Rickson Gracie

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Ele nunca gostou de esportes coletivos e com o sobrenome que tem, a história não poderia ter sido muito diferente. En- quanto as outras crianças sonhavam em repetir as jogadas de Pelé, Rickson Gracie, com apenas 6 anos, era iniciado pelo pai na arte do jiu-jitsu. Mas o que ninguém podia apostar é que ele seria o representante mais vencedor da família que popularizou a modalidade no Brasil e no mundo e carrega a honra e a res- ponsabilidade de ser a referência maior do esporte. Terceiro filho — de um total de nove — e caçula do pri- meiro casamento de Hélio Gracie, Rickson tornou-se uma lenda viva das artes marciais e um dos maiores lutadores da histó- ria. Nos seus 20 anos de profissionalismo, nunca deixou que o adversário sentisse o gosto da vitória. Em 460 lutas, venceu todas. A primeira delas, um combate histórico com Rei Zulu, outro mítico lutador. Se o esporte só lhe trouxe glórias, a vida se encarregou de aplicar no vencedor um duro golpe: a morte do filho Rockson, então com 19 anos, em 2001, época em que eles moravam nos Estados Unidos. Sem dúvida nenhuma, a maior porrada que já levou. Reverenciado no Japão, Rickson lançou, no mês passado, na terra do sol nascente, “um livro filosófico de autoajuda”, como ele mesmo define, ainda sem previsão para chegar ao Brasil. “Falo muito de conquistas, estratégia, coragem, amor, perda e amizade.” Após uma longa temporada de 20 anos em Los Angeles, onde mantém uma academia administrada por Kron, um de seus três filhos, em 2006, Rickson voltou ao Brasil, país que faz tão bem ao seu espírito. Dez anos depois de sua última luta profissional e “sem a mínima chance de voltar”, Rickson, como um mestre que sabe com clareza qual é a sua missão, se agarra aos ensinamentos das gerações passadas de sua família para resgatar, no jiu-jitsu, a filosofia e o desenvolvimento puro da arte marcial: “O respeito, a força interior. Não quero levar o cara ao pódio, mas fazê-lo se sentir bem. Acho mais relevante a doutrina do que propriamente se sentir um campeão no tatame”. Hoje, o Mestre, como é chamado, não quer nem saber de competição. Ele, que já é avô, mora no Rio, onde recebeu a Ragga, com a mulher e quatro cachorros. Dono de uma tran- quilidade nirvânica, nem de longe parece ser o cara que finalizava japoneses, americanos e quem viesse pela frente. Pega onda, promove seminários e dá aulas particulares. Ser fiel às suas referências agora é o maior desafio de Rickson Gracie. Agora são 11h27. O que você já fez? Como é sua rotina? PROCURO SEMPRE ORGANIZAR minha mente, meu físico e meu espírito antes de fazer as minhas tarefas do dia. A primeira é comigo mesmo. Então, acordo por volta de 7h, faço uma boa refeição, que é geralmente um café com torrada e queijo, uma coisa mais leve. Duas horas e meia depois, faço outra refeição à base de frutas e vou fazendo até completar seis refeições ao longo do dia, pelo menos. A parte da manhã reservo para fazer um bom alongamento, pegar onda, fazer exercícios. A partir do meio-dia, tenho aulas ou faço algu- mas reuniões. O meu “business day” começa por volta de meio-dia, 13h, inclusive porque, morando na Barra, qualquer coisa que você te- nha que fazer na Zona Sul na hora do rush é terrível, então vou para lá na hora do almoço e volto antes do rush. E os treinos? NÃO TENHO mais uma rotina de treino, porque quando decidi me aposentar o treinamento diminuiu totalmente. Agora, estou focado no que acredito e essa é a nova motivação da minha vida: o resgate de uma filosofia, de um componente que está meio adormecido dentro das artes marciais que realmente favorece a sociedade, a comunidade. Esse resgate cha- mo de força invisível, a atitude do guerreiro da paz. Esses são os componentes que, hoje, me dão motivação para continuar envolvido com o jiu-jitsu e tentar passar uma filosofia que en- grandece o ser humano, independente se ele está envolvido em competições ou não. Encaro a minha missão hoje como algo muito maior do que a minha própria célula de alunos. Vai além de ser Gracie. Você tem um histórico de 460 lutas e 460 vitórias. Pode-se dizer que você MAIOR NOME DO CLÃ GRACIE, RICKSON, O LUTADOR INVICTO, BUSCA MOTIVAÇÃO NO RESGATE DA FILOSOFIA E DOS ENSINAMENTOS DO JIU-JITSU. O HOMEM QUE TREINOU CHUCK NORRIS AGORA VIVE, SABIAMENTE, DIA APÓS DIA, SEM SE PREOCUPAR COM O FUTURO por Bruno Mateus fotos Bruno Senna PERFIL { 76 -

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Revista Ragga - Novembro 2010

Transcript of Rickson Gracie

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Ele nunca gostou de esportes coletivos e com o sobrenome que tem, a história não poderia ter sido muito diferente. En-quanto as outras crianças sonhavam em repetir as jogadas de Pelé, Rickson Gracie, com apenas 6 anos, era iniciado pelo pai na arte do jiu-jitsu. Mas o que ninguém podia apostar é que ele seria o representante mais vencedor da família que popularizou a modalidade no Brasil e no mundo e carrega a honra e a res-ponsabilidade de ser a referência maior do esporte.

Terceiro filho — de um total de nove — e caçula do pri-meiro casamento de Hélio Gracie, Rickson tornou-se uma lenda viva das artes marciais e um dos maiores lutadores da histó-ria. Nos seus 20 anos de profissionalismo, nunca deixou que o adversário sentisse o gosto da vitória. Em 460 lutas, venceu todas. A primeira delas, um combate histórico com Rei Zulu, outro mítico lutador. Se o esporte só lhe trouxe glórias, a vida se encarregou de aplicar no vencedor um duro golpe: a morte do filho Rockson, então com 19 anos, em 2001, época em que eles moravam nos Estados Unidos. Sem dúvida nenhuma, a maior porrada que já levou.

Reverenciado no Japão, Rickson lançou, no mês passado, na terra do sol nascente, “um livro filosófico de autoajuda”, como ele mesmo define, ainda sem previsão para chegar ao Brasil. “Falo muito de conquistas, estratégia, coragem, amor, perda e amizade.”

Após uma longa temporada de 20 anos em Los Angeles, onde mantém uma academia administrada por Kron, um de seus três filhos, em 2006, Rickson voltou ao Brasil, país que faz tão bem ao seu espírito. Dez anos depois de sua última luta profissional e “sem a mínima chance de voltar”, Rickson, como um mestre que sabe com clareza qual é a sua missão,

se agarra aos ensinamentos das gerações passadas de sua família para resgatar, no jiu-jitsu, a filosofia e o desenvolvimento puro da arte marcial: “O respeito, a força interior. Não quero levar o cara ao pódio, mas fazê-lo se sentir bem. Acho mais relevante a doutrina do que propriamente se sentir um campeão no tatame”.

Hoje, o Mestre, como é chamado, não quer nem saber de competição. Ele, que já é avô, mora no Rio, onde recebeu a Ragga, com a mulher e quatro cachorros. Dono de uma tran-quilidade nirvânica, nem de longe parece ser o cara que finalizava japoneses, americanos e quem viesse pela frente. Pega onda, promove seminários e dá aulas particulares. Ser fiel às suas referências agora é o maior desafio de Rickson Gracie.

Agora são 11h27. O que você já fez? Como é sua rotina?PROCURO SEMPRE ORGANIZAR minha mente, meu físico e meu espírito antes de fazer as minhas tarefas do dia. A primeira é comigo mesmo. Então, acordo por volta de 7h, faço uma boa refeição, que é geralmente um café com torrada e queijo, uma coisa mais leve. Duas horas e meia depois, faço outra refeição à base de frutas e vou fazendo até completar seis refeições ao longo do dia, pelo menos. A parte da manhã reservo para fazer um bom alongamento, pegar onda, fazer exercícios. A partir do meio-dia, tenho aulas ou faço algu-mas reuniões. O meu “business day” começa por volta de meio-dia, 13h, inclusive porque, morando na Barra, qualquer coisa que você te-nha que fazer na Zona Sul na hora do rush é terrível, então vou para lá na hora do almoço e volto antes do rush.

E os treinos?NÃO TENHO mais uma rotina de treino, porque quando decidi me aposentar o treinamento diminuiu totalmente. Agora, estou focado no que acredito e essa é a nova motivação da minha vida: o resgate de uma filosofia, de um componente que está meio adormecido dentro das artes marciais que realmente favorece a sociedade, a comunidade. Esse resgate cha-mo de força invisível, a atitude do guerreiro da paz. Esses são os componentes que, hoje, me dão motivação para continuar envolvido com o jiu-jitsu e tentar passar uma filosofia que en-grandece o ser humano, independente se ele está envolvido em competições ou não. Encaro a minha missão hoje como algo muito maior do que a minha própria célula de alunos. Vai além de ser Gracie.

Você tem um histórico de 460 lutas e 460 vitórias. Pode-se dizer que você

MAIOR NOME DO CLÃ GRACIE, RICKSON, O LUTADOR INVICTO, BUSCA MOTIVAÇÃO NO

RESGATE DA FILOSOFIA E DOS ENSINAMENTOS DO JIU-JITSU. O HOMEM QUE TREINOU CHUCK

NORRIS AGORA VIVE, SABIAMENTE, DIA APÓS DIA, SEM SE PREOCUPAR COM O FUTURO

por Bruno Mateus fotos Bruno Senna

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chegou à perfeição como lutador?A PERFEIÇÃO é um elemento vivo, não para. Atingi essa po-sição de invencibilidade graças a muito treino, mas diferente das pessoas que pensam que não conheço a derrota, sempre fui muito estressado com relação a me colocar em pressão. Eu preferia perder na academia a perder em público. Pegava meus 10 melhores alunos os quais podia vencer com uma determina-da facilidade e me colocava em posições de estresse, amarrava um braço e tentava pegar todo mundo no triângulo ou deter-minava o período de um minuto para vencer cada um deles e, quando passava para um minuto e 15 segundos, já me sentia como perdedor. O que faz a invencibilidade não é exatamente o seu resultado, e sim a maneira como você tenta superar os obstáculos. Me considero um guerreiro perfeito, porque nunca me deixei abater pelas minhas deficiências.

No Japão, você é idolatrado, lhe chamam de samurai moderno. O reconhecimento é maior lá fora?O BRASILEIRO é um pouco imediatista. Se o time ganhou é maravilhoso, se perdeu é uma porcaria, muda o técnico, muda tudo. Vejo o japonês mais observador com relação aos deta-lhes, à filosofia, ao próprio conceito. Sempre curiosos a respeito de detalhes, eles perceberam que a minha trajetória não vem baseada na sorte, vem baseada no trabalho, na psicologia e numa tradição de família que eles respeitam desde o começo com o Hélio e o Carlos Gracie [pai e tio], da primeira geração. A admiração e o respeito pela tradição é muito maior no Oriente. No Brasil, as pessoas me reconhecem como um atleta invicto, mas não estão muito curiosos em saber o que me fez chegar lá.

Por que você voltou para o Brasil em 2006, depois de viver 20 anos em Los Angeles?HÁ ALGUNS ANOS, refiz minha estratégia em saber o que re-almente me motivava e a combinação do fato de eu estar há muito tempo nos Estados Unidos sem sentir a energia dos ami-gos, da família, da comida e da natureza. Então, senti que, no ponto espiritual, necessitava desse retorno, desse resgate eso-térico, que precisava estar no Brasil. Como um pé de manga, que você tenta plantar no deserto e não vai nascer, senti que as minhas raízes necessitavam dessa troca de energia, tanto do lado emocional, com amigos e família, como do espiritual, com a natureza, o mar, os ventos daqui, que são diferentes, e no lado cósmico também.

E, no Brasil, sua casa é o Rio?O RIO DE JANEIRO é onde me sinto em casa, mas se for uma fazenda em Goiás, se for uma terra boa em qualquer lugar do Brasil, também vou me sentir satisfeito. Gosto do mar, mas adoro cachoeira, rio. Tenho que ficar perto da água, sinto que a água me equilibra. O mar é um equalizador da minha ener- gia eletromagnética.

Qual foi a maior porrada que você levou da vida?SEM DÚVIDA nenhuma, a perda do meu filho, que partiu há 10 anos.

É um tabu falar da morte dele?NÃO, sinto que essa partida representou muito na minha vida, porque consegui administrar essa derrota. Nada pode ser mais significativo do que perder alguém que você realmente ama. Quando você fala em perda, pode pensar na força, na perseve-

rança, na reza, no acreditar que vai haver o amanhã, em todos esses fatores que, talvez, um amigo venha e bote a mão no seu ombro [e fale]. Todas essas opiniões são relevantes, mas, na minha verdade, cheguei à conclusão de que nada disso im-porta. Quando você perde alguma coisa realmente profunda, você tem que sentar, chorar e aceitar que você realmente che-gou ao fundo do poço. Lá do fundo, você vê a razão de dar um tiro na cabeça, de parar de fazer o bem, de desistir de ser uma pessoa feliz. Você fica com todas as opções na mão e tem que chegar nesse ponto de fragilidade, de chorar igual a uma criança. Você pode querer se enganar, “é ruim, mas posso aguentar”, e essa falta de honestidade faz com que você nunca cure a ferida. Cheguei no fundo do buraco e decidi, lá do fundo, se ia voltar à tona ou não. Passei por um processo de cura com a minha família. Durante praticamente três anos, fiquei focado em reganhar essa energia e buscar uma razão que me fizesse ser feliz de novo. E a razão são os três filhos lindos que tenho, a minha família, o jiu-jitsu e, para fechar, esse assunto dentro da minha cabeça, busquei durante muito tempo um lado bom nessa partida, uma coisa que eu pudesse ter como uma vantagem diante da tragédia. Depois de muito meditar, me en-clausurar nos bosques perto da minha casa, sem vontade de surfar, de brincar, de treinar, cheguei à conclusão de que existia uma vantagem, um lado positivo na partida do meu filho. Até aquele momento, nunca tinha realmente dado valor ao tempo, sempre achei que era controlador do meu tempo, que poderia deixar para falar com meu filho amanhã, deixar uma viagem ou uma aula para depois, que o tempo era só uma questão de adaptação na minha agenda. Deixei de fazer muitas coi-

sas achando que poderia fazer depois. Com a partida do meu filho, entendi que não existe o amanhã, a gente tem que fazer tudo como se não houvesse amanhã.

Você chegou a escrever um livro.SIM, lancei há três semanas no Japão. É um livro que foi desenvolvido pela maior editora japonesa, com uma superpromoção no país inteiro e espero que seja um sucesso. Não é um livro de técnicas, e sim um livro filosófico de autoajuda. Não chega a ser só sobre o mo-mento da perda do meu filho, falo muito de conquistas, estratégia, coragem, amor, perda e amizade.

Pelo seu discurso, a espiritualidade tem um papel importante na sua vida.QUANDO você se compromete 100% com o que faz, principalmente lutando, você tem que colocar sua vida em segundo plano, ela já não é mais a sua prioridade, a sua missão é a prioridade. Representar a minha bandeira sempre foi muito maior do que meu corpo físi-co. Quando entro numa competição, não entro pensando em simplesmente me submeter e, caso aconteça alguma coisa, eu desistir. De-sistir não faz parte da minha estrutura. Entro para ganhar, desmaiar, perder ou morrer. Isso me colocou sempre num compromisso espiri-tual muito grande. Aprendi a me desconectar do apego físico e, quanto mais entrosamento com a natureza, mais você sente o quão insig-nificante você é.

Nos EUA, você treinou agentes do FBI, do exército americano, atores e até o Chuck Norris. Como foi treiná-lo?CHUCK NORRIS é um cara muito legal, sempre gostou de artes marciais. Quando o conheci aqui, nos anos 1980, ele ficou maravilhado com o jiu-jitsu, voltou para os EUA, conheceu o meu irmão, começou a ter aulas. Depois fui para lá e dei aulas a ele.

Em uma entrevista, você disse que seu pai não queria saber de boletim, queria saber de medalha de ouro. Houve pressão para você ser lutador?MEU PAI sempre foi louco por jiu-jitsu, a luz da vida dele era desenvolver a arte e crescer com o jiu-jitsu. Essa ideia sempre esteve perpetua-da na família. Meu pai foi muito inteligente no sentido de como manter-nos agregados e con-fortáveis dentro do esporte. Quando eu tinha 6 anos, ele me levava para competir. “Meu filho, quer competir? Então tá, papai vai te levar. Se você ganhar, te dou um presente; se você per-der, te dou dois.” Nessa idade, nunca percebi o que isso significava, mas era simplesmente uma forma dele me dizer que não ficaria cha-

teado se eu perdesse. Ele sempre manteve um conforto em volta da gente para que o jiu-jitsu não se tornasse uma coisa chata, obrigatória, até o ponto em que nós mesmos nos sentís-semos mais confiantes. A coisa mais importante na vida dele, que mais fazia os olhos dele brilharem, era me ver vencendo uma competição. Essa era exatamente a hora de pedir uma bicicleta, de dar uma mordida no velho. [risos]

Quando falamos de família Gracie, existe essa coisa de vocês se encontrarem aos domingos, se reunirem no Natal?A FAMÍLIA GRACIE é unida, é grande, mas, para você ter uma ideia, há uns 35 anos nós tentamos reunir toda a família em um Natal. Juntou-se mais de 250 pessoas e não deu para ir todo mundo. Hoje, talvez, eu não saiba mais o nome de 60% da família. Todos abaixo de 20 anos que moram no Brasil eu tenho que ser apresentado, porque não conheço. A família se respeita, se gosta, mas está cada um em um canto. Só nos EUA tenho quatro irmãos.

Como foi sua infância?MARAVILHOSA. Nascido e criado em Copacabana, no tempo em que ainda não tinha nem o aterro de Copacabana, a praia era maravilhosamente linda. A gente jogava futebol nas ruas de menos trânsito, brincava, pegava onda, estudava pouco e treinava muito.

Brigava na escola?ESTABELECI logo uma posição de controle e não tinha mais bri-ga. Comia a merenda que eu queria e jogava pingue-pongue o tempo que eu queria no recreio. Ninguém me tirava do pingue--pongue [risos].

Qual o maior ensinamento que seu pai passou para você?MEU PAI foi um grande homem, um mestre em todos os sen-tidos. Como pai, me ensinou a respeito de honra, honestidade, valores, moral, princípios; como mestre, técnicas, estratégias, conceitos, filosofia. Ser filho de um mestre é uma dádiva.

Qual é a imagem que você acha que as pessoas têm de você?QUANDO COMEÇAM a entender mais como eu penso, passam a admirar, porque, na verdade, sou um soldado do bem, acredi-to no perdão, no amor, na amizade. Acho que passo uma ima-gem de controle, de estratégia. Essa combinação de elementos

NA ESCOLA, ESTABELECI LOGO UMA POSIÇÃO DE CONTROLE E NÃO TINHA MAIS BRIGA: COMIA A MERENDA QUE QUERIA E JOGAVA PINGUE-PONGUE O TEMPO QUE QUERIA, NO RECREIO. NINGUÉM ME TIRAVA DO PINGUE-PONGUE

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Uma de suas paixões, o surfe tem sempre lugar

nas manhãs do ex-lutador

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faz com que eu acredite que minha imagem é muito mais posi-tiva do que negativa, muito embora cada um pense o que quer.

Além de colecionar vitórias, você também colecionou inimigos?QUANDO VOCÊ passa pela vida, das muitas azeitonas que come, às vezes você morde um caroço. Procuro relevar esse conceito dentro da minha cabeça. Não me relaciono com as pessoas que me deram uma atitude meio azeda, não mante-nho uma energia negativa dentro do meu corpo, que só faz mal para mim. Perdoo, mas não esqueço.

Quem é o maior lutador da atualidade?ESSA PERGUNTA É DIFÍCIL de responder. Hoje, as regras, tanto do jiu-jitsu como do MMA, limitam muito a performance do lu-tador. A técnica e a estratégia ficam reduzidas. Vejo atletas de alto nível de performance, mas não tenho nenhuma admiração pelo componente do que eu vejo completo num atleta: a es-tratégia, a técnica, a sensibilidade, o timing, o aproveitamento. Vejo dois cachorros loucos brigando, saindo na porrada, mas não tem aquela beleza.

O MMA seria, então, um vale-tudo com mais regras.SIM, e essas regras despiram o MMA do que eu acredito ser a filosofia perfeita da arte marcial. Nunca lutei MMA, já lutei vale-tudo, que não tem peso e tempo. Hoje, já não se necessita tanto desses elementos, porque o peso é igual e os rounds são curtos. As regras são diferentes, tudo é diferente. Admiro como um esporte extremo, como uma coisa que é a evolução dos tempos, mas não tem o mesmo apelo filosófico, técnico.

Além do surfe, você gosta de praticar outro esporte?ATUALMENTE, o esporte que mais pratico é a fisioterapia [risos]. Depois de uma vida de queda, de sufoco, não estou mais para me considerar um atleta. Estou satisfeito por pegar as minhas ondinhas, dar minhas aulas, é por aí que me sinto confortável e não posso mudar a minha realidade.

Você dá bola para futebol?NÃO, nunca dei, mas sou Fluminense, sou tricolor. Nunca gostei de esportes em grupo, sempre fui muito individualista. Tiro ao alvo, carro, bicicleta, surfe, skate, pingue-pongue. Coisas indivi-duais me davam mais prazer.

Recentemente, um boxeador morreu em decorrência das pancadas que levou na luta. Tem gente que acha que boxe não é esporte, vale-tudo e MMA, então, nem se fala. O que você acha disso?ACHO ERRADO, a partir do momento que você estabelece um critério de regras, aquilo passou a ser esporte, que, para muitos, é violento. O hóquei no gelo, o futebol americano e o rúgbi são esportes altamente violentos e as pessoas, às vezes, não inter-pretam essa violência como tal. É importante saber que todas as pessoas envolvidas no esporte estão preparadas para o tipo de confronto, estão ali porque querem estar.

Você acha que é hipocrisia o lutador já consolidado falar “não brigue na rua”, sendo que boa parte fez isso antes de ter uma consciência mais profissional?DENTRO DE UMA PERSPECTIVA SUPERFICIAL, existe uma hipo-crisia, porque todos nós já passamos por uma ou outra ocorrên-

que eu não aguentava. Foi a minha maior lição, que completou todo um acervo técnico e psicológico. Apren-di que, no sufoco, quanto menos você acreditar que vai perder, mais chances você tem de ganhar.

Algum adversário já lhe fez tremer?NUNCA. A única maneira de eu sentir medo é com mi-nha própria insegurança.

Quando comentei a um amigo que ia lhe entrevistar, ele disse: “Pergunta sobre o Sakuraba”. Vocês iam lutar em 2001, mas seu filho faleceu e a luta nunca aconteceu. ESSA LUTA seria o meu maior pagamento de todos os tempos. Me ofereceram 5 milhões de dólares. Eu ia bo-tar meu burro na sombra. O [lutador japonês] Sakura-ba ganhou de vários Gracie e seria uma luta boa para mim, talvez a melhor luta se eu pudesse vencê-lo, por-que realmente ele ficou atravessado na garganta de todo Gracie. [Sakuraba era conhecido como “destruidor de Gracie” por ter vencido Royler, Royce, Renzo e Ryan.]

Você gosta de dizer que não sabe qual a sua idade, se você tem 18 ou 100. Por que isso?NÃO TENHO a mínima preocupação de envelhecer. Se você afirma todos os dias que tem 50, você se coloca dentro de uma grade que tendo 50 não pode mais fazer o que o de 20 faz. Você limita a sua atividade. A grande coisa da vida é pensar livremente, ter a cabeça aber-ta para aprender. Você não vai correr com a garotada durante os 90 minutos, mas pode ficar na beira do gol, chamando a bola e, de repente, marcar um golzinho.

Sua família já se tornou referência mundial em artes marciais. Isso, provavelmente, continuará com seu filho, com seu neto. Seu pai chegou aos 95 anos e pode ser que você também chegue lá. Como quer ser lembrado daqui a 50 anos?NÃO é uma coisa que me preocupa. A manutenção em cima do meu trabalho no jiu-jitsu é a maior referência que tenho: manter o meu serviço, a minha integrida-de dentro do que faço. Acredito que isso refletirá em alguma opinião no futuro, mas me interessa mais o serviço que estou fazendo hoje, que mudou desde que me aposentei. Quando tive que fazer uma reavaliação do que seria realmente interessante para mim, encon-trei novamente dentro do jiu-jitsu a motivação por meio dos seminários e palestras motivacionais. Espero que estes deem resultados para que alguém, eventualmen-te, fale disso no futuro.

cia. O fundamental não seria o “não brigue na rua”, mas “use o seu poder para se defender”. Às vezes, você fica completamente despido de outra opção que não seja brigar. Não vou falar “vire um covarde, vá para casa e perdoe”. Encorajo meus alunos a se defenderem. Se o cara quiser agredir sua mulher ou filho, você vai ter que brigar. Para isso, o jiu-jitsu é a melhor forma, porque é uma arte de defesa, você se defende primeiro e acaba com o sujeito em segundo plano. Você vê gente treinando jiu-jitsu para brigar em boate, você vê todo tipo de erro e isso não é o que você espera dentro de uma conduta. Acho que isso é uma mancha pequena dentro de um componente muito maior que é o esporte, o benefício social.

Já experimentou drogas? É a favor da legalização?JÁ. Por algumas oportunidades, fui exposto a todo o tipo de droga. Droga, para mim, desde o café, aspirina, álcool, maco-nha, anabolizante, todas as drogas estão aí incrementando, aumentando ou diminuindo um lado do seu senso físico ou psicológico. Não sou ninguém para dizer que maconha é bom ou ruim, tem gente que usa como remédio, alguns usam para alucinar, outros não têm nenhum controle. Com relação ao tráfi-co, acho que quanto mais liberado estiver, mais fácil fica para o governo controlar e menos o crime tem acesso, porque ninguém vai parar de usar drogas. Quando é legalizado, o governo ganha taxa, as pessoas têm mais controle, e o crime perde força. Eu acho que isso aí só traz vantagens, porque não é evitando o crime que você vai evitar as drogas.

O que toca no som da sua casa?GOSTO DE TODO TIPO DE MÚSICA: rap, reggae, rock, samba, música contemporânea, brasileira, jazz. Faço download no iPod, boto logo umas 500 músicas que gosto.

Como você se relaciona com a tecnologia?NÃO SOU O “MISTER TECHNOLOGY”, mas tenho que me adap-tar. Hoje, trabalho com e-mail 200% a mais do que trabalhava há três anos. Uso skype, uso uma série de facilidades, a tecno-logia me adianta muita coisa, e estou procurando me manter antenado para esse crescimento.

Fala um pouco sobre o documentário que foi feito sobre sua família no ano passado.

FOI FEITO em Nova York por um aluno do Renzo. Não vi e não posso analisar ou dizer o que achei. Sou tão ocupado que pas-sou a oportunidade certa de ir à premiére, depois não tive aces-so à cópia e o tempo passou, mas estou curioso para ver.

Os duelos com o Rei Zulu foram os mais marcantes da sua carreira?TIVE DUAS LUTAS com ele, a primeira foi a mais marcante por-que aprendi, talvez, minha grande lição como lutador. Foi minha primeira luta profissional, aos 19 anos, e ele já com 120 lutas, totalmente formado como lutador. Eu tinha 72 quilos e ele, 98. No final dos primeiros 10 minutos, me acovardei, voltei para o canto e falei para o meu pai: “Não dá para voltar, estou morto de cansaço”. Isso foi em 1980. Meu pai nem me escutou, falou que eu estava indo bem, mas eu disse: “Estou falando sério, o negócio está brabo”. Enquanto discutia com meu pai, meu irmão mais velho [Rolles] jogou um balde com água e gelo na minha cabeça, dei aquela respirada e, quando vi, já estava lá dentro de novo. Depois de três minutos, botei o Zulu para dor-mir com um estrangulamento por trás. Esse, talvez, tenha sido o maior duelo, porque estava duelando com a minha própria intimidade, o meu próprio medo, era a minha cabeça dizendo

A ADMIRAÇÃO E O RESPEITO PELA TRADIÇÃO É MUITO MAIOR NO ORIENTE. NO BRASIL, AS PESSOAS ME RECONHECEM COMO UM ATLETA INVICTO, MAS NÃO ESTÃO MUITO CURIOSOS EM SABER O QUE ME FEZ CHEGAR LÁ

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Os seminários, como este em BH, no mês passado, dão motivação para Rickson seguir no esporte

Rickson antes de entrar no ringue, onde ele

desconhece o que é perder

Três gerações: com o pai, Hélio, e o filho, Kron

A clássica luta entre Rickson e Rei Zulu: migre.me/1PUrx

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< OLHA ISTO >

Agradecimentos a Daniel Luiz Silva, da Choke Kimono.

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