RMP Oncologia-medos Angustias e Habilidades Comunicacionais

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ARTIGO ARTICLE 1457 1 Universidade Estadual do Ceará, Centro de Ciências da Saúde. Av. Paranjana 1.700, Campus do Itaperi. 60740-000 Fortaleza CE. [email protected] 2 Grupo Humanidades, Saberes e Práticas em Saúde, Universidade Estadual do Ceará. 3 Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico, Relação médico-paciente em oncologia: medos, angústias e habilidades comunicacionais de médicos na cidade de Fortaleza (CE) Relation doctor-patient in oncology: fears, anguishes and communication abilities among doctors in Fortaleza, Ceará State, Brazil Resumo A relação médico-paciente, em oncolo- gia, adquire uma particular importância devido à gravidade da doença e ao estigma que muitas vezes acompanha a experiência do paciente. Esta pes- quisa teve como objetivo analisar percepções e di- ficuldades que os médicos vivenciam frente ao pa- ciente oncológico. Trata-se de um estudo qualita- tivo, baseado principalmente em entrevistas aber- tas e aprofundadas, realizado com vinte médicos que trabalham no Instituto do Câncer do Ceará. Baseando-se na convivência da Dra. Sheila com seus pacientes, Cássio e Elisa, personagens fictícios de uma crônica entremeada na discussão do arti- go, ilustram-se os principais registros encontra- dos. Procurou-se abordar quatro temas centrais: a construção do vínculo, o desempenho de habilida- des comunicacionais, a abordagem terapêutica e a interação com a família. O sofrimento e as impli- cações emocionais de pacientes e familiares, as di- ferenças comunicacionais existentes entre os mé- dicos entrevistados, principalmente em referência à transmissão do diagnóstico e à terapêutica, tor- nam-se fatores importantes que influenciam a re- lação e o estabelecimento ou não do vínculo tera- pêutico. Diante disso, vê-se ser necessário estudos e debates acerca do tema, visando a uma incorpo- ração desta temática na formação médica. Palavras-chave Relação médico-paciente, On- cologia, Vínculo terapêutico, Habilidades comu- nicacionais, Família, Educação médica Abstract In oncology the doctor-patient relation- ship has a particular importance due to the grav- ity of the illness and to the stigma that is followed many times by the experience of the patient. This research was designed to analyze perceptions and difficulties that doctors face when they are dealing with oncology patient. It is a qualitative study, based mainly on open and in-depth interviews, involving 20 doctors from the Cancer Institute of Ceará. From the relationship of Dr. Sheila with her patients, Cássio and Elisa, fictitious personag- es of a chronicle larded in the quarrel of the arti- cle, the main facts are illustrated. We tried to ap- proach four main subjects: the construction of the bond, the communication abilities performance, the therapeutic approach and the family interac- tion. The suffering and the emotional implica- tions of patients and familiars, the differences in communication between the interviewed doctors, mainly in reference to the transmission of the di- agnosis and the therapy, become important fac- tors that influence the relation and the establish- ment or not of the therapeutic bond. Because of this, it seems to be necessary studies and debates concerning this subject, aiming at an incorpora- tion of this thematic in the medical training. Key words Doctor-patient relationship, Oncolo- gy, Therapeutic bond, Communication abilities, Family, Medical education Carlos Maximiliano Gaspar Carvalho Heil Silva 1 Camila Herculano Soares Rodrigues 2 Jussiê Correia Lima 2 Natália Braga Hortêncio Jucá 3 Kathiane Lustosa Augusto 1 Carolina Arcanjo Lino 1 Amanda Gisele Nobre Carvalho 1 Filipe Castro de Andrade 1 Josiane Vasconcelos Rodrigues 1 Andrea Caprara 1

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1 Universidade Estadual doCeará, Centro de Ciênciasda Saúde. Av. Paranjana1.700, Campus do Itaperi.60740-000 Fortaleza [email protected] Grupo Humanidades,Saberes e Práticas em Saúde,Universidade Estadual doCeará.3 Fundação Cearense deApoio ao DesenvolvimentoCientífico e Tecnológico,

Relação médico-paciente em oncologia:medos, angústias e habilidades comunicacionaisde médicos na cidade de Fortaleza (CE)

Relation doctor-patient in oncology:fears, anguishes and communication abilitiesamong doctors in Fortaleza, Ceará State, Brazil

Resumo A relação médico-paciente, em oncolo-gia, adquire uma particular importância devido àgravidade da doença e ao estigma que muitas vezesacompanha a experiência do paciente. Esta pes-quisa teve como objetivo analisar percepções e di-ficuldades que os médicos vivenciam frente ao pa-ciente oncológico. Trata-se de um estudo qualita-tivo, baseado principalmente em entrevistas aber-tas e aprofundadas, realizado com vinte médicosque trabalham no Instituto do Câncer do Ceará.Baseando-se na convivência da Dra. Sheila comseus pacientes, Cássio e Elisa, personagens fictíciosde uma crônica entremeada na discussão do arti-go, ilustram-se os principais registros encontra-dos. Procurou-se abordar quatro temas centrais: aconstrução do vínculo, o desempenho de habilida-des comunicacionais, a abordagem terapêutica e ainteração com a família. O sofrimento e as impli-cações emocionais de pacientes e familiares, as di-ferenças comunicacionais existentes entre os mé-dicos entrevistados, principalmente em referênciaà transmissão do diagnóstico e à terapêutica, tor-nam-se fatores importantes que influenciam a re-lação e o estabelecimento ou não do vínculo tera-pêutico. Diante disso, vê-se ser necessário estudose debates acerca do tema, visando a uma incorpo-ração desta temática na formação médica.Palavras-chave Relação médico-paciente, On-cologia, Vínculo terapêutico, Habilidades comu-nicacionais, Família, Educação médica

Abstract In oncology the doctor-patient relation-ship has a particular importance due to the grav-ity of the illness and to the stigma that is followedmany times by the experience of the patient. Thisresearch was designed to analyze perceptions anddifficulties that doctors face when they are dealingwith oncology patient. It is a qualitative study,based mainly on open and in-depth interviews,involving 20 doctors from the Cancer Institute ofCeará. From the relationship of Dr. Sheila withher patients, Cássio and Elisa, fictitious personag-es of a chronicle larded in the quarrel of the arti-cle, the main facts are illustrated. We tried to ap-proach four main subjects: the construction of thebond, the communication abilities performance,the therapeutic approach and the family interac-tion. The suffering and the emotional implica-tions of patients and familiars, the differences incommunication between the interviewed doctors,mainly in reference to the transmission of the di-agnosis and the therapy, become important fac-tors that influence the relation and the establish-ment or not of the therapeutic bond. Because ofthis, it seems to be necessary studies and debatesconcerning this subject, aiming at an incorpora-tion of this thematic in the medical training.Key words Doctor-patient relationship, Oncolo-gy, Therapeutic bond, Communication abilities,Family, Medical education

Carlos Maximiliano Gaspar Carvalho Heil Silva 1

Camila Herculano Soares Rodrigues 2

Jussiê Correia Lima 2

Natália Braga Hortêncio Jucá 3

Kathiane Lustosa Augusto 1

Carolina Arcanjo Lino 1

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Introdução

A relação médico-paciente é uma temática que,atualmente, encontra um renovado interesse nacomunidade científica, na formação e na práticamédica. Trata-se de uma aprendizagem indispen-sável para uma intervenção médica eficaz, queperceba o processo do adoecer sob a ótica da-quele paciente que se insere em uma experiênciade fragilidade e de ameaça ao seu estado de sersaudável e ativo.

Diversos trabalhos mostram que a maioriadas queixas dos pacientes faz referência a dificul-dades comunicacionais com o médico e não asua competência clínica, apontando que um bomrelacionamento aumenta a satisfação do pacien-te e a qualidade do serviço de saúde, além de in-fluenciar positivamente o estado de saúde dopaciente1,2. . . . . Não é suficiente, portanto, buscarnovas tecnologias e boa formação dos profissio-nais médicos para atingir níveis de excelência emsaúde; é necessário também o respeito dos valo-res subjetivos do paciente, a promoção de suaautonomia e a tutela das diversidades culturais3.

Sob a perspectiva da oncologia, nota-se queesta relação carrega peculiaridades que lhe sãopróprias. Por se tratar de uma doença percebidacomo traumatizante, perante o imaginário pes-soal e coletivo, sua abordagem torna-se especial-mente difícil. Angústias, medos e sofrimentosapresentam-se na vida dos pacientes e de suasfamílias, necessitando estabelecer um vínculo como profissional como coadjuvante terapêutico.

Observa-se, então, durante a consulta onco-lógica, a presença de grande ansiedade por partedo paciente e do médico. Junto ao diagnóstico decâncer, leva-se consigo vários estigmas e, comeles, grande impacto na dimensão emocional dopaciente4,5. Além disso, a família do paciente tam-bém é alvo e origem de estresses emocionais6. Opróprio tratamento é gerador de morbidade e deuma tensão adicional7-9. Esses aspectos devemser considerados pelo médico, que, por sua vez,também experimenta sentimentos provocadospela doença do paciente.

No intuito de minimizar essas dificuldades,em 1992, Buckman publicou o protocolo SPI-KES, que é até hoje uma das referências metodo-lógicas mais adotadas a nível internacional nacomunicação de más notícias10. Em 2000, foi pu-blicado um artigo que direciona e adapta o pro-tocolo SPIKES para o contexto da oncologia11.

A proposta de Buckman identifica seis pas-sos de comunicação de uma má notícia. O pri-meiro passo, setting up, seria a preparação da

entrevista, tanto a escolha do lugar ideal, como aforma de se apresentar ao paciente. O segundo,perception, consiste em avaliar o que o pacientejá conhece sobre sua doença e a percepção quetem dela. O terceiro, invitation, seria a fase emque se avalia até que ponto o paciente deseja sa-ber de sua condição, para que o médico não ul-trapasse o limite do paciente e transmita detalhesque este não desejava ouvir. O quarto passo, kno-wledge, seria o momento em que o médico trans-mite, de fato, a má notícia. É indicado que não seuse palavras técnicas e sim termos de fácil com-preensão para o paciente e que se transmita averdade, evitando grosserias. O quinto, emoti-ons, é a fase em que se trabalham as reações emo-cionais do paciente de forma empática. Por fim,o sexto passo, strategy and summary, seria omomento de apresentar e discutir o plano tera-pêutico e o prognóstico, alimentando expectati-vas reais e considerando a autonomia do pacien-te na escolha do tratamento.

Esse protocolo, por conseguinte, torna-sefundamental, sobretudo durante o acompanha-mento de pacientes oncológicos, no qual o médi-co se vê frequentemente em uma situação em queé preciso transmitir uma má notícia, seja um di-agnóstico, um prognóstico, uma falha terapêu-tica ou um efeito adverso. Na maioria das vezes,o médico não foi devidamente treinado para ge-renciar essas situações, levando em conta aspec-tos psicossociais do paciente, e precisa aprendersozinho a desenvolver habilidades relacionais ecomunicacionais não ensinadas na formaçãoacadêmica. E, mais que isso, a aprender a lidarcom a terminalidade do próximo, o que resgataa sua própria natureza mortal.

O exercício da medicina é, portanto, particu-larmente na oncologia, inevitavelmente permea-do por angústias e dilemas. Entretanto, se essaproblemática fosse satisfatoriamente abordadadentro dos currículos médicos, os danos, tanto àsaúde mental do profissional quanto à relaçãomédico-paciente, poderiam ser sensivelmente re-duzidos. A subjetividade que a prática médicaimpõe merece ser curricularmente contempladacom a mesma ênfase que a objetividade tem me-recido nas escolas médicas12.

Este trabalho, desse modo, visa analisar aspercepções e dificuldades da relação médico-pa-ciente, na visão dos médicos, frente ao pacienteoncológico, destacando os aspectos relacionadosà transmissão de má notícia, desempenho do tra-tamento, evolução da doença e a relação com osfamiliares.

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Metodologia

A presente pesquisa consiste em um estudo qua-litativo baseado em entrevistas abertas com mé-dicos que trabalham com pacientes com câncerno âmbito hospitalar da cidade de Fortaleza.Numa seleção aleatória, entrevistaram-se vintemédicos de ambos os sexos com tempo de servi-ço variável, de quatro a vinte e oito anos de for-mados, do Hospital do Câncer do Ceará (ICC),instituição filantrópica com assistência pelo SUS,referência no estado. Do corpo clínico total doICC, selecionou-se um total de 76 médicos quetinham um contato direto com paciente, do qualo grupo estudado representaria 25% aproxima-damente.

Dessa forma, os dados foram coletados pormeio de uma guia de perguntas abertas que bus-ca propiciar respostas espontâneas e não mo-nossilábicas. O objetivo, com isso, era obter, pormeio de análise, a identificação e interpretaçãodas percepções dos sujeitos estudados. As per-guntas procuravam abordar diversos temas, osquais seriam as principais dificuldades na abor-dagem do paciente oncológico: como procederquando é necessário dar uma má notícia; quaisfatores na relação médico-paciente podem influ-enciar o prognóstico de pacientes oncológicos;como indicar o melhor tratamento para cadapaciente e como a família pode influenciar a rela-ção médico-paciente na oncologia.

Os dados obtidos na entrevista foram anali-sados qualitativamente com base nos objetivos eno referencial teórico referente ao tema propos-to. Através da análise dos discursos das pergun-tas que abordavam as características na relaçãomédico-paciente oncológico, chegou-se à divisãode categorias analíticas que forneceram a base dainterpretação. Foram identificadas quatro cate-gorias principais, as quais dissertam sobre as di-ficuldades na construção do vínculo, no desem-penho de habilidades comunicacionais, na abor-dagem terapêutica e na interação com a família.Com intuito de ilustrar essas categorias, basean-do-se no material coletado durante as entrevis-tas, desenvolveu-se uma história fictícia de umamédica, doutora Sheila, que vive as dificuldadesno relacionamento com pacientes oncológicos,Cássio e Elisa.

Por fim, ressalta-se que foram cumpridas asdeterminações da Resolução no 196/96 (Conse-lho Nacional de Saúde – CNS) sobre pesquisacom seres humanos e que a coleta de dados ini-ciou-se após aprovação do projeto, elaboradode acordo com as diretrizes do CNS, pelo Comi-

tê de Ética em Pesquisa (CEP) da instituição emque o estudo foi realizado, com a participaçãodos médicos ocorrendo de forma anônima, vo-luntária e com consentimento informado. Nessesentido, os nomes utilizados para identificaçãodos entrevistados são fictícios.

A construção do vínculoe a definição diagnóstica

Dra. Sheila recebe em seu ambulatório Cássio,41 anos, casado, chefe de família, quatro filhos,humilde, com fáscies de abatimento demonstran-do uma vida não tão fácil assim. Cássio senta-sena cadeira de frente à médica e inicia seu relato.Informa que há algum tempo vem sentindo queaquela vitalidade que portava anteriormente nãoé mesma, não estando disposto nem para se ali-mentar, perdendo com isso alguns quilos, daordem de dez nesse último semestre. Além disso,reclama de uma leve dor no pé do estômago aqual incomoda bastante. Relata que há dois me-ses peregrina por serviços médicos sem sucesso,apenas com receitas de anti-helmínticos e antiá-cidos. Traz um envelope com vários exames. Den-tre hemogramas, exames bioquímicos e parasi-tológico de fezes, Dra. Sheila destaca uma endos-copia, bem catedrática em sua descrição: muco-sa gástrica evidenciando úlcera infiltrante commargens rasas e pouco definidas; acompanhadaem anexo de uma biópsia, que o paciente notifi-cava ter recebido ontem, sucinta em sua conclu-são: adenocarcinoma gástrico invasivo.

Nesse momento, suspira. Por mais corriquei-ro que seja em sua vida profissional, ela não seacostuma. Não é fácil dizer para alguém que eleestá com câncer, doença representada pelo ima-ginário geral como algo negativo, invasivo e li-mitante. E agora? Deve-se contar ao paciente oque tem? Falar não vai ser prejudicial? Se ele sou-ber, não vai piorar? São perguntas capazes inibir,adiar ou cancelar a atuação do profissional, for-muladas diante desses contextos sempre commuita apreensão e receio pela maneira como opaciente vai reagir.

Na pesquisa, todos os médicos entrevistadosreconhecem o paciente oncológico como sendoespecial, fragilizado, inseguro, requerendo parao seu cuidado, além de um saber técnico-científi-co, uma sensibilidade dirigida ao humano alienvolvido, apontando, em sua totalidade, comouma grande dificuldade na construção do víncu-lo a própria estigmatização da doença: “A princi-pal dificuldade é o preconceito em relação ao cân-

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cer. Medo de morrer, medo do tratamento que re-fletem no preconceito e não numa experiência vi-vida”. (Dra. Velma, 35 anos).

“Existe um estigma, mas que nem sempre é ver-dade, que é uma sentença de morte, praticamente”.(Dr. Thiago, 32 anos).

Somando a isso, condizente com as angústi-as de Dra. Sheila, a maioria dos médicos concor-da que tais peculiaridades da doença neoplásicatrazem elevados níveis de ansiedade e medo decomunicar a notícia, sentimentos que advêm es-pecialmente da falta de preparo técnico para li-dar com a gama de emoções que o paciente aflo-ra no momento do diagnóstico: “O paciente on-cológico é particular. Chega pra você com atitudedesesperada, com atitude de urgência. Isso é umacoisa que confronta com o treinamento que vocêrecebe de atender o paciente com calma”. (Dr. Mau-rício, 32 anos).

“O paciente geralmente chega amedrontado.Tende até a negar a questão da doença pelo medoda gravidade”. (Dra. Núbia, 48 anos).

Dentro do contexto terapêutico, a qualidadee a forma de vínculo são de extrema importânciapor influenciar tanto no desenvolvimento quan-to na qualidade do processo, pois sem vínculo aterapia não acontece. Assim, na busca da empa-tia pela construção do vínculo, observa-se a ten-tativa da maioria dos médicos de dizer a verdadee ser honesto com o paciente: “É o desenvolvi-mento da confiança, a segurança do paciente, asinformações serem repassadas pra ele, tudo isso estájunto para que o tratamento tenha boas condiçõesde ter sucesso”. (Dr. Thiago, 32 anos).

“Às vezes, o paciente precisa saber da real situ-ação, mesmo que o prognóstico seja ruim, porque opaciente deve dar um jeito na vida dele. Tem quecolocar as prestações da casa em dia, o carro quetem prestação a vencer. E as pessoas podem ajeitara vida dele. A inverdade pode virar uma arma con-tra você. Você paga um preço por isso. Você temque ser objetivo, real, verdadeiro”. (Dr. Humber-to, 44 anos).

Além disso, baseando-se nas entrevistas,como reforça Videla13, os pacientes têm fome desolidariedade porque a enfermidade, muitas ve-zes, humilha, corrói o sentido do “eu”, tornando-os vulneráveis à palavra do médico. Assim, asso-ciando a verdade a seus discursos, o médico podesaciar a fome de solidariedade do paciente comconversas terapêuticas e tentativas de resgate deuma “esperança” ética, que, inclusive, pode aju-dar a instalar no paciente uma busca interna decura, o que é melhor explicitado pela frase de Dr.Humberto: “Tem que ser verdadeiro, dando con-

forto, dando esperança, nunca tire as esperanças.Mesmo quando o prognóstico é muito ruim. Quan-do o paciente tem alguns meses, você diz que adoença é muito grave. Que ele tem de lutar com a fédele”. (Dr. Humberto, 44 anos).

A importância do cuidado com a revelaçãodiagnóstica é também influenciada diretamentepor fatores individuais do paciente, sendo cita-dos em vários registros idade e condições socio-econômicas, aliadas ao grau de instrução: “Ospacientes jovens são quem têm mais dificuldades,são os mais arredios ao diagnóstico”. (Dra. Zilda,44 anos).

“Você tem extremos de pacientes que chegam,que você dá várias informações e se você perguntarem um minuto o que foi que você disse, ele nãoentendeu nada”. (Dr. Rômulo, 42 anos).

“O paciente mais instruído é melhor, sem dú-vida, porque a gente consegue dividir as responsa-bilidades muito mais”. (Dr. Rômulo, 42 anos).

Seguindo o raciocínio das características indi-viduais, observa-se nitidamente na maioria dosdepoimentos que o estadiamento da doença nomomento da primeira consulta influencia sobre-maneira a construção do vínculo, já que naquelescujo diagnóstico é precoce as possibilidades de re-missão são diversas e evidentes. Porém, infelizmente,ainda muitos chegam com formas avançadas, oque é justificado por alguns pela negligência pró-pria dos pacientes pelo receio da gravidade de suadoença. Por outros, sinaliza-se ainda, além da exa-gerada burocracia do sistema, para o fato da exis-tência de profissionais despreparados nas portasdo sistema que não referenciam de imediato, porsimplesmente passar despercebido, aqueles quemerecem, atrasando a vinda do paciente ao serviçoespecializado: “Principalmente, eu acho que é o es-tigma de todo mundo que, às vezes, fica com medo dadoença, com o desconhecimento, e acaba por tolher aoportunidade de ser tratado de uma forma melhor”.(Dr. Djalma, 42 anos).

“Falta de estrutura mesmo. Você pedir umatomografia de tórax para estadiar um câncer depulmão e demorar quatro meses, no sistema falidoque a gente tem, para o paciente retornar com oestadiamento, muitas vezes, já mudado e avança-do”. (Dr. Xavier, 35 anos).

“É a questão da peregrinação que esses pacien-tes fazem. Muitos vêm do interior e até mesmo aquida capital, que passam por vários setores, por váriosserviços de saúde até finalmente chegar aqui. E issoàs vezes dificulta bastante, é um dos principais fato-res que levam o paciente a chegar aqui com a neo-plasia mais avançada e isso leva a problemas notratamento, complicações”. (Dra. Fátima, 37 anos).

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Em oncologia, com suas situações peculiaresde estigmatização sociocultural, a comunicaçãode um diagnóstico é, de uma forma geral, recebi-da pelo paciente como uma má notícia. Aindaque a evolução da história natural da doença e oseu prognóstico sejam multifatoriais - dependen-do da compleição física prévia do indivíduo, ca-racterísticas imunológicas, bem como estadia-mento do tumor - o objeto de estudo da oncolo-gia ainda é encarado como sendo doença incurá-vel e definitivamente incapacitante.

Diante disso, percebe-se que as singularida-des encontradas na relação médico-paciente on-cológico residem em um momento-chave: omomento da definição diagnóstica. Por conse-guinte, se há quase uma unanimidade com rela-ção à necessidade de se dizer a verdade, há gran-des divergências entre a melhor forma de fazê-lo.

Entre a mentira e a verdade: as diferençascomunicacionais entre os médicos

Enquanto Cássio não está sabendo de nada, Dra.Sheila está vivendo o maior drama: “sei de algosobre uma pessoa que vai fazê-la sofrer muito”.Essa expectativa angustiante decorre da idéia deque Cássio não seria capaz de elaborar o que vaiser informado, isto é, não ser capaz de fazer asmodificações necessárias na estrutura simbólicaque os novos significados advindos com a notí-cia exigirão, prejudicando o prosseguimento daspráticas médicas.

Nesse momento, Dra. Sheila busca normas epreceitos, sejam eles éticos, morais e religiosos,para ajudar na situação de ter que contar, oupara não ter que contar algo ao paciente.

Dessa forma, de um lado, ela poderia preferirusar este artifício afirmando que, por principio,nunca falaria o diagnóstico, supondo que nessashoras o paciente precisa de apoio e não de depri-mi-lo ainda mais. Fato corroborado na pesqui-sa no discurso de reservadas entrevistas em queos médicos simplesmente isentam-se de comu-nicar a doença ao paciente ou optam por mentir,considerando ainda o fato de o paciente poder,inclusive, querer poupar-se a si mesmo evitandoo diagnóstico: “Na abordagem com o paciente, eusou bem mentiroso, tento esconder, principalmen-te quando o prognóstico é ruim. É capaz de o pa-ciente entrar em depressão e dificultar o tratamen-to”. (Dr. Ítalo, 48 anos).

Por outro lado, ela poderia inclinar-se à filo-sofia de anunciar que sempre falaria para o paci-ente o seu diagnóstico. Defenderia uma postura

mais direta e objetiva, como alguns profissio-nais, argumentando o direito do paciente de sa-ber seu real quadro: “Deve ser direto, não deve termeia verdade, objetivo. O paciente precisa saberda real situação, mesmo que o prognóstico sejaruim”. (Dr. Patrício, 54 anos).

Ou, como a maioria dos médicos da pesqui-sa, elaborando a informação, eufemizando onome diagnóstico, evitando a palavra clichê cân-cer, sem, no entanto, deixar de explanar devida-mente sobre a doença. Para estes, o uso de umeufemismo despertaria no paciente a noção decurabilidade de sua doença, afetando diretamen-te em uma adesão positiva ao tratamento a poste-riori: “Usar sinônimos como neoplasia malignaem vez de câncer, que não são conhecidos dele. Àmedida que a relação vai evoluindo, você vai con-seguindo usar as palavras corretas, colocando-se aolado dele como aliado nessa caminhada. Procurarfalar sem termos técnicos, mas não desprovidos daverdade quando tem que explicar para o pacienteque o tratamento não evoluiu bem e é necessáriotentar outras abordagens”. (Dra. Velma, 35 anos).

“Existe uma idéia que o paciente não tem es-trutura psicológica para saber a verdade. Comomédico, eu tenho dever ético de dizer a verdade propaciente, se ele não quer saber se tem câncer é erra-do dar um tapa na cara dele e dizer que ele temcâncer. Existem maneiras de você dar má noticiasem ser leviano”. (Dr. Bernardo, 29 anos).

O momento da comunicação diagnóstica,portanto, torna-se crucial no desenvolvimentoda relação. O médico precisa gerenciar essa situ-ação, levando em conta aspectos psicossociais dopaciente, desenvolvendo habilidades relacionaise comunicacionais para tanto. Nessa perspectivade abordagem, observa-se nos depoimentos que,apesar da relativa falta de preparo, muitos pro-fissionais demonstram o tato e a habilidade co-municacional condizentes com a orientação doprotocolo SPIKES: “Um princípio que a gente temque ter é primeiro ouvir. Saber o que é que ele sabeda doença dele, quais são as expectativas, o que éque ele já sabe. Ouvir mais e falar menos, de prin-cípio é bom, é melhor, porque ouvindo você sabemais ou menos como lidar. Você pode perguntar aopaciente o que é que ele sabe da doença dele. O queé que ele já ouviu falar. Tem paciente que você temque demorar um pouquinho pra dizer e, outros,você tem que ir diretamente, passando uma ima-gem de uma pessoa que está antenada com o pro-blema do paciente”. (Patrício, 54 anos).

Assim, o médico utilizar-se-ia desses aspectoscomo um recurso a mais para o sucesso da rela-ção e da terapêutica. Desse modo, conquistada a

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empatia do paciente, seria possível indicar e exe-cutar o mais adequado tratamento para o caso.

Os protocolos terapêuticos:entre autonomia e paternalismo

Dra. Sheila encontra-se agora em outra situação.Dessa vez, ela recebe em seu ambulatório Elisa,47 anos, viúva, três filhos, paciente em acompa-nhamento já há algum tempo pela doutora porcarcinoma de pequenas células renais. Apresen-ta-se à Dra. Sheila depois de meses de pós-opera-tório, queixando-se de uma tosse que a incomo-da bastante, inclusive com eventos de escarroshemoptóicos, para os quais aerossóis e antibió-ticos não surtiram o mínimo efeito, além de umador em ombro direito altamente resistente a an-tiinflamatórios. Ao observar uma radiografia detórax, Dra. Sheila depara-se com imagens alta-mente sugestivas de algo que sempre teme: me-tástases! Um suspiro maior que o feito com Cás-sio é produzido. E agora? Como dizer a Elisa quesua estratégia terapêutica não atingiu os resulta-dos esperados e que precisava agora de umaabordagem complementar? E se essa dor emombro direito for advinda de outro processometastático? Dessa forma, como esclarecer a Eli-sa que sua situação é crítica, já que esse tipo deneoplasia é tipicamente radioquimioresistente?Como Elisa iria se comportar diante disso? Dra.Sheila não queria vê-la deprimida e que abando-nasse seu tratamento.

A angústia enfrentada por Dra. Sheila é umaemoção vivida frequentemente entre os médicosentrevistados. Com relação à abordagem terapêu-tica, inicialmente, a totalidade reforçou a impor-tância do conhecimento técnico-científico no mo-mento de definição terapêutica, colocando a neces-sidade de se indicar um tratamento baseado emevidência e que está bem determinado em proto-colos definidos. Levando em consideração essapadronização, a grande maioria, entretanto, colo-ca ainda a importância de se levar em consideraçãooutros fatores individuais do paciente, para definira terapêutica, como questões ligadas ao estilo devida, condições sociais, desejo de reprodução futu-ra e capacidade física de resistir ao tratamento: “Temque ter o bom senso, para cada paciente. O que é queé o melhor para cada paciente? Você não vai fazeruma prostectomia num homem de 85 anos! Apesarde ser tudo protocolado, tem que ser individualizadopara cada paciente”. (Dr. Quirino, 38 anos).

“A gente pode até não fazer uma histerectomiaalargada, pensando que ela poderia engravidar, mas

aí a gente estaria fugindo um pouco do protocolo.A gente sempre tenta ver o futuro da paciente, emtermos de reprodução: tenta-se minimizar os efei-tos da doença sem prejudicar o tratamento”. (Dr.Abelardo, 38 anos).

“Tem certas drogas que não são cobertas pelarede pública, então isso vai depender também dofator social do paciente”. (Dra. Zilda, 44 anos).

Uma dificuldade, porém, é registrada pormuitos médicos quando há a necessidade demaior agressividade do tratamento, quando aterapêutica recebe o status da própria doença:“Muitas cirurgias são muito mutilantes. Às vezes,a gente tem que fazer cirurgias em crianças, quetem que desarticular, tirar a perna da criança. Nãoé uma cirurgia simples, é uma cirurgia que sempretem a tendência de deixar sequelas”. (Dr. Bernar-do, 29 anos).

“Você sempre tem que deixar ele ciente do tra-tamento que você vai fazer, de que efeitos colate-rais podem acontecer, consequências e morbidadedo próprio tratamento. Porque, muitas vezes, opaciente oncológico não morre do câncer, em si,mas ele pode morrer do tratamento”. (Dra. Letícia,31 anos).

Em conjunto com essas considerações, a au-tonomia do paciente e seu direito de participar dadecisão do seu tratamento é uma questão enfati-zada por muitos. Seguindo o último passo doprotocolo SPIKES, a maioria dos médicos entre-vistados revela uma tendência de respeitarem essedireito do paciente e consultá-los na decisão diag-nóstica: “Hoje em dia, principalmente, se colocapara o paciente escolher. Ele tem a informação parapoder também participar ativamente da decisão dotratamento”. (Dra. Núbia, 48 anos).

“A autonomia dele tem que ser considerada, vocênão pode impor jamais um tratamento que o paci-ente tem dificuldade em aceitar”. (Dr. Tiago, 32 anos).

Entretanto, é interessante salientar que essaconduta não é universal; em uma minoria, hádiscursos totalmente contrários a essa autono-mia: “Eu sou ditador. Eu determino o que tem quefazer. Mesmo quando o tratamento é radical. Sem-pre quem decide sou eu. Paciente não tem que de-cidir do tratamento, paciente não é médico. O pa-ciente até pode dizer a vontade dele, como é quequer a vida dele no futuro. Se aquela vontade seencaixar no tratamento, tudo bem, senão sintomuito”. (Dr. Ítalo, 48 anos).

É importante, porém, colocar que, em rela-ção ao tratamento, na oncologia especialmente,há um momento em que não há mais possibili-dades terapêuticas, como o que praticamenteocorre com Elisa no caso citado anteriormente.

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É o momento dos cuidados paliativos. Muitosentrevistados queixam-se de intensa dificuldadeem lidar com essa problemática. Essa dificulda-de está relacionada à formação médica e ao des-preparo desses profissionais ao lidarem com aterminalidade.

De acordo com Pazin-Filho14, a formaçãomédica, atualmente, é centrada na cura, negli-genciando, assim, aspectos não menos nobres,como o cuidar e o confortar. Dessa forma, omédico experimenta sentimentos de onipotên-cia, assimilando uma idéia equivocada de quedetém poder sobre a cura e a morte. Sentimentosesses que, diante da terminalidade de seus paci-entes, transformam-se em frustração e impotên-cia, como relatado por muitos entrevistados: “Eudiria que a dificuldade que nós temos hoje é comnossos clientes que não têm mais esperança de vi-ver. É o doente terminal. É lidar com a terminali-dade. As experiências intensas são com os doentesterminais”. (Dr. Patrício, 54 anos).

“O que eu acho mais difícil, principalmentenos pacientes que estão conscientes, é dizer que elenão tem mais tratamento”. (Dra. Letícia, 31 anos).

Por fim, reforçado pelos registros, é impor-tante salientar que a adesão ao tratamento porparte do paciente vai estar diretamente ligada àsquestões psicossociais da sua vivência, sendo es-tas modificadoras diretas ou indiretas da percep-ção de sua doença. Segundo Kubler-Ross15, ospacientes com diagnóstico de câncer podem pas-sar por reações emocionais que incluem negação,raiva, barganha, depressão e aceitação. A depen-der de cada estágio desses, que por sua vez estãorelacionados às experiências de vida prévias decada indivíduo, haveria maior ou menor fidelida-de terapêutica, como bem explicitado pela frasede Dr. Otávio: “Acho que, dependendo do critérioda negação, o paciente tem depressão e depois vaiaceitando, é natural, é temporal. A priori o pacien-te que encara como uma batalha é o melhor paci-ente, que fica ao seu lado, durante todo o tratamen-to. Aquele que tem uma negação, que pede umaconfirmação, que não aceita, é mais difícil tratar,mas acaba cedendo ao tratamento, porque vêm osproblemas da doença, e acaba aceitando, concor-dando com o diagnóstico”. (Dr. Otávio, 40 anos).

Observa-se, a partir disso, a importância daesfera psicossocial do paciente na aceitação e ade-são ao tratamento, notando-se que a interaçãojunto ao seu contexto, no seu ambiente de conví-vio, é fundamental para o sucesso. Para se criar,portanto, um bom vínculo médico-paciente e paraque esse binômio seja forte e consistente, o papelda família é essencial.

A família: ajuda ou empecilho?

Diante dos problemas na interação com seuspacientes, Dra. Sheila percebeu que o relaciona-mento com a família poderia constituir-se de umaforte ferramenta na relação com o paciente on-cológico, minimizando suas dificuldades, atra-vés da cumplicidade e da divisão de responsabili-dades. Nas consultas posteriores com Cássio, elapôde sentir o quanto o contato com a família eraessencial, pois, a partir do seu apoio, procedeucom suas habilidades para fornecer-lhe diagnós-tico, possibilidades terapêuticas e prognósticas,obtendo relativo sucesso.

O médico deve manter uma relação de confi-ança com os familiares e acompanhantes dospacientes, para que isso reflita em sucesso da te-rapêutica. O maior entendimento do contextosocial e cultural no qual o paciente está inseridoirá definir até onde é favorável ou não continuartratamentos invasivos em pacientes terminais.Essa conduta, até mesmo, poderia evitar umarevolta familiar por falhas terapêuticas ou evolu-ções desfavoráveis. Esse discurso é corroboradopelo pesquisador Bloom16, que observa a impor-tância do apoio social e familiar para que o paci-ente siga o tratamento indicado, fato, também,explicitado pela maioria dos entrevistados:“Quando os familiares sentem que o serviço é em-penhado no problema, colaboram muito. Servecomo apoio e segurança para que o paciente pros-siga. Sem isso, ele vai falhar no tratamento”. (Dra.Úrsula, 33 anos).

“A família tem uma importância como ummediador. As orientações detalhadas de como vaiser o tratamento, como vai ser a cirurgia, a genteconta para a família. A família é uma ponte entremédico e paciente. O paciente é muito dependenteda família para higiene, alimentação, para consul-ta, locomoção, para exame”. (Dr. Xavier, 35 anos).

Com relação à Elisa, porém, Dra. Sheila nãoencontrou o que esperava de sua família. Dianteda gravidade do quadro e como seus sintomasainda não interferiam em suas atividades diári-as, sua família não permitia que soubesse do realquadro clínico. Argumentavam que Elisa já in-corporava uma atitude melancólica e, por isso,se soubesse a verdade iria aprofundar-se em de-pressão e não mais desempenharia as atividadesque hoje são indispensáveis para a subsistênciada família. Diante dessa situação, Dra. Sheila en-contrava-se desconfortável.

Existe, no entanto, alguns aspectos negativosem relação ao envolvimento da família no acom-panhamento de doentes com câncer. Uma im-

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portante dificuldade da relação com a famíliaregistrada em muitos depoimentos é quando sequer esconder do paciente o diagnóstico, fragili-zando assim a relação e criando um binômio saú-de-doença distorcido do real. Tratar um doentesem que ele saiba por que está sendo tratado pre-judica a adesão ao tratamento, já que ele nãoentende a gravidade de seu problema. A honesti-dade e a explicação da doença ao paciente e a suafamília são de extrema importância para o vín-culo médico-doente, que é baseado no respeito ena sinceridade: “Quando a família não quer que opaciente saiba, é uma das situações mais difíceis. Afamília pede muito para não dizer ao paciente. Eutenho que convencer a família que o paciente temo direito de saber”. (Dr. Humberto, 44 anos).

Ademais, há, em alguns casos, uma superva-lorização da doença pela família, citada em algu-mas entrevistas, fragilizando o vínculo e a confi-ança no tratamento e no prognóstico propostopelo médico. Para Ariès17, a sociedade ocidentalconvive com a morte através do mecanismo denegação; isso explica o fato de às vezes eles fica-rem procurando alternativas de tratamento,quando já não há muito que fazer, podendo as-sim prolongar mais ainda o sofrimento de seusentes queridos. O médico tem o papel de inter-mediar esse tipo de pensamento no sentido deminimizar fantasias e certos valores sobre a do-ença: “Então, a maioria dos familiares vem pra cá,negando que a pessoa tem um câncer. Têm pacien-tes que já fizeram todos os níveis terapêuticos, jáestá, assim, só em seguimento, não tem mais ne-nhum tipo de tratamento pra fazer, e mesmo assima família sempre te cobra algo mais do que tu podesfazer. Acho que eles absorvem muito a dor do paci-ente, a angústia do paciente, porque se sente, naverdade, impotente em relação aquilo, não poderfazer nada”. (Dra. Jordana, 32 anos).

“A relação da família normalmente é uma re-lação de proteção. Existe a tendência de supervalo-rizar o sofrimento do paciente. Geralmente o diag-nóstico de câncer aproxima as pessoas, algumasintrigas são desfeitas, algumas famílias têm essasuperproteção exacerbada que chega a incomodarum pouco. Você tem que mostrar para família quaissão os fatores que ela realmente tem que monitori-zar, para não criar viés nem de menos nem de mais”.(Dr. Gustavo, 30 anos).

Por fim, importante aqui é estabelecer um vín-culo interdisciplinar com a família, pois ela passaa ter apoio emocional, técnico e psicológico. Umaequipe interdisciplinar transmite mais confian-ça, pois a família observa o interesse da equipeem relação ao paciente, demonstrando a atitudede respeito em referência à dor e ao sofrimentoda família e do doente: “Quando chega a uma faseterminal, a família quer deixar no hospital e isso éruim. É uma coisa que a sociedade vem construin-do. O paciente terminal deveria morrer em casa,porque têm a relação de familiares, amigos. Nohospital, tem um horário para visita que pode en-trar no máximo duas visitas. Realmente é isso queele queria? Ele queria era morrer num ambientecom a família, amigos”. (Dra. Fátima, 37 anos).

Considerações finais

A partir desses dados, pode-se perceber que exis-tem nuances na relação médico-paciente onco-lógico que diferem das demais especialidades. Ostatus emocional alterado dos pacientes e famili-ares, a abordagem diferenciada de transmitir odiagnóstico, uma má notícia e as terapêuticas que,em curto prazo, são mais difíceis que a própriadoença, tornam-se fatores limitantes aos objeti-vos da relação médico-paciente, ou seja, cons-trução do vínculo, satisfação do usuário, adesãoao tratamento, qualidade de vida.

Dessa maneira, o aperfeiçoamento da huma-nização do processo de comunicação entre mé-dico e paciente tem relação direta com a maiorsensibilidade diante do sofrimento e a realidadedo paciente frente a sua integridade física, psí-quica e social, e não somente biológica. Ao médi-co, cabe o papel de possibilitar que a relação sejacentrada no paciente e não apenas na doença,seguindo o modelo do médico “cuidador”: pro-fissional que toma seu paciente por inteiro, dan-do-lhe um atendimento holístico.

Diante disso, evidencia-se a maior necessida-de de estudos e discussões acerca do assunto, vi-sando a uma melhor formação do médico onco-logista no âmbito da relação médico-paciente-fa-mília. Mudanças curriculares em cursos de medi-cina são necessárias na formação de profissionaisnum modelo biopsicossocial, visando à obtençãode práticas humanizadas, que permitam a com-preensão do universo psicológico do paciente.

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Colaboradores

CMGC Heil Silva trabalhou na concepção, pes-quisa, metodologia, discussão e redação final;CHS Rodrigues trabalhou na pesquisa, introdu-ção e discussão; JC Lima trabalhou na pesquisa ediscussão; NBH Jucá trabalhou na pesquisa, dis-cussão e revisão crítica; KL Augusto trabalhouna metodologia e revisão crítica; CA Lino traba-lhou na pesquisa, conclusão e revisão crítica; AGNCarvalho e FC Andrade trabalharam na pesqui-sa e introdução; JV Rodrigues trabalhou na con-cepção e discussão e A Caprara trabalhou naconcepção e revisão final do artigo.

Referências

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Artigo apresentado em 02/06/2008Aprovado em 02/10/2008Versão final apresentada em 29/10/2008

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