Revista Ultimato n°329

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FECHAMENT O AUTORIZADO. Pode ser aber to pelos Correios . MARINA SILVA CONHECENDO DEUS NA CRIAÇÃO MARÇO–ABRIL 2011 • ANO XLIV Nº 329 ENTREVISTA: WALDYR CARVALHO LUZ NA AMBIVALÊNCIA PROTESTANTE, A ORDENAÇÃO FEMININA VAI DESDE O VETO ATÉ A PRÁTICA INDISCRIMINADA O CÉU ABERTO É mais fácil e menos complicado crer em Deus do que não crer nele Ult 329 202.indd 1 Ult 329 202.indd 1 24/02/2011 18:28:58 24/02/2011 18:28:58

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Março-Abril, 2011 I ULTIMATO 1

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MARINA SILVA

CONHECENDO DEUS NA CRIAÇÃO

M A R Ç O – A B R I L 2 0 1 1 • A N O X L I V • N º 3 2 9

ENTREVISTA: WALDYR CARVALHO LUZ NA AMBIVALÊNCIA PROTESTANTE, A ORDENAÇÃO FEMININA VAI DESDE O VETO ATÉ A PRÁTICA INDISCRIMINADA

O CÉU ABERTO

É mais fácil e menos complicado crer em Deus do que não crer nele

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Março-Abril, 2011 I ULTIMATO 3

Unidos com Cristo

A BERTURA

PP aulo tem a coragem de escrever aos coríntios: “Estamos todos unidos com Cristo Jesus, o nosso Senhor” (1Co 15.31, NTLH). No

capítulo seguinte, ele repete: “O meu amor esteja com todos vocês, pois estamos unidos com Cristo Jesus!” (16.24, NTLH). Na segunda Epístola aos Coríntios, ele volta ao assunto: “É o próprio Deus que nos dá, a nós e a vocês, a certeza de que estamos unidos com Cristo” (2Co 1.21, NTLH). Há pelo menos mais uma referência a essa união com Cristo: “Dou graças a Deus porque, unidos com Cristo, somos sempre conduzidos por Deus como prisioneiros no desfile de vitória de Cristo” (2.14, NTLH).

Em qualquer outra carta, essa insistente referência não chamaria tanta atenção. De todas as igrejas criadas por Paulo, nenhuma foi tão complicada e dividida como a de Corinto. A expressão “unidos com Cristo” é de grande importância não só para aquele contexto em que se encontrava a igreja, mas também para a igreja atual.

O apóstolo dizia que todos estavam unidos com Cristo apesar das divisões, brigas e ciumeiras que havia na igreja (1Co 1.10-13, 3.3).

Estamos todos unidos com Cristo — os missivistas (Paulo, Sóstenes e Timóteo) e os leitores das cartas (os crentes de Corinto).

Estamos todos unidos com Cristo — os crentes de Apolo, os crentes de Pedro, os crentes de Paulo e os crentes de Jesus.

Estamos todos unidos com Cristo — os irmãos que prejudicaram os interesses pessoais de outros irmãos e os que levaram esses problemas ao “tribunal secular”.

Estamos todos unidos com Cristo — os irmãos de procedência mundana (ex-adúlteros, ex-assaltantes, ex-bêbados, ex-homossexuais etc.) e os que vieram de contexto diferente, onde predomina o temor do Senhor.

Estamos todos unidos com Cristo — os irmãos que andam segundo o Espírito (os crentes espirituais) e os que andam segundo a carne (os crentes carnais).

Estamos todos unidos com Cristo — os crentes que não se escandalizam facilmente (os “fortes na fé”) e os que acham que tudo é pecado (os “fracos na fé”).

Estamos todos unidos com Cristo — os irmãos que falam línguas estranhas e os que não falam línguas estranhas.

Estamos todos unidos com Cristo — o irmão que se deitou com a mulher do pai e depois se arrependeu e os irmãos que o disciplinaram.

Estamos todos unidos com Cristo — os irmãos circuncidados que vieram do judaísmo e os não-circuncidados que vieram do paganismo.

Estamos todos unidos com Cristo — os irmãos que cortam o cabelo para serem diferentes das mulheres e os que não cortam para serem diferentes dos homens.

Estamos todos unidos com Cristo — os irmãos ricos e os irmãos pobres; os irmãos sábios e os irmãos ignorantes; os irmãos revoltados; os irmãos solteiros; os irmãos casados e as irmãs viúvas.

Estamos todos unidos com Cristo — os irmãos comuns e os da estirpe do casal Priscila e Áquila e de Estéfanas, Fortunato e Acaico, gente que só merece elogios (1Co 16.18).

Estão todos em Cristo (RA) ou unidos com Cristo (NTLH), cristãos de qualquer denominação evangélica e de qualquer ramificação cristã — desde que estejam pessoalmente comprometidos com o Jesus das Escrituras, não importando a intensidade da fé, a qualidade do testemunho e o tamanho da piedade. E o Jesus das Escrituras é aquele que foi concebido sobrenaturalmente, aquele que é homem e Deus ao mesmo tempo, que tomou sobre si os nossos pecados e pagou a nossa dívida, que ressuscitou dos mortos, que vive e reina e que há de voltar com poder e muita glória.

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4 ULTIMATO I Março-Abril, 2011

AA imaginação não é suficiente para enxergamos a beleza de certas pessoas e de certos eventos presentes e futuros. Conta-se que um fidalgo inglês cego queria muito ver o rosto da mulher amada com

a qual pretendia se casar e cuja beleza todos gabavam. Um especialista fez a última tentativa para restaurar-lhe a vista. A venda só seria retirada no dia das núpcias. A cirurgia foi um sucesso. Linguagem alguma seria suficiente para descrever os sentimentos do noivo quando viu a noiva querida.

Assim também será quando o céu aberto permitir que o pecador veja o Senhor e a sua salvação. A matéria de capa desta edição de Ultimato fala sobre isso. Pedimos a Deus que o leitor tenha a gloriosa experiência do céu aberto, quando toda a ignorância, todo o desconhecido, todas as dúvidas, todos os preconceitos e toda a má vontade caírem por terra. Além do êxtase em si, o céu aberto porá um ponto final na vida pregressa e abrirá as portas para novos horizontes, como aconteceu com Agostinho, C. S. Lewis e vários outros, como se verá nas páginas seguintes.

Já que ainda estamos no início de 2011, vale a pena ouvir o conselho de alguém de confiança: “É melhor para vocês que terminem agora [em 2011] o que começaram no ano passado [em 2010]”. Fica para o leitor descobrir o nome do autor da frase e a epístola de onde ela foi retirada.

E há mais novidades neste ano. Conforme anunciado na edição de janeiro/fevereiro, Marina Silva estreia com o artigo Conhecendo Deus na criação (p. 42).

Em www.ultimato.com.br você encontra estudos bíblicos semanais, acompanha o que acontece nos bastidores da editora Ultimato e ainda concorre a um Ipod participando do concurso Imagens e Palavras Reconciliadas.

A editora comemora a recém-firmada parceria com a ABU Editora oferecendo aos leitores a Coleção Stott (p. 13). A partir de março, Ultimato é quem comercializa os títulos publicados pela ABU.

Embora o corpo executivo da Rede Mãos Dadas tenha sido transferido da Editora Ultimato para Asas de Socorro, em Anápolis, GO, Ultimato continua parceira da Rede e responsável pela área de comunicação, bem como pela publicação e distribuição da revista Mãos Dadas (agora com 24 páginas), que segue junto com esta edição para todos os assinantes de Ultimato. Quem não recebeu e tiver interesse, entre em contato pelo email [email protected].

Elben César

C ARTA AO LE ITOR

ISSN 1415-3165Revista Ultimato – Ano XLIV – Nº 329Março-Abril 2011www.ultimato.com.br

Publicação evangélica destinada à evangelização e edifi cação, não denominacional, Ultimato relaciona Escritura com Escritura e acontecimentos com Escrituras. Visa contribuir para criar uma mentalidade bíblica e estimular a arte de encarar os acontecimentos sob uma perspectiva cristã. Pretende associar a teoria com a prática, a fé com as obras, a evangelização com a ação social, a oração com a ação, a conversão com santidade de vida, o suor de hoje com a glória por vir.Circula em meses ímpares

Diretor de redação e jornalista responsável:Elben M. Lenz César – MTb 13.162 MG

Arte: Liz ValenteImpressão: PluralTiragem: 35.000 exemplares

Colunistas: Alderi Matos • Bráulia Ribeiro Carlos “Catito” Grzybowski • Carlinhos Veiga Dagmar Fuchs Grzybowski • Ed René Kivitz • Jorge Barro Marcos Bontempo • Marina Silva • Paul Freston René Padilla • Ricardo Barbosa de Sousa Ricardo Gondim • Robinson Cavalcanti • Rubem Amorese Valdir Steuernagel

Notícias: Lissânder Dias

Participam desta edição: Carlos Caldas Gabriele Greggersen • Manu Magalhães

Publicidade: [email protected] e edições anteriores:[email protected]ção permitida: Favor mencionar a fonte. Os artigos não assinados são de autoria da redação.

Publicado pela Editora Ultimato Ltda., membroda Associação de Editores Cristãos (AsEC)

Editora UltimatoTelefone: (31) 3611-8500Caixa Postal 4336570-000 — Viçosa, MG

Administração/Marketing: Klênia Fassoni Ana Cláudia Nunes • Ariane Gomes dos Santos Daniela Cabral • Ivny Monteiro • Lucas Rolim Menezes

Editorial e Produção: Marcos BontempoBernadete Ribeiro • Djanira Momesso CésarFernanda Brandão Lobato • Gláucia SiqueiraPaula Mendes

Finanças/Circulação: Emmanuel BastosAline Melo • Ana Paula Fernandes • Cristina Pereira Daniel César • Edson Ramos • Luís Carlos Gonçalves Rodrigo Duarte • Solange dos Santos

Vendas: Lúcia Viana • Lucinéa Campos • Romilda Oliveira Tatiana Alves • Vanilda Costa

Estagiários: Bruno Menezes • Jaklene Batista Juliani Lenz

FUNDADA EM 1968

4 ULTIMATO I Março-Abril, 2011

Termine em 2011o que você começou em 2010!

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6 ULTIMATO I Março-Abril, 2011

O primeiro problema é não começar coisa alguma. O segundo é começar e não ir adiante. O terceiro é começar, ir adiante por algum tempo e desistir

pouco depois. Para quem já pôs de maneira correta as mãos no arado, o maior desafio é a continuação da continuação.

Primeiro, vem a descoberta da fé, a iniciação, o despertar, o abraçar, a conversão. Depois, vem a caminhada, a negação do eu, a renúncia do pecado, a obediência devida a Jesus Cristo, a continuação do compromisso, da nova vida, da nova experiência, da nova situação. Por último, vem a continuação da continuação.

Ao sair da prisão, Pedro bateu, altas horas da noite, à porta da casa de Maria, mãe de João Marcos. A empregada veio, mas não abriu a porta, e Pedro continuou a bater. Seguiu-se uma discussão entre a empregada e os irmãos que estavam ali a noite toda orando por Pedro. O apóstolo não desistiu e continuou a continuação, até que a porta se abriu (At 12.12-16). O mesmo aconteceu com o homem da parábola de Jesus que insistiu com o amigo até ele lhe emprestar três pães (Lc 11.5-8).

Embora Paulo se congratule com os coríntios, porque eles tinham aceitado o evangelho e continuavam firmes (1Co 15.1), no versículo seguinte o apóstolo chama a atenção para a continuação da continuação: “A mensagem que eu anunciei a vocês é o evangelho, por meio do qual vocês são salvos, se continuarem firmes nele” (15.2, NTLH).

Antes de encerrar a carta, por mais duas vezes, Paulo exorta-os a continuarem firmes: “Continuem fortes e firmes” (15.58) e “Estejam alertas, fiquem firmes na fé, sejam corajosos, sejam fortes” (16.13, NTLH).

A continuação da continuação resolverá muitos problemas dos cristãos e da igreja. É essa falta de continuação, dia após dia, que arrefece a fé e o testemunho. Não há feriados nem férias para a continuação da continuação. A continuação é uma linha firme que liga o ontem ao hoje e o hoje ao dia final. A caminhada não é curta; ela é comprida e muito comprida. Jesus menciona essa continuação no sermão profético: “Todos odiarão vocês por serem meus seguidores, mas quem ficar firme até o fim será salvo” (Mc 13.13, NTLH). Não existem paradas ao longo do caminho. A única parada é o fim dos tempos, quando Jesus voltar, por ocasião da plenitude da salvação. A continuação da continuação descamba na consumação da história. Daí o conselho: “Nosso profundo desejo é que cada um de vocês continue com entusiasmo até o fim, para que, de fato, recebam o que esperam” (Hb 6.11, NTLH)!

Se houver alguma parada provocada por negligência ou pecado, a regra é: “Comecem de novo a viver uma vida séria e direita e parem de pecar!” (1Co 15.34, NTLH).

Jesus deixou claro que a continuação da continuação é um elemento importante na oração, como se pode ver na parábola da viúva persistente (Lc 18.1-6).

P ASTORA IS

A continuação da continuação

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Céu aberto

O céu aberto de Agostinho Carlos Caldas

O céu aberto de C. S. Lewis Gabriele Greggersen

O dia em que vi o céu aberto Elben César

O céu aberto de Hélio Arruda

3 Abertura 4 Carta ao leitor 6 Pastorais 8 Cartas12 Frases14 Mais do que notícias16 Números18 Notícias32 De hoje em diante...39 Novos acordes 40 Altos papos42 Meio ambiente e fé cristã 43 Caminhos da missão 58 Cidade em foco

CAPA

SEÇÕES

Leia maiswww.ultimato.com.br

S UMÁRIO

ABREVIAÇÕES:AS21 - Almeida Século 21; BH - Bíblia Hebraica; BJ - A Bíblia de Jerusalém; BP - A Bíblia do Peregrino; BV - A Bíblia Viva; CNBB - Tradução da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil; CT - Novo Testamento (Comunidade de Taizé); EP - Edição Pastoral; EPC - Edição Pastoral - Catequética; HR - Tradução de Huberto Rohden; KJ - King James (Nova Tradução Atualizada dos Quatro Evangelhos); NTLH - Nova Tradução na Linguagem de Hoje; TEB - Tradução Ecumênica da Bíblia. As referências bíblicas não seguidas de indicação foram retiradas da Edição Revista e Atualizada, da Sociedade Bíblica do Brasil, ou da Nova Versão Internacional, da Sociedade Bíblica Internacional.

O caminho do coração30 Falácias da espiritualidade cristã Ricardo Barbosa de Sousa

Casamento e família31 Maridos: sejam sujeitos às suas mulheres Carlos “Catito” Grzybowski e Dagmar Fuchs Grzybowski

Da linha de frente34 Escrever ou não, eis a questão Bráulia Ribeiro

Missão integral36 A formação de discípulos (parte 3) René Padilla

Cotidiano38 O leitor pergunta, Ed René Kivitz

Entrevista44 Waldyr Carvalho Luz Na ambivalência protestante, a ordenação feminina vai desde o veto até a prática indiscriminada

Ética 50 A perspectiva cristã, Paul Freston

Refl exão52 Pensando fora da caixa Ricardo Gondim

54 Estado laico e nação religiosa Robinson Cavalcanti

Redescobrindo a Palavra de Deus56 Chamados pelo nome, Valdir Steuernagel

História60 Universidades protestantes: benefícios e riscos, Alderi Souza de Matos

Especial62 Refl exões a partir da Lagoinha

Ponto fi nal66 Presciência e eternidade, Rubem Amorese

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Lausanne 3Fiquei surpreso com a reportagem sobre Lausanne 3 (“Capa”, janeiro/fevereiro de 2011). Em nenhum momento encontrei referência às questões da homossexualidade, da pedofi lia etc. Fiquei triste com a omissão, principalmente porque há 22 anos a missão Grupo de Amigos vem trabalhando nessa área!Carlos Bertilac, Nova Friburgo, RJ

— Durante o Congresso foram realizados um multiplex e algumas seções de diálogo sobre o assunto. É possível encontrar no site do congresso (www.lausanne.org) dois vídeos (em inglês) sobre sexualidade. O brasileiro Willy Torresin, do Ministério Exodus, foi um dos palestrantes do encontro que falou sobre o tema.

Nova logomarcaGostei da nova logomarca da Editora, pois consegui ver as duas alianças representando o antigo e o novo pacto de Deus com o homem, o peixe, símbolo do cristão, e a cruz vazia, símbolo da nossa redenção.Iratan Figueiredo Pinto, Ananindeua, PA

Estou cansado“Estou cansado” do que chamo de “caricatura teológica” nos artigos de Ricardo Gondim, demonstrando seu claro afastamento das Escrituras. O que não é surpresa, já que na edição de janeiro/fevereiro de 2011 ele admite e incentiva um tipo de percepção da verdade pelo coração ou pelos sentimentos. Nos últimos tempos, tem se mostrado mais infl uenciado por escritos e autores não-cristãos e cristãos liberais em sua teologia do que pela rica herança bíblica dos muitos que, ao longo da história, “têm batalhado diligentemente, pela fé que uma vez por todas foi entregue aos santos” (Jd 3, 4). Provavelmente é por isso que mesmo textos amplamente compreendidos pela multidão dos fi éis, como 2 Coríntios

3.6, são usados pelo autor para justifi car um estranho desprezo pela verdade objetiva. Em nada somos perfeitamente objetivos; porém, Deus nos revelou a sua verdade para que nós, de fato, pudéssemos conhecê-la, justamente para que não fi cássemos à mercê de “ventos de doutrinas” e de nossos sentimentos, que também foram contaminados pelo pecado. O artigo é uma defesa descabida de um tipo de anarquia teológica, naturalmente alimentada por suposições como a de que “Deus tem se revelado a muitos fi lhos sem precisar de nossas doutrinas”, e por uma retórica pobre, como a de que “nenhuma técnica ilumina”. Djaik S. Neves, Jataí, GO

Paulo foi infelizO autor de Homofobia: não cabe aos cristãos discriminar (“Mais que notícias”, janeiro/fevereiro de 2011) foi infeliz, pois o texto bíblico que Paulo escreve, referente ao fi lho que se relacionou de forma íntima com a mulher do pai, não serve para doutrinar ninguém. O apóstolo foi infeliz. Nem tudo o que está escrito na Palavra de Deus é regra de fé e prática. Sobre o pecado da

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plenamente em minha congregação. Quem sabe, depois de publicada esta carta, amigos de longa data tomarão conhecimento da minha nova vida e me escreverão.Leonardo da Silva (Penitenciária de Flórida Paulista. Caixa Postal 41, CEP 17830-000, Flórida Paulista, SP)

Descobri Ultimato quando era responsável pelo setor de cartas da penitenciária. Ela estava endereçada a outro preso e me interessei tanto pela revista que escrevi para a redação. Em maio de 2010, comecei a receber o periódico. Oito meses depois, me reconciliei com o Senhor. Deixei de ser escravo de Satanás e voltei para os braços do Pai. Devo à revista grande parte da minha volta. Por meio dela fui percebendo que havia esperança para mim. Gostei da matéria sobre Lausanne 3 e do artigo sobre a Igreja Universal do Reino de Deus (edição de janeiro/fevereiro de 2011). Quando sair daqui, pretendo fazer um curso de teologia e estudar numa escola de missões.Tales de Almeida (Rod. Assis Platina, Km 02. Caixa Postal 101, Ala B, Cela 46. CEP 19800-000, Assis, SP)

mulher”. Porém, é difícil memorizar o que ele disse à mulher: “Vai e não peques mais!” (Jo 8.7-11, NTLH).

Segunda GuerraA morte de Walter Benjamin, no dia 26 de setembro de 1940, lembrada pela Ultimato (“Capa”, novembro/dezembro de 2010), impressiona-me muito. Ele suicidou-se porque temia cair nas mãos da Gestapo. Porém, no dia seguinte, seus companheiros de fuga passaram tranquilamente a fronteira da Espanha e se salvaram.Pe. Luís Quevedo, Itaici, SP

Cartas da prisãoApós deliberada rejeição ao chamado do Senhor, perdi família, emprego e cheguei ao nível mais degradante da moral humana, perambulando pelas ruas, sem destino, dormindo ao relento. Nessas condições e já procurado pelas autoridades, o desespero tomou conta do meu ser. Fui preso. Nas dependências do cárcere, Jesus me resgatou do pecado e das afl ições. Tenho participado

homossexualidade, devemos ler e reler o texto de Romanos 1 até Romanos 2.16, lembrando sempre que todos somos salvos unicamente pela graça e nunca podemos atirar pedra em ninguém. Se todos carecemos da graça, qual a diferença entre o meu pecado e o do outro? Todos nós precisamos nascer de novo. A Igreja de Cristo necessita com urgência ser totalmente includente, procurando viver como Jesus, o Cristo, amando, aceitando, ajudando a todos que de alguma maneira atendem ao seu evangelho.Pr. Disney Machado, Palhoça, SC

— Os textos de Paulo sobre a imoralidade sexual do homem que teve relações sexuais com a própria madrasta (1Co 5.1-5 e 2Co 2.5-11) servem, sim, e muito, para doutrinar a igreja. Eles ensinam de maneira explícita o que a igreja precisa fazer para corrigir o irmão e, depois do arrependimento, recebê-lo com todo o amor de volta à comunhão. Graça e arrependimento não são incompatíveis. Um depende do outro. É fácil reter na memória as palavras de Jesus aos acusadores da mulher adúltera: “Quem de vocês estiver sem pecado, que seja o primeiro a atirar uma pedra nesta

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De muita oração eu vivia, lendo Ultimato sem parar. Até que enfi m chegou a minha liberdade! Dia 6 de agosto de 2010 fui liberto da prisão. Já estou com minha família. Quando eu estiver fazendo a obra de Deus, quando Jesus preparar o meu casamento, prometo dar notícias. Que Ultimato não me abandone!Emerson Alves, Ribeirão Preto, SP

Não somos o centro do cultoÉ compreensível a preocupação de algumas pessoas com os louvores e com os cultos. Sou integrante de um grupo de louvor da Assembleia de Deus (Madureira) e recentemente passamos por algumas provas nada fáceis. Todo aquele que se dispõe a louvar a Deus precisa estar preparado e ser vigilante e prudente em sua conduta. A queixa da educadora religiosa Isabel Franco (“Mais que notícias”, janeiro/fevereiro de 2011) procede. A maioria dos louvores atuais promove muito o “eu” do cantante. O louvor é uma forma de preparar o espírito da pessoa para receber a Palavra. Todavia, em muitas igrejas, ele não tem mais essa fi nalidade. Há igrejas gastando um absurdo com cachês para artistas gospel. Perdeu-se o foco. Corremos

o perigo de, daqui a pouco, oferecer shows pirotécnicos com gelo seco no altar, luzes semiapagadas, lâmpadas coloridas e piscantes e artistas fazendo rapel no púlpito. Somos instrumentos, não instrumentistas. Não somos o centro do culto, Deus o é. É bom lembrar João Batista: “Convém que ele cresça e que eu diminua” (Jo 3.30).Marcos Fasci, Sorocaba, SP

Falta de continuidadeSobre o artigo Os que param no meio do caminho (“Mais do que notícias”, novembro/dezembro de 2010), a razão pela qual existem tantos ex-crentes é simples. As pessoas, nos dias atuais, com a quantidade de informações que possuem a respeito do mundo, do funcionamento do universo, das descobertas da ciência etc., têm de fechar os olhos a muitas coisas para conseguir acreditar no que pregam as religiões. Muitos dados devem ser ignorados, evidências devem ser deixadas de lado, o raciocínio deve ser suprimido. A religião e a fé possuem espaço na sociedade atual apenas entre as massas ignorantes que estão dispostas a se omitirem quanto às evidências

mais conspícuas da inexistência de Deus.Joana, São Paulo, SP

Juventude evangélicaAgradeço ao projeto Paralelo 10 pelo trabalho que tem feito para as igrejas nortistas e nordestinas. Temos promovido entre os jovens de nossa igreja alguns debates sobre temas interessantes da Ultimato. O último foi sobre a matéria de capa da edição de setembro/outubro de 2010 (Um retrato da juventude evangélica). Os resultados têm sido tão bons que já há um espaço para isso na programação dos cultos da juventude.Larissa Alencar, Imperatriz, MA

NeopentecostalismoA pesquisa feita por David Bledsoe sobre a Igreja Universal do Reino de Deus (“Especial”, janeiro/fevereiro de 2011) tem a tendência de procurar algo que denigra a referida igreja. Essa pesquisa é inverossímil. Quem vai a uma IURD, especialmente aos domingos e quartas-feiras, ou ouve a mensagem do bispo Macedo, transmitida três vezes ao dia pelo rádio, verá que a salvação é pregada, sim! E

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FALE CONOSCO

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Jesus é o Senhor que faz mover toda essa fé, pregada para os que não têm acesso ao evangelho elitista das catedrais tradicionais. As IURDs estão de portas abertas todos os dias para alcançar as prostitutas, os bêbados, os endividados, os drogados, sem fazer acepção de pessoas. Como disse Jesus, estes precederão aos fariseus no grande dia do Juízo, porque estão esvaziados de si mesmos e prontos para receberem a palavra simples e salvadora. E além da mensagem salvadora, as IURDs se preocupam também com o bem-estar do ser humano, levando-o a viver a fé de Abraão, nosso pai, que viveu abastadamente na presença de Deus. Lembro-me que nossos antepassados assembleianos também sofreram essas perseguições dos doutores batistas e presbiterianos e que foram chamados de endemoninhados por causa do pentecostalismo vivido por eles.Samuel Lemos, João Pessoa, PB

Tempo de DeusSou católico. Tenho o privilégio de ser co-assinante de Ultimato por meio de um colégio evangélico. Nunca li um texto tão profundo,

tão contundente, tão humilde, tão dependente da graça que Deus derrama sobre nós todos os dias, como o artigo Tempo de Deus, de Edleia Rodrigues (“Deixem que elas mesmas falem”, setembro/outubro de 2010). Creio que o Espírito Santo tem estado ao lado de vocês na escolha das mensagens. Carlos de Oliveira, João Pessoa, PB

Antigos propósitosSolicito o cancelamento de minha assinatura. A principal razão é a mudança de perfi l de seus antigos propósitos. A edição de janeiro/fevereiro de 2011, por exemplo, nada apresenta daquelas abençoadas revistas que recebíamos tempos atrás, das quais tirávamos estudos e sermões para o nosso rebanho. Quando Ultimato voltar a se comprometer com o evangelho genuíno, voltarei a solicitar minha assinatura.Pr. José Magalhães, São Paulo, SP

ErrataO crédito da foto de Eddie Fox publicada na seção “Frases” da edição de janeiro/fevereiro de 2011 pertence a José Geraldo Magalhães Júnior.

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F RASES

“A humildade é uma atitude pessoal e coletiva que nos

faz, primeiro, admitir — e assim potencialmente não repetir, e se for possível, até corrigir nossos erros. Erros cometidos por nós mesmos, nossas culturas e nossos países.Helmut Renders, professor de teologia da Universidade Metodista de São Paulo

“S ou um dos 99,99% de cristãos que nunca viram nem receberam visita ou

aviso de ninguém do céu. Vivo de crer sem ver.Padre Zezinho

“U ma mente barulhenta e ouvidos atentos aos sons externos não podem

escutar o leve murmúrio do chamado divino vindo do âmago do coração.Olga André, psicóloga clínica

“O problema principal dos cristãos no Oriente Médio é a emigração. Se não

mudar nada, em um século, ou quase dois, não haverá mais cristãos nessa parte do mundo, assim como no Egito. É o mesmo fenômeno que já observamos no último século na Turquia e no Irã.Samir Khalil Samir, sacerdote jesuíta

“N osso planeta é o único lugar do universo em que sabemos, com certeza, que há vida. Então, a vida na Terra é uma preciosidade.Russell Mittermeier, 60, primatólogo, presidente da Conservation International

“A salvação de uma nação tem pouco a ver com os políticos na capital ou com

a mídia — tem a ver com o povo de Deus.Henry Blackaby, autor de Holiness

“D e todos os meus amigos que foram eliminados (da VASP), sou o único que

conseguiu permanecer casado, [pois] uma coisa como essa abala a vida da gente.Paulo César Seeman, 50, ex-chefe da equipe de comissários de primeira classe em voos internacionais

“Q uando o ser humano se coloca no centro do universo, ele perde a

noção de Deus. Sumindo o Deus criador, o ser humano transforma o mundo em patrimônio sem dono.Manfredo Siegle, pastor luterano

“O cérebro humano, ao mesmo tempo em que cria as coisas mais admiráveis,

se mostra estranhamente hábil a destruir e limitar o que ele mesmo inventa.Eduardo Hoornaert, padre casado, historiador e escritor

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“O aborto signifi ca, em linguagem prosaica, o roubo de um

futuro pela autonomia do presente.Stephen Schwarz, autor de The Moral Question of Abortion

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“A s maravilhas da tecnologia estão nos

engolindo. Não as controlamos; elas nos controlam.Bob Herbert, colunista do The New York Times

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14 ULTIMATO I Março-Abril, 2011

مكب ابحرمةيحيسملا يفE m quase todos

os países islâ-micos ninguém

pode cumprir a Grande Comissão dada por Jesus: “Vão e façam discípu-los em todas as nações, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinan-do-os a obedecer a tudo o que eu lhes ordenei” (Mt 28.19-20). É crime. Se a pregação for feita por um estrangeiro, ele será preso e expulso do país. Se for feita por um nativo, ele pode ir para a cadeia e até receber pena de morte. Esse proble-ma é antigo, mas está se tornando extremamente grave e conhecido em todo o mundo. Luiz Felipe Pondé, uma voz laica, perguntou, por meio do jornal de maior circulação no país: “Você sabia que em alguns países islâmicos se você pregar outra religião irá pra cadeia?” (Folha de São Paulo, 13/12/2010, p. E-8).

Tal situação não pode continuar. Além de ferir frontalmente a liberdade religiosa, ela vai contra certos princípios do próprio

islamismo. Documento muito antigo, o pacto de Najran, redigido e aprovado na época de Maomé (570-632 d.C.), ratifica a todo muçulmano o dever de ser protetor dos cristãos e de seus lugares de culto “até o dia da ressurreição” (o mesmo documento proíbe o muçulmano de construir uma casa ou mesquita com pedras usadas anteriormente em igrejas cristãs). Em outubro de 2010, a agência de notícias católicas Zenit perguntou ao Muhammad al-Sammak, conselheiro político e religioso do mufti (chefe religioso muçulmano) do Líbano, se ele confirma essa obrigação imposta aos seguidores de Maomé. Além de confirmar que a medida é fiel ao ensinamento islâmico, al-Sammak deu a sua opinião: “Não creio que um verdadeiro muçulmano crente possa se afastar dessa posição” (Zenit, 03/11/2010, p. 16).

O Itamaraty, ou mesmo a prefeitura de Taubaté, onde há

+ DO QUE NOT ÍC IAS

V olker Greve, um fazendeiro cristão do norte da Alemanha, está contribuindo para

que, “em homenagem ao nome de Jesus, todas as criaturas no céu, na terra e no mundo dos mortos, caiam de joelhos e declarem abertamente que Jesus Cristo é o Senhor, para a Glória de Deus, o Pai (Fp 2.10-11, NTLH). Usando gramíneas de cores diferentes, ele “escreveu” o nome Jesus em letras garrafais num de seus campos agrícolas em Schmilan, entre Hamburgo e Lübeck. Perto dali há um aeroporto e os aviões sobrevoam a área várias vezes por dia, dando ensejo para que os passageiros e tripulantes vejam o nome de Jesus. Greve explica: “A intenção ao escrever o nome de Jesus no campo é levar as pessoas a refletirem e também testemunhar que acreditamos em Jesus e que nossa terra pertence a ele”.

Fazendeiro alemão coloca Jesus no chão

muitos descendentes de libaneses, deveria convidar as autoridades civis e religiosas dos países islâmicos mais intolerantes, como o Irã, o Afeganistão, a Arábia Saudita e a Somália, a visitar o Brasil e conhecer as muitas mesquitas construídas aqui sem o menor embaraço, mesmo sendo a nação mais católica e mais protestante do mundo. Uma visita à mesquita em construção, ao lado da estação rodoviária de Taubaté, no estado de São Paulo, seria muito proveitosa. Os ilustres visitantes poderiam constatar que no Brasil existe verdadeira liberdade religiosa. Bastaria fotografar a faixa que está defronte à mesquita: “Bem-vindo ao islamismo”.

Quantos anos o mundo terá de esperar para os cristãos terem a liberdade de construir um templo na Arábia Saudita e em outros países islâmicos, e ainda colocar na frente dele a faixa يف مكب ابحرم Bem-vindos“) ةيحيسملاao cristianismo”, em árabe)?

Volk

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Março-Abril, 2011 I ULTIMATO 15

+ DO QUE NOT ÍC IAS

O teólogo católico Hans Kung, tão alemão quanto Joseph Ratzin-ger, diz que o Papa ignora a

mensagem bíblica de que o casamento é claramente liberado para todos os encar-regados da igreja: “A lei do celibato não é nenhuma realidade da fé, mas uma lei da Igreja que remonta ao século 11, que já deveria ter sido revogada no século 16, se-

guindo as reclama-ções dos reforma-dores”.

Hans Kung refuta também o arcebispo Zollitsch, que decla-ra que o abuso de crianças

por membros do clero e a lei do celibato não se relacionam: “A verdade requer que se leve a sério a relação entre os abusos e o celibato em vez de negá-la. E foi isso que o psicoterapeuta americano Richard Sipe demonstrou claramente em seus 25 anos de pesquisa: viver o celibato pode colabo-rar também com as tendências pedófilas”.

Para o teólogo, as providências toma-das pelos bispos durante décadas de enco-brimento dos escândalos dão a impressão de que “a proteção de seus padres parecia mais importante para os bispos do que a proteção das crianças”.

Teólogo católico contesta o celibato do clero

A vida continua depois da morte

S empre houve e sempre haverá semeadores de dúvidas. Alguns são mais discretos e

outros mais descarados. Um desses últimos é o chargista gaúcho Adão Iturrusgarai. A tirinha que ele publicou na Folha de São Paulo, no final do ano, mostra um homem com as mãos para cima clamando por Deus. Deus responde e o homem pergunta: “Existe vida após a morte?”. Deus responde na hora: “Sim!”. O quadro seguinte mostra Deus com um nariz de Pinóquio, isto é, ele estava mentindo. Além da quebra ostensiva do terceiro mandamento (“Não tomarás em vão o nome do Senhor teu Deus”), o artista opôs-se a ideia de que “Deus não é como os homens, que mentem” (Nm 23.19, NTLH).

Quanto à vida após a morte, todas as religiões existem e sobrevivem por causa dessa certeza absoluta. Porém, nenhuma delas é tão peremptória, clara e objetiva quanto o cristianismo. Entre as muitas passagens bíblicas sobre o assunto, uma delas é: “Sabemos que, se for destruída a temporária habitação terrena em que vivemos, temos da parte de Deus um edifício, uma casa eterna nos céus” (2Co 5.1). Além da vida após a morte, o evangelho garante a ressurreição de todos os mortos, pois “Deus não é Deus de mortos, mas de vivos” (Mt 22.32).

Os que semeiam dúvidas são os ladrões de semente. Eles arrancam a semente da fé e semeiam no lugar dela a semente da dúvida (Mt 13.19).

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O primeiro baseado de maconha

S egundo o jornalista Ruy Castro, 90% dos dependentes de cocaína, crack, ecstasy ou

comprimidos de venda controlada que estão se tratando em instituições sérias, começaram pela maconha. Eles não poderiam imaginar que a maconha os levaria tão longe. Talvez a experiência deles atravanque a entrada de outros adolescentes e jovens no inferno das drogas, a começar com a recusa do primeiro gole de álcool e do primeiro baseado de maconha.

Seminaristas Seminaristas apaixonadosapaixonados

É bem possível que os seminá-bem possível que os seminá-rios evangélicos brasileiros rios evangélicos brasileiros precisem rever sua grade precisem rever sua grade

curricular e verificar se ela contém curricular e verificar se ela contém alguma disciplina para criar ou au-alguma disciplina para criar ou au-mentar a consciência missionária de mentar a consciência missionária de seus alunos. No lado católico roma-seus alunos. No lado católico roma-no, providências a esse respeito estão no, providências a esse respeito estão sendo tomadas. A CNBB (Conferên-sendo tomadas. A CNBB (Conferên-cia Nacional dos Bispos do Brasil) cia Nacional dos Bispos do Brasil) assumiu que “a formação dos semina-assumiu que “a formação dos semina-ristas deve ter a missionariedade como ristas deve ter a missionariedade como preocupação fundamental”. Para se preocupação fundamental”. Para se conseguir que os padres sejam ardo-conseguir que os padres sejam ardo-rosos missionários, além da disciplina rosos missionários, além da disciplina missiológica, “é aconselhável que os missiológica, “é aconselhável que os seminaristas façam estágios missioná-seminaristas façam estágios missioná-rios durante o currículo formativo ou rios durante o currículo formativo ou experiências missionárias em tempo de experiências missionárias em tempo de férias” (férias” (Comunicado MensalComunicado Mensal, 6/2010, , 6/2010, p.1136).p.1136).

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16 ULTIMATO I Março-Abril, 201116 ULTIMATO I Março-Abril, 2011

N ÚMEROS

250.000refúgios subterrâneos públicos estão à disposição dos sulcoreanos caso haja um ataque da Coreia do Norte.

700coffee shops na Holanda têm permissão para vender maconha e 70% dos clientes são estrangeiros. O negócio gera um lucro de mais de 13 milhões de dólares todos os anos.

130.000pessoas trabalham na área nuclear no Paquistão.

1.000.000.000de espectadores do mundo inteiro acompanharam a saída dos 23 trabalhadores presos na mina de São José, no Chile, em outubro de 2010. Suas camisetas diziam “Obrigado, Senhor!” na frente e citavam o Salmo 95 atrás: “Nas tuas mãos estão as profundezas da terra”.

700bispos estavam espalhados no norte da África no quinto século. Hoje o cristianismo não chega sequer a 1% de toda a população.

350igrejas cristãs foram queimadas e saqueadas entre dezembro de 2007 e agosto de 2008, no distrito de Kandhamal, na Índia (além de 6.500 casas saqueadas e 93 cristãos assassinados).

550igrejas católicas foram danifi cadas pelo terremoto de 27 de fevereiro de 2010, no Chile.

+ DO QUE NOT ÍC IAS

Gente antes de nascer

O office-boy e o construtor

“ O feto é uma criança”, “é dele mesmo e não da mulher” e “o aborto é um homicídio”.

Com essas frases claras e incisivas, Luiz Felipe Pondé, colunista da Folha de São Paulo, mostra-se contrário à legalização do aborto (ou do homicídio) de um ser já existente, mas ainda no ventre mater-no. Pondé diz que “não precisa de argumentos teológicos para ser contra o aborto”. Basta opor-se ao argumento de que o feto não é gen-te, opor-se à “desuma-nização do feto como processo retórico”.

O Salmo 139 dá muita força a Pondé, pois o poeta agradece a Deus por ele o ter criado e tecido no ventre da mãe. Os olhos de Deus es-tavam sobre aquela gente (ou aquele feto) desde o embrião ou desde quando a criança era uma “substân-cia ainda informe” (Sl 139.16).

Vários personagens bíblicos se

J esus diz que “quem é fiel nas coisas pequenas também será nas grandes”

(Lc 16.10, NTLH).No final de novembro, um

office-boy de uma empresa ganhou de presente uma calça usada. Ao experimentá-la, encontrou 7 reais em um dos bolsos e, no dia

declaram consagrados a Deus desde o ventre materno: Sansão (Jz 16.17), o salmista (Sl 22.10), João Batista (Lc 1.15) e Paulo (Gl 1.15). Todos eram gente e não meramente fetos.

O aborto é crime antes e depois das eleições e não deixa de sê-lo depois da descriminalização. Para evitar a morte de muitas mulheres que praticam o aborto, a medida mais correta não é legalizá-lo, pois não se pode legalizar o que não é legal primeiramente aos olhos de Deus. No entanto, já que muitas mulheres e médicos bur-lam a lei, é necessário que

o governo dê uma atenção especial a elas antes e depois do aborto.

A rigor não há diferença entre assassinar a criança logo após o nas-cimento, como aconteceu no Egito (Êx 1.15-16), ou antes do nascimen-to. Nos dois casos há homicídio!

seguinte, entregou o dinheiro a quem lhe deu a peça. Na mesma semana, um construtor de Belo Horizonte deixou de ganhar 27 mil reais porque se recu-sou a faltar com a palavra dada a outro pretendente. A única diferença entre o office-boy e o construtor é que o primeiro foi fiel no pouco e o segundo, no muito.

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Março-Abril, 2011 I ULTIMATO 17

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18 ULTIMATO I Março-Abril, 2011

Evangélicos ajudam vítimas da região serrana do Rio

Dois meses após a tragédia que matou mais de oitocentas pessoas em seis cidades da região serrana do Rio de Janeiro, muitas organizações evangélicas, em parceria com igrejas, ainda estão trabalhando em favor das famílias afetadas. Uma prioridade é apoiá-las emocionalmente.

A Rede SOS Global continua arrecadando doações, mas seu grande desafio é conseguir psicólogos, pastores e conselheiros para atender pessoas traumatizadas em Nova Friburgo e Teresópolis. Os voluntários percorrem a zona rural ou atendem às pessoas em abrigos construídos. A ONG Visão Mundial iniciou em Nova Friburgo o projeto “Espaço Amigável das Crianças”, que pretende ajudar na recuperação e no fortalecimento emocional de crianças afetadas pela tragédia. Elas são acolhidas três vezes por semana na Igreja Metodista Central e, além de receberem alimentação, participam de atividades lúdico-pedagógicas que aliviam a dor emocional.

Já a Sociedade Bíblica do Brasil (SBB) realiza até 29 de abril uma campanha de arrecadação de donativos e Bíblias usadas. “Em situações emergenciais como estas, além de receber apoio material, é muito importante que as pessoas obtenham conforto e recuperem a esperança, que podem ser encontrados na Palavra de Deus”, afirma o secretário de comunicação e ação social da SBB, Erní Seibert.

N OTÍC IAS

Cristãos preparam código de ética para missionáriosTrês grandes representantes dos cristãos — o Vaticano, o Conselho Mundial de Igrejas e a Aliança Evangélica Mundial — estão dialogando para a elaboração, ainda neste ano, de um código internacional de conduta e ética para os missionários. Em uma reunião no final de janeiro, as três instituições (que representam 97% dos cristãos no mundo) avaliaram uma versão provisória do documento. O código pretente estabelecer padrões de responsabilidade globais para o trabalho missionário.

“O código de ética será a favor da prática missionária, mas vai condenar todas as formas imorais, como a pressão psicológica ou incentivos materiais para pessoas que desejam mudar de religião”, diz Tim Schirrmacher, diretor do Instituto Internacional de Liberdade Religiosa da Aliança Evangélica Mundial. Ele acredita também que a aprovação de um código de ética pode tornar o evangelho mais atrativo e reduzir a perseguição entre as religiões.

Peter Beyerhaus, professor emérito de missiologia na Universidade de Tübingen (Alemanha), apoia a criação de um código de ética para missões. “Os missionários muitas vezes são mal vistos publicamente. Se você definir mais cuidadosamente tanto a liberdade quanto os limites da prática missionária, essas acusações podem ser devidamente contestadas”, diz ele.

Pluralismo religioso diminui esperança de crescimento evangélicoO sociólogo Alexandre Brasil Fonseca defende em seu novo livro, Relações e Privilégios — Estado, secularização e diversidade religiosa no Brasil (Editora Novos Diálogos), que, com o aumento no número de religiões no Brasil, o surpreendente crescimento de evangélicos entre 1991 e 2000 (quase 100%) será enfraquecido nas próximas

por Lissânder Dias

Teresópolis, uma das cidades atingidas pelo temporal na região serrana do Rio, em janeiro de 2011

décadas. Além desse, o trânsito religioso e a desaceleração no crescimento populacional são outros fatores que diminuem a esperança de uma maioria evangélica no país. “O percentual de evangélicos provavelmente passará de 20% da população no próximo censo, mas dificilmente passará nacionalmente de 30% em 2010 ou mesmo em 2020”, diz o sociólogo. “O seu crescimento não se dá isoladamente. Outras religiões surgem e ganham seu espaço, configurando um esperado ambiente de pluralização”.

A publicação, lançada no final de fevereiro, discute ainda assuntos como secularização, separação entre Igreja e Estado, participação evangélica na política e ensino religioso nas escolas públicas.

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20 ULTIMATO I Março-Abril, 2011

Encontro da RENAS será em setembro

O encontro anual da Rede Evangélica Nacional de Ação Social (RENAS) já tem data

marcada: entre 15 e 17 de setembro em Luziânia (GO), a 56 quilômetros de Brasília. O tema é “Missão integral: participação política e justiça social”. Em 2010, o encontro foi realizado em Pernambuco, com mais de quatrocentas pessoas. O evento tem como objetivo capacitar trabalhadores sociais cristãos e líderes de igrejas.A RENAS é uma rede evangélica que reúne quase cinquenta organizações e redes; juntas, elas respondem por mais de 2 milhões de atendimentos diretos no país.

Portas Abertas divulga nova lista de países que mais perseguem cristãos

A Coreia do Norte está no topo do ranking dos cinquenta países onde os cristãos foram mais perseguidos em 2010. Entre os dez primeiros, ela é seguida por Irã, Afeganistão, Arábia Saudita,

Somália, Maldivas, Iêmen, Iraque, Uzbequistão e Laos. “O maior desafio para os cristãos que vivem em tirania e opressão é o isolamento — da Palavra de Deus e do Corpo de Cristo”, diz a Missão Portas Abertas, responsável pela Classificação de Países por Perseguição, publicada anualmente.

A principal mudança na lista é o Iraque, que saltou da 17ª para a 8ª posição, devido ao aumento no número de incidentes violentos contra os cristãos em 2010. Os dois principais atos de violência — o atentado à bomba num ônibus de estudantes cristãos em maio e o ataque terrorista à Igreja Católica Síria em Bagdá no final de outubro — mataram 61 pessoas e deixaram 240 feridos.

A lista engloba a perseguição aos cristãos de todas as denominações. O foco está nas perseguições por causa da fé, e não política, econômica, social, étnica ou por razões inesperadas.

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Março-Abril, 2011 I ULTIMATO 21

Publicado o sucessor do Pacto de LausanneO Movimento Lausanne para Evangelização Mundial concluiu em fevereiro a redação do documento

Campanhas de oração marcam primeiro semestreVárias iniciativas interdenominacionais de oração estão agendadas para o primeiro semestre deste ano. Uma delas é o 16º Mutirão Mundial de Oração por Crianças e Adolescentes em Situação de Risco, organizado no Brasil pela Rede Mãos Dadas. O mutirão mobiliza, sempre no primeiro fim de semana de junho, milhares de adultos e crianças para orarem pela situação da infância no mundo. Outra campanha — o Dia Mundial de Oração — acontece há 10 anos e vai mobilizar cristãos durante dez dias (entre 2 e 11 de junho) para orarem por vigor espiritual para a igreja cristã global.

A Missão Portas Abertas realiza há 21 anos o Dia de Oração pela Igreja Perseguida (DIP), que acontece sempre no domingo seguinte ao de Pentecostes.

Em 2011, será no dia 19 de junho. Mais de trezentas igrejas já confirmaram a participação neste ano.

Já o missionário Ronaldo Lidório está promovendo a campanha “30 Dias de Oração pelos Povos Indígenas do Brasil”, que pode ser realizada em qualquer período. Os pedidos são relacionados principalmente ao trabalho missionário com os indígenas. Segundo o relatório “Etnias Indígenas Brasileiras”, da Associação de Missões Transculturais Brasileiras (AMTB), ainda há 121 etnias pouco ou não evangelizadas no país.

“Compromisso da Cidade do Cabo: uma declaração de fé e um chamado para agir”, que sintetiza as convicções do movimento sobre a missão de Deus e da igreja cristã. O documento é um sucessor histórico do famoso “Pacto de Lausanne”, publicado em 1974.

A primeira parte do documento foi divulgada durante o Congresso Lausanne 3, que aconteceu em outubro de 2010 na Cidade do Cabo, África do Sul, e reuniu 4.200 pessoas. Para redigir a segunda parte, o Movimento Lausanne contou com um grupo de trabalho, que incluiu dois brasileiros: Valdir Steurnagel e Rosalee Veloso. Com o título “Para o mundo em que servimos: o nosso compromisso de agir”, o segundo texto discorre sobre as seis ênfases do congresso: verdade, reconciliação, outras religiões, evangelização mundial, confissão e unidade. O documento completo, em português, deve ser publicado em março.

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22 ULTIMATO I Março-Abril, 2011

CÉU ABE

““ÉÉÉÉ mmmmmmmmmmaaaiiisssssss fffáááccciiiillll eeeeee mmmeeennnooosss cccccccccccooooooooooooommmmmmmmmmmmmmpppppppppllliicccccaaddoooo ccccccccccrrrrrrrrreeeeeeeerr eeeeemmmmmmmmmmm DDDDDDDDDDDDDeeeeeeeeeeeeeeeeeeuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuussssssssssssssssss ddddddddddddddddooooo qqqqqqqqqqqqqqquuuuuuuuuuuuuueeeeeeeeee nnnnnnnnnnnãããoo ccrreerrrrrrrr nnnnnnnnnnnnnnnnneeeeeeeeeeellee””

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Março-Abril, 2011 I ULTIMATO 23

O navio não tinha bússola. Deixou a ilha de Creta e dirigia-se à Itália. Navegava de leste a oeste

no mar Mediterrâneo, entre o sul da Europa e o norte da África. Estavam a bordo o dono da embarcação, a tripulação e os passageiros, ao todo 276 pessoas. Dentre elas havia um oficial do exército romano, alguns soldados, alguns presos e um médico e historiador chamado Lucas. Um dos presos era Paulo de Tarso. O navio tinha saído de Alexandria, no Egito, e levava uma boa carga de trigo para Roma. Um vento forte o tirou da rota e uma tempestade escondeu o sol, a lua e as estrelas por duas semanas. O céu só se abriu depois do naufrágio do barco nas proximidades da ilha de Malta, ao sul da Sicília. Pode-se imaginar o alívio que o céu aberto trouxe para aqueles náufragos depois de tanto tempo de céu fechado (At 27).

A questão é que há outras situações de céu aberto mais importantes do que a de sentido literal. No mesmo livro de Atos há uma referência a céu aberto como metáfora, referindo-se à visibilidade de Deus e de sua glória. Trata-se do episódio envolvendo o primeiro mártir da história do cristianismo. Estêvão estava sendo apedrejado. A dor era enorme. A morte, iminente. Ninguém estava por perto para suspender o apedrejamento. Ele olha firmemente

para o céu e vê a glória de Jesus Cristo. Então, Estêvão exclama: “Olhem! Eu estou vendo o céu aberto!” (At 7.56, NTLH). No derradeiro momento da vida, esse fervoroso cristão vê o céu aberto e não a escuridão da maldade humana e da morte.

Há nuvens espessas e muito escuras que se colocam entre a criatura e o Criador. É uma espécie de véu que encobre Deus e as demais realidades. Isso infelicita muita gente porque os priva de Deus — sem o qual a alma geme o tempo todo. É mais fácil e menos complicado crer em Deus do que não crer nele. No entanto, essa nuvem ou esse véu esconde do homem aquele por quem ele aspira sem saber. Como entender a criação sem o Criador? Como entender a beleza, a ordem, a majestade, a funcionalidade, a imensidão das coisas criadas sem considerar a existência de Deus? Como não crer em Deus se não há um povo sequer sem religião, em qualquer tempo e em qualquer lugar? Como não crer em Deus se até hoje o secularismo, o materialismo, o agnosticismo, o ateísmo e as ideologias, em separado ou todos juntos, não conseguiram apagar da mente humana a ideia de Deus? Como não crer em Deus se os escândalos, a perseguição e as guerras religiosas não foram suficientes para desacreditá-lo por completo? Como

não crer em Deus diante do impasse da morte física e do mistério que a envolve?

O céu fechado não diz respeito apenas à incredulidade. Refere-se também à recusa em tratar Deus como Deus. Só depois de sujeitar-se resoluta e alegremente à soberania de Deus é que o ser humano pode exclamar: “Eu estou vendo o céu aberto!”.

Não podemos ser ingênuos. Enquanto alguns evangelizam, outros “desevangelizam”. A arte de atrapalhar a caminhada para o céu aberto existe. Jesus condenou aqueles que não entram “nem deixam que entrem os que estão querendo entrar” (Mt 23.13, NTLH).

A parábola do semeador diz que existe de fato um ladrão de semente: as aves do céu costumam comer as sementes do evangelho lançadas no coração humano, impedindo que elas sequer germinem (Mt 13.4, 9). Os homens não podem crer porque, segundo Paulo, “o deus desta era cegou o entendimento dos descrentes, para que não vejam a luz do evangelho da glória de Cristo, que é a imagem de Deus” (2Co 4.4). Todavia, a situação não é irreversível, pois os que querem sair da escuridão que os envolve e entrar no céu aberto podem e devem contar com a graça de Deus. Porque “esse véu só é tirado quando a pessoa se une com Cristo” (2Co 3.14, NTLH)!

BERTO

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24 ULTIMATO I Março-Abril, 2011

CAPA

O céu

aberto

de Agostinho

A urélio Agostinho (13/11/354 – 28/08/430), natural de Tagaste, Numídia (atual Argélia,

norte da África), filho de Patrício e Mônica, foi, sem dúvida, um dos mais influentes pensadores que o cristianismo produziu em sua trajetória, por enquanto, duas vezes milenar. Bispo de Hipona (atual Annaba, Argélia) e doutor da Igreja (conhecido pela alcunha de Doctor Gratiae, “doutor da graça”, pela forte

ênfase dada à graça divina na vida cristã), Agostinho é fonte da qual bebem católicos e protestantes. Os católicos o têm na categoria de “santo”. Os ortodoxos orientais aplicam-lhe o título altamente respeitoso de “Bendito Agostinho”. E os protestantes devem muito de sua teologia ao teólogo africano: vale lembrar que Lutero, antes de iniciar o movimento reformador, era monge agostiniano, e Calvino foi profundamente influenciado pela teologia agostiniana.

O reformador francês cita Agostinho mais que a qualquer outro teólogo, medieval ou patrístico, ocidental ou oriental. Antes da Reforma, Agostinho fora o teólogo mais influente durante toda a Idade Média. Todos os pensadores cristãos medievais tinham a sombra de Agostinho pairada sobre suas cabeças. Tomás de Aquino, não menos famoso, da Ordem dos Pregadores (dominicanos), é um dos exemplos. Seu pensamento teológico não poderá ser compreendido a não

Carlos Caldas

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ser à luz do pensamento de Agostinho. De igual maneira, outros teólogos medievais importantes, como Boaventura e Hugo de São Vitor, também foram influenciados por ele. Em nossos dias, o teólogo católico Josef Ratzinger, conhecido como Papa Bento 16, também é bastante influenciado pela teologia de Agostinho.

Agostinho, sem dúvida, era um homem privilegiado intelectualmente (não obstante, lamentou sua dificuldade em aprender a língua grega). Era também um escritor prolífico — suas obras têm tido sucessivas edições em praticamente todas as línguas europeias. Suas principais obras são Confissões (um clássico não apenas da espiritualidade, mas também da literatura mundial) e Cidade de Deus. No entanto, escreveu muitas outras obras, disponíveis para o leitor em língua portuguesa. Um fato estranho é que, a despeito da inegável importância e influência de Agostinho para e sobre a teologia protestante, não há sequer uma de suas obras que tenha sido publicada no Brasil por editora teológica não-católica. Suas elaborações a respeito de temas teológicos complexos, como a predestinação, o pecado original, o problema do mal, a igreja (sua visão de igreja como corpus permixtum, isto é, comunidade formada simultaneamente por “trigo e joio”), a posição escatológica amilenista, e outros, ainda hoje são estudadas e defendidas. Sua compreensão do problema do tempo estava, com o perdão do trocadilho, adiante do seu tempo. Agostinho foi ainda o primeiro a pensar (no já citado Cidade de Deus) em uma filosofia cristã da história, ou seja, pensar o longo desenrolar da história a partir de uma perspectiva da soberania divina. Sua teoria da guerra justa, para o bem ou para o mal, também foi influente durante todo o decorrer da Idade Média e, em nossos dias, influencia a política externa do

Partido Republicano dos Estados Unidos. Agostinho também escreveu a respeito do problema sinótico, ou seja, o problema da composição dos três primeiros evangelhos canônicos. A chamada “hipótese agostiniana” sustenta que o primeiro Evangelho escrito foi Mateus, seguido por

Marcos, que teria usado como fontes o Evangelho de Mateus e a pregação de Pedro, e em terceiro o Evangelho de Lucas, que por sua vez teria usado como fontes os Evangelhos precedentes.

Contudo, não se pode, de modo algum, deixar de mencionar que Agostinho não foi apenas um intelectual de escritório, um teólogo teórico. Longe disso. Ele foi verdadeiramente um pastor, alguém preocupado com o andar com Deus e com a saúde da igreja. Quanto a isso, não se pode deixar de mencionar o encontro que Agostinho teve com o próprio Deus. Seu pai, Patrício, era pagão, mas sua mãe, Mônica, era cristã fervorosa. Quando jovem, Agostinho seguiu o exemplo paterno e, para tristeza da mãe, se entregou a uma vida dissoluta e desregrada. Porém, Mônica não cessou de orar pela conversão do filho. É conhecida a história de quando Agostinho, com a idade de 32 anos, na Itália, em companhia de seu amigo Alípio, ouviu uma criança que cantava tolle et lege (“toma e lê”); ao ouvir tais palavras, foi até o amigo,

que estava com um exemplar das Escrituras. A primeira passagem que Agostinho leu foi Romanos 13.13-14 (NTLH): “Vivamos decentemente, como pessoas que vivem na luz do dia. Nada de farras ou bebedeiras, nem imoralidade ou indecência, nem brigas ou ciúmes. Mas tenham as qualidades

que o Senhor Jesus Cristo tem e não procurem satisfazer os maus desejos da natureza humana de vocês”. O próprio Agostinho narrou em Confissões como sua vida foi mudada radical, profunda e permanentemente. Abraçou a fé cristã de todo o coração. Foi batizado pelo Bispo Ambrósio de Milão no ano 387. Ao voltar para sua região no norte do continente africano, foi ordenado sacerdote (391), depois eleito bispo coadjutor (auxiliar) em 396, e pouco depois disso passou

para a condição de bispo principal — categoria na qual ficou até sua morte. A conversão de Agostinho foi um divisor de águas definitivo em sua vida. A partir daí, todo o seu imenso potencial intelectual foi dedicado inteiramente à causa do reino de Deus. Há quem critique Agostinho pelo peso negativo excessivo que deu depois de sua conversão às questões de natureza sexual — o que marcou e marca até hoje a ética sexual católica e protestante. Psicólogos falam do “complexo de Santo Agostinho” para se referir a quem parte de um extremo para o outro, de uma radicalidade para outra (no caso, de um extremo de devassidão a um extremo de ver questões sexuais como piores que outras). Independentemente disso, ninguém pode negar que Agostinho teve uma conversão verdadeira, que mudou verdadeiramente sua vida, não por seu próprio esforço, mas pela força da graça de Deus em seu coração.

Carlos Caldas é doutor em ciências da religião pela Universidade Metodista de São Paulo e leciona na Escola Superior de Teologia e no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie em São Paulo.

A conversão de Agostinho foi um divisor de águas

em sua vida. A partir daí, todo o seu imenso potencial intelectual foi dedicado inteiramente à causa do reino de Deus

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O céu

aberto de

C. S. Lewis

Para além da Terra

das Sombras

CAPA

Q uem já leu C. S. Lewis sabe que a imagem das sombras é recorrente em seus escritos. De fato, ele teve várias

experiências de céu fechado, que lhe renderam muitas noites sombrias. O raiar do dia, a vinda da primavera, a luz do sol vêm sempre associados à sua busca por joy: alegria, júbilo, festa, a pátria perdida.

De onde veio esse anseio? Como ele, tendo sido ateu e materialista anos a fio, pode ser considerado, até hoje, o apologeta entre céticos, cujos livros se vendem aos milhares mundo afora?

Catedrático de Oxford e Cambridge de literatura inglesa, Lewis foi reconhecido por algumas obras de crítica literária. Porém, notabilizou-se pelas obras de ficção, pelas quais retrata de diversos ângulos a sua história de filho pródigo, crivada por ironias e alegorizada em O Regresso do Peregrino, numa alusão a Bunyan.

Um dos atores principais da conversão desse irlandês de volta ao protestantismo, seu colega em Oxford e grande amigo, J. R. R. Tolkien, criador da celebrada trilogia de O Senhor dos Anéis, era católico ortodoxo romano.

Outra ironia é que Lewis, que tanto falava em sofrimento, teve muitos problemas com o sofrimento na vida real. Entre as perdas sofridas estavam a sua mãe, um colega de guerra no front, seu pai, um grande amigo e, quem sabe

Gabriele Greggersen

a maior de todas, sua esposa, Joy. Suas terapias para lidar com a dor eram ler, escrever e debater literatura com os amigos.

Segundo O Mais Relutante dos Convertidos, de David Downing, a felicidade na infância durou do seu nascimento, em 1898, até o falecimento de sua mãe, que era o alento da família com o seu refrescante equilíbrio emocional. Seu pai sofria de depressões e flutuações de ânimo, e por isso foi tachado de sentimental. Sua mãe era professora de matemática, filha de um pastor protestante. Até que foi vitimada pelo câncer, quando Lewis tinha nove anos de idade.

Depois disso, Lewis e seu irmão mais velho, Warren, percorreram vários internatos ingleses — um deles parecia um campo de concentração e foi fechado com a internação de seu diretor por insanidade mental. Seu ambiente insalubre e sombrio, que “nem ao menos tinha biblioteca”, é retratado em Surpreendido pela Alegria (SPA), sua autobiografia. Voltou então à Irlanda para estudar no Colégio Campbell, onde foi perseguido por gangues.

Depois, ingressou no colégio Cherbourg, que era preparatório para a Universidade de Oxford. Nele, foi “adotado” por uma “mãe substituta”, que era espiritualista. Lewis descreve esse período como sendo a fase de queda

em sua vida, em que pôs Deus em questão (cf. biografia de A. Nichola), principalmente pelo fato de Deus ter ignorado as suas súplicas pela cura da mãe. Tornou-se ateu.

Então, seu pai cedeu ao pedido de ter aulas particulares com William Kirkpatrick, que havia sido professor de seu pai. Lewis estudou com ele por três anos. Esse senhor, já idoso e ateu convicto, era muito admirado por Lewis, pois lhe dava uma formação nos moldes dos “clássicos”. Alguns autores que passaram a ler suas obras admitem que Lewis tornou-se um adolescente materialista “esnobe”, que tentava evitar Deus de todos os modos. Passou a apreciar as coisas tidas como racionais e científicas. Porém, continuava a manter a paixão pelos mitos e contos de fada. Foi assim que “tropeçou” num volume de Phantastes, de George MacDonald. Anos depois ele escreveria em SPA que esse livro “batizou” a sua imaginação de modo silencioso.

Seus estudos em Oxford iniciaram-se em 1916. Já no ano seguinte, alistou-se para a guerra. No exército, fez amizade com o colega Paddy Moore. Depois de conhecer sua mãe e irmã numa folga, prometeu ao amigo cuidar delas, caso ele morresse. O amigo jurou o mesmo em relação ao pai de Lewis. Lewis acabou ferido por um estilhaço de bomba — fato que o fez retornar a Oxford. Seu

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amigo morreu no front.No mesmo ano em que publicou

uma série de poemas bem “obscuros”, que não alcançaram sucesso, ele passou a sustentar a Sra. Moore e a filha e retomou os estudos.

Nos primeiros anos de bacharelado, sua alma entrava em crise, dividida entre o provedor de uma família e o estudante desprovido de mãe e com o pai ausente; entre seu lado racional e o imaginativo; o frio e calculista e o emocional. Tornou-se, assim, um ser em busca de algo que não sabia precisar. Ele também havia se tornado um platônico, pois via uma “guerra” sendo travada não apenas “lá fora”, mas dentro dele: entre o espírito e a matéria, que devia ser maniqueisticamente “domada”.

Os anos seguintes aos de 1923 foram de descoberta do desejo pelo oculto e o conhecimento pessoal de um poeta que muito admirava: Yeats. Contudo, acabou se assustando com o aspecto sombrio da casa do autor e o estilo de vida de seus donos, que eram espiritualistas. Decepcionou-se ainda com episódios de possessão (presenciados por ele em diferentes contextos), que o afastaram do ocultismo.

Ainda em 1923, Lewis se impressionava com a leitura de Phantastes. Ele escreve a um amigo de infância relatando a sua apreciação por tal obra. Havia se tornado um idealista e panteísta, depois de ler autores ingleses, que negavam a Deus, exaltando os ideais humanos e os potenciais da natureza.

Dois anos depois, conheceu J. R. R. Tolkien e registrou em seu diário que ele reunia dois “defeitos” que lhe recomendaram evitar: era papista (católico) e filólogo.

Foi em Oxford, também, que conheceu um grupo de amigos, sobre o qual observou que, para a sua surpresa, eram cristãos e, ao mesmo tempo, inteligentes!

Começou, então, a apreciar os escritos de Chesterton. À semelhança do ocorrido a esse autor (cf. Ortodoxia), ele era como um náufrago que saiu de uma ilha, para acabar regressando à mesma. Notou ainda, num retrospecto de suas leituras, que os autores que mais amava tinham o mesmo “defeito” de serem cristãos, inclusive MacDonald — o que

lhe parecia uma “traição”.Assim, chegou à noite da Páscoa

de 1939, em que Lewis saiu com esses amigos para conversar sobre Deus e o mundo. Porém, o argumento que o pôs de joelhos ao lado da cama veio de Tolkien. Ele o fez reconhecer que havia algo em comum entre os mitos, que eram a razão de ser daquele grupo: a narrativa sobre um mal assolando um povo e um deus que sai em resgate dele, sacrificando-se por ele (e algumas vezes, ressuscitando). Se todos os povos de todas as línguas, eras e culturas contam, em essência, a mesma história, então ela tinha de ser verdadeira.

E então, Tolkien deferiu o golpe

final: na história de Cristo, que tinha a mesma estrutura daquela dos mitos, o mito e o fato se casaram. A história da paixão é aquela que faz tudo se encaixar, dando sentido ao que se conta de forma profética por meio dos contadores de história de antes ou depois da sua vinda. A diferença de Cristo é que ele era real e sua história, verdadeira.

Iniciou-se, assim, um longo processo, que muitos não chamariam de conversão, por não ter envolvido qualquer experiência extraordinária. Contudo, representou, sim, uma guinada no caminho que Lewis estava trilhando. Quando estamos andando no sentido errado só podemos avançar se dermos a volta, retornando à estaca zero.

O primeiro passo foi o reconhecimento da existência de Deus — o que fez dele um teísta. Num segundo momento, ainda conversando com seus colegas, com os quais fundaria um clube, percebeu que esse Deus não podia ser uma força transcendental, sem nome ou face. Tudo indicava que ele deveria ser pessoal e interferir no mundo. Se não, como explicar fatos inexplicáveis,

como o mal?Foi em um passeio de motocicleta

com o seu irmão ao zoológico, que Lewis, já convertido, finalmente reconheceu que Jesus é Deus. Diz ele, em SPA, que saiu não crendo em Jesus e voltou crendo.

Quando o processo se completou, sua imaginação se libertou, produzindo a riqueza de obras com as quais nos brindou, incentivando-nos a sair ao encontro dos que estão a caminho, usando uma linguagem universal.

Apesar de ter sido um converso “relutante”, Lewis não foi um converso inseguro ou hesitante; tanto que confessa que foi capturado por algo sobrenatural, que pôs o self-made man em cheque.

O cristianismo tornou-se para ele como uma grande casa com vários cômodos (cf. Cristianismo Puro e Simples). Com isso, era um dos mais livres convertidos, pois sua fé lhe permitia dialogar com todas as religiões e crenças; além de ser um dos mais apaixonados e convictos apologetas cristãos da história. Não praticava proselitismo. Antes, valorizava a sabedoria por trás de toda arte, cultura e religião humanas, desde as mais antigas, fazendo-as aflorar e apontar para além do céu fechado.

Para Lewis, melhor é ser um pagão que não conhece as verdades do evangelho, do que um cristão por demais familiarizado com elas. Nesse sentido, o pagão está mais perto de Deus do que o cristão nominal, que nunca se arriscou para fora do mundo construído a seu redor.

A prova de fogo da sua teoria de que o sofrimento é o megafone de Deus, que anuncia a “magia mais profunda de antes da aurora dos tempos”, é retratada no filme Shadowlands, nas últimas palavras de Joy, que ele desposou após o diagnóstico de câncer. Elas refletem as palavras de Aslam, ao explicar a morte às crianças em A Última Batalha: “Seu pai, sua mãe e todos vocês estão mortos, como se costuma dizer na Terra das Sombras. As aulas acabaram: chegaram as férias! Acabou-se o sonho: rompeu o amanhã!” (tradução própria).

Gabriele Greggersen é missionária no mundo acadêmico e doutoranda em estudos da tradução pela UFSC. www.cslewis.com.br

Para Lewis, melhor é ser um pagão que não conhece as verdades do evangelho, do que

um cristão por demais familiarizado com elas

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O dia

em que

vi o céu

aberto

O céu

aberto

de Hélio

Arruda: do tormento do

álcool à alegria

do Espírito

Elben César

CAPA P ara não servir ao Exército, mudei-me de Campos dos Goytacazes para Bom Jesus do Itabapoana no início de

1949. Hospedei-me na casa do rev. Francisco Cordeiro, pastor da Igreja Presbiteriana daquela cidade do norte fluminense. Eu tinha acabado de sair da adolescência e era um rapaz saudável de 19 anos. Já levava a sério minha devoção diária, com orações e leitura da Bíblia e de livros devocionais. Por meio dessas práticas, procurava aumentar cada vez mais minha comunhão com Deus e me proteger dos impulsos pecaminosos, dentre eles a impudicícia.

Nascido em lar cristão e instruído no temor do Senhor, eu sabia que qualquer relacionamento sexual vulgar,

O tempo que uma criança leva para ser completamente formada no ventre da mãe e nascer,

foi o tempo que Hélio Arruda gastou para abandonar o álcool e nascer de novo. Em março de 2011 fará 55 anos que ele finalmente viu o céu aberto. E foi para valer, pois nunca mais colocou um gole de bebida na boca. Morreu aos 80 anos, em fevereiro de 2005, e sua única filha é Grace Rosa,

de emprego. Os crentes vão à estação ferroviária, oram com ele e cantam seu hino predileto: “Quão bondoso amigo é Cristo”. Lá chegando, apresenta-se como evangélico e é bem recebido. Consegue uma boa colocação na Companhia de Cimento Portland Paraíso, em Italva, até então município de Campos.

25 de fevereiro de 1956 (sábado) — Hélio está de volta a Ubá, bêbado. Acha que não há solução para o seu caso. Passa a beber mais. Pensa em suicídio. Dá sua Bíblia de presente a um amigo e escreve a seguinte dedicatória: “Até nos encontrarmos na eternidade”.

desconectado do amor e dos laços conjugais, não me seria saudável nem permitido. Meu problema não era a ignorância do fato, mas a dificuldade de me conservar com pureza. Temia o possível fracasso.

Por causa dessa tensão, resolvi buscar mais intensamente o Senhor para obter socorro. Não me lembro o dia nem o mês, mas naquele ano peguei uma sacola, coloquei nela minha Bíblia, o devocionário Ouro, Incenso e Mirra, que eu estava lendo, e o hinário. Fui sozinho, de manhã bem cedo, para um lugar deserto, onde havia uma pequena cachoeira. Ali eu faria o mesmo que Jacó fez perto do vau de Jaboque: lutaria com Deus até ver o céu aberto (Gn 32.22-32).

delegada de polícia em Nova Friburgo e esposa do cirurgião José Augusto Driendl. A detalhada cronologia, a seguir, mostra como aconteceu essa transição das trevas para a maravilhosa luz.

31 de julho de 1955 (domingo) — Um rapaz de 30 anos, claro, alto e magro, chamado Hélio de Oliveira Arruda, entra pela primeira vez no salão de cultos da Congregação Presbiteriana de Ubá. Estava sob efeito de álcool.

7 de agosto de 1955 (domingo) — Hélio Arruda volta ao salão, embriagado.

26 de setembro de 1955 — Hélio tem uma longa conversa com o pastor da congregação. Fala, inclusive, sobre a vontade de ser pastor.

2 de outubro de 1955 (domingo) — Hélio, bêbado, outra vez.

9 de outubro de 1955 (domingo) — Sóbrio, Hélio participa das reuniões.

12 de outubro de 1955 (quarta-feira) — Hélio vai à reunião da Igreja Metodista, bêbado.

19 de outubro de 1955 (quarta-feira) — Reunião ao ar livre na Praça dos Operários. Hélio comparece com o propósito de ajudar, mas em estado de embriaguez.

5 de novembro de 1955 (sábado) — Depois de alguns dias sem beber, Hélio segue para o Rio de Janeiro em busca

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Hélio Arruda e esposa — mais de 30 anos depois do “céu aberto”

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De um lado estava o anseio de fazer a vontade de Deus; de outro, a vontade, igualmente forte, de satisfazer os desejos da carne. Eu já havia memorizado a frase de Rosalee Appleby, autora de Ouro, Incenso e Mirra: “A pureza é o par de asas da alma que esvoaça e canta, destemida e alegremente. Esta magna questão está diante da mocidade. Urge um avanço e uma subida, porém, a juventude não poderá fazê-la com as asas quebradas”. Na mesma caderneta na qual transcrevia as frases mais bonitas dos livros lidos, achava-se escrito este pensamento do formidável Stanley Jones: “Eu sou puro? Essa questão de pureza é fundamental. É em relação ao sexo que a batalha da vida será mais acirrada: se nossa vida deixa a

desejar nesse quesito, provavelmente toda ela anda mal”.

Embora sentisse a mesma dificuldade apontada por Lutero, eu não conhecia a célebre declaração do reformador de que “a castidade não é tão fácil quanto calçar e descalçar os sapatos”. Ele se referia à tentação da impureza como “furiosos impulsos da libido”, cujo furor é indômito. Anos depois eu leria algo parecido, escrito por Leonardo Boff: “A sexualidade possui um vigor vulcânico”. Além de desejar muito, eu precisava dominar os “furiosos impulsos” e o “vigor vulcânico” da sexualidade fora do tempo e do lugar certos. Por essa razão eu estava ali, junto à cachoeira, sozinho, intercalando leituras bíblicas

27 de fevereiro de 1956 (segunda-feira) — Os crentes iniciam uma semana de reuniões de oração, às 6h da manhã, exclusivamente em favor de Hélio. Clamam unânimes a Deus por sua conversão, por seu novo nascimento, por sua libertação.

28 de fevereiro de 1956 (terça-feira) — A irmã de Hélio, uma senhora católica, declara que nem a igreja católica nem a igreja protestante podem resolver o problema de embriaguez do irmão. Os crentes acreditam que isso expressa a verdade, mas acreditam também que Deus pode reverter a situação e aceitam o desafio. Oram com mais fervor.

4 de março de 1956 (domingo) — Hélio comparece ao culto. Não está embriagado. Dois ou três dias antes, impulsionado pelo Espírito, ajoelhou-se e pediu ao Senhor dos Céus que o socorresse e o livrasse do pecado.

15 de março de 1956 — Hélio começa a trabalhar no escritório da Mesbla em Ubá.

6 de maio de 1956 (domingo) — Hélio é admitido à comunhão da igreja, por meio da pública profissão de fé e batismo, nove meses depois de ter entrado pela primeira vez naquele lugar. Além dos crentes presbiterianos e metodistas, estavam presentes dez pessoas da família Arruda e cinquenta

e orações. Passei o dia inteiro naquele lugar. Só mais tarde, quando o sol começava a declinar e eu precisava voltar para casa, é que Deus me ouviu e me acalmou, por meio da última passagem lida: “O Senhor é meu pastor; nada me faltará” (Sl 23.1).

Embora seja um dos versos mais conhecidos da Bíblia, ele me fez entender que a vitória que eu queria alcançar viria por meio do cuidado pastoral de Deus, não do meu próprio esforço, vergonhosamente precário, tímido e insuficiente. E a vitória seria diária, não por atacado. A emoção foi enorme. Chorei e cantei, e vi o céu aberto. Passados cerca de sessenta anos, considero essa experiência com Deus a mais importante de todas.

convidados. Ele dá o seu testemunho.

29 de junho de 1956 (sexta-feira) — Hélio dirige, pela primeira vez, o programa radiofônico Retorno à Bíblia.

12 de agosto de 1956 (domingo) — Hélio prega pela primeira vez na cadeia pública de Ubá.

19 de agosto de 1956 (domingo) — Hélio quase arranja uma briga no bar de Geraldo Durso. Motivo: serviram-lhe água em um copo sujo de cachaça. O gosto do álcool encheu-o de repugnância e temor.

5 de março de 1957 (terça-feira) — Hélio embarca para o Rio de Janeiro e se matricula no Seminário Teológico de Pedra de Guaratiba.

29 de julho de 1960 (sábado) — Hélio casa-se com Francisca Costa, que conheceu no seminário.

3 de dezembro de 1960 (sábado) — Formatura de Hélio Arruda no Seminário Teológico do Rio de Janeiro.

15 de janeiro de 1961 (domingo) — O Presbitério de Campos ordena o pastor Cláudio Wagner e licencia Hélio pregador do evangelho.

25 de março de 1962 (domingo) — Ordenação de Hélio de Oliveira Arruda: a comissão especial do Presbitério de Campos reúne-se em Ubá e o ordena pastor, no auditório da Rádio Educadora

Trabalhista. Cerca de cinquenta pessoas não-evangélicas assistem à solenidade.

15 de março de 1996 (sexta-feira) — Em cerimônia realizada na Universidade Mackenzie, em São Paulo, Hélio recebe das mãos do rev. Guilhermino Cunha, presidente do Supremo Concílio da Igreja Presbiteriana do Brasil, o diploma de ministro jubilado e a medalha de mérito por sua dedicação à causa do Mestre e por sua folha de serviços prestados à igreja “ao longo de seus 34 anos de efetivo ministério”.

25 de março de 1996 (segunda-feira) — Hélio completa 34 anos de ministério, tendo pastoreado oito igrejas no Presbitério de Campos e dezessete no Presbitério de Nova Friburgo.

1º de setembro de 1996 (domingo) — O Presbitério de Nova Friburgo promove um culto de ação de graças pela vida e ministério de Hélio de Oliveira Arruda. Canta-se seu hino predileto: “Quão bondoso amigo é Cristo”. Três presbíteros entregam-lhe o diploma de pastor emérito da Igreja Presbiteriana da Torre, pastoreada por ele durante doze anos. A esposa também é homenageada. Hélio celebra a Ceia do Senhor e impetra a bênção apostólica.

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se revela como o Senhor, aquele que nos salva e liberta, e que nos dá os seus mandamentos como expressão do seu amor. Nós respondemos obedecendo a ele e andando em seus caminhos, como expressão do nosso amor para com ele.

Ter intimidade com Deus é participar da aliança de Deus com o seu povo. Não há aqui lugar para um intimismo infantil e narcisista. Ser íntimo de Deus é reconhecer que sou único diante dele, mas também reconhecer que sou parte do seu povo, sua igreja. É viver no seu amor revelado em sua Palavra e em seus mandamentos, é responder ao seu amor em obediência sacrificial. Jesus diz: “Quem me ama, guarda os meus mandamentos”.

Estou casado há 32 anos e considero que eu e minha esposa, ao longo destes anos, conquistamos uma razoável intimidade. Contudo, não consigo imaginar como seria nossa vida se vivêssemos o tempo todo trancados num quarto, trocando declarações apaixonadas, num êxtase interminável. Certamente não suportaríamos isso por muito tempo. A intimidade que minha esposa e eu temos experimentado envolve nossas diferenças e conflitos, longas conversas seguidas de silêncio. Envolve nossos filhos e amigos, alegrias e tristezas, sofrimentos e esperanças. Envolve responsabilidades e rotinas, trabalho e contas para pagar. É uma intimidade que tem seus momentos reservados, é claro, mas a maior parte do tempo ela é experimentada e vivida nas rotinas que requerem doação e devoção.

Ricardo Barbosa de Sousa é pastor da Igreja Presbiteriana do Planalto e coordenador do Centro Cristão de Estudos, em Brasília. É autor de Janelas para a Vida e O Caminho do Coração.

que diz: “A intimidade do Senhor é para os que o temem, aos quais ele dará a conhecer a sua aliança”. Três palavras-chave: intimidade, temor e aliança. Precisamos das duas (temor e aliança) para entender o sentido de intimidade. Temor é uma palavra que evoca assombro, espanto, medo, reverência. Intimidade sem temor rapidamente se transforma nesse “gostar” infantil. Temor que não leva à intimidade se transforma em superstição ou num medo que traumatiza e paralisa.

Ter temor implica reconhecer a grandeza de Deus. Reverência é a postura adequada daqueles que temem. Reverenciar significa respeitar, calar, prostrar, ouvir. A intimidade de Deus é para aqueles que o reverenciam. Para aqueles que se calam diante dele, que primeiro ouvem para depois falar, que prestam atenção em suas palavras e obedecem. É dessa postura que nasce a intimidade com Deus.

No que consiste tal intimidade? Em Deus nos dar (ou nos fazer conhecer) a sua aliança. Aliança é uma palavra que expressa a forma de relacionamento em que Deus propõe ser o nosso Deus e nós, o seu povo. Ser íntimo de Deus é participar dessa aliança. Nela Deus

Falácias da espiritualidade cristã

O CAMINHO DO CORAÇÃO Ricardo Barbosa

Intimidade sem temor se transforma em um

“gostar” infantil. Temor que não leva à intimidade

se transforma em superstição ou num medo que traumatiza e paralisa

Nas últimas décadas, a expressão espiritualidade ganhou espaço e relevância nos círculos evangélicos. Muita coisa

tem sido falada e escrita sobre o tema. Como sempre, coisas boas e ruins. Algumas expressões e temas importantes para a compreensão da espiritualidade tomaram um rumo que pouco ou nada tem a ver com a herança espiritual cristã. Um deles envolve o equívoco de confundir intimidade com intimismo.

A palavra intimidade aparece uma única vez na Bíblia. O que mais aparece é a palavra íntimo, quase sempre se referindo ao interior, não à intimidade. Embora seja uma palavra com sentido um tanto nebuloso, ela transformou-se na palavra-chave para o movimento espiritual: a busca pela intimidade com Deus.

É claro que a intimidade como expressão de um relacionamento pessoal com Deus, no qual todo nosso íntimo está envolvido, é legítima. Por outro lado, o que presenciamos é uma forma de intimidade que, em vez de explorar o íntimo, vem desenvolvendo um “intimismo” narcisista que nada tem a ver com intimidade.

Nesse sentido, intimidade é o que acontece na esfera privada. Não me refiro a alguma forma de solitude ou introspecção, como entrar para o quarto e orar, mas à busca de uma sensação ou linguagem que não caracteriza, necessariamente, um relacionamento. Ser íntimo é “beijar o rosto de Deus” ou “passear de mãos dadas com ele”. São expressões vagas, abstratas, com sentido duvidoso.

A única vez que a palavra intimidade aparece na Bíblia é no Salmo 25.14,

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Fui criada num lar evangélico e a palavra de Efésios 5.22 foi comentada muitas vezes, tanto em casa quanto na

igreja. Sempre me senti extremamente desconfortável com a interpretação passada, pois tinha sempre um enfoque machista.

A expressão “o marido é o cabeça, mas a esposa é o pescoço, que a vira para onde quer” é muito comum, e demonstra como tal conceito ainda gera desconforto e incompreensão. O fato de haver uma divisão de assunto entre os versículos 21 e 22 faz com que se perca a fluência natural do texto escrito.

Quando em encontros para casais, meu esposo inicia uma palestra provocativamente com a frase do título (maridos: sejam sujeitos às suas mulheres), logo surgem intensas reações! Na forma literal, não há esse versículo na Bíblia. Porém, em Efésios, imediatamente antes de falar sobre a submissão da mulher, Paulo afirma: “Sujeitem-se uns aos outros” (Ef 5.21). Ora, uns aos outros significa que os maridos devem sujeitar-se às suas esposas da mesma forma que elas aos maridos.

Infelizmente, em uma parte significativa das igrejas cristãs, existe dificuldade em lidar com a questão do funcionamento dos papéis na relação conjugal.

Influenciados pelos ranços culturais de matizes machistas, tendemos a distorcer o propósito de Deus na criação e vivemos um modelo alicerçado na temporalidade da queda.

Maridos: sejam sujeitos às suas mulheres

C A S A M E N T O E F A M Í L I ACarlos “Catito” Grzybowski e Dagmar Fuchs Grzybowski

A relação entre homem e mulher, de acordo com René Padilla,1 passa por três momentos distintos ao longo da história. O primeiro é o da perfeita harmonia na criação, em que homem e mulher se veem como iguais e complementários: “Esta é agora osso dos meus ossos e carne da minha carne” (Gn 2.23). O segundo é o da distorção causada pela queda, em que o pecado causa uma hierarquização e uma crise relacional: “E o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará” (Gn 3.16). O terceiro é o da restauração da intenção perfeita de Deus em Cristo, em que: “Não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo” (Gl 3.28), porque “se alguém está em Cristo, é nova criatura; as coisas antigas já passaram; eis que se fizeram novas” (2Co 5.17). Em Cristo realmente se inicia uma nova era na humanidade (1Co 15.45), em que os padrões da queda não devem mais ser vigentes para os que abraçam a fé cristã.

A mutualidade da sujeição na relação conjugal aponta para a intenção original de Deus na criação e, ao mesmo tempo, denuncia as disputas por poder e a distorção gerada pela verticalização nessa relação. Na unidade mística da relação conjugal não há hierarquização, mas sim complementaridade, a partir da ternura, que gera a unidade.

É necessária a compreensão de que o único modelo de liderança aceito em qualquer relação, a partir

de Cristo, é o modelo do próprio Cristo: o líder-servo (Jo 13.14 e 15; Mt 20.25 e 26) que dá a sua vida em favor de seus liderados. Dar a vida não é apenas uma ação heroica quando o outro está em uma situação de perigo. A vida é, em essência, uma quantidade indeterminada de tempo doada por Deus a cada um de nós. Assim, dar a vida é abrir mão disso que me foi doado e oferecer ao outro — mesmo que seja o tempo do passatempo predileto.

Agindo assim é que conheceremos verdadeiramente o que é uma relação de amor (1Jo 3.16).

Nota1. Casamento e Família (Ultimato, 2003).

Carlos “Catito” e Dagmar são casados, ambos psicólogos e terapeutas de casais e de família. Catito é autor de Como se Livrar de um Mau Casamento e Macho e Fêmea os Criou, entre outros.

Na unidade mística da relação conjugal não há hierarquização, mas sim complementaridade

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A partir de hoje, com a ajuda de Deus, não quero perder a paciência facilmente. Farei um esforço enorme para

comportar-me dessa maneira. Sei que, por causa de mim mesmo e dos outros, não será fácil. Devido à falta de amor, autocontrole, respeito, tempo, misericórdia e até mesmo educação, tenho cometido a asneira de perder a paciência, tratando mal os outros e prejudicando a minha saúde, o meu humor, a minha consciência e o meu relacionamento com Deus.

De fato, há pessoas com as quais é difícil ter paciência. São pessoas incômodas, insistentes, incorrigíveis, intransigentes, maçantes, aborrecíveis. Lidar com elas pode ser uma tarefa árdua, um sacrifício. Porém, é meu dever como cristão. A falta de paciência custa mais caro do que a paciência em si. Não há como escapar da paciência. O servo do Senhor, diz a Bíblia, não deve andar brigando, mas deve tratar a todos com educação, bondade e paciência (2Tm 2.24). Não há virtude alguma em não perder a paciência com pessoas que não nos induzem à impaciência. Está registrado no mais bem escrito poema de amor que “quem ama é paciente e bondoso” (1Co 13.4, NTLH).

Não posso perder a paciência nem com as pessoas, nem com outras situações. É preciso tê-la diante do infortúnio, do imprevisto, do sofrimento, da doença, das limitações, da terminalidade, do período de espera de algum acontecimento etc. Nesse sentido e nessa área ninguém foi mais

Não quero perder a paciência nem com os outros nem comigo

D E HOJE EM D IANTE . . .

paciente do que Jó: o homem que perdeu tudo de uma só vez — riqueza, filhos, saúde e status (Tg 5.11).

O que deve me encorajar na prática da paciência é a paciência que uma boa parte dos meus familiares e amigos têm comigo. Eles também gastam energia para me tratar com paciência. A paciência é uma bem-aventurada troca entre marido e mulher, entre pais e filhos, entre colegas de trabalho, entre irmãos na fé e entre amigos. Só assim será mantida a paz doméstica, a paz na igreja, a paz no trabalho, a paz na sociedade.

Tomarei, também, todo cuidado para não perder a paciência comigo mesmo. Não vai adiantar eu perder a paciência quando voltar a errar, quando me parecer intragável, quando me sentir hipócrita, quando enxergar todo o meu histórico negativo ou quando tomar conhecimento do meu déficit moral. Eu me perdoarei em Cristo e me darei outra oportunidade. Se eu não me portar assim, posso acabar dando um tiro no ouvido.

Jamais devo me esquecer da paciência de Deus para com os pecadores e para comigo. Ele sempre é “compassivo e misericordioso, muito paciente, rico em amor e em fidelidade” (Sl 86.15). É por isso que eu posso chegar diante dele e fazer a oração do publicano: “Deus, tem misericórdia de mim, que sou pecador” (Lc 18.13). Porém, depois de ser beneficiado pela paciência de Deus, obrigo-me a ser paciente com todos os meus credores, de acordo com a parábola do servo impiedoso (Mt 18.21-35).

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eram parte essencial da revelação de Deus aos povos ou da cristianização imposta.

Uma das razões é que a escrita não é bem aceita em todas as tribos. O povo P., da Amazônia, por exemplo, em contato com a sociedade envolvente desde o século 19, sempre se recusou a aprender a ler. Para eles, escrever significa desistir de ser quem são. Entendendo que povos assim não podem ser excluídos da mensagem, criou-se uma proposta missiológica com foco na tradição

oral. Os P. vão eventualmente receber uma versão oral de histórias bíblicas que se encaixará perfeitamente em sua tradição.

A oralidade se tornou uma unanimidade e surgiram várias versões para se historiar a Bíblia oralmente. A ideia, antes praticada por poucos, hoje é aceita e quase universalizada. Línguas sem escrita recebem versões orais de histórias bíblicas. Espera-se que mais tarde alguma missão focalize aquele povo de novo para traduzir a Bíblia; porém, por enquanto, o nome dele sai da lista de prioridades.

Seria uma história com final feliz, se a moeda não tivesse outro lado. No mundo pós-moderno tudo é

A maior contribuição das missões para a história é a escrita. Por meio da dedicação de missionários, milhares

de povos tribais no mundo inteiro obtiveram alfabetos específicos para suas línguas.

A tradição oral não torna ninguém mais burro — os povos de línguas ágrafas não são “primitivos”, como pensavam os antropólogos. Porém, eles ficam excluídos de fazer alguma contribuição válida para o resto da humanidade. Ficam diminuídos em sua capacidade de gravar a própria história, de produzir ciência. A escrita permite que a memória coletiva se amplie e se perpetue. Que a expressão individual contribua indelevelmente com o coletivo. Que a sabedoria de outros povos seja incorporada ao estilo de vida e cosmovisão do povo.

A Bíblia é uma coletânea de histórias de uma tribo pequena que tinha uma revelação grande sobre o Criador. Tais histórias tribais, princípios e preceitos fazem diferença quando aceitas por qualquer povo.

Os efeitos da Bíblia, porém, são mais profundos do que “cristianizar” as tribos que a recebem. Sempre relutei em aceitar a cristianização como algo desejável ou inevitável. Muitos missionários trabalham com o conceito da igreja nativa, que não importa as formas de igreja praticadas pela sociedade dominante, mas permite à cultura tribal ressignificar seus ritos e danças. Discutimos se a escrita e a tradução da Bíblia

instantâneo e fugaz. Nossa teologia e missiologia também. Queremos zerar as listas de povos não-alcançados criadas pelos missiólogos e “proclamar” a salvação de Cristo a todos, nos tornando a primeira geração na história que realmente alcançou o mundo inteiro. Não importa se reduzimos o conceito da salvação a um mero aceitar Jesus. Se esses povos que alcançamos continuam nas trevas da falta de direitos civis, no isolamento cultural, reduzidos a si mesmos, impedidos — também por causa de sua condição ágrafa — de contribuir com o mundo de fora.

A Bíblia não é parte de uma máquina religiosa impositiva. O acesso à Bíblia é acesso à vida, à reinvenção cultural, à redenção da mulher, à valorização do indivíduo diante do coletivo e muito mais. A escrita não destrói culturas tribais nem a romântica tradição oral; ela continua sendo hoje o único instrumento de cidadania, no sentido mais básico da palavra.

Infelizmente, a consequência de nossa missiologia da oralidade será o fim da missão de dar a escrita e a tradução da Bíblia a povos ágrafos. Deixo aqui o meu protesto, antes que seja tarde e abandonemos de vez a missão de levar a escrita e a Palavra aos povos do mundo.

Bráulia Ribeiro trabalhou na Amazônia durante trinta anos. Hoje mora em Kailua-Kona, no Havaí, com sua família e está envolvida em projetos internacionais de desenvolvimento na Ásia. É autora de Chamado Radical. [email protected]

Escrever ou não, eis a questão

D A L INHA DE FRENTE Bráulia Ribeiro

O acesso à Bíblia é acesso

à vida

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longo do Novo Testamento. Não há espaço para aprofundar o tema, mas basta notar que os milhares que foram batizados e se uniram à igreja em Jerusalém, como resultado de Pentecostes, se dedicaram ao ensinamento dos apóstolos (ou seja, ao ensinamento que os apóstolos haviam recebido de Jesus), junto com a comunhão, o partir do pão e a oração (At 2.42). O apóstolo Paulo se refere a esse mesmo ensinamento quando, anos depois, dá graças a Deus porque os crentes romanos já vieram a “obedecer de coração à forma de doutrina a que fostes entregues” (Rm 6.17). E também quando exorta aos crentes colossenses a que “como recebestes Cristo Jesus, o Senhor, assim andai nele, nele radicados, e edificados, e confirmados na fé, tal como fostes instruídos, crescendo em ações de graças” (Cl 2.6). Em ambos os casos, o apóstolo considera que há uma tradição apostólica cuja origem remonta a Jesus Cristo, uma tradição que se transmite e se recebe, e que serve como meio de edificação para os discípulos.

A missão da igreja é fiel ao propósito de Deus na medida em que se dirige à formação de discípulos que encarnem na vida diária o que Jesus Cristo ensinou a seus discípulos, ou seja, a tradição apostólica estabelecida no Novo Testamento para a formação de discípulos em todas as nações até o fim da história.

Traduzido por Wagner Guimarães

C. René Padilla é fundador e presidente da Rede Miqueias, e membro-fundador da Fraternidade Teológica Latino-Americana e da Fundação Kairós. É autor de O Que É Missão Integral? .

ensinamentos que eles receberam dele e têm a responsabilidade de transmitir à nova geração de discípulos. A pergunta é: a que conjunto de ensinamentos Jesus se refere?

Uma forma de responder é considerar o ensinamento de Jesus nos quatro Evangelhos, especialmente em Mateus, que registra a versão da Grande Comissão citando o que Jesus ordenou a seus discípulos. Mateus inclui cinco discursos de Jesus: o Sermão do Monte (capítulos 5 a 7), o discurso sobre a missão (capítulo 10), o discurso de parábolas (capítulo 13), o discurso sobre a disciplina na igreja (capítulo 18) e o discurso de despedida de Jerusalém (capítulos 23 a 25). Todos são concluídos com alguma variante da mesma frase: “Quando Jesus acabou de proferir estas palavras...” (7.28; 11.1; 13.53; 19.1; 26.1). Dos cinco discursos, o do Sermão do Monte é o que enfoca mais diretamente o ensinamento ético de Jesus. É provável que a igreja do primeiro século o tenha usado como um manual de instrução para os novos crentes de origem judaica, a fim de conseguir que a justiça deles exceda em muito a dos escribas e fariseus (Mt 5.20). Ou, em outras palavras, a fim de fazer os cristãos colocarem em prática a justiça de Jesus Cristo, já que, como afirma Dietrich Bonhoeffer: “A ação segundo Cristo não se origina em algum princípio ético, mas na própria pessoa de Jesus Cristo”, a Palavra de Deus feita carne.

A importância que a igreja do primeiro século deu ao que Jesus ensinou a seus discípulos é vista ao

A formação de discípulos (parte 3)

A meta na formação de discípulos é que eles aprendam a obedecer a tudo o que Jesus Cristo ordenou a seus próprios

discípulos. Como vimos, sem a obediência à vontade de Deus, revelada em Jesus Cristo, não há discipulado cristão verdadeiro. Como diz Jesus: “Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus” (Mt 7.21).

Assim, quando Jesus comissiona discípulos, mandando que façam discípulos que aprendam a obedecer tudo o que ele lhes mandou, ele pressupõe que há um conjunto de

M ISSÃO INTEGRAL René Padilla

A missão da igreja é fiel ao propósito de Deus na medida em que se dirige à formação de discípulos que encarnem na vida diária o que Jesus Cristo ensinou a seus discípulos

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38 ULTIMATO I Março-Abril, 201138 ULTIMATO I Março-Abril, 2011

Meu nome é Rosana, tenho 27 anos e estou muito abalada com as tragédias ocorridas no estado do Rio de Janeiro. Por favor, me diga, se Deus é bom, por que tanto sofrimento?

Rosana, acolho sua angústia. De fato, não temos como ficar indiferentes às dores do mundo, e não podemos deixar de chorar com os que choram, nem deixar de agir na direção de todos para atenuar ao máximo seu sofrimento. Sua questão é antiga, compartilhada por muitos filósofos e teólogos, e tratada de diferentes maneiras na Bíblia. Moisés explicou o sofrimento como resultado de quebra da Lei de Deus (Dt 28). O livro de Jó, como um confronto entre Deus e o diabo, ou o bem e o mal, tendo a história e a trama da vida humana como arena. Salomão, no Eclesiastes, como contingência do mundo, isto é, afirmando que nem tudo o que acontece tem um propósito definido (8.12-14). O profeta Oseias diz que “quem semeia vento, colhe tempestade” (8.7). Jesus diz que coisas boas e ruins acontecem com justos e injustos, e não necessariamente se explicam pelos pecados ou virtudes de uns e de outros: “Meu Pai que está nos céus [...] faz raiar o seu sol sobre maus e bons e derrama chuva sobre justos e injustos” (Mt 5.45); “Contaram a Jesus que Pilatos misturara o sangue de alguns galileus com os sacrifícios deles. Jesus respondeu: ‘Vocês pensam que esses galileus eram mais pecadores que todos os outros, por terem sofrido dessa maneira? Eu lhes digo que não! [...] Ou vocês pensam que aqueles dezoito que morreram, quando caiu sobre eles a torre de Siloé, eram mais culpados do que todos os outros habitantes de Jerusalém?’” (Lc 13.1-5). O apóstolo Paulo, por sua vez, associou o sofrimento com o fato de habitarmos

C O T I D I A N O — O L E I T O R P E R G U N T A

um mundo cativo do mal, que vive a esperança da redenção (Rm 8.18-23). Creio que todas essas são explicações possíveis e complementares. Porém, creio também que não devemos ficar julgando e relacionando cada situação específica com uma causa direta. Isso escapa a nossa possibilidade de discernimento e nos desvia das coisas que são realmente importantes, a saber, a confiança em Deus em toda e qualquer situação, e as ações de compaixão e solidariedade para com os que sofrem.

Meu nome é José Roberto, tenho 58 anos e gostaria de saber a diferença entre religião e espiritualidade.Caro José Roberto, sua questão me remete a um dos meus assuntos prediletos. A maioria das pessoas confunde os termos e por essa razão faz julgamentos equivocados a respeito da experiência religiosa. A espiritualidade pode ser compreendida como atributos do espírito: autoconsciência, consciência, volição, emoção e razão, e também como virtudes do espírito: justiça, compaixão, solidariedade, capacidade de perdoar e se sacrificar por amor, por exemplo. Todos os seres humanos têm espiritualidade,

Ed René Kivitz

Ed René Kivitz é pastor da Igreja Batista de Água Branca, em São Paulo. É mestre em ciências da religião e autor de, entre outros, O Livro Mais Mal-Humorado da Bíblia.

isto é, são igualmente dotados dos atributos e expressam as virtudes do espírito em maior e menor grau. Já a religião é um conjunto de crenças, ritos e rituais, e regras morais, geralmente relacionadas com alguma divindade. As cinco maiores religiões do mundo são budismo, hinduísmo, judaísmo, cristianismo e islamismo. As definições indicam, portanto, que a espiritualidade não é uma prerrogativa de quem tem religião, nem mesmo apenas de quem é cristão. No cristianismo, entretanto, a espiritualidade, no sentido de virtudes do espírito humano, está relacionada com o fruto do Espírito Santo: amor, alegria, paz, paciência, amabilidade, bondade, fidelidade, mansidão e domínio próprio (Gl 5.22-23). Isso nos faz concluir que, infelizmente, apesar de sua experiência religiosa, muitos cristãos têm sua espiritualidade pouco desenvolvida. Em síntese, espiritualidade é uma dotação humana universal, enquanto religião é uma experiência pessoal e particular. No caso dos cristãos, a experiência religiosa é a maneira que implica crenças, rituais, e códigos morais, como rendemos nosso espírito ao Espírito de Deus. Nesse sentido, nossa religião (em tese) favorece nossa espiritualidade.

Envie sua pergunta para [email protected]

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N OVOS ACORDESCarlinhos Veiga

Há tempo... KilttKilttConheci o Kiltt na década de 90, em minhas andanças por Campina Grande, a “Rainha da Borborema”, terra fértil de artistas. O nome Kiltt vem das iniciais das integrantes do quinteto vocal original. Apesar de a formação atual ser praticamente outra, segue desde seu começo sob a batuta do “maestro” Vandilson Morais. As músicas são quase todas dele, algumas em parceria com Lais, sua esposa, e Selma Scheneweiss, integrantes do grupo. Daniel Maia, antigo parceiro de Vandilson, também divide algumas autorias. Aliás, essa dupla tem belíssimas canções gravadas por gente conhecida. As influências da MPB são claras neste trabalho. Destaques para o lindo samba “Tempo”, o xote “Perdão consolador” e “Canção de um coração feliz”. Para mais informações, (83) 3321-2566 ou [email protected]. Vida longa ao Kiltt!

Pai Nosso Marcos Neves e Roberto DiamansoMarcos Neves foi quem apresentou a sonoridade da viola caipira à igreja brasileira por meio das duas edições do Viola Louvadeira. Diamanso é o conhecido e premiado músico regionalista nordestino. Imagine só juntar as duas “feras” num mesmo CD. Apesar de ser uma produção sem grandes arrojos, Pai Nosso é de uma riqueza imensurável. Foge do lugar-comum e trata de assuntos relevantes para uma fé coerente neste mundo vivente. Fala da transposição do Rio São Francisco (“Canastra do São Francisco”) e da dignidade do envelhecer (“Força e beleza”). Até canção para crianças (“Gideão”) e um clássico de Charles Chaplin (“Sorri”) você encontra lá. Bãodemaisdaconta! O projeto gráfico é de América Diamanso e a arte final, de Eliene Bizerra. Para adquiri-lo, entre em contato com [email protected].

Não vou andar sozinho Alann MarinoEsse é o primeiro CD de Alann Marino. E ele caprichou na produção: o projeto gráfico de Marcos Magalhães está bonito e harmonioso. Musicalmente, teve todo o cuidado; convidou músicos tarimbados, como João Alexandre, Felipe Silveira, Osmário Marinho,

Hilquias Alves, entre outros, além de contar com as participações especiais de Gerson Borges e Tiago Vianna. O repertório, bem escolhido, é quase todo de sua autoria; a única exceção é o histórico hino “Mais perto quero estar”, num arranjo moderno, pop, com efeitos e requintes eletrônicos. Não vou andar sozinho foi gravado nos Estúdios Paulínia (SP) e no Tema Produções (São Bernardo). A mixagem e a masterização foram de João Alexandre, no estúdio Voz e Violão. A produção executiva é de Regina Marino e do próprio Alann. Contatos: http://alannmarino.wordpress.com.

Março-Abril, 2011 I ULTIMATO 39

Notas de passagem

Novidades neste mês. Preparando-me para o lançamento do meu primeiro DVD, Chão, gravado na cidade histórica de Pirenópolis (GO), reformulei o site www.carlinhosveiga.com.br. A partir de agora, ele será exclusivamente voltado para divulgar meu trabalho musical. O site em parceria com a Ultimato passa a ser o

www.novosacordes.com.br. Nele você encontra meu blog, podcasts, artigos e tudo o mais ligado a esta seção e ao meu ministério. Conto com uma visita sua!

O Som do Céu 2011 está chegando com muita coisa boa! Será entre 17 e 24 de abril, no acampamento da MPC em Belo Horizonte. Haverá gravação ao vivo do CD de

GersonBorges, show comemorativo aos 30 anos de carreira de Jorge Camargo, lançamento dos CDs da Carol Gualberto e do Crombie, além da participação de muita gente boa! E no espaço Arte e Céu, “A obra de Gladir Cabral sob outros olhares: literatura dançada, ilustrada e interpretada”. Mais informações, www.mpc.org.br.

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Manu Magalhães

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Conhecendo Deus na criação

M EIO AMBIENTE E FÉ CR ISTÃ Marina Silva

páginas de cada nova edição.Minha contribuição à Ultimato

será feita no espaço das relações do ser humano com a natureza. Uma temática que transita em contexto complexo, pois a cultura material produzida por nossa civilização, até o momento presente, vai dos artefatos da nanotecnologia às grandes hidrelétricas e plataformas de extração de petróleo. As atividades humanas vão do cultivo agrícola braçal em remotos sertões à criação de sistemas cibernéticos de comunicação de dados em escritórios sofisticados de grandes corporações em centros financeiros mundiais. E nossa produção simbólica se estende de uma simples canção de ninar a tratados de física quântica, astrofísica etc.

É um universo gigantesco resultante de um processo histórico de milênios, em que podemos observar como o ser humano se comportou em seu ambiente. Como extraiu recursos naturais, como os processou, que resíduos gerou e como lhes deu uma destinação final.

Nós, cristãos, relevante parte da população humana no planeta, temos em nosso livro sagrado toda uma orientação para nos conduzirmos, pois acreditamos que Deus deixou-nos orientações claras sobre conceitos e responsabilidades para com a terra, a casa que nos deu para morar (Sl 115.6).

A escritora cristã Landa Cope, em seu livro Modelo Social do Antigo Testamento, diz que podemos conhecer Deus pelas informações contidas na criação, na história e em sua Palavra. A mesma autora afirma que o mundo material é regido por Deus por meio de

Vejo a revista Ultimato como um projeto editorial que cultiva um profundo respeito pela diversidade de visões doutrinárias que

povoa o universo religioso cristão. Tal característica, que admiro, me faz sentir honrada em, daqui por diante, ocupar regularmente uma página desse veículo.

Não posso deixar de registrar também a alegria de compor um grupo de articulistas com elevada estatura intelectual, como a que aparece nas

leis fixas.Essas duas afirmações são base para

interessantes reflexões sobre a forma como os cristãos pensam — ou não pensam — as questões ambientais.

A maioria de nós ainda tem dificuldade de servir, honrar e conhecer Deus na criação. No entanto, o primeiro livro da Bíblia, o livro de Gênesis, trata das origens, de como cada coisa foi criada, como tudo que antecedeu a criação do homem veio numa sequência lógica para sustentar-lhe a vida e, numa reciprocidade responsável, ser cuidado por ele.

A ideia de que o mundo material é governado por Deus ocorre pouco aos cristãos, pois não há entre nós a tradição de buscar conhecer as Leis de Deus para o mundo e muito menos de ficarmos atentos para não transgredi-las. As ciências da natureza são uma atividade secular que geralmente não chama a atenção dos cristãos, exceto se forem profissionais dessa área. Muitas vezes há até certa briga com a ciência, como se essa fosse uma atividade ateia que busca se opor ao teísmo. Como cristãos, acreditamos que a ciência descobre a engenhosa graça da inteligência de Deus e que as chamadas leis da natureza são regras que organizaram o mundo sucedâneo ao estado caótico da terra que era “sem forma e vazia” (Gn 1.2).

Convido todos os leitores para uma jornada de reflexão sobre a percepção da nossa responsabilidade como cristãos no que tange às demais formas de existência e de vida em nosso planeta.

Marina Silva é professora de história e ex-senadora pelo PV/AC.

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A ciência descobre a engenhosa graça da inteligência de Deus e as leis da natureza são regras que organizam o mundo sucedâneo ao estado caótico da terra que era sem forma e vazia

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Talvez, como Ester, estejamos no Egito para um momento como este

grupos por toda a cidade. Como equipe de liderança, estamos tentando formar grupos de ação e organizar esforços para responder às necessidades médicas, para participar na limpeza da cidade (há uma enorme quantidade de lixo acumulado), e também para coordenar o tráfego, já que todos os agentes de trânsito deixaram seus cargos e as ruas se transformaram num caos total.

As pessoas de nossa igreja estão sendo incentivadas a corajosamente ajudarem nas

necessidades práticas. No entanto, precisamos do seu apoio em oração devido à instabilidade da situação.

Ore pela segurança da igreja e pela coragem do nosso povo (talvez, como Ester, estejamos aqui para um momento como este), pelas novas relações que estão surgindo — membros de nossa igreja estão reunidos com alguns dos seus vizinhos pela primeira vez.

Ore também para que cada um de nós seja uma fonte de paz e esperança, em contraste com os sentimentos dominantes nas ruas, que são de raiva e medo. Muito obrigado por sua amizade e amor.

* Texto escrito pelo pastor de uma grande igreja em Cairo, em meio à onda de manifestações inéditas do povo egípcio no início de 2011. Traduzido com permissão.

Em um momento como este*

Nos últimos meses, o Senhor havia falado claramente e muitas vezes para nos prepararmos

para o que estava por vir. Não sabíamos o motivo nem poderíamos ter imaginado a magnitude desta situação!

Nossas reuniões de oração se intensificaram nos últimos três meses, acompanhadas de quarenta dias de jejum, que foram até o fim do ano. Mais de 1.200 pessoas participaram. Ouvimos muitas mensagens proféticas sobre o que estaria por vir — palavras claras, indicando que uma enorme mudança estaria chegando em 2011. Na noite de Ano Novo, uma palavra clara baseada em Êxodo 34.10 veio até nós, dizendo que em nossa terra aconteceriam coisas sobre as quais ninguém jamais ouvira falar.

A sensação que tínhamos era semelhante à de Ester: uma mistura de viver um tempo de grande perigo e, ao mesmo tempo, de grande vitória; e a lembrança de como o Senhor a colocou naquela posição num momento como aquele (Et 4.14).

Como disse, nunca poderíamos ter imaginado esta situação! Enquanto vamos às ruas com nossos vizinhos para proteger as nossas casas das multidões, continuamos de joelhos em oração — oramos em pequenos

C AMINHOS DA M ISSÃO

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44 ULTIMATO I Março-Abril, 201144 ULTIMATO I Março-Abril, 2011

R Recentemente, os membros de uma determinada igreja se

reuniram para eleger democraticamente seus presbíteros regentes. Todos receberam uma lista em ordem alfabética com o nome dos elegíveis (os maiores de 18 anos).

O número de mulheres presentes e prontas para votar era bem maior que o número de homens. Porém, por força da constituição desta e de outras denominações, na lista dos elegíveis não havia o nome de nenhuma mulher. Essa situação deve continuar? Esta entrevista discute o assunto e pretende levar o povo e as autoridades eclesiásticas a pensar e a repensar, não só com zelo, mas também com humildade. É provável que o maior obstáculo à ordenação de pastoras, presbíteras e diaconisas não seja a Palavra de Deus, mas o machismo. O entrevistado Waldyr Carvalho Luz é de inteira confiança por sua palavra, por seu longo magistério no Seminário Presbiteriano do Sul, em Campinas, SP, por sua vida e por sua idade (94 anos). Ele é autor da tradução clássica de As Institutas, de João Calvino, professor aposentado da UNICAMP e doutor em Filosofia do Novo Testamento pelo Princeton Theological Seminary.

Os cristãos contrários à ordenação feminina argumentam que Jesus escolheu somente homens para serem apóstolos e que o Novo Testamento não apresenta claramente mulheres em posições de autoridade. O que dizer?De mister faz-se observar, de início, que a questão da ordenança feminina às funções eclesiásticas (diaconato, presbiterato, ministério sagrado) nem sequer é ventilada através do Novo Testamento. Jesus, tanto no caso dos doze, como, quanto parece, na chamada Missão dos Setenta, aliciou apenas homens, como, aliás, era a norma no mundo contemporâneo. Se alguma outra motivação teve ele, não a explicitou. E conjecturar a esse respeito é irrelevante. Na Palestina dos dias de Jesus não haveria lugar para matriarcado e mulher em posição de autoridade, impensável aberração.

Waldyr Carvalho LuzE NTREV ISTA

Ordenação femininaNa ambivalência protestante, a ordenação feminina vai desde o veto até a prática

A chefia do homem na Bíblia é mera questão cultural?Na Bíblia, reconhecidamente, conferem-se ao homem, em detrimento da mulher, autoridade e mando incontestáveis. Não resulta este predicamento de princípios ontológicos ou metafísicos, simples questão de exercício de poder, matéria de cunho puramente cultural. Mercê da obra redentora de Cristo, cancela-se a disposição vigente e implanta-se um regime de paridade e equalização, abolidas as distinções prévias, homem e mulher a fazer jus ao mesmo status em Cristo. Valida-se, pois, o argumento culturalista.

Os defensores da posição antagônica ao ministério feminino ordenado parecem não considerar passagens como Joel 2.28-29 e Gálatas 3.28. Certo?Arroubos poéticos e eclosão de júbilo de um momento especial, não asserção normativa de princípio estabelecido, Joel 2.28-29 e Gálatas 3.28 não são passagens pertinentes à questão da ordenação feminina.

A ordenação pastoral deve ser precedida pelo dom ministerial. A mulher pode receber esse dom?Normativamente, a ordenação pastoral pressupõe o dom (ou vocação) ministerial. Seja no país, seja, e especialmente, no exterior, há muitas mulheres tendo sido, e estão sendo, ordenadas ao múnus pastoral, cujo desempenho confirma, indiscutivelmente, possuírem o indispensável dom. Portanto, a toda mulher portadora do dom, ou seja, devidamente vocacionada, a ordenação pastoral deve ser prontamente conferida. Interessante é notar-se que nossa própria Igreja Presbiteriana do Brasil, por breve período, já teve diaconisas devidamente ordenadas. Descontinuou a prática em vista da reação provocada na região nordestina, a ameaça pairando de divisão denominacional. A paz e a unidade da Igreja, graças ao Senhor, prevaleceram, felizmente.

A ordenação pastoral deve ser vista como o exercício do dom do Espírito Santo dado à Igreja ou como um ofício eclesiástico dado a uma classe de pessoas?Em última instância, a postulação da ordenação pastoral é ambivalente, por isso que só pode ser encarada como dom conferido à Igreja, mas exercido por um corpo de oficiais possuídos de prerrogativas únicas e exclusivas. Também o pode como função eclesiástica outorgada a um núcleo ou casta de elementos contemplados com um múnus peculiar,

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mas encaixado no âmbito da comunidade global. Não há, propriamente, polaridade, antes, pelo contrário, conjunção.

Por trás da não-ordenação de mulheres para o diaconato, o presbiterato e especialmente o ministério pastoral, não estaria escondida uma cultura machista?Aos espíritos mais atilados, a relutância à ordenação de mulheres ao diaconato, ao presbiterato e, especialmente, ao ministério pastoral, não estaria bem escondida, pelo contrário, escancaradamente manifesta a indisfarçável cultura machista. Nada de causar espécie. Por séculos, aliás, milênios, no perpassar das civilizações em todos os quadrantes do orbe, com raríssimas exceções, o homem tem gerido as atividades humanas de modo quase absoluto, de tal sorte que o mando se lhe tornou como que parte de sua própria natureza, a mulher marginalizada, mas ao que parece resignada, ajustada e adaptada à situação, de que tira o proveito possível. É de lamentar-se que a Igreja, baluarte da defesa dos direitos humanos, que lhe deveria esposar a causa, capitulou, servindo aos ditames do machismo. Até mesmo cristãos tidos como exemplares na fé e na conduta cedem a esse predicamento. Não haja dúvida: o machismo entorpece a consciência, embota os sentimentos, degrada a razão. A mulher, porém, está rompendo os grilhões desse predicamento e o haverá de superar. É, entretanto, uma tarefa ciclópica, de tal viés, que Hércules nenhum pode botar defeito. E o dia virá, ainda que distante, quando o machismo será somente uma triste lembrança de tempos idos... para nunca mais voltarem.

Os maiores impedimentos à ordenação das mulheres são bíblicos (exegéticos) ou culturais? Alguém era ordenado na Igreja Primitiva?No âmbito da Igreja Primitiva, a ordenação feminina era matéria fora de cogitação, assunto nem sequer ventilado, mulher nenhuma reivindicando esse direito. Contudo, há-se de ter em conta que era uma atitude passiva, dir-se-ía de alienação, ao passo que a cultural era ativa, até agressiva. Eleito e investido como presbítero, o cidadão adverso à ordenação, naturalmente, iria manter seu ponto de vista. Portanto, é de admitir-se que o elemento cultural era, na realidade, o mais influente. No que diz respeito à ordenação de ministros ou oficiais na Igreja Primitiva, é de reconhecer-se que, em tese, apesar das variações locais e temporais, há, certamente, plena correspondência ao que hoje vigora em nossas igrejas, respeitadas as diferenças denominacionais.

As mulheres ocupavam quais ofícios ou funções na Igreja Primitiva? Há exemplos? Havia limitações?Na Igreja Primitiva não se atribuíam a mulheres ofícios e funções caracteristicamente eclesiásticas. As nobres damas que se distinguiram através do Novo Testamento sobressaíram somente por suas virtudes e qualidades pessoais, não por titularidade funcional. Assim, Dorcas é renomada por sua benevolência; Phebe, por serviço e representação; Lídia, por hospitalidade e colaboração com a ação missionária; Priscila, associada ao esposo, Áquila, orientação e instrução; Marta e Maria, as amadas irmãs, afeto, devotamento, carinho; Maria, a mãe de Jesus, que Lucas exalta eloquentemente no Magnificat, piedade

e devotamento maternal, contudo, não superior em virtude e mérito a outras piedosas mulheres, mesmo porque não possui qualidades acima das demais, meramente agraciada pelo Senhor; sobretudo, Maria Madalena, cujo relacionamento com Jesus tem dado margem a blasfemas insinuações, devotamento, gratidão, reconhecimento o mais profundo. Limitados, mas exemplos de piedade e fé para todos os tempos.

Se é o Espírito que dá dons para a Igreja “como lhe apraz” (1Co 12.11), estaríamos desprezando ou desrespeitando o próprio Espírito ao delimitar categorias para os diversos dons?Obviamente, desejável seria que os dons do Espírito fossem distribuídos sem delimitações de idade, sexo, classe social, grau de instrução, situação econômica, nacionalidade, cor, língua, origem, raça, visual, aparência. Verdade é que isso não significava que determinado talento ou dom não pudesse ser limitado a uma categoria especial, não extensivo a todos indiferentemente. É o que alegam os que se opõem ao ministério feminino. Há, porém, que perguntar-se: qual razão se pode, legitimamente, invocar para essa exclusão? Que o Espírito assim agiria por mero preconceito ou capricho, seria temerário afirmar. Portanto, não transparece motivação racional para justificar essa medida discricionária. Razão, pois, assiste aos que veem esse posicionamento como desprezo ou desrespeito ao Santo Espírito. Alijar, sumariamente, a mulher da participação no dom ministerial não se afigura ordenança divina, mas, ao contrário, deplorável mostra do preconceito humano.

A proibição da fala de mulheres (1Co 14.34) é paradigmática para a exclusão nos ministérios da igreja ou Paulo estaria tratando de um problema específico, que não deveríamos considerar normativo hoje?Em 1 Coríntios 14.34, a que se devem associar, também, as Pastorais e o capítulo 5 de Efésios, Paulo não tem em mira o ministério feminino, matéria fora de cogitação na Igreja Primitiva. A injunção paulina visa à honorabilidade, respeitabilidade, dignidade, autoridade do marido, que, nos usos e costumes da época, exigiam absoluto silêncio da mulher nas assembleias e reuniões culturais da Igreja. No versículo seguinte (1Co 14.35), diz o Apóstolo que a mulher falar na Igreja era vergonhoso, na tradução de Almeida. O termo grego no texto é aischrón, que tem, entre outras, a acepção de indecente, impróprio, indigno, torpe, isto é, que traria opróbrio, desprestígio, desonra ao marido. Não se tratava, pois, de injunção teológica, mas de simples questão, digamos, de etiqueta a salvaguardar a honorabilidade do marido. Os demais autores do Novo Testamento, quanto parece, não foram tão radicais como Paulo. Era ele, como pretendem certos críticos, misógino, ferrenhamente adverso às mulheres? É questão discutível. Mas, não haja dúvida, gradativamente, foi a mulher adquirindo influência e representatividade maior.

A inclusão da mulher nos ministérios da igreja é sinal dos fins dos tempos que começaram com Jesus?A lenta, mas progressiva inclusão da mulher nos ministérios da Igreja é a resultante lógica e natural da operação iluminadora

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do Espírito Santo a superar limitações e barreiras descabidas que entravam a obra do evangelho. Não se reveste de caráter escatológico, nem é sinal de tempos ou do fim do mundo. É simplesmente, o produto da incoercível dinâmica do evangelho na implantação do reino de Deus ao longo da história. A inclusão da mulher na obra da Igreja é um fator positivo e abençoado, que a fortalece e energiza, que deve ser acoroçoada na mais ampla medida, jamais limitada, muito menos reprimida ou contida. Se à mulher conferisse a igreja plena paridade com o homem nas funções eclesiásticas e na obra do evangelho, salta à vista que a implantação do reino de Deus entre nós seria inegavelmente mais vultosa e sólida. Não haja dúvida, quanto maior a participação feminina nas ações da igreja, tanto maiores serão as bênçãos advindas à Causa.

Muitas mulheres, apesar de fazerem um trabalho missionário pioneiro em lugares difíceis, não têm credencial para batizar e celebrar a Santa Ceia. Quando o trabalho se firma, ela vai para outro posto difícil e um obreiro vem para o lugar dela. Isso não é injusto?No sistema de governo eclesiástico presbiteriano tradicional, segundo o elaborou o patriarca da fé, o escocês John Knox, ao ministro se conferem determinadas prerrogativas especiais, exclusivas, intransferíveis, tais o título de reverendo, a ministração dos sacramentos reconhecidos (batismo e Ceia do Senhor), e a impostação da bênção apostólica, aparente resquício de sacerdotalismo estranho ao espírito laicizante da

Reforma. Era uma forma refinada e seletiva de concentrar poderes e atribuições eclesiásticas a elementos qualificados e prestigiados na igreja. Os chamados leigos eram excluídos desse privilégio. Não era apenas a mulher, mas toda e qualquer pessoa não ordenada clericalmente. Evangelistas, catequistas, missionários, pregadores ditos leigos, professores, seminaristas e até licenciados, não gozavam dessas atribuições. Por outro lado, estender individualmente a todo obreiro essas funções restritivas ensejaria, sem dúvida, lamentável vulgarização dos mistérios sagrados, competições mesquinhas, personalismos doentios e até exploração por parte de indivíduos oportunistas. Como vaticinava o poeta latino Ovídio, em outro contexto: minima de malis, isto é, dos males os menores. Ambas as formas de governo têm inconvenientes inevitáveis, mas a seletiva se afigura menos problemática, logo, é de preferir-se.

Quando a mulher se mostra muito eficiente no ministério, ela pode ser excluída por supostamente ameaçar a liderança masculina. Como evitar tal comportamento antiético?Mulheres superdotadas, de notório espírito de liderança e notável capacidade de ação, não são raridade em nossas igrejas. Normativamente, elas desenvolvem seus talentos e dons espontaneamente, sem chancela oficial ou entendimento formal com a direção da igreja. Gozam de larga influência e são cercadas de admiração incontestável e o apoio de numeroso círculo de adeptos e simpatizantes. O problema é, especialmente

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no caso das mais personalistas, que passam a formar uma facção, ou partido, ou, mesmo, um poder paralelo, livre e independente. Obviamente, o pastor, cioso de sua autoridade e posição, vê no caso um desafio à sua liderança e procura neutralizar ou eliminar a rival incômoda; marginalizando-a. O que se requer é cooperação, não competição. Para tanto, ambos precisam ser humildes, sensatos, prudentes, leais, a buscarem o bem da igreja e a glória de Deus. A ação da mulher consagrada será indirimível bênção à igreja e à expansão do evangelho.

Se o ministério pastoral é para ser exercido só por homens, como explicar a participação de mulheres abençoadas e abençoadoras na Igreja de Cristo nos últimos cinquenta anos?A participação de mulheres em funções eclesiásticas, inclusive no ministério pastoral, nos últimos cinquenta anos, em não poucas denominações, em absoluta paridade com os homens, na Igreja de Cristo ou o chamado mundo evangélico é um fato de excepcional relevância e indizível alcance. Mentalidades menos atualizadas, conservadores radicais, veem o fato como evidente decadência da fé, lamentável secularização ou mundanização da igreja, apostasia e corrupção do evangelho, enquanto espíritos mais atualizados e arrojados o encaram como inegável operação do Espírito Santo na implantação do reino de Deus. Não paira dúvida, a equiparação das mulheres aos homens nas funções eclesiásticas não apenas enriquece o quadro operacional da igreja, dinamiza-o e amplia significativamente o alcance de sua bendita operação.

Dos três maiores grupos cristãos — Igreja Católica Romana, Igreja Ortodoxa e Igreja Protestante — qual é o mais ferrenhamente contrário à ordenação feminina?Dos três maiores grupos que integram a cristandade, em última análise, o mais infenso à ordenação feminina é o Catolicismo Romano. O sacerdócio somente a homens se confere e a pirâmide hierárquica dos níveis superiores é integrada por prelados que jamais podem emitir qualquer opinião discrepante. Embora à mulher se confiram certas funções subalternas, aspirar ao sacerdócio e à prelazia é impensável, quiçá blasfemo. No ortodoxismo, que rompeu com o catolicismo em 1054, tão solene em seus rituais e tocante em seu majestoso cerimonialismo, a lutar pela sobrevivência em uma inibidora política tiranicamente hostil, não haveria clima para questões desta natureza. No protestantismo, ou, melhor, no mundo evangélico da atualidade, a gama de opiniões se estende desde o crasso radicalismo ultraconservador até a fluidez do liberalismo amorfo e caótico. Destarte, na ambivalência protestante, a ordenação feminina vai desde o veto terminante até a prática indiscriminada.

Das denominações históricas brasileiras, qual é a mais fechada à ordenação feminina?Possivelmente, em nenhuma das denominações históricas brasileiras haja unanimidade, seja favorável, seja desfavorável à ordenação feminina. Em alguns casos, os que discordam da posição oficial se acomodam, passivamente, em outras, reagem, em graus variados, mais ativamente. Assim é que, na

atualidade, denominações tais como a Luterana, a Metodista, a Episcopal, a Reformada, a Presbiteriana Independente, a Presbiteriana Unida, admitem o ministério feminino; a Batista e a Congregacional, menos centralizadas, ensejam diferentes posturas, segundo as circunstâncias; as igrejas de cunho conservador ou fundamentalista, opõem-se vigorosamente. A Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB), porém, é, oficialmente, a mais radicalmente infensa. Contudo, acentuado e crescente é o impacto em nossa grei, daqueles que propugnam pela reversão dessa rígida postura.

A proliferação aparentemente desordenada da ordenação feminina, em alguns casos só por serem esposas de pastores, dificulta a análise da questão?A ordenação feminina às funções eclesiásticas oficiosas nas igrejas do país não suscitou a comoção que se antevia, nem teve o impacto que se alardeava. As mulheres não se alvoroçaram, mostraram-se algo tímidas, comedidas, como que receosas de ferir suscetibilidades masculinas. E a vida das igrejas continuou com plena tranquilidade, sem confrontos nem sobressaltos. E a obra do evangelho no país ganhou o valioso concurso da mulher consagrada e piedosa. O estudioso da questão, arguto e criterioso, não enfrentará óbices em sua análise da matéria.

Algumas denominações, além de não ordenarem mulheres para o ministério pastoral, não ordenam mulheres para o ofício do presbiterato e do diaconato. Qual sua opinião?A cristandade se polariza entre os exclusivistas, que, sem espasmos de consciência ou pruridos de remorso, só ao homem conferem as prerrogativas e funções eclesiásticas, e os inclusivistas, que, estendem à mulher esses direitos, em paridade com o homem. Têm estes visão mais iluminada, sentimentos mais humanos, consciência mais sensível, propósito mais racional, justo, nobilitante. Não há tergiversar: estes agradam mais a Deus e melhor o servem.

Os que são contrários à ordenação feminina argumentam que, nos três primeiros capítulos do livro de Gênesis, em especial 2.18, fica claro que a mulher foi criada como simples auxiliar do homem e nunca será igual em autoridade e gestão. O que dizer?Exegetas de grande nomeada, reconhecida competência, indiscutível probidade, e teólogos da mais elevada eminência, inegável saber e nobreza de espírito, esposam esse parecer, com distinção e dignidade incontestes. Contudo, é preciso reconhecer que, no âmbito dos que deles discordam há figuras do mais sólido gabarito e inegável saber, de probidade inatacável. Tal sendo a polaridade, um impasse que se afigura insolúvel, dir-se-á que é uma questão aberta, que requer neutralidade ou preferência puramente pessoal, não lógica ou racional. Isso, entretanto, não deve impedir que se busque adequada e procedente solução. O fulcro da questão é o teor de Gênesis 2.18. O texto bíblico retrata a mulher como ezer Keneghdô que nosso Almeida, versão atualizada e corrigida, traduz como auxiliadora que lhe seja idônea, fraseado sonoro, até elegante... mas, oracular, enigmático, ambivalente, vago, indefinido, tautológico. Dispusesse dos recursos que se fazem

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de mister, gostaria de examinar a Septuaginta, a Vulgata, as versões todas que nos fossem acessíveis, no afã de apreciar como traduziram a expressão hebraica e que sentido lhe atribuíram. O termo hebraico ezer é masculino, mais apropriadamente expresso, em acepção substantiva, não adjetiva, por auxílio, ajuda, socorro, tradução que, apropriadamente elimina o teor subordinativo, inferiorizante da versão corrente, como se pode perceber, com clareza, no sugestivo título Ebenezer, literalmente pedra de auxílio, jamais pedra auxiliadora. Por sua vez, o tríptico de termos hebraicos associados significa, literalmente: como diante dele, frase ambígua, que, naturalmente, se presta a variadas acepções. Todavia, como o próprio texto bíblico declara que, dentre os seres criados, não havia comparsa ou companheira à altura do homem, Deus formou a mulher e a deu ao homem por esposa e auxílio, complementaridade, completude, complemento, totalização de um todo a integrar, adição de parcela a somar, de sorte que homem e mulher conjugados constituem uma unidade integrada, não uma dualidade díspar, assimétrica e desigual. Nessa perspectiva, homem e mulher formam um elo, uno e indivisível, de plenos direitos e atribuições em pé de igualdade, respeitadas as diferenças, que não criam subordinação, desigualdade, redução de atribuições. Cada um desempenhará as funções a que a aptidão e a vocação lhe façam jus, pela graça de Deus. Destarte, a argumentação contrária à ordenação feminina, baseada nesta porção de Gênesis se mostra inteiramente

irrelevante, quando muito mera analogia, aliás, falaciosa, que não há invocar como base de argumentação lógica. Ademais, forçoso é reconhecer que o texto do Gênesis não se refere a posições e encargos eclesiásticos, questão a decidir-se, em outras bases. No transcurso deste questionário, suficientes ponderações evidenciaram que não há impedimento escriturístico a que se atribuam à mulher funções eclesiásticas hoje privativas do homem, medida que trará farta messe de bênçãos à igreja, além de justa, igualitária, sem preconceito. Com júbilo e gratidão, nossas igrejas celebrarão o precioso concurso de nossas ministras e pastoras, presbíteras e diaconisas, piedosas, reverentes e consagradas a servir ao Senhor, como, com reconhecido êxito, vem acontecendo em outras denominações evangélicas.

A Igreja Presbiteriana do Brasil, hoje tão resistente à ideia de ordenação feminina, acabará aderindo ao que tanto se opõe?Tudo parece mostrar que essa é a inevitável marcha dos acontecimentos, e a IPB, mais cedo ou mais tarde, terá de ceder à pressão dos fatos. E quanto mais cedo, tanto melhor. Então, una e coesa, militará a IPB, ao lado de tantas outras denominações na bendita cruzada da fé, no sagrado empenho da implantação do reino de Deus entre os homens, a maior necessidade deste mundo escravizado pelo mal.

Para aprofundar-se sobre o assunto, veja “O shibboleth do ministério feminino” (Revista Teológica do Seminário de Campinas. Campinas, n. 38, p. 55-65, ago. 1993).

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A perspectiva cristã

Escrevo este artigo com uma década de atraso, pois trata-se de um livro lançado em português no ano 2000. Foi necessário

que meu filho o descobrisse num sebo e me recomendasse com entusiasmo para que me despertasse para a obra do filósofo cristão espanhol Julián Marías. A Perspectiva Cristã (Martins Fontes, 2000) poderá ser de grande valor para todos que se interessariam por uma apresentação inteligente e atraente da fé cristã, escrita por uma pessoa de destaque no mundo acadêmico, em estilo acessível e sem tiques “igrejeiros”.

Publicado originalmente em espanhol em 1999, A Perspectiva Cristã afirma que o cristianismo trouxe uma visão da realidade que era inteiramente original e que afetou profundamente os povos cristianizados, mesmo as pessoas descrentes. Isso é esquecido pelo mundo ocidental secularizado, mas é muitas vezes percebido por pessoas oriundas do mundo islâmico, que contestam o suposto universalismo secular e, por exemplo, os conceitos vigentes de direitos humanos, os quais eles percebem como essencialmente influenciados pelo cristianismo e, portanto, inadequados para a comunidade muçulmana. Mesmo

Paul FrestonÉ TICA

assim, Marías afirma que a perspectiva cristã ainda “está perante nós como algo que é preciso conquistar”, um desafio permanente.

Em que reside a inovação radical do cristianismo, para Marías? Na encarnação de Deus em Cristo. Por isso, não se reduz a uma mera fase da revelação (como diz a visão islâmica de Cristo), mas representa algo totalmente único — a intervenção direta de Deus no mundo. Portanto, “a palavra-chave do cristianismo é o amor”. Primeiro, a afirmação de que Deus é, sobretudo, amor. Também, a própria criação é “um ato de amor efusivo que põe na existência realidades novas para serem amadas”. E mais, a encarnação também só se explica pelo amor: a imensa distância entre Criador e natureza é preenchida pelo vínculo amoroso, a distância se anula e o homem participa da vida divina. E a centralidade do amor na visão cristã decorre do fato de que a novidade do cristianismo não é o monoteísmo, e sim a Trindade — há amor em Deus mesmo, entre as pessoas da Trindade. Marías cita Miguel de Unamuno: “Uma pessoa isolada, a quem amaria? E se não ama, não é pessoa”. Porém, pensar as implicações disso tem sido difícil, porque temos tentado pensar Deus a

partir de conceitos gregos elaborados para pensar coisas. O melhor caminho é pensá-lo a partir do mais “próximo” conhecido, a pessoa humana.

Note-se, diz Marías, a ordem da famosa frase do Evangelho de João: o Verbo se fez carne (assumiu a condição humana) e habitou entre nós (assumiu a convivência em sociedade). As visões monoteístas do mundo podiam falar de um ser supremo único, porém distante; por outro lado, o politeísmo falava de deuses com biografias, mais compreensíveis. O inusitado do cristianismo é que mantém o monoteísmo moral, mas dá uma justificação para o elemento antropomórfico do politeísmo, pois a Pessoa divina assume a condição humana, com tudo que isso implica de historicidade. Ao pensar em Deus, “o cristão encontra o Filho, acessível, inteligível, com uma biografia”, com relacionamentos pessoais. Essa humanização de Deus resulta na deificação do homem, na vinculação permanente da condição humana à Divindade (já que o Cristo ressurreto ascende à direita de Deus Pai).

Marías, ao dizer que a referência cristã principal a Deus é como Pai, observa que “há já dois séculos se insiste na noção de fraternidade,

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ao mesmo tempo em que se elimina sua justificação”. Para falar de fraternidade, de direitos humanos, não basta imaginar uma mera “semelhança” entre todos os seres humanos, pois na realidade as diferenças que dividem a humanidade são evidentes. A “semelhança” não é total nem necessária. Por outro lado, o cristianismo estabelece um vínculo radical entre todas as pessoas, sem desconhecer as diferenças. O Novo Testamento menciona essa diversidade e, em vez de anulá-la, a supera pelo vínculo superior “do poder de se tornar filhos de Deus”.

Se Deus é amor, cabe ao homem a definição de “criatura amorosa”. Defini-lo como animal racional não capta o essencial da perspectiva cristã; melhor defini-lo como criatura amorosa. Aliás, a perda da consciência de ser criatura levou a uma “desestima da realidade”, à incapacidade de sentir-se grato a Deus e às pessoas significativas na nossa vida. Marías diz que “a infidelidade radical ao cristianismo é não se ver como criatura amorosa”, em solidariedade com os demais.

Como criatura amorosa, o homem é um empreendimento inacabado (Marías contrasta o “faça-se” instantâneo dos primeiros atos criadores no relato de Gênesis, com o “façamos o homem”). Como tal, o ser humano, numa frase memorável, “escolhe nesta vida breve quem pretende ser sempre”. Não que esteja sozinho; a Providência lhe faz “companhia”, não anulando a liberdade, mas dando esperança de que a realidade tenha um sentido para além das confusas e variadas ações individuais.

Marías afirma também que “o cristianismo consiste na visão do homem como pessoa”. A vida humana “não é coisa, é um acontecer, um drama projetivo”. A vida nos é dada¸ mas não feita, e sim por fazer. Diante das inúmeras possibilidades, tenho que decidir, e justificar minha decisão.

Porém, essa natureza essencialmente moral da vida, a liberdade com responsabilidade, “traz um peso que para muitos é excessivo”. Daí a tentação de todas as formas de determinismo, seja teológico, biológico, psicológico, social, econômico ou familiar (“nascemos de pais dos quais tem origem o que somos, mas de modo algum quem somos”). Por isso, uma das hostilidades mais fortes à fé cristã é à ideia de um Deus pessoal e à imagem do homem livre e responsável. Há homens que não podem “suportar” isso, e reduzem o homem a um organismo sem liberdade e responsabilidade, manifestando um estranho desejo de aniquilamento pessoal e vontade de extirpar a esperança nos demais.

Em vez disso, afirma Marías, o cristão se vê como alguém inconfundível, com nome próprio, amado por Deus, em convivência com os irmãos, livre e responsável, capaz de arrepender-se, projetivo e amoroso, e aspirando à sobrevivência. A essa sobrevivência Marías dedica boa parte do seu livro, consistente com a sua afirmação de que “a ressurreição é núcleo essencial do cristianismo”. Mas o importante é que essa ressurreição é “da carne”¸ ou seja, é a salvação da realidade inteira. Essa salvação é denominada por ele “vida perdurável” (melhor do que “vida eterna”, já que teve começo, mas esperamos que nunca termine). A vida neste mundo é “escolha da vida perdurável”.

Já que “a expectativa da vida perdurável é o núcleo essencial da perspectiva cristã”, a omissão dessa expectativa (tão comum hoje, até em círculos cristãos) é a “máxima infidelidade ao cristianismo”. Pior, ao contrário do que muitas vezes se pensa, a esperança no outro mundo ajuda os homens a darem valor a este mundo. Porém, o grande problema é que não desenvolvemos a capacidade de imaginar a vida perdurável, de desejá-la concretamente. Enquanto teólogos

ficaram na pouco compreensível “visão beatífica de Deus”, a imagem popular também carecia de atratividade (sentado em nuvens tocando harpa), esquecendo do dinamismo e individualidade da vida. Ocorre, portanto, um empobrecimento da vida, quando teria que se imaginar o contrário, um enriquecimento imenso. Em frases memoráveis, o autor fala da “prodigiosa variedade humana que faz cada pessoa ‘única’”, e é essa unicidade que se espera salvar-se na outra vida. A presença de Deus deve entender-se como “iluminação de toda realidade, em toda sua diversidade”. Na outra vida, “a multidão de variantes do humano terá de ser conservada, potenciada” (uma frase com implicações enormes para o estudo da antropologia e o que poderíamos chamar do sacerdócio de todas as culturas). Marías é poético ao tentar descrever o que isso significa: “A vida humana é projetiva, imaginativa¸ interpretativa, livre, dramática”; a vida perdurável será “a realização de trajetórias autênticas que não se cumpriram na vida terrena [...]. Nossa realidade pessoal, inteligente, amorosa, carnal, ligada às formas históricas, feita de projetos de vária sorte, articulados em trajetórias de desigual autenticidade, é a que há de perpetuar-se, transfigurar-se, salvar-se”. Por fim, “é preciso imaginar a vida perdurável, como realização plena de minha vida, com sua concretude, esperanças, pretensões [...]. O conceito de salvação precisa preencher-se de conteúdo e riqueza”, significando “salvar todo o valioso, todo o autentico”, o qual, em presença de Deus, longe de perder o valor (como muitos ateus e, infelizmente, muitos cristãos pensam), “adquirirá um valor incomparável”.

Paul Freston, inglês naturalizado brasileiro, é professor colaborador do programa de pós-graduação em sociologia na Universidade Federal de São Carlos e professor catedrático de religião e política em contexto global na Balsillie School of International Affairs e na Wilfrid Laurier University, em Waterloo, Ontário, Canadá.

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Ao terminar o culto, notei um rapaz, aparentando não mais que 25 anos, entre os que desejavam conversar comigo. Trajava

um terno escuro, gravata sóbria e camisa bem engomada. Era meio-dia. O calor insuportável dava uma sensação de desconforto só em vê-lo apertado sob tantas camadas. Ele queria conversar sobre teologia. A hora era imprópria e havia mais algumas pessoas pedindo atenção. Sugeri que me procurasse durante a semana para um bate-papo mais calmo. Dito e feito. Na quarta-feira à tarde, José Antônio (nome fictício) estava em minha sala, novamente trajado com seu paletó grafite.

Logo nas primeiras frases, ficou claro que ele não fazia perguntas.

Pela entonação dos questionamentos, bastava trocar os pontos de interrogação por exclamação e eu era severamente exortado. Vez por outra colocava o dedo em riste e pontificava como se acabasse de levantar da cadeira de Moisés. Tive pena daquele rapaz, tão jovem e tão caduco. Não julgo suas verdades, apenas me inquieto com sua postura rancorosa, anacrônica e trancada ao diálogo.

Os estudiosos deste tempo são unânimes em afirmar que experimentamos o recrudescimento do fundamentalismo. Não trato o fundamentalismo como uma categoria teológica, mas como uma atitude comportamental. O mundo experimenta uma crescente animosidade nas discordâncias. As pessoas se entrincheiram com

Ricardo GondimR EFLEXÃO

seus argumentos, não ouvem o arrazoamento dos outros e, ao se sentirem ameaçadas, partem para algum tipo de violência. O fundamentalismo tem se mostrado exuberante na radicalização ideológica dos Estados Unidos, tanto da esquerda como da direita, no isolamento de facções islâmicas e nos preconceitos entre movimentos cristãos, no xenofobismo europeu e nos nacionalismos africanos.

O fundamentalismo não respeita fronteiras de qualquer espécie — geográficas, cronológicas ou culturais. Um jovem, que ainda não amadureceu sua reflexão, pode ser mais intolerante que um idoso, já bem enraizado em suas convicções. Eu ouvia o José Antônio e pensava: “Este rapaz lê pouco e, quando o faz, nunca terá

Pensando fora da caixa

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vanguardista. Ele estava à frente do seu tempo quanto à valorização da mulher e o trato com a riqueza.

Minha cartada final, que escandalizou até os fios de cabelo de José Antônio, foi quando eu disse que nem ele nem eu podemos nos arvorar de ter toda a verdade. Jesus afirmou: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Jo 8.32). Porém, há pelo menos três verdades para conhecermos, todas inexauríveis: a pessoal, subjetiva, a externa, do mundo, e a de Deus, transcendente. Quem se aventurar a conhecer a si, o mundo que o rodeia e a Deus, deve saber que nunca chegará à sua meta.

Abracei afetuosamente José Antônio quando nos despedimos, mas temi por sua alma. Vi que ele corria o sério risco de perpetuar uma fé amarga, obtusa e, crescentemente, isolada. No escanteio e sem credibilidade, seu cristianismo parecerá com o sal que perdeu seu sabor. Torço para que a geração que me sucederá seja tão assustadoramente revolucionária como foi Jesus de Nazaré.

Soli Deo Gloria.

Ricardo Gondim é pastor da Assembleia de Deus Betesda no Brasil e mora em São Paulo. É autor de, entre outros, Eu Creio, mas Tenho Dúvidas. www.ricardogondim.com.br

coragem de aprender com quem não tem a chancela de sua igreja”.

Os fundamentalismos não aceitam contribuição de quem não comunga com os mesmos signos, com os mesmos cacoetes de seu grupo. Os diferentes podem até tentar comunicar alguma verdade, mas serão rechaçados por não serem identificados como “um dos nossos”. Romancistas, músicos, poetas e místicos de outros arraiais estão impedidos de ajudar um fundamentalista a arejar sua mente.

Fundamentalistas desprezam conteúdos e se espantam com rótulos. Aliás, lideranças fundamentalistas adoram xingar com estereótipos. Etiquetam uma pessoa como herege para que seus argumentos fiquem sob judice antes de serem articulados. O pavor de deixar-se contaminar por um

apóstata encerra qualquer diálogo. José Antônio tentava me persuadir

de que o futuro da fé cristã jaz no passado. “Temos que voltar”, repetiu várias vezes. Como eu sabia que qualquer iniciativa de estabelecer uma conversa seria frustrada, apenas pensei: “Mas, voltar ao quê?”. A idealização do passado é arma bastante usada por aqueles que enxergam a coragem de pensar fora da caixa como pecado mortal. Veneram teólogos do século 17 como autênticos instrumentos de

Deus e consideram os atuais pretensiosos por desejarem articular teologia para sua geração. Mal sabem que muito do que se considera ortodoxo hoje, soou esquisito para alguém do passado.

Depois de quase cinquenta minutos de monólogo, antes que José Antônio tomasse fôlego, consegui dizer que Jesus Cristo foi relativista. Ele relativizou a lei em nome da

misericórdia ao perdoar uma mulher apanhada em adultério; relativizou a tradição ao curar no sábado; relativizou sua própria proibição de alcançar os gentios ao atender ao pedido de uma mulher aflita devido à doença da filha. José Antônio arregalou os olhos quando eu disse que Jesus foi um

Quem se aventurar a conhecer a si, o mundo que o rodeia e a Deus, deve saber que nunca chegará à sua meta

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Estado laico e nação religiosa

Os episódios que envolveram a variável religiosa nas últimas eleições presidenciais demandam uma

reflexão serena e decisões sensatas, que podem ser construídas. Sabemos que, por milênios, com o estágio do poder personalizado (Duverger) e a legitimação tradicional (Weber), tivemos Estados teocráticos: o governante se identificava com a divindade e dela era uma emanação, sendo os sacerdotes o principal aparelho ideológico e os textos ditos sagrados a principal fonte normativa. O que parecia ser algo do passado ressurge, com força, com a Revolução Iraniana e o islamismo extremado. Um segundo modelo são os Estados confessionais, tanto com

Robinson CavalcantiR EFLEXÃO

de uma religião oficial, enquanto se garante, constitucionalmente, a plena liberdade religiosa: crer, reunir, professar e propagar. O Estado laico foi uma das grandes conquistas da civilização, apoiado pelos cristãos, como quando o instituímos no Brasil com a Constituição de 1891. Com a pós-modernidade estamos vendo surgir no Ocidente um novo modelo: o Estado secularista, que procura implementar uma ideologia no fundo ateia e materialista, moralmente relativista, antirreligiosa (particularmente antimonoteísmo de revelação), em que, em nome de um mundo sem verdades ou de verdades plurais individuais, procura expulsar a presença institucional e a expressão do pensamento religioso do espaço público, restringindo-o

o poder personalizado e tradicional do absolutismo, quanto com estados institucionalizados e de legitimação racional-legal (estados democráticos de direito): a Suécia é luterana; a Escócia, presbiteriana. Com as ditaduras de fundo marxista-leninista, temos tido, nos últimos cem anos, os Estados ateus (ateocracias) materialistas, como a extinta União Soviética e a atual Coreia do Norte. Uma trágica realidade da qual não se toma a devida consciência é que, na maioria dos países (teocráticos, confessionais e ateus) há perseguição, repressão ou restrições à liberdade religiosa. A opção construída no Ocidente foi o Estado laico, ou seja, não-confessional, com a separação entre Igreja e Estado, como instituições, e a inexistência

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às subjetividades e ao espaço dos lares e dos templos, ou seja, à irrelevância como fato social. É um equívoco e uma má fé confundir Estado secularista com Estado laico, secularismo com laicismo. Um aspecto a ser destacado é que a sociedade antecede o Estado, e este — dela derivado — é “a sociedade politicamente organizada”. O que se tem pretendido, como permanente tentação totalitária, é o Estado como ente autônomo, com seu aparelho burocrático, se vendo como vanguarda iluminada, procurando impor à sociedade as suas ideologias, “corrigindo o seu atraso”. Isso atenta contra o princípio democrático, pois no lugar de expressar o pensamento da maioria, se impõe (pelo braço do Estado) a sua agenda minoritária, mas “superior” ou “verdadeira”. O secularismo não está presente apenas na burocracia do Estado, mas é hegemônico nas universidades, na mídia e nas artes. O politicamente correto, o multiculturalismo, o amoralismo, o aborto, a eutanásia, o homossexualismo e a iconoclastia contra os símbolos religiosos, são impostos à maioria em um contexto de ausência de absolutos éticos. Outro aspecto a ser destacado é que a sociedade não se organiza apenas como Estado, que se expressa como uma pátria (vínculos simbólico-afetivos), mas como nação, como uma realidade histórica e cultural, com seus costumes e seus valores, onde entra, como uma das suas variáveis principais, a religião. O Estado não pode existir nem em confronto com a sociedade, nem pelo negar a nação. Em suma: o

Estado é laico e a nação é religiosa, e deve haver um relacionamento adequado entre ambos, como vasos comunicantes. No caso brasileiro, o Estado não pode ignorar a história da nação, nem a cultura da nação, o lugar da cristandade, em particular, e da religiosidade, em geral. O secularismo desvairado levaria à implosão da

estátua do Cristo Redentor, à substituição de nome de Estados da Federação, como Espírito Santo, de cidades, como São Paulo, e de logradouros por todo o país, à eliminação do feriado do Natal, e por aí vai, para não “ofender”

a minoria não-religiosa. Além do mais, ao invocar a proteção de Deus no preâmbulo de sua Constituição Federal, o Estado laico brasileiro se apresenta como teísta, espiritualista e aconfessional. Promover o secularismo é atentar contra a Constituição. A resposta, por parte da maioria religiosa da nação aos desafios do secularismo, não pode ser a passividade, o isolacionismo ou a tentação teocrática, nem a cooptação e o corporativismo, que nega a sua ética. Há séculos de pensamento religioso sobre a organização da vida em sociedade, na busca da promoção do bem-comum, que devemos conhecer e compartilhar como cidadãos, como instituições, e como organizações e movimento, dentro dos marcos do Direito, afirmando a vida e a dignidade da criação. Por um Estado em sintonia com a nação! Por nacionais cristãos influenciando o Estado democrático!

Dom Robinson Cavalcanti é bispo anglicano da Diocese do Recife e autor de, entre outros, Cristianismo e Política — teoria bíblica e prática histórica e A Igreja, o País e o Mundo— desafi os a uma fé engajada. www.dar.org.br

O Estado laico foi uma das grandes

conquistas da civilização

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Silêda e eu estamos esperando nosso terceiro neto. Aliás, neta. Depois de quatro filhos e dois netos, todos homens, agora

é a vez de uma menina. Como muito das conversas em família gira em torno do nome, o pequeno Arthur veio com uma bela sugestão: “Azeitona”. Quando a Carol lhe disse que isso era nome de comida, ele respondeu: “Mas mamãe, é que eu gosto muito de azeitona! Quero que a minha irmãzinha se chame assim porque eu gosto muito dela”. Um raciocínio incontestável (ainda que a irmã certamente não aprovaria). Dar nome a alguém é uma coisa muito forte, sensível e significativa. O nome acaba sendo a gente e a gente acaba sendo o nosso nome. O nome é a nossa identidade.

Uma das dimensões mais bonitas da fé cristã é que Deus nos chama pelo nome. Ele o faz com naturalidade e determinação e num tom que toca o mais íntimo do nosso ser e mexe com as áreas mais profundas da vida. Quando Deus pronuncia nosso nome, sabemos que ele está falando conosco.

Deus nos chama para ser deleO texto que vem orientando esta série de artigos (Mc 3.13-19) sintetiza a vocação dos discípulos e o que eles deveriam fazer enquanto andavam com Jesus e em continuidade ao ministério dele. Curiosamente, o evangelista dedica a maior parte do texto a enumerar os nomes dos discípulos; e o faz com detalhes que nos permitem saber, por exemplo, que havia dois Tiagos no grupo — um filho de Zebedeu e outro, de Alfeu.

Tenho uma dificuldade enorme em guardar nomes. Volta e meia me deparo com alguém que me chama pelo nome e eu, constrangido, não consigo lembrar o seu. É horrível! Porém, Deus nunca viveu tal situação de embaraço. Ele sabe não apenas o nosso nome, mas também de quem somos filhos; sabe os detalhes da nossa vida e as marcas que a emolduram. A forma como Jesus trata seus discípulos reflete como Deus trata cada um de nós, independente de cultura, tradição ou classe social. Alguns dos nomes citados por Marcos vêm acompanhados de descrições específicas. Os irmãos Tiago e João passam a ser

os “filhos do trovão”; um Simão passa a ser Pedro e o outro é identificado como “o zelote”, o que diz muito quanto ao seu jeito de encarar a vida, descrever o presente e projetar o futuro. E Judas Iscariotes... Bem, este nunca mais se livrou da pecha de traidor e da lembrança daquele beijo no Getsêmani.

Cada um desses discípulos, com suas peculiaridades, é convidado a estar com Jesus. É convidado a descansar os pés e a alma, a recuperar força e alento e a descobrir um profundo sentido de vida na companhia daquele que carrega o perfume de Deus, sorri e abraça com os olhos, acolhe os medos mais profundos e reorienta os passos mais confusos. Pelo nome, ele nos chama para sermos dele e nos convida a viver em sua presença. Haverá lugar melhor para se viver?

Deus nos chama para servi-loOuvir o nosso nome pronunciado por Jesus gera mudança de vida. Quando ele chama, não há outra alternativa senão segui-lo. O evangelista Mateus descreve a vocação dos discípulos em termos marcantes. Caminhando junto ao mar, Jesus encontra Simão, André,

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Tiago e João e simplesmente lhes diz que devem segui-lo, pois fará deles “pescadores de homens”. E eles “no mesmo instante, deixando o barco e seu pai, o seguiram” (Mt 4.18-22). No relato de Marcos (2.13-14), Jesus está novamente junto ao mar e, ao ver Levi sentado na coletoria de impostos, simplesmente lhe diz: “Segue-me”. E ele se levantou e o seguiu.

O chamado para seguir a Jesus é radical. Cada um dos discípulos poderia testificar do quanto sua vida mudou desde que ouviu tal chamado. É um chamado que não aceita delongas e não trabalha com a alternativa da negação. O chamado de Saulo é outro exemplo dramático disso. Antes mesmo de entender o que está acontecendo, ele já escuta a voz que o chama pelo nome e o convoca para uma missão com a qual nunca havia sonhado: “Saulo, Saulo, por que me persegues?”. Então vem o veredito: “Eu sou Jesus, a quem tu persegues; mas levanta-te e entra na cidade, onde te dirão o que te convém fazer” (Atos 9.4-5). E foi isso que Paulo fez, com zelo e alegria, até o final da vida. E ao ver aproximar-se o fim, ele diz ter combatido o bom combate e completado a carreira, uma carreira. Esta o reorientou, dignificou e encheu de sentido sua existência.

Deus nos chama para viver com eleA verdade é que Jesus não nos chama para executar uma tarefa, mas para uma mudança de vida, uma vida honrada pelo fato de sermos conhecidos e amados por Deus. Aliás, é tentador e até perigoso nos concentrarmos unifocalmente na tarefa recebida. Há no Evangelho de

Lucas uma bonita passagem que retrata essa realidade. Quando Jesus envia setenta discípulos para uma experiência missionária, eles voltam fascinados com as experiências que haviam vivido:

“Senhor, os próprios demônios se nos submetem pelo teu nome”. Em ressonância ao compartilhar dos discípulos, Jesus muda o foco da conversa e dirige a atenção deles não para a tarefa bem executada, mas para o fato de que seus nomes estão “arrolados nos céus” (Lc 10.17-20).

Uma história que começou de forma tão simples, às margens do mar da Galileia, onde a vida de alguns pescadores foi tocada e transformada por Deus de forma inimaginável, termina assim: com os seus nomes inscritos no coração de Deus. Diante de uma vocação assim é melhor fazer como Levi: “Ele se levantou e o seguiu”.

Valdir Steuernagel é pastor luterano e trabalha com a Visão Mundial Internacional e com o Centro Pastoral e Missão, em Curitiba, PR. É autor de, entre outros, Para Falar das Flores... e Outras Crônicas.

Ouvir o nosso nome pronunciado por Jesus gera mudança de vida. Quando ele chama, não

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Os 70 anos de exílio na cidade da Babilônia estavam acabando. Era o fim de um tempo de sofrimento e desprezo.

Chega de cantar para os opressores (Sl 137.3). Era hora de se alegrar, encher a boca de riso e a língua de júbilo (Sl 126.2) pela restauração que Deus iria promover para o seu povo, Sião. Em vez de Babilônia (símbolo da cidade do mal), é tempo da nova Jerusalém (símbolo da cidade de Deus). Esse povo vai voltar para Jerusalém após ter vivido 70 anos no cativeiro. Porém, a cidade estava destruída e em ruínas. Com qual força e ânimo recomeçariam a vida ali? Deus, por meio do profeta Isaías, compartilhou seu sonho de cidade justa e santa. A velha Jerusalém deveria ser restaurada e reconstruída à luz da nova Jerusalém. O ainda não (nova Jerusalém) deveria ser realidade e paradigma para o já (velha Jerusalém). Qual o sonho de Deus para a cidade? O texto é Isaías 65.17-25, um clássico da missão urbana no Antigo Testamento.

1. Um ambiente natural renovado: “Pois vejam! Criarei novos céus e nova terra, e as coisas passadas não serão lembradas. Jamais virão à mente!” (v. 17). A cidade de Deus é ecologicamente harmônica. Os construtores humanos se rendem ao

projeto de Deus para a cidade. Deus chama a atenção do seu povo: “Pois vejam”. Deus convoca seu povo para ver o seu projeto final. Um projeto que passa pelo novo: novos céus e nova terra (Ap 21.5). O novo de Deus aniquila as lembranças passadas. O ambiente é renovado. Finalmente, a natureza que aguardava sua libertação e redenção da escravidão e decadência em que se encontrava, agora não geme mais (Rm 8.18-22). Ela é renovada! Esse “novos céus e nova terra” só tem sentido se tiver gente lá dentro, e gente feliz!

2. Um povo renovado e feliz: “Eis que crio para Jerusalém alegria e para o seu povo, regozijo” (v. 18b). Chega de lembranças de coisas passadas. Que se apague da memória os motivos de infelicidade. Chega de voz de choro. Deus se exultaria por causa de Jerusalém e ficaria alegre por seu povo. Deus sonha com um povo feliz. A cidade de Deus é cidade alegre. Uma alegria cuja fonte é o próprio Deus. Os novos céus e nova terra (v. 17) são geografias marcadas pela felicidade. Felicidade não pelas coisas, mas por causa de Deus. Esse povo gozará outro tipo de vida!

3. Vida em plenitude: “Nunca mais haverá nela uma criança que viva

poucos dias, e um idoso que não complete os seus anos de idade; quem morrer aos cem anos ainda será jovem, e quem não chegar aos cem será maldito” (v. 20). A cidade de Deus tem olhos para as crianças e os idosos. Do nascimento ao envelhecimento é vida em plenitude. A linguagem é poética e metafórica, pois na nova Jerusalém ninguém morre. É o fim da mortalidade infantil e do desprezo à velhice. É uma prova incontestável do amor de Deus aos mais fragilizados e dependentes: as crianças e os idosos. A cidade de Deus põe fim a tudo que conspira contra a vida! Essa vida em plenitude é redimensionada em suas relações.

4. Novas condições sociais: “Construirão casas e nelas habitarão; plantarão vinhas e comerão do seu fruto. Já não construirão casas para outros ocuparem, nem plantarão para outros comerem. Pois o meu povo terá vida longa como as árvores; os meus escolhidos esbanjarão o fruto do seu trabalho. Não labutarão inutilmente...” (v. 21-23a). Moradia, comida e trabalho: três elementos essenciais e básicos da e para a vida. A cidade de Deus é promotora de dignidade humana: casa, alimento e trabalho para todos! Chega de construir para outros morarem. Chega

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de plantar para outros comerem. Chega de trabalhar em vão. O sonho de Deus para a cidade não é luxo nem lixo. É o simples e o básico que promovem dignidade. Esse povo que passa a ter casa, comida e trabalho, viverá feliz em suas famílias.

5. Nova condição familiar: “...nem gerarão filhos para a infelicidade; pois serão um povo abençoado pelo Senhor, eles e os seus descendentes” (v. 23). Menores de rua? Nem pensar! Crianças pedindo dinheiro nos semáforos? Jamais! Menina grávida aos 12 anos cheirando cola nas casas abandonadas? Sem chance! Adolescentes e jovens na Cracolândia? Impossível! A cidade de Deus é cheia de filhos felizes, que foram gerados para viver em harmonia em suas famílias. A família tem prioridade para Deus. E elas são ajustadas e equilibradas. Nessa cidade não entra maldição familiar.

6. Nova relação com Deus: “Antes de clamarem, eu responderei; ainda não estarão falando, e eu os ouvirei” (v. 24). A cidade é marcada pela própria presença de Deus. Uma relação tão próxima-íntima que não há mais necessidade de clamar. Antes que se fale a palavra Pai, ele já a ouviu. “Agora o tabernáculo de Deus está com os homens, com os quais ele viverá. Eles serão os seus povos; o próprio Deus estará com

eles e será o seu Deus” (Ap 21.3). Nessa cidade não tem igreja: “não vi templo na cidade” (Ap 21.22a). Por que não? Porque “o Senhor Deus todo-poderoso e o Cordeiro são o seu templo” (Ap 21.22b). E Deus é o templo, O único digno de ser adorado; “as nações andarão em sua luz” (Ap 22.24) e não mais em injustiça. Paz e justiça determinam

o relacionamento com o outro.

7. Nova relação com o próximo: “O lobo e o cordeiro comerão juntos, e o leão comerá feno, como o boi, mas o pó será a comida da serpente. Ninguém fará nem mal nem destruição

em todo o meu santo monte, diz o Senhor” (v. 25). Maldade e destruição não têm lugar na cidade de Deus. A relação com o próximo será pacifica, de justiça absoluta.

8. É com essa visão e sonho de Deus que os exilados deveriam recomeçar a vida e reconstruir a velha Jerusalém. Os paradigmas da nova Jerusalém deveriam nortear a vida no aqui e agora. Isso te diz algo? Não seria também a hora de deixarmos de ver a cidade com os nossos olhos e passarmos a vê-la como Deus a vê? É hora de trazer a nova Jerusalém para o nosso chão de cada dia. Esse é o sonho de Deus? Torne-o realidade em sua geografia!

Jorge Henrique Barro é diretor da Faculdade Teológica Sul Americana e vice-presidente da Fraternidade Teológica Latino Americana (continental).

Os paradigmas da nova Jerusalém

deveriam nortear a vida no

aqui e agora

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Universidades protestantes: benefícios e riscos

Bolonha (1190), Paris (1208) e Oxford (1208). Num primeiro momento, algumas dessas instituições passaram a receber nítida influência protestante; mais tarde, os partidários da Reforma criaram suas próprias universidades. Estas e aquelas passaram a refletir em seus currículos a nova cosmovisão protestante. A partir do século 18, essa cosmovisão sofreria grandes abalos com o surgimento do Iluminismo.

Instituições pioneirasA primeira universidade protestante foi sem dúvida a de Wittenberg, na Saxônia, berço da reforma luterana. Fundada em 1502 pelo príncipe eleito Frederico, o Sábio, quinze anos mais tarde ela aceitou as novas ideias de seu professor mais famoso, o monge agostiniano Martinho Lutero. Posteriormente, os luteranos fundaram as Universidades de Marburg (1527), Königsberg (1544), Jena (1558) e Helmstedt (1575). As universidades de Copenhague, na Dinamarca, e Uppsala, na Suécia, ambas do final do século 15, aderiram ao movimento de Lutero.

O caso dos reformados ou calvinistas foi um pouco diferente, porque embora tenham fundado conceituadas escolas no século 16, só mais tarde criaram universidades. Em 1559, Calvino inaugurou sua famosa academia,

H ISTÓR IA Alderi Souza de Matos

D evido a suas ênfases e valores fundamentais, a Reforma Protestante deu grande prioridade à educação em todos

os níveis. A necessidade do estudo da Escritura, o princípio do sacerdócio de todos os fiéis e a convicção de que Deus deve ser honrado mediante o cultivo intelectual levaram os reformadores a incentivar a criação de escolas. Além disso, deve-se lembrar que o novo movimento surgiu em círculos acadêmicos. Lutero era professor universitário em Wittenberg e assim permaneceu por toda a vida. Melanchton, Zuínglio e Calvino foram humanistas cultos, formados em algumas das melhores instituições de ensino da época. Em consequência disso, os protestantes deram grandes contribuições à área educacional, como a criação de importantes universidades que até hoje oferecem valiosos serviços às suas coletividades.

Obviamente, as universidades não foram uma invenção protestante. No início do século 16, ou seja, no alvorecer da Reforma, havia mais de cinquenta universidades na Europa, principalmente na Itália, França, Espanha e Ilhas Britânicas, todas com forte identidade católica romana. As mais antigas e famosas eram as de

embrião da futura Universidade de Genebra. A antiga Universidade de Heidelberg, na Alemanha, se tornou uma instituição calvinista na década de 1560. Na Escócia o mesmo ocorreu com as Universidades de Saint Andrews, Glasgow e Aberdeen. As universidades inglesas de Oxford e Cambridge receberam fortíssima influência calvinista. Thomas Cranmer, Hugh Latimer e Nicholas Ridley, três dos primeiros líderes e mártires da Reforma Inglesa, eram ligados a essas escolas. A convite de Cranmer, os reformadores Martin Bucer e Pedro Mártir Vermigli lecionaram na Inglaterra, o primeiro em Cambridge e o segundo em Oxford.

Entre as primeiras universidades fundadas por calvinistas estão as de Leyden e Utrecht, na Holanda. Posteriormente, reformados de origem holandesa fundaram na África do Sul as importantes universidades de Stellenbosch e Potchefstroom. Todavia, o fenômeno mais extraordinário ocorreu nos Estados Unidos, onde, até meados do século 19, os presbiterianos criaram 49 “colleges” (faculdades), os congregacionais 21, os reformados alemães quatro e os reformados holandeses um. Dessas 75 instituições, três se tornaram famosas universidades: Harvard (1636), Yale (1701) e Princeton (1746).

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O desafio confessionalHoje o secularismo é a regra na maior parte das universidades de origem cristã, sejam elas católicas ou protestantes. Algumas dessas escolas ainda mantêm um nome religioso ou denominacional, mas em nada diferem das instituições seculares. Poucos dirigentes e professores são cristãos convictos, a filosofia de ensino é não somente não-cristã, mas muitas vezes abertamente anticristã e, portanto, elas se tornam pouco

relevantes do ponto de vista dos interesses do reino de Deus, da causa de Cristo no mundo. São escolas “confessionais”, ou seja, ligadas a uma confissão religiosa particular, mas o seu confessionalismo é mais teórico do que concreto, visível.

Uma notável exceção nessa área é a Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo, cujas raízes remontam a 1870. Fundada por missionários norte-americanos, a escola se secularizou progressivamente ao longo do século 20.

O drama da secularizaçãoOs protestantes criaram universidades não só por causa do seu compromisso com a educação, mas também como um meio de servir e influenciar a sociedade a partir de uma perspectiva cristã. Nos seus primeiros tempos, essas instituições tinham por objetivo prioritário formar ministros capazes para as igrejas e líderes qualificados para diferentes setores da coletividade, a começar da função pública. Essa situação mudou drasticamente com o advento do Iluminismo — uma mentalidade racionalista e naturalista que negava o sobrenatural e o transcendente.

O resultado foi a crescente secularização das universidades protestantes. Muitas delas ainda mantinham laços com as igrejas, mas a perspectiva materialista se tornou cada vez mais dominante. Os cursos de teologia que sobreviveram nessas instituições geralmente adotaram uma perspectiva liberal, questionadora da fé cristã histórica. O Harvard College é um exemplo típico desse processo. Fundado pelos puritanos para preservar o ideal de uma comunidade moldada por princípios cristãos, a famosa escola abraçou o unitarismo nos primeiros anos do século 19, rompendo radicalmente com a visão de seus fundadores. Com isso, essa e outras instituições deixaram de dar uma contribuição especificamente cristã às suas comunidades.

Os protestantes criaram universidades não só por

causa do seu compromisso com a educação, mas

também como um meio de servir e influenciar a

sociedade a partir de uma perspectiva cristã

Em décadas recentes, todavia, a igreja proprietária resolveu dar um caráter genuinamente confessional à instituição em termos de sua liderança, compromissos e valores. Embora a universidade seja pluralista no seu professorado e corpo discente, como é próprio de uma instituição de ensino superior, a mensagem cristã e os valores cristãos e reformados são continuamente transmitidos em pronunciamentos, publicações e atividades diversas, como congressos e conferências.

ConclusãoSão imensos os desafios enfrentados pelas universidades de origem protestante. Não é tarefa fácil conciliar a fidelidade às raízes confessionais, o compromisso com o evangelho e uma visão cristã da vida com a realidade de um mundo marcado pela diversidade religiosa e ideológica, algo que se reflete intensamente no ambiente acadêmico. O importante é que se busque um equilíbrio adequado entre esses dois conjuntos de fatores, não permitindo que as tendências secularizantes sufoquem o testemunho cristão nesse ambiente tão importante para a sociedade.

Alderi Souza de Matos é doutor em história da igreja pela Universidade de Boston e historiador ofi cial da Igreja Presbiteriana do Brasil. É autor de A Caminhada Cristã na História e Os Pioneiros Presbiterianos do [email protected]

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E S P E C I A L

Reflexões a partir da Lagoinha

Uma única igreja local quer “ganhar para o Senhor 10% de Belo Horizonte”, a sexta cidade mais populosa do Brasil. O

esforço vem de alguns anos; porém, apesar de ser uma igreja que cresce a olhos vistos, o alvo ainda está distante. A capital mineira tem, de acordo com o censo de 2010, mais de 2,3 milhões de habitantes. E a Igreja Batista da Lagoinha terminou 2010 com 44.999 membros arrolados — o que significa pouco mais de 1,9% da população da cidade.

Ao longo de 2010 houve um acréscimo de 3.661 membros, mais mulheres (58,5%) do que homens (41,5%). Ocorre, porém, que nem todos vieram das trevas para a luz, de fora para dentro. Do total, 1.438 já estavam com o Senhor em outras igrejas evangélicas e se transferiram para a Lagoinha (39,3%). Os outros

2.223 foram recebidos por profissão de fé e batismo (60,7%).

A Igreja Batista da Lagoinha nasceu no bairro Lagoinha, mas hoje está no bairro São Cristóvão, onde tem várias propriedades, quase todas na Rua Manuel Macedo. Além do enorme templo (para 6 mil pessoas) e do Tabernáculo (para 1.500), a igreja possui vários espaços anexos: o Salão Ágape, o Salão Esperança, o Salão Fé e o Salão dos Diáconos. São realizados treze cultos e outras reuniões aos domingos e 27 durante a semana, atingindo diferentes faixas etárias e grupos de pessoas. Há o Culto das Grandezas de Deus, o Culto Deus de Milagres, o Culto dos Empresários, o Culto das Mulheres em Ação, o Culto dos Homens da Promessa, o Culto da Melhor Idade, o Culto dos Águias de Cristo, o Culto de Vigília, o Culto Ephatá (para deficientes auditivos), o Culto da Mocidade, o Culto Eliezer (para solteiros), o Culto

dos Adolescentes etc., todos realizados em dias de semana. Aos domingos, além da escola bíblica, são realizados o Culto das Primícias (6h), o Culto da Terceira Idade (8h), os cultos com o pastor Márcio Valadão (10h e 18h), o Culto de Batismo (13h), o Culto de Libertação (15h), o Culto Ministério de Louvor e Arte (20h) e o Culto de Avivamento (21h). O pastor André Valadão prega às terças, a pastora Alaélcia Teixeira, às quartas, e o pastor Paulo Ricardo, de quinta a sábado. Há outras reuniões, como o Chá com Deus e a reunião com universitários. Dois cultos semanais são em língua estrangeira (espanhol e inglês).

Márcio Valadão, 62 anos, é o pastor da igreja desde 1972. Embora seja o supervisor de tudo e o apóstolo da igreja, ele aparece pouco. Prega nos dois principais cultos dominicais e tem como auxiliares dezenas de pastores e pastoras.

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Mega, médias e pequenas igrejas — o desafio é o mesmo

P essoas insatisfeitas estão sempre mudando de igreja. Portanto, “roubar” crentes não é uma

prerrogativa das megaigrejas. O teólogo Orlando Costas notou e pesquisou esse fenômeno nas igrejas em geral (Christ Outside the Gate). A questão crucial é como a megaigreja se relaciona com as igrejas menores. Ela busca a cooperação ou a competição?

Geralmente, as pessoas olham para as megaigrejas e reagem de duas formas:

acham que tudo está errado ou, no outro extremo, que são as melhores igrejas. Porém, há também o posicionamento moderado: a megaigreja tem o seu espaço. Nas grandes cidades, elas são um lugar onde os cristãos podem se misturar com os não-cristãos. Além disso, essas igrejas têm recursos (pessoas, talentos e materiais) para fazer coisas que as igrejas pequenas e médias às vezes não têm.

As megaigrejas são uma realidade e não devem desaparecer tão cedo,

especialmente nas metrópoles. Assim, é preciso descobrir como minimizar os aspectos negativos e continuar perseguindo o alvo dado por Jesus de representá-lo nesta geração. As igrejas médias e pequenas têm de enfrentar o mesmo desafio! É preciso um diálogo — com crítica, mas também com encorajamento mútuo.

Por James Gilbert, pastor, missionário no Brasil, membro de uma megaigreja em Richfi eld, WI, Estados Unidos

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O crescimento da igreja de Jerusalém foi assombroso. O grupo inicial era formado por

onze apóstolos, a família de Jesus (mãe e irmãos), algumas mulheres da Galileia, talvez José de Arimateia, Nicodemos e o oficial romano que comandara a crucificação (Lc 23.47), e mais alguns. Ao todo, “mais ou menos cento e vinte seguidores de Jesus” (At 1.15, NTLH). Eles se reuniam no andar de cima de uma casa em Jerusalém (At 1.13) e muitos não moravam na cidade nem na Judeia. Eram galileus.

Em poucas semanas, com as conversões havidas no dia de Pentecostes (quase 3 mil) e com as que aconteceram por ocasião da cura do coxo de nascença (mais ou menos

A Igreja Batista da Lagoinha é uma das poucas megaigrejas brasileiras e usa o sistema de células. Márcio Valadão esteve na Coreia do Sul por ocasião da Consulta Global sobre evangelização mundial, convocada pelo Movimento AD2000, realizada em Seul entre 17 e 25 de maio de 1995, e visitou a Igreja do Evangelho Pleno de Yoído, com a qual ficou impressionado. Naquela época, das cinquenta megaigrejas existentes no mundo, quase a metade estava na Coreia e a maior de todas era a de Yoído, cujo pastor ainda é David Yonggi Cho, de 75 anos. A igreja tinha então 706 mil membros. Logo depois dela estavam a Igreja Metodista Kwang Lim (73 mil) e a Presbiteriana Young Nak (60 mil). Outras sete igrejas de Seul tinham, na época, mais de 30 mil membros. Todavia, o entusiasmo e a eficiência das megaigrejas têm decrescido na Coreia. Um estudioso do assunto, o teólogo coreano Bong Rin Ro, professor de história da igreja e de missões, costuma dizer que as mega e grandes igrejas têm mais problemas que as pequenas. Quando o pastor

mais velho de uma igreja passa o bastão para o seu sucessor, costuma haver esmorecimento, conflito e divisão. Além do mais, por causa da natureza

humana, a tentação da competição é uma realidade. Na Coreia, por exemplo, costuma haver certa rivalidade quanto ao tamanho do templo, do coral, da orquestra e da frequência dominical.

Uma notícia recente confirma o problema. No presente momento a megaigreja americana fundada pelo tele-evangelista Robert H. Schuller, em Garden Grove, na Califórnia, está passando por um período difícil. Os descendentes de Schuller, 84 anos, estão

disputando não apenas o majestoso templo (chamado de “A Catedral de Cristal”, por causa dos seus 10 mil painéis de vidro), mas também o comando da igreja de 20 mil membros e um complexo de mídia que envolve o tradicional programa Hora do Poder.1

O crescimento da igreja é algo desejável e saudável. No entanto, é preciso vigiar o tempo todo para que a verdadeira motivação seja sempre ver o nome de Jesus glorificado e o rebanho dele (e não o nosso) aumentado. O número de conversões e de membros não pode ser o mais importante.

Há algo significativo em Atos dos Apóstolos, o livro que conta a história do nascimento e do avanço da igreja primitiva. Na fase pioneira, os números eram citados: o número dos crentes que se reuniam para orar antes do Pentecostes era mais ou menos 120 (1.15). No dia da inauguração da igreja, com a descida do Espírito Santo, quase 3 mil pessoas foram batizadas e se juntaram ao grupo de seguidores de Jesus (2.41) e depois do sermão de Pedro no alpendre de

O crescimento da igreja é algo desejável e saudável. No entanto, é preciso vigiar

o tempo todo para que verdadeira motivação seja

sempre ver o nome de Jesus glorificado

5 mil homens), o número subiu para mais de 8 mil crentes, não contando as mulheres solteiras, casadas e viúvas, que não foram incluídas no segundo grupo de conversões. Os primeiros 3 mil novos crentes e o grupo inicial, “todos os dias unidos, se reuniam no pátio do templo” (At 2.46, NTLH). É possível que, após a conversão do segundo grande grupo e da animosidade da maior parte do clero judaico, as reuniões não fossem mais realizadas no templo. Talvez em casas. Nesse caso, para comportar a membresia toda, seriam necessárias cerca de setenta casas do tamanho daquela onde a princípio se reuniam, sem contar grande parte das mulheres e dos que se convertiam a cada dia (At 2.47).

Se todo esse crescimento aconteceu

em seis meses, houve, em média, 44 conversões por dia. Se a taxa de crescimento continuasse assim, a cada 2,4 dias seria necessário conseguir mais uma casa para reunir 106 novos fiéis.

O mais importante de tudo é que o crescimento da igreja de Jerusalém vinha de cima: “Cada dia o Senhor juntava ao grupo as pessoas que iam sendo salvas” (At 2.47, NTLH). O testemunho de cada crente e a pregação eram e são muito importantes, mas a ocorrência do arrependimento, da conversão e do novo princípio de vida eram e são fenômenos sobrenaturais, atribuídos à soberania de Deus. O que crescia era o número de salvos e não meramente o número de membros de determinada igreja.

O crescimento da megaigreja de Jerusalém

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Salomão, no templo, o número dos homens que creram subiu para quase 5 mil (4.4). Incluindo as mulheres, calcula-se que 20 mil cristãos viviam em Jerusalém antes da perseguição que se seguiu à morte de Estêvão, por volta do ano 35 da era cristã.2 A igreja de Jerusalém foi a primeira megaigreja da história eclesiástica, logo dissolvida e espalhada por vários lugares, próximos e distantes, devido à violenta perseguição. Esse número enorme de fiéis logo após os quatro eventos mais marcantes de então — a morte de Jesus, a ressurreição de Jesus, a ascensão de Jesus e a descida do Espírito Santo — mostra como era insignificante o número de seguidores do revolucionário Teudas (5.36). Enquanto Jesus tinha 20 mil seguidores, Teudas conseguiu reunir só 400 (2% do total de Jesus).

A partir do desaparecimento, não da igreja, mas da megaigreja de Jerusalém, o historiador troca os números por expressões abstratas. Em Antioquia da Psídia, “muitos dos judeus e estrangeiros piedosos convertidos ao judaísmo seguiram Paulo e Barnabé” (13.43). Em Derbe, Paulo e Barnabé pregaram e “fizeram muitos discípulos” (14.21). Em Tessalônica, “alguns dos judeus foram persuadidos e se uniram a Paulo e Silas, bem como muitos gregos tementes a Deus, e não poucas mulheres de alta posição” (17.4). Em Bereia,

“creram muitos dentre os judeus, bem como dentre os gregos, um bom número de mulheres de elevada posição e não poucos homens” (17.12). Em Atenas, o resultado foi mais modesto: “Alguns homens juntaram-se a [Paulo]” e “entre eles estava Dionísio, membro do Areópago, e também uma mulher chamada Dâmaris, e outros com eles” (17.34). Em Corinto, “Crispo, chefe

da sinagoga, creu no Senhor, ele e toda a sua casa; e dos coríntios que o ouviam, muitos criam e eram batizados” (18.8). A preocupação demasiada com números não é boa. Pode gerar uma competição entre pastores e pregadores.

O ciúme e a inveja são uma eterna possibilidade e estão sempre presentes, à flor da pele ou dentro da alma. Embora João Batista centralizasse sua pregação na pessoa de Jesus, seus discípulos foram falar com ele acerca do seu sucesso: “Mestre, aquele homem que estava com o senhor no outro lado do rio Jordão está batizando as pessoas. O senhor falou sobre ele, lembra? E todos estão indo atrás dele” (Jo 3.26, NTLH). João reagiu

admiravelmente: “O que está acontecendo com Jesus me faz ficar completamente alegre. Ele tem de ficar cada vez mais importante, e eu, menos importante” (Jo 3.29-30, NTLH). Nem todos nós crescemos ao ponto de chegar perto de João Batista, o mais formidável “de todos os homens que já nasceram” (Mt 11.11, BV).

É mais fácil conseguir adesão do que conversão. Provavelmente, a maior parte do trabalho “evangelístico” feito hoje é mais na primeira direção do que na segunda. A Grande Comissão (Mt 28.19) é evangelizar, mas não se sabe mais o que é isso. J. I. Packer afirma que “evangelizar é apresentar Jesus Cristo no poder do Espírito Santo de tal maneira que os homens decidam colocar sua confiança em Deus por meio dele”.3

Ganhar almas para Jesus é um privilégio. E quanto mais almas ganhas, maior é o privilégio e mais numerosas são as celebrações de alegria no céu (Lc 15.7). A expressão “ganhar [almas] para Cristo” aparece cinco vezes em quatro versículos de 1 Coríntios 9. Num deles, Paulo diz que se fez escravo de todos “a fim de ganhar para Cristo o maior número possível de pessoas” (9.19).

Notas1. Cristianismo Hoje (12/2010), p. 10.2. Comentário de Simon Kistemaker do livro de Atos, p. 202. 3. A Missão Cristã no Mundo Moderno, p. 48.

É mais fácil conseguir adesão do que conversão

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O missiólogo presbiteriano coreano David Cho faz distinção entre megaigrejas

e igrejas de grandes dimensões. Para ele, a megaigreja é aquela que se tornou “obesa e anormalmente volumosa”. Na Coreia do Sul há cerca de dez megaigrejas e quinhentas igrejas de médio porte (por volta de 5 mil membros). A maioria das 58.600 igrejas coreanas são igrejas menores. Segundo Cho, os líderes das megaigrejas têm a

As igrejas coreanas, na opinião de David Choinsolência de fazer tudo sozinhos, sem a cooperação de outras igrejas e de agências missionárias. Em geral, as megaigrejas não crescem com novos crentes, mas absorvem membros de igrejas menores. É um crescimento questionável. Elas são tentadas a degenerar a adoração em entretenimento e gastam muito dinheiro para ter um grupo musical exclusivo. Em dezembro de 2008, 18,32% dos coreanos eram protestantes e 10,94%, católicos. Igreja do Evangelho Pleno de Yoído, Coreia

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Presciência e eternidade

L eio no devocionário Refeições Diárias com Jesus (27 de janeiro) que Deus, ciente de que eu faria mau uso da liberdade, “providenciou um meio

de recuperar-me muito antes da fundação do mundo”. E então penso: que providência fantástica!

Percebo um compreensível cuidado do autor ao falar de presciência. Ele harmoniza sua linguagem com a dos autores bíblicos para não entrar, desnecessariamente, em terreno polêmico.

Entretanto, gostaria de me inspirar nessa bela devocional para ousar, por minha conta e risco, uma ampliação da ideia de presciência, tradicionalmente compreendida como antevisão (Rm 8.29-30). É como se Deus olhasse por uma luneta temporal: à distância, antes da fundação do mundo, ele olha para o futuro e percebe que os homens fariam mau uso da sua liberdade; e desde então, concebe o plano de salvação. Sem dúvida, uma concepção bíblica.

A presciência de Deus, para mim, está associada ao conceito de eternidade. Esta, entendida como todo o tempo, em vez de um longo tempo. Acompanhe-me, por favor.

Repare que os verbos que falam de tempo, nas Escrituras, estão sempre no pretérito. Mesmo quando se referem ao futuro. “Eis que tudo era muito bom”. O Apocalipse é todo escrito no tempo passado. Eu diria no pretérito profético (invenção minha). A razão disso é que Deus estava presente em fatos que, para nós, prisioneiros do tempo (kronos), são futuros; mas para Deus, que habita o kairos, a eternidade, são presentes.

Sendo viável essa proposta, Deus não apenas olhou para o futuro; ele também fez-se presente em todos os fatos da história: passados, presentes e futuros.

Imagine-se redigindo o livro de Gênesis. Que tempo de verbo você usaria para o descanso do sétimo dia? E no Apocalipse, que tempo usaria para falar da descida da Nova Jerusalém? Sim, passado. Porém, como João “viu” esses últimos acontecimentos? Ele foi transportado

por Deus às cenas, para presenciá-las: “Achei-me em espírito, no dia do Senhor” (Ap 1.10). Curioso: presenciar é estar presente. Mesmo no futuro.

Creio que Deus “sabia” porque tudo presenciou. Entendo, assim, que ele me elegeu, antes da fundação do mundo, porque esteve presente em todos os meus dias e viu as respostas que dei ao seu Filho, mediante o seu Espírito. Com efeito, ele não somente tinha ciência de

que eu faria mau uso da liberdade, como presenciou cada vez que isso aconteceu. Porém, presenciou também (e participou de) meus desesperados gestos de contrição, em busca de seu perdão. E, por sua graça, lançou meus pecados sobre o Cordeiro, eternamente imolado.

É assim que eu compreendo (e, pela fé, me alegro com) a minha eleição. Penso que Deus, que de antemão conheceu todos os meus dias, estava comigo na hora da partida. Vejo que ali, diante do meu corpo, naquele momento sagrado em que kronos e kairos se encontram (At 7.55-56), ele sacrifi cou seu Filho por mim. Diante dele, estávamos morrendo juntos.

Nesse momento extremo, Jesus, presente, poderia ter-me dito: “Em verdade te digo que hoje estarás comigo no paraíso”. E assim se fez (digo pela fé). E houve tarde e manhã, meu grande dia.

Rubem Amorese é consultor legislativo no Senado Federal e presbítero na Igreja Presbiteriana do Planalto, em Brasília. É autor de, entre outros, Louvor, Adoração e Liturgia e Fábrica de Missionários — nem leigos, nem santos. [email protected]

P ONTO F INAL Rubem Amorese

Deus estava presente em fatos

que, para nós, prisioneiros do

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