Rodrigo Cunha Echebarrena Leitos de saúde mental em ... · Prof. Dr. Carlos Eduardo de Moraes...

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Rodrigo Cunha Echebarrena Leitos de saúde mental em hospitais gerais: o caso do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2018

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Rodrigo Cunha Echebarrena

Leitos de sade mental em hospitais gerais:

o caso do Rio de Janeiro

Rio de Janeiro

2018

Rodrigo Cunha Echebarrena

Leitos de sade mental em hospitais gerais:

O caso do Rio de Janeiro

Dissertao apresentada ao Programa de

Ps-graduao em Sade Pblica, da Escola

Nacional de Sade Pblica Sergio Arouca, na

Fundao Oswaldo Cruz, como requisito

parcial para obteno do ttulo de Mestre em

Sade Pblica. rea de concentrao: Polticas

Pblicas e Sade.

Orientador: Prof. Dr. Paulo Roberto Fagundes

da Silva.

Rio de Janeiro

2018

Catalogao na fonte Fundao Oswaldo Cruz

Instituto de Comunicao e Informao Cientfica e Tecnolgica em Sade Biblioteca de Sade Pblica

E18l Echebarrena, Rodrigo Cunha. Leitos de sade mental em hospitais gerais: o caso do Rio

de Janeiro / Rodrigo Cunha Echebarrena. -- 2018. 95 f. : il. color. ; graf. ; mapas. ; tab.

Orientador: Paulo Roberto Fagundes da Silva. Dissertao (mestrado) Fundao Oswaldo Cruz, Escola

Nacional de Sade Pblica Sergio Arouca, Rio de Janeiro, 2018.

1. Sade Mental. 2. Hospitais Gerais. 3. Hospitais Municipais. 4. Leitos. 5. Nmero de Leitos em Hospital - economia. 6. Desinstitucionalizao. I. Ttulo.

CDD 22.ed. 362.2098153

Rodrigo Cunha Echebarrena

Leitos de sade mental em hospitais gerais:

o caso do Rio de Janeiro

Dissertao apresentada ao Programa de

Ps-graduao em Sade Pblica, da Escola

Nacional de Sade Pblica Sergio Arouca, na

Fundao Oswaldo Cruz, como requisito

parcial para obteno do ttulo de Mestre em

Sade Pblica. rea de concentrao: Polticas

Pblicas e Sade.

Aprovada em: 04 de maio de 2018.

Banca Examinadora

Prof. Dr. Carlos Eduardo de Moraes Honorato Secretaria Estadual de Sade do Rio de Janeiro

Prof. Dr. Nilson do Rosrio Costa

Fundao Oswaldo Cruz Escola Nacional de Sade Pblica Sergio Arouca

Prof. Dr. Paulo Roberto Fagundes da Silva (Orientador) Fundao Oswaldo Cruz Escola Nacional de Sade Pblica Sergio Arouca

Rio de Janeiro

2018

A minha av Hermnia, minha incentivadora, falecida durante esta empreitada.

Francisco e Clarice, meus esteios.

AGRADECIMENTOS

Aos meus pais Antnio e Maria que sempre acompanharam meus passos.

Aos meus sogros Luiz e Neli pela torcida e incentivo.

Ao Paulo Fagundes pelas horas dedicadas a minha orientao.

Ao gestor Hugo Fagundes e aos ex-coordenadores nacionais de sade mental Pedro Gabriel e

Domingos Savio, por me receberem e aceitarem ser entrevistados para a presente pesquisa.

Vera e Mendes pelo carinho com que ensinam e pela generosidade em dividir o que

aprenderam.

minha pequena turma da subrea: Natalia, Alexandra, Isabela e Mariana. Vocs foram

essenciais em todos os momentos. Representaram conforto e diverso.

Aos professores Nilson do Rosrio e Carlos Eduardo Honorato pela leitura atenta e pelas

contribuies.

Aos entrevistados da pesquisa, dos hospitais Ronaldo Gazolla, Evandro Freire e Pedro II, que

aceitaram participar do estudo, me recebendo generosamente.

A Fabiana, Joyce, Laura, Z e ao turmo do mestrado em Sade Pblica pela solidariedade nas

disciplinas e nas conversas. Incluo aqui os agregados Jarbas, Itamar, Marcelo, Suelen e Barbara.

Rosely, Roberta, Cristiane, Maria Helena, Jussara, Gil, Luciana, Marcelo, Tatiana, Francisco,

Mnica e a todos os professores da ENSP. Tambm aos estagirios de docncia que copilotaram

as disciplinas. Ao pessoal dos bastidores, que fazem a Escola funcionar, mantendo tudo sempre

organizado.

Ana Carla e toda a turma do Pinel (funcionrios, estagirios, residentes e pacientes) por terem

me recebido com carinho e serem sensveis ao meu estresse nesses tempos de estudo e trabalho,

ajudando dentro de suas possibilidades afetivas e burocrticas.

Flavia, Ricardo, Luiz, Nelson, Ney, Mirna, Patrcia, Ethel, Roberta, Absalo, Leila, Toni,

Valria e todo pessoal da Unigranrio, por me ensinar a ensinar.

Aos meus amigos Adriana Melo, Dbora Lima, Aquiles Miranda, Kamal Bach, Eduardo

Muller, Rafael Matias e Marcelo Cunha pela compreenso da minha ausncia.

Lutar pela igualdade sempre que as diferenas nos discriminem;

lutar pelas diferenas sempre que a igualdade nos descaracterize.

Boaventura de Souza Santos

RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo analisar as condies de gesto dos leitos de

sade mental em hospital geral, no municpio do Rio de Janeiro. As questes de estudo

levantadas na pesquisa pretendem descrever o modelo de proviso de leitos de sade mental

em hospitais gerais na cidade do Rio de Janeiro, identificar o papel dos leitos de sade mental

em hospitais gerais na Rede de Ateno Psicossocial e verificar a adequao dos leitos em

hospitais gerais s diretrizes do Ministrio da Sade. Para realizao deste estudo, optou-se por

um estudo de caso da situao atual dos leitos de sade mental em hospital geral existentes na

cidade. A pesquisa foi constituda de entrevistas individuais com roteiros semiestruturados.

Foram pesquisados bancos de dados do Sistema nico de Sade (SUS) e documentos oficiais

sobre o tema. Os dados encontrados foram categorizados e confrontados com a bibliografia de

referncia. Os resultados revelaram a existncia de poucos leitos de sade mental na rede

hospitalar municipal. Os leitos existentes funcionam integrados a Rede de Ateno Psicossocial

(RAPS), com participao varivel dos Centros de Ateno Psicossocial (CAPS) na conduo

de projetos teraputicos individuais; apresentam mdia de permanncia inferior a 20 dias e

acontecem em espaos restritivos, com pouca estimulao. Alm disso, possuem regras rgidas

para os pacientes, submetidas fortemente ao modelo biomdico. A cidade do Rio de Janeiro

vem promovendo a inverso do modelo hospitalar para o modelo assistencial comunitrio.

Estruturas antigas de cuidado e estruturas contemporneas convivem em um sistema que se

apresenta em transio.

Palavras-chave: Sade Mental. Leitos de sade mental no hospital geral. Atendimento crise.

Desinstitucionalizao.

ABSTRACT

The objective of this study is to analyze the management and functional conditions of

the Rio de Janeiro Reference Hospital Service relative to the care of mental illness. The study

also seeks to describe the organizational arrangement of the provision of mental health beds in

general hospitals in Rio de Janeiro, to identify the role of mental health beds in general hospitals

in the Psychosocial Attention Network (RAPS) and to verify the adequacy of the beds in general

hospitals to the guidelines of the Ministry of Health. To carry out this study, we chose a case

study of the current situation of mental health beds in a general hospital in the city. The research

consisted of individual interviews with semi-structured scripts. We researched databases of

SUS (National Health Care Organization) as well as official documents on the subject. The data

was categorized and compared with the reference bibliography. The results revealed the lack of

an adequate number of mental health beds in the municipal hospital network. The existing beds

are integrated with RAPS, with varying participation of the Psychosocial Attention Centers

(CAPS) in the conduct of individual therapeutic projects. They present an average stay of less

than 20 days and happen in restrictive spaces, with little stimulation. They have rigid rules for

patients, strongly subject to the biomedical model. The city of Rio de Janeiro has been

promoting the inversion of the hospital model to the community care model. Old structures of

care and contemporary structures coexist in a system that presents itself in transition.

Keywords: Mental Health. Mental health beds in the general hospital. Attention to the crisis.

Desinstitucionalization.

LISTA DE ILUSTRAES

Figura 1 - Localizao dos hospitais com leitos de sade mental por reas

Programticas ......................................................................................

18

Figura 2 - A Pirmide de Organizao de Servios para uma Combinao tima

de Servios para a Sade Mental .........................................................

28

Quadro 1 - Vantagens das internaes psiquitricas em hospitais gerais segundo

BOTEGA & DALGALARRONDO ...................................................

33

Quadro 2

Grfico 1

Figura 3 -

Fatores de resistncia implantao de internaes psiquitricas em

hospitais gerais, segundo diferentes autores.........................................

Leitos do Sistema nico de Sade em hospitais psiquitricos por ano

Brasil dezembro de 2002 a dezembro de 2015................................

Componentes da Rede de Ateno Psicossocial RAPS .....................

37

39

48

Quadro 3 - Quadro-resumo com os principais achados da pesquisa....................... 79

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 - Evoluo do nmero de hospitais psiquitricos, por natureza - Brasil -

1941 a 1997 ................................................................................................

23

Tabela 2 - Leitos psiquitricos disponveis no Sistema nico de Sade, por natureza,

no municpio do Rio de Janeiro - outubro de 1995 e maro de 2000............

44

Tabela 3 - Nmero de leitos em hospitais psiquitricos na cidade do Rio de Janeiro

- janeiro de 2012 a janeiro de 2018 .............................................................

45

Tabela 4 - Cobertura de Centros de Ateno Psicossocial por rea Programtica

Municpio do Rio de Janeiro 2016 ...........................................................

46

Tabela 5 - Localizao dos leitos de ateno crise na Cidade do Rio de Janeiro

Janeiro de 2018...........................................................................................

49

Tabela 6 - Distribuio de profissionais nas enfermarias de sade mental dos

Hospitais Municipais Ronaldo Gazolla, Evandro Freire e Pedro II

outubro de 2017...........................................................................................

67

Tabela 7 - Tempo mdio de internao psiquitrica - hospitais gerais e hospitais

psiquitricos do municpio do Rio de Janeiro, nos anos de 2015, 2016 e

2017............................................................................................................

72

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AIH Autorizao de Internao Hospitalar

AP rea Programtica

APS Ateno Primria em Sade

CAPS Centro de Ateno Psicossocial

CAPSad Centro de Ateno Psicossocial lcool e Drogas

CAPSi Centro de Ateno Psicossocial Infanto-juvenil

CEBES Centro Brasileiro de Estudos de Sade

CER Coordenao de Emergncia Regional

CONASP Conselho Consultivo da Administrao de Sade Previdenciria

CPRJ Centro Psiquitrico do Rio de Janeiro

CSM Centro de Sade Mental

DINSAM Diviso Nacional de Sade Mental

DSM Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders

ENSP Escola Nacional de Sade Pblica Sergio Arouca

EUA Estados Unidos da Amrica

FIOCRUZ Fundao Oswaldo Cruz

GIH Guia de Internao Hospitalar

GM Gabinete do Ministro

IMAS Instituto Municipal de Assistncia Sade

INAMPS Instituto Nacional de Assistncia Mdica da Previdncia Social

INPS Instituto Nacional de Previdncia Social

IPUB Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro

MS Ministrio da Sade

OMS Organizao Mundial de Sade

OPAS Organizao Pan-Americana da Sade

OS Organizao Social

PAM Posto de Assistncia Mdica

PIEC Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas

PTI Projeto Teraputico Individualizado

RAPS Rede de Ateno Psicossocial

SNAS Secretaria Nacional de Assistncia Sade

SRT Servio Residencial Teraputico

SUAS Sistema nico de Assistncia Social

SUS Sistema nico de Sade

TCC Terapia Cognitivo Comportamental

UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro

USP Universidade de So Paulo

WONCA Organizao Mundial dos Mdicos de Famlia

SUMRIO

1 INTRODUO ........................................................................................... 14

2 METODOLOGIA ........................................................................................ 16

2.1 DESENHO DA PESQUISA .......................................................................... 16

2.2 LOCAL DO ESTUDO .................................................................................. 17

2.3 PROCEDIMENTOS METODOLGICOS .................................................. 18

2.4

2.5

2.6

INSTRUMENTOS UTILIZADOS ................................................................

MODELO DE ANLISE ..............................................................................

ASPECTOS TICOS ....................................................................................

19

20

20

3 O COMPONENTE HOSPITALAR NO CENRIO DA REFORMA

PSIQUITRICA ..........................................................................................

22

3.1 A ASSISTNCIA COMUNITRIA E A ATENO CRISE NO

CONTEXTO DA REFORMA PSIQUITRICA ...........................................

25

4 A REDE DE SADE MENTAL E O HOSPITAL GERAL ..................... 31

4.1 OS LEITOS DE SADE MENTAL NO HOSPITAL GERAL E O

CONTEXTO ASSISTENCIAL NACIONAL ...............................................

38

5

6

6.1

6.2

6.3

7

A SADE MENTAL NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO ....................

RESULTADO E DISCUSSO ...................................................................

O MODELO ORGANIZACIONAL DOS LEITOS DE SADE MENTAL

EM HOSPITAL GERAL E A INTERAO COM A REDE DE

ATENO PSICOSSOCIAL .......................................................................

ESTRUTURA FSICA E EQUIPE TCNICA MULTIPROFISSIONAL

DAS ENFERMARIAS DE SADE MENTAL EM HOSPITAL GERAL ..

ORGANIZAO E PROCESSO DE CUIDADO NOS LEITOS DE

SADE MENTAL EM HOSPITAL GERAL ...............................................

CONSIDERAES FINAIS ......................................................................

42

51

51

60

69

81

REFERNCIAS........................................................................................... 85

APNDICE A ROTEIRO PARA ENTREVISTA COM GESTORES

LOCAIS DAS ENFERMARIAS DE SADE MENTAL EM

HOSPITAIS GERAIS .................................................................................

APNDICE B - ROTEIRO PARA ENTREVISTA COM O

SUPERINTENDENTE DE SADE MENTAL DO MUNICPIO DO

92

RIO DE JANEIRO (GESTOR MUNICIPAL) E COM OS EX-

COORDENADORES NACIONAIS DE SADE MENTAL DO

BRASIL ........................................................................................................

94

14

1 INTRODUO

A ateno em sade mental brasileira tm se modificado ao longo de quase 40 anos de

luta. Importantes vitrias vm sendo comemoradas, como a reorientao da assistncia

psiquitrica hospitalar para a assistncia psiquitrica comunitria, por exemplo. Neste contexto

de qualificao das prticas de sade mental, a assistncia para momentos de crise psiquitrica

passou a ser primeiramente manejada nos servios de assistncia sade mental comunitria,

sendo os CAPS seu maior representante. As situaes que eventualmente precisarem de

internaes, poderiam ser acolhidas nos leitos de sade mental em hospitais gerais, designados

pela portaria GM n 148/ 2012 como Servio Hospitalar de Referncia para ateno a pessoas

com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades de sade decorrentes do uso de lcool,

crack e outras drogas.

A hospitalizao de sujeitos com sofrimento mental em leitos de sade mental em

hospitais gerais no recente e tem sido utilizada como alternativa internao em hospitais

psiquitricos. A reorganizao da composio da rede psiquitrica comunitria, substituindo a

internao em hospital psiquitrico pela hospitalizao em leitos de sade mental em hospitais

gerais, faz parte da atual poltica nacional de sade mental emanada pela Coordenao Nacional

de Sade Mental. Pretende-se com essa substituio oferecer leitos integrados a unidades

hospitalares, com possibilidade de cuidado das necessidades de sade de quem sofre de

adoecimento mental de forma integral. Os leitos em hospitais gerais costumam oferecer

internaes mais curtas, integradas com os demais pontos da rede de ateno psicossocial

(RAPS), produzindo menos estigma para quem sofre de problemas psiquitricos. Apesar disso,

o nmero de leitos disponveis para internao psiquitrica em hospitais gerais ainda muito

inferior aos leitos oferecidos em hospitais psiquitricos.

Na cidade do Rio de Janeiro, segundo o CNES/ DATASUS, existem 398 leitos de crise

para internao em 5 hospitais psiquitricos pblicos. Para internao em hospitais gerais, so

apenas 54 leitos. Estudando o atual estgio da implantao dos leitos de sade mental em

hospitais gerais da cidade do Rio de Janeiro procura-se compreender por que as internaes

psiquitricas da cidade ainda acontecem predominantemente nos hospitais psiquitricos.

O objetivo geral do estudo foi analisar o padro de oferta de leitos de sade mental em

hospitais gerais no municpio do Rio de Janeiro. Os objetivos especficos do estudo foram:

1. Descrever o arranjo assistencial da proviso de leitos de sade mental em hospitais

gerais na cidade do Rio de Janeiro.

15

2. Identificar o papel dos leitos de sade mental em hospitais gerais na Rede de Ateno

Psicossocial (RAPS).

3. Verificar a adequao dos leitos em hospitais gerais s diretrizes do Ministrio da Sade.

O trabalho foi dividido em sete captulos, sendo funo do captulo dois apresentar o

desenho do estudo e a metodologia empregada para a obteno dos resultados. O componente

hospitalar e a assistncia crise no contexto da Reforma Psiquitrica sero discutidos no

captulo trs. O captulo quatro se destina a abordar como a rede de sade mental inclui os leitos

de sade mental no hospital geral em seu desenho de rede territorial.

O captulo cinco falar da organizao da rede de sade mental na cidade do Rio de

Janeiro e suas particularidades. Neste captulo sero abordadas as peculiaridades da rede onde

o estudo se deu.

O captulo seis apresentar os resultados obtidos com a pesquisa. Neste captulo, os

resultados foram divididos em categorias e discutidos luz da literatura de referncia e das

regulamentaes oficiais. Para melhor visualizao, neste captulo ser apresentado um quadro

contendo os principais achados da pesquisa.

Por fim, sero apresentadas as consideraes finais em um ultimo captulo.

16

2 METODOLOGIA

2.1 DESENHO DA PESQUISA

Trata-se de um estudo de caso, que buscou compreender as condies de gesto das

enfermarias de sade mental localizadas nos hospitais gerais municipais Ronaldo Gazolla,

Evandro Freire e Pedro II, na cidade do Rio de Janeiro. Pretendeu-se investigar os elementos

envolvidos no processo de implantao das enfermarias e sua interlocuo com os demais

pontos da RAPS, e explorar a problemtica contida na implantao das enfermarias de sade

mental em hospital geral no contexto da reforma psiquitrica brasileira.

O estudo de caso contm elementos qualitativos e quantitativos, sendo ento misto.

Segundo Stake (1995, p. 32 apud Creswell, 2007), no estudo de caso:

[...] o pesquisador explora em profundidade um programa, um fato, uma atividade,

um processo ou uma ou mais pessoas. Os casos so agrupados por tempo e atividade,

e os pesquisadores coletam informaes detalhadas usando uma variedade de

procedimentos de coleta de dados durante um perodo de tempo prolongado.

A anlise da gesto das enfermarias aconteceu a partir de entrevistas semiestruturadas

(apndices A e B) com dois ex coordenadores nacionais de sade mental, lcool e outras drogas

do Ministrio da Sade, o gestor de nvel central da Superintendncia de Sade Mental do

Municpio do Rio de Janeiro e gestores locais (ou correspondentes) das unidades hospitalares

onde esto localizadas as enfermarias de sade mental, reconhecidos como informantes-chave

com potencial ponto de vista respeito do trabalho. Complementarmente, foram realizadas

pesquisas documentais em documentos oficiais, portarias e bancos de dados do SUS de acesso

pblico, a saber: no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Sade (CNES), em informaes

de sade (TABNET)/Assistncia Sade e morbidade hospitalar do SUS. Alm disso, foram

pesquisados eventuais documentos disponveis nas unidades hospitalares e na Superintendncia

de Sade Mental da Secretaria Municipal de Sade do Rio de Janeiro.

A concomitncia dos mtodos qualitativos e quantitativos permitiu uma leitura crtica e

abrangente sobre o problema estudado. Sobre procedimentos concomitantes, Creswell (2007,

p. 33) explica:

Procedimentos concomitantes, nos quais o pesquisador faz a convergncia de dados

quantitativos e qualitativos a fim de obter uma anlise ampla do problema de pesquisa.

Nesse projeto, o investigador coleta as duas formas de dados ao mesmo tempo durante

o estudo e depois integra as informaes na interpretao dos resultados gerais.

17

2.2 LOCAL DO ESTUDO

A cidade do Rio de Janeiro tem hoje 6.520.266 habitantes, distribudos em 162 bairros,

agrupados em 10 reas programticas (AP). Conta com 326 estabelecimentos de sade

municipais, dos quais 23 so hospitais (SMSRJ, 2016). Desses hospitais, apenas quatro

possuem Servio Hospitalar de Referncia para ateno a pessoas com sofrimento ou transtorno

mental e com necessidades de sade decorrentes do uso de lcool, crack e outras drogas. Os

leitos encontram-se distribudos da seguinte maneira: 15 leitos no Hospital Municipal Ronaldo

Gazolla, 15 leitos no Hospital Municipal Evandro Freire, 19 leitos no Hospital Municipal Pedro

II e 5 leitos no Hospital Municipal Loureno Jorge. Os leitos localizados no Hospital Municipal

Loureno Jorge foram implantados no decorrer da pesquisa e no fizeram parte da avaliao,

ficando no estudo somente os leitos dos hospitais municipais Evandro Freire, Ronaldo Gazolla

e Pedro II.

Os trs hospitais municipais so gerenciados por trs diferentes Organizaes Sociais

(O.S.), conforme modelo de gesto implementado na SMS-RJ. O Hospital Pedro II, maior entre

os trs em nmero de leitos, conta com 332 leitos, estando includos os 19 leitos de sade

mental. um hospital antigo cuja edificao, na configurao vertical que tem hoje, do ano

de 1976. Era hospital estadual at 2010. Sua transferncia para a esfera municipal ocorreu aps

seu fechamento por dois anos, em decorrncia de um incndio na sua subestao de energia

eltrica, em 2010. Em 2012, foi reinaugurado, mantendo seu nome, mas sendo agora hospital

municipal. O Hospital Municipal Pedro II fica localizado na zona oeste da cidade do Rio de

Janeiro, no Bairro de Santa Cruz. O bairro faz parte da rea Programtica 5, que corresponde

a zona oeste, territrio com 1.704.733 moradores, representando 27% dos moradores da cidade.

O hospital gerido por pela O.S. Associao Paulista para o Desenvolvimento da

Medicina SPDM, desde 2015 e possui agregado a sua estrutura a Coordenao de Emergncia

Regional Santa Cruz (CER Santa Cruz), com 39 leitos para emergncias, inclusive

psiquitricas. Sua enfermaria de sade mental opera desde 1999, enquanto ainda era hospital

estadual, respondendo por emergncias de sua rea programtica (AP5).

O Hospital Municipal Ronaldo Gazolla, tambm conhecido como hospital de Acari, fica

localizado na zona norte, na rea programtica 3, no Bairro de Acari. A rea programtica 3

a mais populosa da cidade, com 2.399.159 habitantes; nela residem 38% da populao da

cidade, sendo que quase metade desses moradores vive em favelas. Das dez maiores favelas da

cidade, sete esto na rea programtica 3. Isso confere ao territrio um cenrio urbano

diferenciado, com enormes regies de pobreza e violncia.

18

O hospital gerenciado pela O.S. Viva Rio desde 2015. Conta com 223 leitos, sendo 15

de sade mental. No possui emergncia, trabalhando apenas de maneira referenciada para

consultas ambulatoriais e internaes. As internaes de sade mental acontecem na enfermaria

localizada no trreo, com entrada pela lateral.

O ltimo dos trs hospitais com leitos de sade mental deste estudo o Hospital

Municipal Evandro Freire, localizado na Ilha do Governador, regio composta por quatorze

bairros, onde 4,6% dos seus 216.256 moradores residem em favelas. A Ilha do Governador

tambm pertence a rea programtica 3, mais especificamente a 3.1. O Hospital Municipal

Evandro Freire possui 103 leitos e uma Coordenao de Emergncia Regional (CER Ilha) com

14 leitos de observao, agregado a sua estrutura. A enfermaria de sade mental possui 15

leitos, fica no segundo andar do hospital. Desde 2015 tanto o hospital quanto o CER Ilha so

gerenciados pela O.S. Centro de Estudos e Pesquisas Dr. Joo Amorim CEJAM.

A figura abaixo ilustra as reas programticas da cidade do Rio de Janeiro. Os hospitais

do Estudo esto sinalizados com estrelas.

Figura 1 - Localizao dos hospitais com leitos de sade mental por reas Programticas

Fonte: RIO DE JANEIRO, 2017.

2.3 PROCEDIMENTOS METODOLGICOS

O projeto de pesquisa foi apresentado ao superintendente de Sade Mental do Municpio

do Rio de Janeiro e aos gestores das unidades pesquisadas. Coube ao superintendente apresentar

o pesquisador aos diretores e outros gestores das unidades que seriam pesquisadas. O projeto

foi apresentado a estas coordenaes pelo pesquisador e a marcao de visitas para as

entrevistas ocorreu de acordo com as possibilidades de horrios fornecidas pelos entrevistados.

19

A pesquisa foi constituda de entrevistas individuais com o Superintendente de sade

mental do municpio do Rio de Janeiro, entrevistas com trs coordenadores das enfermarias de

sade mental dos hospitais do estudo ou seus representantes (gestores locais) e com um terceiro

grupo de entrevistados composto por ex-coordenadores nacionais de sade mental do

Ministrio da Sade. A escolha por esse terceiro grupo se deu por serem renomados gestores,

pesquisadores e militantes do campo da sade mental, presentes no desenvolvimento normativo

e implantao dos leitos de sade mental em hospitais gerais em diferentes momentos. Alm

da entrevista, foram pesquisados bancos de dados do SUS e documentos oficiais sobre o tema.

Foram feitos contatos prvios com os entrevistados para explicitar a metodologia e os

objetivos da pesquisa. Os locais e horrios das entrevistas tambm foram combinados nessa

oportunidade. As entrevistas foram conduzidas face a face pelo pesquisador e podiam ser

gravadas de acordo com autorizao do entrevistado. A entrevista ocorreu de forma

semiestruturada, contemplando questes disparadoras da investigao em curso, que puderam

ser complementadas com questes inerentes s circunstncias da entrevista. Foram seguidos

dois roteiros de entrevistas, sendo um para gestores locais, e outro para o gestor central e os ex-

coordenadores nacionais de sade mental do Ministrio da Sade. Em momento posterior, estas

entrevistas foram transcritas e examinadas.

Os achados foram analisados e agrupados em categorias. A categorizao um

processo de agrupar dados considerando a parte comum existente entre eles. (MORAES, 1999,

p. 12). Aps essa etapa, foram confrontados os achados categorizados com a bibliografia

investigada.

2.4 INSTRUMENTOS UTILIZADOS

Para realizao das entrevistas, foram criados dois roteiros semiestruturados,

direcionados ao gestor municipal e ao grupo de ex coordenadores nacionais de sade mental, e

outro dirigido aos gestores locais.

O grupo de gestores locais respondeu a perguntas relacionadas implantao, ao

gerenciamento das unidades e o seu funcionamento, de acordo com seu nvel de gesto. O gestor

municipal e o grupo de ex coordenadores de sade mental tambm responderam questes

relativas a normatizao, implantao, financiamento e gesto dos leitos de sade mental em

hospitais gerais, porm destacaram as vicissitudes apresentadas na gesto municipal e federal.

A formulao das questes presentes nos dois roteiros foi baseada nas diretrizes de

implantao e funcionamento dos leitos de sade mental em hospital geral, amparadas em

20

portarias ministeriais e relatrios de gesto da coordenao nacional de sade mental do

Ministrio da Sade Brasileiro, e na bibliografia cientfica que aborda o assunto. Alguns temas

abordados pelos instrumentos foram: critrios de encaminhamento e regionalizao das

enfermarias, pblico alvo das enfermarias, integrao da equipe de sade mental com demais

setores do hospital, papel das enfermarias dentro da RAPS, identificao dos fluxos entre as

enfermarias e a rede de sade, indicadores hospitalares, modelo de financiamento e

faturamento, dificuldades na implantao e gerenciamento dos servios.

2.5 MODELO DE ANLISE

Foi feita a anlise do material conseguido com a pesquisa (entrevistas, observaes e

documentos) inspirada no modelo proposto por Creswell (2007), onde 6 passos so seguidos

para: organizar, ler, codificar em grupos ou temas, descrever, representar e interpretar os dados.

A interpretao dos dados forneceu uma viso geral a respeito da experincia da pesquisa.

Os materiais includos no estudo passaram por intensa leitura at ser possvel a deciso

de utiliza-los na pesquisa. O passo seguinte foi isol-los em unidades de anlise, com a

incumbncia de representar um conjunto de informaes dispersas nos materiais analisados,

para posterior categorizao. Em seguida, categorizou-se os dados, agrupando-os por temas.

Esse esforo de sntese fez gerar as seguintes categorias: O modelo organizacional dos leitos

de sade mental em hospital geral e a interao com a Rede de Ateno Psicossocial; Estrutura

fsica e equipe tcnica multiprofissional das enfermarias de sade mental em hospital geral;

Organizao e processo de cuidado nos leitos de sade mental em hospital geral.

Os achados da pesquisa sero apresentados e interpretados mais adiante. A apresentao

dos achados foi organizada em conjunto com a discusso, sendo este o momento de

confrontao de dados quantitativos, depoimentos colhidos pelo pesquisador e literatura a

respeito do assunto.

2.6 ASPECTOS TICOS

O projeto de pesquisa foi submetido aos Comits de tica em Pesquisa da Escola

Nacional de Sade Pblica Srgio Arouca (CEP- ENSP) e da Secretaria Municipal de Sade do

Rio de Janeiro (CEP SMSRJ). Foi aprovado sob o nmero 67276617.7.0000.5240 (CEP-

ENSP) e 67276617.7.3001.5279 (CEP- SMSRJ).

21

O objetivo do estudo foi informado a todos os participantes da pesquisa. Aos que

aceitaram participar do estudo, foi garantido sigilo quanto as informaes fornecidas. Tanto os

TCLE quanto os instrumentos respondidos sero destrudos aps cinco anos, conforme previsto

na Resoluo do Conselho Nacional de Sade n 466/2012.

Os nomes dos entrevistados no foram revelados no estudo. Utilizamos os termos

Gestor Municipal, Ex-coordenador Nacional A, Ex-coordenador Nacional B, Gestor

Local A, Gestor Local B (e assim sucessivamente) quando necessrio. Porm, devido ao

pequeno nmero de respondentes da pesquisa, h risco do reconhecimento do entrevistado ser

presumido em razo de sua funo. Tal risco foi informado ao participante, assim como os

benefcios indiretos de sua participao no estudo. A qualquer momento o entrevistado pde

pedir esclarecimentos sobre a pesquisa. Os participantes no receberam qualquer incentivo

financeiro ou tiveram qualquer nus com a pesquisa.

Os benefcios gerados com o estudo esto relacionados a anlise da implantao dos

leitos de sade mental em hospitais gerais e o aprimoramento geral da ateno sade mental

na cidade do Rio de Janeiro. Os respondentes foram informados sobre o possvel desconforto

que podia ocorrer ao responderem algum item do formulrio e o risco da pesquisa no benefici-

lo diretamente.

22

3 O COMPONENTE HOSPITALAR NO CENRIO DA REFORMA PSIQUITRICA

Segundo Thornicroft e Tansella (2008, p.11) a histria recente dos servios de sade

mental pode ser dividida em trs perodos, cobrindo a ascenso do manicmio e do cuidado

hospitalar tradicional, o declnio do manicmio e o surgimento da balanced care. O

entendimento das principais transformaes ocorridas na prtica da sade mental ao longo dos

tempos pode favorecer a compreenso do atual cenrio psiquitrico brasileiro, ratificando que

ainda estamos em um cenrio dinmico, de transio.

O surgimento do manicmio, como espao de separao da loucura de outras doenas,

ajudou a reforar o lugar da psiquiatria como especialidade mdica e lhe conferiu um local

prprio para sua prtica. O adoecimento mental necessitava de um ambiente adequado, que

pudesse garantir sua observao e tratamento. O manicmio serviria para essas duas finalidades

(PESSOTI, 1996).

A internao como medida teraputica destinada a observao e tratamento ajudou a

difundir a necessidade da criao de Manicmios, fazendo com que o sculo XIX fosse marcado

pela expanso do nmero de instituies e, consequentemente, de internaes. Outros

elementos no clnicos sempre sombrearam a existncia dos manicmios. Viu-se neles a

possibilidade de depositar os indesejados sociais, marginalizados por sua pobreza ou por sua

conduta desviante, ajudando na ordenao do espao pblico. A indigncia, a cronicidade e os

transtornos mentais, quando acompanhados de condutas indesejveis, despertaro convocaes,

por alguns setores da sociedade, marginalizao e ao castigo (DESVIAT, 1999).

O Brasil inaugurou seu primeiro manicmio em 1852, o Hospcio Nacional de

Alienados, na cidade do Rio de Janeiro. A construo dessa instituio tentou marcar

simbolicamente, o esprito caridoso e cientfico do Imperador. Tambm buscou consolidar o

imprio Brasileiro como institucionalmente forte, em sintonia com a modernidade cientfica

europeia (TEIXEIRA, 1997). Os manicmios, inicialmente criados com expectativa

teraputica, no tardaram a se tornar espaos problemticos. Engel fala da situao do Hospcio

Nacional de Alienados, em 1890, como sendo um espao superlotado, precrio e com

deficincia de pessoal (ENGEL, 2001). Tal situao se repetiu por dcadas seguintes e em

lugares distintos do pas. Talvez seja possvel afirmar que Barbacena foi o maior representante

das atrocidades ocorridas em instituies psiquitricas brasileiras, com cerca de 60 mil mortes

alavancadas pelas pssimas condies institucionais (ARBEX, 2013).

Se em 1852 a psiquiatria brasileira se mostrou alinhada aos avanos cientficos

europeus, com a construo do Hospcio de Pedro II, cem anos depois, demonstrava o extremo

23

oposto. Segundo Resende (2001), a assistncia psiquitrica pblica era lenta quanto ao

conhecimento das prticas psiquitricas transformadas que surgiram na Europa e nos Estados

Unidos aps a segunda guerra mundial. O questionamento sobre a assistncia psiquitrica

manicomial somente ganhou fora - no Brasil - no final dos anos 70. Enquanto o mundo colhia

os primeiros frutos de suas reformas psiquitricas, o Brasil ainda expandia sua rede hospitalar

psiquitrica, coisa que fez at os anos 80.

A ampliao da rede hospitalar psiquitrica no Brasil teve comportamento varivel em

diferentes perodos de tempo. Em 1941 o Brasil tinha 62 hospitais psiquitricos, sendo a maioria

privados (tabela 1). Embora os hospitais privados fossem numericamente maiores, eles tinham

apenas 19,3% dos leitos; os 23 hospitais psiquitricos pblicos detinham 80,7% dos leitos de

psiquiatria no pas (PAULIM & TURATO, 2004). A partir da dcada de 60, o nmero de

hospitais psiquitricos privados aumentou consideravelmente em todo o territrio nacional. Em

1981, dos leitos psiquitricos disponveis para internao, 70,6% eram privados e 29,4% eram

pblicos. O crescimento desenfreado do nmero de leitos privados no pas a partir de 1966

decorreu da criao do INPS e da compra de servios por este instituto (idem).

Tabela 1: Evoluo do nmero de hospitais psiquitricos, por natureza - Brasil -1941 a 1997

Ano Hospital pblico Hospital privado Total Relao pblico-privado

1941 23 39 62 1:1,6

1961 54 81 135 1:1,5

1971 72 269 341 1:3,7

1981 73 357 430 1:4,9

1991 54 259 313 1:4,8

1997 45 211 256 1:4,7

Fonte: DUARTE & GARCIA, 2013, p. 42.

O questionamento sobre o deficitrio cuidado prestado pelos hospitais psiquitricos

tardou a chegar ao cenrio brasileiro. Na Europa e nos Estados Unidos, ele ganhou fora aps

a segunda guerra mundial. O impacto das atrocidades ocorridas nos campos de concentrao da

segunda guerra mundial sensibilizou as sociedades quanto a luta por direitos humanos. Foi um

perodo de maior tolerncia com as minorias, desenvolvimento de movimentos civis e

crescimento econmico e social de muitos pases (DESVIAT, 1999). Alguns pases se

ocuparam em repensar sua assistncia psiquitrica, propondo reformas no paradigma da doena

mental e na hospitalizao como tratamento preponderante. Considerando as caractersticas

sanitrias dos diferentes pases que iniciaram a crtica ao asilo, tivemos como resultado

24

diferentes movimentos de reformas psiquitricas que convergiam criticamente sobre o

tratamento desumanizado oferecido nos asilos. Porm, divergiam quanto a necessidade da

existncia do hospital psiquitrico e de sua funo teraputica (DESVIAT, 2012, p. 29).

O perodo de crtica ao funcionamento asilar, chamado por Thornicroft e Tansella

(2008) como o declnio do manicmio, foi o terreno propcio para o surgimento de diferentes

prticas institucionais, fundamentadas na crtica ao manicmio e voltadas assistncia

psiquitrica de base comunitria. Experincias de reformulao da assistncia psiquitrica

surgidas na Frana, Inglaterra, Itlia, Espanha e Estados Unidos se ampararam em trs grandes

conceitos fundamentais, desenvolvidos, reforados ou abandonados em seus processos de

amadurecimento: a necessidade da diviso do territrio em zonas, a continuidade do

atendimento e a integrao entre os nveis de atendimento (DESVIAT, 1999).

Entre os movimentos reformistas internacionais, a Reforma Psiquitrica Italiana merece

especial destaque. A revoluo iniciada em Gorizia, por Franco Basaglia, em fins de 1961,

continuada em Trieste, em 1971, nas palavras de Amarante (1995, p. 50), demonstra ser

possvel a constituio de um circuito de ateno que, ao mesmo tempo, oferece e produz

cuidados e novas formas de sociabilidade e de subjetividade para aqueles que necessitam de

assistncia psiquitrica. A reforma italiana se debruou sobre a reorganizao da assistncia

psiquitrica, promovendo mudanas mais profundas e crticas, questionando instituies,

conceitos e legislaes sobre o tema.

Em 13 de maio de 1978, foi aprovada na Itlia a Lei 180, estabelecendo que no

poderiam haver novas internaes em hospitais psiquitricos a partir daquele ano e no

poderiam ser construdos novos hospitais psiquitricos no pas. A assistncia psiquitrica

deveria acontecer em servios psiquitricos comunitrios e as internaes, quando necessrias,

ocorreriam nos leitos destinados psiquiatria nos hospitais gerais. A aprovao da Lei 180

efetivou a criao de servios alternativos e o fechamento dos manicmios. Tal discurso

influenciou fortemente o movimento reformista brasileiro que ensaiava seus passos, ansiando

por novas possibilidades de tratamento mais humanas e democrticas. Basaglia esteve

pessoalmente no Brasil nos anos de 1978 e 1979, trazendo notcias de seu trabalho em Trieste.

No mesmo perodo intelectuais crticos das distores sociais cometidas pela psiquiatria, como

Felix Guattari, Robert Castel e Erving Goffman, tambm estiveram em eventos no pas

(AMARANTE, 1995). O vigor das discusses trazia tona o carter repressivo das instituies

psiquitricas e a necessidade de formao do pensamento crtico em sade mental.

O cenrio brasileiro no campo da sade mental em fins dos anos 70 e incio dos anos 80

era preocupante. O pas incentivou o aumento de sua rede hospitalar e dos seus leitos

25

psiquitricos ao longo de dcadas, principalmente de leitos privados, atravs da contratao de

servios pelo INPS. Dos leitos disponveis em todo o sistema pblico de sade brasileiro, 20%

eram leitos psiquitricos (SCHECHTMAN & ALVES, 2014). A internao em hospitais

psiquitricos foi a teraputica mais prevalente da psiquiatria e no sem consequncias.

Os hospitais psiquitricos eram superlotados, iatrognicos, cronificantes, segregadores

e com alto ndice de mortalidade. O uso indiscriminado de psicofrmacos e o isolamento dos

pacientes era a conduta preponderante nos hospitais psiquitricos entre os anos 60 e 80

(GOULART, 2006).

O ineficiente e desumano modelo de cuidado psiquitrico brasileiro virou objeto de

denncia nas vozes de trabalhadores e usurios insatisfeitos, e em capas de jornais de grande

circulao. Tinha-se nesse momento dois elementos, dos trs apontados por Desviat (2012,

p.43), para que uma reforma da assistncia psiquitrica ocorresse: uma demanda social e uma

equipe de profissionais com consenso tcnico, preparada para levar adiante a reforma. A

terceira condio citada por Desviat seria a vontade poltica. Esta ainda estava em construo,

germinando junto ao clamor de redemocratizao das instituies e da poltica nacional.

3.1 A ASSISTNCIA COMUNITRIA E A ATENO CRISE NO CONTEXTO DA

REFORMA PSIQUITRICA

A crtica ao manicmio e aos seus efeitos negativos sobre os sujeitos internados fez com

que novas experincias de cuidado surgissem. A mxima de tais tratamentos pautava-se no

atendimento comunitrio das necessidades dos que sofriam de problemas mentais, prevenindo

assim internaes em instituies psiquitricas e a reproduo do preterido cenrio manicomial.

A assistncia comunitria deveria oferecer novas possibilidades de tratamento dos problemas

psiquitricos tanto para os que deixaram as instituies manicomiais quanto aos que

ingressavam no sistema em busca de ajuda.

Essa a terceira fase, que Thornicroft e Tansella (2008) denominaram balanced care.

Refere-se a fase ps declnio manicomial, onde h esforo para o redirecionamento da

assistncia psiquitrica hospitalocntrica e manicomial, para a assistncia psiquitrica

comunitria, organizada em ofertas de servios integrados e planejados dentro de um projeto

assistencial comum.

A substituio do tratamento hospitalar pelo tratamento comunitrio no aconteceria

pela criao de um nico servio substitutivo. Seria necessria uma rede de dispositivos que

conseguisse sustentar a permanncia do sujeito com transtorno mental na comunidade. Entre os

26

dispositivos que comporiam essa rede, a internao hospitalar ainda fulgurou como essencial.

A rede hospitalar permaneceu existindo nos pases que fizeram suas reformas. A Itlia, por

exemplo, a partir da Lei 180, redirecionou suas internaes psiquitricas para os hospitais

gerais, mantendo esse componente hospitalar de ateno crise na rede de assistncia

comunitria, juntamente com outros dispositivos, como os Centros de Sade Mental (CSM). A

reorganizao da rede de sade mental italiana logrou xito no setor pblico, porm o setor

psiquitrico privado daquele pas manteve-se estvel, oferecendo atualmente mais leitos para

internao do que o setor pblico. Girolamo, analisando a reforma italiana, aponta que o sistema

pblico italiano contava com 4.113 leitos para ateno a crise e o setor privado dispunha de

4.862 leitos com o mesmo propsito em 2006. A mdia de dias de internao dos leitos de

internao de agudos do setor privado era de 37,6 dias. No setor pblico, essa mdia variava

entre os servios de ateno crise, sendo 11,4 dias de permanncia no hospital geral, 17,8 dias

nos hospitais universitrios e 21,1 dias nos centros comunitrios que ofereciam leitos de crise

(GIROLAMO, 2007, p. 85).

A reforma psiquitrica americana, antecessora da reforma italiana, tambm criou seus

dispositivos de ateno comunitria. Os Centros de Sade Mental Comunitria eram o carro-

chefe dessa nova perspectiva de tratamento. Tinham a misso da preveno, diagnstico e

tratamento da doena mental (DESVIAT, 1999) e operavam junto com outros dispositivos

comunitrios. A ideia era tornar o hospital um recurso obsoleto, em desuso progressivo por

consequncias das aes preventivas e de tratamento dos servios extra-hospitalares. A

proposta comunitria sustentada por Caplan acabou por se mostrar limitada. Houve aumento da

procura por internaes hospitalares e os servios comunitrios se mostraram captadores e

encaminhadores da nova clientela para hospitais psiquitricos que continuavam a funcionar

(AMARANTE, 2007). Impulsionada pela ajuda financeira dada pelos sistemas Medicare,

Medicaid e Supplemental Secutity Income, uma nova comercializao da loucura passou a

funcionar nos EUA e o setor privado voltou a se expandir aps a reduo do nmero de

pacientes em regime de internao hospitalar ocorrida nos anos 60 (LOUGON, 2006).

O componente hospitalar para atendimento de pacientes agudos esteve e est - presente

nas principais reformas psiquitricas ocorridas no mundo (italiana, espanhola, americana,

francesa e inglesa). Os exemplos acima apenas afastam o romantismo de que a reforma

psiquitrica rompeu com o modelo hospitalar e o excluiu do rol de procedimentos aceitveis na

nova psiquiatria. Para Thornicroft e Tansella, no h evidncias de que um sistema

equilibrado de sade mental possa ser oferecido sem contar com leitos para pacientes agudos

(THORNICROFT & TANSELLA, 2010, p. 56). Porm, no sero ofertados mais os antigos

27

leitos manicomiais que acolhiam as crises psiquitricas. Pode-se dizer que a ateno em sade

mental contempornea caminha na direo da superao das internaes em hospitais

psiquitricos e redireciona o atendimento crise para os hospitais gerais, depois de esgotadas

as possibilidades de assistncia na comunidade.

A internao psiquitrica permanece tendo seu espao no mbito da assistncia

comunitria. As funes da internao psiquitricas vo alm de situaes de crise, servindo,

para avaliao e reavaliao de diagnostico, desenvolvimento de um plano de tratamento,

remoo do paciente do ambiente estressor, proteo do paciente de explorao, proteo contra

si mesmo e contra comportamentos agressivos e desviantes (HOLLOWAY & SEDERER,

2011). Boa parte dessas funes poderiam ser oferecidas por uma rede de servios comunitrios

ou uma equipe de tratamento comunitria mais intensiva, evitando assim algumas internaes.

Porm, a interveno para manejo de crise no mbito comunitrio oferece limitaes em casos

onde no se consegue reduo da exposio do paciente ao risco. So situaes como:

... ideao e comportamento suicida e homicida; auto-negligncia sria ou risco de

dano fsico (devido, por exemplo, a confuso, ao pensamento desorganizado); doena

mental e intoxicao aguda por drogas que requerem um breve perodo de cuidados

mdicos; superviso mdica devido ao ajuste da medicao, complicaes mdicas,

efeitos colaterais, risco de exacerbao de sintomas; graves comorbidades fsicas

(HOLLOWAY & SEREDER, 2011, p. 169, traduo nossa).

Segundo estes autores, apesar dos avanos nas polticas e na maneira de tratar o sofrimento

psquico, a hospitalizao permanece sendo uma opo em situaes especficas como as

narradas acima, depois de esgotadas as possibilidades de manejo da crise na comunidade. O

papel que sobrou para a hospitalizao muito controverso. Ela acaba por ser o ltimo nvel da

cadeia assistencial, associada a antiga internao manicomial. A durao do tempo da

internao geralmente influenciar na viso positiva ou negativa que se tem da unidade

hospitalar. A mdia de permanncia do paciente no hospital tida como um bom indicador de

qualidade da assistncia, sendo a tendncia atual hospitalizaes breves, em hospitais gerais.

Em 2008 a Organizao Mundial da Sade (OMS), juntamente com a Organizao

Mundial de Mdicos de Famlia (WONCA) elaborou um relatrio sobre a integrao da sade

mental nos cuidados de sade primrios. Esquematicamente, elaboraram uma pirmide com

diversos nveis do sistema de sade, indo de cuidados auto geridos Servios para longas

estadias e servios psiquitricos especializados. Essa seria a Combinao tima de Servios

para a Sade Mental (OMS/ WONCA, 2008). No ltimo nvel da pirmide seria oferecida a

uma pequena parte da populao os cuidados especializados, no contemplados nos leitos de

psiquiatria em hospitais gerais. Seriam cuidados mais estendidos, a pessoas com perturbaes

28

mentais graves, sem apoio familiar ou com comprometimento intelectual. Essa necessidade de

cuidados continuados ocorreria no ambiente comunitrio, em servios residenciais teraputicos,

supervisionados por equipe de profissionais imbudos de promover cuidados de sade alinhados

com a dignidade e os direitos humanos.

Figura 2 - A Pirmide de Organizao de Servios para uma Combinao tima de Servios

para a Sade Mental

Fonte: ORGANIZAO MUNDIAL DA SADE (OMS) & ORGANIZAO MUNDIAL DE MDICOS DE

FAMLIA (WONCA), 2009, p.18.

Um estudo conduzido pela equipe da diviso de psiquiatria da faculdade de medicina de

Ribeiro Preto (USP) avaliou todas as internaes psiquitricas ocorridas na cidade entre os

anos de 1998 e 2004. A pesquisa comparou as internaes ocorridas na emergncia, no hospital

geral e no hospital psiquitrico. Os resultados mostraram que 80% do total de internaes

pesquisadas duraram menos do que 20 dias, sendo quase 50% das internaes resolvidas em 2

dias. Apenas 11,30% do total de internaes duraram mais do que 30 dias. A durao da

internao variou conforme o local de tratamento. Na emergncia, 90% das internaes duraram

2 dias e quase todas se resolveram em at 10 dias. No hospital geral, 50% das internaes

duraram menos do que 20 dias e 26,9% foram superiores a 30 dias. No hospital psiquitrico, as

internaes de curta e mdia permanncia variaram de 3 a 10 dias (35,7%) e 11 a 20 dias

(30,1%) respectivamente. Em 15,8% das internaes houve permanncia superior a 30 dias. A

pesquisa no tinha o objetivo de avaliar as razes do tempo de permanncia hospitalar, mas

levantou como hiptese que o tempo de hospitalizao variou em funo da organizao da

rede de sade mental e da gravidade de estressores psicossociais, desemprego, insuficincia

29

financeira e insuficincia de recursos sociais. Tambm indicou que o aumento das internaes

poderia estar relacionado a no implantao de servios extra hospitalares (BARROS et al.,

2010).

Outro estudo conduzido tambm na cidade de Ribeiro Preto (SP) em 2006 avaliou as

caractersticas sociodemogrficas e a taxa de permanncia hospitalar no hospital psiquitrico

da cidade, de pacientes em situao de reinternao. A taxa de permanncia variou entre 33,5

dias para o setor de agudos e 14,5 para o setor de tratamento de dependncia qumica. O estudo

apontou que caractersticas sociodemogrficas influenciavam a taxa de permanncia hospitalar.

As mulheres ficavam em mdia 36 dias internadas e os homens 17,3 dias internados, por

exemplo (MACHADO & DOS SANTOS, 2011).

Pesquisa realizada por Silva e sua equipe, em uma unidade de psiquiatria no hospital

geral do Estado do Paran, concluiu que a mdia de dias de internao para seus pacientes era

de 26,2 dias. Das pessoas internadas na unidade, 53,7% permaneceram entre 16 e 30 dias e

31,3% permaneceram mais de 31 dias internadas. As internaes curtas, menores do que 15

dias, totalizavam 15% do nmero de internaes. Este estudo investigou tambm os

encaminhamentos para a internao e verificou que 40,8% das internaes foram solicitadas

por servios pblicos da rede de sade, sendo 17,1% das internaes encaminhadas pelo CAPS

(SILVA et al., 2014).

A durao da internao tem sido influenciada por diferentes fatores, entre eles fatores

biopsicossociais. Estudos que compararam pacientes que retornaram ao meio comunitrio com

pacientes que permaneceram institucionalizados concluram que os primeiros tinham melhor

qualidade de vida, menor necessidade de medicao, maior rede social e menor taxa de

mortalidade. O retorno mais rpido vida comunitria pode ser o apelo da reduo dos dias de

internao, pois, comparativamente, os pacientes que esto na vida comunitria tem melhor

qualidade de vida (URIARTE, 2012).

Um estudo comparativo entre os sistemas de ateno sade mental da Itlia, Holanda

e Austrlia concluiu que a permanncia hospitalar mais curta acontecia aonde os servios

comunitrios estavam mais desenvolvidos. Concluram tambm que um grupo pequeno, mas

significativo, de pacientes muito graves, precisava de hospitalizao prolongada. A concluso

geral do estudo foi que a permanncia curta adequada quando se pode contar com uma rede

de recursos comunitrios de alta qualidade, que atuar na organizao da alta hospitalar do

usurio da sade mental (SYTEMA et al., 2002).

Embora haja variaes sobre o tempo ideal de permanncia no leito hospitalar e a

tipologia do componente hospitalar que compor a rede assistencial comunitria, as

30

experincias e os estudos cientficos apontam para a assistncia em sade mental comunitria,

dentro de uma rede de sade hierarquizada, coordenada e organizada. O componente hospitalar

permanece presente nas reformas psiquitricas, com significativa participao na assistncia ao

paciente agudo. Ele ter seu padro de uso influenciado diretamente pela rede de sade da qual

participa. Seu protagonismo pode ser maior ou menor, dependendo da qualidade e da

quantidade de servios comunitrios que compem sua rede. Se h uma rede extra-hospitalar

eficiente, os quadros de pacientes agudos tendero a ser estabilizados primeiro por essa rede,

ficando o componente hospitalar reservado a casos de maior complexidade. Segundo Barros e

colaboradores (2010, p.74), problemas na proviso dos servios extra-hospitalares como

atendimento multiprofissional restrito, limitao de propostas teraputicas, falta de vagas para

atendimentos, deficincia na disponibilidade de medicamentos e sobrecarga por demandas

judiciais vo ser determinantes na dificuldade de estabilizao do paciente em crise.

31

4 A REDE DE SADE MENTAL E O HOSPITAL GERAL

O trmino das internaes psiquitricas em manicmios tem sido possvel com a

substituio do modelo assistencial centrado no hospital psiquitrico por um modelo de

tratamento em rede, que considera ser possvel a manuteno da vida de quem sofre de

problemas relacionados a sade mental na comunidade. Espera-se que a crise deixe de ser

especialidade de servios de emergncia psiquitrica e passe a ser responsabilidade de todo o

sistema de sade mental, disposto em rede. A organizao da assistncia em sade mental,

baseada na comunidade, aponta que a base do sistema de ateno crise no so os servios

especializados, dirigidos crise, mas sim a rede de assistncia que sustenta os projetos dos

usurios na comunidade, se antecipando s situaes de crise. Porm, esgotadas as

possibilidades de manejo de casos agudos nos dispositivos extra-hospitalares, a internao pode

se tornar uma probabilidade concreta.

Seguindo a tnica da assistncia comunitria em sade mental, o hospital geral vem se

constituindo como escolha preferencial de internao de casos agudos em diversos pases. A

opo pela hospitalizao em leito no hospital geral no nova, tampouco nasceu com as

Reformas Psiquitricas americana e europeias. H registro de uma primeira enfermaria

psiquitrica em hospital geral no ano de 1728, em Londres. Organizada por Thomas Guy, a

Lunatic House oferecia no hospital St. Thomas, tratamento para 20 pacientes (BOTEGA &

DALGALARRONDO, 1993). Embora seja considerada a primeira enfermaria psiquitrica em

hospital geral, a experincia da Lunatic House no se aproximava do sentido moderno de

enfermaria psiquitrica em hospital geral. A primeira enfermaria psiquitrica em hospital geral,

com caractersticas modernas, que contemplavam planejamento teraputico, integrao

medicina geral, internaes breves com rpido retorno comunidade de origem surgiu em

1902, no Albany Medical Center, em Nova Iorque (Idem).

Impulsionados com a criao de departamentos psiquitricos nos hospitais

universitrios pela Diviso de Cincias Mdicas da Fundao Rockefeller (BRASIL, 1982), os

leitos de psiquiatria passaram a ser instalados em diversos hospitais americanos aps 1933. A

inaugurao dessas unidades possibilitou que a psiquiatria adentrasse o hospital geral e mostrou

psiquiatria americana uma nova forma de oferecer assistncia aos portadores de transtornos

mentais.

A segunda guerra mundial teve importante participao no aumento do nmero de

unidades psiquitricas em hospitais gerais. Durante o perodo da guerra, pacientes com

transtornos mentais eram internados em hospitais de campanha, junto aos pacientes com

32

patologias orgnicas. Como o nmero de psiquiatras era insuficiente, clnicos e cirurgies

tiveram que ser treinados para tratar de patologias psiquitricas (Idem). Ao final da guerra, a

experincia mostrou que era possvel tratar em um mesmo lugar pacientes orgnicos e

psiquitricos.

A crtica aos macro hospitais, a adeso de psiquiatras s propostas de sade pblica, o

questionamento da internao como modelo ostensivo de tratamento, o desenvolvimento da

psicofarmacologia, das abordagens teraputicas e a necessidade de ensino da prtica

psiquitrica tambm foram razes que estimularam a criao de leitos de psiquiatria em

hospitais gerais (BOTEGA & DALGALARRONDO, 1993). Os anos ps 1950 so

fundamentais para reavaliar o modelo psiquitrico hospitalar e sua eficincia teraputica. Os

hospitais psiquitricos eram dotados de recursos clnicos limitados e basicamente ofereciam o

isolamento e a vida regrada como alicerces do tratamento. No incio da dcada de 1950 o

primeiro antipsictico foi descoberto (KAPLAN, 1993) e no mesmo perodo surgiu a primeira

edio do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM-I), da Associao

Americana de Psiquiatria (FREITAS & AMARANTE, 2015).

No Brasil, a primeira experincia de assistncia psiquitrica em hospital geral surgiu

no Hospital das Clnicas da Universidade da Bahia, em 1954. Contava com seis leitos para

mulheres e com um ambulatrio de psiquiatria (BOTEGA & DALGALARRONDO, 1993).

Ainda em 1954 e 1957 outras duas experincias marcaram o cenrio nacional. So elas: a

Unidade Psiquitrica do hospital dos Comercirios (SP) e unidade de psiquiatria do Hospital

Pedro II, da Universidade de Recife (PE), respectivamente.

Embora a implantao de leitos de psiquiatria no hospital geral surgisse como

alternativa hospitalizao ineficiente e prolongada, houve pouco avano na criao de

unidades de psiquiatria em hospitais gerais no pas. Brasil (1982), realizou uma pesquisa sobre

as unidades de psiquiatria em hospitais gerais vinculados a escolas de medicina no Brasil. Das

75 escolas de medicina pesquisadas em 1982, apenas 48 responderam se haviam leitos

psiquitricos disponveis em seus hospitais. Das 48 escolas respondentes, apenas oito faziam

internaes psiquitricas em suas unidades. A pouca difuso dessa modalidade assistencial foi

um achado preocupante na pesquisa de Brasil, tendo em vista que os hospitais gerais

universitrios deveriam desenvolver processos assistenciais compatveis com prticas

contemporneas efetivas, alinhadas com as modernas experincias e orientaes de sade.

Os leitos de sade mental em hospitais gerais podem oferecer um cuidado integral mais

intensivo e articulado em rede. Segundo Dias e colaboradores (2010) as internaes devem

constituir tratamentos mais intensivos, com maior nmero de atendimentos e avaliaes, e de

33

forma mais rpida. O uso dos leitos visa tambm o combate ao estigma, igualando a lgica da

internao psiquitrica com a internao clnica. O tratamento deve ser regulado e integrado

com os demais dispositivos assistenciais, construindo consensos sobre urgncia, ateno

integral, atendimento crise e regionalizao. As equipes territoriais dos diversos componentes

da rede devem estar articuladas, de maneira que se desenvolva a corresponsabilidade pelos

casos assistidos e se recorra a internao somente depois de esgotadas as possibilidades

comunitrias. Essas recomendaes visam fazer com que o hospital geral no responda a

qualquer tendncia de isolamento ou centralizao, se mantendo como benfico no atendimento

crise psiquitrica desde que funcione em rede. A internao psiquitrica em hospital geral

apontada como vantajosa por diversas razes, conforme as elencadas no quadro abaixo:

Quadro 1- Vantagens das internaes psiquitricas em hospitais gerais segundo BOTEGA &

DALGALARRONDO.

Vantagem Descrio

Diminuio do preconceito com a

doena mental

Os transtornos mentais podem ser vistos com mais

naturalidade e aceitao pelos pacientes, familiares,

profissionais e populao geral.

Proximidade e acesso ao hospital

geral

Os hospitais gerais devem estar mais prximos das

populaes atendidas. Quando essa proximidade

acontece, favorece a regionalizao e continuidade da

assistncia nos moldes previstos pela RAPS.

Maior transparncia

No sendo to isolados, os hospitais gerais permitem uma

melhor observao contra possveis abusos e maus tratos

a pacientes internados.

Maior integrao com a sade geral

A assistncia integrada a outras especialidades mdicas

pode facilitar o reconhecimento e tratamento de doenas

e intercorrncias clnicas que antes acabavam por ser

negligenciadas.

Melhor integrao da prtica

psiquitrica

A formao de novas geraes de profissionais, com uma

mentalidade e uma postura mais favorvel

desestigmatizao da doena mental pode acontecer nos

programas de treinamento que operem nos dispositivos

inseridos na RAPS (entre eles o Hospital Geral).

Fonte: adaptado de BOTEGA & DALGALARRONDO, (1993) e BOTEGA (2002).

Segundo publicao da Organizao Pan-Americana da Sade (2005), a integrao dos

dispositivos de sade mental na rede de sade geral um dos pontos de partida para qualquer

processo de reforma. Quando as hospitalizaes ocorrem dentro da rede de sade geral, evita-

34

se a marginalizao do paciente e este pode se beneficiar de outros servios oferecidos pelo

hospital, contribuindo para elevar o seu nvel de sade. Mas os proveitos da internao em

hospital geral no podem se resumir ao acesso a exames e diagnsticos. A hospitalizao ser

passageira, durante a agudizao, e apenas ter sentido se for tratada como uma fase do projeto

teraputico do sujeito, necessitando da continuidade do tratamento em servios comunitrios

depois da alta.

Os dispositivos comunitrios de atendimento (CAPS, por exemplo) devem ter relao

coordenada com os hospitais gerais que fazem internao psiquitrica. Segundo Moreno e

Desviat (2012), essa coordenao fundamental para a congruncia e atuao sinrgica de

dispositivos e profissionais, assim como para garantir a continuidade do cuidado da comunidade

ao hospital e vice-versa.

Estudo realizado na cidade de Sobral (CE) por Souza e colaboradores (SOUZA, 2010)

investigou a dinmica do funcionamento da emergncia psiquitrica localizada no hospital

geral, no centro da cidade. O hospital tinha como regra a permanncia mxima do paciente por

72 horas. Aps esse perodo, o paciente deveria ser encaminhado para continuidade de

assistncia ou alta em equipamentos da rede de sade. A anlise dos encaminhamentos ps-

alta, demonstrou que pouco mais de 60% dos pacientes foram encaminhados para o CAPS da

cidade ou vizinhanas e 26,74% dos encaminhamentos aps a alta foram para servios da

ateno bsica ou ambulatoriais. O encaminhamento no configura por si s um trabalho em

rede, mas, no caso da experincia estudada, fala de um desenho assistencial cuja a emergncia

funciona como corresponsvel pelos casos do territrio. Por no trabalhar de maneira isolada,

a emergncia consegue participar do desenho da rede de sade mental de forma horizontalizada.

Em estudo de reviso bibliogrfica sobre a insero da psiquiatria em hospital geral,

Hildebrandt & Alancaste apontam que a internao do usurio de sade mental em hospital

geral requer servios extra-hospitalares que ofeream suporte aps a alta, pois as internaes

tendero a ter durao menor (HILDEBRANDT L.M & ALANCASTE M.B, 2001).

A carncia de leitos de sade mental em hospitais gerais um inegvel problema, mas

ter um leito em Hospital Geral no garante por si s boa assistncia. Os leitos de sade mental

em hospital geral representam uma opo de internao hospitalar mais humanizada e eficiente,

porm algumas pesquisas tm demonstrado a grande variedade de prticas assistenciais

adotadas por essas unidades, podendo inclusive ser mais restritivas do que os hospitais

psiquitricos convencionais.

Gigantesco e outros pesquisadores (2007), em estudo indito na Itlia, avaliando o

processo de cuidado oferecido em 3431 leitos de sade mental, distribudos em 23 Hospitais

35

Universitrios, 262 Hospitais Gerais e 16 Centros Comunitrios de Sade Mental, se depararam

com achados importantes sobre o funcionamento das unidades de crise italianas. A mdia de

permanncia na internao variou entre 18,5 dias nos hospitais universitrios, 37,09 dias nos

centros comunitrios de sade mental e 12,09 dias nos hospitais gerais. Em menos da metade

das unidades existiam atividades estruturadas de lazer, como xadrez ou jogos de cartas. As

unidades de internao psiquitrica em hospitais gerais eram mais rgidas do que os hospitais

universitrios e os centros comunitrios de sade mental. Sobre a conteno fsica, esta

acontecia com mais frequncia em unidades com maior nmero de regras, que eram os hospitais

gerais. Na maioria das enfermarias de psiquiatria em hospitais gerais as portas eram fechadas e

a presena de maior quantitativo de recursos humanos no fazia com que essa tendncia se

invertesse. As descobertas sugeriram que as instalaes para pacientes agudos so dominadas

por uma abordagem estritamente mdica, com centralidade da terapia farmacolgica, em

desacordo com as expectativas dos pacientes (GIGANTESCO et al, 2007).

Larrobla e Botega (2006), em um estudo nacional realizado com dez hospitais gerais

do interior de trs Estados brasileiros, apontou que o espao disponibilizado para os pacientes

psiquitricos internados geralmente era insuficiente, sem estrutura para acomodar pertences

pessoais. O tempo de internao variou entre 15 e 28 dias e a permanncia de pacientes

psiquitricos na enfermaria suscitou desconforto na equipe do hospital. Tal sentimento se deu

em funo da dificuldade de lidar com pacientes agressivos, da longa estadia do paciente e a da

responsabilidade que o hospital tinha com os demais pacientes. Dos dez hospitais estudados,

seis contavam apenas com a terapia farmacolgica (LARROBLA & BOTEGA, 2006).

O protagonismo da terapia farmacolgica tambm foi observado no estudo

conduzido por Da Silva (2014). Quase a totalidade dos pacientes que receberam alta das

internaes na unidade estudada saram com uso de psicofrmacos, porm,

surpreendentemente, 58,5% dos pacientes no foram encaminhados para continuidade do

acompanhamento em servios de referncia. A psicofarmacologia tem importante papel no

controle dos sintomas psiquitricos e diminuio de reinternaes, mas o uso de medicaes

psicotrpicas requer acompanhamento contnuo e apenas a recomendao do uso no garante a

adeso ao tratamento farmacolgico. O no encaminhamento dos usurios para tratamento em

servios de referncia depois da alta pode acarretar em reinternaes.

Dalgalarrondo (2003) estudou as variveis clnicas e socioeconmicas associadas com

xitos ou fracassos das internaes psiquitricas em hospital geral. Os desfechos foram

definidos a partir de duas variveis: condio de alta e durao da internao. Os melhores

desfechos eram os de internaes inferiores a 21 dias e bom exame do estado mental e

36

comportamental no momento da alta. Um desfecho desfavorvel era considerado em

internaes superiores a 21 dias e com exame mental e comportamental refletindo pouca

melhora clnica. O estudo concluiu que os piores desfechos das internaes aconteciam com

quadros psicorgnicos, em pacientes que tinham mais de 60 anos e no exerciam funo social

(trabalho, estudo e tarefas domsticas). Tal achado apontou para a existncia de um grupo de

pacientes internados em leitos psiquitricos em hospital geral que necessitam de atividades de

reabilitao psicossocial, com treinamento em habilidades sociais e orientao dos cuidadores.

Independentemente da modelagem adotada para o funcionamento dos leitos de sade

mental em hospital geral, fatores de resistncia prtica de sade mental em hospital geral

perpassam as diversas experincias. O risco de violncia e a instabilidade dos pacientes aparece

constantemente nas preocupaes de membros das equipes de hospitais gerais (BRASIL, 1982;

BOTEGA & DALGALARRONDO, 1993; DO PRADO et al, 2015). Outros problemas como

inadequao do espao fsico e distoro da misso assistencial do leito de sade mental,

submetendo-se ao modelo mdico biolgico, tambm apareceram como problemas (BRASIL,

1982; BOTEGA & DALGALARRONDO, 1993; DO PRADO et al, 2015; HILDEBRANDT,

2001). Ser apresentado a seguir um quadro com os principais fatores de resistncia

implantao dos leitos de sade mental em hospital geral, segundo diferentes autores:

37

Quadro 2 - Fatores de resistncia implantao de internaes psiquitricas em hospitais gerais

segundo diferentes autores.

Autor(es) Fator de resistncia

Botega e

Dalgalarrondo, 1993.

preconceitos e estigmas relacionados doena mental e ao seu

tratamento. Para muitos ainda lugar de louco no hospcio

preconceitos relacionados periculosidade dos doentes mentais. H o

temor de que doentes mentais possam representar um perigo de agresso

fsica para os outros pacientes do hospital e pessoal tcnico.

temor de que, ao se aceitarem doentes mentais no hospital geral, estes

viriam em nmero crescente e que no haveria como cuidar deles; temor

de que os doentes mentais crnicos fiquem ocupando leitos caros e

originalmente concebidos para tratar doenas somticas curveis.

Do Prado, de Castilho S

e Miranda, 2015.

ideia de que estes pacientes (psiquitricos) interrompem a estrutura e o

fluxo do trabalho da equipe e requerem mais tempo e esforo desta;

Em relao interao medicamentosa, podese considerar que o

tratamento farmacolgico de pacientes com transtorno mental se

apresenta como grande desafio aos profissionais mdicos em geral.

Lucchesi e Malik, 2009.

a ideia de intratabilidade dos transtornos mentais, particularmente no

hospital geral, trouxe tona a marca da degenerao atribuda sobretudo

aos portadores de transtornos mentais severos. J cronificados, esses

pacientes supostamente demandariam cuidados hospitalares

ininterruptos, afetando negativamente a imagem da instituio

Desinteresse dos sistemas locais de sade em implementarem as

polticas de sade mental, aliadas a postura passiva do rgo gestor no

planejamento, organizao e controle da rede de sade local.

Fonte: BOTEGA N. & DALGALARRONDO P., 1993; DO PRADO M.F., S M.de C., 2015;

LUCCHESI, M., MALIK,A.M, 2009.

Entre as razes mencionadas, o desinteresse na prestao de servios de sade mental

chama a ateno. Lucchesi e Malik (2009) avaliaram a implantao de leitos psiquitricos em

um hospital geral de Taubat SP e perceberam que o estigma no pareceu ser o maior fator de

resistncia encontrado na implantao dos leitos. A existncia de uma viso auto referenciada

da instituio, alheia a qualquer poltica de sade local fez com que a unidade optasse por

prestar a assistncia que melhor lhe conviesse, sem respeitar padres de cobertura e oferta de

servios de sade. O trabalho concluiu que a postura passiva do rgo pblico gestor, que pouco

influa no planejamento e organizao da rede de sade local, foi determinante para o desenho

desestruturado da rede de sade do municpio. A resistncia foi superada quando o rgo gestor

38

assumiu sua ascendncia sobre a unidade hospitalar viabilizando o funcionamento dos leitos e

melhorando a remunerao pelas internaes na unidade.

4.1 OS LEITOS DE SADE MENTAL NO HOSPITAL GERAL E O CONTEXTO

ASSISTENCIAL NACIONAL

A organizao da rede assistencial extra-hospitalar de maneira regionalizada e

hierarquizada condio essencial para que acontea a reverso do modelo hospitalocntrico

para o modelo comunitrio. Os Centros de Ateno Psicossocial (CAPS) so equipamentos

estratgicos no atendimento aos portadores de sofrimento mental no mbito comunitrio. O

CAPS nasceu em 1987, em So Paulo, com a misso de ser um potente dispositivo para

atendimento comunitrio a casos graves, oferecendo a uma populao adscrita atendimento de

cuidado intermedirio entre a internao e o ambulatrio (TENRIO, 2002). A ideia principal

era proporcionar um espao que pudesse protagonizar a organizao da rede de sade mental

substitutiva, servindo tambm como porta de entrada da rede comunitria para casos que

necessitassem de cuidados intensivos, evitando internaes. A medida que as internaes

fossem evitadas e os pacientes pudessem ficar maiores perodos estabilizados e sem se internar,

poderia haver diminuio do nmero de leitos em hospitais psiquitricos. Quando se fizesse

necessria a internao, os leitos de sade mental em hospital geral poderiam suprir essa

demanda de maneira menos iatrognica.

O relatrio da coordenao de sade mental, lcool e outras drogas do Ministrio da

Sade (BRASIL, 2016) aponta que em 2002 o nmero de leitos em hospitais psiquitricos era

de 51.393 leitos. Em 2015 haviam diminudo para 25.126. Em relao aos Centros de Ateno

Psicossocial, seu quantitativo passou de 404 em 2002 para 2328 em 2015. Esses nmeros

expressam a trajetria histrica e poltica que vem sendo afirmada pelo subsetor de sade

mental brasileiro. Est em curso no pas a reorientao da assistncia psiquitrica, com

marcante presena na legislao de sade, na diminuio dos leitos psiquitricos em hospitais

especializados, na reorientao para uma assistncia de base comunitria e na implantao de

novos componentes da rede de cuidados.

39

Grfico 1 - Leitos do Sistema nico de Sade em hospitais psiquitricos por ano Brasil

dezembro de 2002 a dezembro de 2015.

Fonte: BRASIL, 2016.

A ampliao do nmero de leitos de sade mental em hospitais gerais no Brasil vem se

afirmando como desafio a ser superado. Em publicao de Delgado (1997), ele escrevia que os

leitos asilares estavam em reduo, os CAPS em crescimento, mas os leitos de psiquiatria em

hospital geral no apresentavam crescimento. Na poca de seu texto, se contabilizavam 1765

leitos de psiquiatria em hospitais gerais (DELGADO, 1997). Em 2014 esses mesmos leitos

somavam 4620 em todo o pas (BRASIL, 2015). O aumento do nmero de leitos cresceu em

ritmo incompatvel com sua importncia na rede de sade mental substitutiva. O Brasil

reconhece a importncia do hospital geral no atendimento aos portadores de transtornos mentais

e vem editando leis, portarias e resolues, tentando induzir seu uso e qualificar a rede j

existente.

No que tange aos leitos psiquitricos em hospital geral, a portaria SNAS n 224 de 29

de janeiro de 1992 teve fundamental importncia em criar diretrizes e normas para diversos

tipos de atendimentos, entre eles os atendimentos psiquitricos no hospital geral. Essa portaria

estabeleceu parmetros para funcionamento dos leitos no hospital geral, garantindo sua

existncia nos padres compatveis com a reforma psiquitrica. A internao deveria ser o

ltimo recurso e quando necessria, precisaria acontecer com a participao de equipe

multiprofissional e de forma coordenada com servios locais. Vinte anos depois, em janeiro de

2012, o componente hospitalar foi regulamentado atravs da portaria MS/GM n 148, passando

40

a se chamar Servio Hospitalar de Referncia para ateno a pessoas com sofrimento ou

transtorno mental e com necessidades de sade decorrentes do uso de lcool, crack e outras

drogas ficando estabelecido que dever prestar assistncia a pessoas com sofrimento ou

transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, lcool e outras drogas, de

maneira articulada e integrada com os demais servios da RAPS, por menor tempo necessrio,

visando a construo de um projeto teraputico que contemple as necessidades do indivduo e

garanta a continuidade da assistncia aps a internao. A portaria MS/ GM n 148 manteve os

propsitos reformistas e substitutivos dos leitos de sade mental em hospital geral, porm

estabeleceu novos parmetros para seu funcionamento. Duas principais mudanas que merecem

ser destacadas so: para que os leitos sejam cadastrados e remunerados, tm-se a necessidade

de existncia de aes de sade mental na ateno bsica e CAPS no municpio; os leitos so

um componente de uma rede maior, a Rede de Ateno Psicossocial (RAPS), instituda com a

portaria MS/ GM 3088.

A portaria MS/ GM 3.088, de dezembro de 2011, institui a Rede de Ateno

Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes

do uso de crack, lcool e outras drogas (RAPS), no mbito do Sistema nico de Sade (SUS).

Nela aparece como um dos componentes a ateno hospitalar, composta por a) enfermaria

especializada em Hospital Geral; b) servio Hospitalar de Referncia para Ateno s pessoas

com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, lcool e

outras drogas;.

Os Servios Hospitalares de Referncia para ateno a pessoas com sofrimento ou

transtorno mental e com necessidades de sade decorrentes do uso de lcool, crack e outras

drogas ainda apresenta tmida participao na assistncia a agudos no pas, sendo seu total 1005

leitos em 206 hospitais no ano de 2015 (BRASIL, 2015). Tentando dirimir as dificuldades

enfrentadas na implantao dos leitos de sade mental, a Coordenao nacional de sade mental

vem adotando algumas medidas de estmulo. No Relatrio de Gesto 2011-2015 elaborado pela

Coordenao Geral de Sade Mental, lcool e Outras Drogas so apresentadas medidas que

buscam parcerias com a Rede de Urgncia e Emergncia, e com o Ministrio da Educao, tentando

sensibiliza-los quanto a adoo de leitos de sade mental em Hospitais Universitrios Federais.

Alm disso, incentivos federais de implantao e custeio de leitos de sade mental em hospital

geral foram disponibilizados pelo Ministrio da Sade para as unidades que atendessem s

exigncias para o credenciamento.

As medidas indutivas ainda no se mostraram suficientes para a converso dos leitos

localizados em hospitais psiquitricos em leitos em hospitais gerais. O cenrio atual da

41

distribuio dos leitos nos dois dispositivos expressa nmeros ainda desproporcionais (1005

leitos em Servios Hospitalares de Referncia para ateno a pessoas com sofrimento ou

transtorno mental e com necessidades de sade decorrentes do uso de lcool, crack e outras

drogas e 25.126 leitos em hospitais psiquitricos do SUS). Ou seja, dos 26.131 leitos para

atendimento a agudos, apenas 3,84% so leitos de sade mental em hospitais gerais.

Os leitos para pacientes agudos em hospitais gerais surgiram como oportunidade de

redesenhar a rede assistencial em sade mental e oferecer atendimento de forma menos

estigmatizada e iatrognica. No Brasil, a assistncia extra-hospitalar, representada

principalmente pelos CAPS, vem garantindo que haja opo no atendimento aos portadores de

transtorno mental, evitando internaes desnecessrias. Os leitos de sade mental em hospital

geral, organizados dentro das RAPS, podem contribuir na diminuio do tempo de internao

e construo coletiva de um projeto teraputico para aquele que sofre. Apesar dos esforos para

que isso acontea, as internaes em hospitais psiquitricos ainda so mais ofertadas do que as

internaes em hospitais gerais. A rede de sade mental da cidade do Rio de Janeiro exemplo

disso e seu estudo pode revelar as dificuldades por trs da expanso dos Servios Hospitalares

de Referncia para ateno a pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades

de sade decorrentes do uso de lcool, crack e outras drogas.

42

5 A SADE MENTAL NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

Para compreender o desenho assistencial atual da sade mental no municpio do Rio de

Janeiro, se faz necessrio retornar alguns anos e fazer uma rpida mirada em seu modelo de

assistncia, principalmente nos anos 90. A cidade tinha sido sede do imprio e depois capital

federal at 1960. Por essa razo sofreu com a aglomerao populacional e foi privilegiada em

relao a implantao de servios de sade. No campo psiquitrico, o Rio de Janeiro recebeu o

primeiro hospital psiquitrico do Brasil, o Hospcio Nacional de Alienados. Seguiu forte

tradio hospitalocntrica, implantando outros hospitais de grande porte, pblicos ou

conveniados, como a Colnia Juliano Moreira, o Centro Psiquitrico Pedro II, o hospital

Philippe Pinel e a Casa de Sade Dr. Eiras. Em 1997, a cidade tinha a oferecer 5636 leitos para

internao psiquitrica, sendo que destes leitos, 2958 leitos estavam no setor privado (MAIA,

2012), em clnicas de pssima qualidade que vendiam seus servios ao setor pblico.

A gesto municipal tinha participao limitada nas aes de sade mental da cidade at

o incio dos anos 90. A oferta mais consistente de atendimento s crises psiquitricas era a

internao, que acontecia em hospitais sob gerncia do Ministrio da Sade (MS) ou na rede

contratada, ligada ao Instituto Nacional da Assistncia Mdica da Previdncia Social

(INAMPS). Este mesmo instituto tambm possua uma rede ambulatorial que, junto com os

hospitais de internao e as emergncias psiquitricas, compunham os servios de assistncia

psiquitrica do territrio. A opo pblica que se tinha na poca era basicamente a internao

psiquitrica com alta expectativa de reinternao. O municpio do Rio de Janeiro pouco podia

intervir na organizao de sua rede assistencial psiquitrica. A cidade no dispunha de nenhum

servio prprio, hospitalar ou ambulatorial, de atendimento a clientela com grave

comprometimento psquico (SILVA, 2003).

A dcada de 90 condensou diversos fatores que favoreceram a organizao da poltica

de sade mental do Rio de Janeiro. Foi uma poca de conquistas, com a concretizao do SUS

e da municipalizao. A extino da antiga Diviso Nacional de Sade Mental (DINSAM) e

sua substituio pela Coordenao Nacional de Sade Mental representou importante passo na

formulao e implantao de polticas de sade mental, alinhadas com a reforma psiquitrica e

a qualificao da assistncia pblica. Os municpios foram chamados a assumir

responsabilidades com seus moradores (MAIA, 2012) e isso impulsionou a organizao da

assistncia psiquitrica na cidade do Rio de Janeiro. Uma das mais importantes aes do mbito

municipal foi a realizao de um censo da populao de internos em hospitais psiquitricos

pblicos e conveniados ao SUS, na cidade do Rio de Janeiro, em 1995. Neste mesmo ano o

43

municpio passou a ser gestor incipiente do sistema nico de sade municipal, podendo exercer

maior controle e fiscalizao sobre as clnicas psiquitricas contratadas. O municpio assinava

a autorizao de pagamento da AIH (autorizao de Internao Hospitalar) para remunerar a

rede conveniada e passou a fazer seu papel, de fiscalizar aquilo que era comprado enquanto

servio. Ainda na dcada de 90 aconteceram as municipalizaes dos trs grandes hospitais

psiquitricos Federais (Colnia Juliano Moreira, Centro Psiquitrico Pedro II e Hospital

Phillipe Pinel) ocorridas entre 1996 e 1999 possibilitando que a gesto municipal se apropriasse

cada vez mais do gerenciamento dos leitos psiquitricos da cidade. A partir dessas aes

(municipalizao de hospitais federais, fiscalizao das clnicas conveniadas e a realizao do

censo) o municpio do Rio de Janeiro traou as estratgias necessrias para o incio da

substituio de seu parque hospitalar psiquitrico.

O censo hospitalar foi realizado pelo IPUB/ UFRJ, ENSP/ FIOCRUZ e Secretaria

Municipal de Sade. Era composto de um questionrio-padro e de dados qualitativos colhidos