Revista Papeis V12 N24

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    Dad os Internacionais de Ca talogaçã o na Pub licaçã o (CIP)(Coordenadoria de Biblioteca Central – UFMS, Ca mpo G rande, MS, Brasil)

    EDITO RA UFMSUniversidade Federal de Mato G rosso do SulCidade U niversitária, Estád io Morenão, Portão 14, Campo G rande, MS.Fone: (67) 3345-7200e-mail: conselho@ editora.ufms.br

    CO RRESPO ND ÊNCIA EDITORIAL E ASSINATURAPapéis: Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudos de LinguagensPrograma de Pós-G raduação em Estudos de LinguagensCentro de Ciências Humanas e SociaisUniversidade Federal de Mato G rosso do SulCidade Universitária , Cx. Postal 549, U NIDADE 4, Ca mpo G rande, MS.Fone: (67) 3345-7634e-mail: pglinguagens@ nin.ufms.br

    Papéis : revista d o Program a d e Pós-Gradua ção emEstudos de Linguagens /Universidade Federal deMato G rosso do Sul. – v. 1, n. 1 (1997)- . CampoGrande, MS : A Universidade, 1997- .  v. : il. ; 23 cm.

    SemestralSubtítulo a nterior: revista de Letras.ISSN 1517-9257

    1. Literatura - Periódicos. 2. Lingüística - Periódicos.3. Semiótica - Periód icos. I. U niversida de Fed eral deMato Grosso do Sul.

    CD D (22)-805

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    Sumário

    Apresentação

    Literatura

    [Artigos]

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    PERSO NAG ENS EM A CASCA DA SERPENTE- JOSÉ J. VEIGASimone Basyl

    ENTRE A LENDA E A HISTÓRIA,ENTRE A AMÉRIC A E A EURO PA,

    AS VIAG ENS DE NO VECENTOAna Maria Ca rlos

    DESLO CAMENTO S TRANSAMERICANOS:UMA LEITURA D E AVE ROC (1994),DE ROBERTO ECHAVARRENAntonio R. Esteves

    O ALQ UIMISTA DE PAULO CO ELHO :AUTO -RETRATO E LEITO R ID EALEusvaldo Rocha Neto

    DE AMIZADES E SAUDADES:CLARICE LISPECTO R E MACHADO DE ASSISRony Márcio Cardoso FerreiraEdga r Cézar Nolasco

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    G UIMARÃES RO SA E CLARICE LISPECTO R:PARA UMA ESTÉTICA DAS AMIZADES LITERÁRIAS

    Marcos Antônio Bessa-OliveiraProf. Dr. Edgar Cézar Nolasco

    “O JARRO DE PRATA” , DE TRUMAN CAPO TE:UMA PROPO STA DESCONSTRUCIONISTA Gabriela Azeredo Santos

    A LITERATURA EM MATO G ROSSO D O SUL

    CO MO EXPERIÊNCIA ESTÉTICARosana Cristina Zanelatto Santos

    TO RTURAS DE U M CO ND O MÍNIOJoã o Luis Pereira O uriq ueJeniffer Elen da Silva

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    Apresentação

    Mais uma edição da Revi sta Pap éi s do Programa d e Pós-Gradua-ção em Estudos de Linguagens vem à lume. Sempre é uma satisfaçãoapresentá-la , pois ela é fruto do trabalho coletivo de docentes do Pro-grama, de técnicos administrativos da UFMS, de discentes do próprio

    Programa e d e discentes de vários cursos de G radua ção da Instituição,com destaq ue para Letras, Artes Visuais e Arquitetura . Nesse coletivo,incluem-se o s autores dos artigos, uma vez q ue, sem eles, não há mo-tivo para a publicação .

    Neste número, há contribuições de representantes da UNESP,da UFPel, da UFG , da UCG e da própria UFMS, ressaltando-se a quali-dade dos ensaios solos e dos artigos escritos por orientadores e seusorientandos. Isso mostra como a Papéis está chegand o à s vá rias regiões

    do País e co mo a diversida de de percepções teóricas alicerça a leiturados textos literários.

    No artigo Persona gens em A Casca da Serpente   – José J. Veiga,Simone Basyl centra-se no estudo do discurso didático das persona-gens arquetípicas do romance de Veiga, tendo como escopo teórico acontribuição de Georg Lukács, numa visada que passa pelo processode transcontextualização q ue sai de O s Ser tõ es , chegando ao A Casca d a Serp ente .

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    Marcos Antônio Bessa-Oliveira e Edgar Cézar Nolasco, em Gui-marães Rosa e Clarice Lispector: pa ra uma estética da s amizades literá-

    rias, trata das relações de amizade entre ambos os autores, pautando-se na crítica cultural biográfica, com ba se na s opções teóricas ofereci-das por Francisco Ortega e por Jacq ues Derrida .

    Em Deslocamentos transamericanos: uma leitura de A v e R o c  (1994), de Roberto Echavarren, Antonio Roberto Esteves, partindo doconceito de entre-lugar de Silviano Santiago, apresenta uma análiseque destaca a porosidade da estrutura narrativa do romance do escri-tor uruguaio, o que gera uma dimensão caleidoscópica dos anos de1960.

    Ainda falando de amizades literárias, incluindo aí as saudades,Rony Márcio Cardoso Ferreira e Edgar Cézar Nolasco, em De amiza-des e saudades: Clarice Lispector e Machado de Assis, focam, comolhar compara tista, o conto A Cartomante, de Machado, e presença dacartomante em A Hora da Est re la  , de Lispector. O artigo é fruto dosresultado s parciais de uma pesquisa maior, Tradução Cultura em A H o ra  

    da Estrela , desenvolvida por ambos os pesquisadores com apoio doCNPq.

    No a rtigo Entre a lenda e a história, entre a América e a Europa, asviagens de N o v e c e n t o  , Ana Maria Carlos analisa comparativamente otexto Novecen tos :   um monólogo (1994), do italiano Alessandro Baricco ,e sua adapta ção pa ra o cinema por Giuseppe Tornatore, no filme Al e n d a d o p i a n i s t a d o m a r    (1999), objetivando mostrar as marcas dapós-modernidade, no que concerne ao hibridismo e às referências à

    própria realização artística.

    Eusvaldo Rocha Neto recorre aos estudos culturais para, no arti-go O alquimista de Paulo Coelho: auto-retrato e leitor ideal, demons-trar como a invariância da literatura de Coelho é semelhante àquelareinante no universo midiático.

    A leitura do conto O Condomínio, de Luiz Fernando Veríssimo,oferece a ma téria de estudo para João Luis Pereira Ourique (ex-profes-

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    sor da UFMS que atualmente está na UFPel) e Jeniffer Elen da Silva.Ambos compreendem a relação estabelecida , em um condomínio, en-

    tre vítima e torturador como uma crítica à impunida de co ncedida pelaanistia – ampla, geral e irrestrita – aos opressores da ditadura militar noBrasil.

    O conto O Ja rro de Prata , do norte-americano Truman Capote, éalvo de uma leitura desconstrucionista por Gabriela Azeredo Santos,que discorre, entre outras ca tegorias, sobre o tempo dos fatos e o tem-po da narrativa, a cronologia, as situações de equilíbrio e dedesequilíbrio na construção e na ação das personagens.

    Numa análise q ue, à primeira vista, pode parecer corrosiva, RosanaCristina Zanelatto Santos, no a rtigo A Literatura em Mato Grosso d o Sulcomo Experiência Estética, mostra como é necessário ler a literaturaem Mato Grosso do Sul como objeto estético e não como objeto dereferenciaçã o dissimulad amente ideológica .

    Enfim, nesta Papé is  , evidencia-se o crescimento intelectual nãosomente da Revista, mas também do P rograma de Pós-G raduaçã o em

    Estudos de Linguagens e sua inserção junto a pesquisadores do País,assumindo o caráter plural que os estudos literários requerem

    Boa leitura!

    A Edito ra

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    Resumo:Este estudo centrou-se em a lguns aspectos da ação q ue se desenrolano discurso diatá tico encontrado no livro do a utor José J. Veiga, A Ca sca daSerpente, por meio das personagens, emba sado teoricamente em Lukács.O escritor José J. Veiga cria a rq uétipos tão herméticos, como o “ bom Con-

    selheiro”, que poderíamos desenvolver análises nos mais variados vieses,que nos permitisse a a rte literária. Esclarece-se q ue nestas poucas páginasdiscorre uma análise inicial das personagens históricas e lendá rias de Antô-nio Conselheiro de O s sertões, q ue se fez necessário para a compreensãoda metamorfose q ue há em o b om Conselheiro de A Casca da Serpente. Ariqueza do simbólico que se faz presente no jogo discursivo tanto no ro-mance histórico Os Sertões, como na metaficção de José J. Veiga instiga-nos a aná lises mais profundas em estudos futuros, buscando descortinar umpouco a obscuridade e estranhamento contidos, na transcontextualização

    que ocorre de Euclides da Cunha para José J. Veiga.

    Palavras-chave: história, memória, personagens, romance histórico, meta ficção.

    Abstract: This study focused on some aspects of action tha t takes place in thespeech diatatico found in the book of Joseph J. Veiga, A Casca da Serpente,through the characters, ba sed theoretically on Lukács. The w riter Joseph J.Veiga creates archetypes as hermetic as the “good adviser”, that we coulddevelop ana lyses in a wide variety of biases, which would allow us the literaryart. It is clarified tha t in these few pages talks an initia l review of historical and

    Personagens em

    A Casca da Serpente - José J. Veiga

    Simone Basyl*

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    legendary characters of Antonio Conselheiro of Os Sertões, which was necessaryto the understanding of the metamorphosis that there is in the good adviser

    of A Casca d a Serpente. The wea lth of symbolism tha t is present in thediscursive game in the historical novel Os Sertões and in the metafiction ofJoseph J. Veiga instigate us to deeper ana lysis in future studies, seeking reveala little the darkness and strangeness contained in the transcontextualizationthat occurs from Euclides da Cunha to Joseph J. Veiga.

     Keywords: history, me mory, characters, historical novel, meta fiction.

    De Aristóteles até o Século XIXO sertanejo é, a ntes de tudo , um forte. Nã o tem o raquitismo exaustivodos mestiços do litora l. A sua aparência , entreta nto, (... ) revela o contrá-rio. (...) É desengonçado, torto. (...) Reflete a preguiça invencível, (...).Basta o aparecimento de qualquer incidente (...) transfigura-se. (...) re-ponta (...) um titã acobreado e potente (...) de força e agilidade extraordi-nárias.” (Os sertões)

    Segundo o Dicionário enciclopédico das ciências da linguagem,

    de O swald Ducrot e Tzvetan Todorov, há uma definição que diz: “ per-sona gem é antes de tudo lingüístico , q ue nã o existe fora d as palavras,que a personagem é “um ser de papel”. Entretanto, recusar toda rela-ção entre personagem e pessoa seria absurdo: as personagens repre-sentam pessoas, segundo modalidades próprias da ficção.” (DUCROT& TO DOROV, 1988, p. 209-10)

    Aristóteles foi o primeiro pensador grego a levantar questões im-portantes, q ue marcaram e marcam o conceito de personagem e suafunção na literatura. U ma das questões mais importantes diz respeito àsemelhança entre personagem e pessoa. Outra questão seria a perso-nagem como reflexo d e pessoa humana , e a personagem como cons-trução, cuja existência obed ece às leis particulares que regem o texto.Esse pensador do mundo antigo diz que “Não é ofício narrar o querealmente acontece; é, sim, representar o que poderia aco ntecer, q uerdizer: o que é possível, verossímil e necessário.” Horácio contribuidecisivamente na atribuição desse conceito aristotélico, quando con-

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    cebe a personagem como imitação do homem, “ personagem-homem” .Conceito que vigorou até meados do século XVIII.

    A partir da metade do século XVIII, entra em declínio essa con-cepção , sendo substituída pela aná lise psicológica da persona gem e deseu criador. Acontece, portanto, o advento do romantismo. Analisam-se, a gora, o romance psicológico, histórico, de crítica e a nálise da rea-lidade social, alcançando a sua magnificência no século XIX. Aqui aspersonagens não são mais vistas como seres fictícios, mas como proje-ção da maneira de ser do escritor. No século XX, a personagem sofregrandes metamorfoses. Somente com a o bra de Lukács, da tada de 1920,Teoria do Roma nce, é q ue se questionam as personagens vividas evivenciada s nos romances de até então. Todas, até a gora, revelam omundo burguês, de conformida de com a necessida de burguesa. A con-cepção de romance por Lukács é outra. É de confronto. É o momentode da r voz ao herói problemático, d emoníaco, marginal.

    Lukács escreve, entre 1936-1937, o Roma nce Histórico e , segun-do a teoria do Romance Histórico, define personagem, reforçando a

    idéia de Scott, que “são seres humanos encontrados nos romances,que representam “ ca racteres tipicamente na cionais” (p. 36) por seremmediano s.” (ZILBERMAN, 2003, p. 118) E mais à frente continua “ ...oscaracteres correspondem a pessoas medianas, vulgares, isto é, sem aelevaçã o q ue as colocaria num patamar superior, logo, carentes do e t h o s  exigido por Aristóteles aos protagonistas da tragédia e da epopéia (InZILBERMAN, cf. Aristóteles, 1996) Enquanto personagens históricas...desempenham, seguidamente o papel secundário na trama, mas sua

    importância não diminui por causa disso; pelo contrário, sua presençaé fundamenta l, porque, sem elas, o romance não poderia ser conside-rado histórico... constituem elas os “verdadeiros representantes da cri-se histórica.” (p. 40) (ZILBERMAN, 2003, p. 119)

    Análise Teórica das Personagens

    A aná lise se basea rá na teoria de Lukács (2000), Teoria do Roman-

    ce, onde tentaremos analisar a personagem do Romance Histórico Os

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    Sertões, dentro da metaficção historiográfica A casca da serpente. Ca dapersonagem metafictício de A casca da serpente, que transcon-

    textualizados do romance histórico de época Os Sertões, de Euclidesda Cunha , na rram a guerra e o pós-guerra de Canudos.

    Lukács (2000) chama a atenção para que, no romance histórico,seja fator fundamental, a personagem ter uma estrutura peculiar daépoca representada, e que a personagem não é o resultado da açãoque desempenha, contrariando, preceitos aristotélicos, “e sim um sercapa z de, na sua individua lida de, expressar um significado mais geral,que diga respeito a um grupo ou a uma época, de preferência os doisaspecto s ao mesmo tempo.” (ZIBERMAN, 2003, p. 119), como aconte-ce com Antônio Conselheiro.

     Na figura irônica do “ bom Conselheiro” , o d irigente, o líder, oque governa um povo, faz com que se perceba uma outra forma devida e final possíveis de Antônio Conselheiro de Os Sertões, no pós-morte, em A casca da serpente. Como podemos compreender todaesta movimentação nos dizeres de VICO :

    o movimento semelhante que subtende os esforços de consciência pa ra“ criar” um mundo a deq uado à satisfação das necessidades experimenta-das pelos seres humanos, em processos cognitivos pré-racionais. E afirma-va, além disso, q ue essa diataxe do d iscurso nã o só refletia os processosda consciência, mas também, de fato, fundamentava e permeava todosos esforços dos seres humanos para da r sentido ao seu mund o. (VICO, inWHITE, 1994: 18)

    Essa diataxe que se apresenta é a junção do discurso mimético

    (descritivo) do romance histórico com o diegético (narrativo,argumentativo) da metaficção que está intrinsecamente ligada à vidada s personagens. Em todo d iscurso rea lizado pelos personagens de JoséJ. Veiga, percebe-se essa movimentação de tentar representar o quefoi real, mas de forma irônica, a Guerra de Canudos, como significoupara o ser humano tal acontecimento , vendo-a po r um outro ângulo.

    A personagem de Antônio Conselheiro corresponde à pessoamarginalizada pela sociedade, que mudará do plano marginal

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    (andarilho) para o plano d e po der (dirigente de um po vo). É a históriade cima (dos poderosos) sendo vista pela história de baixo (os media-

    nos, representantes do po vo). Critica a política naciona l, a centraliza-ção do poder da República , solda dos que vão pra guerra e morremsem razão para se fazer valer a vontade de homens egoístas, ganan-ciosos ou psicóticos.

    Antô nio Co nselheiro, d e O s sertões, era um sertane jo, rude,cruel e muito místico. Era filho de comerciante e separado. Ficouum pouco perturba do depo is q ue enco ntrou sua mulher o traindocom um soldado. Depois desse fato, sua religiosidade tornou-seuma mistura de c ato licismo e ca ndomb lé a trasad os. Isso d evido a oseu isolamen to do mundo, e do próprio c ontexto da colonizaç ãodo Bra sil. O s serta nejos deixava m-se influen ciar muito po r pa dres,pastores e falsos profetas. Conselheiro chamava o governo repu-blica no de o bra de Satan ás. Passaram-se dez a nos sumido . Tod ospensavam ter morrido. Reaparece alto, magro, barba e cabelosdesgrenha do s e longos, túnica cinza, c ordã o a marra do na cintura,sandálias, alforge e chapéu de couro. Pregador de uma doutrinaco nfusa q ue misturava Missão a breviad a e Ho ra s Ma riana s. Prega-va o fim do mundo, prepa ra va a s pessoa s para a morte e ensina vapenitência . Rea liza va va riad os sacra mentos religioso s. Era seguidopor gran de número de fiéis. Vivia em pé d e guerra com o go vernoda Bah ia . A última desavença; já ha bitando C anud os, uma fazen-da tida como lugar sagrado , protegida pela s montanha s; foi q uan-do solicita ma de ira pa ra reformar sua igreja , sua gran de o bra, e ojuiz da Bahia lhe nega.

    O sertanejo ameaça, então, invadir a cidade. Inicia as invasõespelos soldados baianos a Canudos, até ser tomado e toda populaçãodizimada. Inicia essa Guerra em novembro de 1896 e vai até 5 deoutubro de 1897. Ele morre não na guerra, mas vitimado de umadisenteria . É descoberto seu corpo e desenterrado. É dego lado e leva-do seu pescoço à praça pública para o delírio do povo baiano. Eleacreditava na certeza de ir para o céu se morto em combate, defen-

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    dendo uma causa sagrada. Mas por ironia d o destino, pelo q ue ora foinarrado, nã o conseguirá a salvação .

    Em A casca d a serpente, Antônio Co nselheiro é uma personagemcomplexa e enigmática. É um outro homem internamente desde ocomeço da narrativa de José J. Veiga. Só a casca era a mesma. Daí otítulo, A casca da serpente. É uma personagem q ue tece toda a trama,diferentemente do legítimo, que era um homem cruel e vingativo.Agora, a ge como um governante descentralizador, q ue busca idéias eparcerias com seus homens e visitantes do lugar. Revê a sua formareligiosa, e passa a agir em prol do outro, sem rezar de hora em hora,como fazia. Começa a respeitar o lado humano e intelectual do serta-nejo. São as primeiras mostras meta mórficas que se observa na a ná lise.Envolve o leitor em toda diegese, e o empolga para ver o q ue mais eleé capaz de fazer.

    O momento histórico é o mesmo, embora escrito em tempo eespaço diferentes. É uma Guerra de origem histórica que deu origem aum romance de meta ficição sobre o Sertão e seus jagunço s. Como se

    fazia justiça naquela época. O começo da história de A Casca da Ser-pente se dá do meio para o final. O bom Conselheiro estava doente,com febre e com disenteria , “malina podre” . Os jagunços e sua primaMarigarda cuidam de sua disenteria . Passados alguns dias fica bom. Atemporalidade que se percebe da doença até a cura, revela mais umtempo metafórico q ue real, de reflexão e mudança no bo m Conselhei-ro. A entrada de Marigarda na história é bastante mística, é como seum anjo aparecesse para salvá-lo. Como era devoto de Maria, nada

    mais sugestivo ser o nome dela Maria Hermengarda . Q uando preparaa “ mesinha” , ela pede ajuda aos poderes de Nossa Senhora dos Malesdo Meio, uma expressão que simboliza bem estar “entre a vida e amorte”, como “A terceira margem do rio”, “A menina de lá” de Gui-marães Rosa. A intertextualidade da narrativa de José J. Veiga com ostextos bíblicos, G uimarães Rosa, Hegel, Bachelard e outros em sua obratorna-a um presente riquíssimo para nós, leitores. É um livro, a lém demetafórico, muito enigmático. É instigante.

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    Intertextualizando Personagens

    Enquanto Antônio Conselheiro era conhecedor, e pregador daBíblia, o bom Conselheiro não demonstrava tal familiaridade por ela.Sentia sua fa lta só quando resolvia muda r as orações sem fundamentospara um conhecimento maior do Evangelho. Percebe-se, aqui, umamovimentação estratégica para se conhecer melhor esse ob jeto a legó-rico, a Bíblia. Chegamos a esta aná lise pelos fato s percebidos nos mo-mentos metamórficos do “pregador”, que não andava com a Bíbliadebaixo dos braços, nem sabia fazer as orações rezadas de hora emhora, o dia inteiro pelo grupo de jagunços de Antônio Conselheiro.Percebe-se outro estranhamento (ostrananie) aqui, pois essas rezas jádeveriam estar, pelo bom Jesus, decoradas. O banho, a co mida , e ou-tros aspectos relevantes, que foram observados no transcorrer desteestudo, também revelam que o bom Conselheiro está longe de ser oAntônio Conselheiro de Euclides da Cunha.

    Bea tinho, nome da do a outro personagem do Romance Históri-co, Os Sertões, dá margem a uma análise controversa do herói da

    estória, segundo a teoria de Aristóteles. Na tragédia, o herói é a queleq ue luta e mo rre pelo seu povo. Esse herói foi Beatinho, pouco men-ciona do , aq uele q ue servia ao seu senhor e obedecia à s ordens porele mandad as. Bea tinho morre e, co m sua morte, mo rre também esseantigo paradigma d e herói. Surge, en tão, na pessoa de bom Conse-lheiro, um no vo herói. Aq uele q ue procura sair de difíceis situaçõespela razão , não pela emoçã o. Aq ui há uma ruptura do homem velhodiante do homem novo. Há uma secção de uma teoria antiga em

    substituição de uma nova. É a vez de tentar resolver os temores,anseios e inseguranças do homem não pela guerra, pela força, massim pela ciência. Época em q ue já se contava com tendências pregressasdo Iluminismo d o sécu lo XVIII. Tod a a situa çã o h istó rica q uevivenciamos em A Ca sca da Serpente, parece-nos remeter ao regimepolítico segundo as idéias de John Loche (liberalismo político), prin-cipalmente q uando mais nos últimos capítulos do livro, o Bo m Conse-lheiro q uer participar da situação política de outros países, conversa

    com outros cientistas políticos, na figura de Pedro; artistas como

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     Sem que ninguém manda sse, nem sugerisse, as crianças passaram a pe-dir a bênção ao estranho, no que foram seguidas pelas mulheres e por

    alguns homens. Foi aí q ue começou nele a transformação que o levaria desimples recusante da sociedade a pregador de uma nova era... Q uandoele desceu a Ariranga e se enfiou pelas trilhas rudes da caatinga, já sesentia escolhido por forças superiores para falar aos desprotegidos e consolá-los com a descrição dos castigos q ue já estavam providenciados para osgrandes e poderosos. (p. 59)

    O bom Conselheiro sa i de um ser marginalizado pela socieda de etorna-se um porta-voz de um povo desprotegido. Seu alvo seria os gran-

    des e poderosos que estão nos palácios da República , desmancha ndo oque foi feito pelo imperador, u m sá b i o   que d iscutia de igual para igualcom os sábios do mundo, pe lo m eno s e ra o qu e se ou v i r a f a la r  . Essesábio seria Jesus Cristo. Mais uma vez se confirma aqui que o bomConselheiro era um outro. Além de um outro personagem, simboliza apersonificação de também um outro momento histórico e filosófico dosertão brasileiro. Essa sua figura messiânica não revela a verdade queestá por dentro desta Casca da Serpente. Esse bom Jesus não tinha

    nada nem de bom, nem de Jesus, nem do herói trágico q ue morre parasalvar o seu povo. Esse papel quem assume é o Beatinho, como jádissemos an teriormente. Co mo o próprio bo m Conselheiro revela nes-tas palavras “_ Não pensemos mais no Beatinho como gente viva –disse o Conselheiro q uando soube dessa preocupação do ba ndo . – Elese sacrificou por nós, e e stá em bom lugar...” (p. 25) Essa fala comprovaa ruptura histórica pela morte, mas como todo no vo não existe sem ovelho, sempre os copanheiros se devaneiam com as lembranças de

    Beatinho.Percebe -se o tempo todo q ue o bom Conselheiro fica à deriva

    de sua posição. Finge dormir durante todo o momento da decisãodos jagunços sobre o que fariam para proteger o “bom homem”,liderado s por Bea tinho . É um outro pa pel que assume co mo líder deum povo, uma nova postura q ue o ca racteriza ago ra. Não tem maiso modelo que o soldado vai para a guerra e não sabe por qual ra-zão.

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    Comprovam-se, a seguir, estratégias racionais e chantagistas “en-cenadas” pelo “ bom Conselheiro” , utilizando de toda sua a stúcia para

    proteger sua vida , disfarçando nã o ser aq uele homem bravo e rude docangaço:

    O Conselheiro d emorou a falar, e q uando falou, com d ificuldade, foi paradizer que tinha ouvido, mas não q ueria opinar para não parecer que esta-va forçando. Ele meditara muito sobre a possibilidade de uma retiradamais para o norte; mas reconhecia que estava com seu tempo de vidapra ticamente no fim, e sab ia q ue seus filhos já a nda vam muito sacrifica-dos. Se os guerreiros restantes quisessem ir cuida r de suas vidas em luga-

    res longes da li, ele compreendia e a bençoava.. . _ Fico para ver de pertoa ca ra do Anticristo. (p. 9)

    O utro mo mento bastante simbólico d e transformação é q uandoesse bom Conselheiro to ma b anho. Aq ui, de forma inconsciente, vê-se não simplesmente um banho, mas um banho que limpa tudo. Aágua que limpa a alma, o corpo, a mente. O banho reconfirma ocorte, a separaçã o d o bom C onselheiro de A Ca sca d a Serpente e d eAntônio Conselheiro de Os Sertões. Deixa de lado uma figura

    messiânica e veste-se como um sertanejo qualquer. É uma transfor-maçã o lenta, fa zendo com que a quele grupo de jagunços assassinosse acostume com o novo bom Conselheiro, agora tio Antônio. Nãofoi um Jesus Cristo, um má rtir. E, num mo mento de d iá logo com seuscompanhe iros, revela que “ Quem sabe o certo é sempre D eus, nãoeu. Entenderam?” (p. 50) Fica claro aqui que ele começa a assumirsua huma nização e a lutar por ela, tentando deixar esse lado místicoe misterioso. Mais uma vez recorremo s a Lukács para entendermos o

    bom C onselheiro

    No romance, o indivíduo problemá tico, inserido no mundo contingente,busca sentido que lhe falta, numa tentativa sempre frustrada de superar amá infinitude, na medida em que consiga agregar em si os elementoscontingentes à sua volta e o sentido subjetivo e interior, construído emsua solidão. Pela ação ele almeja a superação do isolamento das duasesferas, para chegar ao autoconhecimento e articular as diversas vivênciasna socieda de . (LUKÁCS, 2003:101)

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    Outra metá fora, q ue causa estranhamento, está no olhar diferentedo bom Conselheiro para a figura feminina vivida por Marigarda, a ntes

    aquela q ue nã o servia nem para ser olhada ou enfrentar os olhos de umhomem, como lemos em diversas passagens da obra, “Aí o Conselheiroolho-a de frente pela primeira vez, e parece que não desgostou...” (p.73). Marigarda aqui é respeitada e a dmirada por todos. É a viúva sendoacolhida. Foi o primeiro ato de fé com ação do bom Conselheiro, quandomanda buscá-la, do meio dos escombros da guerra, para a segurançado novo arraial. Sinal de desmarginalização da mulher, outra figuramarcada pela injustiça social.

    Ela curava moléstias. Uma mulher de grande sabedo ria da medici-na popular. Foi a única mulher sobrevivente da guerra de Canudo s. Éoutro personagem hermético de José J. Veiga, cheio de signos e símbo -los que merece maior atenção em um próximo trabalho futuro. Nessanova fase do bom Conselheiro, ele vê a mulher de igual para igual,descobre que Marigarda é filha de sua tia Helena, portanto há um cer-to laço de sangue entre eles. É o reconhecimento do ser enq uanto tal.Mais tarde e la o sa lva da morte sem lhe cobrar nada em troca . Além detudo era a única q ue sabia q ue aquele homem q ue estava a li não era obom Conselheiro como se verifica literalmente registrado neste diálo-go entre ela e Bernabé (secretário do senhor bom Jesus Conselheiro). Éum forte momento q ue se observa a complexida de da transposição dofato histórico para a metaficção:

    – Seu Bernabé, o senhor é pessoa finória, foi secretário do bom JesusConselheiro, portanto deve ter ainda a compreensão do posto. Já eu, sou

    uma sertaneja desalumiada mas respeitadora. Eu sei que o bom Conse-lheiro já está no céu, o Dasdor viu os soldados desenterrarem o corpo ecortarem a cab eça para levar de prova; nisso minto, ele ouviu uns solda-dos falando isso lá entre eles. Como é q ue o senhor q uer agora me levarpara ver o Conselheiro? (p. 68)

    Observamos duas coisas nesse trecho, primeiro, remete-nos aofina l do livro Os Sertões, e fica subentendida essa nova história a partirdele; e segundo , é q ue jamais uma mulher tinha o valor ou importân-

    cia, se assim preferir, para ser chamada por um dirigente da jagunça da .

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    Outra figura feminina importante que aparece dentro da narrati-va de Veiga é Chiquinha G onza ga2,

    Seria rea lmente um impostor, ou um ser conflitante, q ue vem mostraruma ruptura do regime político velho para um regime político novo? Ago-ra seria diferente, uma administraçã o baseada numa fé de ação, num Deusprogressista e na igualda de de expressão , na autonomia dos mais pobres.Vozes que, dantes, jamais eram ouvidas se fariam ouvir nesta nova formade governo. Muda-se, portanto, a história e a direção da vida dos sertane-jos. Mas, para acabar com as amarras do passado e implantar o novo, odirigente deveria ter paciência até que aquele povo pudesse entender edigerir as novas propostas e novos comportamentos que se tomaria dalipara frente. “O chefe que não sabe tirar as dúvidas de um chefiado devedesistir da chefia. Então, enquanto os homens não aprendessem o cami-nho do novo viver, ficaria ali ele martelando.” (p. 52)

      Faz questão de aco lher os estrangeiros q ue chegam, dando co -mida , cama e palavras aco lhedoras. Recebe o menino órfão , o Da sdor,sobrinho de seu fiel sacristão Beatinho. Há lugar para todos. Não ex-

    pulsa, nem rejeita ninguém. Este é o novo Conselheiro. Agora é elequem pede conselho para todos, e descobre que muitos são inteligen-tes e que podem partilhar para o avanço e melhoria geral. O ideal éviver em comunidade, sem Governo.

    Os estrangeiros que chegam falam-lhe dos acontecimentos domundo lá fora, dos tipos de regimes políticos. Ele cria o seu própriomundo, com seu próprio regime político, narrados nos últimos capítu-los do livro, cujos títulos O Sonho .

    Esses se vão a co ntra gosto de todos e chega Pedro, q ue conversamuito com tio Antônio sobre as novas formas de governo e muda nças

    1  Mulher de atitude, para além de sua época. Viveu entre os anos (1847-1935),compositora e pianista brasileira. Foi a primeira “chorona” tocadora e compositorade Choro d o Brasil. Foi a primeira mulher a reger uma orquestra no Brasil. Filha de umgeneral do exército e d e mãe humilde e mulata. Foi educada em família de pretensõesaristocrá ticas. Seu pa drinho foi Duq ue de Caixias. Viveu às avessas de seu tempo .

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    políticas. Incentiva tio Antônio a escrever sob re toda sua experiênc ia ecriar uma nova forma de governo mais justa e solidária. Tio Antônio

    mand a buscar lápis e papel para poder escrever. Instigado escreve to-dos os dias. Pedro vai embora para tristeza de todos e promete secorresponder quando chegasse à França . Depois de alguns anos publi-ca um livro q ue expõe sua nova forma de sociedade, uma sociedadesem governo. Itatimundé foi o exemplo que possibilitou a criação dolivro, ou seja, edificada agora com o nome de Concorrência deItatimundé, hoje depósito de lixo atômico. Vejamos o que nos diz esteúltimo ca pítulo:

    Pedro foi embora, e o povo da serra levou muito tempo para se conformarcom a falta. Mas os deb ates que entravam pela noite no alto de Itatimundénão fica ram soterrad os no tempo. Num livro q ue o Pedro pub licou anosdepois na França para expor seu projeto de socieda de sem governo, elessão reconstruídos. E no arra ial o resultado de tanta conversa e escritos foiapa recendo na s simples e belas construções materia is e na s normas deconvivência e trabalho que deram corpo e alma à Concorrência deItatimundé, comunidade que serviu de modelo a uma infinidade de ou-

    tros mundo afora. (p. 154)Podemos concluir que o Antônio Conselheiro de O s Sertões não é

    o mesmo de A Casca da Serpente. Enquanto o primeiro é um faná ticoreligioso, o segundo é a metamorfose dessa personagem histórica elendária, na construção de um novo homem, de uma nova forma degoverno, de um novo mundo, mas que habita na mesma “casca daserpente”, é o homem como um ser mortal e pecador. A figura enig-mática da raça humana que transcende.

    É um impostor ou é um homem regenerad o, transformado pelosofrimento , pela guerra? O u é a guerra na rrada fora da persona gemq ue a contece d entro dela mesma? É a luta d o ho mem com ele mes-mo, buscand o sua perfeição ? Fica em a berto tudo isso e mais a lgunsdevaneios não mencionad os ao nosso q uerido leitor, po is os viesespara a análise deste livro de José J. Veiga com toda sua linguagemmetafórica e carnavalesca nos surpreende a cada olhar de umponto.

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    Considerações Finais

    Segundo a teoria de Lukács, percebe-se no comportamento doherói de A Ca sca da Serpente certa repulsa pela sociedade burguesa, epossuidor de um co nflito interno tão grande que esse mesmo persona -gem não consegue da r sentido à própria vida dentro da comunida de.Questiona , dentro do romance, o indivíduo que busca sua autocons-ciência pa rtindo de diversas provas, tentando compreender a vida e simesmo e o mundo q ue o circunscreve, juntamente com as novas mu-danças do pensamento político, social e econômico que estavam emburbulhos na época.

    O Antônio Conselheiro de Os Sertões torna-se poderoso e inimi-go do governo baiano. Em suas atitudes de não se cumprir as leis da-quele lugar e ameaçar o governo de invasão , gera lutas e guerras. Paraele, “A sociedade passa a ser uma segunda natureza, convencional erígida, com a qual o indivíduo não se identifica e contra a qual develutar para b uscar um sentido de integração.” (Lukács, 2003, p. 100)

    Toda a narrativa ficciona l de José J. Veiga revela um Antônio Con-

    selheiro reflexivo, descentralizado r do poder, a berto às novidades domundo externo. O bom Conselheiro, em sua última metamorfose, re-vela-se um homem culto, liberal, q ue partilha das idéias de seus segui-dores e as valoriza, progressista, inteligente e adepto ao mundo dasciências modernas e das artes.

    Referências

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    *

     G raduad a e m Letras pela U niversida de Fede ral deGoiás, Pós-graduada em Supervisão Pedagógica eLíngua Portuguesa pela Universidade Salgado deOliveira. Mestranda do Curso de Letras – CríticaLi terár ia , pela Universidade Catól ica de Goiás .E-mail simonebasylio@ yahoo.com.b r

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    Resumo: Este a rtigo elabora uma análise compa rativa entre o texto N o v e c e n -  t o s: u m m o n ó l o go   (1994), de Alessandro Baricco, e sua adaptação para ocinema feita por Giuseppe Tornatore, no filme A lenda d o p ian i sta do m ar  (1999). Nosso objetivo é mostrar as marcas da pós-modernida de presen-

    tes nas duas obras, sobretudo a questão do hibridismo e da s referências àprópria realização artística .

    Palavras-chave: Alessandro Baricco. N o v e ce n t o s: u m m o n ó l o g o  . G iuseppeTorna tore. A l e n d a d o p i a n i st a d o m a r  . Pós-modernidade.

    Abstract: This paper a ims to ma ke a comparative a nalysis of N o v e c e n t o s: u m  m o n ó l o g o   (1994), by Alessandro Ba rrico, and its ada pta tion to the cine-ma, in the film T h e le ge n d o f 1 9 0 0   (1999), ma de by Giuseppe Tornatore.O ur goa l is to show the postmod ern marks in both of the pieces of a rt, the

    novel and the film, especially concerning the hybridism and the selfreferences to their own artistic rea lization.

    Keywords: Alessandro Baricco. N ovecen tos: um m onó logo  . G iuseppe Tornatore.The legend o f 190 0  . Postmodernity.

    Entre a lenda e a história,

    entre a América e a Europa,as viagens de Novecento

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    Alessandro Baricco é escritor polêmico: ado rado pelos leitores ita-lianos jovens, é ainda menosprezado por parte da crítica. Sua tese de

    conclusão de curso sobre a teoria estética de Adorno foi orientada porG ianni Vattimo, um dos importantes pensadores da pós-modernidade.Autor de na rrativas, peças tea trais e textos de crítica musica l, Baricco éum artista bastante ligado ao s veículos de comunicação d e massa – natelevisão apresenta um programa em que fala sobre literatura, no jor-nal L a Re p u b b l i c a   é crítico musical, no La Stam pa   é editor cultural –utilizando-os, porém, pa ra divulgar a a lta cultura. Sua preocupação coma arte de na rrar levou-o a criar, com um grupo de amigos, uma escola

    de escritura criativa, a H o l d e n l a b  , cujo site na Internet organizava-se,em sua versão original, como uma carta marítima, a fim de orientar a“ navegação ” dos internautas. Na verdade, a relaçã o entre mar, músicae literatura é uma constante na sua o bra.

    Segundo o crítico italiano Filippo La Porta, Baricco seguiria uma“ pós-modernidade de a utor” , bem particular, no sentido de uma con-taminação literária muito culta (com a reescritura-paródia de algunsmodelos), aparentemente centrífuga, anárquica, mas emoldurada poruma “música” fascinante e bastante reconhecível. (1995, p.19) A mol-dura musical de q ue fala La Porta refere-se, sobretudo, ao ritmo ca den-ciado com q ue ele faz pulsar sua escrita , influenciado que foi por escri-tores america nos como Fitzgerald, Hemingway e Conrad. A músicacomo tema também está presente em N o v e ce n t o s: u m m o n ó l o go  , peçateatral que ele escreveu para ser interpretada e dirigida por ator ediretor pré-determinado s, em q ue o  jazz  é pa rte integrante do própriotexto. Logo depois da estréia, porém, quando publica o texto na formade livro, Ba ricco questiona -se sobre o verdadeiro gênero daquela obra.Segundo ele, o texto oscilaria entre uma peça de teatro e um contopara ser lido em voz a lta . A questão do hibridismo nos gêneros literári-os e a relação entre a literatura e outros códigos, porém, são apenasalguns dos elementos de pós-modernidade que a obra apresenta.

    Novecentos fa la de viagens, de trajetos, de percursos, de aventu-ras. Fala da passagem do século XIX ao século XX e de todas as mudan-

    ças que a chegada desse novo século ocasionou. Fala das esperanças

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    que os homens traziam na bagagem quando a situação econômica epolítica da Itália apo ntavam somente ao desemprego e à miséria, obri-

    gando-os a emigrar para as Américas: fala, assim, do mito de fare l ’ A m e r i c a   dos italianos. Baricco, ao representar este êxodo , cria comoprotagonista um menino que foi abandona do em uma ca ixa de limõesno salão da primeira classe do navio Virg in ian  , uma a tualizada arca deNoé, fazendo nascer seu herói angelical, o pianista Novecentos. ComoMoisés, ele vê a terra prometida, mas jamais pisará nela.

    Porém, parece-nos que o tema central do texto de Baricco seja areferência ao próprio fazer artístico, outra marca pós-moderna. Omonólogo foi escrito sob a forma de solilóquio em que o trompetistaTim Tooney recorda os ano s em que tocou a bordo do navio Virg in ian  .O centro da s suas recordaçõ es é a história de um pianista, de q uem setornara a migo e que, segundo o q ue se contava na embarcaçã o, ha vianascido e vivido dentro do navio sem jamais ter pisado em terra firme.Conforme o relato q ue ele o uvira d a tripulaçã o, o menino fora encon-trad o por um maquinista dentro de uma ca ixa sobre o piano do salãode baile da primeira classe, no primeiro d ia do século XX. Criado den-tro do navio, ele se torna um prodígio, aprendendo a tocar só de verum outro pianista fazê-lo. Já adulto, integrando a banda que animavaos bailes da primeira classe, ele se d istingue po r executar as músicas demane ira completamente original. Além disso, torna-se capaz tambémde descrever detalhadamente qualquer cidade do mundo apenas ou-vindo a s histórias q ue os viajantes que pa ssavam pelo na vio co ntavam.Passara toda a sua vida a bordo, sem jamais descer da embarcação.Mesmo no período da guerra, quando o navio fora transformado emhospital, o músico permaneceu dentro dele, preferindo ser dinamita-do junto ao navio, ao final da guerra, do que deixá-lo.

    A descrição da trama é importante para que se tenha em vista aquantida de de narrado res envolvidos no seu entrelaçamento. Constru-indo uma estrutura em abismo, co loca ndo uma história dentro da outra– idéia que remete à técnica de encaixe das M i l e u m a n o i t es    e doD e c a m e r o n    – o escritor italiano escreve uma narrativa em que um

    narrador conta uma história q ue ouviu de muitos narradores sobre um

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    outro narrador, o pianista , que ouvia histórias dos viajantes – nova levade narradores – e a s transformava em música . Ou seja, o autor descre-

    ve o circuito a través do q ua l se processaria a narraçã o.Baricco coloca seu protagonista, ao final da peça, sentado sobre

    toneladas e toneladas de dinamite, denunciando, assim, a crise porque passa a tão a ntiga arte de narrar:

    A última vez que o vi, estava sentado sobre uma bomba. É sério. Estavasentado sobre uma carga de dinamite grande a ssim. U ma longa história ...Ele dizia: “ Você nã o está verdadeiramente frito enquanto tiver de reservauma boa história e a lguém para contá-la” . Ele tinha uma ... b oa história.Ele era a sua boa história, pensando bem, meio doida, mas bonita... Enaq uele d ia, sentado sobre toda aq uela dinamite, presenteou-me comela. Porque eu era o seu melhor amigo, eu... E afinal fiz boba gens, e seme virarem de ca beça para baixo, não sai mais nada d os meus bolsos, atéa trompete eu vendi, tudo, mas...aquela história, não... aquela eu nãoperdi, está a q ui ainda, límpida e inexplicável como só a música era, qua n-do, no meio do oceano, era tocada pelo piano mágico de D anny BoodmannT.D . Lemon Novecentos. (p. 16-17)

    Se a emblemática frase “você não está verdadeiramente frito en-quanto tiver de reserva uma boa história e a lguém para quem contá-la” , repetida algumas vezes no texto, leva-nos imediatamente à figurade Sheraza de, a caracterização da persona gem que a pronuncia pa re-ce remeter ao clássico ensaio escrito por Walter Benjamin sobre onarrador. Ba ricco, citando o filósofo a lemão , na caracterização do pro-tagonista d e sua história une os dois tipos de narradores, representadospelo camponês sedentário e pelo marinheiro comerciante: Novecen-

    tos tem muito o que contar porque é um via jante, passou sua vida todaa bordo de um navio o uvindo histórias de terras distantes; como nuncasaiu dele, cumpre também a outra função, que é a de conservar etransmitir a tradição . A aná lise do filósofo alemão, um dos primeiros adiscutir o chamado “ fim das narrativas”, aponta , como uma das causasda perda da capacidade de trocar experiências e conseq uentemente,da arte de na rrar, às transformações no mundo ético ocorridas a pa rtirda guerra.

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    A l e n d a d o p i a n i st a d o m a r  , filme que transpôs para as telas otexto de Ba ricco , foi escrito e d irigido po r Giuseppe Torna tore em

    1999. Apesar de a trama ser essencialmente a mesma, o processode ad aptaçã o, q ue transformou um texto de setenta páginas em umfilme com mais de duas horas de duração, exigiu naturalmente al-gumas mudança s. A primeira delas foi a transformação do solilóq uioem narrativa propriamente dita. Em vez de relembrar sozinho seupassad o, o trompetista co nta a sua história a um ouvinte específico,a uma persona gem q ue não existia na peça, ma s q ue terá uma fun-ção econô mica b a stante grand e dentro do filme. Q uem ouve a his-

    tória é o d ono de uma loja d e instrumentos usad os – uma referênciaao processo intertextua l, q ue se produziria a partir de instrumentose tema s já “ usad o s” – a q uem Max (esse é o nome q ue o trompetistarecebe no filme) vendeu seu trompete. Essa personagem, ao mes-mo tempo em que imprime a agilidade na transmissão da históriaque a natureza audiovisual da linguagem cinematográfica requer,ajuda também a criar o clima de desolação pós-bélico em que ahistória se passa. A venda do objeto com o qual se ganha a vida é

    uma idéia por si só absurda e suicida. Os poucos trocados que apersonagem recebe por ele são marcas tanto da crise econômicaprovoca da pela guerra como d a d esvalorizaçã o d a própria arte na-q uele panorama.

    Tornatore modificou também a idad e do narrador e o momentoda vida em que ele recorda os fatos do passado. Na peça, o narrad or éum velho, q uase no fim da sua existência, q ue recorda a melhor épocada sua vida, ocorrida num passado bastante remoto. Já no filme, otrompetista tem por volta de trinta anos e o momento em que ele contasua história é aquele imediatamente posterior à Segunda Guerra Mun-dial. Ao efetuar esse ajuste no tempo, ao aproximar recordação e fa to,Tornatore dá a este último um peso maior. Assim, a conjuntura social eeconômica das primeiras déca das do século XX será um do s elementosmais explorado no filme. O próprio nome escolhido para a películaaponta para o s dois ângulos a pa rtir dos quais ele apresenta a história:há uma lenda , sim, uma narração meta fórica sobre a a rte e o processo

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    criativo, mas há também a representação de todo um período históricoque, com as transformações que trouxe, a cabou por colocá -los em cri-

    se. Seu filme traz pa ra as telas, co m riqueza de detalhes, as transforma-ções sociais, econômicas e culturais ocorridas naq uele período. O ce-nário, com isso, engrandece: não é ma is só o salão de ba ile em q ue aband a tocava, mas todo o na vio q ue passa a ser o pa lco em q ue vemosretratada s tanto a história particular de Novecentos como a do séculoao qual seu nome remete. As imagens em que surgem as diferentesclasses sociais são bastante significativas: tanto a ca sa de máq uinas donavio como as caóticas dependências da terceira classe em que viaja-

    va confinada a grande leva de imigrantes, realçadas ao máximo, reme-tem ambas à idéia de Inferno, destoando em tom, movimento e cordaquelas em que vemos, como diz o narrador, os “ ricaços em viagem”.O navio, enq uanto símbolo desse mundo cambiante e multifacetado,essa espécie de Arca de No é moderna, traz em seu interior um univer-so de etnicidade nacionalidade e situação social dos mais variados. AAmérica , q ue a partir de seu descob rimento passou a estar presente namente do europeu como um continente pleno de exotismo e de ri-

    quezas, na passagem do século XIX ao XX volta a ser identificadomiticamente como a “terra prometida”. Uma expressão italiana quesurgiu nesse período, “ f are l’Am er i ca  ” , da va a d imensão da esperançados imigrantes de encontrar, do outro lad o do Atlântico, um ambientemenos hostil do que aquele que acabavam de deixar para trás, umlugar em que pudessem fazer fortuna. O texto de Baricco se inicia,significativamente, com a referência ao primeiro dos mil viajantes donavio a a vistar o “Novo Mundo” :

    Em ca da navio existe um. E não é preciso pensar q ue são coisas queacontecem por acaso, não... nem mesmo por uma q uestão de d ioptria ,é o de stino, a q uilo. É o tipo de gente q ue de sde sempre teve aq ueleinstante grava do na vida . E q uand o eram criança s, você pod ia olhá-losnos olhos e, se olhasse bem, já a via, a América, já ali, pronta parasaltar, para escorregar pelos nervos e pelo sangue – e eu sei como –a té o cé rebro e d a li pa ra a língua, a té dentro d aq uele grito (gritando),AMERICA! , já existia , na q ueles olhos de menino, inteira , a América.

    (2000, p. 10)

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    A transposiçã o dessa imagem recebeu um tratamento interessan-te na s mãos de Torna tore. A cena é uma da s mais belas do filme. En-

    quanto se ouve a voz do narrador em o ff  dizer o texto citado acima, acâmera foca liza um dos imigrantes no momento em q ue ele vê a enor-me Estátua da Liberdade à sua frente. Aos poucos, a câmera vai seafastando e passa a mostra r o deslumbramento de toda a multidão di-ante da quele espetáculo. O foco volta a reca ir sobre o rosto do jovemque “ descobrira” a América em primeiro lugar, e vai fechando em umde seus olhos, a té q ue a imagem de Nova Iorque surja refletida a li. Noencerramento , Torna tore faz uma referência a essa cena. A última ima-

    gem que vemos é um círculo, semelhante a um olho, que se fecha.Desta vez a imagem é plana, cinzenta , vazia . Não reflete ma is nada. Amúsica que vem em seguida dá um tom ainda mais melancólico aodesfecho. Enquanto na tela são apresentados os créditos, ouvimos acanção Lost boys ca l l ing , cuja letra faz menção aos jovens mortos naguerra: “eu ainda posso ouvir os garotos perdidos chamando/nós osdeixamos lá quando eram jovens” .

    Escrito para o filme por Roger Waters, esse é o único r o c k   presen-te na trilha sonora conduzida com o costumeiro primor por EnnioMorricone, constituída em sua maioria po r jazz . Música de expatriados,nascida da confluência entre os ritmos africanos e a música européia,ponto de ligação entre diversas etnias, o  jazz  funciona na obra comomais uma marca de hibridismo. A estudiosa Cristiana Lardo, ao analisara narrativa de N o v e c e n t o s  , aponta a inda outra importante ca racterísti-ca do  jazz . Se comparado ao r o c k - a n d - r o l l  , gênero nascido dentro deestúdios de gravação e cujas apresentações têm comercialmente omesmo valor que o disco gravado para o consumo, a s apresentaçõesde  jazz  estariam no lado oposto, pois a versão comercial, gravada, deuma canção é substancialmente a celebração e a imortalizaçã o d e umaapresentação a o vivo. Nasce, como business  musica l, para ser irrepetível,sempre diferente segundo os intérpretes e os concertos. (1998, p. 88)

    Esse a specto da “ irrepetibilida de” de uma apresentação jazzística,utilizada por Baricco para discutir a perda da aura da arte no universo

    da cultura d e massa , vem explicitad a no filme de Tornatore a través de

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    um acréscimo importante. O diretor inclui uma cena em que todo umestúdio de gravação é montado dentro do navio para gravar uma das

    brilhantes p e r f o r m a n c e s   ao piano de Novecentos, cuja fama já corria omundo. Ao o uvir, de pois, a reprodução da música que acabara de to-car, o pianista, co mo se não entendesse como aquilo pudesse ocorrer,tira a matriz do fonógrafo e a guarda para si, não permitindo que sereproduzisse sua música sem a sua presença. Essa matriz, elementoque irá, simbólica e concretamente , impulsiona r a própria narrativafílmica, já que é a partir da sua descoberta na loja de instrumentosusad os que o trompetista irá co ntar a inacreditável e lendária história

    de Novecentos, discute a q uestão contemporânea d a cópia e do origi-nal: o dono da loja só acredita na fantástica história de Max porque temaquela prova – o disco – à sua frente.

    Há ainda uma constituinte do texto de Baricco q ue, por sua carac-terística essencialmente visual, obteve um tratamento privilegiado natradução fílmica. Novecentos quase não fala, se expressa sobretudoatravés da música. Traço distintivo q ue possui, entretanto, é a capa ci-dade de “ ler” as pessoas. Observador desde seu nascimento (“ Seq uerchorava, estava silencioso, com os olhos abertos, naquela ca ixa .” p.17),o pianista é capturado várias vezes no filme no ato de observar o mun-do ao seu redor, e na maioria delas ele o faz através de uma janela,como se olhasse o mundo sempre pelo lado de fora , eterno estrangeiroque é. Segundo Nelson Brissac Peixoto, a freqüente utilização do re-curso do “ olhar estrangeiro” nas narrativas e filmes recentes é decor-rência da “ perda de sentido das imagens que constituíam nossa identi-dade e lugar” . Só aq uele que é de fora, continua Nelson, “ é capaz dever aquilo que os outros que lá estão não podem mais perceber”, é“capaz de olhar as coisas como se fosse pela primeira vez e de viverhistórias originais.” Quando o filme foi lançado, Tornatore a firmou, numaentrevista, que Novecentos representa uma espécie de anjo observa-dor da huma nidade q ue, na passagem entre os dois séculos, vive umaperda, uma precariedade existencial. O anjo, ainda segundo a análisede Nelson, seria uma figura de estrangeiro bastante recorrente na cul-tura contemporânea.

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    Parece q ue neste mundo de simulacros, onde tudo é artificial, saiu-se embusca de personagens e histórias que correspondam a essa nova constitui-

    ção e percepção d o espaço. Nesse momento maneirista da cultura, quevive de citações e remakes , não é por acaso q ue se recorre a essa figuraba rroca por excelência. [... ] Enquanto os indivíduos estão se transforman-do em personagens, e le é o único capaz de ter como programa tornar-sehumano, escapar à pura espectralidade, sem no entanto perder suatranscendência. O anjo não tem história. Nã o viveu, não viu nad a. Logo,não vê esses indivíduos/persona gens e lugares/cenários como imagensbanalizadas. Ele vê o que nós não podemos mais enxergar. Contra asimagens-clichês, imagens do sublime. (1988, p. 363)

    Ao contrário do anjo do filme Asas d o D ese jo  , de Wim Wenders,que decide ficar entre os homens, Novecentos não abandona jamaisseu posto de observador estrangeiro, preferindo morrer a ter de e sco-lher viver apena s uma vida .

    Ba ricco e Torna tore procuraram d iscutir, ca da um co m sua fer-ramenta, q uestões q ue dizem respeito à nossa cond ição atual, nes-se começo de século e de milênio, em que as transformações se

    processam sem que tenhamos tempo de assimilá-las. Ao fazê-lo,enfocaram ta mbém a própria natureza do fazer artístico diante d es-sa nova situaçã o.

    Com seu nome epoca l, a persona gem de Novecentos sintetiza a sdua s questões. Co mo a nalisa Cristiana Lardo,

    Novecentos renuncia a descer do navio porque concebe um universosomente quando ele é finito: o navio, as teclas do piano. Escolhe

    deliberadamente não querer conhecer o eixo paradigmático: o seu uni-verso é sintagmático, como a s notas sobre a s teclas do piano.

    Volta, a ssim, em Ba ricco, a vertigem do infinito e da s infinitas possibilida-des q ue o infinito oferece. (1998, p. 89) [Tradução nossa]

    O filme de Torna tore, po rém, apresenta uma visão otimista dian-te do problema . Ao final da inacreditável história que lhe foi narrada ,o d ono da loja de instrumentos devolve o trompete a Ma x, sem ped irde volta o d inheiro q ue tinha pago por ele. Afina l, ninguém está tota l-

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    mente perdido enq uanto tiver uma boa história e a lguém pa ra contá -la, como já sab ia Sheraza de, a mais célebre da s contadoras de histó-

    rias.

    Referências

    BARICCO, Alessandro. N o v e ce n t o s: u m m o n ó l o go  . Trad . Y.A. Figueiredo. Rio de Janei-ro: Rocco, 2000.

    BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In:M agia e t écn i ca, a r t e e p o l í t i ca : ensa ios sob re l i t e ra tu ra e h i stó r i a d a cu l t u ra  . 7 ed.,Brasiliense: São Paulo, 1994, p. 197-221.

    LARDO , Cristiana. I l ro m a n z o co n t e m p o r a n e o  . Lecce : Piero Mani, 1998.

    PEIXOTO, Nelson Brissac. O olhar do viajante . In: NO VAES, Ada uto. O o l h a r  . SãoPaulo: Companhia das Letras, 1988.

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    Resumo:Toma ndo como referência o fantástico pássaro q ue circula por relatosde A s m i l e u m a n o i t e s  , Roberto Echavarren tece uma homenagem aorock em Ave Roc   (1994). D efinida pelo próprio autor como um roma ncehistórico sobre os a nos 60, a obra tem como protagonista o norte-ameri-

    cano Jim Morisom, cujas aventuras apócrifas são narradas por um narradorem primeira pessoa , duas décadas após sua morte. Partindo do conceitode entre-lugar de Silviano Santiago, a presente leitura destaca porosidadeda estrutura narrativa d o romance do escritor uruguaio que constitui umazona nebulosa na q ual, de a cordo com o ponto de vista, pode ser vistacomo realida de ou fantasia, verda de ou versão . E assim, como num calei-doscópio, a imagem se transmuta, adquirindo outros sentidos e novossignificados.

    Palavras-chave: Entre-lugar; Narrativa p ós-moderna; Romance histórico con-temporâneo; Roberto Echavarren, Ave Roc  .

    Abstract:Alluding to the fantastic bird w hich flies around in the Tales f rom the Arab ian n ights  , the Uruguayan poet and essayist Roberto Echavarren buildsAve Roc   (1994). D efined by the own author as a historical novel about the

    Deslocamentos Transamericanos:

    Uma Leitura deAve Roc 

     (1994),de Roberto Echavarren*

    Antonio R. Esteves**

    * Uma versão resumida deste texto foi apresenta da no Encontro Regional da ABRALIC,Li te ratu ra, ar tes, sabe res , realiza do em São Paulo em 2007, no Simpósio Literaturas deviagem/Viagens na litera tura .

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    60s, the book presents as its main character the singer Jim Morinson,whose apocryphal adventures are told, in the form of monologue, by a

    narrator in the first person, two decades after his death. The reading ofthe novel which we propose, starting from the concept of “entre-lugar”[‘the place in-betw een’] by the Brazilian critic Silviano Santiago, points outthe porosity of its narrative structure tha t constitute a kind of misty spacein which, according to how one a djusts the focus to the point of view, onecan see reality or fantasy, truth or versions. Then, as in a kaleidoscope, theimage transfigures itself, a cq uiring other senses or new meanings.

    Keywords: entrelugar [“the place in-between”], postmodern narrative,

    contemporary historical novel, Roberto Echavarren, Ave Roc .

    “ Le l ion est f ai t de m ou ton assim i l é .”   – Paul Valéry

    “ O escr ito r la t ino -am er icano br inca com os signos d e um ou t ro escr ito r, d e  u m a o u t r a o b r a. ”   – Silviano Santiago

    “ Th is i s the end / Beaut i fu l fr iend / Th is i s the end / M y on ly f r iend, the end . ”  – Jim Morrison

    Desde épocas imemoriais, os homens viajam: os relatos também.E com eles as formas de vida, os conceitos, os discursos. Um móbiledesse constante deslocar-se é a curiosidade em saber o que há detrásde certa montanha o u do outro lado de determinado rio. O utro, a bus-ca de novas pastagens para o reba nho, q ue também se desloca , ou aprocura de terras mais férteis. Consolidadas as relações comerciais, asviagens tornam-se constantes: no vos mercados, novas mercadorias.

    Em seu clássico relato sobre o narrador, Walter Benjamin (1985)insinua dua s matrizes bá sicas de narrador. A primeira surge no marinhei-ro ou no mercador (e poderíamos incluir nessa categoria também o pas-tor), alguém que, ao se deslocar, carrega consigo as novidades que vaicontando. A outra é o agricultor (e o artesão) que, embora preso à suaterra, transmite a experiência de geração em geração. Ele, além disso,tem curiosidade em saber o que ocorre para além de seu solar. Ambos,num universo de palavras que se diluem, têm a necessidade de

    intercambiar experiências. “O narrador retira da experiência o que ele

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    conta : sua própria experiência ou a relata da pelos outros”. (BENJAMIN,1985, p.201). Mudam-se os tempos, mudam-se os hábitos, também muda

    a forma de narrar. Mas a viagem continua presente, na vida e nos relatos.E na rememoração. “ Toda viagem se destina a ultrapassar fronteiras, tan-to dissolvendo-as como recriando-as” (IANNI, 2003, p. 13).

    Certamente, o veneziano Marco Polo (1254-1324) é um dos pila-res recorrentes das narrativas de viagem no Ocidente. Ao relatar suascélebres andanças pelo Oriente, reavivou para a enclausurada socie-da de européia de então (e a partir daí já se pode usar esse q ualifica ti-vo) uma dupla cha ma: a possibilida de de conquistar novos mercados e

    de conhecer diferentes mundos.

    Além de finas seda s e da descriçã o do fausto da s cortes orienta is,ele trouxe histórias fantásticas. Uma delas é a q ue fala de uma fabulosaave, o pássaro roque, capaz de levantar elefantes em suas garras. Omarujo Simbad conta q ue, tendo sido a bandonado pelos companhei-ros de viagem em uma ilha deserta, teve que valer-se do portentosopássaro pa ra encontrar o caminho de volta. Sem que este notasse, pren-

    deu seu turba nte em suas patas e pôde cruzar os mares que o sepa ra-vam se sua terra. O relato de Simba d faz pa rte de A s m i l e u m a n o i t e s  ,uma das coletâneas de contos mais significativas do Médio Oriente.De o rigem ancestral e multicultura l, acabou penetrando no imaginárioocidental em d iferentes versões e po r variadas fontes. U ma delas, semdúvida, foram os rela tos de viagem de Marco Polo.

    Valendo-se desse conhecido cronotopo, praticamente um arqué-tipo, o entã o já co nsagrado poeta uruguaio Roberto Echavarren cons-

    trói seu primeiro romance. Publicado em 1994, A v e R o c  , como reco-nhece o próprio escritor (MASCARÓ, 2007), é um romance históricosobre os anos sessenta . Seu protagonista é o canto r de rock norte-ame-ricano James Douglas Morrison (1943-1971), imortalizado como JimMorrison, o vocalista da banda T h e D o o r s  , que tanto furor causou emsua curta existência.

    As aventuras, boa parte das quais apócrifas, desse ídolo dairreverente juventude do final da década de 60 são contadas através

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    do ponto de vista de um narrador sul-americano, pretenso amigo deinfância do cantor. Esse narrador em primeira pessoa, já nos anos 90,

    dirige seu monólogo, simila r a uma longa ca rta, a um interlocutor mor-to há ma is de dua s décadas, que é o próprio Morrison. D istanciad o notempo, ao fazer um balanço daqueles conturbados anos juvenis, q uan-do a ruptura com a sociedade burguesa praticamente norteava a açã ode muitos jovens, o narrador também avalia a atuação de Morrison.Discute, sobretudo , o sentido de sua própria existência. E aq ui a figurado narrador clássico de que falava Benjamin, cruza com outro tipo denarrador, o narrad or do romance. Embora o romance, segundo Benja-

    min (1985, p. 201), não proceda da trad ição oral nem a a limente, nes-te ca so estabelece com ela um interessante diálogo, explícito não ape-nas no título da obra, mas em vários momentos da narrativa. Em A ve R o c , integram-se, num exemplar co ntrapo nto, a reminiscência, tecen-do a cadeia da tradição, desde o exemplo modela r de Sherazade, e arememoração, musa d o romance e da experiência individua l, consoli-dada na forma da palavra escrita.

    Ao longo de 46 capítulos, distribuídos de modo equilibrado emquatro partes, numa linguagem prenhe de especial lirismo, RobertoEcha varren, poeta e ensaísta transformado em romancista, ded ica-se adesconstruir valores canô nicos. Tudo na mais pura tradição d a “ r oad  f ic t i on b ea tn i ck  ” que marcou tanto o roq ueiro norte-americano q uan-to o próprio autor uruguaio. Romper certezas, dentro do mais puropensamento dos anos sessenta , pressupõe derrubar fronteiras: não ape-nas entre sexos, mas também entre gêneros. Ou melhor, transpor limi-tes, circular pelas bordas.

    O fantástico pássaro levanta voo , perambula, cruza fronteiras, borralimites, desvela fissuras e mutações. O voo do pássaro roque organiza anarrativa desde seu título. Assim, o deslocamento norteia a história quese conta e também o próprio contar da história. O protagonista nascena Flórida numa família de militares, categoria especialmente marcadapelas constantes mudanças e pelo desarra igamento . Vive em uma épo-ca em q ue percorrer caminhos é o norte. O ato de fixar-se na Califórnia

    em fins dos anos 1960 é parte do contínuo perambular de sua existên-

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    cia. Sua morte em Paris em princípios dos anos 1970, muito mais quemarcar o fim de sua curta vida, a pena s interrompe seu constante pere-

    grinar em busca de um lugar impossível.O n t h e Ro a d   (1957), do norte-americano de origem canadense

    Jack Kerouac (1922-1969), romance símbolo de toda uma geração,parece ter sido a leitura preferida de Jim Morrison : será um importanteintertexto de A v e R o c  . Kerouac, guru da B e a t G e n e r at i o n   e mentor dosjovens da década de 60, pa ira como uma ave colossa l sobre a narra tivade Echavarren.

    Em alguns momentos, parece que o protagonismo do romancese desloca para o próprio ato de transitar. O voo ziguezagueante deuma ave fornece à na rrativa sua circula ridad e. Na s primeiras páginasa figura de uma ga rça brinca com o narrado r. Na s páginas finais, umw a t e r b i r d   recolhe um pedaço de plástico a marelo, oferecendo-o aomesmo narrador. A garça do início está numa praia do Uruguai; ow a t e r b i r d   de bico a vermelha do pa sseia por um crepúsculo em SantaMônica, na Ca lifórnia. Assim, o relato se fecha de modo circular, co mo

    uma serpente q ue mo rde sua própria cauda. Essa ave pode ser vistacomo o próprio Morrison, o pássaro roq ue q ue sobrevoa espaços in-definidos e q ue também sinaliza para a Fênix que renascerá das pró-prias cinzas.

    Nesse imenso círculo, o próprio orbe, circunscreve-se um triân-gulo cujos três vértices coincidem com os deslocamentos do protago-nista, do narrador e a té mesmo do próprio autor. A um longínquo Sul, àbeira do rio da Prata, contrapõe-se um não menos distante Norte. No

    extremo Oeste estão os confins da Califórnia, “ l a r a jadu ra occ ide n ta l  d e l co n t i n e n t e  ” (ECHAVARREN, 1994, p. 196), espaço onde não ape-nas ocorre a maior parte da a ção do romance, ma s que também era oespaço do persona gem histórico, agora transformado em protagonistado romance. Na outra ponta aparece a velha Europa, onde está a“ c iu d a d m á s p a sa d a d e m o d a d e l m u n d o  ” (ECHAVARREN, 1994, p. 10e outras), que não por acaso é a Paris onde morreu o protagonista eonde repousam seus ossos no Père Lacha ise.

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    A América do Norte, entretanto, não se limita à Califórnia. Onarrador e o protagonista também circulam pela Flórida, Louisiana,

    Texas, México ou Nova Iorq ue. D a mesma forma, a Europa ta mbémnão se resume a Paris. O narrado r e o protagonista se encontram pelaúltima vez em Amsterdam. O narrado r estuda na Alema nha e passaboa parte de sua vida na Europa, antes de retornar a seu longínquosul, pa ra rememorar a história do amigo/amado morto . Esse, po r suavez, em sua busca quase infindável de um lugar aprazível onde re-pousar, esteve também na não menos exótica ilha d e Có rsega , pá triade outro “ deus imperia l” , Napoleão Bona parte, que ta mbém passou

    boa pa rte de sua vida tentando romper fronteiras e limites, geográ fi-cos e culturais.

    Tendo como guia o e lemento dionisíaco nietzscheano de O c re -  pú scu lo do s íd o los  , obra que o protagonista comenta com o narradorjá no segundo capítulo, a outra associaçã o estabelecida com o protago-nista é Alexandre, o Grande. Na mesma página em que comenta aleitura do filósofo a lemão, em sua distante juventude em Tampa , naFlórida , o protagonista também a presenta ao narrado r a figura do míticogeneral-imperador macedônio, pelo viés da leitura de Plutarco. Ale-xandre em seus trânsitos geográficos, culturais e de gênero, será evo-cado em toda a narrativa.

    O Jim Morrison do relato aparece intimamente a ssociado ao ele-mento d ionisíaco em muitas de suas facetas: o duplo na scimento, q uepressupõe um renascimento; elementos fálicos; ou a liberação do irra-ciona l (ECHAVARREN, 1994, p. 24) Além dos inúmeros jogos orgiástico s

    a q ue aparece a ssociado , a narra tiva atribui ao cantor a missão de a rre-batar multidões com sua música e sua dança, conduzindo , dessa forma,suas almas à superação dos limites materiais.

    Nesse perambular constante po r diferentes espaços e transitar pordiferentes culturas, o romance aponta para alguns espaços privilegia-do s, cuja marca principal são interstícios e porosidades. A contraposiçãoarquetípica entre terra e água a presenta espaços ambíguos com signi-ficado especial. Boa parte das ações ocorre em praias, tradicional en-

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    tre-lugar (SANTIAG O, 2000), misto de terra e á gua , onde termina aterra e começa o mar, ou, ao contrário, e ao mesmo tempo, onde

    termina a água e a terra principia. Terra , á gua, b arro: arquétipos daorigem ou do fim, de acordo com o ponto de vista. Ou, em leiturasmais recentes, porosas zonas de transição, privilegiados entre-lugaresde ser e não-ser ao mesmo tempo, lugares nos quais se consegue resol-ver a paradoxal relação entre identidade e a lterida de, na qual uma nã oelimine a o utra, ou melhor, seja capaz de complementá -la.

    Como já foi dito, o romance co meça e termina numa praia, l o c u s  privilegiado para simbolizar o cíclico, em virtude do contínuo ir e virda s onda s. Essas dua s praias, opostas geograficamente, uma no longín-quo Sul, outra no distante O este, coincidem com os espaços do narradore do protagonista: Montevidéu e Los Angeles. No entanto, tambémmerece destaq ue a Flórida , poroso espaço, meio terrestre, meio aquá-tico, onde se entrecruzam seus destinos na distante infância, tendo obarro como testemunha.

    A ambígua e misteriosa história de a mor entre o narrad or e o pro-

    tagonista tem um de seus primeiros episódios narrado já no terceirocapítulo do roma nce. Trata-se de um encontro entre os dois jovens,quando o na rrador visita o protagonista em sua ca sa em Tampa , cidadeonde vivem naq uele momento . Eles saem passear, a mbos pedalando amesma bicicleta. O texto está cheio de elementos eróticos. “ Por un  r a to t e ll evé sen tad o en e l m an i l la r. Rozab a tu co la, no eno rm e , pe ro  r o t u n d a , co n l as m u ñ e c a s  .” (ECHAVARREN, 1994, p. 24). Ocorre umacidente, os dois caem, o na rrador se aproxima e o q ue era preocupa-

    ção transforma-se em jogo erótico, brincadeira de adolescentes, bra-ços e pernas que se misturam cobertos de pó, transformado em ba rropelo suor. A lama fertilizadora ilumina o encontro, embora na práticanão haja ato sexual. O relato é sutil e o ato parece que não correrájamais. Apesar da paixão que em diversas ocasiões o narrador insinueexistir, o protagonista é liso e escorregadio, não se deixa prender.

    A cena termina à beira de um lago q ue ambo s cruzam num barco.Eles assistem um recital em q ue tocam o Carnava l , o de Berlioz e o de

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    los té rminos. ”    (ECHAVARREN, 1994, p. 23) O tempo verbal expõeuma fissura entre o tempo da açã o e o tempo da narraçã o. E também

    entre o narrador e o autor, pois o escritor ensaísta Roberto Echavarrenconhece muito bem tais diferenças já que é autor de um livro sobre otema: A r t e a n d r ó g i n o   (ECHAVARREN, 1997).

    Na descrição do ambíguo jovem, o narrador justapõe e sintetizaas diferença s/semelhança s entre os sexos. Para tanto , vale-se sema nti-camente do cruzamento de elementos geográficos (Oriente e O ciden-te); temporais (atua lidade e Antigüida de); sexuais (homem e mulher);reais (um ba r em Nova Orleans) ou ficcionais (a literatura, com o Satir icon de Petrônio, mas também o cinema, com o filme de Federico Felini,de 1969): “ Ten ía una m e lena ro ja , e l ton o q ue l levaban las m u je res de  M ar ruecos, la rga com o las q ue Satiricón  a t r ib u ye a lo s esclavo s q u e se o f rec ían p ara dar p lacer a los am o s. ”   (ECHAVARREN, 1994, p. 24). Taldescrição , entretan to, está centralizada na aparência do jovem que seveste e se embeleza no limite das convenções sociais.

    Apesar de parecer que o protagonista deixa-se seduzir por Adrian,

    é o na rrado r que mantém relação sexual com ele. Jim é um mero v o y e u r  da cena. No limite das relações sexuais convencionais, se introduz,desse modo, uma mod alidade que vai perpassar todo o romance. A leido espetáculo é o q ue dirige a a ção do protagonista, seja em suas apre-sentações musicais, mais adiante; seja nas relações pessoais; seja nasrelações sexuais. E o espetáculo necessita do olho do espectador. Rom-per a ilusão da realidade significa também instaurar a possibilidade damirada que dá novos sentidos ao que se vê.

    O ambíguo Adrián, no entanto, também contribui para alargar otecido narrativo. Por tratar-se Ave Roc   de um “romance histórico” , ter-mo usado, evidentemente, em um sentido diferente da quele comumséculo XIX, as reminiscências de M e m ó r i a s d e A d r i a n o    (1951), deMarguerite Yourcenar são evidentes. Não apenas pelo nome do perso-nagem, mas também pelo fato de que o imperador Adriano, protago-nista desse romance, co mo Alexandre, também exerce um importantepapel no trânsito geográfico, cultural e principalmente de gênero. Isso

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    se reforça, a demais, pela associaçã o que se faz entre Adrián e os rapa-zes do Sat i r icon  , obra que trata de ambientes romanos da época,

    intertexto evidente da clássica obra da romancista francesa radicadanos Estados Unidos. A rede de relações nã o termina aq ui: algumas pá-ginas antes, no primeiro capítulo, já havia apa recido um professor docolégio religioso freq uenta do pelo prota gonista . Trata-se do irmãoAntino, clara referência ao célebre Antinoo, amado do imperadorAdriano e ta mbém prota gonista d o roma nce d e Yourcenar, o bracanônica da chamada literatura de gênero.

    Se esse a mbíguo Adrián do bar de No va O rlea ns introduz a figurado entre-lugar de gênero no romance de Echavarren, seus represen-tantes mais significa tivos, entretanto , surgirão ma is adiante. Talvez oimportante deles seja uma bichinha de um prostíbulo de Tijuana , noMéxico, para onde se deslocam o protagonista e, como sempre, onarrador, uma espécie de v o y e u r   que o a companha. A relaçã o com oepisódio de Nova O rleans é explícita. No vamente surge a mistura degêneros na forma de vestir-se, na maq uiagem e mesmo na profissão: abichinha mexicana considera-se des igner   embora viva entre costurei-ras. Mas também na sexualidade em si, já que, apesar de rapaz, suagenitália nã o passa de um peq ueno brinquedo : tinha o pênis do ta ma-nho de uma agulha de costurar lona. Com ele, no entanto, ocorre odesvirginar do protagonista. Para escândalo da bichinha que esperaque o outro o possua, o protagonista lhe pede a mesma coisa. O atosexual acab a rompendo inclusive com o ca nônico ho mossexual: ele ofaz com a mão. Além disso, Jim lhe pede que lhe crave as unhas namucosa. A experiência é transcendental e significa tiva: “ El ex p e r i m e n -  t o r esu l t ó pa ra t i t an d r ást i co co m o e l de la cám ara p a ra Pasca l. D en t ro  de las t r i pas se t e ab r ió una cúpu la esp inosa , un bo tón de peyo te . ”  (ECHAVARREN, 1994, p. 58)

    A drástica ruptura traz para o centro da narrativa o mais marginalpossível e não apenas, pode-se dizer, o cânone do marginal, como oamor entre homens, prostíbulo, drogas, México. A alusão a um dosnúcleos da ciência moderna e sua a ssociação, também, com experiên-

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    cias pouco convencionais como o peiote, completam a ruptura. Poroutro lado, o corpo ocupa o centro, ou, em outros termos, ocupa-se o

    centro do corpo, já que a experiência é, l i teralmente, o maisdesgarradora e viscera l possível.

    Da mesma forma, o jogo de espelhos mistura as imagens. O prota-gonista q ue habita uma zona alternativa da sexualidade que o romancepropõe-se a discutir e q ue seria, d e a cordo com os papéis burgueses, omacho da história, é penetrado de modo paródico (carnavalizado, tal-vez seja mais exato) pelo “ m a r i q u i t a  ” mexicano. Rompem-se váriosestereótipos ao mesmo tempo. O primeiro d eles é a relação estereo ti-pada em que o travesti, pastiche da figura feminina, penetra o machoconvencional. Apesar de sua clara feminilidade, a bichinha de Tijuana ,estereótipo do gay das zonas periféricas, tem que penetrar o machobranco vindo do norte. A substituição do pênis pelo braço , q ue pode-ria apa recer uma pa ródia do ato sexual, nã o se pode ler desse modo jáque a palavra do narrador dá um sentido especia l ao ato . Todos oslimites se rompem ao mesmo tempo: anatômicos, sexuais, genéricos eculturais. Trata-se de um de liberado a to de borrar o q ue antes se podiadistinguir e separar.

    A partir desse episódio, pode-se seguir em duas direções. Umadelas, ma is simbólica, a ponta para a essência das vísceras, os intestinos,o baixo corporal, os excrementos e a escatologia, ao longo do roman-ce. Relaciona-se também com a imagem da co bra q ue serpenteia pelanarrativa. A serpente, um dos mais caros arquétipos humanos, associa-da à psique inferior, pode ser lida como o q ue dá vida ou o q ue repre-

    senta o princípio bá sico da vida . A compa ração entre serpente e intes-tinos é antiga e está associada à capacidade de renovação, a mesmaque se constata no romance com a presença de outros símbolos, comoo vôo circular das aves, a Fênix, o dionisíaco e a capacidaderegeneradora do barro.

    O círculo regenerador, no âmbito escatológico, associa-se a tudoisso. Nas primeiras linhas do romance, ao aproximar-se da praia, onarrador dirige-se à foz de um rio, por onde corre um esgoto. No tem-

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    po da na rração , o enca namento penetra q uilômetros, pelo mar aden-tro, associando o poder regenerador do elemento escatológico à água.

    No final do romance, o mesmo motivo reaparece. O narrad or sai paratomar seu mate à beira de um riacho q ue desemboca na praia, “ p a r a  evacu ar, no e l aneu r ism a, n i la leche , n i lo s b isco ch o s, sino la sangre y  l a f r u ta de l estóm ago . ” (ECHAVARREN, 1994, p. 197). Da mesma for-ma, o poder regenerador da água (e suas variantes, sangue e leite)tamb ém se a ssocia ao poder regenerador da escatologia. (CHEVALIER& GHEERBRANDT, 1989)

    A associação, no espaço do limítrofe, nã o ocorre a penas com rela-ção à praia, local de encontro entre terra e água, mas também comrelação a os gêneros. Esse riacho, um fio d ’água q ue deságua na praia, ofaz “ f rente a lo p ezo n es d e la d io sa o C r isto q ue t rasud ado s y t rasparen tes se p ue d e f i lm ar en esa p laya”   (ECHAVARREN, 1994, p. 197). Associam-se o s peitos da deusa, a primitiva mã e, a o sangue de Cristo. Nascimen-to, vida , morte e ressurreição , de acordo com as an tigas mitologias e ocristianismo, reforçado s pelos elementos esca tológicos que simbolizama mesma co isa. O s intestinos, as entranha s, que po deriam loca lizar-sena zona do sexo não convenciona l , a té mesmo b iza rro , seressemantiza m e passam a significar o contrário. No ritual do Lago Cla-ro, o elemento escatológico , adema is, vai associar-se ao coprofágico.

    A outra direçã o possível que o episódio de Tijuana indica, emboranão menos simbólica , mantém-se dentro dessa zona fronteiriça da ambi-güidade não a penas sexual, mas também de gênero. O contraponto dafigura masculina no limite da imagem feminina, que circula em grande

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