revista No coração da Antártida

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Vida abaixo de zero O cotidiano no acampamento brasileiro Aquecimento global Pesquisas apontam as mudanças do clima Pôster Mapa e história do continente No coração da Parte integrante da Folha de S.Paulo Não pode ser vendida separadamente Foto Toni Pires/Folha Imagem 22 DE MARÇO DE 2009 FOLHA ACOMPANHA PRIMEIRA MISSÃO CIENTÍFICA BRASILEIRA AO INTERIOR DO CONTINENTE GELADO FOLHA ACOMPANHA PRIMEIRA MISSÃO CIENTÍFICA BRASILEIRA AO INTERIOR DO CONTINENTE GELADO

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projeto gráfico e edição de arte: Adriana Mattos e Thea Severino infografia: Marcelo Pliger data de publicação: março 2009 • vencedor na categoria arte do Prêmio Folha de Jornalismo de 2009 • vencedor na categoria especial de informação científica, tecnológica ou ecológica do Prêmio Esso de Jornalismo (equipe: Marcelo Leite, Toni Pires, Claudio Ângelo, Marília Scalzo, Marcelo Pliger, Thea Severino, Adriana Caccese de Mattos, Renata Steffen e Flávio Dieguez)

Transcript of revista No coração da Antártida

  • Vida abaixo de zeroO cotidiano no

    acampamento brasileiro

    Aquecimento globalPesquisas apontam as

    mudanas do clima

    Pster Mapa e histria

    do continente

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    FOLHA ACOMPANHA PRIMEIRA MISSO CIENTFICA BRASILEIRA AO INTERIOR DO CONTINENTE GELADOFOLHA ACOMPANHA PRIMEIRA MISSO CIENTFICA BRASILEIRA AO INTERIOR DO CONTINENTE GELADO

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  • s desbravadores da Antrtida usavam essa frase (no mais alm, em latim) sempre que avanavam o mximo, aonde ningum havia estado antes. O colunista da Folha Marcelo Leite e o reprter fo-togrfico Toni Pires, podem repeti-la com orgulho: em dezembro ltimo, tor-naram-se os primeiros jornalistas bra-sileiros a pisar o interior do continente gelado, chegando a 1.083 quilmetros do polo Sul geogr co. Se bom jornalismo ir aonde nenhum outro reprter foi e contar a seu leitor uma histria, Marcelo, 51, e Toni, 43, atingiram sua essncia.

    E que histria eles tm para contar. A dupla passou 14 dias nos montes Pa-triot, sem banho, dormindo em barra-cas, para acompanhar com exclusivida-de o trabalho dos pesquisadores da Ex-pedio Deserto de Cristal a primeira misso cient ca brasileira no interior da Antrtida e o maior salto j dado na cincia polar nacional em seus 27 anos. A expedio um dos pontos altos da participao brasileira no Quarto Ano Polar Internacional, um esforo de pesquisas que se encerra neste ms e envolveu cerca de 5.000 cientistas de 60 pases, destinado a entender as rela-es das regies polares com o clima.

    Marcelo define a jornada: Foi um

    dos trabalhos mais importantes em meus 30 anos de jornalismo. Uma ex-perincia sensorial e intelectual nica: por mais que se leia sobre a Antrtida, no h nada parecido no mundo. Toni, em sua segunda viagem regio, con-corda: Foi uma experincia de vida, diferente de todas as outras pautas jor-nalsticas. O frio e o desconforto fsico, dizem ambos, acabaram eclipsados. Nas prximas pginas, voc acompa-nha a aventura dos dois e dos cientistas brasileiros no desbravamento da ltima regio desconhecida do planeta.

    Claudio AngeloEditor de Cincia

    Antrtida ou Antrtica?

    Tanto faz. Os gegrafos consagraram Antrtida,

    gra a adotada pelo Itamaraty

    e pela Folha

    Toni Pires (esq.) e Marcelo Leite em frente barraca, no acampamento

    Editorial

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  • Um jor nal a ser vi o do Bra sil

    Pre si den te Lus FriasDire tor edi to rial Ota vio Frias FilhoSupe rin ten den tes Anto nio Manuel Tei xei ra Men des e Judith BritoEdi to ra-exe cu ti va Eleo no ra de Luce na

    No corao da AntrtidaDiretora do Ncleo de Revistas Cleusa TurraEdi o Claudio Angelo e Marlia ScalzoProjeto grfico e edio de arte Adriana C. de Mattos e Thea SeverinoInfografia Renata Steffen (coordenao), Flvio Dieguez e Marcelo PligerTratamento de imagem Luciano Bernardes e Wantuhir Lopes Junior

    E-mail revis [email protected] re o Ala me da Baro de Limei ra, 425, 8 andar, CEP 01202-900, So Paulo, SP

    PUBLICIDADEDiretor-executivo comercial Antonio Carlos de MouraDiretor de noticirio Marcelo BenezGerentes de noticirio Luiz Prusas, Joo Gabriel Junqueira, Simone Souza, Manuel Luiz (RJ) e Beth Maciel (executiva)Telefones0/xx/11/ 3224-3129 / 3224-3128Diretor de classificados Rodolfo NegroGerentes de classificados Wilson Lelis, Jefferson Ferreira e Vicente Freitas Telefones 0/xx/11/ 3224-4787 / 3224-3233

    Impres sa nas ofi ci nas da Plu ral Edi to ra e Gr fi ca

    Encar te da edi o de domin go da Folha de S.Paulo, 22 de maro de 2009.No pode ser ven di da sepa ra da men te. Tira gem total: 400.700 exem pla res

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  • No corao da

    8 FOLHA DE S.PAULO | 22 DE MARO DE 2009

    REPRTERES DA FOLHA TESTEMUNHAM O COTIDIANO E AS PESQUISAS DA EXPEDIO DESERTO DE CRISTAL. A PRIMEIRA MISSO CIENTFICA BRASILEIRA INDEPENDENTE AO INTERIOR DO CONTINENTE ANTRTICO TEM A MISSO DE DESVENDAR PASSADO E FUTURO DO LUGAR MAIS FRIO DO PLANETA

    por Marcelo Leite fotos Toni Pires

    enviados especiais Antrtida

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  • 9Acampamento brasileiro nos montes Patriot, que abrigou oito

    pesquisadores durante 46 dias

    NO CORAO DA ANTRTIDA

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  • s 23h52 de 26 de dezembro, pouco mais de quatro horas depois de decolar de Pun-ta Arenas, extremo sul do Chile, o jato cargueiro Ilyushin-76TD da Air Almaty baixa o trem de pouso. Quatro minutos mais e o avio de ma-trcula cazaque fretado pela empresa americana Antarctic Logistics and Ex-peditions (ALE) toca suavemente o ge-lo da pista principal de Montes Patriot (Patriot Hills), na Antrtida. Aberta a porta, uma onda de frio, luz e irrealida-de invade a cabina, com o ar a -8oC.

    O reprter fotogrfico Toni Pires e

    Passageiros levados pela ALE desembarcam do jato Ilyushin, meia-noite de 26 de dezembro, na pista de gelo azul perto dos montes Patriot

    aventura 2.000 km mais perto do polo Sul do que a Estao Antrtica Coman-dante Ferraz, a base tradicional da pes-quisa brasileira na Antrtida, e um feito indito que a Folha veio testemunhar com exclusividade por duas semanas.

    Sensao trmica (wind chill)O corpo no sente a temperatura do ar, masa da pele, protegida por uma camada de araquecida pelo corpo. O vento diminui essecolcho de ar, criando risco de congelamento. A -10oC com vento de 56 km/h a sensao de -32,5oC; partes expostas do corpo congelam em menos de um minuto

    eu somos os nicos brasileiros a bordo. Aps 13 dias de espera em Punta Arenas, retidos por ventos e nevascas antrticas que impediam o voo at Patriot, desem-barcamos no acampamento-base da Expedio Deserto de Cristal, monta-do pelo Ncleo de Pesquisas Antrticas e Climticas (Nupac), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ao lado da base para turistas da ALE.

    Pela primeira vez cientistas do Brasil realizam misso autnoma no corao do continente austral, para investigar as profundezas do manto de gelo que o recobre h 33 milhes de anos. Uma

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  • Bremer, 48, gegrafo mineiro da Uni-versidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e Marcio Cataldo da Sil-va, 30, carioca, bilogo da Universida-de do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Encostados em motos de neve Yamaha

    No vero antrtico, o continente ca o tempo todo exposto ao sol, que no se pe sob o horizonte

    pretas, uma delas com bandeirinha do Brasil no bagageiro, os dois integrantes da expedio seguram placas de carto com os nomes Mr. M. Leite e Mr. T. Pires. Os demais passageiros j vo adiantados na caminhada de 1.850 m at o acampamento da ALE. Enquan-to tento alcan-los e Toni fotografa o avio, Bremer e Cataldo transportam as malas em trens at o acampamento brasileiro, 750 m para oeste.

    Sou um dos ltimos a entrar na bar-raca principal da ALE, um casulo azul e branco de 20 m x 5 m e piso de madei-ra. No ambiente maior h uma dezena de mesas compridas com oito ou dez lugares. Umas cem pessoas metade passageiros que chegam, outra metade que parte dentro de uma hora de volta Amrica do Sul se debruam sobre pra-tos fumegantes. As lentes de meus culos se embaam de imediato, assim como a

    Altas latitudesComo o eixo de rotao da Terra

    inclinado 23O em relao ao plano da rbita em torno do Sol, durante metade

    do ano o polo Sul ca mais virado para a estrela do que o polo Norte. Na outra

    metade do ano, ocorre o inverso

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    Finalmente cheguei ao territrio internacional da Antrtida, ao puro retngulo de quartzo e solido sem terra e sem pobreza de que fala o chile-no Pablo Neruda no poema Antrtica. Faltam agora s quatro minutos para a meia-noite. O sol brilha, ofuscante, dois dedos acima dos montes ao sul, em seu percurso excntrico sobre o horizonte nos veres em altas latitudes, como aqui nos 8018S.

    Do alto do avio, no limiar da porta, uma pequena decepo: o gelo glacial da Antrtida, que em todos os textos que devorei descrito como azul, pare-ce mais branco, quase cinza. A pista de pouso de fato se assemelha a um retn-gulo de quartzo, com cerca de 100 m de largura e 2.500 m de comprimento. O ar queima por dentro das narinas e induz espasmos passageiros na respirao, como se mergulhasse numa cachoeira glida e seca. Mesmo rodeado por deze-nas de pessoas, a sensao de desam-paro completo, no embate solitrio do corpo com o poder letal do frio.

    Apenas uma escada vermelha de metal me separa do manto de gelo que recobre os 14 milhes de km2 da Antr-tida, um dcimo das terras do planeta. Bojudas botas polares Baf n e o peso dos equipamentos nas mochilas contri-buem para a instabilidade. O perl do solado de borracha garante trao nou-tros terrenos, mas sobre o gelo apresen-ta tanta utilidade quanto a lmina de um patim. O vento de 16 km/h derruba a sensao trmica para -15C. A su-perfcie est coberta de ondulaes, co-mo um oceano em miniatura. S pos-svel andar a passos midos de ancio, e a beira da pista parece mais distante que o prprio polo Sul, a 1.083 km.

    Esto nossa espera Ulisses Franz

    NO CORAO DA ANTRTIDA

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  • da cmera fotogr ca. Toni entra na bar-raca e enfrenta a mesma di culdade.

    A preleo da gerente britnica Fran Orio aos recm-chegados recomenda muita gua, mscaras de neve e luvas trs requisitos para prevenir os males antrticos comuns: desidratao, pois se perde muita gua pela respirao neste que o maior deserto do mundo, cegueira da neve, dolorosa queimadura da crnea por raios ultravioleta e con-gelamento (frostbite) de extremida-des do corpo, como dedos e nariz. Ela deve saber do que fala, j que lhe falta o polegar da mo esquerda.

    Barbas grisalhasSamos de volta para o frio. Bremer e Cataldo j nos esperam com as motos e seguimos para o acampamento bra-sileiro. O percurso suave, com poucos

    solavancos nos sstruguis, lnguas de neve dura esculpidas pelo vento que sopra quase sem cessar do sul (basta observar o alinhamento dos calombos para deduzir a direo predominante do vento). O rudo das motos atrai o l-der da expedio, glacilogo Jefferson Cardia Simes, 50, da UFRGS, e seu brao direito, o gegrafo Francisco Eliseu Aquino, 38, mais conhecido co-mo Chico Geleira, por causa de pesqui-sas anteriores sobre movimentao de geleiras na pennsula Antrtica, 2.000 km ao norte de Patriot.

    A equipe da Expedio Deserto de Cristal se completa com mais quatro pessoas: os gegrafos da UFRGS Rose-mary Vieira, 42, carioca, e Luiz Fernan-do Magalhes Reis, 51 (que tambm qumico), gacho, o fsico carioca Hei-tor Evangelista da Silva, 45, da Uerj, e

    o chileno Marcelo Arvalo, 48, da Uni-versidade de Magalhes, em Punta Are-nas. Arvalo o alpinista da expedio, capacitado para resgates no caso de acidentes nas montanhas ou em fendas de gelo. Os oito integrantes da misso chegaram a Patriot em 30 de novembro e ali permaneceriam at 13 de janeiro.

    Para dar-nos as boas-vindas, Simes e Aquino deixam o conforto relativo do mdulo de bra de vidro empresta-do pelo Instituto Nacional Antrtico do Chile (Inach) uma espcie de iglu azul apelidado de gordito, com cer-ca de 7 m x 3 m, piso de bra e quatro escotilhas de plstico. Ambos j pare-cem recuperados da parte mais exaus-tiva da expedio, o deslocamento de metade da equipe para 250 km a oeste daqui, entre os montes Johns e Woollard. Eles coordenaram l uma

    So Paulo(BRASIL)

    Santiago(CHILE)

    Punta Arenas(CHILE)

    EstaoAntrticaComandanteFerraz

    Polo Sulgeogrfico

    Acampamentobase

    MonteJohns

    1.083 km

    2.15

    7 km

    Luiz Fernando eMarcelo Arvalo

    Banheiro

    Cozinha

    gua

    Marcelo Leitee Toni

    Heitor eMarcio

    Rosemary

    Combustvel

    Ulissese Chico

    Motos

    CargaMdulo Azul(Jefferson)Pista IL-76

    Pista Twin Otters

    MontesPatriot

    Marcelo Leite/Folha Imagem

    13

    NUVEM LENTICULAR

    comum o ar frio vindo do plat antrtico causar a formao de nuvens em forma de lente, ou capuz, quando encontra a barreira de uma montanha e forado a subir suavemente, resultando na condensao do vapor logo acima do relevo

    Gordito, o mdulo de fibra de vidro emprestado por pesquisadores chilenos ao grupo brasileiro, serve como escritrio e dormitrio

    O ACAMPAMENTO BRASILEIRO

    NO CORAO DA ANTRTIDA

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  • campanha de perfurao de gelo em pleno plat antrtico, na companhia de Arvalo e Reis, sob temperaturas de at -28oC e sensao trmica de -40oC (leia reportagem na pg. 34).

    Aps quase um ms na Antrtida, os homens ostentam barbas crescidas e gri-salhas com exceo de Cataldo, o mais jovem, que tem barba e cabelos compri-dos negros. Todos explicam a disposio de enfrentar as agruras antrticas com base em sonhos juvenis de explorao, alimentados pelos relatos de pioneiros polares como Robert Falcon Scott, Er-nest Shackleton e Roald Amundsen. Ro-semary Vieira conta que comeou a in-teressar-se pela origem das montanhas na adolescncia, enquanto as escalava na regio de Nova Friburgo (RJ), o que a levou geogra a fsica e s geleiras. O l-der Simes, no entanto, combate vises romnticas da cincia antrtica: Aven-tura nesta atividade no existe. Existem s os incautos, a rma, adaptando uma mxima de Amundsen.

    Roald Amundsen (1872-1928)

    Aventura apenas mau planejamento, frase do noruegus, que liderou a primeira expedio a alcanar o polo Sul, em 1911

    Estao

    Instalada em fevereiro de 1984 na baa do Almirantado, ilha Rei George (Shetlands

    do Sul), a Estao Antrtica Comandante Ferraz (EACF), base do Proantar,

    comeou com 8 mdulos e hoje tem 63

    tos brasileiros nessa arte coisa que no momento est fora dos planos da FAB.

    Essa limitao logstica confinou a pesquisa polar brasileira perife-ria da Antrtida nos 27 anos de vida do Proantar. Com acesso apenas por embarcaes como o navio de pesqui-sa ocea-nogr ca Ary Rongel e voos curtos de helicptero, ela se restringiu s ilhas e ao litoral da pennsula. Nas reas costeiras est o 1% da Antrtida que ca livre de neve e gelo durante os veres, portanto muito pouco repre-sentativo das condies nos restantes 99% do continente. Os projetos de pesquisa tendem a se concentrar nas reas de oceanografia e fauna, com-pondo um portflio cientfico mo-desto mesmo diante de outras naes sul-americanas, como Chile, Argen-tina e Peru, ou de economias de por-te similar, como a Coreia do Sul, que

    A equipe de cientistas brasileiros: da esq. para a dir., Jefferson Simes (chefe da expedio), Francisco Aquino, Ulisses Bremer e Rosemary Vieira

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    27 ANOS NA PERIFERIADA ANTRTIDA

    O acampamento-base da Expedio Deserto de Cristal foi montado pelo Ncleo de Pesquisas Antrticas e Cli-mticas da UFRGS em Patriot por cau-sa da logstica oferecida pela empresa ALE. o nico lugar que pesquisado-res brasileiros podem alcanar no in-terior do continente sem depender da Marinha Brasileira ou de instituies cient cas estrangeiras, como o Inach, parceiro chileno do Nupac em outras expedies uma delas levou Simes ao polo Sul no vero de 2004/2005, numa travessia de 2.300 km em tratores.

    A Marinha e a Fora Area nacionais, que do apoio logstico ao Programa An-trtico Brasileiro (Proantar), no esto capacitadas para operar longe das tem-peraturas amenas da regio da pennsu-la Antrtica, na ponta da qual ca a ilha Rei George, sede da Estao Antrtica Comandante Ferraz. Os avies C-130 (Hrcules) da FAB poderiam pousar sobre rodas no gelo de Patriot, como faz o Ilyushin, mas para tanto seria preciso que chilenos treinassem pilo-

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  • A Antrtida cobre umarea de 14 milhes de km2.O mar congelado suavolta varia de 3 milhes dekm2 a 18 milhes de km2(no inverno)

    2007-2009, esforo global de pesquisa que, apesar do nome, durou dois anos e termina neste ms. De um patamar de R$ 1 milho anual, o oramento da pesquisa antrtica brasileira saltou pa-ra a casa dos R$ 10 milhes. Um total de 64 naes participa da empreitada internacional, com projetos de investi-gao e levantamento de dados que de-vem manter 10 mil cientistas ocupados pelo menos at 2011. A contribuio do Brasil stimo pas mais prximo da Antrtida rene 30 instituies de pesquisa e dez projetos, entre os quais se destaca a Expedio Deserto de Cristal, o nico com trabalho de campo fora da regio da pennsula Antrtica.

    Com R$ 700 mil de oramento, a expedio o segundo projeto mais dispendioso do Proantar no Ano Po-lar. Chegou a correr risco de no se realizar, com a alta do dlar no nal de 2008, que reduziu a equipe de 14 para 8 pessoas. Mas cumpriu seu objetivo central: sob a neve de Patriot j esta-vam prontas para o embarque as 16 caixas de isopor com mais de uma cen-tena de testemunhos de gelo, colunas escavadas do manto polar cuja anlise fsico-qumica permite obter informa-es sobre o clima do passado.

    construiu um navio quebra-gelo para aumentar seu raio de ao na Antrtida.

    Os programas de pesquisa antrtica de pases mais desenvolvidos, como Reino Unido e EUA, foram desmilita-rizados e operam com embarcaes e avies prprios ou contratam o equipa-mento mais adequado para cada proje-to. A pesquisa do Proantar tem hoje direo civil, a cargo do Conselho Na-cional de Desenvolvimento Cient co e Tecnolgico (CNPq), mas a logstica permanece sob o controle da Marinha, o que d a ela o poder de interferir no andamento dos estudos e objeto de crticas entre cientistas. A deciso de um comandante de no desembarcar em uma determinada enseada, ou uma tripulao de helicptero que descar-regue equipamento cient co no local errado, pode pr a perder a viagem do pesquisador e meses de planejamento de um projeto, como j aconteceu.

    O mais recente ponto de atrito entre cientistas e militares brasileiros surgiu com a compra e adaptao de um na-vio noruegus (o Ocean Empress), em que se investiram R$ 71 milhes, para dividir misses antrticas com o Ary Rongel. O Navio Polar Almirante Ma-ximiano, de 93 m, ter uma tripulao

    de 54 militares e acomodao para 106 pessoas apenas um tero destinado comunidade cient ca. Pesquisadores reclamam que no foram chamados a opinar sobre o novo layout do navio.

    Com as verbas disponveis para pesquisa polar os cientistas parecem satisfeitos, graas ao impulso trazido pelo Quarto Ano Polar Internacional

    Heitor Evangelista, Marcio Cataldo, Luiz Fernando Magalhes Reis e Marcelo Arvalo (o nico chileno da Expedio Deserto de Cristal)

    65% MAIOR QUE O BRASIL

    A Antrtida cobre uma rea de 14 milhes de km2. O mar congelado sua volta varia de 4 milhes de km2 a 22 milhes de km2 (no inverno)

    15NO CORAO DA ANTRTIDA

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  • 16 FOLHA DE S.PAULO | 22 DE MARO DE 2009

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  • Francisco Eliseu Aquino, o Chico Geleira, gegrafo da UFRGS, coleta dados de presso atmosfrica, velocidade do vento, temperatura do ar e sensao trmica

    com aparelho que todos levam pendurado no pescoo e chamam de amuleto

    17NO CORAO DA ANTRTIDA

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  • Bambus so usados para marcar a

    localizao de objetos em caso de nevasca

    Havia dois tipos de banheiro no acampamento: um de tonel com funil para os homens urinarem; e a barraca com vaso sanitrio para o restante

    URINAR, COMER, DORMIR

    Se as condies meteorolgicas ditam tudo o que se pode e deve fazer na An-trtida, a vida do indivduo governada pela siologia. Isso ca evidente duran-te o passeio de apresentao do acam-pamento, ciceroneado por Simes e Aquino. A primeira coisa que mostram so o mictrio masculino ao ar livre um biombo improvisado com tam-bores de combustvel e botijes de gs, atrs do qual um tonel com funil faz as vezes de urinol. Em seguida, a barra-ca da privada uma caixa de carga de mar nite com tampa de vaso sanitrio adaptada, sob a qual se posiciona um balde forrado com saco plstico preto.

    No caso da barraca-banheiro, h duas

    instrues importantes a seguir. Em primeiro lugar, no esquecer de retirar o saco do balde, fechar bem a boca dele, depositar na pilha do lado direito e forrar o balde com um saco novo. Alm disso, deitar o bambu do lado de fora durante a ocupao e p-lo de novo em p, nca-do na neve, ao terminar. Dessa maneira, qualquer um pode enxergar de outras barracas se o territrio est livre.

    A parada seguinte a cozinha, uma tenda Weather Heaven amarela, azul e vermelha apelidada de jabuti, centro fsico e social do acampamento. Antes de entrar, mais um aviso de higiene: o quadrado demarcado por quatro esta-cas, a 5 m da porta, ca reservado para a coleta de neve para fazer gua. No deve ser pisado, para evitar contaminao.

    A primeira noite de sono no dura mais que trs horas. O saco de dormir recheado de penas e dotado de capuz

    e ciente, mas no o bastante para apa-gar o fato de que estou separado da neve e de temperaturas negativas apenas pe-lo piso de plstico negro da barraca, por uma esteira de isolante trmico embor-rachado e por um colcho in vel com 2 cm de espessura. A parede dupla da barraca contribui para aquec-la, mas o ar quente se concentra na parte su-perior, onde secam as meias e os forros das botas. A luz amarela filtrada pela lona no convida leitura, penosa tam-bm pela necessidade de manter fora do saco ao menos um antebrao, que gela em poucos minutos.

    Na tenda h espao para duas pessoas deitadas, quatro malas empilhadas e menos de um metro quadrado livre para apoiar botas com neve grudada, uma por vez, na complicada manobra de entrar pela porta dupla em formato de manga de camisa, uma voltada para

    Acima, goulash (ensopado hngaro) servido na chegada dos turistas barraca principal da ALE; esq. a boneca domstica para alerta sobre a arrumao da cozinha no acampamento brasileiroMa

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  • fora, outra para dentro. A neve trazida pelas botas se acumula no pequeno quadrado de piso livre, como areia num acampamento de praia, e nunca derre-te. Faz muito frio, a qualquer hora do dia, o que se sente em especial nos ps, mas bem menos que do lado de fora. Todos mantm na barraca uma garrafa s para urinar durante o perodo de so-no, sem ter de acrescentar duas ou trs camadas adicionais de roupa, para sair.

    A disposio metdica do acampa-mento no se re ete nos horrios. Cada um dorme e acorda na hora que quer, ou consegue, j que o sol nunca se pe. Se o vento e a nevasca amainarem na madru-gada por conveno se adota o horrio chileno, uma hora atrs de Braslia, quase certo que algum aproveitar a brecha para sair de moto e realizar al-gum trabalho de campo. A nica ativida-de conjunta, quando calha de dar certo,

    Entrada da barraca de dormir, em formato de manga de camisa, aps uma nevasca

    Rosemary Vieira enche panela com neve, na rea demarcada com bambus, para derretimento no fogareiro e produo de gua para beber e cozinhar; no acampamento, h um panelo sempre cheio de neve que, no entanto, produz s um quinto do volume de gua depois de derretida

    a tambm nica refeio quente do dia, em algum horrio entre 16h e 2h.

    No restante do tempo, come-se sem parar. Biscoitos, sucrilhos, torradas, cho-colate, ch, caf, leite quente. No preci-so de conselhos de sade para buscar de forma contnua e premente as calorias e os lquidos capazes de manter meu me-tabolismo acelerado. A nal, todo o calor disponvel para o organismo, dentro das roupas ou do saco de dormir, produzi-do por ele mesmo. Nas duas semanas em que estive no acampamento, a mni-ma registrada no bloquinho de Aquino no cairia abaixo de -10,4o C, embora ventos de mais de 30 km/h, com raja-das de at 100 km/h, pudessem levar a sensao trmica a -22o C.

    Minha primeira refeio acontece s 17h do dia 27, um sopo de macarro reformado pelo bilogo Cataldo a par-tir de um cozido do dia anterior. A ba-

    se de protena um escalope de carne que saiu das almofadas verde-escuro de plstico aluminizado produzido por uma empresa de Campinas (SP), comi-da pronta fornecida pela Marinha que ocupa o topo do ranking de queixas, em-patada com as dirias pagas aos expedi-cionrios (R$ 50). O frango cozido e as almndegas so quase aceitveis, depois de retirados do molho que preenche a embalagem fechada a vcuo e refoga-dos com azeite de oliva e temperos.

    No mais, o cardpio o previsvel em um acampamento: sardinha e atum (em leo e no gua, para no forar as latas e vazar se congelados), ma-carro instantneo de vrios sabores, farofa pronta, batata palha, ketchup... Quase sempre tudo misturado, em pratos plsticos com profundidade de tigelas e pores de fazer inveja a operrios da construo civil.

    Jefferson Simes pede para encher

    o prato, ao lado de Heitor Evangelista;

    no caldeiro, um sach de alumnio e

    plstico contendo comida pronta, em

    geral ensopados; a temperatura na

    cozinha varia de 4oC a 8oC

    19NO CORAO DA ANTRTIDA

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  • GELO MESMO AZUL E DOMINA A PAISAGEM

    A primeira sada do acampamento uma caminhada de 1 km at a base chi-lena Parodi. Ela ca ao p dos montes Patriot, que formam a ponta sul da srie de cadeias de montanhas conhecida co-mo vale da Ferradura, um semicrculo que se estende at o noroeste, a uns 40 km de distncia. Nosso guia o bilogo Cataldo, que parte em busca de acar para reforar a despensa desfalcada.

    A temperatura est em -8o C, supor-tvel. Com trs camadas de camisetas e calas, uma jaqueta de feltro sinttico ( eece) e o casaco de penas, comeo a suar. Seriam necessrios alguns dias at regular a quantidade de roupas e dominar o manuseio dos zperes estra-tgicos, nas axilas e na lateral das calas de vento, para deixar parte do calor es-capar. Uma dor de garganta comea a se

    H estabilidade su ciente para estabe-lecer uma pista de pouso no gelo, como zeram militares chilenos. Um acordo permite que a ALE tambm a utilize.

    Um retorno ao contato direto com o gelo, aps o pouso do Ilyushin, s acontece no domingo, nosso segundo dia. Rosemary Vieira nos convida para uma coleta de rochas na reentrncia das montanhas defronte ao acampamento que apelidou de vale da Avalanche, por causa de uma falha na neve da encosta.

    Com o sol brilhando num ngulo mais favorvel, ca evidente que o gelo azul, mesmo, e no s por licena potica da glaciologia. A estrutura cristalina do gelo glacial absorve radiao na faixa da cor vermelha, deixando disponvel para as retinas uma quantidade incomum de luz em frequncias prximas do azul.

    Junto da montanha o gelo se projeta para baixo numa depresso, provvel efeito da ao de ventos catabticos, que tm origem no vrtice de ar sobre o polo Sul, um funil que o derrama pa-

    insinuar, mas sucumbe a anti-in ama-trios e ao conselho de respirar pelo na-riz sempre, para aquecer o ar antes que atinja a mucosa da laringe.

    A base chilena uma confortvel reunio de mdulos azuis iguais ao gordito conectados por uma galeria em formato de tnel e uma cozinha-refeitrio. No se veem trancas, s vel-cro, e na Antrtida a tradio que co-mida abandonada pode ser usada por quem precisa. H banheiros comple-tos, com aquecedores e chuveiros para duchas semanais conforto inexistente no acampamento brasileiro, onde to-dos sofrem com os cabelos empastados e quebram o galho com lenos ume-decidos. A estao est desocupada h quase dois anos, parece cenrio de um lme de co cient ca. A expedio brasileira ia alojar-se aqui, mas na lti-ma hora a negociao fracassou.

    Uma placa de alumnio escovado in-forma que a camada de gelo se desloca velocidade de 8 m por ano em Patriot.

    A gegrafa Rosemary Vieira coleta pedras e solo na geleira de rocha do vale da Avalanche, a 2 km do acampamento brasileiro nos montes Patriot

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  • PalmilhaTreliada paraisolar o p do fundoda bota, que podeficar mido

    Pares de meiaDois ou maispares de l outecido sinttico,que acumulampouca umidadee secam rpido

    Botas polaresDe borracha emateriais sintticosimpermeveis

    BotimDe feltroimpermeabilizado,encaixado dentro dabota, para mantero p aquecido

    Dois pares de luvaUm par mais fino parauso constante, ao qualse sobrepe outro par,impermevel, para usono ambiente externo

    culos/mscara de esquiCom filtro pararadiao ultravioleta,previne a cegueirada neve

    MinhocesDuas ou maiscalas de baixo defibras inteligentes

    Cala de ventoImpermevel

    Malha de lOu outras peas defleece opcionais

    Gorro

    PescoceiraDe fleece

    BalaclavaProtege o rostode congelamentopelo vento

    Parca impermevelImprescindvel contraneve e vento. Recheadacom penugem degansos hngaros,para garantir o mximode isolamento como mnimo de peso

    Jaqueta sintticaDe tecido felpudo(fleece), usada porbaixo da parca comocamada mais espessade aquecimento

    CamisetasFeitas de fibrasinteligentes, querespiram e deixamsair o suor de juntodo corpo (no seusa algodo, queacumula umidade)

    ra baixo com violncia, escorrendo da sobre o relevo, do plat para a periferia menos elevada do continente. Por isso os ventos predominantes na Antrtida sopram do quadrante sul.

    Vista de cima, a onda de gelo re ete o sol e se parece com o mar. A no ser pe-los raros a oramentos de rocha escura, a paisagem se impe com grande varie-dade de formas em duas cores, o azul do gelo e do cu e o branco da neve e das nuvens. O olhar vagueia pela imensido e no raro se equivoca quanto s distn-cias, sempre maiores do que parecem.

    A onipresena do gelo se torna ain-da mais evidente no anfiteatro que Bremer e Vieira escolheram para coletar sedimentos nesta tarde. Entre as duas vertentes de rochas verdadeiras h grandes reas de cascalho interrom-pendo a brancura da neve. Ao abrigo do vento e sob efeito do sol forte, a tempe-ratura do ar est em 3,8o C. As pedras absorvem radiao solar e cam bem mais quentes, a 7,1o C. Cavando 3 cm, a temperatura baixa para 1,5o C. Mais um pouco e se alcana o permafrost, faixa de solo sempre congelada que em Patriot tem 25 cm de espessura. Abai-xo disso, uma camada de gelo que pode ter centenas de metros acima do leito rochoso verdadeiro.

    Trata-se de uma geleira de rocha, explica Vieira: parte da montanha sob nossos ps no de fato uma monta-nha, mas uma duna de gelo salpicada de cascalho. Essas geleiras revestidas de detritos se formam em condies especficas de baixa precipitao e baixa temperatura, no superior a 0oC, com vertentes laterais prximas de onde despencam pedaos de rocha erodidos por incontveis ciclos de congelamento e descongelamento.

    KIT DE SOBREVIVNCIA As roupas especiais usadas pela equipe para enfrentar temperaturas de at -40C

    21NO CORAO DA ANTRTIDA

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  • 22 FOLHA DE S.PAULO | 22 DE MARO DE 2009

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  • Campo de gelo azul perto do acampamento brasileiro em

    Patriot; a moto de neve da Expedio Deserto de Cristal

    leva dois pesquisadores

    23NO CORAO DA ANTRTIDA

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  • 24 FOLHA DE S.PAULO | 22 DE MARO DE 2009

    MISTERIOSAS LINHAS INTRIGAM CIENTISTAS

    Aps a coleta de material geolgico, as duas motos de neve da Expedio De-serto de Cristal mal tm tempo de es-friar. s 18h, quem sai nelas com Toni e comigo nas garupas so Evangelista e Cataldo. Seu destino um ponto 12 km a leste do acampamento, longe das mon-tanhas e perdido na plancie branca. Seguimos na direo das Trs Velas, um trio de nunataks termo da lngua es-quim inuit para cumes de montes sub-mersos que conseguem a orar no gelo. Os pesquisadores cariocas precisam re-abastecer o gerador de seu experimento principal (leia box na pg. 38).

    De l seguimos para o amplo vale da Universidade, formado pelos montes Patriot e Independence. a chance de conhecer o outro lado das monta-nhas que margeiam o acampamento. Evangelista e Cataldo querem comple-mentar suas amostras de testemunhos rasos (1 m de profundidade) com dois tipos de gelo: azul e marrom, por assim dizer. No primeiro caso, gelo no conta-minado pelas emisses dos geradores, tratores, motos e avies da ALE e seus vizinhos. No outro, gelo das enigmti-cas linhas de sedimento que encontra-ram em paralelo ao p das montanhas.

    Esses detritos rochosos suspensos no gelo haviam motivado uma acalorada discusso no dia anterior, na barraca da cozinha. Uns opinavam que teriam sido transportados do fundo da geleira para cima, verticalmente, quando ela encon-trou a barreira das montanhas e subiu. Outros achavam que as linhas provi-nham de sedimentos sados das prprias

    montanhas. Vieira descobriria depois que as linhas misteriosas j comeam a ser estudadas, sob o nome de blue ice moraines (morainas de gelo azul).

    O nome faz referncia aos depsitos de sedimentos e rochas que resultam do avano e do retrocesso de geleiras, conforme o clima se aquece ou resfria ao longo de sculos e milnios, trans-portando rochas de um lugar a outro. As linhas de pedras morainas que sobram demarcam a frente e a lateral da geleira que se retraiu. Nas imedia-es de Patriot h duas morainas enor-mes, Rivera e Casassa, batizadas com os nomes de glacilogos chilenos que estudam a regio h mais de dez anos e com quem Vieira estudou nos quatro anos que viveu no Chile.

    Escavando um cilindro de gelo com um testemunhador porttil (broca ma-nual), Evangelista e Cataldo esperam poder analisar em detalhe as enigm-ticas morainas de gelo azul, na volta ao laboratrio do Rio, em busca de pistas sobre sua procedncia. A expectativa associar sedimentos antigos com as ltimas glaciaes, ciclos de avano e recuo da massa de gelo, mas por ora permanece o mistrio sobre a origem das linhas, que ainda alimentariam v-rios debates na cozinha.

    Perto da meia-noite, com quatro ci-lindros de gelo ensacados, etiquetados e acondicionados na caixa de isopor, retornamos ao acampamento. No pelo mesmo caminho, nem pela outra boca do vale, a oeste, mas cruzando os montes Patriot por uma ponte de gelo entre duas cristas. A vista do alto fe-nomenal e a rampa, suave, no chega a meter medo. Vinte minutos depois da meia-noite, aps 42 km de percurso e seis horas de exposio ao frio, che-

    Marcio Cataldo utiliza broca manual para retirar amostra de gelo, observado por seu orientador, Heitor Evangelista, ambos da Uerj

    O gelo glacial na regio de Patriot azul-claro na superfcie e ca cada vez mais escuro quanto maior for a espessura observada

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  • gamos famintos barraca da cozinha. Atum com farofa e batata palha, torra-das com queijo Polenghinho e ch pre-to resolvem o problema.

    Tempestades e anomaliasO acontecimento do dia 29 de dezembro a remontagem da sonda eltrica perfu-radora de gelo que havia sido utilizada entre os montes Johns e Woollard (leia reportagem na pg. 34). O dia termina-ria sem o pouso previsto do jato da ALE, um mau sinal se o tempo continuar ruim e as chegadas e partidas, atrasadas, di cilmente sair o voo de retorno dos brasileiros, previsto para 4 de janeiro.

    No dia seguinte, mais sadas de mo-to com Vieira e Simes, at a moraina Casassa e as montanhas Marble, outro

    pedao da Ferradura. Como todos j es-to com suas quotas de peso estourando, diminui o ritmo da retirada de amostras e comeam a seleo e o empacotamen-to para a viagem de volta. Aos poucos o acampamento inteiro se volta para a arrumao das 2,4 toneladas de carga que embarcaro no Ilyushin.

    Tempestade e nevasca chegam com o ltimo dia do ano e di cultam at mes-mo o leva-e-traz de caixas na neve fofa e sob vento intenso. O con namento aba-te um pouco o moral da expedio. Uns passam mais tempo dormindo, outros com seus livros, relatrios ou DVDs. Simes libera o telefone por satlite para todos falarem com suas famlias, o que d incio a uma peregrinao ao gordito, onde cam os equipamentos

    eletrnicos. Alguns saem do mdulo para falar de saudade sem constrangi-mento, mas de dentro se ouve tudo.

    A nevasca iniciada em 31 de dezembro dura quatro dias. O meteorologista da ALE diz que a pior temporada dos lti-mos dez anos em Patriot. Como a regio se encontra sob a in uncia dos mares de Bellingshausen e Amundsen, a sus-peita que a penetrao de massas de ar mais mido e quente tenha sido favore-cida pelo aquecimento dessas sees do oceano Austral a oeste da pennsula, sob efeito da mudana climtica global.

    Essas massas de Bellingshausen-Amundsen aumentam a precipitao de neve e desencadeiam tempestades ao se chocarem com os ventos secos e frios que descem do plat. O colapso da

    Linha escuras no gelo azul do vale formado pelos montes Independence ( esq.) e Patriot, tambm conhecidas como morainas de gelo azul

    25NO CORAO DA ANTRTIDA

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  • camiseta onde se l Climber (escala-dor). A festa da ALE tem um qu de bar intergaltico em Guerra nas Estre-las. Quase todos os homens de cabea raspada, ou quase, muitas tatuagens e piercings. Um grupo de senhores japo-neses desaparece do canto assim que terminam os brindes da meia-noite. Restam uns tantos alpinistas, a dezena de brasileiros e duas dzias de funcio-

    nrios da empresa. Cerveja Austral e vinho tambm chileno, em caixinhas de papelo, so servidos vontade.

    Na poncheira esculpida em gelo res-tam s vestgios de frutas, mas o vulco a seu lado est ativo: uma funcionria animada convoca os recm-chegados para encostar a boca na abertura mais baixa, enquanto despeja rum, usque ou o que estiver mo pela abertura de cima. Entre uma convocatria e outra, d tapas nas ndegas dos homens. Em seguida, atrasa o relgio da parede em uma hora, para ter um novo Rveillon.

    Na data marcada para a partida, 4 de janeiro, o tempo surpreende e se abre, reavivando a esperana de voltar para casa. Seriam porm cinco dias de frus-trao, com tempo limpo e muito vento,

    Moraina (linha de pedras) e nunatak (palavra da etnia esquim inuit para designar cume de montanha que aflora na geleira) nas montanhas Marble

    Plataforma de WilkinsCampo de gelo com vrios metros de

    espessura e 14 mil km2 que cobre o mar da baa de mesmo nome na pennsula Antrtica. A plataforma conectava o

    continente a vrias ilhas, como a Charcot, at h pouco mais de um ano

    plataforma de Wilkins no momento o sinal mais forte da anomalia na regio, o que faz temer que o tempo comece a mudar no s no vero de Patriot mas tambm nos invernos do Sul e do Su-deste brasileiros, pois nessas reas de mar congelado que se originam muitas frentes frias que alcanam o Brasil.

    A ceia de Ano Novo frango refor-mado com arroz e amndoas. Todos ainda alimentam a expectativa de que algum da ALE chegue com um convi-te para festejar o Rveillon, como havia ocorrido no Natal. O chamado s vem s 23h20, mas transforma os pesqui-sadores, que saem em passo apertado, sob neve forte. Cataldo ainda arranja tempo para um mergulho em sua bar-raca, da qual emerge com calas jeans e

    26 FOLHA DE S.PAULO | 22 DE MARO DE 2009

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  • 27

    o experimento a 12 km de distncia.Tive necrose da derme e epiderme

    em todas aquelas regies da mo. De-pois que voltei, aos poucos o inchao sumiu e deu lugar a placas escuras, quase pretas, de pele necrosada, con-taria Cataldo num e-mail. Agora j descascou tudo e minha mo est no-va em folha, com apenas uma ou duas pequenssimas cicatrizes para contar a histria para os meus netos.

    O Ilyushin pousa de novo em Patriot s no dia 9, s 3h56, trazendo a pequena comitiva uma dezena de pessoas do prncipe Albert de Mnaco. Decola de novo s 6h15. Toni e eu camos com os ltimos bancos laterais, de metal, entre duas paredes com trs andares de tonis vazios amarrados com cintas, que esta-

    mas nenhum voo segundo a ALE por causa das rajadas, da temperatura do gelo na pista, disso e daquilo, o que s contribui para espalhar a convico de que a empresa est enrolando enquanto espera o retorno de alguma expedio ao macio Vinson para lotar o Ilyushin.

    Congelamento na moA pior notcia chega no dia 7, trazida por Steve Jones, outro gerente da em-presa: o prximo voo ocorreria no dia seguinte, mas teria lugar s para dois brasileiros, Toni e eu. O mau humor se dissemina entre os cientistas da Expe-dio Deserto de Cristal, com poucas excees. Chico Geleira a mais not-vel. Prope resgatar em espcie a dvi-da da ALE conosco: cebola, alho, azeite de oliva que chega congelado numa garrafa PET, queijo, vinho, cerveja e refrigerantes, luxos quase desconhe-cidos at ento pelos expedicionrios. O rancho incrementado dissolve um pouco da ansiedade, mas no muito. Depois de 39 dias dormindo e acordan-do no frio, sem banho, cama de verdade ou cadeiras com encosto, o estado de esprito parece compreensvel.

    Vieira e Arvalo esto muito res-friados e passam boa parte do tempo na barraca. A gegrafa tem tambm algumas manchas pelo corpo, que so examinadas e fotografadas pelos m-dicos da ALE um ingls e um sueco. Por insistncia de Simes, Cataldo tambm os consulta sobre um inchao que comeara num ferimento no dedo mdio da mo esquerda. No chegam a um diagnstico preciso, que s viria no Rio de Janeiro dez dias depois: princ-pio de congelamento nas articulaes, provvel resultado do vento nos mui-tos percursos de moto para abastecer

    lam para valer na decolagem e no pouso em Punta Arenas. Abertas a porta dian-teira e a rampa traseira, a cabina inva-dida pela umidade e um cheiro de terra e de plantas uma outra onda de irreali-dade, aps duas semanas no gelo azul.

    Os oito integrantes da Expedio Deserto de Cristal ainda teriam de esperar mais quatro dias para voltar a Punta Arenas e outros cinco para aportar no Brasil, somando 60 dias longe de casa. Antes de deixar o Chile era preciso desembaraar toda a car-ga e certificar-se de que o total de 21 caixas de gelo estavam seguras em cmaras frigor cas, aguardando seus prprios voos para o Rio de Janeiro e para o Maine (EUA), onde ficaro pelo menos dois anos em estudo.

    Passageiros caminham para embarcar no jato (ao fundo) que os levaria ao Chile, em 9 de janeiro

    NO CORAO DA ANTRTIDA

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  • 28 FOLHA DE S.PAULO | 22 DE MARO DE 2009

    Aprisionado pelo gelo marinho no mar de Weddell, em 1915, o Endurance, de

    sir Ernest Shackleton, aderna 30 graus; o navio afundaria em novembro daquele ano...

    Pra que serve esta

    Fran

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  • A HISTRIA DA ANTRTIDA TEM SIDO

    MARCADA PELA DISPUTA ENTRE A CINCIA E A EXPLORAO

    ECONMICA. A PRIMEIRA EST

    LEVANDO A MELHOR POR ENQUANTO

    Em fevereiro de 1775, aps se tornar o primeiro homem a circunavegar o oceano Aus-tral, James Cook encerrou assim o debate de sculos sobre a exis-tncia de um continente desconhecido no sul do planeta: Terras condenadas eterna frigidez, (...) cujo aspecto horr-vel e selvagem no tenho palavras para descrever: tais so as que descobrimos e as que podemos imaginar existirem mais ao sul. A bordo do HMS Resolu-tion, o britnico havia chegado a 150 km da costa da Antrtida, mas sem avistar o continente. A quem se dispusesse a avanar alm dele, Cook deixou um avi-so: No me causar inveja pela honra da descoberta, mas atrevo-me a dizer que o mundo no se bene ciar dela.

    No foi preciso muito tempo para que a profecia se mostrasse furada. J em 1784 o mundo ou parte dele co-meou a se beneficiar da Antrtida, quando caadores de focas chegaram

    29

    s ilhas Gergia do Sul e Sandwich do Sul em busca da valiosa pele do lobo-marinho (Arctocephalus gazella). O influxo, ironicamente, fora inspirado pelo prprio Cook, que nove anos an-tes registrara as vastas quantidades de focas e baleias nos mares austrais.

    A histria de Cook e dos foqueiros emblemtica do cabo-de-guerra entre descoberta e explorao econmica, en-tre cincia e pecnia, que marca a histria da Antrtida. Foi um cientista, Edmond Halley, quem viu seus icebergs tabulares tpicos pela primeira vez, e um explora-dor, o russo Thaddeus Bellingshausen, o primeiro a avistar o continente. Mas foram caadores de focas os primeiros a pr os ps em terras antrticas e a en-frentar o inverno na regio. Foram fo-queiros e baleeiros que mapearam gran-de parte do litoral antrtico no sculo 19. Mas foi um evento cient co, o Terceiro Ano Polar Internacional, em 1957/58, que permitiu a efetiva ocupao do con-tinente antrtico e acabou por coloc-lo sob administrao internacional.

    Desde o Terceiro Ano Polar (amplia-do para Ano Geofsico Internacional), a cincia vem prevalecendo no continen-te. O Tratado da Antrtida, adotado em 1959 sob inspirao do Ano Geofsico e rati cado em 1961, consagra o territrio antrtico paz, e uma emenda ao tratado, o Protocolo de Madri, de 1991, probe ali at 2041 qualquer atividade que no seja a pesquisa cient ca, o turismo e, princi-palmente, a preservao ambiental.

    Di cilmente algum que chegasse s ilhas Shetlands do Sul (onde ca a esta-o brasileira Comandante Ferraz) em 1820 imaginaria que aquela regio seria convertida em um santurio ecolgico algum dia. As ilhas antrticas naquela poca se pareciam mais com um gran-

    de abatedouro, onde lobos-marinhos eram mortos aos milhares. As cifras exatas jamais sero conhecidas os fo-queiros no reportavam suas capturas, nem revelavam seus locais de caa, por medo de concorrncia, mas Robert Headland, especialista em ocupao da Antrtida do Instituto Scott de Pes-quisa Polar, no Reino Unido, estima em milhes o nmero de animais abati-dos. Um dos caadores, James Weddell descobridor do mar que hoje leva seu nome, estimou em pelo menos 420 mil os lobos-marinhos massacrados entre 1821 e 1822. Ficou to chocado com o tamanho do abate que props um es-quema, nunca adotado, de captura de apenas 100 mil animais por ano.

    O lado positivo dessas viagens de ex-termnio foi que os foqueiros acabaram descobrindo novas terras na Antrti-da. Foram tantas as expedies, mais de 1.500, que alguma descoberta era inevitvel, diz Headland, autor de A Chronology of Antarctic Exploration, um compndio de mais de 700 pginas

    ...no mesmo mar, em fevereiro de 2007, o quebra-gelo alemo Polarstern desembarca cientistas

    por Claudio Angelo, editor de Cincia

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    e 2,4 quilos sobre a ocupao da regio, recm-lanado na Inglaterra. Outro efei-to colateral do extermnio das focas, a r-ma o pesquisador, foi uma exploso nos estoques de krill no oceano Austral o que, por sua vez, levou a uma exploso na populao de baleias, o recurso natural seguinte a ser explorado na Antrtida.

    A viagem magntica de RossA cincia retomaria as rdeas da conquis-ta polar novamente na dcada de 1830. Naquele perodo, as focas j estavam praticamente extintas, e a existncia de um grande continente austral, mais ou menos demonstrada. S que ningum ainda conseguira penetrar o mar con-gelado acima dos 71 graus de latitude, o ponto ne plus ultra (alm do qual nin-gum avanara) das navegaes de Cook e Weddell. Isso dava margem a todo tipo de especulao, inclusive uma teoria ma-luca segundo a qual a Terra era oca nos polos. Tambm restava um mistrio a resolver: a localizao do polo magnti-co. Numa poca em que a mentalidade

    A viagem de Ross deu momento ideia de conduzir investigaes cient -cas na Antrtida, diz Colin Summerhayes, presidente do Scar (Comit Cientfico sobre Pesquisa Antrtica), entidade que coordena a cincia na regio. Esse es-foro acabou resultando no Ano Polar Internacional, em 1882-1883, primeiro esforo multidisciplinar de pesquisa po-lar. Apesar de ter lanado a semente da cooperao internacional, o Ano Polar foi um asco na prtica. S em 2006, 123 anos depois, os dados coletados durante o evento seriam processados.

    O massacre das baleiasQuem aproveitou muito melhor que os cientistas as observaes de Ross foi uma atividade que seria o terror do ocea-no Austral at 1965: a indstria baleeira. Assim como Cook fizera com as focas, Ross reportara grandes quantidades de baleias em seus dirios, o que serviu de guia para expedies de caa que come-aram a chegar Antrtida esporadica-mente em 1874. As condies de captura,

    cientfica e exploratria dos europeus alcanou seu ponto mximo (foi em 1831, por exemplo, que Charles Darwin partiu a bordo do Beagle), esse era um buraco imperdovel no conhecimento.

    Trs expedies foram organizadas e enviadas simultaneamente, a partir de 1838, com o mesmo objetivo de superar Cook e achar o polo magntico Sul: a do francs Dumont DUrville (que batizaria uma parte do continente e uma espcie de pinguim em homenagem a sua mulher, Adlie), a do americano Charles Wilkes e a do britnico James Clark Ross.

    Os navios de Ross, o Erebus e o Terror, entraram na banquisa por trs vezes en-tre 1840 e 1843. Ross no chegou a des-cobrir o polo magntico (que mostrou -car em terra, no no mar), mas penetrou at os 78 graus de latitude sul, batendo Cook e Weddell. De quebra, descobriu terra no continente, beira do mar que hoje leva o seu nome, alm da grande plataforma de gelo antrtica, a barreira de Ross, de onde partiriam as expedies de descoberta do polo geogr co Sul.

    O polo Sul em dezembro de 1911, conquistado pelo noruegus Amundsen e quatro companheiros, e hoje, na estao americana Amundsen-Scott

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    no entanto, desencorajaram os caado-res: a maioria das baleias eram azuis, n e minkes, que nadam rpido demais para serem alcanadas por veleiros. Para no perder a viagem, esses caadores exter-minaram o restante das focas antrticas.

    A partir de 1904, o advento dos navios a motor, somado inveno do arpo de ponta explosiva, permitiram indstria baleeira moderna se instalar na Antrti-da e caar as baleias velozes. A primeira estao industrial, Grytviken, na Gergia do Sul, foi estabelecida pelo noruegus Carl Larsen, que deu nome plataforma de gelo que se esfacelou em 2002 sob in uncia do aquecimento global.

    Entre 1904 e 1965, 1,4 milho de ba-leias foram mortas na Antrtida. Se somarmos as capturas em reas de re-produo, ao norte dos 40 graus Sul, o valor total chega a quase 1,8 milho, diz o brasileiro Alexandre Zerbini, ocea-ngrafo da Noaa (Agncia Nacional de Oceanos e Atmosfera) dos EUA.

    A sanha dessa indstria, que fazia de leo de motor a margarina base de ba-leia, levou esses cetceos beira da ex-tino e alterou o ecossistema antrtico (desta vez permitindo a recuperao das focas e a exploso da populao de pin-guins). At hoje, praias das Shetlands do Sul so coalhadas de ossos de baleia.

    O advento dos baleeiros tambm ps em movimento um problema que ex-plodiria dcadas depois e que at hoje no foi resolvido: as pretenses terri-toriais na Antrtida, principalmente aquilo que Robert Headland chama entre risadas de a questo do ABC: argentinos, britnicos e chilenos.

    Muito tempo atrs houve reivin-dicaes territoriais britnicas, mas nunca ningum fez nada a respeito at que houvesse dinheiro na jogada, no

    A histria no foi gentil com Robert Falcon Scott. Alm de ter perdido por um ms a corrida pelo polo Sul para seu rival, o determinado e metdico Roald Amundsen, o capito da Marinha Real Britnica ainda morreu no caminho de volta com quatro de seus companhei-ros, Edward Wilson, Henry Bowers, Edgar Evans Wiliam e Oates no come-o de 1912, na barreira de Ross.

    A lenda que se criou em torno de seu nome diz que Scott era um trapalho incompetente que morreu e matou seus homens porque planejou mal a expedio. Em vez de cachorros, levou pneis, inteis na Antrtida, para pu-xar trens. Desprezou os esquis, levou pouca comida e pouco combustvel, era mau navegador e no entendia do cli-ma antrtico. Sua morte a menos de

    20 km de um depsito de comida e com-bustvel, seria a maior prova disso.

    Nos ltimos anos, no entanto, a -gura de Scott tem sado da geladeira. Um dos principais esforos nesse sen-tido foi o livro The Coldest March, da climatologista americana Susan Solomon, publicado em 2001. Solomon analisou o registro meteorolgico an-trtico e concluiu que, a cada dez anos, as temperaturas na barreira de Ross caem para abaixo de -40C em maro. E maro de 1912 era um desses anos. A essa temperatura a neve impede os trens de deslizarem. Scott co-meteu, sim, vrios erros, como levar roupas inferiores s de Amundsen (que havia copiado dos esquims) e subutilizar os ces. Mas, sobretudo, deu um tremendo azar.

    A RESSURREIO DE SCOTT

    Reprod

    uo

    Da esquerda para a direita: Wilson, Bowers (sentado), Scott, Evans (sentado) e Oates

    NO CORAO DA ANTRTIDA

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    O POLO DE HITLEREm um dos captulos mais miste-

    riosos da explorao polar, o vice de Adolf Hitler, Hermann Gring, man-dou uma misso secreta Antrti-da em janeiro de 1939. Chegou-se a especular que os alemes tivessem feito uma base polar, um refgio pa-ra o Fhrer caso perdesse a guerra. Mas no foi nada disso. Segundo o pesquisador Colin Summerhayes, a ideia era reivindicar terras na regio para que a indstria baleeira alem pudesse operar livremente a gli-cerina usada nos explosivos vinha do leo de baleia. Gring tambm queria testar o funcionamento de avies em baixas temperaturas, para poder invadir a Rssia.

    licenciamento da atividade baleeira, a rma Headland. A pennsula e as ilhas subantrticas eram consideradas terri-trio britnico, e os ingleses cobravam taxa de quem quisesse caar por l. Isso levou os noruegueses a declarar a posse de um enorme territrio a leste da penn-sula, e os argentinos e os chilenos que consideram a pennsula o seu quintal a baterem o p nas prprias reivindicaes.

    Os argentinos so ferozes, os chile-nos so muito quentes tambm, e isso significa que os britnicos no podem esquecer! E de tempos em tempos eles recebem lembretes, o maior deles em 1982 com as... como vocs chamam em portugus? Ilhas Malvinas! A Antrtida foi uma das questes envolvidas, garga-lha o pesquisador, lembrando a guerra declarada pela ditadura argentina con-tra o Reino Unido pelo arquiplago que os britnicos chamam de Falklands.

    A era heroicaDepois do Ano Polar, os cientistas volta-riam a investir na Antrtida a partir de 1895, quando o Congresso Geogrfico Internacional elegeu o continente bran-co sua prioridade. Foi o incio da breve, mas intensa, era heroica da explora-o, na qual homens frequentemente mal equipados e mal preparados se aventuraram no interior do continente. Duas expedies perderam seus navios, esmagados pela banquisa: a do sueco Otto Nordenskjold, em 1901-1904 (a bor-do do Antarctic) e a do britnico Ernest Shackleton, em 1914-1917 (a bordo do Endurance). E uma delas perdeu cinco vidas, incluindo a de seu lder, o britni-co Robert Falcon Scott (leia quadro na pg. 31). O saldo dessa fase de explorao foi a conquista do polo Sul, em 14 de de-zembro de 1911, pela expedio norue-

    guesa comandada por Roald Amundsen.Apesar do triunfo de Amundsen,

    quem passaria para a histria como o maior explorador polar de todos os tempos seria Shackleton, que fracas-sou em suas trs viagens Antrtida.

    Na primeira delas, acompanhan-do Scott no Discovery em 1901-1902, Shackleton adoeceu com escorbuto e quase morreu. Na segunda, liderada por ele mesmo a bordo do Nimrod em 1907-1909, ele chegou a 156 km do polo geogrfico, mas foi forado pelo mau tempo a dar meia-volta.

    Na terceira viagem, a bordo do Endu-rance, j agraciado com o ttulo de sir, Shackleton tentou fazer a primeira tra-

    vessia da Antrtida a p, desembarcando no litoral do mar de Weddell, cruzando o polo e embarcando no mar de Ross. O Endurance deixou a Inglaterra em agos-to de 1914 e foi aprisionado pelo gelo marinho de Weddell no dia 18 de janeiro de 1915. A partir da, comeou a derivar a noroeste, at ser esmagado pela banqui-sa em outubro e afundar em novembro.

    O que se seguiu foi talvez a maior aven-tura da histria da explorao geogr -ca. Shackleton e seus 27 homens viveram durante seis meses sobre placas de gelo utuantes, algumas com poucos cent-metros de espessura, sob a ameaa cons-tante de que o cho se abrisse noite e tragasse os homens para o mar gelado, ou que uma orca confundisse os homens com focas e rompesse as placas em busca de uma refeio como, de fato, aconte-ceu. Depois disso, em trs botes, alcana-ram a ilha Elefante, a 180 km do bloco de gelo deriva sobre o qual acampavam.

    Shackleton deixou 22 homens em Elefante e partiu com cinco compa-nheiros num bote de 6 metros, o James Caird, para buscar ajuda. Objetivo: ilha Gergia do Sul, a 1.500 km dali, numa travessia de 16 dias pela passagem de Drake, o mar mais tempestuoso do mundo. Num esforo final, o grupo ainda teve de cruzar a Gergia do Sul a p, para buscar ajuda na estao bale-eira de Grytviken. Os homens em Ele-fante foram resgatados quatro meses depois. Todos sobreviveram.

    Pax AntarcticaA era heroica assentou as bases para a ex-plorao do interior do continente, que foi praticamente congelada no entre-guerras e retomada com fora no Ano Geofsico Internacional de 1957-58, aps um Segundo Ano Polar Internacional

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    pfio em 1932. O ps-Segunda Guerra trouxe aos cientistas outra urgncia: evi-tar que a Antrtida se tornasse a prxi-ma fronteira da Guerra Fria entre EUA e URSS (mal sabiam eles que os EUA detonaram secretamente trs bombas nucleares sobre o oceano Austral em 1958). O esforo de cooperao entre americanos e soviticos no Ano Geof-sico foi real e levou construo de dois legados antrticos: a estao americana Amundsen-Scott, no polo Sul, e a russa Vostok, no alto do plat polar.

    cooperao cientfica seguiu-se tambm a cooperao poltica. Em 1 de dezembro de 1959, os 12 pases que parti-ciparam do Ano Geofsico assinaram em Washington o Tratado da Antrtida, que estabelece no seu artigo primeiro que a Antrtida dever ser usada apenas para ns pac cos. As reivindicaes territo-riais, embora no fossem negadas, foram congeladas por seus signatrios, que hoje so 27 (incluindo o Brasil, que se juntou ao clube em 1975). Eu chamo isso de Pax Antarctica, diz Bob Headland.

    Como todos os acordos voluntrios,

    no entanto, o Tratado da Antrtida se as-senta sobre bases frgeis. Por exemplo, se minerais valiosos, sequncias gen-micas ou alguma outra coisa que atenda a uma demanda mundial forem encon-trados na Antrtida, o pior cenrio que se rompa o tratado, a rma o britnico. Com isso seriam reativadas as preten-ses territoriais de sete pases (alm de Argentina, Chile e Reino Unido, Frana, Austrlia, Nova Zelndia e Noruega).

    As chances de isso acontecer no mo-mento so pequenas. O continente no possui nenhuma jazida mineral identi- cada com potencial comercial.

    Vamos falar srio: o nico mineral explorvel so rochas para a construo civil, porque 99,7% da Antrtida esto cobertos de gelo permanente, ri Head-land. Geologicamente, h formaes se-melhantes s de reas com minerais da Austrlia e da frica do Sul. Deve haver minerais l, mas difcil chegar at eles.

    Um protocolo sobre explorao mine-ral chegou a ser negociado, mas acabou substitudo pelo Protocolo de Madri, que estabelece a proteo ambiental.

    Este esqueleto de baleia-jubarte foi montado por Jacques Cousteau na ilha Rei George, como um memorial do massacre desses cetceos no sculo 20

    Acho que as pessoas que eram a fa-vor da ideia foram levadas Antrtida e ento se deram conta do quo incrivel-mente difcil seria fazer minerao ali, uma vez que quase nenhuma rocha est exposta, o gelo grosso em toda parte, as temperaturas so extremas, o tempo medonho, a maioria do continente ca no escuro seis meses por ano, ele cer-cado por um cinturo macio de gelo de 1.000 km de largura, h poucos portos seguros e no vero o mar ca coalhado de icebergs macios que tornam a nave-gao e a instalao de plataformas de petrleo no mar arriscadas, enumera Colin Summerhayes, do Scar.

    Pelo sim, pelo no, recentemente o Reino Unido e a Austrlia incluram se-es do oceano Austral no levantamento de suas plataformas continentais, o que em tese transforma parte da Antrtida em sua zona econmica exclusiva uma reserva para eventual uso futuro.

    James Cook jamais imaginaria que suas terras condenadas fossem um dia despertar tanta cobia. Grande na-vegador, pssimo profeta.

    Toni

    Pire

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    Imag

    emNO CORAO DA ANTRTIDA

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    O MANTO DE GELO QUE COBRE A ANTRTIDA GUARDA SEGREDOS SOBRE O CLIMA DA TERRA E AMEAAS PARA

    OS CIENTISTAS QUE SE DISPEM A ESTUD-LO do m

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    o mundo por Marcelo Leite, enviado especial Antrtida

    Pesquisador da Expedio Deserto de Cristal nca

    bandeira na rea entre os montes Johns e Woollard em

    que se montou o acampamento brasileiro que perfurou 95 m

    de gelo no plat antrtico

    NO CORAO DA ANTRTIDA

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    Deus do cu! Este lugar horrvel, escreveu Robert Falcon Scott em seu dirio, em 17 de janeiro de 1912, ao alcanar o polo Sul e se dar conta de que Roald Amundsen j tinha estado ali. A frase hoje enfeita o bar da estao norte-americana Amundsen-Scott, no polo, com humor um tanto deslocado (Scott e seus companheiros derrota-dos morreriam no caminho de volta, algumas semanas depois), e contradiz a atrao magntica que o polo exerce sobre pesquisadores e aventureiros de toda parte: se fosse to ruim, no have-ria tanta gente louca para ir at l.

    Estamos no meio do nada, nalmen-te no deserto polar, anotou o glacio-logista Jefferson Cardia Simes, bem mais animado, em seu relato sobre a jor-nada principal da Expedio Deserto de Cristal ao corao da Antrtida. Duran-te 16 dias de dezembro, metade da equi-pe brasileira de cientistas alm dele, Francisco Eliseu Aquino, Luiz Fernan-do Magalhes Reis e Marcelo Arvalo acampou num ponto perdido (latitude 795528S, longitude 942318W) en-tre os montes Johns e Woollard, 2.115 m

    acima do nvel do mar, em pleno plat antrtico. Para todos os lados, somente uma superfcie plana, batida constante-mente por ventos que no inverno podem ultrapassar fcil os 150 km/h.

    A temperatura anual mdia no local de -33C. Durante o inverno, quando o sol no brilha, pode cair a -50C. No momento em que o quarteto desem-barcou do avio bimotor com esquis alugado da empresa ALE, s 12h45 de 8 de dezembro, o tempo estava enso-larado, sem nuvens, e fazia -19C. Ti-nha durado uma hora o voo de 250 km desde o acampamento-base da pio-neira expedio brasileira nos montes Patriot, que ca na altitude de 900 m e sob temperaturas pelo menos 10C mais quentes ou menos frias. O tur-bolice Twin Otter decolou de volta a Patriot, deixando 900 kg de carga sobre a neve comida para 20 dias, o dobro da estadia prevista, equipamentos para perfurar gelo e trs barracas, que o gru-po comeou a montar de imediato.

    A rea entre Johns e Woollard havia sido escolhida precisamente por seu isolamento. O objetivo do grupo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) colher informa-es sobre o comportamento do clima global e local por meio dos chamados testemunhos, colunas de gelo escava-das em sentido vertical. As montanhas mais prximas ficam a dezenas de quilmetros de distncia, e estaes de pesquisa, a centenas. O solo rocho-so, alm disso, encontra-se cerca de 1.500 m abaixo da superfcie, pois essa a espessura do gelo na regio.

    Essa condio d aos pesquisadores segurana de que as partculas encon-tradas no gelo dos testemunhos, em an-lises posteriores no Brasil e nos EUA,

    PRIMAVERA E OUTONO NOS POLOS

    S no polo sul existe um continente sob o gelo, a Antrtida. No rtico, a camada congelada muito menos espessa e repousa sobre o oceano

    Maro

    Setembro

    O gelo est acomodadosobre o continenteAntrtida

    Canad Rssia

    A plataforma de geloflutua sobre o oceano

    Maro

    Setembro

    RTICO

    ANTRTIDA

    Fonte: NSIDC

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    Montanhas Transantrticas

    Pennsula Antrtica

    Polo Sulgeogrfico

    M a r d e W e d d e l l

    M a r d e A m u n d s e n

    M a r d e D a v i s

    B

    A0 m (nvel do mar)

    1.500 m

    750 m

    2.250 m

    Sul

    B

    A

    cortePolo Sulgeogrfico

    Plataformade Ross

    Terra daRainha Maud

    Terrade Coats

    Terra deMarie Byrd

    Monte Melbourne2.732 m

    Monte Erebus3.794 m

    Monte Hederson2.660 m

    Geleira BeardmoreMacioVinson4.892 m

    Terra deEllsworth

    Port Locroy

    Estao AntrticaComandante Ferraz

    M a r d e R o s s

    Terra de Wilkes

    Terra de Palmer

    Plataforma Ronne

    Fonte: Nasa

    Antiga Plataforma Larsen B

    Polo Sul magntico(localizao em 2005)

    Maior espessura domanto de gelo: 4.776 m

    O fato de estar ancorado emgrande parte abaixo do nveldo mar torna o manto de geloda Antrtida Ocidental maisvulnervel ao aquecimento global

    MontesPatriot

    COBERTOR GELADO A capa congelada que recobre a Antrtida tem espessura mdia de 1.800 m, mas chega a passar de 4.700 m. Parte dela se apoia sobre rochas que esto abaixo do nvel do mar o que signi ca que boa parte do continente seria um arquiplago se no houvesse a gigantesca massa de gelo sobre ele

    BA

    0 (nvel do mar)

    - 4 km

    4 km

    60S70S80SPloSul

    80S70S

    Parte do continenteabaixo do nvel do mar

    Plataforma de gelo

    NO CORAO DA ANTRTIDA

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  • ABANDONADOS NO DESERTO

    Os quatro pesquisadores que se deslocaram de Patriot at o plat antrtico para realizar a perfurao principal da Expedio Deserto de Cristal foram deixados, com todo o equipamento, numa plancie onde s havia neve e gelo

    Fran

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    O RASTRO CONGELADO DAS QUEIMADAS

    Heitor Evangelista da Silva considera-se um lho do Proantar, o Programa Antrtico Brasileiro. Graas a ele, est na sua 11 misso polar em 16 anos. um programa que forma pessoas, diz o fsico, que continua a tradio com seu orientando de doutorado Marcio Catal-do. Eles no zeram parte do grupo que foi a Johns-Woollard porque seu experi-mento principal foi montado em Patriot.

    Uma das tarefas rotineiras de Evange-lista e Cataldo era reabastecer com ga-solina o gerador Honda EU 10i, de 800 watts, a cada dois dias. A eletricidade

    movimentava uma bomba de suco que aspirava o ar antrtico para dentro do impactador em cascata, um tubo coletor de ao inox coberto de PVC que separava material particulado aerossis de seis tamanhos. O ar passava ainda por um frasco de vidro com lquido viscoso para capturar e preservar microrganismos.

    A dupla trabalha em reas de ponta da pesquisa antrtica: black carbon (car-bono elementar) e aerobiologia. Eles querem desvendar o que chega de fora at a Antrtida, em especial as partculas de poeira transportadas pelo ar desde a Amrica do Sul. Parte desse p com-posto de gros de microfuligem, o carbo-no elementar, que tm a propriedade de absorver radiao infravermelha (calor), ou seja, se aquecem sob o sol. O derreti-

    mento acelerado da calota de gelo que se observa no rtico, por exemplo, parece ser causado pelo carbono emitido com a queima de combustveis fsseis nos EUA, na Europa e na China.

    Evangelista e Cataldo j conseguiram mostrar, em expedies anteriores pe-nnsula Antrtica, que parte do carbono elementar depositado no gelo coincide com picos de queimadas na Amaznia. Agora buscam uma assinatura dos in-cndios orestais, para provar que no foi produzido por motores. Sua esperan-a detectar o levoglucosan, um acar que s se forma com a pirlise (queima) da celulose da madeira.

    A poeira sul-americana que chega Antrtida no se compe s de fuligem, mas tambm de partculas de solo e

    TiP

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  • bactrias. Os cariocas foram respons-veis por cultivar as primeiras bactrias extradas do gelo na pennsula Antrtica, o que rendeu a Cataldo uma dissertao de mestrado. Agora querem ver se o gelo azul de Patriot tambm as contm.

    O manto funciona como uma geladeira de verdade para esses microrganismos. Fatiados e derretidos no laboratrio da Uerj, os testemunhos de gelo do origem a colnias de bactrias saudveis.

    Algumas so cepas de bactrias tpicas da Antrtida. Evangelista e Cataldo j viram que outras so originrias de solo da Amrica do Sul. Cultivando-as, acre-ditam poder provar que algumas vm de to longe quanto a Amaznia, depois de atiradas nas alturas da atmosfera pelas colunas de ar quente das queimadas.

    Marcio Cataldo examina frasco para coleta de micro-organismos no experimento

    montado perto de Patriot

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    Imag

    em

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    foram depositadas ali diretamente da alta atmosfera, em algum momento do passado, e no so fruto de contaminao por fontes prximas de poeira e gases.

    Alm disso, o plat Antrtico, ali, est sob influncia direta das massas de ar sobre os mares de Bellingshausen e Amundsen, cuja superfcie congelada a oeste da pennsula Antrtica est na origem de frentes frias que penetram o Brasil todo inverno. Mas Francisco Aquino tambm j encontrou correla-es entre episdios de frio intenso no Rio Grande do Sul e massas de ar prove-nientes do mar de Weddell, do outro lado (leste) da pennsula. Ambas as regies guram entre as que mais se aqueceram por fora da mudana climtica global, e a melhor maneira de reconstituir essa perturbao que parece estar na raiz de

    gelo em ambientes inspitos, os bra-sileiros chegam primeira diviso da pesquisa polar mundial.

    J d para contar uma bela hist-ria, afirma Simes. Para o lder do grupo, a Expedio Deserto de Cristal teve o mrito maior de comprovar a capacidade logstica dos pesquisado-res brasileiros: O Ministrio da Cin-cia e Tecnologia mostrou interesse em investir no interior da Antrtida. Ns demonstramos nossa capacidade de montar e preparar a expedio.

    Acelerao das geleirasCom o colapso de plataformas, as correntes

    de gelo do continente encontram menos obstculos em seu curso para o mar

    uma acelerao das geleiras em dire-o ao mar consultar a memria do clima armazenada no gelo, como os da-dos de um computador no disco rgido.

    Essas frentes frias excepcionais de Weddell investigadas por Aquino so um fenmeno at agora pouco estu-dado, que ele tenta corroborar com as informaes guardadas no gelo. Esses testemunhos do monte Johns ajudaro a fechar o meu teste [do fe-nmeno] nos ltimos 50 anos, diz o gegrafo, referindo-se a uma tese de doutorado no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), de So Jos dos Campos, cuja defesa deve ocorrer ainda neste ano. Com o inte-resse internacional que essas novas teleconexes tm despertado, mais a capacidade de obter testemunhos de

    NO CORAO DA ANTRTIDA

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  • 40

    A PERFURAO A torre da perfuratriz sua montada dentro de uma tenda, para proteger pesquisadores e aparelhos. O motor eltrico rotativo desce na ponta de um cabo de ao, tocado constantemente pelo operador para que a vibrao lhe d uma ideia do que acontece no fundo do poo.

    Quando termina o corte de um cilindro com cerca de 1 m, ele agarrado" por pequenos ganchos na ponta da broca e iado no interior do tubo de metal

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  • Edua

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    41

    SHOW DE LUZES

    Cristais de gelo na atmosfera podem

    produzir um tipo de refrao da luz do

    sol que d origem ao parlio", um halo com

    a imagem quadruplicada da estrela, como se

    pode ver na foto abaixo e na anotao do bloco

    de Francisco Aquino

    Fenmeno atmosfrico-ptico parlio, no acampamento entre os montes Johns e Woollard

    DesidrataoRobert Falcon Scott e seus companheiros

    morreram no s de frio, em 1912, mas tambm por ingerir pouca gua. Vazamentos

    nas latas de combustvel impediram que produzissem gua na quantidade necessria. Comer neve no resolveria, pois o corpo gasta energia demais para derret-la e reaquecer-se

    Jeffe

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    DESERTO DE GUA, FONTE DE DADOS

    No fcil, no entanto. Logo nas primei-ras horas, ainda durante a montagem do acampamento, o quarteto brasilei-ro sentiu o peso de trabalhar no maior deserto do mundo, ainda que formado por gua a maior reserva de gua do-ce da Terra, com 80% do total mundial, s que em estado slido. O primeiro si-nal de desidratao, dores de cabea, comeou a aparecer, forando-os a acender o fogareiro para derreter neve e fazer gua. O dia terminou com du-as tendas montadas, imprescindveis dormitrio-cozinha e banheiro.

    O segundo dia em Johns-Woollard comeou frio, a -25C, e trouxe mais trabalho pesado: a montagem da son-da eltrica Inventor, fabricada artesa-nalmente pelo suo Felix Stampli, e da barraca-domo que abriga cientistas e aparelhos do vento durante a perfu-rao. Os trabalhos prosseguiram at meia-noite, para aproveitar o tempo bom, e quando a mquina de US$ 80 mil equipamento nico na Amrica do Sul, capaz de alcanar 200 m de pro-fundidade foi desligada, o grupo tinha perfurado 25 m de poo.

    At os 70-80 m, que s seriam atingi-dos trs dias depois, a sonda perfura o que se chama de rn, palavra de ori-gem germnica para o estgio interme-dirio entre neve e gelo (neviza, em espanhol). uma espcie de gelo fari-nhento, sobre o qual ainda no caiu o peso su ciente de neve para compac-t-lo na forma de gelo glacial, ou gelo azul. Este s se forma quando a pres-so das camadas superiores elimina a

    NO CORAO DA ANTRTIDA

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  • 250 km40 km

    500m deprofundidade

    rea onde ogelo derrete

    sedimentospr-glaciais

    Pequenos bolsesde gua derretidae lagos subglaciais

    Depresso no geloA presena de corposde gua sob o mantocausa uma depressona superfcie

    AquecimentoA presso naparte inferior dogelo to grandeque chega a gerarenergia em formade calor

    3.670 mProfundidadealcanadaat agora

    450.000 anos a idade aproximadado gelo na camada maisprofunda do manto

    movimentaodo manto de gelo

    movimentaodo manto de geloGelo duroNessa parte, o gelo mais compacto porser pressionado contraa parede lateral

    LagoVostokO RELEVO

    Um levantamentodo terreno sob o gelorevela a depressoonde se localiza o lago

    Estao Vostokfoi estabelecida pelos soviticos em 1957.A perfurao foi interrompida quando abroca se encontrava a cerca de 70 m do lago

    Geradorde energia Dormitrios

    Laboratrio demeteorologia

    DO ESPAOEm imagens desatlite, o lago identificvel por umaampla rea planana camada de gelo

    Fontes: Nasa, NOAA e NSF

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    O lagoVostok

    O lago ca escondido sob uma camada de gelo com espessura de mais de 3 km. Uma equipe russa perfura o manto para chegar at a gua

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    14.000 km2

    a rea do lago, quase dez vezes maior que a rea da cidade de So Paulo

    5.400 km3

    o volume estimado de gua contida no lago

    permeabilidade da massa, interrompen-do a comunicao entre as microbolsas de ar que permanecem em meio aos cris-tais de gua. Para isso, a densidade tem de chegar ao intervalo entre 0,83 g/cm3 e 0,91 g/cm3, quando as microbolsas se tornam microbolhas seladas, compar-timentos hermticos com relquias de ar de dcadas, sculos e milnios passa-dos. O gelo antrtico tambm guarda as impurezas presentes na atmosfera de poeira a substncias radiativas produzi-das em exploso nucleares que tenham cado sobre o continente.

    A anlise desse arquivo de dados at-mosfricos permite recuperar muitos tipos de informao sobre o passado: temperatura, extenso do gelo mari-nho em volta da Antrtida, ciclos de atividade solar, vulcanismo, poluio global, processos de desertificao, concentrao de gases do efeito estufa como dixido de carbono (CO2) e me-tano (CH4). Para isso, no entanto, pre-ciso datar as camadas de gelo, ou seja, descobrir em que poca caiu a neve que lhes deu origem. Alm de caractersti-cas fsico-qumicas que diferenciam a

    neve de inverno da de vero, que permi-tem assim contar as camadas anuais, a datao ou estratigra a calibrada com auxlio de eventos com data ou pe-riodicidade conhecidas, como erupes vulcnicas e testes atmicos.

    Com o material obtido nos 95 m de profundidade do poo entre os montes Johns e Woollard, onde a precipitao de neve atinge um mximo de 300 mm por ano, os cientistas do Nupac podero recuar entre 250 e 300 anos no tempo (em certos pontos da Antrtida Orien-tal, como o Domo Argus, caem menos de 20 mm/ano, e o gelo profundo pode chegar a 1,5 milho de anos). Exami-nando depois as microbolhas presas no gelo, podero determinar qual era a composio da atmosfera, ano a ano, nesses trs sculos, e inferir como va-riaram as temperaturas no perodo. O objetivo entender melhor as ligaes teleconexes, no jargo climatol-gico entre o clima da Antrtida e o da Amrica do Sul, em particular do Brasil.

    Meias molhadasA equipe de Johns-Woollard passou maus bocados com a sonda sua. Seu funcionamento depende de tecnologia, mas tambm de sensibilidade, pois o ope-rador tem de usar o tato para perceber se normal a vibrao do cabo de ao na ponta do qual desce a broca eltrica. No sexto dia, ela travou a 94 m de profundi-dade, e foram necessrias quatro horas e muita fora para solt-la. O moral da tro-pa s no foi junto para o buraco porque a nebulosidade e o frio intenso formaram cristais de gelo no ar que deram origem a um parlio, fenmeno ptico em que o Sol aparece cercado de um halo de luz e quatro outros sis opostos em cruz. Que espetculo! anotou Simes.

    Por segurana, o grupo decidiu cavar outro poo, em 16 de dezembro, e rapida-mente se alcanaram os 76 m. Dois dias depois comeou uma grande nevasca, com vento de 65 km/h e visibilidade de 30 m um whiteout (branco total), em que o visitante antrtico pode facilmente se perder. Alm disso, o mau tempo im-pediu o pouso do avio que viria resgat-los nesse dia, o que s ocorreria seis dias depois, na vspera do Natal. As mesmas ms condies impossibilitavam o pouso em Patriot do jato Ilyushin que levaria a equipe da Folha e que s chegou no dia 26, dois dias aps o m da campanha de perfurao em Johns-Woollard.

    Com a tempestade, a temperatura do ar se elevou, mas subiu tambm a umi-dade. E, com ela, o desconforto dos expe-dicionrios, pois cou quase impossvel secar meias e forros de botas. A umidade atrapalhava a sonda, ao se condensar no metal e ressolidi car em contato com o gelo do poo, travando seguidamente o aparelho. Ocorreu um curto-circuito, mas Reis e Arvalo conseguiram impro-visar um substituto para o pino dani -cado com um prego de caixote limado.

    PrecipitaoNas ilhas Shetlands do Sul, onde ca a

    estao Comandante Ferraz (foto acima), a precipitao de 1.200 mm/ano, 60 vezes

    maior que em pontos do plat Antrtico

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    NO CORAO DA ANTRTIDA

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  • Cilindro de rn, estgio intermedirio entre neve e gelo, retirado numa perfurao em Patriot

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    Depois disso, a escavao prosseguiu at 95 m sem maiores incidentes.

    A perfurao com a sonda do Ncleo de Pesquisas Antrticas e Climticas, que chega a no mximo 200 m, apesar de tudo relativamente simples. Da para baixo, especialmente depois dos 300 m, a presso a que o gelo est submetido tende a fechar o orifcio e prender as son-das. O poo mais profundo da Antrtida foi escavado na estao russa Vostok (re-cordista tambm em temperatura nega-tiva, com -89,2C), onde se usou um tipo de querosene sob presso para lubri car o poo e impedir seu entupimento.

    O testemunho de gelo de Vostok, quando chegou a 3.623 m, forneceu informaes sobre o clima dos ltimos 420 mil anos. Esse gelo s foi superado em antiguidade pelo testemunho obti-

    do em 2004 por franceses e italianos no domo Concrdia, a 560 km de Vostok. Neste caso, ainda que a uma profundi-dade menor (cerca de 3.200 m), foram 800 mil anos de dados. Ao lado de teste-munhos retirados do manto de gelo so-bre a Groenlndia, no hemisfrio Norte, essas perfuraes renderam algumas das evidncias mais fortes de que h um vn-culo direto entre aumento da concentra-o de gases do efeito estufa na atmos-fera e seu aquecimento progressivo.

    O QUE AS PESQUISAS VO MOSTRAR?

    O manto antrtico no s o principal arquivo de informaes sobre o clima do passado, mas tambm um dos princi-pais motores do clima do presente. Seus 25 milhes de km3 de gelo, se derretidos (o que demoraria sculos ou milnios), elevariam o nvel dos oceanos cerca de 60 m no planeta inteiro. Todo esse gelo se encontra ali porque h um desequil-brio trmico no planeta: a regio em tor-no do equador recebe cinco vezes mais calor do Sol que os plos, ao longo do ano. Este diferencial move o sistema do clima terrestre, uma mquina de trans-portar calor para as extremidades norte e sul, 60% dele pela atmosfera (massas de ar) e 40% pelos oceanos (correntes).

    Como tem muito mais gelo que o r-tico, onde o polo coberto por mar e a camada de gelo sobre ele bem mais na, a Antrtida participa ainda mais ativamente desse troca-troca de calor. As guas mais frias e densas da Terra, por exemplo, so formadas sob as pla-taformas de gelo que se projetam do continente sobre o mar e da circulam pelo planeta. Enquanto no rtico a su-perfcie de mar congelado dobra de ta-manho entre vero e inverno, em torno da Antrtida ela se multiplica por seis, passando de 4 milhes para 22 milhes de km2 uma rea maior que a do pr-prio continente (14 milhes de km2).

    Qualquer alterao mais signi cativa nessa mquina ciclpica de produzir e destruir gelo pode afetar o clima de regies inteiras, de geadas a regime de chuvas, como no caso das frentes frias que penetram pelo sul do Brasil. Na opi-

    Vostok

    Quer dizer leste, em russo, e era o nome do navio com que o explorador Thaddeus

    Bellingshausen avistou a Antrtida em janeiro de 1820, a servio do Imprio Russo

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    nio de Simes, a Antrtida pelo menos to importante para o clima brasileiro quanto a Amaznia, mas sua in uncia muito menos conhecida. Da a impor-tncia de estudar a criosfera manto, plataformas, geleiras e mar congelado, para entender a dinmica da Antrtida. A Expedio Deserto de Cristal e a per-furao brasileira em Johns-Woollard constituem uma das vrias peas do mo-saico de conhecimentos em construo pelo Ano Polar Internacional (API).

    Alm da expedio, o ano polar coin-cidiu com mais um impulso glacio-logia brasileira: a criao do Instituto Nacional de Cincia e Tecnologia da Criosfera, uma rede de sete laboratrios em quatro Estados (RS, SP, RJ e MG), com sede na UFRGS e coordenao de Jefferson Simes. Um dos primeiros passos do instituto, que recebeu verba de R$ 4,8 milhes do MCT, ser iniciar a construo, neste ano, de um labora-trio de testemunhos de gelo. O centro ter salas frias e limpas para armaze-nar, processar e analisar os cilindros, trabalho hoje realizado em sua maior parte na Universidade do Maine (EUA), em colaborao com o grupo de Paul Andrew Mayewsky uma celebridade da pesquisa polar, que tem at um pico da Antrtida batizado com seu nome.

    Antes mesmo de se encerrar o API, neste ms de maro, a viso tradicional sobre a estrutura e o comportamento do manto antrtico j passava por um terremoto. A reanlise de dados de sa-tlite, por exemplo, revelou que no s a pennsula Antrtica que se encontra em fase de aquecimento acelerado, no ltimo meio sculo, mas o continente inteiro (+0,6C desde 1957), e em es-pecial a Antrtida Ocidental (+0,85C). O manto est em movimento perma-

    ESCONDIDOS

    Faz menos de quatro anos que a cincia revelou haver um sistema de canais profundos conectando mais de 140 lagos subglaciais sob o manto de gelo da Antrtida

    nente e flui em vrias direes, com velocidades que variam de 1 m/ano a 3,5 km/ano, neste caso formando gran-des correntes de gelo que terminam na costa. Descobriu-se h cerca de uma dcada que nem todo o manto repousa diretamente sobre rocha e que em vrios pontos existem lagos subglaciais, conec-tados por todo um sistema de drenagem este identi cado s em 2005, para es-panto da comunidade cient ca. So rios gigantescos encapsulados sob o manto, cujo efeito acelerador sobre a migrao

    de geleiras mal se comea a entender.A nova coqueluche da pesquisa an-

    trtica est, mais uma vez, sob a rea de Vostok. Ali se detectou o maior lago subglacial do continente, com 14 mil km2 de espelho dgua e profun-didade de 500 m. Cientistas russos j levaram seu poo de perfurao at a 70 m da gua do lago e interromperam o trabalho no ms passado. H uma enorme discusso sobre como obter amostras da gua sem contaminar um ecossistema que est isolado h mi-lhares ou milhes de anos do resto do planeta. O que ningum duvida que se encontrar vida ali, possivelmen-te microrganismos, e que a escavao prosseguir, mais dia, menos dia.

    A Antrtida o ltimo continente intocado do planeta, o nico que cou na forma original, justi ca Simes. um exemplo de cooperao internacio-nal, e a ltima chance de trabalhar em conjunto pela preservao ambiental.

    Um lugar que de horrvel no tem nada a no ser para quem perdeu a vida abrindo o caminho que hoje at pesquisadores de pases tropicais tan-to se esforam por trilhar.

    Principais lagos sob o geloCanais sob o gelo

    Lago 90 E

    Lago Concrdia

    Lago Ellsworth

    Lago Vostok

    NO CORAO DA ANTRTIDA

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    COMO A ANTRTIDA PARTICIPA DOS INVERNOS

    QUENTES E VERES FRIOS BRASILEIROS

    por Flvio Dieguez

    Qual a relao entre o choco-late quente, o caf colonial e o vinho de Gramado, no Rio Grande do Sul, e os ventos antrticos? Uma tal de anomalia do vetor de vento a 925 hPa parece ser a responsvel por unir dois lugares to distantes. A anomalia que

    deixou rastros bem palpveis, tanto na Antrtida quanto no Sul e no Sudeste brasileiros, diz o climatologista Alberto Setzer, do Instituto de Pesquisas Espa-ciais. Na Antrtida, o mar de Weddell estava 40% mais congelado do que o normal, e os ventos tambm, propi-ciando a injeo de ar frio antrtico na direo do Brasil. O resultado, diz ele, foi que a cidade de So Paulo teve o fe-vereiro mais frio em 28 anos; o Esprito Santo, o mais frio em 22 anos; e o Rio de Janeiro, o mais frio em 39 anos.

    O resultado da busca bem-sucedida de uma explicao glacial para essas temperaturas, publicado num relatrio de 2006, anima os climatologistas bra-sileiros, que veem nesse tipo de achado uma oportunidade para aprimorar os modelos de previso do tempo. Ess