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QUE FIQUE GUARDADO ENTRE NÓS Por Aloisio Villar (Rio de Janeiro, RJ) (2018)

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QUE FIQUE GUARDADO ENTRE NÓS

Por Aloisio Villar

(Rio de Janeiro, RJ)

(2018)

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PERSONAGENS

EDUARDO (escritor)

FAUSTO (escritor)

EDMUNDO (pai de Eduardo)

NECO (amigo de Eduardo)

DIRCEU (amigo de Eduardo)

HELENA (mulher de Fausto)

LETÍCIA (mulher de Eduardo)

MADALENA (prostituta)

ÉPOCA: 1969 e 2000; LOCAL DA TRAMA: FICTÍCIO

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(Cena vazia. Os personagens é que, por vezes, segundo a necessidade de cada situação, trazem e levam cadeiras, mesinhas, colchões, que são indicações sintéticas de múltiplos ambientes. Cenários simples, muitas vezes levando a platéia a imaginação Eduardo se arruma olhando um espelho imaginário e Letícia lhe observa)

LETÍCIA – Está lindo como sempre..

EDUARDO –Me ajude com o nó na gravata..

(Se aproxima de Leticia que rindo ajeita)

LETÍCIA – Eduardo Gusmão, maior escritor brasileiro vivo, o grande nome da literatura latino americana dessa virada de século e que não sabe dar nós em uma gravata. Prontinho..O que seria de você sem mim?

EDUARDO (Dando um beijo em sua testa e botando o terno) – Um homem que não usaria gravatas.

LETÍCIA (Rindo) – Mas é bobo..

EDUARDO – Estou bonito?

LETÍCIA – E quando você não está bonito?

EDUARDO – Para acompanhar dona Leticia Gusmão é necessário estar bonito.

LETÍCIA – Você está lindo como na primeira vez que te vi.

EDUARDO – Humm, ainda lembra.

LETÍCIA – Como esquecer? Você recem chegado aqui na capital vindo de uma pequena cidade litorânea..Carinha de assustado, tímido..

EDUARDO – E que se apaixonou por você logo na primeira vez que viu.

LETÍCIA – E eu por você.

EDUARDO – Que tal eu tirar essa gravata, a roupa e fazermos amor aqui mesmo?

LETÍCIA (Rindo) – Bobo..e o lançamento do livro? Daquele que será o maior best-seller do ano 2000?

EDUARDO – Ele fica para 2001.

LETÍCIA – Vamos, seus ávidos leitores lhe esperam.

EDUARDO – Saco (rindo) Vamos largar tudo e viver de amor, produtos naturais e maconha em uma floresta, que tal?

LETÍCIA – Somos capitalistas demais para isso.

EDUARDO – Verdade, não saberia viver sem meu vinho italiano..e as crianças?

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LETÍCIA – Vão com a mamãe direto da escola.

EDUARDO –Ok, vamos então?

LETÍCIA – Vamos, só que..

EDUARDO – Ih, lá vem.

LETÍCIA – Esses sapatos estão ne incomodando. Você me dá cinco minutos para trocar?

EDUARDO (Rindo) – Fazer o que? Você e seus cinco minutos.

LETÍCIA – Prometo não demorar. Vou lá.

EDUARDO (Sentando em uma cadeira) – Não demore muito, vou morrer de saudades.

(Letícia ameaça sair e volta)

LETÍCIA – Não é uma enorme coincidência você lançar um livro justo no dia da morte do Fausto.

EDUARDO (Levando um susto) – Como?

LETÍCIA – Não viu o noticiário? Fausto Braga morreu hoje de manhã.

EDUARDO (Desconcertado) – Não sabia, morreu de quê?

LETÍCIA – Causas naturais, morreu dormindo. Também né? Quase cem anos..

EDUARDO (Triste, reflexivo) – Ele tinha 92..

LETÍCIA – Um dos maiores escritores brasileiros do século XX morrendo no dia do lançamento de um livro do que será o maior do século XXI, parece passagem de bastão.

EDUARDO – É..

LETÍCIA –Pena que nunca rolou a entrevista e as fotos de vocês juntos. Que não tenham se conhecido.

EDUARDO – É..

LETÍCIA – Bem, vou lá para não atrasar meu amor ( da um beijo em seu rosto) te amo.

(Letícia sai de cena)

EDUARDO – Fausto Braga morreu...O Fausto..

(Luz se apaga e acende 31 anos antes, em 1969, Eduardo, Neco e Dirceu estão sentados no chão, Dirceu enrola um papel enquanto Neco fala)

NECO – Sou mais a Jane Fonda.

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DIRCEU –Para de graça Neco, Brigitte Bardot tem uma corpo que é uma beleza. Se eu pego..

NECO – Pega o que Dirceu? Pega em que? O máximo que você pega é nas cabras do seu Jaime.

DIRCEU – Já falei que é mentira, é invenção desse povo, povo dessa cidade adora fazer uma fofoca.

NECO – Mas aposto que nunca teve nada com mulher.

DIRCEU – Claro que sim, com muitas.

NECO – Pare de mentiras Dirceu. Diga o nome de uma pelo menos.

DIRCEU – Você não conhece.

NECO – Claro que não conheço e sabe por quê? Porque não existem. Eu conheço todas as mulheres dessa cidade Dirceu e você nunca esteve com nenhuma.

DIRCEU – Como se você entendesse alguma coisa de mulheres Neco.

NECO – Mais que você com certeza. Só alguém que não entende de mulheres para achar Jane Fonda melhor que Brigitte Bardot, não é Edu?

( Eduardo continua em silêncio)

NECO – Edu!! Edu!! Alô Apolo Edu!! Terra chamando!!

EDUARDO – Oi, o que foi?

DIRCEU –Esses nem fumou o baseado e já está viajando.

EDUARDO – Que foi? Qual é o problema?

DIRCEU – Criando outra história Edu? Ele é escritor Neco.

NECO - Eduardo Gusmão e seu mais novo livro “ Como ser virgem para o resto da vida”.

EDUARDO – Vocês falam besteiras demais.

NECO –Mulher não quer saber de escritores, gosta de militares, seu pai mesmo deve ter várias.

EDUARDO – Respeita meu pai!!

NECO –Qual problema? Ele é viúvo mesmo!! E o que falei é verdade, mulher só gosta de escritores na Europa. Aqui é Brasil, gostam de militares que caçam comunistas.

DIRCEU – Dizem que tem comunistas que se escondem por aqui.

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EDUARDO – Tem comunista nenhum aqui e quem disse que quero escrever para mulheres?

NECO (rindo) – Quer para homens então?

DIRCEU – Neco, você não existe..

EDUARDO – Cadê esse cigarro? Está pronto ou não?

DIRCEU (Mostrando o cigarro de maconha) – Uma perfeição, podem chamar de Brigitte Bardot.

(Luz se apaga e acende demonstrando passagem de tempo. Os três estão chapados)

NECO – Essa erva parece cocô de cavalo.

DIRCEU – Não fale bobagens, comprei onde compro sempre, é da melhor qualidade.

NECO – Da melhor qualidade de um cocô de cavalo.

DIRCEU – Edu, conte uma história pra gente.

NECO – Eu não quero ouvir as histórias maricas do Edu.

EDUARDO – Não tenho nenhuma em mente para contar.

DIRCEU – Mas eu tenho algo para mostrar.

(Tira uma revista de dentro da camisa)

EDUARDO –O que é isso?

DIRCEU – Revista de mulher pelada.

EDUARDO – Onde você conseguiu isso?

NECO (Tomando a revista da mão de Neco) – Não interessa onde arrumou, temos que ver.

DIRCEU – Pra que esse desespero se já viu tantas mulheres nuas como já disse?

NECO – Cala a boca e vamos ver.

(Os três olham)

NECO, DIRCEU E EDUARDO – Nossa!! ( folheando) Nossa!! Uau!!

EDUARDO – Quantos pelos, parece a floresta do Vietnã.

NECO – Nós temos que transar.

DIRCEU – Eu não quero transar com você.

NECO – Não seu burro, transar com mulheres. Já sei, vamos à casa da Luz Vermelha.

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DIRCEU – Eu não quero pegar gonorréia e lá não entram menores.

NECO – Só usarmos carteiras falsas e preservativos.

EDUARDO – Não se consegue carteiras assim, são caras.

NECO – Podemos pedir aos nossos pais, dar alguma desculpa.

DIRCEU – Trabalhar.

NECO – Boa!! Esta cheio de turistas na região, está chegando o verão, vão precisar de nós.

EDUARDO – Meu tênis rasgou, não vou pedir dinheiro ao meu pai para transar com uma prostituta, vou pedir pra comprar tênis novo.

NECO – Trabalhando da para comprar o tênis e ir à casa da Luz Vermelha.

DIRCEU – Não vai deixar seus parceiros na mão, vai?

NECO –Qual é Edu? Somos amigos desde crianças.

EDUARDO – Está bem, está bem.

DIRCEU (Mexendo no cabelo de Eduardo) – É isso aí garoto!!

EDUARDO – Não mexa no meu cabelo, passei gel.

NECO – Vamos continuar folheando a revista enquanto a grande noite não vem.

(A luz se apaga e acende. Edmundo, fardado, entra em cena e se senta a uma mesa. Eduardo entra e coloca dois pratos na mesa, senta e os dois começam a comer. Ficam um tempo em silêncio enquanto comem)

EDUARDO – Está boa a comida pai?

EDMUNDO – Da pro gasto.

EDUARDO – Eu fiz o ensopado que o senhor gosta.

EDMUNDO – Percebi.

(Ficam mais um tempo comendo. Eduardo para e olha o pai)

EDMUNDO – Qual o problema Eduardo?

EDUARDO – Preciso de dinheiro pai. Meu tênis está rasgando e tempo que não me divirto também, quero sair com meus amigos.

EDMUNDO –Você sabe que estamos passando dificuldades Eduardo, meu dinheiro não dá em árvore para você ficar saindo com seus amigos delinquentes.

EDUARDO – Eu sei pai, eu quero trabalhar, ganhar meu dinheiro.

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EDMUNDO – Nada disso. Filho meu é estudante, em casa minha quem sustenta sou eu, o homem da casa.

EDUARDO – Já tenho dezesseis anos pai, tenho condições de trabalhar.

EDMUNDO – Você não está bem nos estudos.

EDUARDO – Eu vou me empenhar, vou me esforçar mais.

EDMUNDO – Com que tempo vai estudar se estará trabalhando?

EDUARDO – Eu dou meu jeito pai. Estudo, trabalho e continuo cuidando da casa como faço desde que a mamãe e o Edilson morreram.

EDMUNDO – Semana que vem faz três anos do acidente.

EDUARDO – Eu sei pai, não tem uma noite que não lembre.

EDMUNDO – Maldita hora que dei aquele carro pelos dezoito anos de seu irmão, maldita hora que sua mãe aceitou dar a primeira volta no carro com ele, maldito caminhão..

EDUARDO – Não se martirize pai.

EDMUNDO – Traga minha cachaça e o copo.

EDUARDO – Já vai beber pai? Acabou de chegar.

EDMUNDO – Virou minha mãe agora? Quem manda nessa casa sou eu!! O homem da casa sou eu!! Pegue logo a porcaria da cachaça!!

EDUARDO – Está bem pai.

(Eduardo sai e volta com uma garrafa e o copo)

EDMUNDO – Encha, encha tudo.

(Eduardo enche e Edmundo bebe de uma vez só)

EDMUNDO – Encha de novo.

(Eduardo enche e dessa vez Edmundo bebe apenas um pouco e fica com olhar vazio)

EDUARDO – Então pai?

EDMUNDO (Agressivo) – O que é?

EDUARDO – Me deixe trabalhar, será temporário, só até eu arrumar uma grana.

EDMUNDO – Vai me encher mesmo com isso não é? Está bem, eu deixo.

EDUARDO – Obrigado pai. Prometo que continuo estudando e fazendo as tarefas da casa e de repente até ajudo a comprar algumas coisas pra cá como comida, produtos de cozinha.

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EDMUNDO (Irritado) – Nada disso!! Já disse!! Quem cuida da casa sou eu!!

EDUARDO – Está bem pai.

EDMUNDO – Sabe o que me ajudaria?

EDUARDO – Não.

EDMUNDO – Achar alguns terroristas, dizem que tem terroristas escondidos por aqui. Imagine achar algum? A moral que eu ficaria no quartel?

EDUARDO – Imagino.

EDMUNDO – Os comunistas querem acabar com o Brasil, mas o Brasil é maior que eles. O Brasil jamais será vermelho!! Vou me deitar..

EDUARDO – Sua bênção pai.

EDMUNDO – Deus lhe abençoe ( pega a garrafa) isso vai comigo.

(Edmundo sai de cena. Luz apaga e acende com Fausto em cena, campainha toca)

FAUSTO – Já vai!!

(Ele atende a porta)

EDUARDO – Boa tarde.

FAUSTO –Boa tarde. Não quero comprar nada.

EDUARDO – Que bom porque eu também não vim vender. Vim porque reparei que se mudou recentemente para cá.

FAUSTO – Temporário, só ficarei alguns meses.

EDUARDO- Então vim perguntar se não queria alguém para ajudar. Alguém para cuidar do cachorro, da grama, da piscina.

FAUSTO – Não tenho grama nem piscina e tenho alergia a pelos de cachorro.

EDUARDO – Entendo, mas pode precisar de meus serviços para alguma coisa.

FAUSTO – Duvido um pouco. Nesse momento o que mais preciso é de uma ideia de cometer um assassinato sem deixar rastros.

EDUARDO (Assustado) – Como?

FAUSTO – Sou escritor e estou escrevendo um livro onde tenho que cometer um assassinato de um homem de oitenta anos podre de rico sem deixar rastros, você sabe como fazer isso?

EDUARDO – Talvez se..

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FAUSTO (Interrompendo) – Como imaginei você não sabe (empurra Eduardo) então se me der licença preciso fechar a porta, ficar sozinho e cometer um assassinato.

(Empurra Eduardo para fora de cena, volta e para)

FAUSTO – Espere!!

(Caminha para perto da coxia e grita) – Hei garoto!! Garoto!! Volte aqui!!

(Olha um pouco para a coxia e volta para o meio da cena. Eduardo entra)

EDUARDO – Me chamou senhor..

FAUSTO – Braga, Fausto Braga, iria me dizer algo quando falei do assassinato e interrompi?

EDUARDO – Iria falar para dar uma injeção de ar.

FAUSTO – Injeção de ar?

EDUARDO – Sim, injeção de ar, mata e não deixa rastros.

FAUSTO – Pois bem senhor..

EDUARDO – Eduardo e não sou senhor, só tenho dezesseis anos.

FAUSTO – Pois bem senhor Eduardo que não é senhor por só ter dezesseis anos. És um assassino profissional? Tenho que ter medo de você?

EDUARDO (Rindo) – Não, apenas sou escritor, quer dizer, sonho em ser um.

FAUSTO – Interessante isso..Vamos fazer o seguinte Eduardo (Vai até a mesa e pega um papel) Essa é uma lista de compras, cheguei aqui agora e tenho nada, tome.

(Dá a lista e Eduardo fica lhe olhando)

FAUSTO – Que foi? Qual o problema?

EDUARDO – O senhor não me deu o dinheiro para as compras

FAUSTO Ah sim, claro (abre a carteira e lhe dá o dinheiro) Tome, o troco é seu, fica sendo seu pagamento. Quando chegar iremos conversar. Estou dando dinheiro a um desconhecido para fazer compras pra mim, devo estar maluco, mas não sei porque fui com sua cara.

EDUARDO (Sorrindo) – Obrigado, não irá se arrepender.

FAUSTO – Vá menino, vá logo!!

(Eduardo sai de cena)

FAUSTO – Injeção de ar..Não é que a ideia é boa?

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(Fausto senta, fica um tempo em silêncio, sai de cena, volta com máquina de escrever, papel e digita um pouco)

FAUSTO – Olha, agora está fluindo.

(Digita mais um pouco e Eduardo entra com sacolas)

EDUARDO – Aqui está senhor Fausto, tudo o que o senhor pediu.

(Bota em cima da mesa)

FAUSTO (Olhando dentro das sacolas) – Está tudo certo. Troco foi bom?

EDUARDO - Foi sim, obrigado.

FAUSTO – É escritor então?

EDUARDO – Começando, escrevo pequenas histórias sobre um detetive.

FAUSTO – Por isso a injeção de ar.

EDUARDO – Tenho que criar crimes e elucidar depois.

FAUSTO – Tem que ser esperto para fazer isso.

EDUARDO – Eu leio muito, minha mãe falava que ler abre os horizontes.

FAUSTO – Inteligente sua mãe, aproveite tudo que ela possa te ensinar.

EDUARDO – Ela morreu faz três anos.

FAUSTO – Sinto muito, falei besteiras.

EDUARDO – Tudo bem, sem problemas.

(Ficam um tempo em silêncio)

FAUSTO – Ok, ficou um clima estranho..Enfim, também sou escritor.

EDUARDO – Escreveu quantos livros?

FAUSTO – Esse que estou escrevendo é meu oitavo.

EDUARDO – Caramba!! Quantos publicados?

FAUSTO – Deixa-me ver..todos.

EDUARDO –É o meu sonho.

FAUSTO – Aluguei essa casa para escrever esse livro e tenho prazo para entregar. Estava sem inspiração e você me ajudou.

EDUARDO – Que bom, é sobre o que o livro?

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FAUSTO – De suspense, ocorre uma morte acima de qualquer suspeita e uma bela mulher herda tudo. Só que um dos filhos desconfia e começa a investigar o caso, uma série de acontecimentos e reviravoltas, que ainda não sei quais serão, ocorrem durante isso.

EDUARDO – E quem matou o milionário?

FAUSTO – A mulher, obviamente.

EDUARDO – Errado, o filho que investiga que matou.

FAUSTO (Rindo) – Não, não tem sentido, por que ele investigaria se é culpado e todos pensam que é morte natural?

EDUARDO – Ambição, queria toda a fortuna para ele é assim incriminar a mulher. Investigava e forjava provas contra ela.

FAUSTO (rindo) – Isso é (para pra pensar) Genial.

EDUARDO – Não devemos dar ao público o que ele espera.

FAUSTO – Um garoto de dezesseis anos ensinando um homem de sessenta.

EDUARDO – Desculpe, não foi minha intenção te ofender.

FAUSTO – Não me ofendeu, eu gostei, gostei muito.

EDUARDO –Fico feliz em ouvir isso de um escritor profissional.

FAUSTO – Você tem futuro, muito futuro garoto. Tem seu emprego.

EDUARDO – Mas o senhor não tem piscina, nem grama.

FAUSTO – Mas tenho um livro para escrever e um jovem e excelente escritor para me ajudar, que receberá bem para isso e os devidos créditos no livro.

EDUARDO – Nossa!! Trabalhar escrevendo!!

FAUSTO – Te espero sete da noite, gosto do começo da noite para escrever. Está bom para você?

EDUARDO – Sim, eu saio da escola e venho direto pra cá.

FAUSTO – Está bem. Agora vá. Tenho que ajeitar essas compras na despensa e ouvir um pouco de músicas.

EDUARDO (Apertando a mão de Fausto) – Obrigado senhor Fausto Braga, muito obrigado.

FAUSTO – Por favor, me chame de Fausto, senhor faz esse velho se sentir mais velho ainda.

EDUARDO –Está bem, até amanhã Fausto.

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(Ele sai)

FAUSTO – O menino é bom mesmo.

(Ele sai, volta e começa a digitar na máquina, Eduardo entra)

EDUARDO – Com licença, a porta estava aberta.

FAUSTO – Entre..Gostei, pontual. Chegue aqui, andei escrevendo.

(Eduardo se aproxima)

FAUSTO – Diga o que acha.

EDUARDO (Olhando) – Isso aqui está legal, isso aqui é muito bom..isso aqui..nem tanto.

FAUSTO – Como não? Isso aqui ficou tão (para pra pensar) ruim.

EDUARDO – Podemos melhorar, que tal..

FAUSTO (Interrompendo) – Sente aqui do lado, vamos rever isso.

(Eduardo senta e fala, Fausto digita, tudo com um som marcando passagem do tempo)

FAUSTO (Tirando a folha da máquina) –Leia.

EDUARDO (Lendo) – É isso.

FAUSTO – Alvíssaras!! Estamos andando!!

EDUARDO – Tem previsão de quando será lançado?

FAUSTO (rindo) – Calma, iremos terminar, a editora fará revisão, diagramação e depois de um tempo teremos nosso livro. Fique tranquilo que seu nome estará. Não vou te roubar.

EDUARDO – Não é isso...

FAUSTO – Estou brincando com você. Sabe o que esse momento merece? Vinho!!

EDUARDO – Eu não bebo.

FAUSTO – Que tipo de escritor não bebe?

EDUARDO – Um com dezesseis anos..

FAUSTO – Aprenda uma coisa jovem aprendiz. Escritor que é escritor é alcoólatra e depressivo. Passa a madrugada escrevendo, fumando e vai para a porta da padaria esperar que abra para comprar cachaça.

EDUARDO – Ruim isso.

FAUSTO – Ruim? Isso é maravilhoso Eduardo. Você já sofreu por amor?

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EDUARDO – Não, nunca.

FAUSTO – Quer ser um grande escritor? Sofra por amor. O alcoolismo, a depressão e a dor de amor movem a arte desde o início dos tempos. Escritores, romancistas, poetas e dramaturgos não podem ser felizes, tem que trazer alguma dor, sofrimento na alma para criarem. Ninguém tem a sensibilidade necessária para contar histórias se não tiver algum sofrimento.

EDUARDO – Você tem algum?

FAUSTO – Sou um escritor de sete romances traduzidos em cinco idiomas e alguns deles viraram best seller entrando nas listas de mais vendidos. Sou um escritor bem sucedido. O que acha?

EDUARDO – Que carrega uma dor muito grande.

FAUSTO (sorrindo) – Vamos beber?

EDUARDO – Está certo.

FAUSTO – E você fica para o jantar..

EDUARDO – Não sei se posso. Eu dou a janta de meu pai.

FAUSTO – Não vai demorar, prometo, gosta de macarronada?

EDUARDO – Amo.

FAUSTO – Então venha.

(A luz se apaga e acende com os dois na mesa)

FAUSTO – É aí? Está gostando da comida?

EDUARDO – Sim, sim claro.

FAUSTO – Tem certeza?

EDUARDO – É, veja bem, o gosto está um pouco esquisito.

FAUSTO (Rindo) – Está horrível.

(Ela levanta e pega os pratos)

EDUARDO – Espera, da pra comer.

FAUSTO – Não, definitivamente não da pra comer.

(Sai e volta com garrafa de vinho e duas taças)

EDUARDO – Já disse que não bebo.

FAUSTO – Vai me deixar beber sozinho? Isso é falta de educação, sabia?

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(Fausto enche as taças)

FAUSTO (Antes que Eduardo beba) – Espere!!

EDUARDO – O que foi?

FAUSTO – A bebida pede música. Tudo na vida pede música, sentimentos acompanhados por uma boa trilha sonora se afloram.

(Vai até a vitrola e coloca um disco, música começa a tocar)

EDUARDO – Bonita essa música.

FAUSTO – Conhece?

EDUARDO – Não.

FAUSTO – Clair de Lune, de Claude Debussy.

EDUARDO – Realmente não conhecia, é encantadora.

FAUSTO - Essa música tem exatos 64 anos, é de 1905, o terceiro movimento da suíte bergamasque, uma das principais músicas eruditas já compostas.

EDUARDO – Eu sempre achei que música erudita fosse coisa de velho.

FAUSTO – E é..Somos todos velhos Eduardo, esse mundo é velho, as pessoas são velhas,, alma,corações, tudo envelhece, perece, apodrece e morre. Sabe o que não envelhece nunca?

EDUARDO – Não.

FAUSTO – A arte.

(Eduardo fecha)

FAUSTO – Ouça a música, o que ela te lembra?

EDUARDO – Lua cheia, cheia e brilhante.

FAUSTO – O que mais?

EDUARDO – Praia..Mar revolto batendo nas pedras em uma praia.

FAUSTO – Beba agora o vinho.

(Eduardo bebe)

FAUSTO – Não engula, saboreie o vinho. Saboreie como um punhado de vida que sabemos que tem que ser degustada antes de ser absorvida..Agora se imagine nessa praia.

(Ficam um tempo em silêncio)

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FAUSTO – Deixe o vinho e Clair de lune te levarem a essa praia. Você está sentado nas pedras, o mar bate nas rochas e cobre seus pés. Céu estrelado e Lua cheia com sua imagem refletindo no mar..Engula o vinho agora e continue com os olhos fechados...O que você sente?

EDUARDO – Paz, muita paz.

FAUSTO – Esse a partir de agora será seu refúgio. Sempre que algo não for bem em sua vida se transporte para essa praia ao som de Clair de lune.

(A música para)

FAUSTO – Pode abrir os olhos, o que sente?

EDUARDO – Nossa..Nem sei o que dizer, é uma sensação que eu nunca tive antes.

FAUSTO – Você fez uma viagem cósmica. Tem gente que usa drogas para isso. Nós temos a poesia.

EDUARDO – Temos Clair de lune.

(Ficam um tempo em silêncio e se aproximam pintando “um clima” entre eles)

EDUARDO – Eu tenho que ir, meu pai.

FAUSTO – Claro, não quero que se prejudique por minha causa.

EDUARDO – É, meu pai é meio bravo.

FAUSTO – Te vejo amanhã?

EDUARDO – Claro, temos um livro para terminar.

FAUSTO – Ficará lindo.

EDUARDO – Obrigado.

FAUSTO – Pelo quê?

EDUARDO – Me apresentar Clair de lune.

FAUSTO – Te apresentarei o mundo sem sair dessa sala.

EDUARDO – Até amanhã.

(Eduardo sai de cena)

FAUSTO (Aflito, olhando para o céu) –Meu Deus!! Não é possível que esteja ocorrendo de novo!!

(Fausto sai. Pelo outro lado Edmundo entra com uma garrafa na mão e senta. Bebe da garrafa e Eduardo entra)

EDUARDO – Oi pai, me desculpe a demora.

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EDMUNDO – Que trabalho de merda é esse que pode ser mais importante que a janta de seu pai?

EDUARDO – Não irá se repetir, me perdoe pai.

EDMUNDO – Não vai mesmo, se ocorrer te dou uma surra.

EDUARDO – Já com garrafa na mão pai?

EDMUNDO – Se não posso comer vou beber!!

EDUARDO – Mas pai, a comida estava pronta, era só pegar nas panelas.

EDMUNDO – Você sabe muito bem que não gosto de comer sozinho, sua mãe sempre comia comigo.

EDUARDO – Me perdoe pai, eu vou fazer seu prato.

(Ele sai e Edmundo permanece sentado com a garrafa. Eduardo volta com um prato e talheres)

EDUARDO – Pronto pai, aqui está a comida, quentinha.

EDMUNDO – Cadê seu prato?

EDUARDO – Estou sem fome.

(Edmundo da uma colherada e come, da a segunda e empurra o prato para longe)

EDUARDO – Pai!!

EDMUNDO – Eu não gosto de comer sozinho porra!! Sua mãe sempre comia comigo!!

EDUARDO – Eu não sou a mamãe pai.

EDMUNDO – Não é sua mãe, não é o Edilson!! Só é esse garoto esquisito e quieto que serve para nada!! O Edilson era bonitão, cheio de namoradas, esportista!! E você?? Um garoto quieto que vive no mundo dos sonhos e não é capaz nem de comer com seu pai!!

( Eduardo responde nada, está abaixado no chão pegando cacos do prato ou fingindo pegar caso seja tipo de prato que não quebra)

EDMUNDO – Por que me abandonou Deus?? Levou a mulher que eu amava!! Levou meu filho!! Me deixou sozinho nessa merda!!

EDUARDO ( Ainda no chão) – Não está sozinho pai, eu estou aqui.

EDMUNDO – Levanta!! Filho meu não fica no chão!! Levanta e me olha!!

(Eduardo levanta)

EDMUNDO – Fique de frente para mim e me olhe!!

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(Eduardo se vira, mas abaixa os olhos)

EDMUNDO – Me olha porra!!

(Eduardo olha)

EDMUNDO – O que você vê?

EDUARDO – Meu pai, que bebeu demais, mas ainda é meu pai.

EDMUNDO – Errado!! Você vê um homem que perdeu tudo, um arremedo de homem!! Tenente Edmundo Gusmão, um homem íntegro, dedicado a sua família, as forças armadas brasileiras, mas que perdeu tudo!! Sua família!! Suas pernas!! Seu alicerce só sobrando uma carne podre e ferida!! Uma farda desbotada do exército sem alma e que vê todos sendo promovidos, subirem na vida e ele ficando pra trás!! Que sabe que os colegas e as pessoas na rua debocham e falam pelas costas chamando de bêbado!!

EDUARDO – Eu não vejo assim.

EDMUNDO – Agora é minha vez. Sabe como te vejo?

EDUARDO – Não.

EDMUNDO –Como um nada, um saco de bostas, um zero a esquerda.

(Eduardo fica em silêncio)

EDMUNDO.- Reaja soldado!! Eu estou lhe ofendendo!! Mostre que tem culhões!!

( Edmundo sai e volta com uma arma na mão)

EDMUNDO –Você não merece usar meu sobrenome, eu vou matar você soldado.

EDUARDO – Que isso pai!!

EDMUNDO –Soldado!! Sentido!!

EDUARDO – Para pai..

EDMUNDO – Já falei porra!! Posição de sentido!!

(Eduardo faz posição)

EDMUNDO – Preste continência soldado!!

(Eduardo presta)

EDMUNDO – Nem assim você reage, você não merece morrer. Sabe quem merece? Eu!!

(Aponta a arma para a própria cabeça)

EDUARDO (Desesperado) – Para pai!!

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EDMUNDO (Cantando) – Ou ficar a Pátria livre ou morrer pelo Brasil!! Ou ficar a Pátria livre ou morrer pelo Brasil!!

(Atira e só se ouve um clique)

EDMUNDO (Normal) – Sem balas, melhor eu ir dormir. Boa noite Eduardo.

(Edmundo sai de cena. Eduardo fica sozinho e começa a chorar. Senta-se no chão chorando e a sonoplastia coloca Clair de lune e barulho de mar. Ele para de chorar e fica em silêncio. Luz se apaga e acende com Eduardo e Fausto)

FAUSTO – Livro andando bem hoje, tramas surgindo..Eu amo essa sensação de ver uma história nascendo. Um escritor gosta de brincar de ser Deus Eduardo e o melhor que podemos por um instante ser Deus sem suas responsabilidades.

EDUARDO – Verdade.

FAUSTO – O que você tem Eduardo? Está calado hoje.

EDUARDO – Qual é a sua dor?

FAUSTO – Como assim?

EDUARDO – Disse que todo escritor tem uma dor guardada consigo, queria saber a sua.

FAUSTO –Aquilo que eu falei foi bobagem, repetição de clichês.

EDUARDO – Não foi, gostaria realmente de saber.

FAUSTO – Não acho uma boa falar.

EDUARDO – Nós não somos amigos?

FAUSTO – Deixaríamos de ser por eu não contar?

EDUARDO – Não, mas contando não me sentiria mais sozinho.

( Fausto anda um pouco pelo palco)

FAUSTO – Eu sou casado com uma linda mulher faz trinta e cinco anos e nós tivemos um filho.

EDUARDO – Isso não é uma dor.

FAUSTO – Ele morreu.

EDUARDO – Sinto muito.

FAUSTO – Faz dez anos. O Juca, meu filho, tinha vinte e um anos, morreu em um acidente de carro.

EDUARDO – Como minha mãe e meu irmão.

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FAUSTO – Nossas vidas nunca mais foram as mesmas. Continuarmos casados, mas distantes, a Helena tem a vida dela, eu a minha, acho até que ela tem outros homens. Algumas vezes quando atendo o telefone e percebem a voz masculina desligam, várias são as noites que ela chega tarde. Eu percebo do escritório de casa quando chega de carro, duas, três horas da manhã..Ela chega, toma um banho e deita. Eu deito ao seu lado e assim é a nossa vida.

EDUARDO – Vivem em uma mentira.

FAUSTO – Nós vivemos de mentiras, somos escritores.

EDUARDO – Mas não era melhor nesse caso se abrirem? Cada um contar o que sente? A verdade?

FAUSTO – Pra que? A única coisa que nos une é a dor, a sensação do fracasso. Se perdermos a única coisa que nos une, que é a dor, nossa relação acaba e precisamos dessa relação porque só um conhece exatamente a dor do outro.

EDUARDO – Precisam da mentira.

FAUSTO – A mentira que ameniza a dor. Sem a mentira a ferida fica exposta.

EDUARDO – É tudo muito confuso pra mim.

FAUSTO – Você é jovem ainda. O tempo vai lhe fazer perceber que se a verdade fosse bela ninguém mentiria.

( Pega garrafa de vinho, enche taças e entrega uma para Eduardo)

FAUSTO –Todos nós temos muletas para aplacar a dor. Tem gente que parte para as drogas, outros cigarro, precisam da nicotina, dos dedos manchados de amarelo para combinar com o sorriso, tem gente que joga, que faz piada sobre tudo, que se afoga na comida.

EDUARDO – Meu pai é na bebida.

FAUSTO – Tem os escritores.

EDUARDO – Escrever é uma fuga?

FAUSTO – Muitas vezes é um achado.

EDUARDO – Ontem ouvi Clair de lune.

FAUSTO – Ah é? Aonde?

EDUARDO – Em meus pensamentos.

FAUSTO – Conseguiu ouvir o mar?

EDUARDO – Mais revolto do que nunca.

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FAUSTO – Me conte como foi. O que imaginou?

EDUARDO – Me imaginei em um barco. Um barco pequeno,segurando o timão e tentando controla-lo em meio a uma terrível tempestade com ondas gigantescas que tentavam derrubar o barco. Eu segurava firme o timão com rosto todo molhado que eu não sabia ser a chuva, respingos do mar ou lágrimas até que a música entrou no barco, entrou com força ( da uma pausa) aí o Sol abriu, incandescente, forte, quase furando o mar, o oceano se acalmou parecendo uma lagoa e assim encontrei forças para prosseguir viagem.

FAUSTO –És um poeta.

EDUARDO – Uma das coisas que me faz gostar de vir aqui é que você me elogia. É tão difícil receber elogios..Só minha mãe me elogiava quando lia o que eu escrevia. Eu escrevia em folha de papel ofício com lápis e corria para lhe mostrar. Ela lia, abria um sorriso, dava um beijo em minha testa e dizia ter muito orgulho de mim. Depois guardava meu escrito em seu armário.

FAUSTO – Sua mãe devia ser uma pessoa formidável.

EDUARDO – A melhor pessoa que conheci.

FAUSTO – Não espere elogios das pessoas, nem sempre as pessoas são sinceras, nem todo mundo quer nosso bem.

EDUARDO –Fazer o que então?

FAUSTO – O maior elogio que podes receber é o seu próprio. Seja seu maior crítico, exija sempre o melhor de ti porque assim serás seu maior fã, se dará valor e assim ninguém mais lhe porá para baixo.

EDUARDO – Não aguento mais ser colocado pra baixo.

FAUSTO -Não permita, você tem valor.

EDUARDO – Eu disse que eu gostava de vir aqui porque você me elogiava, mas não é só por isso.

FAUSTO – Pelo quê mais?

EDUARDO – Pelo nosso livro.

FAUSTO – Que está ficando ótimo.

EDUARDO – E por você.

(Ficam um tempo em silêncio)

EDUARDO – Melhor eu ir, não quero problemas com meu pai.

FAUSTO – Claro, vá sim, não quero lhe causar problemas.

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EDUARDO – Amanhã eu volto.

FAUSTO – Antes beba seu vinho todo. O vinho é como a vida, não se desperdiça.

(Eduardo bebe a taça de uma vez só)

FAUSTO – Olhe só, aprendendo a beber!!

EDUARDO – Estou aprendendo muitas coisas..Até amanhã.

FAUSTO – Até.

(Eduardo sai de cena por um lado e Fausto pelo outro. Pelo lado que Eduardo saiu Edmundo entra e se senta à mesa. Eduardo entra com dois pratos. Entrega um ao pai, se senta e eles começam a comer em silêncio)

EDMUNDO – Eu não lembro bem o que fiz ontem, mas do que lembro sei que fiz e falei besteiras, te peço desculpas.

EDUARDO – Tudo bem pai.

EDMUNDO – De verdade, peço desculpas mesmo, eu não sei por onde ando com a cabeça.

EDUARDO – O senhor anda bebendo demais.

EDMUNDO – Exagero seu, eu bebo apenas pra relaxar, mas ontem confesso que bebi demais, acontece, erro meu, não irá se repetir dessa forma.

EDUARDO – Tudo bem pai.

EDMUNDO – Me desculpa?

EDUARDO – Claro pai.

EDMUNDO – Você é menino. Quando crescer verá que isso é normal, homens bebem, faz parte de nós.

EDUARDO – Tudo bem.

EDMUNDO – Eu te machuquei? Fiz algum mal?

EDUARDO – Não pai, está tudo bem.

(Comem mais um tempo em silêncio)

EDMUNDO – E os estudos?

EDUARDO – As notas melhoraram, tirei dez em português.

EDMUNDO – Olha só que coisa boa, eu nunca tirei um dez na vida.

EDUARDO – Todas as notas melhoraram, o trabalho não prejudicou em nada.

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EDMUNDO – E está trabalhando aonde? Fazendo o que?

EDUARDO – Sabe aquela casa na beira da praia que estava há um bom tempo vazia? Um escritor alugou para fazer um livro, estou trabalhando lá.

EDMUNDO – E fazendo o que?

EDUARDO – Ajudando a escrever um livro.

EDMUNDO – E mais o que?

EDUARDO – Só isso.

EDMUNDO – Só isso?

EDUARDO– Sim pai, estou ajudando esse escritor a escrever seu livro.

EDMUNDO – Isso não é trabalho.

EDUARDO – Estou recebendo por ele.

EDMUNDO – Escrever não é trabalho Eduardo, se está recebendo é porque ele tem muito dinheiro, mas não é trabalho.

EDUARDO – Ele tem muito dinheiro, mas vive de escrever.

EDMUNDO – Não acredito. Ele deve ter alguma herança, ser sustentado pela mulher, não vive de escrever.

EDUARDO – Está bem pai.

EDMUNDO – Não, não está bem, você cismou com essa coisa de escrever e não gosto disso.

EDUARDO – É o que sei fazer de melhor na vida pai.

EDMUNDO – Não interessa, escrever não é profissão, escrever é coisa de vagabundo e não criei filho para ser vagabundo.

( Eduardo fica em silêncio comendo)

EDMUNDO – Vê se pode, vê se acha que vou deixar filho meu escritor. Você vai trabalhar em escritório como qualquer pessoa normal, de oito as cinco todos os dias em uma repartição pública para ter estabilidade ou então será militar e terá mãos com calos, mãos de homem.

EDUARDO – Eu não nasci para trabalhar em escritório de oito as cinco pai, se isso ocorrer comigo não serei feliz.

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EDMUNDO – Ser feliz? Que bobagem é essa? Ninguém nasceu para ser feliz, felicidade só existe no mundo dos sonhos, nesse mundo aí que escritores criam. Ser feliz é ganhar bem, é criar os filhos com dignidade, no caminho do bem e como homens, é não faltar comida na mesa. Escrever não bota comida em mesa, não da camisa pra ninguém, é coisa de vagabundo.

EDUARDO – Está bem pai.

EDMUNDO – Eu vou deixar você continuar nesse trabalho que de trabalho tem nada, até porque está sendo pago, mas acabou isso, o homem voltando pra terra dele acabou essa história de escrever, entendeu?

EDUARDO – Está bem pai.

EDMUNDO – Vou beber..Vou beber porque esse assunto me deixou irritado.

(Edmundo se levanta e sai)

EDUARDO – Está bem pai...

(Eduardo sai e volta andando com uma mochilas. Neco e Dirceu entram correndo atrás)

DIRCEU -Hei!! Espere aí!!

(Eduardo para)

DIRCEU – Parece que está fugindo da gente.

EDUARDO – Claro que não. Por que fugiria?

NECO – É. Por que ele fugiria? Só se estivesse escondendo algo da gente, não é Edu?

EDUARDO – Não estou escondendo nada.

NECO –Viu Dirceu? Esse é nosso amigo Edu, aquele que esconde nada dos amigos.

DIRCEU – Como você está? A gente só te vê na escola. Quando pensamos em falar contigo você some.

EDUARDO – Ando atarefado.

NECO – Tarefa boa porque pelo que vejo conseguiu comprar tênis novo.

DIRCEU – Consegui o dinheiro com meu pai e o Neco com o dele. Conseguiu com o seu?

EDUARDO – Não.

NECO – Ele não precisa mais Dirceu, está trabalhando.

DIRCEU – Sério? Falou nada.

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NECO –Conta pra ele Edu onde está trabalhando.

EDUARDO – Na casa que fica na praia.

NECO – Na casa do Fausto Braga Dirceu.

EDUARDO – Como sabe o nome dele?

NECO – Todo mundo já sabe Edu. Não costumamos ter muitas novidades aqui nessa cidade. Ele é uma novidade e todo mundo está comentando. Escritor famoso, bem a calhar pra você.

DIRCEU – Que bom, então poderemos ir na Casa da Luz Vermelha.

NECO – Não acredito que nosso amigo vá.

DIRCEU – Ué? Por que não? Nós combinamos.

NECO – Porque assim como só se fala em Fausto Braga aqui também só se fala que nosso amigo não sai da casa dele.

EDUARDO – Ele está escrevendo um livro e estou ajudando.

NECO – Você quer que acredite que um escritor famoso está pagando para você lhe ajudar a escrever um livro?

EDUARDO – A verdade é essa.

NECO –Espero que não esteja fazendo nada que nos faça ter nojo de você.

EDUARDO – Não fale besteiras.

DIRCEU – Então? Vai ou não vai?

EDUARDO – Eu vou, não prometi?

DIRCEU – Esses é o Edu que eu conheço!!

EDUARDO -Deixa só o Fausto me pagar que nós vamos.

NECO – Vamos amanhã.

EDUARDO – Amanhã? Não irei receber até amanhã.

NECO – Peça adiantado. Não são íntimos?

DIRCEU – Fala com ele Edu. Ele parece ser legal.

EDUARDO – Está bem, eu falo com ele.

NECO – Vamos Dirceu. Nosso amigo deve estar ocupado, tendo que ir escrever o livro com o patrão.

DIRCEU – Até amanhã Edu.

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(Neco e Dirceu saem de cena. Luz apaga e acende com Eduardo e Fausto na mesma)

FAUSTO (Enchendo a taça de Eduardo) – O de hoje é diferente, vinho argentino.

EDUARDO – Obrigado.

FAUSTO –Ponha na boca e aprecie sem engolir.

(O rapaz faz isso)

FAUSTO- Engula.

(Eduardo engole)

FAUSTO – E então?

EDUARDO – Delicioso.

FAUSTO – Tem duas coisas que conheço bem. Escrever e vinhos..Pegue um livro daquela estante.

EDUARDO (Apontando para a coxia) – Aquela?

FAUSTO – Sim, pegue.

(Eduardo sai de cena e volta com um livro)

FAUSTO – Obrigado. Sabe de que é esse livro?

EDUARDO – Não.

FAUSTO – Coletânea poética.

(Abre o livro e começa a folhear)

FAUSTO (Recitando) –

São duas flores unidas

São duas rosas nascidas

Talvez do mesmo arrebol

Vivendo no mesmo galho

Da mesma gota de orvalho

Do mesmo raio de Sol

Unidas, bem como as penas

Das duas asas pequenas

De um passarinho do céu

Como um casal de rolinhas

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Como a tribo de andorinhas

Da tarde no frouxo véu

Unidas, bem como os prantos

Que em parelha descem tantos

Das profundezas do olhar

Como o suspiro e o desgosto

Como as covinhas do rosto

Como as estrelas do mar

Unidas...Ai quem pudera

Numa eterna primavera

Viver, qual vive esta flor

Juntar as rodas da vida

Na rama verde e florida

Na Verde rama do amor...

Castro Alves.

EDUARDO –Lindo, lindo.

FAUSTO – Escolha uma.

(Eduardo folheia)

EDUARDO (Recitando) –

Ora, direis, ouvir estrelas! Certo

Perdeste o senso! E eu vos direi, no entanto

Que para ouvi-las , muita vez desperto

E abro a janela, pálido de espanto

E conversamos toda a noite, enquanto

A Via Láctea como um pálio aberto

Cintila e ao vir do Sol saudoso em pranto

Inda as procuro pelo céu deserto

Direis agora tresloucado amigo

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Que conversas com elas? Que sentido

Tem o que dizem quando estão contigo?

E eu vos direi “Amai para entende-las!

Pois só quem ama pode ter ouvido

Capaz de ouvir e de entender estrelas”

Olavo Billac

( Fausto folheia)

FAUSTO (Recitando) –

Uma palavra em liberdade sinto o meu corpo

É grande demais pra mim e inda bebi no corpo

Dos outros..

Sei construir teorias engenhocas. Quer ver?

A poética está muito mais atrasada que a música

Esta abandonou, talvez no século VIII, o regime da melodia

Quando muito oitavada para enriquecer-se

Com os infinitos recursos da harmonia

A poética com rara exceção até meados do século XIX francês

Foi essencialmente melódica

Chamo de verso melódico o mesmo que melodia musical

Arabesco horizontal de vozes, sons consecutivas

Contendo pensamento inteligível

Mário de Andrade

( Eduardo folheia)

EDUARDO (Recitando) –

Tempo voraz corta as garras do leão

É faze a terra devorar sua doce prole

Arranca os dentes afiados da feroz mandíbula do tigre

E queima a eterna fênix em seu sangue

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Alegra e entristece aa estações enquanto corres

E ao vasto mundo e todos os seus gozos passageiros

Faze aquilo que quiseres. Tempo fugaz

Mas proíbo-te de um crime ainda mais hediondo

Ah, não marques com tuas horas a mais bela fronte do meu amor

Nem traces ali as linhas com tuas arcaicas penas

Permite que ele siga teu curso, imaculado

Levado pela beleza que a todos sustém

Embora seja mau, velho Tempo, e apesar de teus erros

Meu amor permanecerá jovem em meus versos

William Shakespeare

(Fausto folheia)

FAUSTO (Recitando) –

Alma minha gentil, que te partiste

Tão cedo desta vida descontente

Repousa lá no céu eternamente

E viva eu cá na Terra sempre triste

Sei lá no assento etério, pode subsiste

Memória desta vida se consente

Não te esqueças daquele amor ardente

Que já nos olhos meus tão puro viste

E se vires que pode merecer-te

Alguma cousa a dor que me ficou

Da mágoa, sem remédio, de perder-te

Roga a Deus que teus anos encurtou

Que tão cedo de cá me leve a ver-te

Quão cedo de meus olhos te levou

Luís de Camões

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(Eduardo folheia)

EDUARDO (Recitando) –

Eu te amo porque te amo

Não precisas ser amante

E nem sempre sabes sê-lo

Eu te amo porque te amo

Amor é estado de graça

E com amor não se paga

Amor é dedo de graça

É semeado no vento

Na cachoeira, no eclipse

Amor foge a dicionários

E a regulamentos vários

Eu te amo porque não amo

Bastante ou demais a mim

Porque amor não se troca

Não se conjuga nem se ama

Porque amor é amor a nada

Feliz e forte em si mesmo

Amor é primo da morte

E da morte vencedor

Por mais que o matem (e matam)

(Eduardo respira e recita o último verso olhando Fausto)

A cada instante de amor

Carlos Drummond de Andrade

(Se olham por um tempo)

FAUSTO – Você tem que ir, seu pai.

EDUARDO -Sim, verdade.

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FAUSTO – Leria poesias por horas com você.

EDUARDO – Preciso falar uma coisa contigo.

FAUSTO – Diga.

EDUARDO – Eu sei que não é o combinado, mas tem como adiantar mais um dinheiro? Meus amigos estão pressionando para que saia com eles. Não estou lhes dando muita atenção.

FAUSTO – Claro, claro...

(Fausto sai e volta abrindo carteira e tirando dinheiro de dentro)

FAUSTO (Dando o dinheiro) – Isso é suficiente?

EDUARDO – Claro.

FAUSTO – Bem, até segunda Eduardo, divirta-se.

EDUARDO – Obrigado.

(Se olham um tempo e apertam as mãos. Eduardo sai. Fausto sai pelo outro lado e entram Neco, Dirceu e Eduardo. Luz fica vermelha e toca música de cabaré)

NECO – É aqui.

DIRCEU –Caramba!! A luz é realmente vermelha!!

NECO – O nome é Casa da Luz Vermelha. Você queria que a luz fosse como? Azul?

DIRCEU – Alguém já disse que você é chato pra cacete? Se não sempre tem um amigo para te mostrar a realidade.

NECO – Tem uma mesa aqui, vamos sentar enquanto você elabora uma tese sobre a Casa da Luz Vermelha ser vermelha.

(Eles sentam)

DIRCEU – Está quieto Edu. O que foi?

NECO – Deve estar pensando que preferia estar com o escritor que com seus amigos de infância.

EDUARDO – Nada disso. Estou olhando as meninas do local.

DIRCEU – As prostitutas.

NECO – Não, as freiras. Freiras trabalham em uma casa de prostituição que tem nome de Luz Vermelha e a luz é azul.

DIRCEU – Qual é? Quer tomar uns tapas fale logo que te dou.

EDUARDO – Deu pena delas.

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DIRCEU – Pena por quê?

EDUARDO – Não sabemos as histórias que lhes trouxeram pra cá. Histórias de abandono, miséria, imagine você de repente não ter o que comer ou um lar e ser obrigado a se prostituir?

NECO – Não me interessa a história de vida delas até aqui e sim a da meia hora que ficarão comigo.

EDUARDO – A miséria desse país é grande, tem meninas que são vendidas para lugares assim, forçadas pelos próprios pais por causa da miséria, por não terem o que comer.

DIRCEU – Cara!! Você ta virando comunista!!

NECO – Comunista, bucetista, eu quero é arrumar uma mulher logo.

EDUARDO – Você não leva nada a sério.

NECO – Você quer que eu falei algo sério eu vou falar. Você ta chato pra cacete e eu to me lixando que você tenha decidido ter pena de puta. Eu vou arrumar uma, transar e me aliviar porque não aguento mais os calos na minha mão. Se eu sentir remorso depois faço uma doação para a igreja, rezo uma Ave Maria e fica tudo certo, entendeu?

DIRCEU ( Para um garçom imaginário) – Garçom!!

(Esperam um tempo)

DIRCEU (Olhando como se tivesse uma garçom ali) – Traga uma cerveja.

NECO – Três copos.

EDUARDO – Vinho para mim, por favor.

NECO (Irritado) – Vinho é o cacete!! Vinho é bebida de bicha!! Três copos para a cerveja garçom!! E que porra é essa de por favor? Quando foi que ficou educado desse jeito? Começa com por favor e daqui a pouco ta dando a bunda!! Se é que já não está dando!!

EDUARDO (Irritado) – Qual é porra??

NECO – Qual é porra o que porra? Foi você começar a andar com essa porra de escritor que deu nisso!! Vocês estão tendo um caso? É isso? Eu não ando com bichas!!

EDUARDO – Melhor ser bicha que ser um verme como você!!

DIRCEU – Para gente!!

NECO – Opa!! Tá assumindo que virou bicha!!

EDUARDO – Eu não sou bicha!!

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NECO – Prove então.

EDUARDO – Como?

DIRCEU – Como?

NECO – Aquela menina ali é linda e está sozinha. Eu vou chamar aqui e você vai para um quarto com ela.

EDUARDO – Espere.

NECO – Esperar o que?

EDUARDO – Está bem..Pode chamar.

NECO – Hei menina!!

(Madalena se aproxima)

MADALENA – Sim?

NECO – Meu amigo quer te conhecer melhor..Vá com ela Edu. Mostre que você é macho.

(Eduardo e Madalena saem)

DIRCEU – Tem horas que você me da medo.

NECO – São suas horas mais sensatas.

DIRCEU – É nós? Vamos fazer o que?

NECO – Conversar com aquelas duas moças interessantes e que querem nosso dinheiro.

DIRCEU – E as cervejas?

NECO – Vai se preocupar com cerveja agora?

DIRCEU – Temos que avisar que queremos gelada.

NECO – Claro né? Até porque ele não sabe que queremos gelada.

(Se levantam)

DIRCEU – Está me ironizando?

NECO – Sabe o que me deixa mais feliz de ser seu amigo?

DIRCEU – Por que eu sou legal?

NECO – Porque perto de você eu pareço mais inteligente.

DIRCEU – Você ta doido pra levar uns tapas mesmo.

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(Neco e Dirceu saem por um lado. Madalena e Eduardo entram pelo outro)

MADALENA – Pronto. O que quer que eu faça?

EDUARDO – Que diga o seu nome.

MADALENA – Como?

EDUARDO – Seu nome, eu quero saber o seu nome.

MADALENA – É Madalena.

EDUARDO – Como Maria Madalena.

MADALENA – Sim, minha mãe é bem religiosa. Estranho você pedir meu nome.

EDUARDO – E por que?

MADALENA – Já me pediram de tudo nesse quarto, as coisas mais loucas, mas nunca meu nome.

EDUARDO – Fazem sexo com uma pessoa sem se interessar nem por seu nome?

MADALENA – E quem disse que me veem como pessoa?

EDUARDO –Não entendo.

MADALENA – O tempo está passando, melhor corrermos.

EDUARDO – Para o que?

MADALENA – Fazermos o que viemos fazer aqui.

EDUARDO – Existe a opção de não fazermos o que viemos fazer aqui?

MADALENA – Não faz isso moço, eu preciso desse dinheiro.

EDUARDO – O dinheiro é seu, só não quero me deitar com você.

MADALENA – Me achou feia?

EDUARDO – Feia? Não!! Você é linda!!

MADALENA – Então por que não me quer?

EDUARDO – Porque eu não sei o que quero.

MADALENA – Não sabe? Como assim?

EDUARDO – Eu estou perdido. Não sei o que quero da vida, nunca me senti tão confuso. Não sei mais quem eu sou.

MADALENA – Eu sei pouco sobre você, mas já sei que é um rapaz muito bacana.

EDUARDO – Obrigado.

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MADALENA – Você não quer se deitar comigo ou não quer com mulher nenhuma?

EDUARDO – Eu não sei. É errado isso né? Eu devia querer deitar.

MADALENA – Vai perguntar se faz o certo ou não para uma mulher que se deita com desconhecidos para sobreviver?

EDUARDO –Todos nós temos nossas dúvidas.

MADALENA – Se não tem certeza por quê veio para o quarto comigo?

EDUARDO – Meus amigos me pressionaram.

MADALENA – Eu conheço um deles. Aquele que me chamou cheio de pose.

EDUARDO – Ah é?

MADALENA – Sim, veio para esse mesmo quarto comigo. Não conseguiu, falhou, ficou sentado na cama chorando e dizendo que era homem.

EDUARDO – Quem diria..Parece tão firme, tão certo das coisas.

MADALENA – A pessoa que tem certeza de alguma coisa é a que já morreu.

EDUARDO – Gostei de você.

MADALENA – E eu de você. Não me disse seu nome.

EDUARDO – É Eduardo.

MADALENA –Prazer Eduardo (lhe estende a mão)

EDUARDO (Apertando sua mão) – O prazer é todo meu.

(Luz se apaga com Eduardo e Fausto em cena com livros. Estão lendo)

FAUSTO (Lendo) – E eu, que estou de bem com a vida, creio que aqueles que mais entendem de felicidade são as borboletas e as bolhas de sabão e tudo que entre os homens se lhes assemelhem, Nietzsche.

EDUARDO (Lendo) –O ignorante afirma, o sábio duvida, o sensato reflete, Aristóteles.

FAUSTO (Lendo) – Uma vida não questionada não merece ser vivida, Platão.

EDUARDO (Lendo) – Eu não procuro saber as respostas, procuro compreender aa perguntas, Confúcio.

FAUSTO (Lendo) – Podes conhecer o espírito de qualquer pessoa, se observares como ela se comporta ao elogiar e receber elogios, Sêneca.

EDUARDO (Lendo) – Aquilo que não puderes controlar, não ordenes, Sócrates.

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FAUSTO (Fechando o livro) – Ler..Ler muito. Ler filosofia, sociologia, poesia, os pensadores, os formentadores e fermentadores de opiniões, tudo isso abre nossa mente, canaliza energia para uma melhor escrita, a inspiração que flui como um rio indo para o mar, o encontro dos mares. Não há nada mais poderoso no universo, nenhuma energia cósmica que a inspiração brotando. A inspiração muda o mundo meu jovem.

EDUARDO – Eu não consigo nem entender o meu mundo, quanto mais o mundo inteiro.

FAUSTO – O que foi meu caro?

EDUARDO – Estou confuso como nunca estive na minha vida.

FAUSTO – Me explique o que está acontecendo.

EDUARDO – Fui na Casa da Luz Vermelha no fim de semana, uma casa de prostituição daqui.

FAUSTO – E daí?

EDUARDO – Daí que encontrei uma menina, fui para o quarto comigo e...

FAUSTO (Interrompendo) – E fez sexo com ela.

EDUARDO – Fiquei conversando com ela, apenas conversando.

FAUSTO – Mas por que?

EDUARDO – Eu não sei. Nunca fiz sexo, sou virgem, tive a oportunidade e não fiz, não quis fazer.

FAUSTO – E por que? Não quer fazer sexo?

EDUARDO – Não com ela, talvez não com uma mulher.

(Fausto se afasta)

FAUSTO – Você é jovem, só está confuso, é natural.

EDUARDO- Sinto falta de minha mãe, ela ajudaria a me entender.

FAUSTO – E seu pai?

EDUARDO – Meu pai da a mínima pra mim. Ele amava meu irmão, idolatrava meu irmão. Se ele pudesse escolher eu teria morrido no lugar dele.

FAUSTO – Não é assim, os pais amam seus filhos de forma igual.

EDUARDO (Começa a chorar) – Meu pai me odeia, eu só sirvo para fazer a comida e para que ele desconte suas frustrações. Sinto falta de meu irmão, sinto muita falta de minha mãe, fiquei sozinho no mundo.

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(Se joga no chão e chora ajoelhado escondendo o rosto no chão)

FAUSTO (Se ajoelhando ao lado) – Calma, você tem a mim agora.

EDUARDO (Ainda sem olhar) – Me ajude a me entender. Eu preciso saber quem eu sou.

FAUSTO – Eu com sessenta anos não sei quem eu sou, como te ajudar? Única coisa que posso te dizer é que não está sozinho. Tem a mim, posso ser como um pai.

EDUARDO (Olhando Fausto) – E se eu não quiser que seja apenas um pai?

FAUSTO (Levanta desconcertado) – Melhor você ir embora.

EDUARDO –Por quê? Eu fiz alguma coisa errada?

FAUSTO – Não, claro que não. É que não estou me sentindo bem, estou com dor de cabeça. Amanhã escrevemos.

EDUARDO (Se levantando) – Posso fazer o jantar amanhã?

FAUSTO –Você fazendo o jantar?

EDUARDO – Cozinho muito bem, melhor que aquilo que você chamou de comida.

FAUSTO (Rindo) – Está certo, eu permito..Mas e seu pai?

EDUARDO – Amanhã é dia dele sair para beber com amigos. Terei muito mais tempo.

FAUSTO – Está bem, se cuida então, até amanhã.

EDUARDO – Melhoras.

(Os dois ficam frente a frente, estão tensos)

FAUSTO (Depois de dar um beijo na testa de Eduardo) – Vá, por favor.

(Eduardo sai, Fausto pega o telefone e disca)

FAUSTO ( Ao telefone) – Helena..Preciso falar com você. Preciso de você..

(Luz se apaga e acende com Dirceu e Neco)

DIRCEU – Cadê o Edu?

NECO – Não está em casa, vamos só nós dois mesmo.

DIRCEU – Ele nunca está em casa.

NECO – Você sabe onde ele está né?

DIRCEU – Será que ele foi pra Casa da Luz Vermelha antes de nós?

NECO – Não imbecil, ele não foi pra lá, ele está com o escritor, está na cara.

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DIRCEU – Normal, eles trabalham junto.

NECO – Trabalhando junto? Em que mundo você vive? É ingênuo demais.

DIRCEU – Do que você está falando?

NECO – Eles estão tendo um caso porra!!

DIRCEU – Caso? Você está dizendo que o Edu, o nosso amigo, é bicha? Você viu alguma coisa?

NECO – Não, eu não vi nada, mas não preciso ver para saber.

DIRCEU – Claro que precisa. Você está acusando o Edu de ser bicha, isso é muito sério, se espalhando acaba com a vida dele e do escritor.

NECO – Acabar com a vida? Tem nada que acabe mais com a vida de alguém que homem se deitando com outro homem, isso é nojento, isso vai contra Deus.

DIRCEU – Você não acha que Deus pode estar mais preocupado com outras coisas como a guerra do Vietnã ou nosso professor de geografia que falavam que era comunista, foi preso e sumiu que com homem transando com homem?

NECO – Fica quieto, enlouqueceu? Esqueceu que foi combinado nunca mais se falar no professor? E outra, o que te deu pra defender bicha? Vai virar bicha também?

DIRCEU – Claro que não!! Só que ele é meu amigo e tenho medo que isso se espalhe.

NECO – Amigo? Ele enganou a gente!! Ele saía com a gente, fazia xixi do nosso lado, jogamos bola e tomávamos banho com ele..que nojo!! Ele deve ter nos desejado tomando banho e você ainda tem coragem de chamar de amigo.

DIRCEU – Sim, o amigo que te carregou três quarteirões quando você caiu da árvore, se machucou e ficou chorando dizendo que não conseguia botar o pé no chão.

NECO – Isso é passado..E outra, eu não preciso espalhar nada, já se espalhou, a cidade toda está comentando.

DIRCEU – Está errado isso, falar das pessoas sem provas.

NECO – Eu vou provar.

DIRCEU – Como?

NECO – Eu vou seguir o Edu e vou olhar dentro da casa do escritor sem que percebam. Quando eu ver contarei ao pai dele.

DIRCEU – Pai? Você está doido? O seu Edmundo vai matar o Edu!!

NECO – Se matar será justo. Não há vergonha maior para um pai que ter um filho bicha.

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DIRCEU – Eu não estou acreditando no que estou ouvindo.

NECO – Esqueça o Edu. Vamos logo pra Casa da Luz Vermelha que as meninas estão esperando.

(Neco e Dirceu saem de cena. Eduardo e Fausto entram e sentam)

FAUSTO – Olha, mas a comida é boa mesmo.

EDUARDO – Aprendi a cozinhar com a minha mãe, modéstia a parte eu sou muito bom nisso.

FAUSTO – Devia lançar um livro de culinária.

EDUARDO (Rindo) – Quem sabe um dia?

(Os dois se levantam)

FAUSTO – Um dia..Como você acha que será o mundo no ano 2000?

EDUARDO – Nossa..2000? Trinta e um anos ainda, muita coisa para acontecer.

FAUSTO – Você é escritor, use sua imaginação.

EDUARDO – Bem..Acho que irão existir carros voadores, iremos viajar para outros mundos, dizem que o homem vai na Lua esse ano, quero ver isso.

FAUSTO – Clair de Lune..

EDUARDO – Cura de doenças, as pessoas vivendo até 150 anos..Não sei, tantas coisas e você?

FAUSTO – Eu espero um mundo com mais paz, respeito, tolerância, menos ódio. Que cada um respeite o pensamento alheio, a opção alheia. Menos fome, miséria, violência..Acho que no ano 2000 será bem melhor que hoje. Sem guerras e mais amor.

EDUARDO – Que assim seja!!

FAUSTO – E em um pais com democracia. Onde as pessoas não morram, sumam ou tenham que se esconder por ter opinião.

EDUARDO No século XXI o diferente com certeza será respeitado.... As pessoas do futuro serão melhores.

FAUSTO – Vamos celebrar o futuro!!

(Pega vinho, serve duas taças e entrega uma a Eduardo)

FAUSTO – Como se vê no ano 2000?

EDUARDO – Escritor famoso, reconhecido, podendo viver do que escrevo. Queria ser feliz.

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FAUSTO – Não é feliz?

EDUARDO – Geralmente não, mas quando estou aqui sim.

FAUSTO – Não acredito em felicidade e sim momentos felizes. O ser humano é feito de derrotas e vitórias, mais derrotas que vitórias então temos que celebrar todos os momentos bons que temos, apreciar como um bom vinho.

EDUARDO – Mas viver é bom.

FAUSTO – Viver é maravilhoso, viver é melhor do que sonhar.

EDUARDO (Rindo) – Isso da música..E você? Como se vê no ano 2000?

FAUSTO (Rindo) – Morto.

EDUARDO – Morto? Quanto otimismo.

FAUSTO – Terei 91 anos. Maior probabilidade é que esteja morto. Mas morrer não é a pior opção.

EDUARDO – Qual é a pior?

FAUSTO – Esquecer.

EDUARDO – Tenho medo de esquecer minha mãe. Eu tenho dificuldades de lembrar sua voz, a imagem dela começa a ficar desbotada na minha mente, me apavora isso.

FAUSTO – Sua mãe sempre estará com você nas suas escritas, poesia, sensibilidade..

EDUARDO – Eu fiz uma poesia, trouxe para você ver.

FAUSTO – Me mostra.

(Tenso Eduardo pega uma folha e declama)

EDUARDO (Lendo) -

Adeus amigos, tenho que partir

A morte me chamou para dançar

E não posso recusar seu convite

Muito dancei nessa vida

Muitas bocas beijei

Homens e mulheres amei

Mas adeus amigos

A morte me chamou para dançar

Morrer não é ruim

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Pior é perder a vida

E a vida é tão boa de ser vivida

Como o vento fresco que vem da praia

O toque certo da pessoa certa

O beijo molhado num dia de chuva

Adeus amigos

A morte me chamou para dançar

Não chorem por mim

Celebrem a vida

Festejem a amizade

O amor que enfurecido

Sai de todos os nossos poros

Saber morrer é um charme

Saber viver é um dom

E eu aproveitei o máximo

E posso dizer que tenho o dever cumprido

Adeus amigos, tenho que partir

A morte me chamou para dançar

E eu nunca soube dizer não.

É isso..Minha poesia.

FAUSTO – Você pensa muito na morte, não é?

EDUARDO – É minha companheira mais fiel.

FAUSTO – Perder a vida não é necessariamente morrer, muitas vezes estamos mortos em vida.

EDUARDO – Por isso prefiro morrer que perder a vida.

FAUSTO – Sua poesia é linda, linda demais.

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EDUARDO – Primeira vez que leio poesia minha para alguém.

FAUSTO – Você é um talento nato. Vai alcançar tudo o que sonha bem antes do ano.2000.

EDUARDO – Ano 2000...Eu Não sei nem o que vai me acontecer daqui cinco minutos.

FAUSTO – E isso te aflige?

EDUARDO – Não, me emociona.

FAUSTO – Vida com emoção é poesia.

EDUARDO – Eu não sei o que fazer com esse sentimento que tenho dentro de mim desde a primeira vez que entrei nessa casa..Você me apresentou um novo mundo, me deu vida. Eu era um sujeito opaco, vazio e você me deu força, energia.

FAUSTO – Você sempre teve isso dentro de você.

EDUARDO –Você me fez ver isso. Ver quem eu sou, quem eu quero ser. Você consegue tirar o melhor de mim.

FAUSTO – Nem sei o que dizer.

EDUARDO – Não precisa dizer nada. Estou nervoso, estou feliz, com um sentimento forte no peito que não consigo mais segurar dentro dele. Um sentimento que me queima por dentro, rasga minhas entranhas, grita dentro da minha alma.

FAUSTO – O que você acha que acontecerá em nossa história?

EDUARDO – Ué? Não decidimos que o próximo passo é a prisão da viúva?

FAUSTO –Digo a nossa história . Eu e você.

EDUARDO – Vamos escrever.

(Começa a tocar Clair de Lune)

FAUSTO – Dança comigo?

(Fausto e Eduardo se abraçam e começam a dançar. Neco entra e vê)

NECO – Caramba!!

(Neco sai correndo para a coxia. Eles continuam dançando e Helena entra)

HELENA – Atrapalho em algo?

FAUSTO – Oi Helena, esse é Eduardo, meu auxiliar no livro. Eduardo essa é Helena, minha esposa.

EDUARDO – Prazer dona Helena.

HELENA – Me chame só de Helena.

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EDUARDO – Está bem, Helena, bem, é melhor que eu vá. Foi realmente um prazer.

(Eduardo sai de cena)

HELENA – Pode me explicar essa cena que vi agora?

FAUSTO –Bebemos um pouco e estávamos dançando, apenas isso.

HELENA – Apenas isso? Por favor Fausto, duvide de tudo em relação a mim, nunca de minha inteligência.

FAUSTO – Nunca duvidaria dela.

HELENA – Está acontecendo de novo?

FAUSTO –Meio tarde para cena de ciúmes, você não acha?

HELENA – Não estou com ciúmes e você sabe muito bem do que estou falando.

FAUSTO – Esse menino é especial para mim.

HELENA – Como o outro.

FAUSTO – Não sei se é igual, só sei que é muito forte, como poucas vezes senti na vida.

HELENA – Ele é uma criança Fausto.

FAUSTO – Não é criança, já tem dezesseis anos.

HELENA – Dezesseis anos Fausto, é um menino, um menino de uma cidade pequena. Você é um homem vivido, experiente, está iludindo uma criança, seduzindo.

FAUSTO – Não é sedução, não estou iludindo ninguém, aconteceu eu não queria isso, tanto que te liguei.

HELENA – Me ligou dizendo que precisava de mim e depois desligou dizendo que era besteira.

FAUSTO – Eu estava em conflito.

HELENA – Estava? Não está mais.

FAUSTO – Não, não estou mais.

HELENA –Preciso nem dizer que essa relação é impossível, não é? Imagine o escândalo que seria? A imprensa?

FAUSTO – Não estou preocupado com a imprensa, eu quero viver isso, eu preciso viver isso.

HELENA – Viver o que? Uma história de amor com um menino que poderia ser seu filho? Neto? Com um menor de idade? Isso é corrupção de menores, da cadeia, ainda mais para um homem que já está na situação que você está.

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FAUSTO – Não me importo, pago o preço que for.

HELENA – E o dele? Está disposto a pagar o preço dele também?

FAUSTO – Como assim?

HELENA – Vai arruinar a vida desse garoto. Ele ficará marcado, será apontado na rua, ficará no centro do escândalo, no olho do furacão. Você é um escritor famoso. Respingará na sua imagem, terá alguns problemas na justiça, mas com o tempo paga e com o tempo a história se esvai. Lança um livro novo e fica tudo bem. E ele? Terá algum futuro? Será para sempre apontado como o garoto de Fausto Braga. Estará arruinado.

FAUSTO – Talvez esteja certa.

HELENA – Esse garoto tem algum sonho? Já dividiu esse sonho com você? Se tiver esqueça, será soterrado por esse escândalo.

FAUSTO (Se sentindo confuso) – Eu preciso pensar..

HELENA – Fora que não aceitarei o desquite.

FAUSTO – Mas por que Helena? Nós somos infelizes, temos casos, você tem amantes e fixos!!

HELENA – Porque quando me dói eu sei que está por perto e você é o único que conhece a minha dor por ter uma igual.

FAUSTO – No nosso casamento o padre devia ter dito “Até que a morte lhes uma”.

HELENA – Ele sabe do Juca?

FAUSTO – Sabe sim.

HELENA – Sabe que você o matou?

FAUSTO – Eu não matei o Juca!!

HELENA – Sabe que o Juca pegou você com um amigo dele de escola na cama, desesperado pegou o carro fugindo de você e bateu em um poste?

FAUSTO (Chorando) – Eu não matei o Juca.

HELENA – Ele não sabe desse detalhe, não é Fausto?

FAUSTO (Se ajoelha chorando) – Eu não matei o Juca.

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HELENA (Se aproximando e olhando o marido) – Eu carrego uma dor insuportável dentro de mim, a dor da mãe que perdeu um filho. Seu único filho amado e querido. Eu não sei como consigo levantar todos os dias sabendo que não vou ouvir o bom dia do meu Juca, ver seu sorriso, entrar na faculdade, casar, ter filhos, seus primeiros cabelos brancos ( emocionada chora) Que Deus é esse que permite uma mãe passar por uma dor dessas? Que leva seu filho e a deixa viva com essa dor? Que Deus misericordioso é esse que muda a ordem natural das coisas e obriga uma mãe a enterrar seu filho?

FAUSTO (Ainda ajoelhado) – Eu não matei o Juca.

HELENA – Você tinha me prometido que isso não aconteceria mais ( chora e grita) Você me deu sua palavra!!

FAUSTO – Me perdoa.

HELENA – A única coisa que me une a você ainda é saber que além de você como pai também carregar essa dor ainda é corroído pelo remorso, a culpa.

FAUSTO (Chorando de joelhos) – Não tem um dia que eu não sinta essa culpa, essa culpa que me mata um pouco todos os dias.

HELENA – Levante Fausto. Ficar de joelhos não é a posição adequada para um dos maiores escritores do Brasil.

(Ele se levanta)

HELENA – Essa dor é o nosso amor. Se eu não tiver mais essa dor compartilhada com você, se eu tiver que senti-la sozinha eu morro.

(Limpa as lágrimas de Fausto e suas próprias)

HELENA – Eu vim aqui dizer que consegui com amigos uma rota para sair do Brasil e ir com segurança para o Chile (lhe entrega um papel) em dois dias um avião de pequeno porte sairá desse local. Eu estarei lá, espero que você também.

FAUSTO (lendo) – Eu preciso pensar..

HELENA – Estou indo embora. Pense bem e pense principalmente em uma coisa. Pessoas como nós não tem o direito de ser felizes (dá um beijo na boca de Fausto) Te espero lá.

(Helena sai de cena. Fausto sai pelo outro lado. Neco e Dirceu entram. Cada um por um lado)

DIRCEU – Onde você esteve? Te procurei por toda parte.

NECO (Atônito) – Eu vi, eu vi.

DIRCEU – Viu o que? Do que está falando?

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NECO – Os dois, Edu e o professor.

DIRCEU – Mas viu fazendo o que?

NECO – Eles estavam dançando.

DIRCEU – Dançando?

NECO – Coladinhos, como dois namorados.

DIRCEU – Caramba..Mas aonde você estava? Espere!! Você veio da direção da casa do Edu.

NECO – Estava com o pai dele, contei tudo.

DIRCEU (Gritando e pegando Neco pelo colarinho) – Você está maluco?

NECO – Me solta porra!!

DIRCEU – Como você teve coragem de fazer isso? Ele é nosso amigo porra!!

NECO – Ele é uma bicha porra!!

DIRCEU – E você um canalha!!

NECO – Olha como você fala!! Te dou uma surra!!

DIRCEU – O Edu sempre foi nosso amigo, um cara bacana. Como você pôde fazer isso? Eles passaram por uma tragédia!!

NECO –Isso não é desculpa pra ser bicha!!

DIRCEU – E é para você ser um mau caráter?

NECO – Já mandei você parar..

DIRCEU – E se ele for bicha? O que você tem a ver com isso? A vida é dele!! Você não paga as contas dele!!

NECO – Seu Edmundo não vai deixar isso barato, pode apostar. O Edu está frito.

DIRCEU – E você está vibrando com isso.

NECO – Sou pela justiça.

DIRCEU – É pela justiça? Dedura então seu irmão que roubou dinheiro da reforma da igreja.

NECO – Olha como você fala do meu irmão!! Ninguém tem provas!!

DIRCEU – Porque seu pai foi lá e repôs o dinheiro, fez acordo com o padre. Todo mundo sabe que seu irmão é viciado em drogas, por isso rouba e sua mãe teve que parar em hospital psiquiátrico com desculpa que foi visitar uma tia.

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NECO – Eu não admito que você fale da minha família seu verme!!

DIRCEU – Mas você pode falar dos outros não é? Seu hipócrita dos infernos!!

NECO – Eu vou te matar!!

(Neco parte pra cima de Dirceu que desvia e lhe dá um soco no rosto)

NECO (Caído no chão) – Caramba!! Isso doeu!!

DIRCEU – Tive dois grandes amigos na vida, você e o Edu. De um tenho vergonha. De você.

(Dirceu sai de cena)

NECO (Se levantando com a mão no queixo) – Caramba..doeu..Espere Dirceu!! Vamos conversar!! Eu te desculpo!!

(Neco sai atrás. Do outro lado entra Edmundo que senta em uma cadeira de frente a mesa. Pelo outro lado entra Eduardo)

EDUARDO – Ainda acordado pai? Desculpe, me atrasei

EDMUNDO (Sem olhar o filho) – Sim, perdi o sono.

EDUARDO – E por que pai?

EDMUNDO (Olha Eduardo) – Difícil conseguir dormir tendo um filho pederasta.

EDUARDO- Do que está falando pai?

EDMUNDO (Levantando e tirando o cinto) – Eu estou falando de você e daquele escritor!! Eu não criei filho pra ser bicha!!

EDUARDO – Para pai!! Pra que esse cinto?

EDMUNDO – Porque você vai virar homem agora!!

(Edmundo parte para cima de Eduardo que cai no chão. Edmundo bate várias vezes em Eduardo que grita pedindo para parar)

EDMUNDO ( Cansado) – Agora você vai tomar jeito, vai virar homem.

(Eduardo se levanta com raiva)

EDUARDO – Desgraçado.

EDMUNDO – Como é que é?

EDUARDO – Desgraçado, filho da puta, bêbado de merda.

EDMUNDO – Como ousa?

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EDUARDO – Quer me fazer virar homem? Pra virar um homem como você? Prefiro ser bicha então, ser mulherzinha, ser a boneca de vários homens porque eu prefiro ser bicha que um homem como você porque você não é homem!!

EDMUNDO (Levantando o cinto em direção de Eduardo) – Eu vou te arrebentar!!

EDUARDO (Segurando a mão com o cinto) – Tenta!! Tenta me bater de novo seu porco!! Se você tentar de novo encostar em mim será a última coisa que Irá fazer na vida!!

EDMUNDO – Me desafiando moleque?

EDUARDO – Você é um velho bêbado, eu sou muito mais novo que você. Acredite, tenho muito mais energia que você, o suficiente pra te arrebentar.

EDMUNDO (Atônito) - Um filho ameaçando bater em seu pai, o mundo está perdido.

EDUARDO – Um pai que bebia, se enchia de amantes na rua e batia na esposa quando chegava em casa. Acha que eu e o Edilson não ouvíamos? Não ficávamos com raiva e queríamos defender a mamãe e ela pedia que não e que era assunto de adultos?

EDMUNDO – Eu amava sua mãe.

EDUARDO – Jeito estranho de mostrar amor. É esse o amor normal e permitido por Deus? O amor entre um homem e uma mulher? O amor hipócrita onde um homem é adorado por seus amigos na rua e trata mulher e filhos como lixo? Onde a mulher tem que inventar na rua que caiu da escada ou bateu com a porta no rosto?

EDMUNDO – Nós éramos felizes!!

EDUARDO – Felizes? Você via minha mãe chorando esperando você chegar em cada enquanto você ficava com vagabundas na rua? Eu via!! Vi muitas vezes e fingia não ver para que ela chorasse em paz..Paz..Minha mãe nunca teve paz na vida.

EDMUNDO –Homem que é homem tem mulheres na rua, se não fosse bicha iria entender isso.

EDUARDO – E quem disse que sou bicha?

EDMUNDO –Até onde sei o escritor é homem!!

EDUARDO – Eu não amo homens, não amo mulheres, eu amo o Fausto.

EDMUNDO (Botando as mãos nos ouvidos) – Eu não quero ouvir isso.

EDUARDO (Gritando, delirando) – Eu amo o Fausto!! Eu amo Fausto Braga e quero que todos saibam disso!!

EDMUNDO (Gritando com as mãos nos ouvidos) – Eu não quero ouvir isso!! Cale a boca!!

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EDUARDO (Gritando) – Eu quero ser dele!!

EDMUNDO – Cala a boca!!

EDUARDO – E sou mais homem que você.

EDMUNDO – Aberração, você é uma aberração.

EDUARDO – Puxei meu pai.

EDMUNDO – Nunca será normal homem com homem, isso nunca será aceito pela sociedade nem por Deus, aceite isso.

EDUARDO –Você não é a melhor pessoa para me dar conselhos. Curioso isso..Você bebia quando minha mãe era viva e diziam que era um boêmio feliz, um boa praça. Minha mãe morreu, você bebe e agora as pessoas te acham uma pessoa sofrida, tem pena do seu desamparo. A bebida sempre sendo muleta para sua falta de caráter.

EDMUNDO – Aberração, anomalia..

EDUARDO – E eu que sempre procurei ser um bom filho, que cuidei de você e suas bebedeiras sou aberração, anomalia.

EDMUNDO – Você não é mais meu filho.

EDUARDO –Nunca fui..Vou sair.

EDMUNDO – Vai atrás do escritor bicha?

EDUARDO – Vou para algum lugar do planeta em que você não esteja.

(Eduardo sai de cena)

EDMUNDO – Isso não vai ficar assim.

(Edmundo sai de cena. Fausto entra pelo outro lado e a campainha toca. Ele vai até perto da coxia e Edmundo entra)

FAUSTO – Pois não?

EDMUNDO – Meu nome é Edmundo Gusmão. Sou pai do Eduardo.

FAUSTO – Ele não está.

EDMUNDO – Não vim falar com ele, vim falar com o senhor.

FAUSTO – Entre, por favor.

(Edmundo entra)

FAUSTO – Aceita uma bebida?

EDMUNDO – Eu quero que se afaste imediatamente de meu filho.

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FAUSTO – Me desculpe, mas isso é ele que tem que decidir.

EDMUNDO – Ele é menor de idade, eu decido por ele, isso é corrupção de menores.

FAUSTO – Olhe só, se veio no intuito de discutir vou preferir que se retire.

(Edmundo saca uma pistola)

EDMUNDO – Eu sou tenente do exército brasileiro, sei atirar muito bem, preciso de apenas uma bala para acertar no meio de seus olhos.

FAUSTO – Me ameaçando?

EDMUNDO – Faço o que for preciso para preservar meu filho, minha família.

FAUSTO – Até onde sei o senhor é uma ameaça maior a sua família que eu.

EDMUNDO – Acha que não sei quem você é? Que não pesquisei sobre você? Fausto Braga, um dos maiores escritores do seu tempo, inimigo da pátria.

FAUSTO – Não sabe o que está falando, está bêbado.

EDMUNDO – Teve livro censurado porque fazia metáforas contra o regime, acusado de subversão foi preso, dizem que apanhou um pouco, mas natural já que o país age como um pai para educar seus filhos. Foi solto, divulgou um manifesto contra o regime e veio se esconder aqui porque está sendo perseguido.

FAUSTO – Já vi de onde seu filho tira inspiração para as histórias do detetive.

EDMUNDO – Veio com a desculpa de escrever um livro, mas não veio só para isso, veio se esconder para não ser preso ou morrer. Deve estar planejando algo contra o Brasil ou uma fuga.

FAUSTO – E você vai me entregar para o exército.

EDMUNDO – Se eu te levar daqui para um quartel ou mesmo te matar serei condecorado, finalmente terei minha promoção e meu reconhecimento.

FAUSTO – Está esperando o que para isso?

EDMUNDO – Não quero fazer nada disso, prefiro que se afaste de meu filho.

FAUSTO – Se o preço a pagar for prisão ou morte eu aceito, eu amo o Eduardo.

EDMUNDO – Não fale assim.

FAUSTO – Eu amo o Eduardo.

EDMUNDO – Já pedi, não fale assim.

FAUSTO (Gritando) – Eu amo o Eduardo!!

(Edmundo se ajoelha aos pés de Fausto)

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EDMUNDO (Implorando, abraçando seus pés) – Por favor, não faça isso com o meu menino, eu só tenho a ele no mundo.

FAUSTO (Assustado) – Pare com isso!! Está me assustando!!

EDMUN DO – É só um menino, eu te imploro.

FAUSTO – Levante, por favor.

EDMUNDO (Se levantando) – Ele é só uma criança, é homem que você quer? Eu fico no lugar dele.

FAUSTO – O que?

(Edmundo dá um beijo na boca de Fausto que lhe empurra)

FAUSTO (Nervoso, gritando) – Enlouqueceu? Saia da minha casa imediatamente!!

EDMUNDO – Se afaste dele ou te mato.

(Edmundo sai de cena. Fausto anda pelo cenário atordoado, senta, põe a cabeça entre os joelhos e começa a tocar Clair de Lune. Eduardo entra e passa a mão em sua cabeça. Fausto olha e se levanta)

FAUSTO (Chorando) – Me desculpa..

(Eduardo limpa suas lágrimas e lhe beija, beija com paixão, com vontade. Os dois homens se beijam, se agarram, se abraçam e deitam na cama ou colchão, se beijam e abraçam mais um pouco deitados e a luz se apaga. Acende com Eduardo dormindo. Ele acorda aos poucos, percebe a ausência de Fausto e uma carta sobre o colchão, abre e lê)

VOZ DE FAUSTO (Enquanto Eduardo, só de cuecas, senta em uma cadeira e lê) – 19 de março de 1969. Oi Edu, meu menino, me desculpe a fraqueza, a covardia de ir embora sem me despedir de você, não teria condições. Quando ler essa carta estarei no caminho para um avião que me levará a Santiago do Chile. Acredite, doeria demais me despedir de você, eu te amo como nunca amei a ninguém!! Mas ir embora não é um ato de covardia, é para te preservar. Você é um escritor brilhante..

(Eduardo do ano 2000 entra com um livro na mão e para em pé ao lado do jovem Eduardo que continua lendo sentado, para e olha o jovem)

VOZ DE FAUSTO – Um escritor brilhante com uma vida brilhante pela frente. Não desista dos seus sonhos, não desista de sua busca pela felicidade. Saia dessa cidade, ela é pequena demais para você. Você pertence aos sonhos, a inspiração, você pertence ao mundo. Pensarei para sempre em você e ainda te aplaudirei muito meu menino, meu amor..Enquanto existir Clair de Lune nosso amor existirá, quando o homem pisar na Lua lembre de mim que eu estarei dentro de você..Com amor, Fausto Braga..

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Page 52: rl.art.br · Web viewDIRCEU – Revista de mulher pelada. EDUARDO – Onde você conseguiu isso? NECO (Tomando a revista da mão de Neco) – Não interessa onde arrumou, temos que

(O jovem Eduardo se levanta e sai de cena. O Eduardo do ano 2000 senta, abre o livro e lê. A voz de Fausto entra enquanto Eduardo lê)

VOZ DE FAUSTO – 21 de junho de 1970. Mando-te com muito carinho esse livro. Tomei a liberdade e usando tudo o que conversamos e planejamos concluí nosso livro. Ficou lindo e você realmente tinha razão, o assassino ser o filho é genial. Fiz apenas um exemplar e esse é seu. Acredito que essa história seja nossa, apenas nossa, ela é a presença física de nosso amor e tudo que vivemos. Não fique triste comigo por essa história não ser publicada. Acredite, você ainda fará muitas e com elas alcançará todos os seus sonhos. Quanto a esse livro..Que fique guardado entre nós!!

EDUARDO (Emocionado) – Com amor..Fausto Braga.

LETÍCIA (Da coxia) – Vamos amor!! Estou pronta!!

EDUARDO (Gritando e limpando as lágrimas) – Estou indo meu amor!!

(Ele sai pelo outro lado com o livro e volta sem ele)

EDUARDO (Olhando para o céu) – Que fique guardado entre nós..

(Manda um beijo para o céu e sai de cena)

* Da idéia original de Hertz Felix

*Dedicado a Hertz Félix

FIM

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