Roberto Taddei - A Literatura Como Um Sistema de Crenças

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A literatura como um sistema decrenças

June 3, 2013 • 5 min read • original

James Wood, um dos críticos mais respeitados de sua geração

James Wood caminha devagar pelos corredores da Escola de Artes da UniversidadeColumbia embora pareça estar sempre um pouco atrasado. Levemente curvado parafrente e aparentando timidez, parece tentar fugir da eventualidade de pisotear alguémcom sua espalhafatosa aura de crítico da New Yorker que acha David Foster Wallaceentediante e que Zadie Smith sofre de histeria.

Em uma pequena sala de aula, 20 alunos do mestrado em criação literária se esprememem cadeiras de plástico pretas alinhadas entre uma longa mesa de fórmica e paredesbege esperando pelo professor. Na chegada, Wood tira o paletó escuro e tenta apoiá-losobre o encosto da cadeira. O paletó escorrega para o chão, onde permanece até o fim daaula. Dobra as mangas da camisa branca, que tem os dois primeiros botões abertos. De

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uma pasta retira um CD. Toma emprestado o computador de um aluno. Ouvimos a umadas “Variações Goldberg” na interpretação de Glenn Gould. “Agora vocês imaginem oque foi para esse narrador ter crescido e estudado com Glenn Gould.” Nas duas horasseguintes, conversamos sobre O náufrago, de Thomas Bernhard. O professor quer sabero que pensam os alunos sobre os livros que serão estudados ao longo de dois meses deencontros. Dentre todos, apenas Thomas Bernhard não tinha sido analisado em seuComo funciona a ficção, lançado em Nova York pouco antes do início das aulas.

Wood está preocupado com a construção de um entendimento comum, de um commonreader. Naquela sala, leitores são também escritores. E ele não está particularmenteinteressado em ser o dono da razão. Se um de nós faz algum comentário que difere doseu, ouve com atenção, depois emenda uma frase repetida muitas vezes ao longo docurso: right, perfect, you’re absolutely right. E então parte para elaborado exercícioretórico na tentativa de aproximar os dois comentários. O texto deveria permitirvariados entendimentos, não é um sistema fechado.

Em outra aula, Wood distribui um pequeno esquema feito à mão em papel sulfite, alápis, onde tenta organizar a estrutura do livro A primavera da Srta Jean Brodie, deMuriel Spark. Os seis capítulos estão subdivididos nos anos em que agem aspersonagens e para cada ano corresponde uma letra do alfabeto, com marcações deflash-backs e flash-forwards, de A a Y.

Em um terceiro momento, nos dá cópias da terceira página da novela Companhia, deSamuel Beckett, com anotações em letra quase infantil. Detém-se numa frase: For sheshook off your little hand and made you a cutting retort you have never forgotten.Contenção de emoção, ao longo do texto, até o momento único de descarga emotivarápida e sucinta, um pequeno e pujante jorro doído que não pode jamais sertransformado em epifania.

O que dá consistência ao trabalho de Wood é a ideia de que a literatura é um sistema decrenças em conexão direta com a realidade.

Wood não é apenas um dos críticos mais respeitados de sua geração. É também umprofessor de carreira igualmente prodigiosa. Começou dando aulas com Saul Bellow, naUniversidade de Boston. Hoje, é professor em Harvard, com passagens por Columbia.Em seus trabalhos, mergulha com convicção na leitura e interpretação dos livros. Semantém aberta a possibilidade de leituras diferentes da sua, é também com igualsegurança que responde às provocações, reafirmando sua posição.

O que dá consistência ao trabalho de Wood é a ideia de que a literatura é um sistema decrenças em conexão direta com a realidade. Em outros termos, é um sistema moral. Ecomo tal, se ergue e gira em torno do sujeito, dos personagens, e suas relações com omundo.

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No ensaio introdutório ao livro The Broken State, Wood escreve: “Ficção é uma formade mentira e, historicamente, como sabemos, este comércio com o inverídico deixouleitores desconfortáveis. [...] A ficção pede que tenhamos fé, mas podemos a qualquermomento escolher não acreditar. [...] Na ficção, o leitor é sempre livre para escolher nãoacreditar, e esta liberdade, esta zona sombria de dúvida, é o que ajuda a constituir arealidade da ficção”.

Na discussão sobre “A morte de Ivan Ilitch”, Wood diz que Tolstói não constrói umapersonagem completa. Ilitch “é completamente ordinário”. O que Tolstói parece quererdizer com a novela é: “assim é que é morrer, assim é sofrer em solidão”. A construçãodas personagens na ficção estaria diretamente relacionada à ideia de alteridade, a de“vestir os sapatos” do outro.

“Estamos adaptados a criar a versão ficcional de nós mesmos. Romances sãoparticularmente bons em compartilhar essa performance. Porque é isso o que vemos.”No entanto, cita Henry James, “as personagens se apresentam a partir da ideia que têmde si mesmas. É tarefa do autor aproximar-se delas para construir uma visão melhor”. Aisso, Wood chama de certa tradição britânica, a balanceada mistura entre omissão donarrador e controle autoral.

Wood chega a afirmar que a literatura é melhor do que a filosofia na tarefa de mostrar acomplexidade de nosso tecido moral.

Em um texto curto de 1944 (“Formas do Romance”), Otto Maria Carpeaux faz umarápida distinção entre três grandes escolas de romance: a inglesa, a francesa e aespanhola. A francesa se voltaria às formulações psicológicas e filosóficas. A espanhola,como resistência ideológica. Já a tradição britânica seria a de um romance moral,reforçado pelo controle autoral e a omissão do narrador, onde é preciso mostrar ospersonagens agindo, em vez de apenas contar o que fazem.

Em A Primavera da Srta Jean Brodie, diz Wood, Spark, “não apenas põe em prática umcontrole autoral onisciente como tem também uma espécie de senso austero e limitadode liberdade individual”. No livro, uma professora do ensino fundamental de Edinburgotenta “formar” cinco pupilas: o grupo Brodie. A história parece filtrada por uma dasalunas, Sandy Stranger, a mais “perspicaz”, como se ela fosse a própria narradoradisfarçada, detrás de um narrador que se omite, supostamente neutro, masprofundamente moral. Anos depois, Ian McEwan tomaria o exemplo desse narradorpara construir a escritora Briony Tallis, de Reparação.

Wood chega a afirmar que a literatura é melhor do que a filosofia na tarefa de mostrar acomplexidade de nosso tecido moral. Essa é a sua força, a crença. Sendo também umromancista (The Book Against God, 2003), o que diz tem o peso de quem está em ambosos lados desse sistema.

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No final daquele semestre, em Columbia, James Wood cruza com Zadie Smith nocorredor. Smith daria aulas para a mesma turma, no ano seguinte. A animosidade que seesperaria do encontro, depois de sucessivos debates em jornais britânicos e americanosao longo de anos, não se confirma. Ficam de conversa por alguns minutos. Sorrisos eexpressões de complexidade se intercalam.

No ano seguinte, Zadie Smith também pede aos alunos que leiam “A primavera da SrtaJean Brodie”. As discussões, no entanto, seguem por caminhos diferentes. EnquantoWood está preocupado em entender como Muriel Spark opera saltos temporais naconstituição da visão moral de um mundo que se desintegraria com a segunda guerramundial, Smith parece mais preocupada com a personagem da professora Brodie, comas sutilezas da autora na construção de um imaginário poético e humano, ainda quefragmentado. Chega ao ponto de se apropriar de uma das falas da personagem: “ThePhilistines are upon us”, diz. Mas esse já é assunto para outro texto.

*Roberto Taddei é escritor e jornalista. Mestre em criação literária pela Universidadede Columbia, é coordenador da pós-graduação em Formação de Escritores do ISE VeraCruz.

Original URL:http://editora.cosacnaify.com.br/blog/?p=13868