Revista - KES Sobre Pacto Lit Hist

8
AMOR DE TÔNICA Como o deslocamento do ponto de ênfase, na poesia e na canção, engendra novas formas de apreensão Luiz Tatit cultura sobre SUPLEMENTO TRIMESTRAL DA REVISTA CIÊNCIA HOJE | JUNHO 2012| 9 CONSELHO EDITORIAL José Almino de Alencar José Eisenberg Maria Alice Rezende de Carvalho Renato Lessa Ricardo Benzaquen de Araújo EDITORA Sheila Kaplan PROJETO GRÁFICO Ampersand Comunicação Gráfica O sonho de uma língua portuguesa unificada na ortografia foi ganhando contornos de reali- dade no final do século 20. Como não poderia deixar de ser, esse desejo passou por fases em que a audácia das propostas não condizia com a sobriedade exigida nessas situações. Afinal, o que estava em jogo era nada menos que a uniformização da escrita do nosso principal código cultural. Uma dessas fases deu-se por volta de 1986. Entre as sugestões de mudança figurava a elimi- nação do acento nas palavras proparoxítonas. Se para boa parte dos gramáticos e lexicógrafos a proposta soava descabida – tanto que não vingou –, para um poeta como Paulo Leminski (1944- 1989) a ideia parecia no mínimo excitante. Dizia ele que por afetar a “substância” da língua, ou pelo menos o registro gráfico da substância sonora da língua, tal reforma poderia ter “consequên- cias imprevistas” no âmbito da poesia. Só por isso já valia a pena: “E se disse ‘imprevistas’, só posso estar dizendo ‘positivas’, já que a poesia, de certa forma, é nada mais, nada menos, que um ramo rico da Surpresa, movimento da linguagem em direção ao Desconhecido”, escreveu o poeta paranaense, em Ensaios e anseios crípticos. Tal como Stéphane Mallarmé (1842-1898) e nossos concretistas, Leminski era um poeta adepto da arte surpreendente, aquela que rompe a expectativa do público e desestabiliza suas FOTO: FRITHJOF HIRDES/LATINSTOCK/© FRITHJOF HIRDES/CORBIS/CORBIS (DC)

description

Pacto litertura historia

Transcript of Revista - KES Sobre Pacto Lit Hist

Page 1: Revista - KES Sobre Pacto Lit Hist

AMOR DE TÔNICAComo o deslocamento do ponto de ênfase, na poesia e na canção, engendra novas formas de apreensãoLuiz Tatit

culturasobre

SUPLEMENTO TRIMESTRAL DA REVISTA CIÊNCIA HOJE | JUNHO 2012| 9

CONSELHO EDITORIAL José Almino de Alencar José Eisenberg Maria Alice Rezende de Carvalho Renato Lessa Ricardo Benzaquen de Araújo

EDITORA Sheila Kaplan

PROJETO GRÁFICO Ampersand Comunicação Gráfica

O sonho de uma língua portuguesa unificada na ortografia foi ganhando contornos de reali-dade no final do século 20. Como não poderia deixar de ser, esse desejo passou por fases em que a audácia das propostas não condizia com a sobriedade exigida nessas situações. Afinal, o que estava em jogo era nada menos que a uniformização da escrita do nosso

principal código cultural.Uma dessas fases deu-se por volta de 1986. Entre as sugestões de mudança figurava a elimi-

nação do acento nas palavras proparoxítonas. Se para boa parte dos gramáticos e lexicógrafos a proposta soava descabida – tanto que não vingou –, para um poeta como Paulo Leminski (1944-1989) a ideia parecia no mínimo excitante. Dizia ele que por afetar a “substância” da língua, ou pelo menos o registro gráfico da substância sonora da língua, tal reforma poderia ter “consequên-cias imprevistas” no âmbito da poesia. Só por isso já valia a pena: “E se disse ‘imprevistas’, só posso estar dizendo ‘positivas’, já que a poesia, de certa forma, é nada mais, nada menos, que um ramo rico da Surpresa, movimento da linguagem em direção ao Desconhecido”, escreveu o poeta paranaense, em Ensaios e anseios crípticos.

Tal como Stéphane Mallarmé (1842-1898) e nossos concretistas, Leminski era um poeta adepto da arte surpreendente, aquela que rompe a expectativa do público e desestabiliza suas

FOTO

: FRIT

HJOF

HIRD

ES/L

ATIN

STOC

K/©

FRITH

JOF H

IRDES

/COR

BIS/C

ORBIS

(DC)

Page 2: Revista - KES Sobre Pacto Lit Hist

convicções, provocando tumultos sub- jetivos que só serão aplacados com a assimilação gradativa dos conteúdos a princípio inesperados. Em outras palavras, era adepto da arte que nos obriga a acelerar o tempo interior, normalmente comprometido com a espera. Trata-se, nos termos de Paul Valéry (1871-1945), da arte que já está onde não estamos ainda.

Nesse sentido, diante das possí-veis mudanças da nossa escrita, o ar-tista já vislumbrava a consumação de uma intrigante tendência natural da língua portuguesa: as proparoxítonas acabariam se transformando em pa-roxítonas. As surpresas e subversões já começariam por aí. A palavra ‘exér-cito’, por exemplo, viraria ‘exercito’. Isso não só acarretaria confusão com a conjugação da primeira pessoa do verbo exercitar, mas sobretudo degra-daria o próprio substantivo: por ana-logia a diminutivos em geral, como ‘chiquitito’, exercito poderia fazer alusão a um “exército bem pequeno”. Nada melhor para “subverter os códi-gos de registro”.

O que nos chama a atenção nesse interesse de Leminski pela malograda reforma ortográfica dos anos 1980 é a sutil correspondência que o poeta tra-ça entre “surpresa” e “variabilidade da tônica”, como se essas noções fos-sem sintomas da identidade natural entre significado e significante valori-zados pela reforma. A poesia seria então beneficiada com associações imprevistas provocadas pelo deslocamento constante das sílabas tônicas. A nova condição é assim resumida, no mesmo texto, pelo autor de Cata-tau: “Nesse aspecto a Reforma vai provocar um colapso no sistema sonoro fundamental do verso e da rima, baseados na vogal da sílaba tônica. É de tônica em tônica, de vogal tônica em vogal tônica, que se tece a fina teia aracnídea da poesia. Esta Reforma introduz um ruído, uma indetermina-ção, na tônica (alô, alô, Dona Tonica, amor de tônica, fica?)”.

O destaque da tônica na sequência linear do significante linguístico constitui um ponto de apoio decisivo para que um poeta estabeleça o ritmo sonoro do seu poema. Essa espécie de ritualização fonética do texto tem como contrapartida a efetivação da ‘espera’ no plano do conteúdo. Quanto mais regular se apresenta um sistema de acentuação, maior o seu rendi-mento no controle das expectativas geradas pelos versos. Por outro lado, se tivermos que incorporar a mobilidade imprevisível da tônica, o acento for-tuito estará sempre subvertendo qualquer sistema proposto pelo enuncia-dor. Evidente que, para os autores comprometidos com uma poética da espera, essa mobilidade acentual é vista com reserva. Para Leminski, eter-no aficionado da poética da surpresa, essa tônica móvel viria a calhar.

Sem saber da existência do poeta brasileiro, o grande semioticista lituano Algirdas Julien Greimas (1917-1992) propôs na mesma época algumas reflexões estéticas que parecem reproduzir o pensamento de Leminski em versão europeia. Em sua obra intitulada Da imperfeição, publicada em 1987 na França, ele também se serviu da noção de ‘tônica’, procedente do plano da expressão (significante), para propor o que cha-mou de “sintaxe da vida aceitável”, uma ordenação com a qual o sujeito integraria a surpresa como componente essencial do seu plano do con-teúdo. O que é ritmo no significante corresponderia então ao que é sin-taxe no significado. Escreve Greimas: “Para evitar que a iteração das es-peras degenere em monotonia, é concebível um arriscado deslocamento da acentuação: uma síncope tensiva, realizando antecipadamente o tem-po forte e uma delicadeza em obséquio da espera do outro; ou ainda um sostenuto prolongando a espera, acompanhado de inquietude, porém, revigorando o tempo forte ainda esperado. A turbulência assim criada revaloriza então o ritmo esgotado”.

Em outras palavras, a própria tônica se atoniza ao aparecer sempre no mesmo ponto da cadeia fônica, assim como a surpresa vira espera

quando constantemente programa-da para criar novidades em nosso cotidiano. As artes de vanguarda do século 20, pelo menos as que não escondiam certa compulsão pelo pioneirismo em seu campo de atua-ção, talvez tenham experimentado ao longo do tempo uma atonização da surpresa que pretendiam causar. Isso decorreu, segundo Greimas, da sua “ambição totalizante”, da ânsia de abarcar todas as esferas da vida do sujeito. Se pudéssemos convi- ver com um inesperado menos am-bicioso, inscrito em fragmentos do espaço e circunscrito a períodos efê- meros, talvez conseguíssemos, de acordo com o semioticista, chegar pouco a pouco ao essencial da bele-za estética, a partir apenas da valo-rização dos detalhes presentes no cotidiano.

A tonicidade foi aos poucos ganhando estatuto de categoria ge-ral para a análise não apenas dos acentos tônicos dos versos, mas so-bretudo do sentido gerado nos tex-tos e em nossas práticas do dia a dia. Contribui atualmente para que a semiótica possa ‘mensurar’ de al-gum modo o grau de impacto emo-cional das experiências humanas e

sua influência na seleção ou na mistura dos conteúdos abordados pelo sujeito.

A canção brasileira de hoje tem alterado a tônica de percepção dos conteúdos universais. O amor, por exemplo, que sempre foi tratado de modo narrativo como um sentimento associado aos estados de disjun-ção e conjunção, ou ainda, de desencontro e encontro, pode aparecer nas letras atuais como um processo engenhoso de descontinuidade e continuidade. Diz assim a canção ‘Que me continua’, de Arnaldo Antu-nes e Edgard Scandurra, do CD A curva da cintura, de 2011: “Se ando cheio / Me dilua / Se estou no meio / Conclua / Se perco o freio / Me obstrua / Se me arruinei / Reconstrua”. A melodia é invariável assim como são estáveis os pontos de rima. Tudo vira pano de fundo (o espe-rado) para que achemos a tônica num outro lugar, na sequência de com-pensações implicativas (se faço isso, compense dessa outra maneira), como se a continuidade das ações do ‘eu’ nas ações do ‘você’ substituís-se a simples união.

Já Chico Buarque, em seu disco Chico, lançado no ano passado, repleto de novas associações de melodia e letra, consegue atonizar uma pequena passagem da letra de ‘Tipo um baião’, para que a tônica se transfira ao componente musical. Faz desse trecho um refrão em que as palavras apenas refletem a confusão mental do enunciador (“E agora, eu / Não sei agora / Por quê, não sei / Por que somente você / Não sei por que / Somente agora você vem”), enquanto sua voz se engaja numa ‘levada’ musical totalmente imprevista diante da regularidade do acompanha-mento pausado (não ritmado) que vigorava até então. Como se precisas-se de um sambinha ligeiro só para dizer os versos citados. Esse desloca-mento do ponto de ênfase transporta o ouvinte para o plano da expressão onde o inesperado rouba a cena, já que o assunto no plano do conteúdo quase não evolui.

Esses modos de tratar o amor, para ficarmos em dois exemplos, eram inconcebíveis nas canções criadas até os anos 1970. Aos poucos, nessas últimas décadas, os cancionistas vêm deslocando o ponto tônico de suas canções e sugerindo aos ouvintes outras formas de apreensão, como se dissessem, paralelamente, “vocês que me continuam”.

E o mesmo Chico chegou a sugerir há alguns anos que o formato da canção talvez estivesse se esgotando. Mas era só sugestão.

LUIZ TATIT é professor do Departamento de Linguística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo

FOTO

: GK H

ART/

VIKK

I HAR

T/GE

TTY I

MAGE

S

Page 3: Revista - KES Sobre Pacto Lit Hist

O VO

O GR

ANDIO

SO DA

SÍNT

ESE

LEOP

OLDO

WAI

ZBOR

T

MÓRB

IDO

EXER

CÍCIO

DE A

JUST

AR C

ONTA

S COM

O PA

SSAD

ORE

NAN

SPRIN

GER D

E FRE

ITAS

DOIS : PONTOS ENSAIOS DE INTERPRETAÇÃO DO BRASIL | A reedição de Retrato do Brasil, livro clássico de Paulo Prado, nos leva a indagar sobre a possível atualidade desse gênero. Será que ainda há espaço, hoje, para ensaios desse tipo? Os sociólogos Renan Springer de Freitas e Leopoldo Waizbort respondem a essa pergunta.

Receio que o tempo dos ‘ensaios de interpretação do Brasil’ já tenha ficado para trás. Claro, ninguém pode ser impedido de se mover nessa direção, da mesma forma que ninguém pode ser impedido de escrever um poema épico, mas duvido muito que qualquer des-

ses caminhos possa se revelar promissor. Na verdade, essa analogia não é muito feliz porque os poemas épicos têm uma grandeza que os ditos ‘ensaios de interpretação do Brasil’ jamais tiveram.

Tomemos o caso de Casa-grande & senzala – para muitos, o que de melhor já se produziu no gênero. Nesse livro, Gilberto Freyre se em-penha em mostrar que o nosso passado colonial imprimiu sua marca sobre a ‘nossa’ maneira (especial) de ser. Como tantos estudiosos de sua geração, Freyre se deixou seduzir pela ideia de converter a ‘singularidade brasileira’ em objeto de reflexão sociológica e, na medida em que o fez, sua obra capital pode mesmo ser considerada um ‘ensaio de interpre-tação do Brasil’. No meu entendimento, entretanto, a grandeza do livro nada tem a ver com isso. Ela reside, antes, na prosa incomparável e no extraordinário talento etnográfico do autor. São os registros etnográficos, muito mais que as considerações a respeito das raízes socioculturais do ‘modo brasileiro de ser’ ou das características distintivas do ‘brasileiro’, que fazem de Casa-grande & senzala o monumento que é.

Em Sobrados e mocambos, publicado poucos anos depois, já não há vestígio daquela preocupação em interpretar o Brasil. O desafio, ago-ra, está em reconstruir o processo de transformação pelo qual passou a sociedade brasileira entre os séculos 18 e 19. Limito-me a um exemplo: até o século 18, as mulheres dos sobrados eram confinadas à cozinha. Freyre mostra como isso vai gradativamente se alterando; como as mulhe-res vão pouco a pouco conquistando os novos cômodos dos sobrados, até ganharem as janelas. Uma etnografia dessa natureza, cuja riqueza chega ao ponto de incluir uma descrição do modo como o corpo das mulheres se altera com o tempo, nada tem de ‘ensaio interpretativo’: não se busca, aqui, especular sobre as raízes das características distintivas da sociedade brasileira. Talvez seja conveniente esclarecer que nada vejo de errado em discorrer sobre este ou aquele traço característico dos brasileiros. Crônicas inspiradas podem ser produzidas por meio desse exercício. Mas ‘crônica inspirada’ não se confunde com etnografia e muito menos com a erudita e laboriosa reconstrução de processos históricos feita por historiadores.

O que acabo de dizer não é novidade para os leitores do historia-dor Evaldo Cabral de Mello. Para ele, Raízes do Brasil é o livro menos importante de Sérgio Buarque de Holanda (embora o mais conhecido) exatamente por reverberar o “vezo entre mórbido e narcísico de ajustar contas com o passado nacional” peculiar à literatura ensaística da década

de 1930. A literatura sobre o Brasil que se produziu nessa época, escla-rece Evaldo Cabral no posfácio a Raízes do Brasil, “constituiu uma moda intelectual que, da península Ibérica, transmitiu-se ao Brasil e América hispânica. Sintomaticamente, este gênero de ensaio não frutificou nem na Europa nem nos Estados Unidos, como se, através de uma cadeia de me-diações complexas, ele cristalizasse a própria marginalização histórica a que Espanha e Portugal se viam relegados e, com eles, as suas ex-colônias americanas”. Posteriormente, em 1998, em entrevista à revista Veja, Eval-do acrescentou que esforços em produzir interpretações sobre o próprio país, como se vê, por exemplo, em Retrato do Brasil, de Paulo Prado, foram uma moda peculiar aos países europeus que, no século 19, padeciam (em razão de sua condição periférica) de uma “angústia de identidade”.

Curiosamente, há um sociólogo alemão cujos escritos conduzem à mesma conclusão. Refiro-me a Norbert Elias (1897-1990). Não tenho co-nhecimento de sociólogo americano que tenha se interessado em ‘inter-pretar’ os Estados Unidos, nem de sociólogo inglês em ‘interpretar’ a In-glaterra ou francês em ‘interpretar’ a França. Mas Elias escreveu Studien über die Deutschen (Os alemães, na tradução brasileira). Há uma razão óbvia para isso: a ascensão do nazismo se deu na Alemanha e isso levan-tou a questão de saber o que havia de errado em relação aos alemães. O mórbido exercício de ajuste de contas com o passado tornou-se impe-rativo nesse caso. Como escreve Elias pouco antes de morrer: “Tem-se frequentemente a impressão de que o furúnculo Hitler ainda não estou-rou. Lateja, mas o pus ainda não saiu. Os estudos que se seguem estão primordialmente interessados em problemas do passado alemão”. Elias se pôs, então, a discutir o modo como o “passado alemão” imprimiu sua marca no modo de ser ou, como ele diz, no habitus alemão. Mas é ele próprio quem ressalva: “encontramo-nos hoje num ponto de mutação em que muitos dos problemas, incluindo os de habitus, estão perdendo sua pertinência, e novas tarefas para as quais não existem paralelos his-tóricos estão surgindo de todos os lados”. Mais de 20 anos se passaram desde que Elias escreveu essas palavras. Muita coisa mudou. O furún-culo Hitler (assim quero crer!) já estourou; o mórbido exercício de pres-tação de contas em relação ao passado para descobrir “o que significa ser alemão” perdeu sua razão de ser. O “problema do habitus”, que então apenas “perdia sua pertinência”, já a perdeu (assim espero!) completa-mente. O mesmo vale para o Brasil. Não precisamos proceder como se vivêssemos com um furúnculo latejante a nos atormentar...

RENAN SPRINGER DE FREITAS é professor de sociologia da Faculdade de Filosofi a e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais

Ainda há espaço para ensaios de interpretação do Brasil? Eis aí um problema. Aponto algumas de suas faces. Os ‘ensaios’ são tenta-tivas de uma síntese acerca do que seria o Brasil – o ‘povo’, a ‘nação’, a ‘história’, a ‘raça’, ou ainda alguma característica sua

peculiar e potencialmente definidora. Uma síntese que fosse capaz de dizer algo de substantivo acerca de um ser, de algo que é: precisamente o que ele é, e como é. Ocasionalmente, de seu devir. E não se trata so-mente de síntese, mas, em mesma medida, de afirmação. Exige que se descubram os elementos a sintetizar, que se descubra a fórmula mágica da síntese, que se descubra o sentido da afirmação, que se revele por meio de tudo isso o verdadeiro ser.

Hoje as humanidades, o terreno dos ‘ensaios de interpretação do Brasil’, são muito diferenciadas e diversas. Diferenciadas disciplinar e institucionalmente; diversificadas conceitual, analítica e metodologica-mente. Um conjunto de diferenças que torna, cada vez mais, as sínteses inalcançáveis, pois falta um chão comum e uma perspectiva que vis-lumbre por inteiro seu objeto. O resultado já se antevê: fragmento na perpectiva de abordagem e especialização como campo de decolagem (e pouso?). Seria possível um ‘ensaio’ nessas condições? Creio que aqui a resposta ‘não’ encontra argumentos fortes.

E onde se poderia encontrar argumentos para um ‘sim’? Antes de tudo, na vontade daqueles que não querem abrir mão dessa modalida-de de expressão cognitiva acerca do Brasil. Eles laboram perscrutando a história do gênero, escrevendo-a, reescrevendo-a e ensinando-nos a respeito do assunto. Conhecendo mais e melhor, ganhamos uma outra perspectiva, que se não é a que permite a síntese, ao menos a situa his-tórica e socialmente. Ao fazer isso, começamos a criar um chão comum em meio à diversidade. Em virtude da diversidade, tentativas de síntese

só podem brotar sob a sombra de campos disciplinares e especializações determinadas, sem potencial analítico e metodológico para alçar o voo grandioso da síntese. Guarnecida pelo avanço do conhecimento, a visa-da restrita precisa abarcar já tanto – em virtude do processo de acumu-lação infindo das humanidades – que nos faltam maratonistas de fôlego. Talvez grupos de pesquisa, no molde das novas formas de organização e gestão do conhecimento, possam criar espaços de síntese, mas vai faltar sempre o coração pulsante e apaixonado que possibilitava e orientava os antigos mestres. As sínteses que ofereceram no passado foram sem-pre marcadas por uma subjetividade forte, que dobrava a objetividade do conhecido. Hoje, essa dobra, além de mais complexa, corre o risco de não ser aceita pela comunidade leitora potencial, que se afina evi-dentemente com os padrões historicamente desenvolvidos de análise, método, conceito e exposição. A isso se soma a velocidade acelerada do processo do conhecimento, que não quer saber do tempo de construção da síntese, de maturação lenta.

Não há dúvida de que sínteses são importantes. Elas, contudo, nas condições atuais do conhecimento, mal atingem a altura de uma pers-pectiva globalizante dentro da especialidade. Os balanços disciplinares estão aí para mostrar o tamanho da encrenca.

Após os surtos de formação da universidade moderna no século 19, de especialização da universidade pós-moderna no século 20 e em meio ao atual surto de diplomação da universidade de massas contemporânea, não há mais lugar social para a concepção e execução desses ‘ensaios’; mas eles continuam ao alcance das mãos, para leitura e reflexão.

LEOPOLDO WAIZBORT é professor de sociologia na Universidade de São Paulo e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científi co e Tecnológico

Page 4: Revista - KES Sobre Pacto Lit Hist

A literatura contemporânea vive ainda sob o feitiço da questão do realis-mo, de como a literatura se relaciona à realidade, seja como referência de sua expressão ou como alvo de seu gesto. Os escritores se solidari-

zam com o mundo, tornam-se responsáveis pelo lugar em que vivem e pro-curam intervir nele de maneira significativa. Politicamente, eticamente e esteticamente, a literatura pode ser encarada como um instrumento de transformação. Desse modo, o ‘realismo’ ainda é um programa assumido por alguns contemporâneos no seu sentido histórico como questão de represen-tação, tal como havia sido elaborado pelos escritores do século 19. Para ou-tros, o compromisso é mais próximo aos vários novos realismos que emergi-ram ao longo do século 20. Aqui a representação cede lugar a uma ideia de intervenção performática por meio de efeitos poéticos despertados em dife-rentes experimentos de expressão dessa mesma realidade histórica agora liberada das ilusões de fidelidade e veracidade representativa.

A literatura brasileira do século 20 permaneceu fiel ao ideal do rea-lismo histórico pelas vias do regionalismo e da ficção urbana; no século 21 o pacto foi renovado por vários escritores que vêm definindo o rumo da literatura contemporânea. Não cabe aqui discutir a abrangência e comple-xidade do conceito de contemporâneo e de suas fronteiras movediças e permeáveis. Apenas observar a contradição entre um projeto literário que se origina no início da modernidade, ligado à confiança nos poderes ilumi-nadores da representação, e a busca por uma nova potência performativa da escrita, que possa recuperar o papel histórico da literatura numa cultu-ra predominantemente visual e midiática.

Vivemos um momento que dificulta a distinção clara entre os ficcio-nistas. Essa falta de definição do contemporâneo tem sido frequentemente confundida com diversidade criativa e com certo liberalismo permissivo que justificaria a retomada de questões literárias e estético-políticas sem preocupação sobre seus contextos de origem. Inovação e tradição, assim, se entrecruzam, mas raramente geram uma reformulação séria e ousada dos problemas invocados pelas experiências criativas colocadas em práti-ca pelos autores.

Dois romances lançados nos últimos meses dão amostras do que chamei de pacto reformulado com o realismo histórico: Habi-

tante irreal, de Paulo Scott, e Desde que o samba é samba, de Paulo Lins. O primeiro retoma o formato do romance

de geração e o segundo o do romance histórico. Os dois autores representam, cada um à sua maneira, a

literatura contemporânea. Paulo Lins foi pro-vavelmente autor do romance mais importan-

te da década de 1990, Cidade de Deus. Paulo Scott, identificado com a ‘geração 00’, como Daniel Galera, Joca Reiners

Terron e Daniel Pellizari, ganhou visibilidade com a editora gaú-

cha Livros do Mal para depois seguir carreira indepen-dente em grandes

editoras.

De certa maneira, o novo romance de Paulo Lins é uma surpresa – de-pois de um intervalo de 15 anos sem publicar, Lins sai do suposto lugar de autor congelado pelo seu próprio sucesso numa espécie de bloqueio criati-vo. Lançado em 1997 pela Companhia das Letras, a editora mais prestigiada daquele momento, e avalizado por intelectuais do calibre de Roberto Schwarz, seu romance de estreia atraiu enorme atenção crítica. O rápido sucesso da versão cinematográfica de Fernando Meirelles ofuscou a discus-são do romance propriamente dito, que foi sendo absorvido pela adaptação até o extremo de se optar por edições mais enxutas para torná-las mais pró-ximas à narrativa do filme. Nessa perspectiva é muito positivo ler Desde que o samba é samba, situado no cenário histórico do Rio de Janeiro da década de 1920 e construído em torno de figuras emblemáticas do samba carioca, como Ismael Silva, Alcebíades Barcelos, Heitor dos Prazeres e o cantor Fran-cisco Alves, mas também de alguns escritores modernistas, como Mario de Andrade e Manuel Bandeira. A história faz referência aos lugares periféricos onde reinava a malandragem e os diversos tipos de marginalidade, como a zona do Mangue, o morro de São Carlos e o bairro do Estácio, onde nasceu a primeira escola de samba do país, Deixa Falar, fundada em 1928. O leitor é introduzido a lugares pitorescos como o Bar Apolo, Café do Compadre e a casa de Hilária Batista de Almeida, a Tia Ciata, onde os sambistas da época se reuniam. O enredo procura evidenciar as estreitas ligações entre samba, malandragem, capoeira e os centros de umbanda, lançando mão de episó-dios de violência e repressão policial. O personagem principal é Sílvio Fer-nandes, o Brancura, sambista do Estácio e também cafetão, malandro, capo-eirista, um grande namorador inserido num triângulo amoroso ficcional com a prostituta Valdirene e o português Sodré, funcionário do Banco do Brasil que acaba por se transformar em cafetão e traficante de maconha.

Não há dúvida de que o romance vai despertar discussão entre histo-riadores e críticos em função de certas afirmações polêmicas como a homos-sexualidade de Ismael Silva e as relações sinuosas entre o samba e o início do crime organizado. Cidade de Deus despertou atenção pela mistura entre pesquisa histórico-sociológica e o ‘testemunho’ do próprio autor dos aconte-cimentos narrados durante três décadas de um bairro cuja decadência con-figurava uma imagem exemplar da história recente do Rio de Janeiro. Essas referências ‘fortes’ de realidade na narrativa exemplar e quase alegórica cria-vam uma fórmula poderosa em que a prosa urbana brutalista da década de 1960 e 1970 se combinava com um formato ‘clássico’ de romance histórico, incorporando também algumas características expressivas do modernismo. A falta de complexidade e vida própria dos personagens era compensada pela capacidade de mostrar a decomposição das estruturas sociais e cultu-rais na clave da violência e da exclusão marginal.

Nesse ponto, a ficção atribuía um sentido diferente aos eventos focali-zados que ultrapassava o mero interesse nos acontecimentos e intrigas nar-rados. Também no novo romance de Lins, a pesquisa histórica é o pano de fundo da intriga, às vezes se sobrepondo à lógica interna da história, e a maneira como o samba é descrito em suas origens na margem da sociedade e embutido numa cultura marginal de delinquência e repressão oferece uma perspectiva alegórica ao conjunto. Só que agora mais próxima à escrita de Jorge Amado, que sempre soube manejar a densidade erótica – culturalmen-te exemplar – dos seus personagens. Lins vai pelo caminho do desejo tam-bém, os personagens principais são guiados por uma libido irrefreável que, infelizmente, soçobra numa escrita tediosa de transas mecanicamente nar-radas, sem conseguir atingir nem a suave sedução de Amado nem a sátira priápica de um Reinaldo Morais.

Na década de 1980, uma das características do chamado momento pós--moderno era a reciclagem do romance histórico por via da metanarrativa anacrônica em que releituras do passado – como em Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, Boca do inferno, de Ana Miranda, e Agosto, de Rubem Fonseca – revisaram o passado histórico na perspectiva da atualidade brasilei-

ra. Essa permissividade pós-moderna na reciclagem das grandes narra-tivas do passado liberou a vontade fabulatória das ciladas herméticas do modernismo e a valorização da boa história se manteve entre os

PACTO RENOVADO COM A HISTÓRIA O realismo contemporâneo brasileiroKarl Erik Schøllhammer

HABITANTE IRREAL DESDE QUE O SAMBA É SAMBAPaulo Scott Paulo LinsRio de Janeiro, Alfaguara, 264 p., R$ 39,90 São Paulo, Planeta, 336 p., R$ 39,90

L E I T U R AILU

STRA

ÇÃO:

CAVA

LCAN

TE

Page 5: Revista - KES Sobre Pacto Lit Hist

contemporâneos. Formatos tradicionais do grande romance moderno – ro-mance regional, romance de formação, romance de memória, romance de viagem etc. – reapareceram no novo milênio com um novo vigor entre escri-tores como Luiz Ruffato, Silviano Santiago, Chico Buarque de Holanda e Mar-çal Aquino, e os laços com o realismo histórico se reconfirmaram, atualizados ou não pela vontade de criar efeitos e afetos reais por meio da experiência da criação literária além do mero compromisso representativo.

Alguns autores tiveram mais sucesso do que outros; em todo caso, a retomada das experiências realistas coloca um desafio fundamental para os escritores: evidenciar a potência ficcional da literatura numa realidade cul-tural siderada pela produção midiática de realidade, levando em conta que a ansiedade pelo resgate documental ocupa uma grande parte do mercado inundado de memórias, biografias, livros populares de história, testemu-nhos, depoimentos, entrevistas, reportagens, confissões, relatos jornalísti-cos e outras variações de não ficção. Diante do tsunami diário de realismo que ameaça afogar o leitor, que tipo de realidade a literatura pode oferecer?

Em Habitante irreal, Paulo Scott encara bravamente a tarefa de narrar fatos que marcaram a geração do final do século 20, através do personagem Paulo, que, aos 21 anos, militante no movimento estudantil, estagiário de ad-vocacia e estrela ascendente no Partido dos Trabalhadores a um passo de se estabelecer no poder, resolve dar um tempo e rever suas prioridades. Encontra uma menina índia guarani de apenas 14 anos na beira da BR116 e vive uma estranha e inexplicável atração pela garota, com quem inicia uma relação impossível que termina numa desastrosa confusão com a polícia e o obriga a viajar para Londres, abandonando a menina grávida a seu destino deplorável. Com mão firme de artesão, Scott narra a história num ritmo épico de comple-xidade narrativa crescente e com a clara ambição de conciliar os dados cir-cunstanciais da história recente à luz dos mitos (Iracema) nacionais, evocan-do uma discreta esperança de um Brasil contemporâneo em paz com seus demônios do passado. Há, evidentemente, ambições de teor literário e ético movendo o romance, o problema é que a compreensão da história do Brasil presente não parece suficientemente alavancada pela narrativa, os persona-gens dependem de um narrador onisciente que sempre emerge para explicar aos leitores o que os personagens realmente pensam e sentem.

Na sua teoria do romance, Milan Kundera insiste que jamais o narra-dor (e muito menos o autor) deve ser mais inteligente que seu personagem. Para ganhar vida própria, a narrativa deve ser guiada pela lógica intrínseca das ações e não pelas intenções didáticas ou moralizantes do criador. O narrador deve abrir mão desse papel para que a ficção ofereça uma compre-ensão do material narrado que escapa até mesmo ao autor. Eis o que distin-gue a ficção literária da ‘ficção generalizada’ predominante em todas as áre-as do consumo de histórias – na mídia, nas telenovelas, no cinema comercial. A compreensão da história, mesmo em seus formatos tradicionais, depende sempre de recursos narrativos e, como se sabe, o dispositivo ficcional tem sua presença reconhecida também em discursos científicos. Mas se a ficção e a narrativa existem tanto na história científica quanto no romance, deve-mos exigir que a literatura mostre o que ela e somente ela pode fazer, o que nenhuma outra mídia, nenhum outro discurso, consegue. Criar uma cons-telação complexa de eventos, causalidade, coincidências e fatores outros, concretos ou imaginários, como, por exemplo, a relação imbricada entre música, religiosidade e crime no romance de Lins. Ou o elo entre democra-cia e decepção no Brasil na geopolítica pós-muro de Berlim, no caso de Scott. Até aí a composição narrativa resolve. Entretanto, não basta interpre-tar e analisar a história em seus meandros mais sinuosos e causas às vezes só perceptíveis para o olhar da imaginação. O romance precisa dar realidade a essa história ao possibilitar que nos toque em seu sentido imanente e nos envolva afetivamente. Quando o escritor contemporâneo se aproxima da história, reformulando o compromisso com o mundo real, sua matéria-pri-ma é a imaginação mais ou menos historicizada e suas ferramentas narrati-vas e ficcionais não diferem das do historiador ou do jornalista. A realidade do texto não depende da credibilidade das referências nem da fidelidade representativa. Ela surge na voz que nos toca sem mediação e sem justifica-tiva, emerge da vida própria dos personagens e da necessidade ética e polí-tica de escutar e ser movido pelos eventos colocados em cena.

KARL ERIK SCHØLLHAMMER é professor do Departamento de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

VIDA DE MICHELANGELO, EDITORA DA UNICAMP, 2011

MOSAICORENASCENTISTAS EM PRIMEIRA MÃO Pintor, arquiteto, escritor e historiador, assim foi Giorgio Vasari (1511-1574), italiano do século 16 considerado o pai da história da arte. Amigo próximo de Michelangelo (1475-1564) e figura fácil entre a aristocracia toscana, Vasari recolheu em primeira mão gran-de parte do que sabemos hoje sobre a vida e as criações dos artistas renascentistas. Sua obra-prima, a coletânea de bio-grafias Vidas dos artistas, por muito tempo foi uma espécie de Bíblia para os estudiosos de arte. O livro, publicado em 1550, foi reeditado e expandido em 1568 pelo próprio Vasa-ri. Essa versão mais recente acaba de ser traduzida pela primeira vez para o português em duas obras. Uma, editada pela Martins Fontes, traz a íntegra de Vidas e a outra, Vida de Michelangelo Buonarroti, editada pela Universidade Esta-dual de Campinas (Unicamp), traz em um só livro o capítulo de Vidas sobre o criador da Pietá acrescido de notas e co-mentários do pesquisador Luiz Marques, que por mais de 20 anos estudou a obra de Vasari.

A biografia de artistas não nasce com Vasari; cronistas como Giovanni e Filippo Villani já escreviam sobre a vida de pintores, escultores e desenhistas no século 14. Mas foi ele quem, segundo Marques, traçou os primeiros contornos da história da arte. “Ele criou toda uma teoria em torno das bio-grafias, deu tratamento sistemático a essas histórias que compõem o que se convencionou chamar de Renascimento”, afirma o professor de história da arte na Unicamp. Marques acrescenta que Vasari classificou as biografias de mais de 130 artistas, de Giovanni Cimabue a Michelangelo, de acordo com genealogias e eras que se suplantam seguindo uma li-nha evolutiva.

Em Vidas, Vasari apresenta uma visão particular sobre os artistas, em especial quando trata do amigo Michelange-lo, a quem chama de “ente celeste e divino, para além da condição mortal”. Sua prosa enaltecedora e parcial distan-cia-se, naturalmente, da crítica de arte atual, mas ainda as-sim se faz importante. “Vasari foi capaz de cobrir três sécu-los de história em uma grande parábola”, diz Marques. “Ele organiza o material histórico de uma maneira que só um historiador é capaz de fazer.”

Marques ressalta ainda outras duas qualidades do es-critor: a alta capacidade de descrever as obras de arte e a verve narrativa. Apesar de se declarar pintor, Vasari se des-taca mais pelo seu trabalho de historiador, tarefa que exe-cutou em italiano, língua do povo, e não em latim.

Embora tenha feito obras admiradas ainda hoje, o ho-mem multitalentos não chegou à altura de seus biografados. Uma prova disso é que atualmente um de seus mais famosos afrescos, que cobre uma parede do Palazzo Vecchio, símbolo do poder da família Médici e sede da prefeitura de Florença, está sendo perfurado para a introdução de microcâmeras que buscam por uma pintura escondida de Leonardo da Vinci.

Marques conta que Vasari era mais um gestor que pro-priamente artista. Administrava grandes ateliês e produzia rapidamente sob encomenda, especialmente para a família Médici, para quem elaborou grande quantidade de imagens que glorificavam a dinastia, iniciada com Cosimo, o Velho, por volta dos anos 1430.

A relação de Vasari com o poder, representado pelos Mé-dici, se mostra em seus escritos. Mesmo que falando sobre a vida de outros artistas, faz autocitações e insiste em mos-trar que é próximo da influente família. Marques conta que essa posição de cortesão assumida pelo escritor afeta dire-tamente sua versão sobre as histórias dos artistas: “Vasari não hesita em sacrificar a veracidade dos fatos para glorificar seus senhores”.

Isso fica claro ao narrar uma passagem da vida de Miche-langelo. Em 1519, o escultor havia sido contratado para construir quatro tumbas para os Médici. Mas, entre 1533 e 1534, é chamado pelo Papa Clemente VII para pintar o afresco O Juízo Final na Capela Sistina, em Roma. Ele aceita o convite e deixa inacabadas as esculturas tumulares. Cosimo I, da fa-mília Médici, pede que o artista retorne à Florença para termi-nar o trabalho e é ignorado por Michelangelo, que nunca se submeteu a seu principado.

Vasari não tem como ignorar o acontecido em seu livro, mas se esforça em explicar a situação sob outra ótica e alega que Michelangelo não retornou à Florença porque os ares da cidade faziam mal à sua saúde. “Ele elabora esse espetacular

afresco histórico da arte da Itália, mas sem perder de vista a missão de reafirmar a centralidade cultural da Toscana dos Médici,” contextualiza Marques.

Segundo o pesquisador, a falta de comprometimento com os fatos é mais explícita na primeira edição de Vidas. O livro continha inúmeros erros e imprecisões sobre datas e locais que foram corrigidos na versão de 1568. Vasari assu-me uma nova postura em relação a Michelangelo: “Se, na pri-meira edição, ele se controla para dizer certas coisas sobre Michelangelo, 18 anos depois, com o amigo já falecido, permi-te-se um maior distanciamento e uma visão mais crítica”, pontua Marques. “Toma certas liberdades como citar que uma das fontes do Juízo Final de Michelangelo são os afres-cos homônimos de Luca Signorelli em Orvieto, algo que o ar-tista provavelmente não gostaria de ver sublinhado.”

Marques ressalta que a obra de Vasari é ainda referência na história da arte como uma das fontes mais seguras e em-blemáticas para o estudo do Renascimento. “Claro que sua visão é diferente da aceita hoje, mas, por mais imparciais que sejam, os historiadores sempre constroem uma versão pró-pria.” | Sofia Moutinho |

Page 6: Revista - KES Sobre Pacto Lit Hist

ENTREVISTA

ENTREVISTA CARLOS FERNANDO DELPHIM

“Nascido para amenizar ou corrigir as agruras do ambiente desértico, o jardim recebeu dos persas, tal-vez o povo que mais amou e desenvolveu essa arte polissêmica, o nome paraideza. No inconsciente de quase todos os povos, o conceito de jardim funde-se ao conceito de paraíso, um paraíso em miniatura criado, cultivado e mantido pelo incessante controle humano.” As palavras são do engenheiro-arqui-teto Carlos Fernando de Moura Delphim, um apaixonado pela arte de criar esses espaços de deleite e fruição da natureza. Autor de Manual de intervenções em jardins históricos e de Paisagens do Sul, ele prepara novo livro sobre o jardim no Brasil, que deverá ser lançado ainda este ano. Há mais de 30 anos voltado à preservação das paisagens culturais e jardins históricos brasileiros, Delphim é, desde 2009, coordenador-geral de Patrimô-nio Natural do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Avesso ao olhar estritamente técnico sobre a salvaguarda dos jardins, ele se inclina mais a uma percepção lírica do tema, e nos lembra que os jardins convidam à reflexão sobre as estreitas relações entre natureza e civilização.

Entrevista concedida a Henrique Kugler | sobreCultura | RJ

O que caracteriza os jardins históricos?Os jardins históricos são bens culturais associa-dos às imagens primordiais de toda a humanida-de, testemunhos de diferentes culturas, diferen-tes épocas. Quando, em 1981, especialistas do mundo inteiro reuniram-se na Itália e elabora-ram a Carta de Florença, documento fundamen-tal para a preservação dos jardins históricos mundiais, definiu-se o jardim histórico como uma composição arquitetônica e vegetal que apresenta interesse público do ponto de vista histórico e artístico. Sua especificidade é ser uma composição arquitetônica constituída prin-cipalmente por material de origem vegetal, quer dizer, vivo e, como tal, perecível e renovável.

Podem ser considerados jardins históricos tanto jardins modestos como parques monu-mentais. São paisagens que evocam um fato me-morável, locais onde ocorreu um grande aconte-cimento histórico, que deram origem a um mito ilustre ou mesmo serviram de tema a um quadro célebre. Espaços aos quais a história e o olhar humano conferiram valor e significado especial.

Os jardins são um dos mais importantes e complexos bens que compõem o patrimônio cultural e, quanto mais elevado o grau de civili-zação de um povo, mais requintada a arte de seus jardins.

Em que medida um jardim pode ser entendido como bem cultural?Quando o homem abandonou o nomadismo e passou a se dedicar à cultura da terra, ele substi-tuiu o extrativismo pelo cultivo. A palavra ‘cul-tura’, etimologicamente, está na essência desse processo. Hoje associamos a palavra à erudição – achamos que ser culto é ouvir Erik Satie ou ler Cervantes. Mas, originalmente, o termo ‘cultura’ se vincula ao culto à mãe terra, aos elementos da natureza.

Em sua origem, o jardim era um local delimi-tado por muros com a finalidade de proteger re-servas vegetais e animais, quase sempre na pre-sença do elemento mais precioso – a água. Mais que um lugar, o jardim esteve sempre associado à ideia de um estado onde o homem primordial conviveu em harmonia com todos os seres vi-vos, um estado puro de existência em que cria-dor e criatura comungavam de uma forma subli-me de amor. O jardim é o símbolo mais perfeito dessa harmonia. A ruptura de tal condição sa-grada resultou, miticamente, na perda do Éden, no afastamento do ser humano de uma natureza com a qual nunca mais pôde manter a relação original de equilíbrio. Hoje, somente nos jar-dins, a cultura humana pode criar e manter os fragmentos de um paraíso ainda passível de ser

reconstruído neste mundo. A criação de um jar-dim é assim um ato simbólico, uma tentativa de recuperação do encanto do paraíso original.

O senhor destaca a importância dos jardins como expressão artística. Por que os designa como “arte polissêmica”?Nos jardins são agraciadas todas as delícias con-cedidas pelos sentidos: os sons harmoniosos do canto dos pássaros; cores e perfumes de folhas e flores; sabores inebriantes de frutos; diferentes texturas agradáveis ao toque... A arte dos jardins combina numerosas variáveis, como se fosse um caleidoscópio de juízos estéticos, de saberes e habilidades. Mas, além de uma leitura espacial, os jardins permitem uma narrativa temporal, já que contêm estados pretéritos da história do ho-mem e da natureza. Daí que estudos geológicos, paleontológicos e arqueológicos são importantes para se ter uma compreensão melhor. Na reali-dade, esse entendimento mais amplo pede uma visão transdisciplinar que reúna várias discipli-nas, como, por exemplo, geografia, geomorfolo-gia, hidrologia, edafologia, flora, fauna, ecologia, fatores sociais e culturais, economia, turismo. Praticamente tudo se faz presente em um jar-dim. A própria morte faz-se presente no jardim, em sua forma mais natural, como parte de um ciclo. Estamos falando da essência da própria vida – e, assim, a poesia e a filosofia também têm muito a nos dizer.

Quais as civilizações que mais se destacaram na arte da jardinagem?Os textos mais antigos que se referem a jardins datam do terceiro milênio antes de Cristo. Tra-tam de recantos e bosques sagrados plantados sobre zigurates, na Mesopotâmia. Os sumérios desenvolveram técnicas que foram posterior-mente incorporadas pelos assírios e babilônios. Destacam-se, naturalmente, os jardins suspen-sos da Babilônia, uma das maravilhas do mundo antigo e, provavelmente, a mais marcante obra de jardinagem de toda a história. Nela, os ele-mentos arquitetônicos preponderavam sobre os naturais, e havia uma estrutura hidráulica for-midável. Mas a obra foi interrompida pela inva-são árabe, e não restou nenhum remanescente material.

Não se conhece muito sobre os primeiros jar-dins. Os egípcios têm referências antiquíssimas sobre o assunto e os povos do extremo Oriente desenvolveram técnicas bastante sofisticadas. Para os japoneses, cada elemento tem uma sim-bologia muito forte. Os caminhos, a condução das águas, as flores, tudo tem um significado profundo, seguindo o modo de pensar oriental.

Lao Tzé, no Tao Te Ching, diz que a linha perfei-ta não é a reta, e sim a linha que a água descreve ao descer uma montanha, ou o voo de um pássa-ro, o caminho do arco-íris, o desenho que a folha faz ao cair da árvore. As civilizações asiáticas integravam-se ao meio natural com perfeição: o homem não se destacava da natureza, era um dos seus componentes.

Já no classicismo grego, com a criação da pó-lis, o homem passou a viver uma pretensa supe-rioridade – como, hoje, nas metrópoles. Alguns pensadores da época chegaram a dizer que plan-tas e aves eram detritos que não deveriam ser parte da vida urbana. Por sorte, o relevo grego é acidentado, o que os levou a desenvolver um jar-dim não tão rígido, um jardim mais solto, sem-pre cheio de esculturas com figuras humanas, na escala da medida áurea.

Mas foram os persas o povo que mais amou e melhor exerceu essa arte. Eles não faziam jar-dins; tentavam recriar paraísos, sempre conside-rando sua dimensão mística, cósmica, sagrada, metafísica. Os persas não se conformavam com a ausência de flores no inverno. Nas estações frias, quando as flores morriam, pintavam ladri-lhos estampados com pétalas. Assim desenvol-veram sua refinada azulejaria. Mas como a neve, por vezes, encobria esses ladrilhos, levavam os jardins para dentro de casa por meio da tapeça-ria. Com flores, peixes, pássaros e animais diver-sos, seus tapetes eram como um jardim portátil, que os aquecia e lembrava daquilo que aprecia-vam no verão e na primavera.

Voltando-nos para o Brasil, quais os nossos jardins históricos de maior importância?Provavelmente os do Rio de Janeiro, o que não significa que sejam os mais bem preservados. O Passeio Público do Rio de Janeiro é muito valio-so, foi um dos primeiros empreendimentos, no país, de envergadura urbanística e de jardina-gem para o deleite da população. Uma novidade não só para o Rio, mas também para o resto do país, e ainda reúne a obra do escultor e arquiteto Mestre Valentim. Há também a Praça da Repú-blica, o Campo de Santana e, claro, o Jardim Bo-tânico. Em Nova Friburgo há o Parque São Cle-mente, com os jardins do paisagista francês Auguste Glaziou, talvez os mais bonitos do esta-do, senão do país.

Em Recife, embora os holandeses adorem flores e lá tenham plantado muitos jardins, infe-lizmente pouco restou. Em Belém, ao longo do século 19, lugares públicos muito belos foram construídos, destacando-se os jardins do bairro Batista Campos e a Praça da República. O Jardim

FOTO: FÁTIMA DE MACEDO MARTINS

Page 7: Revista - KES Sobre Pacto Lit Hist

UM OUTRO IBERÊ – Na década de 1950, influenciado pelas naturezas-mortas do pin-tor italiano Giorgio Morandi (1890-1964), o processo criativo do artista gaúcho Iberê Camargo (1914-1994) sofreu mudanças. A composição trágica e sombria, presente em vários momentos de sua trajetória, deu lugar a temas mais sóbrios e desoprimidos. É sobre esse período a exposição “O ‘outro’ na pintura de Iberê Ca-margo”, inaugurada este mês na fundação que leva o nome do artista, em Porto Alegre. Com cerca de 70 obras, a mostra ficará em cartaz até março de 2013.

“O ‘outro’ é justamente essa fase pouco conhecida do Iberê, em que ele revela serenidade”, afirma a curadora da exposição, Maria Alice Milliet. Pintor, desenhista e gravador, Iberê Camargo é visto como artista expressionista abstrato cujas obras refletem solidão e melancolia.

A proximidade do artista com a obra de Morandi não produziu imitação, mas aproximação temática. Assim como o italiano, o

pintor brasileiro retratou objetos e cenas simples, como os copos

e garrafas de Natureza-mor-ta (1956), e as ruas de-

sertas das telas San-ta Tereza (1956) e Poços de Caldas (1959). Mas, ao contrário de Moran-di, que usou cores suaves, Iberê va-

leu-se de roxo, violeta, azul e preto. “É uma fase silenciosa, mas não estática”, diz Milliet. “Se a instabilidade emocional e o gesto exacerbado, comuns na obra do ar-tista, estão ausentes nessa fase, não falta, por outro lado, visível dramaticidade em sua paleta.”

A Fundação Iberê Camargo reúne mais de 5 mil obras do artista (3.246 dese-nhos e guaches, 1.570 exemplares de 329 gravuras e 215 pinturas). “Esse número corresponde a pouco mais da metade da sua produção, estimada em 8 mil itens”, informa Mônica Zielinsky, responsável pela catalogação da obra. Além dos trabalhos que estão na fundação, há obras em museus e coleções públicas e privadas (brasi-leiras e de outros países). “No Brasil, poucos artistas, talvez só Candido Portinari [1903-1962], têm obra tão extensa”, diz Zielinsky.

Repositório de obras e centro de referência sobre o trabalho e a vida de Iberê Camargo, a fundação pretende ainda rastrear criações do artista que estão em mãos de terceiros, para registrá-las em seus arquivos. Inaugurada em 1995 – ori-ginalmente com sede na antiga casa do artista, mudando-se mais tarde para o pré-dio atual, projetado pelo arquiteto português Álvaro Siza –, a fundação conseguiu catalogar todas as obras das séries Carretéis, dos anos 1960, e Ciclistas, dos anos 1980 e 1990.

No universo das pinturas a óleo do artista, várias lacunas estão por ser preen-chidas. Essa é uma tarefa complexa e que exige investimento elevado, pois envolve viagens para o reconhecimento de obras e trabalho conjunto de especialistas para verificação de autenticidade. A fundação mantém não só o acervo artístico, mas todo o arquivo documental do artista. São mais de 7 mil peças, entre fotografias, cartas, esboços, artigos e outros registros, guardados pelo artista e sua mulher, Maria Coussirat. “Ele era um grande arquivista; cuidava de tudo com muito zelo”, conta Zielinsky. | Katy Mary de Faria |

Botânico de Salvador e o Passeio Público de Fortaleza também são importantes.

No Sul há também jardins muito interes-santes, como os Jardins da Imigração, em Santa Catarina. Há muitas cidades com belíssimos jardins por lá: São Bento do Sul, Blumenau, Joinville. No Rio Grande do Sul estão os jardins mais bem preservados. Em Porto Alegre, res-tauraram com perfeição um jardim importan-tíssimo, o da Praça da Alfândega, e também o roseiral da Escola de Agronomia da Universi-dade Federal do Rio Grande do Sul.

Somente no Sul o pessoal dá aos jardins a importância que eles merecem. É uma pena que, no resto do país, a situação de descaso seja tão vergonhosa. É de chorar.

O senhor foi responsável pela restauração do Jardim Botânico do Rio de Janeiro de 1977 a 1985. Hoje, é um dos maiores críticos à situação desse jardim. Por quê?O mais importante jardim histórico brasileiro é também o mais grave exemplo de desconside-ração e desrespeito pela cultura e pela natureza de nosso país. O terreno foi invadido, virou uma verdadeira casa da mãe Joana. Antigamen-te, os responsáveis por sua manutenção mora-vam lá porque era um lugar remoto. Mas, assim que se aposentassem, deveriam sair. Não saí-ram, e a segunda geração tomou conta do espa-ço, ilegalmente. Estimulados pela falta de res-peito ao patrimônio coletivo, foram vindo novos invasores sem qualquer compromisso com o Jardim Botânico. Políticos corruptos pa-trocinaram e continuam patrocinando a des-truição desse bem de valor reconhecido nacio-nal e internacionalmente, em troca de votos. Centenas de moradias destroem a integridade do jardim. Tudo por causa da omissão adminis-trativa, cega em relação à invasão de seus terre-nos tombados. Administradores públicos, à re-

velia de qualquer argumento técnico ou postura legal, permitiram ‘privatizações’ em uma das mais valiosas terras da União. Até onde eu pu-der, lutarei contra essa vergonha.

Além disso, o Jardim Botânico não suporta a carga de visitação que recebe. Não se deve adaptar um jardim à visitação, mas sim o con-trário. As áreas verdes urbanas vão sendo des-truídas para a implantação de prédios. Novos assentamentos na já densamente ocupada ma-lha urbana vão se utilizando das poucas áreas verdes públicas, sem se preocupar em criar no-vos espaços de lazer e recreação. Os jardins his-tóricos, locais frágeis e destinados a usos me-nos impactantes, passam a cumprir funções para as quais nunca foram projetados e isso sempre se dá à custa de sua integridade e au-tenticidade. Novas formas de uso exigem novos tipos de espaços públicos. O número de visi-tantes de sítios frágeis deve ser programado se-gundo a especificidade de cada lugar.

Que desafi os a preservação dos jardins históricos apresenta?O principal desafio é compreender o que é um jardim. Muitos, inclusive políticos e adminis-tradores públicos, pensam que é simples orna-mento. Mas é muito mais do que isso: é a rela-ção do homem com o planeta que está em jogo. Se um homem não compreende o papel e o valor de um pequeno jardim, como irá sensibi-lizar-se com a destruição de ecossistemas, de biomas, do planeta? A única forma de entender os jardins é amando-os. Em tempos não muito distantes, eram espaços onde as pessoas se sen-tiam seguras e a temperatura era agradável. Hoje, onde encontramos isso? Nos shoppings! Eles desempenham o papel que, em tempos passados, era dos jardins com uma diferença: em vez de contribuir para corrigir problemas

ambientais e microclimáticos, só servem para aumentá-los, graças ao exagerado consumo de eletricidade exigida pela iluminação e climati-zação artificial, pela impermeabilização de enormes áreas para estacionamento, pela pro-dução, estimulada pelo consumo, de lixo e de-jetos que irão poluir e contaminar o planeta.

Preservação é sempre um procedimento complexo, envolve operações como identifica-ção, proteção, conservação, restauração, reno-vação, manutenção, planejamento, programa-ção do uso e revitalização. Os jardins históricos devem, idealmente, manter o traçado original. Mas cada tipo de jardim demanda diferentes operações conforme sua época e estado de con-servação, integridade ou autenticidade. Condi-ções diferentes, até dentro de um mesmo jar-dim, exigem diferentes formas de intervenção.

Outro fator de complexidade é que os jar-dins são constituídos por materiais vegetais, ou seja, vivos, e, portanto, perecíveis e renováveis. Esse dinamismo e a mutabilidade fazem com que seja bem mais difícil lidar com esses bens do que com outras edificações ou objetos de va-lor artístico e documental.

Quando se fala em paisagismo brasileiro, imediatamente nos ocorre o nome de Roberto Burle Marx. Ele é ainda uma referência central nessa área? Cada vez mais, à medida que escrevo meu livro sobre o jardim, me apercebo da importância de Burle Marx. Não apenas para o Brasil, mas para o mundo inteiro. Foi seu gênio quem melhor associou a arte à vegetação, utilizando-se de plantas novas e desconhecidas na feitura de jardins, plantas que antes dele passavam total-mente despercebidas aos olhos da maioria. A obra de qualquer outro paisagista brasileiro pós-Burle Marx, de forma positiva ou negativa, sofreu sua influência.

FRAGMENTOS DO PARAÍSO: “OS JARDINS HISTÓRICOS SÃO FRÁGEIS TESTEMUNHOS DE NOSSA CULTURA”

MOSAICO

FOTO: MATHIAS CRAMER/TEMPOREALFOTO.COM

Page 8: Revista - KES Sobre Pacto Lit Hist

REMA

TE

ARQUIVO-MUSEU DE LITERATURA BRASILEIRA DA FUNDAÇÃO-CASA DE RUI BARBOSA

ENTRE MEMÓRIA E FICÇÃO Desenhar, para Pedro Nava (1903-1984), era uma das ferramentas usadas para alimentar a memória. Amigo dos modernistas desde a juventude, na Belo Horizonte dos anos 1920, o poeta e desenhista bissexto aca-bou fazendo carreira na medicina, e somente aos 65 anos deu início à sua monu-mental obra memorialística. Em 1972, publicou o volume inaugural, Baú de os-sos, a que se seguiram outros cinco, agora reeditados pela Companhia das Letras: Balão cativo (1973), Chão de ferro (1976), Beira-mar (1978), Galo das trevas (1981) e O círio perfeito (1983).

O acervo documental do escritor encontra-se no Arquivo-Museu de Literatu-ra Brasileira da Fundação-Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro. Constitui-se de rico e variado conjunto de anotações, recortes, desenhos e manuscritos. Entre os papéis, transparece interesse particular pelos mapas de cidades, de ruas, dese-nhos e plantas de casas e croquis diversos.

O desenho acima, conforme aponta a pesquisadora Marília Rothier Cardoso, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, corresponde à descrição da casa na rua Caraça 72, em Belo Horizonte, para onde a família de Nava se mudou em 5 de março de 1918, “um dos anos mais ricos de experiência de toda minha vida”, como conta em Chão de ferro. “Era uma linda construção e sua beleza vinha da simplicidade. A fachada era passada de um azul muito claro realçado por sa-liências tonalidade sorvete de creme. Tinha uma pequena varanda lateral cujas colunas de madeira logo seriam enroladas pelo caule fl exuoso dos estefanotes plantados por minha Mãe. Dois enormes quartos, sala da frente, refeitório de

convento, copa, banheiro, cozinha. Logo depois o Major construiria mais dois quartos e posteriormente o Nelo outros dois, mais a garagem encimada por pérgola e uma espécie de apartamento independente, adaptado do porão.”

O trabalho memorialístico de Nava apoiava-se em lenta e minuciosa pesqui-sa, assim como em prodigiosa imaginação. Mantinha uma posição anfíbia entre o historiador e o fi ccionista, como dá conta Eneida Maria de Souza, em Pedro Nava – o risco da memória. O processo criativo do escritor, descreve a pesquisadora, dava-se em três momentos. No primeiro, folhas soltas com anotações, recortes de jornal, reproduções de obras de arte, cartões-postais e desenhos de perfi s de familiares e amigos. No segundo, que ele chamava de ‘boneco’, fazia roteiros dos capítulos a serem escritos, ilustrações, croquis, mapas, questionários enviados aos colegas de geração e recortes de artigos sobre personagens a serem retra-tadas. No terceiro, folhas de papel almaço, com o texto datilografado em uma das faces e a outra reservada aos acréscimos feitos em caneta, e que também po-diam conter recortes de textos e desenhos.

A prática quase obsessiva do desenho para reconstituição do passado não deve ser vista, porém, apenas como busca de verossimilhança. A escrita que nas-ce a partir do desenho, diz Souza, “é sequestrada pela marca expressionista e particular de quem se vale do esquecimento como forma de inventar e de distor-cer modelos”. No instante em que ele escreve, as impressões do passado já estão fi ltradas pelo esquecimento e se reconstroem na sua condição de rasura e de falha, comprovando “o inevitável jogo entre memória e fi cção”. |Sheila Kaplan|