RIDENTI,Marcelo.chico Oliveira

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CADERNO CRH, Salvador, v. 25, 66, p. 601-622, Set./Dez. 2012 601 Flávio da Silva Mendes, Marcelo Siqueira Ridenti DO DUALISMO AO ORNITORRINCO: entrevista com Francisco de Oliveira 1 Marcelo Siqueira Ridenti * Flávio da Silva Mendes ** ENTREVISTA Marcelo Ridenti: Nesta entrevista, nós estamos in- teressados em discutir sua obra. Chico de Oliveira: Que obra? Marx um dia per- guntou: “que obra?” (risos). Flávio Mendes: Na outra entrevista à Margem Es- querda, você falou a mesma coisa. Se não for a obra, pelo menos a trajetória. Chico: Trajetória é melhor, eu me reconcilio me- lhor com essa ideia do que com a de obra. Eu te- nho um texto importante, dos anos 1970, que é Crítica à razão dualista. Os outros não tiveram tanta importância. Flávio: Você tem dois artigos anteriores que foram publicados na Revista Civilização Brasileira. Um de 1965, que é uma crítica ao programa econômico do Castello Branco, e um de 1966, sobre planeja- mento. Minhas perguntas são sobre esses dois tex- tos, duas perguntas na verdade: Eu queria que você falasse sobre os temas deles. Quais eram as pro- postas desses dois artigos? E, também, como você chegou à Civilização Brasileira? Chico: Nessa época, eu fiquei muito no Rio de Janeiro. Eu estava, na sequência do golpe, saindo de Recife e fiquei no Rio de uma forma bastante provisória, sem emprego, fazendo bicos, e me apro- ximei do grupo que o Ênio Silveira reunia. Era um grupo de esquerda, majoritariamente do Partidão [Partido Comunista Brasileiro], porque ele próprio era militante do Partidão. E eu me aproximei da- quele grupo. Foi quando ele estava lançando a Revista Civilização Brasileira, e eu fiz o primeiro artigo, que foi sobre o Castello Branco. Foi escrito como uma peça de oposição à ditadura. Ele tem um título farsesco, porque diz que não vai dar cer- to e deu (risos). Fazia parte de uma frente de opo- sição, que era muito louvável, contra o Roberto Campos, era o mentor, o Bulhões... A gente queria cutucar o cão com vara curta. Esse é o contexto em que foi produzido. Não tem grande coisa. Marcelo: Esse pessoal da revista se reunia com frequência? Chico: Não se reunia com frequência, não era uma Em 2012, o ensaio “Crítica à razão dualista”, de Francisco de Oliveira, completou 40 anos. Nesta entrevista, o sociólogo pernambucano radicado em São Paulo expõe algumas das referên- cias teóricas e políticas que o levaram à elaboração daquele texto clássico. Discute, também, outros trabalhos importantes ao longo de sua trajetória intelectual, desde os artigos ainda inspirados pelo dualismo de Celso Furtado, nos anos 1960, até a criativa metáfora do ornitorrinco, à qual recorre para compreender o Brasil atual. Nesse percurso, revisita trabalhos dedicados à região nordeste, aos desafios da redemocratização da sociedade brasileira, à trajetória dos intelectuais do país, ao Partido dos Trabalhadores e ao avanço do neoliberalismo, já nos anos 1990. No final, não se esquiva de realizar comentários sobre a atual conjuntura nacional. Esperamos que este material contribua para o debate sobre sua obra e inspire, mais uma vez, reflexões sobre a realidade brasileira. * Doutor em Sociologia. Professor Titular de Sociologia na Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. Departamento de Sociologia – IFCH. Cidade Universitá- ria. Cep: 13081-970 – Campinas – São Paulo – Brasil. [email protected] ** Doutorando em Sociologia. [email protected] 1 Entrevista realizada na residência de Chico de Oliveira em São Paulo, em 13 de abril de 2012.

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    Marcelo Siqueira Ridenti*

    Flvio da Silva Mendes**

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    Marcelo Ridenti: Nesta entrevista, ns estamos in-teressados em discutir sua obra.Chico de Oliveira: Que obra? Marx um dia per-guntou: que obra? (risos).Flvio Mendes: Na outra entrevista Margem Es-querda, voc falou a mesma coisa. Se no for aobra, pelo menos a trajetria.Chico: Trajetria melhor, eu me reconcilio me-lhor com essa ideia do que com a de obra. Eu te-nho um texto importante, dos anos 1970, que Crtica razo dualista. Os outros no tiveramtanta importncia.Flvio: Voc tem dois artigos anteriores que forampublicados na Revista Civilizao Brasileira. Umde 1965, que uma crtica ao programa econmicodo Castello Branco, e um de 1966, sobre planeja-mento. Minhas perguntas so sobre esses dois tex-tos, duas perguntas na verdade: Eu queria que voc

    falasse sobre os temas deles. Quais eram as pro-postas desses dois artigos? E, tambm, como vocchegou Civilizao Brasileira?Chico: Nessa poca, eu fiquei muito no Rio deJaneiro. Eu estava, na sequncia do golpe, saindode Recife e fiquei no Rio de uma forma bastanteprovisria, sem emprego, fazendo bicos, e me apro-ximei do grupo que o nio Silveira reunia. Era umgrupo de esquerda, majoritariamente do Partido[Partido Comunista Brasileiro], porque ele prprioera militante do Partido. E eu me aproximei da-quele grupo. Foi quando ele estava lanando aRevista Civilizao Brasileira, e eu fiz o primeiroartigo, que foi sobre o Castello Branco. Foi escritocomo uma pea de oposio ditadura. Ele temum ttulo farsesco, porque diz que no vai dar cer-to e deu (risos). Fazia parte de uma frente de opo-sio, que era muito louvvel, contra o RobertoCampos, era o mentor, o Bulhes... A gente queriacutucar o co com vara curta. Esse o contexto emque foi produzido. No tem grande coisa.Marcelo: Esse pessoal da revista se reunia comfrequncia?Chico: No se reunia com frequncia, no era uma

    Em 2012, o ensaio Crtica razo dualista, de Francisco de Oliveira, completou 40 anos.Nesta entrevista, o socilogo pernambucano radicado em So Paulo expe algumas das refern-cias tericas e polticas que o levaram elaborao daquele texto clssico. Discute, tambm,outros trabalhos importantes ao longo de sua trajetria intelectual, desde os artigos aindainspirados pelo dualismo de Celso Furtado, nos anos 1960, at a criativa metfora do ornitorrinco, qual recorre para compreender o Brasil atual. Nesse percurso, revisita trabalhos dedicados regio nordeste, aos desafios da redemocratizao da sociedade brasileira, trajetria dosintelectuais do pas, ao Partido dos Trabalhadores e ao avano do neoliberalismo, j nos anos1990. No final, no se esquiva de realizar comentrios sobre a atual conjuntura nacional.Esperamos que este material contribua para o debate sobre sua obra e inspire, mais uma vez,reflexes sobre a realidade brasileira.

    * Doutor em Sociologia. Professor Titular de Sociologiana Universidade Estadual de Campinas UNICAMP.Departamento de Sociologia IFCH. Cidade Universit-ria. Cep: 13081-970 Campinas So Paulo [email protected]

    ** Doutorando em Sociologia. [email protected] Entrevista realizada na residncia de Chico de Oliveira

    em So Paulo, em 13 de abril de 2012.

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    coisa organizada. Mesmo porque o nio tinhamuito medo de ser organizado porque ele era doPartido e ele sabia os riscos. O Partido tirava cas-tanha do fogo com mo de gato. Quer dizer, comoele era rico, o Partido queria meter a mo. Eledizia: Olha, eu sou comunista, mas essa livrariaaqui minha t, no do partido. Era mais oumenos espontneo.Marcelo: Quem participava? Ferreira Goulart, DiasGomes, Paulo Francis?Chico: No. Era Moacyr Flix, talvez Paulo Francistenha ido uma vez.Marcelo: O Octavio Ianni chegou a participar dealgumas coisas?Chico: No. O Ianni morava em So Paulo. Elepublicava s vezes e era muito prestigiado pela edi-tora. Acho que, naquela fase, todos os livros delesaram pela Civilizao Brasileira, mas ele no ia.Marcelo: Na Crtica razo dualista, h um tomautocrtico em relao a esses artigos, porque vocestava ainda muito prximo das ideias do CelsoFurtado naquele momento, no ?Chico: Muito. Ali eu comeava a me dar conta, deforma consciente, e a tentar fazer a crtica CEPAL.O outro artigo mais fraco. Eu tentava pensar exa-tamente como o ttulo diz. Porque o planejamentoestava muito associado experincia socialista. Eutentava pensar de outra forma, porque o planeja-mento entrava na agenda de sociedades desenvol-vidas.Flvio: Uma antecipao de um tema que voc re-tomou em Elegia para uma re(li)gio, dez anosdepois?Chico: Mas no com aquele enfoque. J era um patrs com o furtadismo, que fazia do planejamentouma espcie de panaceia. At porque fazia muitoparte da conjuntura. O [Roberto] Campos insistiamuito no planejamento, como se a ditadura esti-vesse fazendo planejamento. Eu escrevia nessa fren-te de oposio. A ideia era muito associada ao so-cialismo e a dar um anteparo a essa viso. Mas no um artigo que seja referncia para nada.Flvio: Ainda sobre ele, o Marcelo citou que aindaexistia ali uma relao forte com o Celso Furtado,mas comeava a aparecer certo distanciamento. Eu

    queria saber o que inspirava, naquela poca, essedistanciamento. Na entrevista Margem Esquer-da, voc disse que tinha um projeto de fazer umapesquisa com o Florestan Fernandes e que o pro-jeto se perdeu. Foi nessa poca ps-golpe tambm?Voc tinha um pouco de contato com o pessoalque depois seria do CEBRAP [Centro Brasileirode Anlise e Planejamento]?Chico: No tinha. Seria muito nobre dizer que sim.A histria do Florestan foi acidental. Eu entregueio meu projeto de mestrado ao Gabriel Bolaffi, umgrande amigo que eu tinha em So Paulo, e eleperdeu (risos).Marcelo: Isso era 1965?Chico: Eu j estava em So Paulo.Flvio: Ento deve ser 1968 ou 1969, um poucoantes do Florestan ser aposentado. E voc lembrao tema do projeto?Chico: Eu lembro que tive uma conversa muitobreve com Florestan e foi a partir dela que o proje-to surgiu. Na verdade, eu queria pensar e experi-ncia da SUDENE [Superintendncia do Desen-volvimento do Nordeste]. Eu s fui fazer isso mui-to tempo depois. Mas foi melhor, vendo em re-trospectiva. Eu ia fazer uma coisa muito furtadiana.Eu no tinha ainda o afastamento suficiente. Erauma tentativa. Eu no tinha muito contato com oFlorestan.Flvio: Voc o conhecia como, atravs do OctavioIanni?Chico: Era mais pelo Octavio. Eu era muito amigodo Octavio. Ns o levamos vrias vezes para cur-sos na SUDENE. E ele foi uma das pessoas queme acolheram. Ns nos tornamos muito amigos.Eu no tinha nada a ver com as intrigas de SoPaulo, eu no sou daqui, portanto no sabia. Eusabia que o Fernando Henrique, que fazia par comele, tinha uma diferena. Para fazer uma histriadas ideias que tenha que ver com conjuntura his-trica, de fato, Octavio era mais superficial do queo Fernando Henrique. Ele era mais engajado, mas,de fato, a produo dele era um pouco mais su-perficial do que a de Fernando Henrique.Flvio: A, em seguida, o Ianni te convidou para oCEBRAP?

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    Chico: O Octavio estava fazendo um projeto queia ser patrocinado pela Academia Brasileira de Ci-ncias. Ela dava o dinheiro e repassava esse di-nheiro para o CEBRAP. O projeto era sobre plane-jamento. Ele cuidava da parte de planejamento noBrasil e me convidou para fazer a parte de planeja-mento regional. Esse projeto fracassou, tambm,porque o governo puxou o tapete. Mas eu j esta-va l, o Octavio j tinha comeado a trabalhar, e, apartir dali, eu comecei a pensar mais sobre o pla-nejamento regional, mas no escrevi nada que pres-tasse. S depois.Marcelo: Voc disse que, felizmente, no fez na-quele momento um texto avaliando a experinciada SUDENE, porque voc ainda estaria muito pr-ximo das ideias do Furtado. Essa sua entrada noCEBRAP teve um sentido de mudana, um mo-mento decisivo no seu pensamento? O contato comesse pessoal, o Jos Arthur Giannotti, o FernandoHenrique, o Jos Serra?Chico: No, o Serra nunca foi do CEBRAP. A vidatoda ele nunca foi, de fato. O Fernando Henriquetratava de pux-lo. Ele estava no Chile, depois con-seguiu regressar. Mas ele nunca foi, de fato. A en-trada no CEBRAP foi decisiva. Eu acho que foi agrande aquisio que tive nos anos 1970. Porquea eu me enderecei decisivamente para pensar asociedade atravs do marxismo. Havia um ambi-ente muito estimulante. O Giannotti era a figuraprincipal do ponto de vista terico. O FernandoHenrique era uma pessoa muito estimulante napoca do CEBRAP, ao contrrio do que ele depoisveio a ser. Ele era uma pessoa muito estimulante.Havia um conjunto de pessoas. O Juarez BrandoLopes, embora no fosse marxista, era uma pessoamuito aberta. Era um grupo muito interessante.Vinha gente de fora vrias vezes Pedro Malan,Maria da Conceio Tavares , para o famosomeso, que era uma reunio, uma discusso quehavia periodicamente. Pegava-se um texto impor-tante, fazia-se a discusso. E estvamos ainda numapoca em que no se faziam reverncias. Ento, opau cantava de forma realmente bastante livre.Depois, no. Depois j vieram as reverncias.Fernando Henrique no era nada naqueles anos,

    no era nem conhecido no Brasil. A gente teve afase meio missionria: a gente saa pelo Brasil fazen-do conferncias e eu testei isso vrias vezes. OCEBRAP ningum sabia o que era. Todo mundopensava que era um armazm de secos e molhados...Marcelo: O Fernando Henrique tinha feito o livrocom o Enzo Faletto, que teve certa visibilidade naAmrica Latina. [(Cardoso; Faletto, 1975)]Chico: Mais na Amrica Latina do que no Brasil.Mas, de qualquer forma, ele era um sujeito muitoestimulante.Marcelo: E era o articulador poltico?Chico: Era o articulador poltico. O CEBRAP foi,em grande medida, obra dele. Porque ningum iafazer um instituto daquele, em plena ditadura, seno tivesse cobertura. No sei muito bem da hist-ria, porque eles tinham segredos de estado queno revelavam. Muito da cobertura veio de PauloEgdio Martins, que era governador de So Paulo.Velho udenista, ele garantiu, segundo contam, queo instituto no ia tentar fazer oposio, no erapara isso. Calhou que, naqueles anos, havia umaliderana progressista na Fundao Ford. O sujei-to que dirigia intelectualmente o auxlio da Funda-o Ford a vrias instituies de pesquisa era umporto-riquenho de esquerda, que estava nos Esta-dos Unidos e que ajudou muitas instituies. OTorcuato Di Tella era praticamente sustentado pelaFord. Essas coisas se encaixaram, e a FundaoFord dava o dinheiro. Mas, de fato, nunca interfe-riu na temtica, at onde eu posso ter percebido.Havia coisas por baixo do pano.Marcelo: Vocs tinham um salrio para fazer partedas pesquisas?Chico: No, a gente tinha uma bolsa da Ford. E odinheiro era complicadssimo. O dinheiro vinhavia Cndido Mendes, do Rio de Janeiro. CndidoMendes transferia para o CEBRAP. Era uma ope-rao arriscada. A ditadura sabia.Marcelo: A Crtica razo dualista j resulta des-se convvio?Flvio: Voc falou, em alguns debates, que ela foiuma resposta ao Fernando Henrique. O Paul Singertambm escreveu um livro em resposta. Qual eraesse debate?

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    Chico: Esse debate o que est no livro doFernando [Henrique Cardoso (1975)] Autoritarismoe democracia. A tese do Fernando que a ditadu-ra era a revoluo burguesa no Brasil. Tinha certarazo, do ponto de vista que de que ela quebroucertas resistncias oligrquicas para limpar o terre-no. Mas foi em reao a essa tese que eu elaborei aCrtica razo dualista, e o Paul fez uma crticaeconmica ao Fernando. So as duas peas com asquais ns enfrentamos a posio do FernandoHenrique.Marcelo: Florestan Fernandes [(2006)], em A revo-luo burguesa no Brasil, coloca a revoluo bur-guesa como um processo, e a ditadura militar comocoroando esse processo por uma via autoritria. um pouco diferente do encaminhamento doFernando Henrique, mas, de alguma maneira, che-gando a um resultado parecido.Chico: Chegam prximo, mas o Fernando Henriqueescreve antes. Enfim, essas ideias estavam maisou menos no ar naquele grupo que o Florestan, dealguma maneira, criou. Fernando Henrique ante-cipou, mas nunca deu o acabamento terico com-pleto. Quem vai dar Florestan, em A revoluoburguesa no Brasil.Flvio: Florestan escreveu uma parte logo depoisdo golpe de 1964, em 1966, e s foi terminar otexto em 1974. Ento, o livro do Fernando Henriquedeve trazer algumas ideias do debate com oFlorestan.Chico: Deve trazer, porque eles eram muito prxi-mos. O Fernando Henrique fazia parte daquele gru-po que o Florestan criou. Ele foi seu pupilo predi-leto. Era um grupo: ele, o Octavio, Maria Sylvia[Carvalho Franco]. Devia ter algumas ideias quecirculavam entre eles, e o Fernando se antecipounaqueles tempos do CEBRAP, mas ele nunca ela-borou de uma forma mais acabada. Isso a quemvai fazer o Florestan.Flvio: E como Crtica razo dualista foi recebido?Ele foi publicado pela primeira vez pelo CEBRAP.Foi discutido l dentro, teve muitas crticas?Chico: Foi, foi muito discutido. Eu me assustei,achei que o texto era banal. Foi muito discutido,vrias sesses. Florestan veio para discutir, Caio

    Prado veio discutir. Foi muito interessante. Houveuma recepo muito forte, e eu me surpreendi,estava dizendo coisas mais ou menos sabidas.Depois foi que eu percebi, vendo em retrospecto,que havia uma distino forte entre os cariocas eos paulistas do ponto de vista intelectual. A velhadiviso entre cariocas e paulistas tambm existenesse terreno. Quer dizer: os cariocas conheciamo Brasil, mas a teoria era fraca. Os paulistas noconheciam o Brasil, e a teoria era forte. Quandoeles se encaminharam para o mtico seminrio doCapital, do qual eu no participei, evidentemente,porque no morava aqui, eles entendiam muitopouco do Brasil. Enquanto que o Rio, pelo fato deter sido capital, tem uma produo que muitomais entranhada com a realidade brasileira do queSo Paulo. Depois isso muda, e o eixo passa a serSo Paulo.Flvio: Voc falou que essa produo, principal-mente do CEBRAP, era rica teoricamente, mas ain-da conhecia pouco o Brasil. Voc acha que suaexperincia na SUDENE, o fato de trazer a questodo Nordeste, foi uma novidade ali naquele ambi-ente que talvez tenha despertado essa ateno gran-de da Escola Paulista?Chico: Talvez sim. O fato era que eles conheciammuito pouco. O marxismo deles era muito acad-mico. Era de bom nvel, mas era muito acadmico.E conheciam muito pouco o Brasil. Ento, o queeu trouxe foi experincia de vida. Teoricamente,eu era fraco. Tanto que, se voc vai ver, as minhasreferncias bibliogrficas so quase nulas. Eu tireia viola do saco no sei como. Era muito da experi-ncia que a SUDENE me deu, porque a SUDENE,no fim das contas, era um rgo governamental,ento voc conhecia por dentro como funcionavao Estado brasileiro, pelo menos naquela parte refe-rente questo regional. Eu fui militante socialistano Recife. Recife era uma cidade operria. Para al-gum de esquerda, era difcil ser indiferente que-la experincia operria. O Partido Comunista eramuito forte no Recife. Eu no fui do partido, masmeus colegas de gerao quase todos foram. Eutrazia uma experincia muito vivida. Era teorica-mente frgil, mas muito mergulhada. No era uma

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    experincia de participao poltica mais sria. Eeu observava muito. Se voc tiver olhos para ver,voc aprende muito.Marcelo: No meu tempo de estudante, no fim dosanos 1970, li a Crtica razo dualista e A revolu-o burguesa. Minha tendncia, na poca, era veros textos quase como complementares, no comoteses diferentes. Em que voc discordava doFlorestan e do Fernando Henrique?Chico: O centro o dualismo.Marcelo: Voc acha que eles ainda estavam presosao dualismo?Chico: Eles ainda estavam presos a categoriasdualistas. Muito matizadas, evidentemente.Florestan tinha uma cultura marxista muito am-pla, que s se revela depois, quando ele seradicaliza. Mas Florestan, nos anos 1940, traduziaMarx. O dualismo est muito matizado naqueletexto em que, segundo todas as vozes, ele erafuncionalista. O centro da divergncia era odualismo, e nisso a minha experincia de vida meajudou muito, trouxe essa contribuio. Porque euvia as coisas de forma muito engrenada. No aque-la repartio esquemtica entre atraso e progresso.Era, ao mesmo tempo, a fora-impulso e o freio.Eu acho que o centro da divergncia era a tesedualista.Flvio: Seu texto tambm bastante crtico pro-duo de Celso Furtado e da CEPAL em geral. Masdepois, mais tarde, voc disse que aquela crticafoi muito pesada. O que fez com que fosse umacrtica to pesada? Foi a influncia do pessoal doCEBRAP?Chico: Foi. No que eles estivessem se dirigindocontra Furtado, foi uma interpretao minha. Masera muito pesada e muito injusta. H certas passa-gens da vida em que voc v inimigos por todolado (risos). Eu achava que o Furtado era o inimi-go, mas ele no era. Ento, eu me redimo de umacrtica ideolgica que foi muito injusta.Marcelo: Na opinio desse pessoal da USP, o Fur-tado, sim, que seria dualista. Eles nunca vesti-ram a carapua.Chico: Eles nunca vestiram, mas eles eram. Eleseram de uma forma mais matizada. O Furtado nun-

    ca se meteu a marxista. Isso deve ser dito em hon-ra da integridade intelectual dele. Ele leu Marx,mas ele claramente tentava uma alternativa. O pes-soal da USP no se achava dualista. Existia, den-tro do pensamento deles, a diviso entre atraso eprogresso, de forma mais matizada, de forma maiselaborada, mas existia. Voc encontra isso emFlorestan, encontra isso de maneira muito forteem Fernando Henrique. Mesmo em Octavio h essadistino dual.Marcelo: E voc est ali mostrando como o supos-tamente moderno se alimenta e indissocivel doatraso.Chico: indissocivel do atraso. Nas condiesperifricas, voc quase obrigado a fazer progres-so, entre aspas, pela via atrasada. Eu via isso nazona da cana de Pernambuco. Era visvel. Ali tinhaum amlgama que a esquematizao no resolvia.Flvio: E nesses debates que se seguiram publi-cao do texto, com Florestan, Caio Prado, oFernando Henrique deve ter participado tambm,essa questo do dualismo aparecia? Foi debatida?Qual era o teor desse debate? Era mais aceitao aotexto ou crtica?Chico: Foi muita aceitao, eu no esperava. Haviaum intercmbio muito forte com o Rio. O AntnioBarros de Castro veio num desses seminrios echamou o texto de funcionalista. A resposta noveio de mim, veio do Giannotti. O Giannotti deu-lhe uma lio de funcionalismo. E ainda disse, deforma como lhe comum: se voc quiser, eu tedou uma bibliografia (risos). Era um debate muitointeressante e muito vivo. Havia pouca reverncia.Marcelo: O Roberto Schwarz fazia parte tambmnessa poca? J estava no Brasil?Chico: No estava. Roberto, depois que voltou,passou a ser uma presena assdua. Mas nessapoca quente ele no estava.Marcelo: Isso foi 1972, 1971?Chico: Era. O Roberto no estava. Ele no tinhavoltado ainda. O problema deles com o Crtica razo dualista, em geral, era So Paulo: qual era olugar de So Paulo, naquela estrutura terica, emprimeiro lugar, e no desenvolvimento dialticodessa troca entre atrasado e moderno. Havia uma

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    dificuldade que eles atribuam a mim, de no en-tender o lugar de So Paulo nesse capitalismo. Nohavia discordncia de fundo, digamos assim. Foimuita gente de fora discutir. Bresser Pereira eramuito presente l, Eduardo Suplicy. Do Rio vi-nham com frequncia o Pedro Malan, a Maria daConceio Tavares, Antnio Barros de Castro.Flvio: O Paul Singer [(2006)] falou num texto quevoc era considerado o economista do CEBRAPnaquela poca. O pessoal ali tinha uma formaomais na rea de sociologia, ligada ao Florestan, evoc era visto como um economista que trazia maistemas econmicos para dentro do CEBRAP. Paraeles, era uma coisa nova em relao produoque eles faziam?Chico: Sim, isso era um problema, de fato. Espan-tou-me muito quando eu comecei a me interar daformao que eles fossem to toscos em economiapoltica. O que era uma contradio. Eles estavamtreinados em Marx. Isso me espantou muito. En-to, eu era considerado economista (risos).Marcelo: E voc no mencionou, mas o Paul Singertambm fazia parte desses debates desde o incio.Era o outro economista?Chico: Fazia, era o outro economista.Flvio: Vocs eram os mais prximos? Voc, o PaulSinger e o Octavio Ianni?Chico: No, minha proximidade maior era com oFernando Henrique. Do ponto de vista da elabora-o. No era com o Paul. O Paul muito didtico,muito certinho. Ele pesquisa, de fato. Tanto que,para contestar o Fernando Henrique, elereconstituiu, como podia, as teses de renda, desalrio, na economia brasileira, para tentar mos-trar que o milagre se devia ao arrocho salarial, oque parecia uma doidice completa. Porque a sen-sao que se tinha era de que havia avano do sa-lrio real. Ele foi aos dados e mostrou que o quehavia era um tremendo arrocho. Mas o meu dilo-go maior era com o Fernando Henrique, que, na-queles anos, era muito mais sofisticado do que veioa ser depois. Com o Octavio eu tinha uma relaomuito afetiva.Marcelo: E o Octavio participava de todas as reu-nies tambm?

    Chico: Todas. O Octavio tinha uma presena mui-to forte. Ele era do quadro do CEBRAP, ento eleestava em todos os debates, todas as intervenes.Ele sofria uma discriminao do FernandoHenrique, segundo diziam. Mesmo eu, que erarecm-chegado, que no conhecia essa transa mtica,percebia no ar que ali havia um problema. O Octavioestava sempre perto, estava em todos. FranciscoWeffort tambm, que montou um grupo de estu-dos sobre o movimento operrio muito original.Fez um estudo que era o melhor na poca sobre asgreves de Osasco. Era um ambiente muito estimu-lante. De fato, ali eu dei a virada e me afastei daCEPAL.Flvio: Depois vem o texto de 1977, Elegia parauma re(li)gio. Nele, voc realizou seu projeto deanlise da experincia da SUDENE j com o ins-trumental do CEBRAP?Chico: Sim, ali um ajuste de contas com o meupassado cepalino.Marcelo: Na entrevista que voc deu MargemEsquerda, voc desdenhou, de certa maneira, des-se livro, dizendo que um livro que j est ultra-passado. Voc disse isso naquele dia e no foiaprofundado: esse um livro sobre o passado,no tem mais nada a ver. Pode falar um poucomais?Flvio: Quando escreveu A noiva da revoluo,voc disse que a ideia de regio que est contidaem Elegia para uma re(li)gio no teria maisserventia. Porque o nordeste pensado como umaregio diferenciada dentro da nao j teria acaba-do. Eu queria que voc falasse um pouco sobreessa viso.Chico: Eu acho que aquela discusso sobre regioj no faz sentido. At o ttulo foi escolhido depropsito. Elegia uma espcie de nostalgia. Pri-meiro porque a economia do nordeste era muitoautrquica. Fora a relao do acar com merca-dos externos, a economia do nordeste, em geral,era muito autrquica. Virava sobre ela mesma. Issose refletia em todos os setores da vida. Voc en-contrar o melhor portugus falado no Maranho.O melhor portugus falado no Brasil do Maranho.Devido a qu? Ao isolamento. No qualidade

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    lingustica. Isso tambm a histria faz. E assim eraem todos os setores, da economia, sobretudo. Foraa relao com o mercado externo de acar, a eco-nomia era muito autrquica. Isso mudou. ASUDENE comea a ser um agente dessa mudana.No ela que completa, mas ela d incio. Emboratodos os nordestinos fossem autonomistas, o Cel-so Furtado no era. Todos ns pensvamos que,se o nordeste fosse uma nao separada, seriamelhor, menos o Celso (risos). Ele nunca alimen-tou essa iluso. Eu tinha um amigo que j morreu,ele dizia: Ns temos petrleo, ns temos lcool.E ele no era nada tosco, era um engenheiro qu-mico da maior qualidade. Havia uma ideia de au-tonomia pela qual, felizmente, a SUDENE noenviesou. E houve uma progressiva integrao donordeste ao circuito da economia brasileira, for-ma de reproduo da economia brasileira. De modoque as diferenas existem do ponto de vista donvel de riqueza ou de pobreza, mas no do movi-mento dinmico da economia. Isso no existe mais.Flvio: No livro, voc apresentou esse processocomo uma tragdia: a integrao nacional como umatragdia. No s para as classes dominadas, mastambm para as classes dominantes, porque vocfala que elas no enxergavam que aquele projetode integrao nacional as destrua tambm.Chico: O regionalismo sempre foi uma arma deextorquir recursos do governo federal e de arro-char internamente. E elas, as classes dominantesnordestinas, no perceberam que, com a integrao,estavam condenadas a desaparecer como classesdominantes. Voc no encontra mais hoje, em ne-nhuma parte do nordeste, a presena ostensiva degrupos das classes dominantes no comando doEstado.Marcelo: Tasso Jereissati no seria uma exceo?Chico: No, no no. Tasso aqui do ShoppingCenter Iguatemi. No tem nada a ver com o Cear.Tasso Jereissati uma inveno do grupo Iguatemi.O interesse dele est muito mais aqui do que l,embora ele mande muito l. Da onde vem a fortu-na de Jereissati?Marcelo: Mas deve ter mais coisas tambm, no?Chico: O Iguatemi j consequncia. A fortuna do

    Jereissati vem de Vargas. Na verdade, era o Estadobrasileiro que distribua as cotas de moagem detrigo pelas vrias regies. E o Carlos Jereissati, quefoi av ou bisav do Tasso, recebeu uma cota noCear. Voc imagina isso no Cear. L no tinhaporto que prestasse, ento ele estava isolado. Vocter o monoplio do trigo no Cear era doce de coco. da que vem. Depois, o Banco do Nordeste crioutoda uma burguesia cearense metendo dinheironeles. Porque o banco no tinha onde aplicar re-cursos. Ele recebia 2% da receita oramentria daUnio, coisa assim, e isso era para o Nordeste. E amaior parte ia para o Banco do Nordeste. Ele notinha o que fazer. Ento ele criou, na verdade, umanova burguesia, sobretudo no Cear, e TassoJereissati produto disso, com a herana do cart-rio do trigo, que um verdadeiro cartrio.Marcelo: Isso no se coloca localmente, esse oseu ponto? No tem mais uma burguesia local,como voc colocou no seu texto sobre a Bahia, Oelo perdido?[(1987)]Flvio: A reproduo o capital se d fora do nor-deste?Chico: Se d fora, no tem mais uma coisa osten-siva. Quem mandava no Cear antes da geraoJereissati? Padre Ccero! Por incrvel que parea.No Maranho, era Vitorino Freire, um polticopernambucano que se deslocou para l. Agora, agente pensa que Sarney. Antes dele, foi VitorinoFreire. Sarney deslocou Vitorino Freire. No RioGrande do Norte, os Alves no so propriamenteuma burguesia. Eles entraram pela poltica e, evi-dentemente, meteram-se em negcios. Na Paraba,qualquer que voc apanhasse, vinha o sobrenomeRibeiro Coutinho: usineiros. Em Pernambuco, nempreciso lhe dizer, eram todos usineiros. A exceoque Vargas fez foi pegar um sujeito do serto e colo-car como interventor. A a poltica pernambucanacomeou a mudar.Marcelo: Isso no est mudando muito rapidamen-te? No nordeste h uma febre de empreendedorismo.Chico: Est, muito rapidamente. Voc no faria hojeoutra SUDENE. No tem convergncia de posies.Flvio: No texto de Elegia para uma re(li)gio, vocexplica que seu conceito de regio econmico,

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    sobretudo. Haveria uma rea diferenciada de eco-nomia dentro do territrio nacional, mas aquelafronteira iria se dissolver. Voc j percebia isso em1977. Ento, o que voc acha de a SUDENE reto-mar, hoje, essa discusso do Nordeste como re-gio econmica?Chico: No faz sentido nenhum, no consegue,no tem fora poltica.Marcelo: Eles j esto integrados completamente,nacional e internacionalmente?Chico: Nacional e internacional. Geisel colocouuma p de cal nesse projeto regional quando acio-nou a Petrobrs para fazer aquelas empresas mis-tas no polo petroqumico. A Bahia no tem o me-nor interesse em se integrar com nada no Nordes-te. Ento, no tem sentido, economicamente. Huma regio sim, que se diferencia no estilo de vida,na fala, em certos costumes. A cultura popular,que muito marcadamente diferente da do Sul. Amarca distintiva est na cultura popular. Voc temfestividades que, no Nordeste, ainda so muitoarcaicas. Elas so portuguesas, na verdade. E quevo sendo consumidas pela dinmica capitalista.Marcelo: Entram na onda da cultura de massa?Chico: Sim. No resistem como uma manifestaocultural.Flvio: Em A noiva da revoluo, que um relatopessoal sobre Recife e que foi publicado com areedio de Elegia para uma re(li)gio, voc vainessa linha. Analisando a relao dos dois textos,parece que eles so escritos na mesma poca, ape-sar dos 30 anos de distncia. Em A noiva da revo-luo, voc recorre a Walter Benjamin para falarda tragdia do progresso e para recontar a histriadas revolues do Recife, da regio sendo derrota-da pelo projeto nacional. Por isso, no teria comoretomar aquele projeto regionalista nem aquele tex-to, a no ser como memria de algo que j passou?Chico: S como memria.Marcelo: A anlise que voc faz ali continua 30anos depois? No h uma ruptura do seu pensa-mento de hoje em relao ao texto de Elegia parauma re(li)gio, ou h?Chico: Tem sim. Eu considero aquele texto umajuste de contas com a ideia regional. Eu no entro

    mais nessa, quer dizer, me dou por satisfeito.Marcelo: Mas ele j no era uma crtica a isso?Chico: J era. Agora no tem nada a rever em rela-o a Elegia para uma re(li)gio. Ele um texto dedespedida: aqui a questo regional acabou.Marcelo: Essa a ideia que voc defende hoje, queestava indicada com aquele acerto de contas. En-to, um texto que tem atualidade, que est dizen-do que aquilo acabou. No o objeto que atual,mas a anlise crtica que voc faz.Chico: O nordeste que eu prezo o da memria,no mais o da estrutura social da forma pela qual osistema desenvolveu l. O ajuste de contas j foifeito.Flvio: Mas voc volta ao tema em O elo perdido, aoanalisar a Bahia, especificamente. um texto quetem muita semelhana com a temtica de Elegia parauma re(li)gio, essa ideia de um processo de repro-duo do capital que se d fora e a dificuldade devoc ter uma representatividade de classe.Chico: A Bahia, com o impulso dos anos 1970 e80, descola-se completamente. Com uma contra-dio: esse processo to violento e to rpido,que voc no v Salvador como uma cidade oper-ria. Ela no tem nenhuma marca de cidade oper-ria. E foi! No passado l, remoto, era uma cidadeoperria. No tem mais nenhuma marca. O pro-cesso foi de uma ruptura extremamente violenta.Meu texto no d conta disso, ele fraco. Eu deve-ria ter sido mais incisivo na anlise dessa ruptura,mas uma ruptura violenta. Salvador transformou-se na Meca de todos os desejos brasileiros. Elano tem a marca da cidade operria. E era, at osanos 1940, fortemente operria.Marcelo: Na Bahia, voc era criticado por no veruma tradio operria em Salvador. Naquele texto,voc que diz que a Petrobrs chegou e construiuuma classe operria nos anos 1950, mas que antesno havia essa tradio. E eles diziam: o Chicoest ignorando que havia uma cidade operria an-tes, uma Salvador operria, que no aparece notexto dele.Chico: , no aparece, de fato. Eu dei pouca rele-vncia a isso. E at dei pouca relevncia violentaruptura. A Petrobrs, na verdade, instaura uma

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    ruptura definitiva, e a essa cidade operria sub-mergiu. Mas pouco interessa hoje. Voc v Salva-dor como a Meca de todos os nossos desejos refre-ados e a Petrobrs. Ela nunca foi muito marcadacomo uma cidade operria.Marcelo: Ao contrrio de Recife?Chico: Ao contrrio de Recife, cuja histria vocs entende pela histria da classe operria. Se no,se no for por a, voc no entende nada. Salva-dor no tem essa marca distintiva. Embora, evi-dentemente, todo baiano se levante s trs horaspara trabalhar (risos).Marcelo: a questo do outro. No tem um ou-tro demarcado como o inimigo de classe?Chico: No tem. Em Recife tem. Em Recife, a de-marcao era formidvel, a comear pela experin-cia de convvio com as minhas empregadas do-msticas na infncia. De onde que voc pensa quepoltica no passava pela cabea delas? Passavasim. No havia jeito de votarem em usineiro. Por-que elas vinham exatamente da zona da mata dePernambuco. A zona da mata tem enclaves de pe-quena propriedade. A gente pensa que tudo ho-mogneo, mas no . Tem enclaves de pequenapropriedade e enclaves de economia de subsistn-cia. Da elas tiravam a experincia da resistncia.Elas no nomeavam assim, mas um candidatousineiro no passava. De modo que, se voc tomara histria do estado, no h um s governadorusineiro no estado depois de 1930. At antes de30, eles davam de barao e cutelo. Depois, no hum s caso.Marcelo: Mas o prprio Miguel Arraes se aliou,em certos momentos, com usineiros, no?Chico: Se aliou, o Arraes se aliou. A primeiramulher dele era de uma oligarquia aucareira, Cliade Souza Leo, que um nome tradicionalssimo.Um nome to tradicional, que d nome ao bolotipicamente pernambucano. Mas por que Arraesse casa assim? Porque era funcionrio do Institutodo Acar e do lcool. Ento, ele entra na oligar-quia aucareira por essa via do casamento.Marcelo: Mas ele no era considerado um gover-nador, digamos, oligrquico. Ao contrrio.Chico: No. Ele comeou como prefeito de Recife

    e foi o partido que o elegeu. Depois que elepassou para o nvel estadual.Marcelo: Fazendo outras costuras polticas tambm,at para ampliar e conseguir se eleger.Chico: Fez, mas fez, sobretudo, com o pessoal doserto. Com o pessoal da zona da mata no tinhaacordo. Ele era fortemente discriminado, emborahouvesse uma relao por via do primeiro casa-mento.Flvio: Voltando para Elegia para uma re(li)gio: nomesmo ano, voc publicou outro livro, o A Econo-mia da dependncia imperfeita[(1980)]. A impressoque eu tenho, estudando sua trajetria, de que esse um texto que fica um pouco mais esquecido. Elerene vrios artigos. H ali uma tentativa de retomara histria da formao econmica do Brasil, que pa-rece mais prxima com a linha do CEBRAP, e h atum texto sobre demografia. Queria que voc comen-tasse um pouco sobre esse livro e o porqu de haverum texto de demografia ali. Era uma questo com oCEBRAP, da interdisciplinaridade? Qual era a ideiadaquele livro?Chico: Aquele livro o patinho feio, eu no gostodele (risos). Eu no o faria de novo, mas ele temduas coisas. A primeira uma tentativa de enten-der a formao do capitalismo brasileiro j no n-vel da formao dos oligoplios, o que muda aluta de classes de patamar. A segunda esse textosobre demografia, que um dilogo com ElzaBerqu, que era a demgrafa do CEBRAP. Naqueleambiente, que era muito estimulante, eu travei umdilogo com ela porque os demgrafos, em geral,no tm nenhuma teoria. A demografia uma ci-ncia sem teoria. Eles so muito pobres do pontode vista terico. E eu quis espicaar, tentando en-tender exatamente a produo da populao sob anecessidade do capital. Mas um texto mal suce-dido. Ele no teve nenhuma repercusso. Osdemgrafos brasileiros, em geral, so muito malformados. Por exemplo, na nossa FFLCH [Facul-dade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas daUSP], quem ensina demografia?Marcelo: No sei, na UNICAMP, eu sei que se en-sina. O pessoal forte, sobretudo, em apontar ten-dncias estatsticas, e os economistas e os socilo-

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    gos analisam os dados que eles levantam.Chico: E s. Assim no resto do Brasil, devido forte dominncia do IBGE. Quem faz demografiano Brasil o pessoal do IBGE e eles so muitofracos teoricamente. Competentes do ponto de vistada anlise de dados, do domnio deles, dos mode-los. Eles sabem projetar de uma forma que o resul-tado, l no futuro, vai ser muito prximo. Mas,teoricamente, so muito fracos. Foi uma tentativade fazer esse dilogo, mas no deu certo (risos). AElza Berqu nunca entendeu aquele texto. Ela noconhecia Giorgio Mortara, que foi um italiano queo Brasil importou exatamente para fazer o censode 1940, que o melhor censo brasileiro. Mortaraera um italiano fascista que veio bater aqui (risos).Eu falei para ela do Mortara, e ela no sabia quemera. A gente sabia porque tinha um texto pela viada CEPAL. Mas aquele meu texto mal sucedido.Flvio: Pouco depois, voc entrou na PUC, em1978, para o departamento os estudos ps-gradu-ados em economia. Mas a voc entra como econo-mista, voc ainda era visto como um economista,tanto dentro do CEBRAP quanto fora, sempre comessa imagem.Chico: Aquilo foi um arranjo (risos), ningum le-vava muito a srio. A PUC estava num processode mudana. Na rea de economia, eles tinhamconvidado Paul Singer, Walter Barelli. Eles esta-vam num processo de mudana na ps-graduaode economia, que era muito frgil. Eu entrei nessaonda, e a no fizeram muita distino se voc eraeconomista ou no. Mas a PUC no me deu nada,s salrio, que importante (risos).Flvio: J tinha ocorrido uma reestruturao dasuniversidades no Brasil, a ideia de uma carreiraacadmica j estava se abrindo de uma forma maisclara para esse pessoal. Mesmo no CEBRAP, cadaum tentava seguir seu caminho de carreira acad-mica. Ento, a PUC tambm era uma alternativa,uma opo para sustentar o trabalho intelectual.Chico: , mas no me deu nada. Sem nenhumamgoa, no me deu nada. No havia ambiente in-telectual propriamente na PUC. Era um curso mam-bembe, que foi sendo reformulado assim, aostrancos e barrancos. Eles convidaram Paul Singer,

    que foi para l, ficou uns dois anos. Octavio Ianniestava.Marcelo: O prprio Florestan deu aula l, no?Chico: Deu. Octavio deu aula nas cincias sociais.Marcelo: Maurcio Tragtenberg?Chico: Sim. Eles convidaram tambm WalterBarelli, na economia, Ademar Sato. Eu entrei pora. Mas no havia nenhum ambiente intelectual.Flvio: Foi nessa poca, 1982, que voc foi para aFrana fazer o ps-doutorado. Queria que voc fa-lasse sobre essa experincia. Voc ficou l dois anos,ou foi uma coisa mais rpida? Teve o apoio daPUC?Chico: No, a PUC nem pagar meu salrio pagou.Eu queria ter uma experincia universitria inter-nacional, mas no valeu a pena. Fora Paris, quevale bem uma missa (risos), no valeu a pena. Oambiente universitrio francs extremamente fe-chado. Eu no tenho experincia de outros locais,mas acho que o americano deve ser mais aberto. Ofrancs extremamente fechado. Eles no te reco-nhecem. Eu no fiz nada relevante na Frana, ano ser curtir Paris e ler bastante.Marcelo: Voc preparou l O elo perdido?Chico: Preparei l, onde fiquei quase dois anos.Eu fui com a cara e a coragem. Fernando Henrique,que naquela poca ainda era muito generoso, meindicou para uma bolsa na OCDE. Eu ganhei essabolsa e depois pedi outra ao CNPq. Essa bolsa doCNPq foi negada, e a eu fiz uma carta desaforadapara o Marcos Formiga, que era o superintendentedo CNPq. Eu listei o que eu tinha feito e disse: Sevoc ainda acha que eu no tenho direito bolsa,negue!. A eles me deram e eu aproveitei Paris.Mas intelectualmente, no. A coisa que eu come-cei a escrever l foi por sugesto do FernandoHenrique. O intercmbio com a universidade fran-cesa extremamente difcil. Voc no entra. Hcertas instituies onde os requisitos de entradaso menores. No no Collge de France, que slhe serve para voc assistir conferncia.Marcelo: Voc tem menos interlocuo l, mas, pelomenos, se ouve o que eles falam, no ?Chico: Ouve o que eles falam, mas voc no fala.E, se voc falar, eles no ouvem, porque eles so

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    surdos. A Frana ainda tem resqucios da antigaglria intelectual. muito difcil. Voc v, mesmoum tipo como o Roberto Schwarz, que d banhoem qualquer crtico literrio francs, ele no temboas recordaes da Frana do ponto de vista deintercmbio intelectual. extremamente difcil.Valeu a pena, porque Paris vale bem uma missa(risos).Marcelo: Voc diz que a passagem pela PUC noagregou muito sua trajetria, e essa estada naFrana agregou, mesmo sem essa interlocuo?Chico: Agregou por isso, porque eu comecei a ten-tar aquilo que veio a ser a marca da minha produ-o ps Crtica razo dualista. Foi ali que eucomecei a tentar entender os problemas do capita-lismo desenvolvido. Agora, isso sem nenhumainterlocuo.Marcelo: Eu acho que voc ficou impactado com oEstado de bem-estar social e comeou a fazer suasreflexes sobre o antivalor. Eu imagino que tenhasido muito forte sua experincia de morar l e dever uma realidade completamente diferente.Chico: Foi isso. No foi, portanto, um intercmbiointelectual com a universidade francesa, mas foiesse impacto do Estado de bem-estar. A questodos direitos dos trabalhadores e desse Estado debem-estar, que , na maioria das interpretaes,visto como uma concesso. Eu tentei revirar a p-gina, quer dizer: isso tudo produto de uma lutade classes histrica, acumulao. Foi um impacto,e voc precisa estar aberto para entender as novasexperincias. Eu via alguns amigos meus l, brasi-leiros, que tiravam o que podiam do Estado fran-cs. Eu no tirava porque eu era acanhado. Atfrias eles tiravam. Aquilo realmente me impactou.Foi uma viso completamente nova, e eu comeceia prestar ateno.Flvio: Essa experincia influenciou quando vocvoltou o Brasil, em 1984, com a questo da transi-o democrtica, e o PT j tendo uma importnciano cenrio nacional. Dessa poca, eu destaco trsartigos seus. O primeiro chamado Alm da tran-sio, aqum da imaginao, no qual voc discutecomo estava ocorrendo o processo de transio noBrasil, os arranjos de poder. O segundo um arti-

    go sobre o PT, no qual voc fala um pouco decomo o partido propunha uma ruptura muito for-te com a tradio da esquerda no Brasil, que resul-tava num anticomunismo. O ltimo As aves daarribao, em que voc comenta sobre as mudan-as dos intelectuais no Brasil.Marcelo: Acho que tem mais um, aquele da Me-dusa ou as classes mdias [(OLIVEIRA, 1988, p.282)], em que voc trabalha com a ideia das clas-ses que gerem o fundo pblico.Chico: Eu no posso falar muito, porque eu nolembro muito bem deles. Esse ltimo foi um di-logo muito interessante com Guilhermo ODonnell.Guilhermo era um weberiano tout court, mas eleera muito aberto. Ento, eu aproveitei aquela expe-rincia na Frana e entrei por aquela via no artigo.Dos outros artigos, sobretudo esse sobre o PT: euachava que o PT tinha tudo para ser um partidosocial-democrata. O que os outros consideravamuma ofensa eu achava um elogio.Marcelo: No bom sentido de social-democrata?Flvio: A partir da imagem que voc trazia da Frana?Chico: Sob a influncia e do que eu tinha visto doEstado de bem-estar.Flvio: Voc achava que o partido deveria ter umpapel civilizatrio dentro do capitalismo, que oque voc sempre fala? A esquerda tem que ter estepapel civilizatrio, e j seria alguma coisa se o PTconseguisse ter.Chico: J seria alguma coisa. Ento, aquele artigosobre o PT basicamente isso, mas o sindicalismofoi mais forte e transformou o PT nisso que ele hoje. Tem dois grandes grupos de gangues no Bra-sil, no tem classes aqui. Tem gangues. Os de bai-xo esto organizados como gangues e os de cimatambm. Os de cima assaltam o tesouro pblico.Eike Batista o exemplo mais mo. Os de baixoassaltam-se uns aos outros. Da que as transforma-es brasileiras esto sendo impostas de fora paradentro, no no sentido de retomar o velho papeldo imperialismo, que, alis, extremamente forte,mas no sentido de que se voc entrou na corridado capitalismo oligopolista, no tem volta mais.Voc tem uma compulso a copiar os modelos. Aluta de classes, como processo da poltica, foi pro

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    espao. Essa era a minha esperana quanto ao PT.Flvio: Sua postura nos anos 1990 foi essa? Aquelaaposta nas cmaras setoriais era um pouco com essalinha: no se tinha uma esperana de que aquilopoderia levar a uma revoluo, mas poderia resul-tar numa ampliao da democracia no Brasil?Chico: Era isso, enfim. Era uma proposta social-democrata kautskiana. Mas no deu. O capitalis-mo varre tudo pela frente. Ento, no h direitosnem fora poltica capaz de deter essa marcha ace-lerada. Foi uma aposta equivocada.Flvio: Qual era a situao ali, no final dos anos1980, dentro do CEBRAP? Eu li um artigo doRodrigo Naves [(2006)] em que ele conta que, quelaaltura, ele j sentia que o CEBRAP no era maisaquele dos anos 1970. Era cada um por si, nin-gum preocupado em pensar grandes questes, acoisa j tinha mudado muito. Qual a sua opi-nio? Qual era a situao do CEBRAP?Chico: A situao do CEBRAP era assim: ele ga-nhou muito prestgio externo, passou a ser umareferncia, e isso entrou l dentro de forma bastan-te danosa. Em primeiro lugar, afastaram-se vriosdos fundadores. O Fernando Henrique foi para apoltica e nunca mais voltou. O Chico Weffort saiu,fundou o CEDEC, e tambm nunca mais voltou. OBolvar Lamounier, que era uma voz dissidente,sempre, tambm saiu, fundou o IDESP e no vol-tou mais. O Octavio [Ianni] saiu por outras razes.Octavio saiu porque o italiano via longe. Ele medisse uma vez, quando a gente estava de mudanada Rua Bahia para a Alameda Campinas, que foiuma mudana que durou uns trs anos. Depois que o CEBRAP foi para essa que a sede delehoje. A gente estava se mudando, arrumando ga-veta, arrumando escritrio e tal, e o Octavio noarrumou nada. Eu dizia: Mas voc no est..., eele dizia: No, eu no vou ficar aqui. O que nosuniu j passou e daqui pra frente vai ser outracoisa. E a ele retirou-se, desde aqueles anos.Ento, essa projeo externa trouxe uma luta que,pelo menos, talvez numa viso romntica, destruaaquele instituto que havia sido muito estimulante.A sobraram duas lideranas intelectuais l den-tro. O Giannotti, que tinha direitos de fundador, e

    era um grande intelectual, e eu, porque todos osoutros que podiam ter esse papel j tinham sado.Eu comecei a, involuntariamente, articular um gru-po de mais jovens, de gente que estudava Marx.Na verdade, foi isso, foi uma disputa de lideranaintelectual. E o Giannotti usou de todos os golpesbaixos possveis, at que, em 1995, eu sa. Porqueno dava mais, no tinha mais razo. De 1992 ou93 at 95, eu exerci a presidncia, mas foi ummandato tampo, de convenincia, e depois dissoeu peguei o chapu e fui embora.Marcelo: E isso tem a ver tambm com a histriada presidncia da repblica, com o fato de oFernando Henrique ter sido eleito?Chico: Tem. Eles no admitiam o Giannotti, aElza Berqu que algum do CEBRAP, que tinhaconvivido com o Fernando Henrique, no votassenele. E a se abriu um conflito, ficou aberto. E foiuma fase pssima do Giannotti, porque ele assu-miu um antimarxismo militante, que no o casodele. Ele conhece bem Marx, muito melhor do queeu. O Fernando Henrique j estava fora, em 1995,ento a luta, que era surda e bastante encoberta,ficou descarada. E o Giannotti tomou a si a tarefade expulsar o grupo marxista do CEBRAP. Era umgrupo que eu coordenava no como grupo, coor-denava intelectualmente. Fazia discusses. Est-vamos eu, o Adalberto Cardoso, o lvaro Comin,que est na Inglaterra.Flvio: O estudo sobre as cmaras setoriais foi fei-to dentro do CEBRAP, por esse grupo?Chico: Foi esse grupo. Esse grupo foi articuladoinvoluntariamente, ningum estava querendo fa-zer grupo nenhum. Mas, no fundo, tratava-se dedisputar quem dava a diretriz intelectual.Marcelo: E curioso, porque o Giannotti consti-tuiu a legitimidade intelectual dele, em grande par-te, como articulador daquele grupo do Capital, comovoc mesmo falou no comeo da entrevista. Umapessoa com grande domnio da dialtica.Chico: Sim. Aquilo era poltico no fundo, no ?Ele assumiu aquela posio para expulsar todosque ele chamou de marxistas do CEBRAP. Comoeu sou muito irreverente, eu disse: Ento voc seautoexpulsa, Giannotti (risos). Ele nunca gostou.

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    O senso de humor dele curto. A colocaram oVilmar Faria na presidncia. Elza Berqu elesnunca entregaram a presidncia, porque ela no ti-nha prestgio nas cincias sociais. Essa era a razobsica, eu acho. A no ser que tinha alguma razoque eu no entendi. Ento deram ao Vilmar Faria apresidncia, e ele no exerceu completamente, por-que foi quando o Fernando o chamou para Braslia.Eu fiquei com o mandato tampo de dois anos e,em 1995, eu peguei o chapu e fui embora.Flvio: Voc estava na USP j desde 1988?Chico: Eu estava na USP.Marcelo: E a USP trouxe coisas para voc? Dife-rente da PUC?Chico: A PUC no foi nada, no tinha um ambien-te intelectual. Voc ia l dar aula e acabou. A USPno. Na USP, eu ca num grupo muito interessan-te, que um grupo ao qual eu perteno ainda deforma bastante lateral, mas felizmente ca num gru-po liderado pela Maria Clia Paoli, e a gente for-mou um ncleo de estudos, que depois foi trans-formado em centro. A foi uma experincia, desdeento, muito boa.Flvio: O CENEDIC [Centro de Estudos dos Direi-tos da Cidadania] foi fundado em 1995-96, logodepois que voc saiu do CEBRAP? E quem ideali-zou? Voc ou a Paoli?Chico: Foi a Paoli. Ela tinha um grupo de genteque ela orientou, de mestrado e doutorado, ao qualeu me agreguei. Tinha a Beth Lobo. um grupomuito interessante. Tinha o Laymert Garcia, quehoje est afastado.Flvio: Mas esse grupo foi fundado em 1995-96 evoc j estava na USP desde 1988. Esse perodode sete anos, entre a entrada na USP e a formaodesse grupo, como voc avalia? Foi uma experin-cia boa? J tinha contato com essas pessoas, masno tinha formalizado o grupo?Chico: O grupo existia, mas no formalizado. Eraum conjunto de pessoas.Marcelo: Sua referncia no seria ainda especial-mente o CEBRAP at esse comeo dos anos 1990?Voc ficou um tempo nas duas instituies, talvezo CEBRAP no comeo ainda pesasse mais?Chico: No, no pesava no. O problema do

    CEBRAP foi convenincia. Eu disse: Giannotti, euvou continuar aqui e voc me paga o meu salrio eno tem direito de exigir nada. Ento, eu fiquei at1995 l, quando eu peguei o chapu e fui embora. Ea a convivncia j era quase agressiva. Mas agoramudou, faz anos que est macio de novo.Marcelo: Voc no disputa mais nada com ele.Chico: Eu no disputo mais nada com ele, ele sesentiu seguro. Tambm o CEBRAP transformou-se numa instituio de pesquisa convencional. No que eles no fazem mais pesquisa, fazem. Mas muito convencional, muito ortodoxa.Marcelo: E aquela discusso sobre o antivalor, foisua tese de professor titular?Chico: Foi, mas no tem tese no. Foi uma aulaque eu dei.Marcelo: Mas um pouco o que voc juntou de-pois no livro da Editora Vozes? [(Oliveira, 1998)]Chico: Foi a aula que eu dei. Isso estava sendogestado l na Frana. Naqueles anos, de 1982 a 84.Flvio: Foi polmico quando ele saiu? Pelo menosat hoje eu sinto isso. Eu sou mais recente, fiz agraduao em 2003 na USP, mas, quando falamdesse texto dentro da USP, alguns marxistas maisortodoxos ficam com o p atrs. Como foi a recep-o desse texto do antivalor?Chico: Fraca. Justamente os marxistas mais orto-doxos nunca o entenderam. Alis, os marxistasmais ortodoxos so um p no saco (risos). O mar-xismo no Brasil, quem estuda bem o BernardoRicpero, uma coisa estranha, porque o Brasilmoderno voc no entende sem o Partido Comu-nista. Mas, no que deveria ser especfico do Parti-do Comunista, que seria desenvolver uma teoriamarxista sobre o Brasil, ele falhou. Em tudo mais,a presena dos comunistas notvel. Voc no temarte brasileira, cinema brasileiro, literatura brasi-leira, sem os comunistas. Mas, no especfico dateoria poltica, o Partido Comunista um fracassoformidvel (risos). Depois da tentativa de NelsonWerneck Sodr, que ns apreciamos muito, masconhecemos as limitaes dela, no h uma scontribuio que valha a pena. Da a enorme difi-culdade que eles tm em dialogar com algum queno se coloca no campo da ortodoxia.

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    Marcelo: Pulando um pouco: quando voc rom-peu com o PT, esse pessoal deu suporte. A turmado PSOL e certa esquerda marxista mais ortodoxa diante da qual voc sempre apresentou algumou muito distanciamento ao longo da vida dealguma maneira te adotou, digamos assim, paracriticar o governo Lula. Porque voc consegue fa-zer uma formulao marxista, talvez a mais con-sistente, para criticar o governo Lula. Hoje voctem uma convivncia como esses velhos advers-rios mais ou menos reconciliada?Chico: No sei te dizer, Marcelo, porque eu achoque o PSOL um fracasso. Eu entrei na do PSOL,numa tentativa de fazer uma crtica ao PT pela es-querda, j que a crtica pela direita estava a. Masquem faz o PSOL, na verdade, pensa que poderefazer o caminho do PT. Ento, no entenderamnada. Em geral, a esquerda brasileira tem uma enor-me dificuldade de entender as transformaes. Elatrata o capitalismo brasileiro de hoje como se fosseo dos anos 1950. Tem uma enorme dificuldade. OPSOL foi essa tentativa, que at onde eu possoavaliar fracassou, porque a crtica que eles fazem de que o PT fracassou porque no foi suficiente-mente radical. Ento, como acontece em toda for-mao partidria, a tcnica antiga: voc se apro-pria dos espaos institucionais do partido e amorreu. O que tem de novo no PSOL, realmente?Nada. Assim como o PT j havia falhado, porqueo PT no tem uma teoria sobre o Brasil, seguindoas trilhas do prprio Partido, o PSOL vai no mes-mo caminho. Eles no tm uma teoria sobre o Bra-sil hoje. Assim como o PT no teve.Marcelo: Esse negcio de faltar uma teoria no temum vis leninista? Quer dizer, a prtica polticaseria outra se houvesse algum iluminado no par-tido que escrevesse nosso Desenvolvimento do ca-pitalismo na Rssia. No tem essa coisa?Chico: Tem. Alis, a primeira observao minha sobre o prprio Lnin. Observando o Mxico, eledizia que o Mxico tinha feito uma revoluo semteoria. Da o impasse em que entrara. Evidente-mente, isso supervalorizar o papel de uma teo-ria. Mas o que eu estou chamando teoria no propriamente um texto escrito. uma viso e uma

    concepo da nova nao. O partido falhou nis-so, o PT falhou nisso, e a esquerda continua fa-lhando. Todos eles imaginam, ainda, um capitalis-mo quase imvel, como se no houvesse transfor-maes. As transformaes so muito poderosas.E a esquerda tem uma enorme dificuldade de en-tender esses processos. No deveria ter.Marcelo: No s a brasileira.Chico: No s a brasileira, a esquerda tem umaenorme dificuldade de entender o carter das trans-formaes. Para onde elas apontam, quais so asoportunidades que ela cria e quais so as oportu-nidades que ela esmaga. O PSOL tambm est nes-sa, quer dizer, o PSOL pensa que o PT fracassouporque no foi suficientemente radical.Flvio: Eu queria s explorar um pouco mais ahistria do CENEDIC antes de chegar nesses lti-mos 10 anos. Sobre o CENEDIC, que, na poca,ainda era NEDIC, voc acha que ele conseguia res-gatar um pouco, no incio dele, acho que at hojetalvez, aquele formato de debate mais franco, maisaberto, sem mediaes que voc falou que tinha oCEBRAP nos anos 1970? Isso fazia parte do proje-to de vocs quando fundaram o NEDIC? Fazer umespao de debate multidisciplinar e bem aberto?Chico: bem aberto, mas ele pequeno. No tema relevncia que o CEBRAP tinha nos anos 70, eele no aceito dentro da USP. O Departamentode Sociologia, que nossa ncora principal, achaque um bando de porra-louca reunido. Ento,ele no tem nem a importncia nem a relevnciaque o CEBRAP teve.Marcelo: que a lgica da universidade consti-tuir pequenos grupos fragmentados. Tem outroscomo ele, que mais um a conviver com os de-mais.Chico: Ele um que convive. Ento ele no nemprestigiado nem discriminado.Flvio: Como se ele fosse independente, paraleloao departamento?Chico: No, o departamento a ncora principaldele. Porque todos os que formaram primeiro oNEDIC, depois o Centro, so, de alguma maneira,originados do departamento de sociologia. Agora que o Andr [Singer], que do departamento de

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    poltica, o coordenador. Mas a Maria Clia [Paoli] da sociologia, o Leonardo [Mello e Silva] dasociologia.Flvio: A Vera Telles?Chico: A Vera Telles da sociologia. Eu era dasociologia, agora no. H mais de 10 anos j estouaposentado. A ncora principal o departamento,e eles acham que o Centro faz concorrncia a eles,ou acham sem importncia.Marcelo: Como que aconteceu essa sua aproxi-mao, fundada num pensamento marxista hete-rodoxo, com esse pessoal que vem de uma outratradio de esquerda, que no marxista, comono caso da Maria Clia Paoli?Flvio: Nessa poca, ocorreu a entrada das ideiasdo Jacques Rancire [(1996)], que acho que foi onome que norteou aquela pesquisa do NEDIC, quedepois resultou naquele livro que voc e a Paoliorganizaram, Os sentidos da democracia. Queriaque voc falasse um pouco sobre como foi essecasamento de perspectivas diferentes e por onde oRancire entrou a, se foi a Paoli que trouxe ouvoc, da Frana?[(Oliveira; Paoli, 200)]Chico: Eu acho que fui eu quem trouxe o Rancire.A relao foi, em primeiro lugar, afetiva. Eu achoque ns nem percebamos as diferenas entre aminha posio e a dela. Com a convivncia, issofoi aparecendo, mas, no princpio, foi uma apro-ximao afetiva. Ao longo do desenvolvimento deque resultou o NEDIC e depois o CENEDIC. Hojeela est bastante afastada, mas ela participava dascoisas. A gente poliu as arestas. Eu insisti muitopara a posio heterodoxa, at me chamavam deprussiano (risos). Eles nem suspeitam o quantoeu detesto a Prssia (risos). Mas eu encontrei muitaafinidade com o Laymert [Garcia dos Santos], queno nem um marxista ortodoxo, nem se conside-ra. Mas ele muito aberto. E a gente foi polindo asarestas, ao mesmo tempo em que eu valorizava ostemas que ela trazia. Devo confessar que minhareleitura do Gilberto Freyre foi muito influenciadapela Maria Clia.Marcelo: Voc tinha um preconceito maior em re-lao a ele?Chico: Gilberto, no perodo em que fiz universida-

    de no Recife, era pecado mortal. Porque ele j ti-nha passado para a direita e ele era hostilizadoabertamente nas bancas de concurso. Ento, eu vimreler Gilberto Freyre influenciado por Maria Clia.E foi essa a aproximao que a gente foi tecendo.Eu sou muito grato a ela, enfim.Marcelo: Talvez porque elas valorizam muito aquesto do republicanismo, dos direitos, e voctrazia esse debate por outra via, com a questo doantivalor, da construo dos direitos, que no uma concesso, mas fruto de uma histria passa-da. Vem desde a Revoluo Francesa, num pro-cesso longo. Talvez tenha havido a um casamentode aproximao social democrata, no bom senti-do, da ampliao dos direitos.Flvio: Que era o grande tema dessa pesquisa ins-pirada no Rancire. At no nome do NEDIC temtudo a ver: Ncleo de Estudos dos Direitos da Ci-dadania.Chico: , foi sugesto dela. Faz anos que ela j seafastou. Ela estava muito ativa e foi muito impor-tante. Um grupo que no era nada formal nem or-ganizado, mas ele s se organizou porque a reito-ria disse que era melhor se organizar. amos nosbeneficiar de alguma coisa que a reitoria poderiadar. E depois nos transformamos em centro, por-que o diretor da faculdade nos chamou e aconse-lhou a transformar em centro. O Francis Aubert,da rea de letras, disse: Vocs como centro euposso dar recursos. Como ncleo eu no posso,porque ncleo ligado reitoria. Ento, a gentese transformou em centro. Foi tudo uma coisa deconvenincia bem sucedida. Mas a Maria Clia eramuito importante e ela teve esse papel de aparar asarestas dos prussianos (risos) em relao ques-to da democracia, dos direitos. Eu vinha pelooutro lado e tentando mostrar, da minha maneira,como a luta de classes produzia esses resultados.Flvio: Em dois textos seus do final dos anos 1990,Apocalipse Now, que foi a introduo ao relat-rio final do estudo sobre o acordo das montadoras,e no texto que est nesse livro sobre Os sentidos dademocracia, sobre o totalitarismo neoliberal, apa-rece uma mudana de perspectiva sua, como quemdiz essa nossa aposta nos valores republicanos

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    no vai mais dar, j est ultrapassada, no temcomo seguir levantando essa bandeira. A ideia de que o neoliberalismo atropelou tudo isso, to-das as possibilidades. Como, por exemplo, o acor-do das montadoras. O Rancire deixa de ser refe-rncia a? Ele citado no texto, mas eu sinto que jtem certo distanciamento.Chico: Eu acho que isso. Meu pessimismo estmais amargo do que nunca (risos). A histria assim, voc v: a forma da produo e reproduono Brasil no tem mais o que acrescentar. Querdizer: os arcasmos foram todos derrotados, nod. Voc est num modo de produo e reprodu-o nitidamente capitalista.Marcelo: Mesmo que sobreviva se alimentando doarcaico, entre aspas.Chico: Mesmo que sobreviva. Mas isso faz comque voc no possa percorrer a trajetria que a so-cial-democracia percorreu. Voc est compulsiva-mente obrigado a copiar os pases desenvolvidos.Quer dizer, a autonomia do capital no Brasil tal,que o progressivo crescimento dos direitos e suaimplementao esto fora do horizonte.Marcelo: Voc acha que tudo que tem sido feito mais ddiva, organizao do Estado, do que cons-truo de direitos?Chico: mais organizao do Estado, administra-o de carncias, do que conquista de direitos.Marcelo: Isso que me deixa com um pouco dedvida. Voc cita a experincia da classe trabalha-dora europeia, que muito mais densa e mais se-cular, que redundou no Estado de bem-estar soci-al. Houve lutas expressivas na sociedade brasilei-ra, particularmente na resistncia ditadura. E oPT encarnou isso. No deu nem numa revoluonem em reformas de fundo social democrticas,mas deu em alguma transformao, que talvez noseja o que a gente gostaria que tivesse sido, masque, a seu modo, tambm carrega essa experinciasocial. Houve uma construo coletiva, no s doPT. Um processo histrico que desembocou nonuma conscincia revolucionria, nem, digamosassim, nos direitos, no sentido do Estado de bem-estar social. Mas a sociedade se moveu e h algumrearranjo que , claro, muito mais interessante para

    o capital, mas que atinge tambm uma parcela sig-nificativa da populao. Quando vou ao Nordeste,conversando com as pessoas de l, onde mais sesente isso. Talvez essa ideia da colonizao da po-ltica pela economia, que voc desenvolve e achomuito interessante, permita pouca possibilidadede ruptura do ponto de vista do modo de produ-o, seja no sentido revolucionrio ou reformista,mas no significa que no haja possibilidade paraalguma ao poltica transformadora dentro doslimites do capitalismo. Tanto que tem a CristinaKirschner na Argentina, o Hugo Chvez naVenezuela. Tem ainda Equador, Uruguai... De al-guma maneira, a esquerda encontra o seu jeito. Seolhar do lado ctico, voc vai dizer todos estoperfeitamente enquadrados na lgica do capitalis-mo internacional. Mas so experincias diferen-tes que expressam uma mudana social. Por issoeu no consigo ser to pessimista como voc. Es-tou tentando espicaar pra ver alguma luz, algumapossibilidade dentro desse universo que fica qua-se sem sada.Chico: No, vejam bem, eu no sou um pessimis-ta de profisso (risos). Voc citou todos esses pa-ses. O nico que est empacado justamente oBrasil, onde no se passa nada de novo. Quer di-zer, tudo que voc disse verdade, mas tudo isso produzido pelo desenvolvimento do capitalis-mo. Cada vez que voc l um livro fica influencia-do por ele. Eu estou terminando a leitura de umlivro sobre o imperialismo norte-americano.Marcelo: Que alguns dizem que no existe mais...Chico: Esse livro datado, ele j tem uns quinzeanos. Voc percebe que a trajetria do capitalismonorte-americano foi to brbara quanto a nossa. de um sujeito chamado Kiernan [(2009)]: EstadosUnidos: o novo imperialismo. O que houve de bar-baridade ali. Eles extinguiram as naes indge-nas, algumas delas j tinham alfabeto! Eles extin-guiram, quer dizer, os espanhis so tidos comoos colonizadores cruis. Os Estados Unidos fo-ram mais cruis do que os espanhis, internamente.Ento a talvez seja esse perodo que a gente estpassando e, daqui para a frente, as coisas vo me-lhorar. A vem o meu ceticismo: no toa que

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    voc se converte na sexta ou quinta economia ca-pitalista do mundo, isso no toa. Isso tem umpreo extraordinrio. Eu estou fazendo um peque-no texto que eu vou discutir no grupo do RenatoMartins, que o Pequeno Napoleo, que o Lula,evidentemente. Qual a lio que se extrai doNapoleo? Napoleo exportou a Revoluo Fran-cesa para o resto da Europa e, internamente, foi oregime mais repressor, quer dizer, anulou todas asconquistas da Revoluo Francesa. Lula um pe-queno Napoleo. O que que o PT fez esses anos?Fernando Henrique outra coisa. Todo mundogosta de falar mal do Fernando Henrique. Eu nofalo mal. Fernando Henrique acreditou no sonhoburgus de regulamentar o capitalismo. Ento, elecriou as agncias, ANVISA, ANATEL, etc.. Nestecaso, o poltico desaprendeu o que o socilogosabia. Ele tentou regulamentar, disse: Aqui o ca-pitalismo tem que crescer dentro dessesparmetros, seguindo uma ordem burguesa, pre-visvel. At por isso ele no conseguiu, no spor esprito de classe. Ele , de fato, elitista (risos),mas pela forma da reforma do Estado que ele ten-tou implementar. Qual foi a reforma do Estado queo lulismo fez? Nenhuma. Nenhuma! No h nadana estrutura do Estado republicano brasileiro quetenha sido acrescentado pelo lulismo. Alis, o ter-mo lulismo do Andr Singer [(2009)]. A, o quo PT fez? O PT fez foi desembaraar: abre alas,que para poder o processo avanar sem regula-mentao nenhuma. Converteu-se na sexta econo-mia mundial e no tem mais capacidade de refazero caminho que a social-democracia fez. Porque voc compulsivamente obrigado a seguir todas as no-vas tendncias, se no voc fica para trs. Qual osegundo pas do mundo a utilizar celular? O Bra-sil. Todo mundo tem celular.Marcelo: Se voc olha da perspectiva dos de bai-xo, da empregada domstica, por exemplo, ela temcelular hoje, compra televiso de plasma presta-o. Para alguns, tem a luz eltrica que no chega-va. Ou seja, conversando como voc conversavacom as empregadas domsticas h 40 ou 50 anosatrs, as de hoje tambm gostam do Lula.Chico: Eu sei, isso eu sei.

    Marcelo: Ento, uma coisa um pouco trgica doponto de vista socialista, aquilo que voc chamoude transformao da classe em pobreza, mas dealguma maneira as satisfaz.Chico: No h dvida, Marcelo.Flvio: a questo da incluso pelo consumo, queo Andr Singer explorou no texto dele sobre olulismo. A impresso que d que a diferena doSinger para voc que ele acredita que esse pro-cesso vai levar a contradies que talvez permi-tam, daqui a algum tempo, uma rearticulao dapoltica.Chico: Eu gosto muito do Andr, por razes mui-to afetivas. Ele filho do Paul, que um grandeamigo, para quem eu tenho enorme carinho e gos-to muito dele depois que passei a ter uma convi-vncia maior. Ele hoje o coordenador doCENEDIC. Mas eu no participo de nenhuma dasiluses do Andr (risos). E acho que ele est ven-do miragens. No deserto, voc v miragens (risos).Ele est vendo miragens, alm de ser um ponto devista teoricamente equivocado, e eu me permitodizer que est equivocado. Isso tudo produto dodesenvolvimento do capitalismo: TV de plasma, ocelular. Mas, e claro, elas, as empregadas, tmrazo de gostar do Lula, assim como na minhainfncia elas no gostavam dos usineiros. A queest a maldade. Esse gostar do Lula a condiopara frear as transformaes. Transformaes dabase produtiva no so um bom critrio para ummarxista. um paradoxo isso, porque o marxis-mo virou uma receita de bolo econmica depoisda banalizao que o marxismo sovitico fez. Euno gosto desse marxismo. Definitivamente, paramim, o fim da picada. Quer dizer, o marxismoque eu cultivo aquele em que o poder de classeaumenta e esse poder de classe que pode dar asnovas diretrizes. E a opo do Andr peloconsumismo no aumenta nenhum poder de clas-se. Aumenta o poder aquisitivo, mas eu no parti-cipo desse otimismo. Eu acho que ns estamosdefinitivamente, por uma longa e larga conjunturahistrica, enterrados no desenvolvimento capita-lista norte-americano avacalhado. Tudo bem, ba-seado num momento de consumo de massas e tal.

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    No estou contra, devo dizer: a minha tica cris-t. Porque eu fui educado no cristianismo. Meusvalores ticos so cristos, no so marxistas. Euno posso ser contra a melhoria do consumo dasclasses populares. Eticamente eu no posso. Po-deria at arrolar dezenas de razes econmicas, maseticamente eu no posso. Como que eu estou debarriga cheia e vou ser contra? Acontece que, e asociedade norte-americana a prova disso, essecaminho vai inevitavelmente esbarrar com a opres-so de classe. Voc no tem como superar isso nestalarga conjuntura histrica que eu no sei medirquantos anos ou dcadas so, mas voc esbarra.Eu no gosto nem de chamar de sociedade de con-sumo, porque isso j tem certo preconceito queno consegue se superar. Eu acho que o Brasil estnuma larga conjuntura histrica em que no vaisuperar esses estigmas. E no porque os benef-cios do consumo no chegaram. Ao contrrio, porque os benefcios do consumo chegaram. E a,exatamente, se toda empregada domstica tem umcelular, qual a promessa da revoluo?Flvio: Eu estava num seminrio recente doCENEDIC em que houve sua exposio. OCENEDIC agora est se colocando qual ser o temada pesquisa que vai ser feita daqui pra frente, qualvai ser o novo projeto. E voc dizia que o grandedesafio para o CENEDIC, e para as cincias sociaisem geral, tentar descobrir de onde pode sair essavoz dissonante. Se voc no pode mais apostar nooperariado tradicional, nesse trabalhador formali-zado, de onde que pode vir esse sopro para atransformao? Queria que voc falasse um poucodisso: voc acha que realmente esse o grandedesafio hoje, no s para as cincias sociais, masdesafio da esquerda, desafio da poltica no Brasil,pensar de onde pode sair esse sopro?Chico: Eu no vejo de onde vai sair. claro que por via das cincias sociais que eu formulo as ques-tes que eu tento entender, responder acima daminha capacidade, por via delas que eu abordo.Eu no vejo que o meu campo cientfico esteja so-prando nada. No sinto esse sopro. Ao contrrio,sinto um sopro de um conformismo dourado.Marcelo: Enquanto der pra dourar, porque tudo

    isso envolve a continuidade do crescimento, dodesenvolvimento.Chico: E vai ter, Marcelo.Marcelo: Parece que o capitalismo tem muito praavanar no Brasil.Chico: Tem muito. No tem fronteira mais do pon-to de vista de que existem algumas regies em queo modo de produo no pleno. A acabou. Mastem muito para avanar.Marcelo: Recursos naturais, humanos.Chico: Humanos, tem muito. Quer dizer: ns te-mos duzentos milhes de habitantes. So cincopases do mundo com esse recurso. Isso a forade trabalho para homem nenhum botar defeito.Evidentemente, s perdemos da China e da ndia.Mas ainda no ocorreu a nenhum maluco, e certa-mente no vai ocorrer, tentar ultrapassar a China ea ndia. Fernando Henrique tentou, em termos dedesregulamentar os direitos do trabalho. Seria umaloucura formidvel.Marcelo: Talvez esse seja o avano do Lula. Se eleno mudou nada no Estado, ao menos ele barroua continuidade daquele desmonte da Era Vargasque o Fernando Henrique se props a fazer, au-mentando o nmero de carteiras de trabalho assi-nadas, por exemplo.Chico: Ele barrou aquele desmonte, mas o preoque ele pagou foi abrir as portas. Numa linguagemmais obscena a gente diria: manda abrir as per-nas (risos). Quer dizer, tira qualquer obstculo.Marcelo: A Walquria Leo Rego muito interes-sada no Bolsa Famlia, porque gera um dinamis-mo novo nas comunidades.Chico: Isso conversa. Primeiro porque eu noacredito em pesquisa (risos). Como eu sou umsocilogo mal formado, eu no acredito nessaspesquisas que voc vai e entrevista a gente. claroque, se voc perguntar a algum que beneficiadopelo Bolsa Famlia, s se ele estiver louco de pedravai dizer que no gosta. Mas se voc seguir outrocaminho, que voc desmontar o oramento fam-lia, vai ver quais so os gastos de uma famlia tpi-ca do Bolsa Famlia. comprar arroz, se tanto, fei-jo, farinha, mandioca, a rapadura. Isso o movi-mento do capitalismo? Ento eu, voltando aos meus

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    princpios ticos, eu no posso ser contra. Se eufosse contra, eu tinha que voltar setenta anos atrse dizer minha me que no me ensinasse aquelascoisas. Eu no posso ser contra, eu s posso ser afavor. Mas isso move a economia capitalista?Marcelo: No interior do Nordeste, os dados mos-tram que tem uma circulao. Enfim, no deve serpraticamente nada, mas voc pe algum capital, al-gum mnimo de dinheiro em circulao, voc gerauma circulao. Com uma parte o cara paga a pres-tao para ter o celular, ou paga a prestao para tera moto e no precisar do jegue. Enfim, h certadinamizao da economia com esse dinheiro que injetado, do ponto de vista do capitalismo mesmo.Chico: tudo feito a velha piada popular: Nofaz onda que pra poder no passar daqui. Querdizer, uma forma de aquietar. Tem um velho amigomeu que, nos tempo do Recife, ia para os comci-os desse Joo Cleontes, que nunca ganhou umaeleio, e comeava a dizer desaforo, ali no meiode quem ouvia o comcio (risos). Eu dizia: MasArtur, voc est se arriscando aqui!. Ele dizia: para ativar a luta de classes (risos). Era um piadista.Flvio: Por isso, voc fala que ocorre a transforma-o da classe em pobreza. Porque a esquerda, his-toricamente, o desafio dela sempre foi transformarpobreza em classe, e o que o governo Lula teriafeito, e a Dilma continuado, e o Bolsa Famlia, maisespecificamente, transformar o que poderia seruma voz dissonante de classe em pobreza.Chico: isso. O papel da esquerda ao longo dahistria foi esse. De So Francisco para So Marx.Os ltimos doze anos a regresso de So Marxpara So Francisco, que o santo que a minhame me deu o nome e o grande santo da caridadecrist. Mas voc olha para o panorama geral e stem programa para os pobres. Numa velha piada,se um marciano casse aqui: Parece um pas ques cuida dos pobres. A ironia da coisa que scuida dos pobres porque ele s produz pobres.Esse desenvolvimento capitalista que a est e quevai seguir s produz pobres. Os pobres no souma herana do passado, os pobres so a formapela qual o capitalismo se desenvolve aqui. Entovai ter sempre pobre para atender. E os pobres vi-

    ram alvo de todas as polticas pblicas.Marcelo: Mas h mecanismo de ascenso, a famo-sa onda agora da chamada classe C, que ganha1500 reais por ms. Mas, pra quem no ganhavanada, ou ganhava 500, j alguma coisa.Chico: Mas voc no acredita nisso, Marcelo?Marcelo: Digamos que o prprio desenvolvimentodo capitalismo gera uma diferenciao que no eli-mina a pobreza, mas talvez permita criar extratossociais menos degradados, talvez igualmente oumais explorados. Mas que permite s pessoas com-prarem bens de consumo sem eliminar a pobreza.Flvio: A impresso que d, e isso a gente podever no texto do Singer, que ele analisa a classe, osetor mais baixo, que est ascendendo pelo con-sumo, mas tem tambm o setor de cima, que estsubindo. Ento, a questo que fica : se quandoacabar essa onda de crescimento, que pode durarmuito, mas quando ela acabar, essa distncia novai ter diminudo. Ento, acho que por isso queo professor Chico est falando que a gente vai ba-ter na parede da opresso de classe.Marcelo: Sim, mas o que eu estou querendo dizer que o desenvolvimento do capitalismo no leva,necessariamente, pauperizao. Ele leva con-centrao de riqueza. Mandel j falava isso. No pela pauperizao que se justifica a necessidadede uma transformao, mas pela contradio en-tre os que tm mais e os que tm menos. peladiferena de classe.Chico: , diferena de classe. Este pas, como oLula gosta de dizer, tem hoje o stimo homem maisrico do mundo. Isso s ocorre quando voc temessa diferena. Isso no ocorre na Frana, na Itlia,na Alemanha, na Inglaterra. S ocorre neste caso.O homem mais rico do mundo mexicano. Quemconhece o Mxico sabe que aquilo uma lstima.Ao norte da Cidade do Mxico, existe a maior fa-vela mundial. No comparvel com as brasilei-ras. E tem o senhor Carlos Slim, que, ironicamen-te, tem o nome de magro (risos). Voc no faz issocom redistribuio de renda. Isso s ocorre comaltssima concentrao de renda. Voc no encon-tra em nenhum outro pas capitalista, salvo BillGates, algum que se coloque nesse time dos mais

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    ricos. Salvo Bill Gates, por causa do computador.Voc no encontra um nome suo, um nome ale-mo, um nome francs, um nome ingls. Encontraum brasileiro, o senhor Eike Batista, cujo pai foiministro de Minas e Energias de Jango. E, no meutempo, Celso Furtado dizia que ele era um homemde bem. O qu Elizeu Batista fez? Como ele foipresidente da Vale do Rio Doce durante quarentaanos, ele sabia de todas as reservas minerais doBrasil. Onde elas estavam e com quem estavam.Passou isso para o filho. Isso ocorre assim, noocorre por distribuio de renda. Nem Marx ex-plica. S se explica, evidentemente, como umaformao de gangues, cuja riqueza se produz as-saltando o Estado. Quer dizer, essa uma das ra-zes pelas quais eu no acredito no conto do Andr.Flvio: Na reunio do CENEDIC, o Andr Singertambm fez uma relao entre essa sua mudanado final dos anos 1990 e uma aproximao com aperspectiva do Florestan Fernandes, da Revoluoburguesa no Brasil, aquela aposta de que uma rup-tura no capitalismo brasileiro tem que ser umaruptura forte, violenta, ela no pode ser uma rup-tura por reformas, ampliao de direitos. O quetalvez o diferencie do prprio Andr: ele est fa-zendo essa aposta de que possvel voc talvezchegar a mudanas por essa via. Voc concordacom essa anlise dele? Voc est mais perto hojedaquele Florestan da Revoluo burguesa no Bra-sil, que falava que no dava para fazer a luta porreformas, tinha que apostar numa ruptura violen-ta mesmo?Chico: Eu vou responder de forma paradoxal. Euestou mais prximo do Florestan, mas no acredito.Marcelo: Para haver ruptura, violenta ou no, temde haver agentes querendo fazer a ruptura. O queo Chico est dizendo que no tem agente, as pes-soas esto sendo incorporadas lgica do sistema.Enfim, a hegemonia burguesa que est introjetada.Ento, como ter ruptura ou reforma se as pessoasno querem fazer reforma nem ruptura?Chico: As pessoas pensam, sonham e comem nostermos da hegemonia.Flvio: O Florestan ainda tinha aquela ideia dahegemonia restrita da burguesia, que iria andar um

    pouco e iria sofrer uma ruptura. No hegemoniarestrita que ele fala, mas muito prximo. Aquelaideia de que a hegemonia da burguesia no ple-na, e a ditadura era uma expresso de que ela pre-cisava da fora.Chico: A ditadura era, mas hoje no.Flvio: Hoje voc acha que essa hegemonia plena?Chico: plena. Ns pensamos, comemos, sonha-mos nos termos propostos pela hegemonia bur-guesa. Da no sairmos para lugar nenhum. Issono eterno.Marcelo: Mas demora a mudar?Chico: Demora muito para mudar. Se, no Nordes-te, as pessoas esto comendo. Esse outro graveequvoco, e as cincias sociais so muito respon-sveis por isso. Sempre se pensou que o Nordesteera um barril de plvora, e no . Tem conjunturashistricas em que ele se aproximou disso, masdepois passou. Se misria fosse barril de plvora,a ndia j teria explodido. Voc tem um sistema dedominao, vou usar a palavra funcional, porqueno encontro outra melhor, que, ao mesmo tempoem que as empregadas domsticas da minha meno votavam no usineiro, internamente elas nun-ca pediram carteira de trabalho. uma forma deconsenso. A eu no vou usar os velhos estigmasclssicos, de escravido, eu no acredito mais nis-so, eu estou noutra. A peculiaridade da domina-o brasileira o atraso como tcnica de domina-o. E no a mesma coisa em todas as socieda-des. Como que os Estados Unidos controlamsua sociedade? Usando o individualismo comotcnica de dominao. Voc s ter xito se for umindivduo capaz e tal. No Brasil diferente.Marcelo: Mas isso no est mudando? No Brasil,voc apontou um caminho parecido com o ameri-cano, mas degradado. Isso no envolve tambmuma mudana nesse sentido da valorizao do in-dividual, enfim, a ideia liberal clssica?Chico: . S que a ideia liberal clssica, num pasdeste, no tem muito a oferecer. A ideia liberal cls-sica foi revolucionria no seu tempo, com umadificuldade que ns, marxistas, temos que reco-nhecer. Revolucionria sim, foi revolucionria.Marcelo: Hoje muito difcil voc encontrar, aqui

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    em So Paulo, uma empregada que se submeta atrabalhar sem carteira assinada.Chico: No encontra. uma diferena em relaoa outras partes do Brasil notvel. Voc no encon-tra sequer empregada domstica que queira pro-longar sua jornada, dormir no trabalho. umamudana. Entre as minhas frgeis esperanas, euespero que isso se espraie por todo Brasil, o que difcil. No precisa apelar para o Nordeste maisuma vez. Vai ao Rio de Janeiro para ver como muda,como diferente. O estatuto do trabalho domsti-co no Rio at antecipou muita coisa que j ocorreem So Paulo, mas parou. Tudo isso so movi-mentos moleculares que o prprio desenvolvimen-to do capitalismo faz. Isso no grande reforma.Ento, vai ocorrendo porque, se ns no estamosmuito enganados, e se Marx ainda tem algum va-lor, o que o capitalismo compra o tempo de tra-balho, e o outro lado tambm sabe medir esse tem-po de trabalho. Quando os dois comprimirem, issoa gente melhora. A questo essa. No vejam comopessimismo larvar, mas a corrida mundial muitoacelerada. Cada novo desenvolvimento obriga voc,a gente sabe h tempos, a tornar obsoleta a partedo que estava atrs e tentar adaptar-se e at inven-tar o que est pela frente. Isso faz com que o cami-nho tradicional que a classe operria percorreu nopossa ser percorrido. E a, me aproximando e medistanciando de Florestan, eu no acredito que vaihaver nenhuma ruptura violenta. Porque umconformismo morno, uma coisa difcil de definir.Sem apelar para moralismo udenista, fica difcilde ver o que isso. claro que muito disso suaprpria interpretao e seus prprios desejos deque fosse diferente. Mas assim que voc v omundo. Quando eu entrei no Partido Socialista eupensei que ia ser fcil (risos).Flvio: Acho que isso, foi uma boa entrevista.Marcelo: Para finalizar, pode citar autores que tive-ram alguma influncia maior sobre voc?Chico: Eu estou muito desatualizado, no leio maisteoria. S leio romance. No passado, eu gostavamuito da teoria da regulao. O Robert Boye e oMichel Aglietta eram meus autores preferidos.Exatamente porque eles vm de uma tradio

    gramsciniana, e essa tradio nos levou a valorizaro institucional. Ao contrrio dos marxistas orto-doxos, para quem o institucional balela burgue-sa, eles valorizavam muito o institucional e apartir da que a teoria da regulao decola. Masisso da poca em que eu sonhava, na poca dateoria do antivalor.

    Recebido para publicao em 29 de outubro de 2012Aceito em 21 de dezembro de 2012

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    Marcelo Siqueira Ridenti - Doutor em Sociologia. Professor Titular de Sociologia na Universidade Estadualde Campinas. Tem experincia na rea de Sociologia, atuando principalmente nos seguintes temas: cultura,arte e poltica, esquerda brasileira, intelectualidade brasileira, pensamento marxista, ditadura militar bra-sileira, anos 1960. Publicaes recentes: Brasilidade revolucionria - um sculo de cultura e poltica (Ed.Unesp, 2010); Em busca do povo brasileiro: artistas da revoluo, do CPC era da tv (Record, 2000); Ofantasma da revoluo brasileira (Ed. UNESP, 2a. ed. revista e ampliada, 2010).

    Flvio da Silva Mendes - Doutorando em Sociologia. Mestre em sociologia pela UNICAMP. Desenvolvepesquisas sobre a poltica na Amrica Latina e a trajetria de intelectuais no Brasil. Publicou o livro: HugoChvez em seu labirinto: o Movimento Bolivariano e a Poltica na Venezuela, em co-edio entre Alameda eFAPESP (So Paulo/SP), em 2012.