe tenham solicitado um texto escrito, ele está “falando” ao
contar sua história, o narrador dá visibilidade às estreitas relações que mantém com o
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1292
universo dos textos orais e, tendo em vista todo esse contexto, a inserção da referida
pergunta, em meio às malhas discursivas da narrativa, demonstra que a preocupação do
“doutor” – e por que não dizer dos “doutores”? – (homem que por seu trabalho em geral
faz constante uso da escrita) com os homens que vivem em situação semelhante a do
narrador-personagem não é algo comum no contexto social recriado. Ao expor o crime
cometido, o narrador-personagem não deixa de também expor a indiferença com que
são julgados os crimes semelhantes ao seu. Indiferença comprovada, inclusive, pelo
longo período de tempo (seis anos) que ele passa enclausurado aguardando uma posição
definitiva da justiça em relação a seu caso.
Ainda mais interessante, no interior do texto, é a informação de que o narrador
se entregou às mãos que o condenam por vontade própria:
Afinal, estou aqui na prisão porque me destinei prisioneiro. Nada, não foi
ninguém que queixou. Farto de mim, me denunciei. Entreguei-me eu mesmo.
Devido, talvez, o cansaço do tempo que não vinha. Posso esperar, nunca
consigo nada. O futuro quando chega não me encontra. Onde estou, afinal
eu? O lugar da minha vida não é esse tempo (COUTO, 2013: 76)?
Atormentado pela ausência de sua esposa, o homem se autodenuncia. Sua
solidão, somada à angústia de sentir-se responsável pelas ações que levaram a esposa à
morte, parece obrigá-lo à autopunição. Consciente de que não contaria com a
compreensão no que se refere aos atos que praticou orientando-se pelos princípios de
sua tradição, é interessante a iniciativa do narrador-personagem em entregar-se às
autoridades, quando poderia negligenciar o crime cometido e, com isso, permanecer em
liberdade. As afirmações “Posso esperar, nunca consigo nada” e “O futuro quando
chega não me encontra” denunciam a situação marginal do narrador e nos remetem aos
muitos homens que não encontram lugar no futuro que lhes é projetado por aqueles que
assumem a missão de trabalhar em prol do progresso de um país. A falta de perspectivas
de futuro externada através dessas duas frases parece não ser desencadeada somente
pela prisão do homem.
De acordo com Mikhail Bakhtin, “O homem não tem um território interior
soberano, está todo e sempre na fronteira, olhando para dentro de si ele olha o outro nos
olhos ou com os olhos do outro” (BAKHTIN, 2013: 323) (Grifos do autor). Os
incessantes diálogos entre as duas instâncias mencionadas – “homem/eu” e “outro” –
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1293
são permeados por negociações de sentidos, que conferem às identidades culturais um
caráter acentuadamente plural. As visões de mundo do homem e do “outro” se
entrecruzam e, inevitavelmente, se influenciam, pois como muito bem salienta Stuart
Hall, “O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que
não são unificadas ao redor de um “eu” coerente” (HALL, 2006: 13). Esse intenso e
incessante entrecruzar de visões faz com que o narrador-personagem procure o “outro”
para entregar-se e responder pelos atos que ocasionaram a morte de sua esposa. Apesar
de ter a oportunidade de escapar impune da situação em que se encontra, o homem não
consegue fugir desse “outro” que inevitavelmente se faz presente em seu território
interior e, embora não concorde com os posicionamentos do “outro”, não deixa de se
submeter aos olhos dele quando reflete sobre seus atos e, consequentemente, sobre suas
possíveis culpas. O “outro” apresenta-se como fator decisivo na história do narrador-
personagem desde o início de seu relato, pois não podemos esquecer que as suspeitas de
que Carlota Gentina era uma feiticeira surgem após uma conversa em que o cunhado do
narrador – personificação do outro – relata-lhe uma experiência vivida com a esposa.
O narrador que se apresenta no texto de Mia Couto nos remete ao inacabado, ao
inconcluso, age e identifica-se mediado por uma visão de mundo constituída a partir das
lentes que lhe são cedidas pelo outro, que se apresenta como instância indispensável na
construção da imagem que ele tem de si mesmo. Como destacamos anteriormente, ele
mesmo decide entregar-se e confessar o crime. No entanto, sua decisão faz com que se
sinta injustiçado por não ser compreendido pelos que ponderam sobre sua culpa. Tal
atitude evidencia a constante oscilação do narrador-personagem entre valores culturais
de proveniências diversas.
Ao avaliar o peso de suas atitudes, o narrador revela seu desconcerto diante da
incompreensão dos que julgam os seus atos, como se pode perceber no trecho abaixo
transcrito:
O senhor me pediu para confessar verdades. Está certo, matei-lhe. Foi crime?
Talvez, se dizem. Mas eu adoeço nessa suspeita. Sou um vivo, não desses
que enterra as lembranças. Esses têm socorro do esquecimento. A morte não
afasta-me essa Carlota. Agora, já sei: os mortos nascem todos no mesmo dia.
Só os vivos têm datas separadas (COUTO, 2013: 81).
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1294
O homem confessa ter assassinado Carlota, mas deixa evidente em seu discurso
de confissão que não se considera um criminoso. Na sequência textual transcrita, o
questionamento “Foi crime?” é acompanhado da resposta evasiva “Talvez, se dizem”,
demonstrando que é a voz do outro que legitima a culpa do narrador e o força a
considerar a possibilidade de ter cometido atos dignos das punições que recebe.
Mikhail Bakhtin ressalta que “a verdade sobre o homem na boca dos outros, não
dirigida a ele por diálogo, ou seja uma verdade à revelia, transforma-se em mentira que
o humilha e mortifica caso esta lhe afete o “santuário”, isto é, o “homem no homem”
(BAKHTIN, 2013: 67) (Grifos do autor)”. De certo modo, percebe-se na narrativa de
Mia Couto a existência de uma verdade que se impõe ao narrador, mediada pela voz do
outro. É a autoanálise impregnada pelo olhar do outro que faz com que o homem admita
a possibilidade de ser um criminoso (a oscilação entre a verdade do narrador e a que se
impõe através do outro transparece, no trecho que citamos anteriormente, através do uso
do termo “talvez”, que revela a admissão da culpa sem promover a anulação da
inocência do homem). Os posicionamentos do narrador-personagem revelam o
complexo diálogo que se processa entre sua visão de mundo e a visão de outrem, nem
sempre amparado pela compreensão das diferenças existentes entre ambas.
Ao fazer um apanhado sobre a história de Moçambique, país de origem de Mia
Couto, Leila Hernandez destaca que
Em síntese, é possível considerar que Moçambique condensava a
heterogeneidade própria das Áfricas, no geral. Apresentava povos falando
línguas diferentes, com tradições religiosas e noções de propriedade distintas,
valores diversos e vários modos de hierarquização de suas sociedades,
articulando-se e rearticulando-se de acordo com seus próprios interesses,
resultando em organizações políticas várias que ora se uniam ora entravavam
em disputa [...] (HERNANDEZ, 2005: 592).
Tais constatações nos permitem ter uma ideia da diversidade de valores e visões
de mundo que disputam e dividem espaço no contexto social do qual emerge a escritura
de Mia Couto. Diversidade esta que não é encontrada somente no país de origem do
escritor (pois não podemos negligenciar o fato de que até mesmo as culturas que muitos
consideram atávicas são formadas por inúmeras contribuições, de proveniências várias),
mas nele ganha maior visibilidade devido ao doloroso processo de dominação colonial
ainda recente que pregava a superioridade de uma cultura em detrimento a outras.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1295
José Luís Cabaço, em análise ao contexto social moçambicano, destaca que,
durante os anos que acompanharam a dominação colonial portuguesa, “o encontro de
culturas e civilizações se pautava pelo desconhecimento recíproco, pela incompreensão
e, frequentemente, pela intolerância em relação a essas diferenças” (CABAÇO, 2009:
84). Se hoje podemos falar de algumas lutas que marcaram o processo de dominação
colonial usando verbos no pretérito, não se pode fazer o mesmo no que se refere à
incompreensão e a intolerância às diferenças, que têm suscitado copiosos debates ainda
em nossos dias. Ao compor um texto ficcional que mantém estreitos vínculos com a
realidade e com a história de seu país, Mia Couto suscita a reflexão sobre temáticas de
alcance universal, que ultrapassam barreiras geográficas e temporais e remonta a
questões que acompanham o homem desde os mais remotos tempos.
E na narrativa, o discurso de confissão do narrador tem seu ápice quando ele
assume ser culpado, não por um crime, mas por um engano. O homem recusa a defesa
do advogado e mostra-se disposto a assumir a condenação que lhe será imposta, pois
segundo ele o cunhado volta a lhe procurar para dizer que sua esposa, afinal, não era
uma feiticeira. Sendo assim, ele cometeu um grave erro ao submeter à mulher a
dolorosa provação:
De escrever me cansei das letras. Vou ultimar aqui. Já não preciso defesa,
doutor. Não quero. Afinal das contas, sou culpado. Quero ser punido, não
tenho outra vontade. Não por crime mas por meu engano. [...] Há seis anos
me entreguei, prendi-me sozinho. Agora, próprio eu me condeno (COUTO,
2013: 82).
Na passagem acima transcrita tem-se a rendição do narrador-personagem em
face às leis do outro. O homem aceita as possíveis punições que lhe serão impostas e, ao
curvar-se diante do julgamento do outro, ressalta a inadequação das divisões que são
feitas entre “brancos” e “pretos”:
Assim, mesmo brancos somos pretos. Digo-lhe, com respeito. Preto o senhor
também. Defeito da raça dos homens, esta nossa de todos. Nossa voz, cega e
rota, já não manda. Ordens só damos nos fracos: mulheres e crianças. Mesmo
esses começam a demorar nas obediências. O poder de um pequeno é fazer os
outros mais pequenos, pisar os outros como ele próprio é pisado pelos
maiores. Rastejar é o serviço das almas. Costumadas ao chão como que
podem acreditar no céu (COUTO, 2013: 82-83)?
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1296
Com essas afirmações de admiráveis profundidade e beleza, o homem chama a
atenção para as incoerências inerentes à ideia de segregação entre brancos e negros (não
podemos perder de vista que em Moçambique, principalmente durante o período
colonial, mas não só nessa época, o preconceito em relação aos homens negros
funcionou como barreira que limitava o seu acesso às áreas tidas como propriedades dos
brancos. Não se pode também esquecer que, por muito tempo, defendeu-se a
superioridade da cultura do colonizador em relação à cultura do povo colonizado). Suas
palavras sugerem, por um lado, a existência de algo muito maior e mais importante que
a cor dos homens (haja vista a referência a uma “raça” de todos), que os une, mesmo
que não se vejam os laços que promovem essa união; por outro ângulo, sugerem
também as intersecções entre as visões do mundo do negro e do branco que são
inevitáveis em um contexto social em que a convivência entre eles é constante. Ao
designar a voz dos homens como “cega e rota”, o narrador parece apontar para as muitas
falas impensadas, afirmações infundadas que tentam sustentar a ideia de que
determinados grupos humanos são superiores a outros: Pseudoverdades que de tão
reiteradas ao longo da história raramente são contestadas pelos homens. A autoridade de
uns sobre outros é questionada nessa parte da narrativa, e aqui se promove um encontro
entre o “eu” e o “outro”: essas duas entidades convergem na contradição absoluta dos
“acontecimentos” que fazem parte de suas vidas. O discurso do narrador-personagem é
o ponto em que dialogam consciências – é notório no fragmento transcrito que o
narrador se antecipa diante das possíveis réplicas de seu advogado, esclarecendo, por
exemplo, que o está chamando de “preto” com respeito. A rigidez das barreiras que
tentam separar os homens se desfaz diante da apreciação de sua essência. O céu é
apresentado como algo que não pode ser imaginado por aqueles que só conhecem a
opressão. E a essas afirmações segue-se a constatação: “Descompletos somos,
enterrados terminamos” (COUTO, 2013: 83), que demonstra que o homem tem
consciência de sua inconclusibilidade. Seu discurso ergue-se como testemunho de sua
sensação de incompletude e a transitoriedade que assinala os processos de identificação
é colocada em evidência no instante em que se ressalta a inevitável incompletude do
homem.
Note-se ainda, que no fragmento transcrito a cor da pele das personagens é
colocada em tela: o homem que está preso é negro, já seu advogado é um homem
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1297
branco, como se pode inferir a partir do pedido de desculpas que o narrador faz ao dizer
que todos os homens são “pretos”.
Condescendente em relação às punições que receberá, o narrador declara-se
arrependido, nas últimas linhas de seu relato:
Sou filho do meu mundo. Quero ser julgado por outras leis, devidas da minha
tradição. O meu erro não foi matar Carlota. Foi entregar a minha vida a este
seu mundo que não encosta com o meu. Lá, no meu lugar, me conhecem. Lá
podem decidir das minhas bondades. Aqui, ninguém. Como posso ser
defendido se não arranjo entendimento dos outros? Desculpa, senhor doutor:
justiça só pode ser feita onde eu pertenço. Só eles sabem que, afinal, eu não
conhecia que Carlota Gentina não tinha asas para voar (COUTO, 2013: 84).
Aqui, uma vez mais, se reforça a ideia de que o homem sente-se injustiçado
diante de sua condenação. Ele demonstra-se arrependido, não de ter banhado a esposa
com água fervente, mas de ter se refugiado em um mundo onde ninguém é capaz de
realmente o ouvir e compreender. As falas da personagem questionam a incompreensão
diante da diferença. Pertencendo a um grupo com determinadas crenças e tradições, o
narrador percebe que qualquer julgamento, que não tenha em vista os preceitos que
motivaram suas ações, será injusto por desconsiderar sua mundivivência e as
singularidades de sua cultura, tendendo sempre a avaliar somente a crueldade de seus
atos.
Bakhtin constata que
A palavra, a palavra viva, indissociável do convívio dialógico, por sua
própria natureza, quer ser ouvida e respondida. Por sua natureza dialógica ela
pressupõe também a última instância dialógica. Receber a palavra, ser
ouvido. É inadmissavel a solução à revelia. Minha palavra permanece no
diálogo contínuo, no qual ela será ouvida, respondida e reapreciada
(BAKHTIN, 2013: 337) (Grifos do autor).
Desmotivado a continuar lutando para provar que não teve a intenção de cometer
o crime do qual é acusado e cansado de tentar falar quando ninguém parece disposto a
lhe ouvir, o narrador, ao escrever seu relato, parece buscar, acima de tudo, a consolação
de uma escuta. O advogado de defesa, ao solicitar que o homem escreva sua história, lhe
dá a oportunidade de externar suas angústias e colocar em evidência a injustiça dos
juízos que são formados a partir de sua história. Ao elaborar sua confissão, o homem
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1298
considera não só a visão dos outros em relação a suas ações, mas coloca em questão a
validade dessas visões que negligenciam as peculiaridades de sua cultura. Embasada em
uma proposta de diálogo com o advogado, que aparentemente não pertence à mesma
comunidade que o homem, a carta parece ter sido escrita com o intuito de reunir
argumentos não para a absolvição do narrador, mas para a reconsideração dos
horizontes que limitam o olhar para a cultura do outro. As relações dialógicas presentes
na narrativa nos remetem ao caráter dialógico da vida. Fazendo-nos perceber o diálogo
ininterrupto que permeia a convivência entre os homens.
Referências
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PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad. Ari Roitman e Paulina Wacht. São Paulo: Coisac
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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1299
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela Mão de Alice. O social e o político na pós-
modernidade. São Paulo: Cortez, 1997.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1300
ENSINO DE LEITURA E PRODUÇÃO DE TEXTOS NAS
SÉRIES FINAIS: PROCESSOS DE RETEXTUALIZAÇÃO
COM O GÊNERO MEMÓRIAS [Voltar para Sumário]
José Aurélio da Câmara (UFRN)
Introdução
Apontando para a melhoria da qualidade de ensino, João Wanderley Geraldi
(1997), há várias décadas, orientava o estudo do texto em sala de aula como o meio
mais adequado e fácil para o ensino de Língua Portuguesa. Nessa perspectiva, diante do
fracasso escolar que se desenhara no Brasil, o Ministério da Educação – MEC elaborou
e adotou essa orientação proposta pelo autor, na década de 1990, nos Parâmetros
Curriculares Nacionais – PCN (BRASIL, 1998), que se configura como o documento
oficial do País que passou a orientar o trabalho pedagógico em sala de aula, tentando
quebrar os paradigmas que norteavam, até então, a prática escolar.
Sob esse novo olhar, os alunos seriam coautores do conhecimento, refletindo
sobre a língua, seja na modalidade escrita seja na oral, objetivando a aquisição de
diversas competências. Ademais, considerar-se-ia a diversidade de textos que poderiam
ser lidos, ouvidos e produzidos nas mais diversas situações de interação.
Essa grande contribuição que os pesquisadores e estudiosos da linguística deram
para o ensino da língua materna manifestou-se, principalmente, quando priorizaram os
gêneros textuais que circulam socialmente como o caminho mais adequado e eficiente
para que o aluno exerça, com pleno domínio de suas competências, o uso da língua.
Desse modo, a proficiência genérica na língua materna implica muito mais que o
simples domínio do código linguístico e suas regras normativas. Envolve a formação
plena de um ser que interage, relaciona-se com o outro, necessita ascender socialmente
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1301
e profissionalmente como cidadão politizado, conforme perfil idealizado nos PCN.
Fortalecemos esse discurso ao concordarmos que “A participação efetiva da pessoa na
sociedade acontece, também e muito especialmente, pela ‘voz’, pela ‘comunicação’,
pela ‘atuação’ e ‘interação verbal’, pela linguagem, enfim”. (ANTUNES, 2003, p. 15).
Tudo isso se ancora na grande contribuição do Círculo Bakhtiniano que foi
pioneiro nesses estudos, uma vez que embasou os PCN, cuja indicação orienta que o
professor precisa realizar ações didáticas que privilegiem a diversidade de gêneros
textuais para a prática de leitura e produção de textos orais e escritos numa perspectiva
de uso da linguagem como meio de interação social.
Essa contribuição revela a identidade de um gênero discursivo sobre três
aspectos, quais sejam: o conteúdo temático, o que é dito; a estrutura composicional; a
organização do que foi dito e do estilo, no que se refere aos meios linguísticos que
foram operados para a realização da comunicação. Nessa perspectiva, a grande
importância dos gêneros textuais é a de facilitar a comunicação verbal, em situação real
de comunicação, com sujeitos participantes do processo social no qual estão inseridos.
Isso se contrapõe ao equívoco de gramáticos tradicionalistas que estudam a língua como
algo imutável e estanque, sem levar em conta a vivência contextual, social, histórica e
política desses sujeitos.
Ao considerarmos a língua como uma prática social e cultural, cuja nascente
emerge na interação entre os sujeitos, buscamos nesta intervenção pedagógica
analisarmos os processos de retextualização (da fala para a escrita) sugeridos na
concepção teórica de Luiz Antônio Marcuschi (2010) a partir do gênero textual
memórias.
Na tentativa de contribuir com a melhoria do ensino de Língua Portuguesa no
ensino fundamental, elegemos como locus privilegiado uma turma do 9º ano do ensino
fundamental de uma escola estadual em Bento Fernandes, Município do Estado do Rio
Grande do Norte. Enquanto o corpus de análise será formado a partir de relatos orais
(memórias) dos idosos da comunidade local.
Nesse intento, buscamos compreender o que é memória, sua importância para o
registro da língua falada e da cultura locais, bem como realizar ações didáticas que
favoreçam a aprendizagem dos alunos nas atividades de retextualização – da fala para a
escrita. Sobretudo, levá-los a perceber as peculiaridades da fala e da escrita e como elas
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1302
se concretizam simultaneamente no uso da língua. “As diferenças entre fala e escrita se
dão dentro do contínuo tipológico das práticas sociais de produção textual e não na
relação dicotômica de dois polos opostos”. (MARCUSCHI, 2010, p. 37).
Evidentemente, a fala possui características próprias e, por muito tempo, foi
margeada pelos compêndios gramaticais escolares que sempre privilegiaram a escrita
como o parâmetro ideal para o ensino de línguas. Entre tais características da fala,
claramente, encontramos uma linguagem relativamente não planejável, interação em
tempo real; descontinuidades frequentes no fluxo discursivo; sintaxe característica,
embora amparada na sintaxe gramatical; hesitações; marcadores conversacionais;
palavras iniciadas e não concluídas; pontuação fornecida com base na intuição das falas;
repetições; reduplicações; redundâncias; uso constante de pronomes egóticos (eu, nós).
Vale ressaltar que, diante das nove operações textuais discursivas citadas na obra
de Marcuschi (2010), analisaremos aquelas mais recorrentes nos textos. Serão
dispensadas das análises as duas últimas operações por tratar-se de sequências textuais
argumentativas que pouco incidem no gênero textual memórias de sequência narrativa.
Tendo como panorama fazer uma reflexão do contínuo em interseção entre a
língua falada e a língua escrita, o presente trabalho constitui-se como uma proposta de
intervenção pedagógica, organizada a partir de sequências didáticas, que contemplaram
os processos de retextualização, no qual os alunos desenvolveram atividades de
produção textual, percebendo como se dá a passagem da oralidade para escrita.
Nesse sentido, é imprescindível que o aluno perceba e reflita que a fala e a
escrita são duas modalidades necessárias e complementares dentro de uma língua.
Comumente, ainda detectamos no contexto das salas de aula o desenvolvimento de
práticas pedagógicas pouco relevantes para o ensino da oralidade da Língua Portuguesa.
O educando, por conseguinte, pouco ou quase não estabelece relação da língua que ele,
de fato, faz uso em seu meio social com aquela vista na escola de forma, muitas vezes,
descontextualizada, distante e imposta.
Essa situação, geralmente dar-se amparada por gestores, pais e instituições
escolares, notadamente equivocados com as novas perspectivas metodológicas para o
ensino de língua. Os próprios alunos, por estarem numa situação passiva, não podem
contribuir para uma mudança significativa nessa ordem no intuito de trazer textos orais
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1303
e escritos como objetos de estudo para a sala de aula, para suas vivências, para
representar seu lugar no mundo social.
Por sua vez, muitos professores parecem acomodados, talvez pelo medo da
ruptura do tradicional com o novo que se descortina à sua frente. O fato é que,
independentemente desses medos, o educador tradicional não tem mais lugar no século
XXI, haja vista que as mudanças vieram e, com elas, a necessidade de um profissional
engajado, motivado, preparado e, muito mais que isso, fundamentado teoricamente em
concepções de linguagem e de ensino que o orientem a trabalhar o ensino de língua a
partir de textos orais e escritos.
Além disso, os docentes precisam perseguir o objetivo de desenvolver a
competência discursiva dos alunos, tendo em vista que precisam interagir nos múltiplos
contextos interacionais dos quais participam, constituindo-se, assim, conforme aponta
Mikhail Bakhtin (2010) como sujeitos no outro, com o outro e pelo outro.
Contextualizando a pesquisa
A abordagem de pesquisa adotada segue o padrão das investigações do tipo
qualitativo. Trata-se, nesse caso, de uma situação na qual analisaremos a produção
textual e as operações de retextualização da fala para a escrita produzida pelos alunos a
partir dos relatos orais dos idosos, que foram gravados e transcritos. Tudo isso,
respeitando o valor dos dizeres orais na escrita.
Para atender ao objetivo proposto, selecionamos o gênero memórias, pois
entendemos que é, por excelência, o mais adequado para esse intento. Além disso, esse
gênero foi indicado para as séries finais do ensino fundamental no manual da Olímpiada
de Língua Portuguesa – Escrevendo o futuro. Esse manual é um norteador dos trabalhos
de retextualização desenvolvido para se trabalhar produção textual nas escolas
participantes desse evento de cunho nacional que mobiliza a maioria das escolas
públicas brasileiras.
Esperamos que essa escrita se dê de forma interativa e significativa dentro de
uma prática social que tenha a oralidade, os relatos dos idosos, transformados em textos
escritos no formato do gênero memórias. Nesse evento de produção textual em que a
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1304
cena enunciativa será encontro de gerações, os alunos poderão relacionar o seu tempo e
o seu ambiente com o das pessoas mais velhas, em um constante ir e vir.
A evidência de que as línguas só existem para promover a interação entre as
pessoas nos leva a admitir que somente uma concepção interacionista da
linguagem, eminentemente funcional e contextualizada, pode, de forma
ampla e legítima, fundamentar um ensino de língua que seja, individual e
socialmente, produtivo e relevante. (ANTUNES, 2003, p. 41).
Nesse contexto de uso real da língua materna, pretendemos que os alunos
percebam, enquanto sujeitos sócio-históricos numa situação de comunicação e interação
social, que a modalidade escrita não prevalece sobre a oralidade e vice-versa.
Desse modo, não há sentido em privilegiar uma posição extrema em considerar
a fala como concreta, contextual, de estrutura simples, lugar do caos e do erro; por seu
turno, a escrita como abstrata, elaborada, complexa, formal, uso da boa forma e do bom
uso da língua, quando, de fato, são duas ordens que se complementam em uma gradação
contínua de usos formais e informais atendendo os propósitos comunicativos dos
interlocutores.
Admitimos que as duas modalidades (fala e escrita) estão a serviço dos usuários
da língua no mesmo patamar valorativo quanto aos usos e funções. Porém, “Há práticas
sociais mediadas preferencialmente pela escrita e outras pela tradição oral”.
(MARCUSCHI, 2010, p. 36-37).
Equivocadamente, a escola ainda persiste em conceber o ensino de Língua
Portuguesa numa visão dicotômica entre a fala e a escrita. Isto se acoberta em raízes de
interesses políticas e ideológicas de grupos que detêm e se perpetuam no poder. Fato,
que só contribui para aumentar alguns mitos, tais como, o ensino de Língua Portuguesa
deve ser centralizado apenas na escrita engessado do código formal da língua; E, o de
que a oralidade não deve ser ensinada na escola, uma vez que a fala já nasce com o
indivíduo.
Nesse cenário, estudos linguísticos, claramente, derrubaram esses mitos, pois
comprovaram que há, por um lado, gêneros textuais na modalidade escrita muito
próximos da oralidade como, por exemplo, o bilhete, que é totalmente composto por
uma estrutura simples, contextual e informal. Por outro lado, sabemos que há gêneros
textuais da oralidade, tal como um discurso oficial de posse de um executivo, por
exemplo, que é altamente elaborado em uma estrutura complexa e formal. Nessa
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1305
perspectiva, chega-se ao postulado de que o uso da língua é heterogêneo e variável,
distanciando-se da visão de sistema único e abstrato, reforçando, assim, que o uso entre
a modalidade oral e a modalidade escrita, mesmo apontando diferenças, dá-se de forma
gradual e escalar.
Entretanto, esse fato é pouco difundido nos nossos manuais didáticos que
recebem grande influência de gramáticos conservadores em sua elaboração. Na maioria
das vezes, esses manuais aparecem como o único instrumento do professor para o
ensino de Língua Portuguesa nas escolas públicas brasileiras. Eles abordam as relações
entre textos orais e escritos, baseados, estritamente, na língua escrita fundada na norma
padrão. “O que conhecemos não são nem as características da fala como tal nem as
características da escrita; o que conhecemos são as características de um sistema
normativo da língua”. (MARCUSCHI, 2010, p. 34-35). Isso parece levar os professores,
sem uma fundamentação teórica linguística, a acreditar e a perpetuar em suas aulas a
polarização entre textos orais e escritos.
Considerando-se a ocorrência dos textos orais e escritos em práticas sociais
simultâneas de comunicação, não há como caracterizá-los como duas propriedades de
sociedades variadas. Nesse sentido, há uma postura ideológica fomentada, sobretudo no
espaço escolar, de elevar como prestígio social o domínio de textos na modalidade
escrita em detrimento de textos da oralidade.
A retextualização não é um processo mecânico, já que a passagem da fala
para a escrita não se dá naturalmente no plano dos processos de textualização.
Trata-se de um processo que envolve operações complexas que interferem
tanto no código como no sentido e evidenciam uma série de aspectos nem
sempre bem compreendidos da relação oralidade-escrita. (MARCUSCHI,
2010, p.46)
Desse modo, uma boa compreensão do entrevistador daquilo que foi dito pelo
entrevistado é um pressuposto básico para obter êxito no processo de retextualização.
Compreensão que envolve não somente os aspectos linguísticos, mas a situação
contextual de interação a partir dos interlocutores, do propósito comunicativo e do
contexto de produção.
No que diz respeito aos sujeitos da pesquisa, são alunos matriculados em uma
turma do turno vespertino, composta de 24 alunos, divididos em 12 do sexo masculino e
12 do sexo feminino, numa faixa etária que varia dos 13 aos 17 anos. São alfabetizados,
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1306
contudo apresentam um baixo nível de letramentos quando se trata de domínio dos
gêneros discursivos mais complexos.
Constituem-se, ainda, como sujeitos da pesquisa um grupo de aproximadamente
30 idosos que se reúnem semanalmente em sede própria, moradores de uma mesma
comunidade no interior do Rio Grande do Norte. O ponto de partida dos relatos baseia-
se na seguinte temática “Memórias da minha infância e da minha mocidade”.
Assim sendo, o uso dessa temática não contemplou apenas uma produção
textual, mas, ao contrário, criou uma situação sociocomunicativa em que não ocorreu
uma simples apropriação de um gênero textual, mas o resgate de uma identidade
cultural de uma comunidade, aproximando passado e presente, unindo, portanto, as duas
pontas da vida: aqueles que contam e aqueles que ouvem.
Para isso, os alunos tiveram encontros com o grupo de idosos da cidade de Bento
Fernandes, Município da região do Mato Grande, distante 90 quilômetros de Natal.
Nesse encontro, os relatos orais foram coletados na forma de entrevistas gravadas em
celulares. Entrevistas que foram instigadas por objetos e fotografias, previamente
solicitados, que remetiam ao passado e às memórias dos idosos.
No transcorrer das análises, os alunos participantes serão referidos como AP1
(aluno participante 1), AP2 (aluno participante 2), e assim por diante, conforme o total
de alunos sujeitos inseridos na pesquisa. Para tanto, foram realizadas entrevistas, sem
grande rigidez no tocante ao tema e ao número de perguntas, partindo sempre da
espontaneidade oral dos entrevistados. Assim, os alunos se sentiram livres para criar
suas próprias perguntas a partir das curiosidades que surgiram no curso da escuta dos
relatos.
Tais relatos constituíram uma atmosfera de lembranças e sentimentos que
envolviam, a cada instante, entrevistador e entrevistado, criando um momento de
interação e de encontro único de gerações. Isso emergiu por meio de elementos
recheados de histórias que evocavam as memórias dos entrevistados, como velhas e
desbotadas fotografias, objetos pessoais, cujos cheiros e texturas faziam surgir
momentos de grande emoção.
Dessa forma, os entrevistados relembravam diversos acontecimentos que teriam
marcado a sua infância ou a sua mocidade, como uma festa, uma travessura, um passeio,
uma viagem, uma grande enchente ou uma seca, por exemplo. Nessa direção, os alunos
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1307
norteavam o andamento dos relatos, questionando os entrevistados quanto aos modos de
viver do passado (namorar, casar, frequentar a escola, relação com os pais, brincadeiras,
trabalhos e crenças).
Posteriormente, os relatos orais gravados foram transcritos na íntegra pelos
alunos, de forma que observassem as características próprias da fala em relação à
escrita. Na sequência, executaram a retextualização da modalidade oral para a
modalidade escrita seguindo as operações discursivas.
Durante a execução dos processos de retextualização os alunos produziram seus
textos como se fossem os próprios entrevistados.
Procedimentos de análise
Elencamos, a seguir, as operações textuais discursivas propostas por Marcuschi
(2010). Aliado a isso, analisaremos as produções mais recorrentes de retextualização
dos alunos escolhidas para o fim a que se propõe este trabalho. As transcrições serão
representadas por (T); Em seguida, o mesmo trecho retextualizado pelo aluno será
representado por (R), a saber:
a. A primeira operação – Eliminação de marcas estritamente interacionais, hesitações e
partes de palavras (estratégias de eliminação baseadas na idealização linguística).
Nessa estratégia, buscamos eliminar os elementos linguísticos tipicamente de marcas da
oralidade ausentes em textos escritos.
“Ave Maria naquele tempo minha filha nós tínhamos dificuldades para arranjar o que
comer, mas mesmo assim era até divertido...” (T, AP13);
“Naquele tempo, tínhamos dificuldades para arranjar o que comer, mas, mesmo assim,
era até divertido...” (R, AP13).
b. A segunda operação – Introdução da pontuação com base na intuição fornecida pela
entoação das falas (estratégias de inserção em que a primeira tentativa segue a
sugestão da prosódia). Nessa operação, fez-se necessário analisar o uso da pontuação
para um claro entendimento do texto escrito. Assim sendo, na pontuação nas produções
textuais dos alunos, levamos em conta a entoação da fala, uma vez que o objeto de
aplicação do processo de retextualização são relatos orais.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1308
“Eu me chamo Sandoval tenho 81 anos nasci em Assu me criei em Assu mas conheci 49
cidades do Brasil já me casei duas vezes.” (T, AP21);
“Sou Sandoval, tenho 81 anos. Nasci e me criei em Assu-RN, mas conheço 49 cidades
do Brasil. Casei-me duas vezes.” (R, AP21).
c. A terceira operação – Refere-se à retirada de repetições, reduplicações, redundâncias,
paráfrases e pronomes egóticos (estratégia de eliminação para uma condensação
linguística). Levando em consideração que a oralidade caracteriza-se por uma sucessiva
repetição. Isso ocorre tanto no campo lexical quanto no sintagmático, concorrendo para
um exagero de construções paralelas.
“Eu lembro muito na época que eu com 6 a 7 anos íamos pegar leite lá no Riacho
Fechado I, eu e a minha irmã aí sempre sempre eu fazia umas travessuras era quebrar
litros e chegava em casa colocava culpa na irmã sem ela ter culpa de nada...” (T, AP20);
“Na época, lembro muito que entre 6 e 7 anos íamos pegar leite no Riacho Fechado I. Ia
junto com a minha irmã. Sempre fiz travessuras como quebrar litros e colocava a culpa
nela.” (R, AP20).
d. A quarta operação – Introdução da paragrafação e pontuação detalhada sem
modificação da ordem dos tópicos discursivos (estratégia de inserção). Nessa operação,
buscamos depurar dois constituintes desse processo, a pontuação e o parágrafo, cuja
natureza remete à idealização linguística.
“Sou um rapaz que trabalhou pelo mundo sem irmão, com isso, eu aprendi a passar, a
lavar e a cozinhar. Na viagem do tempo da foto, trabalhei na agricultura colhendo café,
limpando café, plantando lavoura. Fui lá para o sul, trabalhei quatro anos só na
agricultura. Quando fui para Paranaguá não tinha trabalho de agricultura, trabalhei em
um armazém de exportação de café para o exterior.” (T, AP11);
“Sou um rapaz que trabalhou pelo mundo sem irmão. Com isso, aprendi a passar, a
lavar e a cozinhar. Esta foto foi numa época em que viajei para trabalhar na agricultura
colhendo e limpando café, além de plantar lavouras.
Fui para o sul, trabalhei quatro anos somente na agricultura. Depois fui para Paranaguá,
mas lá não havia trabalho nisso. Passei a trabalhar em um armazém de exportação de
café para o exterior.” (R, AP11);
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1309
e. A quinta operação – Introdução de marcas metalinguísticas para referenciação de
ações e verbalização de contextos expressos por dêitico (estratégia de reformulação
objetivando explicitude). Para essa operação, elegemos uma das características
principais da oralidade que é utilizar-se sistematicamente do contexto físico,
notadamente para uma operação espacial. Nesse aspecto, buscamos eliminar esse
contexto físico em detrimento de informação que possa recuperar aquilo que foi
verbalizado.
“Eu nasci em São Paulo do Potengi que era papai morava antes de vim para cá, as casas
eram bem simplesinhas e eram bem poucas. A minha era simples também, mas não
importava muito não e quando era menina, eu gostava de brincar de boneca, aquelas de
pano mesmo, até hoje (risos) eu não brinco não, mas gosto de guardar.” (T, AP14);
“Nasci em São Paulo do Potengi, uma cidade onde papai morava antes de vir para Bento
Fernandes. Aqui, as casas eram poucas e simples, a minha também era modesta, mas eu
não me importava.
Quando menina gostava de brincar com bonecas de pano. Hoje já não brinco com elas,
mas gosto de guardá-las.” (R, AP14).
f. A sexta operação – Reconstrução de estruturas truncadas, reordenação sintática,
encadeamentos (estratégia de reconstrução em função da norma escrita). Essa etapa
constitui-se como uma das mais importantes do ponto de vista da normatização da
escrita e irá envolver diversos aspectos linguísticos textuais, como, por exemplo,
acréscimos informacionais, substituições lexicais, entre outras.
“Os namorados, o pai era no meio da gente na sala, hoje em dia os namoros é libertos,
no meu tempo não era assim não.” (T, AP8);
“No meu tempo, os namoros não eram assim liberados. O pai ficava na sala entre nós.”
(R, AP8).
g. A sétima operação – Tratamento estilístico com seleção de novas estruturas sintáticas
e novas opções léxicas (estratégia de substituição visando a uma maior formalidade).
Essa operação revela aspecto de fundamental importância na retextualização,
compreendendo o fenômeno cognitivo da interpretação referente à compreensão textual.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1310
É fato que esse é um aspecto delicado, uma vez que para transformar é necessário
compreender o texto a fim de evitar uma retextualização falseada.
“O modo de antigamente num era que nem o de hoje, vocês vê né? A criação da gente
era diferente da de vocês, vocês hoje, vocês são vaidosos, a gente não tinha vaidade, nós
não tinha infância. A infância da gente era só trabalhar e a gente estudava muito pouco,
terminei de estudar no quinto ano.” (T, AP9);
“Antigamente, o modo de viver não era como hoje. Fomos criados diferentes de vocês.
Não tínhamos vaidades nem infância. Nessa fase, era só trabalho e pouco estudo, tanto
que parei de estudar no quinto ano.” (R, AP9).
Dessa forma, as sete operações foram trabalhadas, a partir de uma sequência
didática, enfocando os processos de retextualização do gênero textual memória
produzidos pelos alunos.
Considerações finais
Para que as retextualizações produzidas pelos alunos fluíssem de maneira
proveitosa, foi necessário dispor de gravações e transcrições. Além do mais, a
compreensão da fala do entrevistado (idosos) pelo entrevistador (os alunos) foi um
importante fator para a realização de uma retextualização fidedigna.
Vale ressaltar que este trabalho, fundado na teoria proposta por Marcuschi
(2010), caracteriza-se como um norte para os professores observarem e viabilizarem que
o ensino da língua portuguesa pode e deve contemplar a oralidade e a escrita dentro de
um processo sociointerativo que transpassa o próprio código da língua. “O uso de
determinada língua constitui mais que um fato isolado. É um ato humano, social,
político, histórico, ideológico, que tem consequências, que tem repercussões na vida de
todas as pessoas”. (ANTUNES, 2007, p. 20-21). Isto enfraquece alguns equívocos que
ainda perpetuam-se nas aulas de Língua Portuguesa das escolas brasileiras: Como o de
apresentar a variedade padrão como único meio para o ensino de língua e o de conceber
a escrita como uma representação da fala.
Os alunos envolvidos na pesquisa fizeram uso e comprovaram que as
modalidades orais e escritas de uma língua apresentam peculiaridades distintas quanto à
ocorrência composicional e organização. Perceberam, também, que as duas modalidades
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1311
são úteis à interação verbal que se dá mediante os diversos gêneros textuais circulantes e
necessários à comunicação no meio social. Além disso, destaca-se que tais modalidades
são flexíveis no tocante ao propósito comunicativo e contextual a que se propõe o
falante. Ambas apresentam sua importância sociointeracional comunicativa e se
complementam em um mesmo grau valorativo para um eficiente e adequado uso da
linguagem.
Referências
ANTUNES, Irandé. Aula de Português: encontro e interação. 6. ed. São Paulo:
Parábola, 2003.
________. Muito além da gramática: por um ensino de línguas sem pedras no caminho.
São Paulo: Parábola, 2007.
BAKHTIN, Michail. (1979). Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes,
1992.
BRASIL. Secretaria da Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais:
terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental – língua portuguesa. Secretaria de
Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998.
GERALDI, João Wanderley. O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 1997.
MARCUSCHI, Luiz Antonio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. 10.
ed. - São Paulo: Cortez, 2010.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1312
VIOLÊNCIA, REPRESSÃO E FORMA EM AVALOVARA [Voltar para Sumário]
José Helber Tavares de Araújo (UFPB)
Sobre a situação do romance brasileiro durante os anos de ditadura militar,
podemos afirmar que havia duas posturas que caracterizavam as narrativas mais
relevantes do período: uma, a ficcionalização do engajamento no contexto do regime,
muitas vezes buscando a explicitação da intensa violência institucional realizada nos
atos de repressão dos indivíduos; outra, a representação da falta de referencialidade do
sujeito, que incide no insulamento da subjetividade dos personagens e, em consequência
disso, na fragmentação formal da linguagem. Digamos que as obras que conseguiram
gerar uma tensão na relação entre estas duas vertentes obtiveram um maior destaque no
cenário desolador da cultura nos anos 60-70, pois conseguiram enriquecer tanto o
diagnóstico histórico extraído da realidade, sem a vertente panfletária, quanto evidenciar
a riqueza da autonomia estética das formas narrativas, sem perder de vista a exploração
da condição psicossocial dos personagens.
Somos levados assim a nos perguntar, a partir de nossas observações sobre o
tratamento periférico do problema da ditadura nos romances de Osman Lins, o que a
obra Avalovara pode dizer a respeito da violência ligada ao contexto da época? Sem
entrar diretamente nas questões que envolvem as ricas pesquisas desenvolvidas sobre as
intertextualidades da obra e as orientações deixadas em marginálias e depoimentos do
autor sobre as quais a crítica se debruçou nos últimos tempos, somente encontraremos
nossa resposta na interpretação intrínseca da obra. A violência em Avalovara surge sob
duas vertentes em disputa que configuram esteticamente a narrativa e diz respeito à
conjuntura da literatura no período ditatorial: uma advém de uma violência totalitária,
de conduta impositiva e intimidadora, muitas vezes explicitamente física, e que
podemos observar na situação vivenciada na ação brutal dos soldados contra o
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1313
protagonista Abel nos últimos capítulos de“Cecilia entre os leões” ou na postura fria e
racionalista do militar Olavo Hayano, Iólipo repressor de , personagem inominável.
Por outro lado, há em Avalovarauma violência negativa, ou seja, que não é
explicitamente visível e que só pode ser percebida quando atentamos para a
compreensão de que o sofrimento subjetivo está em diálogo constante com os conteúdos
normativos da exterioridade. Os anseios de liberdade, expressos na consciênciaem fluxo
dos protagonistas, ou a reprodução fragmentária da narração como expressão do
desnorteamento das subjetividades, são maneiras de uma exposição negativa da
violência.A limitação da liberdade acaba sendo incorporada como conteúdo da obra, ora
através da mimetização das ações violentas ao objeto do qual o sistema, e sua violência
explícita, buscam eliminar, ora através de um experimentalismo formal que expresse de
modo clivado as angústias do não-dizer. Deste modo, Avalovara é um romance que
apresenta, tanto no plano temático quanto no formal, um jogo de conflito entre a
exposição da tentativa positiva de cristalização das formas de vida e, em sua
contraposição, a luta pelo reconhecimento e autenticidade da vida dos seus personagens,
ainda que expressa na condição de sofrimento ou no esforço de garantir uma alteridade.
Poucas vezes esta violência intrínseca ao texto de Avalovara foi abordada com
profundidade pela crítica. Nitrini chega a esboçar uma reflexão em torno de questões
importante sobre o tema, mas apenas deixa breves apontamentos:
O romance é permeado de violência, nas diferentes linhas temáticas,
correspondente às várias histórias de Avalovara, desde as que remetem à
metalinguagem até as que colocam em cane Abel imerso no mundo, às voltas
com sua família, com suas mulheres e com os personagens próximas a elas.
O ápice da violência ocorre quando o marido da não nomeada a flagra com
Abel, na alegórica cena de união sexual sobre o tapete com motivos
paradisíacos no apartamento de São Paulo, e os assassina. A violência se
presentifica nas estruturas sociais e políticas que regem a vida das
personagens, indicando pela inclusão de trechos de jornal relativos a
acontecimentos no Brasil, sob a ditadura militar. Esta manifestação
intertextual hibrida, com a convivência dos discursos literário e referencial,
revela o claro comprometimento de Osman Lins com o seu tempo.
(NITRINI, 2010, p. 145-146)
Não parece ser difícil estabelecer paralelos entre as nuanças da estrutura
ideológica do regime totalitário que domina o universo kafkiano, como epopeia
negativa, com a atmosfera de forças de dominação e violência inerentes aos atos de
Olavo Hayano. Também os descompassos do sofrimento e indeterminação do sujeito
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1314
como soluções estéticas do ‘modelo’ beckttiano encontram, principalmente nas
personagens femininas de Avalovara e nos caminhos incertos da introspecção de Abel, a
experiência da voz negativa, que não se quer se extinguir no processo de identidade da
razão administrada.
O nosso primeiro ponto de nossa análise dos processos de violência na obra
Avalovara diz respeito ao espancamento sofrido por Abel, na linha T, “Cecília entre os
Leões”. Já sabemos que os significados do contexto histórico ditatorial na obra de
Osman Lins tem recebido tratamento secundário dentro da obra, muito pela posição,
como crítico literário que foi, do próprio autor em buscar oferecer coordenadas de
leitura do seu próprio romance, muito pela sutileza com que aparece o tratamento deste
tema na complexidade da obra, que tem como pilares mais evidentes de sua
estruturação, por exemplo, os dialogos com o medievalismo ou com o misticismo
oriental. Entretanto, lembremos, por outor lado, que nossa estrátegia teórica, desde o
início, consiste em discutir justamente aquilo que está presente no texto literário sob
uma condição de exclusão, de negacionismo do negativo. Sendo assim, é muito
improvável que a cena de violência física que envolve Abel e Cecília, cuidadosamente
datada em 1962, bem antes do golpe de 1964, não esteja vinculada aos fundamentos da
repressão e autoritarismo militar. Vale a pena citar a passagem inteira:
Cecília, desguarnecida, enrijece o corpo e não parece medir a diferença de
forças, agora inconteste: quatro vultos nos espreitam, o espessor da ameaça
enegrecendo-os. Volteia o busto, calada, cisca a areia com os dedos. Acha o
que procura? Uma pedra? A mão fechada. Três dos estranhos mantêm-se um
pouco afastados, todos de cabeça descoberta; o outro, de capacete, segura um
bastão. Polícia? Este se dirige para o lugar onde estamos. Pode fazê-lo sem
pressa: seus três comparsas barram nossa fuga eventual. O de capacete: "Que
estão fazendo aí?". Um dos três solta uma risada fina e sôfrega. Sem dar
resposta, levanto-me; ajudo Cecília a levantar-se. O carneiro desapareceu.
"São surdos? São surdos?" Cecília pôs a bolsa a tiracolo e tem nas mãos os
sapatos. Os três paisanos fecham mais o quadrado, enquanto o outro nos
ordena mostrar os documentos. Documentos? Intimação expressa numa
língua morta ou ainda larvar. A presença dos intrusos, esta me parece clara.
Assume um drástico sentido de expulsão, nada casual. Seguro a mão de
Cecília e tomo a decisão de afastar-me como se os quatro indivíduos não
existissem. Mas o de capacete atravessa a ponta da botina entre os tornozelos
e empurra-me. Caio com a boca na areia e antes que inicie um gesto fazem-
me rolar com pontapés à altura dos rins. Passa entre as estrelas, curva, a
cauda do farol. Meu espancador, capacete na mão, atinge-me com os pés a
cada tentativa de erguer-me e Cecília defende-se dos outros. Espanta-me a
rapidez com que esquiva os golpes dos agressores e a obstinação com que se
conserva em silêncio, não emitindo um só grito de socorro. Consigo, no chão,
agarrar a perna do soldado e fazê-lo cair. Precipito-me, de braços abertos,
entre os que maltratam Cecília. Um deles segura-me e prende-me o fôlego.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1315
Mão dura, larga. Mordo-a, ouço um urro abafado. Curto golpe à altura da
nuca me derruba. Tento levantar-me. Tudo que consigo é rolar sobre um
ombro e entrever o corpo de Cecília, perdido o equilíbrio, ceder com lentidão
e baquear, lento, mais uma vez estapeado. Ouço um lamento, um grito, um
chamado, lançado cada um poruma voz diferente — e as estrelas ampliam-se,
lagos ofuscantes. Os passos dos ofensores afastam-se depressa. O tropel. A
praia estremecendo sob a carga desses passos na areia, como se percorrida
por um bando de rinocerontes. Cerro as mãos, tentando manter-me, por este
meio, na superfície da minha consciência. Houvesse, em minhas palmas, um
fio, uma corda capaz de arrebatar-me a esta cova profunda sobre a qual
flutuo! Os lagos das estrelas crescem e diminuem. Sobrevém um
esmorecimento, uma paz dissimulada, a doçura de morrer ou de cortar as
ligações. Um mel. Um nada. Abel! Meu nome bate à porta das trevas
(quantas vezes?) e impede que me renda. Aos poucos, movo-me. Cecília está
sentada, com as mãos sobre o sexo e as pernas estendidas, unidas, na exata
posição em que as mendigas, sem força para andar, pedem esmolas nas
calçadas. As feridas sangram e ela treme. De dor? Seus dentes batem sobre o
meu nome. Talvez de frio, o corpo desabrigado, exposto à brisa praiana.
Para uma melhor compreensão da violência exposta neste trecho, vale a pena
resgatemos o fato de que o casal é perseguido pelos irmãos de Cecília, obrigando-os a
encontros itinerantes secretos. Embora não pareça de forma categórica, tudo indica que
o fato de Abel ser um homem casado incomoda profundamente os irmãos de Cecília, de
modo que estes não conseguem visualizar nada mais do que uma ação que se ampare
em uma moralidade reguladora do outro, em uma violência normativa. Por outro lado,
os encontros secretos que Cecília e Abel vão vivenciar, devido à pressão coibitiva,
evidenciam que, na iminência do perigo, é necessário um estado de alerta constante caso
queiram agir em defesa de suas autonomias contra o interdito instaurado pelos irmãos.
Estes capazes de qualquer coisa no âmbito da agressão ao outro. Assim, na perspectiva
dos irmãos, o confronto somente teria solução se Cecília obedecesse a ordem arbitrária
instaurada pela norma da moral de um outro. Valores moralistas, regra normativa e
violência autoritária se tornam sinônimos e é deste emaranhado que fogem Cecília e
Abel.
É justamente nesta premissa sobre violência que Emílio Dellasoppa (1991) irá se
apoiar para diagnosticar o que ele chama de “autoritarismo socialmente implantado”,
encontrado tanto no nível institucional como também presente no nível individual no
regime militar brasileiro: “a convicção de que somente o restabelecimento da relação
ordem-obediência poderia resolver os problemas da sociedade levou a uma identificação
cada vez maior de autoridade com violência, baseada, talvez, como Arendt assinala, na
percepção de que, como violência faz as pessoas obedecerem, então violência é
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1316
autoridade” (DELLASOPPA, 1991, p. 82). Os irmãos de Cecília têm como fundamento
autoritário uma prática social coerciva que visa a determinação involuntária do outro e
que nos leva a refletir que o ato contra Abel ocorreria no âmbito das sociabilidades se
não fosse um detalhe pequeno que ajuda a situar a narrativa no contexto da época: um
dos irmãos é policial. Assim, o problema que se daria no plano pessoal é transferido
também para o plano das estruturas repressivas do Estado. Colocado dessa forma, e
voltando ao excerto do romance, temos uma situação real de violência totalitária,
manifestada física e simbolicamente, e de violência negativa, a psíquica, que só
podemos perceber no procedimento de exposição da subjetividade do personagem.
Tanto assim que esta última surge antes de nada acontecer, surge do temor, e advém do
medo imprimido e desenvolvido ao longo dos encontros secretos, como que um
acúmulo angustiante de expectativas para uma situação inusitada em suspensão, um
porvir. O casal sente a impotência diante do que ocorre, são “incapaz de amedrontar”,
sentem o “desamparo”, sem “instrumentos precisos de defesa”, com “Ideia de nudez e
dependência”. O estado é de emergência e a ameaça certamente virá. Só que ela não
aparece em forma apenas de sujeito, a ameaça autoritária vem vestida de Estado
totalitário, de polícia autoritária, de violação dos direitos de liberdade. Frases como “o
que vocês estão fazendo aí?”, “São surdos? São surdos?” ou a exigência de documentos
aparecem como expressão cínica de utilização do sistema operante repressivo do Estado
em favor de uma ordem arbitrária. Neste sentido, podemos defender que existe, em
Avalovara, uma crítica cifrada contra a violência política da época da ditadura, e que
pode ser encontrada no desenvolvimento da ação dos personagens, ou seja, na práxis do
campo diegético, e não de forma alegórica como poderia alguém sugerir. Esta passagem
do romance da qual destacamos tem desdobramentos importantes na narrativa, haja
visto que o ataque é o clímax da tensão entre o casal e o espectro ameaçador dos irmãos.
É na sequência dos fatos que Abel descobre a androgenia de Cecília; que sua mãe, a
Gorda, permite que os encontros sejam no chalé; e que logo após a agressão é que Abel
e Cecília irão se unir carnalmente como uma forma de restauração da união cindida.
Admira-nos muito a crítica não reconhecer tal diálogo histórico no romance como um
de seus fundamentos, pois é evidente que o jogo de conflitos entre formas de vida fixas
e formas indeterminadas de liberdade surge como uma das principais pulsões que rege o
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1317
romance e, ao mesmo tempo, no mínimo, expressa uma situação sócio-política do país:
o estado de exceção.
Recuperando então o trabalho Estado de Exceção (2004), de Giorgio Agamben,
principalmente no ponto onde o filósofo italiano trata da perspectiva benjaminiana de
violência, é importante destacar o questionamento de como um regime de repressão
sistemática é estimulado em sua forma pura a tal ponto que ele irá abdicar de qualquer
outra finalidade a não ser exceder a própria noção de domínio pela força. Em uma
sociedade com forte tendência autoritária como a que a brasileira viveu entre 1930 a
1985, o que se apresenta como implementação de uma força normativa se transforma
numa situação de exceção em que a agressividade da polícia militarizada, por exemplo,
podem agir, no plano cotidiano, com atos excessivos. O estado de exceção, que não é
uma regra no direito positivo, acaba assumindo uma forma de identidade total com a
regra autoritária e, com isso, vivencia-se assim uma zona de anomia em que a ordem da
tradição autoritária, a pulsão de violência legitimada da polícia sem qualquer relação
com o direito, garantem espaço para ação em pró de uma repressão de identidades. As
ações violentas dos irmãos de Cecília representam assim o que Agamben denominará de
“estatuto de violência como código da ação humana” (ABAMBEN, 2004, p. 92). Isso
fica claro quando eles, não mais enviando policiais, aparecem no chalé, para pressionar
Abel depois de saberem que Cecília estava grávida: “Damos vinte e quatro horas para
você fazer Cecília decidir-se. (...) Você não vai querer que a gente mesmo resolva essa
parada com um pontapé na barriga. Vai? Damos vinte e quatro horas” (LINS, 1995, p.
255, T16). O regime autoritário brasileiro potencializa estas atitudes do irmão policial,
de modo que aquilo que aparentemente vem a ser um meio de conseguir chegar a um
objetivo – a separação do casal – desmascara-se como uma forma objetiva de violência
em que se traduz como mera manifestação arbitrária “que simplesmente age e se
manifesta” (AGAMBEN, 2004, p. 96) como violência.
O nosso próximo ponto, e talvez o mais contundente, sobre as forças repressivas
e violentas agindo no interior do romance, e entendido dentro da configuração
linguística, irá tornar mais absurdo ainda o apagamento do plano político da obra.
Vejamos qual o papel assume a condição de Olavo Hayano, o Iólipo.As narrativas
conduzidas pelas linhas R, “ e Abel: encontros, percursos, revelações”, e O, “História
de , nascida e nascida”, apesar de se referirem ao intenso encontro amoroso entre os
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1318
dois personagens no plano presentificado da história, em que R conduz o fluxo de Abel
e O, o fluxo de reminiscências de , ambos eixos deixam transparecer a lesa relação
que a personagem inominável se submete na vivência com seu marido Olavo Hayano.
Seguindo nossa percepção de que a violência se manifesta ao longo da narrativa tanto
no plano físico como subjetivo e simbólico, podemos chegar a compreensão de que o
dano causado por Olavo Hayano torna-se visível quando nos detemos na percepção do
grau de sofrimento que suporta e pela descrição, em tom testemunhal, do caráter frio
e positivado da natureza agressiva deste militar. Assim, é na compreensão do sofrimento
submisso pelo qual está submetida – na linguagem, na consciência e no corpo – que
chegamos ao entendimento do que, diferentemente das linhas S e T, esta violência é
mais elaborada, complexa e de difícil determinação, pois é uma violência silenciada,
sentida em quase toda a sua forma no plano psicológico, plano este que não nos chega
por um olhar preciso e distanciado de um narrador onisciente, mas na exposição
vinculada aos fluxo de consciência do sujeito. É neste ponto que a função do stream
abre uma janela para o entendimento do exterior social no sintoma asfixiante e
traumática do sujeito. Recuperando a discussão adornianas sobre o sofrimento, o
conflito interior de apresenta-se como uma agonia mental, mas na verdade, dentro
desta subjetividade encontra-se a coerção daquilo que não faz parte de sua identidade,
ou seja, o objeto não-idêntico a sua autonomia e que a constrange, comprime e preme. O
sofrimento interior de é o traço negativo da violência exterior degradativa de Olavo
Hayano. Há uma eminência de colapso da identidade pessoal da personagem
inominável, que somente se livrará desta vindoura catástrofe quando reconhece no
corpo de Abel o direito à não-identidade, pois a relação dos dois a leva ao
reconhecimento de sua autonomia. Sobre as formas de indeterminação que leva a
liberdade do sujeito, trataremos em capítulos posteriores, o que nos interessa aqui é a
expressão da violência do Iólipo. Tomemos estes dois primeiros trechos para
averiguação:
Meu marido, um vazio nele ou em torno dele, aproxima-se de mim, vejo-o
como mulher e também como criança, tira a minha grinalda, rasga meus dois
hímens, deflora-me e ao mesmo tempo, estupra-me, grito de prazer, de
horror. (LINS, 1995 ,p. 20, O2)
Ubatuba, nesta quinta-feira de novembro lembra uma cidade morta ou da
qual fugiram os habitantes. O rosto de , de perfil, adquire, à claridade fria
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1319
da tarde, contra os vidros molhados do carro, uma transparência que o faz
intocável e distante. Erguese nas mudanças de marcha do vestido: seus
joelhos luminosos. Algumas casas antigas e de aparência nobre, também
estas malcuidadas, assinalam um período ascendente e encerrado. Castelo
Branco adia sine die a execução de novas cassaçõesde mandatos. Um
ciclista, conduzindo varas de pescar, passa sob a chuva fina.
- Traí e ofendi. Se você conheceu o desespero, talvez concorde
comigo, Abel:o desespero, em suas formas agudas, não é abstrato. (LINS,
1995, p. 24, R6)
Estes dois fragmentos de texto mencionam indiretamente, e pela primeira vez,
Olavo Hayano, embora ainda não se refira a sua natureza. No primeiro, em que o foco
narrativo apresenta os pensamentos de , o ato de estupro como violência
simultaneamente física e moral ganha contornos muito deletérios para a personagem, a
ponto de, na sequência da narrativa, ficamos sabendo da tentativa de suicídio como ato
desesperador, mas que em seguida a sobrevivência do tiro que dispara contra si mesma,
sua atitude será de resiliência, resistência comedida e melancolia. O contexto situacional
da ocorrência do disparo é a própria noite de núpcias do casal. Ao vê-lo como criança
ou mulher, não o reconhece como homem, e com o ato sexual consumado,
compreende que Olavo é corpo estranho que deixará sequelas, trauma, horror. No
segundo trecho, advindos do pensamento de Abel, entrecortado inicialmente por uma
súbita e inesperada notícia sobre o contexto político ditatorial, verbaliza sua inteira
dor. Esta irrupção do contexto histórico aparece como uma violação direta da forma
narrativa, já que quebra com o fluxo de pensamento de Abel. É uma intervenção que ao
mesmo tempo que situa a ação romanesca num determinado momento da história do
país, a arbitrariedade de sua aparição reporta, no constructo da linguagem, a mesma
violação excessiva do que o conteúdo da frase se refere. Ao longo do eixo R, tal
situação ocorrerá sistematizada, com referências claras e diretas ao regime dos militares.
Inegável é assim a presença do militar no corpo do texto através do uso de uma
linguagem abrupta, recurso que Osman Lins preconizará como uma estética literária de
violência formal, fragmentação e ruptura do fluxo. Mais tarde, mais precisamente no
ano seguinte a Avalovara, 1974, a obra Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, irá levar
até às últimas consequências tal empreitada literária. A fala em discurso direto de
que aparece quase como uma justificativa para a traição, na verdade, significa
primeiramente uma necessidade de concretização do plano da materialização do ato na
linguagem. A violência que determina o desespero é real e pragmática, é sofrimento na
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1320
carne e na consciência, e diante daquilo que não é abstrato, algo na práxis deve ser feito
como reação, de forma empírica, como uma necessidade de encontrar a sua identidade
em uma outra forma de viver. Continua o discurso de :
De súbito, a gente sente na carne de um corpo estranho e deseja arrancá-lo.
Nada abstrato, o desespero. Uma raiz, Um sexo aquecido, incrustados num
ponto qualquer do tronco. Um gato podre. (LINS, 1995, p.25. R6)
Presidem este encontro o signo da escuridão — símile de insciência e do caos
— e o signo da confluência: germe do cosmos e evocador da ordenação
mental. Terra, espaço, Lua, movimento, Sol e tempo preparam a conjunção
da simetria e das trevas. Marechal Costa e Silva apoia o voto indireto.
— Os iólipos nunca têm irmãos mais novos do que eles. Tornam
para sempreestéril o ventre onde são gerados. (LINS, 1995, p. 32. R7)
Essas afirmações são importantes por sintetizarem a angústia e sofrimento de
em tudo aquilo que experiencia ao lado de Olavo Hayano. Símbolo de sua pulsão de
vida e reconhecido no encontro juvenil com Inácio Gabriel, mas sem poder desenvolver
as potencialidades, o pássaro Avalovara, que se encontra na interioridade de , definha
e se mantêm fossilizado. Se tentarmos entender esta questão a partir das nossas
discussões anteriores sobre o desdobramento da experiência proustiana contra a
experiência kafkiana, podemos enxergar que o apagamento vivificante de um pássaro
representante da autonomia e plenitude da vida, descoberto na vivência sentimental, tem
total condição de ser entendido sob os significados abertos da reminiscência proustiana.
A ideia persistente de uma articulação entre pensamento heterogêneo, gozo pessoal e
experiência não-identitária, ainda que tratada como um único ponto constelar que
precisa ser desdobrado em sentido para a vida, tornam-se horizontes de expectativas de
um mundo porvir, diferente do presente. Para entender este caminho trilhado por , a
função repressora do iólipo age violentamente em favor da debilidade e apagamento da
reminscência, ou seja, age em favor do mundo opaco kafkiano. Olavo Hayano, o Iólipo
de glade fria, cerceia, abafa e impede qualquer movimento em favor de uma
independencia moral de sua esposa. O Iólipo sente a necessidade do esclarecimento, no
plano da racionalidade, e para isso, lança mão de uma tortura psicológica em busca dos
motivos determinados – precisos e objetivos – do disparo contra de .
Levando em conta tal problema da violação normativa dos indivíduos, pensemos
no que nos diz Alex Honneth, em seu trabalho Luta por reconhecimento (2003).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1321
Dialogando com a tradição filosófica da teoria crítica, Honneth escreve que a
desconsideração da identidade do outro encontra sua motivação no interior das
“vivências afetivas dos sujeitos humanos” e que o colapso de uma identidade pessoal
manifesta-se em um desrespeito positivo da identidade do outro. Este processo de
violação como degradação do outro possui níveis diferentes de aparição sociopsíquico e
são medidos “pelos graus diversos em que se pode abalar a autorregulação prática de
uma pessoa, privando-a do reconhecimento de determinadas pretensões de identidade”
(HONNETH, 2003, p. 214). Estes níveis de violência, para Honneth, podem ser
percebidos sob três aspectos, todos passíveis de serem reunidos com certa clareza em
torno da relação de com Olavo Hayano:
Hayano entra no quarto, aproxima-se de mim e tira-me a grinalda. Eu o
desejo, é um desejo ácido, com gosto de vinagre, ardo de desejo e ardo de
pavor: queria fugir, mas quero ficar, fico (o pacto firmado na noite em que
luto e luto no chão, luto, até que surge a manhã, estabelece: seremos uma e
uma, una, para tudo o que vier, somos uma, sou uma), ele me inclina sobre os
lençóis, o abajur ao lado da cama está aceso, a lâmpada pendente de um fio
está acesa e se reflete no espelho oval do centro, com qualquer coisa de
meticuloso nos gestos Hayano despe-me a camisa rendada, cai sobre mim,
frases ditas por um homem ecoam em algum quarto próximo, Hayano rompe-
me o hímen, os himens, o lustre sobre nós, cristais e objetos de prata
oxidando-se aos poucos na penumbra, as palavras do homem ecoam sem
resposta, presa entre os braços de Hayano eu me debato, de prazer e de horror
eu me debato, ele conhece-me, estupra-me, grito de ebriez, choro de medo.
Fere-me o sexo de Hayano, duas vezes me rasga, gélido, e então eu sinto o
Avalovara, o pássaro, deixado em mim pela passagem de Inácio, dobrar-se
sobre si, transido, como se a fria glande de Hayano fosse a vinda de um
inverno rigoroso e súbito: a ave perde o bico e a voz, reduz-se a um
esqueleto, gravado em mim como na pedra o esqueleto de um fóssil — sem a
voz, sem a plumagem. (LINS, 1995, p.238. O23)
Tratando do nosso objetivo de compreender a forma literária de fluxo da
consciência em sua relação com uma estética negativa, sem desconsiderar a situação
social da qual os indivíduos vivenciam no plano psicológico, vemos que nesta
passagem, tomada como sumária da trajetória de , existe uma relação de difícil
distinção entre forças de violência como maltrato físico e sintoma de sofrimento
interior. Como já vimos construindo, nossa argumentação recai sobre a importância de
focalizar a técnica do fluxo porque é ela quem nos dá a condição de liberar este
sofrimento negativo. Olavo Hayano não compreende a dor de da mesma forma que
se tivéssemos uma descrição representacional realista e objetiva, também o leitor não
teria. Enxergamos a dor sufocada por termos acesso aos graus de subjetividade do
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1322
sujeito através do fluxo de consciência, nele, podemos apreender as variações de luta e
dor com a indeterminação que passa ao longo de toda a convivência com o Iólipo.
De início, no trecho, a violência física é aqui apreendida como aviltamento pessoal pela
apropriação do corpo e do direito arbitral do outro de causar danos físicos a partir da
experiência emotiva. Mas o que é dor gélida, sensorial, vai mais além e aqui, evocamos
Honneth com sua primeira noção de degradação do homem. Para ele, maus tratos
práticos seriam o momento em que “o respeito natural por aquela disposição autônoma
sobre o próprio corpo” é subtraído da pessoa pelo desrespeito que agride “a forma mais
elementar de autorrelação prática, a confiança em si mesmo” (HONNETH, 2001, p.
214). A firmeza egótica em favor do direito de agir para além da normatividade das
formas de vida social fixa é represada pelo alto teor vigilante de Olavo: “Rejeita, sem
explicações, minhas tentativas de trocar um adorno ou de dispor os móveis a meu gosto.
Não consente sequer que eu determine a respeito de vestidos: acompanha-me às lojas e
escolhe-os por mim. Cerceador, corta-me os passos. Pai e patrono” (LINS, 1995, p. 243.
O24). Assim, a elasticidade do stream de , de identificar no plano interior as camadas
exteriores de sua subjetividade, nos dá acesso ao conteúdo de sofrimento difuso e ao
grau de autoritarismo do qual é submetida. Seu sofrer é indeterminado, não há uma
provável distinção entre psíquico e físico, reflexão e mundo empírico. O abatimento do
pássaro Avalovara sugere a representação simbólica desta condição. A forma não-
idêntica do sofrimento é negatividade e através dela, na subjetividade em fluxo de ,
chegamos aos graus de violência a qual é submetida. Podemos ir um pouco mais adiante
e dizer que o sofrimento é o traço definidor de uma violência negativa, seja esta
violência física ou psíquica. O mau trato é físico, mas o sintoma é corporal e psíquico.
Por outro lado, como já pudemos constatar, sobre , há também o mau trato moral:
A opressão, se instaurada como norma e ainda mais quando se manifesta com
instrumentos precisos, quase sempre revestidos de uma aura sacral, apossa-se
de um modo absoluto do mundo moral: uma réplica da gravidade no mundo
físico. Infiltra-se nos ossos e invade tudo. Infecciona o mundo. Infecciona o
mundo, eu disse? Sim, isto. Uma doença. (LINS, 1995, p. 191-192. R14)
Não há como não perceber que as forças de determinação que estão
presentes no autoritarismo e que vitimizam compõem junto com a aposta romana e o
confronto de Abel com os irmãos de Cecília um acúmulo de momentos e fatos
significativos, no corpo do texto de Avalovara, de relação entre violência, poder e
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1323
autoritarismo militar. Estas forças não aparecem óbvias no texto, mas permitem a
percepção de que são elementos configuradores da obra, seja na influência sobre a
profundidade dos personagens, no desencadeamento do texto, ou na concepção
fragmentária da linguagem. Poderíamos arriscar dizer que estes momentos de violência
judicativa agregam a estes elementos formais tanto elementos contextuais quanto o
nível estático da concepção profunda de narrativa que o romance guarda na espiral
sobre o quadrado. A determinação de um modo de ser, as imposições de um sofrimento
como reprimenda corretiva ou como simples manutenção de uma servidão instauram
uma obsessiva visão conservadora da vida, de forma que tais situações funcionam como
marcação estática de experiências, de situações que envolvem a paralização das pulsões
de vida ou da reflexão do novo. A violência em Avalovara força uma identidade.
Isso significa que o esforço de totalização empreendido por uma ação judicante e
de lógica violenta representa uma exclusão – ou mesmo eliminação – daquilo que não se
adequa às razões da determinação. O impulso dialético, a transgressão como contraste e
heterogenia e a busca de alternativas para romper com esta ontologia forçada são
elementos que dirigem os personagens vítimas dessa violência para qualquer coisa que
os leve para fora deste molde determinante. Como vimos, o sofrimento em diversos
níveis, apreendido na subjetividade do sujeito, é uma destas formas de encontrar no não-
conceitual uma maneira de indeterminação. Não somente isso, mas como forma de
abordar o positivo pelo aspecto negativo. A dialética se instaura pelo viés ocultado. Se
nos questionarmos como isso ocorre no plano literário, nossa sugestão de resposta é a de
que é resgatando os processos de fluxo de consciência, no modelo joyciano, que
podemos, no âmago do sujeito, revelar estas dimensões não-identitárias e os limites da
força crítica de cada personalidade frente à um opaco e degradante autoritarismo. Mas o
sofrimento advindo desta degradação não seria a única forma de expressão de
indeterminação diante do positivo. No romance, esta indeterminação se manifesta sob
outras ricas maneiras, a saber através do erotismo, pela busca de uma plenitude de gozo
existencial ou pela “guerra sem testemunhas” que circunda os planos do protagonista
escritor. Mas antes de adentrarmos no universo que expressa um caráter negativo do
romance, é preciso ainda pensarmos na complexidade da situação do escritor Abel e de
como isso sinaliza para uma violação da forma narrativa pelo viés da substância
narrada.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1324
Referências
ADORNO, T.Notas de literatura I. São Paulo: Duas Cidades/ 34, 2003a.
AGAMBEN, G. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.
DELLASOPPA, E. Reflexões sobre a violência, autoridade e autoritarismo. São Paulo:
Revista Usp. n.9, 1991. p.79-96
HONNETH, A. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São
Paulo: ed. 34, 2003.
NITRINI, S. Transfigurações. São Paulo: HUCITEC, 2010.
LINS, O. Avalovara. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1325
O JOGO DAS PALAVRAS NO POEMA “MY SWEET OLD
ETCETERA”, DE E. E. CUMMINGS [Voltar para Sumário]
José Vilian Mangueira (UERN)
Introdução:
“my sweet old etecetera”, do escritor americano E. E. Cummings, contrasta a
visão de um soldado diante da realidade da guerra com a “ideia” de como seria o mesmo
fato visto pela perspectiva de certos membros da família desse soldado. O poema foi
publicado em 1926, no livro Is 5, assim descrito por Philip L. Gerber (1988, p. 177):
“[…] Is 5 (1926), was composed, like his three previous collections, largely of verses
exhumed from the immense manuscript he had completed by 1920, but it contained also
a number of new compositions that had been stimulated by post-1920 events”.
Devido à temática do poema, ele pode ser agrupado dentro da variedade de textos
da literatura americana que trata da Primeira Grande Guerra. O poema de Cummings
dialoga com outros escritores do período de 1915 a 1920, que escreveram uma obra que
se posicionava pró ou contra a guerra. No artigo intitulado “Wristers Etcetera:
Cummings, the Great War, and discursive struggle”, Tim Dayton (2013) aponta as
intertextualidades entre os poemas de E. E. Cummings “next to of course god america i”
e “my sweet old etecetera” e os textos de outros autores do período. Dentro deste
contexto de uma escrita sobre a Primeira Guerra Mundial, a poesia de Cummings
dialoga com uma propaganda de guerra que procurava destacar os Estados Unidos
dentro e fora do front.
O poema “my sweet old etecetera”, como ocorre com grande maioria dos textos de
Cummings, chama a atenção do leitor pela inovação quanto aos recursos tipográficos
utilizados, como o emprego de letras minúsculas, a falta de sinais de pontuação e a
disposição das palavras no papel. O modo como o autor escreveu certos poemas – e em
particular este – se aproxima das propostas da Poesia Concreta encabeçada pelos irmãos
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1326
Augusto e Haroldo de Campos na Literatura Brasileira. Aliás, uma das melhores
traduções do poeta americano para o português é de autoria de um dos irmãos Campos,
trata do texto “somewhere i have never traveled gladly beyond”, posteriormente
musicalizado pelo maranhense Zeca Baleiro.
Quanto aos aspectos formais de “my sweet old etecetera”, o leitor seguramente
notará que há apenas duas letras em maiúsculo em todo o texto: Your (linha 25) e
Etecetera (linha 26). Estas palavras em maiúsculo aparecem não depois de um ponto
final, mas no meio de um período. Em se tratando dos sinais de pontuação, só aparecem
a vírgula e os parênteses. Estes dois sinais apenas marcam pequenas pausas do discurso,
sem fechar um pensamento completo do Eu que fala no poema. Graças à falta do ponto-
final para marcar o fim das sentenças, o poema se constitui uma fala ininterrupta do Eu
lírico.
Para se entender de que trata o poema, o leitor terá que preencher as lacunas
deixadas pelo poeta, na construção de seu texto. É necessário “re-escrever” a poesia,
quebrando a sequência ininterrupta da voz do texto, transformando as frases em
sentenças legíveis. Com este movimento de “re-escritura”, o texto parece querer do
leitor um diálogo com a voz que conduz o poema. Nesse exercício de leitura, a primeira
atitude do leitor deverá ser a de pôr o texto numa sintaxe apropriada, com uma
pontuação exigida para criar inteligibilidade. Além disso, todas as palavras “Etecetera”
deverão ser interpretadas. Cada vez que esta palavra aparece, o leitor percebe uma
mudança no tom do Eu lírico. Dessa forma, a palavra parece ganhar um destaque no
texto, conectando-se emocionalmente com o Eu que fala.
Atrás do não-dito: etcetera!
Fazendo uma primeira leitura mais superficial, entende-se que o Eu do poema é
um soldado que descreve o envolvimento de sua família com a guerra e o que esta
família pensa sobre o engajamento do soldado no combate. Ele também se refere aos
seus sentimentos quanto a sua presença no campo de batalha e, mais forte ainda, ao seu
desejo de rever uma possível pessoa que está distante. Para se chegar à compreensão
mais profunda do poema é necessário, como já falamos, entender os sentidos
denotativos e conotativos da palavra “etcetera”, repetida várias vezes no texto.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1327
No sentido denotativo, a palavra é usada, como aponta o dicionário Oxford
advanced learner’s dictionary (2000, p. 448), depois de uma listagem para expressar
que ainda há algo mais para ser acrescentado ao que foi dito. Tomando o sentido do
dicionário, podemos afirmar que ela é usada pelo Eu lírico para adicionar algo mais ao
seu discurso, falando sobre o que não pode ser dito abertamente. Já o sentido
conotativo, ou melhor, os sentidos conotativos, que a palavra ganha no poema, só
poderão ser apreendidos pelo leitor quando ele perceber que “etcetera” é usado em
diferentes situações ao longo do texto, para suprir a falta de palavras do Eu lírico.
Levando-se em conta a construção gramatical do texto, primeiramente, a palavra
repetida é usada no sentido de adjetivo, para atribuir qualidades ou características a um
membro da família: “my sweet old etcetera / aunt lucy during the recent”.
No sintagma nominal “My sweet old etcetera aunt lucy”, todas as palavras que se
referem ao substantivo próprio LUCY possuem o valor de adjetivo: o pronome
possessivo MY, os adjetivos SWEET e OLD, o substantivo AUNT, e, por fim,
ETCETERA. Todas estas palavras carregam uma semântica de afetividade na relação
sobrinho – o Eu que fala – e sua tia – Lucy. O substantivo AUNT oferece ao leitor os
laços de parentesco entre o rapaz que está na guerra e a primeira pessoa referida no
poema. O possessivo dá aos dois uma relação de proximidade, uma vez que mostra que
o Eu possui uma tia. Os dois adjetivos – SWEET e OLD – demonstram o quanto a
relação dos dois é baseada na afetividade. SWEET traz em si a conotação de algo
prazeroso, carinhoso e aconchegante. Ainda de acordo com o dicionário Oxford
advanced learner’s dictionary (2000, p. 1368), a palavra SWEET é usada para se referir
a algo que tem ou apresenta um caráter gentil. Assim sendo, a tia Lucy representa para o
rapaz, que está no front de guerra, as memórias mais doces de antes da batalha. A
mesma simbologia de afetividade será encontrada na palavra OLD. Isolada, ela pode ser
vista como algo de gosto duvidoso ou não prazeroso, uma vez que representa o que não
serve mais, o que está passado. Mas, dentro da sequência da frase e associada à palavra
SWEET, ela dá à tia uma característica de sabedoria, de conselheira. De todos da
família do Eu lírico, parece ser a tia a que instrui o rapaz com seus conselhos. Mais uma
vez, a relação dos dois é estreitada nessa última palavra do sintagma. Devemos somar a
tudo isso o fato de ser a Tia Lucy a primeira pessoa que vem à mente do Eu-lírico
quando ele relembra seus familiares.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1328
Falta apenas entender o sentido de ETCETERA, que se junta às outras palavras do
sintagma. Como o sobrinho está diante do horror da batalha e parece não ter tempo para
digressões longas, a palavra serve para mostrar que ele não quer ou não pode listar todos
os outros termos de afetividade que a lembrança da tia Lucy lhe oferece. Ele deixa para
o seu interlocutor preencher as lacunas do texto e, assim, completar o sentido afetivo
que a tia lhe proporciona. Desse modo, várias outras palavras de sentido positivo que
também caracterizariam a Lucy poderiam ser acrescentadas sem com isso quebrar a
construção feita pelo jovem soldado sobre sua tia.
Para se chegar ao entendimento da primeira oração do poema, é necessário re-
escrever o texto usando uma sintaxe apropriada e retirando a palavra ETCETERA.
Assim, eis como ficaria a frase depois de refeita: “During the recent war, my sweet and
old aunt Lucy could and what is more did tell me what everybody was fighting for”.
Entendida a acepção da palavra na primeira referência, o leitor capta a visão da tia
Lucy quanto à guerra: há uma explicação plausível para a luta, justificando a razão de o
sobrinho ir se juntar ao grupo que está lutando. Assim, como conselheira e amiga dele, é
ela a responsável por explicar ao rapaz o motivo da guerra. Esse trecho do poema serve
para esclarecer ao leitor que a figura da velha e boa tia insere o rapaz no contexto da
batalha. Como ela possui uma forte ligação com ele, mesmo agora, no front, ele procura
não questionar abertamente a justificativa da tia, supostamente trazendo a sua figura
para reforçar a necessidade de ele estar ali.
Enquanto a tia, que não pisa no campo de batalha, representa o lado racional da
guerra, o sobrinho, experimentando a realidade dos fatos, oferecerá um contraponto ao
pensamento dela no final do poema, quando é descrito o espaço em que ele se encontra.
Aproximando a tia que ficou em casa com o sobrinho que foi para a luta, o texto mostra
que o conselho da boa tia Lucy só trouxe complicações imerecidas para o jovem rapaz.
Dessa forma, a memória da boa e velha tia vem carregada de ironia, quando se põe em
contraste o discurso enciclopédico e pró-guerra da senhora com a realidade bélica do
jovem soldado.
A outra aparição da palavra ETCETERA está ligada à figura da irmã do Eu lírico:
my sister
isabel created hundreds
(and / hundreds) of socks not to
mention shirts fleaproof earwarmers
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1329
etcetera wristers etcetera
Neste caso, a voz que fala no poema utiliza o termo para fazer referência a uma
enumeração, fazendo com que a palavra se una a outros substantivos para ganhar
sentido novo. Assim sendo, ela se refere ao material produzido pela irmã Isabel que será
utilizado pelos soldados durante os combates. A atitude da irmã constitui mais uma
demonstração de aceitação e aprovação dessa família quanto ao engajamento na guerra.
De sua casa, Isabel cria às centenas meias, camisetas, protetor para orelhas, proteção
para os punhos e mais uma variedade de indumentárias que, para não se perder na
enumeração, o Eu lírico se restringe a, duas vezes, usar a palavra ETCETERA para
demonstrar o quanto o trabalho da irmã é extenso e incansável.
No primeiro caso em que aparece no poema, o uso de ETCETERA está ligado à
ideia de afetividade, uma vez que funciona como adjetivo para qualificar a tia Lucy,
como já demostrado anteriormente. Neste segundo caso, como substantivo, ele
representa o produto do esforço da irmã Isabel para manter protegidos os rapazes que
estão no front. O trabalho manual é a contribuição da irmã do Eu lírico para sustentar a
guerra, assim como foi a explicação feita por tia Lucy, anteriormente. Ao apontar o
produto do trabalho da irmã, o Eu lírico traz para o seu discurso o contexto americano
do início da Primeira Grande Guerra que instigava as mulheres a produzirem artefatos
manuais para os soldados que estavam nas batalhas de além mar. Nas palavras de
Dayton (2013): “Cummings’ depiction of the industriousness of the speaker’s sister
provides an ironic counterpart to that of a number of women represented in the poetry of
the war”. Ainda Segundo Dayton, havia nos Estados Unidos um subgênero literário
durante o início da Primeira Guerra que encorajava as mulheres a cozerem e bordarem
para os soldados. Ao trazer para o seu poema uma referência a este tipo de literatura E.
E. Cummings procura ridicularizar o trabalho propagandístico pró-guerra, ao mostrar a
inutilidade do trabalho da irmã do soldado que fala no poema, pois o que ela produz não
teria tanta utilidade num contexto sangrento de guerra.
Ainda, ao apontar o trabalho manual da irmã, mais uma vez, o texto opõe duas
posições diferentes diante da guerra: enquanto Isabel confecciona, no sossego de sua
terra natal, produtos para os soldados, o irmão se vê desprotegido na batalha longe de
casa, tendo como consolo a lembrança da irmã e, supostamente, o material de pouca
serventia por ela feito.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1330
A terceira aparição da palavra ETCETERA liga-se à figura da mãe do soldado,
trazendo mais um membro de sua família para suas recordações:
my
mother hoped that
i would die etcetera
bravely
Esta parte do poema é de fácil entendimento, quanto à disposição das palavras na
frase, oferecendo ao leitor mais uma possível classificação de ETCETERA. Como
vimos, no primeiro caso, ela é um adjetivo que dá qualidades à tia; no segundo caso, é
um substantivo que se soma à lista de produtos feitos pela irmã; e, neste, devido à sua
posição na sentença, ela pode ser entendida como um advérbio, uma vez que se liga ao
verbo DIE e a ao outro advérbio, BRAVELY. Assim sendo, a palavra serve para
intensificar a morte do filho sonhada/desejada pela mãe, permitindo ao
leitor/interlocutor o acréscimo de palavras que ressaltem o modo como o jovem deve
morrer lutando por aquilo que é prezado pela sua genitora.
Ainda, esta parte do poema mostra o quanto os membros da família,
metonimizados na mãe, dão valor ao engajamento no combate. Segundo a visão
apresentada pelo rapaz, a mãe não se importa de perder o filho, desde que a morte deste
seja lutando e tenha um significado positivo para o que ela acredita ser o certo: morrer
na guerra. Interpretando a relação mãe/filho neste trecho, levando-se em conta o
contexto americano da Primeira Guerra Mundial, vemos que a lembrança de sua
genitora evocada pelo soldado não pode ser vista como um exemplo de uma mãe que
não ama o filho, mas como a repetição de um pensamento de grande parte da população
americana que via na morte em combate um ato de heroísmo. Este trecho do poema de
Cummings ecoa outros poemas escritos naquele momento de guerra, como o de William
H. Barter intitulado “That’s my boy”.
A ideia de rebaixamento do valor da vida do filho e de exaltação da guerra é
reforçada na aparição do outro membro da família, o pai:
of course my father used
to became hoarse talking about how it was
a privilege and if only he
could.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1331
As palavras do genitor do Eu lírico são um complemento do que é dito sobre a
mulher. Tanto é que, pela primeira vez, um trecho do poema relacionado a um membro
da família do soldado aparece sem a presença da palavra ETCETERA. É como se a
visão da mãe fosse complementada pela do pai, apresentado uma união de ideias que
solidificam o caráter valorativo da ação de lutar/morrer na guerra. Além disso, a estrofe
onde é posto o pensamento do pai quanto ao combate é a mais longa de todo o poema,
confirmando que ela une em um só trecho o que pensam mãe e pai sobre o engajamento
do filho nos eventos da guerra. O discurso parental mostra o quanto a guerra tem
destaque para os membros daquela família, refletindo um contexto americano que
valorizava a ação dos Estados Unidos na Primeira Guerra Mundial. Segundo Tim
Dayton (2013, p. 127): “Both the mother and the father in the Cummings poem express
sentiments—slightly inflated in the mother’s case—found elsewhere in American Great
War poetry, and which were part of the manipulation of American culture necessary to
promote U.S. intervention in the war”. Assim sendo, os pais do jovem que fala neste
poema são uma metonímia para o pensamento estadunidense sobre a luta na Primeira
Guerra Mundial.
Ainda quanto a este trecho da poesia que apresenta o pai do soldado, a falta do
vocábulo ETCETERA pode indicar uma menor ligação entre a voz do poema e seu
genitor, uma vez que o que se tem para dizer do pai não merece adendo nenhum, sendo
externado em uma sentença limpa de qualificação, de intensificação e de reticências,
como ocorre como os outros membros femininos da família.
Apresentado ao leitor o quanto a sua família dá valor aos eventos da guerra, resta
ao Eu lírico se voltar para si, no campo de batalha, e revelar qual a sua real situação,
criando uma dupla visão sobre a luta. Para contrastar as lembranças evocadas de casa
com sua condição no front, o soldado usa o advérbio de tempo MEANWHILE:
meanwhile my
self etcetera lay quietly
in the deep mud et
cetera
(dreaming,
et
cetera, of
Your smile
eyes knees and your Etecetera)
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1332
É nesse trecho que aparece em abundância a palavra ETCETERA, quatro vezes,
no total. A sua aparição ainda se diferencia das anteriores, pois, agora, em duas
ocasiões, ela está quebrada e, na quarta aparição, ela está em maiúscula, mostrando
novos arranjos para sua utilização.
Enquanto sua família está no aconchego do lar, o soldado se encontra deitado na
lama imerso em suas lembranças. Percebe-se que a voz do soldado é produzida em um
momento de certa tranquilidade durante a luta, pois vamos encontrá-lo perdido em
recordações sobre os parentes que ficaram em casa. Neste trecho também notamos que o
poema ganha certa lentidão, graças à quebra da palavra ETCETERA. O leitor tem a
sensação, em certos pontos, do quão perdido em pensamentos está o soldado, na sua
quietude de descanso.
As três primeiras aparições da palavra repetida ao longo desta parte do poema têm
o mesmo valor. Elas funcionam como acréscimo ao que vai sendo dito sobre a atitude
do Eu lírico durante esse tempo de calma. A primeira delas pode ser entendida como
uma referência aos outros soldados que, também, estão deitados na mesma atitude de
descanso do Eu lírico. A segunda se refere ao lugar onde os soldados se encontram,
acrescentando uma característica a mais ao lamaçal onde eles estão. Assim deve ser
entendido o trecho: “meanwhile my self [and the others] lay quietly in the deep mud
[here]”.
Na terceira vez que a palavra aparece nesta parte final do poema, ela está
relacionada ao verbo DREAMING e funciona como mais um verbo no gerúndio, dando
à atitude de contemplação do soldado mais um reforço. Nesse campo semântico, ela
pode ser lida como qualquer verbo que mantém o sentido de DREAMING: THINKING,
WISHING, WAITING.
Na seguinte aparição da palavra, o texto revela o desejo do rapaz de rever alguém
querido. Como todos os membros de sua família já foram mencionados, pode-se inferir
que ele espera rever alguém que não faz parte do seu círculo consanguíneo. Além disso,
percebemos que toda a fala do Eu lírico é dirigida a essa pessoa, uma vez que aparecem
duas vezes o pronome possessivo YOUR. Desse modo, pode-se afirmar que quem o
soldado quer rever é o seu interlocutor textual. E o desejo de encontrar novamente esta
pessoa é tão grande que ele se perde em divagações, como mostram as quebras feitas na
palavra ETCETERA. Ainda relacionado a pessoa desejada à tia Lucy, à irmã Isabel, à
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1333
sua mãe e ao seu pai, vemos que é nela que o Eu lírico põe mais destaque, pois é para
ela que ele reserva o uso de maiúscula: “Your smile”.
Do que foi levantado até agora, pode-se afirmar que o soldado deseja rever alguém
a quem se liga emocionalmente. Essa ligação afetiva entre o Eu lírico e seu interlocutor
explica o uso abundante da palavra ETCETERA, uma vez que é para essa pessoa que
ele tem mais para acrescentar. Como há um forte laço sentimental entre o Eu e o ser
amado, fica mais difícil o ouvinte compreender os sentidos vários que a palavra ganha
ao longo do discurso do soldado.
Embora o rapaz teça para seu interlocutor um discurso que funciona como
revelação de tudo o que o levou à guerra, transformando esta pessoa amada em
confidente de suas angústias, o desejo de revê-la é mais físico do que platônico. Isso
fica claro nas referências metonímicas da pessoa amada. É nesta relação metonímica
que encontramos a última menção à ETCETERA. Do seu amor, o soldado sente falta do
sorriso, dos joelhos e de uma outra parte. Seguindo o pensamento do desejo físico
movendo o Eu lírico, é possível assegurar que o termo que a palavra ETCETERA
substitui é o órgão genital do ser amado ou outra parte de mesmo valor prazeroso. Desse
modo, no descanso solitário da guerra e em meio a lembranças dos membros da família,
o Eu lírico se volta para o ser amado, deixando fluir os seus desejos.
O final e etecetera:
A repetição da palavra ETCETERA ao longo do poema mostra o quanto o soldado
está imerso em seus pensamentos, o quanto eles correm soltos sem o controle do rapaz e
o quanto ele está desligado do mundo à sua volta, pesando apenas naquilo que mais lhe
faz falta. Esta repetição ainda serve como inflexão no discurso do Eu lírico, dando às
outras palavras ao redor da repetida uma nova roupagem.
Em um texto poético, o uso de repetições deve ser sempre observado pelo leitor.
Em um texto tão condensado como é um poema, quando aparece mais de uma vez uma
mesma palavra, deve-se buscar o porquê de tal aparição. No caso do poema aqui
analisado, a repetição da palavra ETCETERA mostra o quanto o soldado tem a dizer
sobre todos os seus familiares, sobre a saudade que sente, dividindo seus pensamentos
com o interlocutor a quem se liga efetivamente.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1334
Devido a uma única particularidade, o uso de maiúsculas, entendemos que entre o
que é falado sobre os membros de sua família e sobre a pessoa amada se diferenciam.
As palavras usadas para descrever as ações da família em casa possuem menos
importância do que as que se referem ao seu objeto de desejo. O soldado parece deixar a
cargo de seu interlocutor o preenchimento de seu pensamento quanto ao que ele sente
sobre a tia, sobre a produção da irmã, sobre a ideia de morrer na guerra da mãe, sobre a
vontade do pai de participar da batalha. É por isso que a palavra aparece em minúsculo.
Em contrapartida, quando o rapaz fala do ser amado, ETCETERA aparece em
maiúsculo, mostrando que o destaque maior está no interlocutor. Ao que parece, a
ligação que há entre os dois participantes do discurso – o remetente e o destinatário –
permite particularizar, especificar a parte do corpo do outro que o soldado deseja.
Ainda, a visão da guerra que possui os membros da família se diferencia da que é
apresentada pelo Eu lírico. A tia, a irmã, a mãe e o pai demonstram vislumbrar a guerra
como uma ação patriótica, mecânica e cheia de discurso retórico. Já o Eu lírico
apresenta um contexto de dificuldade e falta de comodidade que a guerra traz, mas
apresenta também um sentido carnal e sexual – instigado pela lembrança do ser amado –
que em nada lembra a atmosfera assexuada de outros poemas sobre a guerra escritos por
outros autores americanos daquele período.
Referências:
BARTER, William H.. My flag and my boy and other war poems. Boston: Page, 1918.
CUMMINGS, E.E.. “my sweet old etcetera”. In: MEYER, Michael. The Compact
Bedford Introduction to Literature: Reading, Thinking, Writing. 5th
ed. Boston/New
York: Bedford/St. Martin’s, 2000, p. 158-159.
DAYTON, Tim. “Wristers Etcetera”: Cummings, the Great War, and Discursive
Struggle. Disponível em <http://www.gvsu.edu/english/cummings/Dayton17.pdf>.
Acesso em: 08 de mar. de 2015.
GERBER, Philip L.. E. E. Cummings's Season of the Censor. Contemporary Literature.
Vol. 29, No. 2. The University of Wisconsin Press, 1988, p. 177 – 200.
Oxford advanced learner’s dictionary. Oxford: University Press, 2000.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1335
ANALISANDO O DISCURSO E O HUMOR NAS
CHARGES: DO MATERIAL LINGUÍSTICO À
MATERIALIDADE DISCURSIVA [Voltar para Sumário]
José Wellisten Abreu de Souza (PROLING-UFPB)
Considerações Iniciais
A charge, de acordo com Pilla e Quadros “[...] pode ser considerada uma prática
discursiva situada no cosmo das relações entre o linguístico e o histórico-social” (2009,
p. 1). Parece bastante pertinente ressaltar que a charge, enquanto gênero textual-
discursivo, apresenta inúmeros recursos expressivos, tanto linguísticos como
semióticos, os quais se constituem como interessantes eixos norteadores de interesse
analítico, tais como: da Semântica, da Pragmática, da Análise do Discurso (AD), dentre
outras perspectivas na Linguística, como também da Psicologia, da Sociologia etc.
Especialmente sobre a AD, essa corrente de estudos estabelece, dentre outros postulados
teórico-analíticos, a relação existente entre língua/sujeito/história, língua/ideologia,
heterogeneidade, formação discursiva, apenas para citar alguns presentes na produção
das charges.
Tomando por referência novamente Pilla e Quadros (2009), vemos que é de
extrema relevância e pertinência analisar as charges de acordo com o escopo teórico da
AD, uma vez que, como sugerem os autores, “todo o processo de elaboração das
charges tem por base ou fonte de inspiração outros textos e discursos, principalmente
notícias veiculadas por jornais impressos e outros meios de comunicação” (p. 1). É
notório o interesse em AD no que diz respeito à confirmação de que todos os discursos
são, de fato, formulações traspassadas por outros discursos, resultado, portanto, do que
sugere Bakhtin com relação ao dialogismo e à heterogeneidade constitutiva do discurso.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1336
Em outras palavras, configura-se como de interesse dos analistas do discurso
observar e corroborar a tese de que um discurso sempre dialoga e é constituído pelo
discurso do outro/Outro.
Indo no esteio do que vimos discutindo e tentando estabelecer uma relação entre
as pesquisas em AD e o corpus que pretendemos analisar, valemo-nos da seguinte
citação de Possenti:
Os estudos sobre textos humorísticos têm aumentado
exponencialmente nos últimos anos, em diversos campos de pesquisa
(estudos “culturais”, História, Sociologia, Psicanálise, Psicologia), e
os estudos de linguagem não têm sido indiferentes ao tema. [...]
Talvez se possa dizer que certos ingredientes dos “textos”
humorísticos, pelas relações peculiares que mantêm com várias
questões de ordem propriamente linguística, em primeiro lugar, mas
também pragmáticas, textuais, discursivas, cognitivas e históricas, têm
chamado a atenção dos estudiosos para os diversos gêneros do campo
(POSSENTI, 2010, p. 27).
Com base no exposto, temos como objetivo neste artigo, então, apresentar a
análise de 03 charges a partir do embasamento teórico fornecido pela AD. Tratar-se-ão
de leituras, pois, assim como sugere Sousa (no prelo), o que propomos neste artigo é
fazer um “exercício de leitura” (p. 3), justamente porque não invocaremos “verdades
absolutas”, mas sim leituras possíveis com as quais esperamos possibilitar um confronto
de ideias linguísticas.
Nesse sentido, interessa-nos verificar como a produção linguística das charges
estabelece relação com fatos históricos e sociais na construção de sentidos. Para tanto,
laçaremos mão de noções como a do discurso do outro/Outro acionadas pela memória
discursiva, mas também trataremos sobre a presença (marcada/mostrada) do sujeito no
discurso. Além disso, apoiaremos nossa análise na importância estabelecida pelos
elementos linguísticos na explicação do gatilho humorístico das charges, especialmente
quando inseridos em um contexto mais amplo da enunciação, no qual as condições de
produção de tais textos revelam-se através de fatores socioculturais.
Grosso modo, é na união de aspectos discursivos com aspectos semântico-
pragmáticos que se constrói o texto e a compreensão do discurso humorístico. Baseamo-
nos nas seguintes leituras: Possenti (2001, 2002, 2010), Mussalim (2012), Pilla e
Quadros (2009) e Authier-Revuz (2004).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1337
1. Um pouco de teoria: as charges numa análise discursiva
É consenso entre os autores que os estudos que colocaram o humor no âmbito
dos aspectos voltados à linguística, especificamente do campo da Semântica, foram
iniciados por Raskin (1985) em seu Semantic Mechanisms of Humor.
A justificativa para o fato de os estudos sobre o humor terem sido explorados
por tantas áreas além da linguística (na verdade, bem antes de haver tal preocupação no
campo da ciência da linguagem) é dada por Travaglia (1990). Segundo o autor, “sendo o
humor um fenômeno complexo e multifacetado, sua pesquisa se estabeleceu como um
campo de estudos necessariamente multi e interdisciplinar” (p. 57). É justamente por
isso “[...] que o humor tem sido estudado por antropólogos, comediantes, filósofos,
folcloristas, historicistas, linguistas, médicos, matemáticos” (cf. RASKIN, 1987, p. 441
e PEPICELLO, 1987, p. 27 apud TRAVAGLIA, 1990, p. 57).
É Raskin (1985) quem propõe uma teoria de base linguística a respeito dos
gêneros de humor. De acordo com Ferraz (2012), o autor:
[...] propõe uma teoria semântica do humor baseada em scripts, feixes
estruturados e formalizados de informação semântica inter-relacionada, a
partir da qual propõe duas hipóteses para caracterizar o texto humorístico: o
texto é compatível, em todo ou em partes, com dois scripts diferentes, e os
dois scripts com os quais o texto é compatível são opostos em um sentido
especial. Tal proposta tenta explicar o processo de compreensão de textos de
humor [...] (FERRAZ, 2012, p. 99).
Além disso, o autor distingue dois modos de comunicação: o confiável e o não-
confiável. O primeiro está comprometido com a verdade factual dos enunciados e com a
transmissão de informações relevantes. O segundo está ligado à piada. Dessa forma,
estabelecem-se as seguintes condições para que um texto seja humorístico:
O modo de comunicação confiável mudar para o modo não-confiável;
O texto ser intencionalmente humorístico;
Os dois scripts serem parcialmente sobrepostos e compatíveis com o texto;
Haver relação de oposição entre os dois scripts;
Gatilho, óbvio ou implícito, ser o responsável pela mudança de um script para o outro.
De maneira sintética, Raskin (1985) propõe que o humor verbal seja visto como
um texto, o que requer que se busque descobrir um conjunto de propriedades
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1338
linguísticas tais que qualquer texto que as apresente será engraçado (pelo menos para
alguém) e todo texto engraçado terá algumas propriedades regulares.
Para Possenti (2001), as piadas (na nossa visão, também os outros gêneros da
ordem do humor, tal como a charge, a que nos deteremos) “[...] fornecem
simultaneamente um dos melhores retratos dos valores e problemas de uma sociedade,
por um lado, e uma coleção de fatos e dados impressionantes para quem quer saber o
que é e como funciona uma língua, por outro” (p. 72). Segundo o autor, o humor é um
campo de interesse para a linguística, no sentido de que é uma área onde se pode fazer
boa pesquisa fonético-fonológica, morfológica, sintática, semântica, sociolinguística e
até de pragmática discursiva.
De modo mais específico, segundo Mussalim (2012):
A Análise do Discurso considera como parte constitutiva do sentido o
contexto histórico-social; ela considera as condições em que [...] [um
determinado texto], por exemplo, foi produzido. [...] Em outras palavras,
pode-se dizer que, para a AD, os sentidos são historicamente construídos (p.
146-147).
Para Ávila (2009), “o discurso humorístico, assim como todo processo
discursivo, pressupõe efeitos de sentido num processo interlocutivo afetado pelas
condições de produção, isto é, pela situação e pelo contexto histórico-social” (p. 46-47).
Essas noções, assim como outras já mencionadas na introdução, servem para justificar
uma análise das charges sob o escopo teórico da AD.
A charge, por seu turno, é uma ilustração que tem como objetivo satirizar e
criticar, através de um desenho, algum personagem ou situação social, ironizando e
exagerando suas características. Trata-se de um gênero textual-discursivo dependente da
intertextualidade, pois ela está sempre em relação com algum outro texto. Assim, a sua
interpretação depende muito do conhecimento de mundo (da memória discursiva) e,
atrelada a ele, as condições de produção a partir das quais sejam acionadas leituras que
tornem possível recuperar o(s) sentido(s) do texto com o qual a charge dialoga. Isso
vem ao encontro, como é sabido em AD, das noções de heterogeneidade e dialogismo.
Segundo Possenti (2001), as “[...] piadas estabelecem relações intertextuais
(exigem conhecimentos prévios, partilhados). Por isso, muitas piadas deixam de fazer
sentido em pouco tempo. É que dependem fortemente de fatores circunstanciais” (p.
73). Do mesmo modo apresentam-se as charges, cuja datação e relação jornalística são
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1339
amplamente dependentes de acontecimento histórico em um dado momento. Logo,
entendemos que os fatores circunstanciais e os conhecimentos prévios, no caso as
memórias discursivas, devem ser acionados no tocante à interpretação de uma charge.
Ainda sobre a charge, Ferraz (2012) diz que:
[...] podemos resumir que a charge se caracteriza por ser um texto misto, em
que se relacionam os aspectos verbais e os não verbais, cuja intenção é a
crítica de cunho político e/ou social. Os chargistas se utilizam de temas
atuais, aproveitando-se de informações vinculadas por outros gêneros na
mídia, o que faz da charge um texto com prazo de validade. [...] No entanto,
alguns temas podem ser considerados atemporais, devido à recorrência com a
qual são veiculados em nossa sociedade [...] (FERRAZ, 2012, p. 111).
Mussalim (2012) sugere que em AD os textos não são vistos “[...] como um
conjunto de enunciados unificados por posições ideológicas não conflitantes” (p. 147),
ou seja, não são homogêneos. Ao contrário disso, segundo a autora, “[...] o texto se
constitui de posicionamentos divergentes cujas fronteiras se intersectam [...], nesse
sentido, [o texto] é constitutivamente heterogêneo, de modo que não é possível definir a
identidade de um desses posicionamentos sem remeter ao outro” (p. 147).
E é justamente essa heterogeneidade dialógica, essa necessária busca pelas
memórias discursivas, o constante diálogo entre os discursos do interlocutor com o
outro/Outro o que fazem das charges um dos gêneros do humor tão produtivos no que
diz respeito a análises em AD.
Na próxima seção, apresentaremos de que modo essas noções se materializam
no fio do discurso, muitas vezes, como sugere Possenti, através da materialidade
linguística.
2. Analisando o discurso nas charges
Possenti (2010) afirma que é consensual entre os analistas do discurso a
concepção de que “[...] um discurso está todo inteiro em qualquer fragmento, de
maneira que um corpus pode muito bem ser representativo sem ser exaustivo” (p. 18).
Esperamos que a mesma máxima possa ser aplicada a esta seção. Nela, apresentam-se 3
charges a partir das quais intencionamos discutir sobre algumas contribuições analíticas
e demonstrar como a materialidade linguística leva à materialidade discursiva.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1340
Observemos a primeira charge:
Figura 1: Charge 1 – discussão sobre a maioridade penal
Disponível em: <http://miniplif.no.comunidades.net/index.php?pagina=galeria>. Acesso em: 01/09/2012.
Uma máxima bastante presente em análises norteadas teoricamente pela AD
pode ser apreendida a partir do trabalho de Authier-Revuz (2004). A autora afirma que é
“no fio do discurso que, real e materialmente, um locutor único produz um certo número
de formas, linguisticamente detectáveis no nível da frase ou do discurso [através da qual
se] inscrevem, em sua linearidade, o outro” (p. 12). Dito de outro modo, podemos
entender a noção de alteridade a partir da heterogeneidade constitutiva do discurso,
visto que as marcas do outro/Outro podem ser recuperadas, por estarem marcadas, no
fio de um dado discurso.
Na charge apresentada acima, podemos observar que o tema norteador diz
respeito à “redução da maioridade penal”. Ao acionarmos nossa memória discursiva,
vemos que esse tema se configura como um produtivo discurso nas mais variadas
instâncias sociais, sociológicas e históricas. Já há um bom tempo no Brasil vem sendo
discutida a questão da diminuição da maioridade penal. Alguns discursos, digamos
assim, giram em torno da defesa da idade atual, 18 anos, mas há muitos discursos,
inclusive proferidos na mídia, de que deve ser reduzida a idade penal para 16 anos,
talvez menos.
A cada vez que ocorre um crime cuja culpa direta ou indireta seja (possa ser)
impetrada a um menor de idade, voltam-se os olhos para o tema da diminuição da
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1341
maioridade. Todas essas informações históricas se configuram como uma espécie de
contexto compartilhado necessário para a interpretação da charge, justamente porque é
esse mesmo contexto de mundo que funciona como pano de fundo basal para a
produção desse discurso, ou seja, faz parte de suas condições de produção. É notória,
portanto a presença do outro/Outro na constituição do discurso promovido pelo
chargista.
Poderíamos concluir, portanto, como já indicam algumas teses da AD, que o
discurso presente na charge não é original de um eu, mas sim de um outro discurso?
Segundo Possenti (2002), “[...] a presença do outro não é suficiente para apagar
a do eu, é apenas suficiente para mostrar que o eu não está só” (p. 64-65). Observemos,
então, a materialidade linguística apresentada nas falas das personagens da charge:
quando o primeiro policial, após revistar dois bebês suspeitos (?) afirma: “esses aqui tão
limpos”, construímos um mundo, um script (tal como é característico no humor) que
direciona a nossa interpretação de que o sentido de limpo refere-se ao comportamento
social lícito de um determinado cidadão. No jargão característico das “batidas
policiais”, um sujeito que está limpo não porta armas, não porta drogas, não porta nada
que seja ilegal. Porém, ao seguirmos o fluxo discursivo, vemos que limpo, ou mais
explicitamente, os complementos associados a esse lexema, por questões da composição
do discurso, configuram-se como ambíguos: limpo não diz mais respeito a uma questão
de comportamento social, mas sim estabelece uma antonímia com sujo, configurando-
se, então, numa questão física, corpórea, a que, por referência semiótica, apoiados na
leitura da imagem, vemos o policial com as mãos sujas, após fazer a revista do segundo
bebê.
Como sugere Possenti (2002), a constituição dialógica desse discurso, no qual é
clara a presença do outro/Outro, não elimina a presença do eu. O chargista claramente
lança mão dos mecanismos linguísticos que conhece (ambiguidade de limpo, a relação
de antonímia entre limpo e sujo), revelando, mesmo que implicitamente, sutilmente, um
eu que não é totalmente assujeitado. Esse trabalho, inclusive, parece sugerir uma
tomada de posição do eu a qual discorda da ideia de redução da maioridade penal, já
que o “crime” cometido pelo bebê é algo normal, fisiológico. O eu participa do diálogo
com o outro/Outro, constituindo-o, logo se configurando como o outro/Outro do
outro/Outro (cf. POSSENTI, 2002, p. 65).
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1342
É, por fim, o trabalho com o material linguístico que indica e direciona o diálogo
entre o eu e o outro/Outro. É por meio desse material linguístico, presente na
ambiguidade e no deslizamento dos dois mundos/scripts construídos na leitura, que se
apoia o humor dessa charge e através do qual o discurso se materializa. Passemos a
próxima charge:
Figura 2: Charge 2 – discussão sobre as touradas
Disponível em: <http://www.sejavegetariano.com.br/charges-vegetarianas/>. Acesso em: 01/09/2012
De acordo com Pilla e Quadros (2009):
As charges comportam a articulação do verbal (palavra) com o não-verbal
(imagem) que constrói múltiplas direções de leitura, associando recursos
como a ironia e o desenho caricatural. Outro aspecto importante é que elas
costumam ser tão ricas e densas quanto outros textos opinativos, como
crônicas e editoriais, que transmitem um posicionamento crítico sobre
personagens e fatos políticos (PILLA e QUADROS, 2009, p. 2).
Na charge em análise, vemos que a afirmação extraída a partir de Pilla e
Quadros (2009) confirma-se. Nela, podemos perceber uma forte ideologia a qual
direciona a composição do discurso. Vale ressaltar que todo o apelo do verbal somado
ao não-verbal promovem, a um só tempo, tanto o humor da charge, ou seja, o seu
gatilho humorístico, quanto marcam os discursos presentes nela.
É de conhecimento geral que as touradas na Espanha (assim como as vaquejadas
e os rodeios, aproximando mais a discussão à realidade brasileira), são fruto de
polêmicas discussões entre, por um lado, adeptos defensores dos eventos,
caracterizando-as como festas esportivas, como, por outro lado, ONGS protetoras dos
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1343
animais, cujo discurso apresenta essas atividades como sendo a própria promoção de um
show de horrores e maus-tratos com animais.
A fala do primeiro personagem parece estar inserida na discussão
resumidamente relembrada no parágrafo anterior. Quando enuncia: “quem não gosta de
touradas não vá...”, parece apresentar uma solução, até certo ponto grosseira, àqueles
que consideram tais eventos como nocivos e violentos. Esse é um discurso com o qual o
chargista dialoga, na verdade, poderíamos dizer que esse é o discurso do outro/Outro
retomado pelo eu. No entanto, ao observamos a fala do segundo personagem e, em
seguida, ao apoiarmos nossa leitura na imagem, vemos que um outro mundo possível, o
da inversão e do risível, se apresenta. Se a solução é assim tão fácil, ou seja, se é
preciso, apenas, que os desgostosos com as touradas não participem delas, logo, o touro
é quem não mais está interessado em participar. Ao enunciar “ok, ele não gosta” e ao
vermos um touro descontente, vemos que o complemento catafórico a ser relacionado
com o pronome ele (ou seja, o próprio touro) é o que direciona a interpretação que deve
ser dada à charge.
É, em síntese, apoiado no trabalho entre os elementos linguísticos, mais
especificamente pela catáfora decorrente do uso do pronome ele e também pelo gesto
dêitico do segundo personagem ao apontar o touro que o chargista constrói o discurso,
dialogando com outros discursos, de fato, tendo o seu discurso constituído por outros.
Além disso, a junção com os elementos não-verbais, característicos da charge como
gênero textual/discursivo, é o que nos leva a percepção da materialização do discurso.
Por fim, passemos à última análise:
Figura 3: Charge 3 – salário político X salário do trabalhador
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1344
Disponível em: <http://www.odivisor.com.br/charges/charge-do-dia/1483>. Acesso em: 01/09/2012
Em Mussalim (2012) encontramos o seguinte argumento:
[...] um paradigma é constante nos estudos do círculo de Bakhtin: opõem-se o
dialógico ao monológico, o múltiplo ao único, o heterogêneo ao homogêneo.
O dialogismo do círculo de Bakhtin, no entanto, não tem como preocupação
central o diálogo face a face, mas diz respeito a uma teoria de dialogização
interna do discurso. É nesse sentido que, para Bakhtin, o discurso, cujo
dialogismo se orienta para outros discursos e para o outro da interlocução,
instaura-se numa perspectiva plurivalente de sentidos [...] (MUSSALIM,
2012, p. 150).
A charge ora em análise serve para corroborar o apresentado por Mussalim
(2012) ao retomar o trabalho de Bakhtin e o círculo. De fato, o discurso presente na
charge nos obriga, principalmente se quisermos entendê-la corretamente, a retomar
vários outros discursivos os quais, efetivamente, constituem o discurso apresentado pelo
chargista.
O tema relativo aos salários dos políticos é sempre uma questão polêmica na
sociedade brasileira. Historicamente fica a cargo dos deputados e senadores, na
configuração política brasileira, proporem e votarem as leis. E são também eles que
votam, por lei, no quanto deve ser o salário mínimo do trabalhador brasileiro. Também
são eles que votam no quanto deve custar o salário dos próprios parlamentares.
Interesses pessoais à parte, está presente em nossa memória discursiva e, com
certeza, também faz parte da memória do chargista, essa polêmica questão sobre os
salários. Outro discurso acionado na leitura dessa charge diz respeito ao fato de serem
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1345
altos os salários dos políticos, principalmente se comparados ao valor recebido pelo
trabalhador comum (podemos apoiar esse argumento nas imagens da charge).
Esses conhecimentos prévios, assim como já vimos fazendo anteriormente,
configuram-se como o ponto de partida basal sobre o qual se detém o chargista na
produção de seu discurso. São os discursos com os quais ele dialoga e que fazem de seu
discurso heterogêneo, múltiplo e dialógico.
O material linguístico fornecido é de extrema relevância para o direcionamento
do(s) sentido(s) que podem ser extraídos na leitura da charge. Ao compararmos os
enunciados: 1) “salário de parlamentar” com o 2) “salário para lamentar” o jogo de
sentidos devido à proximidade fonética entre o lexema parlamentar e os lexemas para
lamentar funcionam como orientadores do discurso. Essa materialidade linguística,
inclusive, põe em cheque a total inconsciência do sujeito que produz o discurso.
Entendemos, a partir das análises apresentadas, terem ficado claras as marcas do
outro/Outro, porém, tomando por referência o trabalho de Possenti (2002), entendemos
que, do mesmo modo, estão mostradas as marcas desse sujeito que trabalha com a
língua(gem), visando promover a materialização de seu discurso, mesmo que não seja
possível negar o diálogo desse discurso com o discurso do outro/Outro.
Considerações Finais
Esperamos, com as análises propostas, ter sido possível mostrar como o material
linguístico é decisivo na constituição e orientação da materialidade discursiva. Em
alguns momentos, inclusive, sendo possível falar num diálogo entre o eu e o
outro/Outro como se houvesse uma consciência (talvez seja ilusão) de que este eu é
produtor (autor) do seu discurso.
Com base no que fora exposto, é importante também ressaltar a importância do
trabalho com os gêneros do humor, dentre eles a charge, no espaço de sala de aula.
Partindo da presunção de que a linguagem é interação, um modo de ação social, um
lugar de conflitos e de controle ideológico, as charges (e também outros gêneros do
humor) se constituem numa fonte inesgotável e, por que não, irresistível, tanto para a
demonstração quanto para a compreensão dos mecanismos linguísticos e das ideologias
que se utilizam do discurso humorístico. Como vimos, são textos que se tornam em
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1346
verdadeiros laboratórios para demonstrar a relevância dos fatores linguísticos e
discursivos.
O papel do professor é decisivo nesse aspecto, ainda mais se intencionarmos um
ensino de língua reflexivo e que aproxima o aluno das realidades de uso da linguagem.
Conforme Ilari e Geraldi (2006)
(...) precisamos esquecer as classificações morfossintáticas tradicionais e
fixar nossa atenção nas condições de uso; [isso demonstrará] que há interesse
em contar com categorias descritivas que dizem respeito menos à sintaxe ou
ao conteúdo objetivo das frases, e mais ao seu possível uso na interação dos
locutores. (ILARI & GERALDI, 2006; 80).
Portanto, dominar os recursos linguísticos de uma língua não somente auxilia o
produtor do discurso como também o leitor deste discurso, uma vez lhe permitir fazer
uma leitura crítica do texto, levando-o ao desenvolvimento reflexivo na língua.
Referências
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enunciativo do sentido. – Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.
ÁVILA, Fernanda Góes de Oliveira. Análise do discurso humorístico: as condições de
produção das piadas de Joãozinho. – Monografia, – Universidade Estadual de
Campinas. Campinas, 2002.
FERRAZ, Mônica Mano Trindade. Ensinando com textos de humor: sugestões de
leitura do gênero charge. In: PEREIRA, Regina Celi Mendes (org.). A didatização de
gêneros no contexto de formação continuada em EaD. – João Pessoa: Editora
Universitária/UFPB, 2012. (p. 95-124).
ILARI, Rodolfo & GERALDI, João Wanderley. Semântica. – 11. ed. – São Paulo:
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MUSSALIM, Fernanda. Análise do Discurso. In: MUSSALIM, Fernanda, BENTES,
Anna Christina. Introdução à linguística: domínios e fronteiras, volume 2. – 8ª. Ed. –
São Paulo: Cortez, 2012 (p.113-165).
PILLA, Armando, QUADROS, Cynthia Boos de. Charges: uma leitura orientada pela
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Acesso feito em: 01 JUN 2014.
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POSSENTI, Sírio. O humor e a língua. Ciência Hoje, vol. 30, nº 176, p. 72-74, 2001.
Disponível em: <http://aescritanasentrelinhas.d3estudio.com.br/wp-
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RASKIN, Victor. Semantic Mechanisms of Humor. In: Studies in Linguistic and
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SOUSA, Maria Ester Vieira de. O eu e o outro eu: as astúcias do sujeito e o
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or_pela%20linguistica.pdf. Acesso em: 03 SET 2012.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1348
EQUÍVOCOS E CONTROVÉRSIAS DO LIVRO
DIDÁTICO SOBRE O ENSINO DE GÊNEROS PARA O
ENSINO FUNDAMENTAL [Voltar para Sumário]
Josefa Maria dos Santos (UPE)
Maria Alcione Gonçalves da Costa (UPE)
Introdução
Durante muitos anos, a concepção de ensino de língua que norteou o processo
educacional esteve focada na decodificação do signo. Entendia-se que para ler e
escrever era necessário que o aprendiz fosse capaz de formar sílabas, juntá-las para
compor as palavras e depois as frases. Essa compreensão passou, por volta da década de
80, a ser questionada e entre as críticas mais frequentes a esse modelo de ensino,
segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN, 1998, p. 18), destacavam-se: a
excessiva escolarização das atividades de leitura; o uso do texto como expediente para
ensinar valores morais e como pretexto para o tratamento de aspectos gramaticais; o
ensino descontextualizado da metalinguagem, normalmente associado a exercícios
mecânicos de identificação de fragmentos linguísticos em frases soltas.
Porém, ao longo do tempo, a compreensão textual passou a ser vista de maneira
indissociável da relação autor-texto-leitor, visto que é “no uso efetivo da língua e de
modo especial no texto em sua relação com seu leitor ou ouvinte que o sentido se
constitui” (MARCUSCHI, 2008, p. 234). Assim sendo, os textos pré-fabricados, isto é,
especialmente construídos para o aprendizado da leitura sofreram muitas críticas, e em
vista disso, muitos documentos oficiais foram reformulados.
No final da década de 90, com a publicação dos PCN, os livros didáticos tiveram
que se adequar às novas exigências educacionais de forma a proporcionar aos estudantes
e professores um contato mais efetivo com gêneros de diferentes esferas comunicativas.
Contudo, é imperativo frisar que as ‘mudanças’ no livro didático quanto ao ensino de
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1349
gênero já vinham ocorrendo muito antes dos PCN ou do PNLD (Programa Nacional do
Livro Didático) exigirem. Em 1987, Geraldi já alertava os professores sobre a “roupa
nova” de alguns livros didáticos que cada vez mais habitavam o espaço escolar. Hoje,
mesmo diante das novas tecnologias e dos infindáveis recursos cada vez mais
sofisticados, o livro didático ainda assume, seja por lacunas na formação ou pela
elevada carga horária dos professores, posição preponderante nas aulas, prescrevendo o
que, como e quando se deve ensinar. Quanto a isso Geraldi (1997) é categórico ao
afirmar que o livro didático despontaria como a solução para o despreparo do professor,
bastando oferecer-lhe um livro que sozinho ensinasse aos alunos tudo que fosse preciso.
No entanto, não é interesse dessa pesquisa culpabilizar o livro didático pelos
baixos índices educacionais, uma vez que sua entrada no espaço escolar deveu-se à
necessidade de suprir as deficiências estruturais e pedagógicas de ensino, como nos
apontam Buzen e Rojo (2005), nem tão pouco justificar o mau uso desse instrumento
pedagógico por parte dos professores. Nosso interesse é lançar um olhar sobre a
proposta de ensino de gêneros constante no livro didático do 9º ano da coletânea
Singular e Plural (2012), das autoras: Laura de Figueiredo, Marisa Balthasar e Shirley
Goulart, identificando a perspectiva de gênero que a fundamenta e se atividades
propostas possibilitam ao educando a inserção nos mais diversos contextos de uso social
da língua.
A escolha da coleção justifica-se por três fatores que levamos em consideração
no momento de definirmos o corpus a ser analisado: a proposta organizacional
diferenciada das demais coleções constantes do PNLD (2013); o parecer sobre essa
coleção constante no guia para escolha do livro didático (PNLD) e o número
considerável de distribuição em 2014 (1.251.956 exemplares da coleção).
Para análise do corpus, utilizamos o exemplar do professor e dividimos o
trabalho em quatro etapas: inicialmente fizemos um levantamento dos gêneros textuais
que compõem a coleção e a recorrência de cada um deles, em seguida agrupamos os
gêneros a partir de seus respectivos domínios. Na terceira etapa analisamos as propostas
de atividades da coleção acerca da compreensão dos gêneros textuais e, por fim,
fizemos uma análise comparativa entre os princípios teóricos e metodológicos,
destinados ao professor na parte final do livro, e as atividades sobre os gêneros textuais
propostas pela coleção. Para isso, baseamo-nos nos estudos de Marcuschi (2008),
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1350
Bakhtin (2011), Bazerman (2006) e no que preveem os PCN (1998), para o ensino de
língua portuguesa, que embora não sejam objetivos quanto à aplicabilidade dos gêneros
em sala de aula, traçam as diretrizes para o ensino de língua materna e direcionam o
processo de produção do livro didático.
1. Os gêneros textuais como objeto de ensino da língua e a contribuição dos PCN
As discussões envolvendo o ensino dos gêneros textuais não são recentes nem
consensuais, por isso apesar da grande quantidade de estudos a respeito da temática,
ainda, precisamos alinhar a teoria à prática, possibilitando uma real apropriação da
maior variedade possível dos gêneros textuais por parte dos alunos. Embora tenhamos
muito a avançar no que se refere ao ensino formal dos gêneros textuais, fica cada vez
mais evidente que eles são o principal objeto do ensino de Língua Portuguesa (LP).
Os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua portuguesa (PCN) revelam
claramente uma aversão ao ensino tradicional da língua com base na “sequenciação de
conteúdos” (letras – sílabas – palavras – frases – textos), visto que reconhecem que o
objetivo do ensino da LP é levar o aluno a ler, interpretar e produzir diferentes textos
que circulam socialmente em diferentes situações comunicativas. E não é só isso, os
PCN também revelam que “O produto da atividade discursiva oral ou escrita que forma
um todo significativo, qualquer que seja sua extensão, é o texto [...]” (PCN, 1998, p.
21).
Ao definir o texto como “o produto” da atividade comunicativa tanto oral quanto
escrita, os documentos oficiais levam em consideração a noção de texto da linguística
textual (LT) a qual, de acordo com Marcuschi (2008, p. 71), sustenta a ideia de que o
texto é “o único material observável”. No entanto, é importante salientar que reconhecer
o texto como “produto” e como “material observável” não implica na ideia de um
ensino de texto fundamentado em um conjunto de regras estanques, pois diante da
infinidade de gêneros textuais que circulam socialmente isso seria impossível. Na
verdade, os estudiosos da LT defendem o posicionamento de que o texto precisa ser
estudado em seu funcionamento, visto que ele “não é simplesmente um artefato
linguístico, mas um evento que ocorre na forma de linguagem inserida em contextos
comunicativos” (MARCUSCHI, 2008, p. 75, 76).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1351
Como Bezerra (2014) aponta que a definição dos termos “gênero textual” e
“texto”, muitas vezes, apresenta problemas entre estudantes de graduação e professores
da educação básica por sua proximidade conceitual, consideramos pertinente reforçar o
posicionamento de Marcuschi (2008, p. 154) sobre o fato de que “toda a manifestação
verbal se dá sempre por meio de textos realizados em algum gênero”. Dessa forma,
percebemos que, apesar da proximidade conceitual, não podemos utilizar os termos
“gênero” e “texto” como sinônimos, visto que, segundo Bezerra (2014, p. 3) isso seria
um equívoco:
[...] o gênero não deveria ser confundido com o texto que o “materializa”. Na
realidade, esse modo de descrever o fenômeno, bastante comum na literatura
especializada, pode se revelar bastante enganoso. Em que sentido o gênero
“se materializa” no texto? Penso, antes, que do gênero jamais se pode dizer
que “se materializa”. Apenas o texto pode ser descrito como tendo um
aspecto “material” ou uma materialidade linguística.
Dessa forma, percebemos que o texto é a materialidade linguística (oral e
escrita) dos gêneros textuais que, na visão bakhtiniana (2011, 262), são definidos como
modelos de enunciados “relativamente estáveis” construídos socialmente.
A publicação dos PCN LP marcou uma fase importante do ensino no Brasil, pois
além de intensificar as discussões sobre os gêneros textuais entre professores e
estudiosos da área, contribuiu para mudanças no ensino que tende, cada vez mais, a
distanciar-se da análise de frases soltas, desconectadas do texto. Além disso, segundo
Souza (2011, p. 44):
Com a publicação dos PCN de Língua Portuguesa (BRASIL, 1998), os LD
começaram a prever a inserção do estudo dos gêneros. E a obediência aos
PCN tornou-se inclusive uma exigência, uma vez que a avaliação e
aprovação dos LDLP submetidos ao PNLD tinham como um dos critérios a
abordagem dos gêneros textuais.
A inclusão dos gêneros textuais no livro didático (LD) é, sem dúvida, um
importante passo para o ensino da língua, visto que redireciona o foco do ensino das
regras gramaticais da norma padrão, muitas vezes, vistas em frases desconexas para o
ensino dos gêneros textuais, levando em consideração a leitura, a escrita e os aspectos
linguísticos. No entanto, a inclusão dos gêneros nas aulas de LP e no LD não é
suficiente para a efetivação do objetivo que tanto desejamos: que ao longo dos oito anos
do Ensino Fundamental "cada aluno se torne capaz de interpretar diferentes textos que
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1352
circulam socialmente, de assumir a palavra e, como cidadão, de produzir textos eficazes
nas mais variadas situações” (PCN, 1998, p. 19). Para que isso aconteça, precisamos
superar muitos entraves, sendo a falta de alinhamento entre teoria e prática um dos
principais, especialmente, quando se trata dos LD, visto que eles, infelizmente, ainda
são a principal ferramenta utilizada pelos professores nas aulas de LP.
2. Descrição e análise da coleção analisada
Como dissemos na introdução, a coleção analisada apresenta uma organização
diferenciada das demais coleções constantes no PNLD 2013. O livro divide-se em três
cadernos, sendo o primeiro de Leitura e Produção Textual, o segundo de Práticas de
Literatura e o terceiro de Estudos da Língua e Linguagem, os quais se subdividem da
seguinte forma: o primeiro caderno organiza-se em torno de três unidades intituladas de
“mudança e transformação”, “diversidade cultural”, “não é brincadeira: o problema do
trabalho infantil” (em cada unidade desse caderno encontramos também atividades de
produção escrita e oral, articuladas com a temática e o gênero explorados na leitura); o
segundo apresenta uma única unidade, intitulada “Entre leitores e leituras: práticas de
literatura” e por fim temos o terceiro caderno também organizado em três unidades
intituladas de “Língua e linguagem”, “Língua e gramática normativa”, e “Ortografia e
pontuação”.
Para uma análise mais sistemática dos gêneros textuais presentes na coleção,
fizemos a catalogação dos gêneros nos três cadernos, observando também o número de
recorrência em cada um: no 1º caderno, constatamos a presença de 20 gêneros com 101
recorrências; no 2º, verificamos um número menor, 13 gêneros e 31 recorrências; e no
último caderno, 21 gêneros e 79 recorrências. Para melhor ilustrar isso, produzimos um
quadro geral no qual podemos observar os gêneros selecionados para o 9º ano do ensino
fundamental, bem como aqueles mais recorrentes.
Figura 1
Ord. Gêneros textuais Recorrências
01 Boxe explicativo 58
02 Tira 21
03 Artigo científico 17
04 Verbete de dicionário 15
05 Biografia 14
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1353
06 Artigo de opinião 11
07 Sinopse 9
07 Poema 8
09 Reportagem 8
10 Letra de música 6
11 Resenha 5
12 Anedota 5
13 Notícia 4
14 Texto dramático 4
15 Manchete 4
16 Anúncio publicitário 3
17 Pauta 3
18 Crônica 2
19 Auto 2
20 Comunicação oral 2
21 Conto 2
22 Fábula 2
23 Resumo 2
24 Capa de livro 1
25 Carta de reclamação 1
26 Cartoon 1
27 Cordel 1
28 Depoimento 1
29 Editorial 1
30 Entrevista 1
31 Gráfico 1
32 Mito 1
33 Placas de trânsito 1
34 Propaganda 1
35 Romance 1
Total de Recorrências 219
Ao analisarmos a figura 1, percebemos que o livro apresenta uma boa
diversidade de gêneros: são 35 gêneros com 219 recorrências, o que consideramos um
ponto positivo. No entanto, Marcuschi (2008) nos leva a questionar, a partir do que
coletamos, o seguinte: será que existe algum gênero ideal para o tratamento em sala de
aula? Ou ainda, será que existem gêneros que são mais importantes que outros? Para as
autoras do livro Singular e Plural parece que sim, pois se observamos as recorrências,
percebemos que os gêneros tira, artigo científico, verbete de dicionário e artigo de
opinião têm um grande destaque na coleção, enquanto os gêneros editorial, carta de
reclamação ou propaganda aparecem uma única vez.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1354
Temos consciência de que o universo de gêneros parece ser ilimitado, mas a
quem compete dizer quais gêneros são os mais indicados para a realidade social no qual
a comunidade estudantil está inserida? Marcuschi (2008) faz uma importante reflexão
sobre a questão ao afirmar que:
Uma análise dos manuais de ensino de língua portuguesa mostra que há uma
relativa variedade de gêneros textuais presentes nessas obras. Contudo, uma
observação mais atenta e qualificada revela que a essa variedade não
corresponde uma realidade analítica. Pois os gêneros que aparecem nas
seções centrais e básicas, analisados de maneira aprofundada são sempre os
mesmos. Os demais gêneros figuram apenas para ‘enfeite’ e até para
distração dos alunos. (MARCUSCHI, 2008, p. 207).
A partir da crítica feita pelo autor, fizemos uma análise mais atenta do
tratamento dado aos gêneros na coleção e percebemos que embora a tira tenha sido
recorrente, não é explorada de maneira mais aprofundada, pois sua recorrência maior
(18) acontece no terceiro caderno, no qual é utilizada apenas como mote para a análise
de aspectos linguísticos e gramaticais. Enquanto isso, os gêneros artigo de opinião e
reportagem, por exemplo, aparecem com grande destaque nas seções de leitura e
produção.
Após catalogar os gêneros, fizemos uma análise, com base em Marcuschi
(2008), dos respectivos domínios discursivos, com isso, percebemos que os gêneros dos
domínios ficcional, instrucional e jornalístico são predominantes na coleção, enquanto
que gêneros dos domínios religioso, comercial, jurídico, entre outros, não aparecem.
Figura 2
Os domínios discursivos são definidos por Marcuschi (2008, p. 194) como
esferas da vida social ou institucional nas quais “se dão as práticas que organizam
formas de comunicação e respectivas estratégias de compreensão”. É evidente que
alguns domínios além de serem mais produtivos em quantidade de gêneros, ganham
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1355
maior prestígios no âmbito escolar, sendo, portanto, mais explorados. Mas se pensarmos
na formação do indivíduo, percebemos que essa (des)valorização dos domínios não
contribui para o que preveem os PCN (1998, p. 23) ao afirmar que é “necessário
contemplar, nas atividades de ensino, a diversidade de textos e gêneros, e não apenas
em função de sua relevância social, mas também pelo fato de que textos pertencentes a
diferentes gêneros são organizados de diferentes formas”. Com isso, não queremos
negar a existência de uma maior relevância de determinados domínios em nossa cultura,
o que questionamos é a presença demasiada de gêneros de um domínio em detrimento
de outros.
3. A concepção de gênero textual no LD
A influência dos PCN na construção do LD parece não se restringir à inclusão
dos gêneros textuais como objeto de ensino da LP, mas também nas concepções de
língua e gênero textual que os fundamentam as quais são oriundas da teoria bakhtiniana.
Dessa forma, percebemos que o LD torna-se uma extensão teórica dos PCN, tornando-o
palpável ao professor o que a princípio é um fator positivo, pois além de ser uma
ferramenta de transposição didática, o LD, se for bem explorado pelo professor, torna-se
um material de apoio à formação docente, possibilitando o acesso às principais
discussões referentes ao ensino da LP.
Na coleção “Singular & Plural: leitura, produção e estudos de linguagem”, as
autoras confirmam essa predisposição dos LD em seguir o viés teórico dos PCN,
adotando, pois, a concepção bakhtiniana de linguagem como “produto e forma de
interação verbal” e a concepção de gêneros como “formas relativamente estáveis de
enunciados” que circulam socialmente. Além disso, as autoras também dialogam com a
teoria de aprendizagem socioconstrutivista de Vygotsky (1992), reconhecendo de forma
explícita que o conhecimento é também um produto das relações sociais; com os
estudos retóricos de gênero, ao reconhecer que os gêneros se articulam uns com os
outros nas diversas situações comunicativas, formando uma espécie de “sistema de
gêneros” (BAZERMAN, 2006), com vistas a ações sociais; e com os estudos sobre os
múltiplos letramentos, concordando com Soares (1998) a respeito do fato de que o ler e
o escrever não torna uma pessoa letrada, pois “letramento é o que as pessoas fazem com
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1356
as habilidades de leitura e de escrita, em um contexto específico, e como essas
habilidades se relacionam com as necessidades, valores e práticas sociais” (1998, p. 72).
Ao analisarmos o aporte teórico usado pelas autoras na construção do manual
do professor, percebemos que elas buscam aproximar diferentes tendências de estudos
de gênero tais como a perspectiva dialógica da linguagem de base bakhtiniana e os
estudos retóricos de gênero (ERG). O diálogo entre essas duas tendências, presente na
coleção, é um elemento positivo, visto que as concepções de gênero que as
fundamentam não são díspares, mas complementares, pois tanto a abordagem de
Bakhtin quanto os ERG reconhecem os gêneros como tipos/tipificações construídas
historicamente dentro de uma dada situação comunicativa, com vistas a uma
ação/atividade social.
Dessa forma, percebemos que a coleção está fundamentada em teorias de
gêneros consistentes e atuais o que nos leva a pensar que o ensino de gênero estará
fundamentado em situações comunicativas reais ou próximas das reais e que objetivem
preparar o aluno para a participação nas diversas práticas sociais que envolvam a leitura
e a escrita.
4. Controvérsias entre a teoria e a prática do livro didático
4. 1. Controvérsia 1
Para as autoras, a divisão da coleção em três cadernos não implica em um ensino
fragmentado dos saberes da disciplina (leitura e escrita, literatura, aspectos linguísticos),
pois elas afirmam, na apresentação da coleção, que os componentes de cada caderno
não serão tratados de maneira estanque, mas sim de maneira articulada. E como
possibilidade para a articulação dos cadernos, há um quadro no manual do professor
(p.31) que sugere como o trabalho deve ser encaminhado.
Figura 3
Caderno de Leitura e
Produção
Cadernos de estudos
de língua e linguagem
Caderno de práticas
de literatura
Semana 1 2 aulas 2 aulas 1 aula
Semana 2 3 aulas 1 aula 1 aula
Semana 3 3 aulas 2 aulas -
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1357
Semana 4 4 aulas - 1 aula
Fonte: Coleção Singular & plural
Porém, ao analisarmos as atividades presentes nos três cadernos, percebemos
que não há diálogo algum entre elas. Dessa forma, verificamos que a “articulação” dos
cadernos, de acordo com a proposta das autoras, reduz-se ao planejamento semanal, o
que, a nosso ver, fragmenta ainda mais o ensino, pois é como se ao ensinar leitura e
produção, não pudéssemos ensinar literatura e análise linguística e vice-versa. Na
primeira atividade do caderno 1 (p. 18, 19, 20), após a leitura e discussão da reportagem
“Adolescentes engravidam para segurar os parceiros”, temos dois blocos de atividades
distribuídos em duas seções: a primeira, intitulada de “primeiras impressões”, é
composta de 10 questões; e a segunda, “o texto em construção”, possui 3 questões das
quais apenas uma é voltada para a análise de recursos linguísticos, no caso, o uso do
discurso direto e indireto no gênero em estudo.
Diante disso, fica evidente que a divisão do ensino de língua portuguesa em
blocos, na verdade, configura-se como uma organização equivocada, já que parece ser
consenso entre os estudos mais recentes, a necessidade de um ensino de língua
integrado que englobe leitura, análise linguística e produção numa mesma perspectiva, e
não que as separe radicalmente de forma estanque e desarticulada. A própria equipe de
avaliadores do PNLD (2013) focaliza essa questão afirmando que a separação entre
textos literários e não literários em cadernos diferentes constitui um ponto fraco da
coleção.
4. 2. Controvérsia 2
Outra controvérsia presente na coleção é o fato de que nem sempre há coerência
entre a proposta teórico-metodológica direcionada aos professores sobre o ensino da
leitura e as atividades direcionadas aos alunos. No manual do professor, as autoras
afirmam que “as atividade de leitura estão presentes em todos os cadernos de cada
volume” (p. 12), porém, na unidade 2 do caderno 3, percebemos que há uma
predominância de atividades metalinguísticas e os gêneros são usados apenas como
fonte de extração de exemplos para os aspectos gramaticais abordados.
Ao iniciar o estudo das orações subordinadas substantivas, as autoras abrem a
seção com a tão conhecida canção “Quero” de Thomas Roth, interpretada por Elis
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1358
Regina (p. 220), canção que traz no seu bojo discussões sociais e humanas muito atuais,
mas que serve apenas de mote para localizar informações gramaticais no texto como
podemos ver nas questões a seguir:
Figura 5
Dessa forma, fica evidente que o ensino dos gêneros textuais é um grande
desafio para professores e estudiosos na atualidade, especialmente, quando verificamos
que professores/pesquisadores afinados com as discussões teóricas atuais ainda
apresentam dificuldades na elaboração de atividades sobre os gêneros textuais que
contemplem as múltiplas categorias que lhe são subjacentes.
Considerações Finais
A investigação realizada no corpus, permite-nos afirmar que a proposta de
ensino de gêneros no livro didático Singular e Plural não contempla, em sua totalidade,
a teoria de gênero baseada na perspectiva dialógica da linguagem conforme aponta no
material teórico constante no manual do professor. A expectativa gerada em torno das
propostas do ensino de leitura e compreensão textual não se confirma, visto que o
conhecimento fica fragmentado: ora analisam-se aspectos estruturais do gênero, visando
a sua leitura e produção; ora observam-se questões de análise linguística dissociadas do
uso e do contexto, prevalecendo, dessa forma, uma perspectiva de ensino de língua em
que o domínio do código é prioridade em detrimento dos conhecimentos sócio-
interativos.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1359
Assim, verificamos que, nas atividades de análise linguística, os gêneros, usados
como pretexto, não ultrapassam os limites da norma desvinculada dos usos. Com isso, a
qualidade da atividade desenvolvida fica a cargo do professor que precisará buscar
formas de diálogos entre os cadernos ou até mesmo entre os textos da unidade, pois há
um hiato entre o que as autoras prometem fazer e o que de fato põem em prática em
forma de proposta de leitura e análise de gênero.
É fato que não há livros didáticos completos, que não careçam da intervenção do
professor e, provavelmente, as autoras esperam do mediador uma atuação que
complemente as propostas indicadas para os alunos. Contudo, diante do que já está
posto sobre os problemas na formação, a alta carga horária e falta de formações
contínuas para os professores da rede pública, talvez essa intervenção não se dê de
forma fácil ou de forma a suscitar um ensino com vistas à efetiva apropriação do uso
dos mais diversos gêneros que circulam socialmente por parte dos estudantes.
Portanto, pensando na quantidade de volumes distribuídos no ano de 2014
(1.251.956 unidades) de acordo com os dados do PNLD ( 2014), torna-se urgente uma
reflexão acerca de como utilizar um material que de certa forma não consegue efetivar
na prática as discussões teóricas atuais sobre ensino de gênero, quando apresenta um
material didático que fragmenta a aprendizagem. No que se refere à coleção Singular &
Plural, acreditamos que torna-se imperativo ao professor aprofundar a leitura da base
teórica do manual do professor para que, ao desenvolver as atividades propostas para os
alunos, possa suprir as lacunas deixadas pela divisão dos saberes da disciplina,
aproximando as atividades de reflexão linguística das de leitura e compreensão textual.
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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1361
A TÉCNICA DO MONÓLOGO INTERIOR NA
CONSTRUÇÃO DO SER DA FICÇÃO EM ANGÚSTIA, DE
GRACILIANO RAMOS [Voltar para Sumário]
Josivaldo Silva Menezes1 (UPE)
É nítida, e não é de hoje, a relação que a Literatura estabelece com os mais
diversos campos de conhecimento. Podendo dessa maneira, reconhecer a contribuição
das áreas de conhecimento para se compreender o homem e o mundo que o cerca e
expondo ao mesmo tempo tanto o que é vivido quanto aquilo que é desejado expressar.
Frente às áreas de conhecimento às quais o campo literário tem se relacionado,
comumente a Filosofia, História e Linguística, é notado o quanto o espaço artístico
contemporâneo tem explorado e estabelecido um diálogo com a Psicanálise. E isto se
deve ao advento da psicanálise, junto aos estudos e teorias desenvolvidas por Freud no
início do século XX, com influência no âmbito literário, uma vez que a “análise dos
conflitos internos” do homem passam a estar cada vez mais presentes nas produções
literárias.
Com as mudanças ocorridas logo após as duas primeiras décadas desse período,
tendo o romance brasileiro sofrido modificações significativas e ressurgido renovado
desamarrando-se dos moldes tradicionais e do sentimentalismo “puro e ingênuo”, aqui
não será mais permitido o subjetivismo inocente de outrora. Agora o romance esta
repleto de dureza, secura, rispidez, enxugamento da linguagem e análises profundas do
comportamento do homem, abordando uma mistura de análise social, política e
psicológica.
Os anos de 1930, ao qual a obra Angústia está localizada, sendo uma narrativa
atemporal, será um dos períodos em que o campo artístico, cultural, político e social
encontra rupturas não apenas no cenário nacional. E principalmente na maneira como o
1 Graduado em Letras pela UFRPE/UAG e Pós-graduando Latu Sensu em Ensino de Língua Portuguesa e
suas Literaturas pela UPE
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1362
campo ideológico que se encontrava em constante efervescência e caos político
influenciaram e contribuíram no fortalecimento do gênero prosa do século XX. Essas
mudanças ocorridas serão absorvidas por artísticas e intelectuais da época que se
mostravam bastante preocupados em desmascarar as mazelas da sociedade. Portanto,
Graciliano Ramos ganha destaque no espaço social e artístico, uma vez que acompanha
de perto a situação do país e busca expor uma realidade mascarada e até então
desconhecida, a saber, a injustiça, a opressão, submissão e exploração dos “menos
favorecidos”, o que, por sua vez, reflete um país de indivíduos sofridos, miseráveis,
indefesos e vítimas de sua própria situação e em conflitos de identidades com seus
mundos exteriores e interiores.
Esse novo olhar que é dado às narrativas modernas tende a examinar não apenas
a construção do ser da ficção, mas também exercem a função de registrar os dramas que
têm lugar dentro da consciência individual dos seres. Levando em conta as
problemáticas que o homem vive por meio da interação com o outro, ou como no caso
de alguns personagens de obras da literatura nacional, como ocorre em Angústia, pela
tentativa “desconfiada” e “desajeitada” de se relacionar com o outro. Dessa maneira
pode-se notar que as movimentações iniciadas, em pleno período de 1930, tanto por
escritores brasileiros quanto estrangeiros, contribuíram em técnica e conteúdo (forma)
na solidificação e amadurecimento da prosa realista.
O diálogo fixado pela Literatura e o campo psicológico, permitirá, portanto, ao
leitor se defrontar com o mundo “interior” dos seres que povoam as narrativas, de
maneira que se possa muitas vezes explorar um universo em fragmentação, detrimento e
realidade estilhaçada. E ao mesmo tempo, ocorre o contato direto com um tipo de
narrativa recheada de técnicas diversas que proporcionam às personagens um papel
importantíssimo dentro do ambiente narrativo, uma vez que a elas serão permitidas
exprimirem as angústias e crises interiores e que lhes causam as mais diversas
sensações.
Moraes Schirato (2011), em seu artigo O papel do monólogo interior na
construção da personagem no conto “Felicidade”, de Virginia Woolf, afirma que os
personagens desses “novos romances” também adquiriram um novo perfil, pois
passaram a exprimir aquilo que acontecia no interior de si mesmas. Em algumas obras,
foi tamanha a importância dada aos personagens e aos conflitos por eles vivenciados
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1363
(internos e externos) que estes acabaram se tornando foco de muitos autores ao elaborar
suas produções.
É partindo dessa maneira de ver o mundo que o romancista constrói um universo
que percorre do mais simples ao mais complexo. E as mudanças ocorridas no campo da
psicologia permitem que o homem possa ser visto à luz da sua interioridade, ou seja, na
maneira como a sua relação com o outro auxilia ou interfere em seu mundo interior.
Criando muitas vezes um emparedamento social e psicológico que é reflexo da busca
incessante de pertenciamento de lugar, sendo o ser da ficção o responsável por
transmitir ao leitor esse choque conflitante que é o seu universo interno.
No que se remete a “análise mental” dos personagens, o século XX é o
responsável por grande parte das mudanças conceituais dos romances, período este que
se voltava em captar os mais diversos níveis de consciência (LEITE, 1994, p.66). Essas
mudanças garantiram um amadurecimento das narrativas, uma vez que partindo de
novas perspectivas traçadas pelos escritores era realizada uma análise aprofundada dos
comportamentos do homem moderno e que possibilitavam compreender a maneira
como as relações interpessoais, ou mesmo, a tentativa, muitas vezes mal sucedida, de se
relacionar com o mundo afetavam o seu desenvolvimento externo e interno, além de
esclarecer o quanto o ser da ficção tem se mostrado cada vez mais complexo e
contraditório em sua construção.
No rol da Literatura brasileira e contemporânea o romancista Graciliano Ramos
é um exemplo forte do quanto à relação de homem e mundo pode ser angustiante e de
como o ser da ficção é complexo em seus traços, uma vez que é na sua obra Angústia,
que o escritor permitirá ao seu leitor entrar em contato com uma narrativa densa e
introspectiva, trazendo todo um contexto recheado de inovações e técnicas que a fazem,
em seu conjunto, um trabalho cauteloso de enredo e espaços criados por um narrador
protagonista frustrado que planeja e realiza o ato de matar o seu opositor e que decide
contar todas as suas angústias por meio de um denso monólogo interior.
Graciliano Ramos como um romancista social não se preocupava em demonstrar
a mera e simples caracterização do pitoresco, em Vidas Secas, por exemplo, romance de
temática rural em que ele deixa de lado a narração na primeira pessoa e opta pelo
discurso indireto livre, já deixa transparecer a sua preocupação com a análise das
frustrações do homem diante das impossibilidades humanas e sociais. Contudo, se bem
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1364
observado, desde a publicação do seu primeiro romance (Caetés, de 1933) e de
posteriormente a São Bernardo, em 1934, o autor já dava atenção às adversidades e
conflitos do mundo interior. E caberá a Angústia ser a responsável pela movimentação
tanto conceitual quanto técnica em suas produções, uma vez que trazia à preocupação e
o cuidado em descrever também o psicológico do homem num período modernizado
(CANDIDO, 2006. p.102)
O romancista emprega o uso de algumas técnicas modernas para registrar as
amarguras, perturbações e conflitos vivenciados pelo narrador e protagonista entre elas
a técnica do devaneio, o fluxo de consciência e o monólogo interior, objetivando
desvendar as mazelas da alma.
É importante salientar que Graciliano Ramos não criou essas técnicas de
narração, porém seria ele um inovador destes mecanismos no contexto nacional, uma
vez que elas já haviam sido empregadas por outros romancistas, comumente Marcel
Proust, James Joice e Virginia Woolf na literatura estrangeira e por Machado de Assis,
na literatura brasileira, em seu romance Memórias póstumas de Brás Cubas.
Há em Angústia um rompimento do tempo de maneira cronológica que acaba
por diluir toda e qualquer forma de ascensão do homem que se encontra em conflitos
com sua própria existência, pertencente a comunidade que tanto o exclui quanto o
aprisiona. Este homem que vive de maneira cada vez mais reclusa em um ambiente
asfixiante e em detrimento, onde a degradação da sua mente tem controle de sua vida.
Em seu ensaio Os bichos do subterrâneo, Antônio Candido (2006,p. 113) afirma
que na narrativa dessa obra o autor substitui a narrativa épica tradicional, com o uso
pertinente do monólogo interior, junto ao tríplice tempo- "passado narrado, lembranças
e recordação da infância e devaneio do passado, e por fim, um tempo subjetivo
interior"- como forma de levar o leitor ao contato com o universo em estilhaçamento e
degradação do narrador protagonista Luís da Silva.
No que concerne a obras de caráter psicologizantes de Graciliano Ramos, o
crítico Antônio Candido (2006, p. 102) atenta para o fato de que as produções na
primeira pessoa do discurso - entre as quais Angústia se localiza - ganham destaque haja
vista que "constituem uma pesquisa progressiva da alma humana, no sentido de
descobrir o que vai de mais recôndito no homem [...] tentando descobrir o homem
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1365
subterrâneo". No geral, predomina a expressividade da linguagem e um profundo
caráter mórbido de auto criticidade e pessimismo.
Além de tudo sei que sou feio, Perfeitamente, tenho espelho em casa. Os
olhos baços, a boca muito grande, o nariz grosso. [...] E contrariei Pimentel
e Moisés, arranjei umas opiniões descabidas, porque realmente não sabia o
que eles estavam dizendo (RAMOS, 2007, p.41).
Daí a pouco lá ia de novo para o corredor, chegava à janela da frente, abria
o postigo. Olhava a rua. Mas não me voltava para direita. [...] a bichinha
sem vergonha devia andar ali por perto, saracoteando na calçada, indo
espiar a sala de D. Mercedes e os móveis de D. Mercedes (RAMOS, 2007,
p. 51).
Nos dois momentos citados acima, o narrador não esta verbalizando e sim,
monologando, sendo este um recurso bastante utilizado pelo romancista para expressar
o acentuado pessimismo e incertezas calcados no discurso do personagem. Dessa
maneira a narrativa ganha uma certa expressividade já que sendo uma narração em
primeira pessoa, o leitor estará diretamente em contato com "meias verdades" ou com
realidades retorcidas.
As técnicas empregadas por Graciliano Ramos, apesar de aparentemente visíveis
em sua narrativa, não são tão simples quanto aparentam. Em exemplo disso, toma-se a
distinção entre monólogo interior e fluxo de consciência, uma vez que geralmente uma
se encontra ligada a outra.
O monólogo é a forma direta e clara de apresentação dos pensamentos e
sentimentos dos personagens, recurso este muito antigo utilizado por Homero
em sua obra A Odisséia. Em determinados momentos dessa narrativa épica ao
leitor, por meio do monólogo, é permitida se defrontar com a força, a
coragem e o valor de Ulisses diante dos poderes e forças divinas.
(LEITE,1994, p. 67)
Já ao que se refere ao fluxo de consciência, o seu surgimento nasce da
necessidade de compreender os processos mentais de maneira não isolada, sem
fragmentação, ou seja, num fluxo contínuo e ininterrupto dos pensamentos. Seu termo
foi denominado pelo psicólogo William James e publicado no ano de 1890 em seu
trabalho Princípios da Psicologia.
A presença desse mecanismo de análise da mente do ser da ficção na Literatura é
forma de expressão direta do seu estado mental, manifestando ininterruptamente os
pensamentos. Quanto à sua estrutura, muitas vezes o leitor irá se deparar com um
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1366
discurso marcado pela falta de pontuação. Isso se deve com intuito de que o personagem
possa expor a densidade e profundidade de suas emoções internas.
Assim como o fluxo de consciência, nota-se que por meio do monólogo interior
a personagem também se conecta com o seu eu interior, contudo aqui ele estabelecerá
um contato mais direto consigo mesmo. Ele não tem domínio de suas percepções e
pensamentos, porém expressa em seu interior, de maneira livre e desimpedida, as suas
mais diversas emoções. Esse mecanismo, diferentemente do fluxo de consciência é mais
organizado no que concerne a lógica dos fatos e será o responsável pela reprodução dos
pensamentos do personagem no texto.
O monólogo interior implica um aprofundamento maior nos processos
mentais da narrativa deste século (XX). A radicalização dessa sondagem
interna da mente acaba deslanchando em um fluxo ininterrupto de
pensamentos que se exprimem numa linguagem cada vez mais frágil em
nexos lógicos. E que em muitos casos, é o deslizar do monólogo interior para
o fluxo de consciência (LEITE, 1994, p. 67-68)
Como se nota, as técnicas empregadas pelos romancistas desse período não são
tão simples, ocorrendo muitas vezes o deslanchar natural de um para o outro, uma vez
que os movimentos estabelecidos pela mente do ser se chocam com os fatos sucedidos.
A presença dessas técnicas na narrativa de Angústia posicionam-na
esteticamente em um patamar diferenciado de outras obras até então produzidas, haja
vista que Graciliano Ramos emprega nela elementos pertencentes aos romances
psicológicos e contemporâneos. Ela representa na Literatura Brasileira uma obra de
aspectos e estilos ambiciosos e até então inovadores pertinentes a técnica literária
nacional, cabendo ao monólogo interior, recurso bastante pertinente neste romance,
impor a reflexão aprofundada da alma conflitante do indivíduo Luís da Silva.
Tomando como um dos pontos importantes para a compreensão do papel
exercido pelas técnicas modernizantes empregadas nessa obra atemporal -
principalmente o monólogo interior – poder-se-ia se pensar no seguinte questionamento:
uma vez que as obras do chamado Romance de 30 são construídas em todo de um
profundo realismo e objetividade dos fatos, em romances como Angústia tem-se a
presença do subjetivismo da linguagem. Essa subjetividade na visão dos fatos
processados pelo personagem não seria talvez um problema para o realismo e
objetividade na narrativa?
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1367
Pelo contrário. Mesmo que os fatos aparentemente sejam dissolvidos pela
subjetividade, aqui encontra-se uma obra onde prevalece um "realismo profundo",
tratando ao mesmo tempo de uma realidade da sociedade brasileira, ou melhor dizendo,
de muitas problemáticas que cercam o indivíduo social, pessoal e economicamente em
conflito. Esse subjetivismo permite que o leitor se depare com um ser emparedado em
um universo "socialmente condicionado" pelo desequilíbrio e dissolução psicológica,
resultando em um homem desesperado, derrotado, desequilibrado e preso em uma
realidade estilhaçada e deformada (COUTINHO, 1978).
O monólogo interior trata-se, portanto do emprego de uma técnica visando
acentuar a realidade para melhor narrá-la (para reproduzí-la artisticamente) e
não da substituição da realidade essencial para reprodução mecânica de
associações mentais fetichizadas ou alegrias metafísicas. Em suma, em
Angústia, o monólogo interior é sempre um instrumento do realismo, nunca
um fim em si. (COUTINHO,1978, p. 103)
Para que não ocorra o enfraquecimento da objetividade dos fatos narrados, o
autor alagoano recorre ao recurso da ironia, pois é recorrente no protagonista de
Angústia a acentuada dissolução interior. Dessa maneira, por meio de uma personagem
auto-irônica se permite um distanciamento entre suas fantasias, desejos e aspirações
além de expor, com tom crítico e ao mesmo tempo sarcástico, sua vida miserável e
medíocre.
Esta vida monótona, agarrada à banca das nove ao meio dia e das duas às
cinco, é estúpida. Vida de sururu. Estúpida. Quando a repartição se fecha,
arrasto-me até o relógio oficial, meto-me no primeiro bonde da Ponta-da-
Terra (RAMOS, 2007, p. 10).
Trabalho num jornal. À noite dou um salto por lá, escrevo umas linhas. Os
chefes políticos do interior brigam demais. Procuram-me, explicam os
acontecimentos locais, e faço diatribes medonhas que, assinados por eles, vão
para a matéria paga. Ganho pela redação e ganho uns tantos por cento pela
publicação. [...] recebo de casas editoriais de segunda ordem traduções feitas
às pressas, livros idiotas, desse que Marina aprecia. Passo uma vista nisso,
alinhavo notas ligeiras e vendo os volumes no sebo. Alguns rapazes vem
perguntar-me: -Fulano é bom escritor, Luís? Quando não conheço fulano
respondo, sempre: É uma besta. E os rapazes acreditam. (RAMOS, 2007, p.
54-55).
A presença do monólogo interior permite, então, em Angústia, que o homem seja
mostrado diante de sua fragilidade e degradação, refletindo assim os valores do “herói
problemático” que é uma caracterização das personagens que habitam os grandes
romances do realismo crítico, sendo que as possibilidades de se ver livre e de
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1368
realizações passam a serem apenas possibilidades abstratas e irrealizáveis
(COUTINHO, 1978).
Os problemas internos que o protagonista irá enfrentar aumentam ao passo que
Julião Tavares, seu opositor, insiste em se fazer presente na vida dele. E intensifica
quando aquele toma o lugar de Luís na vida e coração de sua noiva Marina. Daí para
frente os seus monólogos desencadeiam sofríveis e intensas angústias.
Ora, foi uma vida assim cheia de ocupações cacetes que Julião Tavares veio
perturbar. Atravancou-me o caminho, obrigou-me a paradas constantes,
buliu-me com os nervos. Moisés entrava, puxava uma cadeira, sentava, abria
o jornal. Vinha Pimentel, amarelo, triste, silencioso. Seu Ivo, bêbedo,
acocorava-se a um canto e punha-se a babar, cochilando. Com exceção de
Tavares, nenhuma dessas pessoas me incomodava(RAMOS, 2007, p.55).
Ao chegar à Rua do Macena recebi um choque tremendo. Foi a decepção
maior que já experimentei. À janela da minha casa, caído para fora,
vermelho, papudo, Julião Tavares pregava os olhos em Marina, que, da casa
da vizinha, se derretia para ele, tão embebida que não percebeu a minha
chegada. Empurrei a porta brutalmente, coração estalando de raiva, e fiquei
em pé diante de Julião Tavares sentindo um desejo enorme de aperta-lhe as
goelas (RAMOS, 2007, p.91).
É claro que, como já foi mencionada anteriormente, a narrativa dessa obra não é
construída apenas pela presença do monólogo interior apesar deste ser uma técnica
predominante no texto. Contudo, ao que concerne a outras técnicas que constituem a
modernidade deste romance, pode-se citar também o fluxo de consciência auxiliando
nos momentos de devaneios e delírios. Na verdade o narrador em diversos momentos
relaciona fatos passados a momentos atuais e presentes num fluxo contínuo e confuso
de lembranças que se misturam e constroem um novelo cada vez mais complexo e
fechado.
Dr. Gouveia, Moisés, homem da luz, negociantes, políticos, diretor,
secretário, tudo se move na minha cabeça, como um bando de vermes, em
cima de uma coisa amarela e gorda e mole que é, reparando-se bem, a cara
balofa de Julião Tavares muito aumentada. Essas sombras se arrastam com
lentidão viscosa, misturando-se, formando um novelo confuso. Afinal, tudo
desaparece (RAMOS, 2007, p. 07-08).
A neta de D. Aurora iria ao cinema com os hóspedes que a convidassem. D.
Aurora balançaria os caracóis e as banhas excessivas. Dagoberto se agarraria
ao compêndio e ao esqueleto. Impacientei-me e falei ao bodegueiro, tentando
explicar-lhe as letras pretas manchadas de verde (RAMOS, 2007,p. 214-21).
Como estaria Julião Tavares? Procurei distingui-lo, avancei a cabeça para o
lugar onde supunha ter ele ficado. Um vulto quase imperceptível na escuridão
leitosa. O rosto encostado à terra, naturalmente. Como estariam os olhos
dele? Os olhos de seu Evaristo, que vi de longe, esbugalhavam-se. E a boca
se escancarava, mostrando a língua escura e grossa. Provavelmente Julião
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1369
Tavares tinha também os olhos muito abertos e o queixo desgovernado.–Mas
que diabo estou fazendo aqui?
Necessitava levantar-me, afastar-me depressa, entrar em casa, dormir.
(RAMOS, 2007, p.239).
Nesses fragmentos expostos, tem-se a constatação da presença do fluxo de
consciência, que assim como o monólogo interior, vem contribuir na construção
ficcional de Angústia e complexidade de seu protagonista. Com exceção do primeiro
fragmento, os demais expressam o quão perturbada e frágil se encontra a mente de Luís
da Silva, devido ao crime de assassinato por ele cometido. Observa-se o quanto ele sofre
com seus atos e na maneira como a realização do crime resulta em momentos de delírios
e perturbações incontroláveis. Há uma busca pela fuga da realidade, mas ela não o
permite fugir; e tudo em sua visão acaba se tornando deformada e angustiante.
Esses momentos finais da obra demonstram a pequenez e fragilidade de Luís da
Silva, se é que alguma vez ele tenha sido a imagem da “força”, já que sempre via-se
como “um molambo que a cidade puiu demais e jogou fora” (RAMOS, 2007, p.24).
Para tanto, o fluxo de consciência caminha lado a lado com a técnica do monólogo
interior em diversos momentos da narrativa, principalmente nos capítulos finais, pois o
adensamento psicológico não vem apenas demonstrar suas fraquezas como homem, mas
também como mecanismos definidores dos valores entre os dois mundos: o arcaico e o
moderno. Além do mais, demonstra a personalidade do homem contemporâneo que se
vê em conflitos eternos com a sociedade, mediante aos processos ideológicos do século
XX (e também dos dias atuais). Diante disso, percebe-se de que maneira esses processos
afetam ou contribuem em sua formação.
Referências
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Rio de Janeiro: Ouro Azul, 2006, 156pág.
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2)
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1998.
RAMOS. Graciliano. Angústia; posfácio de Silviano Santiago- 62ª ed.- Rio, São Paulo:
Record, 2007.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1370
SCHIRATO, Marina Nobre de. O monólogo interior na construção da personagem no
conto “Felicidade”, Virgínia Woolf.2011. Disponível em:
<www.mackenzie.br/fileadmim/ Pos-Graduacao/ ... / Artigo_ Marina. pdf. Acessado em
abril de 2012.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1371
A IMPORTÂNCIA DAS TIC NA FORMAÇÃO DE
PROFESSORES DE INGLÊS [Voltar para Sumário]
Joyce Rodrigues da Silva Magalhães (IFAL/UFAL-PPGLL/ObservU)
Adriana Nunes de Souza (IFAL)
A proposta de pesquisa descrita neste trabalho surgiu a partir do comentário de
um aluno e professor de inglês da Escola Regular sobre um projeto que aconteceu na
escola em que trabalha intitulado “semana sem giz”. Segundo o professor o projeto
tinha como objetivo principal incentivar os professores a utilizar outras formas de
conduzirem suas aulas. O professor reclamava que não aguentava mais não poder usar a
lousa e o giz, já que, segundo ele, o uso dessas ferramentas conteria o barulho e a falta
de atenção dos alunos.
É inconcebível compreender tal reclamação quando temos uma gama de
possibilidades de otimizar as aulas de Inglês nessa era digital. O advento das tecnologias
tem mudado a forma de agir, pensar e viver da sociedade atual, e porque não
afirmarmos que as Tecnologias da Informação e Comunicação (Doravante TIC) também
mudaram a forma de ensinar e aprender Língua Estrangeira, como é o caso da língua
Inglesa. No entanto, percebemos que alguns professores ainda resistem ao uso das TIC,
privando, assim, seus alunos de novas possibilidades de aprendizagem que possam ser
capazes de aproximar o ambiente escolar da realidade do aluno.
Paralelo a esse entusiasmo, acompanha-nos uma preocupação em lembrar da
graduação, em especial às poucas aulas de Inglês no laboratório de informática nas
quais alguns colegas, futuros professores, sentiam-se tímidos por estarem em um
ambiente diferente da sala de aula e sem muitas habilidades ao utilizar o computador
conectado à internet. Se aqueles alunos, futuros professores, sentiam-se intimidados
com aquela ferramenta tão útil à sua prática docente, como eles fariam uso de tal
ferramenta em suas aulas de Inglês? De que forma os formadores de professores estão
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1372
fazendo uso das TIC? Como os alunos-professores utilizam as TIC em suas práticas
docentes?
Diante de tantos questionamentos, sentimos a necessidade de analisar a relevância
de inserir as TIC no processo de formação de professores e refletir sobre a forma que o
letramento digital é desenvolvido em sala de aula, pois acreditamos não haver na matriz
curricular dos Cursos de Letras-Inglês do Estado de Alagoas uma disciplina direcionada
ao uso das TIC como ferramentas auxiliadoras do processo de ensino/aprendizagem de
Línguas. Pensamos que se houvesse uma disciplina direcionada à formação inicial de
professores dos Cursos de Licenciaturas, nesse caso Letras-Inglês, voltada ao uso das
TIC em sala de aula, talvez o ensino de línguas nas escolas públicas não fosse tão
defasado e limitado apenas ao suposto ensino/aprendizagem do verbo "To Be".
1.1 FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE INGLÊS
A formação de professores de Inglês tem sido um tema muito discutido nos
últimos anos no meio acadêmico. Esse interesse em pesquisar, compreender e superar as
dificuldades enfrentadas pelos professores em formação inicial e continuada se dá,
primeiramente, devido à expansão e importância da língua inglesa no mundo. Em
seguida, devido a constante busca por uma educação de qualidade, uma vez que os
professores transmitirão aquilo que aprenderam para os seus alunos. E por fim, pela
constante busca por uma matriz curricular mais adequada ao curso e um método mais
eficaz para o ensino de línguas.
Para Barcelos (2004), o crescimento no número de estudos sobre a formação dos
professores de línguas estrangeiras (LE) demonstra, ainda, um reconhecimento por parte
de pesquisadores em educação, principalmente em Linguística Aplicada (LA), da
necessidade de se compreender como o profissional que vai atuar nas salas de aulas está
sendo preparado para assumir essa responsabilidade.
Nesse processo constante em busca de uma formação de professores de
qualidade, várias pesquisas são desenvolvidas com o objetivo de esclarecer e propor
novos meios de formar professores. Em se tratando de formação de professores de
Inglês, destacamos uma pesquisa realizada por Ifa (2014) na qual se percebeu que uma
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1373
das recorrentes dificuldades enfrentadas por alunos era a falta de praticar o que
estudavam na Licenciatura e, principalmente, a distância entre a teoria e prática.
Assim, uma das grandes lacunas no processo de formação de professores,
observadas nas pesquisas, no que se refere aos cursos de Licenciatura, de um modo
geral, aponta para uma inadequação na realização de estágios. Nesse sentido,
percebemos que a disciplina de Estágio Supervisionado, a qual tem a função de
relacionar a teoria com a prática, não está cumprindo o que é proposto na ementa, nem
na grade curricular. A respeito da importância da prática na formação de professores,
Gatti (2003, p. 475) afirma:
Como se o professor pudesse ser professor sem ter refletido sobre educação,
sobre o desenvolvimento de crianças e jovens, sem ter feito um estágio
adequado, sem ter permanecido o tempo necessário em uma escola, sem ter
acompanhado o trabalho de outro professor, sem ter tido a chance de ensaiar
um trabalho com crianças ou adolescentes.
A respeito da inserção do licenciando no ambiente escolar, destacamos a
importância do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência – Subprojeto-
Inglês (Doravante PIBID-Inglês) para a academia. O foco principal do programa é
incentivar a formação de docentes em nível superior para a educação básica,
contribuindo para a valorização do magistério e elevando a qualidade da formação
inicial de professores nos cursos de licenciatura, através da integração entre educação
superior e educação básica.
Nesse programa, os alunos-bolsistas dedicam 20 horas semanais de trabalho no
subprojeto, dentre elas, 16 horas são dedicadas às aulas na área de formação em uma
das escolas conveniadas. Além de participarem de reuniões e congressos.
Outro protagonista desse projeto é o professor-supervisor, o qual deve, dentre
outras atribuições:
(1) estar efetivamente no exercício da função de professor da disciplina que
supervisionará no programa;
(2) Participar integralmente das atividades do PIBID, inclusive as específicas de
cada subprojeto, como reuniões na universidade;
(3) Dominar e consultar regularmente os dispositivos eletrônicos (e-mail, Moodle,
blog etc.) para o gerenciamento do programa e a comunicação entre os seus
participantes;
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1374
(4) Ajudar a elaborar e acompanhar o plano de atividades dos bolsistas PIBID,
promovendo a sua adequação à realidade escolar, em concordância com o professor
coordenador do subprojeto;
(5) Auxiliar os bolsistas e os professores coordenadores do PIBID na divulgação e
disseminação dos resultados do Programa em eventos acadêmicos.
Acreditamos que a adoção do PIBID-Inglês na formação inicial é uma oportunidade
de inserção dos licenciandos no cotidiano de escolas da rede pública de educação,
proporcionando-lhes oportunidades de criação e participação em experiências
metodológicas, tecnológicas e práticas docentes de caráter inovador e interdisciplinar
que busquem a superação de problemas identificados no processo de ensino-
aprendizagem.
1.2 AS TIC NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE INGLÊS
O uso das TIC na sala de aula tem crescido significativamente no Brasil. Esse
crescimento se deve, em grande parte, à criação de projetos de inclusão digital, tais
quais o UCA (um computador por aluno), o ProInfo e até mesmo o ProInfo Rural. Mas
segundo Almeida1 (2014), professora doutora da PUC-SP e pesquisadora do uso de
tecnologias na educação, apesar de o Brasil estar avançando bem no quesito tecnologias
em sala de aula, ainda estamos longe do ideal.
Para Almeida (2014), o ponto chave para a mudança vai além da inserção de
políticas públicas para o uso de ferramentas tecnológicas na educação. O avanço nessa
área está diretamente relacionado à formação de professores para que o uso das
tecnologias tenha resultados educacionais positivos. Ela acrescenta que “Mesmo que os
professores que estão terminando suas licenciaturas hoje já tenham um nível muito bom
de inclusão digital, o uso pedagógico dessas tecnologias envolve outro conhecimento, e
isso ainda precisa ser muito trabalhado na formação”.
Apesar dos avanços tecnológicos e das inúmeras possibilidades que as TIC têm
proporcionado ao processo de ensino/aprendizagem, o uso que os docentes fazem das
TIC ainda é limitado em sala de aula, relacionando-se ao uso pessoal que fazem destas
tecnologias (escrever, pesquisar etc) conforme apontam Coll, Mauri e Onrubia (2010).
1 Em entrevista concedida ao Instituto Claro sobre as TIC na educação: os passos que o Brasil precisa dar
para avançar.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1375
Desta forma, o uso eficaz das TIC pelos professores ainda está distante da sala
de aula e de um uso reflexivo por parte dos alunos. Por esse motivo a formação de
professores deve contemplar a inclusão digital e o uso pedagógico dessas tecnologias.
Tavares e Stella (2014) acreditam que a formação de professores deva considerar que
esse mundo digital oferece várias formas de fazer sentido, que nas formas tradicionais
do ensino e aprendizagem de línguas não são comtempladas, principalmente nas salas
de aula do ensino regular.
Muitos professores preferem manter o padrão tradicional nas salas de aula
devido à deficiência na formação no que se refere ao quesito letramento digital. Snyder
(2008) exemplifica essa situação quando afirma que os professores de alfabetização em
todos os níveis utilizam as novas tecnologias para continuar o que faziam com o livro
didático. Dessa forma, o meio digital é apenas mais uma ferramenta a qual o professor
inicia uma atividade, indica uma tarefa de casa e avalia se os trabalhos foram feitos de
forma satisfatória, mantendo a mesma abordagem tradicional.
É a incorporação e o uso das TIC por professores e alunos em sala de aula que vai
determinar seu maior ou menor impacto nas práticas educacionais e sua maior ou menor
capacidade para transformar o ensino e melhorar a aprendizagem (COLL, 2010). Por
isso a necessidade de formar professores capazes de utilizar essas ferramentas de forma
significativa na sala de aula.
Pensando nisso, o Ministério da Educação e da Cultura (MEC) em seus documentos
oficiais, com o objetivo de orientar a prática docente e informar sobre as políticas
educacionais, insere em suas propostas a inclusão das tecnologias na prática escolar.
Dentre eles, as Orientações Curriculares para o Ensino Médio (OCEM) apresentam
algumas reflexões a respeito da prática docente no que se refere ao conhecimento de
Línguas Estrangeiras abordando a importância da inclusão digital no processo de
ensino.
Em se tratando das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de
Professores da Educação Básica, instituídas pelo Conselho Nacional de Educação, por
meio da Resolução CNE/CP 1, de 18 de fevereiro de 2002 é sugerido que a formação
para a atividade docente prepare os professores para o uso de Tecnologias da
Informação e da Comunicação e de metodologias, estratégias e materiais de apoio
inovadores (Art. 2º, VI).
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1376
Em se tratando da importância das TIC na formação de professores podemos
analisar, ainda, o documento referente ao perfil desejado do formando do Curso de
Letras onde veremos que ele deve ser “capaz de refletir teoricamente sobre a linguagem,
fazer uso de novas tecnologias e de compreender sua formação profissional como
processo contínuo, autônomo e permanente2”.
Todas as colocações documentais aqui citadas são fundamentadas e consideram as
TIC como ferramentas importantes no processo de ensino/aprendizagem. No entanto há
certa impertinência em relação às sugestões feitas pelo MEC em seus documentos
oficiais, como também nas matrizes curriculares dos cursos de Letras-Inglês no Estado
de Alagoas que não dispõem de uma disciplina que contemple a formação de
professores para o uso das tecnologias como recurso auxiliar do processo de
ensino/aprendizagem de línguas.
A problemática que aqui travamos é também fruto de uma pesquisa realizada por
Magalhães (2012) com professores de Inglês da rede Estadual da cidade de Arapiraca-
AL em 2012 onde constatou-se que 80% dos professores não têm acesso às capacitações
referentes ao uso das TIC ofertados pela Secretaria de Educação do Estado (SEE).
Constatou-se ainda que a maioria dos professores de Inglês da rede Estadual de ensino
ainda se detém ao uso do livro didático em sala de aula e que muitos professores nem ao
menos sabem manusear o computador e o projetor, além dos problemas referentes à
disponibilidade dos recursos tecnológicos pela escola (MAGALHÃES, 2012).
Além dos resultados obtidos na pesquisa supracitada e das dificuldades enfrentadas
por professores de Inglês, esse trabalho também parte do entusiasmo em ver as diversas
possibilidades de se trabalhar com a língua Inglesa através de um computador conectado
à internet nas diversas etapas do processo de ensino, antes (plano de aula), durante
(aula) e depois (correção e obtenção de resultados).
Dessa forma, cremos que devido ao resultado das pesquisas terem mostrado que há
limitações por parte dos professores quanto ao uso das TIC na sala de aula, que muitas
vezes o professor utiliza as TIC, porém reproduz a metodologia tradicional e que não há
na grade curricular do curso de Letras\Inglês do Estado de Alagoas, podemos concluir
que pode haver dificuldades quanto ao uso das TIC em sala de aula, seja devido às
limitações na formação do professor ou da escola. Acreditamos que alguns licenciandos
2 Parecer CNE/CES no. 492/2001
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1377
já atuam como professores de Inglês em escolas da rede pública e/ou privada de ensino
e no entanto não possuem formação para o uso significativo das TIC em sala de aula.
Outro ponto importante a ser destacado nessa problemática é o papel da escola
na inserção das TIC no processo educacional. Acreditamos que a escola deva ser um
ambiente que possibilite o acesso à novas formas de os indivíduos produzirem
conhecimento.
Assim, não devemos ignorar a influência das TIC nos processos pedagógicos e
ainda, devemos questionar se a escola e os professores estão preparados para lidar com
essas ferramentas. Em se tratando de papel da escola, Tavares e Stella (2014) definem
esse ambiente como fundamental para esse processo, pois completa o conjunto de
sentidos para os Novos Letramentos e caracteriza-se pela não-passividade do sujeito
pela interação com o outro e produção de novos sentidos.
Considerando a importância da escola no processo de formação do cidadão e que
o professor faz parte dessa instituição, destaco a importância de formar professores para
a construção de identidades através das novas tecnologias. Nesse sentido, Perrenoud
(2000, p.125) afirma que:
formar para as novas tecnologias é formar o julgamento, o senso crítico, o
pensamento hipotético e dedutivo, as faculdades de observação e de pesquisa,
a imaginação, a capacidade de memorizar e classificar, a leitura e a análise de
textos e de imagens, a representação de redes, de procedimentos e de
estratégias de comunicação (PERRENOUD 2000, p.125).
Diante do que foi apresentado, é importante ressaltar que a proposta que aqui se
faz não se refere ao uso abusivo e irresponsável das TIC por parte de professores e
alunos, mas do uso consciente e adequado dessas ferramentas. Sobre isso Pierre Levy
(1999, p.172) sugere:
Não se trata aqui de usar as tecnologias a qualquer custo, mas sim de
acompanhar consciente e deliberadamente uma mudança de civilização que
questiona profundamente as formas institucionais, as mentalidades e a cultura
dos sistemas educacionais tradicionais e sobretudo dos papéis de professor e
de aluno (LEVY, 1999, p.172).
Não se pode negar a presença do Inglês no mundo virtual e as possibilidades das
TIC em potencializar o ensino/aprendizagem dessa língua, assim o computador
conectado à internet pode possibilitar diversas formas de desenvolvimento das práticas
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1378
de ensinar e aprender o inglês, tendo em vista a autenticidade e dinamicidade do
ambiente virtual. Porém, como exposto anteriormente, o uso dessas ferramentas deve
ser feito de forma planejada e estratégica, por isso a necessidade de formação dos
professores.
Diante do panorama tecnológico atual, cresce ainda mais a responsabilidade do
professor em estar capacitado para o uso das tecnologias. Essa responsabilidade
aumenta mais ainda devido à distância que há entre o mundo do aluno e o mundo do
professor. Ou seja, o professor, naturalmente, sentirá o desejo de acompanhar as
demandas do aluno, que está a todo instante conectado com o mundo virtual. Prensky
(2001) caracteriza essa distinção digital entre alunos e professores como Nativos
Digitais e Imigrantes Digitas respectivamente.
O autor explica que “os estudantes de hoje são todos ‘falantes nativos’ da
linguagem digital dos computadores, vídeo games e internet.” Já os Imigrantes Digitais
são aqueles que nasceram em qualquer outra época diferente dessa, e que por fascinação
adotou os aspectos da nova tecnologia.
A respeito dessa temática, Prensky (2001) argumenta que “os nossos instrutores
Imigrantes Digitais, que usam uma linguagem ultrapassada (da era pré-digital), estão
lutando para ensinar uma população que fala uma linguagem totalmente nova”. Nesse
contexto, o desnivelamento de letramento digital entre professores e alunos torna-se um
problema para a o sistema educacional, já que a mudança faz-se necessária, os alunos
estão imersos nesse mundo digital e implicitamente clamam por evolução na sala de
aula no que tange o uso das TIC e a maioria dos professores não é capacitados para o
uso eficaz das ferramentas tecnológicas.
Para concluir, Buzato (2001) aponta, como resultado de sua pesquisa de
mestrado, que é visível a necessidade de criação nas Licenciaturas de um espaço
direcionado ao uso das TIC para que o aluno-professor possa desenvolver a habilidade
de interagir com o outro através de práticas sociais de leitura e escrita e assim, poder
desenvolver essa habilidade no seu aluno. Através de estudo de caso, Buzato (2001) nos
mostra que a falta de letramento digital por parte do professor pode ser considerada uma
barreira, impossibilitando o professor de lançar mão do uso das TIC de forma eficaz em
sua prática docente futura.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1379
Nessa perspectiva, a sociedade tecnológica requer um professor que vá além do
uso da lousa e do giz. Essa nova sociedade digital requer um professor preocupado em
aliar as TIC ao ensino numa perspectiva interacionista, proporcionando a aprendizagem
significativa e a construção do conhecimento pelos próprios alunos.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Conforme discutido ao longo do texto, percebemos que, primeiramente, a
sociedade atual tem passado por diversas mudanças, entre elas, a inserção das
tecnologias em diversos ambientes, inclusive no ambiente escolar. Dessa forma, faz-se
necessário novas práticas de letramentos, dentre elas o letramento digital, uma vez que
as práticas adotadas anteriormente não suprem as necessidades e demandas da
sociedade atual.
Para que essas mudanças aconteçam, é, efetivamente, necessário que toda a
comunidade escolar esteja capacitada para essas novas práticas, principalmente os
professores, os quais estarão diretamente envolvidos nessa prática e precisam planejar,
aplicar, analisar e intervir, se necessário for. Não podemos deixar de mencionar a
importância de se ter equipamentos disponíveis e em boas condições para o uso dos
professores e alunos.
Há de se lembrar que, os documentos oficiais disponibilizados pelos MEC
mencionam a necessidade de inserir as TIC no ambiente escolar, no entanto na matriz
curricular dos cursos de Letras das universidades públicas do Estado de Alagoas não
existe uma disciplina que comtemple exclusivamente o uso didático dessas ferramentas.
Nesse contexto, é essencial que a matriz curricular do curso de Letras\Inglês seja
reanalisada e que se reflita sobre a criação de uma disciplina que instrua os alunos,
futuros professores, sobre o uso didático das TIC, já que, segundo pesquisas
mencionadas no decorrer do texto, muitos professores não sabem ao menos manusear o
computador.
É importante mencionar que, esse trabalho não tem o objetivo de inserir as TIC
no ambiente escolar a qualquer custo, mas que essa seja uma prática consciente, por
parte dos envolvidos no processo, visto que ter consciência do que é desenvolvido em
sala de aula faz parte das premissas dos novos letramentos, assunto defendido nesse
trabalho.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1380
Esperamos, contudo, que esse trabalho tenha despertado, de forma geral, o
desejo de refletir a formação de professores no âmbito do ensino de Inglês e do uso das
TIC, melhorando a educação como um todo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Brasília, 9 de abril de 2002, Seção 1,p.31. Republicada por ter saído com incorreção do
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ZACCHI, Vanderlei J; STELLA, Paulo R. (Orgs.). Novos Letramentos, Formação de
Professores e Ensino de Língua Inglesa. Maceió: EDUFAL, 2014.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1382
O IMAGINÁRIO FICCIONAL EM “A MORTE DE D.J. EM
PARIS” DE ROBERTO DRUMMOND [Voltar para Sumário]
Juceli da Cruz Carneiro (FAFICA)
Introdução
O texto literário nos afeta, questiona, desinstala, faz ultrapassar verdades óbvias
e caminhar pelo desconhecido ou inusitado, também nos leva a identificarmos com
personagens, sentir raiva, medo ou simpatia. Como tudo isso ocorre, no entanto, que
mecanismos são utilizados pelo escritor no processo de criação para nos fazer crer que o
que está contando é real, mesmo que saibamos estar em face de uma obra literária, é o
que a maioria dos leitores ignora. É o que nos diz Compagnon “o problema torna-se o
seguinte: não mais ‘Como a literatura copia o real? ’ mas ‘Como ela nos faz pensar que
copia o real? ’ Por quais dispositivos?” (COMPAGNON, 2012, p.107).
Já Aristóteles assegurava que “o papel do poeta é dizer não o que ocorreu
realmente, mas o que poderia ter ocorrido na ordem do verossímil ou do necessário”
(apud COMPAGNON, 2012, p. 103). A literatura seria então uma mímesis, imitação ou
representação da realidade. Com o avanço dos estudos literários, diversos teóricos nos
levam a perceber a literatura como recriação da realidade, uma recriação na que se
ultrapassa o verossímil e o necessário e se adentra no imaginário.
No presente trabalho, fruto das reflexões realizadas no Grupo de Estudos do
Imaginário Ficcional, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Caruaru, faremos
menção ao controverso conceito de literatura e analisaremos o conto “A morte de D.J.
em Paris” de Roberto Drummond, buscando compreender a dicotômica relação
realidade-ficção presente na obra, a partir de um terceiro elemento: o imaginário
ficcional, conceito apresentado por Wolfgang Iser. A partir desse conceito, apontaremos
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1383
as nuances do processo de ficcionalização para desvendar o entrelaçamento realidade-
ficção.
O conto referido dá nome ao livro no qual se encontra. O livro, composto por
dez contos, é a primeira obra do mineiro Roberto Drummond, veio a público em 1971 e
representa um grande sucesso da literatura nacional. Expoente da chamada literatura
pop, Drummond utiliza uma linguagem desprovida de cerimônia e muito próxima do
cotidiano. Suas personagens apresentam o ser humano contemporâneo e seu mundo
fragmentado e paradoxal. Escritos em plena ditadura militar no Brasil, os contos, e “A
morte de D.J. em Paris” muito especialmente, trazem as marcas deste período, bem
como, as alternativas de sobrevivência que precisou-se inventar.
O imaginário ficcional e os atos de fingir
Adentrar-se no mundo da crítica literária supõe, de alguma forma, vê-se
envolvido numa discussão bastante controversa e acalorada, que remonta à própria
fundação da Teoria da Literatura como ciência. Trata-se da complexa definição do
conceito de literatura, suposto objeto de estudo dessa teoria. Silva nos diz que “não é
possível simplesmente pelo conhecimento estrutural de um texto delimitá-lo como
ficcional” (SILVA, 2013, p. 25). Terry Eagleton (2006) chega a dizer que a literatura
pode ser tudo ou nada, uma vez que seu conceito está muito relacionado com um
contexto sócio-histórico-político-cultural em constante transformação. Segundo o autor
“a literatura não pode ser, de fato, definida ‘objetivamente’. A definição de literatura
fica dependendo da maneira pela qual alguém resolve ler, e não da natureza daquilo que
é lido” (EAGLETON, 2006, p.12).
Desse modo, todo conceito de literatura é de alguma forma um conceito
provisório. Antônio Soares Amora nos traz algumas características essenciais da obra
literária, que nos parecem bastante pertinentes: o texto literário seria “um conteúdo
intuitivo e individual e uma forma, produto da criatividade expressiva do artista”
(AMORA, 2006, p.53). Segundo Amora, enquanto a forma é concreta e se expressa
através da linguagem, o conteúdo é abstrato, e não consegue ser totalmente expresso,
sempre sobra um fundo indizível no escritor e um conteúdo indefinível no leitor.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1384
A este fundo indizível, abstrato, difuso, informe e fluido como um sonho, que
estaria na gênese e no horizonte final do texto, Wolfgang Iser deu o nome de
imaginário. Devido às características mencionadas, não podemos acessar diretamente o
imaginário, precisamos então da ficção, que através dos chamados atos de fingir
estabelece uma relação dialética entre o imaginário e o real, provoca uma transgressão
de limites, uma reformulação do mundo formulado, tornando a realidade irrealizável e
realizando o imaginário, que, segundo o mesmo autor, nasce de um ato intencional, ou
seja, o imaginário ficcional é um imaginário forjado.
Eagleton afirma que as obras literárias envolvem, diferentemente do sonho, um
trabalho consciente. O próprio sonho, no entanto, segundo Freud, quando contado, se
desloca do plano do inconsciente, uma vez que são utilizadas técnicas para torná-lo
inteligível, passível de representação e aceitável para os ouvintes. Esta, de acordo com
Iser, é a função do processo de ficcionalização: tornar o imaginário (que pode assumir
configurações diversas porque é fluido) apto para o uso, permitir ao texto um sentido,
uma dimensão traduzível.
O conto que passaremos a analisar “A morte de D.J. em Paris” de Roberto
Drummond (2002) está ancorado na dicotomia ficção-realidade. Um professor de
francês transforma o sótão de sua casa numa Paris de papel e de lá começa a mandar
cartas a seus amigos.
E, quando os pombos começaram a voar na Île de St. Louis e a primavera
pulou na capa do Paris Match, você abraçou amigos, anotou as encomendas
de cada um num caderninho de capa azul, fechou a porta de Paris e, de lá
começou a mandar cartas para o Brasil (...) ‘Paris, coeur du monde, 29 de
abril de 1969...’ (DRUMMOND, 2002, p.96).
Suas cartas provocam controvérsias, quando publicadas nos jornais: para alguns
elas são “fruto de imaginação fértil, mas doentia”, para outros contém muita “pieguice”,
há também os que as taxam de “mensagens comprometedoras”. Há momentos em que
nos perdemos na leitura e não conseguimos elucidar se os elementos apresentados são
“reais” ou fictícios, frutos da insanidade da personagem. O imaginário ficcional nos
ajuda a adentrar nesta relação – que na verdade não é dual, mas uma tríade: realidade-
ficção-imaginário. Não podemos deixar de ressaltar que a própria ideia do que seja
“real” é relativa. Segundo Lima da Silva (2013), o real não é algo dado, mas sim algo
construído socialmente.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1385
Embora conto, “A morte de D.J. em Paris” está organizado em atos, como no
texto teatral. Se insinua que a vida, os devaneios, as lutas, e até mesmo a suposta morte
da personagem é apenas uma apresentação dramática. Cada um dos sete atos traz o
depoimento de alguma testemunha do misterioso caso de D.J., ou a leitura do diário do
réu e de suas correspondências apreendidas. Com exceção de Maria Mariana ou
Marimá, nenhuma testemunha tem seu nome revelado, são identificadas pela aparência
física ou pela profissão: homem magro de óculos escuros, um jovem repórter, o homem
rouco, homem meio grisalho, a Mulher Azul.
O interessante é que a única personagem que tem nome não é uma, mas duas:
Maria Mariana, a irmã de D.J. de 49 anos e Marimá, uma jovem de 23. Essa dupla
personalidade cria situações inusitadas, como podemos observar no sexto ato, as duas
estão depondo, e as personalidades vão se intercambiando:
Maria Mariana é quem responde (de Marimá só ficara um cigarro aceso na
mão de Maria Mariana, que olhou muito assustada, sem saber o que fazer
dele) (DRUMMOND, 2002, p. 119).
Por algum motivo, talvez porque as personagens estejam ligadas diretamente ao
conturbado momento político que vive o país, conforme insinua D.J. quando fala em
“nossos tempos clandestinos”(p.109), as identidades não são reveladas. A Mulher Azul
é apelidada de Lu, o que pensamos ser apenas uma referência a “bleue”, azul em
francês. O próprio D. J. é uma incógnita, que nem a morte, nem a formalidade do
tribunal consegue decifrar.
E esse D.J., que não sabemos bem quem seja, é o ponto chave de uma
investigação “o homem magro de óculos escuros conta o que sabe, na sala do tribunal,
sobre um morto, de nome D.J. que está sendo julgado” (p. 87). Aqui já temos uma
quebra no paradigma de realidade: um morto pode ser julgado? Que crimes são esses, os
de D.J, que nunca são revelados?
O que sabemos é que D.J., “le brésilien” é um inconformado com a realidade.
Ele ultrapassa, transcende a mediocridade do cotidiano, rompe com a pobreza de sua
rotina através da imaginação, do sonho. Toma café da manhã se lembrando do leite do
Bairro Latino, em Paris. De caminho até o Colégio Dom Bosco, onde é professor de
francês, com sapatos gastos atravessa um jardim pensando no Jardim de Luxemburgo,
“você via ‘le petit fleuve’ que cortava sua cidade e que não era o Sena, atravessava uma
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1386
ponte que não era a Pont Neuf e nem a Pont de l’Alma” (p. 92). Enquanto caminha, D.J.
imagina e ensaia toda a conversa que vai ter com o diretor para pedir aumento, mas não
tem coragem de fazê-lo. D.J. se sente impotente para enfrentar seus “verdadeiros”
conflitos cotidianos.
Até na sala de aula D.J. fantasia, olha nos olhos da aluna Vera Sílvia, perdendo-
se “nuns outros olhos, no limite do Brasil com Paris”. Confessa a seus alunos um dos
nós que traz na garganta: o trauma causado pelo colégio católico interno em que
estudara “chegava a Semana Santa e a gente se sentia culpado pela morte de Jesus
Cristo...” As músicas que embalavam sua vida eram a sirene da escola e o apito do trem
na estação Central do Brasil, que ele ouvia do Bar Flor de Minas, onde todas as noites,
conversava com os amigos sobre as mulheres azuis que havia em Paris:
Lembro que os trens apitavam lá na estação Central do Brasil, eram uns
apitos chorados e roucos e mui tristes, doía como uma faca furando uma
coisa que a gente nem tinha mais (mão ou perna amputada) (DRUMMOND,
2002, p. 88).
D.J. tinha três mistérios: uma cicatriz no supercílio esquerdo, da qual os amigos
ignoravam a origem; a idade que flutuava, ora tinha 45 anos, ora ficava com 29 anos;
era solteiro por amor. D.J. esperava pela Mulher Azul: “é preciso estar em estado de
graça para ver uma ‘femme bleue’” (p.89).
A partir do que já elencamos do conto, e buscando uma chave de interpretação
para o mesmo, nos deparamos com os atos de fingir – que representam a transgressão de
limites. O primeiro deles, a seleção, diz respeito, segundo Iser, ao mecanismo, através
do qual, são escolhidos elementos da realidade e desvinculados de sua estruturação
semântica. Assim, através da seleção podemos conhecer a suposta intencionalidade da
obra que não se manifesta na consciência do autor, mas sim na decomposição dos
campos de referência do texto.
No nosso caso temos: um drama composto por sete atos, pessoas que não podem
ter seus nomes identificados, correspondências apreendidas, um homem que sonha com
outras paisagens para suportar sua tediosa rotina e esquecer suas cicatrizes misteriosas e
a dor causada por uma ausência presente (mão ou perna amputada). Por que o espaço
Paris? Por que o nome D.J.? Como entender que a irmã de D.J. fazia sonhos e os
adoçava com açúcar para o café da manhã? Por que “tempos clandestinos”? Por que o
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1387
Brasil é um nó na garganta? De acordo com Iser “A linguagem em questão deve
transgredir sua função designativa, para manifestar, pelo uso figurativo, a
intraduzibilidade de sua referencialidade” (in LIMA, 2002, p.968).
Outra transgressão de limites é representada pela combinação, ato de fingir no
qual os elementos selecionados são combinados, gerando relacionamentos intratextuais,
esses relacionamentos podem ser mais ou menos plausíveis. No conto analisado, por
exemplo, D.J. fala de um limite entre o Brasil e Paris, sonha com uma mulher azul que
mora em Paris, que fala com uma voz de frevo tocando, e que faz limonada para curá-lo
da febre de primavera. A figura da mulher azul, chamada Lu, nasce de uma combinação
de elementos contraditórios: ela mora em Paris, mas tem o corpo queimado pelo sol do
Rio de Janeiro, e agarra o salto do sapato nos passeios de Belo Horizonte, é azul, mas
trabalha como babá na Rua de L’Etoile – Rua da Estrela.
Outro processo interessante de combinação é o que observamos na personagem
Maria Mariana ou Marimá, a irmã de D.J. Ela é duas mulheres ao mesmo tempo. Como
Maria Mariana é uma beata de 49 anos, com roupas longas e uns “olhos esquecidos de
que eram verdes olhando para a ponta dos sapatos.” Como Marimá, uma jovem com 23
anos, de minissaia, fumando, “e seus olhos sabiam que eram verdes e nunca fugiam dos
outros olhos.”
Segundo Iser, “a força, o poder de qualquer texto (...) está naqueles momentos
que excedem nossa capacidade de categorizar, que conflitam com nossos códigos
interpretativos, mas que apesar disso parecem corretos” (in LIMA, 2002, p.966).
Como se: o mundo posto entre parêntese
Levado pelo devaneio de ir a Paris, D.J. transforma o sótão de sua casa numa
Paris imaginária, colando fotos de revistas, depois se despede dos amigos, fecha a porta
e de lá começa a escrever cartas para o Brasil: “Aqui estou, Antoine: depois de adiar
minha vinda nem lembro quantos anos, aqui estou, em Paris” (DRUMMOND, 2002,
p.96). Quando chega à Paris, D.J. rejuvenesce e perde inclusive a cicatriz “descobriu
que estava com trinta anos, porque foi aos 31 que aconteceu o que D.J. nem de lembrar
gostava e ele ficou um homem marcado”(p.97). Agora D.J. tem outra música, não mais
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1388
a sirene e o apito do trem, agora canta a “Marselhesa”, hino nacional da França, símbolo
da Revolução Francesa. A obrigação e a rotina dão lugar à liberdade.
D.J. sai por Paris, caminha pelo Quartier Latin, passa pela Sorbonne e pelo Rio
Sena, à procura de sua “Femme Bleue”. Na Île de St. Louis, imagina uma conversa com
ela, que é interrompida por uma voz que chega do Brasil: “então uma voz de mulher,
cantando desentoada e infeliz, chegava à Paris de D.J., mesmo na Île de St. Louis aquela
voz chegava” (p.100). Era Maria Mariana ou Marimá, a irmã solteirona de D.J.
cantando o ofício da Imaculada Conceição. Sua irmã era uma típica beata, que se
escondia em roupas compridas e olhava a vida pela janela, de atraente só tinha os olhos
verdes. D.J. lhe prometera rezar algumas orações quando estivesse em Paris, em troca
de seu silêncio e de sua ajuda – Maria Mariana era funcionária dos Correios e
Telégrafos.
Ela até pensava em ir ver seu louco irmão, mas como iria penetrar naquela
Capital do Pecado? Para afastar a tentação lia livros religiosos: “Mas sei que o mundo e
seu barulho, já mais que um sonho me são...” (p.102). É exatamente o que o mundo é
pra D.J. agora e para a própria Maria Mariana, que de repente virava Marimá, uma
jovem de minissaia, e voava pra Paris ao encontro de D.J. Em Paris, recebia serenatas
de um barbudo que pulava sua janela.
Amora (2006) nos diz que o artista ao apresentar a realidade, não faz desta uma
cópia fotográfica – como queria a mímesis de Aristóteles– senão que a deforma
tendenciosamente, é o que vamos entender com o terceiro ato de fingir: o desnudamento
da ficcionalidade. Segundo Ricoeur (apud COMPAGNON, 2003, p. 127), “o artesão das
palavras não produz coisas, apenas quase-coisas, inventa o como-se”. De acordo com
Pereira, “é por causa do desnudamento que o texto ficcional posiciona o leitor em
suspensão entre o mundo real e o mundo representado, criando entre eles o contraste,
induzindo ao ‘como se’” (PEREIRA, 2013, p. 170).
Através do como se, a realidade repetida se transforma em signo de outra coisa.
O “mundo é posto entre parênteses, para que se entenda que o mundo representado não
é o mundo dado, mas deve ser apenas entendido como se o fosse” (ISER in LIMA,
2002, p.973). Segundo Iser, a função do como se é causar reações sobre o mundo.
Assim, quando em nosso conto encontramos o desejo de D.J. de fugir para Paris, não é
da cidade Paris, capital da França, que estamos falando, mas de um lugar onde a
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1389
personagem pode encontrar a liberdade, o amor, a juventude, pode esquecer os traumas
vividos no Brasil, ainda que esse lugar se configure, no conto, como uma fuga da
realidade, uma farsa “Paris, Paris é ilusão D.J., um pedaço de papel colorido, puro
pedaço de papel...” (DRUMMOND, 2002, p.93).
Paris não é Paris, é como se fosse. Paris é o lugar onde D.J. deixa de ser um
homem marcado, se torna alguém autônomo, decidido, e até dá conselhos aos amigos, o
que se torna uma ironia, D.J. encarcerado numa Paris de papel, escreve a um amigo, no
quarto ato: ”o importante, Geraldo, é isso: fazer o que a gente quer. Não fique mais
sentado deixando a vida andar”(p.106). Em Paris, D.J. se liberta, descobre os pequenos
prazeres da vida, derruba a cerca de arame farpado que o prendeu no internato e pro
resto da vida: “Pulei a cerca, Gilu: Paris me libertou. E quero declarar solenemente, que
não fui eu quem matou Jesus Cristo e não tenho nenhuma culpa se Madalena quis ser
Madalena” ( DRUMMOND, 2002, p. 107).
Em Paris, D.J. encontra a Mulher Azul e os dois podem andar a pé pelas ruas,
sem pressa, podem passar a tarde toda no quarto do Hotel St. Michel. Na Capital da
Liberdade, D.J. pode também dizer o que quer, até mesmo xingar seus oponentes num
idioma que eles não entendem (cf. p.118).
Em Paris, Maria Mariana, transformada em Marimá, pode romper com uma
religiosidade condenatória, soltar-se das mãos dos confessores e ser livre para mostrar
seu corpo, redescobrir seus olhos verdes, pode amar sem remorsos nem culpa. Pode
entender que “Jesus é alegria”. E o Brasil? “Brasil é um nó na garganta”. Um lugar no
qual nestes “nossos tempos clandestinos”, para se amar “dois amantes têm que se
esconder como mortos, fingir de mortos!...” (p. 109).
Nas palavras de Iser, “o mundo do texto, sob o signo do como se não mais pode
se designar a si mesmo, mas sim remeter ao que não é” (in LIMA, 2002, p.977). É o que
Roland Barthes afirma ao tratar do prazer do texto: “Ele (o texto) produz em mim o
melhor prazer se consegue fazer-se ouvir indiretamente; se lendo-o sou arrastado a
levantar muitas vezes a cabeça a ouvir outra coisa” (BARTHES, 1987, p.35).
A irmã de D.J. – Maria Mariana e não Marimá – tenta “salvá-lo” daquele
“delírio”, ou obrigá-lo a aceitar e compartilhar com ela de uma realidade que a fazia
infeliz.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1390
Não tem Lu, D.J., não tem Paris: é tudo sonho, tentação, pecado; é invenção,
D.J., não existem mulheres azuis!... Se você continuar nesta Paris de papel,
D.J., é a morte: ainda há tempo para você se salvar (DRUMMOND, 2OO2,
p.124).
Parece que D.J. não quis “salvar-se”: “morrer, Lu, é uma forma de viver”.
Drummond nos faz entender que algo passou ali naquele quarto, de modo que D.J.
morreu ou desapareceu. A própria Lu afirma em depoimento no sétimo ato: “Agora
você me pergunta se D.J. está morto; respondo: alguns hão de querer que D.J. esteja
vivo, outros não” (p.126). E o conto termina e nos deixa a perguntar: afinal, qual foi o
crime de D.J.? O crime de não sucumbir à realidade, mas inventar um lugar onde
pudesse viver? O crime de acreditar no que todos diziam inexistir? O crime de fazer de
sua história um como se?
Todo esse processo desencadeado pelos atos de fingir vai forjando, criando,
fazendo possível o imaginário ficcional, “a própria língua é transgredida e enganada,
para que, no engano da língua, o imaginário, como causa possibilitadora do texto, se
torne presente” (ISER in LIMA, 2002, p.984). E podemos dizer que esse imaginário
está tanto na gênese como no final do texto literário, se levarmos em consideração a
recepção desse mesmo texto pelo leitor. Iser nos diz que na recepção – de modo diverso
da interpretação, que apenas semantiza o imaginário – “se trata de produzir, na
consciência do receptor, o objeto imaginário do texto, a partir de certas indicações
estruturais e funcionais. Por esse caminho chega-se à experiência do texto” (in LIMA,
2002, p. 950). Paris pode ser a referência a um dos destinos mais comuns dos brasileiros
que se exilavam, fugindo da repressão do regime militar, como também, se levamos em
conta a relação entre os nomes D.J.- Lu, Paris pode ser um déjà vu de alguém.
De todo modo, em contato com o misto de realidade e ilusão no mundo
inventado por D.J., o leitor pode experimentar o desejo de também pular o muro,
romper as cercas que o mantém preso a uma rotina enfadonha e medíocre, e habitar
outros espaços, criar sua Paris. Eagleton nos afirma que “a ‘literatura’ pode ser tanto
uma questão daquilo que as pessoas fazem com a escrita como daquilo que a escrita faz
com as pessoas” (EAGLETON, 2006, p. 10).
Considerações (in)conclusivas
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1391
De acordo com Barthes, o texto de fruição é
aquele que põe em estado de perda, aquele que desconforta (talvez até um
certo enfado), faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas, do leitor,
a consistência de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar
em crise sua relação com a linguagem. (BARTHES, 1987, p. 22).
Portanto, não podemos dizer que a literatura sempre provoque prazer, às vezes
nos causa perplexidade, estranhamento, desconforto. É exatamente o que nos pode
ocorrer em face do conto de Roberto Drummond. D. J. e sua Paris de papel nos faz
questionar alguns conceitos, por em dúvida nossa noção de realidade, imaginação,
liberdade, felicidade, lucidez e sandice.
Ao fazê-lo, no entanto, nos leva além do leitor comum, nos instiga a explorar
esse mundo fascinante do imaginário e a desvendar os caminhos pelos quais ele foi
sendo forjado: os atos de fingir. Quando o imaginário presente no texto, o fundo
indizível, deixa em nosso imaginário pessoal um conteúdo indefinível, podemos dizer
que a obra literária atingiu sua completude.
Referências
AMORA, Antônio Soares. Introdução à teoria da literatura. 13ªed. São Paulo: Cultrix,
2006.
BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1987.
COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: Literatura e senso comum. Belo
Horizonte: Ed. da UFMG, 2003.
DRUMMOND, Roberto. A morte de D.J. em Paris. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.
EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: uma introdução. 6ªed. São Paulo: Martins
Fontes, 2006.
ISER, Wolfgang. Problemas da teoria da literatura atual: o imaginário e os conceitos
chave da época in LIMA, Luiz Costa (org.). Teoria da literatura e suas fontes. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
_________. Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional in LIMA, Luiz Costa
(org.). Teoria da literatura e suas fontes. V. 02, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2002, pp. 955-987.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1392
LIMA DA SILVA, Carla Araújo. Mímesis e representação em O visconde partido ao
meio in FARIAS, Sônia L. Ramalho de. Mímesis e Ficção / Sônia L. Ramalho de
Farias, Kleyton Ricardo Wanderley Pereira [orgs.]. Recife: Pipa Comunicação, 2013.
PEREIRA, Kleyton R. Wanderley. Mímesis e reescritura em Fradique Mendes in
FARIAS, Sônia L. Ramalho de. Mímesis e Ficção / Sônia L. Ramalho de Farias,
Kleyton Ricardo Wanderley Pereira [orgs.]. Recife: Pipa Comunicação, 2013.
SILVA, Frederico José Machado da. Sobre o mundo da Ficção: fonteiras, definições e
inconsistências in FARIAS, Sônia L. Ramalho de. Mímesis e Ficção / Sônia L.
Ramalho de Farias, Kleyton Ricardo Wanderley Pereira [orgs.]. Recife: Pipa
Comunicação, 2013.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1393
O TRATAMENTO DADO ÀS VARIEDADES
LINGUÍSTICAS NOS LIVROS DIDÁTICOS DE
PORTUGUÊS DO ENSINO FUNDAMENTAL (ANOS
FINAIS) APROVADOS PELO PNLD-2014 [Voltar para Sumário]
Juciano Santos Soares da Silva (UFPE/FACEPE)
Introdução
No contexto educacional contemporâneo, o livro didático é uma ferramenta
inegavelmente presente na grande maioria das salas de aula brasileiras. Sua utilização, a
cada ano, por dezenas de milhões de alunos das escolas públicas do país não pode ser
considerada algo irrelevante.
Diante dessa realidade, acreditamos ser importante lançar um olhar sobre os
livros didáticos de língua portuguesa do Ensino Fundamental (anos finais) utilizados nas
escolas brasileiras, mais especificamente, no que diz respeito ao trabalho com as
variedades linguísticas. Acreditamos ainda que o livro didático de português deve ser
um instrumento capaz de promover a reflexão sobre os múltiplos aspectos da realidade
linguística e estimular a capacidade investigativa do aluno para que ele assuma a
condição de usuário competente da língua vernácula, bem como conheça as variedades
linguísticas e os valores sociais nelas implicados.
A partir desse aspecto específico dessa ferramenta pedagógica, indagamos: o
livro didático de português do Ensino Fundamental (anos finais), aprovado pelo PNLD-
2014, constitui-se realmente como um importante mediador entre o aluno e as
variedades linguísticas na escola ou perpetua um ensino tradicional de língua materna,
obscurecendo o caráter fugidio, dinâmico, heterogêneo, sociocultural do português
brasileiro?
Diante dessa curiosidade central que instiga a nossa pesquisa, procuramos
verificar como se processa a abordagem das variedades linguísticas nos livros didáticos
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1394
de português indicados pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD – 2014) para
o ensino de Língua Portuguesa no Ensino Fundamental – anos finais, mais
especificamente a partir das atividades elencadasno livro didático de português
destinado ao 6º ano escolar.
Nesta pesquisa, de natureza bibliográfica, selecionamos, como recorte para
constituir o nosso corpus, livros didáticos do Ensino Fundamental (anos finais),
especificamente do volume I, que integram as coleções didáticas aprovadas pelo
Programa Nacional do Livro Didático (PNLD -2014). Tendo em vista o exíguo espaço
deste artigo nos deteremos à análise apenas do exemplar de umas dessas coleções.
Sociolinguística: um novo marco teórico-metodológico nos estudos da linguagem
Linguagem e sociedade estão, indiscutivelmente, ligadas entre si por laços
indissolúveis. Isso porque todos nós temos uma linguagem e fazemos parte de uma
sociedade. Ninguém pode negar essa indissolubilidade que há entre a linguagem e a
sociedade.
Segundo Alkmim (2007), ao discorrer sobre a visão benvenistiana a respeito da
relação entre língua e sociedade, explica que na concepção de Benveniste, linguista
francês, língua e sociedade não podem ser concebidas uma sem a outra. Pois é no seio
da, e pela língua, que o indivíduo e a sociedade se definem reciprocamente, tendo em
vista que tanto um quanto outro só adquirem existência pela língua. Ainda, de acordo
com a autora, para Benveniste, sociedade e língua são grandezas de ordens distintas, que
têm organizações estruturais diversas: a língua se organiza em unidades distintas, que
são em números finitos, combináveis e hierarquizadas; o que não se observa na
organização social.
Alkmim (2007, p. 21), a partir dessa constatação que, a priori, pode nos
parecer óbvia e simples, mas concomitantemente complexa, nos lança questionamentos
desafiadores: “Por que se fala, então, em Sociolinguística? Ou melhor, por que existe
uma área, dentro da Linguística, para tratar, especificamente, das relações entre
linguagem e sociedade – a Sociolinguística? A linguagem não seria, essencialmente, um
fenômeno de natureza social?”
Não são perguntas com fáceis respostas, isso porque “dizer que a
Sociolinguística trata da relação entre língua e sociedade é fazer uma afirmação correta,
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1395
mas, ao mesmo tempo, excessivamente simplificadora”, adverte CAMACHO (2007, p.
49).
Neste tópico, nos deteremos a conhecer um pouco a história da Sociolinguística
e, após esse breve histórico da disciplina, falaremos também um pouco sobre o seu
objeto de estudo. Essa disciplina científica se situa no paradigma linguístico
representado pelo modelo teórico funcionalista. Contrariamente aos princípios do
Estruturalismo de Ferdinand de Saussure e do Gerativismo de Noam Chomsky que
concebem a língua como realidade abstrata, independente de fatores extralinguísticos,
nasce na década de 60, nos Estados Unidos, a Sociolinguística. Como veremos, a
Sociolinguística, estreada na década de 60, procurava desenvolver uma nova concepção
de estudo da Linguística. A Sociolinguística, diferente das teorias linguísticas vigentes
da época, para as quais a língua seria um sistema homogêneo, unitário, propõe uma
visão de língua como um sistema heterogêneo e plural.
As primeiras investigações a respeito dos estudos sociolinguísticos se
preocuparam, refutando as abordagens saussuriana e chomskiana de língua, em
incorporar os aspectos sociais nas descrições linguísticas. A contribuição maior para
fortalecer os estudos relacionando língua e sociedade surgiu num congresso organizado
por William Bright, na Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), no ano de
1964. Nesse evento, pela primeira vez, estudiosos como John Gumperz, EinarHaugen,
William Labov, Dell Hymes e John Fisher e José Pedro Rona passaram a compor a mais
recente área da Linguística: a Sociolinguística. A publicação, organizada e publicada
por Bright, em 1966, dos trabalhos apresentados no referido congresso com o título
de Sociolinguistcs, trouxe como texto propedêutico “As dimensões da sociolinguística”
no qual Brigth define os pressupostos da nova vertente dos estudos linguísticos
(ALKMIM, 2007).
Bright alegava que a diversidade linguística é precisamente a matéria de que
trata a Sociolinguística, ou seja, seu objeto de estudo. Segundo esse teórico, as
dimensões desse estudo estão condicionadas a vários fatores sociais, com os quais a
diversidade linguística se encontra relacionada nas identidades sociais dos interlocutores
e na situação comunicativa. Essa nova área de estudo linguístico, denominada
sociolinguística, surge confusa e carente do domínio de um marco teórico. A esse fato,
Monteiro assim se pronuncia:
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1396
As primeiras intenções de se delimitar o campo da sociolinguística foram
infrutíferas, pois nem mesmo Bright (1966) e Fishman (1972), que foram os
pioneiros, conseguiram defini-la com precisão. A nova disciplina surgiu
então meio confusa, desprovida de um rigoroso marco teórico, além de sofrer
a desconfiança dos linguistas que já pertenciam a alguma escola.
(MONTEIRO, 2008, p. 15)
Labov, dando prosseguimento aos estudos de Bright, reafirma uma nova
perspectiva, mostrando que o ponto de vista não seria mais o do estruturalismo. Nem
seria o de Chomsky, que não considera as questões sociais como elemento necessário à
sua proposta de estudo. Mas, um que considera a língua em seu contexto social. Labov
passa a descrever a heterogeneidade linguística, pois na concepção laboviana, todo fato
linguístico relaciona-se a um fato social, e que a língua sofre implicações de ordem
fisiológica e psicológica. Devido à natureza de seus estudos, Labov ficou conhecido por
ser o representante da Teoria da Variação Linguística.
Labov apresenta, então, uma metodologia, tendo como objeto de estudo a fala,
observando seu contexto e indicando ser possível sistematizar o aparente caos
linguístico. Para a Teoria da Variação Linguística, a língua é heterogênea, de caráter
social e de variabilidade submetida, sendo a heterogeneidade algo inerente a ela. Porém,
ao contrário do que afirmaram estudos baseados no estruturalismo, para os
sociolinguistas a heterogeneidade da língua é passível de ser sistematizada pelo fato de
existirem fatores linguísticos e sociais que condicionam e que favorecem a escolha de
uma das formas variantes encontradas nas comunidades de fala.
Um dos pilares dessa nova proposta foi a negação da homogeneidade como
condição necessária para o funcionamento da língua e a necessidade de considerar os
fatores sociais no seu processo de estruturação, ou seja, o sistema de funcionamento da
língua não poderia ser analisado sem o recurso às condições sociais em que a atividade
linguística se atualiza. Tais questões foram excluídas dos estudos saussurianos e
gerativistas que, como já havíamos mencionado, veem a possibilidade de estudo
sistemático apenas tendo a língua como abstração, não sendo necessária para o estudo a
coleta de dados por meio da fala de vários indivíduos.
Mas a Sociolinguística é uma área da Linguística que estudará a língua através
de que perspectiva? Elegendo que objeto, conceitos e pressupostos? Ao consultar os
teóricos encontraremos várias acepções, a partir de seu objeto de estudo, de
Sociolinguística, como “podemos dizer que o objeto da Sociolinguística é o estudo da
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1397
língua falada, observada, descrita e analisada em seu contexto social, isto é, em
situações reais de uso” (ALKMIM,2007, p. 31); “a sociolinguística tem por objeto de
estudo os padrões de comportamento linguístico observáveis dentro de uma comunidade
de fala e os formaliza analiticamente através de um sistema heterogêneo” (LUCCHESI,
2004, p. 66); “a Sociolinguística é uma das subáreas da Linguística e estuda a língua em
uso no seio das comunidades de fala, voltando a atenção para um tipo de investigação
que correlaciona aspectos linguísticos e sociais” (MOLLICA, 2007, p. 9); “para a
sociolinguística é exatamente este o objeto de estudo: a variação, princípio geral e
universal” (SILVA, 2009, p. 20).
Diante desse elenco de conceitos, verificamos que, levando-se em conta a
natureza social da linguagem, a Sociolinguística se interessa pelas variedades
linguísticas, as comunidades linguísticas, as funções da linguagem na sociedade, a
mudança linguística e a interação social. Na perspectiva sociolinguística, a língua é
considerada como um conjunto de variedades, de níveis de expressão, atestando que
nenhuma língua é inteiramente homogênea. Cada falante é, ao mesmo tempo, usuário e
agente modificador de sua língua, nela imprimindo marcas geradas pelas novas
situações com que se depara.Para Bagno:
O objetivo central da Sociolinguística, como disciplina científica, é
precisamente relacionar a heterogeneidade linguística com a heterogeneidade
social. Língua e sociedade estão indissoluvelmente entrelaçadas,
entremeadas, uma influenciando a outra, uma constituindo a outra. Para o
sociolinguista, é impossível estudar a língua sem estudar, ao mesmo tempo, a
sociedade em que essa língua é falada. (BAGNO, 2009, p. 38).
Assim sendo, Bagno quer dizer que o ponto de partida vai ser sempre a
comunidade linguística, onde podem ser encontrados os diversos tipos de falares e
consequentemente o fenômeno das variações linguísticas. Fica evidente que a língua é
um conjunto de variedades. Logo, é intrinsecamente heterogênea, múltipla, instável,
mutante e, inevitavelmente, está em constante processo de transformação e
reconstrução. Ela é uma atividade social infindável empreendida por todos os seus
falantes. Não nos esqueçamos e nem recusemos o fato de que as línguas apresentam
variação linguística em qualquer tempo e em qualquer sociedade e essa variação jamais
é aleatória e caótica, mas sim ocorre de forma estruturada, organizada e condicionada
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1398
por vários fatores. Afirmar que a língua não é heterogênea e mutante é absurdamente
almejar mumificá-la e fossilizá-la.
A variação linguística
O Brasil, um país geograficamente continental, tem como idioma oficial o
português, mas convivemos com mais de uma língua. Essa constatação se comprova
pelo fato de sermos um país plurilíngue, basta lembrar que em nosso território (e
deveria ser bem mais, se não fossem as barbaridades desenfreadas cometidas pela
colonização europeia) existem aproximadamente 180 línguas indígenas. Sem contar as
comunidades bilíngues (português/alemão, português/italiano, português/japonês, por
exemplo) existentes principalmente na região Sul do país, as quais dominam o
português e o idioma do seu país de origem.
Ampliando a ilustração desse exemplo, pensemos nos oito países que falam
português: Brasil (América do Sul), Portugal (Europa), Cabo Verde, Guiné-Bissau, São
Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique (África) e Timor Leste (Oceania). Então,
imagine como uma língua geograficamente intercontinental, primeiro indício de
heterogeneidade, não tolerar variações? Certamente encontramos um sem-número de
variantes que podem ser explicadas com base na localização geográfica dos falantes e
em aspectos sociais, tais como escolaridade do falante e formalidade ou informalidade
da situação de fala. Diante disso, não restam dúvidas de que a língua é um sistema
intrinsecamente variável.
De um modo geral, podemos descrever as variedades linguísticas a partir de
dois eixos essenciais: a variação diatópica (também denominada de variação geográfica)
e a variação diastrática (chamada de variação social). O primeiro tipo de variação está
relacionado às variantes regionais de uso da língua, podendo ser observada entre
falantes de origens geográficas distintas, como por exemplo, as grandes regiões, os
estados, as zonas rural e urbana. A língua além de variar geograficamente, varia de
acordo com o contexto social onde o falante está inserido, podendo ser verificada na
comparação entre os modos de falar das diferentes classes sociais, temos então a
variação diastrática. Esse contexto de natureza social é um conjunto de uma série de
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1399
situações específicas: a) origem geográfica; b) status socioeconômico; c) grau de
escolarização; d) idade; e) sexo; f) mercado de trabalho; g) redes sociais.
Conforme observamos, a partir da Sociolinguística, desmistificou-se a ideia da
língua homogênea e de que a heterogeneidade era impossível de ser sistematizada. A
Sociolinguística existe justamente porque “se cada grupo apresentasse comportamento
linguístico idêntico não haveria razão para se ter um olhar sociolinguístico da
sociedade” (MOLLICA 2007, p. 10). A Sociolinguística, na contemporaneidade dos
estudos dos fenômenos linguísticos, multiplica suas abordagens com a incumbência de
investigar a estabilidade e a mutabilidade da variação e oferecer valiosa contribuição no
sentido de destruir preconceitos linguísticos.
Em suma, a Sociolinguística, considerando a contraparte social da linguagem,
oferece o caminho para o tratamento adequado da heterogeneidade linguística na escola.
Para essa ciência, a variação e a mudança linguísticas são processos naturais e têm
motivações várias.
O contínuo de urbanização
Antes de apresentarmos a análise do tratamento dado às variedades linguísticas
no LDP, é interessante fazermos uma pausa para explicarmos que a
sociolinguistaBortoni-Ricardo (2004) aconselha que para se conhecer a diversidade do
português brasileiro, se tome por base três contínuos: o contínuo de urbanização, o
contínuo de oralidade-letramento e o contínuo de monitoração estilística. A autora
explica que essa proposta evita a clássica e tradicional criação de fronteiras rígidas entre
língua-padrão, dialetos, variedades não-padrão, etc que compõem o português
brasileiro. Dessa forma, a autora mostra-nos que o português brasileiro não é uno, mas
sim é uma entidade que apresenta heterogeneidade linguística. Portanto, cada um desses
contínuos oferece uma rica possibilidade de reconhecimento das características das
variedades linguísticas, desde as menos as mais prestigiadas. Para o nosso estudo, vai
nos interessar, especificamente, o contínuo de urbanização. Sobre o contínuo de
urbanização, Bortoni-Ricardo explica que
Em um dos polos do contínuo [de urbanização], estão as variedades rurais
usadas pelas comunidades geograficamente mais isoladas. No polo oposto,
estão as variedades urbanas que receberam a maior influência dos processos
de padronização da língua [...]. No espaço entre eles fica a zona rurbana. Os
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1400
grupos rurbanos são formados pelos migrantes de origem rural que preservam
muito de seus antecedentes culturais, principalmente no seu repertório
linguístico, e as comunidades interioranas residentes em distritos ou núcleos
semi-rurais, que são submetidas à influência urbana, seja pela mídia, seja pela
absorção de tecnologia agropecuária. (BORTONI-RICARDO, 2004, p. 52).
O contínuo de urbanização é representado por Bortoni-Ricardo (2004, p. 52)
assim:
variedades área variedades
rurais isoladas rurbanaurbanas
padronizadas
A autora expõe, ainda, em sua análise, dois traços para os falares: os
descontínuos e os graduais. O primeiro refere-se a palavras utilizadas no polo rural, que
vão se apagando na proximidade do polo urbano. São traços com distribuição
descontínua justamente por terem seu uso descontinuado em áreas urbanas. Enquanto
que o segundo traço, o gradual, encontra-se presente na fala de todos os brasileiros,
distribui-se gradualmente ao longo de todo o contínuo, contrário dos descontínuos.
Análise do corpus: o tratamento dado às variedades linguísticas nos LDP
Coleção Projeto Teláris – Português
Para tratar da variedade linguística, a partir do aspecto regional, é apresentada,
na p. 32, como texto motivador, a canção Cuitelinho,de autoria desconhecida, que é da
tradição popular brasileira.Acerca dessa canção, as autoras propõem cinco questões.
Essa atividade comete alguns equívocos ao tratar da variedade regional. A
questão 1 revela uma inadequação metodológica. Não há dúvidas de que a canção
Cuitelinho apresenta variedades linguísticas. No entanto, essa questão, ao propor a
alteração da linguagem informal para a formal, desconsidera a natureza textual, pois
descaracteriza o gênero textual canção popular de tradição brasileira.
Outro equívoco da questão é de inconsistência teórico-metodológica visto que as
próprias autoras do LDP, ao falarem sobre o emprego da linguagem formal e informal,
afirmam que, na página que antecede a atividade, “a escolha para empregar a
linguagem formal ou a informal depende da situação em que o falante estiver
envolvido, de suas intenções e das pessoas a quem estiver se dirigindo” [grifo das
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1401
autoras] e, logo após, solicitam ao aluno que “leia a letra da música, fazendo as
alterações para tornar a linguagem mais próxima da linguagem formal”. Se a canção
popular, na qual se enquadra a canção Cuitelinho, não é um gênero de natureza
científica, por exemplo, por que então solicitar uma atividade que não respeita as
peculiaridades desse tipo de gênero textual? Acreditamos ser mais interessante e exitoso
optar por outra estratégia metodológica, pois “se a intenção é incentivar o aluno a
reescrever, fazendo a transposição da linguagem informal para a formal, é necessário
propiciar uma situação comunicativa em que o emprego da linguagem formal seja
exigido” (DIONISIO, 2005, p. 86). Ao propiciar uma situação comunicativa autêntica
para propor atividades de reescritura ou alteração pela via oral, vai permitir ao aluno
refletir sobre as adequações linguísticas à situação sócio-comunicativa, ou seja, fazer
com que o aluno aprenda por meio da reflexão (DIONISIO, 2005).
Na questão 2, além de cometer a inconsistência teórico-metodológica comentada
acima, as autoras do LDP praticam outra forma equivocada de se tratar as variedades
linguísticas, uma vez que, segundo a resposta que se dá a essa questão,
na fala regional, a forma de dizer algumas palavras é diferente em relação à
linguagem formal escrita, como em espaia e espalha, ou em bera e beira; a
letra s, que indica plural, é suprimida dos nomes e os verbos ficam no
singular” [grifo nosso].
Essa questão propõe mostrar as diferenças entre a variedade regional e a
linguagem formal escrita. No entanto, os exemplos retirados da canção não se
configuram como uma ocorrência exclusiva da “fala regional”. Além de negligenciar
como se dá o processo de ocorrência da concordância não-redundante, desperdiça-se a
oportunidade de levar o aluno a aprofundar sua conscientização sobre a variação
linguística.
Bortoni-Ricardo (2004, p. 61) explica que “as regras fonológicas que
caracterizam o português brasileiro podem ser classificadas como descontínuas ou
graduais.” Esses traços descontínuos e graduais ilustram os diferentes usos linguísticos
presentes no contínuo de urbanização. Os traços descontínuos são aqueles que são
próprios dos falantes situados no polo rural e vão desaparecendo à proporção que vão se
aproximando do polo urbano, por isso são descontínuos, pois sua ocorrência é
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1402
descontinuada nas áreas urbanas. Já os traços graduais são aqueles que estão presentes
na fala de todos os brasileiros, ou seja, estão distribuídos ao longo de todo o contínuo de
urbanização. Geralmente as comunidades urbanas conferem aos traços descontínuos
maior carga de avaliação negativa.
O vocábulo “espalha” sofre interferência descontínua, tendo em vista a
semivocalização do /lh/, ou seja, de “espalha” para “espaia” e, portanto, é privativo da
fala regional. No entanto, o vocábulo “beira” sofre a interferência de traço fonológico
gradual, qual seja, a monotongação do ditongo crescente ei, ou seja, de “beira” para
“bera” e, portanto, não é privativo da fala regional, pois a respeito dos traços graduais,
Bortoni-Ricardo (2005, p. 56) afirma, de forma clara, que “eles funcionam como
indicadores de variedades sociais, diastráticas, mas também como marcadores de
registro entre falantes na língua culta, ocorrendo com maior frequência nos registros
não-monitorados”. Há uma incoerência a respeito desse item pelas próprias autoras, pois
na resposta à questão 2, afirmam que o vocábulo “bera” é peculiar da fala regional, mas
ao enunciar a questão 5, escrevem
na letra de ‘Cuitelinho’, em vez de beira apareceu bera. O desaparecimento
do i na pronúncia do grupo ei é muito comum não apenas na região onde a
música foi encontrada, mas também em nosso falar cotidiano. Fale cinco
palavras que têm o grupo de vogais ei e que você pronuncia como se tivesse
apenas o /e/.
Portanto, há uma flutuação argumentativa, pois ora as autoras do LDP afirmam
que a forma “bera” é de ocorrência exclusiva na fala regional, ora afirmam que essa
forma é também de ocorrência no português brasileiro.
Ainda sob o mesmo ponto de vista de Bortoni-Ricardo, é enquadrada a
interferência de regras que alteram ou suprimem morfemas flexionais, implicando
modificação nas regras de concordância na variedade de prestígio. Ao se limitar em
responder, de forma simplista, que “a letra s, que indica plural, é suprimida dos nomes e
os verbos ficam no singular”, as autoras do LDP em análise negligenciam o fato de que
há, no português brasileiro, uma tendência a não se fazer a concordância nominal, ou
seja, a concordância dos determinantes com o núcleo do sintagma nominal no plural. É
o que comprova Bortoni-Ricardo (2004, p. 89) ao afirmar que “em estilos não-
monitorados, tendemos a usar uma regra geral de concordância não-redundante, isto é,
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1403
em vez de flexionarmos todos os elementos flexionáveis do sintagma, flexionamos
apenas o primeiro”. É o que acontece em alguns sintagmas nominais da canção em
estudo, como “as onda se espaia”, “as garça dá meia-volta”, “terras paraguaia”, “fortes
bataia”, “os oio se enche d’água”.
Bortoni-Ricardo ainda ressalta que não devemos cometer o erro de pensar que
esse tipo de regra só ocorra no polo rural/ rurbano do contínuo de urbanização, pelo
contrário, sua ocorrência também se dá ao longo de todo o contínuo, ou seja, ocorre
tanto nos estilos não-monitorados, como pode até mesmo alcançar os estilos
monitorados. Também, segundo Bortoni-Ricardo, os nossos alunos certamente vão usar
a regra da concordância não-redundante, por estar tão generalizada na língua, em suas
produções escritas. Por isso, devemos ficar muito atentos, ao trabalhar esse tipo de
variação, pois segundo a autora
1) no português brasileiro, tendemos a flexionar o primeiro elemento do
sintagma nominal plural e a não marcar os demais. Esta é uma tendência que
se explica porque geralmente dispensamos elementos redundantes na
comunicação e as diversas marcas de plural no sintagma nominal plural são
redundantes. Ao escrever sintagmas nominais plurais, seu aluno vai tender a
flexionar somente o primeiro elemento, que pode ser um artigo, um pronome
possessivo, demonstrativo etc. Exemplos: ‘os amigo’; ‘meus brinquedo’;
‘aqueles homi’; ‘os meus tio’. 2) Quanto mais diferente for a forma do plural
de um nome ou pronome da sua forma singular, mais tendemos a usar a
marca de plural naquele nome ou pronome. Quando a forma de plural é
apenas um acréscimo de um /s/ tendemos a não empregá-la. (BORTONI-
RICARDO, 2004, p. 89).
Portanto, a regra da concordância não-redundante, comentada acima, a qual se
encontra no repertório de praticamente todos os brasileiros, independentemente de seus
antecedentes geográficos, requer muito de nossa atenção em sala de aula, isto “porque é
preciso que os alunos que usam a variante sem redundância na linguagem oral,
espontânea, aprendam a se monitorar para usar a variante com plurais redundantes nos
estilos monitorados e na linguagem escrita” (BORTONI-RICARDO, 2004, p. 60).
Considerações finais
A análise de que maneira as variedades linguísticas são tratadas, a partir das
atividades, especificamente no livro didático de português destinado ao 6º ano escolar,
contribuiu significativamente para que se pudesse saber se o livros didático de
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1404
português do Ensino Fundamental (anos finais), aprovado pelo PNLD-2014, constitui-se
realmente como um importante mediador entre o aluno e as variedades linguísticas na
escola ou perpetua um ensino tradicional de língua materna, obscurecendo o caráter
fugidio, dinâmico, heterogêneo, sociocultural do português brasileiro. A partir do
exemplar analisado, percebeu-se que, apesar da tentativa dos autores de adequá-lo à
concepção sociointeracionista de linguagem, particularmente aos avanços
sociolinguísticos, ainda não apresenta de forma satisfatória o tratamento dado às
variedades linguísticas. Verificamos ser unanimidade que, ao abordar o tema da
variação linguística, as atividades do LDP analisado se limitam densamente às
variedades regionais, de modo que fica implícita a crença ilusória de que os falantes
urbanos mais letrados se comportam linguisticamente de acordo com as normas
prescritas pela tradição gramatical.
Podemos depreender ainda, através da análise realizada e das nossas leituras
teóricas sobre a temática, que falta nos LDP o estudo a partir de manifestações
autênticas da realidade linguística brasileira. É preciso, como afirma Bagno, uma
reeducação linguística, caracterizada como uma proposta que leva em conta os avanços
das ciências da linguagem, bem como as dinâmicas socioculturais em que a língua está
inserida. A variação linguística precisa ser estudada como fato social e cultural,
considerando a riqueza que representa e seu papel revelador do dinamismo da língua.
Além disso, a abordagem das variedades linguísticas ainda é preconceituosa e
distorcida metodologicamente. Na maioria das atividades, ainda prevalecem questões de
reescrita que solicitam ao aluno que, diante de um gênero textual em estudo, passe uma
variedade estigmatizada para a norma padrão. Portanto, como afirma Bagno, o fato de o
LDP reconhecer a existência das variedades linguísticas não significa respeitá-las.
Por fim, acreditamos que a adoção do contínuo de urbanização, um dos três
contínuos proposto pela sociolinguistaBortoni-Ricardo, se constitui como um modelo
que pode representar uma renovação na abordagem das variedades linguísticas no livro
didático de português e, consequentemente, nas práticas pedagógicas de educação de
língua materna, uma vez que esse contínuo, a partir dos traços graduais e traços
descontínuos, permite entender a flexibilização das fronteiras que demarcam falares
rurais, rurbanos ou urbanos.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1405
Referências
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C..Introdução à linguística: domínios e fronteiras. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2007. v. 1.
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linguística. 3. ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.
BORGATTO, Ana Trinconi; BERTIN, Terezinha; MARCHEZI, Vera. Projeto teláris:
português. São Paulo: Ática, 2012. v. 1.
BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Educação em língua materna: a sociolinguística
na sala de aula. São Paulo: Parábola, 2004.
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Editorial, 2005.
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fundamental: anos finais. Brasília: Ministério da Educação/ Secretaria de Educação
Básica, 2013.
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DIONISIO, Ângela Paiva. Variedades linguísticas: avanços e entraves. In: DIONISIO,
Ângela Paiva; BEZERRA, Maria Auxiliadora (orgs.). O livro didático de português:
múltiplos olhares. 3 ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005.
LUCCHESI, Dante. Norma linguística e realidade social. In: BAGNO, M. Linguística
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MOLLICA, Maria Cecilia. Fundamentação teórica: conceituação e delimitação. In:
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MONTEIRO, José Lemos. Para compreender Labov. 3. ed. Rio de Janeiro: Vozes,
2008.
SILVA, Rita do Carmo Polli. A sociolinguística e a língua materna.1. ed. Curitiba:
Ibpex, 2009.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1406
A PERSONAGEM ILUMINATA COMO A
MANIFESTAÇÃO DA VOZ FEMININA NA FICÇÃO DE
LUZILÁ GONÇALVES FERREIRA [Voltar para Sumário]
Júlio César Martins de Sales (UPE)
Amara Cristina de Barros e Silva Botelho (UPE)
Introdução
O presente trabalho tem como objetivo primeiro, mostrar a forma como a
personagem Iluminata, representa a mulher em diversas épocas, principalmente o século
XIX. E logo será discutido sobre até que ponto esta mulher reprimida e subalterna, pode
estar presente na narrativa, de maneira que ela reflita na sua estrutura interna, aspectos
históricos, sociais e de gênero. Para desenvolver este trabalho, utilizamos os
pressupostos teóricos de BRAIT (1990) e os estudos de CANDIDO (1918), FORSTER
(1969), LOPES (2010), ALVES E PITANGUY (2003) e BARBOSA (2011).
Caracterizando o elemento – a voz feminina no romance. A intenção aqui por
sua vez, é apresentar a aproximação da voz (mulher) que permaneceu por bastante
tempo silenciada, mas que se manifesta na narrativa através do discurso da própria
personagem título-protagonista.Desta forma é de extrema e definitiva importância que
se observe certas características presentes na narrativa – como as ações que a
personagem realizou secretamente, por serem proibidas para uma mulher daquela época,
sendo a escrita, a única forma para compartilhar o que viveu.Após o feminismo,
ocorreram mudanças no que tange, as personagens femininas dos romances, também de
autoria feminina. Os autores passaram a atribuir mais autenticidade a estas personagens.
O Iluminata apesar de ter sido publicado em 2012, é um romance ligado ao
passado, em que a narrativa mostra aspectos vigentes no século XIX. Mesmo estando
inserida neste “contexto” sua personagem principal, realiza alguns de seus desejos, no
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1407
fim da vida. Através da sua decisão de mudança, a autora reorganiza ficcionalmente, o
sujeito social feminino, do plano “real”, aproximando personagem e sociedade.
A personagem de ficção
Personagem é um ser fictício que vive, sonha, morre dentro do plano de uma
narrativa, na qual existe um universo onde se desenrola a ação dos fatos vividos pela
mesma. A origem desse ser, se dá as vezes no interior de um autor, que cria apenas
uma trajetória pela qual ele deve passar, ou pode ser uma possível recriação de alguma
pessoa que está inserida na vida real de seu autor. Toda história é construída por pessoas
que a vivem, fazendo com que ela possa acontecer, no caso da estória, que está ligada
ao mundo imaginário, precisa de personagens que dão vida a mesma, sob a projeção do
criador. Nota-se a visão de Forster em relação à personagem:
[...] geralmente nasce, é capaz de morrer, requer pouco alimento ou sono, está
incansavelmente ocupado com relações humanas, e - o mais importante -
podemos saber mais sobre ele do que qualquer um dos nossos semelhantes,
porque seu criador e narrador é um só. (FORSTER, 1969, p.35)
A personagem não pode ser confundida com a pessoa, pois apesar de terem
algumas semelhanças, elas fazem parte de planos diferentes. Trata-se de um ser criado a
partir das palavras, essa é a única maneira de provar sua existência e é por meio destas,
que este ser se torna “real” dentro do plano da narrativa. Toda a autonomia e “vida” que
a personagem adquire com a mediação do seu criador, estão intrinsecamente ligadas à
construção do texto, que nos diz algo sobre ela e sobre sua personalidade. Já em se
tratando de pessoas, elas habitam num mundo real, são materializadas fisicamente e sem
contar, que são ilimitadas. Mesmo que a forma de comportamento da personagem
mantenha alguma relação com o mundo exterior a narrativa, ela não pertence a este.
Em sua obra, A personagem, Beth Brait, apresenta pontos importantes e
necessários, para que se possa compreender a distinção entre pessoas e personagens, que
muitas vezes são pensadas como seres de mesma natureza.
Partindo da premissa de que a personagem é um habitante da realidade
ficcional, de que a matéria de que é feita e o espaço que habita, são diferentes
da matéria e do espaço dos seres, mas reconhecendo também que essas duas
realidades mantêm um íntimo relacionamento... (BRAIT, 1990, p.11-12)
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1408
Apesar de estarem vinculadas, pessoa e personagem têm também funções
diferentes, pois uma se constitui como sendo real e a outra como recriação ou
reorganização do “real”. Ao criar uma personagem, o autor pode se utilizar de
características apresentadas pela pessoa humana, mas a partir do momento que estas se
tornam parte do texto ficcional é distanciada da realidade e remodelada pelo toque
artístico e imaginário.
Se quisermos saber alguma coisa a respeito de personagens, teremos de
encarar frente a frente a construção do texto, a maneira que o autor encontrou
para dar forma as suas criaturas, e aí pinçar a independência , a autonomia e a
“vida” desses seres de ficção. É somente sob essa perspectiva, tentativa de
deslindamento do espaço habitado pelas personagens, que poderemos ser útil
e se necessário, vasculhar a existência da personagem enquanto representação
de uma realidade exterior ao texto. (BRAIT, 1990, p.11)
Acerca desta temática, Brait estabelece relações com o pensamento de Horácio,
que fala sobre a atribuição das características humanas às personagens, refletindo e
avaliando-a segundo o modelo humano e trabalhando o conceito de mimese, que diz
serem as relações da personagem com a exterioridade, apenas uma imitação da pessoa
real.
Horácio concebe a personagem não apenas como reprodução dos seres vivos,
mas como modelos a serem imitados, identificando personagem-homem e
virtude e advogando para esses seres o estatuto de moralidade humana que
supõe imitação. Ao dar ênfase a esse aspecto moralizante, ainda que suas
reflexões tenham chamado a atenção para o caráter de adequação e invenção
dos seres fictícios, Horácio contribuiu decisivamente para uma tradição
empenhada em conceber e avaliar a personagem a partir dos modelos
humanos. (BRAIT, 1990, p.35)
A partir das novas e renovadoras visões do século XVIII e XIX, esta visão de ser
ficcional passou a ser considerada rasa e insatisfatória, pois começou a se pensar numa
personagem mais relacionada à interioridade e a corrente de pensamento de seu criador.
A trajetória de vida percorrida pela personagem é pensada e construída pelo autor que,
muitas vezes, já conhece cada passo que ela vai dar, cada palavra que ela expressará e
até mesmo os pensamentos que vão habitar sua mente. Estas são questões mais
discutidas e levadas em consideração pela visão psicologizante da personagem, que
substitui a concepção herdada de Aristóteles e Horácio. Com estas mudanças, não só as
personagens, mas também o romance de uma forma geral começaram a ser pensados
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1409
como parte do psicológico e da maneira de ser do autor, embora a personagem ainda
continue sendo observada como ser antropomórfico cuja avaliação se vincula a pessoa
humana. Então se pode afirmar que estas são apenas diferentes formas da visão de
personagem antropomórfica.
Em meados do século XX, a obra Teoria do romance, de György Lukács, trouxe
uma nova ótica a respeito da problemática da concepção do personagem de ficção. O
herói problemático entra em voga nas obras e luta contra o conformismo e as
convenções, estando em oposição e comunhão com o universo. Entretanto, Brait deixa
bem claro que, novamente, essa visão encerra-se no dualismo homem-personagem. Só
a partir de Forster é que a tendência antropomórfica da personagem vai sendo deixada
de lado, mesmo que não seja totalmente. Estando ligadas as produções literárias do
contexto histórico e ainda mais com o surgimento do New Criticism, Forster considera a
intriga, a história e a personagem como as bases estruturais do romance. As personagens
deixam de refletir o mundo exterior, para fazerem exclusivamente parte da obra. De
acordo com este ponto de vista, elas são tratadas como seres de linguagem.
Forster também traz informações com relação às classificações e tipos de personagens,
de acordo com a personalidade e o comportamento das mesmas na “realidade” ficcional.
Segundo Forster, as personagens, flagradas no sistema que é a obra, podem
ser classificadas em planas e redondas. As personagens planas são
construídas ao redor de uma única idéia ou qualidade. Geralmente, são
definidas em poucas palavras, estão imunes a evolução no transcorrer da
narrativa, de forma que as suas ações apenas confirmem a impressão de
personagens estáticas, não reservando qualquer surpresa ao leitor (BRAIT,
1990,P.40-41)
As personagens planas são identificadas facilmente, pois buscam sempre o
mesmo objetivo sem mudança de pensamento e linha de raciocínio, além de não
sofrerem grandes mudanças de personalidade, que pode ser facilmente compreendida.
Este tipo de personagem, muitas vezes, influencia pouco no conflito da diegese e acaba
por ser um elemento decorativo. Já as personagens mais complexas, cujas
personalidades são alteradas ou geram dúvida no decorrer da narrativa, são as que
Forster classifica como redondas. Geralmente este tipo de personagem é imprevisível e
pode ter ações e pensamentos completamente diferentes das que o leitor espera.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1410
Brait diz que apesar destas contribuições de Forster para a mudança de se pensar
a personagem como imitação da pessoa humana, sua teoria continua parcialmente presa
à dualidade ficcional-pessoa humana.
Mas a esta altura, o leitor poderia perguntar: “Apesar da contribuição e das
inovações apresentadas por Forster no que diz respeito ao estudo da
personagem, ele ainda não estaria pautado na ligação entre ficcional-pessoa
humana? Ou de uma outra maneira: “será que existe realmente alguma forma
de escavar a materialidade dos seres fictícios abstraindo inteiramente sua
relação com o ser humano? (BRAIT, 1990, P.41-42)
A dissociação entre pessoa e ser ficcional só chega a existir totalmente, a partir
dos formalistas Russos, com a publicação do formalismo Russo, Victor Erlich que traz
uma nova visão acerca da literatura. Os formalistas focaram na organização do texto e
de sua composição. Tudo que está inserido na obra de ficção é considerado como
fábula. De acordo com este pensamento, a personagem possui vínculo com a fábula e
só chega à plenitude de ser fictício, a partir do momento em que suas ações coincidem
com o desenrolar dos acontecimentos da trama, sendo, portanto seres de linguagem.
Quanto às classificações das personagens, podem também ocorrer conforme a
sua posição na estória. Algumas são consideradas fundamentais para a estória de ficção,
entre eles estão o protagonista e o antagonista, que são antônimos na linguagem teatral,
literária, novelística, cinematográfica e entre os mais variados gêneros onde se possam
encaixar personagens. O primeiro é o que possui papel de destaque na trama, ou seja, é
o ícone principal do enredo em questão e em muitos casos, os acontecimentos giram em
torno dele. O segundo também se destaca na obra, mas nem sempre é um ser humano,
pode ser um obstáculo na vida do protagonista em forma de gente, animal,
circunstâncias, entre outros. Este tem a função de boicotar ou dificultar os planos do
protagonista, gerando conflitos.
Aspectos sociais e históricos
Em Iluminata, seu romance de época, Ferreira apresenta a história de uma
mulher culta, inteligente, que durante muito tempo viveu presa ao sistema vigente do
século XIX e a ignorância do seu marido, que era um homem rico e que preservava a
sua imagem diante da sociedade. Após a morte do seu marido, depois de ter vivido
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1411
muitos anos de submissão, Iluminata resolve lutar contra a imposição pelo meio, em
busca da sua própria felicidade, e após ter vivido altas aventuras consideradas
inadequadas para uma senhora daquele tempo, ela resolve passar suas experiências para
o papel, expressando aquilo que ela não poderia mostrar, devido aos limites do contexto
histórico.
[...] Theotonio morto. Se quero de fato tentar um mergulho no mais profundo
de mim, sou obrigada a confessar: sua morte não me deixara o vazio que
todos – todas – dizem sentir ante a perda de um cônjuge. Quantas vezes – e
tenho pejo de o confessar, mesmo nestas linhas de minha propriedade
somente e de mais nenhum outro ser humano, que ninguém nunca lerá,
certamente - , quantas vezes desejei sua morte. Por curiosidade. Por desejo de
independência. Como seria me sentir outra vez livre para viver minha própria
vida? Que seria poder retraçar, sozinha, o desenho de meus dias, refazer
caminhos, escolhas? Ou então não planejar nada, deixar simplesmente
escorrer o fio dos dias, abandonar-me às águas da vida,(...)
(FERREIRA,2012,P.20-21)
As experiências da personagem Iluminata no romance mostram a realidade do
cotidiano das mulheres que viveram antes, durante e depois do século ressaltado no
plano da narrativa. Através dessa personagem histórica, a autora aproxima à possível
“realidade” do seu universo ficcional, da realidade propriamente dita, pois sabe-se que a
literatura se constitui como a reorganização do real, mas isso não quer dizer que ela é
uma cópia fiel do exterior. A isso nos alerta Candido:
Com efeito, todos sabemos que a literatura, como fenômeno de civilização,
depende, para se constituir e caracterizar, do entrelaçamento de vários fatores
sociais. Mas, daí a determinar se eles interferem diretamente nas
características essenciais de determinada obra, vai um abismo, nem sempre
transposto com felicidade. (CANDIDO, 1918, p.21)
As ações no desenrolar do enredo, mostram a submissão das mulheres, que já
estava emaranhada no cotidiano das mesmas como algo fixo e imutável. A personagem
Iluminata, é o espelho da mulher recifense do século XIX, que vivia presa ao sistema
vigente da época, e ao mesmo tempo representa a voz feminina deste contexto histórico,
quando as mulheres não podiam fazer suas vontades e não tinham a oportunidade para
se posicionar nas decisões, pois Iluminata além de tomar coragem e lutar contra a
padronização da sociedade, também encontra na arte de escrever, o meio para dizer as
aventuras amorosas que viveu, mesmo que no fim da vida.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1412
Estrutura
O romance Iluminata é composto por 155 páginas, as quais estão divididas em
25 capítulos consecutivos. Estas questões estruturais precisam ser levadas em
consideração, pois no romance há a presença de dois discursos correspondentes às duas
vozes narrativas que se seguem expressas uma após a outra e podem ser identificadas
não só por meio daquilo que dizem, mas também pelas diferenças nos tipos de letras
usadas para mostrar cada uma delas.
Como já foi dito, a história de vida da personagem é contada por ela mesma, por
folhas escritas e guardadas, que foram encontradas pela filha, alguns anos após a sua
morte.
Revolvendo gavetas de um velho guarda-louça, pertencente a minha mãe,
encontrei as páginas seguintes, que o leitor lerá, com interesse talvez, com
enjôo algumas vezes, surpreso certamente, de que uma senhora como minha
mãe tenha colocado no papel essas confissões [...] (FERREIRA,2012,p.7)
Há a presença de duas narradoras personagens no romance, Iluminata, que fala
sobre a sua própria trajetória acinzentada de esposa, mãe e proibida de ser mulher
encantadora e atraente, sem desconsiderar a falta de liberdade e autonomia, que
rondaram sua vida por bastante tempo, principalmente antes de Theotonio, seu marido,
falecer. O outro discurso é constituído pelas considerações da filha, com alguns
questionamentos externos com relação ao que a mãe escreveu. Ela mostra seu ponto de
vista, frente a tudo que foi narrado. A filha também participou da vida de Iluminata e
tece comentários sobre ela, mas, às vezes, se mostra surpresa com as declarações feitas
pela mãe:
Engraçado: enquanto vivia Theotonio, as atenções de Antonio Peregrino me
lisonjeavam e até me interessavam, talvez pela atração que sempre exerce
sobre nós o proibido, a presença do esposo punha um limite aos galanteios
permitidos. Aconteceu-me até sentir um tantinho de ciúme ao ver como
Antonio Peregrino se cercava de senhoras, recitando improvisos, escrevendo
poemas em seus álbuns de recordação. (FERREIRA, 2012, p.13)
Vejamos os comentários da filha em relação aos sentimentos expressos pela
mãe:
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1413
Nunca notei entre minha mãe e o doutor Antonio Peregrino alguma coisa
mais que a amizade e o respeito que existia nas relações de meus pais, com
os outros amigos frequentadores de nossa casa. É bem verdade que eu era
menina quando morreu meu pai e o carinho e o interesse que o Doutor
Antonio Peregrino sempre mostrou por nós – chegou mesmo a escrever um
poema em meu álbum de adolescente (FERREIRA, 2012, p.15)
Assim se dá toda a estrutura do livro, de maneira que para cada parte narrada
pela mãe, existe um comentário da filha, que também é uma narradora cuja focalização
é também homodiegética, pois ela está inserida na estória.
O espaço e o contexto histórico, ao qual o romance faz referencia, é o Recife do
século XIX, época em que se tinha uma sociedade de pensamento bastante conservador
e patriarcal, na qual as mulheres não tinham o direito de se expressar, nem viver de
acordo com seus próprios pensamentos. A partir disso, pode-se estabelecer uma relação
entre a situação feminina da época, com a presença proposital das duas vozes femininas
que se expressam no romance. A personagem título-protagonista e sua filha expõem
suas ideias em relação aos fatos, prática que na época não poderia ser concretizada.
Através destas duas vozes que se expressam livremente no romance, expondo seus
sentimentos, a autora denuncia a voz feminina reprimida do passado, fazendo com que
ela se manifeste através das personagens criadas por ela. Desta forma, pode-se dizer que
a luta das primeiras feministas permanece viva, através do romance de
Ferreira, de maneira que suas personagens femininas refletem a condição da
mulher, pertencente ao plano da realidade, evidenciando algumas questões como:
A segregação social e política a que as mulheres foram historicamente
conduzidas tivera como consequência a sua ampla visibilidade como sujeito –
inclusive como sujeito da ciência. Assim, os estudos iniciais se constituem,
muitas vezes, em descrições das condições de vida e de trabalho das mulheres
em diferentes instancias e espaços. (LOURO, 2010, p.17)
No romance Iluminata, isso pode ser exemplificado, através das personagens,
Iluminata e de sua amiga de infância, Delphina, que em seus pensamentos e conversas
particulares, desabafam, sobre a condição de ser mulher, os desejos que não podem
realizar, devido à maneira de pensar e do contexto histórico já mencionado. Observa-se
o que pensa a protagonista, com relação a isto:
Mas, nós, as mulheres temos um tal desejo de ser felizes, guia-nos uma tal
força interior que conseguimos achar o caminho que concretizará nosso
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1414
projeto pessoal de ser alguém. E isso apesar das poucas ocasiões que nos
outorgam o direito de agir por nós mesmas, de nos isolarmos, de fazer agir
nossa imaginação e viver existências tão mais ricas que aquelas permitidas
por pais, noivos, maridos, irmãos, tios. (FERREIRA, 2012, p.33)
Em um diálogo entre as duas, elas manifestam indignação à subalternidade
atribuída ao gênero feminino. Naquela época, as ações das mulheres eram limitadas,
suas trajetórias eram construídas sob a ótica masculina dominante. Então não eram
livres para buscarem seus próprios prazeres.
[...]- E imagina, querida, nunca nos deixaram imaginar que isso existia, que
era possível que uma tão grande alegria pudesse surgir em nós, assim, de
repente, como um dom que a pessoa amada nos ofertasse. Sabes o que
pensei? Que durante anos esconderam das mulheres como eu e tu, que tal
coisa existe sim. Os pais por temor que a curiosidade levasse a filha a se
perder, quando um herói qualquer lhe fizesse vislumbrar, mesmo de leve,
essa alegria dos corpos. Os padres por querer evitar que a ovelha se perdesse.
E os maridos temerosos de suscitar desejos que eles não podiam ou não
quereriam abrandar, desejos podendo levar a mulher a buscar em outra parte
o que haviam vislumbrado.
Suspirou, um suspiro de indignação:
- Fomos obrigadas a viver como se essa coisa não existisse ou fosse
pecaminosa. Vivemos na ignorância, afastadas dos homens, separadas,
resguardadas. E uma noite nos jogam nos braços de um desconhecido – sim,
porque entre o noivo respeitoso e apaixonado e o marido que se reconhece
todos os direitos, sobre nossos corpos, sobre nossas almas, existe um abismo.
É como se nos impedissem de aprender a nadar e depois nos jogassem ao
mar.
Eu ouvia tudo em silencio. Minha amiga tinha razão, mas o pudor me
impedia de mostrar cumplicidade. (FERREIRA, 2012, P.143)
Através desta conversa, nota-se que o texto aproxima-se da “realidade”, das
mulheres da época, de maneira que a narrativa reorganiza ficcionalmente, situações
exteriores a ela, as quais são comentadas por Alves e Pitanguy:
[...] Toda a educação das mulheres deve ser relacionada ao homem. agradá-
los, lhes ser útil fazer se amada e honrada por eles, educá-los quando jovens,
cuidá-los quando adultos, aconselhá-los, consolá-los, tornar-lhes a vida útil e
agradável - são esses os deveres das mulheres em todos os tempos e o que
lhes deve ser ensinado desde a infância”. (ROUSSEAU apud ALVES e
PITANGUY,2003)
Através do romance Iluminata, o leitor se depara com diversos aspectos
sociológicos, históricos pertencentes à formação da identidade feminina, mais
especificamente a partir das vivencias e conflitos da personagem protagonista. Casada
por puro tédio e conveniência a mesma se introduz na narrativa como uma senhora,
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1415
atuante no comando da casa, precisando se dedicar a manter a reputação do marido,
afinal a sua maneira de se portar nas mais diversas situações, contariam para as boas ou
más impressões que iriam ter de Theotonio. Como se percebe que fora as tarefas do
ambiente doméstico, ela foi apenas um troféu para dar mais prestígio ao respeito que as
pessoas tinham pelo marido. Estas condições eram tão banais na vida de uma mulher em
diferentes épocas, sendo sempre atribuídas ao feminino, que grande parte delas, já as
aceitava como forma natural em que as coisas deveriam ocorrer.
Dessa forma, atribui-se como próprias do universo feminino, todas as atividades
internas, sendo contra o sistema, a sua participação ativa, nas questões políticas e
sociais.
[...] Eu, esta leitora gendrada - percebo como particularidades próprias a meu
universo cultural, à maneira distintiva como minha subjetividade (construídas
nas relações intersubjetivas com essas meninas e outras produções simbólico-
discursivas postas as disposições dos sujeitos sociais) se reconhece ao
reconhecer aquilo que as práticas, os discursos, os dispositivos sociais, enfim
circunscrevem sob o nome de feminino o qual, por ação dos mesmos
dispositivos, se cola a minha condição de mulher, definida pelo sexo a que
pertenço (QUEIROZapudBARBOSA2011,p.21)
Veja-se o que diz Iluminata:
Agradeci com um sorriso. De fato, eles é que me haviam ofertado a alegria da
companhia, em uma noite que eu planejara perfeita: o jantar fora preparado
com cuidado, os pratos estavam deliciosos, eu mesma arrumara os bouquets
sobre os móveis, a luz dos lampiões era suave, de modo a criar um ambiente
de intimidade. (FERREIRA, 2012, p.41)
Por apresentar uma vida referente ao privado, já que a maioria das ações e
vivencias das mulheres eram ligadas ao interno, em outras palavras, ao lar, é que se
afirma ser através da personagem Iluminata, apresentadas questões próprias a dita
formação da identidade feminina.
Considerações Finais
A personagem Iluminata, criação de Luzilá Gonçalves Ferreira, é o espelho da
mulher recifense do século XIX, que vivia presa ao sistema vigente da época e, ao
mesmo tempo representa a voz feminina deste contexto histórico, em que as mulheres
não podiam fazer suas vontades e não tinham a oportunidade para se posicionar nas
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1416
decisões, pois Iluminata além de tomar coragem e lutar contra a padronização da
sociedade, também encontra na arte de escrever o meio para dizer as aventuras
amorosas que viveu, mesmo que no fim da vida.
Relaciona-se também o fato de a protagonista ter deixado suas próprias
experiências por escrito, a negação da capacidade que as mulheres tinham para serem
autoras, construtoras da sua própria história, sem ter regras estabelecidas e ditadas pelo
meio. Hoje os romances cujas autorias são femininas retratam a identificação da mulher
a partir da sua diferença, criando personagens autênticas, resgatando a mulher através da
arte literária.
Referencias
AlVES, Branca Moreira O que é feminismo/ Branca Moreira Alves, Jacqueline Pitanguy
– são Paulo: Brasiliense, 2003. – (Coleção primeiros passos; 44)
BARBOSA, Adriana Maria de Abreu. Ficções do Feminino / Adriana Maria de Abreu
Barbosa – Vitória da Conquista: Edições UESB, 2011
BRAIT, Beth A personagem Editora Ática S.A. — Rua Barão de Iguape, 110 Tel.:
(PABX) 278-9322 — Caixa Postal 8656 End. Telegráfico ‘Bom livro” — São Paulo
CANDIDO, Antonio Literatura e Sociedade 1918 12ª. Edição revista pelo autor/ Rio de
Janeiro: Ouro sobre Azul 2011/ 204 pág.
FERREIRA, Luzilá Gonçalves. Iluminata. Recife: Fundação de Cultura Cidade do
Recife, 2012.
FORSTER, E.M. Aspectos do Romance. Trad. Maria Helena Martins. Porto Alegre:
Editora Globo, 1969.
LOURO, Guacira Lopes Gênero, sexualidade e educação 2010 11ª. Edição Uma
perspectiva pós-estruturalista/ Guacira Lopes Louro – Petrópolis, RJ.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1417
IMAGENS DE NAÇÃO EM ODETE SEMEDO E
CONCEIÇÃO EVARISTO [Voltar para Sumário]
Karina de Almeida Calado (PUC-Minas)
1. Nação, identidade e memória
Ao lançarmos mão da escolha deste corpus de análise, o cantopoema No Fundo
do Canto, da autora guineense Odete Semedo, e Poemas da recordação e outros
movimentos, da autora brasileira Conceição Evaristo, pretendemos observar como essas
autoras, ao tecerem em seus poemas situações experienciadas por elas mesmas, ou que
estão em seu imaginário, a partir de situações vividas por gerações anteriores às suas,
promovem uma releitura do passado de suas nações e buscam uma inserção de
memórias silenciadas no processo de construção da memória nacional.
Em seu capítulo intitulado “Disseminação”, constante do livro O local da
cultura, Homi Bhabha (2013) nos levar a questionar a ideia de homogeneidade e
horizontalidade associada à nação como uma “comunidade imaginada”. Para Bhabha,
nação é narração. Nesse sentido, ele desenvolve em seu texto o argumento de que as
narrativas dos povos errantes (colonizados, pós-colonizados, migrantes e minorias), que
historicamente foram colocados à margem da nação oficial, são o que ele chama de
contra-narrativas, as quais apresentam o contraponto da nação homogênea e horizontal.
Bhabha (2013) considera que essas contra-narrativas estão permeadas pelos
“fragmentos, retalhos e restos da vida cotidiana [que] devem ser repetidamente
transformados nos signos de uma cultura nacional coerente, enquanto o próprio ato da
performance narrativa interpela um círculo crescente de sujeitos nacionais”. Sob essa
perspectiva, podemos relacionar os poemas de Odete Semedo e Conceição Evaristo à
ideia contida no conceito de contra-narrativa. Para tanto, consideramos que, do relato
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1418
poético dessas duas autoras, emergem as diversas faces da condição de mulher, do
sujeito “pós-colonizado” e em diáspora, dos conflitos enfrentados por sua gente, dos
fragmentos e retalhos da vida cotidiana, que pode ser traduzida como metáfora da vida
nacional.
Corroborando com o exposto acima, essas contra-narrativas evocam e rasuram
as fronteiras totalizadoras da nação e “perturbam aquelas manobras ideológicas através
das quais ‘comunidades imaginadas’ recebem identidades essencialistas” (BHABHA,
2013, p. 211). Reforçando a concepção de Bhabha, Wander Miranda (2012, p. 362)
afirma que “se a fronteira é o que diferencia uma nação do que está fora dela — o
território do outro —, o discurso minoritário assinala a existência de fronteiras internas,
que demarcam o espaço heterogêneo da identidade a ser compartilhada”. Dessa
maneira, relatos como os de Semedo e de Evaristo contribuem para a revisão e a
desconstrução de uma imagem de suas nações que apresenta o povo “como um”.
No Fundo do Canto foi publicado inicialmente em 2003, em Portugal, e conta
com uma edição brasileira de 2007. Nele, Odete Semedo nos traz uma voz poética que
se constrói como o tcholonadur (mensageiro) de sua nação. A experiência narrada em
seu relato é o da vivência na guerra civil que devastou a Guiné-Bissau, entre 1998 e
1999. A encenação poética dá conta de três momentos: a conjuntura política que
antecedeu o conflito; a eclosão e os horrores da guerra e, por último, a voz poética
convoca a participação de todas as etnias guineenses, através de suas dividades
protetoras (irans), para analisar o conflito e encontrar uma solução para a paz. Com esse
gesto, a autora evoca uma imagem de nação inclusiva e será nessa última parte que
focaremos a nossa análise.
Conceição Evaristo publicou Poemas da recordação e outros movimentos em
2008. As páginas de sua “escrevivência”, como ela mesma batiza a sua escrita literária,
traz para a sua encenação poética várias vozes anônimas, representadas na figura de sua
filha, sua mãe, sua tia, seus amigos, das crianças na rua, de negros e negras. Essas
vozes, concorrendo com o espaço periférico em que habitam, também foram relegadas
ao anonimato nas representações simbólicas da nação brasileira.
Compreendemos que as duas autoras encenam realidades distintas, mas com
pontos em comum. Ambas tratam da temática da violência e da força do trauma dela
decorrente na vivência de suas gentes. Se Odete Semedo fala do horror da guerra civil,
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1419
passando pela dificuldade de encontrar a estabilidade política no país pós-
independência, Conceição Evaristo se remete à violência da escravidão e as
consequências desse sistema para a sua gente, ao revisitar o imaginário das gerações que
a antecederam e as que lhe são contemporâneas.
Cientes de que as autoras convocam elementos culturais eventualmente distantes
e heterogêneos entre uma e outra realidade, a possibilidade de colocar essas duas vozes
em relação trar-nos-á uma compreensão mais ampla acerca do processo de construção e
de revisão de suas respectivas nações. Na Guiné-Bissau, o momento é de juntar as
partes estilhaçadas pela guerra e de (re)construir a nação. No Brasil, o tempo é de
revisão da memória nacional para a inclusão das memórias dos que ficaram à margem
de seu processo de construção.
A partir da concepção de identidade-rizoma, postulada por Glissant (2011),
entendemos que a noção de identidade que permeia a obra dessas duas autoras
compreende uma construção múltipla. Conforme Glissant, o ente que não vem de uma
raiz única, mas de uma raiz que vai ao encontro de outras raízes.
Ao encontro das considerações acima, convocamos o entendimento sobre
identidade na perspectiva de Stuart Hall (2003). Para ele, a identidade é uma
“celebração móvel”, transformada permanentemente. Nessa concepção, a instabilidade,
a descentração, o questionamento e a problematização da identidade são fundamentais
para as nações “pós-coloniais”. Cabe aqui trazer a relação entre identidade individual e
cultura nacional exposta por Hall. Segundo esse teórico, a cultura nacional produz
identificação porque é
um discurso — um modo de construir sentidos que influencia e organiza
tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos […] As
culturas nacionais, ao produzir sentidos com os quais podemos nos
identificar, constroem identidades. Esses sentidos estão contidos nas estórias
que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com o
seu passado e imagens que dela são construídas. (HALL, 2003, p. 50-51)
Odete Semedo e Conceição Evaristo têm consciência da importância de seu
papel na textualização da nação. Elas sabem que a literatura é o espaço privilegiado para
a inscrição de suas memórias nos projetos de nação que estão se configurando. Essa
observação vem corroborar com a ideia de nação como plebiscito diário, exposta por
Ernest Renan. Para Renan, a nação é a própria vontade de ser nação, um processo de
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1420
negociação entre indivíduos, que ocorre continuamente. Nesse sentido, tal concepção
asseguraria o tempo de reinscrição da nação, fundamental para compreendermos essas
duas poéticas.
Em convergência com o que ora afirmamos estão as palavras da estudiosa
Inocência Mata (2007, p. 33), ao ressaltar a necessidade “de se pensar a identidade
nacional, social e cultural, como processo em constante reconfiguração”. Isto porque, se
consideramos que o indivíduo está em contínuo questionamento da imagem de si
mesmo e nesse processo podemos localizar a interseção entre identidade individual e
nacional (AUGEL, 2007a, p. 267), compreendemos que, ao revisar a imagem de si, o
sujeito acaba também por revisar a identidade nacional.
Buscarmos compreender a nação a partir da perspectiva do indivíduo nos
possibilita visualizar a rearticulação de identidades e de fronteiras das nações modernas.
Tal singularização é necessária até mesmo como uma forma de colocar-se em oposição
à perspectiva totalizadora da nação “coesa”, em que muitos são vistos como “um”. Ao
garantir o espaço do indivíduo, constrói-se a possibilidade da emergência de memórias
que exponham as fraturas ocultadas pela totalidade da nação.
Michael Pollak desenvolve a noção de “memórias subterrâneas” para definir as
memórias que são abafadas pela memória oficial, entendendo como subterrâneas as
memórias dos excluídos, dos marginalizados e das minorias. Em seus estudos, Pollak
foca no debate em torno da violência contida no gesto da escolha das memórias oficiais,
do questionamento acerca da conciliação de memórias e do espaço para emergência das
memórias individuais. Segundo o autor (1989, p. 11), “através [do] trabalho de
reconstrução de si mesmo o indivíduo tende a definir seu lugar social e suas relações
com os outros”.
Odete Semedo conta as suas memórias sob a perspectiva das vítimas da guerra.
Uma guerra entre irmãos, em que não há heróis nem fatos heroicos. O que está em
evidência são os desdobramentos do conflito na vida dos civis e todo o caos que tomou
conta do país: a necessidade de partir e deixar tudo que se construiu durante toda a vida;
o não ter para onde ir; as pessoas verdadeiramente sem chão; o desafio de reconstruir do
país sob os escombros da guerra.
Conceição Evaristo narra a violência cotidiana de uma guerra silenciosa contra
as pessoas negras, no Brasil. A autora investe em sua escrita a reivindicação do espaço
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1421
para a memória dos povos afro-brasileiros, que foram ocultados na face harmônica da
nação miscigenada. Faz emergir imagens do cotidiano, da violência física e moral, dos
gritos silenciados, de desigualdades, de fome, de injustiças.
Pela via da escrita ou da militância literária e intelectual, Odete Semedo e
Conceição Evaristo têm empreendido uma luta para romper tabus e construir espaços de
interlocução para essas memórias subterrâneas. Ambas tornam evidente em sua
literatura a necessidade de escrever as suas lembranças contra o silêncio, conforme
podemos observar nos seguintes trechos dos livros escolhidos neste estudo:
[…] Volto a descerrar este Fundo, imbuída de um novo Canto que se quer um
cantopoema, vivo, como deve ser viva a poesia guineense: Um verbo que
canta, que reconhece o seu canto em cada fala do chão guineense; um verbo
que chora sem complexos a sua dor, mas que se rebela contra a indigência,
contra a lassidão; escritos que não atiçam o ódio e que a todos acordam para a
busca e para a beleza espontânea das letras. Um canto/mantenha que em cada
um e em cada uma e em cada um avive a chama verdadeira da liberdade e a
responsabilidade de construção de um país que se deseja… que se ambiciona
Novo. (SEMEDO, 2007, p. 15-16)
— nossos poemas conjuram e gritam —
[…]
O silêncio mordido,
antes o pão triturado
de nossos desejos,
avoluma, avoluma
e a massa ganha por inteiro
o espaço antes comedido
pela ordem.
E não há mais
quem morda a nossa língua
o nosso verbo solto
conjugou antes
o tempo de todas as dores.
[…] (EVARISTO, 2008, p. 49)
Notamos que Odete Semedo e Conceição Evaristo veem no gesto de sua escrita
o instrumento de luta, o espaço da reivindicação, da construção do novo, do tempo de
reinscrição da nação. As palavras de Semedo estão na nota de abertura de seu livro. As
de Evaristo estão no poema intitulado “Da Conjugação dos Versos”. Ambas imprimem
em suas palavras o sentimento que está na interseção entre o individual e o coletivo: as
suas dores individuais na busca de metaforizar as dores de sua gente. Além dessas
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1422
questões, os dois trechos citados ainda se aproximam ao utilizarem palavra “verbo”
como metonímia para “poema” e creditarem nela o poder de rebelião contra o silêncio e
contra as injustiças.
O sentido de literatura que flui na escrita dessas duas autoras é o da “perda de
memória do continuum da história” (MIRANDA, 2012, p. 358). Isto porque, ao
inserirem as suas memórias, corroboram com a desconstrução do entendimento da
história como curso unitário e possibilitam o olhar para as fraturas da totalidade da
nação.
2. A nação guineense na poesia de Odete Semedo
Moema Augel (2007a) salienta que é na literatura que começa a se processar o
pensamento identitário e a se configurar o caráter nacional da Guiné-Bissau. Para ela, de
maneira clara ou subliminar, há na literatura guineense um movimento de afirmação da
identidade individual ou coletiva, que implica na tentativa de compreensão do passado
ancestral e das experiências humanas no território nacional.
Diante da necessidade de fazermos um recorte da obra para analisar neste
estudo, e por não acharmos viável recorrer a trechos de poemas, optamos por trazer um
único poema, mas que traduzisse, em caráter exemplar, a imagem de uma nação
guineense inclusiva. O poema em questão, “Bissau levanta-se”, é da última parte do
livro e compõe o último dos três “embrulhos”:
Bissau escutou a sua irmã Guiné
viu os embrulhos abrirem-se
ante os seus olhos
ouviu o discurso proferido
por um corpo sem cabeça
lutando contra a morte
Bissau quis levantar-se
Soergueu-se
pernas pesadas dormentes
braços descaídos
Sozinha não era capaz
De repente
outras mãos
fizeram-na levitar
Mãos da Guiné?
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1423
Sentiu-se leve leve
como lã de polon
Três Onças de ar feroz
O Porco-formigueiro… matuto
a Lebre… astuta
o Macaco… ágil
o Abutre… persistente
a Cabra do mato… elegante e veloz
o Lobo… matreiro e tenaz
O Cavalo… ligeiro e vistoso
a Jiboia… serpenteante
o Hipopótamo… corpulento
o Crocodilo… forte e pérfido
o Pis-bus… vigoroso e potente
o Sapo… saltitão
Oraga… muito rápida
Ogubane com a sua destreza
Ominga habilidosa
Oracuma destemida
Onoca com a sua luz
Dabatchiar e Badingal
experientes
Bakapu felina
Badapa arisca
Bapusa altiva
Baluk possante
Babame e Bandika humildes
Bamoio Bamedu atentas
Batinatch rigorosa
Todos… de fidalgos a servidores
viventes da terra
do mar e do ar
beijaram o chão de bruços
levantaram os olhos ao céu
nas águas do mar molharam as mãos
limparam os rostos
Purificaram com água doce e salgada
Bissau e Guiné
enquanto sem cabeça
o corpo se debatia
na agonia
De joelhos no chão
juraram todos
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1424
proteger Bissau e Guiné
De costas deitaram-se
erguerem Bissau e Guiné
pareciam sumaúma
mais leves que uma pena
Os irans das djorsons sentiram
Guiné e Bissau uma só
erguendo-se com vigor
rearfirmando a sua força
ante o corpo
finalmente vencido
O corpo sem cabeça
sucumbiu
cremado
As cinzas
levadas
pelo macaréu
De mãos juntas
os irans
pediram mais força e mais vigor
invocaram todas as energias
do alto às profundezas do mar
e o chão foi abençoado (SEMEDO, 2007a, p. 157-159).
O título do poema traz na significação do verbo “levantar” a imagem de dois
movimentos: o da queda e o da ascensão. Mas “levantar” pode significar, para um país
saindo de uma guerra, a construção, a edificação do que foi reduzido a escombros.
Ainda podemos sugerir que há também o sentido de “despertar”, um gesto que vai ao
encontro da imagem do renascimento da nação.
A metáfora da capital caída remete às ruínas do país devastado pela guerra, toda
Bissau lançada ao chão. Nesse momento, uma sequência de imagens a faz mirar o
passado e imprimir a busca necessária para compreender as escolhas que a levaram ao
caos. Localizados os erros, é necessária a correção, para se tentar reerguer-se.
Para compreender o significado da imagem do “corpo sem cabeça”, na primeira
estrofe do poema, recorremos ao poema anterior, “Discurso de Urdumunhu”, e ao
posfácio do livro, escrito por Moema Augel. Essa imagem protagoniza o poema,
proferindo um discurso, e personifica a sede de poder, a motivação da guerra e as
estratégias para manter-se no poder. Esse “corpo sem cabeça” constrói seus argumentos
com base num retorno ao “original” e ao “tradicional”, uma espécie de exorcismo a tudo
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1425
que for herança colonial, como no trecho: “Para quê, luz elétrica?/ Saudosismo/ do
imperialismo colonial/ pois nada melhor que uma noite escura/ para contemplar a
natureza/ e a beleza celestial/ Voltemos às nossas origens irmãos/ Para quê, importar
fósforos?”. Nesses versos, evocados como amostra, é possível perceber o tratamento
irônico que a autora imprime ao poema. Quanto à representação do “corpo sem cabeça”
no imaginário guineense, valemo-nos das considerações de Augel (2007b, p.193-194):
“na Guiné-Bissau existe a crença de que uma pessoa reconhece inconscientemente que
está prestes para morrer e, nesse período que antecede a morte, a cabeça, isto é, a razão,
já não domina os seus atos e essa pessoa muitas vezes se comporta de forma insana e
desarrazoada”.
Prosseguimos a leitura do poema e percebemos que esse levantar não é um gesto
autônomo. Bissau não tinha forças para fazê-lo só: “pernas pesadas dormentes/ braços
descaídos/ sozinha não era capaz”. Eram necessárias outras forças, e essas não só a
fizeram erguer-se, mas levitar. O verbo levitar, que é seguido dos versos “Mãos da
Guiné?/ Sentiu-se leve leve/ como lã de polon”, sugere a libertação de um fado que fez
Bissau cair e não conseguir reeguer-se. Esse fado, pelo que acompanhamos ao longo do
cantopoema, seria decorrente da ganância que fez com que seus filhos excluíssem
irmãos de outras djorsons, olvidassem da sabedoria ancestral e nada fizessem para que o
vaticínio não se cumprisse. A evocação do gesto de outras mãos ajudando Bissau a
levantar-se, “Mãos da Guiné?”, funciona como uma espécie de reconciliação e
pacificação. Levitando com a colaboração das mãos irmãs, o país agora podia pensar no
futuro.
As quatro estrofes seguintes convocam os totens de diversas linhagens
guineenses. Todos são apresentados com as suas respectivas características: “a Lebre…
astuta/ o Macaco… ágil/ o Abutre… persistente”. Dessa união de todos os irans, que se
somam contribuindo com o que podem em prol do bem comum, a voz poética sugere a
necessidade de que todas as pessoas sejam representadas na construção da nova nação.
A sétima estrofe é iniciada com a palavra “Todos” e reúne “de fidalgos a
servidores/ viventes da terra/ do mar e do ar” para juntos se debruçarem sobre aquele
chão e, numa demonstração do afeto, todos o beijaram. Nos três últimos versos dessa
estrofe, podemos perceber a representação de dois tempos: o futuro, no gesto de
levantar os olhos para o céu, e seguir para esse futuro de cabeça erguida, superando o
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1426
passado devastador, que é sugerido nos seguintes versos: “nas águas do mar molharam
as mãos/ limparam os rostos”.
Nas quatro últimas estrofes, a imagem do futuro começa a ser construída. Esta se
inicia no momento em que os “irans” rendem rituais de purificação a Bissau e Guiné e
que o corpo sem cabeça agoniza, estando prestes a morrer. Na sequência, na
antepenúltima estrofe, mais uma vez observamos a ocorrência da palavra “todos” em
referência aos irans, que juram proteger Bissau e Guiné. Esse é o tempo em que Bissau
e Guiné são erguidas juntas, purificadas de suas respectivas culpas.
As duas últimas estrofes confirmam a vitória da unidade e da paz contra a
imagem da guerra, personificada no corpo sem cabeça. Ao vencer o pivô de toda a
discórdia, Guiné e Bissau, unidas, erguem-se dos escombros e reafirmam a sua força, a
sua capacidade de superação, para construir o novo. O poema, então, encerra-se com
uma bela imagem que evoca os irans de todas as linhagens de mãos juntas para, após
pedirem mais força e mais vigor e invocarem “todas as energias/ do alto às profundezas
do mar”, abençoarem o chão da Guiné-Bissau.
3. A nação brasileira na poesia de Conceição Evaristo
Nazareth Fonseca, ao discorrer sobre as imagens de negros na cultura brasileira,
analisa histórico e literariamente a exclusão do negro dos projetos de identidade
nacional brasileira. Ao considerar a transição da ordem escravocrata para o capitalismo,
a estudiosa afirma que “livre da escravidão, mas vitimado por intensa pobreza e
preconceitos e não protegido por qualquer política de integração à sociedade, [o negro]
ficou à margem dos projetos de identidade nacional ou neles só pôde figurar enquanto
força de trabalho, que sustenta a mesma ordem que o exclui” (FONSECA, 2010, p.90).
As palavras de Fonseca vão ao encontro dos argumentos de Pollak,
anteriormente citados, e reafirmam a violência contida no processo de escolha das
memórias que compõem a nação. No caso da nação brasileira, essa violência é
disfarçada na composição da face única e harmônica da nação miscigenada. Ao
apresentar a imagem do povo como um, o miscigenado, a nação brasileira condena ao
esquecimento toda a violência praticada contra os povos negros. Estes, além de
carregarem consigo as marcas do passado, entre elas a discriminação racial, e o estigma
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1427
da escravidão, são relegados aos espaços periféricos dos centros urbanos. Ao serem
excluídos da pólis, são, ao mesmo tempo, excluídos dos direitos sociais que os
“cidadãos” vão conquistando.
Conceição Evaristo vem contestar o caráter pacífico dessa imagem miscigenada
da nação brasileira ao trazer à tona os verdadeiros espaços nos quais os povos negros
foram obrigados a ocupar. Constrói, para tanto, uma voz poética em Poemas da
recordação e outros movimentos que parte do olhar sobre si mesma, mãe, mulher negra,
para proceder a uma grande imersão na memória, tanto individual quanto coletiva. Essa
voz se propõe, desde o primeiro poema, a fazer o caminho da volta, a releitura do
passado nacional.
Cada poema traz consigo vozes, imagens, corpos e cenas dos excluídos do
projeto de nação brasileira. Constituem-se como uma resistência à totalização da nação.
Dessa forma, podemos entender que a escrita de Conceição Evaristo, em si, já se
constitui como uma reivindicação para que as memórias que são postas “em cena”
sejam incluídas na imagem da nossa nação. Ao propor essa inclusão, Evaristo nos faz
perceber que essas narrativas são necessárias a uma imagem mais “verdadeira” de nós
mesmos.
Assim como fizemos com o livro No Fundo do Canto, adotaremos o recorte de
apenas um poema do livro, para que possamos trazê-lo na íntegra.
Vozes-Mulheres
A voz da minha bisavó ecoou
Criança
nos porões do navio.
Ecoou lamentos
de uma infância perdida.
A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1428
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome.
A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas engasgadas nas gargantas. ]
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato
O ontem — o hoje — o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
O eco da vida-liberdade. (EVARISTO, 2008, p. 10-11)
A voz poética individualiza as suas memórias ao trazer para a sua escrita as
imagens de sua bisavó, avó, mãe, de si mesma, e de sua filha. Entretanto, sabemos que
essas imagens funcionam como metonímias de várias gerações ocultadas na história do
Brasil. São memórias trazidas sob uma perspectiva da violência contida no silêncio e na
trajetória de mulheres negras. Ao trazer essas gerações, Evaristo recupera uma parte da
história marginalizada dessas mulheres, uma história que passa pela escravidão e pela
cozinha dos “brancos-donos”, mesmo após o fim do regime escravocrata. A voz da
poeta se insere no momento de ruptura dessa ordem: do “fundo das cozinhas alheias”
para o limiar da voz.
A abertura para a reinterpretação da memória de várias gerações traduz o desejo
de conhecimento de si mesmo e de suas raízes, que é uma atitude no presente e que visa
também à projeção de um futuro diferente para as futuras gerações.
O título do poema “Vozes-Mulheres” já nos apresenta a um recurso recorrente
na poesia de Conceição Evaristo: a criação de novos sentidos, a partir de um processo
original de composição por justaposição de palavras. Ao longo do poema em questão,
são três ocorrências dessas palavras compostas: Vozes-Mulheres, brancos-donos, vida-
liberdade.
Esse procedimento linguístico é muito importante para a compreensão da poética
de Conceição Evaristo. Ela nos apresenta a sua voz subversiva e, na subversão do
silêncio imposto por várias gerações até chegar a sua, demonstra também que, ao se
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1429
apropriar da língua portuguesa, está à vontade para subverter o código linguístico. No
tempo de releitura da nação, ela cria o seu espaço de enunciação, e o faz abrindo novos
espaços para a reinterpretação de signos. Esses, ao receberem uma segunda palavra que
os qualifica, passam a ter uma nova significação. Tal processo, portanto, sugere-se
como metonímia da própria voz da autora, uma vez que ela se constrói como uma voz
que visa à busca de um novo e mais completo “significado” para a sua nação. Devemos
considerar que num processo de composição das palavras, saímos da generalidade da
palavra “única” para termos um sentido mais vertical e particular, com a junção da
segunda palavra. O processo de justaposição ainda pode nos remeter à coexistência do
diferente: dois elementos de significações diferentes se juntam, ambos estabelecem
relações entre si, o segundo passa a dar um novo sentido ao que veio primeiro, tornam-
se interdependentes e têm igual importância no novo que surge.
Ainda sobre o título “Vozes-Mulheres”, nada melhor do que questionar o
silenciamento, começando pela palavra “voz”. A expressão evoca duas faces da
exclusão: o silenciamento dos povos negros e, mais ainda, das mulheres negras, ou seja,
o discurso da minoria da minoria. “Vozes-Mulheres” sintetiza gerações de mulheres
negras que tiveram as suas vozes abafadas e que encontram, na voz da poeta, ainda
perplexa “com rimas de sangue/ e/ fome”, a força para transgredir o espaço imposto
pelos “brancos-donos”, e pela qual, através da voz da sua filha, chegar-se-á à “vida-
liberdade”.
O poema traz os três tempos: passado, presente e futuro. Percebemos que há três
momentos nesse passado: o de sua bisavó, o de sua avó e o de sua mãe. Ao trazer essas
três gerações, a voz poética evoca três faces dessa voz no passado: a voz que ecoa
lamentos de uma infância perdida, a que ecoa obediência e a que ecoa revolta. No
presente, a voz poética dissemina em seus versos a sua voz e, ao mesmo tempo, a de sua
mãe, a voz de uma subversão no silêncio: “ecoou baixinho revolta/ no fundo das
cozinhas alheias”. Ainda no presente, “agora”, a voz poética afirma que a sua filha fará
a convergência de todas as vozes das gerações anteriores: “recorrer todas as nossas
vozes/ recolhe em si/ as vozes mudas caladas/ engasgadas nas gargantas.” e, num futuro
que se almeja próximo, “fará ouvir a ressonância/ o eco da vida-liberdade”. Entendemos
que a poeta encerra o poema com a expressão “vida-liberdade” para denotar que apenas
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1430
quando essas vozes se fizerem ouvidas, reunindo “a fala e o ato”, ressoar-se-á a “vida-
liberdade”.
Essa temporalidade também é traduzida no verbo ecoar, que ocorre em quatro
estrofes. Notamos que ele aparece conjugado no passado, nas três primeiras, e no
presente, na quarta. Na quinta, ele se torna o substantivo “eco”, sinônimo de substantivo
ressonância, que é empregado após a locução no futuro “se fará ouvir”. A ocorrência
dele, de forma repetida, é a própria imagem metafórica de seu sentido de ressonância,
como extensão e intensidade do som. A repetição acena para o desejo e a necessidade
dessa voz de ser ouvida, o que acontece na voz da poeta, ao traduzir esse eco presente
no imaginário de gerações, na metalinguagem de sua poesia: “A minha voz ainda/ ecoa
versos perplexos/ com rimas de sangue/ e/ fome.”.
4. Considerações finais
O trabalho de análise comparativa entre os poemas de Odete Semedo e
Conceição Evaristo nos possibilitou uma compreensão de como as duas autoras, por
meio de seus poemas, promovem uma releitura da memória e buscam uma redefinição
da identidade nacional de seus países. Em cada uma delas foi possível visualizar como a
literatura exerce o papel fundamental de construção das imagens de nação, bem como o
de dar voz aos excluídos da nação.
O estudo desses poemas nos propiciou o encontro de pontos convergentes nos
projetos estéticos das duas autoras. Ambas se colocam como mãe e mulher e revisitam o
seu imaginário ancestral, trazendo-o para o centro da sua poesia. Elas evocam esse
imaginário para promover o debate inadiável de suas respectivas nações: a inclusão de
memórias silenciadas.
As duas autoras trazem em sua poesia faces da memória traumática de sua gente.
Se em Guiné-Bissau percebemos, em Odete Semedo, imagens da violência de uma
guerra civil declarada, no Brasil, em Conceição Evaristo, é possível perceber imagens
da violência de uma guerra silenciosa que vitima os povos negros.
5. Referências
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1431
AUGEL, Moema. O desafio do escombro: nação, identidades e pós-colonialismo na
literatura da Guiné-Bissau. Rio de Janeiro: Garamond, 2007a.
AUGEL, Moema. Posfácio: Cantopoema do desassossego. In: SEMEDO, Odete Costa.
No Fundo do Canto. Belo Horizonte: Nandyala, 2007b. p. 185-198.
BHABHA, Homi K. DissemiNação. In: BHABHA, Homi K. O local da cultura.
Tradução Myriam Ávila et al. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.
EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. Belo Horizonte:
Nandyala, 2008.
FONSECA, Maria Nazareth Soares. Visibilidade e ocultação da diferença: imagens de
negro na cultura brasileira. In: FONSECA, Maria Nazareth Soares (org.). Brasil afro-
brasileiro. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. p. 87-115.
GLISSANT, Édouard. Poética da Relação. Tradução Manuela Mendonça. Porto: Porto
Editora, 2011.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 8. ed. Rio de Janeiro: DP&A,
2003.
MATA. Inocência. A crítica literária africana e a teoria pós-colonial: um modismo ou
uma exigência? In: A literatura africana e a critica pós-colonial: reconversões. Luanda:
Nzila, 2007.
MIRANDA, Wander Melo. À margem da nação. In: LEITE, Ana Mafalda et al. (orgs.)
Nação e narrativa pós-colonial I – Angola e Moçambique. Lisboa: Edições Colibri,
2012. p. 353-377.
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento e silêncio. Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p.3-15.
RENAN, Ernest. Que é uma nação?. Plural. Sociologia, USP, São Paulo, n. 4, 1. sem.
1997, 154-175. Disponível em:
<http://www.revistas.usp.br/plural/article/viewFile/75901/79400>. Acesso em: 2 nov.
2014.
SEMEDO, Odete Costa. No Fundo do Canto. Belo Horizonte: Nandyala, 2007.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1432
NOVAS TECNOLOGIAS E FORMAÇÃO DOCENTE [Voltar para Sumário]
Karina Kelly Amâncio1 (IFAL)
INTRODUÇÃO
Os desafios da atualidade frente para a formação de professores exigem dispor
de ambientes que permitam autoria de estudos, mediação pedagógica, interação,
produção de colaborativo conhecimento e o desenvolvimento de competências na
utilização das novas tecnologias da informação.
A formação nos meios tecnológicos permite configurar diversos cenários
formativos que analisados podem proporcionar aprendizagens mais qualitativas na
comparação entre os diferentes momentos e ensino em função de aulas tradicionais que
utilizem recursos da internet.
Mediante a isso, surge uma nova visão relacionada ao papel do educador e ao
meio educacional sobre as novas tecnologias, sendo diferenciada. Com elas pode-se
desempenhar um conjunto de situações com interesse pedagógico e didático que
favorece a escola em seu todo.
NOVAS TECNOLOGIAS E FORMAÇÃO DOCENTE
Em uma sociedade cada vez mais tecnológica reconhece-se a necessidade de
inclusão em currículos escolares de competências e habilidades para lidar com as novas
tecnologias. No contexto de um meio social do conhecimento, a educação tem exigência
numa abordagem diferente na qual o avanço digital não pode ser deixado de lado.
O aumento exponencial da informação e as novas tecnologias levam a um novo
de organização de trabalho, na qual se faz necessário a busca por saberes, a
interdisciplinaridade e a colaboração transdisciplinar, sendo assim cada indivíduo
1 Pós-graduanda em Linguagem e práticas sociais – IFAL – (Instituto Federal de Alagoas) – 2014.
Psicopedagoga Clínica e Institucional – Faculdade São Luís de França, Polo Penedo/AL – 2013/2014.
Pedagoga – Faculdade Raimundo Marinho de Penedo (2012). Professora de Educação Infantil.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1433
envolvido nesse processo precisa estar atento a utilidade na vida econômica e ao acesso
a informação.
Diante disso, surge um novo paradigma relacionada ao papel do professor e a
educação ao que diz respeito as novas tecnologias, com diferenciação. Com elas pode-se
desempenhar um conjunto de situações com interesse pedagógico e didático.
O educador, nesse contexto de avanços, deve saber orientar os estudantes a
respeito da coleta de informação, como utilizar e como tratar. Esse profissional será o
conselheiro da aprendizagem dos discentes e encaminhador da autopromoção, ora
apoiado aos trabalhos de equipes para áreas afins, ora estimulando a individualização da
turma.
A qualidade educacional, centrados geralmente em mudanças didáticas e
curriculares, não pode colocar-se a margem de recursos disponíveis, levando adiante
inovações em disciplina educativa, reformas, nem de maneira de gestão que
possibilitem a implantação.
A incorporação de novas tecnologias em conteúdos básicos comuns é uma
metodologia que pode colaborar para uma vinculação maior entre as culturas
desenvolvidas fora da escola e os contextos de ensino.
Mediante a essa posição, as instituições educativas enfrentam o desafio não
apenas em trabalhar as novas tecnologias como conteúdos, mas também partir e
reconhecer as ideias que os estudantes têm a respeito delas para elaborar, desempenhar e
avaliar práticas pedagógicas, promovendo o desenvolvimento de usos tecnológicos e
disposição reflexiva sobre os conhecimentos.
O meio social na atualidade propõe mudanças profundas caracterizadas pela
valorização da informação. Nesse caso, a chamada sociedade da informação, momentos
de aquisição do conhecimento assumem papel fundamental, passando a exigência de um
professor criativo, crítico, tendo capacidade de aprender a aprender, pensar, trabalhar
em grupo e de se autoconhecer como pessoa.
Cabe à educação formar o educador e com isso, essa não se fortalece apenas ao
instrui-lo com relação ao discente, mas ao construir o conhecimento por ele e no
crescimento de novas competências, tais como: criar o novo a partir do conhecido,
adaptar-se a ele, autonomia, comunicação, criatividade e capacidade de inovar. É função
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1434
da instituição hoje, preparar os estudantes para responder rapidamente as mudanças
constantes, saber pensar e resolução de problemas.
As novas maneiras de aprender e as novas tecnologias
Com as novas tecnologias surgem-se diversas possibilidades para educação, no
qual exige nova postura do professor. A utilização de redes telemáticas no meio
educacional obtém-se informações em bibliotecas, universidades, permitindo atividades
diferenciadas em parceria com diferentes instituições, conexão com estudantes e
docentes em qualquer horário e localidade, favorecendo o desempenho de trabalhos para
haver troca de informações entre estados, escolas e países, através de contos, cartas,
sugerindo ao profissional trabalhar melhor o desenvolvimento do saber.
Paulo Neves (1996, p.11) em seu livro o que é o virtual? Destaca que
Um movimento geral da virtualização afeta hoje não apenas a informação e a
comunicação, mas também, os corpos, o funcionamento econômico, os
quadros coletivos da sensibilidade ou o exercício da inteligência.
O autor transmitiu a importância da virtualização, ou seja, a forma como ela esta
inserida na sociedade e que precisa envolver-se em principal com a escola, podendo
acontecer avanços de qualidade tanto individual como coletiva.
O acesso a redes computadorizadas interconectadas a distância possibilitam que
a aprendizagem acontece com frequência no espaço tecnológico, precisando ser
aplicadas as práticas pedagógicas. A instituição educativa é um ambiente privilegiado
de interação social, mas esse precisa integrar-se e interligar-se com os diversos espaços
do saber existentes na atualidade e incorporar os recursos tecnológicos e a comunicação
entre redes, no qual permitirá a realização de pontes sobre transformação e
conhecimentos.
A formação de educadores nessa perspectiva tem sido bastante crítica e não tem
privilegio de forma efetiva pelas políticas públicas em educação nem pelas instituições
federais de ensino. As soluções sugeridas seria a inserção de programas de formação de
nível de especialização ou, programas para qualificar os recursos humanos.
A finalidade de implantar novas tecnologias na escola é para realização de
situações novas e pedagogicamente importantes, não podendo ser feitas de outras
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1435
formas. A instituição passa a ser um lugar mais motivador para preparação de
estudantes numa visão futura. A aprendizagem centra-se na capacitação destes,
tornando-se independentes da informação e nas diferenças individuais.
Cabem as escolas a condução do processo de mudanças da atuação do docente,
principal ator desse crescimento, capacitando o discente no intuito de buscar
corretamente a informação em fontes de vários tipos e a introdução das novas
tecnologias de comunicação. Fica sendo necessária também, a conscientização de toda a
sociedade escolar, em especial os estudantes, da importância da tecnologia no
desenvolvimento cultural e social.
Com as novas formas de aprender, novas tecnologias, novas competências são
exigidas, novas maneiras de realização de trabalho pedagógico são fundamentais e
essências, é necessário formar o novo educador continuamente na atuação em ambientes
telemáticos, no qual a tecnologia sirva como mediador do processo ensino
aprendizagem.
Exigências de formação e perfil do profissional da educação
As dificuldades existentes em meios convencionais para preparar profissionais
no uso adequado das novas tecnologias são evidentes, pois fica sendo necessário haver a
formação para atuação dos mesmos num crescimento pessoal.
Existem tentativas para incluir o estudo de novas tecnologias nos currículos dos
cursos de formação de educadores, mas esbarram em dificuldades sobre investimento
exigido na aquisição os equipamentos, e na ausência de professores capazes de superar
os preconceitos e as práticas rejeitadas a tecnologia mantendo uma formação na qual
predomina modos substituíveis por outros adequados aos problemas educativos.
É necessário motivar a pesquisa e colocar-se a caminho com o estudante e estar
sempre aberto à exploração, da descoberta de que o educador, pode também aprender
com o mesmo na formação docente, esse, segundo Luís Paulo (1998) destaca que
durante e no final do processo, precisa incorporar na sua metodologia:
Conhecimento das novas tecnologias e da maneira de aplica-las; estímulo à
pesquisa como base de construção do conteúdo a ser veiculado através do
computador, saber pesquisar e transmitir o gosto pela investigação a alunos
de todos os níveis; capacidade de provocar hipóteses e deduções que possam
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1436
servir de base à construção e compreensão de conceitos; habilidade de
permitir que o aluno justifique as hipóteses que construiu e as discuta;
especialidade de conduzir a análise grupal a níveis satisfatórios de conclusão
do grupo a partir de posições diferentes ou encaminhamentos diferentes do
problema; a capacidade de divulgar os resultados da análise individual e
grupal de tal forma que cada situação suscite novos problemas interessantes à
pesquisa.
Ao professor cabe a função de estar engajado no processo, tendo consciência não
só das capacidades reais de tecnologia, de suas limitações para poder selecionar qual a
melhor utilização a ser determinada num conteúdo determinado e do seu potencial, na
melhoria do ensino aprendizagem, por meio de uma renovação da prática pedagógica do
educador e da mudança do discente, como sujeito ativo na construção do seu
conhecimento.
As informações que os estudantes obtém com relação a internet não são apenas
recebidas e guardadas. Essas representam um ponto de saída e não um fim em si
mesmas. Quando um discente encontra-se com informação no meio tecnológico, ele
coloca-a no seu contexto, da sua vivência, buscando mais informações sobre, tornando-a
um elemento da sua própria formação, tendo a consciência da importância do que
aprendeu.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As novas tecnologias podem trazer impacto a respeito do papel do professor, na
reciclagem recebida constante via rede, referentes a conteúdos, metodologias e uso da
tecnologia, no qual apoia um modelo geral de ensino que enfrente os discentes como
ativos participantes do processo de aprender e não como passivos receptores de
conhecimento ou informações, no incentivo de professores na utilização de redes e
iniciarem a reformulação de suas aulas, encorajando-os na participação de experiências
novas.
Alguns pontos produtivos: tendo acesso as tecnologias da informação e sua
transformação em conhecimento no decorrer de todo o período escolar, os estudantes
serão em seguida agentes de mudança no meio de produção e de serviços ao
naturalmente influir ao utilizar destas.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1437
As atividades de pesquisa devem ser compartilhadas por outros discentes e
divulgadas na rede instantaneamente para quem sentir interesse. Discentes e docentes
encontram diversos recursos para facilitação na tarefa de preparar as aulas, fazendo
trabalhos de pesquisa e tendo materiais que chamem atenção na apresentação.
O esperado do professor do século XXI é que ele seja aquele agente que
colabore na trama do desenvolvimento coletivo e individual, sabendo manejar os
instrumentos a formação cultural irá indicar na representação das formas e viver e de
pensar a civilização, específicos de tempos novos. Com isso, ainda são necessárias
várias pesquisas com relação as novas tecnologias da informação, interações entre
pares, modelos cognitivos, aprendizagem cooperativa que se adequem ao modelo que se
baseie em tecnologia, orientando a formação de educadores no seu desempenho e
ofereça parâmetros para atividade educativa nessa perspectiva.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
LÉVY Pierre, tradução de Paulo Neves. O que é o virtual? São Paulo: ed. 34, 1996.
MERCADO, Luís Paulo Leopoldo. Formação docente e novas tecnologias.
Universidade Federal de Alagoas – Brasil, 1998.
NÓVOA, A. Formação contínua de professores: realidades e perspectivas. Aveiro,
Universidade. Aveiro, 1991.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1438
UMA ANÁLISE DA TEORIA ARGUMENTATIVA EM
AVALIAÇÕES EM LARGA ESCALA NO BRASIL – SAEB
E PROVA BRASIL [Voltar para Sumário]
Karine Alves David (UFRN)
1 Introdução
O artigo em epígrafe propõe um estudo sobre a argumentação no processo de
avaliação de língua portuguesa dos exames em larga escala no Brasil (SAEB e Prova
Brasil). Nosso propósito é, a partir dos pressupostos de algumas abordagens recentes
sobre a argumentação, verificar como essas abordagens são consideradas na matriz de
referência para elaboração das provas.
No que concerne a estudos da argumentação nos deteremos aos pressupostos de
Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005), Anscombre e Ducrot (1983). Ducrot (1987, 1990,
2002), Carel (1995) e Carel e Ducrot (2001, 2005). Este aparato teórico nos servirá
como base para que possamos responder à seguinte indagação: Qual o conceito de
argumentação subjaz aos descritores das matrizes de referência do SAEB e da
Prova Brasil?
A relevância desta pesquisa encontra-se no fato de podermos contribuir
sobremaneira para futuras reflexões em torno da complexa tarefa de estabelecer critérios
de análise para as matrizes de referência e de correção dos exames em larga escala que
trazem avaliações de língua portuguesa no Brasil. Sabemos, portanto, que não existe
uma grade de parâmetros perfeita que possamos vir a propor, mas se faz essencial
qualquer esforço para tentarmos amenizar as dificuldades existentes tanto na concepção
das provas, como também ao processo de avaliação dos estudantes no que concerne ao
processo da argumentação da língua.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1439
2 As avaliações em larga escala no Brasil: SAEB (ANEB) e Prova Brasil
(ANRESC)
Atualmente, são realizadas seis avaliações em larga escala no Brasil, todas sob a
responsabilidade da Diretoria de Avaliação da Educação Básica (DAEB), vinculada ao
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). São
elas: o Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA); o Exame Nacional do
Ensino Médio (ENEM); o Exame Nacional para Certificação de Competência de Jovens
e Adultos (ENCCEJA); a Provinha Brasil; o Sistema Nacional de Avaliação da
Educação Básica (SAEB) e a Prova Brasil. (JACOBSEN; MORI, 2010).
O Saeb é composto por três avaliações externas em larga escala: ANEB,
ANRESC e ANA. Neste artigo, nos deteremos aos exames relacionados ao Saeb
(ANEB) e Prova Brasil (ANRESC).
Conforme dados dos cadernos do Saeb (2011) o Sistema de Avaliação da
Educação Básica (SAEB) tem como principal objetivo avaliar a Educação Básica
brasileira e contribuir para a melhoria de sua qualidade e para a universalização do
acesso à escola, oferecendo subsídios concretos para a formulação, reformulação e o
monitoramento das políticas públicas voltadas para a Educação Básica. Além disso,
procura também oferecer dados e indicadores que possibilitem maior compreensão dos
fatores que influenciam o desempenho dos alunos nas áreas e anos avaliados.
A Avaliação Nacional da Educação Básica – Aneb (também conhecida por
SAEB) abrange, de maneira amostral, alunos das redes públicas e privadas do país, em
áreas urbanas e rurais, matriculados na 4ª série/5ºano e 8ªsérie/9ºano do Ensino
Fundamental e no 3º ano do Ensino Médio, tendo como principal objetivo avaliar a
qualidade, a equidade e a eficiência da educação brasileira. Apresenta os resultados do
país como um todo, das regiões geográficas e das unidades da federação.
Já a Avaliação Nacional do Rendimento Escolar - Anresc (também
denominada "Prova Brasil") é uma avaliação censitária envolvendo os alunos da 4ª
série/5ºano e 8ªsérie/9ºano do Ensino Fundamental das escolas públicas das redes
municipais, estaduais e federal, com o objetivo de avaliar a qualidade do ensino
ministrado nas escolas públicas. Participam desta avaliação as escolas que possuem, no
mínimo, 20 alunos matriculados nas séries/anos avaliados, sendo os resultados
disponibilizados por escola e por ente federativo.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1440
A Aneb/SAEB e a Anresc/Prova Brasil são realizadas bianualmente, enquanto a
ANA é de realização anual.
3 Argumentação retórica e argumentação linguística
Perelman com a colaboração de Olbrechts-Tyteca propõe a Nova Retórica, teoria
por meio da qual se propõe uma nova roupagem para os estudos retóricos, sem
desprezar os preceitos advindos da retórica aristotélica (PERELMAN e OLBRECHTS-
TYTECA, 2005). Melhor dizendo, a Nova Retórica é um retorno à Dialética de
Aristóteles e não necessariamente à própria Retórica, haja vista Perelman asseverar que
tanto a Retórica quanto a Dialética supõem um auditório e ambas buscam persuadir
alguém. Para ele, esses traços em comum o autorizaram a fazer a substituição.
Acontece, porém, que o conceito de auditório de Perelman não é o mesmo da Antiga
retórica aristotélica. Segundo este autor, um auditório é algo virtual, trata-se de um
auditório construído pelo argumentador.
Na Nova Retórica o conceito de auditório é um elemento essencial para que se
possa desenvolver uma argumentação. Vejamos o que diz Ribeiro (2009, p.27):
é a relação entre orador e auditório que constitui o sentido da argumentação
[...] a concepção de auditório vista sob a ótica da heterogeneidade, que supõe
a existência de vários indivíduos, pensando de forma diferente e
possivelmente chegando também a conclusões diferentes [...].
Ao revitalizarem a noção aristotélica de auditório, Perelman e Olbrechts-Tyteca
(2005) resgatam o conceito de que a retórica é a arte de argumentar, desde que com
pensamento lógico e racional, pois a verossimilhança só adquire status de verdade na
instância interlocucionária – momento em que o discurso é ouvido pelo auditório.
“Somente nessa situação é que se pode obter adesão do auditório e é para esse fim que
as provas são necessárias” (OLIVEIRA, 2013, p.232).
Outra definição importante para esses dois autores além da concepção de
auditório diz respeito à ideia de orador e discurso que são, de acordo com Ribeiro
(2009, p.26) “elementos responsáveis pelo movimento argumentativo”.
No momento em que um orador apresenta um discurso, ele quer que as pessoas o
aceitem e abracem sua ideia. Para conseguir a adesão do auditório há a necessidade do
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1441
orador em persuadir o seu público. “A Nova Retórica concebe a argumentação como um
conjunto de meios verbais pelos quais um orador tenta provocar ou reforçar a adesão de
um auditório às teses que ele submete a seu assentimento” (OLIVEIRA, 2013, p.233).
O conceito de argumentação utilizado para a Nova Retórica de Perelmam então
é o que chamaremos de Argumentação Retórica. E nos valeremos desse conceito para
analisarmos as matrizes de referência das provas do SAEB e Prova Brasil.
Já a Teoria da Argumentação da Língua (ADL) ou Semântica Argumentativa
surge a partir dos anos 70 por meio de estudos desenvolvidos pelo francês Oswald
Ducrot com a colaboração de Jean-Claude Anscombre (ANSCOMBRE e DUCROT,
1983). A primeira fase foi denominada de Forma Standard, e a segunda Forma Stardard
Ampliada ou Teoria dos Topoi Argumentativos. É com a contribuição de Marion Carel
que teremos uma terceira fase conhecida por Teoria dos Blocos Semânticos (CAREL,
1995).
Conforme Graeff e Timmermann (2014, p.98) a Teoria dos Blocos Semânticos,
originada a partir da Teoria da Argumentação da Língua (ADL), foi o resultado de
reflexões sobre o sentido argumentativo nas palavras que deixa de lado por completo o
sentido informativo. Ao perpassarmos por estas três fases, poderemos acompanhar as
modificações sofridas pela própria noção de encadeamento argumentativo.
Na primeira fase da ADL, a fase conhecida por Standard, a ideia apresentada é a
de que as palavras não possuem sentido antes de conclusões delas tiradas conforme este
exemplo: Faz sol, vamos sair. Faz sol, não vamos sair. Observemos que o valor
semântico da expressão faz sol vai variar de acordo com as conclusões tiradas dela. Em
um momento, o sol é favorável, e em outro é desfavorável.1
Foi Ducrot e Anscombre (1983) que primeiramente observaram o valor
argumentativo das palavras em detrimento de seu valor informativo. Para estes autores,
existem pares de frases cujos enunciados designam o mesmo fato, quando o contexto é
o mesmo, sendo as argumentações, possíveis a partir desses enunciados completamente
diferentes.
Para Ducrot (1990) existem operadores na língua que, mesmo sendo diferentes,
podem chegar a uma mesma conclusão, basta que sejam utilizados diferentes princípios
argumentativos que venham a garantir a passagem do argumento para a conclusão. A
1 Exemplo retirado de Graeff e Timmermann (2014, p.98)
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1442
esses princípios Ducrot chama topoi, termo que traz de Aristóteles, mas que modifica o
sentido que foi atribuído primeiramente por este filósofo.
Para Aristóteles, de acordo com Ducrot (1990, p.102) um topos é uma espécie de
depósito no qual um orador pode encontrar toda classe de argumentos que servem para
defender sua tese. Para Ducrot, os topoi possuem um sentido mais estreito, são crenças,
lugares comuns argumentativos que possuem a tarefa de orientar o argumento em
direção a uma conclusão. No momento em que Ducrot inclui os topoi nessa discussão, é
determinada a mudança da Forma Standard para a Standard Ampliada ou Teoria dos
Topoi.
A noção de topos é deixada de lado e surgem outros conceitos como os de:
blocos semânticos; aspectos normativo e transgressivo e argumentação interna e
externa. Para Carel (1995) a Teoria de Topoi, na verdade, contrariava a ADL, pois
“baseava a argumentação em elementos existentes no mundo exterior, enquanto o que
se tentava estabelecer é que argumentação era de ordem puramente linguística”
(GRAEFF; TIMMERMANN, 2014, p.101).
Para Carel e Ducrot (2005) bloco semântico é definido como o resultado de
sentido entre dois segmentos X e Y, ligados por um conector que pode ser normativo
(donc/logo) ou transgressivo (pourtant/no entanto). Desse modo um bloco semântico
pode expressar vários aspectos: positivo, negativo, recíproco; converso, normativo,
transgressivo etc.
No conjunto desta teoria, a perspectiva é a de argumentação linguística, aquela
calcada a partir de preceitos da língua. Nesse caso, o signo é a frase complexa: o
significado de uma frase simples só pode ser definido por suas possibilidades de
combinação com outras frases simples.
Ducrot (2009, p. 20) deixa muito clara a diferença entre argumentação retórica e
argumentação linguística. Para ele a argumentação retórica seria “a atividade verbal que
visa fazer alguém crer em alguma coisa”, ao passo que a argumentação linguística diz
respeito aos “segmentos de discurso constituídos pelo encadeamento de duas
proposições A e C, ligadas implícita ou explicitamente por um conector do tipo de donc
(portanto), alors (então), par consequente (consequentemente)”.
A principal diferença entre as duas concepções de argumentação encontra-se no
fato de existir ou não a abordagem linguística. Ducrot entende que a argumentação
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1443
retórica precisa valer-se de uma série de outros mecanismos, ou da análise de tais
mecanismos, que não são linguísticos, para se efetivar como argumentação que leva
alguém a fazer algo (desenvolvimento de uma imagem positiva do locutor e do desejo
do ouvinte de crer no orador). Para este autor, palavras e enunciados oferecem uma
orientação argumentativa ao discurso pois assevera que o próprio sistema linguístico é
argumentativo. Para tal, vejamos este exemplo: “tu diriges depressa demais, tu corres o
risco de sofrer um acidente”, depressa demais e acidente possuem uma relação
semântica atualizada pelo discurso, diferente da relação possível entre, por exemplo,
depressa demais e multa. O argumento só será compreendido se este for direcionado a
uma conclusão (DUCROT, 2009, p.22).
Conforme Barbisan (2013, p.136)
a ADL de Ducrot se trata de uma proposta semântica que se ocupa do sentido
no discurso construído por meio da relação entre palavras, frases, e
principalmente entre discursos. É, pois, uma teoria semântica que não
esquece o linguístico. Sendo uma teoria do discurso, a partir de um olhar
enunciativo sobre a linguagem, revela como se produz a argumentação,
presente em todo discurso. Com esse posicionamento, a teoria de Ducrot
afirma que argumentação está na língua, articulando consequentemente
sistema e uso do sistema.
4 Uma breve análise da Matriz de Referência do SAEB e da Prova Brasil
A Matriz de Referência de Língua Portuguesa do Saeb e da Prova Brasil
apresenta a relação entre os temas, os descritores e as habilidades estabelecidos para a
avaliação dos alunos dos 4ª série/5º ano e 8ª série/9º ano do ensino fundamental e da 3ª
série do ensino médio.
No total, a Matriz de Referência de Língua Portuguesa do Saeb e da Prova Brasil
é composta por seis tópicos: I. Procedimentos de Leitura; II. Implicações do Suporte, do
Gênero e/ou do Enunciador na Compreensão do Texto; III. Relação entre Textos,
Coerência e Coesão no Processamento do Texto; IV. Relações entre Recursos
Expressivos e Efeitos de Sentido e V. Variação Linguística.
No que concerne a sua estrutura, a Matriz de Língua Portuguesa divide-se em
duas dimensões: uma denominada Objeto do Conhecimento, em que são listados os seis
tópicos; e outra denominada Competência, com descritores que indicam habilidades a
serem avaliadas em cada tópico. Para a 4ª série/5º ano do Ensino Fundamental (EF), são
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1444
contemplados 15 descritores; para a 8ª série/ 9º ano do EF e 3ª série do Ensino Médio
(EM) são acrescentados mais 6, totalizando 21 descritores. Os descritores aparecem,
dentro de cada tópico, em ordem crescente de aprofundamento e/ou ampliação de
conteúdos ou das habilidades exigidas.
A seguir, apresentamos um modelo de Matriz de Referência organizado por nós
que demonstra quais os descritores são cobrados para os alunos de 5º, 9º e 3º anos nas
avaliações do SAEB e da Prova Brasil.
Descritores do Tópico I. Procedimentos de Leitura 5 º
ano
9 º
ano
3º
ano
D1 – Localizar informações explícitas em um texto. X X X
D3 – Inferir o sentido de uma palavra ou expressão. X X X
D4 – Inferir uma informação implícita em um texto. X X X
D6 – Identificar o tema de um texto. X X X
D14 – Distinguir um fato da opinião relativa a esse fato. X X X
Descritores do Tópico II. Implicações do Suporte, do Gênero
e /ou do enunciador na Compreensão do Texto
D5 – Interpretar texto com auxílio de material gráfico diversos
(propagandas, quadrinhos, foto, etc.).
X X X
D12 – Identificar a finalidade de textos de diferentes gêneros. X X X
Descritores do Tópico III. Relação entre Textos
D20 – Reconhecer diferentes formas de tratar uma informação
na comparação de textos que tratam do mesmo tema, em função
das condições em que ele foi produzido e daquelas em que será
recebido.
X X X
D21 – Reconhecer posições distintas entre duas ou mais
opiniões relativas ao mesmo fato ou ao mesmo tema.
X X
Descritores do Tópico IV. Coerência e Coesão no
Processamento do Texto
D2 – Estabelecer relações entre partes de um texto, identificando
repetições ou substituições que contribuem para a continuidade
de um texto.
X X X
D7 – Identificar a tese de um texto. X X
D8 – Estabelecer relação entre a tese e os argumentos oferecidos
para sustentá-la.
X X
D9 – Diferenciar as partes principais das secundárias em um
texto.
X X
D10 – Identificar o conflito gerador do enredo e os elementos
que constroem a narrativa.
X X X
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1445
D11 – Estabelecer relação causa/consequência entre partes e
elementos do texto.
X X X
D15 – Estabelecer relações lógico-discursivas presentes no texto,
marcadas por conjunções, advérbios, etc.
X X X
Descritores do Tópico V. Relações entre Recursos
Expressivos e Efeitos de Sentido
D16 – Identificar efeitos de ironia ou humor em textos variados. X X X
D17 – Reconhecer o efeito de sentido decorrente do uso da
pontuação e de outras notações.
X X X
D18 – Reconhecer o efeito de sentido decorrente da escolha de
uma determinada palavra ou expressão.
X X
D19 – Reconhecer o efeito de sentido decorrente da exploração
de recursos ortográficos e/ou morfossintáticos.
X X
Descritores do Tópico VI. Variação Linguística
D13 – Identificar as marcas linguísticas que evidenciam o
locutor e o interlocutor de um texto
X X
Os questionamentos que nos restam são: Qual é a abordagem de Argumentação
que é apresentada nestes descritores? Essa noção de argumentação, quando aparece, é
explicita ou implícita?
Nesta sessão, analisaremos os tópicos e descritores que fazem menção ao
processo argumentativo da linguagem, levando-se em conta também alguns itens que
são apresentados como exemplos no manual.
Começaremos pelo Tópico III – Relações entre textos. Encontramos o descritor
D21 – Reconhecer posições distintas entre duas ou mais opiniões relativas ao mesmo
fato ou ao mesmo tema. Esse item trata acerca de “opinião” só a habilidade avaliada por
meio deste descritor diz respeito à identificação por parte do aluno de opiniões
diferentes emitidas sobre o mesmo fato ou tema. Aqui, encontramos um item que traz
dois textos cujo tema é “casamento arranjado” e o enunciado é o seguinte: “Sobre
‘casamento arranjado’ o texto I e o texto II apresentam opiniões..." as alternativas para
este item são: a) complementares; b) duvidosas; c) opostas; d) preconceituosas e e)
semelhantes. A resposta seria a letra “c”. A abordagem da argumentação que passa mais
próxima aqui é a da argumentação retórica. Neste item são utilizados recursos para
sustentar mais de uma opinião relacionada a um único fato. É como se o estudante fosse
chamado a ser persuadido por duas opiniões e tivesse que analisar a relação semântica
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1446
existente entre estas e “ser levado a fazer alguma coisa, apoiado sobre um fazer crer”
(DUCROT, 2009, p.20).
Para o Tópico IV que se refere à Coerência e Coesão no processamento do texto
identificamos três descritores que fazem menção ao tema argumentação.
O Descritor D8 – Estabelecer a relação entre a tese e os argumentos oferecidos
para sustenta-la, tem como objetivo, não somente identificar a tese, mas também fazer
com que o leitor identifique argumentos utilizados pelo autor do texto na construção de
um texto argumentativo. Ou seja, primeiramente, o estudante precisa reconhecer o ponto
de vista que está sendo defendido e, posteriormente, relacioná-lo aos argumentos que o
sustentam. O item que serve de exemplo diz respeito a um texto cujo título é “A língua
está viva”. O enunciado solicita o seguinte: “A tese da dinamicidade da língua
comprova-se pelo fato de que...”. Em seguida aparecem 5 opções as quais tratam de
frases declarativas que possivelmente tratam sobre a tese.
Sobre os descritores 7 e 8 que tratam acerca da tese e dos argumentos
relacionados a esta, o aluno é alertado para a existência de uma tese central e de
argumentos que apoiam esta tese. A abordagem dada a este item oscila entre alguns
conceitos sobre argumentação e conceitos relacionados à retórica, como por exemplo, o
de argumentação de autoridade, lugar comum e valores. Do ponto de vista linguístico a
relação entre forma e argumentação nem sempre é bem clara. Há uma aproximação da
abordagem da argumentação retórica sob alguns aspectos, mas não coincidem com esta
em totalidade, não sendo possível se afirmar, que se está diante de uma proposta retórica
da argumentação.
No descritor D11 – Estabelecer relação causa-consequência entre partes e
elementos do texto, a habilidade avaliada é a identificação de elementos que, no texto,
estão na interdependência de causa e consequência, ou seja, o aluno deverá identificar o
motivo pelo qual os fatos são apresentados nos textos, ou seja, o reconhecimento de
como as relações entre os elementos organizam-se de forma que um torna-se o resultado
do outro. Segundo os cadernos do SAEB, “Entende-se como causa consequência todas
as relações entre os elementos que se organizam de tal forma que um é resultado do
outro.” (BRASIL, 2011, p. 51). O exemplo apresenta um texto-base cujo título é “O
Quiromante”. O enunciado reza o seguinte: “O trecho “a partir daí, abandonou a
quiromancia” (l.8) apresenta, com relação ao que foi dito no parágrafo anterior o sentido
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1447
de...”. As pretensas respostas são: a) comparação; b) condição; c) consequência; d)
finalidade e e) oposição.
Por último, o descritor D-15 trata sobre “Estabelecer relações lógico-discursivas
presentes no texto, marcadas por conjunções, advérbios etc.”. Por meio deste descritor,
pretende-se avaliar a habilidade do aluno em perceber a coerência textual, partindo da
identificação dos recursos coesivos e de sua função textual. Um item que se volta para o
reconhecimento de tais relações deve dar foco às expressões sinalizadoras e seu valor
semântico, sejam conjunções, preposições ou locuções adverbiais. Estas relações podem
ser as de causalidade, de comparação, de concessão, de tempo, de condição, de adição,
de oposição etc. Para se apreender a coerência de um texto é fundamental reconhecer
qual o tipo de relação semântica estabelecida por esses elementos de conexão (BRASIL,
2011, p.53). O item dado como exemplo tem como titulo “Câncer”, texto retirado da
Revista Galileu. O enunciado traz o seguinte comando: “O conectivo “portanto”, (l.13),
estabelece com as ideias que o antecedem uma relação de..." As opções são as
seguintes: a) adversidade; b) conclusão; c) causa; d) comparação e e) finalidade.
No que se refere aos descritores D11 e D15 que tratam sobre relações lógico-
discursivas, deparamos com itens em que os operadores argumentativos estão
desvinculados do discurso por meio de frases isoladas. O modo de observar a linguagem
em uso continua bastante próximo do estudo da gramática, do sistema da língua. Por
meio destes descritores observamos a redução do conceito de argumentação linguística
postulada por Ducrot, pois tal conceito ultrapassa os liames da palavra. Ducrot (2009)
diz que essa definição pode ser estendida aos encadeamentos que ligam não duas
proposições sintáticas, mas duas sequências de proposições, como por exemplo, dois
parágrafos de um artigo.
Em relação aos Tópicos I -Procedimentos de Leitura, V- Relações entre
Recursos Expressivos e Efeitos de Sentido - e VI – Variação Linguística -, não
identificamos nenhum descritor que faça referência ao processo argumentativo.
Após elencarmos os tópicos e descritores que apresentam itens que fazem
menção à argumentação o que observamos foi que, na verdade, o processo
argumentativo ainda é tratado de forma muito superficial nessas questões. A abordagem
a partir da qual se concebe argumentação nessa matriz não pode ser identificada de
forma clara. De fato, ela é apenas implícita.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1448
5 Conclusões
Nas avaliações em larga escala do SAEB e Prova Brasil a argumentação é
tratada de forma genérica sem o cuidado de ser partir de uma concepção teórica definida
sobre o fenômeno. Há questões que abordam noções de argumentação, porém, não se
consegue identificar o tipo de abordagem balizadora dos descritores, no caso do
trabalho em epígrafe, se a argumentação retórica ou a argumentação linguística.
No pouco que podemos tecer até aqui, fica clara a importância da argumentação
enquanto objeto de estudo para várias áreas do saber, desde a antiga Grécia até os dias
atuais. Tentamos fazer um recorte dos estudos da argumentação desde as contribuições
de Perelman sobre a argumentação retórica até Ducrot no que tange à argumentação
linguística e o que concluímos a priori foi que nas matrizes de referência das provas do
SAEB e Prova Brasil ainda não se assume um viés teórico situado ou na linha da
argumentação retórica ou uma argumentação fundamentada no uso da língua. Na
verdade o que falta é um conceito sobre o que, de fato, se entende por argumentação.
Como então se pode avaliar um aluno no que tange a tal processo, se não se tem sobre
ele uma teoria, um conceito propriamente dito.
O que postulamos, ainda a priori é que não há uma delimitação das teorias
argumentativas abordadas nas avaliações de LP nos exames em larga escala no Brasil,
no caso de nossa pesquisa, SAEB e Prova Brasil. E quando há uma menção implícita
sobre a argumentação não há, também, uma devida observação das relações existentes
entre estas teorias.
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SAEB: ensino médio: matrizes de referência, tópicos e descritores. Brasília, 2011.
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Nas fronteiras da linguagem ǀ 1450
VIOLÊNCIA E EXCLUSÃO SOCIAL EM MARCELINO
FREIRE: UMA ANÁLISE CRÍTICA [Voltar para Sumário]
Karla Karine Claudino Tenório (UPE)
Introdução
A escolha desse autor contemporâneo se deve ao fato de acreditarmos que temas
“debatidos” na mídia e relevantes na sociedade atual são ressemantizados em seus
contos. Isto porque em sua obra conseguimos ver temas contemporâneos como a
sociedade do espetáculo, a sociedade líquida, a sociedade da simulação e medo líquido,
que culminam numa reflexão da realidade. Conforme as teorias sociológicas de
Goldman (1979), a escrita literária manifesta uma multiplicidade de acontecimentos que
estão relacionados à existência humana, sem dúvida esta é uma questão importante,
tendo em vista que o escritor ao construir sua obra é influenciado pelo meio social. A
análise parte não somente da ligação do texto com o indivíduo, mas também da
linguagem contemporânea.
Este trabalho tem por finalidade analisar algumas obras de Marcelino Freire,
segundo as teorias sociocríticas fazendo uma abordagem do contexto social, histórico e
cultural; com isso tentamos fazer uma reflexão sobre a linguagem literária e sua
inserção na compreensão dos processos sociais.
Para Schollhammer (2003, p. 87), “o confronto entre a imagem e o texto oferece
atualmente uma abordagem fértil para compreensão da literatura numa sociedade cada
vez mais dominada pela dinâmica da “cultura da imagem””. A imagem é um elemento
significativo que traz mediações da realidade; essa cultura visual, conforme o autor se
apresenta a partir do discurso cultural e de sua visibilidade literária. O texto depende
mais do que nunca da qualidade visual, já que sua materialidade escrita depende do seu
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1451
meio gráfico, esclarecendo que nada é puramente visual ou verbal, isto é, as linguagens
são complementares.
No livro Angu de Sangue (2002) de Marcelino Freire, por exemplo, o conjunto
de imagens não são ilustrações das palavras que compõem os contos, mas sim, uma
interpretação dos textos. O projeto gráfico da artista Silvania Zandomeni (2002)
funciona como um instrumento de significação, uma espécie de interpretação dos
conjuntos, em que “o conjunto texto-imagem forma um complexo heterogêneo
fundamental para a compreensão das condições representativas em geral”, como
argumenta Schollhammer (2003, p. 88).
Considerando que um papel da literatura é a reflexão, a leitura de Angu de
Sangue possibilita ao leitor entrar em diferentes espaços do cotidiano brasileiro. As
visões sobre esses espaços não são fatos individuais e sim sociais. O escritor, através da
linguagem, expressa no plano conceitual uma visão e descreve as formas de
interpretação do mundo. Isso nos leva a perceber que a obra apresenta, constrói,
possibilita reflexões sobre o mundo, revelando que tais espaços correspondem a
algumas classes sociais de nosso país.
Ao refletir sobre a contemporaneidade, a partir de uma leitura das linguagens
que compõem este “Angu”, cujo título já nos remete ao “caos” do mundo atual1,
buscamos através da análise das obras Angu de sangue (2002); e Contos Negreiros
(2005) de Marcelino Freire, mostrar como o estudo da literatura é importante para a
compreensão não só da sociedade, mas também da cultura representada nos contos
contemporâneos.
Nesta apresentação, propomos que na realização dos contos de Marcelino Freire,
a crítica social não se faz apenas de monólogos e denúncias, mas principalmente ao
chamar atenção do leitor para sentir através da voz das personagens a aproximação dos
espaços sociais, das denúncias, da condenação aos detritos. No texto, a própria
personagem “Totonha” é narradora das experiências de seu cotidiano. Nesta abordagem
da obra literária, buscamos apoio na teoria social de Luiz da Costa Lima (2002) e
Antônio Cândido (1985), dando ênfase ao contexto contemporâneo social brasileiro. O
intuito é fazer uma análise sociológica da obra e dos fatos literários, dessa forma, o
discurso sociológico se defronta com a obra literária, se preocupando com a construção
1 Angu tanto pode ser uma comida típica, quanto remeter, por analogia, à ideia de confusão, conflitos
humanos que são agravados ou superdimensionados a partir da composição junto à palavra “sangue”.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1452
das linguagens, como afirma Lima (2002, p. 664), “o texto é um instrumento que aponta
para fora de si”.
Na análise da obra de Marcelino Freire, aparece uma leitura em movimento, isso
não quer dizer que, literatura não é movimento, mas especificamente a obra Angu de
Sangue (2002), possibilita ao leitor uma espécie de mobilidade literária. O que isto quer
dizer? Uma leitura não linear, e não sequencial da obra. A linearidade está relacionada
às formas de leituras e linguagens da obra Freiriana, também nas decisões do leitor no
processo de leitura. O leitor pode tomar a liberdade ao ler o livro ao observar outra arte;
Artes Plásticas, por exemplo, ou seja, o livro seria em um dado momento a própria arte.
As páginas seriam movimentadas à revelia, uma leitura em que o leitor esquece
a ideia de que (mesmo que o autor nos apresente um texto escrito) o que existe são
outras formas de linguagens que antecipam cada conto de Angu de Sangue. O leitor teria
a liberdade de construir no primeiro momento de sua leitura a eliminação da leitura
escrita, ou seja, tudo vira ou se transforma em um imenso angu, a que sugere a nossa
literatura contemporânea. Para Todorov (2006, p. 120) “Toda narrativa é uma descrição
de caracteres”, representados por meio da palavra (a ação da personagem e seu caráter),
pode ser uma história virtual ou uma forma de apresentar a vida em sociedade.
A comunicação artística busca investigar como são condicionados os elementos
constituintes das ações sociais. Na medida em que estes elementos são dependentes de
três pontos fundamentais para a compreensão e produção artística (autor, obra e
público), isto no ponto de vista sociológico, o autor constrói sua obra através de uma
leitura sobre a influência social, do público em contextos distintos, onde podemos
concordar com Sainte – Beuve (apud CÂNDIDO 1985. p. 18) quando aponta que a obra
“tem em seu núcleo e o seu órgão através do qual tudo que passa se transforma, por que
ele combina, cria e devolve a realidade”. (p.18).
A literatura contemporânea brasileira tem se apresentado de maneira provocativa
ao utilizar a linguagem. É preciso entender a linguagem contemporânea como uma
linguagem de intravisões. Ou seja, os autores presentes em um contexto social, político
e histórico, fazem uso dos discursos da sociedade para compor a obra literária. A
linguagem crítica utilizada na obra de arte causa um efeito nos leitores, quando fala
sobre a complexidade da vida contemporânea.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1453
Podemos considerar as Metamorfoses da Cultura Contemporânea de Fernando
Schuler (2006) nos debates e discursos da sociedade atual, “associados à crise das
ideologias, ” apresentados nos discursos Freirianos. Aqui a literatura não surge como
resultado ou quebra da tradição oral, mas com novos elementos, como leituras de
imagens, que estão presentes na construção dos contos; essas imagens provocam no
leitor a sensação de pré-interpretação textual, como se ela distorcesse a realidade. Na
verdade, quem distorce: a realidade ou o texto? É preciso ter cuidado para não avaliar a
obra como um reflexo da realidade. Assim o que esses contos trariam de novo?
Na compreensão dos contos de Marcelino Freire, os textos se apresentam muito
antes de sua escrita. São as imagens que dialogam com o leitor, ou seja, a própria capa e
contracapa já revelam este cenário, em muitos casos o leitor, antes mesmo de abrir o
livro já se vê parte do próprio livro. As imagens que antecipam a interpretação do leitor
são utilizadas no texto para confrontar a escrita; faz-nos refletir sobre o caminho que
trilha a sociedade atual, em se tratando de multiplicação do aparelho do pensamento,
chega-se a uma percepção dos processos artísticos em relação ao reconhecimento da
obra.
Em Angu de sangue o texto é iniciado com uma frase do autor Ariano Suassuna,
ao apresentar que cada palavra que compõem esta obra deve ser compreendida “como
um tiro ou uma facada. Cada palavra tem seu significado sangrento” (FREIRE, 2000 p.
15). Não podemos deixar de perceber a importância e intensidade que o autor a concede
a cada palavra, como um elemento de caráter crítico, que tem a função de chocar e
confrontar o leitor.
Segundo Bonald (apud PRATA, 1997), “a literatura é uma expressão da
sociedade” (p.151). Uma representação nítida das relações sociais; enquanto houver
humanidade haverá história e literatura, pois somos nós seres construtores desta arte de
narrar. Nos contos de Marcelino Freire, os signos, códigos e sinais podem ser
compreendidos por meio dos fundamentos teóricos de Green (apud, LIMA, 2002), ao
afirmar que “o livro é um conjunto de sinais que não representam nenhum objeto. Para
ver é preciso ler, isto é, ligar caracteres tipográficos (...)” (p. 235).
Para Terry Eagleton (2001), a “Literatura pode ser tanto uma questão daquilo
que as pessoas fazem com a escrita, como daquilo que a escrita faz com as pessoas”.
(EAGLETON, 2001 p. 9). No processo de leitura e escrita, as palavras são relacionadas
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1454
a um contexto de significação no mundo, essa linguagem que se refere a algo, uma
espécie de “linguagem que fala de si mesma”. (EAGLETON, 2001 p. 11).
1.A linguagem em Marcelino freire em angu de sangue (2005) e contos negreiros
(2005).
Na escrita de Marcelino Freire, é notável uma tensão de linguagem, tensão que
conduz a personagem no plano dialógico, ao representar os espaços de opressão social,
nos revela coisas que nenhuma teoria sociológica ou politicológica poderá no dizer. O
movimento nesta leitura se faz pela imagem ao transforma-se tecnicamente reprodutível
a palavra. Essa “reprodutibilidade” da obra de arte depende das técnicas e autenticidade
gráfica de produção ao preservar a naturalidade das ilustrações do cotidiano brasileiro.
(BENJAMIN, 1994 p. 66).
Marcelino Freire é um escritor raro, não lê e escreve como o costume. Não vê as
palavras por fora, mas por dentro. “Reside no que fala e muda os móveis e o
vocabulário de posição. ”Eve Lyn (apud, FREIRE, 2002 p. 2), por ser considerado um
escritor contemporâneo e criativo, é possível identificar em sua obra traços culturais de
nossos tempos hodiernos, associados “a crise das ideologias”, de Schuler (2006).
As imagens que antecipam cada conto de Angu de sangue funcionam como
links, espécie de elemento hipertextual/semiótico, que aponta e interliga os textos que
compões esta obra de Marcelino Freire. Ao destacar os contos Freirianos ligados por
uma rede, que está vinculada as representações da sociedade atual. Destaca-se a voz das
personagens como uma forma aproximada da linguagem das camadas sociais, ao
representar através deste conflito de vozes uma aproximação da tradução oral, os contos
de Marcelino Freire podem ser considerados aproximadamente a ressemantização da
poesia épica. Por meio da utilização do discurso direto, seja este do autor narrador ou
das personagens narradoras dos fatos, linguagem ritmada, cuja sua sonoridade é
representada pela denúncia, das condições a sobrevivência em meio aos detritos,
apontado no primeiro conto desta obra “Muribeca”. “Não eles nunca vão tirar a gente
deste lixão. Tenho fé em Deus, com a ajuda de Deus eles nunca vão tirar agente deste
lixo”. (FREIRE, 2005 p. 23).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1455
As vozes narrativas destes contos são as vozes dos excluídos, (no sentido
figurado, que nos remete ao literal), que participam de um espaço de violência e
exclusão humana. Nessa configuração do próprio título da obra, temos a palavra Angu
referenciada não apenas a uma comida típica regional brasileira, mas como uma
aproximação do caos da sociedade contemporânea; neste contexto a palavra sangue
permanece a espirrar das inadequações sociais. A voz feminina que abre as portas para
adentramos neste enquadramento, é a voz da catadora de lixo, condenada aos retos da
sociedade de consumo e abundância, contos ilustrados pela carência de uma atividade,
porta-voz de um seguimento social, de uma herança cultural despedaçada pela
inadequação à existência urbana, numa sociedade abundante em desigualdade. “Lixo?
Lixo serve para tudo. A gente encontra a mobília da casa, cadeira pra pôr uns pregos e
ajeitar, sentar. Lixo pra poder ter sofá, costurado, cama, colchão. Até televisão. ” As
personagens que compõe estas obras têm em sua totalidade vozes que “são restos”, ou
seja, no sentido literal ou figurado, a sua adaptação no universo, violência e existência
urbana. (FREIRE, 2005 p. 23).
A articulação entre a oralidade e as técnicas discursiva das personagens, são
compotas pelo lirismo próximo de um poema, faz parte da função metalinguística desta
obra, as técnicas discursivas decorrem de uma cuidadosa imbricação narrativa, o autor
através da palavra “Falta”. “A palavra verdade e verdadeira, ” apresentada no conto
“Belinha”, questiona o leitor sobre o poder das palavras, em um mundo é composto por
linguagens, sejam verbais ou não verbais, além de passar uma mensagem, as
necessidades de adequação entre a palavra “falta” como objeto para a declaração
amorosa. Linguagem esta que termina por ser a matéria substancial da narrativa. “Eu
disse a palavra, a palavra que faltava que sempre falta uma palavra. Falta. ” (FREIRE,
2005 p. 30).
Em Angu de Sangue, no conto “Cidades ácidas”, temos a escrita aproximada da
fala da personagem que remete a um bêbado, por meio da oralidade autor aproxima-se
do estado de intoxicação alcoólica destacado pela pontuação. Esse conto “Cidades
ácidas tem características futuristas, Segundo Marinetti (1905), espírito contestador que
o futurismo representava e que poderia servir aos anseios “libertários” ressurge na
crítica ao futuro, temos elementos que ressaltam este movimento, a inquietação com o
mundo.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1456
Os sinais de trânsito. Em nome do Pai, do Filho, do espírito Santo. O carro
sem saber para onde ia. O carro como cinza de cigarro. O bêbado havia
chegado ao seu destino. Velocidade. Vela. Véu. Automóvel. A chave. Ficou
parado, esperando a. Chave. Esperando, Bêbado. Para tentar sub. Ir Aos céus.
(FREIRE, 2002 p.116).
Já por falar-se de uma obra cujo seu próprio título tem duplo sentido, implica
esclarecer que: Angu tanto uma comida misturada pela farinha quanto um estado de
confusão, tendo em sua duplicidade a intensificação dos valores sociais. O autor faz
uma analogia entre o angu, comida típica regional em relação com as inadequações
urbanas, sendo o sangue aquilo que expira destas inadequações.
Na produção da obra contos negreiros (2002) de Marcelino Freire, temos a capa
e contracapa, como uma efígie da realidade. O selo de código de barras, sobreposto na
vestimenta desta obra, opera como uma espécie de repressão, cuja, numeração
apresentada no código de barras, serve para identificar o valor que exerce o homem na
sociedade contemporânea. Podemos nos apoiarem Guy Debord (2003) quando fala
sobre a sociedade do espetáculo, “sem dúvida o nosso tempo, (...) Prefere a imagem à
coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser”. O escritor
contemporâneo Marcelino Freire (2005), motivado por uma “grade” urgências, no
sentido figurado ou literal, elenca essas urgências como realidade histórica; ao tomar
posse das palavras de Schollhammer (2009, p 10), pode-se considerar que “a realidade
histórica, estando consciente, entretanto, da impossibilidade de captá-la especificamente
atual, em seu presente. ” Toma-se como elemento reflexivo as palavras Freirianas
quando apresenta suas urgências ao lanças seus livros, Rasife: mar que arrebenta,
Contos Negreiros (2005) e Angu de Sangue (2002); as personagens destas obras são
(porta-voz) de toda insatisfação social do povo brasileiro, obras que nos tiram da zona
de conforto.
De fato escrevo curto, e sobretudo, grosso. Escrevo com urgência. Escrevo
para me vingar. E esta vingança tem pressa. Não tenho tempo para
nhenhenhéns, quero logo dizer o que quero e ir embora. (FREIRE, 2008).
Segundo Karl Eric Schollhammer (2009, p. 9), “as obras na perspectiva
contemporâneas deveriam ser representadas pelo que compartilham com as tendências
contemporâneas atuais e, num sentido mais amplo, pela inserção da literatura na
contemporaneidade. ” Para o autor a literatura contemporânea não é necessariamente
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1457
aquela que representa a atualidade, a não ser por uma inadequação, uma estranheza
histórica que a faz perceber zonas marginais e obscuras do presente, que se afastam de
sua lógica. Compreende-se que “ser contemporâneo é ser capaz de se orientar no escuro
e a partir daí, ter coragem de estranheza histórica que a faz perceber zonas marginais e
obscuras do presente, que se afastam de sua lógica. (SCHOLLHAMMER, 2009 p.10)
A subjetividade do “corpo” em Nossos Ossos (2014), o primeiro romance de
Marcelino Freire, representa o desmembramento do corpo do Boy, a personagem
principal da referida obra é um dramaturgo narrador dos fatos, personagem que mapeia
o esqueleto que terce o cenário nordestino e dialoga com o leitor, descreve a vida de
Cícero, um “Michês” que foi friamente assassinato, texto referente a tramas policiais, e
os ossos que são restos desta obra e representa o corpo do Brasil, como a nação atual.
O primeiro capítulo desta obra é descrito como o “próximo” sentido figurado ou
literal, que nos remete ao próximo, pensar no próximo, no outro, no humano, é respeitar
as diferenças entre nação o entre os povos. O autor constrói o personagem Heleno ao
descrever as brincadeiras de crianças do nordeste com os ossos de carcaças de bois, o
elemento principal da caça da personagem Heleno não é mais o boi e sim os boys, jogo
dialético entre as palavras (bois - boys), a personagem Heleno emigra para se tornar boy
em são Paulo; nesta conjuntura é possível refletir através da oralidade poética e gritante
de Marcelino freire, personagem de urgências diluídas, conduzidas por um tom que não
perdesse na musicalidade do livro, separados apenas por vírgulas, os pontos finais que
só acontecem no final de parágrafos, os períodos são compostos, diferentes de seus
contos, o conto Muribeca é composto por períodos simples, há o uso de muitos sinais de
pontuação que indicam pausas no texto, como se fosse uma escrita fragmentada.
A linguagem Freriana traz em sua construção linguística elementos pertencentes
à fala do cotidiano, espécie de ladainha, composta por conectores sequenciais
explicativos. Ao ler “Nossos Ossos” o leitor monta a história, o próprio corpo do
romance, também nas unidades, nos capítulos e nos parágrafos o leitor constrói, faz seu
garimpo, trabalho arqueológico no encontro do corpo deste romance. As releituras
abrem novas possibilidades de análise que consistem em argumentar sobre a
importância da literatura para compreensão do mundo atual. As obras Freirianas não são
apenas obra contemporâneas, são obras que ampliam discussões sobre a literatura, capaz
de ratificar o próprio sentido de literatura que é a ampliação de significados.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1458
1.2 Sequências estruturais explicativas no conto “curso superior” de Marcelino
Freire.
A obra “contos negreiros” traz em sua roupagem uma leitura dialogada, por
apresentar elementos novos na disposição das palavras sobre o texto. Pode-se observar
no conto “curso superior” como as estruturas sequenciais explicativas acontecem na
reprodução da escrita Freiriana, e que revela por meio da fala da personagem o espaço
que ela ocupa nessa configuração do texto. A facilidade inferencial, segundo Adam
(2008), ocorre pela ação explicativa feita pelos conectores como: PORQUE, QUE,
NEM, É PORQUE, PORQUE, E, O QUE É QUE; O sentido do texto será dado através
destes conectores. Substituindo os sinais de pontuação; esses marcadores não
estabelecem apenas uma remissão referencial, mas sim as estruturas explicativas que
apontam as relações (negativas /explicativas) quando a apresentada no texto da seguinte
forma:
“O Meu medo é a situação piorar E eu não conseguir arranjar emprego NEM de
faxineiro NEM de porteiro e o pessoal dizer QUE o governo já fez o QUE pôde e o
QUE pôde já deu a sua cota de participação hein mãe não sei”. (M. FREIRE,
2005.p.98). Os marcadores à esquerda (NEM/E), apresentam uma ação negativa indireta
ou alternativa, por se tratar de uma possibilidade, de acontecimentos. Já na direita temos
o marcador (QUE), como um escopo que aponta para o encerramento do discurso que se
supões alcançado. Estes elementos hipotéticos e funcionais dão todo o sentido expresso
pelo autor ao texto, sem utilizar os sinais de pontuação, forma característica do autor.
A ciência dos signos é chamada de semiótica, que segundo Charles Pirce (apud,
Jakobson, 1987 p.77). “O signo é formado pelo homem, onde todo signo verbal ou não
verbal comporta códigos linguísticos, pertencentes a uma comunidade e tem em sua
finalidade é passar uma mensagem”. Tem como instrumento de comunicação a
possibilidade de troca, que designa o tipo de informação e construção desta mensagem.
Já na concepção de (Colin Cherry apud Jakobson, 1987, p.78). “Não são imagens da
realidade, mas documentos a partir dos quais construímos nossos modelos pessoais. ”
Diante desta descrição, pode-se afirmar que a composição dos símbolos se apropria do
uso da metalinguagem, ou seja, os símbolos já existentes na língua, e recodifica esses
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1459
elementos da língua, sejam esses verbais ou não verbais, apenas busca-se compreender a
ligação e sua função crítica e reflexiva.
Segundo Walter Benjamin (1994), o autor destaca que a reprodução da imagem
foi liberada da responsabilidade artística, passa a depender do olhar que se tem sobre
uma imagem. Para ele o olhar captura as coisas de forma rápida, podendo acompanhar
as palavras sem um nível disjuntivo. Em uma escala valorativa, para poder acompanhar
a sociedade atual, se faz necessário compreender o reflexo da imagem que é reproduzida
pela sociedade. A ideia não é desvalorizar a imagem em tela, ou seja, a criação manual;
como a escultura; mas relatar que a imagem capturada por uma câmera fotográfica, tem
uma função rápida e natural da imagem cotidiana.
A comunicação artística busca investigar como são condicionados os elementos
constituintes das ações sociais. Na medida em que estes elementos são dependentes de
três pontos fundamentais para a compreensão e produção artística (auto, obra e
público), isto no ponto de vista sociológico, o autor constrói sua obra através de uma
leitura sobre a influência social, do público em contextos distintos, onde podemos
concordar com (SAINTE–BEUVE apud CÂNDIDO 1985 p. 18), nos afirma que é de
fundamental importância entenderem que aspectos a obra faz parte do social?
Podemos responder essa indagação, na medida em que a obra “tem em seu
núcleo e o seu órgão através do qual tudo que passa se transforma, por que ele combina,
cria e devolve a realidade”. Diante da fala expressa pelo autor entende-se que a obra tem
a função de transformar a realidade, ou seja, nenhuma análise sociológica pode dar
conta de tudo que ocorre na sociedade mediada pela obra literária, mas temos aqui a
teoria como uma vestimenta para se compreender a obra literária e sua construção
estética e contextualizada, para assim adentrarem uma leitura social, a qual nos remete
através da obra Freiriana, um entendimento das relações sociais como um reflexo da
realidade contemporânea.
Ao analisar as tendências contemporâneas podemos nos apoiar em Alfredo Bosi,
(2006), ao relatar que a contemporaneidade inicia-se a partir da década de 1930, tudo
que foi construído depois desta época contém traços da atualidade, e mantém uma
ruptura com a estética de uma época, seria a inovação dos métodos e a transmissão das
informações embutidas em nossa sociedade. O cântico primeiro de “Contos Negreiros”
é “Trabalhadores do Brasil”; conto ritmado de uma sonoridade tão forte que pode ser
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1460
cantada, foi transformada em música pela banda Cordel do fogo encantado. Ao
considerar os cânticos da realidade brasileira, nessa configuração do texto, cuja a
linguagem é conduzida pelo jogo dialógico e metafórico utilizado pelo escritor ao
conduzir sua narrativa. É notável neste texto a imagem de um trabalhador, pertencente a
uma sociedade capitalista, símbolo de consumismo desenfreado, uma espécie de
escravidão mascarada, representação do talhador em sua atividade cotidiana, de como é
visto na atualidade, esse humano oprimido, imageticamente uma mercadoria
sistemática, essas temáticas dialogam por meio de uma cultura que se encontra
enraizada pela linguagem de extração rural e urbana.
Enquanto Olorum trabalha como cobrador de ônibus naquele transe infernal
de transito Ossonhe sonha com um novo amor para ganhas 1 passeou 2
passes na praça turbulenta do pelô fazer sexo oral anal seja lá com quem for
tá me ouvindo bem? (...)em seu branco safado? Ninguém aqui é escravo de
ninguém. (FREIRE p. 19 e 20).
No processo de imitação construído transversalmente pelo gênero “cântico”,
como uma espécie de ressignificação da poesia da épica, suscitando emoções do gênero
mais antigo, o canto que é subdividido em contos. A literatura de Marcelino Freire
incomoda o leitor, traz inquietações sobre a sociedade brasileira. Ele é considerado um
agitador cultural, porque fala de uma sociedade que não vai bem, demonstra através da
linguagem esse espaço de banalização e violência cotidiana. Freire escreve para se
vingar de algo que o inquietou, mas ele não escreve apenas textos sangrentos, expressa,
através de seus personagens, uma agonia, um conflito de vozes, um aperreio, já que as
personagens apresentam os espaços sociais de forma gritante.
Não é, entretanto, uma oralidade que vincule facilmente os contos de
Marcelino Freire à tradição oral e que, sobre tudo no Brasil, encontra suas
raízes nas sociedades de extração rural, como é aquela de boa parte das obras
ficcionais resultantes da literatura regionalista do seu apogeu anos 30.
(FREIRE, 2002 p. 12).
A escrita Freiriana é contemporânea por que representa os espaços urbanos, esse
movimento social, confere à obra a capacidade de refratar através da criação verbal, e de
seu conteúdo temático, o estilo e a estética, pertencentes à linguagem dos tempos
hodiernos; sua obra contribui para a sociedade, para o público leitor e estudiosos de
literatura, na medida em que dá voz às personagens que participam de um espaço de
exclusão. O escritor Marcelino Freire faz uso de símbolos representativos das palavras
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1461
em suas narrativas, compostas não apenas pela linguagem verbal, mas também por
elementos semióticos.
Os métodos adotados para atingirmos os objetivos desta pesquisa foram de
levantamentos bibliográficos de revisão literária, tendo como foco principal analisar as
obras Angu de Sangue (2002); Contos Negreiros (2005), e Nossos Ossos (2013), através
das teorias de Schollhammer (2003). Ao discutir sobre os diálogos literários e as
múltiplas vozes que compõem os textos ficcionais de Marcelino Freire, a convenção
literária refrata um olhar particular, entre o narrador e a personagem, por exemplo,
“entre uma voz e uma visão, entre aquilo que é dito (telling) e aquilo que é mostrado
descritivamente (showing)” (SHOLLHARMMER, 2003 p. 89), o reforço interpretativo
é preenchido a partir da oralidade e da criação imagética no texto literário.
A obra trata da banalização da violência diária instigando o leitor a uma reflexão
sobre o processo de espetacularização produzida pela mídia. A ideia é confrontar a
linguagem Freiriana, com o discurso midiático, ou seja, dos meios de comunicação, TV,
jornais, blogs, revistas online e etc. Trata-se de encontrar na obra de arte aspectos
experimentais quanto à representação da realidade. Em se tratando da obra de arte,
podemos citar Kundera (1996), que nos fala sobre o poder do escritor de desmascarar
um sistema social, e desenvolver mecanismos que mostrem através da linguagem a
exclusão e a angustia do ser excluído, condenado ao conformismo, entre a realidade e a
ficção, sendo uma violação perpétua das formas de vida. Na análise reflexiva de Contos
Negreiros (2005), cujo próprio título esta fincado em expressões culturais e literárias
das periferias, sejam essas urbanas ou regionais; na linguagem de suas personagens há
um forte apelo às questões que envolvem a escrita entrelaçada pela oralidade, nesta
construção a ficção dar lugar aos testemunhos as personagens que participam de um
espaço de exclusão social, destes que não tem lugar na cultura (forma literária)
dominante.
Referências
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São Paulo: Cortez, 2008.219p.
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CÂNDIDO, literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária/ Antônio
Cândido, 7ª ed. São Paulo: Nacional, 1985.17 - 39 p.
EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura, São Paulo. Martins fontes, 2001.341p.
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GOLDMANN, Lucien. Dialética e cultura, tradução de Luiz Fernando Cardoso, Carlos
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SCHULER, Fernando; SILVA, Juremir Machado. Metamorfoses da Cultura, Porto
Alegre: Sulina, 2006.176 p.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1463
A INTERVENÇÃO DIDÁTICA NO PROCESSO DE
PRODUÇÃO TEXTUAL DE ALUNOS PARTICIPANTES
DA OLIMPÍADA DE LÍNGUA PORTUGUESA-OLP [Voltar para Sumário]
Karolynne Kaya Maria Amorim Moura 1 (PPGE)
Adna de Almeida Lopes (UFAL) 2
INTRODUÇAO
Em termos gerais, quando o assunto é escrever na sala de aula, o ritual parece se
repetir. Os alunos escrevem. Alguns tão compenetrados que não tiram o olhar da folha e, ao
mesmo tempo, do “horizonte” onde parecem buscar as palavras e as ideias; outros, já mais
dispersos, não acham palavras que preencham o papel enquanto o tempo passa. Tempos
depois, a professora começa a receber os textos, um a um. Neste momento, uns mais à
vontade logo se levantam e vão deixando a folha sobre a mesa; outros mais tímidos já
escondem seu papel embaixo do monte. O tempo vai passando e a aula termina com o sinal da
escola. A professora recolhe tudo. Será iniciado um novo ritual: a leitura e as intervenções em
cada texto.
Certamente, muitos dos professores de língua portuguesa já vivenciaram cenas como
essas. E, foi nessa direção, pensando como docente de língua portuguesa, que surgiram
questionamentos sobre as ações do professor diante do texto do aluno: Como é feita a
intervenção didática? Quais os tipos desse procedimento? Como a intervenção pode levar a
aluno a melhorar o seu texto escrito?
Diante dessas questões norteadoras, tomamos como objetivo principal, neste
trabalho, apresentar uma reflexão sobre a intervenção do professor na produção textual de
1 Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Educação/PPGE/UFAL ([email protected]). 2 Professora Associada da Universidade Federal de Alagoas/UFAL ([email protected]).
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1464
alunos de escolas participantes da Olimpíada de Língua Portuguesa–OLP3. Tem-se visto que
as experiências com a produção de textos escritos em sala de aula têm sido transformadas
pelos estudos já realizados e metodologias relacionadas ao ensino de língua portuguesa.
Neste trabalho, o nosso olhar será voltado, especificamente, à busca de marcas
deixadas pelos professores em torno do processo de intervenção na construção textual do
aluno, procurando refletir sobre o papel da relação dialógica de linguagem na observação
dessas marcas direcionadas à melhoria do texto produzido.
FUNDAMENTOS TEÓRICOS
O trabalho de reescrita do aluno conduzido pela intervenção do professor é, sem
dúvida, questão determinante do sucesso que o aluno possa alcançar em seu processo de
aquisição da escrita. Para isto, no entanto, este sujeito/professor não deve atuar apenas como
corretor dos problemas apresentados no texto, mas como um mediador das ideias e do
aperfeiçoamento do texto do aluno, olhando cada texto como uma peça singular fruto de uma
relação formada por experiências e vivências distintas. Nessa perspectiva, Bucheton (2009)
esclarece que “alunos e professores têm de se considerar, para a compreensão de suas relações
e comportamentos, como pessoas portadoras de uma história, de uma cultura, de uma relação
com o saber ensinado”.
Na intervenção didática, consoante Ruiz (2010), o primeiro passo é compreender o
que cada um sabe, já que a necessidade de um aluno nas fases iniciais de escolaridade é
diferente daquele que já utiliza as formas da língua pertinentemente. Por isso, o grande
trabalho do professor não é saber qual a escrita de cada aluno, mas entender o que cada escrita
significa, para poder pensar as formas de interação e mediação. Intervir é, sobretudo, construir
um ambiente em que todos se sintam estimulados e confiantes para produzir, é, ainda, montar
um trabalho que implica em desafio (pois escrever não é fácil), paciência e dedicação. O
importante é considerar que a cada (re)escrita, o aluno terá uma “marca” (ABAURRE, FIAD
3 A Olimpíada de Língua Portuguesa é um concurso de redação promovido pelo Ministério da Educação-MEC,
nos anos pares, destinado aos alunos dos 5º ano do ensino fundamental ao 3º ano do ensino médio das redes
públicas de ensino. A OLP tem o assessoramento do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e
Ação Comunitária-CENPEC com o intuito de ampliação do conhecimento e desenvolvimento do ensino da
escrita, tendo como estratégia ações de formação para a produção dos gêneros textuais: poema, memória
literária, crônica e artigos de opinião (BRASIL, 2010).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1465
e MAYRINK-SABINSON, 1997) deixada pelo mediador (o professor), a qual indicará os
caminhos que poderá seguir para desenvolver o seu texto.
A intervenção, assim como a escrita, trata-se de um processo intenso em constante
movimento. Ocorre que o trabalho de interferência realizada pelo professor mostra que o
sujeito/outro pode tanto ser um aprendiz de escrita em busca de autonomia quanto um letrado
já de muito tempo. (ABAURRE, FIAD e MAYRINK-SABINSON, 1997).
Sobre o processo de intervenção, toma-se como ponto inicial, neste trabalho, os
estudos desenvolvidos por Ruiz (2010) ao apresentar que os tipos de intervenção do professor
podem ser efetivados a partir de quatro modalidades, quais sejam: correção indicativa,
correção resolutiva, correção classificatória e correção textual-interativa.
Quanto à intervenção indicativa, Serafini (1989) aponta que:
A correção indicativa consiste em marcar junto à margem as palavras, as frases e os
períodos inteiros que apresentam erros ou são pouco claros. Nas correções desse
tipo, o professor frequentemente se limita á indicação do erro e altera muito pouco;
há somente correções ocasionais, geralmente limitadas a erros localizados, como os
ortográficos e lexicais (SERAFINI, 1989, p.27).
Como se pode observar, essa modalidade parece fazer ligação direta com as questões
que envolvem apenas o tópico normativo da língua, pois limita-se, sobretudo, à indicação do
erro, sem interferência na construção textual-discursiva.
Quanto à modalidade Resolutiva, a autora esclarece, ainda, como sendo aquela em
que o professor corrige todos os erros identificados no texto do aluno, reescrevendo palavras,
frases ou até períodos inteiros como formas de apresentar uma solução para o problema
destacado. Ela destaca, contudo, que:
O professor realiza uma delicada operação que requer tempo e empenho, isto é,
procura separar tudo o que no texto é aceitável e interpretar as intenções do aluno
sobre trechos que exigem uma correção; reescrever depois tais partes fornecendo um
texto correto. Neste caso, o erro é eliminado pela solução que reflete a opinião do
professor (SERAFINI, 1989, p. 31).
A terceira modalidade de intervenção é a chamada Classificatória, que consiste no
trabalho do professor em classificar os problemas identificados no texto escrito pelos alunos,
através de alguns símbolos acordados entre professor e alunos, pelo menos até que todos
possam ter fixados. Como exemplos apontados pela autora, podemos destacar: Amb para
Ambiguidade; CN para concordância nominal; A para acentuação; Dr para crase; Ds para
divisão silábica.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1466
A quarta e última modalidade foi acrescentada por Ruiz (2010) aos estudos de
Serafini (1989): a intervenção Textual-interativa, que consiste em comentários mais longos do
que os que se fazem à margem da folha, razão pela qual são geralmente escritos em sequência
ao texto do aluno em um espaço (espaço chamado pela autora de pós-texto, ou seja, aquele
que fica ou ao final da folha do texto do aluno ou em uma folha a parte, como um “bilhete”).
Esse “bilhete” pode ter, para a autora, duas finalidades: falar sobre a tarefa de revisão pelo
aluno ou dos problemas do texto e/ou tratar metadiscursivamente sobre a própria tarefa de
correção do professor.
Dessa forma, como se observa a partir das modalidades de intervenção apresentadas,
o modo ou o trabalho do professor, sem dúvida, é determinante no processo de constituição do
sujeito (o aluno), pois além de determinar a inscrição deste, contribui na formação do “eu” no
processo de aprendizagem. De modo que é possível dizer que tanto o interventor quanto o
aluno estão submetidos.
Para Fiad (1989, p. 74), o ato de escrever não se efetiva apenas na primeira versão do
texto. Citando Culioli (1982), ela define o processo como “"un ensemble complexe d' états
successifs en voie de stabilisation" (um conjunto complexo de estados sucessivos em vias de
estabilização). A autora afirma, ainda, que o ato de escrever “se revela em diversas escritas,
que precedem a versão considerada final ou definitiva”.
Desse modo, o discurso (no sentido de processo de escrita) vive e evolui a partir da
comunicação verbal, bem como a partir da interação entre os interlocutores, no processo de
produção de sentido, mas nunca a partir do sistema abstrato das formas da língua. Os
participantes, por sua vez, articulam-se interativamente, sempre de forma interligada e jamais
de forma isolada. Assim, ainda que o ser manifeste-se individualmente, haverá sempre um
interlocutor ligado a ele no processo de construção. (BAKHTIN, VOLOSHINOV, 1926, p.
10).
Nesse caminho, o processo de intervenção do professor é a manifestação de
sentido responsiva ativa do docente ao projeto de dizer do aluno, levando em conta as
medidas por ele escolhidas. Dessa mesma forma, o texto que o aluno escreve e reescreve
responde a uma proposta didática contínua, a qual, sem dúvida, e de certa forma, permeia o
processo de refacção de textos como bem demonstra Abaurre, Fiad e Mayrink-Sabinson
(1997).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1467
Como o objetivo desta pesquisa está voltado para o processo de escrita e reescrita de
textos, o Concurso OLP foi prontamente definido como fonte de coleta de dados, já que para
o aluno chegar às fases finais, ele precisaria escrever algumas versões ou fazer reescritas dos
seus textos, por isso elegeu-se a Olimpíada de Língua Portuguesa.
Referente a este quadro de reflexões pautado em questionamentos acerca do ensino
de língua como atividade social, a partir da perspectiva da interação na relação entre os
interlocutores, a proposta de pesquisa aqui apresentada visa aprofundar as investigações
relacionadas aos processos de escrita dos alunos da rede pública alagoana, adotando como
foco as intervenções realizadas pelo professor nos textos selecionados.
Por tudo, lembrar que a reflexão aqui proposta não apresenta o professor como o
único responsável pela escrita do aluno em sala de aula, mas, como bem esclarece Menegassi
(2003), “confere-lhe um papel, na assimetria das relações de sala de aula, como mediador do
processo, em que possa apresentar o sentido que construiu ao texto, sem considerar os
sentidos que são delineados pelos demais atores desse processo”.
Por fim, como requisito de embasamentos teóricos desta pesquisa, tomaremos os
conceitos de intervenção e correção didática em textos de alunos, a partir das ideias e
concepções de teóricos que discutem o tema, entre eles Dolz, Gagnon & Decândio (2010),
Ruiz (2010) e o conceito de sequência didática apresentado por Machado (2009), como
vivência de uma metodologia de ensino de língua que trabalha com gêneros textuais.
REFLEXÃO SOBRE OS DADOS
No momento em que foi definido o recorte desta pesquisa, o objetivo era bastante
definido: colher dados que contemplassem textos e suas respectivas versões com
interferências do professor dentro de um número de variáveis. Ocorre que contamos com um
número mínimo de professores e escolas que aceitariam fornecer os materiais de seus alunos,
bem como os diários de classe de cada um deles.
Assim, para os fins dessa pesquisa, contamos apenas com os dados de 2 (duas)
professoras participantes do concurso de escrita, sendo uma eliminada na etapa 2 (dois) e a
outra, uma das premiadas da etapa final. A título de organização das análises, as professoras
serão identificadas, aqui, por P1 e P2.
A princípio, o que foi possível confirmar numa leitura inicial das versões colhidas é o
que, via de regra, já se sabe: o trabalho de intervenção das professoras observadas tem o
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1468
objetivo de destacar os problemas no texto dos alunos, intervenções que aparecem como uma
espécie de “caça erros”, ou seja, sobre o que há de transgressão às regras gramaticais no texto.
A esse respeito, Calil (2000) argumenta que um dos problemas no processo de
intervenção é exatamente este, o de reconhecer apenas os “erros” presentes no texto do aluno,
o que acabou se perpetuando e não havendo a diversidade de intervenção em gêneros textuais
distintos.
No ensino fundamental, os textos escritos por alunos invariavelmente sofrem
intervenções do professor de forma bastante semelhante, não havendo significativas
diferenciações entre tipos de textos, diferentes condições de produção, ou ainda,
entre diferentes textos escritos por um mesmo aluno ou entre um mesmo tipo de
texto escrito por alunos diversos. Em geral, as intervenções dos professores
destacam problemas ortográficos e gramaticais, incidindo sobre uma única versão do
texto, que não será reescrita pelo aluno2, mas sim, “avaliada”, “corrigida” ou
“passado-a-limpo” (CALIL, 2006, p.11).
Sobre isso, Ruiz (2010) explica que a forma como o professor intervém no texto do
aluno, na maioria das vezes, tem caráter normativo, pois visa apenas eliminar os problemas
detectados nesse texto. Quando, em verdade, esse processo poderia ser aproveitado de uma
outra maneira, ou seja, a ponto de proporcionar ao aluno a reflexão do próprio erro no texto. E
ai, sim, o procedimento seria decisivo na construção da escrita.
Quando o professor, por sua vez, assume uma função restrita de buscar apenas os
erros, os chamados erros gramaticais, há de se levar em conta que ele desloca toda a sua
atenção para o que o texto tem de “ruim” e, assim, raramente as qualidades e benfeitorias nas
produções textuais são focalizadas pelo professor e dificilmente o aluno poderá adquirir
confiança e reflexão no momento da escrita.
A exemplo disso, seguem os trechos marcados pela P1 sobre o texto de um aluno do 2º
ano do ensino médio, cujo tema proposto, definido pela OLP, foi “O lugar onde eu vivo”:
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1469
Como pode ser visto, as marcas da professora apontam para as inadequações
normativas do uso da língua. Ela marca, a princípio, a letra E de “eu” (maiúsculo) no título
para chamar a atenção que ali o aluno deveria escrever “eu” com o “e” minúsculo, por está no
meio da frase; assim como o destaque sobre a “bola” que o aluno fez sobre a letra “i”, ao
invés do pingo. Como se observa, as marcas da professora não param por aí, mas seguem por
todo o texto.
É possível perceber, contudo, que outros aspectos relevantes quanto às inadequações
linguísticas não são contemplados pela professora, como os aspectos textuais, a margem
direita do texto que aluno ultrapassou e o uso de letra legível, por exemplo. Mas como já
mencionado, a principio, o olhar do professor sobre as inadequações normativas parecem
prevalecer.
Schneuwly & Dolz (2005) esclarecem que “[...] é natural que ocorram inadequações,
principalmente para o aluno que está numa fase de aprendizagem, tanto com relação ao
gênero quanto com relação às questões formais da língua [...]”. O que implica em dizer que,
certamente, a leitura feita pelo professor em busca de marcas de “violações” linguísticas não é
a mesma feita pelo leitor comum.
Outro aspecto de análise faz relação à classificação das intervenções, a partir de
modalidades já estudadas em pesquisas anteriores como a de Aplebee, 1981 (apud Serafini),
que apresenta tendências de correções de redações na escola realizadas por professores de
língua portuguesa. Quais sejam: a indicativa, a resolutiva e a classificatória. Vale ressaltar,
contudo, que além dessas, Ruiz (2010) apresenta mais uma modalidade em seu trabalho
publicado em 2010 (resultado da tese de doutoramento): a chamada correção “textual-
interativa”.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1470
Antes mesmo de adentrar em cada tipo de correção, é necessário destacar que nos
textos analisados, as interferências das professoras indicam mais de uma forma interventiva,
quando intercalam tipos diferentes de correção. Os exemplos a seguir poderão ilustrar estas
observações.
a) Intervenção indicativa
Esta modalidade ocorre na grande parte dos casos, pois os professores fazem uso da
estratégia indicativa, seja mais ou menos acentuada, mas o que se sabe é que elas são
realmente frequentes. A estratégia indicativa pode tanto aparecer na parte interna do texto do
aluno, como se observa no escrito abaixo, como também situada na margem da folha. Ela é
chamada indicativa porque como o próprio nome diz são marcas do professor interventor para
indicar problemas no texto do aluno:
b) Intervenção resolutiva
Esta modalidade de intervenção também é presente nos textos analisados. Apesar de uma
frequência menor, ela pode ocorrer isoladamente ou até mesmo em concorrência com a
modalidade indicativa, ou seja, primeiro a professora indica o local do problema e na
sequência ela mesma apresenta a solução por ela considerada. Então, a intervenção
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1471
resolutiva, como dito anteriormente, ocorre quando a professora já apresenta de pronto a
solução ao problema encontrado. Observemos o exemplo a seguir:
Como se vê, a professor considera um problema a palavra “tapada” usada pelo aluno,
então ela corta palavra cm um traço e acrescenta ao texto a palavra “escondida” na parte
superior. Mais adiante, ela substitui o trecho “com as nossas tradições” pela palavra
“tradição” apenas, bem como faz com a palavra “Brasil”, a qual o aluno escreveu com “b”
minúsculo e ela prontamente faz a correção e acrescenta o “B” maiúsculo.
Para melhor ilustrar este tipo de intervenção, segue outro exemplo:
Marca sobre a forma verbal “está”, escrito pelo aluno “ta”.
Observa-se, ainda, que no momento em que a professor insere no texto do aluno
aquilo que considera ser resolutivo ao problema encontrado, estamos diante também de
operações linguísticas ou comentários aos textos conhecidos como operações dos tipo:
substituição, adição, supressão e deslocamento (FABRE, 1987; FIAD, 1991).
c) Textual-interativa
Como vimos, as intervenções apontam, em sua maioria, apenas para as questões
normativas, como já identificado anteriormente. Mas, vale ressaltar, contudo, que além dessas
modalidades apresentadas, Ruiz (2010) também explora a modalidade “textual-interativa”,
como sendo aquela que melhor conduziria o aluno ao avanço do texto.
Como se vê nos exemplos que seguem, a modalidade está presente, porém as
informações parecem não muito claras para o aluno.
Como veremos no exemplo a seguir, o professor que produz um pequeno “bilhete”
após o texto do aluno aponta questões que o aluno talvez nem conheça ou muito menos saiba
transformá-la em sentidos construtivos ao seu escrito. Observe o trecho extraído do
manuscrito:
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1472
Percebamos que a professora escreve um “bilhete” para o aluno apontando pontos
que este precisa melhorar, mas os pontos apresentados para melhoria contemplam aspectos
como “originalidade”, “coesão”, “coerência”, por exemplo, que necessitariam ser bem
definidos, com orientação dos procedimentos a serem adotados. Talvez este aluno não saiba
nem o que significa esses termos, muito menos como adaptá-los ao seu texto. Isso acaba
resultando em trabalho desconexo do professor sobre o processo de construção do texto do
aluno, apesar de ao final do “bilhete” se apresentar à disposição do aluno com a expressão
“Conte comigo”.
O exemplo a seguir ilustra um dos mais momentos mais intrigantes dentre os
materiais coletados. Ocorre que após a primeira versão produzida pela aluna, a professora,
após a leitura, deixa sua intervenção textual na parte superior da folha. A aluna,
provavelmente com o intuito de tentar atender o que foi solicitado, ou mesmo podendo não ter
compreendido as orientações escritas pela professora (pois como já dito anteriormente,
conceitos e definições sobre coesão, coerência e originalidade são vagos e precisariam ser
apontados no texto), corta praticamente seu texto por inteiro.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1473
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Essas experiências determinam e confirmam a importância do papel do docente no
processo de ensino e aprendizagem da Língua Portuguesa a fim de que os alunos possam
desenvolver suas capacidades autônomas diante da escrita, fazendo das ferramentas dialógicas
em todos os contextos da vida social.
Como se vê, as questões que permeiam o trabalho do professor, como uma atividade
interativa e de construção de sentidos e sujeitos que envolvem a construção do processo de
ensino da língua, remetem a Bahktin (1986), como lembra Marcuschi (2008, p. 20), ao dizer
que a língua deve ser tratada como um conjunto de práticas enunciativas e não como formas
desconexas: “A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de
formas linguísticas nem pela enunciação monológica e isolada [...] mas pelo fenômeno social
da interação verbal. Logo, a língua é um fenômeno social”.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1474
Comungando essa ideia, recorremos aos argumentos de Antunes (2007) que entende
que a língua não é somente meio de mera comunicação, é um exercício de constituição da
espécie humana, pois isso não basta estudar ou evidenciar, no processo de ensino, as
nomenclaturas, tendo em vista que o discurso não se constitui de regras gramaticais, mas de
um apanhado de conteúdos. Desse modo, portanto, perceber que há mais elementos do que
simplesmente “erros” ou “acertos” gramaticais. A língua, nessa perspectiva, deve ser pensada
como um fator social, que se desenvolve e se transforma a partir da construção com o “outro”.
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São Paulo: Editora Parábola, 2007.
BAKHTIN, M M; VOLOSHINOV, V N. Discurso na vida e discurso na arte (sobre poética
sociológica), 1926.
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Hucitec, 1986.
BUCHETON, D; SOULÉ, Y. Os gestos profissionais e o jogo das posturas dos professores
em sala de aula: Um multi-agenda de preocupações encadeadas. Educação & Didática, 2009.
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https://ww2.itau.com.br/itausocial/olimpiadas2010/web/site/oquee.htm. Acesso em 27 de
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Moura (org.) Língua e Ensino: dimensões heterogêneas. Maceió: EDUFAL (29-40), 2000.
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2009.
CALIL. Eduardo. Escutar o invisível: a escritura e a poesia em sala de aula. 1ª ed. São
Paulo: Editora da UNESP/FUNART, 2008.
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FIAD, R. S. O Professor escrevendo e ensinando a escrever. Em: Contexto e educação , 16.
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RUIZ, E. D. Como corrigir redações na escola. São Paulo: Contexto, 2010.
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SCHNEUWLY; DOLZ. Prática de revisão de textos - Interferências do professor. São
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LUCKESI, C. Conduta na produção do conhecimento. São Paulo: Cortez, 2005.
MARCHUSCI. L. A. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo:
Parábola, 2008.
MENEGASSI, R. J. Procedimentos de leitura e escrita na interação em sala de aula. In:
MENEGASSI, R. J. (2003) Professor e escrita: a construção de comandos de produção de
textos. Trabalhos em Linguistica Aplicada, Campinas(42): 55-79, jul./dez.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1476
CUTUCAR, CURTIR, COMENTAR, COMPARTILHAR: UMA
ANÁLISE DOS RELACIONAMENTOS AFETIVOS NA
CONTEMPORANEIDADE NA REDE SOCIAL FACEBOOK [Voltar para Sumário]
Kassios Cley Costa de Araújo (UnP)
1 Introdução
Relacionamento é um assunto muito discutido, atualmente, em todas as esferas
da sociedade. Literaturas de autoajuda e toda espécie de manual de como relacionar-se
podem ser encontrados em qualquer banca de revista, ou ainda, podemos constatar a
quantidade de programas de televisão que dão foco a esse tema em todas as suas
variantes e, também, todo o acervo que está à disposição na “internet”. Essas relações
são fugidias e, portanto, padecem, também, dessa fluidez moderna, sendo consideradas
como bens de consumo, o que Bauman (2001, p. 10) chama de “relacionamentos de
bolso”, que podem ser utilizados quando se quer, tornando a guardá-los a fim de dispor
em outra ocasião em que se fizerem necessários.
Essa misteriosa forma de relacionar-se num ambiente virtual em que a falta de
contato físico com o outro parece impedir mais aproximação, instigando as pessoas a
manterem certa distância dos seus parceiros virtuais e a estabelecerem-se em “redes” de
contato em que se pode adicionar uma infinidade de “amigos” na mesma velocidade
com que são excluídos ao toque da tecla “delete”. Os relacionamentos em geral, na
atualidade, estão extremamente flexíveis e vistos como mercadorias que, ao primeiro
sinal de problema ou de um modelo novo, pode ser trocado por outro, como acontece
com aparelhos de celular, máquinas e automóveis.
É nesse contexto que Bauman (2004, p.12) faz uma grande reflexão sobre “essa
‘rede’ que serve de matriz tanto para conectar quanto para desconectar”. O que ele
desenha aqui é justamente o fato de as “redes” trazerem no seu bojo o poder da escolha
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1477
de “entrar e sair dos ‘relacionamentos virtuais’”, muito antes de eles se tornarem
detestáveis, o que dificilmente aconteceria nos relacionamentos sólidos nos quais o
compromisso se dava em longo prazo e, diante da presença do outro, o rompimento
poderia ser uma tarefa árdua.
Esses contatos tecidos em rede apontam para uma faceta muito pessimista dos
relacionamentos afetivos nas diversas esferas – como as de contato familiar, de amizade
e de amores – qual seja: a de relacionamentos instáveis. Esses novos relacionamentos,
sem dúvida, conduzem à necessidade de se pensar sobre qual ética guiará esses novos
padrões de comportamento. Nesse contexto, cabe a discussão sobre o lugar do sujeito
contemporâneo, com toda multiplicidade, incertezas, incompreensões, posicionamentos
em seus relacionamentos com o outro, que lhe é virtualmente estranho.
Nesse novo desenho social, Hall (1997) considera que há uma “crise de
identidade” no sujeito contemporâneo, que deixou de ser único em si mesmo para se
revelar múltiplo numa sociedade cujas transformações se deram numa velocidade
global. Esse sujeito saiu de uma era conhecida como Iluminismo, que tinha a
centralidade na figura humana, para uma realidade nova que mostra o surgimento de um
sujeito social múltiplo, em interação com o mundo pós-moderno, com múltiplas
identidades.
Esse sujeito pós-moderno caracteriza-se por uma identidade multifacetada,
fragmentada, aberta, contraditória com vistas aos diferentes pontos de vista que podem
assumir a partir de suas subjetividades. Esse modo como foi construído esse sujeito pós-
moderno traça o diálogo permanente entre os dois fenômenos causadores dessa ruptura
com o sujeito unitário: a modernidade e a globalização, sendo esta última a causadora
de um grande impacto sobre as identidades nacionais, caracterizando-se principalmente
pela “‘compressão espaço-tempo’, a aceleração dos processos globais, de forma que se
sente que o mundo é menor e as distâncias mais curtas, que os eventos em determinado
lugar têm um impacto imediato sobre pessoas e lugares situados a uma grande
distância” (HALL, 1997, p. 73).
Nesse cenário, a perda de um sentido sólido, em si mesmo, é caracterizada pelo
autor como deslocamento ou descentralização do sujeito. Nessa perspectiva, o
deslocamento se dá tanto em si mesmo como no lugar que ocupa no mundo da vida e no
mundo da cultura, constituindo, dessa forma, uma “crise de identidade”. Todo esse
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1478
processo provoca uma profunda transformação na construção de uma nova sociedade
em que o próprio fenômeno da globalização entra em xeque. Sobre essa questão social,
Hall (1997, p. 80) diz:
Quanto mais a vida se torna mediada pelo mercado global de estilos, lugares
e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e pelos
sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as identidades de
tornam desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares, histórias e
tradições específicos e parecem “flutuar livremente”. Somos confrontados
por uma gama de diferentes identidades (cada qual nos fazendo apelos, ou
melhor, fazendo apelos a diferentes partes de nós), dentre as quais parece
possível fazer uma escolha. Foi a difusão do consumismo, seja como
realidade, seja como sonho, que contribuiu para esse efeito de “supermercado
cultural”.
Todo esse painel nos faz perceber que a pluralidade cultural é o foco que
fomenta discussões e levanta debates sobre o seu papel na constituição dessas
identidades. As Ciências Humanas e Sociais, em toda a história, sempre apontaram e
disseminaram a importância da cultura como constituidora de significados, de
subjetividades e, assim, de identidades na história do homem como ser de linguagens
múltiplas que interpretam, ressignificam e valoram o mundo no qual constrói suas
próprias generalidades.
2 Bakhtin e as práticas discursivas ideológicas nas relações sociais
O discurso escrito é de certa maneira parte integrante de uma discussão
ideológica em grande escala: ele responde a alguma coisa, refuta, confirma,
antecipa as respostas e objeções potenciais, procura apoio, etc. Qualquer
enunciação, por mais significativa que seja, constitui apenas uma fração de
uma corrente de comunicação verbal ininterrupta. Mas essa comunicação
verbal ininterrupta constitui, por sua vez, apenas um momento na evolução
contínua, em todas as direções, de um grupo social determinado
(BAKHTIN/VOLOSHINOV, 2009, p. 123).
A luz desse pensamento sedimenta-se a base sobre a qual trata este trabalho,
cujo objeto de estudo são os verbos cutucar, curtir comentar e compartilhar como
expressão das relações afetivas na contemporaneidade, em enunciados produzidos na
rede social Facebook. Dessa feita, é objetivo deste trabalho analisar posicionamentos
axiológicos subjetivos a partir do estudo dos verbos cutucar, curtir, comentar e
compartilhar, nas práticas sociais discursivas virtuais.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1479
A discussão acadêmica que envolve questões de significação é uma das mais
problemáticas na Linguística (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 2009). Pensar o signo numa
perspectiva ampla que extrapole seus próprios limites de sentido e reflita seu caráter
ideológico, não se restringindo apenas ao domínio linguístico, mas que se espraie ao
domínio discursivo e, consequentemente, à vida é o que revela a preocupação dos
autores do Círculo de Bakhtin a respeito dessa questão. Nesse sentido, a discussão em
torno desse tema ganhou relevância tanto nos postulados teóricos quanto nas
preocupações em se verificar como se dá esse processo numa situação de contexto
social.
Para Oliveira (2002), deve-se pensar a linguagem na perspectiva de uma prática
social, na qual o discurso, moldado pelas relações de poder e ideologias, apresenta-se
como processos de significação, manifestação de pontos de vista, de subjetividades,
provocando efeitos nas construções identitárias. Sendo assim, deve-se pensar uma
concepção de linguagem, portanto, para além das relações que se estabelecem nos
limites da língua, condensando a ideia básica de que todo fato de significação é
resultado de um trabalho social, realizado por sujeitos ativos no processo de
interação/troca/comunicação verbal, fazendo emergir signos portadores de valores
sociais, definidos a partir do horizonte social de sua época e pelas formas das relações
sociais nas quais se constroem.
Esse discurso é validado tomando como base os pressupostos teóricos do Círculo
de Bakhtin que concebem a linguagem como uma atividade cognitiva, cuja orientação
se dá na esfera da comunicação, manifesta na pluralidade linguística, em que a língua
não mais é concebida como forma apenas. Essa orientação focada no universo sígnico
verbal determina, portanto, o estabelecimento da relação de uma língua real, utilizada
em contextos reais por e para falantes reais que, no dizer de Oliveira (2002), incorpora
ao ensino e à aprendizagem da língua materna questões relacionadas ao sujeito do
discurso, passando, portanto, pelas noções de valor, das vozes sociais e de suas relações
dialógicas.
Conforme Bakhtin (2010), devem-se estudar e compreender os aspectos e as
formas de relação dialógica entre enunciados, formatados em diversos gêneros
discursivos, plenos de orientações apreciativas, juízos de valor, em síntese, elementos
que, embora alheios ao sistema linguístico, remetem para o próprio funcionamento do
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1480
enunciado, no qual se fazem ressoar vozes, algumas vezes longínquas e até
imperceptíveis, entre as quais distribuem-se os sentidos. Tais vozes são compreendidas
como manifestação de consciências que dialogam, debatem, concordam, discordam,
silenciam a voz do outro ou a si próprio, expressando valores, plurais ou não,
personificação de diferentes sujeitos, de diferentes visões de mundo. A esse respeito,
Oliveira (2002, p. 8) diz:
É nas relações dialógicas, portanto, que se pressupõem sujeitos, ainda que
seja difícil reconhecê-los, face à sua não concretude imediata, e que vão
desde aquelas mais simples, como a polêmica, a paródia, até aquelas que vão
permitir e possibilitar ultrapassar, no ensino da língua, o nível da organização
do texto, penetrando no campo das significações, dos valores, da
subjetividade, enfim, da linguagem concebida como uma prática discursiva.
Portanto, dentro desse pensamento é que se pode analisar práticas textuais como
enunciados, no sentido bakhtiniano, permitindo, assim, distinguir, entre textos
aparentemente semelhantes, a singularidade de cada um deles e as tomadas de posição
desses sujeitos, bem como esses enunciados são atravessados por valores e sentidos
diversos.
3 A fluidez e as mudanças nas relações afetivas contemporâneas na era digital
Se estamos na era da globalização, da modernidade líquida e, por consequência
do amor líquido, encontramo-nos, possivelmente, na era da instantaneidade, do
individualismo, do descompromisso, do descarte, na qual as coisas acontecem numa
velocidade espantosa.
A modernidade fluida espelha uma profunda mudança na ordem mundial. Nessa
perspectiva, ser moderno significa estar em constante movimento, estar à frente de seu
tempo, buscar uma identidade não fixa a fim de tornar-se um sujeito múltiplo,
plurissignificativo. Uma das principais ferramentas para esse novo momento, em que as
palavras de ordem são poder e dominação, são os meios tecnológicos, cuja velocidade é
fundamental na conquista do espaço. Assim, essas categorias ganham significativa
relevância por ser determinantes na caracterização da vida moderna.
Nessa modernidade, o espaço é o lugar de encontros fugidios que não favorecem
a interação, mas respondem a um apelo social de pertencimento a uma determinada
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1481
comunidade. Assim, apesar de diversos em suas características físicas, igualam-se no
apelo ao consumo a que se destinam, sejam de quais ordens forem essas formas de
consumo. Esses espaços urbanos “públicos-mas-não-civis”, chamados de êmicos,
fágicos, vazios “desencorajam a ideia de ‘estabelecer-se’, tornando a colonização ou
domesticação do espaço quase impossível” (BAUMAN, 2001, p. 119).
Quanto à presença dos indivíduos nesses espaços transitórios, é de natureza
puramente física, não interessando, portanto, suas subjetividades. A principal
característica desses “não lugares” é a conduta dos transeuntes, que devem manter um
comportamento universal que seja compreendido e aceito mutuamente. Como encontrar
sentido, então, nesses não lugares que hoje ocupam tanto espaço na modernidade? Para
responder a essa indagação, Bauman (2001, p. 120) nos esclarece que:
Os espaços vazios são antes de mais nada vazios de significado. Não que
sejam sem significados porque são vazios: é porque não têm significado, nem
se acredita que se possam tê-lo, que são vistos como vazios (melhor seria
dizer não-vistos). Nesses lugares que resistem ao significado, a questão de
negociar diferenças nunca surge: não há com quem negociá-la.
É nesse cenário que analisaremos os verbos cutucar, curtir, comentar e
compartilhar como expressão das relações afetivas na contemporaneidade. E dentro
desse contexto, buscamos em Bauman (2001), com base no que ele mostra acerca da
modernidade e do amor do ponto de vista da liquidez dos sólidos; e em Hall (1997), no
que diz respeito à multiplicidade do sujeito contemporâneo e à forma como a cultura
afeta os modos de vida desses sujeitos.
Falar de relacionamentos é, de fato, um ponto delicado e nos leva sempre a um
questionamento sobre nossas próprias relações afetivas, como a conduzimos e como
somos conduzidos por elas. Certamente, quando tratamos dessa questão, estamos
adentrando um terreno extremamente multifacetado, culturalmente modificado pelos
modos de ser e de agir das pessoas, ou seja, em que questões de todas as ordens que
influem e confluem para delinear a nossa postura diante do mundo.
Quando se discutem relacionamentos afetivos na contemporaneidade, parece
haver um choque de cultura entre o que se entendia por relações afetivas nas gerações
passadas e as que estão postas na sociedade atual. Esse choque é emblemático porque
expõe um traço revelador que caracteriza a sociedade contemporânea: a fluidez das
relações afetivas. Essa ideia de fluidez foi amplamente difundida pelo sociólogo polonês
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1482
Bauman (2001) em seu livro Modernidade Líquida, no qual, de forma contundente,
apresenta-nos um panorama, não muito otimista, de como as transformações sociais
convergem para a formação de uma nova sociedade, cujas alterações de toda ordem se
dão em todas as esferas das relações humanas.
Bauman (2001), ao tratar desse fenômeno social, constrói uma metáfora
lancinante e, não menos factual, do derretimento dos sólidos, ou seja, da liquefação das
instituições sociais sólidas em toda sua magnitude, sejam elas as da instituição familiar,
das relações de trabalho, da vida pública e privada, entre tantas outras, histórica e
culturalmente cristalizadas na nossa sociedade, que surgem ganhando outras nuanças,
outras formas, outros contornos, numa grande velocidade em que, disformes pelo
fenômeno da liquefação, procuram “encontrar o nicho apropriado e ali se acomodar e
adaptar: seguindo fielmente as regras e modos de conduta identificados como corretos e
apropriados para aquele lugar” (BAUMAN, 2001, p. 13).
Em consequência dessas transformações sociais, na atual sociedade liquefeita,
entra em cena outra natureza com relação aos laços sociais afetivos, que constituem o
cerne dessa problemática e que determina as novas formas de expressão das relações
afetivas. Se, por um lado, o advento da “modernidade líquida” trouxe em seu bojo um
momento novo em que o desapego e o descompromisso sugerem certa liberdade; por
outro lado, revela a sensação de individualização, estabelecida entre os sujeitos
envolvidos nesse processo que elimina a estrutura macrossocial em detrimento de um
convívio social individualizado, fragmentado, fluido.
A própria categoria denominada “indivíduo” é uma constatação feita a partir das
reflexões que surgem do crescente processo de individualização social, amplamente
discutido e teorizado por Bauman (2001). Esse processo de individualização social ao
mesmo tempo que descontrói instituições sólidas, como, por exemplo, o modelo
prototípico da família tradicional, faz surgir, como consequência desse novo momento,
novas redes de pertencimento, em que o indivíduo passa a ser constituído por outras
subjetividades.
Nessa perspectiva, uma nova cultura se descortina para novos comportamentos:
o eu passa a determinar culturalmente o que antes era protagonizado pelo nós e, assim,
os sujeitos desse processo aponta para relacionamentos em que predominam laços mais
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1483
frágeis em que podem ser desfeitos a qualquer momento e, em qualquer situação que
possa desagradar quaisquer das partes envolvidas.
Assim, há um processo de privatização das parcerias humanas em que, cada vez
mais fragmentados, descompromissados e fluidos, os relacionamentos são, muitas
vezes, vistos sob a ótica da leveza e da liberdade individual, o que, de certa forma,
mascara determinadas posturas adotadas sob a condição dessa suposta liberdade.
Ademais, essa nova realidade traz consigo manifestações sintomáticas características:
solidão, depressão, isolamento e carência, que figuram nesse campo como as mais
frequentes sensações dessa individualidade moderna. Em face desse caos moderno,
entram em cena laços sociais afetivos perversos que tomam a forma de guetos, comuns
num crescente processo de tribalização social (BAUMAN, 2001).
Na modernidade líquida, “O interesse público é reduzido à curiosidade sobre as
vidas privadas de figuras públicas e a arte da vida pública é reduzida à exposição
pública das questões privadas e a confissões de sentimentos privados” (BAUMAN,
2001, p. 46). Nessa perspectiva, há um esgarçamento tangencial entre o social e o
individual, o que poderia contribuir para uma falta de compromisso e durabilidade nas
relações afetivas, uma vez que a liberdade individual preconizada pela modernidade
líquida vai ser, muitas vezes, atrelada ao poder de consumo desse indivíduo e, assim, o
consumidor pode se descartar dessas relações como se fossem uma mercadoria.
Diante do fenômeno da liquidez moderna, instauram-se outros modelos de
relacionamentos que se moldam às realidades, sendo a velocidade dessa modernidade
feroz se descortinando à nossa frente. Além disso, a família tradicional – composta de
pai, mãe e filho – convive lado a lado com outros modelos, como os que comportam os
casais homossexuais e filhos, avós e netos, paternidade e/ou maternidade independente,
os mais variados tipos de consórcios familiares surgem e, com eles, reações da
sociedade de aceitação ou de negação desse novo quadro. As relações afetivas, antes
sólidas, imutáveis, modelo de uma sociedade patriarcal, acresce-se de um novo
delineamento, mais solto, menos compromissado, mais livre, individualista, fluido.
À luz dessa nova era, podemos dizer que essa natureza líquida da sociedade vai
dar o tom a novas formas de relacionamentos afetivos, os quais caracterizam-se, muitas
vezes, pela ausência de compromissos mais firmes e duradouros e serão determinantes
para ilustrar como essa liquidez interfere no comportamento das novas gerações. Nesse
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1484
cenário, as relações humanas parecem se mover num ritmo tão intenso que as
características desses relacionamentos são marcadas, principalmente, pela ausência de
compromisso. Esse processo de liquefação dos laços sociais não é um desvio de rota na
história da civilização ocidental, mas uma proposta contida na própria instauração da
modernidade (BAUMAN, 2001).
O que dizer então dos laços afetivos na era da globalização em que a velocidade
das informações caminha junto com a dos acontecimentos e, nessa perspectiva, também
arrola nesse patamar a mesma velocidade com que surgem e desaparecem os
relacionamentos?
De fato, na era da tecnologia e dos inúmeros sites de relacionamentos, observa-
se uma crescente necessidade de se expor, de ser visto, de ser aceito nas comunidades
virtuais, de se amarrarem uns aos outros por sua própria necessidade de estarem
“conectados”. No entanto, essas conexões não são uma “garantia da permanência”
(BAUMAN, 2001, p. 7), muito pelo contrário, são vínculos frouxos que podem ser
desfeitos a qualquer momento, de acordo com a mudança dos cenários e que fatalmente
se repetirá inúmeras vezes, conforme a necessidade de atar ou desatar novos laços, o
que expõe, de fato, a real dimensão da fragilidade dos laços humanos.
.
4 Considerações finais
Neste artigo, discorremos sobre as categorias de sentido e valor atribuídos aos
verbos cutucar, curtir, comentar e compartilhar em enunciados produzidos por
internautas na rede social Facebook. Com relação às formas de manifestação desses
sentidos, o texto de Bakhtin/Voloshinov (2009) nos coloca no foco central dessa
discussão, o que nos dá uma real dimensão dessa problemática manifesta no
pensamento dos autores do Círculo de Bakhtin.
Diante dessa perspectiva, verificamos que os sentidos atribuídos aos enunciados
propostos são atravessados por valores construídos socialmente, o que leva a crer que a
palavra é significada e ressignificada no eterno discurso do já-dito e valorada por vozes
sociais presentes na história de vida dos sujeitos nela envolvidos, numa perspectiva
dialógica semiotizada num mundo de relações fluidas e complexas, em que as relações
sociais cada vez mais se fragmentam e passam de instituições concretas, cristalizadas
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1485
socialmente e ideologicamente, a partir da história da humanidade, a relações móveis,
não acabadas e numa constante reinvenção desses novos modelos.
Consequentemente, este trabalho, numa visão de linguística aplicada, faz-nos
refletir acerca da construção dos sentidos dos verbos cutucar, curtir, comentar e
compartilhar, presentes nas práticas discursivas em ambientes virtuais em que
predominam relações afetivas de toda ordem. Os sentidos e valores que essas categorias
verbais assumem nos enunciados em análise esboçam modelos de relacionamentos de
uma nova ordem, atravessadas por vozes que encontram eco e fazem ressoar novas
práticas discursivas produzidas em espaços e situações específicas em que os sujeitos
estão envolvidos em um cronotopo específico, qual seja: o de uma rede social, cuja
análise se dá sob o olhar da teoria dialógica dos autores do Círculo de Bakhtin e da
modernidade líquida baumaniana.
Referências
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: WMF Martins Fontes,
2010.
BAKHTIN, Mikhail. (VOLOCHÍNOV). Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. de
Michel Lhud e Yara Frateschi. São Paulo: Hucitec, 2009.
BAUMAN, Z. Amor líquido. Rio de Janeiro: Jorje Zahar, 2004.
_______. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorje Zahar, 2001.
HALL. S. A. Identidades Culturais na Pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1997.
OLIVEIRA, M. B. F. de. Bakhtin e a cultura contemporânea: sinalizações para a
pesquisa em LA. Revista da ANPOLL, São Paulo, v. 13, p. 105-121, 2002.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1486
PRODUÇÃO DE TEXTO NA CONTEMPORANEIDADE –
UMA VISÃO SOBRE O ENSINO DE LINGUAS NA ERA
DIGITAL
[Voltar para Sumário]
Kathia Maria Barros Leite (UFAL/IFAL)
Rita de Cássia Souto Maior (UFAL)
Introdução
O objetivo deste trabalho é sensibilizar os profesores de produção de texto para o
uso da escrita através da WEB 2.0. Muito se fala sobre o uso da internet e das novas
tecnologias aplicadas ao ensino de línguas, principalmente da necessidade que o ser
humano está tendo de se expor através da internet. É relevante perceber que o proceso
de construção textual visto pelo ponto de vista escolar sofreu um breve declinio, uma
vez que o alunado tem se manifestado contra essa prática dizendo-se “não saber
escrever”, no entanto, é perceptível que esse mesmo grupo que se denomina incapaz de
produzir um texto no ambiente escolar produz inúmeros textos de diferentes gêneros,
incoscientemente, no ambiente virtual, ora se eu comento um perfil, analiso uma
imagem, crio a minha descrição, exponho a minha opinião sobre determinado fato e
isso de forma espontânea como posso afirmar não saber escrever? Essa seria a
indagação inicial, que já vem sendo explicada ao longo dos anos através de estudos em
Linguística aplicada e teorías linguísticas específicas, no entanto, embora tenha-se dito
que esta geração não lê e não escreve, é visivel o número de jovens interesados na
leitura e na escrita através das redes sociais, talvez o que haja hoje seja uma forma
diferente de ver a leitura e a escrita. É esse olhar diferente que a geração web 2.0 tanto
anseia e que também é desejado pelos professores de Língua Portuguesa que iremos
discutir neste trabalho, para melhor nos fundamentar, tomarei como corpus de análise as
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1487
entrevistas realizadas com profesores da Rede Pública de ensino de Alagoas, essas
entrevistas refletem os intereses dos profesores de língua portuguesa e foram coletadas a
partir do projeto de extensão Professores das escolas Públicas de Alagoas: gerando
reflexões e ações” esse projeto é proposto pela UFAL – Universade Federal de Alagoas
e pelo IFAL – Campus Murici, nele são avaliados os desejos dos professores e que
dificuldades eles encontram em sala de aula.
Para analise da contemporaneidade teremos os pensamentos de Z. Bauman
(2005) , sobre a modernidade liquida e de Moita Lopes ( 2001) através de seus estudos
sobre identidades fragmentadas; Para analisar a escrita digital e o papel da web 2.0 nas
aulas de Língua Portuguesa, utilizaremos os conceitos de Barba (2013) que reflete sobre
a educação 2.0 Rojo (2013) que aborda em sua obra Escola Conectada diversas
experiências em sala de aula através dos multiletramentos e das TICs; Para a analise da
linguagem nos fundamentaremos no conceito de dialogismo abordado por Bakhitin em
seu ciclo de estudos.
Por fim, veremos como as práticas da web 2.0 auxiliam no processo de produções de
texto e como o professor pode explorar essa ferramenta dentro da sua prática de ensino.
A escrita liquida – entre o virtual e o real
Pensar a educação desvinculada da tecnologia é no mínimo ingenuidade, uma
vez que as duas estabelecem uma relação de simbiose, não que só existam juntas, mas
por que separá-las seria quase impossível pela forma como ela, a tecnologia, adentrou
no rol educacional, mesmo diante das barreiras que pensávamos que as separavam, essa
junção da “cibercultura” e dos gêneros digitais dentro dos muros da escola foi
fundamental para reforçar essa vontade de mudança cultural que passamos a viver a
partir da criação da web 2.0.
Ao pensarmos a sociedade pelo viés da modernidade a imagem que logo nos
assoma é do computador, pequenos grupos de seres robotizados capazes de infinidades
coisas, a cultura de massas ver na cibercultura uma forma de se destacar, isso porque,
foi a partir da web 2.0 que o receptor de textos digitais começou a sair da inércia de
apenas receber textos e mensagens , para viver em um novo mundo onde ele é o rei e a
busca da informação e do entretenimento é comandado por seus dedos de maneira quase
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1488
que imperceptível, pois se eu acesso uma informação estou dentro de tantas outras, com
tantos e tantos objetivos que fica impossível deixá-las passar de maneira imperceptível.
É necessário observar que o que tínhamos anteriormente na sociedade era um
modelo uniforme de ser humano, um ser capaz de situar-se em uma única identidade,
que ora já lhe fora lhe presenteada. Atualmente é quase impossível alguém ser único
diante das inúmeras possibilidades de ser, como já foi afirmado por Brumn, somos um
mosaico de nós mesmos, encontrar-se e identificar-se é quase um duelo consigo mesmo,
essa angústia é comprovada por BAUMAN (2005, p. 18-19) ao defender que em nossa
época liquido-moderna o mundo a nossa volta está repartido em fragmentos mal
coordenados, as identidades flutuam no ar é preciso estar em alerta constante para
defender a primeira em relação às últimas e então onde podemos colocar todas essas
identidades em um mesmo espaço? No ambiente virtual. É lá que as identidades se
camuflam, se distinguem, se opõem, por isso vemos cada vez mais jovens interessados
em criar perfis nas redes sociais, jovens que se utilizam da palavra para se definir,
definir alguém, expressar sentimentos, indagações, essa necessidade de utilizar a
palavra é vista em Bakhitin ( p. 113) onde o autor afirma que é através da palavra que
alguém se define em relação ao outro, e só assim se define em relação à coletividade, o
autor ainda afirma ser a palavra o meio capaz de produzir lentas mudanças na
linguagem que nunca encontrar-se-á acabada devido a sua forma ideológica, desta
forma considerar a linguagem ideológica seria considerá-la dialógica, liquida e
heterogênea. Dialógica por só existir, segundo o autor em relação ao outro; liquida por
sua fluidez em relação ao sentido, contexto e historicidade e heterogênea por assumir a
forma que os enunciadores determinam dentro do enunciado.
A palavra é suporte de todas as mudanças, ela registra pequenos movimentos
discursivos e registra segundo Bakhitin (p.41) as fases mais intimas, mais
efêmeras das mudanças sociais.
Sendo assim, podemos afirmar que a palavra é poder, e dentro das redes sociais
ela vem ganhando mais efervecência, mais força com ela criamos passeatas, reunimos
multidões em praças públicas, divulgamos abaixo-assinados, vídeos de protesto, fatos
reveladores de denúncia social, enfim, é através do ambiente virtual que os novos
“escritores” se escondem é lá que encontram o seu eu desejado e o eu desejado de
alguém, no entanto precisamos ser cautelosos, pois se antes expressar esses sentimentos
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1489
era uma “heresia” hoje, expô-lo é ato de heroísmo, gerado através de curtidas e
compartilhamentos é o que Bauman (2005, p. 43) afirma ser a batalha do
reconhecimento, escrevemos, pois, digitalmente na era da modernidade liquida para
sermos reconhecidos, vistos e curtidos pelo maior número de pessoas. E isso não é a
toa:
A guerra por justiça social foi, portanto reduzida a um excesso de batalha por
reconhecimento. Reconhecimento pode ser aquilo que mais faça falta a um
outro grupo dos bem sucedidos.
Outra característica da escrita digital na era da modernidade liquida é a
individualidade e não aquela individualidade de cem anos atrás mapeada pelo ser, mas
sim pelo tornar-se, uma individualidade que muda e que exige aparecer, a
individualidade é a luta por si mesmo, é a luta pela vontade e pelo poder. A escrita no
ambiente virtual revela essa individualização, são frases de repúdio ao pensamento
alheio, indiretas aos outros pensamentos, conceitos e dizeres que remetem aos novos
escritores uma necessidade de reconhecimento de autoria que consequentemente os
autoriza discursivamente a dizer e a ouvir também do outro as conseqüências do dito.
Ao passo que essa interação acontece construímos e reconstruímos as nossas
identidades e as dos outros, vale aqui ressaltar que o plural em as identidades se refere
as concepções de Bauman sobre as identidades. São esses ir e vir de argumentos que
rondam as redes sociais, esses rastros de nós mesmos, essa luta por justiça social, por,
reconhecimento, por individualidade que faz com que a busca da autoria faça sentido,
dizer pois, na escrita digital significa poder e realização social. O ethos digital, o
fingimento do ser, é segundo Amossy (2008, p11) a competência cultural da
comunicação, é a preocupação com a imagem que eles fazem de si mesmos , dos outros
e a imagem que os outros fazem deles que o faz com que o discurso se manifeste. A
identidade não está ligada a ser, mas a representar e ao mesmo tempo que o sujeito se
fragmenta ele se une em busca de urgências nunca saciadas, com uma necessidade de
ser único, mas igual a todos.
Com o surgimento da Web 2.0 qualquer pessoa pode ser ou ter qualquer coisa
virtualmente e distribuir esse material para o mundo inteiro, tudo de graça ou por um
preço bem reduzido, fazer parte da web 2.0 é estar 24 horas antenado no mundo, ter
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1490
“escolas conectadas1” é conectar a aula com o mundo e isso só é possível se houver
determinação do professor para delimitar, se é que seja possível delimitar qualquer
coisa na internet, o que se quer naquele momento com a aula. Dessa forma o olhar do
professor de produção de texto não poderá ser aquele olhar medíocre de observar apenas
os erros e adequação de gêneros, mas também o grau de informatividade e de
expressividade que o texto se revela no outro através do número de acesso, leituras e
curtidas.
Metodologias digitais para as aulas de produções de texto
Por ser uma pesquisa de caráter quantitativo, incluir intenções, significados e
valores, e busca investigar como as ações de letramento digital e a produção de texto
digitais influenciam na formação de uma ou várias identidades do sujeito pesquisado,
compreendendo como essas ações se apresentam de forma efetiva na transformação
social, cultural e profissional desse individuo. Entendo que a tecnologia surge como um
princípio fundamental para a acessibilidade a cultura e a conhecimentos dos sujeitos em
ambientes reais e (ou) virtuais acessibilidade que interferem na prática pedagógica
estabelecendo uma discussão de até que ponto a internet e as Tic’s são suficientes para
constituir no processo de produção de texto e como o professor, que ensina a produzir
um texto pode ter a destreza de o mesmo ser também produtor do texto e de revelar
suas identidades pessoais em mundos digitais.
Para atingir os objetivos, no presente trabalho usamos o método etnográfico e o
método clínico, o primeiro segundo Lakatos (2010; 94) consiste no levantamento de
todos os dados possíveis de uma sociedade ou de um determinado grupo, com a
finalidade de conhecer melhor o estilo de vida ou a cultura desses sujeitos. Esse método
está baseado na observação é descritivo, contextual, aberto e profundo, o que segundo
Wilcox ( 1993 apoud Lakatos 2010) implica:
a) Aceder, manter, desenvolver uma relação com as pessoas geradoras de
dados;
b) Empregar uma variedade de técnicas para coletar o maior numero de
dados e/ou informações, aspecto que redundará na validez e confiabilidade do
estudo;
1 Usando aqui a ideia de escolas conectadas do livro de Rosane Rojo.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1491
c) Utilizar teorias e conhecimentos para guiar, informar as próprias
observações do que viu e ouviu, redefinir temas e depurar o processo de
estudo.
Para conceber as intervenções utilizamos o método clínico, que segundo Lakatos
(2010; 95) caracteriza-se por possuir relação intima e pessoal entre o entrevistador e o
sujeito e o emprego de uma serie de dados ou sinais. Para uma execução do método nos
valeremos das técnicas de entrevistas, histórias de vida, observação e interação de
relação pessoal.
Portanto, é necessário nessa pesquisa além de todo o conhecimento dos fatos, ou
seja da verdade empírica do professor produtor de textos e dos alunos como produtores
de textos digitais, a analise da teoria e da ciência para que haja uma orientação e
restrição da amplitude dos fatos a serem estudados, selecionando dentro do universo de
possibilidades os dados que serão relevantes para objeto de análise.
Para levantamento de dados utilizamos a observação direta intensiva, que nesse
caso agrega duas técnicas: a observação e a entrevista. Com a observação dos textos
produzidos pelos professores, bem como seus perfis de internet, seus blogs, chats de
bate papo, para analisarmos a produção, exploração e divulgação desses textos, essa
observação será registrada através de coleta de dados impressos e virtuais, esses dados
serão profissionais e pessoais, para que seja respondida a pergunta sobre que tipos de
textos esses sujeitos estão produzindo e como estes textos estão sendo veiculados ou
divulgados.
Para o estudo de investigação social das identidades do sujeito utilizamos
entrevistas, que por sua vez nos ajudaram a nortear os indivíduos que dão aula de
produção de texto e como podemos direcionar esses estudos a partir da WEB 2.0,
analisar por meio das definições individuais respondidas em entrevistas as necessidade
de se trabalhar mais essa preparação do professor para a produção de textos digitais,
adequar as determinadas situações para gera um ambiente propicio à esse tipo de
produção e assim prever qual seria a sua postura diante da escrita digital como
professor, a fim de compreender o que deveria ter sido feito e o que é possível fazer. Por
fim, inferir que condutas esse professor poderá ter ao se ver diante das inúmera
possibilidades do uso da web 2.0, como ele se constituirá professor no futuro,
conhecendo a maneira pela qual ele se comportou no passado ou se comporta no
presente, quanto a ser digitalmente aceito.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1492
Desse modo, a inclusão de recursos tecnológicos em sala de aula, há de ser
compreendida não por uma série de pespectivos de auxílio em dinamização de aulas
apenas, mas pela multiplicidade de funções a ela atribuída, funções que norteiam a
identidade dos sujeitos, bem como a sua atuação no mundo contemporâneo,
questionamentos possíveis, se pensarmos no grande universo de pensamento de
professores que desprezam o universo on line, portanto é essa analise da práticas de
leitura e escrita na internet e pela internet que nos fará constituir um perfil particular do
professor blogueiro, do professor que utiliza-se das redes sociais para comentar,
justificar, analisar e expor conceitos posteriores a sua aula,professores que alimentam
nos seus alunos a necessidade de produção, produção que deve ser lida, avaliada, curtida
e compartilhada, professor que é capaz de desvincular-se do universo de produção
textual estagnada pela modernidade e ver nesta a oportunidade de construir consciencia
critica e expressividade na escrita digital, isto é, explorar a forma linguistica que a web
explora de nós, socializar-se letrado virtualmente e buscar no mundo digital a
autonomia do ser e dessa forma colocar-se em diálogo com o outro.
Essa preocupação em ver a utilidade do uso do computador para o currículo
pedagógico vem alimentando estudos cada vez mais complexos na área educacional,
pois os alunos estão chegando à escola com mais vontade de ver e contribuir para a sua
formação escolar, diante dessa vontade temos a tecnologia, somos a terceira geração de
celulares e tablet`s cada vez mais potentes, lidamos com a agilidade e o imediatismo das
informações de forma lúdica e prática, podemos usar num mesmo celular, internet, TV,
radio,filmar, fotografar, gravar vídeo e vozes e todos esses recursos devem ser
associados a escola sob forma de produção viva de conhecimento ou seja, o segredo
não é usar o vídeo, as imagens expostas, o segredo é produzir o vídeo, compor seu blog,
instigar a produção através da própria criação.
Esse é o novo olhar do professor de produção textual, olhar que apresenta o
mundo através da escrita e da oralidade, Steven Johnson afirma que o uso de um
processador de texto muda a nossa maneira de escrever, não só por que estamos nos
valendo de uma nova ferramenta, mas também por que o computador transforma
fundamentalmente o modo como concebemos a frase e o pensamento que se desenrola
paralelamente ao processo de escrever, isso por que sabemos que alguém vai ler, mas
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1493
não é um só alguém professor, é todo alguém que curta o meu blog, o meu pensamento,
a minha ideia e isso pesa e muito para a minha identidade digital.
Considerações finais
A pesquisa realizada no projeto de extensão Professores das escolas Públicas
de Alagoas: gerando reflexões e ações” conta com 6 professores da rede municipal e
estadual de ensino de alagoas, dois professores coordenadores e 6 alunos colaboradores.
Inicialmente foi aplicado um questionário para a sondagem desses professores, quando
abordados sobre quais temas lhe causariam mais interesse 6 optaram pela leitura, 4 pela
escrita e 4 pela tecnologia os outros pela variação, é fácil verificar que o discurso desses
professores se encontram, ao serem perguntados pelas dificuldades encontramos as
seguintes respostas:
I - Em sua opinião, o que é dar aula de Língua Portuguesa na
atualidade? Por quê?
Professor 1 - Entendo que hoje, deixando de lado a questão da valorização do
professor, torna-se uma competição muito injusta com o mundo virtual. Os
alunos tem acesso a um mundo totalmente informal e quando tem que
optarem entre o que é correto e este mundo, o fazem por um mundo mais
próximo e, para ele, mais atrativo.
Professor 2: É bater em uma educação falida, baseada num sistema
deficiente. Pois cada dia a língua portuguesa sofre a desvalorização e a ação
da tecnologia, refletindo na falta de interesse dos próprios alunos.
Professor 3: Desafiante, visto que o ensino de língua portuguesa bem como
as demais matrizes e nossos colegas de profissão, nos deparamos
ultimamente com uma inovação tecnológica chamada de redes sociais que se
dissiminou entre as pessoas especificamente entre os jovens e que estão
importando para dentro da sala de aula, dividindo assim a atenção na aula e
nos atrativos das redes sociais. Como conseqüência a aprendizagem, o
feedback, o raciocínio é comprometido.
Professor 4: Ministrar aula de língua portuguesa tem sido um grande desafio,
por que os alunos sente-se atraídos pelas novas tecnologias e não têm
interesse em adquirir informações através de outros meios. Além disso as
péssimas condições de infraestrutura da escola comprometem muito no
processo de ensino-aprendizagem.
Como podemos constatar os professores sentem uma angústia em relação ao uso
exacerbado da tecnologia, é interessante verificar que esses professores sabem que
podem usar a tecnologia na sala de aula, mas tentam separar esse uso do cotidiano e é
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1494
esse olhar que não podemos mais ter, de que estar dissociado sala de aula e tecnologia,
um está ligado ao outro, por que se eu tenho no discurso de P3 que a consequência da
tecnologia é o comprometimento do raciocínio, eu desvinculo totalmente o uso da
tecnologia para ensinar a pensa, interagir, dialogar e a argumentar e todos essas
capacidades são decorrentes dos PCN’s de língua portuguesa.
O outro problema abordado por esses professores é a falta de empenho para a leitura
e escrita, no entanto, a leitura vai além daquilo que é ensinado em sala de aula, é algo
que vai além do próprio texto e que a escrita, embora tenhamos uma gramática
normativa, não se baseia apenas nela. È interessante ver os comentários dos professores
quanto o desafio é o ensino de língua, para nos sensibilizarmo-nos da angústia de
olharmos além do que temos como recursos.
II - Quais são suas dificuldades em relação às aulas de Língua Portuguesa?
Por quê?
Professor1: Hoje além da briga com o sistema, que a meu ver privilegia a
falta de interesse e a indisciplina do aluno, é o acesso às redes sociais, que
tornam os alunos reféns e próximos de uma escrita demasiadamente informal.
Professor2: Manter a atenção do aluno. É possível apontar vários fatores para
essa falta de atenção a tecnologia é uma, a falta de estrutura familiar....
Professor 3: Não vejo maiores dificuldades no processo de transmissão do
saber, das informações inerentes ao conteúdo trabalhado, isso por que além
de usarmos técnicas inovadoras no processo metodológico, mais que isso é
preciso adentrar no mundo desses jovens e procurar compreendê-los.
Professor 4: As dificuldades estão relacionadas à prática de leitura e
produção de textos, porque tem sido cada vez mais difícil incultir no aluno o
gosto pela leitura e escrita de forma prazerosa. É um desafio manter os alunos
de hoje se dedicando na aula e fazer com que o conteúdo de ensino seja
realmente para eles.
Sabemos que o uso de computadores, redes sociais, fanfics, todo aparato
tecnológico não resolverá sozinhos essas dificuldades, mas é perceptível que a leitura de
textos variados ocorre na internet, e que os alunos também comentam, opinam,
escrevem e interagem, que reportagens jornalísticas podem ser revisadas em sala de
aula, jornais podem ser acessados on-line por celulares, i-phones etc, livros e contos
podem ser salvos e lidos na sala de aula. Releio aqui o pensamento de Steven Jobson,
ler através do computador e do celular é a mesma leitura, mas há algo lá que seduz e
que brinca com o universo de leitura e da escrita, esse universo é a web 2.0 que assim
como o sistema nos dá a ilusão de que estamos livres para fazer o que queremos, Pois lá
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1495
nós não apenas lemos, nós criticamos, comungamos do mesmo pensamento e
socializaremos a leitura e a escrita.
Como o projeto ainda está em andamento não podemos constatar se as ações e
as reflexões desses professores possibilitará esse novo olhar para a escrita digital, mas
todos concordam, a partir do resultado do segundo questionário, com a ideia de que é
preciso sim utilizar esses artifícios da web 2.0 como auxilio para uma escrita autônoma
que passa do professor para o aluno através de blogs, paginas de redes sociais, site e
grupos restritos e do aluno para o mundo, para o reconhecimento. Resolvendo em parte
um questionamento recorrente do professor de produção de texto: “o que fazer com essa
infinidade de textos que recebo diariamente de alunos dos mais variados níveis e
series?”
Enfim o monitoramento da escrita se eleva e melhora devido a exposição do
texto, o aluno se torna corresponsável pela correção. Embora haja uma ideia do senso
comum de que escrever na internet é escrever de qualquer jeito, as pessoas têm se
preocupado muito em escrever com coerência e expressividade para serem lidas,
curtidas, compartilhadas e seguidas pelo mundo digital.
O que estamos querendo dizer é que esses professores escrevem e leem, buscam
a perfeição e o empenho no cumprimento do seu papel, ensinar a ler e a escrever, mas
onde se constroem essas identidades, esses discursos? Esses discursos emergem das
mais variadas situações da sala de aula, o professor é vítima e sofredor ao mesmo tempo
e estão em busca de um agir no mundo social.
REFERÊNCIAS
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Caderno especial, 15/4. Em: www2. Correioweb. Com.br/cw/ edição_20030415. Ultimo
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Nas fronteiras da linguagem ǀ 1498
GÊNERO TEXTUAL COMO EIXO NORTEADOR DO
ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA [Voltar para Sumário]
Katiane Silva Santos1 (IFAL)
Introdução
É notório que o ensino de língua portuguesa está mais centrado nos gêneros
textuais. Embora haja vários estudos acerca do tema, ainda há muito que debater.
Muitas pesquisas foram realizadas no que tange à inserção dos gêneros textuais na sala
de aula, porém o que foi comprovado com os resultados das pesquisas é que as
atividades relacionadas ao gênero são desenvolvidas de maneira equivocada. Na
dissertação de mestrado “Ensino-aprendizagem da língua portuguesa, gêneros textuais e
prática pedagógica" (2010), a pesquisadora da Universidade Católica de Pernambuco,
Gilvânia Gonzalez mostra, através de seus estudos, que alguns professores de língua
portuguesa sequer têm noção da concepção de gênero textual. Haja vista, alguns fazem
uso da diversidade de gêneros, no entanto o fazem de maneira equivocada. Observa-se
que o trabalho desenvolvido na sala de aula não tem os gêneros textuais como eixos
norteadores do ensino. Apesar de os planos de ensino contemplar as variedades textuais
como componentes curriculares, verifica-se que os procedimentos didáticos voltam-se
para a exploração dos aspectos formais e estruturais da língua, desvinculando o texto
das práticas sociais de comunicação.
Os conhecimentos adquiridos nas aulas de língua materna devem voltar-se, não
só para o âmbito escolar, mas também fora dele, pois o objeto de ensino e
aprendizagem, segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais (1998, p.22), “é o
1 Pós-graduanda do curso de especialização em Linguagem e Práticas Sociais pelo Instituto Federal de
Alagoas (IFAL) e graduada em Letras pela Universidade Federal de Sergipe (UFS).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1499
conhecimento linguístico e discursivo com o qual o sujeito opera ao participar das
práticas sociais mediadas pela linguagem”.
Embora seja inegável que os PCN’s sirvam de apoio aos professores, o
documento se trata apenas de uma referência para as discussões curriculares, não traz,
portanto, propostas as quais orientem o trabalho do docente. A este, “cabe planejar,
implantar e dirigir as atividades didáticas...” (PCN’s, 1998, p.22). Não há, portanto, uma
apresentação que mostre a maneira que o trabalho será desenvolvido, como as
atividades serão organizadas de forma que o aluno amplie seu domínio discursivo nas
diversas situações de comunicação, inclusive nas instâncias públicas de uso da
linguagem. Daí a importância de realizar um estudo, o qual tem como objetivo mostrar
como as atividades relacionadas à inserção dos gêneros orais e escritos poderão ser
aplicadas na sala de aula. Desse modo, a temática foi escolhida por conta de que muitos
materiais os quais tratam dos gêneros textuais não dão suporte necessário ao professor, a
fim de que o trabalho em sala seja desenvolvido de forma efetiva.
Assim, primeiramente discute-se a teoria dos gêneros na perspectiva de
Marcuschi (2008), explicitando a noção de gênero e chamando atenção para a distinção
entre gênero e tipo textual. Logo após, faz-se uma abordagem da exploração dos
gêneros na perspectiva de Passarelli (2012). Já no terceiro momento apresentam-se as
propostas elaboradas por Dolz e Schneuwly (2004) para tornar possível o entendimento
das peculiaridades de cada gênero. E para finalizar, as considerações finais.
1 Gênero textual na perspectiva de Marcuschi
A noção de gênero não está mais vinculada apenas à literatura. Marcuschi (2008,
p. 147) faz referência à Swales (1990) para dizer que hoje o gênero é utilizado em
qualquer tipo de discurso, seja ele falado ou escrito, com aspirações literárias ou não.
Contudo, é na linguística que interessa analisar a noção de gênero.
Luis Antônio Marcuschi (2008), na segunda parte de sua obra intitulada
“Gêneros textuais no ensino de língua”, defende que no processo de comunicação
verbal não há como não fazer uso de algum gênero, assim como não há comunicação
verbal sem texto. Sendo assim, em toda e qualquer prática comunicativa faz-se
necessário a utilização de algum gênero de texto, seja oral ou escrito. Em vista disso, há
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1500
uma diversidade de texto, a ponto de um sujeito não conseguir identificá-los pelo fato
de a quantidade de gêneros existentes nas esferas da sociedade ser imensa, o que não
quer dizer que sejam infinitos. Na esfera jornalística, por exemplo, há o editorial, o
artigo de opinião, a carta ao leitor, etc.; na esfera religiosa há a oração, a prece, o
sermão, etc. À proporção que cada esfera da atividade humana se desenvolve, mais
gêneros surgem para atender as necessidades das práticas sociais
É importante não confundir gênero textual com tipo ou formal, visto que um
gênero textual não é uma forma linguística, mas “uma forma de realizar
linguisticamente objetivos específicos em situações sociais particulares.”
(MARCUSCHI, 2008, p. 154).
O tipo textual são modos textuais, os quais são identificados pela sua
composição. Compreende as categorias conhecidas como narração, argumentação,
descrição, injunção e exposição, predominando, assim, a identificação de sequências
linguísticas como norteadoras. Já o gênero textual refere-se ao texto que é produzido
para atingir determinado objetivo, numa dada situação comunicativa. Vale ressaltar, que
os gêneros não são modelos estanques, e sim dinâmicos, pois são variáveis e sócio-
históricos. Por este motivo, contá-los seria uma tarefa quase impossível, porque vários
gêneros surgem a partir das necessidades do homem, das atividades socioculturais e das
inovações tecnológicas.
Nas situações de comunicação do cotidiano, tanto o gênero quanto o tipo textual
constituem o funcionamento da língua, por isso é interessante frisar que “os gêneros não
são opostos a tipos e que ambos não formam uma dicotomia e sim são complementares
e integrados.” (MARCUSCHI, 2008, p. 156). Desse modo, todo gênero possui uma
sequência tipológica, ou seja, em um gênero pode predominar a narração, a descrição,
ou mesmo a exposição. Esse tipo de análise pode ser observado em qualquer gênero,
logo, o que vai predominar no tipo textual é a identificação da sequência linguística, ao
passo que no gênero textual vão predominar os propósitos, os critérios de padrões
comunicativos e inserção sócio-histórica. É nesse sentido que Marcuschi (2008) reforça
que para distinguir os gêneros textuais utilizam-se critérios linguísticos e funcionais, de
modo que os tipos textuais são distinguidos através de critérios linguísticos e estruturais.
No entanto, a preocupação não é classificar o gênero, mas sim explicar como se
constituem e como circulam nas práticas sociais.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1501
2 Exploração dos gêneros atrelados às práticas sociais
Em muitas situações, a escola contribui para que os alunos acreditem que a
escrita é uma exigência apenas da escola, sem qualquer utilidade fora dela. No entanto,
é importante que seja mostrado aos alunos que “a linguagem se realiza em situações
práticas, de convívio social, por textos orais e escritos, mediante as quatro habilidades
linguísticas básicas: falar, escutar, ler e escrever.” (PASSARELLI, 2012, p. 116). É
nessa perspectiva, que o capítulo 4 do livro de Passarelli (2012), intitulado “Funções da
escrita de diferentes gêneros textuais”, é dedicado à exposição acerca do tratamento dos
gêneros na sala de aula. A ideia é criar na escola, situações que se assemelhem às
existentes no ambiente social externo.
Nesse sentido, a autora contribui bastante para o trabalho docente apresentando
de forma clara o propósito comunicativo dos gêneros, quer em situações da vida
cotidiana, quer na vida escolar. Diante disso, o quadro abaixo mostra os gêneros que
podem ser utilizados na escola e também aqueles que simulam situações da vida diária.
Quadro 1- Funções sociais da escrita
Função social ou propósito comunicativo Gênero
Fornecer, obter informações e resolver
problemas práticos do dia a dia
Cheque; carta comercial; ofício,
memorando, relatório técnico,
circulares; curriculum vitae; textos de
procedimentos; e-mails; provas,
redações e trabalhos escolares;
convites; textos para mural; regras de
jogos; manuais de instrução; receita
médica; bula de remédio.
Partilhar vivências Depoimentos em redes sociais, em
colunas de revistas; blogue; ágora.
Reivindicar, manifestar ou formar opinião Carta de leitor; carta de reclamação;
artigo de opinião; editorial.
Não esquecer
Fornecer suporte à memória
Fichamentos, resumos, resenhas etc.;
anotações pessoais e calendários;
páginas de agendas; receita; data de
aniversário; listas.
Formalizar registros permanentes Convites; certidões; certificados;
diplomas; frases de tatuagens.
Substituir comunicações próprias do contato
face a face
Bilhetes, cartas; telegramas, mensagens
eletrônicas [via computador, telefone].
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1502
Satisfazer curiosidades, inteirar-se Folhetos religiosos; mensagens que
orientam papéis sociais; propagandas
institucionais; cadernos de perguntas
pessoais dos adolescentes.
Passar o tempo, ter momentos de lazer Poemas, pichações em muros, cadernos
pessoais.
Obter informações, esclarecimentos ou trocar
mensagens atinentes a relações sociais com
parentes, amigos e namorados
Torpedo; telegrama; carta; e-mail ou
outra correspondência eletrônica;
cartões de Natal, de aniversário.
Produzir literatura Acróstico, crônicas, contos, romances,
poemas, haicais, limeriques.
Para facilitar o trabalho docente, Passarelli (2012) explicita um exercício
bastante significativo a fim de relacionar a escrita com a vida em sociedade. A ideia é
distribuir textos dos mais variados gêneros e pedir para os alunos analisarem as
características de tais textos indicando:
O gênero textual: Forma textual materializada em situações comunicativas orais ou
escritas
O suporte: De onde, materialmente, o texto foi retirado;
A veiculação: Tipo de situação em que o gênero se encontra;
A função social: Propósitos comunicativos, por exemplo, entreter,
informar, instruir, documentar;
A natureza da informação: A informação transmitida;
O tipo textual: Narrativo, descritivo, argumentativo, expositivo;
Variante linguística: Formal, informal;
Domínio discursivo: Esfera de atividade discursiva, por exemplo,
acadêmica, jornalística, publicitária, científica, religiosa, jurídica.
O intuito de Passarelli (2012) é propiciar a identificação dos gêneros textuais e
oportunizar o uso e a exploração desses gêneros na sala de aula. A intenção é que “o
ensino da produção textual escrita associe a escrita à vida em sociedade.”
(PASSARELLI, 2012, p. 128).
3 Sequência Didática
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1503
Muitas atividades propostas e praticadas em sala de aula não abordam as
peculiaridades de cada gênero. Os textos aparecem como suporte para o trabalho de um
tema, não havendo indicação que destaque um trabalho estruturado numa sequência
didática, tal qual propõem Dolz e Schneuwly (2004). Estes autores definem “sequência
didática” como “um conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira
sistemática, em torno de um gênero textual oral ou escrito.” (DOLZ e SCHNEUWLY,
2004, p. 96). O intuito da sequência didática é dar auxílio para que o aluno tenha
domínio de um gênero de texto, o que permite que ele escreva ou fale de um modo mais
adequado em determinadas situações de comunicação.
O grupo de Genebra apresenta um esquema para a realização da sequência
didática. Esta é dividida em quatro momentos: apresentação da situação, primeira
produção, módulos e produção final.
No primeiro momento, o professor apresenta para a turma o gênero a ser
trabalhado, dando indicações que respondam às seguintes questões: Qual gênero será
abordado? A quem se dirige? Qual forma assumirá após a produção? Quem participará
da produção?
Se na fase de apresentação a situação é bem definida, todos os alunos são
capazes de produzir o texto. Na produção inicial os alunos buscam produzir o gênero
proposto. É por meio da avaliação inicial que o professor percebe o grau de dificuldades
que os alunos têm sobre os gêneros, buscando, assim, soluções para os problemas que
aparecem.
Nos módulos, os problemas diagnosticados na primeira produção são
trabalhados. O professor irá desenvolver atividades e exercícios diversos, os quais
permitirão aos alunos dominar o gênero escolhido. Através das variadas atividades
realizadas nos módulos é que os alunos superarão os problemas. O essencial em cada
módulo é diversificar os modos de trabalho, e para que isso ocorra é necessário
enriquecer o trabalho na sala se aula com atividades diferenciadas. Vale destacar que
são três categorias de atividades e exercícios, a saber: atividades de observação e análise
de textos; tarefas simplificadas de produção de textos; e elaboração de uma linguagem
comum.
Após cumprir as atividades dos módulos, os alunos além de aprenderem a falar
acerca do gênero abordado, também adquirem um vocabulário técnico, o qual será
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1504
comum à turma e ao professor. Ao final de cada sequência, é feita uma síntese para
recapitular o que foi trabalhado.
O último momento é a produção final, que possibilita ao aluno pôr em prática o
que aprendeu, e ao professor, realizar uma avaliação formativa. É importante salientar,
portanto, que a proposta pressupõe o trabalho tanto com os textos orais, quanto com
escritos.
Conclusão
Nota-se cada vez mais que o estudo sobre os gêneros tem sido imprescindível
para que as ideias possam ser conhecidas e questionadas.
Espera-se ter atingido o objetivo de pensar na importância dos trabalhos
desenvolvidos que levam em consideração os gêneros textuais. Contudo, a pretensão
deste trabalho não é ser um guia, mas um subsídio que auxilie o professor de língua
portuguesa na sua prática pedagógica.
Logo, a inserção dos variados textos no processo de ensino e aprendizagem
torna-se indispensável, visto que funcionam como instrumentos de trabalho na ação
docente. Nesse sentido, é inegável a necessidade da presença dos gêneros na sala de
aula. O importante é que o professor desenvolva uma prática pautada nas sequências
didáticas, o que fará os alunos compreender melhor uma diversidade de textos,
permitindo, assim, boas condições para a recepção e produção de textos, além de dar
suporte para que o professor realize uma atividade ampla com os textos, atrelando-os às
práticas sociais de comunicação.
Referências
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terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa. Brasília: SEF/MEC,
1998.
DOLZ, Joaquim; NOVERRAZ, Michele; SCHNEUWLY, Bernard. Sequências
didáticas para o oral e a escrita: apresentação de um procedimento. In: DOLZ, Joaquim
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2004, p. 95-128.
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GONZALEZ, Gilvânia Oliveira. Ensino- aprendizagem da língua portuguesa, gêneros
textuais e prática pedagógica. 2010. 138f. Dissertação (Mestrado em Ciência da
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Parábola, 2008, p. 145-281.
PASSARELLI, Lílian Ghiuro. Funções da escrita de diferentes gêneros textuais e
princípios norteadores para o ensino da produção textual. In: PASSARELLI, Lílian
Ghiuro. Ensino e correção na produção de textos escolares. São Paulo: Telos, 2012, p.
115-141.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1506
UMA ANÁLISE DE CONCEITOS E CONCEPÇÕES NOS
REFERENCIAIS CURRICULARES PARA O ENSINO
MÉDIO DA PARAÍBA: A PRESENÇA DE BAKHTIN [Voltar para Sumário]
Keila Gabryelle Leal Aragão (UFPB)
Ayanne Mayelle da Silva Ferreira (UFPB)
Introdução
Os conteúdos de ensino, definidos historicamente, resultam da seleção daquilo
que é dado ou digno de saber. Dessa forma, existem conteúdos assim como
metodologias de ensino que só se justificam quando pensamos na “naturalização” de um
discurso pedagógico constituído historicamente e socialmente, ou seja, não há uma
justificativa plausível para o seu ensino/aprendizagem que não a sacralização desses
conhecimentos tidos “necessários ou essenciais.” Contudo, a LDB 9394/96 e, em
consonância com esta, os Parâmetros Curriculares Nacionais, apresentam-se como um
“marco teórico” em que deparamos com um novo discurso e, entre eles, o trabalho com
os gêneros textuais/discursivos.
Os gêneros estão inseridos nesse “novo discurso” de ensino em todas as esferas
da atividade humana estão relacionadas com o uso da língua em forma de enunciados
(orais e escritos). Esses enunciados são determinados pelas múltiplas especificidades em
cada campo de atividade humana, ou seja, aspectos relacionados com o seu conteúdo
temático, estilo e organização composicional. Cada enunciado particular é individual,
contudo, as várias esferas das comunicações elaboram seus tipos relativamente estáveis
de enunciados, o que chamamos de gêneros do discurso. (BAKHTIN, 2003).
Desenvolvemos uma pesquisa de cunho bibliográfico e documental a partir dos
Referenciais Curriculares para o Ensino Médio da Paraíba (RCEMPB1) - Língua
1 Abreviação estabelecida para: Referenciais Curriculares para o Ensino Médio da Paraíba.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1507
Portuguesa, nos atendo, principalmente, à análise da transposição dos conceitos
referentes aos Gêneros textuais/discursivos e de que forma eles estão sendo abordados
neste referencial buscando estabelecer uma leitura sobre quais concepções são
assumidas nessa parte do documento.
Estabelecemos como categorias teórico-analíticas, a partir da leitura do corpus,
as noções de língua, linguagem, enunciado, enunciação, ideologia, polifonia e gêneros
discursivos (BAKHTIN, 2010). É válido lembrar que a partir de nosso corpus lançamos
mão dos pressupostos teóricos encontrados em Mikhail Bakhtin (2003), Mikhail
Bakhtin /Volochínov (2012) e o círculo, Beth Brait (2006), além dos estudos de Cristovão
Tezza (2001) e Augusto Ponzio (2009).
A importância de nossa análise parte da necessidade de um olhar crítico sobre
esse documento, tendo em vista que a fundamentação teórica que o respalda supõe
conhecimentos que muitos professores ainda não partilham e que são norteadores da sua
prática em sala de aula, neste nível de ensino.
Para uma melhor visualização do corpus, o trabalho encontra-se dividido nos
subtítulos abaixo em que procuramos destacar também em suas caracterizações nos
objetivos específicos: 1. Referenciais Curriculares para o Ensino Médio da Paraíba –
Língua Portuguesa, onde apresentamos a composição geral do documento; 2. Conceitos
e Concepções nos Referenciais estabelecem uma reflexão com trechos retirados do
documento em que procuramos desenvolver um diálogo com alguns conceitos e
concepções inseridos nos estudos bakhtinianos e o círculo. Esse tópico deve ser visto
como um capítulo teórico/analítico; 3.Gêneros Textuais/Discursivos, em que
procuramos analisar como o documento expõe os conceitos desse conteúdo e ainda
investigar quais concepções são assumidas no respectivo referencial de forma que
possamos identificar com quais autores ele mantém o diálogo.
1.Referenciais Curriculares para o Ensino Médio da Paraíba: língua portuguesa
A partir da promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional,
LDB, Lei 9.394/96, da instituição das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino
Médio, da divulgação dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio,
entre outras ações desenvolvidas para difundir os princípios da reforma do Ensino
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1508
Médio, a maioria dos estados brasileiros iniciou estudos na perspectiva da construção de
Referenciais Curriculares que pudessem contribuir para consolidar a organização
curricular desse nível de ensino.
Para garantir a autonomia pedagógica preconizada na LDB (art.15), faz-se
necessária a construção de uma referência, sobre a composição do currículo, nesse
sentido, essa referência deve dar conta das características regionais da sociedade, pelas
circunstâncias econômicas e intelectuais do público de determinada região.
Na Paraíba, o processo de construção dos referenciais teve início nos fóruns, nos
seminários e nas ações de formação continuada de professores da rede estadual de
ensino, tendo em vista que as incumbências e responsabilidades do Estado são assegurar
o ensino fundamental e oferecer, com prioridade, o ensino médio a todos que o
demandarem. Esse processo, então, constituiu numa iniciativa de ampliação das
orientações previstas em documentos anteriores para um ensino mais “compatível” com
as nossas particularidades locais, tal como é previsto no artigo 26 da LDB ao se tratar da
parte diversificada dos currículos do Ensino Fundamental e Médio e artigo 10, inciso V,
sobre a complementaridade de normas para o seu sistema de ensino.
Os Referenciais Curriculares: Linguagens, Códigos e Suas Tecnologias são
divididos em cinco “conhecimentos”: conhecimento de Língua Portuguesa, de
Literatura, de Línguas Estrangeiras, de Arte e de Educação Física. Neste trabalho, nos
ateremos ao conhecimento de Língua Portuguesa que possui setenta e quatro páginas
divididas em cinco subtítulos, quais sejam:
1. A língua como uma forma de manifestação da linguagem;
2. Eixos estruturantes dos conteúdos/objetos de ensino: quais são e como se
apresentam?;
3. Propostas de organização curricular dos conteúdos/objetos de ensino;
4. Orientações metodológicas para o ensino das práticas de linguagem;
5. O ensino noturno de Língua Portuguesa;
Antes de seguirmos com as discussões acerca das concepções, faz-se necessário
o entendimento dos objetivos apresentados pelo documento (RCEMP, 2006, p. 19):
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1509
Explicitar os objetivos para o ensino de língua portuguesa, tendo em vista
o perfil do usuário da língua(gem) que se pretende formar;
Fornecer subsídios teóricos e metodológicos aos professores de Língua
Portuguesa na definição dos eixos estruturantes dos objetos de ensino (práticas de
linguagem: escuta, leitura, produção oral e escrita, análise linguística) a serem
desenvolvidos nas propostas pedagógicas das escolas;
Resignificar o ensino noturno de língua portuguesa;
Fornecer subsídios teóricos e metodológicos para a prática de avaliação
de ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa.
O documento destaca que o professor deve considerar que a proposição dos
Referenciais deve ser realizada por meio da “[...] discussão e defesa de uma concepção
de ensino e dos objetos de ensino”. Passemos, então, para as categorias teórico-
analíticas dos conceitos e concepções que dão respaldo aos conhecimentos na disciplina,
tais como língua, linguagem e ideologia; nos ateremos, principalmente, à análise da
transposição dos conceitos e concepções referentes aos Gêneros textuais/discursivos e
de que forma eles estão sendo abordados neste referencial.
2.Conceitos e concepções nos referenciais
2.1.Língua, Linguagem
O documento apresenta como primeiro objetivo para o ensino de língua
portuguesa a preocupação com a formação do perfil do usuário da língua(gem) que se
pretende formar e destaca que, a partir de reflexões produzidas sobre esses termos, deu-
se início a um debate em torno de uma possível revisão desse objeto de ensino. Ou seja,
percebeu-se que o ensino centrado numa concepção de língua como código “[...] é
insuficiente para que o educando se engaje em práticas de linguagem.” (RCEMPB,
2006, p. 20)
O estruturalismo ou linguística estrutural, tendo como principal representante
Ferdinand de Saussure, distingue a tríade: língua, fala e linguagem. Linguagem, para o
estudioso, possui dois lados essenciais, que são a língua e a fala; assim, ao estudarmos
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1510
Saussure, deparamos com algumas dicotomias que caracterizam o pensamento do
linguista, entre elas estão: língua, entendida com um sistema, ou seja, um conjunto de
signos usados por uma determinada comunidade linguística que obedecem a
determinadas regras e princípios, constituindo-se em um todo coerente; e fala,
constituída pelo uso individual da língua pelo sujeito.
De forma a alcançar o primeiro objetivo, os Referenciais Curriculares da Paraíba
concebem a língua como uma forma de “manifestação da linguagem”, isto é, a língua é
vista a partir de princípio sócio-interacionista que a vê como um fenômeno de interação
social. Vejamos o conceito apresentado no documento em questão: “[...] a língua não
deve ser tomada como um sistema fechado e imutável, mas como processo dinâmico de
interação, em que interlocutores atuam discursivamente sobre o outro.” (RCEMPB,
2006, p. 22)
Surge, então, a figura de Mikhail Bakhtin (2003) que explora o caráter
enunciativo da língua(gem) o que implica “[...] deslocar-se de uma visão de sentido
imanente ao enunciado linguístico, como um produto acabado, para uma visão de
sentido determinado pelas suas condições de produção[...]” (RCEMPB, 2006, p.21). O
trecho citado apresenta uma concepção de língua enquanto processo de evolução que se
realiza através da interação verbal social dos locutores envolvidos, tal como Bakhtin, e
efetua-se em forma de enunciados orais ou escritos, concretos e únicos, proferidos pelos
integrantes de uma determinada esfera da atividade humana. Assim, a língua, enquanto
sistema estável, é apenas uma abstração.
2.2.Enunciado e Enunciação
No documento encontramos alguns conceitos centrais do sócio-interacionismo,
apesar de não haver nenhuma referência à fonte: “o diálogo com o outro, a interação,
condições de produção, enunciado.” Até aqui, observamos claramente que o documento
assume uma postura de que “[...] a língua não se esgota na compreensão de sua
estrutura, mas remete à exterioridade”, destacando os elementos constitutivos do fazer
interativo/comunicativo: o enunciado e a enunciação (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV,
2012, p.23).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1511
Faz-se necessária a descrição não apenas dos enunciados, efetivamente
produzidos pelos usuários, mas também do processo de enunciação
(condições de produção relativas a tempo, lugar, papéis representados pelos
interlocutores, imagens recíprocas, relações sociais, objetivos visados na
interlocução) como constitutivos do(s) sentido(s) desse enunciado e
determinante das escolhas linguísticas realizadas.
Nesse sentido, a enunciação é o processo e o enunciado é o produto, elementos
que estão indissoluvelmente ligados no todo do enunciado e são igualmente
determinados pela especificidade de um determinado campo da comunicação. A
construção do enunciado, apesar da vontade discursiva do falante, não pode ser
considerada como uso e combinação absolutamente livres das formas da língua.
Esses enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada
esfera da atividade humana não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da
linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais fraseológicos e gramaticais da
língua, mas acima de tudo, por sua construção composicional.
2.3.Heterogeneidade
Nesse contexto, trazemos à tona o sócio-interacionismo, concebendo a
linguagem a partir de uma concepção interacional e regida pelo princípio dialógico.
Para Bakhtin2, o discurso se encontra com o discurso de outrem e não pode deixar de
participar, com ele, de um processo de interação. Nesse sentido, os Referenciais trazem
à tona outro conceito: a heterogeneidade. Observemos a definição abaixo:
[...] uma propriedade constitutiva da linguagem consiste no fato de um texto
se constituir a partir de outros textos. Por essa razão, todos os textos são
atravessados pelo discurso do outro, pois sob as palavras de um discurso há
outras palavras, outro discurso, outro ponto de vista social: um discurso é
sempre a materialização de um modo social de considerar uma questão.
(RCEMPB, 2006, p.29-30)
Para Bakhtin, a linguagem é heterogênea e assim o discurso é construído
a partir do discurso do outro, dessa forma, todo enunciado é uma resposta ao “já dito”.
Não existe, nesse sentido, um discurso primeiro e único, apenas o Adão mítico, como
cita o autor, que chegou “com a primeira palavra num mundo virgem” poderia produzi-
2 O Discurso no Romance (Texto encontrado na internet em extensão doc.)
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1512
lo, ou seja, para o discurso humano, real, histórico, evitar o dialogismo em sua
concretude é impossível.
Ao usarmos a noção proposta por Bakhtin (2012), segundo o qual o enunciado
constitui uma unidade comunicativa da língua e se difere das unidades linguísticas por
levar em consideração aspectos como: o sujeito, a história e a situação comunicativa do
discurso. Observamos que o discurso é orientado para a resposta e, assim, ele não pode
“esquivar-se” à influência profunda do discurso da resposta antecipada, como destaca o
autor.
Mikhail Bakhtin, ao afirmar que o sujeito é formado por diferentes vozes e que
ele só se constitui através da interação com o outro, institui a noção de polifonia. O
dialogismo, no entanto, não pode ser confundido com a polifonia, pois o primeiro é o
princípio constitutivo da linguagem, como trata Bakhtin, e o segundo se caracteriza por
vozes polêmicas em um dado discurso. Dessa forma, para o autor, heterogeneidade é
entendida a partir do conceito de dialogismo, o que é diferente de seu conceito de
polifonia, como já vimos.
No trecho acima “[...] pois sob as palavras de um discurso há outras palavras,
outro discurso, outro ponto de vista social.”(grifo nosso), podemos apreender a noção
de gêneros dialógicos polifônicos e não monofônicos em que há o predomínio de uma
voz dominante e, não polêmica, concepção de “polifônicos”. Nesse sentido, o trecho dá
margem para pensarmos que o documento, nesse momento, refere-se aos conceitos
estabelecidos por Bakhtin. O gênero romance, no texto: O Discurso em Dostoiévski
apresenta diferentes vozes sociais que se defrontam, manifestando diferentes “pontos de
vista sociais” sobre um dado objeto; portanto, é gênero polifônico por natureza. Assim,
temos uma concepção bakhtiniana de polifonia. Esta análise se justifica com o seguinte
trecho do Referencial (2006, p. 29): “Esse fenômeno é também conhecido como
polifonia, “coro de vozes”, usado para referir à representação, encenação, em dado
texto, de perspectivas ou pontos de vista de enunciadores diferentes.”
Por outro lado, Jaqueline Authier-Revuz, em consonância com o pensamento
bakhtiniano, redefine a noção de polifonia e a descreve como heterogeneidade, ou seja,
o sujeito não é homogêneo, pois este é atravessado por diferentes discursos que o
configuram.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1513
A heterogeneidade pode ser de dois tipos: a heterogeneidade mostrada e
constitutiva. A primeira é aquela em que há a denúncia do outro, ou seja, sua presença
no discurso e a segunda o outro está inscrito no discurso, mas sua presença não é
explícita ou demarcada. Como podemos observar, no documento, o trecho a seguir
apresenta as características das marcas linguísticas que representam o conceito de
heterogeneidade mostrada: “Os mecanismos linguísticos mais conhecidos para mostrar,
demarcando diferentes vozes no interior de um texto, são: o discurso direto [...] o
discurso indireto [...] e o discurso indireto livre.” (RCEMPB, 2006, p. 29)
Para Bakhtin o que importava era a heterogeneidade constitutiva, pois ela se
estabelecerá entre discursos. Somado a isso, os grifos abaixo representam o ponto
comum entre as concepções bakhtinianas à medida que destaca: 1. a relação entre os
discurso e 2. O discurso polifônico: “[...] o falante/escritor leva sempre em conta a de
outro, que, de certa forma, está também presente no discurso constituído. Esses pontos
de vista são sociais, são as posições divergentes que se estabelecem numa dada
sociedade [...]” (RCEMPB, 2006, p.29-30) (grifo nosso)
Nos Referenciais Curriculares da Paraíba, podemos pensar que há certa
“confusão” na transposição desses conceitos, porque não fica claro para o leitor em
quais autores o documento se baseia no trato com esse tema, como podemos observar.
2.4.Ideologia
É válido também notar nos Referenciais Curriculares da Paraíba como se
apresenta a noção de ideologia, vista como “[...] um conjunto de valores e crenças
sócio-culturais, construídas nas práticas de linguagem.” (grifo nosso). Sabemos, no
entanto, que para determinarmos se um enunciado é ou não ideológico, é necessário que
ele se encontre inserido em seu contexto de produção, dessa forma, a identidade volta-se
bem mais para o enunciador e o seu destinatário do que as suas propriedades
linguísticas.
Para Bakhtin (2012, p. 31), “Tudo que é ideológico possui um significado e
remete a algo situado fora de si mesmo.” O ensaio de Volochínov “Che cosa é Il
linguaggio?” (1930) é considerado por Augusto Ponzio (2008, p. 114) como o único
texto no qual encontramos de forma mais direta e explicitamente uma definição de
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1514
ideologia descrita por Bakhtin, para ele: “[...] todo conjunto dos reflexos e das
interpretações da realidade social e natural que tem lugar no cérebro do homem e se
expressa por meio das palavras [...] ou outras formas sígnicas.”
O documento apresenta um conceito em consonância com as ideias apresentadas
em Bakhtin. Para o autor, no signo ideológico, encontra-se presente uma “acentuação
valorativa”, que faz com que esse signo não seja reduzido apenas a uma ideia, mas a
expressão de uma determinada posição, ou seja, uma práxis concreta.
Em qualquer forma de comunicação, produzimos bem mais que frase e orações
isoladas, ou seja, interagimos com o outro num processo contínuo de trocas nem sempre
similares e pouco conflituosas; nossos enunciados, nesse contexto, refletem a nossa
ideologia em uma determinada situação comunicativa e momento histórico.
3.Gêneros textuais/discursivos
O conceito de gênero está presente nos Referencias Curriculares da Paraíba,
supondo um conhecimento partilhado pelos leitores, apesar da diversidade
terminológica que podemos encontrar no respectivo material com diferentes abordagens
de texto e do discurso.
A partir dos anos 1960, surgiram várias correntes linguísticas e, entre elas, a
linguística textual, numa tentativa de superar uma concepção simplista da língua como
um conjunto de frase isoladas. Assim, a Linguística textual passou a se dedicar
primeiramente às relações coesivas e para, em seguida, os estudos da coerência no texto.
Em suma, o texto passou a ser visto como um processo complexo de construção e não
como produto.
Todavia, com a divulgação da teoria dos gêneros de Bakhtin, observou-se que os
estudos se voltaram para os gêneros, que são vistos como tipos de enunciados,
relativamente estáveis e normativos que estão vinculados a situações típicas da
comunicação social e somente nessa situação de interação comunicativa que se podem
apreender a constituição e o funcionamento dos gêneros. Como tipos temáticos,
estilísticos e composicionais dos enunciados individuais, Bakhtin descreve que os
gêneros se constituem historicamente a partir de novas situações de interação verbal
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1515
(relação dialógica), que vão se estabilizando no interior das esferas sociais a partir de
suas particularidades.
É importante sabermos, no entanto, que a noção de gênero como tipo de
enunciado não é a das sequências textuais, descritas por J. M. Adam, mas uma
“tipificação” social dos enunciados que apresentam certos traços ou regularidades
comuns, que se constituíram historicamente nas atividades humanas em uma situação de
interação relativamente estável e que é reconhecida pelos falantes.
Bakhtin (2003) mostra que gênero é uma coisa e enunciado é outra, ninguém se
comunica a não ser por meio de gêneros do discurso. O estudioso nega que os gêneros
sejam apenas uma forma, e que, portanto, possam ser distinguidos pelas suas
propriedades formais. Em resumo, o que constitui o gênero é a sua ligação com uma
situação social de interação e não as suas propriedades formais, pois não é a forma em si
que “cria” e define o gênero, embora os gêneros mais estabilizados possam ser
reconhecidos pela sua dimensão histórico-social. Como modos sociais de ação e de
dizer, os gêneros “regulam”, organizam e significam a interação.
Como as possibilidades da atividade humana são “inesgotáveis” e como cada
esfera da atividade social tem um “repertório” de gêneros particulares que se diferencia
e cresce à medida que a própria esfera se desenvolve e se “complexifica”, há a
existência de uma grande variedade de gêneros na sociedade.
Nos RCEMPB, encontramos a relação da heterogeneidade dos gêneros em
consonância com os diferentes domínios discursivos ou esfera social. O processo de
intercalação é um dos lugares onde observar a plasticidade dos gêneros. Todas essas
características apontam para sua relativa estabilidade, sua dinamicidade e sua relação
inextricável com a situação social da interação.
Podemos dizer que há uma intenção de se trazer para o Ensino Médio das
escolas paraibanas a concepção de linguagem amparada na abordagem sócio-
interacionista mesmo sem qualquer citação direta a Bakhtin. Contudo, ora os autores do
documento destacam os gêneros numa concepção textual, ora numa concepção
discursiva. Parece que não se compreendeu que a escolha de um dois conceitos tem
repercussões teóricas e metodológicas profundas no ensino da língua.
Os gêneros textuais, por sua vez, sob diferentes modos de realização oral
(conversa, entrevista, debate, exposição etc) ou escrita (bilhete, notícia,
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1516
entrevista, editorial etc), atendem a diferentes domínios discursivos (esferas
sociais), científica, escolar, jurídica, virtual, publicitária, religiosa, entre
outras. São veiculados em diversos suportes materiais impressos (jornais,
revistas, livros, cartazes), eletrônicos (rádio, TV) e virtuais/digitais
(sites,blogs) que determinam o modo de elaboração e compreensão das
práticas de linguagem. (RCEMPB, 2006, p. 23)
No trecho acima, podemos apreender inicialmente uma mistura de conceitos nos
Referenciais Curriculares para o Ensino Médio da Paraíba. Sabemos que toda produção
de linguagem se dá na forma de texto, seja na forma verbal ou não-verbal. No entanto,
mesmo que a princípio o documento apresente uma concepção bakhtiniana de língua,
quando se atém aos gêneros apresenta uma perspectiva textual como a de Luiz Antônio
Marcuschi que estabelece uma definição para gênero com base em critérios não
linguísticos, tal como propõe a linha de teorização proposta por Bakhtin.
A língua realiza-se por meio de textos, definidos como um todo significativo,
independentemente de sua extensão, e concretizadas por meio de formas
sócio-historicamente estabilizadas, denominadas gêneros textuais.
Em sua proposta de organização curricular dos conteúdos/objetos de ensino, no
trabalho pedagógico a ser desenvolvido, destacamos o trabalho com os “gêneros
textuais”, numa organização em espiral dos gêneros, mas não verificamos a exposição
de um trabalho efetivo com seus elementos constitutivos, tais como estilo, conteúdo
composicional.
Nesse sentido, fornecer subsídios teóricos e metodológicos aos professores de
Língua Portuguesa na definição dos eixos estruturantes dos objetos de ensino é
primordial para a complementaridade nesse nível de ensino nas escolas paraibanas;
contudo, verificamos que isso é um processo lento e gradativo e, para isso, os autores
responsáveis pelo referencial deveriam se debruçar sobre o documento de tal forma que
possa corrigir e/ou verificar as nomenclaturas apresentadas e concepções apresentadas.
Fazê-las, portanto, significantes para uma grande massa de professores que já
possuem um bom conhecimento das teorias e estudos sobre os gêneros e também para
aqueles que não estudaram esse conteúdo de ensino nos currículos em formação inicial,
tendo em vista que possuem anos de sala de aula e seu ensino estava amparado em
currículos antigos, sob perspectivas outras.
Conclusão
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1517
A maioria dos conceitos e concepções em destaque, nesse artigo, é desenvolvida
sob uma perspectiva bakhtiniana, além de sugerir um trabalho com a linguagem
concebida numa perspectiva dialógica, social, histórica, mas em sua maioria falta ao
documento unidade teórica. Nesse sentido, trazem à área as contribuições dos estudos
de Mikhail Bakhtin, contudo pouco ou nada faz de referência ao estudioso, como se a
maioria dos professores do Ensino Médio tivesse um conhecimento partilhado da teoria,
o que é pouco provável, tendo em vista que a divulgação dos postulados bakhtinianos
começou há menos de duas décadas.
Além disso, os Referenciais misturam algumas concepções teóricas, não sendo,
portanto, de fácil compreensão para um leitor desatento, principalmente, nos conceitos
de heterogeneidade e polifonia que em sua grande maioria ora podemos apreender a
concepção bakhtiniana numa perspectiva da Análise Dialógica do Discurso.
Vemos ainda uma proposta bakhtiniana no trabalho com a linguagem, todavia,
constatamos que, para o documento, todo gênero é dialógico porque o dialogismo é
constitutivo da linguagem. Mas, como acontece com a “heterogeneidade”, os produtores
do Referencial trazem um teoria textual no trato com o gênero e não na concepção
bakhtiniana: gêneros discursivos. Pensemos que pode até mesmo ter ocorrido uma
confusão na nomenclatura, contudo, o objetivo do Referencial Curricular para o Ensino
Médio da Paraíba é estabelecer um “norte” para os professores poderem realizar um
ensino mais eficaz nas escolas paraibanas. Dessa forma, seria necessária uma revisão
para torná-lo mais legível e de fácil compreensão para que esses docentes possam
cumprir o papel que lhe cabe: ensinar.
Para concluir, diríamos que a maior parte do documento de Língua Portuguesa é
voltada para discussão do funcionamento da linguagem na vida e para algumas questões
relativas ao ensino de língua portuguesa, trazendo uma série de conceitos, mas a
concepção que prevalece intrinsecamente ao Referencial é a perspectiva bakhtiniana.
Referências
BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal; introdução e tradução do russo
Paulo Bezerra; prefácio à edição francesa Tzvetan Todorov. – 4, ed. – São Paulo:
Martins Fontes, 2003. – Coleção Biblioteca Nacional.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1518
BAKHTIN, Mikhail M. 1895-1975. (VOLOCHÍNOV,V.N) Marxismo e Filosofia da
linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. – 13, ed. –
São Paulo: Hucitec, 2012.
PARAÍBA, Secretaria de Estado da Educação e Cultura.Coordenadoria do Ensino
Médio. Referenciais Curriculares para o Ensino Médio da Paraíba:Linguagens,
Códigos e Suas Tecnologia/Girleide Medeiros de Almeida Monteiro (Coordenação
Geral). João Pessoa: [s.n.], 2006.
PONZIO, Augusto. A revolução bakhtiniana: o pensamento de Bakhtin e a ideologia
contemporânea. – São Paulo: Contexto, 2008.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1519
A LINGUAGEM DO PROBLEMA MATEMÁTICO
[Voltar para Sumário]
Kelly Jane da Silva Tcham (PIBIC/IFAL – Campus Maceió)
Nádia Mara da Silveira (IFAL – Campus Maceió
I. Introdução
Levando em consideração que a matemática está presente no cotidiano do sujeito
e que desempenha uma função significante no desenvolvimento da sociedade, no qual
o homem, desde os primórdios, encontra maneiras para solucionar problemas através do
conhecimento herdado culturalmente, isso significa dizer que, enquanto sujeitos
criativos do conhecimento, os homens têm um saber matemático inato, ou seja, “o
homem tem uma predisposição genética para aprender matemática, a mesma
aptidão para aprender a linguagem e que se faz necessário utilizar a linguagem para
obter um melhor desempenho na matemática.” (DEVLIN, 2005, p.16).
Desse modo, a proposta deste artigo consiste em analisar a linguagem do
problema matemático, sob o ponto de vista da sociolinguística, observando a questão da
diversidade linguística, entendendo que o Brasil é um país de proporção
continental ocasionando, no entanto, uma grande variedade linguística, onde cada região
do país apresenta uma particularidade marcante que tem reflexos em sua própria
linguagem e seu meio de se comunicar e que, evidentemente, esses efeitos são sentidos
no âmbito escolar e no processo de aprendizagem em geral.
Nesse estudo, buscaremos verificar a forma como é abordada a linguagem do
problema matemático, através de uma pesquisa bibliográfica, para que, na sequência,
possamos compreender a clareza dessa linguagem e se a mesma estabelece um diálogo
aberto e adequado ao repertório idiomático do aluno e os interesses escolares do
mesmo. Assim, escolhemos como perguntas de partida desse trabalho as seguintes
indagações: por que há tanta dificuldade para ler e compreender o problema
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1520
matemático? Até que ponto a valorização do contexto social e da linguagem cotidiana
do aluno pode o ajudar na interpretação do problema matemático?
De maneira geral, este artigo reflete sobre estas questões, centrando-se,
particularmente, sobre as relações entre os problemas matemáticos, a linguagem e o
contexto cultural do aluno, problematizando a epistemologia interna da matemática no
sentido de aferir até que ponto as suas categorias e conceitos podem ser colocados em
debate e ser trabalhados para relacionar com a realidade do aluno em seu contexto social
distinto, dentro de uma perspectiva metodológica que sugere novos modelos de
interpretação ou didática no ensino e aprendizagem da matemática, voltadas a
valorização da diversificação cultural, do conteúdo matemático e à transformação do
fracasso do aluno na disciplina em bom exemplo de aprendizagem escolar, uma vez que
“é preciso que a escola entenda seu papel social e sua função numa sociedade de grupos
muito diversificados” (POPPOVIC apud CARRAHER, 1982, p. 80).
Portanto, nesse sentido, propomos que a escola se adeque a situação social e
cultural do aluno e se esforce no sentido de capacitar os professores na democratização
do conteúdo escolar, através de métodos como jogos, essenciais para estimulação de um
melhor aprendizado em sala de aula.
II. Metodologia
Desse modo, pretende-se, através de um estudo exploratório, que conforme
Triviños (1987, p. 109) possibilita “ao investigador aumentar sua experiência em torno
de determinado problema”, investigar a linguagem dos problemas matemáticos,
considerando a questão da diversidade linguística e partindo do princípio de que cada
região do país apresenta uma particularidade marcante que tem reflexos em sua própria
linguagem e seu meio de se comunicar, e, que, evidentemente, esses efeitos são sentidos
no âmbito escolar e no processo de aprendizagem, interferindo, possivelmente, no
entendimento dos problemas matemáticos pelos alunos, uma vez que eles se apoiam em
uma linguagem científica que pode diferir da linguagem aprendida em seus contextos de
vida.
Assim sendo, a fim de realizarmos este estudo exploratório, torna-se necessário
um levantamento bibliográfico, que consiste, de acordo com Santos (2002, p.31), no
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1521
“conjunto de materiais escritos/gravados, mecânica ou eletronicamente, que contém
informações já elaboradas e publicadas por outros autores”. Visando obter, em torno da
temática da linguagem dos problemas matemáticos, evidências que possam esclarecer e
entender como podemos tornar essa linguagem mais acessível para os alunos,
possibilitando que a aprendizagem da matemática aconteça de forma mais eficiente e,
talvez, mais prazerosa.
III. Discussão Teórica
Linguagem e matemática são duas habilidades mentais intrínsecas dos seres
humanos através das quais os sujeitos são capazes de transformar em diversas
dimensões da realidade o espaço cultural no qual vivem. A cada instante estas duas
habilidades estão sempre em processo de evolução, devido à acelerada mudança da
sociedade, em particular, a sociedade contemporânea (DAVLIN, 2005).
Na perspectiva da sociolinguística, apoiados em Labov (1974), pode-se afirmar
que a língua é heterogênea e que ela pode variar não só de acordo com a região a que
um sujeito pertence, mas também, conforme a sua classe social, o sexo, a idade e outros
fatores; inclusive, depende do contexto em que o sujeito está inserido, ou seja, a
situação de comunicação em que se encontra.
Além disso, conforme Faraco (1991, p. 115), a Sociolingüística é “o estudo de
correlações sistemáticas entre formas linguísticas variantes (isto é, entre diferentes
formas de dizer a mesma coisa) e determinados fatores sociais tais como a classe de
renda, o nível de escolaridade, o sexo e a etnia dos falantes.”.
Desse modo, pode-se afirma que a linguagem é um fenômeno que evolui de
acordo com a necessidade dos sujeitos falantes de uma comunidade e com isso vai se
modificando, sofrendo influência dessa comunidade social. Para Geraldi (2002, p. 40)
“a cada instante, linguagem implica ao mesmo tempo um sistema estabelecido e uma
evolução: a cada instante, ela é uma instituição atual e um produto do passado”. No
entanto, vale ressaltar que a linguagem matemática está em igualdade com a linguagem
materna, assim Silva; Silva (2012, p. 265) afirma que:
Como forma expressiva de linguagem, a Matemática possibilita ao sujeito
formar os primeiros esquemas operatórios, repertório este que,
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1522
gradativamente, se alia à linguagem materna para fornecer instrumentos
efetivos à leitura e a compreensão do seu mundo particular e do seu entorno.
Nessa perspectiva, a linguagem tem um papel fundamental na vida do sujeito,
pois se trata de uma ferramenta de interação social, uma vez que permite ao indivíduo
inter-relação pessoal e processos para construção do aluno na busca e domínio do
conhecimento em todos os campos do saber, em particular da matemática. Por
conseguinte, observa-se que a linguagem matemática, nesse decurso, também é
influenciada pelo contexto sociocultural, que também sofre constante processo de
mudanças, sob influência de fatores externos como a globalização e de forças internas
como alteração de configuração familiar e outras mudanças que ocorrem em nossos
grupos primários e secundários de socialização, o que implica adequar o ensino da
matemática de modo a torná-lo mais acessível, possibilitando ao texto matemático se
acondicionar as mais variadas realidades culturais.
Segundo Bicudo e Borba (2009, p. 215) “discussões no campo da educação
matemática no Brasil e no mundo mostram a necessidade de se adequar o trabalho
escolar às novas tendências que podem levar a melhores formas de ensinar e aprender
Matemática”. Nessa circunstância, a linguagem científica ou padrão da matemática
precisa se moldar a língua corriqueira do aluno dentro do contexto cultural ao qual o
aluno está inserido. Acredita-se que a matemática só ganha sentido e significado se os
seus problemas forem elaborados num contexto de diálogo intersubjetivo. Entretanto,
para que o aluno possa evoluir na resolução de problemas da matemática, esse processo
deve ser efetivado na forma de diálogo entre sujeitos e esta interação entre os sujeitos
ou diálogo deve ser na base tanto de textos escritos como no saber prático do dia a dia
do aluno.
No entanto, compete à escola reconhecer a fragilidade do aluno e suas
limitações enquanto estudante de matemática, ampliando sua visão tanto para o discurso
científico proposto pela escola quanto para o discurso empírico existente nas classes
menos favorecidas, fazendo-se necessário que a escola encontre outras possibilidades
metodológicas para ensinar a matemática.
Para Smole e Diniz (2001, p. 89), tais possibilidades didático-metodológico
podem ser encontradas se alterarmos formas de comunicar os termos matemáticos e se
nos esforçarmos na perspectiva de construção de planos de aulas baseados em saberes
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1523
oriundos da experiência do aluno, privilegiando ou desenvolvendo atividades
relacionadas com o cotidiano do mesmo, o que cria igualmente oportunidade em
despertar no estudante o gosto pela matemática, a fim de que o aluno possa apreciar esta
disciplina e, consequentemente, ter um desempenho escolar melhor, rompendo certos
temores que ele possa ter em relação aos números. Afinal
Ao se deparar com um problema no qual não identifica o modelo a ser
seguido, só lhe resta desistir ou esperar a resposta de um colega ou do
professor. Muitas vezes, ele resolverá o problema mecanicamente, sem ter
entendido o que fez e sem confiar na resposta obtida, sendo incapaz de
verificar se a reposta é ou não adequada aos dados apresentados ou à
pergunta feita no enunciado (SMOLE; DINIZ, 2001, p. 101).
Desse modo, um problema quando é apresentado ao aluno embasado no
conhecimento que ele traz consigo, na sua linguagem do dia a dia, despertará nele o
interesse de buscar soluções para o problema com o qual se depara e, de forma criativa,
resolver mais que uma questão aritmética estabelecida, pois estará absorvendo os
conceitos de determinados assuntos matemáticos propostos. Uma vez que, quando o
aluno chega ao ambiente escolar ele tem um universo de conhecimento que corresponde
ao seu meio social e cultural, e nesse mundo de saberes o sujeito consegue, por meio de
suas próprias experiências, medir, quantificar, comparar e avaliar.
Segundo D’Ambrosio (2011), quando a linguagem dos problemas matemáticos
se afasta de sua realidade, tudo parece mais complicado e fica mais difícil para o aluno
aprender, pois ele pode passar a rejeitar a disciplina de matemática ocasionando o
fracasso escolar. O autor defende, ainda, que um verdadeiro projeto de educação escolar
é aquele que põe na frente a própria cultura e, afirma ser:
Um crime contra a educação impor as pessoas um conteúdo disciplinar
desprovido de filosofia, da sabedoria prática ou de aspirações espirituais do
cotidiano; seria ainda uma maior ofensa desprover um aluno do seu
patrimônio de reflexão, em que somente na posse do qual poderia haver um
ponto inicial para uma aprendizagem mais elevada (D’AMBROSIO, 2011, p.
197).
Alargando um pouco mais sua análise, D’Ambrosio (2011) assevera que a
Matemática se originou e se desenvolveu na Europa, tendo recebido importantes
contribuições das civilizações do Oriente e da África. Assim, falar da matemática em
contextos culturais diversos implica analisar, por exemplo, conceitos usados para a
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1524
quantificação e classificação, números e formas, relações e inferências. Nelas, há
sempre um fim que pode ser considerado manipulável. E esse momento manipulável
pode ser evidenciado, por exemplo, na passagem necessária do concreto para o abstrato.
Para ensinar o número dois em contextos culturais diferentes, por exemplo, e tendo em
conta que o dois é um símbolo abstrato, não é a mesma coisa se objetivamos o
número dois em duas maças ou duas batatas-doces. Este momento de exemplificação é
culturalmente manipulável.
No entanto, se levarmos em conta a possibilidade de manipulação política de
matemática pode-se sustentar a idéia de ensino de matemática mais contextualizado,
centrado na realidade do aluno, trazendo assim noções do seu dia a dia para que o aluno
tenha uma maior compreensão. (Carraher, 1982)
Um bom exemplo sobre essa problemática foi tecida por Carraher, quando
analisou crianças e adolescentes inseridas no mercado de trabalho, pois precisavam
ajudar no rendimento familiar, e dessa maneira foram ingressas desde cedo na área da
matemática – quanto a isso pode-se ver crianças vendendo mercadorias nos ônibus, nas
feiras e em diferentes lugares. Apesar de esse saber matemático ser intrínseco a essas
crianças ou esses adolescentes, eles não apresentaram, contudo, um bom rendimento
escolar. Levando-nos a uma necessária reflexão a respeito da linguagem abordada em
sala de aula e o modo a qual é mediada.
O estudo desenvolvido por Carraher (1982) renova a ideia da importância do
estudo sobre a linguagem científica da matemática e o modo como ela é transmitida pela
escola, na prática de sala de aula, pois, é ainda, uma questão pouco discutida de modo
profundo, no âmbito da sociolinguística, considerando a escassez de acervo teórico que
reflita sobre essa implicação na aprendizagem de matemática.
Alguns dos estudos encontrados sobre a temática concentram-se em ideias que
tendem a enfatizar que a dificuldade dos alunos com problemas matemáticos decorrem
de: problemas estruturais das nossas escolas, dos conteúdos matemáticos em si, do
despreparo dos nossos professores e, até mesmo, da falta de interesse dos próprios
alunos em estudar a disciplina.
No entanto, poucos refletem a possibilidade de que a causa da dificuldade de
aprendizagem da matemática pode estar associada, também, a questão da linguagem
matemática, entendida como parte fundamental para a compreensão dos problemas
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1525
matemáticos. Afinal, como defende D’Amore (2007, p. 249), “O ensino é a
comunicação e um de seus objetivos é o de favorecer a aprendizagem dos alunos, em
primeiro lugar, então, quem comunica deve fazê-lo de maneira tal que a linguagem
utilizada não seja ela própria uma fonte de obstáculos à compreensão”.
Contudo, o que se observa em relação à sala de aula é que é um privilégio
aferido à escola quanto à utilização de uma linguagem científica, marcada por um
modelo tradicional característico da classe dominante, dificultando a aprendizagem do
aluno, à medida que os termos, muitas vezes empregados, se afastam da língua do dia a
dia, ficando fora de contexto.
D’Amore (2007), por exemplo, defende que o ponto de partida para os estudos
matemáticos deve ser colocado no questionamento sobre o conceito de matemática e o
respectivo objeto de estudo, ou seja, para ele é tão importante estudar a história da
matemática, como também a filosofia da própria matemática. Pois, segundo o autor,
houve “distorções” causadas por dois processos subsequentes: as
“descobertas” européias e a consequente colonização dos povos não-europeus. Ambos
os processos tiveram como resultado a marginalização de todo tipo de conhecimento
produzido por pessoas consideradas periféricas, persistindo, esse fato, até os dias atuais.
O autor chama atenção, ainda, para os cuidados que o professor deve ter com a
utilização de “linguagem específica”, por compreender que ela gera um afastamento
entre o aluno e o conteúdo a ser explorado em sala de aula. Nesse sentido, o professor, a
fim de gerar uma aproximação de conhecimento, interagir com os alunos e garantir a
aprendizagem, deveria adaptar a sua linguagem e a dos problemas matemáticos, de
forma a tornar tais conhecimentos acessíveis. Não queremos dizer com isso que a
linguagem científica deva ser menosprezada, pelo contrário, ela precisa ser adquirida
pelos alunos, mas de forma mais escalonada, ou seja, partindo da sua realidade até
apresentar-lhe uma nova.
Assim, D’Amore (2007, p. 249), compartilha da idéia de que é preciso adequar
a linguagem a ser utilizada em sala de aula para que o aluno tenha uma compreensão
melhor da disciplina de matemática, já que a comunicação “deveria acontecer na língua
comum”.
Outro autor que discorre sobre esta questão é Gardner (1995, p. 24), quando
alarga o conceito da matemática e enfatiza que é preciso a estimulação dessa
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1526
inteligência lógico-matemática através dos jogos, pois o jogo também é uma forma de
linguagem facilitadora para aquisição do conhecimento da matemática, além de ter um
papel fundamental no processo de ensino-aprendizagem, como um mediador entre o
conhecimento a ser adquirido e a didática do professor.
Assim, tomando em consideração a complexidade do tema e a diversidade de
questões envolvidas, temos a plena consciência da existência de múltiplos limites postos
à nossa análise. Dessa forma, esperamos que as conclusões deste trabalho e as
informações nele apresentadas, possam oferecer pistas para futuras investigações.
IV. Considerações Finais
Após refletirmos sobre esta questão específica – a linguagem do problema
matemático – apoiando-se em vários autores, chegamos a uma compreensão parcial
sobre o panorama geral da pluralidade cultural que caracteriza a extensão continental do
nosso país, tendo como seu principal reflexo a diversidade sociolinguística do mesmo.
Este artigo discutiu sobre a linguagem do problema matemático, levando em
consideração as experiências sociais e culturais dos alunos apoiando-se numa
pluralidade de referências teóricas, assim como na nossa própria experiência enquanto
usuários da língua materna, aprendida oralmente desde a tenra idade, e da experiência
de contato com a versão científica da mesma, habitualmente aprendida na escola.
Consideramos que este encontro de dois níveis da linguagem tem provocado
dificuldades, em grande parte de natureza linguística, na resolução de problemas
matemáticos por parte dos alunos, dificuldades que, em nossa opinião, está localizada
na falta de mediação linguística que envolveria não apenas o professor de Matemática,
que vai continuar a orientar a prática do ensino dos problemas matemáticos, mas
também, com a colaboração do professor de Língua Portuguesa, de modo a viabilizar
leituras de textos matemáticos na perspectiva de facilitar a compreensão do seu
conteúdo e dos problemas sobre qual ele versa.
Enfim, a escola atualmente deve buscar um novo conceito educacional pautada
em fundamentos dialógicos, flexíveis, plurais e dinâmicos, dentro de uma perspectiva
que visa modelos que estimulem o aprendizado do aluno diante do problema
matemático e de aprendizagem de outros conteúdos disciplinares como um todo,
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1527
levando em conta que a linguagem matemática, especificamente, e a linguagem
materna, em particular, estão presentes em qualquer área do conhecimento humano.
Estas duas dimensões linguísticas constituem meios, condições, possibilidades de
resolução de problemas, com seus instrumentos próprios de expressão e comunicação.
IV. Referências
BICUDO, Maria Aparecida Viggiani. BORBA, Marcelo de Carvalho. Educação
matemática: pesquisa em movimento. São Paulo: Cortez, 2009.
CARRAHER, Terezinha et al. Na vida, dez; na escola, zero: Os Contextos Culturais da
Aprendizagem da Matemática. Cadernos de Pesquisa. São Paulo, v.42, p. 79 – 86, 1982.
Disponível em http://www.fcc.org.br/pesquisa/publicacoes/cp/arquivos/588.pdf.
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Etnomatemática. Um olhar sobre a diversidade cultural e a aprendizagem matemática.
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Stella V., NEVES, Moema F. (Orgs). Sociolingüística. Rio de Janeiro: Eldorado, 1974.
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Infantil e Ensino de Matemática. In: Ensinar Matemática: formação, investigação e
práticas docentes. Orgs. SILVA, Adelmo Carvalho da; CARVALHO, Mercedes;
RÊGO, Rogéria Gaudêncio do. Cuiabá: EdUFMT, 2012, p. 263-276.
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habilidades básicas para aprender matemática. Porto Alegre: Artmed Editora, 2001.
TRIVIÑOS, Augusto Nibaldo Silva. Introdução Á Pesquisa em Ciências Sociais: a
pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 1987.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1529
FACEBOOK E ENSINO DE GÊNEROS: UMA EXPERIÊNCIA
MIDIÁTICA EM REDE [Voltar para Sumário]
Laene Alves Pacheco Vaz (UPE)
Benedito Gomes Bezerra (UPE)
Introdução
Por muito tempo o ensino de Língua Portuguesa limitou-se ao ensino do texto como
pretexto para o aprendizado de regras de gramática, contudo, avanços nos estudos linguísticos
lançaram teorias sobre a aprendizagem da linguagem mediante o ensino de gêneros textuais,
os quais adquiriram amplo espaço nas salas de aula após as proposições dos Parâmetros
Curriculares Nacionais, elaborado com o intuito de renovar metodologicamente o ensino de
português.
Contudo, o ensino de gêneros é, por vezes, abordado em sala de aula e em livros
didáticos como pretexto para leitura e ensino de gramática, ou até mesmo são simulados
didaticamente, ou seja, são explorados os seus aspectos internos sem que haja referência
alguma aos fatores externos do gênero. À vista do exposto, a referida pesquisa, que é parte de
um projeto de mestrado, apresenta uma maneira de dinamizar as aulas de português a partir do
ensino de gêneros textuais, de modo a considerar os aspectos internos e externos do gênero,
seu contexto de uso e sua função na sociedade atual.
No âmbito teórico o problema da pesquisa encontra respaldo nos Estudos Retóricos de
Gêneros (ERG), tradição de ensino marcada por uma abordagem dos gêneros contextualizada.
Embora não tenham surgido de um imperativo pedagógico, os ERG sugerem que os gêneros,
para serem compreendidos como artefatos retóricos e sociais em uma perspectiva pedagógica,
não podem ser explicados nem adquiridos apenas por meios textuais ou linguísticos, nem
podem ser abstraídos de seu contexto de uso para fins pedagógicos.
Partindo do princípio de que os gêneros não existem isoladamente e que são marcados
por sua interação com outros gêneros e com interlocutores em determinadas situações,
acreditamos, com base nos ERG, que para que o estudante compreenda gêneros como
artefatos sociais ele precisa conhecer as relações que os gêneros estabelecem dentro do
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1530
contexto em que estão inseridos. Esta é a condição necessária para que o gênero seja
reconhecido e compreendido como artefato social complexo e dinâmico, o que consiste em
um desafio, inclusive para os professores de português.
Nessa perspectiva sociorretórica de gênero, a presente pesquisa representa uma
tentativa de responder a seguinte questão: como ensinar gêneros conservando a sua
complexidade e o seu status como algo mais do que simples traços retóricos tipificados?
Portanto, é esse o nosso alvo de intervenção. Assim sendo, nosso principal objetivo consistiu
em explorar as potencialidades didáticas do Facebook para o ensino e análise do gênero
anúncio publicitário, de modo a considerar os aspectos retóricos, textuais, linguísticos e
sociais do referido gênero dentro de seu contexto real de uso, como uma possibilidade para o
ensino de Língua Portuguesa no Ensino Fundamental II.
Procedimentos e opções metodológicas
Nesta seção nos propomos a narrar o itinerário metodológico que guiou nossa
pesquisa. Em termos de caracterização, a referida pesquisa insere-se na perspectiva
qualitativa, uma vez que os dados foram obtidos mediante o contato direto e interativo da
pesquisadora com o objeto de estudo, bem como foram descritos e interpretados
detalhadamente nos resultados.
Dentre as variadas formas de pesquisas qualitativas, o referido estudo atribui ênfase a
pesquisa-ação, por suas possibilidades de aplicação, inclusive no âmbito escolar. Thiollent
(1985) descreve pesquisa-ação como um tipo de pesquisa social com base empírica,
concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou mesmo com a resolução de um
problema coletivo, no qual os pesquisadores e os participantes representativos do problema
estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo.
Em suma, buscamos analisar, investigar, explicar e avaliar as possibilidades de ensino
e análise de gêneros através da rede social digital Facebook, aproveitando, destarte, o fascínio
que o referido site exerce sobre os adolescentes e jovens, sobretudo em idade escolar para
dinamizar as aulas de Língua Portuguesa.
Para trabalhar o gênero dentro do próprio contexto de circulação nós criamos um
grupo virtual na própria plataforma, sendo este um dos recursos favorecidos pelo Facebook.
Nos grupos a interação é mais direcionada e consistente o que possibilitou seu uso de forma
didática, de modo a potencializar o ensino e análise de gêneros.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1531
É oportuno notar que ao abrirmos a nossa página no Facebook somos bombardeados
por anúncios de diferentes empresas, as quais circulam entre os perfis dos usuários sob o
rótulo de amigos. Diante dessa invasão no referido site e por ser o gênero anúncio constituído
de mensagens repletas de conotações linguísticas, icônicas e ideológicas, ocorreu-nos pensar
tal gênero como um importante recurso a ser utilizado em atividades de leitura, compreensão
e análise linguística, contribuindo, assim, para o desenvolvimento crítico e discursivo dos
estudantes.
Assim sendo, planejamos oito oficinas pedagógicas, com atividades baseadas nas
seguintes abordagens: ERG, conforme exposto no problema de pesquisa e os estudos de
gênero em inglês para fins específicos (English for Specific Purposes - ESP). Sendo esta uma
área que estabelece ligação entre as tradições linguística e retórica em questões de método de
estudo e ensino de gêneros aplicados. Embora não seja um processo linear, tal orientação
tende, em geral, a partir do contexto para o texto.
Convém salientar que no referido artigo não vamos nos estender sobre a maneira como
as oficinas pedagógicas procederam em termos de metodologia com o ensino dos aspectos
retóricos, linguísticos e sociais do gênero, vamos nos delimitar a explicar como o gênero foi
explorado dentro de seu contexto de uso, a partir da experiência vivenciada no contexto
escolar.
A proposta de ensino que vem sendo aqui desenhada foi realizada em uma escola da
rede pública municipal, localizada na cidade de Garanhuns – PE. As oficinas pedagógicas
ocorreram na Sala de Informática da referida escola, com estudantes de faixa etária entre 13 a
17 anos de uma turma do 8º ano do Ensino Fundamental II.
Considerações sobre os Estudos Retóricos de Gênero – ERG
Sobre os Estudos Retóricos de Gênero – ERG, Bawarshi e Reiff (2003) observam que
os gêneros desempenham um papel relevante no processo de estruturação social, de modo a
considerar nesse processo as ações e as relações propiciadas pelos gêneros para a realização e
reprodução social, ou seja, os gêneros sustentam e refletem hierarquias. Conforme os ERG os
gêneros não funcionam isoladamente, mas sim em relação a outros gêneros, por isso não
devem ser abstraídos de seu contexto de uso para serem ensinados explicitamente no contexto
da sala de aula.
Seguindo a perspectiva da nova retórica Carolyn Miller (2012) concebe gênero como
ação retórica tipificada baseada em situações recorrentes e socialmente definidas. Se gênero
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1532
representa ação, ele tem que envolver situação e motivo, pois a ação humana só é
interpretável num contexto de situação e por meio de atribuições de motivos.
A autora defende que a compreensão de gênero retórico baseia-se na prática retórica,
compreensão que não se presta a taxonomia, uma vez que os gêneros mudam, evoluem e
decaem. Desse modo, os gêneros estão intimamente relacionados às características e
necessidades da sociedade, até mesmo em virtude das necessidades oriundas das novas
situações comunicativas advindas do uso intensivo da tecnologia, representada, inclusive,
pelas redes sociais. Tal perspectiva sugere que aprender um gênero não se limita a aprender
um padrão de formas ou um método para realizar propósitos próprios: aprender um gênero é
aprender quais propósitos se podem ter através de um gênero – e isso para a autora em
referência é o mais importante.
Estudos de gênero em Inglês para Fins Específicos
Os estudos de gênero em Inglês para Fins Específicos (English for Specific Purposes –
ESP), é uma área que estabelece uma “ligação entre as tradições linguísticas e retórica”,
propõem que o gênero é uma classe de eventos comunicativos (linguísticos e retóricos
tipificados), cujos membros da comunidade discursiva partilham certo conjunto de propósitos
comunicativos para atender e atingir objetivos compartilhados. As abordagens em ESP
remontam aos estudos linguísticos dos registros em uma língua, a fim de identificarem
recorrência em traços linguísticos de determinado registro para tornarem-se foco de instrução
linguística (BAWARSHI; REIFF, 2003).
Vijay Bathia (2009), um dos representantes de ESP, define gêneros como eventos
comunicativos caracterizados por um conjunto de propósitos comunicativos que são
identificados e compreendidos pela comunidade em que ocorrem. São construtos altamente
estruturados e convencionados, apesar disso, possuem, embora pouco, espaço para que seus
membros contribuam individualmente em sua construção, a fim de que expressem intenções
particulares ao lado dos propósitos socialmente reconhecidos.
Para o referido autor o propósito comunicativo é o traço marcante para a identificação
do gênero, o qual possui uma integridade própria que combina fatores textuais, discursivos e
contextuais, o que conduz o trabalho com gêneros a concentrar-se no uso da língua em
detrimento da superfície do texto.
Educação e Tecnologia
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1533
Na contemporaneidade é fácil perceber a marcante presença da tecnologia na
sociedade, baseada nos avanços das Tecnologias de Informação e Comunicação – TICs.
Como características de tais mídias destacamos a linguagem digital, possibilidades de
interação síncrona e assíncrona na comunicação, circulação de variados gêneros, inclusive
emergentes, entre outros aspectos inerentes ao meio digital. A evolução tecnológica fez
emergir um novo espaço para a prática de leitura e de escrita, local onde a linguagem flui e as
relações sociais digitais se estabelecem.
O uso das TICs, cada vez mais intenso por adolescentes em idade escolar, impõe à
educação contemporânea novos desafios e nos impele a refletir e redefinir papéis e práticas
docentes. Concordamos com Soto (2009, p. 17) quando ele afirma que “ensinar e aprender são
atividades complexas e que exigem um esforço de sintonia, com o outro e com o tempo em
que vivemos”, assim sendo, as (novas) tecnologias que medeiam estes processos também não
podem passar desproblematizadas.
Diante dessa nova perspectiva a escola precisa desenvolver atividades que possibilitem
a inclusão digital. No entanto, não basta ao estudante o simples acesso às TICs. Para Pereira
(2011) incluir digitalmente implica em fomentar o uso das TICs de maneira eficiente e
consciente, cujo usuário seja capaz de dominar os recursos que as TICs oferecem em
benefício próprio, principalmente na busca e apreensão de conhecimentos e nas novas formas
de interação, minimizando assim a exclusão digital.
Soares argumenta que a tela do computador, como novo espaço de escrita e traz
significativas mudanças nas formas de interação. Tais mudanças configuram-se no
“letramento digital, isto é, um certo estado ou condição que adquirem os que se apropriam da
nova tecnologia digital e exercem práticas de leitura e de escrita na tela” (SOARES, 2002; p.
151). Rojo (2012) amplia o referido termo e apresenta a expressão multiletramentos, tendo em
vista que os textos contemporâneos, inclusive das mídias digitais, são compostos de variadas
linguagens e exigem capacidades e práticas de compreensão e de produção de cada uma delas
para fazer significar.
Os gêneros digitais
O surgimento e a propagação das novas TICs alteraram consideravelmente as
atividades comunicativas e interativas entre as pessoas e entre a organização dos gêneros
textuais, com destaque nos ambientes virtuais advindos da Internet. Esse ambiente discursivo
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1534
possibilitou o surgimento de novos usos da linguagem e de relação com os gêneros, inclusive
por meio de práticas de leitura e de escrita inusitadas.
A esse respeito Marcuschi (2010) esclarece que a Internet “transmuta de maneira
bastante complexa gêneros existentes e desenvolve alguns realmente novos e mescla vários
outros” (MARCUSCHI, 2010, p. 22), os quais se desenvolvem mediante os usos que os
homens fazem das mídias digitais. Tais gêneros, além de serem caracterizados pelo ambiente
eletrônico em que emergem e pelo livre acesso que proporcionam, caracterizam-se também
pela sua forma hipertextual e multimodal, isto é, aspectos de sua funcionalidade intensificados
pela mídia digital.
As Redes Sociais
A expansão e popularização da Internet propiciou o surgimento de redes sociais
digitais – dispositivo que permite ao usuário apresentar-se virtualmente por meio de um perfil,
fazer amigos e interagir com eles por meio de recursos oferecidos pela própria plataforma.
Hoje em dia essas redes sociais digitais fazem parte do cotidiano de muitas pessoas, inclusive
de estudantes. É importante salientar que o Facebook não é, por si, uma rede social, é um site
que potencializam a formação de redes sociais digitais. Raquel Recuero (2009) elucida que
“uma rede social é definida como um conjunto de dois elementos: atores (pessoas,
instituições ou grupos; os nós das redes) e suas conexões (interações ou lações sociais)”
(RECUERO, 2009, p. 24).
O Facebook é um site que potencializa a formação de redes sociais digitais. O
dispositivo possibilita a criação de perfis, favorecendo, desse modo, a interação e ligação com
outros perfis, mediante a qualidade de “amigo”. A interação entre os usuários da rede
acontece por meio de uma variedade de gêneros, a troca de mensagens síncronas e
assíncronas, publicações, entre outros recursos fornecidos pela própria rede. Importante
mencionar que para tais interações não há fronteiras, pois para criar, manter e interagir através
do site basta estar conectado à Internet.
A linguagem publicitária
Como nosso objetivo foi trabalhar o gênero anúncio publicitário através das
abordagens sociorretóricas convém discutir aspectos relacionados à linguagem publicitária.
Assim sendo, insta esclarecer que a publicidade é uma das diversas forças de comunicação, a
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1535
qual utiliza de técnicas específicas para promover lucratividade em atividades comerciais,
além de tentar conduzir o consumidor à ação de comprar o produto ou a aderir a uma ideia ou
marca. É, inclusive, uma das interfaces da comunicação de massa.
O acesso livre a todo tipo de informação gerou, entre as pessoas, uma grande
interatividade, o consumo cresceu assustadoramente devido à facilidade de compra e venda na
Internet. Pode-se dizer que “a publicidade encontrou na internet um estratagema ideal para a
divulgação de produtos e propagação de seu “estilo de vida” capitalista” (CARVALHO apud
XAVIER, 2011, p. 192).
Consoante Carvalho (2014), a força da publicidade está, sobretudo, na palavra, de
modo que a persuasão é o resultado da organização da mensagem, cuja linguagem, aliada aos
recursos icônicos, impõe valores, ideias e objetos de consumo através de recursos próprios da
língua. No tocante ao ensino, o estudo da publicidade é uma maneira de mostrar aos
estudantes a língua em ação na sociedade, além de revelar valores e atitudes culturais de sua
época. Por essa forma, os estudantes terão condições de analisar o texto publicitário, rejeitar
aqueles que fogem à verdade dos fatos ou os falsificam e tornar-se-ão adultos conscientes.
Para Carvalho (2014) os principais aspectos linguísticos que compõem as mensagens
nos anúncios organizam-se sob três aspectos: itens léxico-semânticos e suas formas de uso;
relações frasais estabelecidas no texto e modos discursivos que organizam a mensagem. Esses
recursos, no texto, servem ao propósito de conquistar o público-alvo por meio de três
maneiras distintas entre si: ordenar (fazendo agir); persuadir (fazendo crer) e seduzir
(buscando o prazer). Os fatores ora apresentados podem e devem ser explorados em sala de
aula, pois são relevantes tanto para o conhecimento da língua como para o desenvolvimento
da criticidade dos estudantes, inclusive de nível fundamental.
Análise e discussão dos resultados
Esta seção volta-se para a análise e a descrição das atividades que foram realizadas
durante as oficinas pedagógicas que tiveram como objetivo principal trabalhar o gênero
anúncio publicitário dentro do contexto em que circula, ou seja, no próprio Facebook.
Importante mencionar que as oficinas foram vivenciadas na Sala de Informática da escola
campo de pesquisa e consistiram em aulas presenciais, sobretudo. Utilizamos a ferramenta
PowerPoint Online, mediante o auxílio de Datashow para o ensino explícito do gênero, o qual
foi explorado em seus aspectos linguísticos, retóricos e ideológicos dentro de seu contexto de
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1536
uso, para isso usamos computadores com acesso a Internet, tanto para a pesquisadora como
para os estudantes.
Como pode ser verificado na figura abaixo o PowerPoint Online foi utilizado através
do grupo, após publicação dos slides, tendo em vista que, o ato de clicar no link direcionou os
agentes da pesquisa ao hipertexto. Desse modo, favoreceu o acesso à página da empresa que
divulgou o anúncio em análise e aumentou o leque de conhecimentos dos estudantes, pois
tiveram ciência que estudavam hipertextos.
Figura 1: Utilizando o PowerPoint através do grupo virtual
Fonte: Esta pesquisa, 2015.
Cada oficina acontecia em dois momentos, no entanto, de maneira integrada. No
primeiro momento, com o uso do Datashow e no segundo realizando tarefas mediante os
recursos Word e PowerPoint. O trabalho com os gêneros em seu contexto de uso favoreceu a
leitura não linear conduzida pelos hipertextos e a participação atenta dos estudantes, conforme
está representado na figura 2.
Figura 2: Estudo e análise de gênero no Facebook
Fonte: Esta pesquisa, 2015.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1537
Dado o exposto, fica claro, portanto, que o gênero foi explorado didaticamente dentro
de seu contexto real de uso, com ênfase na explicação dos aspectos estruturais e sociais do
gênero, no intuito de possibilitar a identificação e a localização dos gêneros em seus
ambientes de circulação. Também possibilitou a identificação das ações que os gêneros
ajudam a produzir, de modo a ampliar a análise do sistema formal da língua para a análise do
entorno social e contextual do gênero.
No processo de ensino-aprendizagem o gênero anúncio foi contemplado como ação
social e retórica, ressaltando, inclusive o seu proposito comunicativo que consiste em
persuadir o consumidor em potencial, ou seja, convencê-lo a aderir o que está sendo
anunciado.
Vale salientar que nosso propósito não foi trabalhar o gênero anúncio com fins em si
mesmo, mas em relação com os outros gêneros aos quais estabelece relação, de modo a
considerar a sua complexidade e o seu status, bem como os seus traços formais e funcionais
em termos de análise linguística através dos recursos disponibilizados pelo Facebook. A
figura abaixo demonstra a análise de práticas discursivas a partir das postagens dos anúncios
pelas empresas, isto é, mostra a relação do gênero anúncio com outros gêneros, sendo estes
próprios da plataforma digital e produzidos por internautas usuários da rede virtual.
Figura 3: Análise de práticas discursivas no Facebook
Fonte: Esta pesquisa, 2015.
Analisar o gênero no meio digital fomentou discussões acerca da interação entre os
internautas e da postura das empresas mediante as ferramentas “curtir”, “comentar” e
“compartilhar”, próprias da plataforma. Esses momentos foram fundamentais para que os
estudantes visualizassem práticas efetivas com a linguagem, percebendo que a interação
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1538
comunicativa acontece através de gêneros, os quais consistem em ações retóricas tipificadas
produzidas com um propósito comunicativo reconhecido socialmente.
As atividades publicadas pelos discentes no grupo eram, geralmente, respondidas no
próprio grupo, através do recurso “comentar”, ou em Word ou PowerPoint, conforme pode
ser verificado na figura abaixo:
Figura 4: Atividade respondida no grupo pelos estudantes
Fonte: Esta pesquisa, 2015
É importante lembrar que as atividades respondidas no grupo foram visualizadas por
todos os membros, bem como foram comentadas pelo mediador durante as aulas, de modo a
descentralizar práticas de correção tradicionais. Vejamos a imagem que representa a referida
situação de ensino:
Figura 5: Discussão oral a partir de respostas de um estudante
Fonte: Esta pesquisa, 2015.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1539
Considerações finais
Mediante as oficinas que foram desenvolvidas concluímos que os gêneros publicitários
que circulam no Facebook podem ser ensinados de modo a conservar a sua complexidade e o
seu status como algo mais do que simples traços retóricos tipificados, pois, o referido site
possui recursos que podem ser customizados para o ensino de gêneros em aulas de português,
no nível fundamental II de ensino, sobretudo por considerar os aspectos retóricos, textuais,
linguísticos e sociais do gênero dentro de seu contexto real de uso.
A referida proposta de ensino, mediante o acesso ao contexto de uso autêntico do
gênero, também apresentou implicações para a educação retórica, pois seu estudo
potencializou a aprendizagem de gênero e das situações em que surgem, bem como a
aquisição de habilidades e competências tecnológicas, adquiridas em práticas reais de uso.
Todas as atividades que foram realizadas em documentos como Word e PowerPoint foram
publicadas no grupo pelos próprios estudantes. É relevante mencionar que todas as atividades
publicadas foram visualizadas por todos os envolvidos no processo, descentralizando a
maneira tradicional de correção de atividades.
Consideramos que o Facebook é uma ferramenta que pode e deve ser utilizada para o
ensino e análise de gênero, tendo em vista os recursos que a própria rede digital oferece e que
as abordagens em ERG e ESP podem ser adaptadas ao nível fundamental II de ensino, com
enfoque dado a leitura e compreensão do gênero anúncio e, consequentemente, de outros
gêneros que circulam na mídia digital.
Referências
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RODRIGUES, Bernardete; CAVALCANTE, Mônica M. (orgs.). Gêneros e sequências
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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1541
CRIADAS E MALVADAS: A IDENTIDADE VISUAL DAS
LATINO-AMERICANAS
[Voltar para Sumário]
Larissa de Pinho Cavalcanti (UFPE)
Publicidade, propaganda e verbo-visualidade.
No Brasil, propaganda e publicidade são usados intercambiavelmente, mas, ainda que
possuam em comum a capacidade informativa e a força persuasiva, distinguem-se, todavia,
em seu caráter: a publicidade é comercial enquanto a propaganda é ideológica. Mais
atualmente, propaganda passou a ser o modo de apresentar uma informação sobre um produto,
marca, empresa ou política com a finalidade de influenciar a atitude de uma audiência para
uma causa, posição ou atuação.
Para cumprir sua função persuasiva, a propaganda pode influenciar o consumidor
através da formação de atitude (ALDRIGHI, 1989), isto é, uma predisposição psicológica em
três dimensões: cognitiva, afetiva e conotativa. De outro modo, não é necessário alterar os
sentimentos ou pensamentos do consumidor, atribuindo-se à persuasão uma atuação mais
discreta, não notada pelo consumidor.
Associada ao fim mercadológico da publicidade, a propaganda trabalha com arte,
criatividade, raciocínio, moda, cultura, psicologia, tecnologia, um complicado composto de
valores e manifestações da capacidade humana. Nesse sentido, a publicidade elabora um
discurso com fins de convencimento consciente ou inconsciente através de argumentação
icônico-linguística (CARVALHO, 1996). Desse modo, a propaganda pode ser caracterizada
como multimodal.
Multimodalidade é uma abordagem interdisciplinar que entende a comunicação e a
representação como envolvendo mais que a língua, ela pressupõe pessoas orquestrando o
sentido através de uma seleção e configuração particular de modos, enfatizando a importância
da interação entre modos. Abordagens multimodais têm proposto conceitos, métodos e
perspectivas de trabalho para a coleção e análise de aspectos visuais, auditivos, corporificados
e espaciais da interação e dos ambientes, bem como da relação entre os mesmos. Com o
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1542
rápido desenvolvimento tecnológico e a possibilidade de articular diferentes mídias em
práticas comunicativas antes inteiramente verbais, os estudos da multimodalidade permitem
uma compreensão privilegiada das articulações de sentido em determinados gêneros. Para dar
conta da riqueza de sentidos que a composição visual das propagandas articula, recorremos à
Gramática do Design Visual (doravante GDV), proposta por Kress e van Leeuwen (2006
[1996]).
Gramática do Design Visual: os significados e sentidos das imagens
A GDV foi desenvolvida com base nas metafunções da linguagem (ideacional,
interpessoal e textual) apresentadas na Gramática Sistêmico-Funcional que, quando retomada
por Kress e van Leeuwen (2006) as denominam representacional, interativa e composicional.
A função representacional é responsável pelas estruturas que compõem visualmente o que
está representado, isto é, o que se supõe que está “ali”; a função interativa se volta para a
relação entre quem vê e o que é visto; e a composicional analisa os significados obtidos a
partir da distribuição da informação ou dos elementos na imagem.
A função representacional trata dos participantes representados, dos quais as
composições visuais tratam (em oposição aos participantes interativos, que produzem e
visualizam as imagens). Nesse sentido, a relação entre os participantes representados pode se
dar em forma de estrutura narrativa, quando há uma ação sendo desenvolvida, ou estrutura
conceitual, quando há uma taxonomia ou relação hierárquica.
Para a estrutura narrativa, pensaremos nos participantes representados em termos de
atores: se há apenas um ator e a ação não é dirigida a nada ou ninguém, temos uma estrutura
não transacional; porém, quando a ação de um ator é dirigida a outro participante, esse se
torna a meta e a estrutura é transacional. Há ainda casos nos quais os atores aparecem apenas
parcialmente (um pé ou mão representados), sugerindo um apagamento daquele
ator/participante, a ser investigado em perspectiva crítica.
Nas representações narrativas é importante também considerar as ferramentas usadas
nos processos de ação. Os autores distinguem as circunstâncias, isto é, participantes
secundários que podem ser locativos (se relacionam a um participante específico); de meios
(ferramentas usadas na ação, particularmente quando não há uma relação clara entre a
ferramenta e o ator); e de companhia (não há relação entre os participantes, mas ambos têm
um papel na composição).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1543
Como dito, além de narrativas, as representações podem ser conceituais, ou seja,
descrevem o participante representado em processos de classificação, analíticos ou
simbólicos. Nos primeiros, há uma relação taxonômica entre os participantes. Nos processos
analíticos, os participantes se relacionam em função de todo-parte, isto é, há um portador e
seus atributos possessivos. De acordo com Kress e van Leeuwen (2006, p.89), numa imagem
analítica, não há riqueza de detalhes, o cenário é geralmente excluído ou pouco importante,
não há profundidade e as cores são restritas, afinal, o objetivo é expor os atributos possessivos
e identificar um portador.
Por fim, os processos simbólicos apontam o que os participantes significam ou são e
dividem-se em dois tipos: atributivos e sugestivos. Os primeiros representam significados e
identidades que são atribuídos ao portador. No segundo caso, significado e identidade são
decorrentes de algo da natureza do portador. Para os processos simbólicos sugestivos, há um
participante em evidência por uso de recursos visuais (foco, plano, luz ou cor, por exemplo),
apontados por um gesto que não representa uma ação, ou, ainda, convencionalmente
associados a um valor simbólico.
Segundo a GVD, significados são expressos, também, pela forma como se estabelece a
relação entre os participantes representados da imagem, ou entre os produtores da imagem
com seus participantes interativos. Para isso são acionados os conceitos de Contato e de
Distância Social. O contato ocorre quando os participantes presentes nas imagens olham ou
não para o observador, gerando uma demanda (há contato visual) ou oferta (sem contato
visual). Já o que determina a distância social é o enquadramento utilizado na imagem. O plano
fechado sugere uma intimidade entre participantes representados e interativos; a qual regride à
medida que se abre o plano, de modo que com o plano aberto, há impessoalidade entre os
participantes.
No que concerne à composição das imagens, os autores da GDV também apresentam o
princípio da estrutura dado-novo. De acordo com os autores, o dado já é conhecido pelo
observador, e está posicionado à esquerda na imagem; o novo, por sua vez, significa algo
ainda não conhecido, localizado à direita da imagem. Por outro lado, as informações podem
integrar uma expressão real ou ideal. No primeiro caso, estarão na porção inferior da
composição, ao passo que a expressão ideal estará na parte superior.
O valor informativo de uma composição, por sua vez, será dado em termos de
centralização: um elemento esteja no centro, este será considerado o núcleo da informação, ao
passo que os elementos posicionados na margem serão dependentes ou subordinadas ao
elemento central. Os autores (KRESS e van LEEUWEN, 1996, p.212) observam, ainda, a
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1544
saliência dos elementos (se estão à frente ou fundo, tamanho, contraste de cor), através da
qual os observadores são capazes atribuir “peso” aos mesmos e; o enquadramento, isto é a
inter-relação dos objetos da composição, a qual pode ser forte (sentido de individualidade e
diferenciação à imagem) ou fraca (identidade de grupo).
Kress e van Leeuwen (p.161) discutem que textos visuais também trazem cargas de
modalização. Imagens representam pessoas, lugares e coisas como se fossem reais, como se
existissem desse ou daquele modo, e julgamentos de modalidade são sociais, dependentes do
que é considerado real, ou verdadeiro ou sagrado, por exemplo, pelo grupo social para quem
aquela representação é direcionada. Esse direcionamento está firmemente vinculado ao
aspecto cultural, a uma história e a uma configuração de sociedade, isto é, a um “tipo
particular de realismo é em si um signo motivado, no qual os valores, crenças e interesses de
um grupo encontra sua expressão” (KRESS e VAN LEEUWEN, 2006, p.158).
Assim, para que uma imagem seja julgada real, olhamos, por exemplo, para a
saturação da sua cor: se as cores são exageradas, as imagens parecem mais do que reais, e,
quando menos saturadas, parecerão menos que real. Assim, quão maior seja a saturação ou o
nível de detalhe, maior será a modalidade e se a imagem é planificada, menor o nível de
detalhe e, assim, menor a modalidade.
Criadas e malvadas: visualizando as latino-americanas
Com base nos parâmetros até aqui apresentados, nos propusemos analisar os pôsteres
utilizados em meio digital para divulgação e promoção do seriado norte-americano Devious
Maids (Criadas y Malvadas, na tradução para o espanhol). Criada por March Cherry,
produzida pela ABC Studios e televisionada pela Lifetime em 23 de junho de 2013, a série
mostra o cotidiano de quatro empregadas domésticas (de origem latino-americana) em
residências de luxo em Beverly Hills. A trama principal, baseada na série mexicana Ellas son
la alegria del hogar, segue a investigação do assassinato de uma empregada (de origem
latino-americana) por uma professora de nível universitário (também latina), mãe do acusado
pelo crime.
Popular por sua programação voltada para o público feminino ou que coloca a mulher
em papeis de liderança, a Lifetime está presente em 82,4% dos lares norte-americanos. Foi
essa emissora, inclusive, que televisionou o seriado também protagonizado por mulheres
Desperate Housewives, do mesmo criador de Devious Maids, Marc Cherry. Em 2006, a
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Lifetime mudou seu slogan de “televisão para mulheres” para “minha estória está na
Lifetime”, para ser substituído em 2008 por “Conectar. Jogar. Compartilhar”.
Devious Maids surge como um interessante objeto de estudo em função das condições
de produção do seriado em termos de emissora e alcance, mas principalmente por apelar para
uma parcela cada vez maior da população norte-americana: os descendentes de
hispânicos/latinos. De fato, entre 2000 e 2010 a presença desse grupo populacional aumentou
em 43%, fazendo com que os mesmos representem 16% da população daquele país. Dentre a
população latina/hispânica residente e trabalhando legalmente naquele país, as mulheres
constituíam 41% da mão de obra, em 2011.
Propomo-nos, então, analisar a construção da imagem da mulher latino-americana
como representante da categoria das empregadas domésticas – oferecida pela série e
divulgada pela emissora – nos pôsteres promocionais, divulgados online. Na seleção dos
pôsteres, nos concentramos em três exemplares que possuíssem a presença da relação entre
imagem e palavra. Assim, para os fins deste artigo, iremos apresentar nossas considerações
acerca dos pôsteres “mentiras”, “assassinato” e “sexo”.
Pôster “mentiras”
Uma das características mais marcantes da publicidade são as cores, com predominância
do branco do cenário, do cinza e branco do uniforme da empregada e o toque de areia do
tapete e da sujeira. O destaque está para o título do seriado televisivo em vermelho, cor forte
que transmite ideias de força, energia, ação, poder e paixão.
A empregada retratada está de joelhos sobre o tapete,
varrendo a sujeira para baixo do tapete; salienta-se que a
sujeira tem um significado próprio expresso pela palavra
“mentira” e é este dizer, não a empregada que está no centro
do anúncio.
A imagem apresenta um processo narrativo não
transacional, uma vez que representa uma ação,
protagonizada por uma mulher, mas não orientação dessa
ação para nada ou ninguém. Há, porém a presença uma
ferramenta que possibilita a participante realizar a sua ação,
a vassourinha. Há, também, um processo analítico, no qual constam a participante
representada e seus atributos possessivos mais relevantes: o uniforme (curto e cinza) e o
Figura 7 Pôster "Mentiras"
Fonte: Internet Movie
Poster Awards
Poster Aw
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1546
avental (branco) e a vassourinha; também não há grandes detalhes com relação ao cenário,
apenas o tapete e os traços pouco nítidos de uma escada e uma porta.
Podem-se comentar, ainda, processos conceituais simbólicos, voltados para o que o
participante é ou significa. Quando há apenas um participante na imagem, ocorre um processo
simbólico sugestivo, no qual os detalhes perdem sua ênfase em favor da “atmosfera” e fazem
com que o portador pareça representar uma essência generalizada. No pôster, o cenário branco
e pouco nítido bem como a iluminação do cenário cria uma atmosfera de limpeza ao redor da
empregada representada. A essa figura, representada sem muitos detalhes, é atribuída uma
atmosfera de limpeza diretamente relacionada à identidade do portador (a empregada).
Ainda há de se pensar o significado simbólico representado pelo ator: varrer a sujeira
para debaixo do tapete. Como a atmosfera da imagem implica claridade e limpeza, temos o
agente de limpeza atuando contra a sujeira no chão. Todavia, essa sujeira (já uma metáfora em
“varrer a sujeira para debaixo do tapete”) desdobra-se em outro significado, mais literal,
talvez, atribuído pela linguagem verbal: “mentiras”. Logo, além de agente da limpeza, é
pertinente à identidade da empregada a ação de “varrer as mentiras para debaixo do tapete”.
Nesse ponto, faz-se necessário questionar: estaria a empregada (inferiorizada pelos recursos
visuais) varrendo as suas mentiras ou as mentiras de outrem para baixo do tapete?
Como não há interação de olhar entre o ator e o observador, temos a oferta da imagem
da empregada em plano aberto. Com relação à oferta do participante representado tem-se que
“em produtos dramáticos ou científicos para televisão e filmes, as ilustrações tendem a
“oferecer”, de modo que uma barreira imaginária é erigida entre participantes representados e
os observadores, desligando-os” (KRESS e VAN LEEUWEN, 2006, p.121).
É importante observar, também, que no cartaz oculta-se a identificação da representada
e, principalmente, seu olhar, gerando um apagamento que deve ser lido criticamente. Soma-se
a esse apagamento facial da participante, o ângulo superior da observação, numa
“contemplação do mundo do ponto de vista de uma divindade, que coloca o objeto a seus pés,
em detrimento do alcance de suas mãos” (KRESS E VAN LEEUWEN, 2006, p.145). Nota-se,
portanto, a convergência da postura da participante representada de joelhos aos pés do
observador, em sua instância superior.
De outro modo, o observador não está no mesmo ângulo do participante representado.
Ao discutirem a perspectiva da observação, Kress e van Leeuwen (2006, p.136) revelam que o
ângulo oblíquo evidencia o não alinhamento do observador com a realidade do observado,
desse modo, no cartaz há um não pertencimento do observador à ação narrada. Além disso, há
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1547
uma distância social a partir do enquadramento da participante representada (p.125), o que
nos leva a afirmar, portanto, a inferioridade da participante representada.
A estrutura composicional do cartaz é predominantemente vertical e posiciona a
empregada na parte superior esquerda do anúncio, enquanto a palavra “mentiras” ocupa o
centro, e contrasta com o título do programa, disposto logo abaixo, em fonte maior e em cor
mais forte. Desse modo, temos que a empregada é o elemento de idealização mais alto, isto é,
a promessa do produto anunciado, ao passo que as informações do programa televisivo são
factuais, revelando como conseguir o que é idealizado.
Além disso, há uma relação de marginalidade entre a participante representada e o título
do programa, sugerindo uma similaridade entre tais elementos, no sentido que as empregadas
não seriam somente empregadas, mas seriam “desviantes”. Tais elementos e seus significados
se relacionam, também, com o núcleo informativo, as “mentiras”, localizadas no centro do
anúncio. Isto é, não é as empregadas desviantes o real foco do programa, mas as mentiras e o
desenvolvimento da própria trama.
Cartaz “sexo”
A figura representada está posicionada contra uma
parede de vidro. A instalação foi recentemente utilizada como
se nota pela condensação ainda presente e a palavra “sexo”
escrita com nitidez. A imagem apresenta um processo
narrativo não transacional, isto é, a participante está limpando
o vidro do box (como indica a palavra “sexo” já meio
apagada), porém não está direcionada a alguém ou a um
objeto. Tal como no cartaz “mentiras”, novamente se
evidencia uma ferramenta: a esponja. De fato, um segundo
ponto em comum entre o cartaz “mentiras” e o cartaz “sexo” é
a ferramenta que ao mesmo tempo em que possibilita a representação de um processo
narrativo, também contribui para a emergência identitária da participante.
Em termos de processos analíticos, há consonância com o pôster anterior: a
participante é ofertada para escrutínio do observador, representada com mínimos detalhes,
pouca iluminação ao seu redor (o que destaca partes de sua vestimenta, como a gola do
decote) e seus atributos (o uniforme e a ferramenta). Uma diferença na composição visual é a
ausência de profundidade, pois a participante está encostada no vidro como sugerido pelo
Figura 2 Pôster "Sexo"
Fonte: Internet Movie
Poster Awards
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1548
braço ou prolongamento do pescoço. O cenário é ainda mais obscuro com a condensação
ocultando o entorno, do qual se vê a parede de tijolos.
Pensando nos processos simbólicos do cartaz “sexo”, torna-se evidente os mesmos
princípios do cartaz “mentiras”: uma atmosfera genérica para uma representação genérica,
sem laços no tempo e no espaço. Porém, ao contrário do pôster “mentiras”, o fundo da
composição apresenta iluminação reduzida, logo, não é possível distinguir nada além de uma
parede de tijolos por detrás da condensação do vidro, onde a empregada já limpou. Esse jogo
da pouca iluminação com a condensação do vidro cria um mistério ao redor da figura
feminina, a qual se apresenta um estímulo aos sentidos: o toque pela proximidade e pela
exposição de sua pele pelo decote do vestido.
Em contiguidade com o apelo sensual, a palavra motivo do cartaz “sexo” compõe
também a representação da figura feminina: há um decote profundo, um vestido curto, as
unhas vermelhas, e a pose da empregada encostada contra o vidro. A proximidade do título do
programa televisivo, “empregadas desviantes”, também deve ser considerada, por sua
contiguidade da cor vermelha com o esmalte das unhas: identifica-se o elemento “desviante”,
“ardiloso” como a empregada. A identidade que emerge da participante representada é de
mulher, objeto de desejo e com atributos de sensualização.
Não é possível localizar, também nesse segundo pôster, o olhar da participante, de
modo que esta se oferece aos julgamentos do observador em plano médio: não se oferece o
corpo em totalidade da participante, apenas o tronco e parte da perna. Já a proximidade do
enquadramento da figura feminina sugere um grau de intimidade sensual, proposta pelos
atributos possessivos, pela composição do cenário e pela própria palavra “sexo”.
Analisar o ângulo de observação é particularmente delicado, pois como a noção de
profundidade é afetada, supõe-se que há envolvimento do observador pelo ângulo frontal,
todavia, o posicionamento de braço e pescoço da participante representada revela que,
novamente, o observador se afasta (ainda que discretamente) do universo da figura feminina.
O ângulo é, assim, oblíquo e um pouco mais baixo, o que empodera a participante, no sentido
que enquanto objeto de desejo e ostentação sensual, ela tem poder sobre o observador – ainda
que não haja interação direta explícita entre ambos.
A estrutura composicional do cartaz cria seções verticais e horizontais: no eixo
vertical. No eixo horizontal, temos a figura feminina e seus atributos como o elemento
“dado”, ao passo que o elemento “novo” é a palavra “sexo”, parcialmente escrita na superfície
de vidro. Mas, do lado “novo”, também temos a mão com a esponja, isto é, ao mesmo tempo
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1549
em que a empregada e sua caracterização sensualmente apelativa possam ser “dadas” para o
observador, o elemento “novo” também é composto da tentativa de apagar esses atributos.
No eixo vertical, o título do programa ocupa a posição de idealização, o produto a ser
desejado. As informações do programa são, novamente, as mais factuais, na porção inferior
do cartaz. E entre idealização e realidade está “sexo”, isto é, a mediação entre aqueles
elementos. Os elementos do eixo vertical também se relacionam no eixo horizontal: o título
está próximo ao colo da figura feminina; o elemento “sexo” na altura dos quadris; e as
informações factuais, próximas aos joelhos. A não representação da face da empregada, no
eixo vertical associa-se, ainda, ao índice de idealização: deseja-se saber sua identidade, mas
para isso é necessário atender ao que dizem as informações reais e assistir ao programa.
Pôster “assassinato”
A imagem da empregada limpando algo no chão da cozinha representa um processo
narrativo não transacional, com uma ação executada, um ator, mas sem direcionamento. Para
processar a ação, a participante usa um esfregão. Os processos analíticos possuem estrutura
similar aos pôsteres anteriores, nos quais há poucos detalhes na cena, os quais apenas
propiciam o reconhecimento de uma cozinha. Novamente, não há cores, nem formas de se
estabelecer uma relação contextual, mas um participante genérico, exercendo uma ação em
um ambiente igualmente genérico.
Quanto à participante, seus atributos possessivos permanecem os mesmos dos outros
cartazes, todavia, acrescenta-se a esse quadro os sapatos de salto agulha. Além disso, a
participante está em plano aberto, com todo o corpo, em particular as pernas e oferecido para
observação.
Por só haver uma única participante representada,
novamente, ocorre processo simbólico sugestivo, no qual se
cria uma atmosfera pelo brilho e cor branca do entorno
(limpeza). Todavia, a saliência da palavra “assassinato”, em
vermelho sobre o piso branco, cria uma atmosfera oposta; a
cor vermelha, associada à palavra “assassinato” remete ao
sangue jorrado em um crime. Nessa atmosfera, a ação da
participante não é somente agente de limpeza higiênica, mas
uma cúmplice a limpar a cena e a evidência de um crime.
Figura 3 Pôster "Assassinato"
Fonte: Internet Movie
Poster Awards
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1550
Alia-se a essa significação da participante, um fator importante: os sapatos de salto
alto. Geralmente, exige-se para o uniforme de funcionários de limpeza, sapatos baixos,
impermeáveis e antiaderentes, o que não ocorre com essa participante. A presença do sapato
de salto alto contribui para a saliência da figura feminina, prolongando os membros inferiores
e definindo a musculatura, ao mesmo tempo em que a empodera – estereotipicamente sapatos
de salto alto são associados à segurança, elegância e autoconfiança feminina. Logo, a
participante não é cúmplice na limpeza da cena de um crime, ela está no controle da situação,
o que nos leva a questionar, a relação entre essa participante e o “assassinato”.
Como nos outros cartazes, não há contato estabelecido através do olhar entre
participante e observador. Sem identificação da participante, seu enquadramento não
pressupõe nenhuma intimidade, pelo contrário, observador e participante estão em relação
caracterizada pela formalidade e impessoalidade, na qual se diz “distancie-se para que eu
possa olhar para você” (KRESS e VAN LEEUWEN, 2006, p.125).
Os ângulos da observação também ajudam a distanciar o observador da participante
representada, enquanto o observador de frente para o cenário, seu posicionamento é oblíquo
em relação à empregada e à palavra “assassinato”. De fato, o próprio corpo da participante
representada está voltado em outra direção, seguindo a linha do esfregão e da mancha sobre o
assoalho. O ângulo alto, em relação à palavra “assassinato”, deixa a figura feminina em visão
periférica e evidenciando o poder do observador sobre ambos os elementos.
Considerações Finais
Neste trabalho inicialmente apresentamos os parâmetros que nos serviriam de base
para análise multimodal de pôsteres de divulgação de um seriado televisivo norte-americano.
O seriado foi escolhido em função de seu público alvo e do grupo populacional retratado
como protagonista da trama: mulheres de origem latino-americana. Transmitido por uma
emissora tipicamente do mainstream, foi nossa intenção investigar, em três pôsteres lançados
para a campanha publicitária da primeira temporada do seriado em 2013, os discursos e
ideologias que motivaram a composição visual dos pôsteres.
Os exemplares assemelham-se composicionalmente com a representação de um corpo,
feminino, e por articulá-lo a grupos de informação verbal. Foi possível, então, observar o
apagamento da figura representada pela elisão de sua face e sua associação a um tipo humano
genérico: a empregada. Ainda, à mulher latina sem identidade é também atribuída uma
ambiguidade de atitudes: se em primeira instância a empregada é vista como símbolo de
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1551
limpeza, em seguida a diminuímos por impor-lhe relações com atos mentirosos; de outro
modo, se a empregada limpa o chão ensanguentado, como dizer que ela não é responsável
pela mancha em primeiro lugar?
Considerando o fator propagandístico do pôster, naturalmente essas perguntas
emergem para levar o observador a assistir o seriado. Mas deve-se estar atento que é através
da relação das palavras temáticas de cada pôster que os significados mais sutis relacionados à
doméstica e à mulher de origem latina fluem pela composição visual: afastamento social,
oferta de sua figura sensualizada e, principalmente, sua natureza genérica.
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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1553
DESCONSTRUÇÃO E CONSTRUÇÃO DA REALIDADE EM
“NOIVAS PROIBIDAS DOS ESCRAVOS SEM ROSTO NA
CASA SECRETA DA NOITE DO TEMÍVEL DESEJO” [Voltar para Sumário]
Laura Fernanda Vicente de Souza (FAFICA)
Introdução
“A função da narrativa não é a de ‘representar’, mas de constituir um
espetáculo que ainda permanece muito enigmático.”
Roland Barthes
Recentemente, a literatura fantástica vem ganhando espaço sob os holofotes da crítica.
Saindo da posição marginal que ocupava com frequência, está agora atraindo olhares diversos
acerca dos elementos que a compõem. A sua construção é feita de forma singular, pois, dentro
de um texto fantástico, o que é real? O que é ficção?
Dentre esses elementos que formam a narrativa, faz-se necessário destacar o
imaginário da obra – partindo dos conceitos de Wolfgang Iser (2002) – que desempenha uma
função particularmente interessante nos textos de fantasia. Por se tratar de obras que articulam
características e fatos de forma bastante única, e visando a criação de uma realidade
alternativa que seja tão verossímil quanto a nossa, é inegável a singularidade na organização
do imaginário desses textos.
Partindo dessa perspectiva da literatura fantástica como um elemento em ascensão, e
levando em consideração todas as minúcias que formam o texto literário, propõe-se a seguir a
análise do conto “Noivas Proibidas dos Escravos Sem Rosto na Casa Secreta da Noite do
Temível Desejo”, escrito pelo autor inglês Neil Gaiman. Sempre buscando apoio nos
conceitos-chave da teoria do imaginário de Iser, pretende-se abordar e discutir os aspectos do
texto que influenciam a desconstrução da realidade como conhecemos para a construção do
que é “real” ou “ficcional” dentro da história analisada.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1554
Conceituando o imaginário
Iniciar a análise de um texto literário é um processo que envolve diversas etapas, das
quais a maioria remonta à pergunta fundamental da Teoria da Literatura: o que é literatura?
Terry Eagleton tenta esclarecer a questão, deixando-nos um pensamento bastante interessante
a esse respeito: “A definição de literatura fica dependendo da maneira pela qual alguém
resolve ler, e não da natureza daquilo que é lido” (EAGLETON, 2006, p. 12).
Em contraposição, Antônio Soares Amora delimita literatura como aquilo que
“expressa uma concepção intuitiva e individual da realidade (em cada caso, a concepção do
autor da obra)” (AMORA, 2006, p. 51). Tomando a visão deste autor, pode-se afirmar que a
literatura é sempre subjetiva e, mais ainda, é portadora de um elemento que é elaborado pelo
autor e transmitido ao leitor através da obra; pois “seu conteúdo, ou aquilo que ela expressa, é
uma realidade abstrata, que existiu no espírito do autor [...] e passará a existir no espírito dos
seus leitores” (AMORA, 2006, p. 57).
Para que essa realidade abstrata do autor chegue ao seu leitor é necessária a
intervenção daquilo que Wolfgang Iser chama de "imaginário". O imaginário da obra – que
sempre é forjado, fingido e inacessível – é construído pelo autor de forma a permitir que sua
abstração atinja o público da maneira mais plena possível. Mas, assim como Amora nos traz
as ideias de indizível (para o autor) e indefinível (para o leitor), Iser concorda que o processo
nunca é perfeito, pois “a ficção não é idêntica com o por ela representado e desta identidade
carente deriva a presença do imaginário do texto” (ISER in LIMA, 2002, p. 949).
A partir dessa inexatidão surge a necessidade dos atos de fingir, auxiliares na
composição do imaginário. Esses atos transgridem os limites do real ao torná-lo ficção no
texto e transgridem o imaginário ao determiná-lo no próprio texto, processo citado por Iser
como “irrealização do real e realização do imaginário”. É interessante notar o funcionamento
desses atos dentro do conto “Noivas Proibidas dos Escravos Sem Rosto na Casa Secreta da
Noite do Temível Desejo”, presente no livro "Coisas Frágeis 2" (2010), tendo em vista o jogo
que o autor Neil Gaiman faz com os elementos da narrativa. Gaiman inverte diversos papéis
ao situar o real do texto como um mundo fantástico, onde existem monstros e maldições,
sendo seu protagonista um aspirante a escritor que deseja fazer literatura como “uma imitação
da vida, uma representação exata do mundo como ele é, da condição humana.” (GAIMAN,
2010, pp. 36-37)
Além do autor, o próprio personagem faz uso dos atos de fingir ao tentar escrever seu
romance; é possível, então, observar um processo sempre duplo. A partir dos primeiros atos:
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1555
seleção, a qual Iser (in LIMA, 2002) afirma ser a desvinculação dos elementos que formarão
o texto literário de seus sistemas preexistentes, e combinação, que é a acentuação dos
“espaços semânticos constituídos a partir de elementos selecionados das realidades
extratextuais” (Idem, p. 964); é curioso notar que Gaiman, ao escrever a sua literatura, utiliza
a seleção para escolher características que, ao serem combinadas, deem forma a um mundo
fantástico. Por outro lado, seu protagonista seleciona o máximo de detalhes reais do seu
mundo fantástico para que, combinados de forma a prezar pela faticidade, possam conferir
qualidade de literatura ao seu texto, o que, inclusive, permitiria uma nova reflexão sobre a
pergunta inicial: o que é literatura?.
O último dos atos de fingir, o desnudamento da ficcionalidade do texto, se faz de
forma peculiar em meio à construção dicotômica de “Noivas Proibidas dos Escravos Sem
Rosto na Casa Secreta da Noite do Temível Desejo”. Segundo Iser, a obra de ficção não tenta
qualificar-se como real – ao contrário, tem o fingimento como condição básica para ser
compreendida. De tal forma que “pelo reconhecimento do fingir, todo o mundo organizado no
texto literário se transforma em um como se” (in LIMA, 2002, p. 973, grifo do autor). Assim,
embora o mundo real do conto seja fantástico, é posto para o leitor que aceite como se fosse
realidade; por outro lado, o protagonista entedia-se com o que escreve por não precisar fingir
para crer em seu texto: o fantástico já é a sua realidade cotidiana.
É a partir desses três atos de fingir – seleção, combinação e desnudamento – que o
autor constrói o imaginário e permeia seu texto com ele, possibilitando assim a transferência
de conteúdos no sentido autor-leitor da qual fala Amora. Pois, segundo o teórico, “o ato
criador de um poeta, um ficcionista ou um teatrólogo é sempre empenho no sentido de
expressar, o melhor possível, o que deseja dizer ao leitor.” (AMORA, 2006, p. 61, grifo
nosso).
Iser aponta esse processo de construção do caráter de “como se” da literatura como um
modo de suscitar sentimentos e emoções em seu leitor. O imaginário vem auxiliar exatamente
nessa expressão do autor, de forma que possa levá-la ao leitor no estado mais fiel possível –
lembrando sempre que a fidelidade completa é impraticável. Porém, cada leitor receberá a
carga de informações trazidas no texto de um modo diferente, tendo em vista o caráter
extremamente particular de sua visão de mundo, sua vivência e sua psique (o indefinível); do
mesmo modo que o autor sempre terá um sentimento que não foi transmitido para sua obra (o
indizível). É exatamente com o intuito de diminuir ao máximo essas fronteiras que o
imaginário surge.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1556
Por fim, é importante ainda lembrar “que o fenômeno literário é muito mais que
simplesmente uma obra que está diante de nossos olhos” (AMORA, 2006, p. 61), ideia
reiterada também por Eagleton em “a literatura não existe da mesma maneira que os insetos”
(EAGLETON, 2006, p. 24); de tal forma que a literatura nos permite imergir em um mundo
curiosamente real, incrivelmente fictício e absolutamente fascinante, o qual não admite pré-
julgamentos e simplismos.
As duas narrativas
O conto “Noivas Proibidas” nos relata o conflito do personagem protagonista – ao
qual não é atribuído nenhum nome – no processo de construção de sua obra literária. De tal
forma que, simultaneamente a esta problemática, também nos é apresentada a narrativa da
obra que o personagem citado vai construindo. Essas duas linhas da história são diferenciadas
de modo a deixar bastante claro onde se passa cada passagem narrada.
De início, é mostrado apenas uma frase que prepara o leitor para levar em
consideração que a parte seguinte seria uma história dentro do plano normal do conto: “Em
algum lugar da noite, alguém escrevia.” (GAIMAN, 2010, p. 33). Com esse trecho, o autor
anuncia que o que se segue – que, inclusive, possui uma formatação editorial diferenciada –
trata-se de uma ficção dentro de outra.
Em seguida, é apresentada a história que está sendo construída dentro da realidade do
conto pelo personagem escritor. Sem rodeios, a ambientação é feita visando a elaboração de
um ambiente sombrio, noturno e que inspire algum temor. É interessante notar a escolha de
palavras para a caracterização da cena, pois todas contribuem para a construção dessa aura de
soturnidade. A protagonista desta linha, Amelia Earnshawe, confirma todas essas emoções ao
surgir amedrontada, implorando por abrigo em uma mansão desconhecida.
Corria como se tivesse as legiões do inferno em seus calcanhares, e não
olhou nem uma vez para trás até chegar à entrada da velha mansão. À luz
pálida da lua, as colunas brancas pareciam esqueléticas, como os ossos de
um animal gigante. Ela se agarrou ao batente de madeira, puxando haustos
de ar, olhando para trás no longo caminho, como se esperasse por alguma
coisa, e então bateu na porta – timidamente, de início, depois mais forte as
batidas ecoaram pela casa. Ela imaginava, pelo eco que voltava, que lá de
longe vinham batidas em outra porta, abafadas e mortas. (p. 34)
Ao fim dessa segunda parte – o conto, ao todo, possui nove – retorna-se ao plano do
protagonista-escritor. Essa alternância se mantém até o final, fazendo se sempre de forma a
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1557
mostrar o que se passa com o protagonista após a criação de cada nova passagem que conte a
história de Amelia.
Na parte III, finalmente conhecemos o personagem que está escrevendo a segunda
linha narrativa. Ele se apresenta insatisfeito com o que produz, alegando inserir, sem intenção,
piadas e traços humorísticos ao longo de seu texto. Em sua fala ao mordomo, que parece
acompanhar o progresso de sua obra, relata que está “tentando criar uma imitação da vida,
uma representação exata do mundo como ele é, da condição humana” (pp. 36-37). A partir
desta fala, é possível notar uma certa contradição entre as palavras do personagem e seu texto
produzido: ora, em que contexto a fuga de uma órfã por um matagal lúgubre e a consequente
descoberta de uma mansão que em muito parece ser mal-assombrada lembram o mundo
exatamente como ele é?
De uma forma bastante natural, essa dúvida é resolvida. É possível ao leitor, então,
chegar à conclusão que o ajudará a compreender melhor o conto de Gaiman.
Do cômodo proibido no último andar da casa, partiu um uivo sombrio e
lancinante que ecoou por toda a casa. O jovem suspirou. – É melhor
alimentar a tia Agatha novamente, Toombes.
– Muito bem, senhor. (p. 37)
“Noivas Proibidas”, na verdade, é um conto que se faz fantástico do começo ao fim.
Por tratar de um personagem que está inserido num contexto de fantasia e que deseja escrever
uma literatura que “reflita a vida como ela é, que a espelhe nos mínimos detalhes”, esse
caráter fantástico que envolve o protagonista-escritor acaba por transferir-se para o texto que
este produz ao longo do conto.
A insatisfação com sua obra, porém, faz com que este protagonista busque o auxílio de
outros personagens secundários – seu mordomo Toombes, a empregada doméstica Ethel –
para que estes possam lhe iluminar a respeito dos caminhos que deve tomar para que produza
um livro de qualidade respeitável. Mas nada surte o efeito esperado, e ele continua julgando
fazer piada da realidade. Continuando a escrever a saga de Amelia Earnshawe de forma a
retratar a realidade em suas minúcias, o personagem-escritor é, por fim, levado à reflexão por
um corvo falante. Se dá conta, então, que aquele gênero realmente não lhe apetece, o que o
leva a inserir as zombarias dentro de seu próprio texto.
Por fim, na penúltima parte do conto, nos é apresentada a narrativa “fantástica”
desenvolvida pelo protagonista, que agora possui perspectivas distintas graças aos conselhos
do corvo. O novo texto, na verdade, traz Amelia não como uma órfã que lida com o sombrio,
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1558
mas como uma dona de casa que está insatisfeita com o comportamento de seu marido. Na
nona e última parte, a narrativa se volta novamente para o protagonista, que parece mais
empolgado do que jamais esteve com os novos rumos de sua história. O conto se encerra com
uma espécie de lembrete de que, apesar da “fantasia” inserida no texto desenvolvido pelo
personagem-escritor, a “realidade” dentro do conto continua como sempre fora.
Havia rostos nas janelas e palavras escritas em sangue; no fundo da cripta,
um ser solitário roía algo que talvez um dia tivesse vivido; raios bifurcavam-
se e lanhavam a noite de ébano; criaturas sem rosto vagavam. Tudo estava
bem no mundo. (p. 46)
As (des)construções
A partir das duas perspectivas apresentadas que se fazem presentes em “Noivas
Proibidas”, é notável o trabalho que foi realizado pelo autor para que se pudesse conceber
uma narrativa que contém outra, sendo que ambas brincam com as concepções de realidade e
ficção. Lembrando que esses trabalhos de desconstrução e construção são simultâneos e
interdependentes – pois só se constrói no mundo ficcional se desconstruirmos a realidade –
faz-se necessário elucidar as questões referentes à conceituação e à apresentação do real e do
fantástico dentro do conto analisado, fundando-se nos atos de fingir e em outros processos
referentes ao imaginário.
Transformando a realidade em fantasia
Romero afirma ser a realidade “aquilo que se nos apresenta com as feições do
verdadeiro, provável, plausível e acreditável” (apud CASTRO, 2007); de tal forma que, em
condições normais, todo o mundo extratextual – no qual vivemos – seria considerado o real.
Sendo o imaginário exatamente a ponte entre esse real e o texto ficcional, o primeiro dos atos
de fingir (seleção) se faz a partir do real, para que com os aspectos colhidos ocorra a
combinação e possa se construir o texto ficcional. Este último seria uma espécie de “mundo
entre parênteses”, já que reuniria apenas alguns traços do plano extratextual.
Se formos perceber esse processo dentro do conto “Noivas Proibidas”, é possível notar
que Gaiman o fez de três maneiras distintas. A primeira delas, para construir a primeira linha
narrativa do conto, foi realizada de modo a dar vida a um mundo o mais distante possível do
real extratextual. Dessa forma, criou-se o plano do conto, um “real” entre parênteses que
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1559
responde apenas por essa história. A partir de outro princípio da teoria do imaginário, o como
se, que é possível tomar essa construção como válida. Sobre esse assunto, Iser afirma:
Pelo reconhecimento do fingir, todo o mundo organizado no texto literário se
transforma em como se. [...] também a realidade representada no texto não
deve ser tomada como tal; ela é a referência de algo que ela não é, mesmo se
este algo se torna representável por ela. (ISER in LIMA, 2002, p. 973)
De tal modo, compreende-se que o mundo representado por Gaiman não é
propriamente real, mas que se apresenta como se o fosse para que a intenção do texto se
cumpra. O objetivo, inicialmente, é criar um plano que seja tão diferente do extratextual que
cause certa estranheza ao ser introduzido. É possível notar essa intencionalidade, em especial,
a partir do processo de seleção (Idem, 2002, p. 983), no qual Gaiman destaca os aspectos que
mais induzem ao diverso, ao fantástico e sombrio.
Da mesma forma, todos os relacionamentos intratextuais criados no conto a partir do
processo da combinação se mostram com o intuito de fazer o leitor questionar as regras
vigentes daquele mundo ficcional. Iser afirma que a combinação baseia-se nas revelações
entre diferenças e semelhanças, e este jogo fica bastante claro na forma como as ações dos
personagens são apresentadas. O mordomo Toombes, por exemplo, surge no primeiro plano
da narrativa fazendo o que se espera de qualquer mordomo – escutar os resmungos de seu
patrão e sugerir alguma atitude que julgue coerente. Porém, se retira do recinto após receber
as ordens de “alimentar a tia Agatha”, as quais só foram dadas depois de ser ouvido um uivo
“sombrio e lancinante” – implicando que tia Agatha é, na verdade, algum tipo de monstro.
Parece característico de Gaiman nesse conto apresentar sempre aquilo que há de “normal” ou
de “real” dentro da história para, logo após, desconstruir essas semelhanças com o mundo
extratextual a partir de traços completamente diferentes daqueles que esperamos.
O segundo mundo entre parênteses
A segunda maneira como o autor realiza o processo citado no tópico anterior parece
constar como uma maneira de reafirmar a primeira. Não tanto uma desconstrução, mas o
protagonista do conto tenta copiar seu “real” para dentro de sua literatura, resultando num ato
que não o satisfaz. É possível até pensar que isso ocorre pois não se pode fazer literatura
apenas como uma cópia da realidade, mas faz-se necessário selecionar, combinar aquilo que
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1560
se julgue adequado de forma a construir um novo mundo – o qual, certamente, não existe;
mas é autossuficiente para o seu respectivo fim.
Ao tentar ignorar essas etapas para a construção de sua narrativa, o protagonista do
conto cria um efeito deveras interessante: os relacionamentos criados a partir da combinação
dentro do seu texto são bastante semelhantes àqueles feitos pelo imaginário configurado por
Gaiman para a narrativa principal de “Noivas Proibidas”. Com intenções opostas – Gaiman, a
de criar um mundo notavelmente distinto do seu; o protagonista do conto, a de copiar sua
realidade – eles acabam por chegar à uma organização textual e à uma configuração de
imaginários curiosamente parecidas.
A tentativa do protagonista, de transferir inteiramente sua realidade para dentro da
história que cria, pode ser ligada ao conceito de mimeses, por querer fazer de sua obra uma
fonte imaculada de realismo. Sobre este aspecto, Compagnon diz:
A mimèses faz passar a convenção por natureza. Pretensa imitação da
realidade, tendendo a ocultar o objeto imitante em proveito do objeto
imitado, ela está tradicionalmente associada ao realismo (COMPAGNON,
1999, p. 106 – grifo do autor)
Porém, Iser destaca que a ficção nunca é idêntica àquilo que representa, e é
exatamente deste desacerto que surge o espaço para o imaginário fluir como mensageiro entre
a ficção e a realidade que a inspira. Nesta dinâmica, entende-se realidade e ficção não como
opostos naturais, mas como conceitos interdependentes que se completam mutuamente. É
função do imaginário transgredir os limites de ambas, ao mesmo tempo que realiza um
intercâmbio de informações entre elas (CASTRO, 2007).
Levando em conta estas ligações, nota-se que o protagonista de “Noivas Proibidas”
tenta evitar com que esse imaginário exista, pois deseja estabelecer uma igualdade impossível
entre realidade e ficção. A tentativa resulta inútil, causando a citada frustração com seus
escritos e a consequente criação de uma nova narrativa – esta, fugindo dos padrões
cristalizados no protagonista.
A criação final
Esta nova narrativa, a última criada no conto, dista do modelo citado no tópico anterior
e se aproxima mais dos atos de fingir do primeiro plano do conto. Os processos utilizados até
agora com intuito de construir um mundo fantástico são suspensos em função da criação de
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1561
um plano que se aproxime mais da realidade do leitor - mas que, ao mesmo tempo, se
distancie o máximo da realidade criada por Gaiman dentro do conto. Apesar desse terceiro
mundo criado ser bastante semelhante ao que chamamos realidade, não deve ser tomado como
tal; continua sendo apenas um sistema fictício manifesto no texto. Iser afirma que "o mundo
do texto, construído pela intencionalidade e pelo relacionamento, não é idêntico ao do
contexto, de onde se tiraram seus elementos." (in LIMA, 2002, p. 975)
É curioso notar que os processos – realizados pelo protagonista do conto para a
construção dessa última narrativa – são agora bastante semelhantes àqueles que Gaiman
cumpriu para a formação do primeiro plano narrativo de "Noivas Proibidas". Mas, diferente
do que ocorreu com o produto da primeira narrativa desenvolvida pelo protagonista-autor, o
resultado desta segunda é um oposto do resultado de Gaiman. Com o intuito de fazer
"fantasia", o protagonista realiza a seleção de forma a dar vida a um universo que destoe de
sua realidade - embora essa criação nos pareça completamente comum.
Seguindo o mesmo raciocínio apresentado nos tópicos anteriores em relação à criação
da primeira linha narrativa do conto, o protagonista realiza uma seleção que permite a criação
de um sistema longe de sua realidade - intenção que fica clara pois "esta [a seleção] é
governada apenas por uma escolha feita pelo autor nos sistemas contextuais, através de seu
ato de tematização de mundo." (ISER in LIMA, 2002, p. 962)
Iser se refere aos relacionamentos criados pelo ato da combinação como "fact from
fiction" (in LIMA, 2002, p. 965), e nessa narrativa o seu caráter de faticidade aparece muito
mais forte. Isso se dá pelo fato do autor (neste caso, o autor-personagem) chamar de fantasia
aquilo que nos aparenta ser realidade, causando um choque entre a expectativa do leitor e o
produto apresentado. Ainda sobre esse assunto, Iser afirma que a faticidade dos
relacionamentos "não se funda no que é, mas naquilo que por ele se origina" (in LIMA, 2002,
p. 965) – por dar origem a uma fantasia que nos é real, com base na dinâmica de
diferenças/semelhanças da combinação, essa faticidade se faz mais concreta.
Reconhecimento da ficcionalidade
Quanto ao último dos atos de fingir de Iser, o desnudamento da ficcionalidade, faz-se
necessário analisar todas as suas ocorrências de uma só vez. Sobre o desnudamento, Iser
declara:
É característico da literatura, em sentido lato, que se dá a conhecer como
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1562
ficcional, a partir de um repertório de signos, assim assinalando que é
literatura e algo diverso da realidade. Normalmente, no entanto, os diversos
signos ficcionais não indicam que por eles se opera uma oposição à
realidade [...] (ISER in LIMA, 2002, p. 969).
Essa oposição, de fato, não é apontada na primeira linha narrativa do conto. Gaiman
nos apresenta um personagem ansioso por escrever literatura, sendo este um habitante de um
mundo macabro que sabemos ser ficcional - mas que é tomado como plausível para atribuir
sentido àquilo que se lê. O leitor reconhece, no entanto, que o texto é um fingimento;
resultando na atribuição do caráter de "como se" da literatura.
Pelo reconhecimento do fingir, todo o mundo organizado no texto literário
se transforma em um como se. O por entre parênteses explicita que todos os
critérios naturais quanto a este mundo representado estão suspensos. [...]
Esses critérios naturais são postos entre parênteses pelo como se. (ISER in
LIMA, 2002, p. 973 - grifo do autor)
Ao apresentar as narrativas desenvolvidas pelo protagonista do conto, porém, se
chama a atenção para o fato de que elas não são verídicas pelo próprio contexto do plano
narrativo do protagonista que escreve. Ao se queixar dos resultados que obtém e também por
alterar ao seu bel-prazer os rumos da história, o protagonista-autor deixa claro o caráter de
ficção das outras partes do conto.
Apesar de ser característico do texto ficcional, o desnudamento da ficcionalidade da
forma apresentada por Iser acaba por só se realizar de forma mais convencional naquilo que
tange o primeiro plano narrativo de "Noivas Proibidas". Pelo fato do próprio conto destacar o
caráter de "história criada" das outras narrativas apresentadas - bem como por ser necessário
que se aceite esse aspecto para o entendimento da história - esse ato de fingir é diminuído por
Gaiman na construção da narrativa.
Conclusão
A forma como foi construído o conto analisado é de uma engenhosidade tal que se torna
impossível esgotar sua análise. Enquanto este artigo debruçou-se sobre o imaginário ficcional
do texto, a forma como cada ato de fingir se manifestou na obra, há tantas outras faces da
mesma literatura que são passíveis de – e aguardam por – um estudo detalhado.
Mas, após a análise dos aspectos contidos neste trabalho, é possível notar a
complexidade daquilo que tange qualquer gênero literário. A fantasia, não sendo menor que
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1563
nenhum outro, também conta com essa organização singular. Mais ainda, “Noivas Proibidas”
mostra opiniões peculiares – ora ácidas, ora distorcidas – a respeito do modo como se encara
os diversos gêneros literários. Essas opiniões, obviamente, não estão lá por acaso: são a
manifestação dos relacionamentos intratextuais, surgidos da seleção e da combinação.
O estudo tanto dos atos de fingir como do imaginário ficcional nos permite perceber
essa face dos textos literários, a forma pela qual se organiza cada um deles. E, acima de tudo,
nos mostra que a literatura não é feita por acaso: sempre há uma intenção que leva ao início
das transgressões (dentro do texto) de limites impostos pela realidade.
Referências
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CASTRO, Sandra de Pádua. O imaginário na construção da realidade e do texto ficcional.
Belo Horizonte: Txt, v. 5, 2007. Disponível em http://
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2014.
COMPAGNON, Antoine. O Demônio da Teoria. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.
EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: Uma Introdução. 6. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2001.
GAIMAN, Neil. Noivas Proibidas dos Escravos Sem Rosto na Casa Secreta da Noite do
Temível Desejo. In: Coisas Frágeis 2. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2010. pp. 33-46.
GONSALVES, Elisa Pereira. Conversa sobre iniciação à pesquisa científica. 4. ed.
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ISER, Wolfgang. Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional. In: LIMA, Luiz
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ISER, Wolfgang. Problemas da teoria da literatura atual: O imaginário e os conceitos-chave
da época. In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da literatura em suas fontes, vol. 2. Rio de Janeiro:
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SANTIAGO, Silviano. Uma Literatura nos Trópicos: Ensaios sobre dependência cultural. 2.
ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
Nas fronteiras da linguagem ǀ 1564
GÊNEROS DISCURSIVOS COMO FORMAS DE
CONTEXTUALIZAÇÃO NO ESPAÇO VIRTUAL: O CASO DO
MOVIMENTO OCUPE ESTELITA [Voltar para Sumário]
Laura Jorge Nogueira Cavalcanti (UFPE)
Introdução
O movimento popular Ocupe Estelita surgiu em reação ao projeto imobiliário
denominado Novo Recife, que prevê a construção de edifícios residenciais e comerciais no
bairro histórico de São José da cidade do Recife (PE). O movimento, impulsionado e
coordenado pelo grupo popular Direitos Urbanos, busca questionar a legitimidade do projeto
Novo Recife. Inspirado em outros movimentos de ocupação, o Ocupe Estelita ganhou
visibilidade à medida que as negociações e trâmites para a implantação do Novo Recife
avançaram. Buscamos, neste trabalho específico, analisar a atuação do Movimento no
ambiente online Facebook sob a hipótese de que esta atuação discursiva constrói contextos
comunicativos e contribui para a notoriedade do Movimento.
No mês de junho de 2014 a relação entre o Movimento e outras mídias se tornou
especialmente tensa devido à tentativa de início das obras de demolição dos armazéns do cais
e subsequente ocupação do espaço por integrantes e simpatizantes do Movimento. Por isso,
examinamos a produção discursiva do Movimento entre maio e junho de 2014, por
compreender este como um momento crucial na formação do Ocupe Estelita e sua identidade
como grupo atuante na questão. Buscamos, especificamente, compreender como o
Movimento constrói uma representação de si e do outro (grupos antagônicos), através do
emprego de certos gêneros textuais e discursivos.
Pensamos ainda a importância do próprio ambiente internet nessa conjuntura, como
ambiente que proporciona uma pluralização de vozes atuantes frente ao monopólio de mídias
tradicionais sobre a produção e divulgação da informação. Mídias sociais como o Facebook
proporcionam um suporte para diferentes atores e produtores de discursos e informações ao
mesmo tempo em que permitem o fomento de novas práticas discursivas. Porém, o ambiente
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1565
internet não pode ser visto como espaço de total liberdade, sendo ele também produto humano
resultado de certa conjuntura social e histórica (SILVA SOBRINHO, 2011).
Incialmente discutiremos questões teóricas que dão apoio para as análises e orientam a
investigação das hipóteses de trabalho. Em primeiro lugar, repensamos o conceito de contexto
e como ele vem sendo tratado e explorado para explicar fenômenos da interação comunicativa
em diferentes tradições linguísticas. A partir disso, exploramos a reconceituação do contexto
como um construto sociocognitivo e discursivo a partir das reflexões propostas por Van Dijk
(2012) que abre a possibilidade para uma atuação mais contundente por parte dos atores
sociais engajados em atividades discursivas. Em seguida, aprofundamos a reflexão sobre o
papel do gênero textual/discursivo e sua relação constitutiva com o(s) contexto(s) em
situações comunicativas. Em um segundo momento, apresentamos a análise das postagens
realizadas pelo Movimento em sua página de Facebook, a fim de verificar esses eixos teóricos
em funcionamento.
Repensando a noção central de “contexto”
O contexto vem sendo explorado nas ciências da linguagem como grande responsável
pelo sentido “real” das produções discursivo-linguísticas. Tanto na Pragmática, que se baseia
nessa premissa para estabelecer-se como uma parte essencial da Linguística, quanto na
Sociolinguística, o papel do contexto é preponderante. Contudo, argumentamos com Van Dijk
(2012) que essa importância ou atribuição dada ao contexto parte de um pressuposto
questionável: de que haveria um contexto real e objetivo a ser identificado, levado em
consideração ou desvendado. Além disso, esse suposto contexto, visto normalmente como um
conjunto de categorias objetivas a serem observadas e apreendidas pelos participantes, seria
dado a priori, estabelecido e posto antes mesmo de que a situação comunicativa se instaure de
fato.
A partir do marco da análise crítica sociocognitiva que orienta a análise deste trabalho,
a noção de modelos mentais postulada por Van Dijk (2010; 2012) ajuda a explicar a
construção de conhecimento, e como cada indivíduo pode adotar perspectivas diferentes
acerca de um mesmo evento. Isto por que os modelos mentais, segundo a definição de Van
Dijk (2012, p. 92):
não representam objetivamente os eventos de que fala o discurso, mas antes a
maneira como os usuários da língua interpretam ou constroem cada um a seu modo