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RIEADA - Revista Interdisciplinar de Estudos sobre África e Diásporas Africanas A Institucionalização de Estudos Sobre a Mulher Negra: Perspectivas dos Estados Unidos e o Brasil RESUMO Este argo examina o campo de estudos so- bre a mulher negra no Brasil e os Estados Unidos. A análise enfoca no surgimento deste campo de estudo nos Estado Unidos nos anos 70 e 80 e dis- cute a possibilidade de fortalecer o desenvolvim- ento deste campo de estudos no Brasil. Devido ao aumento no número de estudantes negras na graduação e pos-graduação no Brasil em anos re- centes, a autora argumenta para a importância de enfocar na relação entre raça e genêro na aca- demia brasileira. Palavras-chave: mulheres negras; feminismo negro; Estados Unidos; Brasil; academia ABSTRACT This arcle examines the field of black wom- en’s studies in Brazil and the United States. The analysis focuses on the rise of this field in the United States during the 1970s and 1980s and dis- cusses the possbility of strengthening the devel- opment of this field of study in Brazil. Due to the increase in the number of black female students at the undergraduate and graduate levels in Brazil in recent years, the author argues for the importance of focusing on the relaonship between race and gender in the Brazilian academy. Key Words: black women; black feminism; United States; Brazil; academia The Institutionalization of Black Women’s Studies: Perspectives from the United States and Brazil Kia Lilly Caldwell Kia Lilly Caldwell é uma an- tropóloga e uma professora no Departamento de Estudos Africanos e Afro-Americanos na University of North Caro- lina, Chapel Hill, Estados Uni- dos. Sua pesquisa tem sido publicado nas revistas Estudos Feministas e Genêro no Brasil e nas Revistas Transforming Anthropology, Froners, and The Journal of Negro Educa- on in the United States. Seus livros incluem Negras in Brazil: Re-envisioning Black Women, Cizenship, and the Polics of Identy (Rutgers University Press, 2007) e a antologia Gen- dered Cizenships: Transna- onal Perspecves on Culture, Polical Acvism, and Knowl- edge Producon (Palgrave, 2009). Ela está desenvolvendo pesquisa sobre mulheres ne- gras e a epidemia de HIV/AIDS no Brasil e os Estados Unidos. Dezembro 2009 - 1

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A Institucionalização de Estudos Sobre a Mulher Negra: Perspectivas dos Estados Unidos e o Brasil

RESUMOEste arti go examina o campo de estudos so-

bre a mulher negra no Brasil e os Estados Unidos. A análise enfoca no surgimento deste campo de estudo nos Estado Unidos nos anos 70 e 80 e dis-cute a possibilidade de fortalecer o desenvolvim-ento deste campo de estudos no Brasil. Devido ao aumento no número de estudantes negras na graduação e pos-graduação no Brasil em anos re-centes, a autora argumenta para a importância de enfocar na relação entre raça e genêro na aca-demia brasileira.

Palavras-chave: mulheres negras; feminismo negro; Estados Unidos; Brasil; academia

ABSTRACTThis arti cle examines the fi eld of black wom-

en’s studies in Brazil and the United States. The analysis focuses on the rise of this fi eld in the United States during the 1970s and 1980s and dis-cusses the possbility of strengthening the devel-opment of this fi eld of study in Brazil. Due to the increase in the number of black female students at the undergraduate and graduate levels in Brazil in recent years, the author argues for the importance of focusing on the relati onship between race and gender in the Brazilian academy.

Key Words: black women; black feminism; United States; Brazil; academia

The Institutionalization of Black Women’s Studies: Perspectives from the United States and Brazil

Kia Lilly Caldwell

Kia Lilly Caldwell é uma an-tropóloga e uma professora no Departamento de Estudos Africanos e Afro-Americanos na University of North Caro-lina, Chapel Hill, Estados Uni-dos. Sua pesquisa tem sido publicado nas revistas Estudos Feministas e Genêro no Brasil e nas Revistas Transforming Anthropology, Fronti ers, and The Journal of Negro Educa-ti on in the United States. Seus livros incluem Negras in Brazil: Re-envisioning Black Women, Citi zenship, and the Politi cs of Identi ty (Rutgers University Press, 2007) e a antologia Gen-dered Citi zenships: Transna-ti onal Perspecti ves on Culture, Politi cal Acti vism, and Knowl-edge Producti on (Palgrave, 2009). Ela está desenvolvendo pesquisa sobre mulheres ne-gras e a epidemia de HIV/AIDS no Brasil e os Estados Unidos.

A Institucionalização de Estudos Sobre a Mulher Negra: Perspectivas dos Estados Unidos e o Brasil

RESUMOEste arti go examina o campo de estudos so-

bre a mulher negra no Brasil e os Estados Unidos. A análise enfoca no surgimento deste campo de estudo nos Estado Unidos nos anos 70 e 80 e dis-cute a possibilidade de fortalecer o desenvolvim-ento deste campo de estudos no Brasil. Devido ao aumento no número de estudantes negras na graduação e pos-graduação no Brasil em anos re-centes, a autora argumenta para a importância de enfocar na relação entre raça e genêro na aca-demia brasileira.

Palavras-chave: mulheres negras; feminismo negro; Estados Unidos; Brasil; academia

ABSTRACTThis arti cle examines the fi eld of black wom-

en’s studies in Brazil and the United States. The analysis focuses on the rise of this fi eld in the United States during the 1970s and 1980s and dis-cusses the possbility of strengthening the devel-opment of this fi eld of study in Brazil. Due to the increase in the number of black female students at the undergraduate and graduate levels in Brazil in recent years, the author argues for the importance of focusing on the relati onship between race and gender in the Brazilian academy.

Key Words: black women; black feminism; United States; Brazil; academia

The Institutionalization of Black Women’s Studies: Perspectives from the United States and Brazil

Kia Lilly Caldwell

Kia Lilly Caldwell é uma an-tropóloga e uma professora no Departamento de Estudos Africanos e Afro-Americanos na University of North Caro-lina, Chapel Hill, Estados Uni-dos. Sua pesquisa tem sido publicado nas revistas Estudos Feministas e Genêro no Brasil e nas Revistas Transforming Anthropology, Fronti ers, and The Journal of Negro Educa-ti on in the United States. Seus livros incluem Negras in Brazil: Re-envisioning Black Women, Citi zenship, and the Politi cs of Identi ty (Rutgers University Press, 2007) e a antologia Gen-dered Citi zenships: Transna-ti onal Perspecti ves on Culture, Politi cal Acti vism, and Knowl-edge Producti on (Palgrave, 2009). Ela está desenvolvendo pesquisa sobre mulheres ne-gras e a epidemia de HIV/AIDS no Brasil e os Estados Unidos.

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Este artigo pretende examinar o estabelecimento do campo de estudos sobre a mulher negra nos Estados Unidos desde o começo da década de 80 até o presente. Além disso, a apresentaçao examina o aumento no número de pesquisas académi-cas sobre a questão da mulher negra no Brasil em anos recentes. A análise compara as experiências de pesquisadoras e intellectuais negras dos Estados Unidos com as experiências de pesquisadoras e intellectuais negras do Brasil para aprofundar nosso entendimento das possibilidades e desafíos relacionados ao estabelecimento e insti-tucionalização de estudos sobre a mulher negra nos dois paises.

Definindo o Campo de Estudos sobre a Mulher Negra nos Estados Unidos

Durante o século XIX havia um surgimento em militância social e politíca por mulheres negras e um aumento no número de publicações, tal como literatura, en-saios políticos e jornalismo, escritas por mulheres negras.i As falas públicas e as ob-ras escritas por mulheres negras durante o século XIX apontavam para as experiên-cias particulares das mulheres negras devido á relação entre raça e genêro, durante a epóca de escravidão e devido á segregação racial na epóca pos-abolição. No final dos anos 70 e começo dos anos 80 havia um resurgimento na produção de obras escritas que enfocaram nas experiências das mulheres negras norteamericanas. Du-rante esta epóca, mulheres negras nos EUA começaram a desenvolver uma critíca da chamada “Second Wave” (a segunda onda) do movimento feminista que tinha surgido nos anos 60 e 70 assim como dos movimentos de direitos civis e Black Power. As criticas das mulheres negras dos anos 60 e 70 tinham muitas semelhanças com as criticas das mulheres negras dos XIX enquanto a importância da relaçao entre raça e genêro nas vidas e experiências delas.As obras escritas por mulheres negras durante os anos 70 e 80 fizeram parte dos primários estudos dum campo de estudo que estavam se formando, o campo de estudos sobre a mulher negra norteamericana ou Black Women’s Studies. Os textos pionerios durante este período foram textos tal como: The Black Woman [A Mulher Negra] o qual foi editado por Toni Cade Bambara e publicado em 1970 e a antologia All the Women Are White, All the Blacks Are Men, But Some of Us are Brave: Black Women’s Studies, também chamado But Some of Us are Brave [Todas as mulheres são brancas, Todos os negros são homens, mais algumas de nós temos coragem: Es-tudos da Mulher Negra], a qual foi publicado em 1982. But Some of Us Are Brave marcava uma tentativa de definir e institucionalizar o campo de estudos sobre a mulher negra nos Estados Unidos. Esta antológia de en-saios escritos por mulheres negras delineavam temas relevantes ás experiências das

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mulheres negras e a necessidade de desenvolver uma disciplina nova enfocada na questão da mulher negra nas universidades norteamericanas. A introdução a But Some of Us Are Brave [Mais algumas de nós temos coragem] tem o título de “The Politics of Black Women’s Studies” (As Políticas de Estudos Sobre a Mulher Negra). Neste ensaio introdutório duas das editoras do livro, Gloria T. Hull e Barbara Smith, falam da importância dos estudos sobre a mulher negra, por dizer:

Meramente usar o term “estudos da mulher negra” é um ato cargado com significado político. Pelo menos, combinar estas palavras para nomear uma disciplina significar tomar uma posição que reconhece que as mulheres negras existem -e que existem duma forma positiva – um posicionamento que está em contradição á maioria de coisas as quais são valorizadas como cultura e pensamento no continente norteamericano. Usar este termo e fazer acões baseados nele num mundo de homens brancos é um ato de coragem político. (1982: xvii)

Gloria T. Hull e Barbara Smith continuam por anotar:

Como qualquer grupo que falta direitos políticos, as mulheres negras não podriam existir duma forma consciente antes de nós nomear. O aumento no número de estudos sobre a questão da mulher negra é um aspecto essencial deste processo de nomeamento. O fato mesmo que os estudos da mulher negra descreve algo que está acontecendo, um campo de estudo crescente, demostra que tem sido mundanças políticas que possibilitam este crescimento. Examinar a política do campo de estudos da mulher negra significa considerar não só o que é, mais porque existe e o que podria ser. (1982: vxii)

O ensaio de Hull e Smith delinea quatro temas que elas consideravam importantes numa consideração da política de estudos da mulher negra:

(1) a situação política em geral das mulheres negras e o impacto disso na implementação de estudos da mulher negra; (2) a relação entre os estudos sobre a mulher negra e o feminismo negro e o movimento de feministas negras; (3) a necessidade de ter um campo de estudos sobre a mulher negra que seja feminista, radical, e analítica; e (4) a necessidade de ter professoras universitárias no campo de estudos

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da mulher negra que reconhecem nossa posição política complicada/problemática dentro da academia e a possibilidade de que temos que trabalhar em condições antagónicas/aversas. (1982: vxii)

Hull e Smith desenvolvem o quarto tema citado encima mais tarde no ensaio por commentar que as condições de trabalho dentro da “academia branca e mascu-lina” existem dentro duma estrutura não só elitista e racista, mais também muito misoginista. Além disso, elas apontam por o fato das mulheres negras fazerem parte de dois grupos as quais tem sido definido como “congenitamente inferior enquanto inteligência,” é dizer negros e mulheres (1982: xxiv). Hull e Smith argumentam que suposicões enquanto a inteligência das mulheres negras ameaçam a credibilidade e legitimidade delas como intellectuais dentro da academia norteamericana. Hull e Smith apontam para a necessidade de rejeitar “os modos de pensam-ento branco-masculino da civilizaçao ocidental” por ser falidos e promovem a im-portância das intellectuais negras manter uma postura constantamente militante e critíca em relação aos lugares nos quais desenvolvem seu trabalho (1982: xxiv). Elas apontam para a importância de desenvolver maneiras de diminuir o isolamento das mulheres negras dentro da academia branca-masculina e de formar redes de apoio que as mulheres negras sempre têm formada para ajudar uma a outra para sobre-viver. Hull e Smith chama atenção à necessidade de criar lugares que pertençem às intellectuais negras, tal como conferências, institutos, revistas, e instituições, onde as mulheres negras podem sentirse em casa e ganhar respeito para as formas pro-fundas de percepção que acompanham as identidades delas.

O Desenvolvimento do Campo de Estudos Sobre a Mulher Negra: os Anos 80 e 90

A antologia But Some of Us Are Brave “ é dividido em sete seções: (1) A bus-ca de irmandade: feminismo negro; (2) obstáculos na estrada e pontes: enfrentar o racismo; (3) dispelar os mitos: a mulher negra e as ciencias sociais; (4) sobrevivência criativa: preservação do corpo, intelecto e espiríto; (5) “pao necessario”: a literatura da mulher negra; (6) bibliografias e ensaios bibliograficos; (7) pedagogia: curriculo de aulas (ciencias sociais, literatura, interdisciplinares). Muitos das contribuições ao livro tratam de disciplinas e campos de estudo que tinham omitidos um enfoque na mulher negra, tal como a historia e a sociologia, os quais tinham perpetuadas uma imagem falsa e estereotipada da mulher negra no passado assim como no presente. Outros ensaios oferecem informações preliminares para o resgate da literatura e música escrita e composta por mulheres negras.

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Durante os anos 80 e 90 a maioria de estudos sobre a mulher negra norteam-ericana foi desenvolvidas nas disciplinas de historia e literatura. Na disciplina de historia, havia um crescimento marcante de livros e estudos publicados sobre a mul-her negra durante os anos 80. Historiadoras negras tal como Darlene Clark Hine, Paula Giddings, Nell Painter, Sharon Harley, Rosalyn Terborg-Penn, Jacqueline Jones e Deborah Gray White fizeram parte duma nova geraçao de pesquisadoras que en-focaram nas experiências da mulher negra, na sociedade escravocrata e nas epócas pos-escravidão.ii O trabalho destas historiadoras tem sido fundamental ao projeto de resgatar e valorizar ás experiências, desafios e formas de resistência das mul-heres negras nos EUA, particularmente durante a epóca da escravidão. Até os anos 80, as mulheres negras ou eram invisivel nos textos da historia ou eram estereo-tipadas como empregadas domésticas/“mammies” (mães pretas) ou como figuras hipersexualizadas/“jezebels” (a equivalente da mulata sensual no Brasil). Em suas pesquisas as historiadoras negras dos anos 80 e 90 resgataram a voz da mulher negra no desenvolvimento social e ecónomico dos Estados Unidos e o papel central da mulher negra no desenvolvimento e sobrevivência da communidade negra no país. O aumento de estudos históricas sobre a mulher negra também contribuiu para estabelecer o campo de estudo sobre a historia da mulher negra como um pro-jeto importante e viável. Estudos da mulher negra na area de literatura norteamericana também têm sido fundamentais ao projeto de resgatar a voz e as experiências da mulher negra nos Estados Unidos. Durante os anos 80 estudiosas negras da literatura estadounidense, tal como Barbara Christian, Nelly McKay, e Hazel Carby (uma mulher negra do Reino Unido), produziam obras importantes sobre a tradição literária das mulheres negras nos Estados Unidos.iii Essas obras tinham um impacto muito grande nas univer-sidades norteamericanas e iniciaram o processo de quebrar a hegemonia branca e masculina na area de literatura. Durante os anos 80 a escritura das mulheres negras foi incluido no ensino ao nivel de graduação e pós-graduação cada vez mais e os edi-tores começaram a republicar obras escritas por mulheres negras durante o século XIX e o começo do século XX que foram esquecidas. Durante esse periodo, também havia um aumento visível na quantidade de obras literárias de escritoras negras que foram publicadas ou re-publicadas, tal como as novelas e poesia de escritoras como Toni Morrison, Alice Walker, Maya Angelou e Toni Cade Bambara. Desde os anos 70 havia um surgimento na produção de teoria feminista por mulheres negras. As obras de feministas negras tal como Angela Davis, bell hooks, Audre Lorde, e Patricia Hill Collins contribuiram para aprofundar a análise e comprehensão da marginalização social, ecónomica, e política das mulheres negras nos EUA.iv As contribuções das in-

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tellectuais negras, dentro e fora da academia norteamericana, durante os anos 80 e 90 contribuiram para o fortalecimento de estudos sobre as mulheres negras durante este periodo.

Os Estudos da Mulher Negra em Relaçao aos Estudos Negros/Afro-America-nos e os Estudos da Mulher

Num ensaio publicado em 1989, a estudiosa da literatura negra Barabara Christian aponta a situação complicada que as intellectuais negras enfrentavam. Ela fala da falta de uma “casa” ou espaço que responde às necessidades dos estudos da mulher negra. Ela anota que e o estudo de mulheres negras constituia uma crítica de estudos Afro-Americanos e os estudos sobre da mulher, mais, ao mesmo tem-po estas entidades não tinham poder e ainda faltavam validez dentro da academia norteamericana. Além disso, Christian argumenta que a pesar da marginalizaçao das mulheres negras dentro dos estudos Afro-Americanos e os estudos sobre a mul-her, que havia uma necessidade para as mulheres protege-los, devido ao fato deles serem os “únicos grupos que reconhecem a nossa existência” (Christian, 1989: 22). Desde os anos 80 até o presente o campo de estudos da mulher negra tem tido uma relaçao complicada com os campos de estudos Afro-Americanos e os estu-dos sobre a mulher. Um artigo publicado em 2007 discute as dinamicas da relação do campo de estudos da mulher negra com esses outros areas (Cole & Haniff 2007). As autoras, Elizabeth Cole e Nesha Haniff, apontam para o progresso que foi feito no desenvolvimento do campo de estudos sobre a mulher negra e o posicionamento de estudiosas negras nesta area dentro das universidades norteamericanas. Elas também apontam para os problemas que os estudos Afro-Americanos e os estudos sobre a mulher têm tido em lidar com a questão da mulher negra. Cole e Haniff chamam atenção para tradições e praticas intellectuais dentro do campo de estudos Afro-Americanos que ou mantem uma visão de gênero como algo “essencial, natural, e definido por papeis separados e complementares para os homens e as mulheres” ou negam a importância de gênero em communidades negras norteamericanas (2007: 29). Elas tambem anotam problemas com as dinamicas de genero dentro de muitos departamentos de estudos Afro-Americanos que resultam de privilegio mas-culino. Mais, no final de contas, Cole e Haniff argumentam que os departamentos de estudos Afro-Americanos proveem um refúgio do racismo aberto que existe nas universidades as quais tem alunos que são em sua maioria brancos. Em seu análise sobre o tratimento da questão da mulher negra dentro do campo de estudos da mulher, Cole e Haniff discute as tensões que ha existido en-

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tre as estudiosas brancas e negras. Elas também apontam para as mundanças que foram feitas no campo de estudos sobre a mulher enquanto a questão da mulher negra. Cole e Haniff argumentam que estudiosas no campo de estudos da mulher têm feitos mais esforço para trabalhar com a questão da mulher negra do que estu-diosos no campo de estudos Afro-Americanos. Cole e Haniff anotam que os estudos feitos por mulheres de cor nos Estados Unidos sobre a relação entre gênero, raça, a outras formas de oppressão tem forçado o campo de estudos sobre a mulher a apro-fundar suas teorias e modos de pensamento em relação a questão de gênero, assim como incorporar raça e outros modos de differença em sua produção intellectual e pedagogia. Para Cole e Haniff um processo similar enquanto a questão racial não tem occurido dentro do campos de estudos Afro-Americanos. O ensaio de Cole e Haniff aponta para as contribuições de estudos sobre a mulher negra para a transformação dos estudos Afro-Americanos e os estudos sobre a mulher nas areas de pedagogia, a produção de conhecimento e as tentativas de ligar a produção de conhecimento com a militância. Como elas anotam:

Os estudos da mulher negra se importa com o estudo das vidas, condições e produtos culturais de mulheres de descendencia afri-cana na diaspora, nos periodos históricos e contemporaneos, com o propósito de melhorar as vidas das mulheres negras. Nos acredita-mos fortamente que os que se envolvem neste projeto precisam se compremeter ao trabalho de honrar e representar o espectro com-pleto de experiências diversas que existem dentro da categoria “mul-heres negras.” Aunque os estudos da mulher negra estão engagado duma forma vital com os estudos a mulher a os estudos negros, nen-huma destas disciplinas faz estes dois própositos uma parte central de sua missão. Por esta razão, argumentamos que o campo de estudos da mulher negra é differenciado destas disciplinas e constituye uma forma necessario de corregir as ommisões delas. [2007: 40]

O Campo de Estudos Sobre a Mulher Negra no Brasil Devido ás mudanças em relação ao desenvolviemento de políticas públicas para a população negra no Brasil e o aumento nas discussões sobre a questão racial no Brasil em aanos recentes, este momento oferece a opportunidade importante para pensar duma forma collectiva sobre o desenvolvimento (passado e futuro) de estudos sobre a mulher negra no Brasil. Para mim, este artigo oferece a oportuni-

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dade de retomar um trabalho que eu comecei quando eu escrevi um texto sobre os estudos da mulher e a questão racial, o qual foi publicado com o título “Fronteiras da Diferença” (Caldwell 2000). Neste artigo eu analisa a invisibilidade da raça e das experiências das mulheres negras no campo de estudos da mulher no Brasil. A partir de um olhar comparativo sobre estudos da mulher na Inglaterra, nos Estados Unidos e no Canadá. Minha análise enfatiza a ausência da raça na maior parte dos estudos da mulher no Brasil e sugere que, para alcançar um melhor entendimento da diversi-dade das experiências das mulheres brasileiras, é preciso dar um maior enfoque para as ‘diferenças’ raciais e para a relação entre raça e gênero. Além de analisar as omissões da questão racial nas pesquisa e trabalho acadêmico das mulheres brancas, eu acho que neste momento vale a pena pensar em estrategias para fortalecer a produção intellectual das mulheres negras sobre a relação entre raça, genêro, classe e sexualidade. Mas antes de pensar no futuro dos estudos da mulher negra no Brasil acho que seria bom pensar no trabalho que já foi feito e as difficuldades que as mulheres negras Brasileiras têm tido nas suas tentati-vas de fazer pesquisa e produzir trabalho acádemica nesta area. Ao mesmo tempo eu acho que é de suma importância reconhecer as publicações de feministas negras brasileiras que não atuam no meio acádemico e as que compartilham seu tempo en-tre a militância e a academia como formas de produção intellectual (Caldwell 2007, 2008). Há uma tradição intellectual importante de mulheres negras Brasileiras que surgiu nos anos 70 e 80 com as obras de Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Sueli Carneiro, Thereza Santos, Edna Roland, Luiza Bairros e Fátima Oliveira. A militância e produção intellectual destas feministas negras hão sido fundamental na construção de pensamento e teoria do feminismo negro no Brasil. Num dossiê especial da revista Estudos Feministas intitulado “Mulheres Ne-gras,” o qual foi publicado em 1995, Matilde Ribeiro fala da difficuldade que ela en-frentou em organizar o dossiê. Ribeiro commenta que, “O projeto inicial era abrir um espaço para autoras negras que estão realizando pesquisas específicas ou formala-ções teóricas sobre as questões de gênero e raça, participação política, ou ainda que como integrantes dos movimentos negro, feminista e de mulheres negras, academia, instituições públicas, tivessem contribuições a dar para um painel das mulheres ne-gras e suas lutas no país” (1995, 434). Ribeiro anota que, depois de quase um ano de trabalho, esse formato não deu certo. Ela também anota o baixo número de textos que foram recebidos para este projeto. Os commentários da Matilde Ribeiro sobre as possíveis causas de o que ela chama uma “frágil resposta” aos pedidos de mandar artigos para o dossiê são illuminantes para esta análise de campo de estudos sobre a mulher negra. Ribeiro atribuye a resposta a tres causas:

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-as mulheres negras, a partir de sua organização autônoma e en-trentamento critico aos movimentos negro e feminista nas últimas décadas, têm contribuído para a ampliação dos debates acerca de sua realidade. Porém, a sistematização desta prática ainda é mui-to pequena;- existe uma distância entre os espaços acadêmicos e os movimen-tos sociais, principalmente no que diz respeito às questões raciais. Pouquíssimas mulheres negras encontram-se nos espaços acadêmi-cos;- existe também uma distância entre as práticas e formulações teóri-cas do movimento feminista e a realidade das mulheres negras. (1995: 435)

Em nossas tentativas de pensar o desenvolvimento futuro de estudos da mulher negra e a possível institucionalização de um campo de estudos da mulher negra, eu acho que seria utíl enfocar na segunda colocação de Ribeiro. Esta coloca-ção fala do baixo número de mulheres negras que estavam em espaços acadêmicos. Pelo fato deste artigo ser publicado na revista da ABPN, eu acho particularmente interessante pensar sobre o impacto que o número crescente de mulheres negras nos cursos graduação e pos-graduação no Brasil está tendo para a consolidação de estudos sobre a mulher negra e um maior enfoque na relação entre raça, genêro e outras formas de diferença e oppressão no Brasil e outros países.

Conclusão

Para concluir, eu queria apontar algumas temas para reflexão. Primeiro, acho que seria util pensar se haja uma necessidade de nomear e articular um campo de estudos da mulher negra neste momento devido ao número crescente de estudos sobre a mulher negra nas universidades. Segundo, quais são algumas maneiras pos-siveís de promover um enfoque na questão da mulher negra para professores/as e alunos/alunas de graduação e pos-graduação (na pesquisa, aulas etc.)? Terceiro, quais seriam os beneficios de ter um campo de estudos chamado “estudos da mul-her negra” no Brasil? Quais seriam os propósitos deste campo de estudos? Seria bom ter enfoques em areas especificas, no começo pelo menos, tal como produção artistica, saúde collectiva, psicologia etc.? Quarto, qual seria a relação deste campo de estudos com os estudos Afro-Brasileiros/estudos sobre a questão racial e os es-

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Referências

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tudos da mulher? Qual seria a relação deste campo com os movimentos socias, par-ticularmente o movimento de mulheres negras? Finalmente, quais accões seruam necessárias para estabelecer e fortalecer os estudos da mulher negra (e o cam-po de estudos da mulher negra) - por exemplo núcleos ou centros de pesquisa em universidades, disciplinas ou cursos que enfocam neste tema, livros, antologias, re-vistas e outras publicações, e conferências.

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Nossos passos vêm de longe!Movimentos de mulheres negras e estratégias políticas contra o sexismo e o racismo Jurema Werneck1

1 Coordenadora de Criola, organização de mulheres negras criada em 1992 no Rio de Janeiro, Bra-sil. Integrante da Arti culação de Orga-nizações de Mulheres Negras Brasileiras/ AMNB. Médica e dou-tora em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro

O que apresentarei aqui não são idéias minhas. Falo do que vi, aprendi, li, ouvi, a parti r de minha inserção em comunidades heterogêneas: de diferentes gerações, sexual-idades, racialidades, escolaridades, possibilidades econômi-cas, culturais e políti cas, e muito mais. Penso que a origi-nalidade de que posso ser acusada refere-se à tentati va de juntar aqui muitas fontes, diferentes vozes. Não vou nomear cada uma delas, não porque queira ocultá-las, mas para de-stacar a riqueza e a amplitude da circulação de idéias que não sabemos onde começa, que se entrelaçam, que se propagam especialmente entre mulheres, criando comuni-dades de saber cujas fronteiras são imprecisas. E ainda, por ter difi culdades de aceitar, nesta circulação dinâmica de idé-ias, seu encarceramento nos paradigmas do individualismo ou da propriedade privada.

Assinalo que muitas palavras, termos e conceitos que uti lizarei são instáveis, imprecisos. Eles vêm sendo, ao longo das diferentes lutas de resistência, questi onados, criti ca-dos, reposicionados e refeitos. Uti lizarei muitos destes aqui. Peço, então, que desconfi em.

É a parti r destas considerações que digo o que direi a seguir:

As mulheres negras não existem. Ou, falando de out-ra forma: as mulheres negras, como sujeitos identi tários e políti cos, são resultado de uma arti culação de heteroge-neidades, resultante de demandas históricas, políti cas, cult-urais, de enfrentamento das condições adversas estabeleci-das pela dominação ocidental eurocêntrica ao longo dos séculos de escravidão, expropriação colonial e da moderni-

Nossos passos vêm de longe!Movimentos de mulheres negras e estratégias políticas contra o sexismo e o racismo Jurema Werneck

Coordenadora de Criola, organização de mulheres negras criada em 1992 no Rio de Janeiro, Bra-sil. Integrante da Arti culação de Orga-nizações de Mulheres Negras Brasileiras/ AMNB. Médica e dou-tora em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro

O que apresentarei aqui não são idéias minhas. Falo do que vi, aprendi, li, ouvi, a parti r de minha inserção em comunidades heterogêneas: de diferentes gerações, sexual-idades, racialidades, escolaridades, possibilidades econômi-cas, culturais e políti cas, e muito mais. Penso que a origi-nalidade de que posso ser acusada refere-se à tentati va de juntar aqui muitas fontes, diferentes vozes. Não vou nomear cada uma delas, não porque queira ocultá-las, mas para de-stacar a riqueza e a amplitude da circulação de idéias que não sabemos onde começa, que se entrelaçam, que se propagam especialmente entre mulheres, criando comuni-dades de saber cujas fronteiras são imprecisas. E ainda, por ter difi culdades de aceitar, nesta circulação dinâmica de idé-ias, seu encarceramento nos paradigmas do individualismo ou da propriedade privada.

Assinalo que muitas palavras, termos e conceitos que uti lizarei são instáveis, imprecisos. Eles vêm sendo, ao longo das diferentes lutas de resistência, questi onados, criti ca-dos, reposicionados e refeitos. Uti lizarei muitos destes aqui. Peço, então, que desconfi em.

É a parti r destas considerações que digo o que direi a seguir:

As mulheres negras não existem. Ou, falando de out-ra forma: as mulheres negras, como sujeitos identi tários e políti cos, são resultado de uma arti culação de heteroge-neidades, resultante de demandas históricas, políti cas, cult-urais, de enfrentamento das condições adversas estabeleci-das pela dominação ocidental eurocêntrica ao longo dos séculos de escravidão, expropriação colonial e da moderni-

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dade racializada e racista em que vivemos.Ao afirmar estas heterogeneidades, destaco a diversidade de temporalidades,

visões de mundo, experiências, formas de representação, que são constitutivas do modo como nos apresentamos e somos vistas ao longo dos séculos da experiên-cia diaspórica ocidental. Tais diversidades fazem referência às lutas desenvolvidas por mulheres de diferentes povos e regiões de origem na África, na tentativa de dar sentido a cenários e contextos em rápida e violenta transformação. Mudanças que resultariam na constituição de uma diáspora africana que significasse algum tipo de continuidade em relação ao que poderia ser definido como nós, com o que éramos e que não seríamos nunca mais.

Na formação e expansão desta diáspora, as articulações empreendidas tinham e têm como âncora principal a luta contra a violência do aniquilamento - racista, heterossexista e eurocêntrico - com vistas a garantir nossa participação ativa no agenciamento das condições de vida para nós mesmas e para o grupo maior a que nos vinculamos. Articulações que se desenvolveram apesar (e a partir) das ambigü-idades e limitações de identidades fundadas em atributos externos impostos pelo ol-har dominador, de forte marca fenotípica (visual) e cuja amplitude de aniquilamento estende-se ao genocídio e ao epistemicídio1. Assim os processos de constituição das diferentes identidades “mulheres negras” incluem também a necessidade de sua ultrapassagem, fazendo existir novos conceitos instáveis “mulheres negras” mais adequados ao que necessitamos, queremos e devemos ser nos diferentes cenários políticos. Tais instabilidades destacam seu caráter político, bem como apontam sua necessidade de ultrapassagem na direção de nomes próprios que garantam sua in-serção em processos de transformação social que façam desaparecer o racismo, o heterossexismo e as violências que fazem parte de sua história e justificativa.

Assim, é possível imaginar que, se não houvesse um movimento de colonização com força econômica, política e cultural amparado num racismo baseado na cor da pele e na deslegitimação e negativação dos significados e significantes relacionados à África em sua heterogeneidade ou singularidade. Se essa não fosse uma domina-ção apoiada em esquemas patriarcais heterossexistas e em condições de extrema exclusão. Se tais esquemas de dominação, apoiando0se nas regras da modernidade capitalista (e neoliberal) não demonstrassem um vigor contemporâneo. E se a re-sistência a estes cenários não fosse um imperativo de sobrevivência, talvez não hou-vesse mulheres negras (e, é claro, não apenas nós).

O que haveria?Não estou preparada para qualquer exercício de projeção de cenários ou ad-

ivinhações. Apenas destaco a amplitude do impacto que escravidão, colonização e os

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regimes racistas patriarcais tiveram e têm na valorização (no sentido de emergência e destaque) de um conjunto de características que vieram a constituir nossa identi-dade.Repetindo: a diferença que os processos de singularização das mulheres negras produziu e produz implica uma diferenciação entre sujeitos e grupos com base na raça e no gênero: homens e mulheres, branc@s e negr@s. (os diálogos e relações com mulheres e homens indígenas, habitantes originais da diáspora, fizeram, e fa-zem em muitos casos, parte deste processo). Diferenciação que denuncia e recusa às condições de privilégio e de poder de violência como atributo do pólo racial bran-co, independentemente das condições biológicas do sexo ou dos desnivelamentos secundários às políticas de gênero. O que quer dizer também que reconhece, nas mulheres brancas de diferentes épocas, um pólo de poder e de violência.

Assim, as articulações desenvolvidas recolocaram na esfera das disputas políti-cas sujeitos definidos pelas lentes do racismo patriarcal, dentro e fora do feminismo, como um pólo passivo, incapaz e irresponsável,atributos que consideramos inacei-táveis.

A partir daí, é possível visibilizar, no interior destas articulações, as diferentes possibilidades a que as mulheres negras recorreram, os diferentes repertórios ou pressupostos de (auto)identificação ou de identidade e de organização política. Tais possibilidades partem deste reconhecimento: estamos diante de diferentes agentes históricas e políticas – as mulheres negras - intensas como toda diversidade.

Entre estes repertórios estão alguns dos mitos sagrados presentes no Brasil desde que a diáspora africana foi criada. Eles referem-se a figuras femininas que atu-aram e ainda atuam como modelos, como condutores de possibilidades identitárias para a criação e recriação de diferentes formas de feminilidade negra. Assinale-se aqui uma visão da tradição como repertório maleável e mutante, que responde a contextos históricos, políticos e, principalmente, a projetos de futuro.

E quem são elas?A tradição ioruba - dos povos africanos sub-saarianos, especialmente aqueles

que vieram de onde se localizam hoje Benin e Nigéria a partir do século XIII, nos disponibilizou diferentes exemplos. Não deve ser coincidência estes mitos terem re-sistido à travessia transatlântica nas condições sub-humanas em que suas portado-ras vieram, resistindo ao regime de aniquilamento e terror racial, às investidas do eurocentrismo cristão, à violência patriarcal, sendo preservados (e, é claro, transfor-mados, pois se trata de culturas vivas) na tradição afro-brasileira do século XXI. Cito aqui algumas delas, que tiveram, em diferentes momentos da história, diferentes utilidades e pertinências. Mas que, a partir da década de 70, retornaram como idé-ias- força organizativas das diferentes facções do movimento anti-racista e, principal-

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mente, o anti-racismo feminista das mulheres negras e suas organizações. São elas:Nanã: é a responsável pela matéria de que é feita todo ser humano, a terra úmi-

da, a lama e o lodo. Insubordinada, recusou-se a reconhecer e aceitar a supremacia masculina de Ogum, o senhor dos metais e das guerras, sobre as demais divindades. Esta recusa é simbolizada pela proibição do uso de metais em suas cerimônias até hoje. Nanã, mulher idosa, está ligada também à morte, ao passado e à preservação da tradição.

Iemanjá: é a dona das águas do mar, mãe de todos os filhos-peixes. Tem seios fartos e simboliza a maternidade acolhedora. Foi casada, mas seu marido desres-peitou uma das regras que lhe impôs (não falar mal de seus seios), rompeu com ele, saiu de casa, voltando para casa de sua mãe. Aqui, reafirma a ligação e parceria entre mulheres e o poder da maternidade. Além de assinalar que o divórcio é também sagrado.

Iansã: é a senhora dos ventos e dos raios. Uma força guerreira, perigosa, insub-ordinada. É ela que, desobedecendo à regra que vedava às mulheres a participação no culto dos mortos, obteve o poder de penetrar suas cerimônias e dançar com eles. Compartilha seus mistérios. E ainda, é aquela que, apropriando-se dos poderes des-tinados ao rei - Xangô, seu marido - adquiriu o poder de cuspir raios e soltar fogo pela boca. Iansã é também a mãe que abandona os filhos, que serão criados por Iemanjá.

Oxum: travou uma disputa com Orixalá, o rei, por seus poderes. Dessa disputa saiu vitoriosa, tornando-se a senhora do ouro e da riqueza. Como Nanã, é chamada de Ialodê, a que fala pelas mulheres. Está ligada à fecundidade, à menstruação e ao futuro. E à instabilidade simbolizada pelo curso dos rios. Uma das características mais expressivas de Oxum é sua sensualidade, sua sabedoria em relação às artes e delícias do sexo.

Obá: é corpulenta, forte, especialista em luta corporal, através do que venceu todos os deuses e deusas. Exceto um, Ogum, que só pôde vencê-la de forma deson-esta. Ou seja, sua força só pode ser rivalizada pela astúcia.

Temos também as tradições de origem nos povos bantus (especialmente onde hoje estão Angola e Moçambique), que foram os primeiros povos africanos trazidos à região. Estas propagam também modelos de mulheres fortes, guerreiras, sensuais, muitas delas com os mesmos nomes e atributos das divindades iorubas. Entre as diferenças, destacam-se as novas modalidades de articulação cultural que estabel-eceu a partir de intercâmbios com outras culturas marginalizadas, e com as mulheres destas culturas, nas periferias urbanas do país e das áreas rurais. Assim, ao lado das diferentes divindades de origem africana, cultuam também divindades indígenas, entre elas as índias guerreiras (chamadas de caboclas - a uma delas devo meu nome,

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Jurema), as ciganas, as prostitutas, as que vivem nas ruas.Trabalhadoras, lutadoras, as que não estão subordinadas ao poder masculino,

as que não têm ou não querem homens ou filhos (mas sem abrir mão do sexo), sen-suais, voluntariosas, fortes. Estes são algumas das possibilidades de sermos o que so-mos, alguns dos exemplos de nosso repertório de identidades, ou de feminilidades, que encontraram ressonância e pertinência entre nós ao longo dos séculos, sendo atuantes até hoje, século XXI.

É importante assinalar que estes não são os únicos modelos que puderam ser apropriados, vividos ou identificados por nós: outras divindades femininas, masculi-nas ou ambíguas (não exatamente hermafroditas) também podem ser incorporadas por mulheres; bem como as crianças; velh@s; curandeir@s; guerreir@s; tudo está à disposição de todas e todos.

Há ainda relatos que apontam a existência e funcionalidade de sociedades secre-tas, como as Geledé e Eleekó, cujos registros em nossos dias são precários. Eram re-sponsáveis pelo manejo do sagrado e das articulações entre mulheres em torno de seus poderes mágicos, transcendentais. Estas sociedades, ainda que nem sempre de modo operacional ou explícito, tiveram funcionalidade no território brasileiro.

Ainda no âmbito das articulações políticas em torno do sagrado e do encontro entre matrizes culturais e religiosas ocidentais e africanas, foram criadas Irmandades femininas negras. Estas eram associações religiosas abrigadas no interior dos rituais cristãos, especialmente na religião católica hegemônica no período escravocrata. E ti-veram grande importância no estabelecimento de condições materiais de subsistên-cia para as mulheres de diferentes etnias africanas e para as afro-brasileiras. Bem como propiciaram as articulações necessárias para o confronto ao regime da época, inclusive para as ações e estratégias políticas de massa, como as revoltas urbanas que antecederam a derrubada do regime. Algumas destas são atuantes até hoje, como a Irmandade da Boa Morte, no interior da Bahia. Vinculada à igreja católica, ela reúne mulheres negras idosas da mais alta hierarquia das religiões afro-brasileiras, especialmente do Candomblé. Seus rituais públicos explicitam as articulações entre religiões e matrizes culturais, ainda que seus mistérios sejam profundamente afro-brasileiros.

Tive oportunidade de destacar em outros momentos e em diferentes artigos a figura da ialodê. Trata-se, originalmente, de um título designativo da liderança femi-nina que, segundo registros historiográficos precários, existiu nas cidades iorubas pré-coloniais. Ialodê indicava a representante das mulheres nos organismos de de-cisão pública coletiva. Algumas fontes assinalam que o termo ialodê nomeava tam-bém a associação pública a que diferentes mulheres se vinculavam.

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Esta figura foi preservada em território brasileiro, no interior das comunidades tradicionais religiosas, passado a habitar a esfera do sagrado. Nesta incorporação, ele se vincula às divindades femininas, Oxum e Nanã, a quem já me referi, assinalando seu poder de ligar passado e futuro, unindo fecundidade e morte desde uma per-spectiva de tempo cíclico, suas continuidades e transformações. E do protagonismo das mulheres.

Ao mesmo tempo, na prática cotidiana não religiosa, ialodê chegou a ser uti-lizado como um dos atributos de uma importante Ialorixá (sacerdotisa das religiões afro-brasileiras) que viveu no início do século XX na Bahia, no Brasil. Ela, que ficou conhecida como Mãe Senhora, foi uma das principais responsáveis pelas negocia-ções políticas, culturais e sociais que permitiram a manutenção da tradição e da re-ligião de origem ioruba entre nós. Mantendo também importantes relações com a África, especialmente às regiões iorubas.

Atualmente, ialodê é termo apropriado pelo movimento social de mulheres ne-gras brasileiro, para nomear organizações e atributos de liderança e representação.

Chamar atenção para ialodê, para as divindades aqui assinaladas e para as dife-rentes associações de mulheres, é um modo de destacar exemplos das formas políti-cas e organizacionais cuja origem precedeu a invasão escravista e colonial. Estas re-afirmavam e reafirmam a política como um atributo feminino desde a época anterior ao encontro com o ocidente. Diga-se de passagem, ao contrário do que afirmam muitas e muitos, a ação política das mulheres negras nas diferentes regiões não foi novidade inaugurada pela invasão européia e a instauração da hegemonia cristã. O que torna fácil compreender que tais ações precederam a criação do feminismo. No entanto, seu grau de influência sobre a criação deste ainda permanece invisível e pouco considerado.

No caso das mulheres negras e suas lutas, é possível afirmar que tais formas organizativas tiveram participação importante na organização da série de ações de resistência à escravidão empreendidas ao longo dos séculos que durou o regime no Brasil, tanto aquelas ações cotidianas de confronto entre senhores e escravos, como as fugas individuais e coletivas, os assassinatos (justiçamentos) de escravocratas mulheres e homens, as revoltas nas fazendas e as revoltas urbanas lideradas por african@s e afro-brasileir@s que marcaram a história do país e deram uma feição especial a todo o século XIX. Todas tiveram expressiva participação de mulheres em diferentes posições, especialmente a partir de sua capacidade de circulação e articu-lação entre diferentes grupos.

Outro exemplo é apresentado pelos quilombos, apesar de ainda se negligenciar a dimensão e importância das articulações entre mulheres, das tradições e dos rep-

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ertórios de agenciamento para as lutas empreendidas. Os quilombos aparecem em relatos da história do país ao longo de toda a ex-

periência colonial. Eram territórios livres para aquelas e aqueles que lograram es-capar do regime escravocrata, ocupando muitas vezes regiões de difícil acesso aos soldados e representantes do estado colonial. Ainda assim, há relatos de quilombos localizados no interior das fazendas ou nas periferias dos centros urbanos da época.

No Rio de Janeiro, o quilombo de Iguaçu, que existiu ao longo de todo o século XIX (1812 a 1883), foi comparado à Hidra de Lerna, ser da mitologia grega que pos-suía sete cabeças cuja capacidade de regeneração provocava terror. A Hidra só pode-ria ser destruída pela força de um semi-deus, Hércules. Já o quilombo de Iguaçu, apesar de combatido incansavelmente pelas forças militares e políticas de sua época, chegou a ser o principal fornecedor de combustível (lenha) para a sede do Império, negociando diretamente com os emissários do imperador.

O mais famoso de todos os quilombos brasileiros, chamado por diferentes fon-tes de República dos Palmares, foi formado por 11 mocambos (quilombos), reunindo milhares de pessoas, entre africanos, afro-brasileiros, europeus, euro-brasileiros e indígenas, principalmente. Havendo registros da presença de árabes muçulmanos e de judeus em seu território. Seus primeiros relatos historiográficos datam do ano de 1597 e sua resistência foi combatida até 1707, quando foi considerado destruído. Até hoje, Palmares é visto como símbolo da resistência negra no país, sendo um de seus líderes, Zumbi, considerado herói nacional.

É possível encontrar em diferentes relatos sobre os quilombos no Brasil, ainda que de forma indireta, pistas da participação e liderança femininas em diferentes posições de comando, exemplificados pelas figuras de quilombolas como Aqualtune, Acotirene, Mariana Crioula, entre outras, ou de articulação econômica ou política de resistência.

Nos dias atuais, existem ainda mais de quatro mil comunidades quilombolas em território nacional brasileiro, a que o Estado resiste em reconhecer e prover os direi-tos básicos de cidadania. Nestas comunidades, a liderança feminina não é incomum, a despeito do grau de penetração da cultura cristã em seu ambiente.

Com o fim da escravidão e do regime colonial, a luta das mulheres assumiu outras frentes, voltadas para a garantia de participação de negras e negros na socie-dade brasileira em condições de equidade. Um exemplo é a fundação da primeira associação de trabalhadoras domésticas, que inagura a organização de mulheres tra-balhadoras no estado de São Paulo na década de 30 do século XX, que teve como principal alicerce a ativista Laudelina Campos Melo, que também integrava a Frente Negra Brasileira. Esta organização visava a integração da população negra à socie-

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dade brasileira pós-escravidão, estando Laudelina e suas companheiras de luta e trabalho entre suas principais fontes de financiamento e articulação. A centralidade do trabalho doméstico na história econômica do Brasil refere-se ao fato de esta ser a principal profissão até hoje exercida majoritariamente por mulheres negras, num contingente atual de sete milhões de trabalhadoras. O trabalho doméstico teve e tem também grande importância para o estabelecimento de condições materiais mínimas de sobrevivência para o grupo negro como um todo, o que dá a dimensão da participação das mulheres negras na vida econômica da população negra e do país. Tem sido também uma importante fonte de informações acerca da cultura eu-ropéia e dos brancos, além de ter possibilitado, desde a escravidão até hoje, diferen-tes formas de articulação e de resistência ao regime escravocrata e racista.

Ainda no século XX temos como marco da mobilização política das mulheres negras, a fundação, em 1950, do Conselho Nacional da Mulher Negra, formado por mulheres vinculadas à cultura, às artes e à política. Os registros da atuação deste conselho são escassos, porém sua importância pode ser destacada diante do fato de somente no ano de 1985 um Conselho Nacional dos Direitos da Mulher foi instalado no país (com a participação de apenas uma mulher negra entre dez conselheiras) sob o guarda-chuva governamental.

Uma outra frente de luta e articulação pouco valorizada, mas que teve e têm grande presença na vida cotidiana das pessoas é a atuação no campo da cultura de massa. Ao longo de minha pesquisa de doutoramento, pude acompanhar as diferen-tes trajetórias de mulheres negras na música popular brasileira, a partir de fins do século XIX até hoje. Um dado de destaque está no fato de ser a cultura de massa, es-pecificamente a música popular e sua indústria, o espaço público de maior presença e expressão pública de mulheres negras no Brasil e em toda a diáspora africana. Tal fato não deve ser interpretado como mera coincidência.

Na pesquisa, pude verificar que a atuação das mulheres negras na cultura de massas foi múltipla e produtiva. Ocupando variadas posições em diferentes momen-tos de sua formulação, negociação e disseminação. O que garantiu sua inserção pro-tagônica nos espaços e ações que deram origem ao samba, principal produto afro-brasileiro à disposição da indústria cultural do século XX no Brasil e fora dele, bem como nas famosas Escolas de Samba. Ainda que diferentes fatores tenham atuado para a destituição das mulheres negras de seu papel central, pelo menos naqueles espaços de visibilidade que implicavam a circulação do samba como produto dotado de valor de venda e capaz de conferir prestígio social.

Muitas de nós concordamos, nos dias atuais, acerca da importância da cultura, em suas possibilidades de organizar e mesmo normatizar a vida cotidiana das pes-

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soas. A partir do trabalho de diferentes mulheres negras em torno do samba e seus produtos, pude verificar a intensidade da circulação de conteúdos e formas de crítica cultural e política, de confronto às hegemonias de raça e gênero; de afirmação e atualização da tradição; de expressão e significado do corpo e seus elementos; de ocupação de espaços públicos e privados; de nação, comunidade e povo. Todos estes e outros elementos e discursos estiveram e estão presentes como parte das men-sagens embutidas nas melodias, nos ritmos, nas letras, nas imagens que estas mul-heres propagavam e propagam através de diferentes mídias. Pude verificar também as formas como tais mulheres e as mulheres por elas representadas foram repre-sentadas como modelos identitários, repertórios de feminilidades que dialogavam e confrontavam os modelos do racismo patriarcal até os dias atuais.

E ainda, através de sua atuação na cultura de massas, estas mulheres possibili-taram também a propagação e tradução das vozes negras e suas formulações políti-cas para além das esferas imediatas de atuação dos movimentos sociais, em tempos marcados tanto por ditaduras militares ou civis, quanto em tempos da paz racista e heterossexista da história do país.

Sabemos que tem sido a partir de condições profundamente desvantajosas em diferentes esferas que nós mulheres negras desenvolvemos nossas estratégias co-tidianas de disputa com os diferentes segmentos sociais em torno de possibilidades de (auto)definição. Ou seja, de representação a partir de nossos próprios termos, a partir do que projetamos novos horizontes de luta. Estratégias que devem ser ca-pazes de recolocar e valorizar nosso papel de agentes importantes na constituição do tecido social e de projetos de transformação.

As ações de posicionamento cultural desenvolvidas pelas mulheres negras ti-veram e têm como base a atualização seletiva de elementos da tradição afro-brasilei-ra e de diferentes modelos que conferiam à mulher negra o poder de liderança e de agenciamentos.

Se utilizarmos a ialodê como chave de leitura, como metáfora de liderança e au-to-governo, verificaremos a capacidade de agenciamento embutida nas formas com que diferentes mulheres negras disputaram e disputam participação em diferentes momentos das lutas políticas.

A ialodê reafirma e valoriza a presença e a ação das mulheres individual e cole-tivamente nos espaços públicos, sua capacidade de liderança, de ação política. Valo-riza também as características individuais que Oxum e Nanã carreiam: a capacidade de enfrentar ou contornar obstáculos, a negociação, a luta e sua força de vontade para realizar aquilo a que se propõem e que outras mulheres negras e a população negra esperam que façam, contra as variadas formas de violência, estereótipos e

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desqualificação que lhes são contrapostos. Valorizando também a capacidade de re-alização, de criação do novo ou da modernização, como Oxum assinala, o que inclui a preservação da tradição, atributo de Nanã.

Não se trata de contrapor ao mito de fundação patriarcal ou da branquitude burguesa do feminismo um outro que simbolize seu oposto radical, quer dizer, que reitere essencialismos e estereótipos com sinais trocados. Ao propor uma interpre-tação a partir e através das ialodês e dos diferentes repertórios identitários a que lançamos mão, o que pretendo é mostrar o caráter contingente do relato patriarcal e racista, naturalizado e reiterado nas historiografias da cultura, do anti-racismo e do feminismo. E, principalmente, recolocar o lugar das mulheres negras e o impacto de sua atuação para a constituição da diáspora negra. Como também para as disputas ainda em desenvolvimento, que podem ser capazes de impactar, inclusive, a cultura global.

Assim, constatamos que a exclusão da presença das mulheres negras (a exem-plo das mulheres indígenas e de outras pessoas e grupos) dos relatos da história política brasileira e mundial, e da história do feminismo, deve ser compreendida, principalmente, como parte das estratégias de invisibilização e subordinação destes grupos. Ao mesmo tempo em que pretendem reordenar a história de acordo com o interesse dos homens e mulheres branc@s. O que permite apontar o quanto esta invisibilização tem sido benéfica para aquelas correntes feministas não comprometi-das com a alteração substantiva do status quo.

A trajetória das mulheres negras relatada de forma breve e perigosamente linear aqui não nos permite afirmar que houve qualquer espécie de continuidade histórica entre as diferentes organizações de mulheres negras se desenvolvem no Brasil ao longo das diferentes fases da história do país, na segunda metade do século XX ou no século atual. Mas sim, que diferentes elementos circulantes e até então desconsiderados estiveram à disposição, estabelecendo nexos entre diferentes mo-mentos e sujeitos, permitindo variadas singularizações.

Portanto, compreendo e reafirmo a importância das demandas e questões que justificaram e justificam as articulações heterogêneas que nos constituem como agentes políticas, como mulheres negras. Tais situações exigem de nós mobilização permanente e ações contundentes, uma vez que representam confrontos a ameaças reais e palpáveis à nossa sobrevivência física, material e simbólica.

As diferentes frentes de luta que empreendemos, seja no interior dos movi-mentos sociais, seja nas esferas nacionais e globais, longe de representar somente um aprisionamento às regras do racismo patriarcal transnacional e estatal, traduzem nossa recusa à desagregação do que somos, à sublimação das condições materiais

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imediatas de vida a das necessidades de transformação social profunda, ou ainda a nossa não adesão às demandas burguesas de manutenção do status quo econômico e político que nos aniquila. Reconhecemos os perigos desta trajetória e o que pode representar de cooptação, de adesão aos modelos eurocêntricos que nos desquali-ficam, de abdicação ou retardamento da nossa afirmação a partir do princípio da autonomia.

De todo modo, ainda nos resta a tarefa inconclusa, ou pouco valorizada, de buscar a voz própria. Refiro-me à busca de outras formas possíveis ou desejáveis de expressão e representação do que fomos, do que poderíamos ter sido, do que dese-jamos ser, antes e além do eurocentrismo e suas pressões simbolizadas pelo racismo heterossexista, sua dominação econômica e seus ataques no plano simbólico. Ainda que nos reconheçamos múltiplas, mutantes, inconclusas.

Ou seja, nosso desafio ainda é indagar a partir de qual ou quais formas po-deremos, radicalizando os princípios das ialodês ou os princípios feministas e suas contradições, nos colocar na arena pública em nosso próprio nome. Sem demasiada valorização do individualismo e tampouco reificando culturas e seus aspectos de subjugação, o que nos tornaria cúmplices das demandas da atual avidez pelo exótico, pelo diferentes, pela alteridade de consumo. Falando a voz de nossos desejos.

Este é nosso desafio. Mas não é só nosso.

Referências bibliográficas:

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CARNEIRO, Fernanda. Nossos passos vêm de longe . In: WENECK, Jurema, MENDONÇA, Maisa e WHITE, Evelyn C. (orgs.). O livro da saúde das mulheres negras: nossos

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Vozes soantes no Rio de Janeiro, São Paulo e Florianópolis: Mulheres negras no pós-1945

Joselina da Silva

Doutora em Ciên-cias Sociais. Profes-sora Adjunta da UFC. Coordena o Curso de Extensão Iniciati vas Negras Trocando Experiên-cias. Foi a segunda vice-secretária da ABPN (2006 – 2008). Coordena o N´BLAC (Núcleo Brasileiro, Lati no Americano e Caribenho de Estudos em Relações Raciais, Gênero e Movimentos Sociais) certi fi cado pelo CNPQ. É Bolsista de Produti vidade em Pesquisa pela FUN-CAP.

RESUMOGrandes eventos marcaram a segunda metade dos

anos quarenta e foram infl uenciadores diretos da consti -tuição do movimento social dos negros brasileiros, provo-cando o surgimento de novos grupos. É neste cenário que o nome de várias mulheres toma lugar de destaque. Nosso in-tento, neste texto, é procurar analisar, parte do pensamento de três expressivas lideranças negras e suas demandas que se realizavam na intercessão entre o gênero e a raça, numa perspecti va de superação das desigualdades que se desen-havam naquela conjuntura: Maria de Lurdes Nascimento do Congresso Nacional de Mulheres Negras (RJ, 1950); Nair Theodora Araújo da Associação Cultural do Negro (SP, 1948) e Antonieta de Barros, deputada estadual negra (Flo-rianópolis,1951).

Palavras chave: Mulheres negras, movimento social ne-gro, anti -racismo, relações raciais.

ABSTRACTThe second half of the forti es was characterized by

massive social events which directly infl uenced the creati on of afro-Brazilian social movement, as well as the foundati on of new groups. This new environment was occupied by the presence of relevant afro-Brazilian women. This paper in-tends to analyze thoughts of three expressive afro-Brazilian women leaders and their demands related to the intersec-ti on between gender and race as an att empt to overcome the inequaliti es which characterized that conjuncture: Maria L. Nascimento from the Congresso Nacional de Mul-heres Negras (RJ, 1950); Nair Theodora Araújo from the As-

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Vozes soantes no Rio de Janeiro, São Paulo e Florianópolis: Mulheres negras no pós-1945

Joselina da Silva

Doutora em Ciên-cias Sociais. Profes-sora Adjunta da UFC. Coordena o Curso de Extensão Iniciati vas Negras Trocando Experiên-cias. Foi a segunda vice-secretária da ABPN (2006 – 2008). Coordena o N´BLAC (Núcleo Brasileiro, Lati no Americano e Caribenho de Estudos em Relações Raciais, Gênero e Movimentos Sociais) certi fi cado pelo CNPQ. É Bolsista de Produti vidade em Pesquisa pela FUN-

RESUMOGrandes eventos marcaram a segunda metade dos

anos quarenta e foram infl uenciadores diretos da consti -tuição do movimento social dos negros brasileiros, provo-cando o surgimento de novos grupos. É neste cenário que o nome de várias mulheres toma lugar de destaque. Nosso in-tento, neste texto, é procurar analisar, parte do pensamento de três expressivas lideranças negras e suas demandas que se realizavam na intercessão entre o gênero e a raça, numa perspecti va de superação das desigualdades que se desen-havam naquela conjuntura: Maria de Lurdes Nascimento do Congresso Nacional de Mulheres Negras (RJ, 1950); Nair Theodora Araújo da Associação Cultural do Negro (SP, 1948) e Antonieta de Barros, deputada estadual negra (Flo-rianópolis,1951).

Palavras chave: Mulheres negras, movimento social ne-gro, anti -racismo, relações raciais.

ABSTRACTThe second half of the forti es was characterized by

massive social events which directly infl uenced the creati on of afro-Brazilian social movement, as well as the foundati on of new groups. This new environment was occupied by the presence of relevant afro-Brazilian women. This paper in-tends to analyze thoughts of three expressive afro-Brazilian women leaders and their demands related to the intersec-ti on between gender and race as an att empt to overcome the inequaliti es which characterized that conjuncture: Maria L. Nascimento from the Congresso Nacional de Mul-heres Negras (RJ, 1950); Nair Theodora Araújo from the As-

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sociação Cultural do Negro (SP, 1948) and Antonieta de Barros, state representative (Florianópolis,1951).

Key words: Black women, black social movement, anti-racism, racial relations.

Vozes soantes no Rio de Janeiro, São Paulo e Florianópolis: Mulheres negras no pós-1945

As organizações locais de Mulheres Negras têm vários tamanhos que vão desde pequenos grupos informais a profissionais organizações não governamentais que recebem apoios internacionais1

Esta epigrafe dá a dimensão da heterogeneidade dos grupos de mulheres ne-gras, em solo brasileiro. O movimento está presente em redes dentro e fora do Bra-sil. Ao mesmo tempo, lideranças oriundas deste movimento têm conquistado espa-ços políticos em momentos importantes da representação nacional e internacional na demanda por direitos para mulheres e homens negros no Brasil. Paralelamente, diversos tem sido os estudos sobre o movimento feminista no Brasil voltados aos seus primórdios organizativos. Em números mais modestos - porém crescentes - tem sido os trabalhos voltados a estudar o movimento negro. Contraditoriamente percebemos a ocorrência de um grande vácuo na bibliografia especializada quando buscamos dialogar com trabalhos acadêmicos a respeito das mulheres negras e referentes ao pensamento emanado de sua práxis ativista em diferentes épocas2.

Assim, a história social do movimento de mulheres negras brasileiro, desde as lideranças religiosas (no candomblé ou nas Irmandades) passando pelas periodistas (dos anos trinta aos setenta) chegando aos embates com os movimentos negro e feminista, abordando a constituição das ONGs desembocando em Durban (2001) ainda está por ser concretizada. É deste lugar de quase invisibilidade que reitera-mos a importância de estímulos às publicações e pesquisas sobre a história social do movimento de mulheres negras brasileiras. Assim surge este artigo. Longe está de nosso objetivo preencher esta lacuna com o presente texto. Outrossim, dese-jamos contribuir para a atração de maiores interesses nesta direção. Nosso exer-cício será, então, de nomear mulheres que se destacaram em diferentes momen-tos daquele longo período, pós Ditadura Varguista. Analisaremos três lideranças afro descendentes numa perspectiva de associar suas trajetórias à superação das desigualdades que se desenhavam naquela configuração. São elas: Maria de Lurdes

1 Tradução da autora. Retirado de Caldwell (2007).2 Não por acaso, o trabalho de Pinto (2003) numa excelente e bem fundamentada Cronologia do Movimento Feminista no Brasil que se inicia em 1832 e vai até 1997, refere às mulheres negras apenas uma vez no ano de 1990. Note- se que a obra marca aquele ano como tendo sido realizado o I Encontro Nacional de Mul-heres Negras em Valença no Rio de Janeiro. Vale aqui uma retificação, pois foi em dezembro de 1988.

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Nascimento, Nair Theodoro de Araújo e Antonieta de Barros. A Articulação nacional do movimento social negro

Inúmeras foram as manifestações da sociedade civil com o fim da ditadura do Estado Novo, promovendo uma grande ebulição das forças políticas3 (PARANHOS, 1999; GOHN, 1995; FAUSTO, 2001). É fundado no Rio de Janeiro por Abdias do Nasci-mento, Sebastião Rodrigues Alves e Aguinaldo Camargo, em janeiro de 1945 (NASCI-MENTO, 2003; SKIDMORE, 1982; ANDREWS, 1991; NASCIMENTO, 1982).

Naquele ambiente de retorno ao estado livre, três grandes conferências nacio-nais organizadas no eixo Rio – São Paulo. O primeiro foi a Convenção Nacional do Negro, dividida em duas partes. A primeira em São Paulo em 1945 (10 a 12 de no-vembro) e no ano seguinte, no Rio de Janeiro, com participantes do RJ, ES, MG, SP e RS; O conclave objetivava que a discriminação racial e o preconceito passassem a ser crimes previstos em lei e que se criasse um sistema nacional de bolsas de estudos para estudantes negros nas universidades e no ensino secundário (ANDREWS, 1991).

O pleito constante do manifesto da Convenção Nacional do Negro envolvia pen-são do estado - que hoje poderia ser traduzida como bolsa de estudos – não apenas nas escolas públicas, como também tornava clara a necessidade de inclusão de es-tabelecimentos privados. O manifesto sublinhava a necessidade da ajuda financeira também aos alunos dos ensinos secundário, além do superior. Pela primeira vez no país, se reivindicava que o preconceito de cor e a discriminação racial fossem consid-erados crime e como tal passíveis de punição legal (CADERNOS BRASILEIROS, 1968).

O segundo acontecimento de escopo nacional, marcante para a atividade políti-ca e cultural da organização do movimento negro brasileiro, foi a Conferência Nacio-nal do Negro Brasileiro, entre 9 e 14 de maio de 1949, no Rio de Janeiro (MULLER, 1988). Um dos seus objetivos era discutir e organizar a programação e os temas a serem abordados no I Congresso do Negro Brasileiro que ocorreu no ano seguinte. Este objetivo, no entanto, foi ultrapassado e permitiu uma vez mais o congraçamento político das diversas forças nacionais atuantes no interior do movimento social.

O terceiro grande momento de debates e discussão foi o I Congresso do Negro Brasileiro realizado de 29 agosto a 4 de setembro de 1950, no Rio de Janeiro (NASCI-MENTO, 1982). Havia, então, uma viva participação dos movimentos negros no mo-mento de redemocratização do país, que pode ser corroborada quando nos detemos a recortar aqueles diversos encontros de escopo nacional.. Nesta conjuntura surgi-3 Gohn (1995) enumera alguns dos seguintes movimentos neste período: Movimento Político Partidário (1945); Movimento Queremismo (1945); Campanha Popular Contra a Fome (1946); Movimento da Legalização dos Partidos Clandestinos (1946); Movimento Pró-Constituinte (1946); Movimento por Reformas de Base na Educação (1947 – 1961); Passeatas da Panela Vazia (1951 – 1953); Movimento o Petróleo é Nosso (1954); Movimento Contra a Carestia de Vida (1953); Movimentos Nacionalistas pela Cultura (1954 – 1964); Movimentos Jovens Católicos (JUC, JOC, JAC ... 1954 – 1964); Movimento de Associação de Moradores (1945 – 1964); Greve Geral dos Trabalhadores (1953); Quebra –Quebra de Bondes (1956); Movimento de Educação de Base (MEB – 1961); Movimentos Estudantis (1957 –1964); Greve Geral Contra Carestia (1959); Movimento Pela Casa Própria (1960 – 1961); Movimentos Sociais no Campo pela Reforma Agrária (1958 – 1964); Dia Nacional de Protesto Contra A Carestia (1963), entre vários outros.

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ram várias organizações negras em diferentes pontos do território nacional. É neste cenário de articulações nacionais que os nomes de várias mulheres tomam lugar de destaque, num ambiente de luta anti- racista, como veremos adiante.

Maria de Lurdes Nascimento

O I Congresso do Negro Brasileiro transformou-se num dos grandes momentos em que as mulheres negras apresentaram vários trabalhos (NASCIMENTO, 1982). A voz de Maria de Lurdes Nascimento, durante o congresso se fez ouvir em defesa da realização de estudos que permitissem atentar para os problemas de ordem psico-sociais da prostituição e pelos direitos das empregadas domésticas.

Maria Nascimento, foi responsável por diferentes atividades, no interior do Teatro Experimental do Negro. Coordenou o departamento feminino e criou o Con-selho Nacional de Mulheres Negras em maio de 1950, como um dos braços do TEN. O conselho contava com um departamento jurídico para atendimento à população negra em várias necessidades, entre elas a obtenção da certidão de nascimento. Cri-ou também um balé infantil, cuja aula inaugural foi ministrada pela famosa bailarina afro-americana, Katherine Dunkan.

Ao lado da reorganização da sociedade democrática, no pós ditadura varguista reestruturaram-se também os jornais negros, dando início ao terceiro momento da imprensa negra entre 1945 e 1963 (FERNANDES, 1965; ANDREWS, 1991; MENDES, 1993; SANTOS, 1985). No Rio de Janeiro, neste mesmo período, três principais jornais são publicados pela comunidade afro-brasileira: o Quilombo, o Redenção e o Voz da Negritude. Os jornais retratavam – entre outros temas - as candidaturas de diversas lideranças negras para as eleições de 1950 (FERRARA, 1986). O Quilombo, publicado pelo Teatro Experimental do Negro, contava com a gerência de Maria Nascimento que era também redatora da coluna Fala a Mulher. Seu discurso, naquele periódico, estimulando a participação política das mulheres, demonstra o vanguardismo de seu pensamento:

Se nós mulheres negras do Brasil, estamos mesmo preparadas para usufruir os benefícios da civilização e da cultura, se quisermos de fato alcançar um padrão de vida compatível com a dignidade da nossa condição de seres humanos, precisamos sem mais tardança fazer política.... Precisamos constituir um exército de eleitoras pesando na balança das urna. Usar o máximo as franquias democráticas que nos asseguram o direito que é também o sagrado dever cívico de votar e sermos votadas para qualquer pleito eletivo nas próximas eleições de

4 Jornal Quilombo. Ano II. N. 6 , Rio de Janeiro. 1950.

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3 de outubro4

Sua voz se fez audível em diferentes edições do referido jornal, procurando co-brir temas da atualidade, sempre se dirigindo às mulheres negras. Sua crítica social assumia um tom de reivindicação e denúncia. Havia como que uma aura de aconsel-hamento, como se fora uma missiva.

Queridas leitoras e amigas volto mais uma vez a falar das nossas crianças.... Essa infância precocemente adulta pela promiscuidade e pela necessidade de trabalhar... é em sua quase totalidade de cor.... O coeficiente de mortalidade infantil no Distrito Federal entre 1939 -1941... segundo estatísticas do Departamento Nacional da Crian-ça.....morrem quase duas crianças de cor por uma branca. Na cidade de São Paulo a situação é ainda mais grave5

Sua coluna no Jornal Quilombo era uma conversa que se renovava a cada ed-ição, sempre com vistas a conclamar as afro-brasileiras para a participação coletiva em prol da luta anti-racista.

Nada de desânimo quando uma maternidade nos negar ingresso. De-vemos... usar todos os meios e remover todas as dificuldades, ainda mesmo que sejam motivadas por discriminação de cor....6

Por um lado, o Teatro Experimental do Negro, enquanto uma das organizações referenciais de seu tempo (WINNANT, 1994; HANCHARD, 1988), se voltava à denún-cia o racismo, sobre a sociedade no geral. A atuação de Maria Nascimento, por seu turno, demonstrava que a ação deste se ampliava quando os recortes de gênero e etário (infância, no caso) eram agregados à reflexão. Como assistente social, Maria Nascimento acompanhava de perto as mazelas sociais da cidade e transformava a coluna num púlpito de onde fazia públicas as inquietações com o que testemunhava no seu dia-a-dia.

É inacreditável que numa época em que tanto se fala em justiça so-cial possa existir milhares de trabalhadoras como as empregadas domésticas, sem horário de entrar e sair do serviço, sem amparo na doença e na velhice, sem proteção no período de gestação e pós parto sem maternidade e sem creche para abrigar seus filhos durante as

5 Jornal Quilombo. Ano I, Rio de Janeiro, Maio de 19496 Jornal Quilombo. Ano I, Rio de Janeiro, Maio de 19497 Jornal Quilombo. Ano I, Rio de Janeiro, Julho de 1949

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horas de trabalho7.

A demanda pela criação de leis que protegessem as empregadas domésticas foi um dos clamores presentes nos documentos finais do I Congresso do Negro brasileiro (RJ / 1950). Dentre as pessoas que mais arraigadamente as defendiam, tínhamos Maria Nascimento. As discussões ocorridas no conclave eram refletidas nas páginas do periódico, principalmente na coluna Fala Mulher:

Para as empregadas domésticas o regime é aquele mesmo regime servil... pior do que nos tempos da escravidão...A regulamentação do trabalho doméstico .. é de uma urgência que não admite mais pro-telações8.

O Jornal Quilombo circulou entre dezembro de 1948 e julho de 1950, sempre com as colunas assinadas por Maria Nascimento voltadas para as mulheres negras.

Nair Theodora de Araújo

Lembrávamos, no início deste texto a respeito da grande mobilização das for-ças populares, nos anos que se seguiram ao final do Estado Novo. É também neste período – com maior ênfase entre os anos de 1945 a 1955 – que ocorre de forma acentuada um grande crescimento do teatro como uma marca mais notadamente voltada para a cultura nacional. Décio de Almeida Prado (PRADO, 1993) situa o período a partir de 1940 como de renovação do teatro brasileiro e da ruptura com uma marcante influência européia (lusitana e francesa). Surgem as personagens populares brasileiras, como o trabalhador da fábrica, o brasileiro vítima das intem-péries econômicas e o realismo de Nelson Rodrigues, só para citar alguns. Eram os brasileiros representando-se a si e às suas “mais genuínas” personagens (CAMPE-DELLI, 1945).

A popularização da arte de representar – em número de peças e em multi-plicidade de temas abordados - traduziu-se, de certa forma, numa ampliação do mercado de trabalho para atores negros. A sua presença neste contexto, no entanto, referia-se à inclusão, com maior visibilidade, apenas dos chamados tipos brasileiros provenientes das camadas populares, ou ligados à religiosidade africana. Esta, por seu turno, muitas vezes exotizada através da representação da umbanda (MENDES, 1993). Os atores afro-brasileiros recebiam os papéis de menor prestígio social e me-nos relevância, dentro do texto. Persistia, portanto, a imagem de subserviência dos

9 Edição fac-similar do jornal Quilombo, (Pág n. 1-p. 4, dez 1948), nº1 a 10, dezembro de 1948 a julho de 1950, Ed: 34, Rio de Janeiro.

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negros brasileiros, perpetuada pela literatura. As pessoas negras, inseridas na sociedade não eram incluídas como persona-

gens daquela dramaturgia que retratava o cotidiano. A visão universalista em que era colocada a personagem negra levava a que os autores a caracterizassem em posições já tradicionalmente construídas na sociedade. No entanto, esta visão iguali-tária e universalizante não chegava a garantir aos atores negros papéis de destaque nas diferentes montagens (MENDES, 1993), como afirmava Nelson Rodrigues:

Raras companhias gostam de ter negro em cena; e quando uma peça exige o elemento de cor, adota-se a seguinte solução: brocha-se um branco. “Branco pintado” – eis o negro no teatro nacional (....). A não ser no Teatro Experimental do Negro, os artistas de cor, ou fazem moleques gaiatos, ou carregam bandeja ou, por ultimo ficam de fora (...). 9

Esta ausência do protagonismo negro nos textos e por conseguinte nos palcos da antiga Capital Federal poderia ser enumerada como uma das razões motoras do fato de que em menos de uma década fossem constituídos pelo menos quatro grupos negros – com visibilidade e projeção nacionais e internacionais - cujos nomes tem a palavra teatro, na sua composição: O Teatro Experimental do Negro (TEN), o Teatro Folclórico Brasileiro (e ou Grupo dos Novos) e por último o Teatro Popular Brasileiro (TPB), no Distrito Federal. Inaugurava-se, também em São Paulo, uma versão ligei-ramente modificada do Teatro Experimental do Negro. Interessante observar que nem todos necessariamente empregavam a arte da representação textual como sua atividade principal. O nome teatro, no entanto, os colocava no centro de uma das vertentes de manifestação da democracia e das representações de nacionalidade comuns à época, como brevemente aludimos até aqui.

O nome da atriz Nair Araújo toma lugar de destaque na cidade de São Pau-lo, exatamente nesta ocasião, com sua participação inicial na Associação Cultural do Negro. O ano de 1948 viu surgir em São Paulo a ACN (Associação Cultural do Negro), fundada por antigos líderes da Frente Negra dos anos trinta. Suas princi-pais atividades foram palestras, debates, aulas de inglês, matemática, português e oratória. Havia um grupo de jovens que era associado a dois outros grupos teatrais: O Teatro Experimental do Negro (em sua versão paulista) e o Teatro Brasileiro do Povo (ANDREWS, 1991). Em pleno período inicial de luta pelos direitos civis nos Es-tados Unidos e da articulação em diferentes países contra o apartheid sul africano, a ACN organizou um ato de repúdio contra a discriminação racial nos dois países. Esta

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atividade resultou na indicação para a instalação de um Comitê de Solidariedade aos Povos Africanos (CUTI, 1992). A partir de 1960, a organização publicou - em cinco edições - a revista Niger. Neste grupo, entre outras mulheres ressaltamos a atuação de Nair Theodora Araújo, membro do departamento cultural. A ativista também par-ticipou ativamente da fundação do Teatro Experimental do Negro (SP).

Nair foi aluna de um importante curso em São Paulo, intitulado curso de oratória Rui Barbosa, coordenado pela União Brasileira de Escritores. Tal formação permitiu-lhe atuar em várias peças no Teatro de Arena (fundado em 1956), sendo uma das principais, o grande sucesso Arena Canta Zumbi. Fez trabalhos também em televisão. Por sua contribuição financeira – e de mais dois outros ativistas – foi publicado o primeiro volume da série “Cultura Negra”, organizada pela Associação Cultural do Negro. Esta atriz, cantora e declamadora foi uma das responsáveis pelos festejos do centenário de nascimento de Cruz e Souza, organizado pelo mesmo grupo, em 1961.

Seu intenso ativismo iniciado nos anos quarenta transformaram-na em figura referencial sobre as questões dos afro-brasileiros. Passou a ser presença obrigatória em debates de jornais, universidades e programas de televisão. Uma de suas grandes atuações foi a fundação da livraria Contexto em São Paulo, especializada em livros de cultura negra, história da África e relações raciais. Foi uma das primeiras casas em seu gênero no país. Durante anos, a Contexto foi ponto de encontro da intelectuali-dade afro-brasileira na capital paulista, até os anos oitenta. Para onde acorriam os ativistas do movimento social negro durante o intenso período dos anos setenta em São Paulo. Assim, o nome de Nair Theodora Araújo se fez presente em diferentes e referenciais atividades principalmente no teatro da cidade de São Paulo, entre o final dos anos quarenta e a década de oitenta. Sua trajetória sempre esteve associada à meta da valorização dos afro-brasileiros e à destituição do racismo. A livraria fun-dada por ela, segue sendo dirigida por sua filha, na capital paulista.

Antonieta de Barros

O ano de 1948 marca a volta ao cenário político de Antonieta de Barros. Como membro da Assembléia Legislativa eleita pelo Partido Social Democrático, Antonieta se dedicava à melhoria do ensino, à criação de concursos para professores, como também propunha a instituição de bolsas de estudos para cursos superiores. Note-se que este era um dos parágrafos do documento final da Convenção Nacional do Negro de São Paulo, em 1945, como já apontado neste artigo.

Falamos do retorno de Antonieta de Barros, porque esta afro-brasileira já havia privado da vida parlamentar nos anos trinta. É na efervescência daquela década que 10 (BARROS, 1991. p. 135)

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vamos tê-la, em Florianópolis, como a primeira mulher negra eleita deputada estad-ual constituinte. no país, em 1935. Note-se que apenas no ano anterior o direito ao voto, para as mulheres, havia sido outorgado. Ainda assim, ela recebeu 35.484 votos. O golpe do Estado Novo, fechando o Congresso Nacional e as Assembléias Legislati-vas, pôs fim ao sistema democrático provocando o encerramento de seu mandato. A preocupação com o engrandecimento da Pátria foi uma constante na lide política desta mulher que fez do jornalismo e da educação suas cátedras de conscientização. Em seu livro Farrapos de Idéias, que veio a público em 1937 - como uma compila-ção de artigos publicados no jornal A República, aos domingos - a autora defendia o seguinte ponto de vista:

Um povo é grande não só pelo seu espírito trabalhador, mas também, principalmente pela sua cultura. Daí a necessidade de se chegar às massas, a possibilidade de ir alem da alfabetização que é muito, mas não é tudo. Daí a necessidade de se tornar acessível aos que não tem o ouro sonante - mas o ouro que não se compra o da inteligência – uma cultura superior “10 E dessa cultura de massas... esperamos que surjam pátrias maiores por uma humanidade melhor (BARROS, 2001. p. 23).

O texto de Antonieta de Barros nos mostra sua luta pela formação do povo, para além da educação básica. Uma cultura que todas as camadas da população pudes-sem compartilhar de forma igualitária era o seu pleito. Como intelectual, Antonieta pertenceu ao Centro Catarinense de Letras, instituição literária da década de vinte. Como poetisa publicava em jornais locais, sob o pseudônimo de Maria da Ilha.

Dirigiu a publicação Vida Ilhôa, entre 1922 e 1927. A professora de Português, de Psicologia e jornalista foi responsável pelo jornal A Semana, de Florianópolis, fun-dado por ela. Paralelamente, também a partir daquele ano, alfabetizou em casa, cri-anças de baixa renda da cidade. Esta atividade teve seu curso interrompido apenas em meados dos anos sessenta. O que significa dizer que durante quatro décadas sua atuação pedagógica influenciou diversas gerações. Incansável na sua argumentação por melhores condições educacionais para as crianças oriundas das camadas menos favorecidas da população, assim se expressava.

É lamentável o divórcio existente entre as crianças pobres e o livro... Todos nós temos o dever e o direito do trabalho, mas temos, também, necessidade de cultura para viver, no sentido pleno da palavra... É pre-

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ciso, portanto que, desde a escola.... a criança contraia o gosto pela leitura, sinta prazer de penetrar, por intermédio do livro no mundo encantado da arte e saber... A iniciativa deve partir dos que dirigem os nossos estabelecimentos primários.. (BARROS, 2001. p. 92).

Embora ela mesma as classificasse como “crônicas ligeiras de rodapé”, seu pensamento registrado introdução do livro em agosto de 1937, nos permite di-visar uma constante preocupação e análise sobre o cotidiano. Antonieta de Bar-ros pertencia ao Partido Social Democrático (PSD). Reeleita em 1948, cumpriu o mandato até 1951, quando abandonou a vida parlamentar, voltando-se exclusi-vamente para à educação infantil.

Pensamentos conclusivos

Num texto em que fala da atuação dos afro descendentes, em diferentes momentos da história da humanidade, Kelley (2000) nos informa que a segunda metade dos anos quarenta foi marcada pelos movimentos no sentido da descol-onização e revolta na África, Ásia e América Latina. Desde o V Congresso Panafri-canista na Inglaterra, se poderia dizer, lembra o autor, que havia uma revolta per-passando diferentes regiões da chamada diáspora negra. Assim, nos anos que se seguiram ao final da II Guerra Mundial, havia uma insurgência que conduzia os africanos e seus descendentes, no interior das fronteiras de diferentes estados nacionais, a se rebelarem contra o racismo, com ações diversas nas muitas es-quinas do mundo.

O fim da guerra deixara como saldo para a sociedade global a constatação de que o racismo e suas práticas - longe do que se acreditava – não haviam sido desterrados com a formulação das novas teorias cultura listas, capitaneadas por Franz Boas, na virada do século. O fantasma do racismo e da discrimina-ção racial rondavam o mundo. Faz-se necessário, portanto, situar que aqueles eram anos de conflitos raciais nos EUA. Ao mesmo tempo, os países africanos davam os primeiros passos rumo à independência. Assim sendo, grandes even-tos (nacionais e internacionais) marcaram a segunda metade dos anos quarenta e foram influenciadores diretos da constituição do movimento social dos negros brasileiros, naquela ocasião.

Diferentes marcos podem ser observados quando se pretende abordar a organização social de mulheres e homens negros no Brasil. Neste sentido, o ob-

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jetivo deste texto foi fazer uma breve panorâmica sobre as múltiplas características de algumas das organizações negras datadas da segunda metade dos anos quarenta. Procuramos fazer este passeio, sempre a partir da perspectiva de algumas mulheres que o protagonizaram. Sabemos que muitos outros nomes poderiam ser incluídos nesta contextualização. Deixamos de fazê-lo por exigüidade de espaço e por recon-hecer que maiores pesquisas, com este fim, ainda estão por ser realizadas.

Inúmeros poderiam ser os elos a serem utilizados aqui para unir as trajetórias individuais destas líderes femininas. Recortaremos dois. O primeiro deles o de serem afro-brasileiras em posição de liderança num período de tantas demandas pelo re-torno da democracia plena para todos os brasileiros e para os afro-brasileiros em particular. O segundo ponto de convergência, encontra-se na atuação de cada uma delas no interior de organizações nas quais a demanda por direitos ultrapassava o grupo específico e se estendia para todos os (as) brasileiros (as). Uma na educação, outra na arte e a terceira na imprensa, estas três afro-brasileiras faziam reverberar, um conceito, ainda virgem naqueles tempos. Apontavam que os níveis de incidência das desigualdades, se diferenciam quando os fatores raça, gênero, pobreza e faixa etária se conjuminavam.

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