Revista Subversa Volume 1 | n.º 2 | set 2014

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MARIA EDUARDA PALMA | MORGANA RECH BRENO RICARDO | VICTOR PRADO JULIANA BEN| CHUANA DI FRANCO MOURA ANDREA ARREBOLA AZEVEDO | TÂNIA ARDITO 2ª Edição | SET /1 2014

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MARIA EDUARDA PALMA | MORGANA RECH

BRENO RICARDO | VICTOR PRADO

JULIANA BEN| CHUANA DI FRANCO MOURA

ANDREA ARREBOLA AZEVEDO | TÂNIA ARDITO

2ª Edição | SET /1 2014

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© originalmente publicado em 01 de Setembro de 2014 sob o título de

SubVersa ©

2ª Edição

Responsáveis técnicas:

Morgana Rech e Tânia Ardito

Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados como

autores desta obra.

Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos textos

ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem com a realidade.

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2ª Edição

Setembro de 2014

ANDREIA ARREBOLA FIGUEIREDO | DOROTEA, A GIRAFA

LUNÁTICA | 4

VICTOR PRADO |ISTO NÃO É UM AVISO | 8

BRENO RICARDO | A MISSA |10

JULIANA BEN | A VISÃO DO PARAÍSO | 12

MORGANA RECH | A PERGUNTA MAIS DIFÍCIL DO MUNDO | 15

MARIA EDUARDA PALMA | JASMINE O SEU CONTO | 19

TÂNIA ARDITO | BOM CAFÉ | 24

CHUANA DI FRANCO MOURA | MERTERIZ | 26

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ANDREA ARREBOLA AZEVENDO

SÃO PAULO, SÃO PAULO, BRASIL

Dorotea era uma girafa diferente. Não apenas pela aparência

física, bem mais alta e pescoçuda do que as demais, mas pela sua

personalidade sensível e sonhadora.

O seu maior desejo era ser livre, sair dali, viver na selva. Só de

pensar na infinidade de folhas que poderia provar, na textura das águas

dos rios, no barulho das asas dos pássaros voando ao seu redor....

Os outros bichos do zoológico apelidaram-na de lunática.

Dorotea, a girafa lunática, mas Dorotea não se importava. Durante o

dia, as demais girafas riam dela, caçoavam, mas a suave Dorotea não

revidava. À noite, ela olhava para a lua e imaginava como seria o céu

na selva, quantas estrelas conseguiria contar, quantas cigarras

suportaria escutar, até ser interrompida pela risada nervosa das

barulhentas ienas, outra espécie que vivia a lhe importunar.

Claro que nem todos os animais a repudiavam, já que Dorotea

DOROTEA,

A GIRAFA

LUNÁTICA

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era dócil e generosa. O macaquinho Olavo, por exemplo, indiferente à

irritação dos tratadores por viver perambulando de lá para cá, era seu

melhor amigo.

Era ele quem contava a Dorotea tudo o que via pelo zoológico

durante o dia e à noite, os dois escutavam as histórias de Fabíola, a

coruja albina, igualmente fujona. Há tempos os três planejavam fugir

para a floresta, mas sabiam que não seria fácil, até porque, uma das

histórias favoritas de Fabíola era relatar como a sua avó havia morrido

atropelada por um caminhão ao tentar escapar do viveiro.

O plano, entretanto, não os impedia de aproveitar os pequenos

prazeres do zoológico. Dorotea, por exemplo, adorava as cenouras

parrudas que eram servidas às segundas. Olavo preferia as bananas,

mas seu maior prazer era provocar as insuportáveis ienas enquanto

dormiam. Já Fabíola, gostava de bisbilhotar pela janela do zelador as

cenas dos filmes de terror que o sujeito assistia após a ronda noturna.

Havia também um gosto comum entre o trio: as risadas das crianças.

Aos domingos o parque ficava cheio delas correndo de lá para cá,

atirando pipocas para os animais, acenando, tirando fotos com seus

familiares.

Nem todos, contudo, compartilhavam da mesma opinião. Núbia,

a pantera negra, odiava crianças. Aos finais de semana ela se enfiava

na pequena caverna dentro do seu recinto e só saia de lá para

apanhar a comida e ainda assim, com nítido mau humor e irritação.

O espaço de Núbia ficava ao lado da área das girafas, mas não havia

qualquer sinal de amizade entre elas, pelo contrário. Núbia as

considerava seres inferiores e as girafas, com exceção de Dorotea, que

sentia pena dela, detestavam-na.

E assim, de cenoura em cenoura, banana em banana, de

beliscões noturnos nas ienas a cenas de filmes de terror, eles

prosseguiam com suas vidas no zoológico.

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Mas foi numa tarde de sexta-feira que Olavo chegou afoito para

contar uma novidade a Dorotea. Para variar, as ienas à frente riam dela

e Olavo contou com a ajuda de alguns amigos macacos para, através

de um divertido tiroteio de mamomas, tapar-lhes a boca. Dorotea

achou graça e Olavo sentou-se ao seu lado com um sorrisinho maroto e

os olhinhos brilhando. Em segredo, ele contou para a amiga que um

caminhão repleto de aves chegaria da selva na próxima terça-feira e

retornaria na própria terça-feira para apanhar mais. Naturalmente eles

teriam que agir rápido. O único problema era como camuflar Dorotea.

À noite, eles contaram o plano para Fabíola e os três só

pensavam em uma coisa: como fazer para esconder Dorotea? Olavo

sabia que o caminhão era grande, muitos do gênero já haviam

circulado por ali, Fabíola concordava, mas ainda assim, não era grande

o bastante para que Dorotea não fosse vista dentro dele.

E de tal modo, eles se deitaram, mas não dormiram. Na manhã

seguinte, um sábado de sol, as crianças chegaram e os três

conseguiram se distrair. À noite, porém, a dúvida: como esconder

Dorotea? Não, sem ela, definitivamente não iriam, isso já estava

decidido.

No domingo, Dorotea saboreou alguns tomates e folhas e foi para

a beira do cercado apreciar o movimento dos pequenos. Não que ela

não gostasse dos adultos e idosos, mas eram os pequenos que lhe

encantavam.

Nos dias de visitação, Olavo não escapava, o zelador batia nele

se o fizesse e ele não gostava de apanhar. Fabíola também

permanecia quieta e como qualquer coruja, dormia na maior parte do

tempo.

E foi assim, com os três pensando a mesma coisa, que foram

surpreendidos, como a todos por ali, pelos gritos de uma mãe

desesperada após seu filho mais velho atirar o filho mais novo para

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dentro do cercado de Núbia.

A pantera, que dormia no momento, despertou com o barulho e

não escondeu sua satisfação ao ver aquela criança chorando dentro

da sua área. Nos arredores as pessoas gritavam por socorro, alguns

correram em busca do zelador e de outros funcionários, a mãe

desmaiou e o irmão mais velho se arrependeu.

Núbia, por sua vez, aproximou-se vagarosamente e já ia golpear o

bebê no pescoço quando foi surpreendida pelo pescoço de Dorotea, a

qual abocanhou o pequeno pela roupa e conseguiu arremessá-lo para

o cercado das girafas, instantes antes de ser gravemente ferida por

Núbia.

A multidão ficou chocada e não sabia se aplaudia pelo

salvamento do bebê, ou se chorava após o pescoço de Dorotea cair

inerte e ficar pendurado, já sem vida, no cercado de concreto.

Algumas horas depois os visitantes foram embora, assim como o

corpo de Dorotea. Olavo chorou tanto que achou que fosse morrer

também. Fabíola não quis assistir a filme algum e até as irritantes ienas

calaram suas risadas.

Na segunda-feira à noite, envolvidos pela tristeza, Olavo e Fabíola

decidiram prosseguir com o plano em homenagem a Dorotea.

Não foi difícil para eles, num pequeno descuido dos carregadores

ambos se esconderam atrás de algumas caixas no caminhão e ali

permaneceram até sentir o movimento das rodas. O que estaria por vir?

Não sabiam. Mas nada poderia ser pior do que continuar no zoológico

sem a presença de Dorotea.

E foi assim, pensando na amiga que os dois adormeceram, e ao

mesmo tempo, sonharam com a gentil Dorotea correndo na selva,

experimentando as mais variadas espécies de folhas, bebendo a água

dos rios e correndo feliz com os pássaros à sua volta.

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VICTOR PRADO

PALMEIRA D’OESTE, SÃO PAULO, BRASIL

Quatorze mil almas

e o fundo oceânico

em chamas:

em festa;

Vim fugido daquele que é eu

para todos os fins

que não necessitam de

inícios.

Todas essas conversas

que só ouço:

Não me intrometo de papagaio

ou maritaca.

Não sou de hoje,

esse oceano não me serve,

o que me veste bem é riacho e

o silêncio orquestrado pelas nuvens.

O bom acontece no sem-tempo;

Poupar tempo é não comprar relógios

ISTO NÃO É UM AVISO

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(abrir os olhos e acordar o sonho).

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Aquários humanos

são feitos de placas

e não necessitam de tampa

Vocês são seres aquáticos

que escapuliram a si mesmos

e hoje pensam em mares

como quem brinca de telefone sem fio.

3

E todas essas coisas

podem ser provadas,

mas os gostos variam

de acordo com o paladar.

Isso não é um aviso.

Aviso é fechar os olhos e abrir a boca.

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BRENO RICARDO

BELO HORIZONTE, MINAS GERAIS,

BRASIL

De repente decidi ir à missa, mas antes precisava voltar à

república para entregar a um colega um litro de pinga que eu havia

comprado. Subi a minha rua até o número 259; depois, as escadas até

o apartamento 403. Afobado, Oscar pegou a garrafa de cachaça,

agradeceu-me e deu-me o troco: apenas R$3,00.

Entregue a bebida, podia ir-me, imaculado, para a celebração

eucarística. Pensei em vestir calças em vez de bermudas, mas, súbito,

resolvi arriscar-me a entrar no santuário com as pernas à mostra mesmo.

Retirei-me e fui ao templo. Antes de subir as suas escadarias, distraí-me a

admirar uma beldade e imaginar-me junto a ela. Contudo, refiz-me

rápido e pus-me a elevar-me pelos degraus que, tantos eram, nos

faziam sentir ascendendo ao próprio céu.

Entrei lentamente. Esqueci-me do sinal-da-cruz. Pensei em fazê-lo

tardiamente – desisti. Havia gentes em demasia, enchiam todos os

bancos e, por isso, mantive-me de pé todo o tempo. Geralmente, ao

adentrar igrejas católicas, sou inundado por um forte espírito piedoso,

mas dessa vez foi como se entrasse em qualquer outro prédio secular.

A MISSA

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Estava lá por mero compromisso religioso. A missa já tinha começado. À

medida que avançava a liturgia, avançava um sentimento cristão em

mim. No momento das ofertas, eu, pensando ser o da comunhão, fui

até os arredores do altar. Deparei-me com a sacolinha que – mantém

vivos os pobres em sua pobreza, a igreja local em situação razoável e o

Vaticano em seus luxos exacerbados. Desconheço que fim tomarão as

moedinhas que doei por constrangimento, mas espero que sejam

enviadas à postergação da fome e da morte, caridade apelidada.

Mais tarde, houve o clímax: a inexplicável cristianização do meu

ser – a comunhão. Recebi a hóstia, mesmo sem ser oficialmente um

católico romano, retirei-me ao meu lugar de origem onde ajoelhei-me,

fiz o sinal-da-cruz e orei, pedindo a misericórdia e a paciência divina no

concernente à oscilação da minha fé. Clamei também para que a

saída de Edemburgo me não cause arrependimento; que a vida nova

na Nova Cidade seja próspera e digna de orgulho.

Eu precisava ir àquela missa, ouvir o padre moralista, rezar e

operar todas aquelas parafernálias litúrgicas que pretendem aproximar-

nos de Deus. Mas que podem facilmente tornarem-se em simples dever

religioso e compromisso com uma instituição dúbia – antagônica em

demasia. Afinal, o cristianismo é uma estranha sobreposição de

antíteses.

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JULIANA BEN

PORTO ALEGRE, RIO GRANDE DO SUL, BRASIL

Durante todas as manhãs de março daquele ano, Maria Lúcia

desejou profundamente invadir aquela paisagem. O verde vibrante das

árvores, o azul resplandecente das águas, a areia branca e fina,

pedindo um pisar leve e suave. Tudo a envolvia de tal forma, que se

tornava cada vez mais difícil concentrar-se em suas tarefas diárias.

Nenhum foco mostrava-se tão irresistível.

Não sabia ao certo o real motivo desse desejo. Talvez a ausência

de férias. Talvez o tédio do ofício. Talvez a fixação pelo inatingível. O

fato era que Maria Lúcia estava apaixonada pela imagem paradisíaca

de um calendário de Ação de Graças.

No início era apenas um hobby. Ela se distraía ao admirá-lo nas

horas vagas. Na hora do cafezinho, na passagem para o banheiro, ou

quando se dirigia a algum colega para trocar uma ideia. Mas com o

passar do tempo, tornou-se um vício. Maria Lúcia não conseguia tirar os

A VISÃO DO

PARAÍSO

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olhos da paisagem. Havia um magnetismo que a atraia, uma certa

identificação.

Os colegas começaram a comentar:

- A Maria Lúcia anda estranha... Passa horas parada em frente

àquele calendário. Às vezes nem presta atenção quando a gente fala!

- Pois é ... Ouvi falar que é depressão.

Outro dia, na saída do trabalho:

- Tu viste a última da Maria Lúcia? Estava eu saindo do banheiro e

me deparei com ela acariciando a imagem do calendário! Tens noção

do disparate?

- O caso anda crítico.

- E sem contar que daqui a pouco será Abril, e a página será virada!

Certo dia, Valter, um dos colegas mais próximos, resolveu investigar:

- Maria Lúcia.

- Ah?

- Tu estás bem?

- Claro, Valter, por que?

- Não sei... as pessoas comentam.

- Comentam o que?

- Esse teu comportamento... Não parece normal.

- Que comportamento?

- Ah Maria Lúcia, não te faças de sonsa! Eu falo da fixação por esse

calendário. O que tanto tu vês nessa paisagem?

- Lá é o meu lugar, Valter. Eu sinto.

- Como assim, Maria Lúcia? Tu sabes ao menos que lugar é esse?

- Não.

- Então, mulher, como podes dizer que lá é o teu lugar?

- Não sei, eu apenas sinto.

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No dia 31 de março, por volta do meio-dia, todos na repartição

saíram para almoçar. Chamaram Maria Lúcia, mas ela preferiu ficar na

companhia da sua paisagem, afinal, amanhã seria 1º de abril, e a

página seria virada.

Passada uma hora, os colegas retornaram ao trabalho, mas não

encontraram Maria Lúcia. Viram apenas suas roupas e sapatos no chão

em frente ao calendário. Intrigados com a situação, perceberam que,

misteriosamente, a figura de uma mulher nua aparecia entre os

coqueiros da paisagem de março. Devido à insistência da colega em

admirar a fotografia, os colegas passaram a observá-la melhor nos

últimos dias. Não havia ninguém ali antes. Apenas o mar, a areia, os

coqueiros e o céu. Não restavam dúvidas. Maria Lúcia tivera a definitiva

visão do paraíso.

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A PERGUNTA

MAIS DIFÍCIL DO

MUNDO

MORGANA RECH

PORTO ALEGRE,

RIO GRANDE DO SUL, BRASIL

Sábado à noite.

A ocasião é comemorativa e familiar.

Parentes, amigos, amigos de parentes e parentes de amigos

estão finalmente juntos. O encontro é agradável, alegre e

emocionante.

A prima, estrela da noite, tem um namorado impecável, que

transborda felicidade como só um homem dignamente apaixonado é

capaz de expressar, com a entrega de um menino. Um rapaz calmo

com o coração quase transparente, que teve a sorte de ter uma irmã

simpática e extravagantemente divertida.

A irmã, por sua vez, que não perde a oportunidade de agradar a

todos com uma frase engraçada e descontraída, está animadíssima

pela nova conquista da sua cunhadinha querida, é claro, e trouxe o

marido para diverti-lo um pouco.

O marido, mais contido, distrai-se com a plenitude socializadora

da mulher e tenta acompanhá-la fazendo o máximo esforço para se

comunicar de forma natural, de dentro de sua concha mental de

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silêncio, números e computadores velhos.

Tudo vai muito bem até que este senhor que acabo de

mencionar, esbanjando simpatia e interesse pelo circuito social, após

aceitar um pedaço de pão com alho antes de a sua comida ser

devorada sem dó pela esposa, resolve dar um passo à frente e

perguntar sobre a minha atividade profissional.

De dentro da concha mental de silêncios, números e

computadores velhos, o sujeito se esforça num ar curioso e me faz a

pergunta mais terrível que eu já ouvi e que me causou o estranho efeito

da petrificação instantânea.

Do fundo do seu cérebro algorítmico, eis que vejo surgir

anunciada como um déjà-vu do sofrimento cardiovascular dos grandes

nomes da Grande Literatura as palavras que soam como a

aproximação do assalto das almas inocentes, e formam o susto do pior

dos pesadelos infantis, dizendo: “Você escreve como hobby, ou como

profissão?”

A frase passa como um vento forte e ao mesmo tempo suave. Ela

tem passado, presente e futuro. Vejo-me diante de um grande

problema da raça humana e um profundo sentimento dialético que se

desenvolve em forma de pânico e perplexidade, sutilmente

acompanhado de uma calmaria, também profunda.

Sorrio constrangidamente como quem acabou de ganhar um

elogio corriqueiro, como por exemplo (algo que ele poderia ter dito, ao

invés de fazer a pergunta mais difícil do mundo): ah, que interessante,

seu trabalho deve ser muito entusiasmante), e olho rapidamente para

todo o prato, virando todo o rosto para baixo pensando o que fiz de

mal para estar ali naquele momento.

Nem quando uma criança de cinco anos me perguntou se um

dia o mundo iria acabar foi tão difícil, até porque a pergunta da

criança tem fundamento. Que fundamentos tinha a pergunta mais

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difícil do mundo, afinal? Pela lógica do interessado, seria a função da

literatura. O ato de escrever um livro, na sua cabeça se resumiria a duas

opções para encontrar uma função: hobby ou profissão. Hum… No

primeiro caso, fiquei imaginando alguém, por exemplo, que pinta

quadros. Um belo dia, a pessoa reúne o seu trabalho, cria, divulga e

realiza uma exposição com suas obras num pequeno museu que está

ao seu alcance. Seguindo o raciocínio, o mesmo sujeito dificilmente

perguntaria: “você expõe seus quadros como hobby?”

O voo do garfo com a comida, que estava prestes a adentrar as

minhas glândulas salivares desta vez fracassou e caiu, pousando no

prato novamente enquanto esfriava.

A esposa, que sentava à frente do sujeito que sentava ao meu

lado esquerdo, continuava tagarelando algo com alguém que estava

sentado do lado oposto dela, mas curiosamente manteve um canto de

olho no nosso milésimo de segundo paralisador e eterno.

Num suspiro profundo, terminei de mastigar e me certifiquei que

estivesse com a boca bem limpa para que pudesse ter uma conversa

franca, como pedia a ocasião. Deslizei o guardanapo em volta dos

lábios e virei o pescoço para o lado esquerdo e pisquei os olhos

relaxadamente. Olhei para a esposa, para o sujeito (que continuava

esperando pela resposta e bebendo o seu refrigerante no canudinho) e

depois olhei para o nada.

Foi o segundo mais longo de todas as conversas que tive.

Dizem que nestes momentos um filme passa pela nossa cabeça. É

verdade.

A minha estante de livros, branca, iluminada, organizada por cor,

num belo arco-íris literário veio à minha mente como a mais

tranquilizadora das visões.

Apenas respondi com outra pergunta, tão idiota quanto:

“Depende, o que tu consideras por hobby”.

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Tão, tão, embaraçada.

Claro, a resposta correta seria: “Hum… É um hobby,

definitivamente, pois a escrita só representa 5% da minha renda mensal,

portanto posso considerá-la uma profissão quando esta porcentagem

passar dos 51%. Pelos meus cálculos, isso acontecerá em 2034, com

uma margem de erro de 3,4%. Ou seja, vinte anos. Nada mal, né?”

Acrescentei, antes que ele pudesse responder, que esta era uma

conversa muito chata para uma comemoração tão alegre. O sujeito

resmungou qualquer coisa e eu percebi que, afinal, estava salva. A

literatura realmente não chegará jamais a todos. Tudo bem até aí. Mas

a arte não chegará, eis a grande tragédia envolvida neste fragmento

de minuto da minha vida. Enquanto um membro nosso, enquanto um

braço e uma perna nossa, um pedaço do cérebro, a arte não será o

centro das pesquisas e dos avanços tecnológicos. Das profissões e das

inovações. Dos requisitos e pré-requisitos. Da religião e dos saberes, os

sabores e o riso. Ainda que se mostre o contrário, a arte não será nada

disso, e esta percepção do mundo eu engoli a seco naquela pergunta,

entalada para sempre na minha garganta, no meu estômago e no meu

coração.

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MARIA EDUARDA PALMA

COIMBRA, PORTUGAL

O meu nome é Jasmine, tal como a princesa do conto de

Aladino.

Tenho 10 anos e hoje a professora disse que como eu tinha o

nome de personagem de uma história, que escrevesse sobre outros

protagonistas de outras histórias.

E então eu escrevi isto:

“Era uma vez uma menina que nasceu num país mágico onde o

sol sempre brilhava e a temperatura era sempre amena.

Mas um dia todos os habitantes desse país acordaram com tudo

coberto de neve.

Durante a noite e pela primeira vez tinha nevado e tudo estava

branco, de uma maravilhosa brancura que levou todos para a rua

desfrutar daquela prenda da natureza.

Nesse mesmo estranho dia, nasceu uma menina a quem foi posto

o nome de Branca de Neve.

JASMINE E O SEU CONTO

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Branca de Neve era muito bonita mas ao contrário do nome, era

uma menina morena de cabelos e olhos pretos como a maioria dos

habitantes desse país.

Quando tinha 8 anos a Mãe morreu e quando tinha 16 o Pai, com

quem sempre vivera feliz, casou de novo com uma senhora viúva que

tinha 2 filhas.

E Branca de Neve começou a sentir-se infeliz porque eram muito

más para ela.

Quando o Pai estava em casa eram atenciosas, mas quando ele

não estava, o que acontecia frequentemente pois tinha de viajar muito

por motivo de negócios, faziam-na trabalhar o tempo todo e mal tinha

tempo para estudar e sair com as amigas.

Numa tarde fresca de verão, vestiu o seu polar vermelho de

capuz e foi dar uma volta pelos bosques pois gostava de ver os esquilos

e de sentir o aroma dos pinheiros e demais árvores.

Naquele dia, quando estava sentada a descansar um pouco

apareceu um lobo que lhe gritou: “Vou-te comer! “ Tu és a Menina do

Capuchinho Vermelho e eu tenho de te comer como no conto.”

Branca de Neve ficou muito assustada e desatou a correr com

quantas forças tinha, até que cansado, o lobo que era gordo e não

corria tanto como ela acabou por desistir e ir procurar outra coisa para

o almoço.

Quando finalmente parou de correr e viu que o lobo já nem se

avistava, respirou descansada e viu ao longe uma pequena casa.

Como já não sabia bem onde estava, dirigiu-se para lá a fim de

pedir um copo de água e telefonar para casa a pedir para a irem

buscar.

Mas quando chegou viu que aquela casa era toda feita de

chocolate e doces.

Quando ia tocar à campainha para ver quem seriam os seus

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estranhos habitantes, reparou que esta era uma bela bomboca de

chocolate e não resistiu a comer um bocadinho.

Depois foi espreitar pela janela onde estavam uns vasos feitos de

gomas e provou também um bocadinho.

Como não viu ninguém, empurrou a porta que era uma tablete

de chocolate e entrou.

Estava tudo impecavelmente arrumado mas parecia uma casa

de bonecas, pois tudo lá dentro era pequenino.

No quarto havia sete camas de chocolate com colchas de gelatina.

Os candeeiros das mesas de cabeceira eram brigadeiros e não

resistiu a comer um…

Estava para se ir embora quando ouviu umas vozes a cantar ao

longe.

Espreitou pela janela e viu sete anões que todos em fila a marchar

enquanto cantavam alegremente:

Eu vou eu vou

Para casa agora eu vou

Parara-tim-bum

Parara-tim-bum

Eu vou

Eu vou

Eu vou

Eu vou

Eu vou

Para casa

Agora eu vou.

Branca de Neve sentiu-se cheia de vontade de ver de perto

aqueles estranhos habitantes de uma casa de chocolate perdida na

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floresta.

Quando chegaram foram simpáticos para com ela e

convidaram-na para almoçar.

Comeram frutos silvestres, pão com mel e beberam sumo de

malvas.

No fim, Branca de Neve despediu-se deles, agradeceu a

hospitalidade e pediu que lhe indicassem o caminho para casa.

O Dengoso prontificou-se para a acompanhar enquanto o

Soneca dormitava sentado numa cadeira de mortadela de chocolate

e o Atchim não parava de espirrar porque sofria de alergias.

Quando iam a caminho, passaram por uma casa a cuja janela

uma carochinha gritava:

“ Quem quer casar com a Carochinha que é rica e bonitinha”?

E uma data de animais iam-se oferecendo para a desposar e ela

ia rejeitando todos.

Até que apareceu um rato muito bem vestido que disse que

gostaria muito de casar com ela pois adorava comer coisinhas boas e

sabia que ela era uma ótima cozinheira.

A Carochinha aceitou e enquanto se beijavam felizes Branca de

Neve retomou o caminho para casa.

De repente viu um bonito rapaz num descapotável amarelo que

parou ao pé dela, retirou um sapato de cetim da mala do carro e

perguntou se podia ver se lhe servia.

Ela disse que não se importava mas que achava o sapato feio e

com ar incómodo e que não precisava de apenas um sapato pois tinha

dois pés.

Então o rapaz ajoelhou-se aos pés dela e delicadamente enfiou-

lhe os sapatos no pé direito.

Quando viu que lhe servia perfeitamente, ergueu-se e com ar

radiante declarou :

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Finalmente encontrei a rapariga com quem andei a dançar no

baile da rosa e que fugiu perdendo este sapato!

Branca de Neve disse-lhe que estava confundido pois não tinha

ido a nenhum baile.

Então o rapaz perguntou-lhe se ela queria ao menos ir tomar uma

bebida com ele.

Como era um rapaz bonito e educado, ela esqueceu que não

devia aceitar boleia de estranhos e despedindo-se e agradecendo a

Dengoso ter andado com ela, lá foi no descapotável amarelo com os

cabelos pretos ao vento”.

Pronto, eu gostava de escrever mais, porque ainda há muitas

mais personagens de que gostava de falar mas a campainha tocou e

tenho de entregar o meu conto.

Espero que a professora goste e me dê uma boa nota.

Jasmine

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TÂNIA ARDITO

SÃO PAULO – PORTO

Após a minha terceira tentativa de acertar o ponto do café

granulado e instantâneo, pensei que esta é, talvez, uma das muitas

artes que eu ainda não domino: a arte de fazer um bom café. E,

refletindo sobre o caso, percebo que estou longe de dominar qualquer

das modalidades artísticas de se obter o precioso líquido. Devo

confessar que ainda não testei todos os meus dotes, garantindo uma

certa esperança de salvação, penso até em adquirir daquelas

máquinas de café com cápsulas – dizem ser a maneira mais fácil – é só

colocar a quantidade de água recomendada, encaixar a cápsula na

máquina e pronto! Sirva-se de um café digno!

Da variante em pó há uma forma tradicional de utilizar um

coador do tempo da vovó, isto é, coador de pano ou de papel, sendo

para mim uma tarefa ainda mais difícil, principalmente ao tentar testar

a habilidade de fazer “a olho”, ou fica fraco ou forte, ou coloquei muita

água ou pouca e para o caso de adoçar o café que ainda está no

bule a tarefa parece ainda ser mais complicada, logo percebo que o

BOM CAFÉ ______________________________________

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café virou algo parecido com o melaço. Quando quero complicar

ainda mais a minha vida utilizo a cafeteira italiana dividida em três

partes, na primeira coloca-se a água, a segunda parte é destinada ao

pó das arábias e a parte de cima reservada ao líquido derivado da

mistura de café mais água; uma opção que mostra-se muito da infeliz,

já que o resultado é constantemente o meu fogão ser dominado pela

cor marrom, além de certa vez, por um milagre alquímico, ter obtido um

autêntico café turco desses em que é deixada a borra para ler o

destino.

Entretanto, o meu maior desafio diário está na minha luta em

transformar o tal café com que comecei a minha pequena dissertação

em algo decente, tudo bem não precisa ser um café de barista desses

ganhadores de prêmios internacionais, mas já estaria muito bom se pelo

menos o meu nariz não vira-se para o lado a cada gole, ou mesmo

verter todo o conteúdo da xícara pela pia, pois não havia condições

de salvamento. Desta forma, conformo-me e confesso que declino do

trabalho de melhorar a minha técnica, só para me entregar a um

delicioso hábito adquirido desde que cheguei em terras lusitanas: ir a

um café, sentar, pedir um curto e ficar observando a vida a passar.

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CHUANA DI FRANCO MOURA

RIO DE JANEIRO, RIO DE JANEIRO, BRASIL

Esgueirando-se pelas sombras

Lá vai ela

Exibindo suas curvas em trajes mínimos

Insinuando-se com seu malicioso rebolado

Não é artista circense,nem sambista,nem atriz

Prostituta,mulher da vida,meretriz!

Vende o corpo,vende a alma

Por uns trocados

Saciando os desejos dos tipos mais variados

Do ébrio ao sóbrio

Do juiz ao malandro

Não importa qual estilo de vida

MERTERIZ

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A satisfação é garantida

E quando a manhã despeja sobre a Terra seu manto alaranjado

Quando cessam os gemidos

E os coitos são terminados

Ela se veste,deixando de lado um corpo estirado

E se prepara para mais um dia

Em que venderá suas curvas

Por mais alguns trocados

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Edição e revisão:

MORGANA RECH E TÂNIA ARDITO

Recepção de originais:

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Diretrizes para publicação:

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