Revista imprensa homens e mulheres no jornalismo dez 2012

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COMPORTAMENTO ção, a editora de Ciência do jornal O Globo, Ana Lucia Azevedo, destaca uma disparidade – cientificamente justificável – entre os gêne- ros. “A mulher tende a ser mais organizada e focada na redação. Entre os editores, a gente até brinca como isso não ocorre com a maioria dos homens ‘focas’ ”, comenta. Débora Pradella, editora on-line de esportes do jornal Zero Hora – uma das editorias que menos sucumbiram ao avanço feminino –, aponta que os três repórteres homens da área tendem a outros talentos, não àquele. “Acho que somos mais organizadas. Claro que há exceções, mas eles têm mais esse instinto de repórter, de buscar a informação exclusiva”, diz. O quadro tem seu nexo científico. Para o neu- rofisiologista Renato Sabattini, da Unicamp, a antiga divisão de papéis dos longínquos homens das cavernas – o homem caçador e a mulher poli- valente, cuidando da casa – já foi apagada em boa parte pelas mudanças socioculturais. Mas restam resquícios não só culturais, como características cerebrais determinantes nos dois gêneros. P or mais objetivo e equânime que possa ser o ambiente de uma redação jornalística atual – aliás, de qualquer espaço profissional –, as diferenças entre homens e mulheres persistem. Difícil assegurar que não estão ali, expostas ou escondidas naquilo que a cultura definiu como papel de um ou outro gênero ou nas peculiaridades biológicas que ainda levam ambos os lados, vez ou outra, a se olha- rem com algum estranhamento. Mas como isso se transpõe para o ambiente da redação? Como os gêneros, na rotina jornalística, têm perpetuado e também enterrado as diferenças que se provaram sectárias ou sexistas? Em terreno tão espinhoso, é notável, porém, que a experiência de profissionais da área encontre coerência diante de algumas evidências científicas. Fazendo questão de deixar claro que há exceções para sua observa- ELES VS. ELAS MESMO EM TEMPOS EM QUE HOMENS E MULHERES NÃO SÃO MAIS ENTENDIDOS COMO UNIVERSOS OPOSTOS, A DIFERENÇA PODE SER SENTIDA E (EM PARTE) EXPLICADA – TAMBÉM NO CONTEXTO DAS REDAÇÕES POR GUILHERME SARDAS* DA REPORTAGEM 36 IMPRENSA | DEZEMBRO 2012

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Reportagem que contou com pesquisadores e vários profissionais homens e mulheres do jornalismo para entender as diferenças e congruências entre os gêneros masculino e feminino na prática jornalística.

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C O M P O R T A M E N T O

ção, a editora de Ciência do jornal O Globo, Ana Lucia Azevedo, destaca uma disparidade – cientificamente justificável – entre os gêne-ros. “A mulher tende a ser mais organizada e focada na redação. Entre os editores, a gente até brinca como isso não ocorre com a maioria dos homens ‘focas’ ”, comenta.

Débora Pradella, editora on-line de esportes do jornal Zero Hora – uma das editorias que menos sucumbiram ao avanço feminino –, aponta que os três repórteres homens da área tendem a outros talentos, não àquele. “Acho que somos mais organizadas. Claro que há exceções, mas eles têm mais esse instinto de repórter, de buscar a informação exclusiva”, diz.

O quadro tem seu nexo científico. Para o neu-rofisiologista Renato Sabattini, da Unicamp, a antiga divisão de papéis dos longínquos homens das cavernas – o homem caçador e a mulher poli-valente, cuidando da casa – já foi apagada em boa parte pelas mudanças socioculturais. Mas restam resquícios não só culturais, como características cerebrais determinantes nos dois gêneros.

Por mais objetivo e equânime que possa ser o ambiente de uma redação jornalística atual – aliás, de qualquer espaço profissional –, as diferenças

entre homens e mulheres persistem. Difícil assegurar que não estão ali, expostas ou escondidas naquilo que a cultura definiu como papel de um ou outro gênero ou nas peculiaridades biológicas que ainda levam ambos os lados, vez ou outra, a se olha-rem com algum estranhamento.

Mas como isso se transpõe para o ambiente da redação? Como os gêneros, na rotina jornalística, têm perpetuado e também enterrado as diferenças que se provaram sectárias ou sexistas? Em terreno tão espinhoso, é notável, porém, que a experiência de profissionais da área encontre coerência diante de algumas evidências científicas.

Fazendo questão de deixar claro que há exceções para sua observa-

ELES VS. ELASMESMO EM TEMPOS EM QUE HOMENS E MULHERES NÃO SÃO MAIS

ENTENDIDOS COMO UNIVERSOS OPOSTOS, A DIFERENÇA PODE SER SENTIDA

E (EM PARTE) EXPLICADA – TAMBÉM NO CONTEXTO DAS REDAÇÕES

POR GUILHERME SARDAS*

DA REPORTAGEM

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“Como esta divisão desapareceu, a mulher de hoje é igual ao homem na carreira, e ainda acaba se sobressaindo na organização”, diz. A mesma espécie de herança primordial leva parte dos homens a abraçar uma linha mais analítica, investigativa e ligada aos esportes e à mecânica. E, em geral, também a serem mais críticos e afeitos aos riscos. “Isto vem, entre outros aspec-tos, do hormônio testosterona. Os homens têm uma taxa 20 vezes maior”, explica.

ORGANIZANDO A CASA

O know-how ancestral de “organização da casa” pode ajudar a explicar como, assim que conquista-ram mais espaço nas redações, as mulheres rapida-mente galgaram cargos de chefia. Com o adendo de que seu farto arsenal linguístico não só contribui para destacá-las em uma área de comunicação, mas também para arregimentar equipes.

A explicação da “tagarelice” feminina – elas falam de quatro a oito mil palavras ao dia, contra duas a quatro mil dos homens – está no precoce amadurecimento do chamado “córtex da fala”. Por isso, tendem a discutir mais a relação, seja no âmbito pessoal, seja no profissional.

Para o psiquiatra e educador Içami Tiba, o dado as leva a uma forma especial de liderar, mais sutil e com mais justificativas nas tomadas de decisão. “Ela é mais líder do que o homem naquilo que necessita compreensão e colaboração dos seus liderados. Os homens são mais funcionais e ten-dem a formar subgrupos operativos.”

No entanto, há quem veja excessos na verba-lidade feminina – e é uma delas quem diz. “Elas podem ficar mais prolixas também. Às vezes, os textos femininos poderiam ser menores. Os homens dão conta do mesmo assunto de forma mais concisa”, argumenta a blogueira e gerente de criação e inovação do R7, Rosana Hermann.

Ainda assim, o talento organizacional já rende frutos. Hoje, o jornal O Globo tem apenas três edi-torias conduzidas por homens – esportes, carro e moto e opinião. “Há um matriarcado aqui, o que é bom, mas dificulta enxergar diferenças de gênero. Eu brinco aqui n’O Globo que deveria ter cota para homens”, afirma o colunista Ancelmo Gois.

No maior diário econômico do país, o Valor Econômico, são 11 editoras de conteúdo e 6 edi-

tores. Ainda três diretoras (redação, adjunta e on-line) e duas chefes de redação (Rio e Brasília). Por outro lado, eles ainda são ampla maioria nas cúpulas administrativas de quase todos os grandes veículos – também no Valor.

PAUTAS HUMANIZADASSem espaço para critérios absolutos

– “sempre há exceções!”, enfatizam as fontes –, as diferenças na prática jor-nalística podem ser sentidas ainda na matéria-prima da profissão: a pauta. Diante dela, homens conseguem dominar melhor as fronteiras entre a razão e a emoção, por causa de uma atividade cerebral mais inten-sa no chamado córtex pré-frontal.

Repórter da revista Quatro Rodas, Isabela Carvalho é a única mulher da redação. Enxerga sua contribuição no veículo justamente por ter uma “sensibili-dade maior” para fugir das pautas técnicas, em que os motores protagonizam as maté-rias. “Acho que trago um pouco mais de humanidade. São assuntos mais leves, com histórias de vida”, destaca.

Para o diretor de redação da revista Época São Paulo, Celso Masson, na maioria das vezes, elas buscam abordagens mais “maternais”. “Se você der uma pauta de dependentes químicos, elas tendem a mos-trar o drama e a dificuldade dos personagens diante do vício. Já os homens, como ‘prove-dores’, querem dar ao leitor informações fundamentais, como, por exemplo, clínicas disponíveis para tratamento.”

Diretor de redação da Quatro Rodas, Sérgio Berezovsky enxerga cenário de forma similar. “Vejo grande dedicação na busca de personagens, de boas histó-rias, além da preocupação com ilustra-ção e fotos.” Trabalhando mais que o homem com os dois hemisférios do cérebro, a mulher percebe, assim, tonalidades emocionais na linguagem, às vezes alheias a eles.

O que não significa que homens não possam ter a mesma habilidade. Para a

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editora executiva do Jornal do Commercio, de Pernambuco, Maria Luiza Borges, é clara a humanização das pautas também pelos homens. Como alerta Sabattini: “Todos esses dados são estatísticos. Não existe separação absoluta entre homem e mulher”.

MÍDIA DIGITAL

Rosana Hermann acredita que a rede, com suas abas múltiplas e variedade de funções, adapta-se melhor às mulheres. Nota ainda a habilidade delas para comandar redes sociais e dispositivos móveis. O último ponto, especial-mente, tem resposta da ciência, já que a mulher é muito melhor nas chamadas habilidades moto-ras finas, que têm a ver com o manual.

Mas o neurofisiologista relativiza certo “dom feminino” do digital, já que homens tendem a lidar melhor com o ferramental mecânico, assim como o fazem na matemática. Dois fatos podem tornar complexa a equação: o peso da educação no desen-volvimento de habilidades e a probabilidade de elas terem uma fisiologia cerebral mais masculina – assim como o inverso, com os homens.

Mestre em física nuclear, Rosana se diz “total-mente ligada ao universo masculino”. “Desde cedo, brincava com aparelhos eletrônicos do meu pai, que lidava com eletrônica e montava circuitos.” Para Sabattini, a habilidade da jornalista com a web pode ter uma explicação. “Conheço a Rosana, ela é uma mulher atípica. Nesse caso, ela está identifi-cando o cérebro dela, que é masculinizado, como uma tendência feminina”, diagnostica.

Enquanto mulheres lembram melhor o que está em determinado espaço, homens exploram melhor o espaço. Levado à web, tal padrão pode explicar a atração masculina pelas novidades. Segundo a edi-tora de mídias digitais da editora Globo, Ana Brambilla, “é visível a identificação majoritária do público masculino como early adopter de tecnolo-gias, especialmente os gadgets”.

Maria Luiza, do Jornal do Commercio, destaca que a polivalência, mais feminina e tão adequada ao universo digital, vem se alastrando entre os homens. “Meus estagiários já são tão polivalen-tes quanto qualquer mulher. Ao mesmo tempo, sinto uma limitação desse aspecto em gente que tem 40 anos ou mais”, diz.

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Diante de redações cada vez mais femininas, o diretor geral do R7 e de internet da Record, Antonio Guerreiro, rejeita a ideia de que o movimento tenha a ver com o talento multita-refas exigido pelo digital. “Se há uma nova frente de trabalho, as mulheres souberam ocu-par muito bem isso, evitando o antigo predo-mínio masculino nas redações.”

OPINIÃO E RISCODebate recente na mídia americana tratou da

presença minoritária das mulheres nos espaços de opinião dos veículos. Em painel da organi-zação Her Girls Friday, uma maioria feminina concluiu que, além do sexismo, o medo da rejeição ou a falta de confiança ainda inibem as mulheres nesse campo.

O quadro tem vasto rol de exceções, dentro e fora do Brasil. Legítima ou não, a tendência pode ser contemplada pelos olhos da ciência. Segundo Sabattini, o homem se associa ao comportamento conhecido como risk-taking, ou aceitação de risco. “Vemos isso desde pequeno quando a menina fica olhando o menino se pendurar nos lugares perigo-

sos. Faz parte da biologia masculina aceitar mais riscos; a feminina as faz evitar conflitos.”

O argumento pode ajudar a entender por que, ainda que elas já trafeguem pelas editorias mais perigosas, são eles as vítimas frequentes de vio-lência e morte. Os cinco brasileiros mortos em decorrência da atuação jornalística em 2012 são homens – segundo o Repórter Sem Fronteiras. Nenhum deles estava em cenário tradicional de guerra, ainda eminentemente masculino.

Para Rosana, o comportamento “menos bélico da mulher” não revela falta de confiança, mas um senso mais aguçado de consequência. “Quando vai falar, a mulher pensa no antes, no agora e no depois. O homem critica, vocifera, depois, se for o caso, ele se arrepende.”

Em meio a tantas diferenças – inclusive na percepção dessas diferenças –, o debate sobre os gêneros parece sempre render mais. Seja na economia de palavras deles, seja no esbanjamen-to verbal delas, tudo indica que o debate será pauta ainda por muito tempo...

*Com Luiz Vassallo

DÉBORA PRADELLA ROSANA HERMANN

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