Revista Do Museu de Arqueologia e Etnologia

159
R EVISTA DO MUSEU DE A RQUEOLOGIA E ETNOLOGIA U NIVERSIDADE DE SÃO PAULO Suplemento n. 18 2014 I Simpósio do Laboratório de Arqueologia Romana Provincial “Representações da romanização no mundo provincial romano” Coordenadora Maria Isabel D’Agostino Fleming

description

História

Transcript of Revista Do Museu de Arqueologia e Etnologia

  • REVISTA DO MUSEUDE

    ARQUEOLOGIA E ETNOLOGIA

    UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    Suplemento n. 18 2014

    I Simpsio do Laboratrio de Arqueologia Romana ProvincialRepresentaes da romanizao no mundo provincial romano

    CoordenadoraMaria Isabel DAgostino Fleming

  • SO PAULO, BRASIL

    REVISTA DO MUSEUDE

    ARQUEOLOGIA E ETNOLOGIA

    UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    I Simpsio do Laboratrio de Arqueologia Romana ProvincialRepresentaes da romanizao no mundo provincial romano

    CoordenadoraMaria Isabel DAgostino Fleming

  • I Simpsio do Laboratrio de Arqueologia Romana ProvincialRepresentaes da romanizao no mundo provincial romano

    27 a 29 de novembro de 2013Faculdade de Educao USP

    Coordenadora

    Profa. Dra. Maria Isabel DAgostino Fleming

    Comisso Organizadora

    Alessandro Mortaio GregoriAlex da Silva MartireTatiana Bina

    Comisso Cientfica

    Carlos Augusto MachadoFbio Faversani

  • Apresentao

    O I Simpsio do LARP Representaes da romanizao no mundo provincial romano, realizado de 27 a 29 de novembro de 2013, no auditrio da Faculdade de Educao da USP, foi uma reunio exclusivamente sobre Roma no Brasil, de forma a abrir espao para discusses mais aprofun-dadas relativas s temticas do imperialismo romano; exrcito; romanizao; alteridade/identidade; identidade e discurso; religio e poltica; urbanismo/urbanizao; transformao dos espaos pbli-cos; monumentalidade; iconografia; espao domstico: tecnologia, produo e consumo; territrio e paisagem, entre outros. Consistiu, pois, numa oportunidade nica de estabelecer debates entre especialistas para aprimorar o desenvolvimento desta rea no Brasil. Foi o primeiro evento com uma representatividade expressiva de treze pesquisadores docentes de universidades brasileiras (UFRJ, UFES, UFPE, UFRN, UFPR, UFOP, UNICAMP e USP), que proferiram palestras de 45 minutos, e trs do exterior (Universidade de Lisboa, Duke University e Universidade do Minho), que proferiram conferncias de uma hora. Entre os demais participantes, em nmero de 14 e que contriburam com comunicaes de 20 minutos, estiveram presentes doutores e doutorandos da USP, UFRJ e UERJ.

    Os trabalhos apresentados foram de extremo interesse para a comunidade que pde acompanhar pesquisas em andamento e/ou com resultados mais consolidados, o que permitiu inclusive propostas de cooperao em temas transversais que incluram outros especialistas do pblico ouvinte, como, por exemplo, pesquisas desenvolvidas no Norte da frica de dominao romana e de contexto pnico.

    Agradecemos nesta oportunidade o apoio financeiro da FAPESP, da Pr-Reitoria de Pesquisa e do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, alm do apoio logstico da Faculdade de Educao-USP.

    Maria Isabel DAgostino Fleming

  • Sumrio

    PALESTRAS

    COMUNICAES

    3

    11

    19

    29

    37

    49

    59

    69

    79

    91

    99

    109

    119

    127

    135

    141

    Maria Isabel DAgostino Fleming

    Gilvan Ventura da Silva

    Pedro Paulo A. Funari

    Renato Pinto

    Marcia Severina Vasques

    Norma Musco Mendes

    Silvana Trombetta

    Regina Maria da Cunha Bustamante

    Vagner Carvalheiro Porto

    Fbio Augusto Morales

    Marcio Teixeira Bastos

    Alessandro Mortaio Gregori

    Uiran Gebara da Silva

    Irmina Doneux Santos

    Alex da Silva Martire

    Airan dos Santos Borges

    A cermica castreja do noroeste da Pennsula Ibrica e a presena romana: perspectivas de anlise

    A cidade representada pelo poder imperial:Juliano e a censura populao de Antioquia no Misopogon

    Consideraes sobre a contribuio da Arqueolo-gia da Btica para o estudo da economia romana

    O interesse pela violncia da romanizao. Um breve estudo arqueolgico das primeiras revoltas na Britannia

    Espaos territoriais e redes de poder no Egito Romano: imperialismo, religio e identidade

    A provncia da Lusitania: sistema econmico global e local

    O ritual da morte entre os celtiberos

    A construo romana das representaes sociais da frica atravs das moedas

    A cidade como discurso ideolgico: monumen-talidade nas moedas do Imprio Romano

    Graecia capta, novamente: consideraes sobre os limites da nova romanizao da Grcia

    A indstria da luz na Palestina romana: produo, consumo e distribuio de lucernas de disco

    Arqueologia e Imagem: a cristianizao das elites romanas (s. IV e V)

    Os camponeses e a terra do norte da Glia do Imprio Romano tardio

    Os fruns romanos provinciais: representao de identidade local dentro de um espao de poder tipicamente imperial

    ROMA 360 e DOMUS: os projetos tridimensio-nais interativos do LARP

    Entre espaos, representaes e agentes: a paisagem imperial em cidades da Lusitnia romana: uma proposta de pesquisa

  • Contents

    CONFERENCES

    COMUNICATIONS

    3

    11

    19

    29

    37

    49

    59

    69

    79

    91

    99

    109

    119

    127

    135

    141

    Maria Isabel DAgostino Fleming

    Gilvan Ventura da Silva

    Pedro Paulo A. Funari

    Renato Pinto

    Marcia Severina Vasques

    Norma Musco Mendes

    Silvana Trombetta

    Regina Maria da Cunha Bustamante

    Vagner Carvalheiro Porto

    Fbio Augusto Morales

    Marcio Teixeira Bastos

    Alessandro Mortaio Gregori

    Uiran Gebara da Silva

    Irmina Doneux Santos

    Alex da Silva Martire

    Airan dos Santos Borges

    The castro pottery of Northwestern Iberian Peninsu-la and the Roman presence: perspectives of analysis

    The city represented by the imperial gover-nment: Julian and his rebukes against the Antio-chene population in the Misopogon

    The role of archaeology of Baetica in studying the Roman economy

    The interest in the violence of Romanisation. A brief archaeological study of the first uprisings in Roman Britain

    Territorial spaces and networks of power in Roman Egypt: imperialism, religion and identity

    The province of Lusitania: global and local economic systems

    The death ritual among the Celtiberian People

    The Roman construction of social representa-tions of Africa by means of coins

    The city as ideological discourse: monumentality in the coins of the Roman Empire

    Graecia capta, again: some thoughts on the limits of the romanization of Greece

    The industry of light in Roman Palestine: production, consumption and distribution of discus oil lamps

    Arqueologia e Imagem: a cristianizao das elites romanas (s. IV e V)

    The peasants and the land of northern Gaul in the Late Roman Empire

    The Roman provincial fora: local identity represen-tation inside a typically imperial place of power

    ROMA 360 and DOMUS: LARPs three-dimen-sional interactive projects

    Among spaces, representations and agents: the imperial landscape in cities of the Roman Lusitania: a research proposal

  • Palestras

  • 3R. Museu Arq. Etn. Supl., So Paulo, n. 18, p. 3-9, 2014.

    Introduo

    A questo que nos interessa situa-se em duas frentes, a primeira refere-se produo da cermica domstica e sua durao no contexto castrejo do noroeste da Pennsula Ibrica, a segunda, atrelada primeira, investiga o significado e alcance sociocultural e tecnolgi-co de uma mudana extremamente importante, ou seja, a passagem da mo-de-obra feminina masculina, como ponto de inflexo de uma tradio milenar e que indica um dos caminhos de integrao das populaes locais nas redes comerciais e culturais do Imprio romano.

    Tendo em vista o maior ou menor contato entre essas comunidades e os elementos externos, os dados necessrios para estimar o nvel de con-tato e a variao nas tcnicas utilizadas na produ-o cermica no contexto castrejo esbarram em dificuldades, como a diferena entre os stios e os diferentes tempos e condies desse processo. A esses aspectos devem ser acrescentados outros enfatizados por alguns estudiosos, como Manue-la Martins (1990: 29), referentes valorizao deficiente dos materiais arqueolgicos habitat indgena e ocupao do espao rural correspon-dentes poca romana. Segundo a autora, Com exceo dos achados de natureza numismtica, mais fceis de datar, e nos quais repousam algu-mas cronologias da ocupao de povoados e de necrpoles, ou das cermicas importadas (cam-panienses, nforas, sigillatas), os outros achados tm sido pouco estudados. Esto nesse caso as cermicas comuns, que constituem afinal o

    A cermica castreja do noroeste da Pennsula Ibrica e a presena romana: perspectivas de anlise

    Maria Isabel DAgostino Fleming*

    FLEMING, M.I.DA. A cermica castreja do noroeste da Pennsula Ibrica e a presena romana: perspectivas de anlise. R. Museu Arq. Etn. Supl., So Paulo, n.18: 3-9, 2014.

    Resumo: O longo processo de passagem da produo cermica pr-romana para a romana, que durou praticamente dois sculos e meio em alguns centros castrejos do noroeste da Pennsula Ibrica, espelha a dificuldade de romper tradies estruturais, fortemente arraigadas no interior de populaes domi-nadas e que estabelecem os limites da romanizao no contexto domstico. Esta comunicao visa discutir as formas de anlise especficas desse tipo de produo comparativamente s realizadas comumente para as cermicas de grande difuso produzidas em oficinas especializadas, como a cermica sigillata, e que evidenciam a integrao das populaes locais nas redes comerciais e culturais do Imprio romano.

    Palavras-chave: Cermica castreja Tecnologia cermica Mo-de-obra feminina e masculina.

    (*) Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de So Paulo. Laboratrio de Arqueologia Romana Provincial.

  • 4A cermica castreja do noroeste da Pennsula Ibrica e a presena romana: perspectivas de anlise. R. Museu Arq. Etn. Supl., So Paulo, n. 18, p. 3-9, 2014.

    contradas nos contextos de escavao. Ao longo dessa convivncia, que pode ser estimada por volta dos finais do sc. I a.C. em diante, podem--se prever mudanas gradativas nas formas de produo da cermica domstica com mo-de--obra feminina na perspectiva de atingir a plena insero da mo-de-obra masculina no processo produtivo especializado de modelo romano.

    O contexto castrejo: cermica e metalurgia

    A cermica e a metalurgia, de tradies milenares, se opem e ao mesmo tempo se complementam, assim como o mundo feminino e o masculino no contexto da Idade do Ferro castreja. Segundo Marn Suarez (2007: 157), Se atendermos complementaridade das tecnolo-gias de cada sociedade, um de nossos objetivos deve ser conhecer o modo em que as sociedades castrejas estruturaram simblica e espacialmente um artesanato metalrgico em mos masculi-nas, que refora a ideologia guerreira, com um artesanato cermico em mos femininas. Nesse sentido, nosso objetivo investigar a mudana

    material mais abundante, quer nos castros, quer nos stios arqueolgicos. O desconhecimento da cronologia destas produes cria com frequncia graves distores interpretativas, favorecendo uma deficiente valorizao dos achados e das esta-es e consequentemente uma errada perspectiva do povoamento da regio. A datao tardia da maior parte das necrpoles romanas do Norte de Portugal, escavadas em condies deficientes, forneceu uma imagem deformada da romani-zao. Com efeito, a abundncia de necrpoles datadas dos scs. III e IV levou assero de que a ocupao rural romana s teria sido um facto pleno j no Baixo Imprio, pelo que se valorizou excessivamente o habitat castrejo nos primeiros sculos de nossa era. Os estudos mais recentes, sobretudo incidentes nas cermicas comuns de Bracara Augusta, permitem hoje aceitar que mui-tos dos materiais daquelas necrpoles podero ser datados do Alto Imprio, ainda que possam ter tido perduraes em poca tardia. (Fig. 1 )

    Essas so informaes valiosas para estimar o perodo de convivncia entre a produo cer-mica domstica castreja e a da grande produo especializada testemunhada pelas vasilhas en-

    Fig. 1. Cermica pr-romana ( scs. II-I a.C.). Bracara Augusta. Museu Arqueolgico D. Diogo de Sousa, Braga. Foto da autora.

  • 5Maria Isabel DAgostino Fleming

    neste binmio atravs da anlise da cermica, na medida em que esta passou a ser um produto do trabalho masculino.

    Ainda segundo Martins (1990: 29-30), foi grande a influncia romana na cultura castreja nos primeiros sculos da nossa era, alm de uma intensa ocupao rural, juntamente com a sobrevivncia dos povoados fortificados, de acordo com os resultados das prospeces e interpretao dos dados epigrficos. Especial-mente os dados epigrficos tm uma relao estreita com a manufatura de vasilhas cermicas diferenciadas de confeco masculina, conforme ser visto adiante.

    O mtodo de anlise

    Se desejarmos alcanar o processo de mudana por que passou a produo cermica castreja no perodo de dominao romana pre-ciso que seja atravs de um distanciamento dos mtodos de anlise tradicionais, aplicados a ce-rmicas finas, com dataes precisas e de grande difuso.(1) Esses mtodos normalmente visam o estudo das formas em detrimento do uso ou funo. grande o peso dos estudos iconogrfi-cos e o vaso, frequentemente decorado, visto como um objeto cultural em sentido completa-mente diferente do das vasilhas comuns que so nosso foco de estudo. Tais estudos de cermica de grande produo voltam seu interesse para a distribuio e adoo de certas formas cermicas e decoraes para identificar elementos de or-dem cultural, socioeconmica, ou ainda tecno-lgica, apenas para citar os domnios principais a que se associa este material. Por outro lado, para a cermica que nos interessa, necessrio

    o conhecimento das funes e usos das vasilhas, das cadeias operatrias de sua fabricao para se chegar a informaes mais precisas sobre o contato entre culturas. Nesse sentido, so detectveis as alteraes nas fases que compem a confeco das vasilhas, eventualmente decor-rentes de interferncias externas. O mtodo de anlise mais adequado para essa categoria cer-mica de cozinha e de armazenamento se apoia nos instrumentos da antropologia das tcnicas, como os conceitos de sistema tcnico ou de cadeia operatria (CO) (Leroi-Gourhan 1943, 1945; Lemonnier 1986). Nesse caso, a cermica comum proporciona o acesso a dois campos diferentes, o do uso das cermicas na economia domstica e o da fabricao dos recipientes. A cermica vista como um conjunto que encerra a relao entre os modos de produo e modos de consumo, ou seja, a fabricao dos vasos propriamente dita e a preparao e conservao dos alimentos, que so o ndice de duas cadeias operatrias.

    Quanto ao uso, a abordagem funcional tem a preocupao maior com os sistemas tcnicos, apesar de dificuldades que se apresentam: no estudo do mobilirio observa-se a presena de vrias tcnicas e existncia simultnea de vrios ceramistas, sem que seja possvel evidenciar o sistema de produo desses objetos, pois excep-cionalmente so conhecidas as estruturas das oficinas cermicas.

    Mudana na produo cermica castreja

    Podemos avaliar bastante insuficiente o nvel de informaes sobre o contexto de pro-duo da cermica castreja: resultados geral-mente parciais sobre as oficinas, assim como as atividades dos artesos ceramistas, com raras evidncias das estruturas de produo, alm de espordicas informaes fornecidas pelas fontes literrias sobre a organizao social das oficinas. A passagem da mo-de-obra feminina para a masculina na produo da cermica castreja em perodo de dominao romana ser analisada atravs de dois trabalhos sobre acervos cermicos provenientes de castros do noroeste da Pennsula Ibrica, cujos dados produzidos

    (1) Sobre o mtodo utilizado nesta comunicao veja-se espe-cialmente o resumo da mesa redonda Fabrication et fonctions: les cultures en contact et la cramique commune, organizada por Julien Zurbach (Ecole franaise dAthnes) e Arianna Esposito (Universit de Lille), apresentada no XVII Congresso da AIAC, Roma, 2008, programa: pp. 20-21. A publicao relativa a esta pesquisa encontra-se no prelo: Esposito, A; Zurbach, J. (ds.) Fabrication et fonctions : les cultures en contact et la cramique commune dans la Mditerrane grecque et romaine. Paris: Presses de la MAE, Maison Ren Ginouvs.

  • 6A cermica castreja do noroeste da Pennsula Ibrica e a presena romana: perspectivas de anlise. R. Museu Arq. Etn. Supl., So Paulo, n. 18, p. 3-9, 2014.

    contriburam para o encaminhamento de nossa hiptese sobre a forma de como se deu esse processo: Los materiales del castro de San L. Luis (Allande, Asturias), publicado por Carlos Marn Suarez (2007) e A Cermica Castreja da Citnia de Briteiros, publicado por Maria Ant-nia Dias da Silva (1997).

    Martins Suarez (2007) apresenta o material cermico, em sua maior parte indito, resultan-te das escavaes dos anos 1960. Prope uma reflexo terica sobre o estudo da tecnologia cermica, com a aplicao de conceitos antropo-lgicos, tais como as cadeias operatrias (CO) e a superao definitiva das anlises tipologistas, o que permite propor hipteses de processos sociais, que so apresentados em chave de gne-ro. Enfatiza que o estudo das tcnicas permite aproximaes sociolgicas porque as tcnicas so, sobretudo, produes sociais, sendo a cultura, e no a natureza, a principal limitao da tcnica (Martins Suarez 2007: 139). Dias da Silva (1997), por sua vez, realizou um levanta-mento exaustivo da cermica de produo local, escavada em cerca de quarenta campanhas des-de o sculo XIX (1875-1884) dcada de 1960 e depositada no Museu da Sociedade Martins Sarmento. So analisadas as transformaes que marcam o perodo cronolgico-cultural, do final do I milnio a.C. e sculo I d.C., sendo a cermica que serve de base ao estudo integrada cronologicamente a esta fase.

    No contexto castrejo de ambos os estudos so detectadas variaes na cadeia operatria, com diferentes fases, sendo apontadas modifica-es nas estruturas habitacionais no castro San Luis (Astrias). Neste stio, no ltimo estgio da CO pr-romana verifica-se a presena de peas da CO de tradio local do perodo romano (comum romana), de peas de Terra Sigillata e de vasilhas de paredes finas. Nos estratos mais recentes recorrente a associao das diversas CO: a) CO pr-romana, que perdurou at a passagem do sc. I ao II d.C., b) sua substitui-o completa pela cermica de tradio local de perodo romano e pelas vasilhas de luxo, sem possibilidade de diferenciao entre a fase pr-romana e a romana. No se sabe at que ponto continuaram a ser feitos vasos com orelhas (forma muito tpica pr- romana), os

    quais foram substitudos pelos vasos de borda perfurada (Fig. 2). Outras formas continuaram (bordas facetadas, curvas e retas). Novas formas aparecem (travessas), e talvez reflitam mudan-as gastronmicas, pois podem ser usadas para panificao, substituindo presumivelmente os mingaus de cereais (Martins Suarez 2007: 155-56). Esse exemplo de introduo e evoluo de certas formas em repertrios cermicos de produo local d a dimenso das dinmicas, continuidades e transformaes culturais dessas populaes, e responde a necessidades relati-vas s prticas da mesa, como tambm aponta Michel Bats (1985; 1988).

    Fig. 2. Vaso de borda perfurada. Forma que substituiu os vasos com orelhas, forma tpica pr-romana. Museu Arqueolgico da Citnia de Sanfins. Foto da autora.

    Segundo Marn Suarez (2007: 158), o uso das Cadeias Operatrias nos revela a impro-dutividade de categorias clssicas nos estudos cermicos como a oposio mo/torno, anlises tipolgicas baseadas nas formas finais e possibilita reconhecer tradies tecnolgicas historicamente situadas. O estudo das vasilhas do Castro San Luis indicou que a mudana fundamental na Cadeia Operatria pr-romana no se produziu tanto nas formas e decoraes, mas na rotao empregada e na sequncia de montagem, sendo esta a chave que no nvel social pode ter levado ao fim do controle tec-nolgico feminino de uma tradio milenar e o fim das produes locais ou autossuficincia tecnolgica.

  • 7Maria Isabel DAgostino Fleming

    Se por um lado a pesquisa da cermica do castro San Luis possibilitou identificar as trans-formaes no controle tecnolgico feminino na produo domstica, o estudo do vasilhame cermico da Citnia de Briteiros apresentou um elemento interessante para investigar a inovao neste binmio masculino / feminino, condizente com a introduo da especializao masculina na produo cermica. No acervo cermico de Briteiros, assim como no do castro San Luis, a presena da Terra Sigillata do s-culo II d.C. revela a integrao desses stios no circuito comercial. Em Briteiros essa integrao acompanhada pela presena de vasilhas de produo local, do sculo I d.C., com marcas de fabricao e inscries votivas (Figs. 3 e 4). So vasos votivos, isto , com uma funo espe-cfica. Apesar de seu de grande porte, so feitos

    com pasta mais depurada, contrariamente usada para grandes vasilhas de armazenamen-to. Seu acabamento esmerado e a decorao diferenciada. Essas caractersticas indicam uma produo que extrapola o nvel local e se des-tina circulao entre os demais castros da re-gio, confirmada pela identificao do arteso, que atingiu muito provavelmente uma posio de prestgio social. Forma-se um contexto que contrasta nitidamente com o da produo da cermica comum, domstica, com poucas varia-es e restrita ao uso interno (Quadro 1). Este o incio da passagem da produo feminina para a masculina e que posteriormente seguir o modelo da produo cermica em oficinas fora do mbito domstico, com artesos espe-cializados, voltadas para a exportao, tpicas do mundo romano.

    Fig. 3. Vaso com inscrio votiva. Museu da Citnia de Briteiros. Foto da autora.

    Fig. 4. Reproduo do mesmo vaso. Silva (1997: Est. LXI, 4).

  • 8A cermica castreja do noroeste da Pennsula Ibrica e a presena romana: perspectivas de anlise. R. Museu Arq. Etn. Supl., So Paulo, n. 18, p. 3-9, 2014.

    Quadro 1. Contexto de circulao, para alm do castro de origem, de vasos castrejos com inscries votivas e nome do arteso.

    FLEMING, M.I.DA. The castro pottery of Northwestern Iberian Peninsula and the Roman presence: perspectives of analysis. R. Museu Arq. Etn. Supl., So Paulo, n.18: 3-9, 2014.

    Abstract: The long process of transition from pre-Roman pottery produc-tion to the Roman one, during practically two and a half centuries in some cas-tro centers in the Northwest of the Iberian Peninsula, mirrors the difficulty in breaking structural traditions, strongly rooted in the interior of the dominated populations which establish the limits of romanization in the domestic con-text. This communication aims at discussing the specific forms of analysis of this type of production as compared to those commonly done for potteries of large diffusion produced in specialized workshops, as the sigillata pottery, and that evince the integration of local populations in the commercial and cultural networks of the Roman Empire.

    Keywords: Castro pottery Pottery technology Feminine and masculine labor.

  • 9Maria Isabel DAgostino Fleming

    BATS, M. 1985 La vaisselle cramique dOlbia de Provence

    (Hyres, Var), milieu du IVe-milieu du Ier s. av. J.-C., Recherches sur lalimentation et les manires de table. Thse de IIIme Cycle, Aix-en-Pro-vence, 1985, 2 vol., 360 p.+ 186 pl.

    1988 Vaisselle et alimentation Olbia de Provence (v.350-v.50 av.J.-C.).Modles culturels et catgories cramiques. Paris (18e Suppl. la RevArchNarb).

    LEMONNIER, P. 1986 The Study of Material Culture

    Today: Toward an Anthropology of Tech-nical Systems. Journal of Anthropological Archaeology, 5: 147-186.

    LEROI-GOURHAN, A. 1943 LHomme et la Matire. Sciences

    daujourdhui. Paris: Albin Michel.1945 Milieu et Techniques. Sciences

    daujourdhui.Paris: Albin Michel. MARTINS, M.

    1990 O Povoamento Proto-Histrico e a Ro-manizao da Bacia do Curso Mdio do Cvado. Cadernos de Arqueologia, Monografias. Unidade de Arqueologia da Universidade do Minho.

    MARN SUAREZ, C.2007 Los materiales del castro de San L. Luis

    (Allande, Asturias). Complutum 18: 131-160.

    SILVA, M.A.D.da 1997 A Cermica Castreja da Citnia de Bri-

    teiros. Gimares: Sociedade Martins Sarmento.

    Referncias bibliogrficas

  • 11

    R. Museu Arq. Etn. Supl., So Paulo, n. 18, p. 11-18, 2014.

    A transio da cidade clssica para a cida-de ps-clssica, e isso tanto no Oriente quanto no Ocidente, foi marcada por um complexo jogo de rupturas e de permanncias, de estmulo inovao e de apego tradio que pode ser acompanhado mediante a inves-tigao dos repertrios artsticos e dos arranjos arquitetnicos, pois muito da arte e arquitetura crists tributrio dos modelos clssicos, fato sobejamente conhecido, mas que nunca exces-sivo recordar. Do ponto de vista simblico, no

    entanto, vemos se esboar, no sculo IV, uma imagem da cidade que contrasta agudamente com tudo aquilo que at ento se pensava a respeito do assunto. No torvelinho das transfor-maes operadas a partir da segunda metade do sculo III e que culminaram com a redefinio de muitos elementos da sociedade romana, emerge uma representao da vida urbana, das suas atividades e entretenimentos, calcada, por um lado, num profundo pessimismo e, por outro, no pressuposto segundo o qual a cidade no mais um ambiente consagrado aos deuses, um territrio colocado sob a proteo divina e, portanto, imune aos perigos e calamidades, tanto as do corpo quanto as da alma. Se, no decorrer de todo o Mundo Antigo, a cidade nunca foi tida a priori como uma ameaa aos

    A cidade representada pelo poder imperial:Juliano e a censura populao de Antioquia no Misopogon

    Gilvan Ventura da Silva*

    SILVA, G.V. A cidade representada pelo poder imperial: Juliano e a censura popula-o de Antioquia no Misopogon. R. Museu Arq. Etn. Supl., So Paulo, n.18: 11-18, 2014.

    Resumo: Antioquia, a metrpole da provncia da Sria, era, na Antiguidade Tardia, uma cidade clebre pela exuberncia dos seus festivais ldicos e reli-giosos e pela intensa mobilizao dos seus habitantes, que dia e noite frequen-tavam a avenida das colunatas ladeada por prticos e monumentos, numa interao que por vezes resultava em manifestaes verbais de descontentamen-to contra as autoridades romanas ou mesmo em rebelio aberta. Neste artigo, temos por finalidade refletir sobre o estranhamento de Juliano com a popula-o de Antioquia quando o imperador a se instalou, entre 362 e 363, a fim de preparar a expedio contra os Sassnidas. Para tanto, exploramos como fonte principal o Misopogon, stira na qual Juliano dirige severas crticas ao estilo de vida dos antioquenos, que considera licenciosos e indolentes, permitindo-nos assim captar sua representao acerca da cidade.

    Palavras-chave: Antiguidade Tardia Representao Antioquia Juliano Misopogon.

    (*) Departamento de Histria, Programa de Ps-graduao em Histria e Programa de Ps-graduao em Letras da Universi-dade Federal do Esprito Santo (Ufes).

  • 12

    A cidade representada pelo poder imperial: Juliano e a censura populao de Antioquia no Misopogon. R. Museu Arq. Etn. Supl., So Paulo, n. 18, p. 11-18, 2014.

    de foi reportado por Amiano Marcelino (22.9) como um mau pressgio. Antioquia, quela altura, encontrava-se imersa em uma grave crise de abastecimento, resultado de uma longa es-tiagem durante os anos de 361 e 362 que havia arruinado a colheita do trigo (Liebeschuetz 1972: 126 e ss.). A despeito da conjuntura desfavorvel, o imperador foi bem recebido pela populao reunida no hipdromo para saud-lo. Em pouco tempo, no entanto, sua relao com os antioquenos tornou-se conflituosa, e isso por diversos motivos. Em primeiro lugar, os esforos de Juliano para contornar a crise foram vos, pois o trigo importado, vendido a preo fixo, era adquirido pelos atravessadores e pelos grandes proprietrios tendo em vista a especu-lao. Os comerciantes urbanos, culpando os grandes proprietrios pela carestia, decidiram cruzar os braos, em protesto. O tabelamento do preo do po, expediente destinado a confe-rir algum alvio populao urbana, no surtiu o efeito desejado, pois os camponeses afluram em massa cidade para se beneficiar do subs-dio. J o aquartelamento de um extenso con-tingente de soldados em Antioquia aumentava a demanda por vveres. Por fim, a campanha da Prsia era tida como um erro de estratgia e carecia, portanto, de apoio popular (Downey 1961: 390 e ss.). parte todas essas variveis de ordem econmica e militar, bastante influentes por sinal, necessrio atentar para o fato de que o rudo entre Juliano e os antioquenos foi agravado tambm pela poltica religiosa do imperador, que desencadeou uma srie de atri-tos, no apenas com os adeptos do cristianismo, como seria de se esperar, mas igualmente com os pagos.

    Nos meses em que residiu em Antioquia, Juliano dedicou-se a uma autntica peregrinao pelos templos e santurios em sinal de revern-cia s divindades cvicas, dentre as quais Zeus, Demter, Hermes, Pan, Ares, Calope, Apolo, sis e a Tyche. Uma peculiaridade da devoo de Juliano era o seu apego aos sacrifcios san-grentos, com o abate de um grande nmero de vtimas prontamente consumidas pelos soldados de sua comitiva, atitude um tanto ou quanto acintosa diante de uma crise de abastecimento ento em curso. O palcio imperial da ilha do

    seus habitantes, como um ambiente inspito, degradado, privado de carisma e que merecesse ser regenerado, reformado ou mesmo purifica-do, no sculo IV parece pouco a pouco tomar forma uma representao que, ao converter a cidade numa realidade potencialmente nociva, uma heterotopia, como certa vez sugeriu Lefebvre (2004: 45), engendra um conjunto de discursos e de prticas que visam sua reabilitao, segun-do uma lgica na qual prevalece a obsesso pela pureza, de modo a se obter, ao trmino da ope-rao, uma cidade coesa, una, solidria e isenta de qualquer agente que a coloque em risco.

    Quando refletimos sobre as mltiplas imagens da cidade na Antiguidade Tardia, de imediato se impe o estranhamento entre os cristos e o modus vivendi urbano que desembo-ca, ao fim e ao cabo, numa proposta de reforma social bastante ambiciosa, como possvel cons-tatar por intermdio da consulta aos autores da Patrstica. Mas, e quanto aos pagos? Teriam eles, no sculo IV, alguma alternativa a propor ao discurso cristo no que se refere imagem de cidade que gostariam de ver concretizada? No caso de Antioquia, cujo processo de cristiani-zao vimos investigando h alguns anos, um exame da literatura pag disponvel nos permite captar alguns pontos de interseo absoluta-mente insuspeitos entre a representao pag e a crist acerca da cidade antiga. Nesse aspecto, uma obra emblemtica e at certo ponto des-concertante o Misopogon, de Juliano, stira na qual o imperador, sob o pretexto de se defender da intensa zombaria da qual foi vtima durante a estada em Antioquia, esboa os contornos da sua concepo de cidade, concepo esta que, acreditamos, no deva ser tomada como mero produto de um desacordo trivial entre os sdi-tos e Juliano, mas como parte do programa de governo que este almeja implementar aps a sua proclamao como Augusto, em 361.

    Juliano permaneceu em Antioquia cerca de oito meses, entre julho de 362 e maro de 363, aps uma breve passagem por Constantinopla, onde celebrou as exquias de Constncio II, morto em novembro de 361. Sua entrada sole-ne na cidade ocorreu em 18 de julho de 362, no segundo dia do festival de Adonis, quando se pranteava a morte da divindade, o que mais tar-

  • 13

    Gilvan Ventura da Silva

    Orontes, por sua vez, foi convertido num tem-plo, erigindo-se altares nos jardins, sob as rvo-res, onde o imperador poderia acompanhar os sacrifcios com maior comodidade (Soler 2006: 44). Crtico contumaz dos jogos, dos mimos e pantomimas, Juliano se afasta deliberadamente do teatro e do anfiteatro, proibindo inclusive que os sacerdotes pagos compaream aos espe-tculos ou recebam a visita de atores, danarinos e aurigas (Ep. 89b, 304). Agindo com singular audcia, decide suprimir a Maiuma, um antigo festival orgistico celebrado a cada trs anos em honra a Dioniso e Afrodite (Soler 2006: 39). Inclinado a uma postura rigorista e altaneira, Juliano se apresenta, na cidade, como um fil-sofo, evitando o contato com a populao nos espaos de lazer, censurando suas modalidades de entretenimento e acusando-a de indiferena para com os deuses. Irritados, os antioquenos no tardam a lanar mo da irreverncia e do deboche contra o imperador. De acordo com Gleason (1986: 108), no incio de janeiro de 363, quando da comemorao das Calendas, que anunciavam o Ano Novo, o desconforto da populao com o imperador teria se tornado insustentvel, pois a festa, ao assumir um tom claramente jocoso, forneceu aos antioquenos o pretexto para exercitar amplamente a sua verve satrica, sendo Juliano comparado a um macaco, a um ano, a um bode barbado e mesmo a um victimarius, um aougueiro, devido pletora de sacrifcios que promoveu (Am. Marc. 22,14). No obstante a indignao pelo ultraje sofrido, Juliano evitou o uso da fora contra a cidade, preferindo responder aos insultos mediante a redao de uma obra sui generis, o Misopogon, na qual recorria ironia para justificar suas aes como imperador, ao mesmo tempo em que cen-surava asperamente os habitantes de Antioquia pela sua leviandade e indisciplina.

    O Misopogon, em traduo literal, o ini-migo da barba, foi composto entre a segunda quinzena de janeiro e o ms de fevereiro de 363, num momento em que Juliano se preparava para partir rumo Babilnia, onde daria com-bate aos persas. O ttulo uma aluso direta sua barba de filsofo que tanto desconforto causava aos antioquenos. Os manuscritos registram, no entanto, um outro ttulo pelo qual

    a obra tambm era conhecida: Antiochikos, o que refora o teor satrico do texto, pois Antiochikos evocaria um panegrico em louvor cidade, como aquele pronunciado por Libnio por ocasio dos Jogos Olmpicos de 356. Inverten-do os cnones literrios dos panegricos cvicos, nos quais era de praxe se exaltar a nobreza do fundador da cidade, a reverncia dos habitantes para com os deuses, a temperana dos cidados na vida pblica e a correta educao dispensada juventude, Juliano faz do Misopogon um anti-panegrico (Marcone 1984: 233-4), um discurso decerto dirigido cidade, mas no para a enal-tecer e sim para denunciar as suas imperfeies, permitindo-nos captar, nas entrelinhas, a repre-sentao da cidade ideal que pretendia erigir. Sendo o Misopogon uma obra que se aproxima muito mais do psogos, da inventiva, do que dos textos legislativos, muito difcil enquadr-la nos assim denominados editos de castigo que desde o Principado os imperadores de quando em quando promulgaram contra uma cidade ou outra devido ao mau comportamento da populao, o que nos obriga a refutar a hiptese de Gleason (1986: 116) sobre os antecedentes jurdicos do texto. Como argumentam Van Hoof e Van Nuffelen (2011), em contraposio a Gleason, o Misopogon se distingue dos editos de castigo por duas caractersticas que lhe conferem uma inequvoca singularidade. A pri-meira delas diz respeito forma, uma inventiva extensa e erudita de um imperador contra o de-satino dos sditos. A segunda, ao contedo, pois, no Misopogon, Juliano se prope a aclarar a sua prpria interpretao acerca do conflito que o ops aos antioquenos e que foi suscitado, ao que tudo indica, por uma grave falha de comu-nicao entre o poder imperial e a populao.

    Um exemplar do Misopogon foi afixado no Tetrapilo dos Elefantes, arco triunfal que supor-tava uma quadriga puxada por tais mamferos. Segundo o relato de Malalas, o monumento situava-se na Regia, a avenida que conduzia en-trada do complexo palacial do Orontes (Chroni-con, 13, 19). De fcil acesso, o Tetrapilo ade-quava-se bastante bem publicidade que Juliano desejava conferir obra (Downey 1961: 393-4). Cpias do Misopogon foram certamente enviadas s principais cidades do Imprio, de maneira

  • 14

    A cidade representada pelo poder imperial: Juliano e a censura populao de Antioquia no Misopogon. R. Museu Arq. Etn. Supl., So Paulo, n. 18, p. 11-18, 2014.

    que o texto era de amplo conhecimento, tendo sido citado por Amiano Marcelino, Gregrio de Nazianzo, Eunpio, Scrates e Sozomeno, alm de Libnio. Sobre a sua repercusso, logo aps Juliano deixar a cidade, Libnio escreveu duas oraes, uma destinada ao imperador (Or. XV) e outra aos seus concidados (Or. XVI), nas quais os exortava reconciliao. Receosos da deci-so de Juliano de no mais retornar a Antioquia aps a campanha da Prsia, a cria se apressa em enviar uma embaixada a Litarba a fim de demover o imperador, que j teria eleito Tarso como sua nova residncia (Van Hoof & Van Nuffelen 2011). Os antioquenos, ou ao menos a elite local, pareciam assim tomar conscincia do quanto haviam desagradado o imperador, que os deixou merc de Alexandre de Helipo-lis, o recm-nomeado consularis da Sria, perso-nagem reputado como irascvel e implacvel na cobrana dos impostos (Petit 1955: 117).

    Scrates, um cronista cristo do sculo V, menciona, na sua Histria Eclesistica (III, XVII), que por meio do Misopogon Juliano teria lanado um estigma indelvel sobre Antioquia e seus habitantes, sugerindo assim que o texto teria gerado ou ao menos reforado uma imagem de-preciativa da cidade. Mas qual seria o teor dessa imagem contida no Misopogon? Numa aprecia-o geral, possvel perceber que a principal censura de Juliano refere-se ao apego excessivo dos antioquenos a tudo aquilo que diz respeito s modalidades de entretenimento pblico, um dos pressupostos da vida urbana sob o Imprio Romano. Em sua opinio, Antioquia constitua um exemplo extremo de polis tryphosa (Mis. 6), ou seja, de uma polis refm da tryph, vocbulo que pode ser traduzido como moleza, de-licadeza, voluptuosidade, indolncia ou mesmo humor desdenhoso e altivo, traos da personalidade de indivduos inclinados cal-nia, insolncia e devassido, tais como os histries, os bbados e os glutes (Saliou 2011: 153). Muito embora, em algumas circunstn-cias, a tryph pudesse adquirir uma conotao positiva, exprimindo a alegria de se viver numa cidade plena de conforto e de bem-estar, como celebra Libnio em seu panegrico de 356 (Silva 2011), a tryph, de modo geral, era empregada como um rtulo contra aqueles que se deixavam

    seduzir pelos prazeres da cidade e que, portanto, careciam de autocontrole, de sobriedade e de decncia. Acerca disso, uma das crticas mais cidas de Juliano versa sobre a predileo dos antioquenos pelas performances cnicas e pelas competies do hipdromo. Fazendo o elogio da prpria austeridade, o imperador se gaba de sempre ter evitado o teatro (Mis. 4) e de detestar os ludi circenses (Mis. 5), lies que teria aprendi-do com o seu preceptor, Mardnio, responsvel por instru-lo no gosto pelos clssicos, afastando--o assim das pantomimas (Mis. 21), ou seja, dos solos de dana dramtica bastante apreciados poca pelos habitantes de Antioquia, que se repartiam em claques ruidosas para torcer pelos bailarinos. Tomando o teatro como expoente da tryph, Juliano compara a conduta dos antioquenos dos celtas e germanos, com os quais havia convivido durante a campanha das Glias. Afeitos frugalidade e simplici-dade (rusticitas), assim como o imperador, esses povos no poderiam, naturalmente, apreciar os ludi theatralis, que reputavam como grotescos e indecentes, principalmente devido encenao do cordax (Mis. 30-31), um estilo de dana lasciva em louvor a rtemis que teria sido incorporado pelos bailarinos s apresentaes de pantomima (Jimnez Snchez 2003: 117).

    A principal razo pela qual Juliano comba-tia com tanta veemncia o teatro, tendo inclu-sive se recusado a comparecer, em Antioquia, s encenaes, como ele mesmo declara (Mis. 38), era de fundo religioso. Juliano desprezava o teatro no apenas pelo fato de este corromper a personalidade dos indivduos, incentivando-os prtica de atos indecorosos, mas de atentar contra a dignidade dos deuses, pois nele os atores zombavam publicamente de Hracles e de Dioniso. Na avaliao do imperador, o teatro de seu tempo havia sido esvaziado por completo do ethos sagrado que outrora possua, desconec-tando-se do culto aos deuses e adquirindo um matiz sacrlego, mpio. Numa carta ao sacerdote Teodoro, escrita em janeiro de 363, quando ainda se encontrava em Antioquia, Juliano con-fessa que, se fosse possvel banir dos teatros a indecncia de modo a restitu-los, purificados, tutela de Dioniso, no hesitaria em o fazer, mas, diante das circunstncias, recomendava expres-

  • 15

    Gilvan Ventura da Silva

    samente aos sacerdotes pagos que evitassem os espetculos teatrais (Ep. 89b, 304). Consideran-do o teatro uma atividade ofensiva aos deuses, Juliano o transformava em algo que, ao menos em meios pagos, ele nunca havia sido, ou seja, um vetor de poluio capaz de romper os liames entre os deuses e a polis. Aqui no se trata mais de apenas qualificar os atores e atrizes como infames, tendncia j bem consolidada entre os juristas romanos do perodo imperial (Perea Ybenes 2004: 33-34), mas de condenar os ludi theatralis e o recinto que os abrigava como uma ameaa sacralidade do solo urbano.

    No intento de demonstrar como Antioquia era a anttese das hierai poleis, ou seja, das cida-des sagradas que veneravam as divindades, a exemplo de Emesa (Mis. 28; 33), Juliano acusa os antioquenos de negligenciar o cuidado com os cultos e os templos. Ao longo de toda a obra, vemos assim delinear-se uma tenso permanente entre as aspiraes ascticas de Juliano, imbudo da misso de edificar espiritualmente a polis, e a predileo dos antioquenos pela pndega, pelos mimos e espetculos, sinais explcitos de degradao (Mis. 8; 14; 27). Nessa tarefa de reintroduzir a cidade na esfera do sagrado, Juliano se apresenta como um devoto obstinado dos deuses, algum que no perde a oportuni-dade de frequentar os templos, mesmo quando a populao se encontra em festa. O fervor da sua devoo ultrapassava a do simples crente, aproximando-o do estatuto de hierofante, mais um motivo de zombaria por parte dos antioque-nos, que o censuravam pela excessiva satisfao com que portava os objetos do culto, em vez de delegar a tarefa a um sacerdote de status infe-rior, como registra Amiano Marcelino (22, 14). Ambicionando incutir nos antioquenos uma rigorosa disciplina espiritual, exercit-los numa ascese coletiva, poderamos mesmo acrescentar, Juliano se recusava a patrocinar os jogos e os festivais, impedindo assim o congraamento de todos os setores que compunham a polis. Den-tre os excludos da cidade de Juliano contavam--se os cristos, e isso por um motivo bastante peculiar. Sendo a priori um espao de convvio entre homens e deuses, Antioquia no poderia comportar um culto como o dos adeptos de Cristo, responsveis por profanar, com seus

    ritos em honra aos mortos, o solo consagrado da cidade. Talvez por influncia de Mximo de feso, um dos seus principais conselheiros, Ju-liano se posiciona abertamente contra o hbito, que comea a se tornar corrente em seu tempo, de se realizar cortejos fnebres durante o dia, o que no apenas expe os espectadores ao risco de contaminao pelos cadveres, mas tambm profana os templos, neutralizando a eficcia dos rituais (Ep. 136b).

    Contrapondo-se cosmoviso crist segun-do a qual no haveria nenhuma incompatibili-dade entre os cadveres e a vida urbana, a ponto de santos e mrtires terem sido entronizados como protetores espirituais da polis, o que lhes permitia habitar o territrio intra muros, Juliano busca reforar os antigos cdigos do paganismo, que proibiam o livre trnsito dos defuntos. Tal constatao poderia nos induzir a supor, como querem alguns, que Juliano desejasse em certa medida reviver, restaurar ou reabilitar um paganismo moribundo diante de um cristianis-mo j consolidado. Todavia, uma leitura mais atenta da imagem de Antioquia que ressalta do Misopogon e de outros textos contemporneos nos desautoriza a concluir que Juliano tenha sido to somente um restaurador dos cultos ancestrais. Na avaliao de Soler (2006: 43) e Limberis (2000: 378), Juliano teria sido antes um inovador em assuntos religiosos, uma vez que, por intermdio da sua atuao poltico--filosfica, pretendeu oferecer uma nova face ao paganismo. Para tanto, no hesitou sequer em recorrer a elementos extrados do cristianismo, o que explica, em diversos momentos, a proxi-midade entre as concepes do imperador e as dos cristos. Nesse sentido, como argumenta com propriedade Bowersock (1996), ao lidarmos com o paganismo tardio no nos encontramos, a princpio, diante de um sistema religioso ineficaz, obsoleto e destinado a desaparecer por conta do avano do cristianismo, nem muito menos diante de um sistema religioso refratrio inovao, renovao e s adaptaes reque-ridas pelo seu tempo. Antes, devemos estar atentos para captar a prpria historicidade das crenas e prticas que costumamos reunir sob a categoria de pags, pois no raro a unidade sugerida pelo vocbulo tende a ocultar a extre-

  • 16

    A cidade representada pelo poder imperial: Juliano e a censura populao de Antioquia no Misopogon. R. Museu Arq. Etn. Supl., So Paulo, n. 18, p. 11-18, 2014.

    ma diversidade e plasticidade daquilo que foi o paganismo antigo, um sistema religioso aberto a toda a sorte de emprstimos, inclusive de natu-reza crist, como a reforma religiosa de Juliano nos permite concluir. Dentre tais emprstimos, um dos mais evidentes foi a noo de philanthro-pia, ou seja, o exerccio da caridade para com os pobres, tema que o imperador desenvolve extensamente na carta ao sacerdote Teodoro (Ep. 89b). Num contexto em que as autorida-des episcopais, ao liderar as redes de assisten-cialismo, comeavam a controlar uma massa annima de pobres e indigentes, uma poderosa base de apoio para o trabalho de cristianizao da cidade, Juliano prope uma contraofensiva em moldes pagos, exortando os sacerdotes ao cuidado com os pobres e prisioneiros, que deve-riam ser protegidos da ganncia alheia.

    A conexo entre o pensamento de Juliano e a doutrina crist aflora, igualmente, na maneira pela qual o imperador se refere a Antioquia, como vemos no Misopogon. Em sua opinio, Antioquia no seria apenas uma cidade tryphosa, como tantas outras do Imprio, mas uma cidade marcada pela impiedade, pela falta de respeito para com os deuses. Juliano condena o estilo de vida dos antioquenos, sua frequncia ao teatro e ao hipdromo, seus festivais, seu gosto pelas comemoraes em praa pblica, no como um desvio moral prprio de indivduos de categoria inferior, mas como uma afronta majestade divina. Para Juliano a cidade deveria aspirar santidade, elevao espiritual, o que exigia a rejeio a tudo aquilo que at ento a caracterizava em prol da autopurificao. Talvez no fosse incorreto supor que, diante da cristia-nizao da cidade antiga, processo cada vez mais ntido em meados do sculo IV, a reforma do paganismo idealizada por Juliano comportasse a

    helenizao da cidade, desde que esta heleni-zao no seja compreendida to somente como um bloqueio atuao dos cristos no recinto urbano, como uma reabilitao dos cultos an-cestrais da polis ou como o restauro dos templos e santurios. De fato, pensar nos termos de uma helenizao da cidade greco-romana sob Juliano pensar na configurao da polis como uma cidade hiertica e asctica na qual as redes tradicionais de sociabilidade urbana tendem a ser suplantadas por um estilo de vida calcado na frugalidade, na simplicidade, no autocontrole, mas, acima de tudo, numa atitude de permanen-te venerao. Levando em conta que Juliano buscava erodir a influncia crist sobre a vida pblica e reatar os laos que uniam a cidade ao mundo divino, tal reverncia no poderia restar oculta no interior dos templos. Por esse motivo, a devoo de Juliano assume uma dramaticidade hiperblica, com a multiplicao de procisses, rituais e sacrifcios na expectativa de mobilizar a populao em prol da causa dos deuses (Limbe-ris 2000: 380). Antioquia, no entanto, parecia resistir s investidas reformadoras do impe-rador, do mesmo modo que resistir, alguns anos depois, s pretenses de Joo Crisstomo. Permanecendo unidos a tudo aquilo que, sob o Imprio, havia caracterizado o modus uiuendi urbano, os antioquenos se recusavam a abando-nar a praa pblica para se recolher, em orao, nos templos. Por meio da dana, da algazarra e, em especial, do deboche, a populao desafiava as propostas de enquadramento autoritrio do seu cotidiano, preferindo prestar culto aos seus deuses como por sculos havia feito, ou seja, com alegria e espontaneidade, o que a levava a ignorar o fervor religioso nutrido por um imperador-filsofo atormentado pela busca da pureza, da simplicidade e da perfeio.

  • 17

    Gilvan Ventura da Silva

    SILVA, G.V. The city represented by the imperial government: Julian and his rebukes against the Antiochene population in the Misopogon. R. Museu Arq. Etn. Supl., So Paulo, n.18: 11-18, 2014.

    Abstract: Antioch, the metropolis of the Syrian province, was, in the Later Roman Empire, a noticeable city due to the exuberance of its religious festivals, the quality of its theatrical performances and the intense movement of its in-habitants, who night and day attended the avenue of the colonnades surround-ed by porticoes and monuments, in a kind of interaction which sometimes resulted in demonstrations against the local and imperial authorities. In this article, we intend to analyze the clash between Julian and the Antiochenes dur-ing his sojourn in the city between 362 and 363, when he organized the Persian campaign. In order to do that, we exploit as main source the Misopogon, a satire in which Julian admonishes fiercely the Antiochenes, considered by him lustful and indolent people. By means of such rebukes, we can recreate to a certain

    extant the Julians representation regarding the city and its population.

    Keywords: Later Roman Empire Representation Antioch Julian Misopogon.

    AMMIANUS MARCELLINUS 1986 The Later Roman Empire (A.D. 354-378).

    Selected and translated by Walter Hamil-ton. London: Penguin Books.

    JULIANO 1982 Contra los galileos. Cartas y fragmentos. Testi-

    monios. Leyes. Introduccin, traduccin y notas por Jos Garca Blanco & Pilar

    Jimnez Gazapo. Madrid: Gredos.JULIEN

    1964 Oeuvres compltes. Texte tabli et traduit par Christina Lacombrade. Paris: Les Belles Lettres. t. II, 2e. partie.

    DOWNEY, G.1961 A history of Antioch in Syria. Princeton:

    Princeton University Press.1939 Julian the Apostate at Antioch. Church

    history, 8 (4): 303-315.GLEASON, M. W.

    1986 Festive Satire: Julians Misopogon and the

    LIBANIUS 1969 Selected orations. Translated by A. F. Norman.

    Cambridge: Harvard Univesity Press. v. 1.MALALAS

    1986 The chronicle of John Malalas. A translation by Brian Croke et al. Melbourne:

    Australian association for Byzantine Studies.

    SOCRATES2004 The ecclesiastical history. In: Schaff, P.;

    Wace, D.D. (Orgs.) Nicene and post-nicene fathers. Peabody, Hendrickson Publishers, v. 2, 2 srie: 1-178.

    New Year at Antioch. The Journal of Roman Studies, 76: 106-119.

    JIMNEZ SNCHEZ, J. A. 2003 El emperador Juliano y su relacin con los

    juegos romanos. Polis, Revista de ideas y formas polticas de la Antigedad Clsica, 15:

    105-127.

    Referncias bibliogrficas

    Documentao primria impressaDocumentao primria impressa

    Obras de apoio

  • 18

    A cidade representada pelo poder imperial: Juliano e a censura populao de Antioquia no Misopogon. R. Museu Arq. Etn. Supl., So Paulo, n. 18, p. 11-18, 2014.

    LEFEBVRE, H. 2004 A revoluo urbana. Belo Horizonte: Edito-

    ra UFMG.LIEBESCHUETZ, J. H. W. G.

    1972 Antioch: city and imperial administration in the Later Roman Empire. Oxford:

    Clarendon Press.

    LIMBERIS, V. 2000 Religion as the Cipher for Identity: The

    Cases of Emperor Julian, Libanius, and Gregory Nazianzus. The Harvard Theological Review, 93 (4): 373-400.

    MARCONE, A. 1984 Un panegirico rovesciato: pluralit di

    modelli e contaminazione letteraria nel

  • 19

    R. Museu Arq. Etn. Supl., So Paulo, n. 18, p. 19-27, 2014.

    Introduo

    Este artigo inicia-se com a apresentao do ponto de vista adotado, numa perspectiva de Histria da Cincia que enfatiza suas ligaes com as circunstncias sociais e polticas (pace Thomas Patterson). Em seguida, so explicitados os contextos de investigao, em particular como parte de um projeto apoia-do pelo CNPq (bolsa de produtividade) de estudo da economia romana e com apoio do Centro de Estudos da Interdependncia Pro-vincial na Antiguidade Clssica, em parceria com o Professor Jos Remesal, assim como a colaborao com Airton Pollini e que resultou na publicao de Mercato, Le commerce dans les

    mondes grec et romain (Paris, Belles Lettres, 2012). O estudo da economia antiga remonta ao sculo XIX e est inserido nas discusses resultantes do capitalismo, mas tambm do nacionalismo e do imperialismo (pace Bruce Trigger (2004) e Margarita Daz-Andreu 2007). A admirao pela racionalidade capitalista levou identificao do mundo antigo ao moderno (modernismo) ou sua dissociao (primitivismo).

    Muito embora vrios conceitos empregados por Rostovtzeff (1926) tenham sido duramente criticados por se aproximarem muito do moder-no capitalismo, sua nfase na Arqueologia sem-pre chamou ateno daqueles que discordam dos modelos de Finley (1973) desenvolvidos a partir do conceito de cidade consumidora, proposto por Max Weber (1976). Estes modelos, de matriz weberiana, partem de uma concepo normativa e homogeneizadora das sociedades antigas e, nos ltimos anos, no contexto do

    Consideraes sobre a contribuio da Arqueologia da Btica para o estudo da economia romana

    Pedro Paulo A. Funari*

    FUNARI, P.P.A. Consideraes sobre a contribuio da Arqueologia da Btica para o estudo da economia romana. R. Museu Arq. Etn. Supl., So Paulo, n.18: 19-27, 2014.

    Resumo: O artigo inicia-se ao propor o uso do estudo arqueolgico da Btica para discutir como a Arqueologia relevante para discutir os modelos interpretativos. Em seguida, volta-se para a provncia romana desde a conquista romana inicial, passando pelo perodo republicano tardio e, depois, pelo Princi-pado. Ressalta o papel das descobertas arqueolgicas na observao de relaes econmicas complexas. Isto possvel pelas pesquisas de campo na Espanha meridional, mas tambm alhures, em particular pelo estudo de evidncias ma-teriais como as nforas encontradas em todo o Imprio. Conclui-se ao enfatizar o papel central da Arqueologia para o estudo da economia antiga.

    Palavras-chave: Btica Economia antiga Modelos interpretativos.

    (*) Universidade Estadual de Campinas.

  • 20

    Consideraes sobre a contribuio da Arqueologia da Btica para o estudo da economia romana. R. Museu Arq. Etn. Supl., So Paulo, n. 18, p. 19-27, 2014.

    sincrnico das diversas atividades econmicas minerao, oleicultura, triticultura e assim por diante como parte de um sistema articulado de explorao de recursos. Em outro nvel, com-preende a observao e explicao das transfor-maes na esfera produtiva, o que implica uma periodizao das principais alteraes estrutu-rais. Ambos os momentos, portanto, envolvem uma anlise das relaes sociais de produo e apropriao de excedentes a nvel regional e, igualmente, no contexto da dicotomia poltica e econmica entre periferia e centro do domnio romano.

    O contexto ambiental

    A regio produtora insere-se na extensa plancie do Guadalquivir, o mais meridional dos grandes rios atlnticos da Pennsula Ibrica, delimitado pelas cadeias montanhosas de Sierra Morena, Sierra Nevada e Sub-Btica. Este vale, de formao terciria, estende-se por cerca de 680 km, desde sua nascente na Sierra de Segura at sua foz dupla, prxima a Cdiz. Navegvel na antiguidade por barcos de grande calado at Sevilha e da at Crdoba por barcos fluviais, o Guadalquivir possui 806 afluentes, a maioria dos quais na margem esquerda, proveniente da cadeia Sub-Btica e de Sierra nevada. Tal fato explica a assimetria da plancie, estreita ao Norte, onde a Sierra Morena se aproxima do rio, e ampla ao sul, atingindo uma largura entre 40 e 55 km. O vale, formado por solos argilosos miocnicos, favorvel ao cultivo de cereais, vinhedos e olivais. Estes ltimos, em particular, so favorecidos pelo relevo colinar da campina ao sul, tornando a regio o maior produtor mundial de azeite da atualidade.

    As estratgias da implantao romana

    A ocupao romana do vale do Guadal-quivir, em especial da regio entre Sevilha e Crdoba, apresenta estratgias diferenciadas de explorao de recursos, relacionadas com fatores diacrnicos e sincrnicos. Em primeiro lugar, a explorao de recursos da regio vincula-se a

    ps-modernismo, tm sido muito criticados por sua falta de ateno heterogeneidade e diversidade. A economia antiga, neste contexto, encarada como uma totalidade, homognea, caracterizada por relaes pessoais (face a face), fundadas na tica contrria ao esforo, conside-rado como ponos, a partir de um ethos urbano, masculino, de elite e, no limite, representado por alguns pensadores antigos. A insatisfao com esses modelos normativos deriva tanto de consideraes epistemolgicas como empricas.

    No sculo XX, desde Mikhail Rostovtzeff em particular, o estudo da cultura material para a compreenso da economia antiga agregou ao debate, de forma decisiva, a Arqueologia. Os modelos primitivistas ancorados na tradio literria, como em Moses Finley, foram contras-tados a partir da dcada de 1960, com a profu-so de estudos arqueolgicos e no contexto da contestao crescente aos modelos normativos de cultura e sociedade, que sustentavam e sustentam modelos que enfatizam a oposio entre racionalidade capitalista moderna e a irracionalidade econmica dos antigos, envolvi-dos apenas nas relaes de status e num mundo de imprecises (Koyr 1967). O estudo arqueo-lgico da Btica fornece elementos para ques-tionar essas vises, em dois mbitos: o padro de assentamento de fazendas, olarias, fbricas de salaes; e o estudo das nforas na prpria Btica e nos lugares aos quais chegaram, seja no Mediterrneo, seja no Limes. As publicaes a respeito multiplicaram-se desde os seus princ-pios, na dcada de 1970, com uma produo imensa e variada.

    A Btica e sua economia

    A economia da Espanha Meridional Roma-na tem sido abordada com particular destaque nos ltimos anos (Remesal 2011). Uma maior ateno foi dada, devido prpria situao dos estudos a respeito, compilao, crtica e des-crio detalhada dos testemunhos disponveis. Podemos, a partir dos resultados j alcanados, propor o deslocamento da questo da apresen-tao dos dados para sua articulao e estrutura-o. Isto significa estudar o inter-relacionamento

  • 21

    Pedro Paulo A. Funari

    estratgias decorrentes de penetrao romana que apresenta ritmos e caractersticas diferentes no correr do tempo. Em seguida, e como fen-meno paralelo, a apropriao de recursos efetua--se num contexto de relaes sociais especficas, cujas contradies assumem formas particulares no processo contnuo de incorporao do vale do Guadalquivir no mundo romano.

    A implantao romana desenvolveu-se em duas fases com caractersticas distintas. De in-cio, a ocupao foi extrativa, apresentando uma dualidade constante entre o elemento externo e explorador romano e a populao indgena. A partir da ampliao do mercado mundial no final da Repblica e incio do Principado, predomina, aos poucos, um processo de coloni-zao que desloca a oposio ao eixo romano/indgena para o eixo proprietrio/expropriado. O estudo desse processo permite observar as caractersticas essenciais das estratgias especfi-cas de apropriao e explorao dos recursos da regio.

    A explorao de recursos

    A primeira fase de ocupao romana tem incio em fins do sculo III a.C., no contexto da luta contra os pnicos. Num primeiro momen-to, a atuao militar dos romanos explica-se pela necessidade de retirar uma importante retaguar-da para as tropas de Anbal, impossibilitando o recrutamento de soldados e, principalmente, apropriando-se das minas que constituam uma significativa fonte de financiamento da guerra. Assim, o incio da penetrao romana, voltada para o controle militar das minas andaluzas, fornece a chave para a compreenso das ca-ractersticas bsicas dessa larga primeira fase, ressaltando o carter impositivo e extrativo da estratgia romana de ocupao.

    Desde o incio a presena romana apresenta uma dupla estratgia de obteno de recursos, visando, ao mesmo tempo, a apropriao direta e indireta de matrias-primas e produtos agrco-las. O avano romano tinha por objetivo, antes de tudo, a obteno de metais, nico produto citado regularmente pela tradio textual como tributo exigido (vejam-se os dados de Tito Lvio

    entre 206 e 168 a.C.). A explorao das minas da Prouincia Hispania ulterior, constituda em 197 a.C. (Tito Lvio, 32, 28, 11) estava sob a direo de elementos romanos e itlicos que consti-tuam o ncleo da populao imigrante. Em termos de ocupao espacial do vale do Gua-dalquivir, apenas a margem direita concentrava esses primeiros ncleos ligados, de uma forma ou de outra, extrao e exportao de metais provenientes de Sierra Morena. Outra caracte-rstica marcante da colonizao romana neste perodo seu aspecto castrense, relacionado diretamente com a proteo das minas contra os ataques de lusitanos e celtiberos. O primeiro ncleo de ciues romani, Itlica (atual Santiponce) foi resultado da reunio de soldados feridos na batalha de Ilipa (Alcal del Rio, ao norte se Sevilha) em 206 a.C., por Cipio.

    Um segundo aspecto da explorao de recursos por parte dos romanos diz respeito apropriao indireta do excedente de produo indgena, que efetuado pela tributao (stipen-dium desde 206 a.C.) sem alteraes profun-das no aparato produtivo local, cristalizado pela diferenciao ideolgica e jurdica entre o ele-mento indgena e o romano. A persistncia de formas de organizao social local nas cidades e comunidades manifesta-se bastante tardiamen-te (cf. Csar, Bell. Ciu., 50: Interim Oscenses et Calagurritani, qui erant com Oscensibus contributi, mittendi ad eum (sc. Caesarem) legatos...).

    Tal fato explica a contnua importncia da criao de gado e de culturas locais, como a de gros, cuja produo no era prioritariamente destinada ao mercado. Em termos de implanta-o na paisagem, isto implicava a continuidade da ocupao local na margem esquerda, domi-nada pela plancie btica e que fornecia condi-es ideais para o exerccio da transumncia (em combinao com a Sierra Morena ao Norte) e para o cultivo de trigo nos fundos do vale.

    Ambas as formas de explorao de recur-sos direta nas minas e indireta pelos tributos condicionavam as outras esferas de atividade social levando a uma polarizao colonizador/indgena. Em termos polticos, dois fenmenos paralelos e contraditrios separavam e uniam os grupos tnicos presentes. A diviso da regio em ncleos de romanos e itlicos localizados na

  • 22

    Consideraes sobre a contribuio da Arqueologia da Btica para o estudo da economia romana. R. Museu Arq. Etn. Supl., So Paulo, n. 18, p. 19-27, 2014.

    margem direita do Guadalquivir opunha-se ao vazio jurdico dos indgenas da plancie btica. Essa oposio de estatuto legal refletia-se dire-tamente na forma de apropriao do excedente (uectigal certum = tributo fixo, Ccero, Pro Balbo, 41), igualando os espanhis ao tradicional inimigo pnico (Ccero, In Verrem, 2, 3, 13, 6: ceteris (sc. Prouinciis) aut impositum uectigal est certum, quod stipendiarium dicitur, ut Hispanis et pleerisque Poenorum quasi uictoriae praemium ac poena belli).

    Por outro lado, desde o incio da penetra-o romana uma aliana entre os grupos sociais dominantes indgenas e o colonizador opunha--se a essa diferenciao tnico/poltica. J com a fundao da primeira colnia romana no vale do Guadalquivir, em 152 a.C., podemos perce-ber a comunho de interesses entre os coloni-zadores e a elite, que admitida em Crdoba (Estrabo, 3, 2, 1). Os interesses econmicos e militares comuns uniam nativos e romanos. A presena e atuao dos exrcitos romanos pos-sibilitavam a defesa da regio das incurses de lusitanos e celtiberos e a ligao com o mercado mediterrneo permitia uma crescente dissoluo das formas de produo de subsistncia, fortale-cendo a aristocracia local. Essa aliana de gru-pos sociais mostra-se, com clareza, no perodo das Guerras Civis, com a formao dos partidos cesaristas (BC, 2, 20, 1-8) e pompeiano (BC, 2, 20, 4: B. Hisp., 1) na regio, dos quais participa-va a aristocracia indgena. Outro exemplo o nmero crescente de cavaleiros andaluzes (BC, 2, 22; B. Hisp., 39). Elementos dominantes nati-vos identificam-se cada vez mais com o coloniza-dor romano, como afirma Estrabo (3, 2, 15).

    A integrao do vale do Guadalquivir no mercado mundial

    A primeira fase caracteriza-se, portanto, por uma integrao constante das diversas esferas da vida social, dominada, por um lado, pela aliana entre romanos e elite indgena e, por outro, pela crescente integrao da regio no mercado mediterrnico. Esta ltima tendncia dependia da estabilidade do setor comercial, empreendi-da por Pompeu, no combate pirataria e, de

    forma mais abrangente, por Augusto. Alm do estabelecimento da paz interna, a ao estatal teve grande importncia no favorecimento do comrcio interprovincial. De um lado, construi--se uma infraestrutura, formada pelo sistema de uillae destinadas proteo do territrio e pelo desenvolvimento dos transportes marti-mos e fluviais (construo de diques e eclusas que asseguravam a navegao no Guadalquivir, a partir de Jlio Csar, atendendo ao crescimen-to dos mercados urbanos. Esta poltica visava, em particular, o bom funcionamento do abas-tecimento urbano e militar, que compunha o principal consumidor de mercadorias no Imp-rio. De outra parte, a oposio tnica e poltica entre romanos e provinciais atenuou-se durante todo o primeiro sculo d.C., at a ascenso ao principado de elementos provinciais bticos a partir de Trajano. Tal poltica de integrao fa-voreceu o desenvolvimento da comercializao, em larga escala, de produtos como vinho, azeite e salmouras.

    Mudanas na produo

    Na Prouincia Romana ulterior Baetica ocorre, como consequncia, uma transformao da explorao de recursos, acompanhada de uma forte imigrao itlica, de carter eminentemen-te civil concentrando-se desde cedo, em empre-endimentos agrcolas voltados para a produo de bens de consumo, antes de tudo azeite e vinho.

    Embora as minas de ouro, prata (Estrabo, 3, 2, 3), cobre, ferro (Estrabo, 3, 2, 8), chumbo e estanho continuassem ativas, possvel que parte do capital aplicado em investimentos na Sierra Morena se dirigisse para a plancie btica, propcia ao cultivo da oliveira. De qualquer forma, a importncia relativa do metal no total das exportaes bticas decai de frente ao azeite, vinho e salmouras.

    Tambm a criao de gado adquire caracte-rsticas diversas a partir do Principado, devido intensificao da comercializao de cavalos, j numerosos em fins da Repblica (Jlio Csar, bel. Afric., 501; Bel. Hisp., 2) e de l, de exce-lente qualidade (Juvenal, 12, 40-42; Marcial, 5,

  • 23

    Pedro Paulo A. Funari

    37, 3; 8, 28, 26; Estrabo,2, 26). Nas regies ao norte de Crdoba o gado poderia fornecer, para as uillae rusticae da regio (que no produziam nforas) couro para a confeco de odres desti-nados ao azeite. Em termos gerais, o movimento transumante de gado de Sierra Morena para a plancie btica adquire uma ligao orgnica com o desenvolvimento agrcola e urbano da regio, integrando-se, em certa medida, no ciclo do mercado regional (cf. os artesos, ligados ao trabalho de matrias-primas provindas da pe-curia e encontrados nas cidades: centonarii em Hispalis, CIL, II 1167; uestiarius em Corduba, CIL, II, 2240; lanificus em Tucci, CIL II, 1699).

    O cultivo de cereais, em particular de trigo, mas tambm de cevada (Estrabo, 2, 26) s margens do Guadalquivir, devia obedecer a dois delimitados fisiograficamente. A plancie btica, em particular a Veja de Carmona, conhecia uma plantao monocultora que abastecia de cereais os mercados urbanos da Provncia (Dio Cssio, 43, 33 Carmona; Jlio Csar, B.B., 2, 18) e exportava mesmo, em certa quantidade, para algumas regies do Imprio (D. Cssio, 60, 24, 15 Mauritnia). Varro, que conhecia em detalhe a triticultura da Btica, refere-se a dois instrumentos utilizados, provavelmente, no cul-tivo de trigo na regio, o tribulum e o plostellum punicum (RR, 1, 52, 1). Nas pequenas elevaes da mesma plancie, entre o vale do Corbones e a margem direita do Genil ocorria outro sistema de explorao. O cultivo de trigo (Plnio, 18, 95) nestas terras frteis, em conjuno com o plan-tio de olivais, atestado pela tradio textual (Plnio, 17,94) e pelos restos de ms encontra-dos nesta regio e relacionava-se ao abastecimen-to do mercado local ou aldeo da plancie como uma atividade subsidiria atividade agrcola exportadora.

    Das duas principais culturas voltadas para o comrcio, a viticultura tem sido menos estudada e, como resultado, sua distribuio na provncia permanece, em grande parte, desconhecida. Todo o vale do Guadalquivir propcio ao cultivo da vinha, como atesta sua expandida distribuio contempornea. Cdiz a nica regio mencionada pela documentao epigrfica (CIL, XV, 4570) e apenas nesta rea surgiram, nos ltimos anos, evidncias materiais

    de produo vinria. A tradio textual limita-se a mencionar a qualidade (Columella, 3, 2,19 vinho de segunda qualidade) e quantidade de vinho btico (Estrabo, 3, 4, 16; Justino, 44, 1). Um estudo da distribuio dos restos de nforas vinrias bticas, Haltern 70 e Dressel 28 no vale do Guadalquivir permitiria precisar a localizao dessa cultura. O mesmo pode ser dito quanto exportao do vinho btico que, embora pouco estudado, permite entrever uma distribuio ocidental do produto, abrangendo Roma e o Limes renano.

    A oleicultura, em contrapartida, apresenta uma abundncia de testemunhos textuais e ar-queolgicos que permite precisar suas principais caractersticas. Embora o zambujeiro estivesse presente na regio, o cultivo da oliveira, durante a primeira fase de colonizao, era praticado apenas em pequena escala (Jlio Csar, B. Hisp., 27,1). A exportao do azeite btico desenvol-veu-se, durante o Principado, graas criao de um mercado internacional e s transformaes na forma de explorao das provncias pelos romanos. O vale Guadalquivir favorvel oleicultura (Columella, 5, 8, 5) e esta adquiriu a primazia de toda a produo agrcola da regio j em meados do sculo I a.C. (Plnio, 17, 93: non alia maior in Baetica arbor). A qualidade do azeite btico, mencionada por Plnio (15, 3, 8) e por Pausnias (10, 32, 19), deriva da adequao do solo (Plnio, 17, 31), do relevo (Columella, 5, 8, 5) e de outros fatores geogrficos olei-cultura, permitiu sua penetrao nos mercados internacionais com rapidez e facilidade.

    As variaes na concentrao de olivais, pre-sentes em todo o vale do Guadalquivir (Estcio, 2, 7, 28), relaciona-se com mudanas fisiogr-ficas regionais. Apenas ao sul de Sevilha, com a presena de pntanos, e na Sierra Morena, devido s suas cristas relativamente abruptas, as condies no se apresentavam propcias oliva [Columella, 5, 8, 5: neque depressa loca, neque ardua amat (sc. Olea)]. As pequenas elevaes da plancie btica, especialmente entre o rio Cor-bones e Crdoba, com seu solo pesado, cons-tituam um terreno favorvel olivicultura. Os vestgios arqueolgicos de poca romana confir-mam a presena de lagares desde a provncia de Jan, passando pelo vale do Genil, at Sevilha,

  • 24

    Consideraes sobre a contribuio da Arqueologia da Btica para o estudo da economia romana. R. Museu Arq. Etn. Supl., So Paulo, n. 18, p. 19-27, 2014.

    e uma concentrao de olarias anforrias entre esta ltima e Crdoba. A ausncia de oficinas cermicas de Dressel 20 na regio ao norte de Crdoba. Em uma regio produtora e, provavel-mente, exportadora de azeite (Marcial, 12, 631-632; 981-988) explica-se pela no navegabilidade do Guadalquivir, em poca romana, a partir de Crdoba. Nosso conhecimento das caracte-rsticas da produo olecola apresenta certas limitaes, sobretudo no que se refere s reas no prospectadas por Ponsich (Remesal 2011). Alm disso, foram escavadas apenas duas olarias anforrias e nenhuma uilla rustica, enquanto a tradio literria refere-se de forma apenas fragmentria ao cultivo e feitura do azeite btico (Isidoro, Etym., 11, 1 ,68).

    Possumos, por outro lado, evidncias textu-ais e, principalmente, materiais da distribuio e comercializao de azeite da regio. A documen-tao epigrfica abundante, referindo-se aos diffusores olearii ex Baetica (CIL, II, 1481; CIL, VI, 29722; CIL, XII, 714, atuantes em Astigi (Ecija), na Glia e em Roma; negotiatores olearii ex Baetica (CIL, VI, 1625 b; Pancieira, 1980:244 negotiatrix) em Roma; um mercator olei hispani ex prouincia Baetica (CIL, VI, 1943) em Roma; e um adiutor praefecti annonae ad oleum afrum et his-panum rescensendum (CIL, II, 1180) em Sevilha. A profuso de referncias (nove inscries) a elementos ligados ao comrcio do azeite btico, bem como sua distribuio, permitem observar no apenas de sua distribuio (ocidental) como sua importncia qualitativa.

    Sobre a extenso das exportaes, entretan-to, as evidncias materiais fornecem elementos ainda mais significativos. Os mercados poten-ciais de azeite btico eram de trs tipos: Roma, abastecida pela annona urbana; o Limes renano, britnico e mauritneo, ligados annona mili-taris, e os centros urbanos do Ocidente. Nos trs casos a distribuio de achados de nforas Dressel 20 comprova sua penetrao macia, em particular em Roma (restos do M. Testaccio, Rodrguez-Almeida 1972) e nos acampamentos castrenses no Reno e no Danbio.

    As pesquisas dos ltimos anos tm de-monstrado que as esparsas informaes textuais referentes presena do azeite espanhol na parte oriental do Imprio (Luciano, Nau., 23)

    e em particular a documentao papirolgica egpcia (Pap. Oxyr, 1924), devem ser considera-das dignas de crdito. As recentes escavaes na Iugoslvia e, sobretudo, a publicao de material epigrfico das nforas Dressel 20 encontradas em stios orientais (em particular Alexandria, Antioquia, Atenas e Corinto) por E. Lyding Will (1984) tm ressaltado a necessidade de uma reconsiderao sobre a tradicional dicoto-mia entre mercados ocidentais e orientais no Alto Imprio, tanto para produtos agrcolas como para a prpria definio de reas de difuso cermica. De qualquer forma, embora no possamos definir quantitativamente a im-portncia desses mercados, deve-se reconhecer que a difuso do azeite btico abrangia uma rea imensa, com uma presena significativa em todo o Ocidente romano.

    Na prpria provncia, essa produo para exportao em larga escala exigiu a criao, ou favoreceu o desenvolvimento, de suas atividades artesanais subsidirias, cuja localizao pode ser precisada. Por um lado, as olarias anforrias, que se concentraram s margens do Guadal-quivir e do Genil pela facilidade de transporte (as nforas pesam at 80 kg) e pela abundncia de matria-prima. A significao econmica e social destas manufaturas no quadro do assenta-mento romano na regio pode ser avaliada pelos resultados obtidos pela escavao de um forno em La Catria (Remesal 2011). Sua capacidade de produo, bastante significativa, permite atestar a importncia desse artesanato para a regio nos meses de atividade da olaria (maio-setembro). A demanda de mo-de-obra para o trabalho nas figlinae coloca a questo da movimentao sazo-nal dos trabalhadores, provavelmente liberados das atividades ligadas oleicultura ou ao cultivo de trigo nas pequenas propriedades, ou mesmo provenientes das reas de corte madeireiro ou de criao de gado na Sierra Morena ou dos estaleiros. Quando a estes, possumos evidncias epigrficas e textuais sobre a existncia, no vale do Guadalquivir, de scapharii, lintrarii e nauicu-larii (CIL, II, 1163; 1168-9). No primeiro caso trata-se da construo naval de grande enverga-dura, predominante na regio de Sevilha, onde penetravam os navios mediterrneos (Estrabo, 3, 2, 3;), e atestado j por Csar (B. Ciuile, 2,

  • 25

    Pedro Paulo A. Funari

    18, 1: Naues longas... complures in Hispali facien-das (Varro) curauit). Rio acima localizavam-se os estaleiros de menor porte, destinados constru-o de barcos pequenos, semelhantes a barcaas fluviais (Estrabo, 3, 2, 3).

    As atividades da regio entre Sevilha e Crdoba, delimitada pela Sierra Morena e pela Sierra Nevada, oferecem um quadro complexo em termos de sua implantao na paisagem. As principais caractersticas da margem direita so a presena de agrupamentos humanos com estatuto poltico de cidade, e em consequncia da pouca extenso da plancie marginal, a con-vivncia da agricultura com atividades ligadas Sierra Morena, como a minerao, criao de gado, abate de rvores e construo naval. Esta margem do rio, menos atacada pela eroso, abriga os principais portos da regio. A plancie btica ou campia domina a margem oposta, possibilitando uma vida agrcola interior mais intensa, articulada em aldeias que se relacionam com as uillae rusticae de seu territrio e com o exterior.

    Duas questes interligadas, de importncia capital para a compreenso da economia e da cultura material do mundo romano, merecem um comentrio particular. A primeira delas refere-se estrutura econmica da agricultura romana durante o Principado.

    Ao nvel da documentao material, um estudo que efetuamos da regio de La Campana

    permite constatar uma grande estabilidade no assentamento desde meados do primeiro scu-lo (sigillata hispnica), de forma ininterrupta, at a antiguidade tardia (sigillata clara D). Esse assentamento caracterizado pelo predomnio de uillae oleicultores com um territrio hipo-ttico calculado pela aplicao dos polgonos de Thiessen considervel (de 500 1500 ha). Parece no se tratar, contudo, de latifndios, com caractersticas de explorao extensiva e autrquica, nem muito menos de pequenas uni-dades geridas por colonos; estas grandes proprie-dades deviam ser trabalhadas por esquadres de escravos e dirigidas por uilici (Columella, 1, 1, 20), pois apenas dessa forma explica-se a ausn-cia de elementos de luxo nas uillae da Campina e a contnua vinculao de sua produo com o mercado externo (documentada pela presen-

    a de lagares). Esta suposio reforada pelo assentamento marginal do Guadalquivir, domi-nado por uillae providas de lagares, luxuosas, de pequenas e mdias demisses provveis, cuja funo intermediria entre as olarias anfricas e as uillae oleiculturas da Campia apresenta-se bastante clara.

    Este predomnio de relaes mercantis, caracterizado pela criao de um marcado pan-mediterrneo desde Augusto, encontra correspondncia na cultura material em geral e na constituio, em particular, de um merca-do unificado para os produtos transportados em nforas. Isto leva-nos segunda questo, referente constatao de Remesal (2011, com literatura anterior) de uma diferena entre a estabilidade morfolgica do tipo Dressel 20 em comparao com a multiplicidade de formas de nforas destinadas ao transporte do azeite btico no Baixo-Imprio (Dressel 23 A e B, El Tejarillo 1, 2, 3). Este fenmeno pode ser compreendido caso observemos a ligao necessria entre a existncia de um mercado pan-mediterrneo e a estabilidade formal dos diversos recipientes. A existncia, por cerca de trs sculos, de um comrcio estvel possibilitou e favoreceu a ma-nuteno de uma tradio artesanal (nas olarias) e de transmisso de mensagens (a respeito do contedo do vaso) para os usurios e consumi-dores.

    A desagregao desse mercado pan-medi-terrneo e o enfraquecimento das estruturas imperialistas de concentrao de recursos em centros urbanos, resultado do fortalecimento da autarquia agrcola de diversas regies do Imprio, ocasionou o desaparecimento de um pblico consumidor unificado. Dessa forma pode-se explicar o surgimento de diversos tipos concomitantes das nforas destinadas ao mesmo produto e a relativa instabilidade na transforma-o morfolgica dos mesmos. A existncia de pblicos consumidores desconectados permite que formas sejam destinadas a mercados locais (caso, talvez, das nforas El Tejarillo 1, 2, 3) e outras a mercados ultramarinos, cada qual com um universo de nforas particular. A existncia de uma forte autoridade estatal interessada no controle rigoroso do comrcio em nforas, pre-sente e atuante durante o Principado, permitia

  • 26

    Consideraes sobre a contribuio da Arqueologia da Btica para o estudo da economia romana. R. Museu Arq. Etn. Supl., So Paulo, n. 18, p. 19-27, 2014.

    a manuteno de formas anfricas determina-das, procedimento necessrio para o controle do transporte e armazenamento desses vasos--recipientes. Estas amarras rompem-se quando a dicotomia centro-periferia se transforma em descentralizao poltica e econmica na Anti-guidade tardia.

    Concluso

    Os estudos arqueolgicos revolucionaram o conhecimento do mundo antigo, em geral, e das relaes econmicas, em particular. As descobertas arqueolgicas multiplicaram-se, de forma exponencial, tanto por meio de pesquisas temticas, como pela atuao da legislao patri-monial e a exploso da Arqueologia preventiva. O sul da Espanha, a antiga Btica, testemunhou

    uma multiplicao das pesquisas de campo, seja em cidades, seja no campo. Estudos arqueol-gicos das exportaes bticas para Roma e para todo o mundo romano tambm contriburam, de forma espetacular, para o conhecimento da economia btica e romana. Os modelos inter-pretativos e suas discusses ganham muito com esse manancial crescente de informaes.

    Agradecimentos

    Agradecemos a Margarita Daz-Andreu, Airton Pollini e Jos Remesal e mencionamos, ainda, o apoio institucional do CNPq, FAPESP, Departamento de Histria e Nepam/Unicamp, Universidad de Barcelona e Stanford University. A responsabilidade pelas ideias restringe-se ao autor.

    FUNARI, P.P.A. The role of archaeology of Baetica in studying the Ro-man economy. R. Museu Arq. Etn. Supl., So Paulo, n.18: 19-27, 2014.

    Abstract: The paper starts by proposing to use the archaeological study of Baetica to discuss how archaeology is useful for discussing interpreting models. It then turns to presenting the Roman province from the early Roman con-quest through the late Republican and early imperial periods. It highlights the role of archaeological findings in enabling us to observe the complex economic relations. This is due to archaeological fieldwork in southern Spain itself, but also elsewhere, particularly studying such material evidence as amphorae found throughout the empire. It then concludes emphasizing archaeology as key to

    study the ancient economy.

    Keywords: Baetica Ancient economy Interpretive models.

    DAZ-ANDREU, M. 2007 A World History of Archaeology in the 19th.

    C. Oxford: Oxford University Press.FINLEY, M.I.

    1973 The Ancient Economy. Berkeley: University of California Press.

    FUNARI, P.P.A.; POLLINI, A.2012 Mercato. Le commerce dans les mondes grec et

    romain. Paris: Belles Lettres.KOYR, A.

    1967 Dal mondo del pressappoco alluniverso della precisione. Turim: Eunaudi.

    Referncias bibliogrficas

  • 27

    Pedro Paulo A. Funari

    REMESAL, J.2011 La Btica en el concierto del Imperio Romano.

    Madri: Real Academia de la Historia.ROSTOVTZEFF, M.

    1926 The social and economic history of the Roman Empire. Oxford: Claredon.

    TRIGGER, B.G. 2004 Histria do Pensamento Arqueolgico. So

    Paulo: Odysseus.

    WEBER, M.1976 Gesellschaft und Wirtschaft. Tbinger:

    Mohr.WILL, E.L.

    1984 Exportation of olive oil from Baetica to the Eastern Mediterranean. In: Blzquez, J.M. (Comp.) Segundo Congreso del Aceite en la Antiguedad. Madri, Universidad Com-plutense: 391-440.

  • 29

    R. Museu Arq. Etn. Supl., So Paulo, n.18: 29-36, 2014.

    Introduo1

    Com notvel frequncia surgem notcias sobre novas descobertas arqueolgicas de res-

    tos mortais humanos do perodo de presena romana nas ilhas britnicas. A maioria de tais achados est concentrada nos sites noticiosos britnicos, verdade, mas no parece ser muito

    O interesse pela violncia da romanizao. Um breve estudo arqueolgico das primeiras revoltas na Britannia*

    Renato Pinto**

    PINTO, R. O interesse pela violncia da romanizao. Um breve estudo arqueolgico das primeiras revoltas na Britannia. R. Museu Arq. Etn. Supl., So Paulo, n.18: 29-36, 2014.

    Resumo: Poucos podem negar que a violncia seja um tema de grande importncia para o estudo de nossa sociedade, e no algo novo. A violncia no mundo romano j velha conhecida para os arquelogos, e pode mesmo ter sido vista como bvia e esgotada h algumas dcadas. Todavia, o advento do ps-colonialismo ajudou a deslocar o foco das respostas binrias i.e.: Roma saqueia as provncias, as provncias se rebelam contra os invasores para abor-dagens mais multifacetadas e nuanadas. No caso da Britannia, o uso romano de violncia na invaso, ocupao e represso pode ter se misturado religio nativa existente e s prticas funerrias/morturias de maneira que desafia as anlises simplistas. Para os arquelogos da Britannia, os indcios de execues e de sacrifcios ritualsticos no so sempre facilmente discernveis, o que levanta questes desafiadoras a respeito das interaes entre a intolerncia religiosa contra os druidas, a Revolta de Boudica, e prticas ainda obscuras, como o culto s cabeas decepadas. Ademais, relevante avaliarmos o quanto tais interaes afetam a forma como vemos a violncia no passado, comparamo-la com epis-dios no presente, e como a mdia divulga os achados arqueolgicos de possveis massacres, a fim de envolver suas audincias e seus leitores.

    Palavras-chave: Violncia Britannia Boudica Romanizao.

    (*) Segmentos desta apresentao foram enviados para comporem parte do dossi sobre Representaes da Morte no Mediterrneo Ocidental e Oriental, sob organizao de Luciane Munhoz de Omene e Pedro Paulo A. Funari, a ser publicado no peridico Clssica Revista Brasileira de Estudos Clssicos. No prelo. (**) Professor de Histria Antiga da UFPE; membro asso-ciado do Laboratrio de Arqueologia Romana Provincial

    LARP MAE/USP. (1) Optou-se, aqui, por no divulgar imagens dos restos humanos aos quais o texto faz referncia. Trata-se de uma escolha baseada em questes ticas, sem consenso, a respeito da exibio de restos humanos, e que ainda podem ser mais bem ponderadas pelo meio acadmico.

  • 30

    O interesse pela violncia da romanizao. Um breve estudo arqueolgico das primeiras revoltas na Britannia. R. Museu Arq. Etn. Supl., So Paulo, n.18: 29-36, 2014.

    to mesmo para os antigos, como nos faz pensar Ccero em um arrazoado sobre as formalidades diplomticas que antecedem as guerras. Aqui, a violncia uma opo, vencida a etapa do deba-te e da proclamao da guerra. Ainda que algum comedimento possa ser esperado, Roma poderia muito bem abrir mo dos limites do homem civilizado e devastar todo um pas em nome de uma pretensa guerra justa. Tudo dependeria de como o Imprio interpretasse a disposio dos ocupados em resistir ao seu comando (Ccero, De Officiis, I, 11.33-6, passim).

    Quando nos lembramos da prtica da cru-cificao, no possvel ignorarmos o quanto a prpria forma de um instrumento de tortura, amplamente usado para aterrorizar e dissuadir os inimigos, afetou nosso modo de pensar o Im-prio Romano em seus momentos mais coerci-tivos. A imagem da cruz est marcada pela ideia do perdo em boa parte das crenas crists, mas no conseguiria afastar de nossas mentes, in totum, a violncia usada contra suas vtimas (Horsley 2004: 19). Chega a ser surpreendente que os arquelogos tenham encontrado to pou-co material associado prtica da crucificao. O nico esqueleto humano que tem sido des-crito sistematicamente como o de uma vtima desse tipo de execuo foi encontrado em Givat ha-Mivtar, Israel (Zias & Sekeles 1985). Mesmo no Brasil, o tema da violncia no Imprio roma-no vem sendo estudado h um bom tempo (ver, por exemplo: Silva & Mendes 2006; Garraffoni 2008). Qual o valor dos estudos sobre a violn-cia romana em suas provncias para o pblico

    em geral, hoje em dia?

    A violncia na Britannia

    Ao longo das ltimas dcadas, em um con-texto de autores ps-colonialistas, a percepo de que a construo do Imprio Romano se deu por meios violentos e autoritrios aumentou consideravelmente. Em especial, no contexto dos revisionismos ps-coloniais, os estudiosos do mundo romano tendem a ressaltar as restri-es e dificuldades das populaes colocadas sob o controle das foras romanas. Muitos des-ses autores so britnicos, herdeiros de uma j

    arriscado sugerir que h um amplo fascnio no mundo, ao menos o ocidental, pelo tema da morte nos tempos da Roma antiga. Se isso j no for tido como uma curiosidade lgubre de-mais, saber, vez ou outra, que alguns dos corpos de homens, mulheres e crianas daquela longn-qua poca permitem entrever sinais de sevcias, nem sempre cria algum esperado (ou desejado) sentimento de repulsa ao tema da morte violen-ta. Ler a respeito da morte, natural ou violenta, e de elementos ritualsticos e funerrios dos ha-bitantes de uma provncia romana to distante do Mediterrneo pode se tornar uma atividade ainda mais fascinante quando as imagens das descobertas arqueolgicas nos oferecem esque-letos, crnios (alguns decapitados), com alguma sorte, corpos com tecidos moles preservados, e ainda, algumas reconstrues faciais.

    Ao nos depararmos com qualquer represen-tao cartogrfica do Imprio Romano, pode-mos nos perguntar como teria alcanado tama-nha dimens