ROLLEMBERG, Denise. A construção social dos regimes autoritários

644
A construção social dos regimes autoritários Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28 1

Transcript of ROLLEMBERG, Denise. A construção social dos regimes autoritários

A construção social dosregimes autoritários

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:281

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:282

Denise Rollemberg eSamantha Viz Quadrat [orgs.]

A construção social dosregimes autoritáriosLegitimidade, consenso econsentimento no século XX

Brasil e América Latina

Rio de Janeiro2011

Y920-01(Civilização).p65 4/5/2011, 16:203

Copyright ©2010 by Denise Rollemberg e Samantha Viz Quadrat

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

C775 A construção social dos regimes autoritários: Brasil e América Latina,v.2 volume II / Denise Rollemberg e Samantha Quadrat (organizadoras);

[tradução Maria Alzira Brum Lemos, Sílvia de Souza Costa].– Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

3v.

Inclui bibliografiaISBN 978-85-200-1015-0

1. Autoritarismo – América Latina. 2. Autoritarismo – Brasil. 3. América Latina– Politica e governo. 4. Brasil – Política e governo. 5. Sociologia política.I. Rollemberg, Denise, 1963-. II. Quadrat, Samantha.

CDD: 321.9810-5055 CDU: 321.64(8)

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento outransmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem préviaautorização por escrito.

Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Direitos desta ediçãoEDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRAUm selo daEDITORA JOSÉ OLYMPIO LTDARua Argentina 171 – 20921-380 – Rio de Janeiro, RJ – Tel.: 2585-2000

Seja um leitor preferencial Record.Cadastre-se e receba informações sobre nossoslançamentos e nossas promoções.

Atendimento e venda direta ao leitor:[email protected] ou (21) 2585-2002.

Impresso no Brasil2011

Y920-01(Civilização).p65 4/5/2011, 16:204

A habitual antítese “Estado” versus “sociedade” é talvezinadequada quando se deseja estudar as relações entreambas as coisas. Caso se aceite a hipótese de os Estados,mesmo arbitrários, serem parte de um todo mais amplo eque o fato de permanecerem arbitrários produzirá resulta-dos catastróficos, é preciso elaborar um conceito de Estadoque dê margem ao estabelecimento de conexões entre a áreapolítica e as demais áreas da vida social.

MOSHE LEWIN, O fenômeno Gorbachev.Uma interpretação histórica

Um vibrato do inacabado que anima repentinamente todoum passado, um presente pouco a pouco aliviado de seuautismo, uma inteligibilidade perseguida fora de alamedaspercorridas: é um pouco isto a história do presente.

JEAN-PIERRE RIOUX,“Pode-se fazer uma história do presente?”

Y920-01(Civilização).p65 4/5/2011, 16:585

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:286

7

Sumário

APRESENTAÇÃO 11

PARTE 1

Brasil 33

CAPÍTULO 1

Estado Novo: ambiguidades e heranças do autoritarismo no Brasil 35Angela de Castro Gomes

CAPÍTULO 2

Celebrando a “Revolução”: as Marchas da Família com Deus pelaLiberdade e o Golpe de 1964 71

Aline Presot

CAPÍTULO 3

As trincheiras da memória. A Associação Brasileira de Imprensa e aditadura (1964-1974) 97

Denise Rollemberg

CAPÍTULO 4

“Vencer Satã só com orações”: políticas culturais e cultura de oposiçãono Brasil dos anos 1970 145

Marcos Napolitano

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:287

CAPÍTULO 5

Simonal, ditadura e memória: do cara que todo mundo queria sera bode expiatório 175

Gustavo Alonso

CAPÍTULO 6

As atividades político-partidárias e a produção de consentimentodurante o regime militar brasileiro 219

Alessandra Carvalho

CAPÍTULO 7

“Saudações arenistas”: a correspondência entre partidários da AliançaRenovadora Nacional (Arena), 1966-1979 251

Lucia Grinberg

CAPÍTULO 8

Desbundar na TV: militantes da VPR e seus arrependimentospúblicos 279

Beatriz Kushnir

PARTE 2

América Latina 305

CAPÍTULO 1

O peronismo e a classe trabalhadora, 1943-1955 307

Daniel James

CAPÍTULO 2

A revolução e o socialismo em Cuba: ditadura revolucionária econstrução do consenso 363

Daniel Aarão Reis

Y920-01(Civilização).p65 4/5/2011, 16:208

CAPÍTULO 3

“Data feliz” no Paraguai. Festejos de 3 de novembro, aniversáriode Alfredo Stroessner 393

Myrian González Vera

CAPÍTULO 4

Stroessner e “Eu”: a cumplicidade social com aditadura (1954-1989) 437

Miguel H. López

CAPÍTULO 5

O lado escuro da lua. O momento conservador em 1968 471

Ariel Rodríguez Kuri

CAPÍTULO 6

A oposição juvenil à Unidade Popular 521

Samantha Viz Quadrat

CAPÍTULO 7

“Uma parte do povo uruguaio feliz, contente, alegre”: os caminhosculturais do consenso autoritário durante a ditadura 563

Aldo Marchesi

CAPÍTULO 8

Testemunhas e vizinhos: a ditadura na Grande Rosário (Argentina) 597

Gabriela Águila

CAPÍTULO 9

Entendendo as adesões cidadãs ao governo de Alberto Fujimori 615

Romeo Grompone

Y920-01(Civilização).p65 4/5/2011, 16:209

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2810

Apresentação

Memória, história e autoritarismos

Tem sido frequente em sociedades que passaram por regimes autoritáriosou ditaduras, sucedidos por regimes democráticos, a construção de umamemória segundo a qual o autoritarismo só foi possível em função de ins-tituições e práticas coercitivas e manipulatórias. Por muito tempo, a ênfasedas abordagens das experiências esteve no poder das forças coercitivas; oângulo de observação do historiador, o Estado; o objeto a ser buscado evalorizado, a resistência. O principal problema que as interpretações colo-caram, provavelmente, é não ter compreendido os regimes autoritários eas ditaduras como produto social. As explicações que partem das oposi-ções vítima e algoz, opressor e oprimido, buscando respostas na repressão,na manipulação, no desconhecimento (nós não sabíamos), embora sedutoras— explicam tudo sem muito esforço e sem colocar o dedo na ferida —,levaram a distorções consideráveis. Apegadas às necessidades do presente,essas construções acabam por encobrir o passado, o presente, os valores eas referências das sociedades que sobrevivem às rupturas, pontes de conti-nuidade, a sinalizar possibilidades de futuro.

Nas últimas décadas, entretanto, houve uma renovação das abordagensdas relações entre sociedades e regimes autoritários e ditatoriais. Os estu-dos dos anos 1970 e 1980 sobre os fascismos — em particular o nazismo ea França sob a Ocupação e o Regime de Vichy — tiveram um destacadopapel nessa revisão.

Num movimento que esteve aquém e além dos muros da academia, so-ciedades que viveram a experiência — ou herdaram a sua memória — par-ticiparam, e ainda participam, do desconfortável processo de refletir sobre

Y920-01(Civilização).p65 4/5/2011, 16:2011

12

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

si mesmas em face do autoritarismo. Diante do espelho, não raro, descobrem-se mesmo como parte de sua engrenagem, a gestá-lo, a alimentá-lo. Em todocaso, as respostas variaram nesse percurso, que esteve longe de ser retilíneo,estendendo-se ao longo das décadas. Não é o caso de desenvolvermos aqui odebate. Apenas lembrar como as dicotomias estritas, frequentes a princípio,como colaboracionismo ou resistência, deram lugar a um quadro mais com-plexo e fino das muitas relações possíveis das sociedades com os regimes au-toritários e ditatoriais. Nele aparecem as ambivalências,1 estranhas aosmaniqueísmos estranhos aos humanos, ambivalências que revelam, ao con-trário, as duplicidades formatadas nos moldes dos homens e mulheres.

No Brasil, um tema central da história contemporânea também foi re-visto, recentemente. Nos anos 1980, Angela de Castro Gomes rompeu comuma análise consagrada na historiografia, segundo a qual o populismo inau-gurado nos anos 1930 sustentava-se fundamentalmente a partir da repres-são e da manipulação das massas pelo ditador.2 Angela Gomes compreendeuo trabalhismo de Getúlio Vargas, ao contrário, a partir das relações de iden-tidade, compromissos, interesses estabelecidos entre o regime e os traba-lhadores. Desde então, inúmeras pesquisas temáticas tomaram a tese comoreferencial teórico, levando à revisão do período, da cultura política da nossahistória contemporânea.

Pensando ainda o Brasil, mas o da última ditadura (1964-85), embora jáexista uma vasta bibliografia sobre o período, pouco se pesquisou e escre-veu no sentido de compreender as relações da sociedade com o regime inau-gurado em 31 de março. Os estudos se concentram no sistema e nosinstrumentos repressivos e nas resistências. Como ironizou Daniel AarãoReis, de acordo com a memória construída desde o fim da década de 1970,todos se tornaram resistentes e democratas, restando a pergunta: como aditadura se manteve por 21 anos?3 Enigma indecifrável. A academia, já tendoproduzido tanto sobre a ditadura, mas tão pouco sob esse ângulo, contri-bui, de certa forma, contraditoriamente, para esse desconhecimento.

Quanto às ditaduras latino-americanas da segunda metade do século XX,em especial as da década de 1970, apenas recentemente, e ainda de manei-ra tímida, os historiadores têm se interessado em atravessar as fronteirasque os levam além das histórias das resistências e da violência do Estado.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2812

13

A P R E S E N TA Ç Ã O

Com isso, arriscando-se em temas que colocarão a sociedade diante do es-pelho, que indicarão pontes que uniram continentes onde se viam univer-sos isolados.

Devemos observar que mesmo os estudos sobre a repressão políticapoderiam ter rompido com o binômio anteriormente identificado. No en-tanto, permaneceram em grande parte voltados para a denúncia (instru-mento mais do que necessário no início da redemocratização), a descriçãodas torturas e dos centros de detenção. Só há pouco tempo os pesquisado-res buscaram entender a formação daqueles que atuavam na repressão: quemeram, suas ideias e visões de mundo forjadas nos treinamentos nacionais einternacionais. Ver o homem, e não o “monstro do torturador”, tem sidouma preocupação desses trabalhos. O homem com a cara-de-qualquer-um,saído da sociedade, nada estranho a ela, portanto. Não sendo suportávelacreditar que a barbárie foi aceitável, criou-se a figura do torturador não àimagem e semelhança de homens e mulheres, mas de seres loucos, mons-tros, anormais, como se o Mal não fizesse parte da humanidade. Em senti-do inverso, mas seguindo a mesma lógica, a rejeição ao Hitler doce e sensíveldo filme A queda.4 Enquanto estivermos procurando torturadores sem ros-tos humanos, longe estaremos de compreender a barbárie como criação dehomens e mulheres, gestada em nosso meio.

Da mesma maneira, ainda pensando a historiografia latino-americana,ampliou-se o debate sobre o quão clandestina poderia ter sido a violênciapolítica, na medida em que os principais centros de repressão estavam noperímetro urbano, ao lado de escolas, residências etc., e não nos chamadosporões. Discutir a indiferença e/ou o silêncio frente à violência nos perío-dos ditatoriais é também compreender como essas sociedades se relacio-nam hoje, em tempos democráticos, com os arbítrios praticados pelas forçasde segurança do Estado, mais notoriamente as policiais.

Os movimentos de resistência a regimes autoritários e ditaduras têm sido,em geral, supervalorizados em experiências do século XX, seja quanto às suasdimensões quantitativas seja quanto às qualitativas. Sem desconsiderá-los, in-clusive como objetos de pesquisa, não raramente essa ênfase está ligada à lutapolítica, que acaba por encobrir o papel que tiveram num contexto marcadopelo consenso e pelo consentimento em torno de um regime autoritário.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2813

14

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Falar das resistências é também — para além das reconstruções a posteriorianteriormente referidas — uma maneira de afirmar a sobrevivência do li-vre-arbítrio, mesmo em situações as mais adversas. Passado o confronto —da afirmação, da luta contra a negação, mesmo que as tiranias jamais te-nham desaparecido — é preciso superá-lo, ir adiante. O trabalho militantediferencia-se, pois, do trabalho do historiador.

Em determinados meios — mesmo acadêmicos — ainda sobrevive a cren-ça segundo a qual afirmar a legitimidade de um regime autoritário ou dita-torial, o apoio de significativas parcelas da sociedade, sobretudo quando setrata de camadas populares, é o mesmo que defendê-los. Como se a lutapolítica contra o autoritarismo e a ditadura justificasse a deformação daanálise, da interpretação, da informação. Não compartilhamos dessas po-sições. Afirmar que um tirano foi amado por seu povo não significa con-cordar com a tirania, apoiar suas ideias e práticas. Tampouco o falseamentodas relações da sociedade com o autoritarismo deve ser um instrumentoválido e útil para combatê-lo. Ao contrário. Conhecê-las é o primeiro pas-so para transformá-las. São os valores e as referências, as culturas políticasque marcam as escolhas, sinalizando relações de identidade e consentimento,criando consensos, ainda que com o autoritarismo. Aliás, a deturpação dainformação, do conhecimento, não seria também um ato autoritário?

Motivadas por essas tendências historiográficas e pretendendo contri-buir nessa direção, propusemos, na linha de pesquisa memória e história,do Núcleo de Estudos Contemporâneos da Universidade Federal Flumi-nense, uma coletânea (embora não seja necessariamente de memória) ca-paz de reunir textos sobre diversos regimes autoritários e ditatoriais doséculo XX, em diferentes momentos e continentes — América Latina, Eu-ropa, África e Ásia —, basicamente a partir de duas questões-eixo:

— como um regime autoritário/uma ditadura obteve apoio e legitimida-

de na sociedade;

— como os valores desse regime autoritário/ditatorial estavam presen-

tes na sociedade e, assim, tal regime foi antes resultado da própria constru-

ção social.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2814

15

A P R E S E N TA Ç Ã O

São artigos que tratam de situações concretas, países de culturas, tradi-ções e passados os mais variados, nos quais a construção do consenso e abusca do consentimento estiveram centradas nas características que os de-finiam: países ricos, pobres, capitalistas, socialistas, de passado colonial, depassado colonialista, saídos de guerras, rumando em sua direção; países nosquais a religião fundira-se com o Estado, nos quais o Estado laico era a re-ligião; países em que os aspectos religiosos pouco importaram; países nosquais supostamente havia uma democracia consolidada, nos quais a demo-cracia talvez fosse apenas uma palavra; países onde se pode trabalhar à von-tade com os conceitos de sociedade e Estado; países onde isso não é evidente,ao contrário, outros conceitos expressam melhor uma formação históricamuito diferente da ocidental. Assim, como veremos, os conceitos Estado,democracia e sociedade ganham significados próprios em tempos e lugarestão diversos.

Enfim, as diferenças são muitas, o que enriquece a reflexão, mas tambémaponta limites. Enriquece porque mostra como em situações muito diferen-tes entre si a possibilidade do consenso e do consentimento em torno de re-gimes autoritários e ditatoriais foi uma realidade no século XX. Dificulta namedida em que o estado da historiografia quanto à proposta sugerida é desi-gual. Como já dissemos, enquanto para determinados regimes já existe umaprodução significativa nessa linha, para outros essa abordagem não é visível,o que colaborou na seleção dos países aqui tratados. Mesmo que haja pesqui-sadores desenvolvendo esse ponto de vista, a bibliografia está longe de serabundante. Dificuldades também surgem quando pensamos conceitos taiscomo Estado, ditadura, democracia, sociedade em países com formaçõespróprias, distantes do suposto universalismo ocidental.

Quanto ao Brasil, nos concentramos no período da ditadura civil-mili-tar, pois, sem dúvida, para o Estado Novo a questão das relações entre re-gime autoritário e sociedade está bem mais desenvolvida. Conseguimos,então, reunir autores da nossa última ditadura, que vêm desenvolvendo suaspesquisas nessa direção, nada comum até recentemente.

No caso da América Latina, alguns autores já trabalhavam seus temassegundo a abordagem que nos interessava; para outros, foi um desafio.Separamos o Brasil, pois sobre ele concentramos um número maior de ar-tigos em relação aos demais países latino-americanos.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2815

16

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Enfim, o debate já presente na historiografia nos estimulava a pensá-lopara além das fronteiras geográficas, culturais e temporais nas quais se ins-crevia; aguçava a curiosidade de historiador de imaginá-lo onde permane-cia ausente, mesmo em países e continentes povoados por ditaduras.

Aqui encontramos algumas das experiências de regimes autoritários noséculo passado. O leitor lembrará de outras. Afinal, quantos volumes seriamnecessários para reunir todas? O Vietnã de Ho Chi Minh, o Egito de Nasser,a Romênia de Ceausescu, a Turquia de Atatürk, a Iugoslávia de Tito, aUganda de Idi Amin...

Nem sempre houve entre nós — autores e organizadoras — uma posi-ção comum quanto ao entendimento se determinado regime era — é —autoritário e mesmo uma ditadura. Cuba de Fidel e Argentina de Perón sãocasos, entre outros, polêmicos. Angola e Moçambique pós-libertação nacio-nal. O México do Partido Revolucionário Institucional (PRI), em 1968, con-siderado por uns autoritário, por outros, como o escritor Mario Vargas Llosa,a ditadura perfeita. Assim, os recortes de tempo e lugar de cada artigo nãocomprometem as posições do conjunto dos autores. Esclarecemos ainda queconsideramos a historiografia — sua existência e seu mérito — que nãoconcebe determinados governos ou regimes aqui trabalhados como autoritáriosou ditatoriais. Que a coletânea, então, possa enriquecer o debate, dialo-gando com seus autores.

A intenção, ao reunir pesquisadores de universidades e centros de estu-do que trabalham com essa abordagem e lançar o desafio a outros colegas,foi refletir sobre as relações complexas entre autoritarismo e democraciano século XX. A luta política contra o autoritarismo talvez tenha levado auma superestimação das aspirações democráticas dos povos, segundo a fór-mula o mundo marcha para a democracia. Na verdade, a história do séculomostra como, não raro, o autoritarismo é que foi a reivindicação. Nãoafirmamos que sempre ou na maior parte das vezes foi assim. Estamos di-zendo que muitas vezes ocorreu dessa forma, em momentos diferentes doséculo, em países com características muito distintas. Aí está o nosso objetode estudo. É preciso, pois, perceber a dimensão que a democracia — ou odesejo de democracia — teve no século XX, não em função do quanto gos-taríamos que tivesse sido, mas confrontada com as bases sociais das expe-riências autoritárias.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2816

17

A P R E S E N TA Ç Ã O

Muito menos a intenção foi fazer uma caça às bruxas. A governos, regi-mes, sociedades e personagens. Como já aprendemos, nesse movimento, abruxa torna-se o próprio caçador e das cinzas da fogueira não saem respos-tas às questões do historiador, nem mesmo algo de que possa se orgulhar.

O que se quer é compreender como, ao longo do século XX, o consen-so, frequentemente, se formou em padrões não democráticos, sem que essaausência tenha sido percebida pela sociedade contemporânea como umproblema. Portanto, interessa verificar concretamente como os consensosforam criados; como as acomodações de interesses fizeram-se em regimesautoritários através de mecanismos traduzidos em ganhos materiais e/ousimbólicos para as sociedades.

Se a resistência e a memória da resistência sempre identificaram as dita-duras à tirania, veremos como, não raramente, estas foram reivindicadasaté mesmo como salvadoras da própria democracia, dos valores nacionaise sociais, como o único caminho, o fio condutor da transformação radicalda sociedade. Em diferentes circunstâncias, a democracia é que foi rejeitada.

A intenção, então, é entender como os ditadores foram amados — quan-do se trata de ditaduras pessoais — não porque temidos, mas, provavel-mente, porque expressavam valores e interesses da sociedade que, em dadomomento, eram outros que não os democráticos. Em questão, portanto,um senso comum e uma historiografia que veem o desejo de democraciacom mais frequência do que se pode constatar historicamente.

Que esta coletânea de textos sobre experiências autoritárias e ditato-riais no século XX, legitimadas pelo apoio de significativas parcelas da so-ciedade, sobretudo pelas camadas populares, sirva não para justificá-las, maspara compreendê-las. Que contribua para a percepção do autoritarismocomo traço de união do passado e do presente, das presenças que sobrevi-vem às rupturas, que acompanham as mudanças. Que se some a umahistoriografia que rompeu com as noções de opressão/oprimidos, coerção-todo-poderosa, propaganda-manipuladora-sedutora, Estado versus socie-dade. Que se distancie de uma história do Bem contra o Mal, a aliviar ahumanidade das suas supostas desumanidades, mas que a condena ao des-conhecimento de si mesma.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2817

18

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

TEORIAS, DEFINIÇÕES, REFLEXÕES

Democracia e ditadura são dois termos oriundos da Antiguidade. A demo-

cracia foi criada em Atenas, Grécia, e apontava para uma maior participa-

ção dos cidadãos nas decisões políticas, ainda que excluísse mulheres,

estrangeiros e escravos. Já o termo ditadura apareceu pela primeira vez no

período da República romana. Com sentido positivo, era uma instituição

convocada diante de uma situação de emergência, prevista pela Constitui-

ção e “com poderes extraordinários, mas legítimos e limitados no tempo”.5

Ao longo da história, as concepções de democracia e ditadura foram (são)

permanentemente reconstruídas por diferentes sociedades. Atualmente, se

a democracia no mundo ocidental é consagrada pela máxima um governo

do povo, para o povo e pelo povo, a ditadura acabou tornando-se sinônimo

de tirania em oposição direta à democracia. No senso comum, um governo

não democrático é imediatamente rotulado de ditatorial.

No entanto, se o conceito de democracia é aparentemente de mais fácil

compreensão — um sistema de governo para ser democrático deve apre-

sentar eleições regulares, sem fraudes e realmente competitivas, liberdade

de imprensa e de organização, alternância no poder, independência dos três

poderes e o direito de qualquer cidadão votar e ser votado6 —, a questão

da definição de ditadura nos remete a um dilema. É possível classificar to-

dos os governos não identificados com esses padrões sob um mesmo con-

ceito? Nesta coletânea, por exemplo, temos governos considerados ditaduras

pessoais, militares, civis-militares, de esquerda, de direita. Como falamos

anteriormente, no caso de algumas experiências históricas aqui trabalhadas,

não há consenso sobre a sua definição. Nesse sentido, não são percebidas

como ditaduras, mas regimes autoritários. E outras, ainda mais singulares,

nem ditaduras nem regimes autoritários, mas exemplos de democracia.

A ausência de uma boa definição de ditadura é considerada um proble-

ma por vários autores de períodos e posições políticas e acadêmicas dife-

rentes que se dedicaram ao tema no século XX. É o caso do jurista alemão

Carl Schmitt, no livro A ditadura,7 e de Franz Neumann, no artigo “Notas

sobre a teoria da ditadura”.8

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2818

19

A P R E S E N TA Ç Ã O

O livro de Carl Schmitt foi publicado pela primeira vez em 1921, portan-to antes da constituição dos governos fascistas do século XX.9 No prólogoda primeira edição, Schmitt afirmava que, até então, o termo político ditadu-ra permanecera confuso, o que explicava, ao mesmo tempo, a sua enormepopularidade, bem como a aversão dos eruditos do direito a admiti-lo.10

Para Schmitt, de uma maneira geral, podemos chamar de ditadura

a toda excepción de una situación considerada como justa, por lo que estapalabra [ditadura] designa ya una excepción de la democracia, ya una excepciónde los derechos de libertad garantizado por la Constitución, ya una excepciónde la separación de los poderes o bien (como el la filosofía de la historia del

siglo XIX) una excepción del desarrollo orgánico de las cosas.11

Já Franz Neumann afirma que

por mais estranho que pareça, não temos um estudo sistemático sobre dita-dura. A informação histórica é abundante e há muitas análises sobre diver-sos ditadores em muitos países. Mas não existe uma análise que procuregeneralizar não somente com base na experiência política do século XX,

mas nos sistemas políticos do passado mais distante.12

Embora reconhecesse o livro de Carl Schmitt como a “exceção mais sig-nificativa”, Neumann não considerou sua análise “aceitável”, reservando-lhe apenas uma nota no fim do artigo.

Na busca por uma definição, Neumann estabelece ditadura como “ogoverno de uma pessoa ou de um grupo de pessoas que se arrogam o podere o monopolizam, exercendo-o sem restrições”.13

Existiriam, então, três tipos de ditadura, a saber: a simples, na qual ogoverno — quer seja militar, monárquico etc. — detém o controle dos ins-trumentos clássicos de domínio: o exército, a polícia, a burocracia e o ju-diciário; a cesarista, cujas características são a necessidade do apoio populare a personalização do governo em torno de um líder; e a totalitária, queapresenta características cesaristas, por meio da forte presença de um lídere das massas populares. No entanto, esses pontos podem não ser fortes osuficiente para a garantia do poder e acabam por obrigar o Estado a lançar

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2819

20

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

mão de outras estratégias, tais como o controle da educação, dos meios decomunicação e das instituições econômicas.

Além de criar tal tipologia, Neumann defende a tese de que, se analisar-mos mais atentamente alguns casos ao longo da história, seríamos forçadosa concluir que a visão democracia liberal (bem) versus ditadura (mal) nãose sustentaria: “Uma moralização sobre os sistemas políticos torna difícil acompreensão de suas funções.”14 Nesse sentido, as ditaduras podem ser umaimplementação da democracia, uma preparação para a democracia, na qualteríamos uma ditadura educativa; por outro lado, podem ser a negação dademocracia e, portanto, um sistema totalmente regressivo.15

Contemporâneo dos fascismos, assim como Schmitt, Neumann levan-ta uma questão essencial relacionada particularmente à temática desta co-letânea: a busca de apoio na sociedade. A ditadura simples ocorreria empaíses onde

as massas não são politizadas, onde a política está nas mãos de pequenos

grupos que competem por favores e que esperam ganhar prestígio e fortuna

com uma associação com o ditador. A massa paga apenas os impostos e tal-

vez seja obrigada a servir no exército, mas não toma mais parte alguma da

vida política.16

Assim, “dispensaria” a busca de apoio na sociedade. Já na ditadura dotipo cesarista ocorreria a necessidade do apoio popular, um novo elementoque a diferenciaria do primeiro modelo. Por fim, ao analisar a ditaduratotalitária, Neumann concluiu que, em função da maioria dos casos mo-dernos aí classificados terem surgido na democracia e contra ela, era-lhesnecessário “cultivar os rituais democráticos, embora despidos de toda a suaverdadeira substância”.17 O controle da sociedade tornava-se um de seuselementos característicos a ser exercido desde a liderança, sincronizandotodas as organizações sociais, criando elites graduadas, atomizando e iso-lando o indivíduo, transformando a cultura em propaganda e usando o ter-ror como ameaça permanente ao indivíduo.18

Neumann viu no medo um elemento fundamental dos processos psico-lógicos da ditadura, seja como aviso, proteção ou destruição.19 Do medo,

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2820

21

A P R E S E N TA Ç Ã O

que ativou a ansiedade, resultaria a ligação entre as massas e o líder, espe-cialmente no tipo totalitário.

Outros dois autores a serem destacados no debate sobre a definição deditadura são Carl Friedrich20 e Giovane Sartori, ainda que este se preocupeantes em definir o que não é democracia.21 Em ambos, o termo autocraciaseria um conceito melhor do que ditadura para designar os regimes nãodemocráticos. Sartori reconhece que “a vantagem do conceito de autocra-cia sobre aqueles examinados até agora [como totalitarismo e ditadura] éque ele aponta diretamente para um ‘princípio’ constitutivo do poder comrespeito à base de legitimidade do poder”.22 No entanto, apesar da defesadesses e de outros autores do uso de autocracia em oposição à democracia,o termo não encontrou ressonância.

Friedrich também avaliou a ditadura totalitária e sua relação com a socie-dade. Como outros autores,23 chegou à conclusão de que ela só foi possívelgraças à passividade das massas, manipuladas e enganadas.

Recorrendo ao verbete “Ditadura” do Dicionário de política organiza-do por Bobbio, Matteucci e Pasquino,24 nos deparamos mais uma vez coma constatação de que “até hoje não se encontrou um termo mais adequadodo que ditadura para designar, em seu conjunto, os regimes não democrá-ticos modernos”.25

Para o autor do verbete, Mario Stoppino, as principais características dasditaduras modernas são: “A concentração e o caráter ilimitado do poder; ascondições políticas ambientais, constituídas pela entrada de largos estratosda população na política e pelo princípio da soberania popular; a precarie-dade das regras de sucessão no poder.”26 Em especial, nos interessa o tercei-ro aspecto porque diz respeito à legitimidade das ditaduras. Nesse sentido,Stoppino destaca que, apesar de as ditaduras alcançarem a legitimidade pordiferentes caminhos, como plebiscitos, festas etc., não será uma legitimidadedemocrática, já que as ditaduras “não podem eliminar o fato crucial de que aautoridade política é transmitida do alto para baixo, e não vice-versa”.27

Dialogando com Neumann e outros autores, Stoppino demarca ainda o fim,o destino essencial das ditaduras, visto que elas podem ser revolucionárias, aque-las que “visam a abater ou minar, de forma radical, a velha ordem político-social e introduzir uma ordem nova ou renovada”;28 conservadoras, “que têm

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2821

22

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

como finalidade defender o status quo dos perigos de mudança”29 e, algumas

vezes, reacionárias, “que dirigem seus objetivos para dar novamente vida a va-

lores e formações sociais do passado, que se encontram em via de extinção”.30

Até aqui foi possível observar como autores clássicos que formularam

teorias acerca das ditaduras, mesmo discordando entre si, reconhecem as

dificuldades de tratar o conceito. Neumann e Friedrich dão atenção especial

aos casos totalitários. Neumann os explicaria pelo medo; Friedrich, pela

passividade das massas.

Compreender o que é uma ditadura, como a sociedade se comporta frente

à sua instauração e permanência, legitimando-a ou não — ou como ela

participa da sua instauração e permanência —, seu comportamento, sua

opinião, as relações que estabelece com o Estado, representava um desafio

para os pesquisadores das ciências humanas.

Com a Segunda Guerra Mundial e no pós-1945, as experiências ditas

totalitárias tornaram-se a referência incontornável no debate.

A constante revisão do conceito de ditadura nos permite observar o

quanto foi — e permanece sendo — difícil definir tipologias para as expe-

riências autoritárias do século XX. O diálogo com o conceito de totalitarismo

ampliou perspectivas de análises, num movimento revelador, igualmente,

das dificuldades e dos limites do próprio conceito. Embora o seu uso nas

ciências humanas tenha sofrido críticas desde o início dos anos 1960,31 sua

grande repercussão foi inegável no pós-guerra, marcando uma tendência

historiográfica produzida na ambiência da guerra fria. As imagens do ini-

migo da véspera se sobrepunham às do inimigo do dia. Mesmo consideran-

do que “a emergência e o uso de todo conceito se inscrevem e flutuam na

História”, Denis Peschanski vê aí, entretanto, um “conceito-símbolo”, “emi-

nentemente sujeito aos imprevistos da conjuntura”.32

Antes do fim do século, e sem que houvesse a reedição da intervenção

externa para fraturar o monolito, ruía com o Muro, o leste europeu e a

URSS um dos pilares do conceito: a onipotência do Estado capaz de engessar

a sociedade, criando uma estrutura inalterável. E, nesse sentido, o estudo

da sociedade e das suas relações com o Estado não se justificou. Em linhas

muito gerais, essa foi a crítica de Moshe Lewin ao uso do totalitarismo para

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2822

23

A P R E S E N TA Ç Ã O

entender a URSS, afirmando, em meio à Era Gorbachev, a história social

como viés para a compreensão do país. Em 1987, afirmava:

A habitual antítese Estado versus sociedade é talvez inadequada quando se

deseja estudar as relações entre ambas as coisas. Caso se aceite a hipótese de

os Estados, mesmo arbitrários, serem parte de um todo mais amplo e que o

fato de permanecerem arbitrários produzirá resultados catastróficos, é pre-

ciso elaborar um conceito de Estado que dê margem ao estabelecimento de

conexões entre a área política e as demais áreas da vida social.33

Quanto ao estudo da Alemanha nazista — e aqui só para citar os dois

casos consagrados —, Pierre Ayçoberry avaliou, no fim da década de 1970,

que o uso do conceito deixara um saldo de dez anos perdidos para a com-

preensão da questão nazista.34

Entretanto, ele não se restringiu às disputas ideológicas da guerra fria.

Ganhou autonomia em relação a interesses e simplificações inerentes a de-

terminadas interpretações. Em muitos autores, diz respeito, sobretudo, à

ambição do Estado de assumir todas as esferas da vida da nação, mas não,

absolutamente, à sua realização. O totalitarismo representaria, então, “um

limite jamais atingido”, como defende Claude Lefort.35 Esses autores conti-

nuaram a trabalhar com o conceito para demarcar a especificidade de de-

terminadas ditaduras do século XX: o caráter ideológico. A pretensão de

controlar o passado, o presente, o futuro, fazendo da História, mitologia

(Max Horkheimer); a pretensão de criar o homem novo, realizar a utopia

do mundo perfeito aqui e agora são características ausentes, por exemplo,

nas ditaduras militares (ou civis-militares) da América Latina dos anos 1950,

1960 e 1970. Isso explicaria — e justificaria — a permanência do conceito

de totalitarismo nos casos das ditaduras fascistas e socialistas.

Não é nossa pretensão aqui, evidentemente, estender essa discussão. Es-

pecialistas já o fizeram.36 Apenas sublinhar como a reflexão sobre o conceito

de totalitarismo acabou por motivar “numerosos trabalhos históricos, com

efeito, estudando as configurações sucessivas e respectivas dessa geometria

política fundamental que associa Estado, sociedade, partido(s), elites”.37

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2823

24

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

A derrota dos países do Eixo e o fim da Segunda Guerra Mundial nãosignificaram o desaparecimento de todas as ditaduras na Europa. Salazar,em Portugal, e Franco, na Espanha, seguiram com seus governos. Aindaassim, a democracia estava na ordem do dia, em oposição ao totalitarismosoviético. Seria a melhor forma de combatê-lo.

Para a América Latina, por exemplo, o período do fim do conflito mun-dial ao início da guerra fria foi marcado pela queda de várias ditaduras ou,como no caso paraguaio, por medidas de abertura política.38 No entanto, aguerra fria viria a transformar esse cenário, e o prestígio internacional daURSS, devido ao destacado papel desempenhado na vitória contra o nazis-mo, foi considerável nessa mudança.

Ainda pensando a América Latina, a democracia, que sempre enfren-tou — enfrenta — dificuldades na região, paulatinamente deixou de servista por setores importantes da sociedade como a melhor maneira decombater o comunismo. Um governo forte, capaz de conter o avanço doperigo vermelho, sobretudo após a vitória da Revolução Cubana (1959),tornou-se a melhor ou a única saída possível. Os Estados Unidos, porta-vozes dos valores democráticos como meio de combate ao comunismo,aparecem no cenário como um dos principais incentivadores dos golpese das ditaduras que se sucediam. Durante muito tempo, e ainda hoje —na historiografia, no meio político, no senso comum —, aos EstadosUnidos foi atribuída a conta pelas ditaduras, especialmente nos casosbrasileiro e chileno. Não negamos a influência estadunidense, seja pormeio de suporte militar e/ou financeiro. Contudo, não lhe podemos atri-buir toda a responsabilidade sobre o que aconteceu. A América Latinatem sido compreendida como sem opção, explorada, à mercê dos inte-resses internacionais, ou seja, uma vítima através dos tempos. À região éatribuída uma história linear, sem cortes, desde a chegada dos europeusaté o imperialismo americano. Suas sociedades seriam sempre manipu-ladas por governantes pouco preocupados com seus países. Não com-partilhamos de maneira alguma dessas visões. Como veremos nos artigosaqui reunidos, o autoritarismo foi desejado e alguns ditadores foram (são)queridos e percebidos como salvadores da pátria por pessoas e/ou seg-mentos da sociedade de todas as idades e origens sociais. O autoritarismo

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2824

25

A P R E S E N TA Ç Ã O

constituía elemento da cultura política de muitas sociedades. Antes da“influência estadunidense”, as ditaduras latino-americanas dos anos 1960e 1970 tinham, desde as articulações do golpe e durante o regime, comodiscurso principal “salvar os valores ocidentais e cristãos do perigo docomunismo”. Buscaram e receberam o apoio de setores da sociedade parao golpe. Sucessivamente, Brasil (1964), Uruguai (1973), Chile (1973) eArgentina (1976) passaram a ter governos ditatoriais. Os governos legí-timos e legais foram depostos e acusados de incapacidade e irresponsa-bilidade.39 Os novos governos, representados por militares, mas nãoexclusivamente formados por eles, seriam a representação da salvação,enquanto o que havia antes nos países seria o caos. A esquerda queriaentregar o país a Moscou. Até mesmo Stroessner, no poder desde 1954,adotou o discurso do anticomunismo e da salvação da nação.

O cenário mundial, tanto na América Latina quanto na Europa, passoua contar com “novas” ditaduras que não se adequavam mais às tipologiasexistentes. Não se tratava de governos totalitários no sentido inicial da con-cepção e demandavam novas análises para os novos fenômenos políticos.

Em 1964, Juan J. Linz escreveu o artigo “An Authoritarian Regime:Spain”,40 no qual apontava a existência de uma terceira dimensão, locali-zada entre os dois polos democrático e totalitário, que seria o regime auto-ritário. Era um dos primeiros autores a pensar para além do binômioconsagrado até então. Os regimes autoritários seriam:

Sistemas políticos com um pluralismo limitado e não responsável; sem uma

ideologia complexa que os norteasse, mas com mentalidades bem caracte-

rísticas; sem mobilização política, quer extensiva ou intensiva, exceto em

alguns momentos do seu desenvolvimento, nos quais um líder ou, às vezes,

um pequeno grupo exerce o poder dentro de limites formalmente mal defi-

nidos, que, no entanto, são bastante previsíveis.41

No projeto Transições do regime autoritário: perspectivas da democraciana América Latina e no sul da Europa, desenvolvido entre 1979 e 1981,sob a coordenação de Guillermo O’Donnell e Philippe C. Schmitter, noâmbito do Programa Latino-Americano do Woodrow Wilson International

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2825

26

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Center for Scholars (Washington, EUA), os dois coordenadores chamaram

a atenção para o que consideravam as diferenças entre os dirigentes autori-tários dos períodos entreguerras e os dirigentes autoritários do pós-1945.

Segundo os autores, os primeiros obtiveram

condições de aspirar e legitimar seu governo através de alguma combinação

do imaginário mobilizador do Fascismo e de referências a formas mais tra-

dicionais de corporativismo. Esses regimes podiam promover a si mesmos

(e efetivamente o fizeram) como solução a longo prazo para os problemas

da ordem política e como a melhor forma possível de governo para suas

respectivas sociedades.42

Já os dirigentes autoritários do pós-1945 “não puderam contar com essa

possibilidade [...] trata-se de regimes que recorrem a práticas ditatoriais erepressivas no presente, ao mesmo tempo que prometem liberdade e demo-

cracia no futuro”.43

Em 1996, mais uma vez, o mesmo Juan J. Linz, ao lado de Alfred Stepan,

defendeu no livro A transição e consolidação da democracia uma tipologiarevisada, pois na visão dos dois autores

as tipologias ascendem e caem de acordo com sua utilidade analítica para os

pesquisadores. A nosso ver, o regime de classificação tripartida atualmente

existente não apenas se tornou menos útil do que era antes para os teóricos e

os praticantes da democracia como também transformou-se num obstáculo.44

No quadro proposto por Linz e Stepan, teríamos os regimes democráti-

cos, autoritários, totalitários, pós-totalitários e sultanísticos.45

A explicação da alteração pode residir, em parte, no fato de a pesquisa

inicial dos autores, da mesma maneira que a de O’Donnell e Schmitter, dizerrespeito ao sul da Europa e à América Latina. As novas experiências do mun-

do oriental, africano e dos países do Leste da Europa e mesmo da América

Latina (pensando em Fujimori) não estavam incluídas no conceito original.

Enfim, a própria diversidade das experiências do século XX, certamen-te, obrigou o pesquisador a avançar em relação às tipologias conhecidas,46

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2826

27

A P R E S E N TA Ç Ã O

até porque esses regimes não ocorreram num mesmo período ou espaço,superando-as em muitos sentidos, voltando a elas, enriquecendo-as. Apósos fascismos, outras e diferentes experiências autoritárias surgiram e conti-nuam a surgir. Inclusive antigos governos, ainda no poder, são reconstruídospara dar conta das demandas do mundo e da própria sociedade que se re-novam, se atualizam.

Na discussão sobre as novas tipologias e as análises das ditaduras e dosregimes autoritários, da mesma maneira que ocorre com a América Latina,o continente africano tem sido visto como vítima da História, da ambiçãodos homens através dos tempos. O desconhecimento da África, não rara-mente, leva o Ocidente a uma percepção simplificada e monolítica, marcadapor estereótipos: um só povo, devastado pelo colonialismo e pelo imperia-lismo, minado na escravidão47 e na exploração, com uma enorme dívida aresgatar. As ditaduras que se seguiram, especialmente após os processos deindependência, têm sido explicadas e/ou justificadas pelas guerras civis,confrontos entre etnias, pelo baixo desenvolvimento da educação e peloapoio das nações mais ricas. Os africanos, manipulados por seus líderes —em alguns casos heróis do confronto de libertação nacional — ou pela au-sência de uma sociedade civil, após o fim do antigo sistema, teriam sidofacilmente dominados por ditadores.

A Ásia, outro continente povoado por fascínios e medos, nascidos dodesconhecimento do Ocidente, da incompreensão de suas culturas, de umtempo — um passado, um futuro — do qual há muito nos distanciamos,traz para o pesquisador de regimes autoritários uma série de elementos. Nospaíses asiáticos — igualmente múltiplos, plenos de diferenças evidentes etambém nuances — esses elementos, como veremos, coesionam grupose sociedades em torno de ditaduras. Nem sempre o olhar ocidental é capazde percebê-los.

Os trabalhos aqui reunidos contribuem para esse debate. Os regimesautoritários e as ditaduras não são mais compreendidos a partir da mani-pulação, da infantilização e da vitimização das massas, incapazes de fazerescolhas; nem exclusivamente em função da repressão, do medo, da ausên-cia de ação ou pressão popular; tampouco como regimes fechados. Ao con-trário, buscaram entender como se constroem consensos e consentimentos,

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2827

28

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

como se estabelecem relações entre Estado e sociedade. Nessa perspectiva,

acredita-se que, uma vez gestadas no interior das sociedades, as ditadurasnão lhes são estranhas. Alguns autores, por exemplo, trabalham com o con-

ceito de cultura política como uma “chave”, como compreendeu Serge

Berstein, introduzindo “diversidade, dimensão social, ritos, símbolos, ali

onde reina, supõe-se, o partido, a instituição, a imobilidade”.48

Não temos a intenção — nem a pretensão — de escrever uma nova de-finição de ditadura e regimes autoritários. Entretanto, ao propor as duasquestões identificadas no início da apresentação, refletimos também sobreesses conceitos. Os artigos aqui apresentados são, em seu conjunto, contri-buições nesse sentido. As abordagens elaboram as definições. As própriasfontes com as quais os autores trabalham — e como trabalham — afasta-vam hipóteses e teses consagradas. Assim, essa historiografia tem avançadona percepção do que são as ditaduras e os autoritarismos.

Não negamos as resistências, nem muito menos estamos dizendo que ahistória está fadada às ditaduras. Estamos simplesmente lidando com umaconstatação: um século marcado por muitas ditaduras, em diferentes paí-ses e continentes, com culturas, tradições e passados diversos, que tiveramapoio da sociedade. Esse é nosso recorte. Descartadas as respostas que su-bestimam os povos, buscamos nos reunir a essa historiografia que já temmuito a dizer sobre o século XX e o legado que dele recebemos.

* * *

Ao chegarmos ao fim de uma etapa de trabalho, é uma satisfação constataro quanto temos a agradecer.

O fato de estarmos na UFF, no Departamento de História, no Núcleode Estudos Contemporâneos (NEC), no Programa de Pós-Graduação deHistória, foi essencial.

A participação em convênios internacionais — Capes-Cofecub/França eCapes-Secyt/Argentina — igualmente contribuiu para a ampliação dos de-bates e das perspectivas.

Somos gratas a Thaddeus Blanchette, Angelo Segrillo, Fábio Merçon,Daniela de Carvalho Sophia, Alain François, Marco Mazzillo, Roberto

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2828

29

A P R E S E N TA Ç Ã O

Mauro Facce, Lívia Magalhães e Renata Chiossi, que nos socorreram emvárias traduções. E ainda a Giordano Bruno Reis dos Santos e a Caio Paz,que verificaram as referências, notas e bibliografias.

Gostaríamos também de agradecer aos amigos e colegas o diálogo quemuito contribuiu para a realização do trabalho. A Daniel Aarão Reis, cujasideias inspiram a coletânea, agradecemos o incentivo e o apoio. A NorbertoFerreras e Marcelo Bittencourt, colegas do NEC. A Elizabeth Jelin, MarianaCandido, Alexandre Vieira Ribeiro, Federico Guillermo Lorenz, JorgeFerreira, Marco A. Pamplona, as discussões, as sugestões e as críticas sem-pre muito pertinentes e bem-vindas. A Didier Musiedlak, que nos apresen-tou a Pierre Laborie. Aos autores que contribuíram com seus textos, comsuas ideias, muitos, inclusive, nos indicando nomes e colegas. A eles, a to-dos, nosso reconhecimento.

Denise Rollemberg e Samantha Viz Quadrat

Núcleo de Estudos Contemporâneos

Universidade Federal Fluminense

Notas

1. LABORIE, Pierre. L’opinion française sous Vichy. Les Français et la crise d’identiténationale. 1936-1944. Paris, Seuil, 2001 (ed. orig. 1990) e Les Français des annéestroubles. De la guerre d’Espagne à la Liberation, Paris, Desclée de Brouwer, 2003.

2. GOMES, Angela de Castro. A invenção do trabalhismo. 3ª ed. Rio de Janeiro:FGV, 2005 (1ª ed., São Paulo, Vértice, 1988); Tese de Doutorado defendida emciência política no Iuperj, Rio de Janeiro, 1987.

3. AARÃO REIS, Daniel. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro:Jorge Zahar Editor, 2000.

4. A queda, as últimas horas de Hitler (Der Untergang), de Oliver Hirschbiegel(Alemanha/Áustria/Itália, 2004).

5. BOBBIO, Norberto. “Democracia/Ditadura”. Enciclopédia Einaudi: Estado —Guerra. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1989, p. 209.

6. Reconhecemos aqui o privilégio das questões políticas, o que não quer dizer demaneira alguma que não compartilhamos da ideia de que a democracia deve viracompanhada de melhorias nas condições sociais e econômicas para toda a sociedade.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2829

30

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

7. SCHMITT, C. La dictadura. Madri: Alianza Editorial, 1999. Crítico da República

de Weimar, Schmitt é centro de polêmica sobre o seu envolvimento com o III

Reich, tendo mesmo se filiado ao Partido Nazista. Com a derrota alemã, ficou

preso por dois anos e foi interrogado no Tribunal de Nuremberg. No entanto,

suas ideias, como o próprio debate sobre ditadura e a política como o confronto

de amigos e inimigos, continuaram a ser discutidas, inclusive por setores das

esquerdas, e estudadas até os dias atuais, constituindo-se numa importante

referência para a ciência política. Para os objetivos do breve debate que se segue,

nos limitamos a autores do século XX.

8. NEUMANN, Franz. Estado democrático e Estado autoritário. Rio de Janeiro: Zahar

Editores, 1969. Neumann, jurista e cientista político, foi preso em 1933 pelos

nazistas na Alemanha. Integrante da chamada Escola de Frankfurt, foi também um

dos grandes críticos do nazismo. Exilou-se nos Estados Unidos. O autor não chegou

a concluir a versão final do texto porque faleceu em 1954.

9. O autor continuou a publicar trabalhos, em que refletiu sobre as experiências

autoritárias do século XX, até a sua morte em 1985.

10. SCHMITT, C., op. cit., p. 19.

11. Idem, pp. 194-195.

12. NEUMANN, Franz, op. cit., p. 257.

13. Idem, p. 259.

14. Idem, p. 273.

15. Idem.

16. Idem, p. 260.

17. Idem, p. 269.

18. Idem, pp. 269-270.

19. Idem, p. 278.

20. FRIEDRICH, Carl. “Dictadura”. Política 2. Madri: Rioduero, 1975, pp. 102-118.

21. SARTORI, G. A teoria da democracia revisitada — 1: O debate contemporâneo.

São Paulo: Ática, 1994.

22. Idem, p. 277.

23. É o caso de Hannah Arendt. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das

Letras, 1989.

24. STOPPONO, Mario. “Ditadura”. BOBBIO, Noberto et al. Dicionário de política.

Brasília: UnB, 1997, pp. 368-378.

25. Idem, p. 373.

26. Idem.

27. Idem, p. 374.

28. Idem, p. 275.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2830

31

A P R E S E N TA Ç Ã O

29. Idem, ibidem.

30. Idem, ibidem.

31. Essa crítica ao conceito se deu tanto em termos teóricos como submetendo-o a

estudos históricos, cf. PESCHANSKI, Denis. “Le concept du totalitarisme”, in:

PESCHANSKI, Denis, POLLAK, Michaele; ROUSSO, Henry (orgs.). Histoire

Politique et Sciences Sociales. Questions au XXè siècle. Paris/Bruxelas: IHTP/

Editions Complexes, 1991.

32. Idem, pp. 191 e 195.

33. LEWIN, Moshe. O fenômeno Gorbachev. Uma interpretação histórica. Rio de

Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 24. Também nessa perspectiva, Denis Peschanski

cita, além de Moshe Lewin (1985), Karel Bartosek, que em edição especial da

revista Communiste, nº 8, 1985, entre outros historiadores da URSS e da Europa

comunista, resgatava a história social da URSS, evidenciando a existência de uma

sociedade que se acreditava destruída. PESCHANSKI, Denis, op. cit., pp. 204-205.

34. AYÇOBERRY, Pierre. La question nazie. Les interprétations du national-socialisme.

1922-1975. Paris: Seuil, 1979, p. 13. Cf. também SILVA, Francisco Carlos Teixeira

da. “Os fascismos”. AARÃO REIS, Daniel; FERREIRA, Jorge; ZENHA, Celeste

(orgs.). O século XX. O tempo das crises. Revoluções, fascismos e guerras. Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, vol. 2.

35. Cf. PESCHANSKI, Denis, op. cit., p. 193.

36. Cf. HERMET, Guy; HASSNER, Pierre e RUPNIK, Jacques (orgs.). Totalitarismes.

Paris: Economica, 1999 (1ª ed. 1984). Cf. TRAVERSO, Enzo. Le totalitarisme.

Le XXè siècle em débat. Paris: Éditions du Seuil, 2001 (Coll. Essais).

37. PESCHANSKI, Denis, op. cit., p. 204.

38. ROXBOROUGH, I. e BETHELL, L. A América Latina entre a Segunda Guerra

Mundial e a guerra fria. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

39. Devemos observar a especificidade uruguaia no Cone Sul da América Latina, em

função de o presidente Juan María Bordaberry, eleito em 1971, ter dado início à

ditadura com apoio das Forças Armadas em 1973.

40. LINZ, Juan e STEPAN, Alfred. A transição e consolidação da democracia. São

Paulo: Paz e Terra, 1999.

41. Idem, p. 57.

42. O’DONNELL, Guillermo e SCHMITTER, Philippe C. Transições do regime

autoritário. Primeiras conclusões. São Paulo: Vértice, 1988, p. 35.

43. Idem, p. 35.

44. LINZ e STEPAN, op. cit., p. 58.

45. Idem, p. 59.

46. Agradecemos a Alessandra Carvalho, que nos chamou a atenção para esse aspecto.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2831

32

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

47. Cf. a historiografia que tem se destacado na revisão da escravidão na época moderna,embora ainda persista o debate sobre o peso do tráfico internacional nasmodificações das estruturas sociais na África: ELTIS, David. Economic growth andending of the transatlantic slave trade. Nova York: Oxford Academic Press, 1987;LOVEJOY, Paul E. A escravidão na África: uma história de suas transformações. Riode Janeiro: Civilização Brasileira, 2002; MILLER, Joseph. Way of death: merchantcapitalism and de Angolan slave trade, 1730-1830. Madison: Wisconsin UniversityPress, 1987; e THORNTON, John. A África e os africanos na formação do mundoatlântico, 1400-1800. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003.

48. BERSTEIN, Serge. “L’historien et la culture politique”. Vingtième siècle. Revued’histoire, nº 35, 1992, p. 67.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2832

PARTE 1 Brasil

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2833

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2834

CAPÍTULO 1 Estado Novo: ambiguidades e herançasdo autoritarismo no Brasil

Angela de Castro Gomes*

*Pesquisadora e professora do Centro de Pesquisa e Documentação Contemporânea/Funda-ção Getulio Vargas (CPDoc/FGV); pesquisadora do CNPq; professora titular de História doBrasil da UFF. Autora de A invenção do Trabalhismo, 3ª ed., Rio de Janeiro: FGV, 2005, eCidadania e direitos do trabalho. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2835

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2836

O ESTADO NOVO: POLÍTICA, HISTÓRIA E OS USOS DO PASSADO

Poucos períodos na História do Brasil produziram desdobramentos tãoduradouros, importantes e ambivalentes como o dos oito anos que cobremo período conhecido como Estado Novo (1937-1945). Ao menos, esse é odiagnóstico que vem sendo consolidado pelos numerosos e recentes estu-dos que se dedicam às múltiplas faces e questões que dominam esse curtotempo do primeiro governo Vargas ou, simplesmente, a Era Vargas.* Tra-balhar com esses anos é, portanto, partir do reconhecimento de sua impor-tância política, socioeconômica e cultural. É também estar disposto aabandonar explicações simplistas e maniqueístas, uma vez que o desafio écompreender um conjunto diversificado de políticas, muitas vezes contra-ditórias e ambíguas, que convivem e disputam espaço em um contexto na-cional e internacional extremamente tenso, até porque assinalado pelaeclosão da Segunda Guerra Mundial.

Neste texto e assumindo a estratégia de uma reflexão historiográfica,não se tem a pretensão de cobrir os múltiplos e complexos temas e debatesque recobriram o período. Isso seria certamente impossível e traria resul-tados muito superficiais. O que se deseja é tão somente discutir algumasquestões que, até hoje, vêm marcando a produção acadêmica sobre o Esta-do Novo, sendo sua relevância observada no fato de serem, com algumafrequência, incorporadas a uma compartilhada cultura política, tributáriade ideias e experiências autoritárias no Brasil.

*Este texto foi escrito no primeiro semestre de 2007, portanto, antes dos 70 anos do EstadoNovo, mas nesse contexto.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2837

38

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

O Estado Novo — uma designação de políticos e intelectuais nele enga-

jados, com nítida intenção de acentuar sua força transformadora — tem

início com o golpe de 10 de novembro de 1937 e se encerra em 29 de ou-

tubro de 1945, com a deposição de Getúlio Vargas. O golpe instala uma

ditadura com chefe civil, amplamente sustentada pelas forças militares, em

especial o Exército. Nascido de articulações de civis e militares, planejado

cuidadosamente e desfechado de forma “tranquila”, os passos do evento

de novembro de 1937 já foram destrinchados e caracterizados como os de

um “golpe silencioso”.1 Um “silêncio” — de protestos e reações de qual-

quer tipo e origem — que evidencia não apenas o poder político dos que

então ascendiam à direção do Estado, mas também a existência de uma

proposta de construção de imagem: para o presente que se inaugurava e,

em decorrência, para seu “passado e futuro”.

Exatamente por atentarmos para a existência desse ambicioso projeto

político-cultural, mesmo reconhecendo que ele guarda tensões, é que que-

remos começar este texto assinalando uma primeira questão, ainda polêmica

quando se trabalha com o Estado Novo. Ela diz respeito ao compartilha-

mento de uma percepção que atribui a esses oito anos uma grande unidade

e estabilidade política. Além disso, o Estado Novo é visto como um evento

que se articula diretamente com a Revolução de outubro de 1930, que, por

sua vez, implicaria um corte radical com o “passado” do país. Em outros

termos, queremos chamar a atenção para os vínculos existentes entre uma

proposta de interpretação do Estado Novo e o estabelecimento das bases

de uma periodização da própria história republicana do Brasil, na qual esse

regime tem posição estratégica e nada ingênua. Uma operação intelectual

que merece reflexão, até porque teve, entre seus primeiros e mais competen-

tes arquitetos, como não poderia deixar de ser, os próprios ideólogos do

Estado Novo. Nesse sentido, ainda se pode dizer que persiste na História

do Brasil (embora com menos ênfase) um certo tipo de periodização que

toma como um bloco coeso o tempo que vai de 1930 a 1945 e nele situa o

Estado Novo como a “consagração dos ideais da Revolução de 1930”, que,

por sua vez, sepultara um simulacro de República, ensaiada e fracassada

praticamente desde seu começo, em 1889.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2838

39

E S TA D O N O V O : A M B I G U I D A D E S E H E R A N Ç A S D O AU T O R I TA R I S M O N O B R A S I L

Segundo tal interpretação, a Revolução de 1930 assinalaria um novo egrande ponto de partida em nossa história, rompendo definitivamentecomo o “passado”; com os “erros” da Primeira República, liberal, oligár-quica, fraca, inepta etc., enfim, uma “República Velha”, da qual o pós-1930queria distância. Uma terminologia que se estabelece, como não é difícilsupor, apenas no pós-1930, e que se espraiaria na literatura acadêmica,sendo usada de forma equivalente, até como sinônimo, de Primeira Re-pública. Nessa nova história, as elites vitoriosas em 1930 inauguravamum projeto político que teria como outro momento de inflexão exata-mente o golpe de novembro de 1937. Assim, se nessa leitura o golpe étomado como um novo ponto de referência cronológico/político, seu sen-tido principal é a consecução inevitável dos projetos de 1930. O EstadoNovo é situado, dessa forma, como “a” conclusão lógica do movimentorevolucionário de 1930 e não só enterra definitivamente a República“Velha” como faz com que os anos que o precederam transformem-se naantecâmara de sua presença inevitável.

Se 1937 é o coroamento previsto e desejado dos projetos de 1930, ociclo só se fecha em outubro de 1945, que sela a sorte do Estado Novo,embora não a de Vargas. Nesse sentido, não apenas o período de 1930 a1945 torna-se um bloco, sem maiores diferenciações internas, como os anosque decorrem de 1930 a 1937 são analisados como uma espécie de pre-núncio do que se seguiria. Essa periodização, ao esquecer as marchas econtramarchas do período, apaga da história a marca da incerteza políticaque o domina, minimizando parte do sentido de fatos cruciais, como a Revo-lução Constitucionalista de 1932, a experiência da Constituinte de 1934, amovimentação política da Aliança Nacional Libertadora (ANL) e da AçãoIntegralista Brasileira (AIB), por exemplo. Dizemos parte do sentido porquetais eventos não são apartados da vida política do país, mas são incorpora-dos segundo uma perspectiva que os recupera na qualidade de justificaçãoa posteriori dos fatos que acabaram por acontecer. Dessa forma, por exem-plo, a guerra civil de 1932 é entendida como uma revolta separatista (maisuma), cujo mérito teria sido acelerar o ritmo das iniciativas que o próprioGoverno Provisório vinha conduzindo, tendo em vista a constitucionalizaçãodo país.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2839

40

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Não se trata, evidentemente, de discutir neste texto o caráter reformadore/ou conservador da Revolução Constitucionalista, mas simplesmente assi-nalar que tal interpretação minimiza os esforços de mobilização ocorridosem São Paulo, bem como a radicalidade dos conflitos políticos entãovivenciados. O diagnóstico da Constituição de 1934 é ainda mais pedagó-gico, pois, para os vitoriosos de 1937, ela, por sua “inadequação”, seriauma das principais razões do golpe. Ao elaborar uma constituição vazadade liberalismo — uma nota destoante em face do clima político da época— a Assembleia Nacional Constituinte teria obstaculizado as diretrizeslançadas em 1930, alimentando a “reação revolucionária de 1937”, esti-mulada ainda mais pelas desordens promovidas por comunistas e integra-listas. O Estado Novo, portanto, viera dar um paradeiro quer às pretensõesextremistas da esquerda e da direita, quer às resistências das velhas oligar-quias estaduais, que se negavam a sair da cena política. Em síntese, o Esta-do Novo viera impor a ordem e trazer o progresso.

Criticar esse tipo de periodização/interpretação pressupõe, de um lado,compreender a lógica de sua própria construção e propagação desde os anos1930/1940, especialmente durante o Estado Novo; e, de outro, demons-trar a existência de linhas de continuidade e descontinuidade durante todoo período, sem perder a dimensão da violência dos conflitos, mas tambémdas possibilidades de arranjos políticos diversos. Com tal entendimento, atônica fundamental dos anos que decorrem de 1930 a 1945 torna-se a dadisputa política, sobretudo a disputa intraelites. Isso se manifesta de formamais explícita e violenta, ou mais sutil e negociada, mas ambas contendodoses de incerteza nada desprezíveis, particularmente quando se assume aótica dos atores envolvidos nos acontecimentos.

Um outro ponto a destacar, fortalecendo as ideias de imprevisibilidadee também de continuidade/descontinuidade que assinalam o período, é oda intensidade e riqueza do debate político ocorrido entre 1920 e 1940,atravessando, portanto, o evento da Revolução de 1930. Nesse caso, valelembrar a experiência de reforma constitucional de 1926 e de outras im-portantes reformas (na saúde, na educação, na regulamentação do mer-cado de trabalho), ocorridas na “velha” e carcomida Primeira República.Ou seja, durante essas duas décadas, um verdadeiro leque de propostas

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2840

41

E S TA D O N O V O : A M B I G U I D A D E S E H E R A N Ç A S D O AU T O R I TA R I S M O N O B R A S I L

inovadoras tomou conta do campo político e intelectual, podendo-se iden-tificar diagnósticos e soluções, fundados em diferentes alternativas ideo-lógicas, e tendo em vista a montagem de variados modelos de arranjosinstitucionais. Apesar disso, e convivendo com toda essa multiplicidade,o que também se pode observar nesse rico embate de ideias é um fortale-cimento de matrizes antiliberais que, desde o fim da Primeira Guerra, ga-nhavam força internacionalmente.

Situando o exemplo do Brasil, pode-se afirmar que, grosso modo, entreuma grande maioria de intelectuais e políticos (ou as duas coisas ao mes-mo tempo) a questão não era mais apontar a existência de condições ad-versas à vigência do modelo de Estado liberal no Brasil. Tratava-se dereconhecer sua impossibilidade e indesejabilidade de “adaptação”, emfunção de razões profundas que tinham a ver com o próprio processo deformação histórica do país. O paradigma liberal, dominante desde o sé-culo XVIII, sofria severas críticas, advindas de novas orientações científi-cas. Elas se traduziam tanto pelos postulados de uma teoria elitista de fundoautoritário, que apontava as “ficções” desse modelo político, como pelosenunciados keynesianos que, ainda no terreno liberal, defendiam umintervencionismo econômico e social do Estado, até então inusitado. Nessesentido, se o ideal de autoridade racional-legal e a construção de uma eco-nomia urbano-industrial continuavam sendo postulados como signos deuma sociedade moderna a ser alcançada, os instrumentos operacionais,vale dizer, as instituições políticas para materializar tal sociedade, sofriammudanças substanciais, afastando-se da arquitetura liberal de forma maisou menos radical, conforme os exemplos europeu e americano, sobretu-do após a crise de 1929, demonstravam.

O que tais formulações acentuavam, de forma crescente a partir dos anos1920, era a necessidade de criação e/ou fortalecimento de novas instituiçõese práticas políticas estatais (órgãos e políticas públicas), como mecanismo destart para o estabelecimento de uma nova modernidade. Assim, se havia, in-ternacionalmente, um enorme descompromisso com procedimentos e valo-res políticos liberais, era porque também havia um enorme esforço paraformulação de uma outra arquitetura institucional de Estado, cujo sentidotransformador era muito amplo, abarcando esferas da sociedade até então

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2841

42

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

intocadas pela presença pública. As interpretações da sociedade e da políticabrasileira, construídas a partir dos anos 1920 e em experimentação duranteos anos 1930, têm esse contexto político e intelectual como cenário.

Apenas para que se tenha uma dimensão do compartilhamento que taisdiretrizes antiliberais alcançam, vale assinalar que, segundo Hobsbawm,entre o fim da Primeira Grande Guerra e o início da Segunda, o número degovernos constitucionais sofreu um drástico recuo em todo o mundo: nosanos 1920, eram 35; em 1938, passaram a ser 17; e, em 1944, restringiam-se a 12.2 Na verdade, na Europa, pode-se dizer que apenas a Inglaterra nãoconviveu com um avanço significativo de forças políticas antiliberais e aAmérica foi um continente onde houve poucos exemplos de resistência: osEUA, o Canadá e o Uruguai estão entre eles. Além desse indicador quanti-tativo, convém igualmente destacar, numa dimensão qualitativa, que ascorrentes antiliberais que ganhavam força vinham da direita do espectropolítico e tinham características muito distintas da direita “conservadora”até então conhecida. Como a literatura que trata do tema das organizaçõespolíticas e das ideologias tem assinalado, a “nova direita” que emerge nosanos 1920/1930 se propõe a usar recursos organizacionais e a mobilizarvalores e crenças de forma muito inovadora, aproximando-se mais do ins-trumental revolucionário utilizado pelo que então era identificado como“esquerda” (a despeito de sua diversidade) do que pelo que vinha sendotradicionalmente usado pela “direita”, razão pela qual os confrontos podiamocorrer nessas duas direções.

O Brasil, por conseguinte, é apenas um dos países que alimentarão a mon-tante internacional de antiliberalismo, inserindo-se em um grande conjun-to de experiências que marcou o entreguerras. Nossos intelectuais e políticos,durante a Primeira República, já vinham elaborando críticas e propondo al-ternativas de arranjos institucionais para o que se entendia como o fracassoou o desarranjo do regime republicano inaugurado com a Constituição de1891. O ponto de chegada, mais ou menos consensual, que perpassava todasessas críticas, das mais radicais às mais brandas, era o da necessidade dofortalecimento do poder intervencionista do Estado. Contudo, o que se podeidentificar como um crescente “estatismo” não deve ser assimilado a umautomático “autoritarismo”. A defesa do poder de intervenção do Estado e

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2842

43

E S TA D O N O V O : A M B I G U I D A D E S E H E R A N Ç A S D O AU T O R I TA R I S M O N O B R A S I L

do avanço de sua governabilidade sobre a sociedade — uma regularidadeem sociedades de “modernização retardatária” — não deve ser identificadacomo um mero sinônimo de defesa de Estado autoritário, forte e concen-trado no Executivo, como muito frequentemente ocorre. Esforços empre-endidos ainda no terreno do ideário liberal, existentes na década de 1930(como os trabalhos da Constituinte ilustram), evidenciam as possibilidadesde disjunção entre nacionalismo e intervencionismo do Estado, de um lado,e centralização e autoritarismo do regime político, de outro. Dessa forma,se os embates políticos travados, especialmente entre 1930 e 1937, condu-ziram a uma fórmula autoritária, materializada pelo Estado Novo, esse “re-sultado” não pode ser entendido como um destino manifesto, inscrito nosequívocos de uma República “Velha”, nos projetos “originais” dos revolu-cionários de 1930 e, por fim, nos “descaminhos” das experiências vividasaté o momento do golpe de 1937.

A competência dos ideólogos do Estado Novo, sem dúvida os propo-sitores dessa periodização tão duradoura e plena de significados, pode serreconhecida, mas não precisa ser seguida. E o que o crescimento da litera-tura sobre a Era Vargas, mais particularmente sobre o Estado Novo, vemevidenciando são muitos progressos nesse sentido. Correndo muitos ris-cos, talvez já seja possível afirmar que as descontinuidades, os conflitos e ascrises que assinalam o tempo que vai de 1930 a 1945, incluindo o EstadoNovo, como se verá com mais vagar, passaram a ser algo bem mais aceitopela produção acadêmica das duas últimas décadas. Uma produção que sededicou ao estudo da história e da memória da Era Vargas, destacando, cadavez mais, a centralidade dos anos do Estado Novo. Uma produção que tam-bém tem sua história e, como ensina a historiografia, uma história pautadapelas inquietações do presente do historiador.

ESTADO NOVO: HISTORIOGRAFIA, POLÍTICA E ACADEMIA

Para os historiadores, comemorar — lembrar junto, com objetivos críticose orientados pelas questões do presente — é sempre uma rica oportunidadede fazer história e historiografia, pois as comemorações são ocasiões espe-ciais para se empreenderem balanços do que se produziu e não se produziu,

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2843

44

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

a respeito de personagens, acontecimentos e períodos. Exatamente por isso,

retomar marcos — como o das comemorações ocorridas em 1987 e 1997 —,

embora de forma muito breve, é uma estratégia interessante para situar al-

gumas características e preocupações da produção acadêmica das últimas

décadas. Isto é, para se pensar quando, mais especificamente, e movida por

que interesses conjunturais, algumas questões e temas foram sendo defini-

dos e passaram a orientar as pesquisas sobre o Estado Novo, produzindo

impactos sobre interpretações compartilhadas, que vão sendo discutidas e

revisitadas.3 Em ambos os casos, tomando a cidade do Rio de Janeiro como

palco, foram realizados importantes seminários que resultaram na publica-

ção de coletâneas, roteiros adequados para um contato, ainda que parcial,

com o chamado estado da arte sobre o período.

Em novembro de 1987, sob o governo do presidente civil José Sarney,

o país se preparava para assistir aos trabalhos da Assembleia Nacional

Constituinte, que encerraria os mais de 20 anos vividos à margem de um

Estado de Direito. Nesse contexto, “lembrar 1937” — ou não esquecer a

ditadura de Vargas — tinha enorme e clara carga política. Evidenciava uma

postura de engajamento na luta contra o regime militar e de preocupação

com a construção da democracia no Brasil. Em 1987, “lembrar” o Estado

Novo era uma rica oportunidade para se pensar a questão do autoritarismo

no país, ou seja, para se trabalhar com a história imediata do Brasil, e não

só a história do tempo presente, aliás uma terminologia que tinha pouco

curso à época.

O seminário foi realizado na Universidade Federal do Rio de Janeiro,

tendo como seu principal organizador o professor José Luiz Werneck da

Silva, e se desdobrou no livro O feixe: o autoritarismo como questão teóri-

ca e historiográfica, publicado em 1991.4 O que logo salta aos olhos é ques-

tão central proposta no volume: o autoritarismo e seu debate no campo

historiográfico. Por isso, ele está organizado em três partes. Na primeira,

discute-se, de forma comparada, o fenômeno político do fascismo, com tex-

tos sobre as experiências da Itália e de Portugal; na segunda, Mito Político,

é a figura de Vargas que está no centro e no título dos três artigos que a

compõem; na terceira, dois textos buscam realizar balanços historiográficos.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2844

45

E S TA D O N O V O : A M B I G U I D A D E S E H E R A N Ç A S D O AU T O R I TA R I S M O N O B R A S I L

Considerando os objetivos aqui propostos — pensar o Estado Novohistoricizando a própria produção sobre o período —, um dos artigos cha-ma a atenção por vários motivos. Trata-se de “Estado Novo: um inventáriohistoriográfico”, de René Gertz.5 O primeiro deles remete à sua conclusãode que ainda não eram muito numerosos os estudos que se dedicavam es-pecificamente ao Estado Novo (exceção feita às memórias e biografias). Alémdisso, o autor assinala que, nessa produção, a participação dos historiado-res era menos significativa do que a dos cientistas sociais, em particular doscientistas políticos. Uma observação que nos permite constatar uma espé-cie de divisão informal de trabalho no campo intelectual e também a exis-tência de uma “desconfiança” ainda muito forte dos historiadores em relaçãoao que se convencionaria chamar de história do tempo presente. Nesse sen-tido, o que Gertz aponta e estamos reforçando é que, até praticamente osanos 1980, os historiadores brasileiros, de uma forma geral, ainda não sevoltavam para a pesquisa sistemática e consistente de temas e questões queultrapassassem o emblemático episódio da Revolução de 1930. A Históriado Brasil “começava” em 1500 e “acabava” em 1930, e o historiador “mes-mo” precisava de distanciamento no tempo, devendo trabalhar com o perío-do colonial e imperial ou, no máximo, com a Primeira República. Masimporta também destacar que Gertz avalia que esse panorama vinha se al-terando, apontando os trabalhos produzidos pelo Centro de Pesquisa eDocumentação de História Contemporânea do Brasil (CPDoc) como umbom indicador da tendência.6

Um segundo bom motivo para o exame do artigo de Gertz, passados 30anos, são as razões que, para ele, explicariam tal situação. Algumas delaspodem ser entendidas como “dificuldades” que os historiadores teriam como estudo do período, o que nos remete a duas de suas questões-chaves: adas ambiguidades de suas políticas, já brevemente mencionadas, e a do deba-te sobre o caráter fascista do regime. Citando:

Mesmo autores que procuram ser neutros ou críticos não conseguem esca-

par da ambivalência. O Estado Novo foi uma ditadura, teve traços fascistas,

mas muitos autores não conseguem negar avanços na economia, na cons-

trução do Estado, na questão social.7

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2845

46

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Ou seja, pondera-se que os historiadores “resistiam” ao estudo do Estado

Novo por reconhecer que se tratava de uma “ditadura com traços fascis-

tas” que, inegavelmente, apresentava avanços nas políticas públicas econô-

micas e sociais. Levando muito a sério tal reflexão, o que se está querendo

apontar é que as ambiguidades do período do Estado Novo, já reconheci-

das pela historiografia, constituíam-se, de fato, em um complicador de aná-

lise, naquele momento. Isso porque, politicamente, nos anos 1970 e 1980,

era fundamental atacar o regime militar através da ditadura de Vargas. E

como fazê-lo se era difícil ignorar os “progressos” então alcançados, espe-

cialmente no campo das políticas sociais? Como criticar o autoritarismo e,

digamos, avalizar a leitura de que ele podia e até havia sido “progressista”

em certas dimensões, nos anos 1930?

Trocando em miúdos e a despeito da simplificação, a questão acadêmica

se via engolfada pela conjuntura política, que tornava difícil ou quase impos-

sível reconhecer que regimes ditatoriais podiam produzir modernização eco-

nômica e social, sem que isso soasse como “justificativa” para o autoritarismo.

Uma dificuldade que não se referia ao Estado Novo, pois era o que ocorrera

também nos anos 1970 e 1980, durante o regime militar, como diversos cien-

tistas sociais comprovavam. Assim, a combinação de autoritarismo com

modernização era muito mais um desafio político do que teórico. A extrema

preocupação quanto às possibilidades de uma pesquisa reconhecer a convi-

vência de avanços e recuos; de reconhecer a ambivalência como dimensão

constitutiva das diretrizes políticas de um regime era, basicamente, uma cau-

tela que tinha a ver com a luta pela democratização dos anos 1980.

Por isso, a questão do caráter fascista do Estado Novo, designação ain-

da corrente naquele momento, mas que começava a ser muito questionada,

ganhava enorme interesse. Os comentários de Gertz a esse respeito, bem

como a primeira parte do livro, apontam para a problematização do uso da

categoria “fascista”, e não apenas para a designação do Estado Novo. A

experiência portuguesa igualmente não cabia bem nesse rótulo, que, de tão

amplo e impreciso, acabava por abarcar realidades históricas muito dife-

renciadas, ignorando suas especificidades. A tendência da literatura inter-nacional e nacional era atentar para os significados das categorias de

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2846

47

E S TA D O N O V O : A M B I G U I D A D E S E H E R A N Ç A S D O AU T O R I TA R I S M O N O B R A S I L

totalitarismo e fascismo, aprofundando os estudos das doutrinas e práticasde diferentes regimes políticos, até então nomeados como tal. Esse exercí-cio, a que se dedicavam principalmente os historiadores, fazia com que taiscategorias viessem sendo abandonadas em proveito da de Estado autoritá-rio. No caso da América Latina, por exemplo, era crescente um consensosobre a pertinência dessa designação.

Para o Brasil, o artigo de Bolívar Lamounier “Formação de um pensa-mento político autoritário na Primeira República”, publicado em 1977, naconsagrada coleção História Geral da Civilização Brasileira (v. 9), e o livroEstado Novo: ideologia e poder, de 1982, de autoria de Lucia Lippi Olivei-ra, Mônica Pimenta Velloso e Angela de Castro Gomes, eram duas ilustra-ções do fato assinalado.8 Eles chamavam a atenção para certas dimensõesdas políticas do Estado Novo — que pesquisas posteriores aprofundariam— todas apontando para a inadequação de um conceito fundado na ideiade unidade e monopólio absoluto do poder do Estado. Além disso, o usoda designação fascista sempre fora negado pelos próprios ideólogos do re-gime, que o identificavam como autoritário. Quer dizer, vários intelectuaisdo período, com destaque para Azevedo Amaral e Oliveira Vianna, haviamafirmado, com clareza, que sua proposta não era nem fascista nem liberal,pois não admitiam nem o predomínio total do Estado nem o do mercado.Mas, seguindo Gertz, essa era uma afirmação que, quando sancionada pelosanalistas, trazia problemas, pois podia ser entendida como uma minimizaçãoda violência do Estado Novo ou como uma possibilidade de estar “manco-munado com o poder” (do regime militar), sendo então mais prudentepesquisar temas menos comprometedores.9 É fácil imaginar como essas ob-servações, vistas do ano de 2006 a 2007, podem parecer inacreditáveis. Maselas não são, sendo importante considerá-las uma forma de iluminar o cli-ma político que vigia no país e em boa parte da academia, nas décadas de1970 e 1980.

Finalmente, Gertz levanta uma terceira razão para a existência de tãopoucos estudos sobre o Estado Novo. Essa é bastante consistente e se rela-ciona à situação do campo historiográfico nacional, que ainda permaneciamarcado por análises que privilegiavam explicações de cunho estrutural,marxistas em grande parte (isto é, de esquerda), voltadas para questões

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2847

48

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

econômicas e sociais e afastadas da história política, quer dizer, da históriade curta duração, centrada em indivíduos e eventos. Um tipo de história muitocondenada, sobretudo quando voltada para os “vencedores” e autoritários,como era o caso do Estado Novo. Através dessa observação, é possível per-ceber que a historiografia brasileira, até esse momento, ainda se pautavafortemente por paradigmas estruturalistas e raramente avançava para alémdo marco de 1930. Tendências que serão revertidas justamente a partir deentão, produzindo mudanças decisivas e definitivas nas pautas de investi-gação existentes e nos modelos interpretativos compartilhados, o que serefletirá nos estudos sobre o Estado Novo.

Como se pode imaginar, essa renovação está articulada a toda uma “gran-de transformação” teórica e metodológica da historiografia em nível inter-nacional que, brevemente, pode ser identificada como a da chamadarenovação da história política e de sua articulação com uma história cultu-ral, que floresceram e chegaram ao Brasil, com mais intensidade, justamen-te nos anos 1970 e 1980. A revitalização da história política, ou o que temsido chamado de o “retorno” da história política, guarda relações profun-das com as mudanças de orientação teórica que atingiram as ciências sociaisde forma geral. Inúmeros autores situam esse fenômeno como o da crisedos paradigmas estruturalistas então vigentes: o marxista, o funcionalista etambém o de uma vertente da Escola dos Annales. Essa crise, traduzida pelarecusa de explicações deterministas, metodologicamente quantitativistas emarcadas pela “presença” de atores coletivos abstratos, não localizáveis notempo e no espaço, teria impactado o campo das ciências humanas, forçan-do-as a rever suas ambições totalizadoras e suas explicações racionalistas/materialistas.10 Entretanto, se essas transformações mais globais que afe-tam a conformação de um campo disciplinar como o da História e, dentrodele, o delineamento de espaços mais específicos de trabalho demonstrama existência de uma historicidade geral que une internacionalmente os pes-quisadores, pode-se igualmente verificar um outro movimento, mais espe-cífico em seus ritmos e características, que diz respeito às variações nacionaisque a transformação mais ampla pode sofrer.

Esses ritmos nacionais, que não chegam a alterar a direção global doprocesso, têm certamente a ver com eventos próprios às histórias “políti-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2848

49

E S TA D O N O V O : A M B I G U I D A D E S E H E R A N Ç A S D O AU T O R I TA R I S M O N O B R A S I L

cas” de cada país. Nesse sentido, alguns acontecimentos — que não preci-sam ser políticos tout court — impõem aos intelectuais, e em particularàqueles cuja tarefa é interpretar a realidade política, a escolha de certos temasde análise, o que pode se traduzir pela emergência de “novos” objetos emétodos, ou pelo “retorno” de “velhos” objetos, revigorados por “novas”abordagens. A dimensão ética e engajada do trabalho intelectual é, nessescasos, mais visível e compreensível e se manifesta de forma mais transpa-rente, por razões óbvias, no campo de trabalho daqueles que se dedicam àhistória do tempo presente. As reflexões historiográficas há muito ressaltamesse aspecto, ilustrando-o com os exemplos da guerra da Argélia, para osintelectuais franceses; das lutas coloniais na África, para os portugueses;do retorno do peronismo, na Argentina; e, no caso do Brasil, da instaura-ção do regime militar, em 1964, e do processo de “abertura lenta e gradual”,que tem início no governo do general Geisel (1974-1979). Assim, é tãoimpossível compreender os movimentos da história política no Brasil semuma remissão aos debates interdisciplinares travados em nível internacionalcomo sem o estabelecimento de uma conexão com o impacto dramático tra-zido pelo restabelecimento do autoritarismo em fins da década de 1960, se-guido pela luta pela redemocratização, emergente e crescente nos anos 1980.

Toda a literatura produzida a partir dos anos 1970, grosso modo, giraem torno da compreensão do fenômeno do autoritarismo, sendo movidapela necessidade de se entenderem as causas do colapso do regime liberal-democrático e da eclosão do movimento civil e militar de 1964. Por conse-guinte, ela assume uma perspectiva política nítida que irá cada vez maisprivilegiar o estudo do período do pós-1930. Isso porque era inviável pensaras características e os rumos do regime militar sem um retorno ao pré-1964,sendo claro que as bases do autoritarismo brasileiro deitavam raízes pro-fundas nas formulações e experiências anteriores, com destaque especialpara o Estado Novo.

Dessa forma, entre 1987 e 1997 crescem o interesse e o número de es-tudos sobre esse período, diversificando-se os temas recortados e transfor-mando-se as questões e interpretações que movimentam cada vez mais oshistoriadores, agora em diálogo estreito com os cientistas sociais e sem te-mer, como antes, a história do tempo presente. Com tal panorama de fun-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2849

50

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

do, pode-se examinar a coletânea que reúne os estudos apresentados noseminário “Estado Novo: 60 anos depois”, realizado em novembro de 1997,por iniciativa de um conjunto de instituições: o Centro de Pesquisa e Docu-mentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas(CPDOC/FGV), em parceria com a Universidade Federal do Rio de Janei-ro (UFRJ), a Universidade Federal Fluminense (UFF), a Casa de OswaldoCruz da Fundação Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) e o Núcleo de EstudosEstratégicos da Universidade de Campinas (Unicamp).

O livro, organizado por Dulce Pandolfi, intitula-se Repensando o Esta-do Novo.11 Contendo 18 textos, o volume está dividido em seis partes, quepodem ser entendidas como indicadores do tipo e da distribuição das in-vestigações que vinham sendo empreendidas. As partes são: legado ins-titucional; trabalho, previdência e sindicalismo; indústria, bancos e seguros;intelectuais, cultura e educação; imigração e minorias étnicas; e militares,política e repressão. Cada uma delas é composta por três ou quatro textos,sendo que, não casualmente, a parte que mais se aproxima do tema da eco-nomia possui apenas um artigo.12 Um conjunto que destaca a questão dastransformações e inovações institucionais trazidas pelo Estado Novo e suacentralidade para a construção do aparelho de Estado no Brasil. O temacrucial das políticas sociais, na chave da saúde, educação e trabalho, temgrande espaço no volume, podendo-se assinalar um tratamento que enfrentaa questão das ambiguidades do regime, evitando esquematismos. O temada imigração, sempre clássico, quando associado ao entendimento do pro-blema do antissemitismo e da “raça”, recebe novos contornos. O mesmo sepode dizer da presença de atores como os intelectuais e os militares e dereflexões que passam a destacar o estudo da propaganda e da repressãopolíticas no Estado Novo.

Na verdade, um elenco que não se distancia tanto do assinalado no ar-tigo de 1987, que apontava a existência de estudos e polêmicas sobre ostemas da reforma do Estado, da industrialização, das relações de trabalho eda ação dos militares e dos intelectuais. Mas, o que esse livro traz, em dis-tinção às observações anteriores, é uma espécie de “resolução” de proble-mas que mobilizaram os historiadores nos anos 1970/1980, dentre os quaiso que envolvia a designação do Estado Novo como um Estado fascista. Após

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2850

51

E S TA D O N O V O : A M B I G U I D A D E S E H E R A N Ç A S D O AU T O R I TA R I S M O N O B R A S I L

a eleição direta e o impeachment do primeiro presidente que chegou aopoder pelo voto direto, a questão que mobilizava o campo intelectual eraoutra. Ela tinha a ver, como antes, com a conjuntura política e remetia, maisuma vez, à Era Vargas e ao Estado Novo. Seu formulador, aliás, era o pró-prio presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, um sociólogode formação. Seus termos, instigantes e desafiadores, estavam sintetizadosna afirmação ou na interrogação: vivia-se o fim da Era Vargas? Por isso, aorganizadora do livro e do seminário o situa como uma possibilidade demelhor “compreensão dos debates sobre as reformas em curso no país”.13

Reformas que, no marco das orientações neoliberais, apontavam a direçãoinversa das diretrizes lançadas e implementadas por Vargas, especialmentedurante o Estado Novo: nacionalismo, protecionismo, intervencionismoetc. Sem perder terreno, a questão do autoritarismo e da repressão dividiaespaço com o tema do tamanho e do papel do Estado na economia e nasociedade. Certamente porque, em 1997, já era muito claro o esgotamentodo modelo desenvolvimentista, cujos marcos iniciais foram lançados nosanos 1930. Um tema que permanece desafiando políticos e intelectuaisdez anos depois e que ainda motiva as pesquisas em curso no campo dahistória política do tempo presente.

A realização de seminários e a publicação de seus resultados fixam o es-tado da arte da produção acadêmica sobre um objeto de estudo, permitin-do uma análise pontual e bastante representativa. Mas um outro indicadorpode ser usado para se dimensionar o andamento dessa produção atravésdo tempo. Estamos nos referindo à elaboração de dissertações e teses nosprogramas de pós-graduação de História do país, que se desenvolveram emnúmero exatamente a partir de 1980.

No que se refere ao Estado Novo, é o próprio Gertz que, em seu balan-ço e usando os dados do Catálogo das dissertações e teses dos cursos de pós-graduação em História, elaborado por Carlos Humberto Correa, para operíodo 1973-1985, informa que, das 734 teses e dissertações computa-das, cinco tratavam do período de 1930 a 1945, 24 do período de 1930 a1937 e 11 do Estado Novo, o que, no geral, foi considerado pouco.14 Re-forçando essa conclusão, são valiosas as observações de Maria Helena RolimCapelato, no artigo publicado em 1998 intitulado “Estado Novo: novashistórias”.15 Segundo ela, que utiliza os dados do volume já citado e da Pro-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2851

52

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

dução histórica do Brasil (1985-1994), publicada em três volumes sob suacoordenação, entre 1980 e 1995, de 1.688 teses e dissertações produzidasnos 19 programas de pós-graduação, apenas cem se referiam a temas envol-vendo o período do Estado Novo. Ainda segundo a professora, se entre1973 e 1980 os estudos sobre o Estado Novo representavam 2% da produ-ção discente, entre 1980 e 1994 eles saltaram para apenas 5%, o que con-tinuava sendo considerado pouco.

Procurando atualizar esses números e recorrendo ao Banco de Teses eDissertações da Capes, realizamos um breve levantamento para o períodoque vai de 1995 a 2004. Não buscamos saber quantas dissertações e tesesforam produzidas nesse lapso de tempo, mas tão somente computar o núme-ro de trabalhos diretamente voltados para o estudo do Estado Novo. Feita achamada com esse “tema”, encontramos uma lista, mas para afiná-la consul-tamos os resumos dos trabalhos, chegando então, da melhor maneira possí-vel, a uma aproximação com as pesquisas que priorizaram, de fato, o período,independentemente da questão substantiva que examinassem.

Do ponto de vista quantitativo, o total encontrado foi o de 59 trabalhos,o que pode ser considerado ainda muito pouco, sobretudo tendo-se em vistao crescimento do número de programas de pós-graduação de História etambém o aumento do número de estudantes ocorridos nesses anos. Doponto de vista qualitativo, esse dado ganha novos significados, indicandode que forma o Estado Novo passou a ser investigado. Nesse sentido, 23trabalhos podem ser entendidos como de história política, sendo que ape-nas três dedicam-se à política externa no período. No conjunto maior, épossível identificar algumas concentrações, basicamente no que se refere àpolítica de povoamento do regime — colonização, imigração e Marcha paraOeste; à política de regulamentação do mercado de trabalho; e à questãoda modernização urbana. Um outro grande grupo de pesquisas, alcançan-do 19 trabalhos, envolve temas afetos à política educacional e cultural doEstado Novo, com destaque para a campanha de nacionalização. Finalmente,e em nítida conexão com o conjunto anterior, há 17 trabalhos centrados naanálise das políticas de repressão (polícia política, censura e antissemitismo,por exemplo) e propaganda do regime (rádio, cinema, cinema educativo,comemorações cívicas etc.). A concentração de pesquisas no campo da his-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2852

53

E S TA D O N O V O : A M B I G U I D A D E S E H E R A N Ç A S D O AU T O R I TA R I S M O N O B R A S I L

tória política e cultural e a importância que os temas da educação, da legis-lação social (e trabalhista), da propaganda e da repressão têm nessa amos-tra evidenciam as transformações mais amplas ocorridas na historiografianacional e internacional.

ESTADO NOVO: AUTORITARISMO, TRABALHISMO, CORPORATIVISMO E

MITO VARGAS

Neste ponto da reflexão algumas ponderações podem ser realizadas. Em-bora não se possa dizer que os estudos sobre o Estado Novo tenham au-mentado tanto em número, sem dúvida eles apontam para uma maiordiversidade de abordagens, de recortes e de temas de análise. Paralelamen-te a esse fato, é possível registrar que os principais impasses que mobiliza-vam os debates intelectuais dos anos 1970 e 1980 sobre o período do EstadoNovo, se não encontraram uma “solução completa”, pois não é disso quese trata, encontraram um termo, estabelecendo possibilidades para se tra-balhar com o período. Ou seja, em alguns casos, interpretações bastantecompartilhadas foram sendo gradativamente abandonadas; em outros, a pro-dução historiográfica acabou por consagrar novas questões, que passarama disputar posições, mas de maneira menos excludente e mais capaz de umdiálogo. De toda forma, o fundamental é que houve renovações importan-tes, para o que foi decisivo o crescimento das pesquisas advindas dos pro-gramas de pós-graduação.

Alguns exemplos do que estamos querendo assinalar serão comentados,não havendo, contudo, qualquer pretensão de esgotá-los. Entre eles estãoos debates em torno de uma periodização para o Estado Novo; de uma formade designar seu regime político; de uma forma de interpretar suas políticassociais, com destaque para as voltadas para a regulamentação do mercadode trabalho, ao que se associa a questão da condução do processo de indus-trialização; e, finalmente, perpassando todos os outros, o que envolve a cons-trução da liderança de Vargas. Tais temas/questões, contudo, só podem serdistinguidos entre si do ponto de vista analítico, razão pela qual serão acom-panhados em conjunto.16

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2853

54

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

No que diz respeito à questão da periodização, já tratada anteriormen-te, vale a pena abordá-la especificamente no que se refere ao Estado Novo.Não por preciosismo, mas para dela retirar desdobramentos importantesna caracterização dos rumos do regime e de suas políticas sociais. Nessesentido, do mesmo modo que a literatura que contempla a Era Vargas foise afastando de uma visão do período como um bloco coeso, os estudossobre o Estado Novo também se afastaram de uma visão que insistia emsua unidade e estabilidade. Uma visão que postulava a existência de umaúnica orientação política durante todo o regime, marcada pelo autoritarismode tipo desmobilizador. Esse é um ponto fundamental, pois se vincula aodebate sobre a melhor denominação para o regime. Debate que se processaem paralelo às discussões sobre os conteúdos das categorias de totalitaris-mo e autoritarismo, visando a melhor precisá-las teoricamente e através dapesquisa histórica sobre experiências na Europa e na América Latina dosanos 1920-1940.

No caso do Estado Novo, pode-se observar um duplo movimento nessedebate. O primeiro deles significou abandonar a designação de fascista/to-talitário e assumir, progressivamente, a conceituação de Estado autoritá-rio, fazendo-se um investimento mais profundo, não apenas na própriaquestão do autoritarismo no Brasil como também numa investigação maispormenorizada da experiência do Estado Novo. Alguns trabalhos vindosdas ciências sociais, como os de Bolívar Lamounier e Wanderley Guilhermedos Santos, foram decisivos para se precisar a trajetória e o sentido da cate-goria de Estado autoritário, na medida em que apontavam a existência deuma tradição no pensamento social brasileiro, que excedia e somava às in-fluências do montante antiliberal do entreguerras.17 No mesmo sentido, pes-quisas, nacionais e internacionais, que trabalhavam com o conceito detotalitarismo, visando a precisá-lo, sentiam dificuldade em utilizá-lo paradesignar experiências latino-americanas e até europeias, como a de Portu-gal e a da Espanha. No caso do Estado Novo, desenvolveram-se análises desuas formulações doutrinárias e de suas políticas públicas, retomando aparticipação de atores (coletivos e individuais), como burocracia, os inte-lectuais, os industriais, os banqueiros, os sindicalistas etc. Tais estudos cadavez mais concluíam que não ocorrera, no caso brasileiro, um monopólio

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2854

55

E S TA D O N O V O : A M B I G U I D A D E S E H E R A N Ç A S D O AU T O R I TA R I S M O N O B R A S I L

absoluto do Estado no plano jurídico-político, continuando a existir mui-tas tensões e oposições, até no interior do núcleo dirigente estado-novista,mesmo que limitadas de múltiplas formas. Assim, se era possível identificartraços totalitários no Estado Novo, não era adequado designá-lo como umEstado fascista.18

Nesse caso, as constatações de que o Estado Novo não buscara um con-trole total, por exemplo, dos meios de comunicação de massa e que recor-rera, durante boa parte de sua existência, a uma estratégia política dedesmobilização da sociedade pesaram muito. Evidentemente, não se que-ria dizer com isso que, sob o Estado Novo, a repressão física e/ou simbólicafora pequena ou pouco violenta. O que se buscava ressaltar é que não seadotara, no Brasil, um modelo de mobilização de tipo fascista, o que forta-lecia a tese do autoritarismo. É justamente esse último aspecto, que carac-teriza um segundo movimento do debate sobre o período, que desejamosenfatizar neste texto. Trata-se de investir em uma interpretação mais finasobre a dinâmica interna da política estado-novista, buscando relativizar(mas não afastar) a tese da orientação desmobilizadora do regime. Para tanto,o que se propõe é uma periodização em dois tempos.19 Num primeiro tem-po, que vai até 1942, teria prevalecido esse autoritarismo desmobilizador,fundado basicamente na coerção via censura e repressão. Mas, a partir daí,examinando-se um conjunto de políticas públicas, com destaque para a com-binatória entre políticas sociais e de propaganda, pode-se dizer que o Esta-do Novo experimenta um segundo tempo. Nele, a atenção da elite se voltapara a busca de legitimidade e de construção de bases políticas, por meioda articulação de esforços ideológicos e organizacionais, visando à cons-trução de um pacto político do Estado com a sociedade, encarnado nas fi-guras do presidente e povo brasileiro. É exatamente para ressaltar a lógicadesse pacto, bem como seus desdobramentos para a história política do país,que se insiste na questão desses dois tempos, entendidos sob os signos, pri-meiro, de uma repressão mais aberta e, em seguida, de uma articulação entreinvestimentos de mobilização e controle social.

Essa nova proposta interpretativa, valorando a presença e importânciade disputas políticas durante todo o período (1930-1937 e 1937-1945) epercebendo a dinâmica da política estado-novista como integrada por dois

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2855

56

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

momentos com características distintas, precisa ser acompanhada com maisvagar. De início, é bom acentuar que se trata de uma leitura alimentada porvários estudos, a começar pelos que se dedicam ao acontecimento funda-dor do Estado Novo: o golpe de novembro de 1937. Nesse episódio, inte-ressa destacar o contexto político, marcado por uma acirrada campanhapresidencial que possuía, como pano de fundo, articulações conspiratóriasenvolvendo expressivas figuras políticas e militares. Um golpe que encerrou,na verdade, um processo complexo e ao mesmo tempo violento de dispu-tas entre projetos e lideranças bem diferenciados, tendo como uma de suasdecorrências principais um grande investimento na construção da figurade chefe de Estado, Getúlio Vargas. Um investimento que, para ser bemdimensionado, deve considerar que, em 1930, Getúlio era apenas um en-tre os homens que fizeram a Revolução. Essa condição só começa a se alte-rar com a chefia do Governo Provisório, embora, nas eleições indiretas parapresidente da República, realizadas pela Assembleia Nacional Constituintede 1934, seu nome ainda disputasse votos com os de Borges de Medeiros eGóis Monteiro.20 Aliás, as eleições de 1934 podem ser entendidas comoum episódio politicamente denso e ilustrativo da instabilidade em que opaís vivia, após uma guerra civil (a Revolução Constitucionalista de 1932)e a convocação de uma Constituinte, antecedida pela elaboração de um novoCódigo Eleitoral.21 Mas como presidente eleito, entre 1935 e 1937, Vargascontinuou enfrentando dificuldades para impor sua liderança e o acompa-nhamento do processo golpista não indica que, como chefe de um novoEstado de força, ele fosse a única solução possível. Durante algum tempo,o tipo de regime que poderia ser implantado — uma ditadura civil ou mi-litar — deixava em aberto qual seria o seu chefe máximo. Problemas inter-nos ao Exército, aliados à habilidade e confiabilidade de Vargas perante osmilitares e boa parte das lideranças civis, além, é claro, de sua já ampla vi-sibilidade na sociedade, definem o formato e o líder do Estado Novo.22

Foi, portanto, a partir desse momento que Vargas passou a ser reconhe-cido como a figura maior da arena política nacional, tendo sua imagemprojetada por uma das mais bem-sucedidas campanhas de propaganda denosso país. A despeito dessa imensa vantagem, o ano de 1938 é abaladopela tentativa de golpe dos integralistas, que invadem o Palácio das Laran-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2856

57

E S TA D O N O V O : A M B I G U I D A D E S E H E R A N Ç A S D O AU T O R I TA R I S M O N O B R A S I L

jeiras, ameaçando a vida do presidente e de sua família, em episódio quetem grande impacto no país. O período de 1939 a 1941 foi de franco en-durecimento do regime; porém, já em 1942, o projeto político do EstadoNovo começava a sofrer transformações. Nessa perspectiva, pode-se dizerque, durante os anos que vão de 1937 a 1941, o Estado Novo se configuracom um certo perfil e, a partir de 1942, torna-se um “novo” Estado Novo.A dinâmica e o sentido dessa transformação são fundamentais, pois suasambiguidades marcam não só o período do pós-1942 como toda a vida po-lítica brasileira do pós-45. Uma herança que, não casualmente, a Repúblicade 1946-1964 quis desconhecer, considerando o Estado Novo uma exceçãoa ser lamentada e que podia ser esquecida sem maiores problemas. Umaestratégia política que, como se viu, deixou marcas no campo intelectual ena própria historiografia sobre a República.

O contexto maior dessa grande transformação operada no interior doEstado Novo tem, antes de tudo, vínculos com o panorama internacional,ou seja, com o curso da Segunda Guerra Mundial. Desde o início da guerra,em 1939, o governo brasileiro começara a sofrer pressões americanas, mas,desde fins de 1941, com Pearl Harbor e a entrada dos EUA no conflito, elasaumentaram muito. A partir daí, a condução de uma política externaequidistante entre EUA e Alemanha, como o Brasil vinha praticando duranteos anos anteriores, ficou impossível. No início da década de 1940, as cartasda barganha política são postas na mesa. Elas consistiam, por parte dosEstados Unidos, no interesse pelo Nordeste brasileiro como local para insta-lação de bases militares e, por parte do Brasil, na obtenção de recursosmateriais visando à instalação do projeto siderúrgico de Volta Redonda, alémda modernização do equipamento do Exército. Mas foi só em janeiro de1942, com a realização da Conferência do Rio de Janeiro, que a situaçãoficou definida. Não se tratava ainda de uma declaração de guerra ao Eixo,embora em fevereiro de 1942 o plano de operações preparado pelo Exércitoamericano prevendo a ocupação do Nordeste estivesse pronto e, em março,a permissão para o desembarque fosse concedida pelo governo brasileiro.23

Ou seja, com o alinhamento internacional do Brasil com os EstadosUnidos estavam definitivamente seladas as perspectivas de manutenção deum projeto político autoritário, conforme fora o do Estado Novo até então.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2857

58

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Tal fato, contudo, guarda em si uma grande ambiguidade, porque dizer queera necessário transformar a face autoritária do Estado não significava di-zer que era necessário desalojar as elites políticas desse Estado das posiçõesde liderança por elas ocupadas. Inclusive porque se as elites brasileiras sem-pre tiveram dificuldades para realizar alianças políticas mais amplas, tambémsempre se mostraram competentes para negociar as condições necessáriaspara sua manutenção no poder. Portanto, é o que se deseja destacar, a par-tir de 1942 ficou claro para as lideranças estado-novistas que as caracterís-ticas do regime implantado em 1937 estavam se tornando insustentáveis.Um modelo de Estado forte, antiliberal, nacionalista, com poder concen-trado no Executivo e com uma estratégia política francamente centrada nadesmobilização não seria capaz de sobreviver ao fim da guerra.

Tal modelo, seguindo os parâmetros autoritários consagrados nos anos1920 e 1930, não encontrava mais respaldo diante da liderança incontestá-vel dos EUA nas Américas e de sua provável e anunciada vitória, ao ladodos Aliados, sobre o Eixo. Por conseguinte, o problema que se colocavapara as elites era como transitar do autoritarismo para a liberal-democra-cia, elaborando uma estratégia que possibilitasse sua permanência no po-der. Ou seja, uma transição “por dentro”, concebida e implementada pelaelite intelectual e política do próprio Estado Novo. E, em tal processo, seas balizas internacionais são inquestionáveis, há igualmente uma série defatos da política nacional que dimensionam as mudanças que o Estado Novovai sofrer. Esse aspecto é fundamental, porque é exatamente nesse novocontexto, como mencionado, que vai se articular o que estamos conside-rando um pacto político entre Estado e povo/classe trabalhadora no Brasil.

É sobre a montagem desse pacto, portanto, que este texto vai se concen-trar a partir daqui, destacando-o como o núcleo de uma reorientação polí-tica, com desdobramentos que vão além do período do Estado Novo. Assim,vale ressaltar que ele envolve, de forma estratégica, uma mudança nas rela-ções entre Estado e sociedade, redefinindo discursos e práticas e abarcan-do a questão da incorporação da classe trabalhadora ao cenário político dopaís. Porém, antes de se acompanharem, mais detidamente, as condiçõesde sua implementação, importa relembrar, ainda que brevemente, as inter-pretações mais correntes a respeito do modelo de relações que teria se es-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2858

59

E S TA D O N O V O : A M B I G U I D A D E S E H E R A N Ç A S D O AU T O R I TA R I S M O N O B R A S I L

tabelecido entre governantes e governados, entre elites e “massas”, duranteo Estado Novo, com o qual essa proposta tem que dialogar.

De modo geral, tal modelo assinalava dois aspectos. Em primeiro lugar,partia da constatação da nítida intervenção do Estado no processo de orga-nização dos trabalhadores, situando-a como um ponto de ruptura radicalem um processo “natural”, que tinha curso desde a Primeira República. Talintervenção, portanto, além de efetuada por um ator “externo”, era a res-ponsável pela alteração de um “sentido” que se pressupunha, até certoponto, ao menos, como conhecido e previsível. Em segundo lugar, as rela-ções entre Estado e classe trabalhadora eram compreendidas como regidaspor uma lógica instrumental que trocava benefícios materiais por obediên-cia política. Nesse raciocínio, de um lado o Estado do pós-1930, por meiode sua política social do trabalho, era caracterizado como um produtor debens de valor nitidamente utilitário: as leis sociais do trabalho. Por outro, aclasse trabalhadora, ao se submeter politicamente em troca dessa legislação,estaria realizando um cálculo político de custos e benefícios, fundamentalmenteracional e instrumental. Isto é, o trabalhador, por almejar os novos direitossociais, acabava aderindo politicamente ao regime e sendo “cooptado e/oumanipulado” pelo Estado. A classe trabalhadora, nesses termos, era ludi-briada por palavras e por uma legislação enganosa (muito mais uma promessado que uma realidade), perdendo sua autonomia política e mergulhandonuma posição de submissão, que combinava ingenuidade e ignorância, emdoses razoavelmente proporcionais.

Sem afastar a presença dessa lógica material na construção de um mo-delo de relações entre Estado e classe trabalhadora, o que se pretende, aopropor uma interpretação que enfatiza a construção de um pacto políticodesses dois atores, é afastar o modelo explicativo consagrado na literaturapela categoria populismo. Ele seria excessivamente simplista, estando an-corado tanto na ideia de um aparelho de Estado maquiavélico e todo-po-deroso como na de uma classe trabalhadora desprovida de consciência eimpulsão próprias; de um Estado sujeito histórico e de uma classe trabalha-dora objeto passivo de sua ação.24 É justamente devido ao compartilhamentodesse tipo de concepção sobre as relações de dominação construídas du-rante o Estado Novo que os debates sobre o uso da designação de Estado

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2859

60

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

fascista/totalitário para classificá-lo cruzaram-se — ajudando a alimentar oua recusar — com os debates sobre o uso da categoria populista. Além disso,essa última trazia consigo uma inevitável reflexão sobre a questão da repre-sentação versus cooptação (de líderes sindicais, de políticos, de intelectuaisetc.), bem como sobre os significados da própria palavra manipulação, quepassou a ganhar contornos mais sofisticados para sustentar a proposta dopopulismo.

Ou seja, a ideia da manipulação deixava de ter um sentido tão unidire-cional (significando o poder absoluto do Estado), sendo postulada comotendo uma ambiguidade constitutiva, por ser quer uma forma de controledo Estado sobre as massas trabalhadoras, quer uma forma de real atendi-mento de suas demandas. Dessa forma, embora seja sempre enfatizada umadimensão de mascaramento nesse atendimento — devido à falta de forçados trabalhadores brasileiros, pouco numerosos e sem tradições de luta,como os europeus —, a “política populista” efetivada pelo Estado Novofora vivenciada pela classe trabalhadora como uma possibilidade de acessoa direitos, eminentemente sociais. Contraditoriamente, portanto, quandono Brasil os direitos políticos (e também os civis) encontravam-se legalmentesuspensos — não havendo formas de representação no campo da políticaformal —, teria havido a incorporação de um ator coletivo tão central parao mundo urbano-industrial como era a classe trabalhadora. Assim, o que sepode chamar de modelo populista de interpretação das relações entre go-vernantes e governados, mesmo quando reconhecia a ambiguidade da“manipulação”, entendia que os dominados podem e são, com frequência,praticamente destituídos de autonomia e consciência, quando submetidos aestratégias políticas próprias da sociedade de massas. Esse fenômeno políti-co-cultural incluiria uma certa seleção de variáveis histórico-sociológicas, bemcomo um certo perfil de atores, presente no Brasil dos anos 1930 e 1940:uma classe trabalhadora fraca e sem consciência; uma classe dirigente cindidae em crise de hegemonia após a Revolução de 1930; e um líder carismáticocujo apelo ideológico se fortaleceu, sobretudo na ditadura do Estado Novo.

Afastar essa abordagem implicava discutir seus postulados e, em particu-lar, considerar que os trabalhadores também tinham uma posição política ativa,ainda que sem recusar a força do Estado que sobre eles se abatia. A dificulda-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2860

61

E S TA D O N O V O : A M B I G U I D A D E S E H E R A N Ç A S D O AU T O R I TA R I S M O N O B R A S I L

de, teórica e histórica, de utilização do conceito de populismo residia nessaperspectiva de construção de relações sociais, pois tudo que era qualificadocomo “populista” enfatizava uma dimensão de “manipulação” do Estado sobreas “massas”, mesmo quando se reconhecia sua ambiguidade. Dessa forma,considerar os trabalhadores interlocutores do Estado era reconhecer um di-álogo entre atores com recursos de poder diferenciados, mas igualmente ca-pazes de se apropriar e reler as propostas políticas um do outro. Tal operaçãoafastava a dicotomia, muito vigente, entre autonomia e heteronomia da clas-se trabalhadora, como forma de designar e explicar a ausência de lideranças“verdadeiras” e de sua “falta de consciência” ou sua “consciência possível”.Esse aspecto era importante, porque se vinculava à explicação do sucesso daslideranças políticas populistas, tendo o poder de colocar sob suspeição aque-les que com eles se relacionavam, no caso, as lideranças sindicais “cooptados”,isto é, pelegos: ingênuos e/ou traidores. Ser cooptado — por definição “nãorepresentar” — era estar em uma relação em que não se possuía qualquerpoder, em que se estava sendo “manipulado” e transformado em objeto in-capaz de negociação.

Por essas inúmeras razões, vinculadas ao efeito simplificador que o usodo conceito populismo gerava, seu amplo uso foi sendo também questio-nado, e sua constituição como categoria explicativa, mais bem investigada.Esses esforços resultaram, de forma muito esquemática, ou em seu abando-no por alguns estudos ou em seu uso com muito mais cuidado. No primei-ro caso, está nossa própria pesquisa que propõe a designação de pactopolítico trabalhista para entender as relações construídas pelo Estado e pelaclasse trabalhadora no Brasil, nesse período. Esse pacto precisaria ser en-tendido a partir de duas dimensões essenciais: uma simbólica e outra orga-nizacional. A dimensão simbólica se traduziria pela construção de umcuidadoso discurso de propaganda do regime, que marcaria profundamen-te a cultura política brasileira, desde então. Tal discurso, por conseguinte,não está sendo postulado como uma construção de efeitos meramenteconjunturais, embora se possa datá-lo e mapear as condições específicas desua produção. Ele deitaria raízes profundas numa tradição do pensamentosocial brasileiro, extrapolando em muito a década de 1940 e “inventando”uma matriz para se pensarem as relações entre governantes e governados

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2861

62

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

no Brasil. A dimensão organizacional é igualmente fundamental e se tradu-ziria pela criação de um instrumental institucional em que uma das faces éo modelo de sindicalismo corporativo, e a outra, seu acoplamento a umsistema político-partidário. Ou seja, a estratégia da transição “por dentro”,implementada durante o Estado Novo, vislumbra, a curto prazo, os anos1940 e a saída do autoritarismo e, a longo prazo, os desdobramentos polí-ticos inevitáveis da instalação da liberal-democracia no país, com o retornodo voto, dos partidos políticos e do Parlamento.

Retomando, com mais vagar, a dinâmica de construção desse pacto po-lítico, é interessante examinar, mais detidamente, o discurso de propagan-da então elaborado e divulgado. Acreditamos que esse é um momentoprivilegiado para se observar a qualidade e a eficácia da construção de umaideologia política, a que chamamos trabalhismo, que se constituirá emuma das bases privilegiadas da liderança de Vargas. O chefe do Estado Novoé provavelmente, até hoje, nosso melhor produto de marketing político. Acampanha que, sobretudo a partir de 1942, se articula em torno de seu nomeé extremamente bem concebida e executada. Ela combina uma cuidadosaestratégia de mobilização dos trabalhadores com a manutenção de todo umesforço de controle que se exprime pela diluição e, se necessário, pela re-pressão às opções de organização e expressão políticas que se mantivesseminsistentes. O centro desse esforço é o Departamento Nacional do Traba-lho (órgão do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio), logicamentemantendo contatos e tendo o apoio do Departamento de Imprensa e Pro-paganda (DIP) e do aparelho policial. Um dos pontos altos dessa orques-trada propaganda são os discursos que o ministro do Trabalho, AlexandreMarcondes Filho, faz semanalmente pelo rádio no programa Hora do Brasil.O título dessas “conversas” era Falando aos trabalhadores do Brasil e elas sesucederam, praticamente sem interrupções, de meados de 1942 até mea-dos de 1945. A estrutura dessas falas, sempre coloquiais e didáticas, estavacentrada numa interpelação dirigida à classe trabalhadora, que a colocavano centro do cenário político nacional.25

Mas o fato fundamental a se ressaltar é que esse discurso se apropriavade toda uma série de demandas e práticas experimentadas pelos trabalha-dores ao longo das décadas da Primeira República, dando-lhes novos signi-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2862

63

E S TA D O N O V O : A M B I G U I D A D E S E H E R A N Ç A S D O AU T O R I TA R I S M O N O B R A S I L

ficados. É, portanto, com tal perspectiva que se deve repensar a ideia deuma ruptura radical produzida pela intervenção estatal na trajetória domovimento sindical brasileiro. Ou seja, durante o Estado Novo, o que seobserva é um esmerado esforço na construção de um discurso de propa-ganda do regime e de Vargas, baseado na política social de regulamentaçãodo mercado de trabalho, que omite um passado de lutas e reivindicaçõesdos trabalhadores. Uma operação que retoma a tradição do movimentooperário, em outro contexto, apresentando suas antigas demandas como“doações” do Estado: como benefícios antecipados, concedidos antes mes-mo de serem pedidos.

É o que a literatura designou como “ideologia da outorga”, numa chaveque prioriza uma pertinente crítica ao discurso governamental, mas que nãoexplora suas virtualidades como recurso de poder. Justamente por isso,tornava-se fundamental ressaltar as continuidades entre o pré e o pós-1930,apontando que uma das razões do sucesso do discurso do Estado Novo foia “leitura” que empreendeu das lutas dos trabalhadores do pré-1930. Istoé, que foi por meio dessa estratégia — que ao mesmo tempo mobilizava eobscurecia a memória operária — que a legislação trabalhista, previdenciáriae sindical foi apresentada à população de trabalhadores brasileiros comouma “dádiva”, uma “ação antecipada” do Estado.

Uma operação nada banal e cheia de significados, pois há muita forçapolítica no ato de doar, como ensina Marcel Mauss. Sem desprezar essachave explicativa ou considerá-la indicadora de mera manipulação, a ideiaé tratar esse pacto como uma forma de “comunicação política”, fundadana apresentação do “direito social como dádiva”, por meio da qual se pro-duz adesão e legitimidade. Isto é, uma ideia aparentemente paradoxal — ade “direito como favor” — que envolve um circuito de “dar, receber e retri-buir”, que se estrutura por meio de uma lógica político-cultural, incom-preensível dentro dos marcos de um mercado político orientado apenas porinteresses instrumentais. Uma lógica política que combina crenças e inte-resses, tanto por parte dos dominantes quanto dos dominados, embora comevidente desequilíbrio de poder entre eles. Nesse contexto, pode-se enten-der o esforço do Estado Novo na divulgação dos direitos trabalhistas, re-correndo aos mais modernos meios de comunicação da época, bem como

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2863

64

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

usando recursos humanos altamente qualificados. É certamente muito difícildimensionar o tipo de recepção de tais iniciativas. Mas, seguindo orientaçõesdos estudos de história cultural, sabe-se que toda mensagem é recebida eapreendida por um público de forma ativa, segundo seus próprios referen-ciais. Não há público passivo e, portanto, entre a intenção da mensagem eo entendimento do público há um grande espaço para novas elaborações.

Dessa maneira, pode-se entender que outra razão do sucesso desse dis-curso foi a leitura que os trabalhadores de imediato fizeram dele, “apro-priando-se da dádiva” e cobrando sua execução em nome da lei. A “ideologiada outorga”, trabalhada nessa perspectiva, permite identificar a montagemdesse modelo de relações políticas como um dos elementos fundamentaisdo projeto de transição mais amplo que estava sendo conduzido pelas eli-tes do Estado Novo. Tal modelo estabelecia, basicamente, uma interlocuçãoentre uma autoridade benevolente — materializada na pessoa de Vargas —que concedia ao povo/classe trabalhadora um conjunto de direitos sociais,independentemente de suas lutas e reivindicações. Por meio de uma rela-ção de troca — de troca de presentes, de bens materiais com valor simbó-lico — a classe trabalhadora estava sendo incorporada como ator político,reconhecendo a liderança de Vargas e, ao mesmo tempo, “apropriando-se”do discurso de propaganda do regime.

Assim, é preciso entender a “obediência” dos trabalhadores, quer comouma possibilidade de efetivação de controles do Estado sobre suas organi-zações, quer como um canal de comunicação política que se abria para elas,estabelecendo um novo lugar de interlocutor político, reconhecido e hámuito perseguido. Ou seja, se há, embasando a lógica de construção dessepacto, uma dimensão coercitiva por parte do Estado, e uma dimensão uti-litária por parte das organizações sindicais — pois os trabalhadores “rece-bem benefícios”, acionados por uma série de políticas públicas — tal lógicanão esgota seu sentido político. A expansão da legislação trabalhista eprevidenciária; a instituição da carteira de trabalho, da estabilidade do em-prego e do salário mínimo; a criação da Justiça do Trabalho; a inauguraçãode restaurantes para trabalhadores; a construção de conjuntos habitacionaise de colônias de férias são bons exemplos para se referenciar sua dimensãomaterial. Mas há nesse pacto, igualmente, uma lógica simbólica, e é por

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2864

65

E S TA D O N O V O : A M B I G U I D A D E S E H E R A N Ç A S D O AU T O R I TA R I S M O N O B R A S I L

meio dela que se expressa o reconhecimento, pelo Estado, da identidadesocial e política dos trabalhadores brasileiros. É por meio dessa dimensãoque se abre o espaço da política à participação dos trabalhadores, ainda quecom muitos limites. É, portanto, em função dessa dupla lógica — materiale simbólica — que Estado e povo se reconhecem mutuamente, o que per-mite e explica que os trabalhadores se dirijam ao Estado “reclamando” di-reitos que são seus e devem ser cumpridos por empresários e por autoridadesgovernamentais.26 Esse pacto político-trabalhista, pensado ao longo do tem-po, possui de modo integrado, mas não redutível, tanto a palavra e a açãodo Estado (que sem dúvida teve o poder de desencadeá-lo) como a palavrae a ação da classe trabalhadora, devendo-se ressaltar que nenhum dos doisatores era uma totalidade harmônica.

O último ponto a ser tratado é a dimensão organizacional desse pactopolítico. Ela é fundamental, porque toda essa construção está alicerçada namontagem da estrutura do sindicalismo corporativo no Brasil. É lógico que,antes dos anos 1940, já existiam leis instituindo um modelo de organiza-ção sindical de tipo corporativo no Brasil e também existiam sindicatos efederações de “empregados” e “empregadores”, reconhecidos pelo Minis-tério do Trabalho. A questão é que a maioria absoluta desses sindicatos nãomobilizava nem representava os trabalhadores. Por isso, inclusive, eram cha-mados de “sindicatos de carimbo”, tanto pelos trabalhadores quanto pelaprópria burocracia governamental, inclusive a do Ministério do Trabalho.

Contudo, durante um bom tempo, esse fato não preocupou o ministérionem Vargas e é preciso entender por que passou a incomodar justamentea partir de 1942. Ora, a montagem do discurso trabalhista, centrado naafirmação da cidadania expressa pelos direitos sociais, precisava de amar-ras sólidas e essas só poderiam ser os sindicatos. Mas sindicatos quepossuíssem graus efetivos de legitimidade, caso contrário seriam inúteispara a implementação de uma estratégia de saída do autoritarismo. Não écasual, portanto, que exatamente nesse momento fossem implementadasiniciativas para estimular a sindicalização e dar vitalidade aos sindicatos ea suas lideranças. Dentre elas, uma das mais importantes e duradouras foi acriação do imposto sindical, medida que transformaria os sindicatos emreais dispensadores dos benefícios que a legislação garantia e o discurso

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2865

66

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

trabalhista propagava.27 Outra é a formação da Comissão de OrganizaçãoSindical, que deveria estimular a filiação de trabalhadores aos sindicatose treinar lideranças capazes de atuar conforme os novos direitos traba-lhistas e previdenciários.

Por fim, é desse momento a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT),que era chamada por Marcondes Filho de a “bíblia do trabalhador”. Eledizia, pelo rádio, que cada trabalhador devia ter um exemplar em sua me-sinha de cabeceira e devia lê-la um pouco todos os dias, para que se imbuís-se da posição de cidadão da democracia social brasileira. Essa ativação dosindicalismo corporativo, municiada, de um lado, pelo imposto sindicale, de outro, pelo discurso trabalhista, começa a deslanchar a partir de 1942.É extremamente difícil ter algum tipo de avaliação precisa sobre o sucessodesse empreendimento, mas é significativo verificar o empenho do apa-relho estatal e entendê-lo como um sinal do quanto acreditava e apostavanos resultados de tal política. Isso porque toda essa montagem precisariaestar azeitada para que a transição do autoritarismo para a liberal-democracia se fizesse sem maiores problemas. Além disso, o sindicalismocorporativista deveria articular-se cuidadosamente com o renascimentode um sistema partidário. É nesse mesmo momento, portanto, que a ques-tão dos partidos políticos é levantada pela cúpula estado-novista, com adiscussão de quais seriam as relações entre sindicatos e partidos: entre acidadania social dos benefícios trabalhistas e dos sindicatos corporativistasjá existente e a cidadania política do direito de voto e dos partidos polí-ticos que estava por vir.

O primeiro dos partidos que se forma na conjuntura do fim do EstadoNovo é a União Democrática Nacional (UDN), que, como um partido deoposição, logicamente, não estava previsto pelos mentores da transição.Mas, a partir de sua existência e do lançamento de um candidato à Presi-dência da República — o brigadeiro Eduardo Gomes — não se podia adiarmais a criação de partidos “governistas”. Em face da impossibilidade deum único partido que conjugasse todos os líderes políticos nacionais eregionais, e ainda agregasse o esquema criado pelo trabalhismo-corporati-vismo, emergem dois: o Partido Social Democrático (PSD), como espaçoprivilegiado para as articulações dos líderes políticos estaduais, e o Partido

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2866

67

E S TA D O N O V O : A M B I G U I D A D E S E H E R A N Ç A S D O AU T O R I TA R I S M O N O B R A S I L

Trabalhista Brasileiro (PTB), como um partido para o povo organizadonas bases do sindicalismo corporativista.28

Nesse sentido, a herança que o Estado Novo deixou é muito sólida ecomplexa. Sem dúvida, esse foi um período que modernizou a administra-ção pública e que deixou muitos saldos em termos de desenvolvimento eco-nômico e social, a despeito de ter restringido a cidadania civil e eliminadoa cidadania política. Portanto, se os trabalhadores reconheceram e aindareconhecem Getúlio Vargas como uma liderança vinculada ao acesso a di-reitos e à cidadania, esse fato precisa ser entendido e enfrentado. Obvia-mente, os trabalhadores e o povo brasileiro perderam muito durante aditadura do Estado Novo, mas, por outro lado, receberam um reconheci-mento até então por eles desconhecido. E é essa ambiguidade um dos maio-res legados do período, permanentemente desafiando o historiador.

Notas

1. CAMARGO, Aspásia et alii. O golpe silencioso. Rio de Janeiro: Rio Fundo, 1989.2. HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). São Pau-

lo: Companhia das Letras, 1995, p. 115.3. Um balanço da produção historiográfica sobre o Estado Novo, que estará sendo

aqui usado, foi feito por CAPELATO, Maria Helena Rolim. “Estado Novo: no-vas histórias”, in: FREITAS, Marcos César de (org.). Historiografia brasileira emperspectiva. São Paulo: Contexto, 1998.

4. O livro, da Jorge Zahar, foi publicado como o volume I do projeto O feixe e oprisma: uma revisão do Estado Novo. O volume I, O feixe com o qual vamostrabalhar, está centrado na questão do autoritarismo e o volume II, O prisma,estaria voltado para temas do Estado Novo e reuniria artigos de outros partici-pantes do seminário. O volume I, como se pode verificar pelas citações bibliográ-ficas de vários artigos, recebeu artigos concluídos bem depois de 1987 e o volumeII não chegou a ser publicado.

5. O outro artigo que também faz reflexões historiográficas é PESAVENTO, Sandra.“Historiografia do Estado Novo: visões regionais”, in: SILVA, José Luiz Werneckda (org.). O feixe: o autoritarismo como questão teórica e historiográfica. Rio deJaneiro: Jorge Zahar Editor, 1991, pp. 132-139. O artigo de Gertz o antecede,pp. 111-131.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2867

68

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

6. O CPDOC, da Fundação Getulio Vargas, foi organizado em 1973, a partir dos

arquivos privados de Getúlio Vargas. A partir de então, passou a reunir grande

quantidade de documentação para a pesquisa e também a produzir análises sobre

o período do pós-1930, priorizando esses documentos. A observação de Gertz

está na p. 113.

7. GERTZ, René. “Estado Novo: um inventário historiográfico”, in: SILVA, José

Luiz Werneck da (org.), op. cit., p. 112.

8. LAMOUNIER, Bolívar, “Formação de um pensamento autoritário na Primeira

República”, in: FAUSTO, Boris (org.). História Geral da Civilização Brasileira.

São Paulo: Difel, vol. 9, 1977; GOMES, Angela de Castro; OLIVEIRA, Lucia

Lippi; VELLOSO, Mônica Pimenta. Estado Novo: ideologia e poder. Rio de Ja-

neiro: Jorge Zahar, 1982.

9. GERTZ, René. “Estado Novo: um inventário historiográfico”, in: SILVA, José

Luiz Werneck da (org.), op. cit., p. 113.

10. Não é o caso de traçar maiores informações sobre esse processo, já assinalado em

muitos artigos, entre eles um de minha própria autoria: GOMES, Angela de

Castro. “Política: história, ciência, cultura etc.”. Estudos Históricos, Rio de Ja-

neiro, vol. 9, nº 17, 1996, pp. 59-84.

11. PANDOLFI, Dulce (org). Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: FGV, 1999.

12. Trata-se de LEOPOLDI, Maria Antonieta P. “Estratégias de ação empresarial em

conjunturas de mudança política”, in: PANDOLFI, Dulce, op. cit.

13. PANDOLFI, Dulce, op. cit., p. 11.

14. GERTZ, René. “Estado Novo: um inventário historiográfico”. SILVA, José Luiz

Werneck da (org.), op. cit., p. 112.

15. O artigo faz parte do livro organizado por FREITAS, Marcos César de (org.), op.

cit. Vide as notas nºs 6 e 7, pp. 446-7.

16. Estarei, a partir deste ponto, trabalhando e retomando, privilegiadamente, um

conjunto de textos de minha autoria, em que discuto e proponho interpretações

sobre as questões acima mencionadas.

17. SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Cidadania e justiça. Rio de Janeiro: Campus,

1979.

18. O livro Estado Novo: ideologia e poder, já citado, deve ser assinalado pelo papel

que cumpre nesse debate da questão do fascismo/autoritarismo no Brasil.

19. Essa é uma das teses do livro GOMES, Angela de Castro. A invenção do

trabalhismo. 3ª ed. Rio de Janeiro: FGV, 2005, cuja 1ª edição é de 1988.

20. Borges de Medeiros era então o interventor do estado do Rio Grande do Sul e o

general Góis Monteiro, que fora o comandante em chefe das forças revolucioná-

rias de 1930, um dos maiores líderes do Exército.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2868

69

E S TA D O N O V O : A M B I G U I D A D E S E H E R A N Ç A S D O AU T O R I TA R I S M O N O B R A S I L

21. Esse Código Eleitoral tornou o voto obrigatório e estendeu esse direito às mulheres.22. Sobre o assunto, ver CAMARGO, Aspásia et alii, op. cit.23. MOURA, Gerson. Autonomia na dependência: a política externa brasileira de

1935 a 1942. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980; e MOURA, Gerson. Suces-sos e ilusões: relações internacionais durante e após a Segunda Guerra Mundial.Rio de Janeiro: FGV, 1991.

24. Uma crítica a tal interpretação, consagrada no conceito de populismo, está emGOMES, Angela de Castro, “Populismo e ciências sociais no Brasil: notas sobrea trajetória de um conceito”, in: FERREIRA, Jorge (org.). O populismo e suahistória: debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

25. Os discursos proferidos pelo ministro eram irradiados durante o programa Horado Brasil, sendo publicados, a seguir, no jornal A Manhã e, por fim, integravam oBoletim do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio.

26. Sobre como os trabalhadores se dirigiram ao presidente através de correspon-dência, ver FERREIRA, Jorge. Trabalhadores do Brasil: o imaginário popular. Riode Janeiro: FGV, 1997.

27. Sobre o impacto e a permanência do imposto sindical, ver GOMES, Angela de Cas-tro; D’ARAUJO, Maria Celina, “A extinção do imposto sindical: demandas e contra-dições”. Dados. Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 36, nº 2, 1993.

28. Sobre a criação do PTB e suas relações com Getúlio Vargas, ver GOMES, Angela deCastro; D’ARAÚJO, Maria Celina. Getulismo e trabalhismo. São Paulo: Ática, 1989.

Bibliografia

CAMARGO, Aspásia et alii. O golpe silencioso. Rio de Janeiro: Rio Fundo, 1989.CAPELATO, Maria Helena Rolim. “Estado Novo: novas histórias”, in: FREITAS,

Marcos César de (org.). Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Con-texto, 1998.

FERREIRA, Jorge. Trabalhadores do Brasil: o imaginário popular. Rio de Janeiro: FGV,1997.

GOMES, Angela de Castro. “Política: história, ciência, cultura etc.” Estudos Históri-cos, Rio de Janeiro, vol. 9, nº 17, 1996, pp. 59-84.

——. “Populismo e ciências sociais no Brasil: notas sobre a trajetória de um conceito”,in: FERREIRA, Jorge (org.). O populismo e sua história: debate e crítica. Rio deJaneiro: Civilização Brasileira, 2001.

——. A invenção do trabalhismo. 3ª ed. Rio de Janeiro: FGV, 2005.——; OLIVEIRA, Lucia Lippi; VELLOSO, Mônica Pimenta. Estado Novo: ideologia e

poder. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1982.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2869

70

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

——; D’ARAUJO, Maria Celina. Getulismo e trabalhismo. São Paulo: Ática, 1989.——; D’ARAUJO, Maria Celina. “A extinção do imposto sindical: demandas e contra-

dições”. Dados. Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 36, nº 2, 1993.HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo:

Companhia das Letras, 1995.LAMOUNIER, Bolívar. “Formação de um pensamento autoritário na Primeira Repú-

blica”, in: FAUSTO, Boris (org.). História Geral da Civilização Brasileira. São Pau-lo: Difel, vol. 9, 1977.

MOURA, Gerson. Autonomia na dependência: a política externa brasileira de 1935 a1942. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

——. Sucessos e ilusões: relações internacionais durante e após a Segunda Guerra Mun-dial. Rio de Janeiro: FGV, 1991.

PANDOLFI, Dulce (org). Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: FGV, 1999.SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Cidadania e justiça. Rio de Janeiro: Campus, 1979.SILVA, José Luiz Werneck da (org.). O feixe: o autoritarismo como questão teórica e

historiográfica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2870

CAPÍTULO 2 Celebrando a “Revolução”: as Marchasda Família com Deus pela Liberdadee o Golpe de 19641

Aline Presot*

*Mestre em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Autora de“Conservadores em desfile”. Revista de História, vol. 8, pp. 60-64, 2006.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2871

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2872

Nos primeiros anos da década de 1960, o país viveu um momento de eferves-

cência política e cultural dos mais marcantes. As aspirações por mudança

social e a ideia de “revolução”,2 não apenas na política e nas instituições

como na cultura, nos costumes e nas expressões artísticas, ganhavam no-

vos sentidos e tonalidades mais fortes.

Mas eram também tempos de guerra fria, em que imagens3 valorizadoras

do ideário “ocidental e cristão” foram se reconstituindo e se difundindo,

especialmente por meio de certos grupos ou instituições que se mostravam,

em diferentes graus e segundo interesses também diversos, cada vez mais

preocupados com o “perigo comunista”, que se lhes afigurava mais próxi-

mo desde a Revolução Cubana, em 1959, e a opção por um governo socia-

lista naquele país, em 1961. Nesse mesmo ano, após a renúncia de Jânio

Quadros, a posse do nacionalista João Goulart na presidência foi recebida

com grande alarmismo. Sua herança política e suas ligações com os sindicatos

faziam com que fosse tido, por determinados estratos do conservadorismo

político, por “esquerdista”.4 A partir daquele momento, o país atravessaria

uma das fases de mais agudo anticomunismo na história do século XX.5

Nesse cenário, os movimentos sociais conheceram um crescimento sig-

nificativo, quando grupos de orientação ideológica oposta se enfrentaram

em alguns dos maiores embates de nossa história política. De um lado, seg-

mentos identificados com o conservadorismo político, que se articulavam

numa intensa campanha de mobilização da opinião pública pela desestru-

turação do governo João Goulart. De outro, representantes das esquerdas

que, unidos em torno de um projeto reformista, passaram, paulatinamente,

por um processo de radicalização de suas propostas.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2873

74

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Este artigo tem como propósito analisar um dos momentos de maior ex-

pressão da organização conservadora, que foi a realização das Marchas da

Família com Deus pela Liberdade. Enquanto fenômeno social, as Marchas

inserem-se em um momento em que diversificados setores da população

saíram às ruas em repúdio ao governo nacionalista de João Goulart, que,

segundo acreditavam, tinha aspirações comunizantes e caminhava para a

destruição dos valores religiosos, patrióticos e morais da sociedade. Tais

passeatas surgiram como uma espécie de pedido às Forças Armadas por uma

intervenção salvadora das instituições e, posteriormente ao 31 de março

de 1964, passaram por uma ressignificação de seu discurso, transforman-

do-se numa demonstração de legitimação do golpe civil-militar. As Marchas

acabaram por constituir algumas das maiores manifestações públicas de nossa

história política e tornaram-se emblemáticas não só pelo número de manifes-

tantes como também pela notável estrutura de propaganda a serviço de seus

organizadores e capacidade de mobilização popular para a ação política.6

A perspectiva da valorização analítica das relações entre as escolhas polí-

ticas dos indivíduos — no presente caso, a opção por aderir a um movi-

mento que buscava a derrubada de um governo legalmente estabelecido e,

posteriormente, a uma intervenção militar nas instituições democráticas —

e o conjunto de crenças e valores que as orientaram, a maneira pela qual

foram eleitos e manipulados tais bens simbólicos,7 foram um dos vetores

principais do estudo das Marchas da Família com Deus pela Liberdade.

A RADICALIZAÇÃO DA LUTA POLÍTICA E AS MARCHAS DA FAMÍLIA

COM DEUS PELA LIBERDADE

Durante os anos do governo João Goulart (1961-1964), a sociedade bra-

sileira assistiu a um considerável crescimento e amadurecimento da mo-

bilização popular em torno de projetos políticos. Camponeses, operários,

estudantes e militares protagonizaram greves, ocupações de terra e ma-

nifestações públicas com repercussões até então inéditas na nossa histó-

ria política.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2874

75

C E L E B R A N D O A “ R E V O LU Ç Ã O ”

Grande parte desses movimentos sociais estreitou seus interesses em tornodo projeto das reformas de base, projeto esse que compreendia mudançasna estrutura agrária, urbana, na educação, reformas institucionais, como aextensão do direito de voto aos analfabetos, além de políticas de controledo capital estrangeiro e a nacionalização de alguns setores da economia. Ospartidos de orientação de esquerda — nacionalistas, trabalhistas e comunistas— além de organismos sindicais, como o Comando Geral dos Trabalhado-res (CGT), entidades estudantis e ligas de trabalhadores rurais empunha-ram com entusiasmo a bandeira das reformas, que nos anos finais do governoJango ganhou contornos mais radicais. Acirraram-se, assim, tensões políti-cas e pressões sobre o governo, que desde seu início foi marcado por crisespolítico-institucionais, como também pela crise econômica, em parte he-rança das administrações anteriores.

Num outro espectro situava-se uma classe média amedrontada com acontínua perda de poder aquisitivo e com as ditas tendências “esquer-dizantes” do presidente, tão alardeadas pelas forças conservadoras,8 e umempresariado cada vez mais descontente, que ansiava por medidas quepudessem conter o avanço das forças populares e dar um novo equilíbrioao quadro econômico.

Os grupos conservadores, que havia alguns anos denunciavam a iminênciado “perigo comunista” no país, perceberam a necessidade de intensificarsua campanha de oposição ao governo e de arregimentação da opinião pú-blica. Esses grupos acreditavam numa infiltração comunista no governo,bem como nas Forças Armadas, nos partidos, sindicatos e nas organizaçõesestudantis, responsável pelas mobilizações populares. Os opositores dogoverno Jango usaram referências simbólicas para caracterizar o “inimigocomunista”, como a alusão aos símbolos católicos, relacionando o comu-nismo à sombra, às trevas, ao medo e ao terror, dizendo-o capaz de des-truir os três pilares da sociedade livre: Deus, Pátria, Família.9

O constante esforço de conciliação das demandas dos setores conserva-dores e nacionalistas levaria o presidente, em pouco tempo, ao isolamentopolítico. Os setores de direita temiam a suposta tendência “esquerdista” deJango, enquanto as esquerdas passavam a identificar suas propostas commero exercício de retórica. A realização do Comício pelas Reformas, no

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2875

76

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Rio de Janeiro, consistiu numa tentativa de reaproximação das massas, quese encontravam cada vez mais descrentes de seu governo. Foi sua últimamanobra política de busca de apoio.

As forças governistas esperavam daquela noite de sexta-feira, 13 de marçode 1964, a difícil tarefa de unir suas bases, que se chocavam mais violenta-mente a cada dia. E, de fato, a realização do comício acabou por superaraté as expectativas mais otimistas, reunindo nos arredores da Central doBrasil cerca de 200 mil pessoas. O comício, organizado pelo CGT, duroucerca de oito horas, período durante o qual discursaram líderes estudantis,como o presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), José Serra, ogovernador de Pernambuco, Miguel Arraes, Lindolfo Silva, presidente daConfederação dos Trabalhadores Rurais, além do líder nacionalista LeonelBrizola. A presença do ministro da Justiça, Abelardo Jurema, bem comodos ministros militares, entre eles o da Guerra, Jair Dantas Ribeiro, tinhaimportante significado, era uma clara tentativa de demonstração do com-prometimento das Forças Armadas com a legalidade. Para muitos dos mili-tares antijanguistas que acompanhavam os acontecimentos, tal apoioadquiria ares de envolvimento das Forças com um golpe antidemocrático.10

Enquanto Jango selava o compromisso definitivo com as reformas, assi-nando seus principais decretos, muitas famílias da Zona Sul do Rio de Janeirorespondiam a uma convocação de se acender uma vela pelo afastamentodo país das aspirações comunizantes. Mulheres de São Paulo se reuniram erezaram o terço na Sé.

A resposta do presidente a esses ataques viria como crítica aos que “ex-ploram os sentimentos cristãos do povo na mistificação de um anticomu-nismo” e na declaração de que “não podem ser levantados os rosários da fécontra o povo, que tem fé numa justiça social mais humana e na dignidadede suas esperanças”. Foi o bastante para que seus adversários se organizas-sem numa ação espetacular. A Marcha da Família com Deus pela Liberdadeseria um movimento de desagravo ao rosário insultado por João Goulart.Na verdade, as mulheres da Campanha da Mulher pela Democracia (Camde),associação feminina do Rio de Janeiro,11 chegaram mesmo a distorcer suaspalavras, afirmando ter ele dito que “os terços e a macumba da Zona Sulnão teriam poder sobre ele”.12

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2876

77

C E L E B R A N D O A “ R E V O LU Ç Ã O ”

As diferentes versões acerca da arquitetura das Marchas da Família comDeus pela Liberdade convergem ao delegar à irmã Ana de Lurdes (LucíliaBatista Pereira, neta de Rui Barbosa) a ideia do Movimento de Desagravoao Rosário, que, como foi mencionado anteriormente, deu origem às Mar-chas. Tal iniciativa foi compartilhada pelo deputado Cunha Bueno (PSD),que, indignado com o discurso proferido por Goulart na Central do Brasilem 13 de março, procurou a irmã e, recebida a sugestão, partiu naquelamesma noite para os preparativos da Marcha paulista. A data da manifesta-ção foi também escolhida segundo as diretrizes da irmã: 19 de março, diade São José, padroeiro da família e da Igreja Universal.13

Seus organizadores aguardavam um número de manifestantes que pudes-se, ainda que por uma pequena margem, superar o comparecimento ao Co-mício da Central, mas o que não poderiam prever era que cerca de 500 milpessoas congestionariam as ruas da capital paulista em manifestação públicapela derrubada do presidente. A Marcha seria também uma forma de dizeràs Forças Armadas que era chegado o momento de se intervir na política, oque, segundo seus organizadores, representaria um anseio do povo. Senhorascom rosários em punho rezavam para que se afastasse do país o “perigocomunista”. A multidão seguia num coro: “Tá chegando a hora de Jango irembora.” Carregavam faixas e cartazes com mensagens anticomunistas econtra o governo, algumas delas lembravam: “Trinta e dois mais trinta édois igual a sessenta e quatro”, numa referência à Revolução Constitucio-nalista. Também no sentido de homenagem à Revolução, duzentos ex-com-batentes de 32 abriram as fileiras da Marcha, numa “trincheira democrática”,que seguiu ao som de Paris Belford, consagrado como o hino da Revolução.14

Patrocinada pelos empresários aglutinados no Ipes (Instituto de Pesquisase Estudos Sociais),15 a manifestação contou com a presença maciça e lide-rança dos grupos femininos, algumas das altas patentes militares, um estratoconsiderável do conservadorismo político, além de importantes represen-tações do clero tradicional.

Fundado em novembro de 1961, o Instituto de Pesquisas e Estudos So-ciais reunia em seus quadros membros das elites empresariais favoráveis àabertura da economia ao capital estrangeiro. À semelhança da composiçãoda Marcha da Família acima descrita, para o Ipes confluíram os menciona-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2877

78

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

dos setores de oposição ao governo João Goulart (políticos conservadores,alguns membros do clero, assim como militares, especialmente aquele se-tor ligado à Escola Superior de Guerra).

Por trás da inocente sigla de “instituto de pesquisas e estudos” procura-va-se ocultar o que de fato se constituiu num amplo e criterioso trabalhopela desestabilização do governo Goulart, em defesa de um projeto políti-co-econômico mais adequado às orientações das elites16 que se desenvol-veu em várias frentes. Durante os anos que antecederam o golpe de 1964,o Ipes ampliou sua estrutura e rede de relações ao fundar “filiais” em im-portantes capitais, organizando palestras e seminários em diversos pontosdo país, além de arquitetar um poderoso esquema de propaganda, que iada distribuição de livros e folhetos até a transmissão de um programa se-manal de debates, chamado “Peço a palavra”, pelo Canal 2, na TV Culturade São Paulo,17 além dos filmes feitos especialmente para o cinema.

Entre os anos de 1962 e 1964, o Grupo de Opinião Pública do Ipes18

produziu 14 filmes de duração aproximada de oito a dez minutos, todoseles criados pelo repórter fotográfico e cineasta Jean Manzon, colaboradordo DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) durante a ditaduraVargas.19 Os temas versavam, em geral, sobre os perigos que pairavam so-bre a democracia e a liberdade brasileiras, os problemas socioeconômicos epolíticos por que passava o país, dando também a receita por meio da qualsolucioná-los, extirpando o “inimigo” comunista, responsável por todos osmales que afligiam a nação. Os filmes procuravam demonstrar como, op-tando pela “democracia ocidental e cristã”, a sociedade brasileira se torna-ria mais rica e equilibrada, sem que instituições como a Família e a IgrejaCatólica fossem ameaçadas. Também bastante frequentes eram as compara-ções grosseiras do comunismo com os regimes nazifascistas. Os filmes pro-duzidos eram espalhados por todos os cinemas para serem exibidos emsessões regulares ou especiais, a partir de um acordo feito com as empresasdistribuidoras e com os exibidores.20

Outra importante atividade do Ipes foi a montagem de um banco de in-formações “sobre 400 mil pessoas — acervo que o general Golbery do Coutoe Silva levaria consigo para dar o pontapé inicial no Serviço Nacional de In-formações (SNI)”,21 depois de vitorioso o golpe civil-militar, ainda em 1964.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2878

79

C E L E B R A N D O A “ R E V O LU Ç Ã O ”

Quanto à participação do Ipes nas Marchas da Família, não bastassem

as estreitas ligações com os grupos femininos22 e a responsabilidade pela

idealização e o financiamento da marcha paulista, o instituto colaborou,

através de sua estrutura de propaganda, para a divulgação das manifesta-

ções. Os ipesianos também estiveram presentes por meio das entidades

que os representavam, além dos deputados da Ação Democrática Parla-

mentar (ADP) como Cunha Bueno, Herbert Levy, Arnaldo Cerdeira,

Menezes Cortez, Padre Vidigal, Pedro Aleixo e Eurípedes Cardoso de Menezes,

que não só marcharam, mas também marcaram presença como oradores

nas passeatas.

Após a Marcha de São Paulo, outras manifestações com o mesmo teor

ocorreram no interior do estado e, em breve, o movimento teria abrangência

nacional. A grande passeata do Rio de Janeiro já estava sendo programada

quando o golpe de 31 de março modificou o seu caráter, transformando-a

numa espécie de “desfile da vitória”. O cortejo partiu da Igreja da Candelária,

ao som do repicar dos sinos. No seu auge, teria atingido, segundo algumas

estimativas, o surpreendente número de um milhão de pessoas. A come-

moração da vitória do golpe civil-militar — ou da “Revolução”, como o

nomearam seus protagonistas — durou quatro horas.

A propaganda organizada para a Marcha buscava a adesão da popula-

ção usando valores e elementos simbólicos como o amor à pátria, o respei-

to à democracia, a defesa da família e das liberdades políticas. Um volante

distribuído pelas entidades promotoras da manifestação dizia do seu cará-

ter cívico-religioso, “destinado a reafirmar os sentimentos do povo brasi-

leiro, sua fidelidade aos ideais democráticos e seu propósito de prestigiar o

regime, a Constituição e o Congresso, manifestando total repúdio ao co-

munismo ateu e antinacional”.23 Os boletins eram distribuídos em igrejas,

praias e clubes. A televisão e o rádio deram extensa cobertura aos prepara-

tivos da passeata.24 Também nas páginas dos jornais cariocas, dias antes de

sua realização, podia-se ler: “Em nome de sua fé religiosa, compareça e tra-

ga a sua família.”25 À frente da manifestação estavam as senhoras represen-

tantes da Campanha da Mulher pela Democracia (Camde), às quais era dado

o título de “líderes” da Marcha.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2879

80

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

O histórico da atuação de grupos femininos como a Camde, no Rio deJaneiro, a Liga da Mulher Democrata (Limde), de Belo Horizonte, ou aUnião Cívica Feminina (UCF), de São Paulo, é de fundamental importânciapara a compreensão do clima de radicalização anticomunista do início dosanos 1960 que culminou na reação conservadora de 1964.

Essas mulheres, especialmente a partir de 1962, dominaram o cenáriopolítico com demonstrações de repúdio ao comunismo e franca oposiçãoàs políticas reformistas do governo Goulart, que, segundo acreditavam,representavam o primeiro passo para a completa “bolchevização” do país.Os grupos femininos rapidamente espalharam-se por todos os estados e,sob o manto da caridade, atuavam junto ao empresariado, a grupos políti-cos conservadores e a alguns setores da Igreja Católica em sua campanhade mobilização da opinião pública. As mulheres que fundaram e dirigiramesses grupos comungavam de algumas características, como a de pertence-rem à elite e serem esposas ou mães de empresários ou militares gradua-dos. As diretorias, em geral, eram compostas por um reduzido número deassociadas, cabendo ao restante a realização de tarefas menores, além deengrossar o contingente em seus aparecimentos públicos.

A Camde foi fundada em 12 de junho de 1962 e seu primeiro protestopúblico ocorreu alguns dias depois, quando 30 senhoras se dirigiram aosjornais com o objetivo de protestar contra a indicação de San Tiago Dantaspara primeiro-ministro do governo João Goulart.26

As mulheres da Camde se valeram de eficientes táticas em seu trabalhode mobilização da opinião pública. Uma delas era o envio de telegramas,visando a alertar as mulheres do Brasil inteiro acerca da ameaça do comu-nismo. Do mesmo modo a Camde enviou cartas para senhoras, distribuiucartas na porta das estações de rádio, assim como livros, folhetos e outrosinstrumentos de propaganda.27 Outro recurso usado foram as transmissõespelo rádio, em cadeia nacional, com o mesmo objetivo de falar às mulheressobre os perigos que o comunismo representaria para suas famílias. A Camdefazia um pedido às ouvintes para que transmitissem o conteúdo do pro-nunciamento a, pelo menos, mais cinco mulheres.28

Além dessas táticas, as mulheres da Camde e de outras entidades orga-nizaram importantes ações públicas, como a da Limde, em Belo Horizonte,

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2880

81

C E L E B R A N D O A “ R E V O LU Ç Ã O ”

em janeiro de 1964, um protesto pela realização do Congresso da Central

Única dos Trabalhadores da América Latina (Cutal). Uma “cadeia cívica

contra o comunismo” foi organizada, por meio da redação de um manifes-

to contendo 16 mil assinaturas, que foi entregue ao governador Magalhães

Pinto, numa manifestação pública que terminou no Palácio da Liberdade,

sede do governo de Minas Gerais. As mulheres da Limde alertaram, ainda,

para o fato de que, caso o manifesto não alcançasse a repercussão espera-

da, uma nova ação já estava sendo elaborada: quando o avião que trazia a

delegação pousasse em Belo Horizonte, as encontraria deitadas na pista do

aeroporto. O Congresso foi transferido para Brasília.29

O episódio da expulsão de Brizola da Secretaria de Saúde de Belo Hori-

zonte, em fevereiro de 1964, quando pretendia se apresentar numa con-

centração em defesa das reformas de base, teve também grande repercussão.

Cerca de 3 mil mulheres invadiram o auditório, ao lado do aguerrido

anticomunista padre Caio Alvim de Castro, e, com rosários em punho, impe-

diram o discurso do líder nacionalista. O desdobramento dessa atuação se

daria com um certo tumulto. Os “organizadores do evento decidiram ocu-

par o palco”, enquanto as mulheres resistiram, gritando que “um dia eles

seriam derrotados por Deus”. A polícia interveio, “inclusive jogando bom-

bas”. As mulheres “participaram usando sombrinhas e cadeiras como ar-

mas”.30 Tal episódio passou a ser conhecido como Noite das Cadeiradas.

Outro exemplo da promissora aliança das mulheres com os setores con-

servadores da Igreja Católica foi a organização da Concentração do Rosá-

rio em Família, que constituiu uma espécie de embrião das Marchas da

Família com Deus pela liberdade. A Cruzada do Rosário foi arquitetada pelo

padre irlandês Patrick Peyton e, lançada nos Estados Unidos em 1945, per-

correu diversas cidades do mundo, como Londres, Sydney e Washington.

As principais capitais do Brasil assistiram a essa manifestação, que, sob o

slogan “A família que reza unida permanece unida”, pretendia difundir o

rosário como a grande arma na luta contra o comunismo, “a mais poderosa

alavanca que eleva o mundo do deprimente materialismo em que se encon-

tra”. Em 1962, no Rio de Janeiro, a Cruzada reuniu, segundo estimativas

otimistas dos organizadores, cerca de um milhão e 500 mil pessoas.31

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2881

82

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

A Marcha de 2 de abril representava, pois, para aquelas mulheres, o seu

momento triunfal. As “marchadeiras”, como ficaram posteriormente co-

nhecidas de modo pejorativo, “foram insistentemente aclamadas por gene-

rais, políticos e jornalistas como a vanguarda de todo o movimento que,

pretendiam eles, teria desencadeado o golpe civil-militar”.32 O general

Mourão Filho chegou mesmo a afirmar que “ele, como todos os homens

que participaram da revolução, nada mais fez do que executar aquilo que

as mulheres pregavam nas ruas contra o comunismo”.33

Precedidas por duas senhoras, que carregavam uma imensa reprodução

de um rosário,34 as mais de 600 integrantes35 da Camde percorreram o tra-

jeto da marcha distribuindo fitinhas verde-amarelas para os participantes e

cantando hinos religiosos e canções como Cidade maravilhosa. Algumas

carregavam faixas e cartazes em que se liam mensagens como: “Trabalha-

dor, só na democracia poderás escolher a tua religião”, “Exército com Deus”

e ainda interpelações jocosas do tipo: “Vermelho bom, só batom” ou “Com

foguetes foram à lua, conosco viram estrelas”, numa referência à primeira

viagem espacial feita pela então URSS.

Engrossavam o contingente da associação carioca delegações de grupos

femininos de outros estados — 200 senhoras paulistas traziam a bandeira

usada na primeira Marcha da Família, além de uma mensagem de seu go-

vernador, da qual se destaca a frase: “O povo brasileiro não tem vocação

para escravo e esta terra jamais será senzala.”36

Estiveram presentes também mulheres de governadores, entre elas Letícia

Lacerda e Leonor de Barros, da Guanabara e de São Paulo, cujos maridos

eram aguerridos opositores do governo Goulart, além da mulher do ex-

presidente Juscelino Kubitschek, Sara.

Em meio à confusão de cartazes e bandeiras nacionais — mais de 500

haviam sido confeccionadas para a manifestação — e dos estados de Minas

Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul, destacavam-se eminentes figuras

dos meios políticos e da alta oficialidade militar, como os deputados Amaral

Peixoto e o general Olímpio Mourão Filho.

A presença maciça de religiosos foi outro fator notável da passeata. Apesar

de a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) não ter dado apoio

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2882

83

C E L E B R A N D O A “ R E V O LU Ç Ã O ”

oficial às Marchas, o desfile contou com a participação de importantes en-

tidades e líderes da ala conservadora, como a de monsenhor Bessa — re-

presentando o arcebispo do Rio de Janeiro, dom Jaime de Barros Câmara,

que estava doente —, além dos padres Patrick Peyton e Caio Alvim de Cas-

tro, esses com larga experiência no tocante à arregimentação popular por

meio da manipulação de bens simbólicos ligados à religiosidade.

Mas os católicos não foram os únicos a expressar a sua fé religiosa por

meio da Marcha da Família. Entre padres e freiras, que carregavam uma

enorme cruz verde-amarela, e senhoras portando estandartes com a inscri-

ção “com este sinal [da cruz] venceremos”, marchavam pastores, espíritas,

rabinos e umbandistas. Foi, aliás, com o objetivo de “universalizar” seu apelo

ideológico que aquela que foi originalmente idealizada como Marcha em

Desagravo ao Rosário transformara-se em Marcha da Família com Deus pela

Liberdade.

A VITÓRIA DA “REVOLUÇÃO”

Especialmente em decorrência do sucesso da passeata do Rio de Janeiro, as

Marchas adquiriram, em pouco tempo, abrangência nacional e o estatuto de

um autêntico movimento em apoio ao golpe civil-militar, posto que a boa

parte delas ocorreu posteriormente ao 31 de março. Tais manifestações pre-

tendiam demonstrar o caráter popular do golpe, uma vez que nesse momen-

to uma grande parcela dos cidadãos ia às ruas comemorar a vitória, dar “ação

de graças” pelo afastamento do comunismo das terras brasileiras.

Após a realização da primeira Marcha da Família na capital paulista,

foram organizadas manifestações em diversas cidades. Além das passeatas

de São Paulo e do Rio de Janeiro, que reuniram, respectivamente, 500 mil

e um milhão de pessoas, houve manifestações em capitais como Belo Hori-

zonte, Goiânia, Recife, Fortaleza, Florianópolis, Maceió e Curitiba, con-

forme pode ser observado na tabela a seguir:

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2883

84

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

LOCAL DATA PRESENTES

São Paulo — SP 19/março 500 mil

Araraquara — SP 21/março 6 mil

Assis — SP 21/março *

Curitiba — PR 24/março 30 mil

Bandeirantes — PR 24/março

Santos — SP 25/março 80 mil

Itapetininga — SP 28/março

Atibaia — SP 29/março

Ipauçu — SP 29/março

Tatuí — SP 29/março

Palmeira dos Índios — PR 1/abril 3 mil

São João da Boa Vista — SP 1/abril

Londrina — PR 2/abril

Rio de Janeiro — RJ 2/abril 1 milhão

São Carlos — SP 2/abril

Uberlândia — MG 3/abril 200 mil

Rio Claro — SP 4/abril

Barbacena — MG 5/abril

Jaú — SP 5/abril 6 mil

Maceió — AL 5/abril 10 mil

Pádua — RJ 5/abril

Campinas — SP 7/abril

Natal — RN 7/abril

Amparo — MG 8/abril

Regente Feijó — SP **

Franca — SP 8/abril

Cajuru — SP

Piracicaba — SP 9/abril 40 mil

Piraçununga — SP 9/abril

Mogi-Guaçu — SP 9/abril

(continua)

Marchas da Família com Deus pela Liberdade ocorridas entre março e junho de 1964.*Número de participantes não disponível.**Data da realização da marcha não disponível.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2884

85

C E L E B R A N D O A “ R E V O LU Ç Ã O ”

LOCAL DATA PRESENTES

Recife — PE 10/abril 200 mil

Passos — MG 11/abril

Presidente Prudente — SP 11/abril

Taubaté — SP 12/abril

Periqui — SP 12/abril

Botucatu — SP 12/abril

Oliveira — MG 12/abril

Campos — RJ 13/abril

Brasília — DF 15/abril

Capivari — SP 15/abril

Lorena — SP 15/abril

Dois Córregos — SP 16/abril

Lavras — MG 16/abril

Conselheiro Lafaiete — MG 18/abril

Indaiatuba — SP 18/abril

Santa Bárbara D’Oeste — SP 18/abril

Itu — SP 18/abril

Guaratinguetá — SP 18/abril 5 mil

Jacareí — SP 19/abril

Formiga — MG 21/abril

Teresina — PI 22/abril 50 mil

Florianópolis — SC 50 mil

Cachoeira Paulista — SP 25/abril

Campos do Jordão — SP 26/abril

Cruzeiro — SP

Juiz de Fora — MG

Pains — MG 1º/maio

São José dos Campos — SP 1º/maio

Aparecida — SP 13/maio 10 mil

Belo Horizonte — MG 13/maio

(continuação)

(continua)

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2885

86

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

LOCAL DATA PRESENTES

Goiânia — GO 13/maio 25 mil

Niterói — RJ 15/maio 50 mil

Fortaleza — CE 200 mil

Cerqueira César — SP 3 mil

Cândido Mota — SP 5 mil

Caxias — RJ 7/junho

Magé — RJ 8/junho 3 mil

Mogi das Cruzes — SP 1/junho 4 mil

Moeda — MG 1/junho 4 mil

Foi registrada a ocorrência de 69 Marchas entre março e junho de 1964.37

Dessas, acima de 80% aconteceram após o golpe, a grande maioria em abril.Esse número dá conta da complexidade do fenômeno estudado, que nãodeve ser reduzido à mera função propagandística e tampouco deve ser enten-dido apenas como produto da insatisfação das classes médias urbanas. Nãose pretende com isso caracterizar as Marchas como manifestações de cunhopopular, nem mesmo negar a existência de um eficiente trabalho de organi-zação e promoção das passeatas, mas sim conduzir a um questionamentoacerca da pluralidade de significados contida em tais manifestações, quepode ser observada a partir da análise de elementos presentes nas culturaspolíticas38 das regiões onde as Marchas se realizaram.

A população de Araraquara, no interior de São Paulo, foi convocada aparticipar de uma “passeata em defesa da democracia e de repulsa ao co-munismo”. Em 21 de março as principais ruas da cidade seriam percorri-das em silêncio e a Marcha terminaria no cemitério, diante do Monumentoao Soldado Constitucionalista, onde estudantes depositaram coroas de flo-res em memória dos araraquarenses mortos em 1932.39

A memória da Revolução Constitucionalista de 1932 constituiu-se comouma das construções imagéticas mais expressivas das Marchas da Famíliaem São Paulo. Nela, o conjunto de representações40 acerca de 1932 foi reela-borado, tendo seu repertório calcado especialmente no respeito à Consti-

(continuação)

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2886

87

C E L E B R A N D O A “ R E V O LU Ç Ã O ”

tuição e às liberdades democráticas. O governador da Guanabara, CarlosLacerda, chegou mesmo a declarar que a primeira passeata, na capital,marcava o “início do processo de ressurreição da democracia no Brasil, [eque] o espírito de São Paulo (...) a partir da Marcha é o de 1932, mas de1932 dialético, em que as trincheiras são de paz”.41

Em Itu, interior de São Paulo, a realização da Marcha da Família uniu-seàs comemorações do aniversário da Convenção Republicana.42 A data de18 de abril fazia parte da memória política da região como marco do iníciodo processo de fundação de um dos primeiros partidos republicanos regio-nais no Brasil, o PRP, em 1873.43 A ligação da Marcha da Família a esseacontecimento pode sugerir uma referência à ideia de respeito às liberda-des políticas, de democracia ou mesmo da extinção de uma “velha ordem”superada.

A Marcha da Família em Belo Horizonte foi realizada em 13 de maio,dia de Nossa Senhora de Fátima, um dos grandes ícones cristãos contra ocomunismo e origem da simbologia do rosário. “Ambas as construções sim-bólicas, Fátima e o rosário, animaram a fé dos crentes e ocuparam posiçãodestacada no imaginário anticomunista católico dos anos 60.”44 O desfilereuniu cerca de 200 mil pessoas e sua finalização, bem como a realizaçãodos demais discursos, se deu ao pé da estátua de Tiradentes. A InconfidênciaMineira e a figura do mártir foram bastante usadas nesse estado. Tiradentesrepresentava o símbolo republicano do sacrifício em nome da liberdade,além da associação com a figura de Jesus Cristo e seu martírio.45

Uma romaria composta por ônibus, automóveis e caminhonetes partiu,em 15 de abril, da cidade de Capivari com destino a Aparecida, ambas nointerior de São Paulo. Com essa atitude, realizava-se mais uma Marcha daFamília.46 Aparecida, no Vale do Paraíba, tem atualmente cerca de 38 milhabitantes e é um dos principais centros de peregrinação do país, receben-do, em média, sete milhões de visitantes por ano. O culto a Nossa SenhoraAparecida data do século XVII e é forte referência no imaginário popularbrasileiro. Por reiteradas vezes a figura da “padroeira do Brasil” foi evocadanas Marchas. Ademais, o “estar em marcha” pôde adquirir, nesse momento,um significado muito próximo de “estar em romaria”, que remete a um sen-tido de devoção, de graça e penitência.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2887

88

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Em Passos, a organização da Marcha esteve a cargo do presidente e do

vice-presidente da Associação Rural do Sudoeste Mineiro, ao lado do pre-

sidente da Cooperativa de Laticínios da cidade. Contava-se com a adesão

de várias cidades do sul de Minas Gerais para o evento, que se realizaria em

11 de abril.47 Não poderia ser de outra forma, numa região onde a econo-

mia girava em torno da produção agropecuária e onde, certamente, as repre-

sentações em torno da ameaça à propriedade privada a partir da instauração

do comunismo encontraram terreno fértil.

Motivações econômicas regionais parecem, do mesmo modo, ter dado

impulso à Marcha em Curitiba, em 24 de março de 1964, organizada pela

sucursal paranaense da União Cívica Feminina (UCF) e pela Associação Co-

mercial do Paraná (Acopa). A passeata, rebatizada de Marcha a Favor do

Ensino Livre, teve como principal bandeira o protesto contra a adoção pelos

colégios do Livro Único, editado pelo Ministério da Educação do governo

Goulart, como também o combate à encampação das escolas particulares.

Em contraposição ao repertório da defesa dos valores cristãos e tradicio-

nais, nessa Marcha foram privilegiados os aspectos ligados ao liberalismo

político e econômico. A Acopa era ligada ao mercado de livros didáticos e

a proprietários de escolas.48

Em Recife, a Marcha da Família ocorreu em 10 de abril de 1964. O even-

to, assim como em Belo Horizonte, teve a participação de cerca de 200 mil

pessoas. Para o jornal O Estado de S. Paulo, registrava-se a maior concen-

tração humana de que ali se tivera notícia.49 O desfile percorreu a Avenida

Conde da Boa Vista e parte da Guararapes, local onde a multidão se con-

centrou. Na Marcha de Recife foram usadas representações acerca do “in-

vasor”, então transfigurado no “comunismo internacional”, e do histórico

da resistência empreendida pelos pernambucanos, “que eram convocados

para, na marcha, repetir o passado glorioso de lutas contra o estrangeiro”.50

A imagem feminina foi da mesma forma evocada, numa referência às heroí-

nas de Tejucupapo.51

Tais manifestações oferecem a percepção de todo um leque de imagens

ligadas a um universo de temas como família, pátria, moral, ordem, religio-

sidade, inscritas num código de saberes compartilhados em sociedade.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2888

89

C E L E B R A N D O A “ R E V O LU Ç Ã O ”

Das guerreiras do Tejucupapo às devotas de Aparecida, as Marchas daFamília com Deus pela liberdade ocorridas nessas cidades demonstram aforça do imaginário anticomunista e do discurso legitimador do golpe ci-vil-militar plasmados no período.

Singulares e, ao mesmo passo, componentes de um movimento, de umprojeto que foi paulatinamente ganhando estrutura e extensão — seja pormeio de um bem elaborado trabalho de propaganda, seja por meio da ini-ciativa isolada de uma paróquia —, as Marchas revelam que, para que hajauma conexão efetiva entre as esferas de produção e recepção de um discur-so ou mensagem, é necessária uma correspondência desses com os bens sim-bólicos pertencentes a determinado grupo ou sociedade. Ação que geraidentidade, reconhecimento.

A análise da realização das Marchas da Família com Deus pela Liberdadedemonstrou não apenas a força e abrangência dos discursos favoráveis àruptura institucional, como também a importância de se apreender de quemaneira encontraram ressonância no corpus social, ao articular-se com osmedos, as expectativas e crenças compartilhados em sociedade. Além defenômeno ideologicamente inspirado, evidenciou-se sobretudo a realizaçãodesse acontecimento como um momento de produção e difusão de senti-do, cuja investigação revelou importantes aspectos da relação entre as esferasdo político e do simbólico, elemento sem dúvida primordial para a com-preensão da crise de 1964.

O percurso apresentado revela a existência de uma comunidade de ima-ginação unida por certo conjunto de valores, normas e crenças de naturezasdiversas, como morais, religiosas ou sociais, que a conduziu a protagonizardeterminado fenômeno político, qual seja, a participação nas Marchas daFamília com Deus pela Liberdade em 1964. A crença de que a intervençãomilitar nas instituições democráticas expressava um desejo da sociedade,que compõe um dos principais alicerces desse imaginário, serviu por algunsanos como justificativa do autoritarismo em voga.52

Contudo, em relação ao conjunto da sociedade que naquele ano expres-sou em praça pública seu apoio ao golpe civil-militar, é possível afirmar que,em algum momento, aquela comunidade de imaginação foi se enfraquecendoa partir da confusão formada pelos desvios de interesses dos diversos seg-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2889

90

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

mentos que a formaram. Entre as razões, é possível supor, está o fato deque em nenhum momento se reivindicou um regime de exceção prolonga-do durante a “campanha anticomunista”, e sim uma breve intervenção, queviesse “arrumar a casa”, moralizando as instituições. Desse modo, tais re-cursos discursivos não foram suficientes para manter acesas tais imagensdurante todo o regime. Aos poucos, a memória das Marchas da Família foidesaparecendo da vida coletiva. Fenômeno que também tem muito a con-tribuir para a compreensão da sociedade de então e dos caminhos traçadospor ela em 21 anos sob ditadura militar.

Notas

1. Este artigo foi baseado na dissertação de mestrado As Marchas da Família com

Deus pela Liberdade, defendida em 2004, no Departamento de Pós-Graduação

em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHIS/UFRJ)

sob orientação do professor Dr. Carlos Fico. Agradeço a William Martins a leitu-

ra preliminar do texto.

2. RIDENTI, Marcelo. “Cultura e política: os anos 1960-1970 e sua herança”. DEL-

GADO, Lucília de Almeida Neves e FERREIRA, Jorge (orgs.). O Brasil republica-

no — O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século

XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 135.

3. Para o conceito de imaginário social, cf. BACKZO, Bronislaw. “Imaginação Social”,

in: Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1985,

vol. 5.

4. Os ministros militares, com o apoio da UDN, tentaram a aprovação, no Congresso

Nacional, de uma emenda que impediria a posse de João Goulart. Contudo, o

Congresso vetou as aspirações militares e garantiu que o novo presidente fosse

empossado. Em contrapartida à vitória nacionalista, uma solução paliativa foi arti-

culada pelas forças conservadoras. O presidente teve, sim, garantida sua posse,

mas sob o regime parlamentarista. Foi a forma encontrada pelos adversários de

Goulart de conter, em parte, seu poder ameaçador. O Congresso aprovou tal emen-

da, que também incluía a realização de um plebiscito, que devia se realizar 90 dias

antes do encerramento do mandato de Jango, no qual a população optaria pela

manutenção ou não do sistema político em vigor. Cf. LABAKI, Amir. 1961: a crise

da renúncia e a solução parlamentarista. São Paulo: Brasiliense, 1986.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2890

91

C E L E B R A N D O A “ R E V O LU Ç Ã O ”

5. Para o período de “radicalização anticomunista” nos anos 1960, cf. MOTTA,

Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o “perigo vermelho”: o anticomunismo no

Brasil (1917-1964). São Paulo: Perspectiva; Fapesp, 2002.

6. SIMÕES, Solange de Deus. Deus, pátria e família: as mulheres no Golpe de 64.

Petrópolis: Vozes, 1985, p. 94.

7. Sobre o tema da correlação entre problemáticas simbólicas e ideológicas, ver as

elaborações conceituais de CHAUÍ, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade

autoritária. 3ª reimp. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2001.

8. Já no fim da década de 1950, parte do empresariado dava mostras de insatisfação

em relação à crescente mobilização e politização das camadas populares. Quando

Jango tomou posse, esse setor ficou alarmado em decorrência de sua conhecida

atuação no governo Vargas, no Ministério do Trabalho, sempre lembrada pelo

anúncio do aumento de 100% do salário mínimo. Essa era uma das razões da

antipatia das elites com a figura do novo presidente. As correntes antigetulistas o

viam como herdeiro político de Vargas, o “chefe do peronismo brasileiro”, ele

representava a “corrupção desenfreada” e a destruição da “ordem capitalista”. Suas

visitas à China e à URSS lhe renderam a imagem de “claramente esquerdista, tanto

no plano externo quanto interno”. STARLING, Heloisa. Os senhores das Gerais:

os novos inconfidentes e o Golpe de 64. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 42.

9. Idem, p. 80.

10. DULLES, John W.F. Castelo Branco: o caminho para a presidência. Rio de Janei-

ro: José Olympio Editora, 1979, p. 308.

11. A atuação das associações femininas nos anos 1960 e sua importância para a

realização das Marchas serão abordadas posteriormente neste artigo.

12. SIMÕES, Solange de Deus, op. cit., p. 93.

13. Idem, p. 94.

14. Idem, p. 106.

15. Sobre a criação de organismos empresariais e seu papel nas articulações em torno

do golpe de Estado, cf. DREIFUSS, René. 1964: a conquista do Estado. Ação

política, poder e golpe de classe. Petrópolis: Vozes, 1981.

16. Cf. idem.

17. ASSIS, Denise. Propaganda e cinema a serviço do golpe: 1962-1964. Rio de Ja-

neiro: Mauad/Faperj, 2001, p. 28.

18. Para mais informações sobre a estrutura organizacional e hierárquica do Ipes,

consultar DREIFUSS, René, op. cit.

19. LOUZEIRO, José. “O Ipes faz cinema e cabeças”, in: ASSIS, Denise, op. cit., pp.

31-39.

20. ASSIS, Denise, op. cit., p. 41.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2891

92

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

21. MORAES, Dênis de. A esquerda e o golpe de 64. Vinte e cinco anos depois, asforças populares repensam seus mitos, sonhos e ilusões. Rio de Janeiro: Espaço eTempo, 1989, p. 129.

22. O Ipes forneceu apoio logístico e operacional à criação de grupos que funciona-ram como células do instituto no trabalho de congregar adeptos, disseminar oideário anticomunista e realizar ações públicas sem que o nome da organizaçãofosse divulgado. Assim se deu com a constituição da ADP (Ação DemocráticaParlamentar), bloco de oposição às iniciativas reformistas no Congresso Nacio-nal, que foi de fundamental importância nas eleições parlamentares de 1962,quando os partidos conservadores conquistaram a maioria das cadeiras. Assimtambém se deu com a criação da Camde, em que esteve presente, entre outrosipesianos, uma das figuras mais atuantes do grupo, Glycon de Paiva.

23. “Na Marcha da Família o carioca expressará o seu repúdio ao comunismo”. OGlobo, 28 de março 1964. Recorte de jornal do arquivo da Camde. Paginaçãonão disponível.

24. “Camde comemora aniversário da revolução que ajudou a realizar”. O Jornal, 28 demarço de 1965. Recorte de jornal do arquivo da Camde. Paginação não disponível.

25. Recorte de jornal do arquivo da Camde. Paginação não disponível.26. “Dona Amélia Molina Bastos ou Como e onde marcha a Camde”, in: Livro de

cabeceira da mulher. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967, vol. 5, p. 161.27. Idem.28. ASSIS, Denise, op. cit., p. 60.29. “A fibra da mulher mineira”. Estado de Minas, 26 de janeiro de 1964, p. 10;

SIMÕES, Solange de Deus, op. cit., p. 85.30. Idem, p. 77.31. “Padre Peyton e a Cruzada do Rosário”. Revista Família Cristã, julho de 1964.

Paginação não disponível. Para Simões, a concentração no Rio de Janeiro reuniuum milhão de pessoas. Em Belo Horizonte, 500 mil pessoas estiveram presentes namanifestação realizada em 1963. Cf. SIMÕES, Solange de Deus, op. cit., p. 91.

32. Idem, p. 96.33. Idem, p. 107.34. “Marcha da Família durou quatro horas”. Correio da Manhã, 3 de abril de

1964, p. 1.35. “Marcha da Família empolga todos os setores da população”. O Globo, 25 de

março de 1964. Recorte de jornal do Arquivo da Camde. Paginação não disponível.36. SIMÕES, Solange de Deus, op. cit., p. 111. Grifos da autora.37. Esse resultado foi alcançado por meio de pesquisas no Arquivo da Camde, na Seção

de Documentos Particulares do Arquivo Nacional; em jornais e revistas de 1964;bem como a partir de pesquisas bibliográficas. É provável que o número de Marchas

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2892

93

C E L E B R A N D O A “ R E V O LU Ç Ã O ”

ocorridas no período seja superior ao obtido no levantamento. Pesquisas em arqui-vos estaduais certamente contribuirão para um maior conhecimento do tema.

38. “(...) conjunto de atitudes, normas e crenças mais ou menos partilhadas pelosmembros de uma determinada unidade social e tendo como objeto os fenômenospolíticos” (BOBBIO, Norberto; MATTELUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco.Dicionário de política. Brasília: Editora da UnB, 1992, pp. 306-308). Sobre oassunto, consultar também MOTTA, Rodrigo Patto Sá. “A história e o conceitode cultura política”. LPH — Revista de História, Mariana, nº 6, 1996, pp. 83-91.

39. “Empreende também o interior passeatas anticomunistas”. O Estado de S. Paulo, 21de março de 1964. Recorte de jornal do arquivo da Camde. Paginação não disponível.

40. Para o estudo das representações coletivas, cf. CHARTIER, Roger. A históriacultural entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990.

41. “O civismo paulista domina o país; mais 3 passeatas”. O Estado de S. Paulo, 21 demarço de 1964. Recorte de jornal do arquivo da Camde. Paginação não disponível.

42. “Hoje, dia da Convenção, Itu realiza também a sua Marcha”. O Estado de S.Paulo, 18 de abril de 1964. Recorte de jornal do arquivo da Camde. Paginaçãonão disponível.

43. A Convenção de Itu, realizada em 18 de abril de 1873, deu início ao processo deconstituição do Partido Republicano Paulista (PRP), fundado em 1º de julho domesmo ano. O PRP foi majoritariamente formado pelos grandes proprietáriosdo Oeste Paulista, cujas inclinações republicanistas, em grande parte, eram frutode sua insatisfação em relação à política de centralização monárquica. Cf. CAR-VALHO, José Murilo. A construção da ordem — Teatro de sombras. Rio de Janei-ro: Civilização Brasileira, 2003, pp. 208-209. Para a data da realização daConvenção de Itu, cf. Museu Republicano (Convenção de Itu), site http://www.usp.br/prc/catalogomuseus/portugues/mp_museurepublicano.htm, Museusda Universidade de São Paulo. Acesso em 14 de julho de 2007.

44. MOTTA, Rodrigo Patto Sá, op. cit., 2002, p. 218.45. CARVALHO, José Murilo de. “Tiradentes: um herói para a república”, in: ——. A

formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhiadas Letras, 1990, pp. 55-73.

46. “Com uma romaria a Aparecida, Capivari realizou sua Marcha”. O Estado de S.Paulo, 16 de abril de 1964. Recorte de jornal do arquivo da Camde. Paginaçãonão disponível.

47. “Passeata continua a repercutir na Câmara”. O Estado de S. Paulo, 24 de marçode 1964. Recorte de jornal do arquivo da Camde. Paginação não disponível.

48. CODATO, Adriano Nervo e OLIVEIRA, Marcos Roberto de. “A Marcha, o Terçoe o Livro: catolicismo conservador e ação política na conjuntura do golpe de 1964”.Revista Brasileira de História, São Paulo, vol. 24, nº 47, 2004, pp. 271-302.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2893

94

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

49. “A ‘Marcha’ em Recife”. O Estado de S. Paulo, 11 de abril de 1964. Recorte de

jornal do arquivo da Camde. Paginação não disponível.

50. SIMÕES, Solange de Deus, op. cit., pp. 106-107.

51. O Reduto de Tejucupapo localiza-se em terras da Propriedade Megaó de Cima,

pertencentes ao distrito de Tejucupapo, município de Goiana, no estado de

Pernambuco. Em 1646 sua população resistiu a um ataque holandês, encetado

por uma tropa de 600 homens que tentava tomar víveres da população. O local

é referido como tendo sido em grande parte defendido por mulheres, pois a

maior parte dos homens teria saído a fazer emboscadas à tropa holandesa que se

aproximava. Buscavam, então os holandeses, não o ouro, mas a “maior riqueza”

de que dispunha a população: víveres, sobretudo a farinha de mandioca. Reduto

do Tejucupapo. Brasil Arqueológico. http://www.magmarqueologia.pro.br/

RedutoTejucupapo.htm, Site da Equipe do Laboratório de Arqueologia da Uni-

versidade Federal de Pernambuco. Acesso em 24 de abril de 2007.

52. FICO, Carlos. A ditadura mostra a sua cara: imagens e memórias do período

(1964-1985). Trabalho apresentado no Simpósio The Cultures of Dictatorship:

Historical Reflections on the Brazilian Golpe of 1964, realizado na Universidade

de Maryland, de 14 a 16 de outubro de 2004. Cópia cedida à autora.

Bibliografia

ASSIS, Denise. Propaganda e cinema a serviço do golpe: 1962-1964. Rio de Janeiro:

Mauad; Faperj, 2001.

BACKZO, Bronislaw. “Imaginação Social”, in: Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa

Nacional; Casa da Moeda, 1985, vol. 5.

BOBBIO, Norberto; MATTELUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de

política. Brasília: Editora UnB, 1992.

CARVALHO, José Murilo de. “Tiradentes: um herói para a república”, in: ——. A for-

mação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das

Letras, 1990, pp. 55-73.

——. A construção da ordem — Teatro de sombras. Rio de Janeiro: Civilização Brasilei-

ra, 2003.

CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difel,

1990.

CHAUI, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. 3ª reimp. São Paulo:

Editora Fundação Perseu Abramo, 2001.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2894

95

C E L E B R A N D O A “ R E V O LU Ç Ã O ”

CODATO, Adriano Nervo; OLIVEIRA, Marcos Roberto de. “A Marcha, o Terço e oLivro: catolicismo conservador e ação política na conjuntura do golpe de 1964”.Revista Brasileira de História, São Paulo, vol. 24, nº 47, 2004, pp. 271-302.

“Dona Amélia Molina Bastos ou Como e onde marcha a Camde”, in: Livro de cabecei-ra da mulher. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967, vol. 5, pp. 157-174.

DULLES, John W.F. Castelo Branco: o caminho para a presidência. Rio de Janeiro: JoséOlympio Editora, 1979.

DREIFUSS, René. 1964: a conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de classe.Petrópolis: Vozes, 1981.

FICO, Carlos. Além do golpe: versões e controvérsias sobre o golpe de 1964 e a ditaduramilitar. Rio de Janeiro: Record, 2004.

——. A ditadura mostra a sua cara: imagens e memórias do período (1964-1985). Tra-balho apresentado no Simpósio The Cultures of Dictatorship: Historical Reflectionson the Brazilian Golpe of 1964, realizado na Universidade de Maryland, de 14 a16 de outubro de 2004.

LABAKI, Amir. 1961: a crise da renúncia e a solução parlamentarista. São Paulo:Brasiliense, 1986.

LOUZEIRO, José. “O Ipes faz cinema e cabeças”. in: ASSIS, Denise. Propaganda e cine-ma a serviço do golpe: 1962-1964. Rio de Janeiro: Mauad; Faperj, 2001, pp. 31-39.

MORAES, Dênis de. A esquerda e o golpe de 64. Vinte e cinco anos depois, as forçaspopulares repensam seus mitos, sonhos e ilusões. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo,1989.

MOTTA, Rodrigo Patto Sá. “A história e o conceito de cultura política”. LPH — Revis-ta de História, Mariana, nº 6, 1996, pp. 83-91.

——. Em guarda contra o “perigo vermelho”: o anticomunismo no Brasil (1917-1964).São Paulo: Perspectiva; Fapesp, 2002.

PRESOT, Aline. As Marchas da Família com Deus pela Liberdade. Dissertação deMestrado, Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade Federaldo Rio de Janeiro, 2004.

RIDENTI, Marcelo. “Cultura e política: os anos 1960-1970 e sua herança”, in: DEL-GADO, Lucília de Almeida Neves; FERREIRA, Jorge (orgs.). O Brasil Republicano— O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

REIS, Daniel Aarão. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge ZaharEditora, 2002.

SIMÕES, Solange de Deus. Deus, pátria e família: as mulheres no golpe de 1964.Petrópolis: Vozes, 1985.

STARLING, Heloisa. Os senhores das Gerais: os novos inconfidentes e o golpe de 1964.Petrópolis: Vozes, 1986.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2895

96

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Páginas da internet

http://www.magmarqueologia.pro.br/RedutoTejucupapo.htmhttp://www.usp.br/prc/catalogomuseus/portugues/mp_museurepublicano.htm

Arquivo

Arquivo da Camde (Campanha da Mulher pela Democracia), Seção de DocumentosParticulares do Arquivo Nacional.

Fontes

Jornais e revistas de 1964, tais como: O Globo, O Jornal, Estado de Minas, Correio daManhã, Revista Família Cristã e O Estado de S. Paulo.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2896

CAPÍTULO 3 As trincheiras da memória.A Associação Brasileira de Imprensae a ditadura (1964-1974)

Denise Rollemberg*

*Professora de História Contemporânea da UFF. Pesquisadora do CNPq e do NEC. Autorade “Memória, opinião e cultura política. A Ordem dos Advogados do Brasil sob a ditadura(1964-1974)”. Daniel Aarão Reis e Denis Rolland (orgs.). In: Modernidades alternativas.Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008, e “Ditadura, intelectuais e sociedade: O Bem-Amado, deDias Gomes”. In: Cecília Azevedo, Denise Rollemberg, Samantha Viz Quadrat, Paulo Knausse Maria Fernanda Bicalho (orgs.). Cultura política, memória e historiagrafia. Rio de Janei-ro: Editora FGV, 2009.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2897

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2898

A ABI não capitulou e nem capitulará. As bombas estouram e afumaça desaparece no espaço. E a ABI, a trincheira inexpugnávelcontinua de pé, enfrentando e vencendo o terror e a intolerânciapela afirmação dos direitos humanos.1

EDMAR MOREL

Na ordem da cultura política, é a lenda que é a realidade, pois é elaque é mobilizadora e determina a ação política concreta, à luz darepresentação que propõe.2

SERGE BERSTEIN

O processo de abertura política iniciado no governo Geisel sintetiza, talvezcomo nenhum outro tema, a memória coletiva construída sobre os 21 anosde regime ditatorial.3 No ocaso do período iniciado com o 31 de março e,ao longo da década de 1980, os historiadores, ao mesmo tempo que escre-viam a história do tempo presente, integravam-se num movimento da pró-pria sociedade de digerir o período.

Segundo Daniel Aarão Reis, 1979, marco no longo processo, expressa osentido de conciliação no qual a transição da ditadura para a democraciaestruturou-se. Em 1º de janeiro, o AI-5 deixava de vigorar; em agosto, pro-mulgava-se a lei de anistia; em seguida, reformulava-se a Lei de SegurançaNacional, promovendo a libertação dos presos políticos. Entre perdão eesquecimento — ou silêncio — seria formulada a memória dos anos dechumbo, da barbárie dos porões da ditadura, do regime imposto pelos mi-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:2899

100

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

litares. A partir do ano da anistia, silenciava-se sobre o fato de que aquelesforam anos de ouro para muitos; a consagração da metáfora porão que tor-na invisível — leia-se, ignorado — o inadmissível, uma vez que nos subter-râneos. A partir dali, a sociedade construía a imagem de si mesma comoessencialmente democrática, que repudiara o arbítrio, desde o início, des-de sempre, numa luta intransigente contra os militares. Na verdade, o gol-pe tinha sido militar; a ditadura, militar; o regime, imposto; a sociedade,vítima. Recorrendo às palavras de 1979, consagradas até hoje — porões daditadura, anos de chumbo etc. —, o historiador chamou a atenção para aconstrução dessa memória, abrindo amplas perspectivas para uma revisãoda historiografia sobre o período 1964-1985. Mais particularmente, sobreas relações da sociedade com o regime e sobre a memória construída aposteriori. Uma memória estruturada no mito da resistência.4 Golpe mili-tar, ditadura militar, sínteses que absolvem a sociedade de qualquer respon-sabilidade, como se referiu Francisco Carlos Teixeira da Silva,5 que negamo autoritarismo como produto da sociedade.

MEMÓRIA COLETIVA E PROCESSO DE ABERTURA

Pode-se dizer que existem algumas linhas interpretativas acerca da rede-mocratização do país — ou da volta ao estado de direito — iniciada nogoverno Geisel, em 1974. Evidentemente, não cabe aqui uma análiseaprofundada do assunto, mas apenas destacar o debate historiográficocentrado, em linhas gerais, em três eixos diferentes.

Um primeiro busca enfatizar o papel dos movimentos sociais de oposi-ção e/ou de resistência democrática, que teriam sido decisivos na chamadacrise da ditadura e na volta dos militares aos quartéis. As insatisfações dasociedade com o regime são enfatizadas, sobretudo, com a crise do milagreeconômico, mas mesmo antes. Nessas interpretações, o Estado surge comoforça unicamente coercitiva, mesmo no período do governo Médici, mar-cado por grande popularidade.6

Uma segunda linha interpretativa vê o processo de uma forma mais com-plexa e sofisticada. Inclusive, chamando a atenção para o fato de que o

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28100

101

A S T R I N C H E I R A S D A M E M Ó R I A

projeto de abertura política não foi pensado devido à crise do milagre, mas,ao contrário, devido ao seu sucesso, invertendo a lógica com a qual se tra-balhara até então. Aqui, se procurou melhor compreender as diferenças entremilitares, jamais monolíticos, presentes na clássica alternância entre linhadura e linha moderada.7 Como se sabe, elas compuseram-se e arranjaram-se, inclusive, no interior de cada governo.8 Nessa interpretação, valorizou-sebem mais o peso da linha dura, ou seja, dos segmentos militares contráriosà abertura, encastelados na chamada comunidade de informações e nosórgãos da polícia política, fortalecidos nos governos anteriores, influencian-do o ritmo do processo. Ainda assim, os movimentos de oposição e resis-tência democrática têm posição de destaque. Nos longos 11 anos da abertura,os militares só perderiam o controle da situação no governo João Figueiredo,marcado por um elemento importante no cenário político: o movimentosindical do ABC paulista, surgido em 1978, ou seja, ainda sob Geisel. Sóentão, imerso em crises internas, econômicas e mesmo pessoais, ou seja,em meados do governo Figueiredo, os militares deixariam de controlar atransição para o regime democrático representativo.9

Uma terceira linha, ainda que veja os movimentos sociais de oposição eresistência democrática atuando ao longo do período, procura explicar atransição centrando-se nos conflitos dentro da corporação militar, nas dispu-tas entre projetos rivais alternativos e excludentes. Segundo essa análise, osmilitares jamais perderam o controle do processo: a dinâmica e o ritmo daabertura sempre foram dados por essas disputas. Nessa interpretação, en-fatizam-se as muitas continuidades mesmo após a conclusão do processo.10

Ao voltarem aos quartéis, os militares passavam o poder para civis, sim,mas civis que, nas décadas anteriores, estiveram comprometidos com posi-ções não muito diferentes das defendidas pelos militares, muitos, inclusive,políticos da velha Arena. O próprio governo civil, ao suceder aos governosmilitares, seria liderado por Tancredo Neves, jamais Ulysses Guimarães, que,favorável ao golpe, havia se transformado em opositor, odiado pelo generalGeisel. O vice, José Sarney, presidente da Arena por anos. O ministro daJustiça garantiria o não revanchismo. A lei da anistia, assim, representaria avitória do governo, pois contemplava os torturados e excluía os chamadoscrimes de sangue, embora estes acabassem sendo beneficiados nos anos se-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28101

102

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

guintes. A lei de agosto de 1979 sobrepunha-se a outros projetos em dispu-ta, assegurando o coroamento de uma longa transição, na qual a principalpreocupação não estava nas esquerdas ou nas oposições, mas numa extre-ma-direita que insistia em permanecer no aparelho de Estado, recorrendoa atos de terrorismo.

Como memória coletiva, a primeira interpretação prevaleceu, consoli-dou-se. No fim dos anos 1970 e na década de 1980, era a versão mais pala-tável, não porque imposta, mas por corresponder melhor às demandas e àsaspirações, por acreditar resolver muitas questões por oposições: civis e mi-litares, a favor do regime e contra o regime. Assim, os movimentos sociaisvalorizados são os de oposição; os de apoio ao regime, esquecidos ou inter-pretados a partir de pontos de vista simplistas ou equivocados.

Hoje, quando já existe uma vasta historiografia a respeito da ditadura,parece fundamental que se tornem objetos de estudo os movimentos, asinstituições, as manifestações, os personagens etc. que respaldaram o regime,desconstruindo uma memória da resistência, não raramente superdimen-sionada e mitificada.11

Mais do que isso, é preciso compreender esses objetos não exclusivamenteem campos bem delimitados de a favor ou contra, e sim naquilo que o histo-riador Pierre Laborie chamou de zona cinzenta: o enorme espaço entre os doispolos — resistência e colaboração/apoio — e mais, o lugar da ambivalência noqual os dois extremos se diluem na possibilidade de ser um e outro ao mesmotempo. Então, para interpretar a sociedade francesa sob o regime de Vichy(1940-1944), Laborie cunhou o conceito penser-double: muitas vezes, se é ume outro, se é duplo.12 Nessa ambivalência, que não é sinônimo de contradição,estaria a França dos anos troubles. Embora sejam conceitos para interpretaruma situação específica, acredito que podem ser um instrumental teórico va-lioso na reflexão da sociedade brasileira dos anos 1960 e 1970.

Para além da ambivalência, é preciso investigar a ausência de oposição,ou seja, tornar objeto de estudo a opinião13 que não se manifesta diante doinfame. Esse vazio ocupa um lugar na História, na história do período 1964-1985. Como disse outro historiador dos années noires, Henry Rousso, “oinquietante com Vichy não é tanto os crimes de uma minoria, mas a indife-rença da grande maioria”.14

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28102

103

A S T R I N C H E I R A S D A M E M Ó R I A

No caso da ditadura brasileira, é preciso ainda tornar objeto de pesquisao argumento do desconhecimento, da ignorância, tantas vezes usado ao fimdas ditaduras para justificar omissões. No contexto do fim da Segunda Guer-ra Mundial, Albert Camus já alertava: “No dia em que o crime se ornamentacom os despojos da inocência, por uma curiosa deformação que é própriado nosso tempo, é a inocência que se vê intimada a apresentar suas justifi-cativas.”15

Assim, o penser-double, a indiferença, a inocência, o mito da resistência— ou a memória superdimensionada da resistência — impõem definiçõesou redefinições mais elaboradas do próprio conceito de resistência.16

LUGARES DA RESISTÊNCIA

A memória da abertura segundo a qual a sociedade foi o grande ator queimpulsionou a transformação de um regime ditatorial para um regime de-mocrático transcende o próprio período, ou seja, 1974-1985. É uma me-mória que evidenciaria o que teriam sido, na verdade, o comportamento ea opinião da sociedade sob ditadura.

Nesse contexto, algumas instituições surgem, então, como as grandesfortalezas do embate contra o regime, como a Associação Brasileira de Im-prensa (ABI), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a ConferênciaNacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

Como se sabe, mas frequentemente se silencia, a OAB e a CNBB apoia-ram o golpe de 1964, saudando-o com entusiasmo. A Ata da Reunião Or-dinária do Conselho Federal da OAB, o Conselho Pleno, de 7 de abril de1964, é um verdadeiro manifesto a favor da intervenção militar, resgatan-do “a memorável reunião extraordinária de 20 de março [1964]” quando“tivemos a lucidez e o patriotismo de alertar para a defesa da ordem jurídi-ca e da Constituição”.17 O documento e os registros das reuniões seguintesrevelam o apoio da instituição e de setores significativos da sociedade, au-sente na consagrada fórmula do golpe militar.18

A Comissão Central da CNBB divulgou, em julho de 1964, a “Declara-ção da CNBB sobre a situação nacional”, na qual se colocava:

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28103

104

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Atendendo à geral e angustiosa expectativa do Povo Brasileiro, que via a

marcha acelerada do comunismo para a conquista do Poder, as Forças Ar-

madas acudiram em tempo e evitaram se consumasse a implantação do regi-

me bolchevista em nossa Terra.

E adiante:

Logo após o movimento vitorioso da Revolução, verificou-se uma sensação

de alívio e de esperança, sobretudo porque, em face do clima de insegurança

e quase desespero em que se encontravam as diferentes classes ou grupos

sociais, a Proteção Divina se fez sentir de maneira sensível e insofismável.

De uma à outra extremidade da pátria transborda dos corações o mesmo

sentimento de gratidão a Deus, pelo êxito incruento de uma revolução arma-

da. Ao rendermos graças a Deus, que atendeu às orações de milhões de brasi-

leiros e nos livrou do perigo comunista, agradecemos aos Militares que, com

grave risco de suas vidas, se levantaram em nome dos supremos interesses

da Nação, e gratos somos a quantos concorreram para libertarem-na do

abismo iminente.19

A ABI, como instituição, não apoiou, formalmente, o golpe. Entretan-to, na leitura das Atas das reuniões ordinárias e extraordinárias e do Boletimdo Conselho Administrativo da ABI,20 chama a atenção o tipo de luta enca-minhado: eminentemente corporativa, de defesa de jornalistas presos e daliberdade de imprensa. Evidentemente, eram pontos de pauta de grandeimportância na chamada resistência democrática, mas estavam longe deesgotar a agenda de temas que se impunham, mesmo — ou sobretudo —numa instituição de jornalistas. Assim, muitas vezes, é a ausência de deter-minados temas o que chama a atenção, prevalecendo em debate outrosmenos relevantes diante do contexto por que o país passava.

Para além dessa questão, a documentação revela a diversidade das posi-ções nos debates. A ABI e a OAB, antes de 1974, travavam discussões inter-nas a respeito do regime instaurado no país, de como se posicionar comoinstituição sem a unanimidade construída a posteriori pela memória. Nocaso da OAB, a unanimidade existiu, sim, no momento do golpe, saudando“os homens responsáveis desta terra” que “erradicavam” “o mal das conju-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28104

105

A S T R I N C H E I R A S D A M E M Ó R I A

ras comuno-sindicalistas, proclamando que a sobrevivência da Nação Bra-

sileira se processou sob a égide intocável do Estado do Direito”.21

O silêncio sobre o apoio ao golpe ou sobre as contradições e embates

internos nessas instituições acerca da conjuntura por que o país passava

reforça a ideia da possibilidade de a memória coletiva ser um instrumento

de coesão social, e não exclusiva ou principalmente de coerção.22

O que é mais desafiador, entretanto, é, sem dúvida, compreender as

ambivalências que fundiam apoio e rejeição; as posições que diluíam as fron-

teiras rígidas entre uma coisa e outra, que não cabem nos campos bem de-

marcados com os quais a historiografia vem trabalhando.

O enquadramento da memória,23 assim, fez-se em função do mito da ge-

ração resistente. As gerações que viriam depois, não tendo vivido o período,

herdaram-na, projetaram-na para adiante, isolando-a cada vez mais da histó-

ria.24 Nesse sentido, o livro de Edmar Morel, jornalista, conselheiro da ABI25

ao longo da ditadura, lançado em 1985 — o último ano do regime — A trin-

cheira da liberdade. A história da ABI, subentende, até pela metáfora trinchei-

ra, que a luta da instituição foi de enfrentamento em campo claramente

definido em relação a outro campo, como numa guerra, opostos pela guerra.

A objetivo do artigo é, então, recuperar as discussões internas, nos dez

primeiros anos da ditadura, na ABI, que se tornou, com a OAB e a CNBB,

símbolo da resistência no pós-1979;26 acompanhar a diversidade que desa-

pareceu ou se diluiu, posteriormente; compreender as posições em suas

ambivalências para melhor perceber o que foram a vivência da instituição

sob o regime de exceção e a sua memória.

AS TRINCHEIRAS DA MEMÓRIA

Nas Atas das reuniões ordinárias e extraordinárias do Conselho Administra-

tivo, assim como no Boletim do Conselho Administrativo da ABI, é uma

constante a defesa da liberdade de imprensa, contra a reforma da Lei de

Imprensa em vigor, quando do golpe, contra a censura, com destaque para

a Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa e a atuação em defesa de

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28105

106

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

jornalistas presos. Criada ainda na gestão de Herbert Moses, logo se tor-

nou Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa e do Livro.

Embora Edmar Morel, ao escrever a história da instituição, desde a fun-

dação, não tenha deixado de mencionar a existência de conflitos internos

— a Associação como “um verdadeiro saco de gatos”, “dividida em gru-

pos”, “clima de tensão na Casa”,27 “a classe um tanto tumultuada”28 — não

esclarece do que se tratava. Buscando coesionar a ABI num polo bem de-

marcado em relação ao regime, as diferenças se diluem. Certamente, o con-

texto do início da década de 1980 pode explicar essa construção, um

momento ainda de tensões em relação à abertura política, marcado pelos

atentados terroristas de militares contrários à abertura, atingindo, inclusi-

ve, a ABI. Apesar disso, a unidade que se construía então não deve se res-

tringir, como veremos, a esse aspecto.

Quando do golpe, o jornalista Herbert Moses ocupava a presidência da

ABI havia 33 anos, o que, diga-se de passagem, não parecia um problema.

Ao menos, não há registro nesse sentido. Idoso e com problemas de saúde,

Moses renunciou em agosto, elegendo-se presidente Celso Kelly, no mês

seguinte.29 Em fevereiro de 1966, Kelly renunciou para assumir a direção

do Departamento Nacional de Ensino, do Ministério da Educação, ocu-

pando tal função “em prol da educação moral e cívica da mocidade”, como

se referiu Morel. Assim como fizera Moses nos anos da ditadura Vargas, da

mesma forma que “quase todos os presidentes da Casa”, ele “procurou es-

tabelecer contato com os ministros militares”, alegando Kelly ser o “gover-

no reconhecido por quase todos os países do mundo”.30

Ao longo dos dez primeiros anos do regime civil-militar, é interessante

notar como a memória de Getúlio Vargas é trabalhada. Se em 1985 está

associada à ditadura — “o Brasil estava mergulhado nas trevas do Estado

Novo”31 —, em 1974, em pleno regime ditatorial, Vargas era homenagea-

do, na ABI, no momento do 20º aniversário da sua morte.32 O conselheiro

José Talarico, quando propôs a homenagem a Vargas, havia acabado de

saudar a Conferência Nacional dos Advogados, por sua atuação em “defe-

sa das liberdades democráticas”.33 Na reunião seguinte, outro conselheiro,

Gentil Noronha, referia-se à importância do suplemento sobre o desapare-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28106

107

A S T R I N C H E I R A S D A M E M Ó R I A

cimento do presidente, publicado no Jornal do Brasil, solicitando que a ABIse congratulasse com o periódico.34

Assim, Vargas era lembrado, ao fim da ditadura de 1964, como dita-dor que cerceara a liberdade de imprensa e — não porém — digno dehonras na Casa do Jornalista. Sem aparentes contradições. Ou, ainda,identificado com ditadura, em 1985, mas não enquanto se vivia sob dita-dura.35 É nessa ambivalência que se pode compreender a ideia de que“sobreviveu a ABI ao Estado Novo de Vargas”36 e, “ao deixar o Rio, apósser deposto, [Vargas] foi acompanhado por Moses [então presidente daABI] até a porta do avião”.37

A relação ambivalente com a memória de Vargas parece se repetir quan-to à ditadura que, então, vigorava.

***

As deferências a homens do regime estão presentes em diversos momentos.Na reunião de julho de 1967, o conselheiro Oswaldo Paixão propôs o

voto de pesar pela morte de Castelo Branco. Apesar dos “acalorados deba-tes”, quando os que se manifestavam contrários à proposta alegaram “en-tre outros motivos a perseguição movida pelo ex-presidente aos homensde imprensa”,38 foi aprovada com um único voto contrário, do conselheiroMiguel Costa Filho.

Alguns meses antes,

O Conselheiro Mozart Lago apresentou proposta no sentido de ser convi-

dado a comparecer à próxima reunião do Conselho o Ministro Hélio

Beltrão, filho do antigo jornalista, vice-presidente e um dos baluartes da

Casa. O Conselheiro Othon Costa propôs, em adendo à referida propos-

ta, que a ABI envie telegrama ao Ministro Hélio Beltrão, congratulando-o

pela sua escolha para o Ministério do Planejamento. O Conselheiro Mozart

Lago propõe ainda que seja indicado o Conselheiro Othon Costa para

saudar, em nome do conselho, o ilustre visitante. Todas as propostas fo-

ram aprovadas.39

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28107

108

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Aprovadas, aparentemente, sem voto contrário, pois não se registrouqualquer posição contrária em ata.

Ainda em relação às homenagens a homens do regime, um momentoespecial ocorreu quando das comemorações do 60º aniversário da ABI, emabril de 1968. O general-presidente que promulgaria, em dezembro, o AI-5,colocando um ponto final no que ainda restara dos direitos civis, fora rece-bido com entusiasmo na ABI. Para tal, o presidente Danton Jobim, senadorpelo MDB entre 1971 e 1978, figura que aparece em destaque na memóriada resistência democrática, muito se empenhou.40 Apesar das tensões que avisita causou, foi na presença de Costa e Silva que se festejou a data. Emreunião, no início do ano, Danton Jobim anunciava a honra concedida:

falou o presidente da ABI sobre o aniversário desta, quando será servido

um almoço no restaurante da casa, o qual será honrado com a presença do

Sr. Presidente da República, que acedeu, por intermédio do Dr. Rondon

Pacheco, em receber o Presidente da ABI. O presidente Danton Jobim com-

pareceu pessoalmente ao Palácio Laranjeiras ouvindo do chefe da nação que,

no dia sete de abril, deverá achar-se no Rio Grande do Sul. No entanto,

numa demonstração de especial deferência à ABI, virá de avião no dia men-

cionado, ou seja, sete de abril, data do aniversário da ABI.41

Ao mesmo tempo que se preparava e se aguardava a visita do general Costae Silva, o debate na ABI estabelecia-se: alguns conselheiros saudavam-no;outros, inclusive o próprio presidente Danton Jobim, articulador da visita,preferiam fazer ressalvas. Assim, em março de 1968, registrava-se a

moção de aplausos, de autoria dos Conselheiros Ivo Arruda e Armando

Pacheco, ao presidente Costa e Silva “pelo respeito com que tem tratado a

imprensa” e por haver declarado não se utilizar da atual Lei de Imprensa

para punir jornalistas. Fazendo considerações sobre a moção, falaram di-

versos Conselheiros, entre os quais o Presidente Danton Jobim, que disse

tratar a proposta de matéria complexa que não devia ser aprovada de

afogadilho, entendendo por isso que a moção devia ser enviada à Diretoria

para mais detido exame antes de ser aprovada (...); sobre o assunto, falaram

ainda os conselheiros Raul Floriano, que lembrou as palavras do presidente

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28108

109

A S T R I N C H E I R A S D A M E M Ó R I A

Costa e Silva afirmando que não modificara, de modo algum, a atual Lei de

Imprensa, e que o nosso ideal seria precisamente o contrário, não cabendo,

portanto, qualquer voto de louvor, embora não se oponha a agradecimen-

tos aos serviços que o presidente haja prestado à imprensa; Mário Saladini

acrescenta não haver o Presidente da República demonstrado nenhum apreço

à imprensa, tanto assim que procura defender a atual Lei de Imprensa, man-

tendo, além disso, o arrocho salarial, que somente se faria merecedor de

nossa homenagem se acabasse com a censura e tomasse outras medidas libe-

rais; (...) Armando Pacheco, que justifica sua assinatura na moção alegando

não se tratar de solidariedade ao presidente, mas de simples agradecimento

pelos serviços que o atual chefe de governo tem prestado à imprensa e à

classe dos jornalistas; e finalmente, Ivo Arruda diz não concordar com Danton

Jobim quando declara que não se deve aplaudir o presidente somente por-

que ele vem à ABI, recordando que o presidente Costa e Silva já se manifes-

tou sobre a não utilização no seu governo da atual Lei de Imprensa, o que

constitui um benefício real para a classe.42

Finalmente, aprovou-se a proposta de Danton Jobim de encaminhar amoção à diretoria para “melhor exame”.

A recepção-homenagem, ao que parece, teve o apoio da maioria do con-selho, que não a via em contradição com a luta pela liberdade de imprensa,como expôs o jornalista Jocelin Santos.43 Ainda assim, não deixou de susci-tar oposição, como a do conselheiro Edmar Morel, que, em resposta

a aparte do jornalista Jocelin Santos, que dizia compreender o significado

daquela luta [pela liberdade de imprensa], ao mesmo tempo em que a ABI

abria as suas portas para recepcionar Generais que sufocavam aquela liber-

dade e eram homenageados com almoços, lembrou o orador [Edmar Morel]

que tinha autoridade para se retirar, como o fez, para reconhecer e procla-

mar a linha de defesa intransigente da liberdade de imprensa em que sem-

pre se colocou a ABI, ainda que condenasse o movimento de banquetes, mas

não via em que se desonrasse a casa em receber um Presidente da Repúbli-

ca, destacando que entre vários deles que ali foram recebidos lembrava o

Presidente Getúlio Vargas, que visitou a ABI por sete vezes.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28109

110

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Ou seja, era contra, retirava-se, mas a recepção não chegava a ser deson-rosa. Segundo Danton Jobim, ao comentar a intervenção de Morel, a ABI em

nenhum momento cruzou os braços diante de quaisquer tentativas à liberdade

de imprensa em nosso País; disse dos contatos mantidos com as autoridades

militares, com Generais, políticos, inclusive com o Presidente Médici, objetivando

não apenas a liberdade de jornalistas dos cárceres, mas a liberdade de impren-

sa, não implicando a falta de publicações desses fatos em omissões...44

Sobre a homenagem da ABI ao general-presidente, Edmar Morel escre-veu, em 1985:

Antes da morte do general Costa e Silva, a exemplo do que fizera Herbert

Moses com os presidentes Vargas e Dutra, Danton lhe ofereceu um almoço

na ABI, homenagem que motivou vários protestos sem a menor repercussão

em face da censura reinante na imprensa. A despeito do sistema de seguran-

ça, o general-presidente foi vaiado à saída do prédio. Na realidade, a ideia

do almoço foi infeliz. O presidente da República banqueteava-se na ABI,

quando havia dezenas de jornalistas presos e exilados, alguns torturados

bestialmente.45

Outro ponto importante a destacar é a incorporação pela ABI de símbo-los dos governos militares. Assim, em 19 de novembro, a menos de um mêsdo AI-5, prestava-se homenagem ao Dia da Bandeira.46 Embora esses sím-bolos não tenham sido criados pela ditadura, sem dúvida foram amplamenteapropriados como recurso de propaganda e legitimação do regime.

Essa posição não impediu os muitos apelos para que se fizessem decla-rações a favor de jornalistas cassados e presos, na sequência do fechamentopolítico que o Ato promoveu. Tampouco levou à reavaliação da homena-gem que, naquele momento, dificilmente poderia estar desvinculada dogoverno. Sem contradições, era possível atuar nos dois campos. Da mesmaforma que as perseguições no contexto do AI-5 não impediram, no ano se-guinte, em agosto de 1969, que a ABI e seu presidente, Danton Jobim,homenageassem o Exército:

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28110

111

A S T R I N C H E I R A S D A M E M Ó R I A

O presidente Danton Jobim fez um relatório das atividades da diretoria

durante o mês, destacando a participação da ABI nas comemorações da Se-

mana do Exército com a homenagem prestada às Forças Armadas, presen-

tes o Ministro Lira Tavares e os generais comandantes de unidades sediadas

na Guanabara.47

Com o afastamento de Costa e Silva e a posse de Médici, a ABI e seupresidente saudavam o novo general-presidente com esperança e entusias-mo. Na ocasião, foi-lhe enviada mensagem, assinada por Danton Jobim.Com orgulho, aprovou-se a proposta de um conselheiro de transcrevê-lana íntegra em ata. Embora longa, vale citá-la:

Sr. General Emílio Garrastazu Médici. A ABI, pela sua diretoria extraordi-

nariamente reunida, vem apresentar a V. Exa. suas congratulações pelo pro-

nunciamento de ontem, no qual V. Exa. expôs seus propósitos de governo.

Nele há posições que coincidem com ardentes aspirações dos homens de

imprensa, constantemente renovadas pelo voto de nossas Assembleias em

favor da paz e da concórdia entre os brasileiros, sob a égide de um autêntico

sistema democrático-representativo. Repercutiu entre nós favoravelmente

o reconhecimento, por V. Exa., de que para formulação de uma política efi-

caz de desenvolvimento será preciso reabrir o diálogo com os “homens de

imprensa, os operários, os jovens, os professores, os intelectuais, as donas

de casa, enfim, todo o povo brasileiro”. Bem assim a declaração que se se-

gue, de que “esse entendimento requer universidades livres, partidos livres,

sindicatos livres, Igreja livre”, o que pressupõe a eliminação da pressão ile-

gítima de certos grupos radicais minoritários. Regozija-se a ABI com saber

que o futuro presidente do Brasil “estará atento a esse esforço de libertação,

em cada dia do seu governo”. Não hesitamos, também, em aplaudir, sem

reservas, esta afirmação de seu discurso: “Em vez de jogar pedras no passa-

do, vamos aproveitar todas as pedras disponíveis para construir o futuro.”

Estamos certos, Sr. Médici, de que chegou a hora da união dos brasileiros

em torno da bandeira Democracia e Desenvolvimento que V. Exa. se mostra

disposto a empunhar com mãos firmes. A Nação poderá unir-se em torno

de um programa como esse, que resume os ideais da Revolução. Esta não

pode significar para o povo repressão e intolerância, nem hipertrofia do

Executivo e insegurança para os demais poderes. Deve constituir-se numa

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28111

112

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

esperança de paz social e de respeito aos direitos fundamentais do homem,

jamais num regime em que a preocupação, sem dúvida legítima, com a se-

gurança nacional se torne tão obsessiva que acabe por negar o seu próprio

objeto, anulando a segurança de cada um. Ante o primeiro pronunciamento

de V. Exa., de nítida e sóbria eloquência, a ABI, invocando uma tradição de

mais de 60 anos a serviço da liberdade de expressão e considerando a ne-

cessidade de retirar-se a Nação do impasse institucional, vem manifestar a

sua plena confiança em que os propósitos de V. Exa. conduzam ao respeito

à liberdade de imprensa, a “primeira das liberdades”, numa democracia e

sem a qual será impossível o amplo e fecundo diálogo que V. Exa. deseja.

Por outro lado, a ABI lança um apelo àqueles que vêm discordando da orien-

tação do governo, inclusive a oposição organizada, para que manifestem o

seu propósito de união nacional, de modo que o novo presidente possa li-

derar com sucesso um esforço realmente nacional pelo Desenvolvimento e

pela Democracia, superando a lembrança do passado e encarando com ple-

na confiança o futuro. Danton Jobim — Presidente.48

Na verdade, o discurso de posse de Médici causara surpresa. Alçado aocargo por seu perfil de representante da chamada linha dura, para sucederCosta e Silva, com a missão de radicalizar a repressão à luta armada, nasequência da captura do embaixador americano, com o sistema DOI-Codifuncionando a pleno vapor, as palavras e imagens poéticas do discurso soa-ram estranhas.49 Estranho também é pensar que na conjuntura de acirra-mento da repressão as surpreendentes palavras do general fossem capazesde iludir veteranos jornalistas.

Na mesma reunião em que se leu a carta de saudação a Médici e consi-derando o estado de saúde de Costa e Silva,

o conselheiro Danton Jobim apoiou moção de simpatia ao Marechal Costa

e Silva, destacando o lado positivo de seu governo, que, atendendo apelo

da ABI, restabeleceu o direito para o exercício da profissão de jornalistas

aos Srs. Antonio Callado e Leo Guanabara.

O conselheiro Hélio Silva, entretanto, manifestou-se: “achava prema-turo qualquer julgamento favorável ao governo Costa e Silva, ressalvando,

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28112

113

A S T R I N C H E I R A S D A M E M Ó R I A

porém, que não negaria seu voto a favor de uma mensagem ao cidadão Costae Silva, por motivo de sua doença”. Por fim, então, aprovou-se uma mensa-gem, escrita por Elmano Cruz, estimando melhoras ao presidente.50

Em junho de 1970, num dos momentos de maior repressão e, ao mes-mo tempo, de grande popularidade do governo Médici, Danton Jobim in-formava na reunião do conselho “que havia recebido convite da Assessoriade Relações Públicas da Presidência da República para a ABI mandar repre-sentante a congresso a ser realizado em Brasília”. A Aerp produzia comdestacado sucesso as campanhas de propaganda política, que desempenha-ram um relevante papel, embora não exclusivo, na popularização do regi-me, de seus princípios e valores.51 Anunciou também o convite da Adesg,Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra, aos associadosda ABI, para participarem do curso sobre tema-pilar do governo Médici:Desenvolvimento e Segurança Nacional. Ao articular aquele a esse, o regi-me procurava legitimar-se. Não há registro nas atas se a ABI atendeu aosconvites. Tampouco constam questionamentos ou debates acerca deles.52

Ainda no quadro do recrudescimento das perseguições como reação àcaptura do embaixador dos EUA, o conselheiro João Etcheverry, recente-mente libertado, agradecia “o apoio que recebeu da classe por ocasião desua prisão”, condenava as “manifestações terroristas” e afirmava “que nãocalava seu protesto contra aqueles que têm obrigação de combater o terro-rismo”. Por fim, em seu discurso, “pediu punição para os terroristas e terro-ristas oficiais”. Em outras palavras, era capaz, ao mesmo tempo, de denunciaro “terrorismo de Estado” e legitimar suas práticas, uma vez que elas se jus-tificavam para combater, segundo vocabulário próprio, o terrorismo dasesquerdas, exemplificado no sequestro.53

Também nesse contexto, “o conselho aprovou por unanimidade o votodo conselheiro Paulo Magalhães de pesar pelo falecimento do secretário deEducação Gonzaga da Gama Filho”.54 Na mesma iniciativa, Magalhães pro-punha o mesmo em relação ao ex-primeiro-ministro de Portugal Salazar.Entretanto, nesse caso, “diversos conselheiros declararam que se abstinhamde votar, para não votar contra, de vez que os mortos merecem respeito”.O conselheiro Miguel Costa Filho manifestou-se, explicando as razões desua abstenção:

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28113

114

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

“Não combato a proposta que acaba de ser apresentada” — leu de início —“não só por entender que a pessoa morta, qualquer que ela seja, deve serrespeitada, como também, e principalmente, por se tratar de ex-governanteda Nação da qual descendemos e que formou a nação brasileira com o con-curso decisivo de africanos e indígenas”. A seguir definiu em traços breves osalazarismo, do qual disse discordar frontalmente. Por fim, o autor da pro-posta em causa declarou que em face à possibilidade de que a proposta vies-se a ser aprovada por escassa maioria, com reflexos negativos para o Brasilno exterior, decidia retirá-la, pondo um ponto final na questão.55

Se a homenagem ao ditador português encontrou espaço para ser pro-posta, da mesma forma havia lugar para se saudar o fim da ditadura emPortugal. Em junho de 1974, “são lidos ofícios da Embaixada de Portugal,agradecendo a ‘moção de júbilo’, aprovada pelo Conselho Administrativoda ABI, ao povo português, por motivo do restabelecimento do GovernoDemocrático no país irmão”.56

Quando o general Geisel assumiu a presidência, justamente ele, que anun-ciava a abertura política, as expectativas da ABI foram bem mais modestasse comparadas às expressas na posse do general Médici:

Aprovada moção apresentada pelo conselheiro Antônio Carbone: 1 – Ma-nifestar, em nome dos profissionais de imprensa que integram este Conse-lho, sua expectativa favorável de que o novo governo consiga dar pleno sensoàs intenções claramente manifestadas no primeiro pronunciamento presi-dencial com relação aos campos econômico, social e político. 2 – Externarsua esperança de que no decorrer do novo Governo venham a ser atendidosos anseios de normalização institucional do país, através da construção deum modelo político, consentâneo com as nossas tradições cristã e democrá-tica. 3 – Manifestar a esperança de que em breve possa esta Casa vir a con-gratular-se com a nova administração por ter feito cessar as restrições queainda pesam sobre a liberdade de imprensa e os obstáculos que se antepõemao acesso às fontes de informação.57

Outro elemento central da propaganda do governo, assumido pela ABI,diz respeito às comemorações do Sesquicentenário da Independência doBrasil, em 1972, festa que incorporava o patriotismo do regime, identifi-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28114

115

A S T R I N C H E I R A S D A M E M Ó R I A

cando nação e governo, e simbolizava a glória do milagre econômico: pas-sados 150 anos da independência política, os militares faziam, então, aindependência econômica. Tempos de Brasil Grande, o país do futuro eratambém o país do presente. A comemoração do 1822 celebrava, na verda-de, o presente, o próprio regime, os militares e a independência econômica,seu grande mérito. Uma confraternização a reunir todos, num projeto su-postamente de interesse nacional ao qual não era possível oposição.

A ABI integrou-se à festa. Em abril, compunha uma comissão para “osfestejos do Sesquicentenário da Independência do Brasil”:58

O Conselho Administrativo participou condignamente das comemorações

do Sesquicentenário de nossa Independência, tendo realizado, por propos-

ta dos Conselheiros Fernando Segismundo e Miguel Costa Filho, um Ciclo

de Conferências, ao qual foi dado o seguinte título: “A Imprensa no Movi-

mento da Independência”. Iniciado no dia 18 de agosto, encerrou-se no dia

6 de outubro último, de acordo com o seguinte temário: A liberdade de

imprensa, pelo Senador Danton Jobim, ex-Presidente da ABI; A revolução

e a contrarrevolução, Prof. José Honório Rodrigues; A Imprensa no proces-

so da Independência, Prof. Pedro Calmon; A Imprensa do Extremo Norte

no processo da Independência, Prof. Artur César Ferreira Reis: João Soares

Lisboa, sua vida e sua obra, Prof. Fernando Segismundo; Jornais da Corte

(1808-1823), Miguel Costa Filho; Quatorze anos de luta pela Independên-

cia (Hipólito da Costa e o Correio Braziliense), Prof. Barbosa Lima Sobrinho.59

Entretanto, ao mesmo tempo que participava da festa do regime, a ABIusou-a para falar de liberdade de imprensa, recuperando outros períodosda História nos quais os jornalistas atuaram sob censura. Assim, recorriatambém ao passado para aludir ao presente.

Por sua vez, a ABI era homenageada pelo governo:

A Comissão Executiva Central do Sesquicentenário, presidida pelo General

do Exército Antonio Jorge Correa, outorgou à ABI, como também aos sócios

que participaram das comemorações realizadas pela Casa dos Jornalistas,

um diploma pela sua inestimável colaboração às comemorações do Ses-

quicentenário da Independência do Brasil.60

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28115

116

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

A ABI incorporou o discurso de emancipação econômica, essencial aoprojeto de união nacional. Essa incorporação, que não impediu sua atua-ção a favor de jornalistas atingidos pelo regime, não apareceu exclusiva-mente nas festas do Sesquicentenário. Em 1973, por exemplo, declarava amoção de apoio à Petrobras, aprovada por unanimidade com o seguinteargumento:

A emancipação econômica do Brasil tem um dos seus esteios na atuação bem-

sucedida das empresas estatais, responsáveis por setores-chave da economia

nacional. (...) a Assembleia Geral da ABI dirige ao General Ernesto Geisel e,

por seu intermédio, a todos os servidores da Petrobras — auxiliares, técni-

cos, trabalhadores — esta mensagem de solidariedade para que continuem,

sem desfalecimento, no seu trabalho em prol do Brasil.61

Nesse mesmo sentido, era possível atuar contra a censura prévia semhostilizar o governo que a promovia. Em maio de 1973, Adonias Filho, naapresentação do Relatório da Comissão da Liberdade de Imprensa, afirma-va que “a comissão designada para examinar as condições em que vem sen-do exercida a censura policial prévia não assumiu e nem sugere hostilidadeàs autoridades governamentais”.62 Até porque do governo participava opresidente da ABI, eleito para o mandato 1972-1974. Adonias Filho foidiretor da Biblioteca Nacional por dez anos, de 1961 a 1971. Em 1967,tornara-se membro do Conselho Federal de Cultura e seu diretor entre 1977a 1990. Dirigiu ainda o Instituto Nacional do Livro e a Agência Nacionaldo Ministério da Justiça. “Com o advento da revolução de 1964”, afirmaEdmar Morel, “Adonis Filho, pela sua cultura e respeitabilidade, tinha livretrânsito nos altos escalões do governo”.63

Na verdade, era por meio das relações com o governo que os problemasseriam resolvidos:

Esclarece [Fernando Segismundo] que a Diretoria está cuidando de estabelecer

melhor relacionamento com as altas autoridades do país, para o correto atendi-

mento de assuntos relevantes para a classe dos Jornalistas, como liberdade de

imprensa, o funcionamento da Comissão de Defesa da Pessoa Humana etc.64

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28116

117

A S T R I N C H E I R A S D A M E M Ó R I A

Outra questão a se observar nas atas são as manifestações a favor daanistia, que, desde muito cedo, aparecem. Sempre associadas às ideias deconciliação, união de todos os brasileiros e pacificação, o modelo constante-mente evocado é o de Duque de Caxias, patrono do Exército, o Pacificador.

A primeira referência à anistia data de 29 de abril de 1969. A proposta,de autoria do “consócio” Pedro Coutinho Filho “e outros”, aprovada porunanimidade, ao ser apreciada clamava ao

apelo à pacificação dos brasileiros, como essencial ao desenvolvimento do

país. “A História de nossa Pátria”, diz a proposta, “mostra que o caminho

para a pacificação é a anistia. Dela usou largamente o Duque de Caxias,

patrono do Exército Brasileiro”. Assim, propõe que a assembleia exprima a

convicção de que a anistia é a fórmula de união dos brasileiros para maior

grandeza do Brasil.65

Integrando-se ao projeto de desenvolvimento do governo, propunha-se, no ano seguinte:

depois de se reportar às questões que dizem respeito diretamente com o

futuro e a prosperidade do povo brasileiro, lembrando o exemplo de Du-

que de Caxias, como o Pacificador, o jornalista Paulo Magalhães se reporta

a pronunciamentos feitos pelo Presidente Médici sobre a necessidade de se

complementar a independência política conquistada em 1822 e, em nome

da ABI, dirige apelo ao chefe do Governo, no sentido de pacificar a família

brasileira, através da anistia. Defendendo a sua proposição, diz que a apre-

sentação daquela moção foi feita dentro das tradições de nossa Casa, de nossa

própria vida de cidadãos, da própria vida do Brasil. Acrescenta que a anistia

é um bem para a Nação Brasileira e é realmente um motivo a mais para que

o Governo se sinta mais forte. Em aparte, o Conselheiro Raul Floriano diz

que seria melhor que essa proposição não tivesse necessidade de ter sido

feita, que não nos encontrássemos fora da lei e que era por se sentir assim,

por um sentimento de direito e de legalidade que aplaudia a proposição que

acabava de ser encaminhada por Paulo de Magalhães.66

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28117

118

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Outra proposta de anistia aprovada por unanimidade, em 1971, incorpo-rando os valores e referências do projeto de desenvolvimento do regime:

Pacificação. Propondo a anistia ampla e irrestrita. Anistia: “união de todos

para as grandes tarefas do desenvolvimento econômico-social.” Conclui

reiterando apelo às autoridades da República para que façam da anistia o

instrumento de pacificação que todos esperam.67

No ano seguinte, em abril de 1972, no contexto das comemorações doSesquicentenário, Edmar Morel apresentou a proposta de anistia, iden-tificada com esquecimento, confraternização e patriotismo e com o projetoda ditadura que os anos Médici tão bem encarnavam. Vale a citação, embo-ra longa:

Foi aprovada por prolongadas salvas de palmas a moção Pró-Anistia de au-

toria do confrade Edmar Morel, cujo teor é o seguinte: “A Assembleia-Geral

Ordinária da Associação Brasileira de Imprensa, neste ano do Sesqui-

centenário, comunga do júbilo patriótico do povo e do Governo brasileiro

pelo transcurso de um século e meio de vida independente e se integra no

conjunto da nacionalidade empenhada em complementar a Independência

política pela Emancipação econômica, em processo de ser alcançada. Como

assinalou o Excelentíssimo Senhor Presidente da República, a soberania da

Nação não se outorga, não se recebe de presente, antes se conquista, se preser-

va e se amplia. Eis por que os ensinamentos de Tiradentes e de José Bonifácio

hão de ser lembrados e reverenciados no ano do Sesquicentenário como o

melhor roteiro para que o Brasil seja uma nação livre, próspera e feliz.

A Imprensa tem procurado cumprir o seu dever contribuindo para que

o Brasil alcance a sua vocação de fraternidade e de paz, ainda que, por ve-

zes, com sérios entraves, pelo tolhimento da liberdade de informar e de crí-

tica. Que cada órgão e cada homem de imprensa se capacitem da grandeza

desta missão e saibam trazer a sua colaboração ao grande debate de doutri-

nas e de ideias essenciais à formação do consenso majoritário fundamental

à vida democrática.

A Assembleia Geral da ABI, como em oportunidades anteriores, acredita

que a vocação de fraternidade e de paz do Brasil será tão mais prontamente

alcançada quanto mais rapidamente se eliminarem as barreiras que dividem

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28118

119

A S T R I N C H E I R A S D A M E M Ó R I A

os brasileiros. Hoje, neste ano do Sesquicentenário, como em outras épocas

memoráveis de nossa História, a anistia — o esquecimento e a confraterniza-

ção — é o remédio que cabe aplicar com altruísmo e discernimento, para

que o Brasil venha a ser, efetivamente, a comunidade de todos.” Terminada

a aprovação desta magnífica moção...68

Nos anos de maior repressão e popularidade da ditadura, corresponden-tes ao governo Médici, a promessa de uma nação livre, próspera e feliz, vivi-da com entusiasmo pela instituição que, ao mesmo tempo, não deixava dedefender a liberdade de expressão. A magnífica moção embebida em princí-pios da ditadura, aprovada pelo aplauso unânime dos que se acreditavam natrincheira da liberdade. O Brasil rumo a alcançar a sua vocação de fraternidadee paz, que, na época, rimava com ausência de vozes dissonantes. A paz daintolerância, a paz dos cemitérios, tal qual a conquistada por Duque de Caxias.

Marco Morel, jornalista e historiador, neto de Edmar Morel, tendo “vivi-do como adolescente e jovem alguns desses episódios” na ABI, acredita, en-tretanto, que a evocação da imagem do patrono do Exército teria sido mais

um recurso de retórica repetido na época, uma maneira de chamar às falas

os militares, de reivindicar anistia sem parecer subversivo e incorrer no risco

de repressão. (...) Creio que não significava, necessariamente, adesão à figura

de Caxias e aos militares que governavam, mas sim uma instrumentalização

de sua figura histórica, uma tentativa de reinvenção de memória, um mal-

arranjado Cavalo de Troia.69

Envolta nessas referências, aprovou-se mais uma proposta, em 1973, evo-cando não apenas o patrono do Exército, mas também Ruy Barbosa:

Aprovado louvor a Ruy Barbosa, proposto por João Antônio Mesplé, lembra-

do em seu combate pela anistia no passado. “Pelos jornais, na tribuna parla-

mentar, perante os tribunais, sucedem-se apelos à fraternidade, à harmonia,

ao entendimento nacional. A anistia é o remédio que ele [Ruy Barbosa] não

se cansou de apontar, como indicado para devolver ao País a tranquilidade

necessária. É preciso retroceder ao Duque de Caxias para encontrar em nossa

história exemplo tão expressivo de apego à anistia política.”70

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28119

120

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

A ABI fazendo das palavras do regime as suas. Eliminadas e controladasas oposições, o regime legitimado socialmente, cuja popularidade podia serouvida nos estádios lotados clamando o nome do general, a anistia selariaa tranquilidade da nação, coesa, fraterna, harmônica, conciliada no presen-te, assumindo sua vocação, eliminando as barreiras que dividem, esquecen-do e confraternizando, comungando do júbilo patriótico do povo e do governobrasileiro, empenhada em complementar a independência política pela eman-cipação econômica, em processo de ser alcançada. A comunidade de todos!Afinal, Nunca fomos tão felizes, dizia o slogan da Aerp.

Por fim, na última referência à anistia, no período estudado, apelando àconciliação, o conselheiro José Talarico refere-se à anistia como ato religioso:“Dia 25 último, ao iniciar-se o Ano Santo, S. S. Paulo VI considera o ano daconciliação, conclamando que, no período que irá até o Natal de 1975, asnações de todo o mundo concretizem a anistia aos presos políticos paramaior significação desse evento católico.”71

***

O desempenho da ABI na defesa da liberdade de imprensa e de jornalistasatingidos pelo regime parece não ter sido uma unanimidade nas discussõesdas reuniões da instituição. Em junho de 1966, o conselheiro Raul Floriano“fazia restrições à diretoria da ABI quanto à ação da entidade em defesa daliberdade de imprensa e de jornalistas atingidos por medidas restritivas aodesempenho da profissão”. Elmano Cruz, então presidente do conselho,rebateu as acusações: “Jamais a Diretoria da ABI ou a Comissão de Defesada Liberdade de Imprensa e do Livro se omitiram no que toca a sua atua-ção em defesa dos jornalistas presos ou ameaçados.” Em seguida, instau-rou-se acirrado debate contra a posição de Raul Floriano e em defesa doempenho da Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa e do Livro,presidida pelo presidente do Conselho Administrativo, Elmano Cruz, naluta a favor da liberdade de imprensa e de jornalistas presos. “O Conselhei-ro Raul Floriano voltou a falar citando alguns exemplos de jornalistas cer-ceados que, no seu entender, não tiveram a devida defesa por parte da ABI”,dizendo, mais adiante, que “sofremos um pouco de descrédito” em face

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28120

121

A S T R I N C H E I R A S D A M E M Ó R I A

das omissões por ele citadas. Foi marcada, então, uma reunião extraordiná-ria do Conselho Administrativo para 7 de julho de 1966 para discutir espe-cificamente as denúncias de Raul Floriano.72

Nessa reunião de julho, Raul Floriano chamava atenção para a parciali-dade com a qual a ata da reunião anterior havia sido escrita, com a omissãode suas réplicas no debate que se seguiu às suas denúncias. Explicava, en-tão, que sua moção, apresentada na reunião anterior e que motivara o de-bate, “foi inspirada pelas cassações de credenciais [de jornalistas] ocorridasem maio e junho últimos [1966], quase todas divulgadas pela imprensa, masnenhuma verberada por essas entidades [ABI, Comissão de Defesa e Con-selho Administrativo]”. Raul Floriano protestou ainda contra a omissão naata da reunião anterior da

explicação feita pelo Presidente Danton Jobim, que disse não ser de seu fei-

tio trazer para a publicidade os fatos ocorridos na administração de seu jor-

nal Última Hora, mas que, citado esse nominalmente pelo Conselheiro Raul

Floriano, se sentia no dever de confirmar que a Presidência da República

afastou o repórter credenciado João B. Serra, alegando ter ele assinado em

março último um manifesto com mais de mil assinaturas de solidariedade

aos intelectuais presos por ocasião da Conferência Interamericana.73

Por fim, o conselho, “tomando conhecimento de novas cassações de cre-denciais de representantes de jornais”, resolveu tomar providências juntoaos setores da administração pública. Em agosto de 1966, Raul Florianovoltou a criticar a ação da Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa edo Livro.74

O mesmo Raul Floriano propunha ao conselho, em janeiro de 1967,constar em ata

um voto de louvor aos Srs. Roberto Marinho, João Dantas, Helio Batista,

Adolfo Bloch, Hélio Fernandes, Tenório Cavalcanti e Ênio Silveira que, em

seus jornais, revistas e editora, tomaram conhecimento da situação precária

em que ficaram colocados redatores e escritores seus que caíram no desagrado

do governo passado e os mantiveram em suas funções, amparando-os, não

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28121

122

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

os privando do que auferiam com seu trabalho. Essas atitudes não devem

cair no olvido e merecem ser aplaudidas por sua nobreza e desassombro.

Por isso, requeiro que, além do voto de louvor a O Globo, O Diário de

Notícias, Correio da Manhã, Manchete, Tribuna da Imprensa, Luta Democrá-

tica e Editora Civilização Brasileira, acima referidos os seus diretores, que

seja comunicado um ofício a cada um. (...). Esta proposta foi aprovada por

unanimidade.75

Entre as empresas e empresários estão periódicos e jornalistas identifi-cados com o regime e contrários a ele. Uns e outros teriam amparado jor-nalistas atingidos pela repressão, merecendo, portanto, a saudação. Comesse critério, homenageavam-se também veículos que respaldavam o governoe seus princípios, entre eles o cerceamento da liberdade de expressão.

Alguns meses depois, em maio, o conselheiro Ivo Arruda propôs “que oconselho se congratule com o jornalista Roberto Marinho por haver rece-bido o título de Cidadão Honorário de Belo Horizonte”. Assim, o respon-sável pela rede de meios de comunicação mais importante do país, quedesempenhou um papel destacado de apoio aos militares no momento dogolpe e na implantação da ditadura, era, uma vez mais, merecedor dos aplau-sos da ABI.76

***

Em abril de 1971, por meio do projeto de lei do deputado Bilac Pinto, doqual se originou a Lei 4.319, foi criado o Conselho de Defesa dos Direitosda Pessoa Humana, “que se destina a assegurar a plenitude de tais direitospor meio do funcionamento de um órgão específico, capaz não só de pro-mover inquéritos sobre possíveis violações, como de garantir a divulgaçãodo conteúdo de cada um desses direitos e de contribuir para o seu aperfei-çoamento”.77 A ABI participou do conselho.

Entretanto, antes mesmo de terminar o ano, em dezembro, a ABI inicia-va uma discussão interna que se estendeu nos anos seguintes: devia ou nãose retirar do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, “tendoem vista a recente lei denominada Rui Santos, que, dentre outras medidas,

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28122

123

A S T R I N C H E I R A S D A M E M Ó R I A

torna sigilosas as reuniões do mencionado organismo”. Danton Jobim afir-mava, então, que a ABI fora contra a decisão pelo sigilo e no Senado con-denou o projeto. No MDB, comunicou seu ponto de vista contrário àretirada da representação da ABI do Conselho de Defesa dos Direitos daPessoa Humana. Danton Jobim se diz informado de que nem o MDB nema OAB se retirariam do organismo. Propunha, então, que a ABI se manti-vesse no posto, o que não implicava estar de acordo com o sigilo: “Nãodeve abrir mão de um posto que lhe foi conferido por lei e que pode servir,como tem servido, a denúncias de abusos contra a liberdade de imprensa eas pessoas dos jornalistas.” Defendia “que não se cale mais uma voz de pro-testo diante de quaisquer arbitrariedades que se cometam contra jornais ejornalistas, motivo por que é contrário à retirada da ABI do Conselho deDefesa dos Direitos da Pessoa Humana”. A posição de Danton Jobim ven-ceu a do conselheiro Fernando Segismundo, pela retirada, devido ao sigilo,por 18 a 14 no Conselho Administrativo.78

Em setembro de 1972, o conselheiro Antônio Carbone referia-se ao casode O Estado de S. Paulo, incomodado pela censura e pela polícia. Leu otelegrama que o diretor do jornal, Ruy Mesquita, enviara ao ministro daJustiça, Alfredo Buzaid:

Parece incrível que os que decretam hoje o ostracismo forçado dos próprios

companheiros de Revolução, que ocuparam ontem os cargos em que se en-

contram hoje, não cogitem de cinco minutos do julgamento da História. O

Senhor, Sr. Ministro, deixará de sê-lo um dia. Todos os que estão hoje no

poder dele baixarão um dia e, então, Sr. Ministro, como aconteceu na Ale-

manha de Hitler, na Itália de Mussolini, ou na Rússia de Stalin, o Brasil fica-

rá reduzido à verdadeira história deste período em que a Revolução de 1964

abandonou os rumos traçados pelo seu maior líder, o Marechal Castelo Bran-

co, para enveredar pelos rumos de um caudilhismo militar, que já está fora

de moda inclusive nas repúblicas hispano-americanas.79

O tom agressivo e mesmo as comparações entre o nazismo, o fascismoe o stalinismo com a ordem vigente são surpreendentes. Mas Castelo Bran-co era diferente, encarnava os ideais da revolução que se perderam. Assim,

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28123

124

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

o golpe se justificara, nada tinha a ver com o que veio depois. Ao saudar o

maior líder, saudava-se o seu maior feito: o golpe. Aqui, a interpretação

que via um fosso entre a linha branda e a linha dura, sem compreender que

uma e outra se complementavam, que a combinação dessa tensão pôde ser

resolvida por muito tempo e, na verdade, permitia, entre outros fatores, a

própria longevidade do regime.80

***

O conselheiro Carbone denunciava em maio de 1973 “o ex-conselheiro

Acioly Lins [que] se encontra em Brasília procurando entender-se com se-

nadores e deputados, aos quais declara que na ABI alguns associados exer-

cem atividades subversivas”.81 Um mês antes, o sócio João Antônio Mesplé

revelara que ele e outros colegas haviam sido delatados por Acioly Lins.82

Quando houve o golpe de Estado no Chile, o conselheiro José Gomes

Talarico mobilizou-se no sentido de ajudar jornalistas exilados no país e os

que se encontravam em situação provisória na Argentina, tentando asilo

para partir. “Não desejamos aqui entrar em apreciações políticas sobre as

situações vigentes no Chile ou na Argentina. Não nos cabe e não desejamos

ter esse procedimento. Respeitamos a soberania de cada país”, afirmou, ao

mesmo tempo que atuava junto às famílias, a advogados, tentando acionar

o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana.83

Em fins de 1974,

o Conselheiro José Talarico, ao comunicar o regresso ao País do Dr. Darcy

Ribeiro, a fim de se submeter a uma operação de urgência, solicitou, com

apoio do Conselho, que seja enviada mensagem de agradecimento ao Sr.

Presidente da República e por ter proporcionado o regresso à Pátria, em

tais condições, daquele cientista brasileiro.84

Assim, expressava satisfação com a volta de um exilado político e pres-tava reverência ao governo, que a permitia, o mesmo governo que o expul-sara. Devia-se agradecimento a ele.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28124

125

A S T R I N C H E I R A S D A M E M Ó R I A

Em outubro de 1973, de acordo com decisão do Conselho Administra-tivo, o seu presidente, desembargador Elmano Cruz, se dirigia ao presiden-te Médici:

Excelentíssimo Senhor presidente:

O Conselho Administrativo da ABI (...) vem submeter ao alto conhecimen-

to de Vossa Excelência o assunto que se faz desordenadamente, sem que haja

uniformidade de critérios ou de orientação ética na sua aplicação. As coisas

mais estranhas ocorrem com o Serviço de Censura, que, talvez porque ve-

nha sendo exercido por pessoas não capacitadas para tão alto mister, longe

de atingir sua alta finalidade, desfigura e distorce o retrato que do governo

de Vossa Excelência faz o povo brasileiro em geral e a imprensa em particu-

lar. Vossa Excelência deve sentir certamente a grande popularidade de que

desfruta o seu governo em todas as camadas sociais e a ação ineficaz e

inoperante de servidores encarregados da censura não deve e não pode des-

truir este “status”.85

Na mensagem, a percepção comum também nas esquerdas de que a cen-sura encontrava-se em mãos incompetentes.86 Para Elmano Cruz, prova-velmente, o general não estava a par da situação, era preciso alertá-lo. Acensura em si tinha uma alta finalidade. A grande popularidade do gover-no, em todas as camadas sociais, observada pelo desembargador, não devee não pode ser destruída por uma censura mal executada por funcionáriosineficazes, inoperantes.

Nesses termos, enviou-se ao presidente o relatório da “comissão de altonível”, chefiada pelo ex-ministro de Estado e do Supremo Tribunal FederalCândido Motta Filho, da Academia Brasileira de Letras. Fazia parte da co-missão ainda o também acadêmico Barbosa Lima Sobrinho,

além de outros jornalistas militantes — para o fim de verificar os excessos

no exercício da censura e levá-los ao conhecimento do Governo, de forma

a permitir uma revisão dos métodos a serem adotados. (...).

Ousa o Conselho Administrativo da ABI esperar do espírito democráti-

co do Governo a corrigenda dos métodos atualmente adotados e, por isso,

encarece a Vossa Excelência, por seu intermédio, se digne, uma vez lido o

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28125

126

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

relatório anexo, determinar ao Exmº Sr. Ministro da Justiça a revisão e

unificação dos critérios da censura à imprensa, se e quando for necessária,

com o que certamente se engrandecerá o Governo da República Federativa

do Brasil chefiado por Vossa Excelência.

Queira Vossa Excelência receber nesta oportunidade os meus votos de

próspera e feliz administração futura.87

CELSO KELLY, PRESIDENTE E INTERVENTOR

Na primeira ata em que aparece como presidente, em 27 de agosto de 1964,Celso Kelly relatou que o jornalista e escritor Carlos Heitor Cony o procura-ra solicitando que depusesse, na qualidade de presidente da ABI, como teste-munha no inquérito ao qual estava submetido. Com o apoio da diretoria,segundo afirmou, recusara a solicitação, por “não haver o precedente de opresidente da ABI interferir em processos como testemunha”; alegava ainda“as relações oficiais que devem ser mantidas em alto estilo para efeito de asreivindicações da ABI lograrem êxito”.88 Contra tal posição se levantaram osconselheiros Ivo Arruda e João Etcheverry, propondo que o conselho mani-festasse a Cony “toda sorte de assistência durante o processo”. A propostafoi aprovada por unanimidade, apesar da posição de Kelly e da diretoria.89

Já na ata seguinte, da reunião de 24 de setembro, o presidente do con-selho e da Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa, Elmano Cruz,congratulava-se com o jurista Nelson Hungria, do Supremo Tribunal Fede-ral, pela concessão de habeas corpus a Cony ao ser processado segundo aLei de Segurança Nacional. Entretanto, não há menção se a ABI, na figurade Celso Kelly ou mesmo de outro representante, depôs no inquérito.

Na ata de 19 de outubro de 1965, em que há o registro da aprovaçãopor unanimidade da proposta dirigida ao Congresso Nacional em defesada legislação de imprensa em vigor, no sentido da preservação da liberdadede imprensa, “fundamental na vigência do regime democrático no Brasil”,pode-se ler também a discussão a respeito da intervenção do Ministério doTrabalho no Sindicato dos Jornalistas, tendo à frente o próprio presidenteda ABI, Celso Kelly:

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28126

127

A S T R I N C H E I R A S D A M E M Ó R I A

O conselheiro Belfort de Oliveira refere-se ao que ocorreu no Sindicato dos

Jornalistas Profissionais, por ocasião de sua entrega aos interventores designa-

dos pelo Ministro do Trabalho, lamentando a maneira deselegante e humi-

lhante para a Diretoria afastada com que procederam, tendo no decorrer de

sua oração aludido à renúncia do Conselheiro Celso Kelly que, convidado,

havia aceitado a sua designação como um dos interventores. Assim, solicita

que o Conselho aprove o protesto, que faz, por tais acontecimentos. O

Conselheiro João Antonio Mesplé, com a palavra, faz considerações sobre

o caso da intervenção do Ministério do Trabalho no Sindicato dos Jornalistas

Profissionais, manifestando-se contra o protesto apresentado, por entender

que a Associação Brasileira de Imprensa nada tem a ver com as questões

internas de suas congêneres, devendo, assim, conservar-se equidistante dos

acontecimentos ocorridos naquele Sindicato, narrados pelo Conselheiro

Belfort de Oliveira. Refere-se ao seu caso na Federação dos Jornalistas, de-

clarando que dele não fez ciente a Associação Brasileira de Imprensa, de

acordo com o seu ponto de vista. Encerrada a discussão, é o protesto sub-

metido à votação, sendo rejeitado. O Conselheiro Raul Floriano absteve-se

de votar, pelo motivo que expôs. O Conselheiro Celso Kelly, com a palavra,

declara de início que não havia dado ciência do caso de sua renúncia como

um dos intervencionistas, digo, dos indicados pelo senhor Ministro do Tra-

balho para ser interventor no Sindicato dos Jornalistas Profissionais, por

entender que a Associação Brasileira de Imprensa nada tinha a ver com o

fato, pois a sua indicação recaiu no jornalista, e não no presidente da Associa-

ção Brasileira de Imprensa. Entretanto, como o Conselheiro Belfort de Olivei-

ra, ao lançar o seu protesto sobre as ocorrências verificadas naquele sindicato

por ocasião de sua entrega aos interventores designados, houvesse feito refe-

rência ao caso de sua renúncia, resolve explicar os motivos da mesma, fazendo

um relato dos fatos que culminaram com o seu voluntário afastamento.90

Assim, Celso Kelly, presidente eleito por seus confrades, em 1964, nãoconsiderava pertinente depor a favor de um colega atingido pelas leis deexceção, sendo, porém, pertinente desempenhar o papel de interventor dogoverno no Sindicato dos Jornalistas. Como se viu, pouco antes de termi-nar o mandato, em fevereiro de 1966, Kelly renunciou para assumir cargono governo, a direção do Departamento Nacional de Ensino, do Ministé-rio da Educação.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28127

128

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

No mesmo dia em que houve a discussão sobre o fato de o presidente da

ABI ser interventor do governo no Sindicato dos Jornalistas, o conselheiro

Fernando Segismundo propunha um “voto de simpatia ao confrade”

Pompeu de Souza, que acabara de ter seu contrato na Universidade de

Brasília rescindido. O jornalista fora o responsável pela criação e direção

da Escola de Jornalismo da UnB até então. Ao fazer a proposta, referiu-se

à “crise universitária”, “em cujo mérito o orador não deseja entrar”.91 Apro-

vou-se, então, a proposta com as abstenções dos conselheiros Raul Floriano

e Celso Kelly. Floriano alega como justificativa de sua posição o mesmo

comportamento quanto à questão do sindicato. Celso Kelly

declara que, integrando o quadro dos membros do Conselho Federal de

Educação, não lhe fica bem tratar da matéria num foro estranho, sugerindo

que se aguardasse o retorno dos conselheiros enviados a Brasília para infor-

marem ao Ministério da Educação sobre os acontecimentos e que à vista

dos seus informes melhor se poderia manifestar a Associação Brasileira de

Imprensa.92

Não por ironia, em seguida a esse debate, ainda o conselheiro Segismundo

propôs um voto de congratulações ao XIX Congresso Brasileiro de Espe-

ranto, que se realizava no então estado da Guanabara, língua cujo ideal é

“harmonizar povos e nações por meio de uma língua comum”. Aqui houve

unanimidade na aprovação da proposta.

Na reunião de 18 de janeiro do ano seguinte, 1966, o presidente Celso

Kelly leu a carta de renúncia de Belfort de Oliveira — o mesmo que discu-

tira no conselho a intervenção no sindicato — ao mandato de conselheiro.

A assembleia aceitou a renúncia e repudiou por unanimidade os “termos

desprimorosos” e “desaforados” do documento, não transcrito em ata.

Já na reunião seguinte, em fevereiro, era Celso Kelly que renunciava à

presidência ao ser “convocado para dirigir um setor do Ministério da Edu-

cação”. Na ata, as palavras da carta de renúncia:

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28128

129

A S T R I N C H E I R A S D A M E M Ó R I A

Faço votos de que Deus nos esclareça em todas as nossas deliberações e de

que se assegure a todo e qualquer sócio liberdade de opinião e de crítica, tal

como não nos cansamos de preconizar plena liberdade de imprensa. Seja

chegado o momento de a ABI se dinamizar ao máximo, quer na parte de

estudos, quer na recreativa, quer na assistencial.93

Dessa forma, Kelly deixava a presidência da ABI para entrar no governo.

A trincheira inexpugnável

Em 1985, Edmar Morel lançou o livro A trincheira da liberdade. A história daABI. Essa história é contada a partir de seus presidentes e mandatos, desde asua criação. Em 1979, Morel recebera o Prêmio Vladimir Herzog de Anistia eDireitos Humanos, concedido pelo Sindicato de Jornalistas Profissionais de SãoPaulo. Em todo o período da ditadura, fora conselheiro da instituição, partici-pando também da Comissão de Defesa da Liberdade da Imprensa e do Livro.

Meu objetivo é mostrar às novas gerações de jornalistas o trabalho da ABI

em prol das Liberdades Públicas, trabalho que tem custado sacrifícios de toda

ordem e que o terror pensa destruir, com bombas incendiárias.

A ABI está de pé com sua bandeira desfraldada, desafiando as ditaduras

que infelicitaram o Brasil.94

Hélio Silva, outro conselheiro igualmente atuante nos tempos dos gover-nos militares, escreveu o prefácio “A história dos que escrevem a História”:

Trincheira da liberdade [a ABI] mantida a todo preço através da história;

resistindo a tudo e a todos nos períodos negros em que a liberdade esteve

eclipsada pela força, a ABI figura na vanguarda de todas as campanhas dig-

nas, ontem e hoje, quando primeiro se ergueu contra a violência, a tortura,

o desrespeito aos direitos humanos.

A ela juntaram-se outras forças nobres, a Igreja, a OAB, os verdadeiros

democratas.

Esta é a história dos que escrevem a história, no relato dos acontecimen-

tos, no desfile dos jornalistas ilustres que se sucedem na presidência da ABI.95

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28129

130

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

A Gerardo Mello Mourão coube a “Introdução”. Fala de ditadores e dopapel que os jornalistas vêm desempenhando na História do Brasil, enfren-tando as perseguições. “A trincheira da liberdade, a longa luta em defesa daliberdade de pensar e opinar da qual a ABI é um símbolo de resistência,conciliação e negociação política.” Na lista de ditadores, Artur Bernardes,Floriano Peixoto, Vargas, Dutra, Castelo Branco, Médici.96

Na orelha do livro, José Nilo Tavares estende os enfrentamentos dosjornalistas ao povo, referindo-se à “... capacidade de resistência e luta donosso povo, em busca de dias mais livres e tempos mais belos”.97 Da mesmaforma, Edmar Morel atribuía ao povo, no último ano de ditadura, o amorà liberdade: “Pela corajosa atuação da ABI, na sua luta contra a prepotênciaque não respeita os Direitos Humanos, o povo brasileiro entregou à ABI oestandarte da liberdade.”98

Fernando Segismundo, em ABI sempre, refere-se ao “destino democrá-tico” da instituição, que funciona como “agente catalisador da democra-cia”, como “o lugar certo para o exercício da cidadania”, o “bastião dalegalidade”, a “Casa da Liberdade e dos Direitos Humanos”, “escoteira nadefesa do estado de direito”: “Seu papel no restabelecimento e na manu-tenção do regime democrático só pode merecer a deferência, o incentivo ea melhor expectativa da categoria profissional e do povo.”99

***

As ditaduras, os regimes autoritários não se sustentam exclusivamente pormeio da repressão. São produtos da própria sociedade e, portanto, não lhesão estranhos. Legitimam-se em expressivos segmentos sociais. Ou, ainda,se sustentam na zona cinzenta, o espaço entre apoio e rejeição, o lugar noqual é possível atuar nos dois sentidos.

Para compreendê-la, Pierre Laborie formulou o conceito de penser-double:

O lugar preponderante tomado pela ambivalência é um traço majoritário

das atitudes dos franceses sob Vichy. (...). As alternativas simples entre

pétainisme e gaullisme, resistência e vichysme, ou resistência e colabo-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28130

131

A S T R I N C H E I R A S D A M E M Ó R I A

racionismo, fornecem apenas imagens redutoras da experiência dos contem-

porâneos (...). Sem procurar diminuir a importância do julgamento moral

na apreciação dos comportamentos, (...) a ideia de ambivalência é de uma

outra natureza. Ela abre outras portas para o historiador e alarga suas possibi-

lidades de análise. Ela permite não mais pensar apenas as contradições em

termos antagônicos — resistentes ou pétainistes, gaullistes ou attentistes*...

— mas de ultrapassá-los, interrogando-se sobre o que procuravam dizer, para

além das pseudoevidências do sentido aparente. (...). Os franceses, na maio-

ria, não foram primeiramente vichystes depois resistentes, pétainistes depois

gaullistes, mas eles puderam ser, simultaneamente, durante um tempo mais

ou menos longo, e segundo o caso, um pouco os dois ao mesmo tempo. Em

uma recente entrevista, Simone Veil lembrava as dificuldades para dominar

agora a complexidade do período e indicava, a propósito dos franceses,

“alguns se comportaram bem, outros mal, muitos os dois ao mesmo tempo.

[...] isto não era tão simples como se apresenta hoje”.100

Pensado para compreender os franceses sob Vichy, acredito que o con-ceito pode contribuir muito na reflexão de outras experiências históricas.Ele rompe com os campos bem definidos — as trincheiras.

As referências e os valores autoritários da ditadura civil-militar não eramestranhos à sociedade. A memória coletiva segundo a qual a resistência foia tônica daqueles anos, que a sociedade repudiara os princípios e as práti-cas da ditadura, é uma construção a posteriori, a absolver apoios, compro-missos, omissões, duplicidades da zona cinzenta. A memória coletiva quepermitiu Ulysses Guimarães, em discurso na promulgação da Constituiçãode 1988, exclamar: “Temos ódio e nojo à ditadura. Ódio e nojo!”101

Inspirada em Laborie, diria que a ABI não foi, primeiro, defensora dosmilitares e, depois, resistente à ditadura, como o foi Ulysses Guimarães. Arecuperação das discussões e embates, cujo eixo foi a liberdade de expres-são e de jornalistas, até o desencadeamento do projeto de abertura política

*Do verbo Attendre, esperar, não tem tradução precisa para o português; no contexto trata-do pelo autor, refere-se aos franceses que não assumiram posição explícita quando da derro-ta da França para a Alemanha nazista, da Ocupação e do estabelecimento do Regime de Vichy,esperando os desdobramentos de um mundo em guerra para se posicionar a respeito da novarealidade. (N. das O.)

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28131

132

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Geisel-Golbery, indica que esteve bem mais próxima do penser-double doque da trincheira inexpugnável. Não era coesa, abarcava embates que desapa-receram na memória. Mas, sobretudo, era ambivalente, capaz de ser a favore contra os governos militares ao mesmo tempo.

Assim, se a ABI denunciava as prisões de jornalistas, perseguidos por suasideias, atuava para que fossem libertados, mantinha relações com os gover-nos militares, os celebrava em homenagens, banquetes etc. e identificava-secom valores e princípios que os definiam. Durante a ditadura e depois do seufim, muitos que estiveram no campo da resistência democrática argumenta-ram que essa duplicidade fora um recurso encontrado para combater o regimepor dentro. Essa posição, entretanto, não pode ser entendida exclusivamentepela impossibilidade de se fazer de outra maneira sob uma ditadura ou paraevitar o isolamento da instituição, visando a uma atuação concreta.

A história da ABI nesses anos é a história da defesa da liberdade de ex-pressão e também a história dessas relações cinzentas com a ditadura. Essaambivalência estrutura a instituição nesses dez anos e não se explica, exclu-sivamente nem sobretudo, em função de uma disputa entre grupos, facçõesou tendências. Trata-se de uma realidade dentro dos grupos, facções ou ten-dências; de uma realidade que define individualmente muitos dos mem-bros da ABI, que dá o tom às suas atuações.

Em Herbert Moses, cuja longa gestão é sempre lembrada como “épocade fastígio e glória da ABI” — e, como disse, o fato de durar 33 anos nãoparece ter sido um problema —, pode-se encontrar a personificação doduplo, que caracterizou a atuação de grupos, tendências e indivíduos: “Dedia frequentava Getúlio Vargas e os ministros de Estado; à noite soltavaconfrades detidos pela polícia política de Filinto Müller.”102 Sem contradi-ções. Ou saltando sobre elas. Essa ambivalência ocorreu no Estado Novo,está presente na memória destes anos (1937-1945) e permanece depois.Danton Jobim, na última ditadura, encarnava a ambivalência, recebendoCosta e Silva para comemorar os 60 anos da ABI, o mesmo Danton Jobim,jornalista, presidente da instituição e senador do MDB, defensor da liber-dade de expressão, das liberdades civis. Apesar das críticas e oposições quea presença do general suscitou, essa duplicidade não lhe era exclusiva. Aocontrário, definiu as variadas tendências em disputa na ABI.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28132

133

A S T R I N C H E I R A S D A M E M Ó R I A

Recuperar essa história, desconstruir a memória unipolar, sem ambiva-

lências, é romper com as versões entrincheiradas, muradas em campos bem

definidos. É superar as confortáveis dicotomias, os fáceis maniqueísmos. É

refletir por que a lenda se tornou realidade. É explicar sua capacidade

mobilizadora e impulsionadora da ação política concreta. É, enfim, com-

preender culturas políticas que explicam os 21 anos de ditadura, a lenta

transição de 11 anos, sempre sob o controle dos militares e/ou dos antigos

políticos da Arena. É desvendar a construção da memória que excluiu os

civis do golpe e da ditadura, que persiste e insiste em desconhecer a Histó-

ria, fechando, assim, os caminhos para a compreensão do presente.

Notas

1. MOREL, Edmar. A trincheira da liberdade. A história da ABI. Rio de Janeiro:

Record, 1985, p. 209.

2. BERSTEIN, Serge. “L’historien et la culture politique”. Vingtième siècle. Revue

d’histoire, Paris, nº 35, 1992, p. 69.

3. Para o conceito de memória coletiva, cf. HALBWACHS, Maurice. La mémoire

colletive. Paris: Albin Michel, 1997.

4. Cf. AARÃO REIS, Daniel. “Um passado imprevisível: a construção da memória

da esquerda nos anos 60”; “Versões e ficções: a luta pela apropriação da memó-

ria”; “À maneira de um balanço: epílogo ou prólogo?”, in: ——— (org.). Versões

e ficções. O sequestro da História. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1999;

AARÃO REIS, Daniel. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar, 2000; AARÃO REIS, Daniel. “Amnistie ou amnésie: société et

dictature au Brésil”. Tumultes, Paris, vol. 14, 2000; AARÃO REIS, Daniel. “Dita-

dura e sociedade: as reconstruções da memória”, in: AARÃO REIS, Daniel;

RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (orgs.). O golpe e a ditadura

militar. 40 anos depois (1964-2004). Bauru: Edusc, 2004. No início dos anos

1980, René Dreifuss publicou sua tese de doutorado sobre o golpe de 1964. Por

meio de farta documentação, comprovou a participação decisiva de segmentos

da sociedade civil no movimento que derrubou o governo institucional de João

Goulart, que assumiram um lugar igualmente relevante no regime instaurado.

Assim, Dreifuss o chamou de golpe civil-militar; mais esclarecedor ainda seria

vê-lo como um movimento civil-militar.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28133

134

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

5. Cf. intervenção de Francisco Carlos Teixeira da Silva na arguição da defesa demestrado de Andreia Prestes Massena, Programa de Pós-Graduação em HistóriaComparada, Ichf-UFRJ, Rio de Janeiro, 20 de dezembro de 2005.

6. Cf., por exemplo, KUCINSKI, Bernardo. O fim da ditadura militar. São Paulo:Contexto, 2001.

7. Para uma reflexão mais fina sobre a oposição linha dura e linha branda, inclusivecolocando em xeque a possibilidade do uso dessas referências, ver MARTINSFILHO, João Roberto. O palácio e a caserna. A dinâmica militar das crises polí-ticas na ditadura. 1964-1969. São Carlos: Editora da UFSCar, 1996.

8. Cf. CRUZ, Sebastião Velasco e MARTINS, C.E. “De Castello a Figueiredo: umaincursão na pré-história da abertura”, in: ALMEIDA, M.H.; SORJ, B. (orgs.).Sociedade e política no Brasil pós-64. São Paulo: Brasiliense, 1983.

9. Como expressão dessa linha, ver SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. “Crise daditadura militar e o processo de abertura política no Brasil, 1974-1985”, in:FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves (orgs.). O Brasil Republi-cano. vol. 4: “O tempo da ditadura”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

10. Para essa interpretação, ver MATHIAS, Suzeley. A distensão militar. Campinas:Papirus, 1995.

11. Daniel Aarão Reis tem chamado a atenção para essa questão, ou seja, como ahistória da ditadura vem sendo contada por meio da história da resistência emais, como, em geral, na história do Brasil, há uma desproporção entre os nume-rosos estudos das esquerdas em comparação com as escassas pesquisas sobre asdireitas, como se aquelas tivessem tido maior peso do que estas na nossa história.Para uma historiografia que está na contramão dessa tendência, ver, além dostextos do autor citados na nota 4: FICO, Carlos. Reinventando o otimismo: dita-dura, propaganda e imaginário social no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 1997. FICO,Carlos. “‘Prezada Censura’: cartas ao regime militar”. Topoi. Revista de História,Rio de Janeiro, vol. 5, pp. 251-286, 2002. KUSHNIR, Beatriz. Cães de guarda.Jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988. São Paulo: Boitempo,2004. GRINBERG, Lucia. Partido político ou bode expiatório: um estudo sobre aAliança Renovadora Nacional (Arena). 1965-1979. PRESOT, Aline Alves. AsMarchas da Família com Deus pela Liberdade e o golpe de 1964. Dissertação deMestrado. UFRJ. Rio de Janeiro, 2004. FERREIRA, Gustavo Alves Alonso. Quemnão tem swing morre com a boca cheia de formiga. Wilson Simonal e os limites deuma memória tropical. Dissertação de Mestrado. Universidade FederalFluminense, Niterói, 2007.

12. Para os conceitos de zona cinzenta e penser-double, ver LABORIE, Pierre. LesFrançais des années troubles. De la guerre d’Espagne à la Liberation. Paris: Descléede Brouwer (ed.), 2003 (ed. orig. 2001). LABORIE, Pierre. L’opinion française

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28134

135

A S T R I N C H E I R A S D A M E M Ó R I A

sous Vichy. Les Français et la crise d’ identité nationale. 1936-1944. Paris: Seuil,2001 (ed. orig. 1990).

13. Para o conceito de opinião, ver, além dos livros de Pierre Laborie citados na notaanterior, o seu artigo LABORIE, Pierre. “De l’opinion publique à l’imaginairesocial”. Vingtième Siècle. Revue d’Histoire. Année 1988, vol. 18, nº 18, pp. 101-117; cf. também BECKER, Jean-Jacques. “A opinião pública”, in: RÉMOND,René (org.). Por uma história política. Rio de Janeiro: FGV; UFRJ, 1996; cf.ainda, para opinião, GELLATELY, Robert. No sólo Hitler. La Alemania nazi en-tre la coacción y el consenso. Barcelona: Crítica, 2005.

14. Henry Rousso, apud REICHEL, Peter. L’Allemagne et sa mémoire. Paris: ÉditionsOdile Jacob, 1998, p. 10.

15. CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989, p. 12;citado em O mito de Sísifo (1ª ed. de 1942), mas se trata de Homem revoltado,de 1951.

16. Para pensar o conceito de resistência, ver LABORIE, Pierre. “L’idée de Résistance,entre définition et sens: retour sur um questionnement”, in: ——, op. cit., 2003;ROUSSO, Henry. Vichy. L’événement, la mémoire, l’histoire. Paris: Gallimard,1992, em especial o capítulo “L’impact du Régime sur la société”; MARCOT,François (dir.). Dictionnaire Historique de la Résistance. Paris: Éditions RobertLaffont, 2006; MARCOT, François; MUSIEDLAK, Didier (orgs.). Les Résistances,miroir des regimes d´oppression. Allemagne, France, Italie. Actes du ColloqueInternational de Besançon, 24 a 26 septembre 2003, Musée de la Résistance etde la Déportation de Besançon, Université de Franche-Comté e Université deParis X. Besançon, Presses Universitaires de Franche-Comté, 2006.

17. Ata da 1.115ª sessão de instalação da 34ª Reunião Ordinária do Conselho Fede-ral da OAB (Conselho Pleno), em 7 de abril de 1964, na sede, na Av. MarechalCâmara, 210, 6º andar — Casa do Advogado — Estado da Guanabara.

18. Sobre a posição da CNBB no golpe, ver SERBIN, Kenneth P. Diálogos na sombra.Bispos e militares, tortura e justiça social na ditadura. São Paulo: Companhia dasLetras, 2001, p. 104.

19. A íntegra do documento “Declaração da CNBB sobre a situação nacional” estápublicada em LIMA, Luiz Gonzaga de Souza. Evolução política dos católicos e daIgreja no Brasil. Hipóteses para uma interpretação. Petrópolis: Vozes, 1979, pp.147-149; op. cit., p. 147.

20. Para o período aqui trabalhado, a primeira ata disponível é de 7 de maio de1964. As atas referentes ao momento logo depois do golpe de 31 de março de1964 não foram localizadas na ABI. Como informa a edição nº 1, o Boletim doConselho Administrativo da ABI foi criado em novembro de 1972, sendo distri-buído por via postal aos sócios. Segundo Edmar Morel, a sua criação ocorreu em

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28135

136

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

maio de 1952, por iniciativa de Herbert Moses, circulando com regularidade até1961; depois, apareceu entre 1962 e 1974, com edições descontínuas; um ter-ceiro período iniciou-se em 1974, seguindo desde então com regularidade. Cf.verbete de Edmar Morel da Associação Brasileira de Imprensa, in: ABREU, AlziraAlves de et al. Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro pós-1930. 2ª ed. revistae atualizada. Rio de Janeiro: FGV, 2001, pp. 393-394.

21. Ata da 1.115ª sessão de instalação da 34ª Reunião Ordinária do Conselho Fede-ral da OAB, op. cit. (Conselho Pleno).

22. Cf. POLLAK, Michael. “Memória, esquecimento, silêncio”. Estudos Históricos,Rio de Janeiro, vol. 2, nº 3, 1989, p. 3, a partir de Maurice Halbwachs. Para acoesão, no caso específico do fim da ditadura, ver os textos citados de DanielAarão Reis, nota 4.

23. Para o conceito de enquadramento da memória, ver POLLAK, Michael. “Memó-ria e identidade social”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, nº 10, 1992.

24. Para a discussão sobre a herança da memória, ver REICHEL, Peter, op. cit.25. Marco Morel me chamou a atenção para o fato de que, apesar de conselheiro e

da intensa atividade na ABI, Edmar Morel jamais se tornou membro da diretoriada entidade.

26. Devido aos limites de espaço do artigo, tratarei aqui apenas da ABI. Em outraoportunidade, da OAB. O tema e as discussões aqui trabalhados estão inseridosna pesquisa de pós-doutorado As relações entre sociedade e ditadura: a OAB e aABI, no Brasil de 1964 a 1974, desenvolvida no Núcleo de Estudos Contemporâ-neos (NEC), Departamento de História, UFF, com estágios de pós-doutorado naUniversidade de Paris X, Departamento de História, e Unicamp, Departamentode Sociologia. Agradeço aos professores Didier Musiedlak e Marcelo Ridenti,supervisores do pós-doutorado, e a Daniel Aarão Reis, coordenador do Convê-nio Capes-Cofecub, por meio do qual fiz o pós-doutorado na França. Agradeçotambém a Gabriela Marins de Menezes e Luciana de Castro Soutelo, que traba-lharam na pesquisa como bolsistas de Iniciação Científica/CNPq-Propp, bem comoa essas instituições (Capes, Cofecub, CNPq e Propp/UFF). Por fim, agradeço aMarco Morel o diálogo inteligente e generoso e, sobretudo, a amizade.

27. MOREL, Edmar, op. cit., p. 163.28. Idem, p. 207.29. Segundo Edmar Morel, a eleição de Celso Kelly para a presidência da ABI se dá

em 11 de setembro de 1964. Entretanto, seu nome aparece pela primeira vezcomo presidente na ata de 27 de agosto (na reunião anterior, em 11 de agosto,ainda consta o nome de Herbert Moses na função).

30. MOREL, Edmar, op. cit., pp. 164 e 163, respectivamente.31. Idem, p. 202.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28136

137

A S T R I N C H E I R A S D A M E M Ó R I A

32. Sobre Getúlio Vargas e a ABI, assim se refere Edmar Morel: “Getúlio Vargas,embora mandasse prender grande número de jornalistas, manifestou vontade devisitar a obra da ABI [trata-se da construção do edifício da atual sede], para aqual concedeu um crédito especial de quatro mil contos. Ao deixar o local, rece-beu estrondosa vaia de centenas de familiares de presos políticos” e, em seguida:“Antes da queda do Estado Novo, em 29 de outubro de 1945, Vargas concedeu aanistia por decreto assinado a 18 de abril. Por essa época voltou à ABI, receben-do então verdadeira consagração. Ao deixar o Rio, após ser deposto, foi acompa-nhado por Moses até a porta do avião.” Em seu último governo, Vargas tornou-sesócio-benemérito da ABI. Cf. Edmar Morel, “Associação Brasileira de Impren-sa”, in: ABREU, Alzira Alves de et al., op. cit.

33. Ata da reunião ordinária do Conselho Administrativo da ABI de 27 de agosto de1974.

34. Ata da reunião ordinária do Conselho Administrativo da ABI de 24 de setembrode 1974.

35. Angela de Castro Gomes, em seu texto neste livro, trabalha essa duplicidade damemória de Vargas.

36. SEGISMUNDO, Fernando. ABI sempre. Rio de Janeiro: Unigraf, 1998, p. 80.37. Edmar Morel, “Associação Brasileira de Imprensa”, in: ABREU, Alzira Alves de

et al., op. cit.38. Ata da reunião ordinária do Conselho Administrativo da ABI de 18 de julho de

1967.39. Ata da reunião ordinária do Conselho Administrativo da ABI de 21 de março de

1967.40. Danton Jobim elegeu-se em maio de 1966, depois de Elmano Cruz, como vice de

Celso Kelly, completar seu mandato. Foi presidente da ABI de 1966 a 1972; emfevereiro de 1978, foi mais uma vez eleito, morrendo, porém, 14 dias depois,sem chegar a tomar posse. Foi senador pelo MDB da Guanabara de 1971 a 1975e, depois da fusão, pelo Rio de Janeiro, de 1975 a 1978. Em 1929, representarao PCB, ao lado de Leôncio Basbaum e Mário Grazini, na I Conferência Latino-Americana dos Partidos Comunistas, em Buenos Aires. Rompeu com o PCB em1934. “Apoiou a implantação do Estado Novo em novembro de 1937, sendonomeado no ano seguinte diretor do Departamento de Propaganda e Turismo doEstado do Rio de Janeiro, então governado pelo interventor federal Ernani doAmaral Peixoto. Mais tarde, contudo, passou a combater o regime de exceção,que aboliu a liberdade de imprensa e censurou, por meio do Departamento deImprensa e Propaganda (DIP), muitos editoriais de sua autoria. Engajou-se, então,na campanha pela redemocratização do país...” (Vera Calicchio, “Danton Jobim”,in: ABREU, Alzira Alves de et al., op. cit.). Em 1945, filiou-se ao Partido Repu-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28137

138

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

blicano (PR). Com a extinção dos partidos políticos e a criação do bipartidarismo,em outubro de 1965, pelo AI-2, integrou-se ao MDB.

41. Ata da reunião ordinária do Conselho Administrativo da ABI de 23 de janeiro de1968.

42. Ata da reunião ordinária do Conselho Administrativo da ABI de 19 de março de1968.

43. Ata da reunião ordinária do Conselho Administrativo da ABI de 28 de abril de1970.

44. Ata da reunião ordinária do Conselho Administrativo da ABI de 28 de abril de1970.

45. MOREL, Edmar, op. cit., p. 179.46. Ata da reunião ordinária do Conselho Administrativo da ABI de 19 de novembro

de 1968.47. Ata da reunião ordinária do Conselho Administrativo da ABI de 19 de agosto de

1969.48. Ata da reunião ordinária do Conselho Administrativo da ABI de 21 de outubro

de 1969.49. Para o estranhamento causado pelo discurso de Médici, ver FICO, Carlos. “Espio-

nagem, repressão, propaganda e censura: os pilares da ditadura”, in: FERREIRA,Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves (orgs.). O Brasil republicano, vol.4: “O tempo da ditadura”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

50. Ata da reunião ordinária do Conselho Administrativo da ABI de 21 de outubrode 1969.

51. Para as campanhas da Aerp, ver FICO, Carlos, op. cit., 1997.52. Ata da reunião ordinária do Conselho Administrativo da ABI de 30 de junho

de 1970.53. Ata da reunião ordinária do Conselho Administrativo da ABI de 18 de novembro

de 1969.54. Ata da reunião ordinária do Conselho Administrativo da ABI de 28 de julho de

1970.55. Ata da reunião ordinária do Conselho Administrativo da ABI de 28 de julho

de 1970.56. Ata da reunião ordinária do Conselho Administrativo da ABI de 25 de junho

de 1974.57. Ata da reunião ordinária do Conselho Administrativo da ABI de 26 de março de

1974.58. Ata da Reunião ordinária do Conselho Administrativo da ABI de 27 de abril de

1972; ver também a Ata de 25 de julho de 1972, o “Relatório da Diretoria: 150anos da Independência do Brasil”.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28138

139

A S T R I N C H E I R A S D A M E M Ó R I A

59. Boletim do Conselho Administrativo da ABI, n° 1, novembro de 1972. BarbosaLima Sobrinho fora presidente da ABI em 1926-1927 e 1930-1931; depois, en-tre 1978-1984.

60. Boletim do Conselho Administrativo da ABI, n° 1, novembro de 1972.61. Ata da reunião ordinária do Conselho Administrativo da ABI de 26 de abril de

1973.62. Ata da reunião extraordinária do Conselho Administrativo da ABI de 22 de maio

de 1973.63. MOREL, Edmar, op. cit., p. 186.64. Ata da reunião ordinária do Conselho Administrativo da ABI de 25 de junho de

1974.65. Ata da reunião ordinária do Conselho Administrativo da ABI de 29 de abril de

1969.66. Ata da reunião ordinária do Conselho Administrativo da ABI de 28 de abril de

1970.67. Ata da reunião ordinária do Conselho Administrativo da ABI de 29 de abril de

1971.68. Ata da reunião ordinária do Conselho Administrativo da ABI de 27 de abril de

1972.69. E-mail enviado por Marco Morel à autora, em 11 de julho de 2007.70. Ata da reunião ordinária do Conselho Administrativo da ABI de 26 de abril de

1973.71. Ata da reunião ordinária do Conselho Administrativo da ABI de 27 de dezembro

de 1974.72. Ata da reunião ordinária do Conselho Administrativo da ABI de 28 de junho de

1966.73. Ata da reunião extraordinária do Conselho Administrativo da ABI de 7 de julho

de 1966. Em relação às denúncias de parcialidade e omissões na redação da ata,é curioso o ato falho que o relator de Raul Floriano comete: “O presidente ElmanoCruz declarou que mandaria cortar da Ata os reparos, digo, constar da Ata osreparos.”

74. Ata da reunião ordinária do Conselho Administrativo da ABI de 23 de agosto de1966. Ainda sobre possíveis omissões da ABI em relação à defesa de jornalistasperseguidos, em maio de 1969, “O Conselheiro José Maria Neves observou quenão tinham razão os que acusaram a ABI de omissa no caso de medidas oficiaistomadas contra jornalistas, mas que essa crítica deveria ser dirigida ao Sindicatodos Jornalistas Profissionais do Estado da Guanabara e à Federação dos Jornalis-tas Profissionais, que de fato se têm omitido ante tais ocorrências”. Reuniãoextraordinária de 12 de maio de 1969.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28139

140

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

75. Ata da reunião ordinária do Conselho Administrativo da ABI de 31 de janeiro de1967.

76. Ata da reunião ordinária do Conselho Administrativo da ABI de 30 de maio de1967.

77. Ata da reunião ordinária do Conselho Administrativo da ABI de 29 de abril de1971

78. Ata da reunião extraordinária do Conselho Administrativo da ABI de 17 de de-zembro de 1971. Embora a ABI tenha mantido sua representação no Conselhode Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, a discussão sobre a posição apareceunos anos seguintes. Cf. Ata da reunião ordinária de 27 de abril de 1972, porexemplo. Cf. também a ata de 25 de setembro de 1973, com destaque para oconselheiro Hélio Silva em defesa da retirada da ABI do Conselho enquantofosse mantido o sigilo. O então presidente da ABI, Adonias Filho, manteve aposição de seu antecessor, Danton Jobim.

79. Ata da reunião ordinária do Conselho Administrativo da ABI de 26 de setembrode 1972.

80. Cf. CRUZ, Sebastião Velasco; MARTINS, C.E., op. cit.81. Ata da reunião ordinária do Conselho Administrativo da ABI de 22 de maio de

1973.82. Ata da reunião ordinária do Conselho Administrativo da ABI de 26 de abril de

1973. Em reportagem sobre a eleição para renovação de um terço do ConselhoAdministrativo da ABI, a ser feito em 27 de abril de 1973, o Jornal do Brasilconsiderava que a chapa de oposição, que disputava com o senador Danton Jobima presidência, tinha poucas chances de vencer, pois estava encabeçada por Antô-nio Acioly Lins, sobre quem pesava “o fato de ter enviado, no ano passado, umacarta a autoridades policiais, denunciando como ‘subversivos’ diversos membrosda ABI, o que ocasionou, em dezembro, a prisão de alguns de seus diretores”. Nachapa de Acioly estavam ainda Henrique Pongeti, Raimundo Magalhães Júnior,Cristóvão Breiner, José Calheiros Bonfim, Alves Pinheiro, Martins Capistrano,Canor Simões Coelho, Jorge Freitas Batista, Reinaldo Santos, Arnaldo Niskier,Mário Magalhães, Max do Rego Monteiro, Raul Lino Goulart, Paulo de BarrosVieira e Raul Floriano. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 26 de abril de 1973.

83. Ata da reunião ordinária do Conselho Administrativo da ABI de 27 de novembrode 1973.

84. Ata da reunião ordinária do Conselho Administrativo da ABI de 27 de dezembrode 1974.

85. Boletim do Conselho Administrativo da ABI, nº 6, outubro de 1973.86. O equívoco dessa percepção foi trabalhado em AQUINO, Maria Aparecida de.

Censura, imprensa, Estado autoritário (1968-1978). O exercício cotidiano da

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28140

141

A S T R I N C H E I R A S D A M E M Ó R I A

dominação e da resistência. O Estado de S. Paulo e Movimento. Bauru: Edusc,1999; SMITH, Anne Marie. Um acordo forçado. O consentimento da imprensa àcensura no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2000; FICO, Carlos, op. cit., 2003;KUSHNIR, Beatriz, op. cit.

87. Boletim do Conselho Administrativo da ABI, nº 6, outubro de 1973.88. Ata da reunião ordinária do Conselho Administrativo da ABI de 27 de agosto de

1964.89. Ata da reunião ordinária do Conselho Administrativo da ABI de 27 de agosto de

1964.90. Ata da reunião ordinária do Conselho Administrativo da ABI de 19 de outubro

de 1965.91. Idem.92. Idem.93. Ata da reunião ordinária do Conselho Administrativo da ABI de 10 de fevereiro

de 1966.94. MOREL, Edmar, op. cit., p. 15.95. Idem, p. 18.96. Idem, p. 19.97. Idem, orelha do livro.98. Idem, p. 209.99. SEGISMUNDO, Fernando, op. cit., pp. 59, 135, 60, 141, 138, respectivamente.

100. LABORIE, Pierre, op. cit., 2003, pp. 31-32.101. Citado por FERREIRA, Gustavo Alves Alonso, op. cit.102. SEGISMUNDO, Fernando, op. cit., p. 139. O capítulo 19, “A serviço da pátria”,

é dedicado a Herbert Moses, saudado como grande impulsionador da ABI. EmEdmar Morel, igualmente, um capítulo é dedicado a Moses, III, “Herbert Moses,o consolidador”. Cf. MOREL, Edmar, op. cit.

Bibliografia

AARÃO REIS, Daniel (org.). Versões e ficções. O sequestro da história. São Paulo: Fun-dação Perseu Abramo, 1997.

——. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.——. “Amnistie ou amnésie: société et dictature au Brésil”. Tumultes, Paris, v. 14, pp.

77-88, 2000.ABREU, Alzira Alves de et al. Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro pós-1930. 2ª

ed. revista e atualizada. Rio de Janeiro: FGV, 2001.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28141

142

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

AQUINO, Maria Aparecida de. Censura, imprensa, Estado autoritário (1968-1978). O

exercício cotidiano da dominação e da resistência. O Estado de S. Paulo e Movimen-

to. Bauru: Edusc, 1999.

BECKER, Jean-Jacques. “A opinião pública”, in: REMOND, René (org.). Por uma his-

tória política. Rio de Janeiro: FGV; UFRJ, 1996.

——. “O handicap do a posteriori”, in: MORAES, Marieta; AMADO, Janaína (orgs.).

Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996.

BERSTEIN, Serge. “L’historien et la culture politique”. Vingtième siècle. Revue d’histoire,

nº 35, 1992, pp. 67-77.

——. “Cultura política”, in: RIOUX, Jean Pierre; SIRINELLI, Jean François (dirs.). Para

uma história cultural. Lisboa: Estampa, 1998.

CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989.

CRUZ, Sebastião Velasco; MARTINS, C.E. “De Castello a Figueiredo: uma incursão

na pré-história da abertura”, in: ALMEIDA, M.H.; SORJ, B. (orgs.). Sociedade e

política no Brasil pós-64. São Paulo: Brasiliense, 1983.

DREIFUSS, René. 1964. A conquista do Estado. Petrópolis: Vozes, 1981.

FERNANDEZ, Paloma Aguilar. Memoria y olvido de la Guerra Civil Española. Madri:

Alianza, 1996.

FERREIRA, Gustavo Alves Alonso. Quem não tem swing morre com a boca cheia de

formiga. Wilson Simonal e os limites de uma memória tropical. Dissertação de

Mestrado, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2007.

FICO, Carlos. Reinventando o otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no

Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 1997.

——. “‘Prezada Censura’: cartas ao regime militar”. Topoi. Revista de História, Rio de

Janeiro, vol. 5, pp. 251-286, 2002.

——. “Espionagem, repressão, propaganda e censura: os pilares da ditadura”, in:

FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves (orgs.). O Brasil republi-

cano, vol. 4: “O tempo da ditadura”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

GELLATELY, Robert. No sólo Hitler. La Alemania nazi entre la coacción y el consenso.

Barcelona: Crítica, 2005.

GRINBERG, Lucia. Partido político ou bode expiatório: um estudo sobre a Aliança

Renovadora Nacional (Arena). 1965-1979. Rio de Janeiro: Mauad; Faperj, 2009.

HALBWACHS, Maurice. La mémoire colletive. Paris: Albin Michel, 1997.

KUCINSKI, Bernardo. O fim da ditadura militar. São Paulo: Contexto, 2001.

KUSHNIR, Beatriz. Cães de guarda. Jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de

1988. São Paulo: Boitempo, 2004.

LABORIE, Pierre. “De l’opinion publique à l’imaginaire social”. Vingtième Siècle. Revue

d’Histoire, Paris, Année 1988, vol. 18, número 18, pp. 101-117.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28142

143

A S T R I N C H E I R A S D A M E M Ó R I A

——. L’opinion française sous Vichy. Les Français et la crise d’identité nationale. 1936-

1944. Paris: Seuil, 2001 (ed. orig. 1990).

——. Les Français des années troubles. De la guerre d’Espagne à la Liberation. Paris:

Descléi de Brouwer, 2003 (ed. orig. 2001).

LIMA, Luiz Gonzaga de Souza. Evolução política dos católicos e da Igreja no Brasil.

Hipóteses para uma interpretação. Petrópolis: Vozes, 1979.

MATHIAS, Suzeley. A distensão militar. Campinas: Papirus, 1995.

MARCOT, François (dir.). Dictionnaire Historique de la Résistance. Paris: Éditions

Robert Laffont, 2006.

MARCOT, François; MUSIEDLAK, Didier (orgs.). Les Résistances, miroir dês regi-

mes d’oppression. Allemagne, France, Italie. Actes du Colloque International de

Besançon, 24 a 26 septembre 2003, Musée de la Résistance et de la Déportation

de Besançon, Université de Franche-Comté e Université de Paris X. Besançon: Presses

Universitaires de Franche-Comté, 2006.

MARTINS FILHO, João Roberto. O palácio e a caserna. A dinâmica militar das crises

políticas na ditadura. 1964-1969. São Carlos: Editora da UFSCar, 1996.

——. “A guerra da memória: a ditadura militar nos depoimentos de militantes e milita-

res”. Varia Historia, Belo Horizonte, nº 28, dezembro de 2002.

MOREL, Edmar. A trincheira da liberdade. A história da ABI. Rio de Janeiro: Record,

1985.

POLLAK, Michael. “Memória, esquecimento, silêncio”. Estudos Históricos, Rio de

Janeiro, vol. 2, nº 3, 1989.

——. “Memória e identidade social”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, nº 10,

1992.

PRESOT, Aline Alves. As Marchas da Família com Deus pela Liberdade e o golpe de

1964. Dissertação de Mestrado, UFRJ, 2004.

REICHEL, Peter. L’Allemagne et sa mémoire. Paris: Éditions Odile Jacob, 1998.

REMOND, René (org.). Por uma história política. Rio de Janeiro: FGV/UFRJ, 1996.

RIOUX, Jean-Pierre e SIRINELLI, Jean-François (dirs.). Para uma história cultural.

Lisboa: Estampa, 1998.

ROLLEMBERG, Denise. “Esquerdas revolucionárias e luta armada”, in: FERREIRA,

Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves (orgs.). O Brasil republicano, vol. 4:

“O tempo da ditadura”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

——. “Esquecimento das memórias”. MARTINS FILHO, João Roberto (org.). O golpe

de 1964 e o regime militar: novas perspectivas. São Carlos: Editora da UFSCar, 2006.

——. “Carlos Marighella e Carlos Lamarca: memórias de dois revolucionários”, in:

AARÃO REIS, Daniel; FERREIRA, Jorge (orgs.). História das esquerdas. Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28143

144

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

——. “Memória, opinião e cultura política. A ordem dos Advogados do Brasil sob aditadura (1964-1974), in: AARÃO REIS, Daniel e ROLLAND, Denis (orgs.).Modernidades alternativas. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2008.

ROUSSO, Henry. Vichy. L’événement, la mémoire, l’histoire. Paris: Gallimard, 1992.——. Vichy, un passé qui ne passe pas (avec Éric Conan) Paris: Fayard, 1994.SEGISMUNDO, Fernando. ABI sempre. Rio de Janeiro: Unigraf, 1998.SERBIN, Kenneth P. Diálogo na sombra. Bispos e militares, tortura e justiça social na

ditadura. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. “Crise da ditadura militar e o processo de abertu-

ra política no Brasil, 1974-1985”. FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Al-meida Neves (orgs.). O Brasil republicano, vol. 4: “O tempo da ditadura”. Rio deJaneiro: Civilização Brasileira, 2003.

SIRINELLI, Jean-François. “Génération et Histoire Politique”. Vingtième Siècle. Revued’Histoire, Paris, nº 22, avril-juin 1989.

——. Os intelectuais: RÉMOND, René (org.). Por uma história política. Rio de Janei-ro: FGV/UFRJ, 1996.

SMITH, Anne Marie. Um acordo forçado. O consentimento da imprensa à censura noBrasil. Rio de Janeiro: FGV, 2000.

Fontes primárias

Atas das reuniões ordinárias e extraordinárias do Conselho Administrativo da ABI de1964 a 1974 (disponíveis na sede da ABI, no Rio de Janeiro).

Boletim do Conselho Administrativo da ABI, 1972-1974 (coleção disponível na sede daABI, no Rio de Janeiro).

Ata da 1.115ª sessão de instalação da 34ª Reunião Ordinária do Conselho Federal daOAB (Conselho Pleno). Casa do Advogado, Estado da Guanabara, 7 de abril de 1964.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28144

CAPÍTULO 4 “Vencer Satã só com orações”:1

políticas culturais e cultura deoposição no Brasil dos anos 1970

Marcos Napolitano*

*Professor de História do Brasil Independente da Universidade de São Paulo (USP), pesqui-sador do CNPq. Autor de Síncope das ideias: a questão da tradição na MPB. São Paulo: PerseuAnbramo, 2007, e Cultura brasileira: utopia e massificação. São Paulo: Contexto, 2003.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28145

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28146

INTRODUÇÃO

O campo da cultura foi fundamental para configurar tanto as críticas dasoposições ao regime militar brasileiro (1964-1985) quanto estabelecer ca-nais de negociação entre Estado e sociedade. Dessa maneira, a cultura e asartes daquele período incorporaram, a um só tempo, formas de resistência2

e formas de cooptação e colaboração, diluídas num gradiente amplo deprojetos ideológicos e graus de combatividade e crítica, entre um e outropolo. Ao longo deste artigo tentarei examinar os agentes, as instituições eas consequências das lutas culturais que marcaram a relação entre Estadoe sociedade e entre grupos sociais de oposição, com especial atenção parao período de vigência do Ato Institucional nº 5 (1968-1978). Partirei dapremissa de que a compreensão crítica das lutas culturais do período nãodeve ficar refém da dicotomia entre “resistência” e “cooptação”, pois reve-la um processo mais complexo e contraditório, no qual uma parte signifi-cativa da cultura de oposição foi assimilada pelo mercado e apoiada pelapolítica cultural do regime.

Mesmo reconhecendo que havia uma sofisticada e vigorosa cultura deesquerda, responsável pela disseminação de símbolos e valores democráti-cos e antiautoritários, acredito que o uso indiscriminado e idealizado daexpressão “resistência cultural” pode ocultar as tensões e os diferentes pro-jetos que separavam os próprios agentes históricos que protagonizaram oamplo leque de oposição ao regime militar, dificultando a compreensãohistórica das suas matrizes ideológicas diferenciadas e do jogo de aproxi-mação e afastamento que marcou o arco de alianças oposicionistas, bemcomo a relação entre os vários grupos ideológicos que formavam esse arco

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28147

148

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

e o Estado, caracterizada por ações e discursos que iam da colaboração àrecusa, passando por vários matizes. O palco dessas ações culturais tinhacomo elemento dinamizador um mercado de bens simbólicos em processode crescimento vertiginoso, particularmente significativo nos setores fono-gráfico, televisual e editorial.

A aproximação tática entre liberais e setores da esquerda não armada,oriunda, principalmente, dos quadros e simpatizantes do Partido Comu-nista, foi fundamental para que a cultura engajada de esquerda se consa-grasse e ampliasse seus circuitos de trânsito na sociedade civil, chegandoem alguns momentos a fornecer as diretrizes do mercado cultural, ao lon-go dos anos 1970. No plano da memória social, as lutas culturais dos anos1970 desembocaram numa situação, em princípio, muito paradoxal, per-ceptível já no final da década: vitoriosos politicamente, ainda que cada vezmais isolados, os militares no poder começaram a perder a batalha da me-mória, constituindo uma memória ressentida do período.3 Já a esquerdanacionalista, destroçada politicamente, conseguiu afirmar-se nos produtosculturais, cujos conteúdos críticos, adotados em parte pelos liberais e ten-do a imprensa como foco disseminador principal, conseguiu plasmar-se namemória social dominante, consagrando uma visão heroica e ecumênicada “resistência cultural” e sugerindo a existência de uma paradoxal “hege-monia cultural de esquerda”,4 construída ainda nos anos 1960.

Esse processo de aproximação entre liberais e setores da esquerda seexplica pelas dinâmicas diferenciadas das guinadas autoritárias à direita, de1964 e 1968, no plano das relações entre Estado e sociedade civil. Se ogolpe militar teve apoio de setores civis, liberais hesitantes ou autoritáriosassumidos, o recrudescimento da repressão quatro anos depois, por meiodo Ato Institucional nº 5, não teve o mesmo espectro de apoio civil, poten-cializando o fosso entre Estado e sociedade. A perspectiva de militarizaçãodo Estado, o fim das liberdades civis mínimas e a concentração de poderno Executivo levaram a um distanciamento estratégico crescente entre ci-vis liberais e militares autoritários, ainda que essa relação tenha sofrido inú-meras vicissitudes, como, por exemplo, o apoio da imprensa liberal à políticaeconômica do “milagre” e à política repressiva de combate à guerrilha deesquerda. Passada a ameaça da guerrilha, mas mantido o rolo compressor

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28148

149

“ V E N C E R S AT Ã S Ó C O M O R A Ç Õ E S ”

da censura e da repressão, fortaleceu-se ainda mais a aliança tática entreempresários liberais (geralmente os donos dos meios de comunicação ecorporações culturais) e intelectuais e artistas esquerdistas, muitos deles li-gados a organizações políticas. Os comunistas foram um dos grupos maisdestacados nessa aliança tática. No plano partidário, sua expressão era oapoio do PCB ao Movimento Democrático Brasileiro (MDB), consolidadoapós a expressiva votação que essa frente oposicionista teve nas eleições de1974. Uma hipótese é que essa aliança explica, em parte, a presença marcantede uma cultura de esquerda nos meios de comunicação e na indústria dacultura, para além das suas qualidades intrínsecas. O ponto em comum eraa defesa da liberdade de expressão e a volta da democracia nas instituiçõesde governo, criando duas figuras políticas contrapostas, a “sociedade civil”e o “Estado”, como se ambas não fossem perpassadas por contradições,divisões e conflitos entre os diversos agentes que as constituíam.5

Mas a cultura não fez aproximar, apenas, os setores da oposição civil. Oregime autoritário, por sua vez, assumindo sua carência de intelectuais or-gânicos de direita que pudessem ajudar a veicular seus projetos ideológi-cos, fez uma leitura pragmática da “hegemonia cultural da esquerda”,iniciando um diálogo com alguns intelectuais e produtores culturais daoposição, no sentido de aproveitar-se do nacionalismo cultural desses. Essediálogo consolidou-se ao longo do processo de distensão política, iniciadoem 1975. A partir de então, o regime militar passou a investir em novoscanais de comunicação com setores da sociedade civil, dispensáveis nomomento de maior repressão e controle policial, e a cultura, bem como asartes, serviria como um código comum para esses canais. Esse diálogo po-deria incluir até os artistas de esquerda, normalmente mais valorizados pe-los grupos formadores de opinião, identificados com uma cultura crítica econtestatória.

Portanto, tanto o regime militar quanto a oposição civil valorizavam acultura, mas por motivos diferentes. Para a oposição, a esfera cultural eravista como espaço de rearticulação de forças sociais de oposição e reafir-mação de valores democráticos. Para o governo militar, a cultura era, a umsó tempo, parte do campo de batalha da “guerra psicológica da subversão”e parte da estratégia de “reversão das expectativas” da classe média, dado o

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28149

150

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

esgotamento do ciclo de crescimento econômico que a beneficiava e garan-

tia seu apoio à ditadura.

O campo da cultura foi valorizado como canal de comunicação do Es-

tado para com a sociedade civil e da sociedade consigo mesma, alimenta-

do por uma conjuntura de fechamento do espaço político tradicional. E a

cultura engajada de esquerda teve um papel central, ainda que contradi-

tório, nesse jogo, no qual práticas de “cooptação” e “resistência” não se

excluíram e muitas vezes conviviam nos mesmos agentes e instituições

socioculturais.

ESTADO, POLÍTICA CULTURAL E COOPTAÇÃO POLÍTICA

Para pensar a relação entre cultura, sociedade e Estado nos anos 1970 é

fundamental analisar a política cultural6 do regime militar, que dinamizou

essa já complexa relação e que também atuou em meio ao campo cultural

da oposição, nem sempre usando apenas o “cutelo vil” da censura.

Podemos falar em duas formas de política cultural, numa concepção

ampla do termo, durante o regime militar brasileiro:7 uma repressiva e ou-

tra proativa. Além dessas duas políticas culturais diretas e coordenadas a

partir do aparelho de Estado, havia uma forma indireta de política cultu-

ral, calcada no apoio oficial à modernização da indústria da cultura e da

comunicação, como parte do projeto estratégico de “integração nacional”.8

Nas palavras de Marcelos Ridenti:9

Concomitante à censura e à repressão política, ficaria evidente na década

de 1970 a existência de um projeto modernizador em comunicação e cultu-

ra, atuando diretamente por meio do Estado ou incentivando o desenvolvi-

mento capitalista privado. A partir do governo Geisel (1974-1979), com a

abertura política, especialmente por intermédio do Ministério da Educação

e Cultura, que tinha à frente Ney Braga, o regime buscaria incorporar à ordem

artistas de oposição.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28150

151

“ V E N C E R S AT Ã S Ó C O M O R A Ç Õ E S ”

No plano repressivo, o regime se apoiava em três sistemas:10 Informa-ções (Serviço Nacional de Informações — SNI, Divisão de Segurança e In-formações do Ministério da Justiça — DSI); Vigilância e repressão policial(Delegacias de Ordem Política e Social — Dops, e Centros de Operaçõesde Defesa Interna/Destacamentos de Operações de Informações — Codi-DOI); Censura, a cargo do Ministério da Justiça, por meio da Divisão deCensura de Diversões Públicas do Departamento de Polícia Federal (com-plementada pelas seções de censura regionais), e do Setor de Imprensa doGabinete — Sigab, responsável por parte da censura à imprensa.11

Esses três sistemas repressivos atuaram sobre a vida cultural, por meioda “produção da suspeita”12 e do silêncio sobre certos temas, linguagens eprodutos culturais.

A repressão que se abateu na área cultural não foi linear e homogêneaao longo de todo o regime. Seus objetivos e sua intensidade variaram entre1964 e 1985. Defendo a existência de três momentos repressivos sobre aárea cultural marcados por objetivos táticos diferenciados, embora com-plementares.

O primeiro (1964-1967) foi marcado por um objetivo básico: Dissolveras conexões da “cultura de esquerda” com os movimentos sociais e as organi-zações políticas, exemplificado pelos fechamentos do Centro Popular deCultura da União Nacional dos Estudantes (CPC/UNE), do Instituto Supe-rior de Estudos Brasileiros (Iseb) e pelo fim dos movimentos de alfabetiza-ção de base. Entre as características básicas desse momento, destacamos ocontrole da atividade intelectual escrita (imprensa), mediante inquéritospoliciais militares (IPMs) e processos judiciais, procedimento denominadopela expressão “terror cultural”, consagrada na imprensa, logo após o gol-pe militar. Outra característica desse primeiro momento é a existência deuma censura relativamente desarticulada e branda sobre as atividades artís-ticas, com ciclos de maior ou menor rigor entre 1964 e 1967, uma vez quea base legal da censura às “diversões públicas” ainda era a lei de 1946.

O segundo momento repressivo (entre o fim de 1968 e o início de 1979)foi marcado por uma prática repressiva mais orgânica e sistêmica, não ape-nas por meio da violência policial direta sobre a área cultural, mas tambémpela organização da censura às “diversões públicas” como prática estratégica

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28151

152

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

do Estado. O objetivo central, nesse segundo momento, era reprimir omovimento da cultura como mobilizador do radicalismo da classe média,principalmente os estudantes. Em outras palavras, a partir de 1968, a ten-são entre movimentos sociais e regime autoritário chegou a tal ponto que acultura efetivamente desempenhou um papel mobilizador sobre alguns se-tores da classe média, principalmente entre os estudantes organizados e cadavez mais radicalizados no caminho da luta armada. Portanto, o controle dacultura, nesse período, fez parte da luta contra a guerrilha de esquerda econtra o crescimento da oposição na própria classe média consumidora deprodutos culturais. Também é verdade que dentro dos setores da oposiçãoas lutas culturais sinalizavam para uma divisão interna, visível nos embatesentre os adeptos do Tropicalismo vanguardista e os simpatizantes de umaarte engajada mais convencional e realista.

A partir do final de 1968, o Estado se aparelhou, burocrática e juridica-mente, para atuar como censor implacável das manifestações culturais. Al-guns fatos jurídicos e burocráticos traduzem esse processo. Em primeirolugar, foi promulgada uma nova lei de censura (Lei 5.536, novembro de1968), voltada para obras teatrais e cinematográficas, que criou o Conse-lho Superior de Censura. Logo depois, surgiu o famigerado Decreto-Lei1.077, de janeiro de 1970, que estabeleceu a censura prévia sobre materiaisimpressos. Em 1972, no âmbito da Polícia Federal, surgiu a Divisão deCensura de Diversões Públicas (DCDP). Com a criação do Sigab, em 1971,desenvolveu-se a prática da autocensura nas redações de periódicos da gran-de imprensa, guiada pelos “bilhetinhos” emitidos de Brasília, contendo alista dos assuntos proibidos. Se a censura de temas políticos seria abranda-da a partir de 1977, a censura a temas morais no campo das diversões pú-blicas continuaria vigorosa até o final do regime militar.

O terceiro momento repressivo (1979 a 1985) tentava, basicamente, con-trolar o processo de desagregação da ordem política vigente, estabelecendolimites de conteúdo e linguagem para a expressão artística. Havia uma novaênfase no controle da “moral” e na promoção dos “bons costumes”, comrelativa diminuição da censura sobre conteúdos estritamente políticos. Emque pese o abrandamento da censura e a “abertura” política a pleno anda-mento, só em 1980 foram mais de 400 músicas parcial ou totalmente veta-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28152

153

“ V E N C E R S AT Ã S Ó C O M O R A Ç Õ E S ”

das. Esse período também foi marcado pela implementação efetiva do Con-selho Superior de Censura, numa tentativa de estimular a “intelectualização”da censura e contar com a presença de representantes da sociedade civilnessa ingrata tarefa.

No âmbito da sociedade civil, paralelamente à abertura oficial promovi-da pelo governo militar, houve um progressivo esvaziamento da “culturade esquerda” nacional-popular, herdada dos anos 1950-1960, ou, comoquerem alguns autores, sua inserção na cultura de massa. Essa crise foi mar-cada por uma grande crítica intelectual ao nacionalismo cultural, pelarevalorização da cultura popular comunitária (leia-se, fora do mercado) epelo questionamento das hierarquias socioculturais que separavam a “boacultura” da “cultura alienada”.13 Nesse sentido, no segundo semestre de1978 o debate cultural foi dominado pelo tema das “patrulhas ideológi-cas”, cunhado pelo cineasta Carlos Diegues, que estava lançando o filmeChuvas de verão. Tal como o anterior — Xica da Silva, de 1975 —, nãoseguia a fórmula clássica dos filmes engajados e militantes, ao contar umahistória de amor de um casal de velhos, num subúrbio carioca. Antecipan-do-se a qualquer cobrança por parte da esquerda militante, que já o haviacriticado pelo filme anterior, Diegues veiculou sua indignação diante da“censura” de esquerda em dois grandes jornais da imprensa liberal (O Es-tado de S. Paulo, de tendência conservadora, e o Jornal do Brasil, mais libe-ral-progressista). Com a consagração do slogan, muitos artistas que sesentiam “patrulhados” vieram a público, com ampla cobertura da impren-sa, sempre interessada numa boa polêmica. Durante os meses seguintes àentrevista, a existência ou não das patrulhas e “quem patrulhava quem”foram questões discutidas nos meios intelectuais e no jornalismo cultural.14

No campo da política cultural proativa, o regime militar tentou retomaruma tendência histórica do Estado nacional brasileiro, que, desde meadosdo século XIX, se arvorou como o artífice da cultura nacional, vista comoelo principal de “integração nacional” num país marcado por fortes regio-nalismos. Essa tradição foi retomada sem, no entanto, configurar uma “po-lítica cultural de conteúdo” agressiva e impositiva, tal como havia sido aquelaempreendida pelo Estado Novo getulista (1937-1945). A questão da “in-tegração nacional” era um dos pilares da Doutrina de Segurança Nacional

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28153

154

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

e o mercado tinha um papel fundamental nesse “objetivo permanente” doEstado, pois a cultura nacional era vista como circuito de consumo de pro-dutos de conteúdo “brasileiro”, complementado pelo estímulo ao acesso aprodutos de conteúdo universal, consagrados como cânones da culturaocidental. Para a esquerda, a questão da cultura nacional era vista comotática de defesa contra o imperialismo norte-americano e meio de conscien-tização das camadas populares, projeto acalentado desde antes do golpemilitar. Assim, o Estado de direita e os intelectuais de esquerda puderamcompartilhar certos valores simbólicos que convergiam para a defesa danação, ainda que sob signos ideológicos trocados.

Na montagem de seu plano de governo, ainda em 1973, o general ErnestoGeisel convidou setores da intelectualidade de oposição, inclusive algunsdramaturgos e cineastas de esquerda que já se constituíam como grupos depressão organizados, para discutir a futura política cultural. Essa aproxi-mação ainda não foi suficientemente discutida e estudada, prevalecendo atéhoje muitas análises estritamente valorativas e pouco analíticas. Tendo emvista a tradição histórica do Estado como promotor da “brasilidade”, quandoo general-presidente retomou uma política cultural de cunho nacionalistae protecionista não era de se estranhar que ela funcionasse como canal decomunicação com os setores culturais de oposição, herdeiros, em parte, doconceito de brasilidade abrigado pelo Estado desde os anos 1930. O prin-cipal momento da vertente proativa da política cultural do regime militar,que, diga-se, conviveu muito bem com as políticas repressivas, foi sinteti-zado pelo documento intitulado Política Nacional de Cultura (PNC), ela-borado pelo Ministério da Educação e Cultura, em 1975.

Ironicamente, poderíamos caracterizar a PNC como a busca de uma cul-tura “nacional-popular” sem luta de classes. O teor do texto procurava deli-mitar um “núcleo irredutível” da cultura nacional autônoma, produzido aolargo dos meios de comunicação de massa.15 O ministro Ney Braga, na apre-sentação do plano, reiterava que seu objetivo era “zelar pelo patrimônio cul-tural da nação, sem intervenção do Estado, para dirigir a cultura”.16 O recadoera claramente destinado aos produtores culturais críticos ao regime, bus-cando o “reconhecimento do processo de abertura estendido à área cultu-ral”.17 Portanto, em que pese sua visão conservadora e funcionalista de cultura,

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28154

155

“ V E N C E R S AT Ã S Ó C O M O R A Ç Õ E S ”

o documento tinha muitos pontos em comum com uma determinada visãode cultura da esquerda nacionalista, consolidando um canal de diálogo entreoposição e governo, altamente estimulado pelo mecenato oficial.

A ênfase nacionalista, a defesa do patrimônio e a promessa de apoio aoproduto nacional de “qualidade”, ameaçado pela cultura estrangeira e semespaço na indústria da cultura, sinalizavam uma incorporação de certasdemandas dos produtores culturais de esquerda. O plano assumia que seu“objetivo maior era a realização do homem brasileiro como pessoa”18 e, paratal, era preciso defender a cultura brasileira em dois níveis: o regional e onacional. A “cultura brasileira”, assumida em sua positividade ontológica,deveria corrigir eventuais desvios de rota nos valores fundantes da brasili-dade, causados pelo rápido desenvolvimento capitalista. Ao articular a po-lítica cultural à realização dos “objetivos nacionais”, a PNC substituía oideário do conflito pela visão funcionalista da Escola Superior de Guerra esua Doutrina de Segurança Nacional.19 Entre suas diretrizes básicas esta-vam a “generalização do acesso à cultura” e a “defesa da qualidade” (leia-se, decoro no tratamento e na escolha dos temas e fidelidade aos cânonesconsagrados pelo academicismo estético). Esses dois parâmetros permitiriama construção de uma política de subsídios na produção e no consumo e deum apoio às variáveis mais conservadoras, no plano estético, da cultura deoposição. O documento explicitamente recusava o “culto à novidade” e oproduto cultural massificado e, nesse sentido, também coincidia com partedas críticas de esquerda às vanguardas alienadas e aos produtos massificadosde “baixo nível”.

Esse conjunto de políticas culturais, sintetizado na PNC, foi marcadopela articulação bem-sucedida entre mercado e mecenato oficial na produ-ção e distribuição, bem como pela ausência de uma política de conteúdopositivo,20 e vetava apenas os temas e as abordagens vetados pela censuraoficial. A PNC tinha como eixo de atuação o estímulo às áreas de teatro ecinema, que, não por acaso, com a música popular, formavam o “tripé” dacultura engajada de esquerda. O Estado, portanto, tentava neutralizar osefeitos eventualmente politizadores desse tripé artístico menos pelo con-trole do conteúdo em si, e mais pelo controle dos circuitos socioculturaispelos quais as obras deveriam circular pela sociedade, aprofundando a de-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28155

156

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

pendência financeira dos criadores e produtores em relação ao Estado ematizando o radicalismo no tratamento dos temas.

Na área de cinema, o governo atuou por meio de duas instituições. Pri-meiramente, criou o Instituto Nacional do Cinema (INC), em 18/11/1966,estabelecendo a censura a filmes como competência da União e definindo aprodução, distribuição e exibição de filmes brasileiros como política deEstado. O INC foi extinto em 9/12/1975, pela mesma lei que ampliou aEmbrafilme (Empresa Brasileira de Filmes) e criou o Concine (ConselhoNacional de Cinema), órgão normatizador e regulador da atividade cine-matográfica. A Embrafilme foi outra instituição fundamental para essa área.Criada em 12/12/1969, era inicialmente um apêndice do INC. Caracteri-zava-se como uma empresa de economia mista, sendo que 70% pertenciamà União. A partir de setembro de 1973, a Embrafilme passou a atuar tam-bém na distribuição. Curiosamente, o primeiro filme distribuído foi SãoBernardo, de Leon Hirszman, cineasta ligado ao Partido Comunista, que seaproveitou do estímulo à filmagem de obras literárias para fazer um filme,de grande impacto na época, sobre o autoritarismo e as relações de poder.A esquizofrenia da política cultural era tal que o mesmo filme ficou retidona censura por muitos meses, causando graves problemas financeiros aodiretor e levando a produtora Saga à falência.

Entre 1970 e 1973, a Embrafilme apoiou a produção de 83 longas e, emagosto de 1974, Roberto Farias foi nomeado seu presidente, tendo GustavoDahl, oriundo do grupo cinemanovista, seu superintendente comercial.21

Vários filmes de sucesso, muitos deles dirigidos por cineastas identificadoscom a esquerda, foram produzidos, coproduzidos e/ou distribuídos pela“nova Embrafilme”, até o final do regime militar, tais como: Sagarana, oduelo (Paulo Thiago), Dona Flor e seus dois maridos (Bruno Barreto), Damado lotação (Neville de Almeida), A idade da terra (Glauber Rocha), Pixote(Hector Babenco), Eu te amo (Arnaldo Jabor), O homem que virou suco(João Batista de Andrade), Pra frente, Brasil (Roberto Farias), Eles não usamblack-tie (Leon Hirszman), Memórias do cárcere (Nelson Pereira dos Santos).

A empresa adotou um modelo mercadológico de “risco”, financiandoaté 30% do filme e participando dos lucros. É preciso destacar o carátercomplexo desse viés da política cultural, se pensarmos num Estado mili-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28156

157

“ V E N C E R S AT Ã S Ó C O M O R A Ç Õ E S ”

tarizado e de direita apoiando a realização de filmes com conteúdo de es-querda e críticos ao capitalismo e à própria ditadura, como foi o caso notó-rio de Pra frente, Brasil, que encenava a tortura contra cidadãos indefesosno contexto da luta armada. Obviamente, a negociação entre os diversosaparelhos e instâncias do Estado não era tranquila e muitos desses filmescausaram mal-estar dentro do governo e em relação às Forças Armadas,como ocorreu com o próprio Pra frente, Brasil, pivô de uma grande criseinterna na Embrafilme.

Apesar dos conflitos e das mediações com outras instâncias do governo,nomes ligados ao Cinema Novo, reduto da esquerda dos anos 1960, comoGlauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Arnaldo Jabor, foram ampla-mente apoiados pelo mecenato oficial. Conforme Wolney Malafaia:22

Se levarmos em consideração que, justamente nesses anos setenta, sãoconstruídas as bases do Brasil contemporâneo, devemos atentar para a im-portância da experiência cinemanovista no período, um tanto quanto exó-tica, um pouco folclórica, porém profundamente ideológica, no sentidoamplo do conceito. Recusando as simplificações, não resumindo a relaçãoEstado autoritário/cinemanovistas como uma cooptação destes por aquele,poderemos compreender a engenharia política de construção de um discur-so ideológico extremamente complexo e voltado à maior parte da socieda-de brasileira, pois trabalha diretamente seus símbolos e valores de formaplástica refinada, politicamente vinculada à consolidação do processo dedistensão, acabando por legitimá-lo.

A aproximação com o Estado não ficou isenta de traumas e dissensos nomeio cinematográfico, motivando uma dupla recusa de muitos realizadores,sobretudo os mais jovens e transgressores: a recusa dos termos dessa polí-tica de mecenato oficial e a recusa da estética cinematográfica “séria” e“culta” a ela associada e endossada pelo governo. Muitos desses cineastaspreferiram aderir à estética marginal agressiva e dessacralizadora e aos pa-drões de produção da “boca do lixo”, conhecida pelos seus filmes eróticosde baixa qualidade, do que aderir aos padrões impostos pela Embrafilme.23

Em relação à área de teatro o regime herdou, de outra ditadura, o Ser-viço Nacional de Teatro, criado em 1937 e extinto em 1981, quando foi

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28157

158

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

fundado o Inacen (Instituto Nacional de Artes Cênicas). A gestão de OrlandoMiranda (1974-1981), empresário ligado ao teatro de esquerda, traduziu arelação tensa e contraditória entre a política cultural da ditadura e a cultu-ra engajada, durante o governo Geisel. Essa colaboração foi criticada pelaesquerda não vinculada ao PCB e pelo teatro ligado à contracultura24 e aosmovimentos sociais, num processo similar, ainda que não idêntico, ao cam-po do cinema, sobretudo porque se baseava num paradigma de teatro an-corado na tradição do drama realista e na forma de gestão empresarial.

Uma das hipóteses que explicam a busca de apoio na dramaturgia deesquerda é que o governo percebeu que poderia usar a televisão para con-solidar seu projeto político e, para tanto, o teatro brasileiro era um impor-tante fornecedor de mão de obra para uma teledramaturgia de qualidade,sendo uma espécie de laboratório preparador para o meio eletrônico demassa. Aliás, alguns dramaturgos de esquerda, como Dias Gomes e OduvaldoVianna Filho, já atuavam na Rede Globo desde o início da década de 1970(Vianinha falecera em 1974). Também não podemos esquecer que o teatroera um dos eixos centrais da cultura de esquerda, dotando-se de uma capa-cidade aglutinadora e interativa que preocupou o regime no final dos anos1960, dada a grande presença de público jovem e estudantil.

Com a reorganização do Serviço Nacional de Teatro, o empresárioOrlando Miranda consolidou a proposta de reerguer o teatro brasileiroreconquistando, sobretudo, o público de classe média, engajado e “sério”,via mercado.25 O teatro realista, crítico e dramático, na linha do primeiroArena de Eles não usam black-tie, tinha um amplo potencial de público ede expressão política, mas tanto a repressão oficial como as diatribes doteatro de vanguarda do fim dos anos 1960 tinham-no esvaziado.26 A partirde 1973, aproximadamente, começa a contraofensiva do “teatrão nacio-nal-popular”, apoiada em inúmeras montagens identificadas com a tradi-ção realista e que terá o apoio do mecenato oficial.27 Essas peças teatraisconstituem o núcleo básico do “teatro de resistência”, linha endossada peloPCB: Um grito parado no ar (Gianfrancesco Guarnieri, 1973), Ponto departida (Guarnieri, 1976), Moço em estado de sítio (Vianinha, 1977), Gotad’água (Chico Buarque e Paulo Pontes, 1974), O santo inquérito (DiasGomes, 1976), O último carro (João das Neves, 1977), Patética (João Ri-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28158

159

“ V E N C E R S AT Ã S Ó C O M O R A Ç Õ E S ”

beiro Chaves, 1978), Papa Highirte (Vianinha, 1979) e Rasga coração(Vianinha, proibida em 1972, encenada em 1979).

Outra instituição que desempenhou um papel importante na sistemati-zação da política cultural do regime militar e do diálogo com a esquerda foia Funarte (Fundação Nacional de Arte), criada em dezembro de 1975. AFunarte desempenhou um importante papel em três áreas: artes plásticas,folclore e música popular.28 Assim, complementava o trabalho já realizadono teatro e no cinema pelos outros órgãos do governo. Seu primeiro dire-tor, Roberto Parreira, foi um dos redatores do Plano Nacional de Cultura.

No campo específico da música popular, a Funarte tinha quatro objeti-vos: 1) estimular novas produções artísticas; 2) apoiar o trabalho de pes-quisadores; 3) financiar a gravação de músicas culturalmente significantes,sem interesse de mercado; 4) revisar a legislação protecionista para a defe-sa da música brasileira nos meios de comunicação. Esses objetivos refletemos debates da Associação de Pesquisadores em MPB, fundada em 1973, emCuritiba, que reunia jornalistas, acadêmicos e críticos, quase todos de ma-tiz nacionalista, demonstrando a tentativa do governo de incorporar a de-manda de setores da sociedade civil, marcados pelo nacionalismo.29 OProjeto Pixinguinha foi a iniciativa mais bem-sucedida da Funarte para aárea da música popular. Idealizado por Hermínio Bello de Carvalho, em1977, promoveu inúmeros espetáculos musicais a baixo custo, fazendo maisde 1.400 apresentações e agregando um público de cerca de um milhão depessoas, entre 1978 e 1979. O que é notável é que mesmo numa área alta-mente capitalizada, a política cultural oficial também se fez presente.Hermínio Bello de Carvalho, um produtor intelectual identificado com ocampo da esquerda nacional-popular, rejeitava a ideia de que houvesse umprocesso de cooptação, afirmando que ele e sua equipe formavam um nú-cleo de resistência antiautoritária no interior do próprio Estado.30 A Funarte,de forma mais ampla, atuou na formação de um pensamento crítico emconsonância com o meio acadêmico, promovendo uma série de semináriosque catalisou o debate da área de artes e ciências humanas na direção deuma revisão da história da cultura brasileira, abrigando até pesquisadoresde oposição.31 Dentre os órgãos da política cultural oficial, sem dúvida, foium dos que tiveram atuação mais complexa e pluralista.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28159

160

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

SOCIEDADE: AÇÃO CULTURAL E OPOSIÇÃO POLÍTICA

Após o golpe militar de 1964, muitos artistas e obras, identificados com os

valores da esquerda, foram incorporados pelo mercado e pelos circuitos

culturais de massa, naquele momento em franca expansão. Os casos da

música popular e da televisão são exemplares nesse processo. Portanto, a

política cultural do regime, num certo sentido, reconhecia a importância

da cultura de esquerda já consagrada no mercado e em amplos setores da

opinião pública.

O próprio conceito de Música Popular Brasileira (MPB), amplamente

adotado pelo mercado como gênero regulador do consumo musical brasi-

leiro desde meados da década de 1960, foi produto do encontro entre uma

cultura musical nacionalista, temperada por influências do jazz e do pop,

com interesses da indústria fonográfica, cuja principal estratégia de merca-

do era atender às demandas da classe média consumidora.32 Os artistas de

preferência dessa classe média mais intelectualizada eram eufemisticamente

chamados de “faixa de prestígio” das gravadoras. O surgimento da MPB,

no contexto dos festivais da canção, não apenas serviu como válvula de

escape para as críticas ao regime, mas também como sondagem de público

para um consumo musical mais qualificado e valorizado do ponto de vista

sociocultural. No âmbito da música popular, a fronteira entre a arte engajada

e a arte voltada para o mercado era tão tênue que se torna uma tarefa mui-

to difícil partir de uma divisão rígida entre esses dois circuitos socioculturais.

A convergência da expressão genuína de artistas engajados com os interes-

ses da indústria fonográfica foi menos uma concessão dessa ao “bom gos-

to” musical e mais uma conveniente aliança para ambos: os artistas poderiam

chegar a um público de massa, impossível de ser atingido por meio do cir-

cuito restrito das organizações partidárias, dos movimentos sociais e dos

sindicatos, que, por sinal, estavam duramente reprimidos desde o golpe

militar. Para a indústria, os artistas de esquerda dominavam a linguagem

simbólica e os meios de expressão que agradavam o público de bom poder

aquisitivo e em processo de expansão, concentrando um dos segmentos be-

neficiados pelo milagre econômico: a classe média escolarizada.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28160

161

“ V E N C E R S AT Ã S Ó C O M O R A Ç Õ E S ”

Naquele momento, e nas condições em que a indústria da cultura se fir-mava no Brasil, a demanda ainda era um fator importante na organizaçãoda produção cultural, pois a indústria ainda não constituía um sistema ple-namente integrado que pudesse dirigir e prever essa produção cultural. Alémdisso, apostava-se no alto valor agregado de produtos culturais mais sofis-ticados (do ponto de vista tecnológico e técnico-estético) que, mesmo ven-dendo menos do que os produtos de consumo popular, garantiam lucrosmaiores a médio e longo prazos. No caso da música popular, esse modelode organização da produção e do consumo cultural teve sua expressão maisbem caracterizada ao longo dos anos 1970, quando abarcou, paradoxal-mente, um campo musical marcado pelas canções engajadas de esquerda,agrupado em torno do “gênero” MPB.

Outro caso de incorporação da arte (e de artistas) de esquerda pela in-dústria da cultura foi o recrutamento de dramaturgos assumidamente co-munistas pela teledramaturgia e pelas empresas jornalísticas e editoriaiscomo um todo. A própria Rede Globo, à época acusada de ser aliada doregime, deu espaço para atores e dramaturgos assumidamente comunistas,como Oduvaldo Vianna Filho, Paulo Pontes, Dias Gomes, Francisco Milani,Carlos Vereza e Armando Costa, entre outros. É interessante notar, nessecaso, como a política de “ocupação dos espaços” que marcou a atuaçãocultural dos comunistas valorizou a indústria da cultura, sempre objeto dedesconfiança à esquerda, pela sua tendência à massificação e ao nivelamentoestético. Em relação aos casos específicos de Dias Gomes e Oduvaldo ViannaFilho, é preciso destacar que bem antes do golpe militar esses profissionaisjá produziam para os meios de comunicação de massa, como o rádio e aTV. Entretanto, no caso de Vianinha é inegável que sua relação com a tele-visão fica mais intensa a partir de 1968.33 Diante do recrudescimento darepressão, a televisão passou a ser vista como alternativa profissional e umnovo caminho para a popularização da arte, desde que o conteúdo fossemantido dentro dos princípios de qualidade da dramaturgia clássica, comoo realismo, o decoro e o humanismo.

Esse processo de inserção do artista de esquerda no mercado foi estimu-lado não apenas pelo rompimento, após o golpe militar, dos circuitos cul-turais não mercantilizados, que, precariamente, uniam os artistas de esquerda

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28161

162

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

às classes populares (CPC, UNE volante, espaços culturais em sindicatos,campanhas de alfabetização etc.), mas também por uma nova estrutura deoportunidades profissionais potencializada pela expansão do mercado e daindústria da cultura. Essa nova situação do mercado de trabalho na culturacaracterizou-se pelo recrutamento de artistas, intelectuais e egressos doscursos superiores de ciências humanas por parte da indústria da cultura eda comunicação, a partir do final dos anos 1960.34 Aliada a esses dois pro-cessos estruturais, havia a perspectiva, ou a ilusão, se preferirmos, da partede certos artistas e intelectuais, de ocupar espaços em circuitos de cultura demassa, acreditando na possibilidade de transmitir um conteúdo minima-mente politizado e crítico para os seus consumidores.

Essa “ida ao mercado”, aliada ao processo de aproximação com a polí-tica cultural oficial, defendida pelos artistas comunistas ou simpatizantes,incrementou um processo de luta cultural intestino nos agentes sociais queformavam o amplo leque de oposições ao regime. Ao menos quatro atorespolítico-culturais podem ser identificados naquela conjuntura: os comunistase simpatizantes da cultura nacional-popular; a “cultura jovem”, tributáriada tradição pop, da contracultura, das vanguardas e do hippismo; a “novaesquerda”, alternativa ao PCB e base do futuro Partido dos Trabalhadores,que agrupava a intelectualidade radical, os militantes obreiristas, lideran-ças sindicais e comunitários e a esquerda católica; e, finalmente, os liberaismais ou menos progressistas que cada vez mais tentavam se desvincular deuma ligação direta com o regime militar.

Se a “ida ao mercado” reforçou a aliança tática entre os liberais e oscomunistas, o seu contraponto foi marcado por duas posições de recusa,cujos valores e produtos apontam para uma ideia de “resistência cultural”bem mais radical, longe da estratégia de “ocupar espaços”, crítica aos valo-res nacionalistas e rejeitando qualquer negociação com o sistema políticovigente.

O primeiro exemplo de recusa à “ida ao mercado” foi protagonizadapelos artistas e produtores culturais ligados à chamada “contracultura”,muito significativa entre a juventude de classe média baixa dos grandes cen-tros urbanos, mais sensível às modas internacionais veiculadas pela mídia.35

As correntes da contracultura defendiam a luta contra o “sistema” não

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28162

163

“ V E N C E R S AT Ã S Ó C O M O R A Ç Õ E S ”

apenas do ponto de vista político, mas nos seus aspectos mais amplos (com-portamentais, culturais e econômicos), buscando a criação de circuitos cul-turais “alternativos” ao mercado hegemonizado por grandes empresas. Alémdisso, enfatizavam a necessidade de ruptura com a linguagem “realista” ecom os valores “nacionalistas”, tão cara aos comunistas. A “poesia jovem”,o “cinema marginal”, o teatro jovem podem ser tomados como exemplodessa variável radical de crítica cultural ao regime.

Outro caso de recusa e crítica cultural radical foi a dos militantes da es-querda não comunista e obreirista. Os principais pontos de discórdia erama centralidade do nacionalismo e a incorporação da “herança cultural”,36

vistos com desconfiança por fazer tabula rasa da pluralidade das culturaspopulares e da vivência cultural comunitária.37 Para aqueles setores aglu-tinados em torno das dissidências comunistas, da esquerda católica e dosmovimentos sociais urbanos, havia também a recusa ao mercado e ao nacio-nalismo, mas sob uma ótica diferente da contracultura. O que os informa-va era a busca de uma nova ligação com a cultura popular, principalmenteaquela praticada nas periferias dos grandes centros urbanos, e a criação decircuitos culturais populares, livres das fórmulas estéticas e temáticas da“cultura burguesa” de mercado.38 O conjunto da “nova esquerda”, nãocomunista, via a cultura comunista “nacional-popular” como “autoritária,populista, elitista e conciliatória”, ocultando o conflito de classes e despre-zando o vigor da verdadeira cultura popular, cujo epicentro estava nas co-munidades periféricas urbanas e rurais, longe do mercado e da televisão.Os grupos amadores de teatro (Teatro da Cidade, União e Olho Vivo, Tea-tro Núcleo) são exemplos dessa tendência de recusa do circuito culturalmassificado ou oficial, plasmando o conceito de resistência ao próprio pro-cesso de produção e gestão da experiência artística.

Os intelectuais e artistas comunistas, e seus simpatizantes, reagiam a es-sas duas correntes alternativas, disputando não apenas a direção políticados movimentos sociais, mas também sua direção cultural. A contraculturajovem era logo taxada de “escapista, subjetivista, hermética” e o conceitode cultura defendido pela nova esquerda era qualificado como “esquerdis-ta, sectário e basista”. Esses adjetivos não apenas pautavam a crítica ideoló-gica, mas informavam as posições de cada segmento nas lutas culturais.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28163

164

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Duas expressões que ficaram plasmadas na caracterização da primeira

metade dos anos 1970 — “vazio cultural” e “desbunde” — têm origem nas

críticas feitas pelos setores comunistas e liberais progressistas, dirigidas,

sobretudo, aos jovens produtores culturais ligados à contracultura. Numa

certa medida, esses conceitos, que até hoje marcam a memória social do

período e geram muitos debates, surgiram para nomear (e desqualificar) a

sensação de perda repentina da hegemonia cultural no seio da esquerda pelo

Partido Comunista e sua esfera de influência. Ao qualificar de “vazio cultu-

ral” o início da década de 1970, os intelectuais mais afinados com a heran-

ça da cultura nacional-popular não apenas denunciavam os efeitos nocivos

da censura e da repressão sobre os artistas e intelectuais, mas também apon-

tavam os efeitos “alienantes” da expansão dos meios de comunicação de

massa e os novos valores comportamentais e estéticos por eles veiculados,

marcados sobretudo pelo hippismo e pelos resíduos de um novo ciclo

vanguardista/formalista em vários campos das artes.39 Tanto a ruptura

comportamental quanto a ruptura formal preconizada pelas vanguardas não

eram bem vistas por parte significativa da esquerda ortodoxa, sobretudo

aquela ligada ao PCB. Assim, “vazio cultural” e “desbunde” são, na sua

origem, palavras carregadas de sentido ideológico, voltadas para a crítica

às posições de “recusa” subjetiva e comportamental do “sistema”.

Os liberais, donos das empresas de cultura e comunicação, percebiam

que a partir do final dos anos 1960 a estrutura do mercado cultural tinha

sofrido uma mudança significativa, surgindo uma nova classe média, cada

vez mais escolarizada, muito aberta à cultura de esquerda, notadamente

aquela herdeira do nacional-popular. Portanto, em que pese o clima repres-

sivo e a censura, os produtos artístico-culturais gerados à esquerda tinham

uma boa demanda, na música popular, na dramaturgia e no cinema. A de-

manda por livros e impressos em geral (fascículos, revistas, jornais), esti-

mulada pelo crescimento da população universitária, marcou o fenômeno

das “editoras de oposição”.40 Enfim, a classe média era um grande público

consumidor para os produtos de esquerda, que os empresários liberais não

hesitavam em fornecer, diferenças ideológicas à parte. Além disso, desde

1968, os setores liberais estavam cada vez mais afastados do regime militar,

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28164

165

“ V E N C E R S AT Ã S Ó C O M O R A Ç Õ E S ”

ao menos no campo político, pois, no campo econômico, o “milagre” era

saudado por todos. Durante o governo Geisel cresceu a crítica à política

econômica do regime, dada a percepção de que o Estado era uma estrutura

pesada demais na vida econômica. Derrotada a guerrilha de esquerda, a

estratégia liberal, em seus diversos matizes, convergia para uma transição

negociada para um governo civil, precedido de uma desmontagem da re-

pressão policial, da legislação autoritária e da censura.

O caminho para a aliança tática entre setores comunistas e liberais esta-

va bem pavimentado, em nome das liberdades democráticas. Essa palavra

de ordem foi muito além da pauta político-institucional, adensando uma

determinada estratégia de crítica cultural e política ao regime militar.41

Em suma, nos anos 1970, temos uma conjuntura cultural rica em con-

tradições, produto não apenas de estratégias e táticas político-ideológi-

cas dos grupos de oposição, mas também fruto das mudanças estruturais

na vida sociocultural. Uma vigorosa cultura de oposição plenamente

inserida no mercado, veiculada por grandes corporações capitalistas na-

cionais e multinacionais, encontrou apoio numa tutela ambígua por parte

do Estado, que, por sua vez, controlava a produção cultural, via censura,

mas estimulava o crescimento do consumo cultural, por meio de subsídios

e criação de um mercado nacional de cultura. Em meio a essa complexa

conjuntura, consolidou-se a ideia-força de resistência cultural, expressão

que com o tempo tornou-se polissêmica e vaga, pois as diferenças estéti-

cas e ideológicas entre os atores da oposição foram se aplainando com o

tempo. Entretanto, examinando-se em sua historicidade própria, a críti-

ca cultural às bases ideológicas do regime e ao autoritarismo englobam

um conjunto de projetos e práticas — políticas e culturais — que muitas

vezes eram autoexcludentes, sintetizadas em dilemas nada fáceis de resol-

ver: ir ou não ir ao mercado; ser ou não nacionalista; falar ou não falar

em nome do povo; quebrar ou não as tradições estéticas e culturais já in-

corporadas pelos padrões vigentes.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28165

166

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE AS LUTAS CULTURAIS NO

CONTEXTO DO REGIME MILITAR

Partimos da premissa de que a dinâmica cultural no Brasil no período do

regime militar dialogou com as vicissitudes políticas que marcaram o jogo

entre governo e oposições (parlamentar, civil, armada). Ao longo dos anos

1970, confirmada a derrota da esquerda armada, construiu-se um campo

político-cultural que podemos chamar de “oposição civil”, articulando con-

teúdos de esquerda, principalmente da esquerda nacionalista, a circuitos

dominados pelo mercado, gerenciado por capitalistas liberais. A partir des-

sa premissa, gostaria de pautar algumas considerações, ainda com caráter

de problemáticas a serem aprofundadas em futuras pesquisas.

Em primeiro lugar, pode-se afirmar que a adesão a um nacionalismo miti-

gado, mesclado com a valorização da “herança cultural” ocidental, possibi-

litou a convergência de instituições, circuitos e agentes culturais situados

em campos ideológicos opostos. Estado, mercado e produtores culturais

de esquerda, num processo pleno de tensões e negociações, acabaram por

convergir num ponto: a necessidade da defesa da “cultura nacional” e da

“valorização do produto brasileiro”. O Estado participou desse processo

de convergência, por razões de segurança nacional. O mercado, por ade-

quação a uma certa demanda, que não chegou a ser incompatível com o

crescente interesse por produtos culturais importados. A esquerda, por ra-

zões táticas e estratégicas, além da fidelidade à tradição nacional-popular

construída nos anos 1950.

A tradição que informava esses três “atores”, naquela conjuntura, não

permitia um nacionalismo agressivo e exclusivista e isso facilitou o diálogo.

O Estado autoritário, que se via como guardião, a um só tempo, dos valores

ocidentais, “democráticos” e cristãos, desconfiava de qualquer nacionalismo

autóctone e fascista. O mercado, pautado em valores liberais, se via como

parte do capitalismo mundial, associado às multinacionais e à “livre iniciati-

va”, não podendo cercear, por motivos financeiros e ideológicos, a entrada

de produtos estrangeiros. E a esquerda propagava um nacionalismo que, por

razões também ideológicas, era tributário de um conceito de cultura “univer-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28166

167

“ V E N C E R S AT Ã S Ó C O M O R A Ç Õ E S ”

sal”, de tradição burguesa e iluminista, mesclada a conteúdos nacional-popu-lares devidamente filtrados pelos artistas e intelectuais.42

Mesmo com leituras e objetivos diversos, a burocracia oficial, os empre-sários liberais e os artistas engajados e críticos ao regime viam possíveisvantagens nessa improvável associação tática, num contexto de luta por he-gemonia, perpassado por desconfianças recíprocas. O Estado via no inte-lectual de esquerda um caminho para reconciliar-se com a classe média, basesocial do golpe militar, perdida desde 1968. O mercado via no Estado umfacilitador de acesso ao capital e a subsídios de toda a ordem, e o artista deesquerda via, em ambos, a oportunidade de produzir sua obra, ampliar seupúblico e afirmar-se artística e profissionalmente.

Em segundo lugar, enfatizo que não é possível entender as lutas cultu-rais entre “Estado” e “sociedade” nos anos 1970 supervalorizando os doisparadigmas explicativos que marcam a memória do período: o controle e acooptação do sistema político e econômico, por um lado, ou a resistênciacultural, por outro. Há uma gradação ampla entre esses dois polos. O pro-blema a ser investigado é outro: por que a pretensa “hegemonia” da cultu-ra de oposição nos segmentos sociais mais influentes (setores da burguesiae da classe média) não se traduziu numa organização social e política eficazpara “derrubar a ditadura”? É plausível supor que a limitação da eficáciapolítica da ação cultural da esquerda pode ter sido, paradoxalmente, o re-sultado da sua inserção bem-sucedida nas estruturas de mercado, sobretu-do nas áreas mais capitalizadas e monopolizadas pelas grandes corporações(indústria fonográfica, televisual e editorial). Nesses setores, os artistas ti-nham de negociar formas e conteúdos com os interesses e os limites impos-tos pelos donos, geralmente liberais, dessas empresas, nunca interessadosem romper radicalmente com o governo, mesmo permitindo a veiculaçãode discursos críticos ao autoritarismo como projeto estratégico. Nas áreas deforte demanda — o cinema e o teatro — mas sem produtores e circuitosnacionais integrados, o Estado passou a acenar com formas de apoio finan-ceiro e institucional, tendência, como já vimos, plenamente estabelecida apartir de 1975, o que também pressupunha a aceitação das formas empre-sariais de produção cultural. Por outro lado, admitindo-se o princípio deque o consumo cultural, via mercado, cria e reforça identidades políticas e

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28167

168

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

sociais,43 em que momento essas identidades simbólicas se transformariamem práticas efetivas de afirmação de cidadania e construção de projetospolíticos alternativos à ordem vigente, questão fundamental em contextosautoritários?

Um segundo problema parte de questões ainda mais perturbadoras: comofoi possível um Estado dominado pela direita militar apoiar financeiramenteartistas de esquerda? Como foi possível um mercado cada vez mais domi-nado pelo grande capital veicular uma produção muitas vezes crítica nãoapenas ao autoritarismo, mas também ao capitalismo? Para encaminhar asrespostas teremos que aprofundar a análise crítica da relação entre a cultu-ra de esquerda com o mercado, por um lado, e com o Estado, por outro. Omercado permitia a veiculação da crítica social e comportamental por meioda cultura, de forma genérica e diluída, pois havia uma demanda de produ-tos “críticos”, até como efeito compensatório para a derrota política dosprojetos de esquerda. O Estado, por sua vez, se dispunha a apoiar artistasque produzissem “obras de reconhecida qualidade estética” e “defendes-sem a cultura brasileira”, na tradição nacional-popular, desde que expurgadada luta de classes e da defesa explícita do socialismo ou da crítica direta aogoverno militar. Além disso, o mercado queria ganhar a classe média con-sumidora e o Estado, principalmente após a política de “distensão” e “aber-tura”, queria se aproximar da classe média eleitora. A cultura era um caminhopara esses dois objetivos.

Qualquer julgamento mais aprofundado acerca do papel histórico dacultura de “resistência” cultural ao regime militar deveria encarar novas pro-blemáticas. Até o momento, as pesquisas têm dado mais ênfase às intençõesdos produtores culturais, ao conteúdo das obras críticas e às organizaçõesinstitucionais que atuaram na vida cultural brasileira. Pouco se estudou aatuação dos grupos de pressão junto ao mercado e ao Estado, os circuitosculturais alternativos, o papel dos mediadores entre a produção e o consu-mo e as formas de apropriação dos bens simbólicos pelos vários segmentossociais. Talvez, quando a pesquisa histórica sobre o período conseguirequacionar essas problemáticas, teremos mais pistas para saber se prega-ções culturais e artísticas foram completamente impotentes diante de Satãou tornaram seu reinado menos tranquilo.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28168

169

“ V E N C E R S AT Ã S Ó C O M O R A Ç Õ E S ”

Notas

1. Verso da canção Agnus sei, de João Bosco e Aldir Blanc (1972).2. Conforme Nicola Mateucci, o termo se consagrou durante a Segunda Guerra

Mundial, caracterizando mais uma “reação do que uma ação, uma defesa do queuma ofensiva, uma oposição mais do que uma revolução”, podendo assumir for-mas ativas ou passivas, coletivas ou individuais. MATEUCCI, N. “Resistência”,in: BOBBIO, N. (org.). Dicionário de Política. Brasília, EDUNB, 1999, pp. 1.114-5.Esse último fenômeno — a resistência individual — vem sendo rediscutido porWolfgang Heuer, dentro da tradição arendtiana, por meio do conceito de “cora-gem civil”. Ver HEUER, W. “Coraje en la política sobre un verdulero en praga,senadores norteamericanos, whistleblowers y una carreta siciliana”. História,Questões & Debates, Paraná, 41, 2004, pp. 167-181. Sobre a relação entre aresistência à ditadura e as várias esquerdas nos anos 1970, ver ARAÚJO, MariaPaula N. A utopia fragmentada. Rio de Janeiro: FGV, 2000.

3. Um exemplo dessa afirmação são os depoimentos tomados pelo CPDOC da Fun-dação Getulio Vargas e publicados em três volumes: CASTRO, Celso; D’ARAÚJO,Maria Celina; SOARES, Gláucio D. (orgs.). Visões do golpe (a memória militarsobre 1964). Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994; CASTRO, Celso; D’ARAÚJO,Maria Celina; SOARES, Gláucio D. (orgs.). A volta aos quartéis (a memória mi-litar sobre a abertura). Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995; CASTRO, Celso;D’ARAÚJO, Maria Celina; SOARES, Gláucio D. (orgs.). Os anos de chumbo (amemória militar sobre a repressão). 2ª ed. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2001.

4. SCHWARZ, R. Política e Cultura, 1964-1969. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001.5. CODATO, Adriano. “O golpe de 64 e o regime de 68”. História, Questões &

Debates, Paraná, 40, 2004, pp. 11-36.6. Conforme Teixeira Coelho, política cultural pode ser definida como “ciência da

organização das estruturas culturais”, COELHO, T. (org.). Dicionário Crítico dePolítica Cultural. São Paulo: Iluminuras; Fapesp, 2004, p. 293. Ainda conformeo autor, as políticas culturais “frequentemente apresentam-se ideologizadas, atuan-do na legitimação da ordem político-social”. As políticas culturais encontram-semotivadas por dois tipos de exigência: a) pela ideia de difusão cultural, baseadanum “núcleo positivo” da cultura que deve ser compartilhado pelo maior núme-ro de pessoas possível e; b) pelas demandas sociais, reagindo conforme as reivin-dicações são apresentadas pelos atores sociocultuais (p. 294). Como veremos,essas duas demandas foram levadas em conta na definição da política cultural doregime militar, sobretudo após 1975.

7. Jose Brunner considera a política cultural do regime militar brasileiro uma variá-vel do “modelo mercantil”, marcado pelo clientelismo voltado para o mercado,

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28169

170

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

aliado à prática de mecenato público, visando a proteger a alta cultura e a conser-var o patrimônio nacional. Apesar de bastante presente, o mecenato do Estado écomplementar e subordinado ao mercado. Outro dado particularmente impor-tante para entender a aparente contradição na atuação do regime militar na áreacultural é a inexistência, nesse modelo, de uma ideologia central, sendo que aspequenas ações de fomento se inscrevem nas redes clientelistas, fenômeno queBrunner chama de “clientelismo pluralista”. BRUNNER, Jose Joaquin. AméricaLatina: cultura y modernidad. México: Grijalbo; Conaculta, 1992, p. 221.

8. ORTIZ, R. A moderna tradição brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1988.9. RIDENTI, M. “Artistas e intelectuais no Brasil pós-1960”. Tempo Social. Revista

de Sociologia da USP, São Paulo, 17/01, junho de 2005, p. 97.10. Para uma radiografia ampla do sistema repressivo ver FICO, Carlos. Como eles

agiam: os subterrâneos da ditadura militar. Espionagem e polícia política. Rio deJaneiro: Record, 2001.

11. KUSHNIR, Beatriz. Cães de guarda: jornalistas e censores do AI-5 à Constituiçãode 1988. Rio de Janeiro: Boitempo Editorial, 2004, p. 187.

12. BREPOHL, M. “A lógica da suspeição: sobre os aparelhos repressivos à época daditadura militar no Brasil”. Revista Brasileira de História, São Paulo, 17/34, 1997,pp. 203-20.

13. NAPOLITANO, Marcos. “O caso das patrulhas ideológicas na cena cultural bra-sileira do final dos anos 1970”, in: MARTINS FILHO, João Roberto. O golpe de1964 e o regime militar: novas perspectivas. São Carlos, 2006, pp. 39-46.

14. HOLLANDA, Heloisa B.; MESSEDER, Carlos (orgs.). Patrulhas ideológicas. SãoPaulo: Brasiliense, 1980.

15. MICELI, S. “Teoria e prática da política cultural oficial no Brasil”. In: ——.Estado e cultura no Brasil. Rio de Janeiro: Difel, 1984, p. 108.

16. BRASIL. Plano Nacional de Cultura. Brasília, Ministério da Educação e Cultura,1975, p. 5.

17. SILVA, Varderli Maria. A construção da política cultural no regime militar: con-cepções, diretrizes e programas. Dissertação de Mestrado em Sociologia, FFLCH/USP, 2001.

18. BRASIL, op. cit., p. 8.19. SILVA, Varderli M., op. cit.20. Reconhecemos que houve uma tentativa de canalizar o ufanismo nacionalista

como conteúdo artístico-cultural, sobretudo no começo dos anos 1970, mas nãose pode dizer que a Política Nacional de Cultura, pós-1975, tenha sido marcadapor esse tipo de perspectiva.

21. Em 1979, Celso Amorim foi nomeado presidente. Em 1982, foi nomeado RobertoParreira.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28170

171

“ V E N C E R S AT Ã S Ó C O M O R A Ç Õ E S ”

22. MALAFAIA, Wolney. “O cinema e o Estado na terra do sol: a construção de umapolítica cultural de cinema em tempos de autoritarismo”, in: CAPELATO, MariaH; MORETTIN, Eduardo; NAPOLITANO, Marcos; SALIBA, Elias. História ecinema. São Paulo: Editora Alameda; História Social-USP, 2007, p. 348.

23. RAMOS, José Mário Ortiz. Cinema, Estado e lutas culturais. Rio de Janeiro: Paze Terra, 1983.

24. MOSTAÇO, Edélcio. Teatro e política: Arena, Opinião e Oficina. Uma análise dacultura de esquerda. São Paulo: Proposta Editorial, 1982.

25. NAPOLITANO, Marcos. “A arte engajada e seus públicos”. Estudos Históricos,Rio de Janeiro, 28, 2003.

26. ALVES, Jair, www.navedapalavra.com.br/abrir_secao.php, acessado em 20/03/2006.

27. MOSTAÇO, E., op. cit., pp. 170-187.28. O SNT era, inicialmente, um departamento da Funarte, mas tinha grande auto-

nomia e iniciativa própria. Com a existência da Fundacen (Fundação Nacionalde Artes Cênicas), a área passou a ter autonomia, mas foi reabsorvida pela Funarteem 1981, sob o nome de Inacen.

29. STROUD, Sean. Disco é Cultura: MPB and the Defence of Tradition in BrazilianPopular Music. Thesis for Degree of Doctor of Philosophy, King’s College,University of London, 2005, pp. 159-160.

30. Idem, p. 166.31. A série “Anos 70” e a coleção “O nacional e o popular na cultura brasileira”,

editada em seis volumes, entre 1980 e 1983, são exemplos desse tipo de balanço.32. NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria

cultural na MPB. São Paulo: Fapesp; Annablume, 2001.33. PELLEGRINI, Sandra. “Televisão, política e história: dimensões da problemáti-

ca social na teledramaturgia de Vianinha”. Revista de História Regional, PontaGrossa, 6/2, 2001.

34. MICELI, Sergio. “O papel político dos meios de comunicação de massa”. In:SOLSNOWSKI, Saul et al. Brasil: o trânsito da memória. São Paulo: Edusp, 1994,pp. 41-67.

35. Para o caso da música popular essa afirmação não vale, pois a contracultura mu-sical (Caetano, Gil e mesmo os “malditos” Jards Macalé e Luiz Melodia) ocupavafaixas importantes, ainda que menores, do mercado fonográfico.

36. A questão da “herança cultural” para a esquerda comunista é fundamental e pres-supõe, na linha de György Lukács, a incorporação dos autores e das obras consi-derados progressistas, dentro da tradição realista do cânone ocidental. Ver RUBIM,Antonio C. “Partido comunista e herança cultural no Brasil”. Ciência e Cultura,41/6, junho de 1989, pp. 552-565.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28171

172

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

37. Para um aprofundamento dessa crítica ao nacionalismo, ver, CHAUÍ, Marilena.Cultura popular: entre o conformismo e a resistência. São Paulo: Brasiliense, 1985;BOSI, Alfredo. A dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras,1989.

38. RIDENTI, Marcelo. “Todo artista tem que ir aonde o povo está”. In: ——. Embusca do povo brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 2000.

39. Esse paradigma de análise, baseado numa crítica à contracultura e às vanguardas,foi construído por um corpus de textos, muitos deles publicados na imprensa.Ver VENTURA, Z. “Vazio cultural”. In: VENTURA, Z. et al. Anos 70/80. Darepressão à abertura. Rio de Janeiro: Editora Aeroplano, 2000 (originalmente de1970); MARTINS, Luciano. Geração AI-5. Rio de Janeiro: Argumento, 2004(originalmente publicado em 1979).

40. SILVA, Flamarion Maués Pelúcio. Editoras de oposição no período da abertura(1974/1985): negócio e política. Dissertação de Mestrado, História Econômica,USP, 2006.

41. Lembremos, mais uma vez, que o Partido Comunista Brasileiro, à época, apoiavaoficialmente e usava a legenda do MDB, grande frente liberal-democrática deoposição. Em que pese a existência de um vigoroso movimento social e de umanova esquerda crítica e cheia de potencialidades, o processo de transição negociadapara o regime civil terá nos liberais agrupados no (P)MDB o seu ator mais deci-sivo, sobretudo a partir de 1982.

42. A discussão articulada dos conceitos de “realismo crítico”, de origem lukacsiana,e de “nacional-popular”, de origem gramsciana, como base da estética e da cultu-ra defendidas pelos comunistas pode ser vista em COUTINHO, Carlos Nelson.“Notas sobre a questão cultural no Brasil”. Escrita Ensaio, São Paulo, nº 1, 1977.

43. CANCLINI, Nestor. Consumidores e cidadãos. Rio de Janeiro: Editora UFRJ,1997.

Bibliografia

ALVES, Jair, www.navedapalavra.com.br/abrir_secao.php, acessado em 20/03/2006.ARAÚJO, Maria Paula N. A utopia fragmentada. Rio de Janeiro: FGV, 2000.BOSI, Alfredo. A dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.BRASIL. Plano Nacional de Cultura. Brasília: Ministério da Educação e Cultura, 1975.BREPOHL, M. “A lógica da suspeição: sobre os aparelhos repressivos à época da dita-

dura militar no Brasil”. Revista Brasileira de História, São Paulo, 17/34, 1997, pp.203-20.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28172

173

“ V E N C E R S AT Ã S Ó C O M O R A Ç Õ E S ”

BRUNNER, Jose Joaquin. América Latina: cultura y modernidad. México: Grijalbo;Conaculta, 1992.

CANCLINI, Nestor. Consumidores e cidadãos. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997.CAPELATO, Maria H.; MORETTIN, Eduardo; NAPOLITANO, Marcos; SALIBA, Elias.

História e cinema. São Paulo: Editora Alameda; História Social-USP, 2007.CASTRO, Celso; D’ARAÚJO, Maria Celina; SOARES, Gláucio D. (orgs.). Visões do golpe

(a memória militar sobre 1964). Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.——. A volta aos quartéis (a memória militar sobre a abertura). Rio de Janeiro: Relume

Dumará, 1995.——. Os anos de chumbo (a memória militar sobre a repressão). 2ª ed. Rio de Janeiro:

Relume-Dumará, 2001.CHAUI, Marilena. Cultura popular: entre o conformismo e a resistência. São Paulo:

Brasiliense, 1985.CODATO, Adriano. “O golpe de 64 e o regime de 68”. História, Questões & Debates,

Paraná, 40, 2004, pp. 11-36.COELHO, T. (org.). Dicionário Crítico de Política Cultural. São Paulo: Iluminuras;

Fapesp, 2004.COUTINHO, Carlos Nelson. “Notas sobre a questão cultural no Brasil”. Escrita En-

saio, São Paulo, nº 1, 1977.FICO, Carlos. Como eles agiam: os subterrâneos da ditadura militar. Espionagem e polícia

política. Rio de Janeiro: Record, 2001.HEUER, W. “Coraje en la política sobre un verdulero en praga, senadores norte-

americanos, whistleblowers y una carreta siciliana”. História, Questões & Debates,Paraná, 41, 2004, pp. 167-181.

HOLLANDA, Heloisa B.; MESSEDER, Carlos (orgs.). Patrulhas ideológicas. São Pau-lo: Brasiliense, 1980.

KUSHNIR, Beatriz. Cães de guarda: jornalistas e censores do AI-5 à Constituição de1988. Rio de Janeiro: Boitempo Editorial, 2004.

MALAFAIA, Wolney. “O cinema e o Estado na terra do sol: a construção de uma polí-tica cultural de cinema em tempos de autoritarismo”, in: CAPELATO, Maria H.;MORETTIN, Eduardo; NAPOLITANO, Marcos; SALIBA, Elias. A lanterna de Clio:análise de filmes, análise de sociedades, no prelo. História Social/USP.

MARTINS, Luciano. Geração AI-5. Rio de Janeiro: Argumento, 2004.MATEUCCI, N. “Resistência”, in: BOBBIO, N. (org.). Dicionário de Política. Brasília:

EDUNB, 1999, pp. 1.114-5.MICELI, Sergio. “Teoria e prática da política cultural oficial no Brasil”, in: ——. Esta-

do e cultura no Brasil. Rio de Janeiro: Difel, 1984.——. “O papel político dos meios de comunicação de massa”, in: SOLSNOWSKI, Saul

et al. Brasil: o trânsito da memória. São Paulo: Edusp, 1994, pp. 41-67.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28173

174

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

MOSTAÇO, Edélcio. Teatro e política: Arena, Opinião e Oficina. Uma análise da cul-tura de esquerda. São Paulo: Proposta Editorial, 1982.

NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria culturalna MPB. São Paulo: Fapesp; Annablume, 2001.

——. “A arte engajada e seus públicos”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, 28, 2003.——. “O caso das patrulhas ideológicas na cena cultural brasileira do fim dos anos 1970”,

in: MARTINS FILHO, João Roberto. O golpe de 1964 e o regime militar: novasperspectivas. São Carlos: EdUFSCar, 2006, pp. 39-46.

ORTIZ, R. A moderna tradição brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1988.PELLEGRINI, Sandra. “Televisão, política e história: dimensões da problemática social

na teledramaturgia de Vianinha”. Revista de História Regional, Ponta Grossa, 6/2,2001.

RAMOS, José Mario Ortiz. Cinema, Estado e lutas culturais. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1983.

RIDENTI, Marcelo. “Todo artista tem que ir aonde o povo está”. In: ——. Em buscado povo brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 2000.

——. “Artistas e intelectuais no Brasil pós-1960”. Tempo Social. Revista de Sociologiada USP, São Paulo, 17/01, junho de 2005.

RUBIM, Antonio C. “Partido comunista e herança cultural no Brasil”. Ciência e Cultu-ra, 41/6, junho de 1989, pp. 552-565.

SCHWARZ, R. Política e cultura, 1964-1969. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001.SILVA, Flamarion Maués Pelúcio. Editoras de oposição no período da abertura (1974/

1985): negócio e política. Dissertação de Mestrado, História Econômica, USP, 2006.SILVA, Varderli Maria. A construção da política cultural no regime militar: concepções,

diretrizes e programas. Dissertação de Mestrado em Sociologia, FFLCH/USP, 2001.STROUD, Sean. Disco é Cultura: MPB and the Defence of Tradition in Brazilian Popu-

lar Music. Thesis for Degree of Doctor of Philosophy, King’s College, University ofLondon, 2005.

VENTURA, Z. “Vazio cultural”, in: VENTURA, Z. et al. Anos 70/80. Da repressão àabertura. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28174

CAPÍTULO 5 Simonal, ditadura e memória:do cara que todo mundo queria ser abode expiatório1

Gustavo Alonso*

*Doutorando em História pela UFF. Pesquisador do NEC. Autor de Quem não tem swingmorre com a boca cheia de formiga, no prelo pela Editora Record, e “A modernidade e odiscurso: inovação estética e legitimação da Tropicália”. In: Daniel Aarão Reis e Denis Rolland(orgs.). Modernidades alternativas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28175

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28176

Começo a entender o porquê da reação dos jovens, o porquê desuas atitudes, o porquê de seu protesto. Com relação à músicabrasileira, os jovens têm protestado muito. Mas, observem, são es-tranhos os caminhos que percorre a nossa música popular. Estra-nhos? Às vezes chega a me parecer contrassenso!2

WILSON SIMONAL (24/7/1967)

No final de 1971 o cartunista Henfil publicou no jornal O Pasquim umapágina com os quadrinhos do personagem Tamanduá. Tratava-se, segundoo próprio cartunista, da “besta do apocalipse que assola nosso país”. Era naverdade um ser que vagamente lembrava o animal do título. A “besta” tinhauma tromba que sugava os cérebros dos apologistas da ditadura e depois oscuspia, de forma que pudéssemos ver o que havia em suas cabeças. Em se-tembro do mesmo ano o Tamanduá já havia sugado o cérebro do cantorWilson Simonal, um dos cantores mais populares da época. O objetivo da“besta” era tornar-se um bom cantor por meio da apropriação do cérebrode Simonal. Depois de atraí-lo com uma moeda, deu o bote. Mas não foibem-sucedido na tentativa. O efeito foi que o Tamanduá ficou, num pri-meiro momento, com a língua dura. Logo depois todas as extremidades(dedos, trombas, orelhas) também ficaram duras e apontadas para váriasdireções. Henfil fazia eco ao boato que todos já tinham ouvido: Simonalera dedo-duro da ditadura. Embora já existissem antes de 1971, foi só apartir daquele ano que os boatos se consolidaram no imaginário nacional— e até os dias de hoje. Para o cantor, foi o início do fim. A partir daqueleano O Pasquim começou uma cruzada contra o cantor, catalisando interes-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28177

178

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

ses de diversos setores das esquerdas. O jornal acompanhou a agonia e odeclínio de sua carreira, debochando dele, ironizando-o.

Em novembro de 1971 o Tamanduá novamente encontrou Simonal emseus quadrinhos. Simonal clamava ajuda, pois o “povo” não parava de vaiá-lo quando aparecia em público. Choramingando, o Simonal de Henfil dis-se: “No Teatro Opinião, no Rio de Janeiro, dia 8 de novembro agora, eufui entrando no palco e sendo vaiado! Vaia total de duas horas! Não medeixaram nem falar...” Tamanduá, incrédulo, não compreende: “Não acre-dito, Simonal! Você era tão popular, o Jornal do Brasil publicou sua vida,era um ídolo! Quero ver pra acreditar!” Empurrado para o palco, Simonalse pergunta: “O que o Chico Buarque tem que eu não tenho?” Simonal tentacantar sucessos como “Meu limão, meu limoeiro” e “País tropical”, masnão dá; as vaias não cessam. No entanto, para surpresa do Tamanduá, noúltimo quadrinho começam os aplausos. Em meio às palmas, ovações:“hurra!”, “é isto aí!”, “bravo!”. O Tamanduá comenta sarcasticamente:“Olha aí, Simonal! Agora você conseguiu conquistar o aplauso do povo!”O cantor apontava uma arma para a própria cabeça.

Henfil se apropriara de um episódio real para aumentar o coro contraSimonal. Ele de fato fora muito vaiado no Teatro Opinião em novembro de1971. A partir desse dia foi vaiado muitas outras vezes até a morte em 25 dejunho de 2000, alcoólatra, sozinho. Se a vaia foi o início do fim, a reportagemdo Jornal do Brasil, também citada pelo Tamanduá, foi o auge de uma carrei-ra sempre ascendente. Em 1970, o Jornal do Brasil fez uma longa reporta-gem sobre o cantor que arrastava multidões aos shows. Carismático, cheiode swing, bem-humorado, fanfarrão, pilantra: Simonal era querido por grandeparte do público, embora também tivesse seus inimigos. Diferentemente detodas as outras reportagens já feitas sobre um músico, a do Jornal do Brasilera gigantesca e teve que ser dividida entre as várias edições daquela semana.Entre 24 de fevereiro e 2 de março, matérias sobre o “maior showman doBrasil” estampavam as primeiras páginas do Caderno B. Com textos de SérgioNoronha e entrevistas de Alfredo Macedo Miranda, o título da primeira re-portagem era preciso: “Wilson Simonal: o ‘cara’ que todo mundo queria ser.”3

De forma bastante detalhada, os jornalistas do Jornal do Brasil esmiuça-ram a vida daquele que era o cantor de maior evidência de sua época, talvez

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28178

179

S I M O N A L , D I TA D U R A E M E M Ó R I A

atrás apenas do inconteste Roberto Carlos. Mas o líder da Jovem Guardaparecia viver um certo período de maré mansa depois que se afastou dorock, estilo que o havia consagrado e do qual se tornara o principaldivulgador, e iniciou a busca por novos ares estéticos, aproximando-se damúsica romântica. Simonal, ao contrário, parecia estar no auge da carreira.Desde 1961, quando gravou o primeiro disco de 78 RPM, sua popularida-de só fez aumentar, gradualmente, porém sempre de forma crescente.

Entre 1969-1970, Simonal já tinha uma imagem consolidada, para o beme para o mal. Ele não era ainda o “dedo-duro” do regime, pecha que só “co-lou” de vez a partir de 1971, mas já era o cantor “marrento”, o “crioulometido”, “banqueiro”. Esnobe, sempre tinha algo a dizer, alguma coisa asugerir, a aconselhar. Achava que faltava à MPB uma comunicação mais dire-ta com o público. Pensava que os artistas universitários estavam distanciandoa música do povo por meio de metáforas híbridas, de arranjos difíceis e ino-vações harmônicas e melódicas complicadas. A matéria do Jornal do Brasildeu conta dessa faceta. Das cinco reportagens, duas reproduzem no título aênfase que o cantor dava à sua obra: “Simonal: o charme com a comunicação”e “Simonal: o importante é se fazer entender”. Nessa última reportagem, emplena época de “milagre econômico”, Simonal criticara até o Hino Nacional.Criticou também a nova geração da MPB, egressa dos bancos universitários,pela falta de respaldo popular da arte no país. Mesmo sem formação musicaltradicional, o cantor não perdia a chance de se pronunciar:

O ensino musical no Brasil é falho porque as músicas são chatas. Veja o Hino

Nacional, por exemplo. Ninguém sabe cantá-lo porque ninguém jamais ex-

plicou o que quer dizer aquela letra em português arcaico. Os próprios

músicos, em sua maioria, não sabem tocar além do corretamente. A maioria

entende muito pouco de harmonia. Eu até faço regência da orquestra, por-

que conheço os arranjos e a moçada confia em mim.4

Politicamente, o cantor também dava seus pitacos e discordava de seuspares da MPB, que gradualmente radicalizavam o discurso contra o regi-me. Embora progressista esteticamente, Simonal mostrava-se conservadorem política. Em 1969, em pleno AI-5, o cantor não escondia suas posições:

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28179

180

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Simonal: [Passeata] é um negócio da maior boboquice. Não resolve nada.

Depois que o cara casa, tem família, vai vendo que não tem dessas coisas.

Quando é jovem, acha que passeata, baderna, anarquia resolvem.

Repórter: E a passeata dos intelectuais?

Simonal: Tudo cascata. O cara estava lá porque a [revista] Manchete ia foto-

grafar. O negócio dele era mesmo tomar uns choppinhos. Tenho uma irmã

(sic)5 que dizia que achava passeata um programa diferente. Ia lá, fazia co-

midinha pros rapazes. Estudante tem que estudar.6

No pós-AI-5, quando a MPB firmava-se nas “trincheiras” da luta contraa ditadura, Simonal se afastava dessa perspectiva. Em entrevista ao jornalO Pasquim defendeu seu ponto de vista:

Simonal: Antigamente, quando eu andava empolgado com a esquerda festi-

va, não me envergonho de dizer que já estive meio nessa, sabe como é: a

gente vai estudando, fica com banca de inteligente e pensando que é o tal,

achando que muita coisa estava errada, que tinha que mudar muita coisa...

Tarso de Castro: Hoje você não acha mais que tenha muita coisa errada?

Simonal: Eu acho que ainda tem, só que eu não entendo o porquê que as

coisas estão erradas e quando eu vou discutir não agrido mais as pessoas, eu

procuro propor o meu ponto de vista...7

Ele não estava desamparado em suas opiniões. Carlos Imperial, o gran-de amigo compositor e produtor, manifestou posição semelhante: “Lá pe-los meus 17 anos, tive essa queda natural que todo jovem tem pela esquerda.Participava de reuniões da UNE, fazia comícios, o diabo. Mas foi só umafase e passou, pois logo me dei conta de que era ilusão.”8 Era por essas —e outras — opiniões e sua falta de inibição em proferi-las que Simonal cons-truiu para si uma imagem de arrogante, de defensor da ditadura, do “pretoiludido” com os benefícios do sistema.

Mas, talvez por isso mesmo, o “povo” gostava dele. Na reportagem doJornal do Brasil o “showman” explicou como percebeu que poderia traba-lhar com a imagem do “cara que todo mundo queria ser”:

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28180

181

S I M O N A L , D I TA D U R A E M E M Ó R I A

Eu sou tímido. Sempre tive medo de enfrentar o público, mas precisava

enfrentá-lo para ganhar dinheiro. Um dia fui assistir um filme do Sean

Conery, um desses 007 contra uma chantagem qualquer, na última sessão

de sábado. O cinema estava cheio de gente, não tinha lugar nem no banhei-

ro. Eu tive que ficar driblando uma coluna até o filme acabar. Eu estava certo

de que o cinema estava cheio de mulheres para ver o 007. Mas quando a luz

acendeu eu vi que tinha uma porção de homens. Aí eu me perguntei: como

é que pode? Comecei a descobrir que o 007 faz aquele gênero que todo

homem gostaria de fazer. Ele não é bonito. Faz o tipo machão, mas isso não

é difícil de ser. Conquista todo mundo, bate a torto e a direito. É polícia e

ainda transgride a lei. É um irreverente, um irresponsável. Foi lá na Rússia

e atacou a embaixatriz. Tem reunião e ele chega atrasado, os outros de ter-

no e ele chega de camisa cor-de-rosa com um ar cínico. Todo mundo se pro-

jeta nele. Foi aí que eu senti que dava pé: uma certa irreverência, um certo

cinismo. Ao mesmo tempo uma grande simpatia para todos que estão na

sua. E você acaba sendo aquele cara que todo mundo queria ser.9

Violento, mas capaz de seduzir a todos. Policial e transgressor da lei.Irreverente, debochado, cínico. Simpático, atraente. A definição de Simonalmescla ingredientes autoritários e individualistas com a sedução que essetipo de poder desperta nas pessoas.

Menos de dois anos antes da vaia no Teatro Opinião, o “povo” o aplau-dira. Se em 1970 sua carreira era só aplausos, o que aconteceu em 1971que o marcou tão profundamente, transformando-o em bode expiatóriofavorito de toda uma geração?

A imagem de “marrento”, gozador e fanfarrão nem sempre esteve asso-ciada ao cantor. Quando pequeno, Simonal era uma criança introvertida. Che-gou a sofrer maus-tratos de uma freira no colégio interno sem que sua mãedesconfiasse, pois o filho nada falara. Maria Silva de Castro chamava-o de“pai João” por causa do estilo “caladão” do primogênito. Seu irmão Robertosempre fora mais falante, cheio de amigos. Embora mais novo do que Wilson,Roberto começou a sair de casa mais cedo, encontrava colegas, namorava.Ainda criança, já tocava corneta e logo passou para o sax, dado por um pa-trão de Maria. Abandonados pelo pai, os três viviam com os parcos recursosconseguidos por dona Maria em casas de família da Zona Sul carioca.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28181

182

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

A vida de Wilson só começou a mudar quando entrou para o Exércitoem 1956, grande alegria para a mãe, que tinha esperanças de que o filhoconseguisse alimentação, estudo e exercício físico de forma regular. Masna corporação ele ganhou muito mais do que isso: foi servindo no 8º Grupode Artilharia Mecanizada, no Leblon, que Wilson se tornou Simonal. Co-meçou a tocar corneta na banda e aprender alguns acordes de violão comos colegas. Amadureceu, fez amigos, ganhou soldo, praticou exercícios, virouhomem. A criança introvertida tornou-se o palhaço dos recrutas, popularentre os parceiros e admirado até pelos “generais”. No entanto, houve umdesses superiores que o forçou a pedir baixa em 1958. Apesar disso, nemtudo estava perdido. Depois do Exército , ele sabia as armas que tinha parachegar aos “outros”.

O Exército mudou muito minha personalidade. Quando dei baixa não era

tão babaquara quanto antes. Eu tinha uma porção de complexos porque

era pobre, feio, preto. Embora eu tenha saído por causa de um oficial racis-

ta, foi lá que eu percebi que podia me comunicar com os outros.10

Embora sem sustento regular, Simonal continuou vivendo pelo mundoda Zona Sul, especialmente Copacabana. Aproveitando-se dos contatosestabelecidos na época do Exército, começou a cantar com bandas de rock,calypso, twist, chá-chá-chá, e o que mais viesse pela frente. Sua face “pi-lantra” começou a emergir em meio às necessidades por que passava. Di-versas vezes foi forçado a dormir nas areias da praia à espera do amanhecer,quando havia condução para Areia Branca, bairro de Nova Iguaçu, na pe-riferia do Rio de Janeiro, onde morou no período de vacas magras. CarlosImperial, produtor, disc-jóquei e compositor de grande fama nos anos 1960,o conheceu logo após a saída do Exército. Desde então começou a divulgá-lo como “o maior cantor do Brasil”.

No final dos anos 1950, Simonal apareceu em programas de rádio eTV capitaneados pelo inovador Imperial, que, no afã de divulgar o rockno Brasil, juntou os então jovens Tim Maia, Roberto Carlos e WilsonSimonal no programa Clube do Rock, transmitido para os cariocas às ter-ças-feiras, às 12h45, na TV Tupi. Quando o programa acabou, em 1959,

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28182

183

S I M O N A L , D I TA D U R A E M E M Ó R I A

Simonal voltou à sua vida de bicos e crooner. Disposto a qualquer coisapara viver de música, não faltaram “causos” no início da carreira, comolembra Carlos Imperial:

Certa noite, o baterista de um grupo na boate Mittle não pôde ir trabalhar.

Polivalente, Simonal pegou as baquetas, dizendo-se integrante da banda

Renato e seus Blue Caps, indicado por Imperial. Após o show, o então dono

da boate foi reclamar: “Poxa Imperial, aquele baterista do tal de Blue Caps

é o pior do mundo.” O baterista original do grupo era o Claudinho, um dos

bons da praça, eu sabia. Foi quando o dono da boate, enfezado, disse: “Aquele

crioulo é muito metido a besta. Chegou aqui para substituir o baterista, to-

cou mal e ainda comeu dois pratos de comida.” Logo percebi: “crioulo”,

“botando banca” e comendo pelo almoço e jantar só podia ser um.11

Em meio às boates de Copacabana, Simonal logo percebeu que não po-

deria ficar de fora da Bossa Nova, que gradualmente se impunha como

padrão estético das classes abastadas. Trabalhou como imitador de João

Gilberto na boate Drink e no famoso Beco das Garrafas, onde havia uma

série de boates famosas, conhecidas como o “berço” da Bossa Nova. Mas

ele não se limitou à bossa. Como bom crooner, arranjou também um em-

prego fixo de cantor de rock na Rádio Nacional. Descoberto pela dupla

Luiz Carlos Miéle e Ronaldo Bôscoli, começou a fazer shows em teatros. A

gravadora Odeon, que em 1961 o lançara como cantor de calypso e chá-

chá-chá, resolveu transformá-lo em um novo intérprete de Bossa Nova (mais

um!) e lançou o LP “Wilson Simonal tem algo mais” (1963), logo seguido

por “A nova dimensão do samba” (1964).

Apesar de não serem inovadores, ambos os discos foram bem recebidos e

atingiram um sucesso relativo entre os entusiastas de classe média que tanto

amavam a influência jazzística na música brasileira. A estratégia de usar com-

positores já reconhecidos foi mantida, e Simonal interpretou canções de Carlos

Lyra e Ronaldo Bôscoli, Tom Jobim, Newton Mendonça, Roberto Menescal,

Johnny Alf, Vinicius de Moraes, Baden Powell e Moacir Santos. O repertório

não ia além das clássicas composições da Bossa: “Lobo bobo”, “Nanã”, “Sam-

ba do avião”, “Ela é carioca”, “Garota de Ipanema”, “Balanço Zona Sul” etc.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28183

184

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

O relativo sucesso do cantor de voz aveludada despertou o interesse dasredes de televisão. Apesar de ter durado menos de um ano, entre 1964 e1965, conduzindo o programa Spotlight, na TV Tupi, o cantor desenvol-veu ainda mais sua comunicação com o grande público. Por mais dois dis-cos, “Wilson Simonal”, de março de 1965, e “S’imbora”, de novembro domesmo ano, ele se contentou em ser um ótimo intérprete de Bossa Nova.Seus discos lhe trouxeram respeito no meio musical. Ele se agregava àquelanova juventude tributária da “nova batida” de João Gilberto e das compo-sições de Tom Jobim. A MPB, que começava a ser gestada em 1965, via-secomo herdeira da Bossa Nova, de suas inovações líricas, harmônicas e rít-micas.12 Mas Simonal não se contentou em ser mais um filho da Bossa. Pre-parava-se para um voo mais radical: a Pilantragem.

O marco inicial da mudança na carreira de Wilson Simonal foi a grava-ção de “Mamãe passou açúcar em mim” (Carlos Imperial/Eduardo Araújo— esse último não creditado), em maio de 1966. Fora do seu programatelevisivo um tanto elitista, Simonal se viu livre para novas aventuras. En-trou em contato com Carlos Imperial, antigo amigo e incentivador dos pri-meiros anos, que vinha se destacando como um dos homens dos bastidoresda Jovem Guarda.13 Aproveitando a boa fase de Imperial, Simonal gravouo compacto com a música “Mamãe passou açúcar em mim”, e o sucesso foiimediato. Não era mais um rock iê-iê-iê. Com arranjos de Erlon Chaves, amúsica era sincopada, quase dançante, fundindo vertentes musicais diver-sas. Para além do balanço, a canção era uma ruptura com tudo que Simonalvinha cantando até então. Bastante simples, com referências a canções jáconhecidas (especialmente no começo) e palmas marcando o ritmo, a mú-sica tinha uma letra machista composta por Carlos Imperial. O lirismo daBossa Nova dava lugar ao molejo debochado e controverso:

Mamãe passou açúcar em mim(Carlos Imperial/Eduardo Araújo)

Eu sei que tenho muitas garotas

Todas gamadinhas por mim

E todo dia é uma agonia

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28184

185

S I M O N A L , D I TA D U R A E M E M Ó R I A

Não posso mais andar na rua

É o fim

Eu era neném, não tinha talco

Mamãe passou açúcar em mim (...)

O estrondoso sucesso da canção e a versatilidade do intérprete, já de-monstrada no Spotlight da Tupi, levou a TV Record a contratá-lo. Em 25de junho de 1966, estreou o Show em Si...monal, que contava com LuizCarlos Miéle, Ronaldo Bôscoli, Chico Anysio e Jô Soares na equipe de cria-ção. Curiosamente, o programa estreou no mesmo dia da morte do cantorem 2000, 34 anos mais tarde. Simonal conseguia unir no programa, exibi-do às quartas-feiras à noite, no Rio, e aos domingos em São Paulo, tanto osídolos da Jovem Guarda quanto os artistas da recém-nascida MPB. O pro-grama era um dos poucos abertos às duas vertentes, cujos integrantes cadavez mais se viam como inimigos.

Três meses depois da estreia, em setembro de 1966, ele gravou “Ca-rango”, outra composição de Carlos Imperial, dessa vez em parceria comNonato Buzar.14 Seguindo o mesmo estilo, baseada nos metais, a cançãosincopada “tirava sarro” com carro, mulheres e vida boa. Foi uma das pri-meiras gravações de Simonal ao lado do Som Três, trio formado por Sabáno baixo, Toninho na bateria (ambos egressos do Jongo Trio) e um jovempianista, César Camargo Mariano, grande responsável pelo swing inova-dor e pelas variações harmônicas do novo Simonal. Os novos músicos fo-ram acompanhados por um trio de metais (trombone, trompete e sax) quedava um colorido especial à música, distanciando-se cada vez mais do mar-co inicial da Bossa Nova.

O programa e os shows advindos do enorme sucesso serviram para lapi-dar o novo estilo do intérprete. E, de repente, todo mundo começou a falarem “samba jovem”, termo que também já havia sido dado às canções deJorge Ben. Mas Simonal ia além. Diferentemente da escola bossa-novista,acostumada a plateias pequenas, um estilo cool de cantar, a nova propostabuscava o contato com as massas, as grandes plateias. A música com swingfoi o meio que encontrou para tocar as pessoas, vê-las corresponder à suaapresentação. E, para motivá-las ainda mais, Simonal tornou-se, entre

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28185

186

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

1966/67, um showman, capaz de conduzir um programa ou show comoninguém. O que estava em jogo não eram mais as inovações harmônico-melódicas complicadas da Bossa Nova. A nova música não colocava emquestão a politização como estética, que gradualmente se impunha comodiscurso da MPB, especialmente após 1965. Não. O som buscava um novoolhar para a música popular. Diferentemente da Jovem Guarda, que surgiuimportando versões do exterior, Simonal e Imperial propunham um cami-nho diverso. Para eles a influência estrangeira não poderia ser negada. Seusom buscava uma fusão do som que vinha “de fora” com as tradições mu-sicais já existentes no país, do samba à bossa. Surgia um novo estilo, dife-rente da Jovem Guarda e da MPB. Um novo rótulo apareceu para tentardar conta dessa nova proposta estética: Pilantragem.

Mas o que significava ser pilantra? O pilantra era um sujeito esperto,assim como o malandro do morro, mas sintonizado nas novidades pós-Beatles, na televisão e na moda colorida. Era um cara que buscava se ex-pressar conectando-se com a nova realidade pop dos anos 1960. Umaproposta que visava a integrar a juventude, agregá-la ao novo mundo, nun-ca negá-lo. E esse mundo tornava-se cada vez mais visual, mais televisivo,virtual. No plano musical, a Pilantragem buscava um jeito despreocupadode fazer canções, no qual a espontaneidade seria a tônica do processo. Paraalém de um grande aprimoramento técnico, lírico ou estilístico, a Pilan-tragem valorizava a fusão das tradições, a incorporação de novidades, ocaldeirão de realidades.

Musicalmente, a Pilantragem nasceu influenciada pelo boogaloo, o jazzlatinizado produzido para pistas de dança, metais lounge do Tijuana Brass,o clima latino de Chris Montez e Sergio Mendes & Brazil’66. SegundoCarlos Imperial, o grande articulador do projeto:

O negócio aconteceu assim: Simonal me pediu para inventar uma nova jo-

gada. Sugeri então transformar o samba em compasso quaternário, pois as-

sim o cantor ficaria mais à vontade para se mostrar. Bolamos o estilo e eu

compus então a primeira música da Pilantragem: “Mamãe passou açúcar em

mim.” (...) bolamos que, como o iê-iê-iê estava na onda, o negócio tinha

que ser com guitarras. Criamos então o samba-jovem e nós definíamos: ba-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28186

187

S I M O N A L , D I TA D U R A E M E M Ó R I A

tida de samba e molho de iê-iê-iê. Aí entrou Cesar Camargo Mariano na

jogada com o seu Som 3 e começou a bolar novos arranjos. Nonato Buzar,

amigo antigo e compositor de música tradicional, juntou-se a mim para fa-

zermos músicas juntos.15

Mais do que delimitar um pai fundador, um marco fundamental, o que

se enfatizava na Pilantragem, que defendo aqui como um projeto estético,

é o caráter livre, as múltiplas possibilidades, as diferentes influências. Tra-

tava-se de modernizar a música sem ignorar o passado ou rejeitar o som

estrangeiro. Era estar aberto a novas realidades, sem estar compromissado,

necessariamente, com estruturas inteligíveis, discursos pré-fabricados.

Em novembro de 1966, Simonal lançou o LP Vou deixar cair..., que tra-

zia sucessos já lançados em compactos e algumas novas canções como

“Carango”, “Meu limão meu limoeiro”, “Mamãe passou açúcar em mim”,

“Samba do Mug” e “A formiga e o elefante”. A partir desse disco Simonal

distanciava-se da Bossa Nova, embora nunca tenha parado absolutamente

de cantar o gênero criado por João Gilberto e Tom Jobim. Fazia parte da

Pilantragem recriar antigos sucessos com uma nova roupagem, mais mo-

derna, sincopada.

Não se pode falar da nova música sem mencionar os principais compo-

nentes da proposta estética: a ironia, o escárnio e o deboche. Faziam parte

da Pilantragem o autoexibicionismo, o contar vantagem, a apologia de car-

ros e mulheres. Não à toa, os subtítulos dos LPs de Wilson Simonal eram

tão controversos. Vide a série Alegria alegria de quatro volumes, três dos

quais com subtítulos bem pilantras — vol. 2: Quem não tem swing morre

com a boca cheia de formiga (1968); vol. 3: Cada um tem o disco que me-

rece (1969); vol. 4: Homenagem à graça, à beleza, ao charme e ao veneno

da mulher brasileira (1969).

Indo além da Jovem Guarda, a Pilantragem debochava da música uni-

versitária.16 O negócio era “botar banca”, debochar, ironizar os politizados,

os “intelectualoides”. Devido a essa atitude, Simonal e, especialmente, Carlos

Imperial ficaram tachados como “metidos”. Imperial recorda:

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28187

188

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Tudo começou quando eu trabalhava na TV Record. Todo artista, ao entrar

em cena, era recebido com uma salva de palmas. Só havia mocinho na tele-

visão. Ora, não pode haver mocinho sem bandido. Então me deu aquele

estalo: o bacana devia tentar ser o outro lado, o do vilão. Empenhado nisso,

combinei com o câmera para me pegar sempre com o dedo no nariz, coçan-

do a barriga, cuspindo no chão etc. Minha meta era agredir o público. En-

trevistado por Hebe [Camargo, em 1967], comecei a declarar que o auditório

era ruim, sem gosto, pintei o sete. Como reação normal, que eu esperava,

vieram as vaias. Feliz da vida, com toda a potência da minha voz berrei:

auditório cafona!17

Como afirma Imperial, a “agressão” ao público deve ser relativizada.

Todas as falas dos pilantras eram também um jogo de marketing, muito bem

pensado e articulado. Nas revistas eles apareciam ao lado dos brotos e carrões

que cantavam nas canções. Na TV, faziam propaganda de um estilo escra-

chado de vida. A diversão era superdimensionar o sucesso, ironizar o meio

artístico, sempre sem qualquer compromisso com a política ou a “inteli-

gência” e bastante próximo do mercado. Simonal nunca escondeu essa face

da Pilantragem: “Não gravo disco para receber elogio, eu gravo disco para

vender. Uso a minha arte no sentido comercial. O dia em que eu ficar rico,

muito rico, aí sim eu vou me dar o luxo de fazer disco artístico, mas por

enquanto ainda não.”18

Essa relação mercadológica lastreava uma nova atitude em relação à

música popular. O que estava em jogo era a comunicação com o público,

algo muito caro a Simonal. Com o aval da fama, não se furtava a lançar

prognósticos sobre a música popular:

Eu acredito que um dia a Pilantragem vai passar, mas tem que aparecer uma

coisa melhor em termos de comunicação popular. [...] O meu problema, acho

que o grande problema da música brasileira, foi o problema da comunica-

ção. A música só se comunica com o povo no carnaval.19

Cada vez mais confiante no seu projeto estético, Simonal partia para oataque quando o assunto era a “elitização” da música popular brasileira,

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28188

189

S I M O N A L , D I TA D U R A E M E M Ó R I A

batendo de frente com artistas de sua geração. Com razão, via nos “festi-vais da canção” uma manifestação elitista, distante do povo:

Olha, “Disparada” pode ter sido um grande sucesso, mas até agora o gran-

de público não sabe de que se trata. Ouve e não entende. (...) Acho também

que deve haver dois festivais. Um da canção popular e outro da música po-

pular. Para o festival da canção popular, o júri devia ter Lyrio Panicali,

Vinicius de Moraes e Ronaldo Bôscoli. Para o festival da música popular:

Denis Brean, Abelardo Chacrinha Barbosa e Milton Miranda, da Odeon.20

Ao mesmo tempo que defendia a modernização musical, Simonal e os

pilantras se posicionavam de maneira radicalmente contra o que chama-

vam de “inteligência”, ou seja, os universitários e suas canções por demais

intelectualizadas, distantes do povo. Segundo Simonal:

O grande perigo das artes no Brasil são as pessoas comprometidas com a

inteligência. Umas pessoas preocupadas em fingir que são intelectuais. Elas

tumultuam a verdade. [...]

Não gravei “Juliana” (Antônio Adolfo/Tibério Gaspar) porque não en-

tendi direito o que o Tibério Gaspar [o letrista] quis dizer. Uma letra muito

subjetiva. “Botão de rosa, perfumosa e linda”... Tá vendo? Perfumosa. Esse

negócio de neologismo já encheu. Num Guimarães Rosa, escritor cre-

denciado, a gente respeita. Agora, chegam esses rapazes e ficam fazendo

neologismo — é meio audácia. Tem que ter bagagem para criar algo novo.21

Ele via nos festivais uma manifestação elitista, cujas músicas não como-viam o povo, a não ser a classe média e os universitários. Julgava-se maiscapaz de atingir o “povo”:

[...] o que aconteceu é que eu criei fama de antipático e até hoje tem gente

que diz que sou “banqueiro” só porque não faço o tipo marginal. Por quê?

Porque a imagem do negro é aquele tipo marginal. Preto tem que ficar to-

cando pandeiro, caixa de fósforo, ficar fazendo palhaçada no palco. Como

eu faço um gênero que o pessoal acha que é gênero de branco, então dizem

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28189

190

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

que fiquei pretensioso, sou metido a importante. Isso é uma consequência

do preconceito racial e a gente tem que denunciar. Mas são os brancos tam-

bém que acham que eu sou o maior showman, essas coisas todas.22

Para além do caráter comercial de sua obra, Simonal era um tipo pro-gressista esteticamente. Para ele, a “boa” música não deveria ser “resgata-da”, como queriam os puristas do samba e das músicas folclóricas e nativistas.Simonal repudiava a imagem do negro sambista “da caixinha de fósforo”,que cultivava raízes no intuito de mascarar as próprias limitações:

Simonal: Eu até faço uma divisão um pouco difícil e digo para o povo can-

tar. Mas é que o público se sente premiado em cantar a música que eu can-

to, pois sabe que eu sou um bom cantor. Sabe que eu tenho raízes jazzísticas

que americanizam a música, mas eu nunca neguei isso.

Repórter: Você não acha que isso [americanizar a música] é vigarice?

Simonal: Vigarice é ficar cantando música tradicional com caixa de fósforo

em mesa de bar.23

Debochado, controverso, polêmico: Simonal era tudo isso. E no entan-

to em 1969/1970 era o cara que “todo mundo queria ser”. Em 25 de agos-to de 1969 aconteceu talvez o episódio mais relembrado de toda a carreira.

Naquele dia houve um show no Maracanãzinho com a presença de vários

artistas famosos na época, dentre eles Gal Costa, Maysa, Os Mutantes, Jor-

ge Ben, Marcos Valle, Milton Nascimento, Peri Ribeiro, Gracinha Leporacee o conjunto Som três. Patrocinados pela Shell, todos fariam um breve show

preparando o público de mais de 30 mil pessoas para o astro da noite, Ser-

gio Mendes. Simonal seria o último a se apresentar, antes da entrada do

músico brasileiro de maior sucesso internacional na época. Sergio Mendesconstruíra no exterior uma sólida carreira de divulgador da Bossa Nova.

Sergio fora trazido ao Brasil pela Shell, que buscava divulgar a marca por

meio da música brasileira.

Tudo corria bem até Simonal entrar no palco. Ao cantar sucessos Simonalcomandou o público com carisma e sedução, fazendo o coro acompanhá-

lo, imitá-lo, dançar com ele. Um de seus grandes sucessos levantou ainda

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28190

191

S I M O N A L , D I TA D U R A E M E M Ó R I A

mais o público: “Meu limão meu limoeiro”, versão de Carlos Imperial parauma tradicional canção americana. Animado, dividiu o público em vozes ecomandou a festa: “Agora os 10 mil da direita! Agora os 10 mil do meio!Agora os 10 mil da esquerda!” O episódio marcou tanto que permaneceuna memória de grande parte daquela geração, mesmo daqueles que nãoestiveram lá no Maracanãzinho, tamanha foi a repercussão na imprensa. OPasquim chegou a dizer que Simonal “jantou” Sergio Mendes.24 Ao deixaro palco, Simonal chorou de emoção ao ouvir o povo gritar seu nome. SergioMendes não queria entrar, visto que a plateia estava seduzida pelo maior“showman” do Brasil e não parava de gritar: “Simonal! Simonal!” Eleretornou e continuou seu show particular. E ainda teve que cantar algunsnúmeros com Sergio Mendes até o público se contentar somente com a atra-ção principal. Depois desse dia, a Shell, patrocinadora do show, contratouo cantor como garoto-propaganda da marca. Simonal aparecia em diversosjornais, revistas e até na televisão proferindo os slogans da multinacional.

No mesmo mês de agosto lançou um dos seus maiores sucessos: “Paístropical”, de Jorge Ben. Quando recebeu a música, Simonal resolveu fazeralgumas modificações, transformando-a em dançante, já que a versão ori-ginal era um sambão. Foi assim, sem sucesso, que Maria Bethânia pela pri-meira vez cantou a canção na boate Sucata em 1969. Outra modificaçãointroduzida por Simonal foi cantar só as primeiras sílabas das palavras nasegunda parte da música: “Mó... num pa tro pi/Abençoá por Dê/E boni pornaturê...” Na época, Simonal aproveitou para abraçar ainda mais a campa-nha da Shell:

Mudei melodia, harmonia e acrescentei aquela parte que diz “patropi” e “esta

é a razão do algo mais’’. Na época eu tinha um contrato com a Shell e apro-

veitei para fazer merchandising. Hoje o Jorge canta igual a mim. Se eu gra-

vasse Jorge Ben hoje, eu estaria fazendo cover de mim mesmo.25

O ano seguinte, 1970, concretizou a imagem do cantor bem-sucedido,mas intimamente ligado ao poder. Entre janeiro e fevereiro, ao lado de Jor-ge Ben, representou o Brasil no Festival Internacional de Cannes, na RivieraFrancesa.26 Como a Shell também era a patrocinadora da Seleção Brasileira

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28191

192

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

de Futebol, Simonal foi escalado para campanhas publicitárias com os cra-ques da época. No meio do ano seguiu para o México com a seleção dePelé, Gerson, Rivelino, Tostão e companhia. Fez show em várias cidades,condecoraram-no “cidadão de Vera Cruz”, serviu de embaixador da músicabrasileira, cantou as alegrias do país tropical da ditadura. Era o auge.

Empolgado com as comemorações oficiais pela conquista do tricam-peonato, gravou duas canções que marcaram seu posicionamento pró-regi-me. A primeira, “Brasil, eu fico”, composição de Jorge Ben, era agressiva:

(...)Este é o meu BrasilCheio de riquezas milEste é o meu BrasilFuturo e progresso do ano dois milQuem não gostar e for do contra

Que vá pra...

Lançada no mesmo compacto, em dezembro de 1970, a canção “Quecada um cumpra com o seu dever” é uma das raras incursões de Simonalno mundo da composição:

Seja no esporte, medicina, educaçãoCada um cumpra com o seu deverSeja no trabalho, no governo, na cançãoCada um cumpra com o seu deverSeja sua tia, seu amigo, seu irmãoCada um cumpra com o seu deverSeja brigadeiro, cabo velho, capitãoCada um cumpra com o seu deverOlha o mundo, olha o tempoOlha a chuvaE se você entra na chuva você tem que se molharE se abraçar com o seu dever(...)Pé de chinelo, classe média, figurão

Cada um cumpra com o seu dever

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28192

193

S I M O N A L , D I TA D U R A E M E M Ó R I A

Simonal logo sofreu com as patrulhas ideológicas quando lançou essecompacto duplamente ofensivo. E, como “quem entra na chuva tem que semolhar”, deu explicações bem ao seu estilo:

Aquelas músicas que eu gravei — “Brasil, eu fico” e “Cada um cumpra como seu dever” — não são músicas comerciais, são nativistas. Eu sou brasilei-ro, não tenho vergonha de ser, e fico na maior bronca quando vejo um caradizendo que pega mal dizer que é brasileiro aí fora. Essas músicas forampara denunciar a falta de crédito do pessoal no Brasil. O que eu digo, quan-do viajo pro exterior é: “Eu, modéstia à parte, sou brasileiro”. (...) O Brasildurante muito tempo foi desgovernado, a administração foi má, todo o es-quema era devagar, não era funcional. Se os militares estão aí e você nãogosta deste regime de exceção, o que você deve fazer? Trabalhar para esteregime mudar no futuro: não ficar tumultuando com anarquia, não ficar degozação, não ficar desacreditando antecipadamente. Para mim não importaquem é que está governando. Se todo brasileiro meter na cabeça que temque fazer o melhor, o Brasil vai dar um banho.27

De fato, ele parecia condensar na sua atitude valores já arraigados nasociedade brasileira: a festa, a fanfarronice, a picaretagem, a irreverência.Esbanjador, expansivo, debochado, vencedor: ele representava mais do queninguém o brasileiro engajado no “milagre econômico”. Enquanto oshowman apostava nessa atitude, a MPB caminhava cada vez mais parao caldeirão político da segunda metade dos anos 1960.

Em 1965, quando foi criada a “sigla” MPB, seus integrantes apostavamnas matrizes estéticas da Bossa Nova unidas ao samba tradicional, de mor-ro. Os universitários, cada vez mais interessados nas “raízes” da culturanacional, subiram as favelas em busca da tradição “perdida” do samba.Encontraram cartolas, cavaquinhos, pandeiros e os incorporaram ao seupanteão. Espelharam-se no malandro do morro, no favelado resistente àsremoções. A partir da tradição do samba e da modernidade da Bossa Nova,a MPB construiu para si a ideia de que era produtora de músicas de “qua-lidade”, “bom gosto”.28 Essa ideia frequentemente é associada ao argumentopolítico da resistência ao regime. É difícil para os memorialistas da MPB (etambém para os historiadores, jornalistas e pesquisadores em geral) contar

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28193

194

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

essa história sem se basear nesses dois pilares. Ambos formam a identidadegradualmente forjada ao longo das décadas de 1960 e 1970.

A ideia de que a MPB afiava seu discurso contra a ditadura, especial-mente entre os anos 1965-1968, deve ser relativizada. Quase sempre ou-vida como trilha sonora do período, reflexo do acirramento político,algumas canções ficaram marcadas nos ouvidos daquela geração: “Carcará”(1965), “Alegria, alegria” (1967), “Roda viva” e “Pra não dizer que nãofalei de flores (Caminhando e cantando)” (1968) são exemplos quase sem-pre citados. O ano de 1968 é quase sempre visto como o clímax da con-testação ao regime. No entanto, por meio de pesquisa em arquivos devendagem de discos, constatei que grande parte dos compradores passa-va ao largo do debate “principal” daquele ano: tropicalistas x música deprotesto. Segundo os arquivos do Ibope,29 Roberto Carlos continuavacomo o rei inconteste dos brasileiros. Seu disco do ano (O inimitável) forao mais vendido. O intérprete Agnaldo Timóteo teve a segunda maior ven-dagem de LPs e compactos de 1968. Um dos discos conceituais da músicabrasileira, Tropicália ou panis et circensis (1968), nem aparece na lista dos20 mais vendidos daquele ano. Aliás, 1968 parece ter sido o ano de RobertoCarlos, Paulo Sérgio e Agnaldo Timóteo, se nos limitarmos ao arquivo devendagem de discos.30 Isso, à primeira vista, me pareceu estranho, pois1968 é tido pela memória da MPB como central no embate entre tropi-calistas e a música de protesto. Foi o ano de “Pra não dizer que não faleide flores”, de Geraldo Vandré, e “É proibido proibir”, de Caetano Veloso.No entanto, essa trilha sonora não dá conta do que grande parte da socie-dade ouvia na época. Se hoje a MPB é trilha sonora do período, isso sedeve à hegemonia da memória da resistência que vê no campo culturaluma das trincheiras da luta contra o regime.31

Essa memória, criada no calor dos debates dos anos 1960/1970, expan-diu-se pela década seguinte. É sobre os artistas da MPB a quase totalidadedas obras acadêmicas e jornalísticas sobre as músicas do período.32 Apesarde ser bastante importante quantitativamente, qualitativamente essa biblio-grafia reproduz em grande parte os valores já incorporados em grande par-te da sociedade, ou seja, a exaltação da MPB como uma “trincheira” naluta contra os ditadores. Essa é a razão pela qual Simonal sempre foi uma

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28194

195

S I M O N A L , D I TA D U R A E M E M Ó R I A

nota de rodapé nas memórias, nos textos jornalísticos, nas dissertações eteses acadêmicas desde então. Ele simbolizou para a memória coletiva um“traidor”, pois a simples menção ao seu nome não cabe no discurso da re-sistência.33 Simonal parece ter “fundido a cuca”, para usar uma expressãoda época, daqueles que gostam de se lembrar do período quase sem crítica.

Já na época, aqueles que perceberam o caminho que Simonal trilhavacriticaram sua trajetória, antes mesmo do boato de “dedo-duro” se consoli-dar. Vários artistas demarcaram que não gostavam nem um pouco daPilantragem. Outros, embora reconhecessem sua bela voz, achavam que ocantor havia se perdido. Embora a maioria dos artistas reconhecesse seutalento, criticava as “besteiras” que cantou ao longo da carreira. Juca Chaves,Chacrinha e Jô Soares o consideravam o melhor cantor do Brasil.34 Viniciusde Moraes chegou a dizer que daria nota 10 para o cantor que poderia serse não tivesse aderido à “bobagem” da Pilantragem.35 Roberto Carlos o con-siderava um dos três maiores cantores do Brasil, ao lado do “deus” daquelageração, João Gilberto. Mas o Rei fazia ressalvas: “Simonal é muito bom,[mas] eu não estou me referindo ao gênero Pilantragem, não, mas ao Simonalcomo cantor, cantando outro tipo de música.”36 A opinião preconceituosasoa estranha na voz de Roberto Carlos, já que ele próprio sofreu persegui-ção dos puristas da música popular contrários ao iê-iê-iê brasileiro. NaraLeão também ridicularizava a Pilantragem,37 assim como Norma Benguell:“Nota 3 para a pilantragem e 5 para Simonal, pois ele é musical paca, masfica naquele negócio de meu limão meu limoeiro, não dá.”38

Antes de ser o “dedo-duro”, Simonal já tinha uma imagem de arrogan-te, “metido” e comercial. Essa construção, já da época, transformava o cantornum bode expiatório comercial. Embora não tenha sido o único a fazerpropaganda, frequentemente sua trajetória é contada como uma carreirabem articulada com o mercado, o que não deixa de ser verdade. Mas tam-bém é certo que a MPB construiu a própria ideia da resistência cultural seapropriando do mercado. Vale lembrar também que vários artistas fizerampropaganda de televisão, apareceram em jornais e revistas: Juca Chavesvendia uísque;39 o conjunto Antonio Adolfo e a Brazuca vendia tecidosSudamtex;40 Ziraldo desenhava cartuns para o Banco da Lavoura e para aFord;41 as cantoras Cynara e Cybele e o MPB-4 vendiam sapatos da marca

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28195

196

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Alpargatas.42 Até Chico Buarque entrou na onda. Em dezembro de 1968ele apareceu, com o pai, o historiador Sérgio Buarque de Hollanda, numapropaganda do Banco da Indústria e Comércio de São Paulo!43

No entanto, biógrafos, memorialistas, acadêmicos, jornalistas preferemsilenciar sobre essa aproximação com o mercado. Parece que uma das pio-res acusações que se podem fazer à memória de um artista da MPB é dizerque teve relações mercadológicas. Não é por outra razão que as biografiasde artistas da MPB procuram calar a respeito dessas questões. Regina Zappasimplificou a trajetória e a personalidade de Chico Buarque ao transformá-lo num guerrilheiro antimercado:

[Ele] nunca se preocupou com autopromoção. Seu assessor de imprensa,

Mario Canivello, diz que nem ousa propor estratégia alguma, porque Chico

é o próprio antimarketing. Não faz concessão ao mercado. Faz a música que

quer fazer e que acha de boa qualidade.44

Em seu livro de memórias, o compositor Sérgio Ricardo acusa RobertoCarlos de ter entrado no “jogo comercial”. Sérgio buscava, obviamente,ofender Roberto Carlos. Nada mais condizente com o objetivo do livro,que, segundo o próprio autor, é libertar-se de um pouco de sua “indigna-ção”.45 Mas, no que diz respeito à raiva contra a relação música-mercado,Sérgio Ricardo não está sozinho. José Novaes, defensor de uma tese acadê-mica sobre a melancolia na obra de Nelson Cavaquinho, acha que indústriacultural e ditadura falam a mesma língua:

Quando a censura e a repressão violenta dos governos da ditadura militar

se unem às pressões e aos cerceamentos impostos pela indústria cultural,

estruturada sobre o poder do dinheiro, há que ter jogo de cintura para se

poder segurar a barra e manter uma posição digna em defesa da cultura

popular, a ser preservada.46

Se na época a imagem de Simonal era a do artista “marrento”, “crioulometido” e mercadológico, um episódio em 1971 transformou-o em “dedo-duro” do regime.47 O que aconteceu?

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28196

197

S I M O N A L , D I TA D U R A E M E M Ó R I A

Com problemas em sua empresa, Simonal via o dinheiro ir ralo abaixo.A Simonal Comunicações fora criada em 1969 para gerenciar a própriacarreira com o dinheiro recebido pelo contrato com a Shell. Simonal tor-nara-se um dos cantores mais caros do país e resolveu cortar aproveitadoresindiretos de seu sucesso. Evitando os empresários, montou uma empresaque visava a gerenciar o auge da fama. Em 1970, o cantor Ivan Lins e omaestro Erlon Chaves também foram empresariados pela companhia. Masa empresa não dava o lucro esperado, e Simonal começou a desconfiar dosempregados. Cabeças começariam a rolar.

O chefe do escritório da Simonal Comunicações, o contador RaphaelViviani, foi demitido pelo cantor, que o responsabilizara pelos desfalques eprejuízos na empresa da ordem de 100 mil cruzeiros. Por sua vez, Vivianiacusava Simonal de não pagar o 13o salário e férias, motivo pelo qual mo-via um processo trabalhista na 17a Vara do Estado da Guanabara.48 Mas asituação não se resolveria de forma legal.

Na noite de 24 de agosto de 1971, o Opala do cantor, dirigido por seumotorista, Luiz Ilogti, estacionou em frente ao prédio do contador, na RuaBarata Ribeiro, 739, em Copacabana. Os policiais Hugo Corrêa Mattos eSérgio Andrade Guedes saíram do carro, passaram pela portaria e bateramna porta do apartamento de Viviani. A mulher, Jacira, atendeu, e um doshomens apresentou identidade do Dops.49 Viviani foi levado até o escritó-rio da Simonal Comunicações, na avenida Princesa Isabel, 150/404, tam-bém em Copacabana. Diante de Simonal e dos policiais, negou os desfalques.Foi então levado a uma dependência policial, onde os interrogatórios co-meçaram. Segundo reportagens da época, o contador disse ter sido tortu-rado com um aparelho parecido com um telefone, com dois fios de pontasdescobertas. O sequestrado foi então obrigado a segurar nas pontas, en-quanto um policial girava uma manivela, fazendo-o tremer:

[O policial] ordenou que todos saíssem da sala porque eu confessaria o fur-

to em particular. Sob coação, terminei dizendo que trabalhava há dez meses

para Simonal. Depois de fevereiro deste ano comecei a subtrair quantias de

400 a 500 cruzeiros semanalmente. Fui obrigado a escrever a confissão.

Posteriormente, já pela madrugada, o policial chamou Simonal para que eu

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28197

198

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

falasse na sua presença. Como o desmentisse, fui atacado com socos e pon-

tapés. De manhã, finalmente, assinei o depoimento, que começava com um

relato de minha vida pregressa. No final do interrogatório, constava minha

confissão sobre o desfalque do Simonal.50

Sob pressão, Viviani redigiu uma carta de próprio punho na qual con-

fessou ter gastado o dinheiro em “noitadas com bebidas e mulheres”.51 Li-

berado na manhã do dia 26, o contador voltou para casa. Sua mulher ficou

horrorizada com o ocorrido e o acompanhou à 13a DP, em Copacabana,

para registrar o sequestro e a extorsão comandados pelo cantor. A infor-

mação vazou para a imprensa. Viviani expôs uma faceta que o regime pro-

curava esconder: a tortura. Não custa lembrar que a ditadura negava a todo

custo a existência de tais práticas no país. Afinal, como anunciava uma re-

portagem de capa da revista Veja no início do governo Médici, “O presi-

dente não admite torturas”.52 Por isso mesmo, o rebuliço tomou conta dos

meios de comunicação.

O sequestro de Viviani abriu uma ferida. O tema tortura gerou proble-

mas entre as diferentes instituições do regime. Delegacias de polícia civil

cuidavam da repressão a pequenos furtos, roubos, assaltos, sequestros, en-

fim, crimes sem conotação política. Para crimes políticos, como ações ar-

madas contra o governo, roubos de armas e dinheiro público, assaltos a

banco feitos por organizações guerrilheiras, o órgão responsável pela re-

pressão era o Departamento de Ordem Política e Social, o Dops. Institu-

cionalmente, Dops e delegacias civis eram órgãos distintos, que possuíam

missões diferentes.53 Viviani foi à delegacia de Polícia Civil reclamar que

tinha sido sequestrado justamente por achar que o crime cometido era um

delito comum, ou seja, sem conotação política. Não estava configurado,

nem para o próprio Viviani, que uma questão “política” estava em jogo.

O problema aconteceu quando Viviani acusou Simonal e seus amigos. Esses

eram policiais do Dops, que deveriam estar comprometidos com os “crimes

do terrorismo”, ou seja, com a repressão à luta armada. Não cabia ao Dops

resolver problemas de ordem particular, desfalques em empresas, roubos e

sequestros comuns. Por que o Dops se envolveria em um crime comum?

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28198

199

S I M O N A L , D I TA D U R A E M E M Ó R I A

Ao ser chamado para depor na 13a DP, Simonal negou que tivesse se-questrado o contador. Afirmou que vinha sofrendo ameaças e extorsões deorganizações terroristas desde que despedira Viviani. Quando começou aser ameaçado, dirigiu-se ao Dops e prestou queixa. Como prova, citou opedido de proteção feito aos policiais do Dops apenas alguns dias antes.De fato, durante a pesquisa encontrei um documento intitulado “Termo dedeclarações que presta Wilson Simonal de Castro”, datado de 24 de agostode 1971, no qual o cantor relata aos inspetores do Dops, Mario Borges eHugo Correa Mattos, que vinha sofrendo ameaças de terroristas que supu-nha serem oriundas do próprio escritório. O datilógrafo redigiu:

O declarante desde o dia 20 de agosto do corrente vem recebendo no seu

escritório e em sua residência telefonemas anônimos os quais sempre amea-

çam de sequestro a sua pessoa e seus familiares se não fosse feita uma certa

injunção com o possível grupo subversivo (...) Evitou por todos os meios e

modos atender ao telefone bem como manter diálogo com o anônimo; que

o declarante [tendo] permanecido os últimos três dias no Rio, atendeu por

duas vezes o anônimo o qual em todas as duas comunicações telefônicas foi

taxativo quanto as suas ameaças dizendo: Se você não arrumar o dinheiro

que a nossa organização deseja, além do “sequestro” de sua pessoa ou de

uma pessoa da família, nós faremos divulgar elementos em nosso poder

quanto a uma possível fraude em suas declarações de imposto de renda e no

pagamento do INPS.

Que o declarante não vinha dando importância aos telefonemas por

pensar tratar-se de alguma brincadeira, porém o tom ameaçador com que

era feita essa nova ameaça e semelhança de voz do anônimo com a do seu

ex-empregado Raphael Viviani o levaram aqui comparecer para pedir auxí-

lio (...) visto a confiança que deposita nos policiais aqui lotados e aqui coo-

perar com informações que levaram esta seção a desbaratar por diversas vezes

movimentos subversivos no meio artístico (grifo meu).54

Como se vê, o próprio Simonal diz que ajudou a “desbaratar movimen-tos subversivos no meio artístico”. E achava que sofria represálias por cau-sa de sua atitude. Um dia antes do sequestro de Viviani, Simonal acusavaalguns de seus ex-funcionários:

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28199

200

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

o declarante acha provável partir tais ameaças de Raphael Viviani ou de

Walberto Camargo Mariano e de Jorge Martins, os dois primeiros afastados

de seu escritório por incapacidade profissional e adulteração de documento

e o terceiro seu ex-motorista particular também afastado e que presta serviços

ao Sr. João Carlos Magaldi, o qual é dono de uma firma de promoções jun-

tamente com o Sr. Ruy Pinheiro Brizolla Filho, também afastado do escritó-

rio do declarante.55

O curioso é que a declaração de Wilson Simonal ao Dops data de 24 deagosto de 1971, exatamente um dia antes da confissão forçada de RaphaelViviani na mesma instituição. Ainda, ela foi feita diante dos mesmos policiaisque na noite seguinte forçaram o contador a assumir o desfalque. Não hácomo saber se esse “termo de declarações” foi forjado a posteriori de formaa inocentar o cantor, embora isso não seja improvável. Mais importante doque a veracidade do documento é que ele tenta isentar o cantor associan-do-o ao regime:

O declarante, quando da revolução de março de 1964, aqui esteve ofere-

cendo seus préstimos ao inspetor José Pereira de Vasconcellos. Quando apre-

sentava o seu show De Cabral a Simonal [durante o ano de 1969] no Teatro

Toneleros foi ameaçado de serem colocadas bombas naquela casa de espetá-

culos e [que, por isso,] solicitou a proteção do Dops para sua casa de espe-

táculo, o que foi feito e nada se registrando de anormal; (...) o declarante

acha que tais ameaças são feitas visto ele ser o elemento de divulgação do

programa democrata do Governo da República; que o declarante esclarece

que está pronto a colaborar mais uma vez com esta seção no intuito de se-

rem apurados totalmente os fatos aqui apresentados56 (grifo meu).

Como se vê, é nesse “Termo de declarações” que surge o Simonal “dedo-duro”. Teria sido essa declaração forjada para que o julgamento se desse deforma favorável ao cantor? Tudo leva a crer que sim. Afinal, os prováveisfalsificadores inventaram até uma desculpa para o motorista e o carro deSimonal aparecerem na cena do crime:

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28200

201

S I M O N A L , D I TA D U R A E M E M Ó R I A

o declarante solicita às autoridades que apurem o fato, que procurem fazê-

lo da melhor forma possível quanto às pessoas aqui citadas, pois trata-se de

mera hipótese, e ao mesmo tempo coloca todos os meios disponíveis à dis-

posição (sic) desta seção, inclusive seu carro e motorista, por saber das difi-

culdades de meios de transporte que vem atravessando o Departamento de

Ordem Política e Social (Dops).57

Quando foram chamados para depor, Simonal e seus amigos policiaistiveram que explicar por que levaram Viviani para as dependências do Dops.Para justificar tal ato, eles talvez tenham inventado que o contador era mem-bro da luta armada. Isso explicaria o motivo pelo qual o Dops se envolveuna prisão do contador. Tratava-se, assim, de averiguar se Viviani tinha ounão ligação com organizações de luta armada.

Simonal realmente foi “dedo-duro” ou essa foi a forma encontrada paraaliviar a pressão do momento? Um dos policiais envolvidos no sequestrodo contador defendeu a segunda tese. Em carta secreta, de circulação in-terna do Dops, o policial Mário Borges (superior direto dos dois policiaisque sequestraram Viviani, chefe da Seção de Buscas Ostensivas — SBO)tentou defender o cantor, colocando-o como aliado das forças de repres-são do regime:

A quem desejam atingir? Ao Dops? A Wilson Simonal? Sim, ao Dops na sua

estrutura, por intermédio de elementos infiltrados na imprensa e simpati-

zantes dos movimentos que tanto combatemos; a Wilson Simonal, visto ser

o mesmo no meio artístico homem independente e livre de qualquer

vinculação às esquerdas, havendo ainda a possibilidade de elementos cor-

ruptos que vicejam na nossa imprensa tentarem contra o mesmo as armadi-

lhas da nefasta e jamais esquecida imprensa marrom, devendo tal fato render

grossas “propinas” a título de “cala-boca”, com o fito de cessarem as difa-

mações, os escrachos e as acusações infundadas. Aqui ficam as verdades e,

como sabe V. Sa., jamais foi qualquer funcionário desta seção contratado

por quem quer que seja para servir de revanche ou amedrontar quem quer

que seja (sic). É o que cabia informar.58

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:28201

202

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Como Simonal era, aos olhos do Dops, um “homem independente elivre de qualquer vinculação às esquerdas”, o apoio ao regime serviria aseu favor diante do juiz. Simonal e seu motorista foram indiciados pelodelegado Ivã dos Santos Lima. O processo oriundo da acusação de Vivianibaseava-se em “constrangimento ilegal e sequestro”.59 Para poder indiciaros três policiais envolvidos (os inspetores Hugo Corrêa de Mattos e SérgioAndrade Guedes e o chefe de ambos, Mário Borges), o delegado enviouuma cópia do inquérito ao Dops, a fim de que fosse apurada a culpabili-dade dos policiais em inquérito administrativo. Além do julgamento in-terno da corporação, os dois policiais foram julgados em júri civil, com ocantor e o motorista.

O julgamento foi realizado três anos depois. A sentença final foi lida em11 de novembro de 1974 pelo juiz João de Deus Lacerda Menna Barreto.O argumento usado por Simonal e seus amigos, de que o cantor vinha so-frendo ameaças terroristas, foi útil aos réus. A repressão às esquerdas eraapoiada pelo Judiciário. O próprio juiz, na sentença final, concordou coma tese de que a luta contra o terrorismo era prioridade do regime:

Na verdade, a ordem de mandar buscar a vítima a fim de inquiri-la sobre

fatos que a tornaram suspeita de atividades subversivas estava revestida de

toda legitimidade.60

Que Wilson Simonal de Castro era colaborador das Forças Armadas e

foi informante do Dops é fato confirmado quer pela sua própria testemu-

nha de defesa, quer pelo terceiro acusado [Mário Borges] (...)

Que recebia telefonemas ameaçadores de pessoas que supunha ligadas

às ações subversivas também é matéria pacífica, pois são inúmeros os depoi-

mentos nesse sentido. Entretanto, nenhum desses fatos pode, de algum modo,

justificar a ação delituosa dos réus Hugo Corrêa de Mattos e Sérgio Andrade

Guedes.61

Essa primeira parte da sentença final dá a entender que se Viviani fossede fato um membro da guerrilha “subversiva”, tudo estaria “revestido detoda legitimidade”. No entanto, de acordo com as investigações, “nada fi-cou apurado sobre subversão contra a vítima”.62 Se o Judiciário brasileiro

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29202

203

S I M O N A L , D I TA D U R A E M E M Ó R I A

legitimava a perseguição à luta armada, o grande problema para os acusadosfoi que o prédio do Dops havia sido usado para questões de crime comume, mais grave ainda, expondo a face da tortura. Embora tenha interpretadoque Simonal fora colaborador do regime, o juiz não concordou com o usodas dependências policiais:

No entanto, apenas ad argumentandum, se se pudesse aceitar a versão dos

réus, de que foram diretamente ao prédio da residência da vítima para o

Dops, ainda assim, e até por isso mesmo, o crime resultaria mais configurado.

Naquela repartição oficial é que foi extorquida do ofendido a declara-

ção onde se confessou responsável por desfalque na firma do primeiro de-

nunciado. (...) A só coação de levar o ofendido para o Dops e exigir-lhe

confissão de fato sem relação com a atividade normal do órgão, mas visan-

do exclusivamente ao interesse do acusado Wilson Simonal, já caracteriza-

ria a violência de que fala o caput do Art. 158 do Código Penal.63

Depois de três longos anos de processo, Simonal e os policiais HugoCorrêa de Mattos e Sérgio Andrade Guedes foram condenados a cinco anose quatro meses de prisão, além de um ano reclusos em colônia agrícola emulta. O motorista Luiz Ilogti64 e o chefe dos policiais, Mário Borges65, foramabsolvidos. Quando saiu do tribunal, Simonal mostrou-se irritado com ainsistência dos meios de comunicação por uma declaração. Manifestou todaa decepção contra a imprensa, que cooperava para seu ostracismo: “Nãovem que não tem. Não tem papo, bicho. Vocês são todos uns cascateiros,bicho. Desculpe, bicho. Eu não vou falar nada. Você não me leve a mal,morou? Mas vocês são fogo, bicho.”66

Os advogados de Simonal apelaram da sentença e dois anos mais tardeconseguiram a comutação da pena. A 3a Câmara Criminal do Tribunal deJustiça do Estado do Rio de Janeiro aceitou os argumentos da defesa ereduziu a pena a seis meses de detenção com direito a sursis.67 Ou seja,por causa da sursis, a pena foi suspensa e, na prática, isso foi quase a ab-solvição do cantor. Mas se legalmente o cantor foi praticamente isentadoda pena por sequestro, a pecha de “dedo-duro” nunca mais saiu do ima-ginário popular: a carreira afundou de vez.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29203

204

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

O grande problema do consenso que existe em relação a Simonal é queele foi usado como bode expiatório da MPB. Se Simonal tivera de fato re-lações com o regime, ele não foi o único, embora seja assim lembrado pelamemória coletiva. A bibliografia frequentemente silencia sobre as relaçõesde artistas com a ditadura. Jorge Ben, por exemplo, é o compositor de “Paístropical” (1969) e “Brasil, eu fico” (1971), ambas cantadas por Simonal.Curiosamente, o mesmo Pasquim que fez a cruzada difamatória contraSimonal silenciou sobre o compositor. O jornalista Sérgio Cabral, integranteda “patota” e renomado crítico musical, escreveu em 1971: “Jorge Ben jáchegou àquele ponto em que um novo LP dele a gente compra sem ouvir.(...) Aliás, a propósito das letras de Jorge Ben, acredito que descobri por-que ele tem uma cuca saudável: é por que diz tudo que pensa nas letras.”68

Outros não conseguiram escapar da crítica. A cantora Elis Regina foiperseguida por setores de esquerda e sofreu com as patrulhas ideológicasassim como Simonal. Vaiada quando subiu ao palco do festival Phono 73,69

ela esperou que a manifestação terminasse para começar a cantar a canção“Cabaré”, de João Bosco e Aldir Blanc. A vaia devia-se ao repúdio de gran-de parte do público das esquerdas à participação da cantora nos festejosdos 150 anos da Independência do Brasil um ano antes, em 1972. Elis Re-gina aparecera na TV, em pleno governo Médici, convocando a populaçãopara o Encontro Cívico Nacional, ritual programado para 21 de abril, às18h30: “Nessa festa todos nós vamos cantar juntos a música de maior suces-so neste país: o nosso Hino. Pense na vibração que vai ser você e 90 mi-lhões de brasileiros cantando juntos, à mesma hora, em todos os pontos dopaís.”70 Na hora programada, Elis regeu um coral de artistas — a maioriada TV Globo — cantando o Hino. A conivência da TV carioca, defensorado regime, com o governo irritava vários artistas da MPB, dentre eles ChicoBuarque, que chegou a dizer: “Porque a Globo é prepotente, resolvi meafastar voluntariamente de seus programas. Chegaram a dizer que não pre-cisavam de mim. Eu também não preciso dessa máquina desumana, alie-nante. Então estamos quites.”71 De fato, não é espantoso que as esquerdastenham vaiado a cantora.

O compositor Ivan Lins também foi acusado de “alienado” quando can-tou a canção “O amor é o meu país”, no V Festival Internacional da Canção,

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29204

205

S I M O N A L , D I TA D U R A E M E M Ó R I A

em outubro de 1970, do qual Simonal era presidente do júri. Três anos maistarde, em 1973, o instrumentista Hermeto Pascoal declarou-se a favor dacensura, desde que “bem aparelhada”.72 O cantor de boleros Waldick Sorianoecoava grande parcelas da sociedade quando defendeu a existência de gru-pos de extermínio: “Eu sou a favor do Esquadrão da Morte, acho que nãodeveria terminar.”73 Luiz Gonzaga chegou a formalizar sua candidatura peloPDS em 1980.74 Como se sabe, o PDS foi o partido criado no fim dos anos1970 pelos antigos arenistas, que por anos a fio foram a base institucional dogoverno militar. Até o revolucionário Glauber Rocha, idealizador do Cine-ma Novo nos anos 1950-60, bajulou os militares em 1974:

Eu acho que Geisel tem tudo na mão para fazer do Brasil um país forte, jus-

to e livre. Estou certo de que os militares são os legítimos representantes do

povo. Chegou a hora de reconhecer sem mistificações, moralismos bobo-

cas, a evidência. (...) Chega de mistificação. Para surpresa geral, li, entendi

e acho o general Golbery um gênio — o mais alto da raça ao lado do profes-

sor Darcy [Ribeiro].75

Longe de ser exceção, a adesão ao regime não era incomum. Paulo Césarde Araújo, no livro Eu não sou cachorro não — Música popular cafona editadura militar, aponta que “depois de Getúlio Vargas, que governou oBrasil durante 19 anos, o general Emílio Garrastazu Médici foi o presiden-te da República mais respaldado pela música popular brasileira”.76 Segun-do o autor, diferentes referências da música popular aderiram de uma formaou outra, e em diferentes épocas, ao regime. A lista traz como exemplos osnomes de Marcos e Paulo Sérgio Valle, Zé Kéti, João Nogueira, Sílvio Cal-das, Dom & Ravel,77 a dupla sertaneja Léo Canhoto e Robertinho, LeciBrandão, Miguel Gustavo (tradicional ufanista do regime), Roberto Silva eo bloco Cacique de Ramos.78

A memória coletiva construiu-se opondo artistas e ditadores. Nesse pro-cesso, a memória da resistência tornou-se hegemônica, sem lugar para me-diações. Por exemplo, no mesmo ano em que Chico Buarque disse que aRede Globo era “alienante”, a canção “Carolina”, original de 1968, forautilizada na trilha sonora da novela O casarão (1976). Não era a primeira

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29205

206

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

vez nem a última que as canções do compositor eram incorporadas ao “pa-drão Globo de qualidade”.79 Aliás, não custa lembrar que todos os artistasda MPB, inclusive Chico, eram veiculados por grandes gravadoras, especial-mente Philips, Odeon e CBS. O discurso da resistência ajudou a vender discose a aumentar a acumulação das multinacionais que se beneficiaram do go-verno ditatorial.

Simonal não foi pego para bode expiatório à toa. Como todo “bode”,ele de fato teve ligações com o regime. Ele realmente cantou as alegrias doregime ditatorial. Mas o curioso é que, por isso mesmo, ele era “o cara quetodo mundo queria ser”. E ao se tornar o cara que ninguém queria ser, elecontinuou sendo um símbolo dos desejos da nação. Ao servir de bode ecatalisar todos os ódios para sua pessoa e seus atos, tornou-se um dos alvospreferenciais da memória da resistência, seja por meio de injúrias e ranco-res, seja por meio do silêncio. Não por acaso são poucos os que ainda hojese lembram dos sucessos do cantor. O sucesso nas décadas de 1960/70 foiquase esquecido, grande parte dos jovens de hoje não o reconhece em fo-tos, cartazes ou músicas. A Pilantragem não é reconhecida como um movi-mento estético dos anos 1960. “País tropical” é muito mais associada a JorgeBen do que a Simonal. A memória da MPB foi enquadrada pelo mito daresistência.80 O repúdio a ele ecoa desejos dos brasileiros de se livrarem deuma memória incômoda.

Paradoxalmente, existe um lento e bastante tênue processo de “resgate”de sua obra e memória. Gradualmente vem aumentando o número de pes-soas que, por diversos motivos, procuraram inocentá-lo. Alguns acham queSimonal também foi uma vítima dos anos de chumbo. No intuito de reinte-grar o cantor ao panteão da MPB, muitos transformam-no em vítima.81 Oprodutor Nelson Motta percorre esse caminho ao dizer:

Simonal era negro, o primeiro negro brasileiro a chegar lá, no ponto mais

alto do show business, a vender milhões de discos, a cantar para milhões de

pessoas. E isso também alimentava um intenso e corrosivo ressentimento

nos terrenos pantanosos do racismo à brasileira. (...) Estava liquidado.82

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29206

207

S I M O N A L , D I TA D U R A E M E M Ó R I A

O comediante Chico Anysio defendeu o cantor no julgamento simbóli-co que os integrantes da Comissão Nacional de Direitos Humanos da Or-dem dos Advogados do Brasil (OAB) fizeram em 2000, no qual Simonal foiconsiderado “inocente”. Referendando a posição estavam os cantoresRonnie Von e Jair Rodrigues: “Só podia acusar Wilson Simonal de ter sidodelator do SNI [Serviço Nacional de Informações] quem não o conhecia.Eu até admito que, por absoluta ignorância política, Simonal aceitasse vir aser o diretor-geral do SNI, mas ser um dedo-duro, quem o conhece sabeque ele jamais aceitaria ser.”83 César Camargo Mariano, arranjador e pia-nista de Simonal, também vai na mesma linha:

Quando ele falou que era “amigo dos homens” da ditadura, estava longe do

abuso de poder. Achava bacana ser amigo dos homens, muito pouca gente

tinha noção do que estava acontecendo naquele regime. Até onde sei era no

sentido mais inocente possível. Ele foi o bode expiatório.84

Frequentemente, o racismo e a infantilização política de Simonal servemcomo argumentos para inocentá-lo. Nada mais em desacordo com sua ima-gem “marrenta”, debochada, fanfarrona. É curioso, no entanto, que, parareincorporá-lo à história da MPB, ele tenha que ser inocentado das acusa-ções. Assim, procura-se reabilitar o cantor adequando-o à memória que setem do período, ou seja, de que Simonal, assim como toda a sociedade, foivítima do regime e refém dos desmandos de uma época. Ao se infantilizarSimonal, aproxima-se o cantor de uma memória que vitimiza a sociedade.

O que aconteceu a ponto de transformar o cara “que todo mundo que-ria ser” no sujeito “que ninguém queria ser”? Em parte, isso se deve aosmemorialistas, biógrafos, jornalistas e historiadores que “reconstruíram” ahistória do período. Oriundo dos meios universitários, eles recusaram atrajetória de Simonal repleta de paradoxos: popular, embora tenha sidocantor das elites; negro no mundo de brancos; anti-intelectual em plenos“anos rebeldes”; conservador na política e progressista esteticamente;pilantra e malandro; cínico e debochado num mundo que se levava cadavez mais a sério.85

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29207

208

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Transformado em bode expiatório, ele foi apagado da memória coleti-va. A acusação da “traição” traduz a hegemonia da memória da resistênciatão cultivada pela sociedade quando se trata de se eximir das relações coma ditadura. Ao demarcá-lo e culpá-lo como “dedo-duro”, faz-se um proces-so de simplificação daquela complexa realidade, instrumentalizando-sepoliticamente uma desgraça pessoal em isenção de grande parte da socie-dade. O que se pretende aqui é menos o estudo da desgraça de Simonal.Aqui ela é menos entendida de forma personalizada e condenatória e maisno sentido de se compreenderem os fatores sociais que possibilitaram orepúdio aos seus atos.86 Trata-se menos de apontar o dedo para o odiadotraidor e mais de compreender como a sociedade brasileira construiu umamemória de si mesma, no pós-ditadura, se eximindo das relações que esta-beleceu com o regime, procurando se apoiar na velha tradição dos bodesexpiatórios, que tudo solucionaria. Dessa forma, os flertes de vários artistascom o regime foram esquecidos ou silenciados em nome da coesão da me-mória da resistência. Para os objetivos deste trabalho, importa menos saberse Simonal foi ou não “dedo-duro”. Ser ou não ser resistente, essa versãotropical do dilema shakespeariano, é pouco relevante aqui. Mais importantefoi mapear a representatividade da memória “heroica” da resistência.

O caminho que percorri não foi o de fazer a apologia da história heroicada MPB. Para além de ver o quanto a MPB resistiu ao regime ditatorial,como frequentemente se faz, busco compreender os significados da prefe-rência de nossos pesquisadores pelo tema da resistência. E se de fato emalguns momentos comparei carreiras artísticas e constatei aproximações como regime, isso não é feito no sentido de patrulhar ideologicamente os “tro-peços” de alguns e louvar a “real” resistência de outros. Não. O que ques-tiono é a própria noção de resistência, utilizada como álibi de uma sociedadeque prefere se ver como vítima do que construtora do regime. Minha in-tenção ao compará-las não foi no sentido de torná-las iguais. Cantar naGlobo não é a mesma coisa do que ser “dedo-duro”. Defender o Esqua-drão da Morte não é o mesmo que se candidatar pelo PDS. O que tenteidemonstrar foi que a ditadura não era figura estranha, totalmente exógenaà sociedade e ao meio musical. Pelo contrário, tinha um grande respaldodos artistas em geral em diversos momentos.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29208

209

S I M O N A L , D I TA D U R A E M E M Ó R I A

Não digo que a memória da resistência seja uma falácia, pelo contrário.Ela foi tão verdadeira que gerou toda uma mitologia acerca da ditadura,superdimensionou o autoritarismo, apagou as mediações, louvou a lutaarmada, imbecilizou a censura. O grande problema dessa construção foi queela deixou a “realidade” por demais “preto no branco” e não problematizouparadoxos aparentemente simples como os expostos anteriormente. Qua-se sempre o silêncio foi uma resposta cômoda. Quando não era suficiente,foram criados bodes expiatórios que superdimensionam as atuações indi-viduais e pouco contribuem para a compreensão da sociedade em geral. Oúltimo show de Simonal foi padecer dos dois males.

Notas

1. Este artigo é uma síntese de alguns capítulos da dissertação Quem não tem swingmorre com a boca cheia de formiga: Wilson Simonal e os limites de uma memóriatropical, defendida em março de 2007 na Pós-Graduação de História da Univer-sidade Federal Fluminense (UFF).

2. Disco Show em Si...monal gravado ao vivo no Teatro Ruth Escobar em 24/7/1967. Na faixa 3 (5:17) Simonal conversa com o público antes de cantar umacanção.

3. “Simonal: aquele cara que todo mundo queria ser”. Jornal do Brasil (24/2/1970),Caderno B, p. 1; “Simonal: o charme com a comunicação”. Jornal do Brasil (25/2/1970), Caderno B, p. 1; “Simonal: no tempo do rei do rock”. Jornal do Brasil(26/2/1970), Caderno B, p. 5; “Simonal: uma vocação de pilantra”. Jornal doBrasil (27/2/1970), Caderno B, p. 1; “Simonal: o importante é se fazer enten-der”. Jornal do Brasil (28/2/1970), Caderno B, p. 1; “Simonal: eu sou um deles”.Jornal do Brasil (1-2/3/1970), Caderno B, p. 10.

4. “Simonal: o importante é se fazer entender”. Jornal do Brasil (28/2/1970), Ca-derno B, p. 1.

5. Ao que me consta, Simonal nunca teve irmã. Ele parece querer enfatizar suaposição contrária às passeatas ao invocar um parente tão próximo e inexistente.

6. “Esse homem é um Simonal”. Realidade, dezembro 1969, p. 148.7. “Não sou racista” — Entrevista com Wilson Simonal. O Pasquim (julho 1969), nº 4.8. “Carlos Imperial: o monstro pré-fabricado”. A Notícia (16/6/1973).9. “Simonal: aquele cara que todo mundo queria ser”. Jornal do Brasil (24/2/1970),

Caderno B, p. 1.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29209

210

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

10. “Simonal: o charme com a comunicação”. Jornal do Brasil (25/2/1970), CadernoB, p. 1.

11. “Simonal: no tempo do rei do rock”. Jornal do Brasil (26/2/1970), Caderno B, p.5.

12. Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Jorge Ben e até Roberto Carlosdizem ser fãs de carteirinha de João Gilberto até hoje. A marca que a Bossa Novadeixou nos novos compositores é tão incisiva que muitos se lembram perfeita-mente da primeira vez que ouviram a canção “Chega de saudade”, marco inicialdo movimento. Caetano lembra ter sido arrebanhado logo da primeira vez queouviu aquela música: “Eu tinha 17 anos quando ouvi pela primeira vez JoãoGilberto. Ainda morava em Santo Amaro e foi um colega do ginásio quem memostrou a novidade que lhe parecera estranha e que, por isso mesmo, ele julgaraque me interessaria: ‘Caetano, você que gosta de coisas loucas, precisa ouvir odisco desse sujeito que canta totalmente desafinado, a orquestra vai pra um ladoe ele vai pro outro’. (...) A bossa nova nos arrebatou.” Chico Buarque tambémrecorda perfeitamente sua primeira audição: “O que me levou para a músicadessa forma arrebatadora foi o fato de eu ter 15 anos quando apareceu a BossaNova. Era uma diferença muito grande. Foi uma coisa que pegou a gente e que opessoal mais velho não se tocou tanto e o pessoal mais novo também não. Quan-do eu vi aparecer esse negócio, inteiramente novo, foi uma revolução. Não écoincidência que todo mundo diga a mesma coisa. ‘Onde você estava quandoouviu João Gilberto pela primeira vez?’ Gil, Caetano, Edu, todos dizem a mesmacoisa. Parece combinado, mas é a pura verdade. Foi um marco, mas para quemtinha aquela idade, porque é na adolescência que se faz a cabeça musical.” SobreCaetano Veloso, ver VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Compa-nhia das Letras. 1997, p. 35; sobre Chico, ver: ZAPPA, Regina. Chico Buarque.Rio de Janeiro: Relume-Dumará. 1999, p. 45 (Coleção Perfis do Rio).

13. O termo Jovem Guarda aparecerá em itálico quando se referir ao programa deTV de Roberto Carlos e amigos, ou a marcas de roupas lançadas pelo iê-iê-iênacional; em caracteres normais o termo explicita a existência de movimentocultural de rock no país.

14. “Carango” (Nonato Buzar/Carlos Imperial): “Copacabana, carro vai zarpar/ Todolubrificado pra não enguiçar/ Roda tala larga, genial!/ Botando minha banca mui-to natural/ S’imbora, um, dois, três/ Camisa verde-claro, calça saint-tropez/ Ecombinando com o carango, todo mundo vê// Ninguém sabe o duro que dei/ Prater fon-fon, trabalhei, trabalhei// Depois das seis tem que acender farol/ Garotade menor pode ser sem sol/ Barra da Tijuca já michou/ A onda agora é deixar cairno Le Barthô (...)” Le Barthô era uma boate, na época, e lebrador, um neologis-mo de Imperial, que chamava as mulheres bonitas de “lebres”. Segundo testemu-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29210

211

S I M O N A L , D I TA D U R A E M E M Ó R I A

nho de Carlos Imperial: “Como produtor de teatro, televisão, cinema e disco,sempre me vi cercado de mulheres bonitas. As meninas eram lançadas por mim etambém inventei o termo lebre. O carioca gostou do meu tipo de gozar as pesso-as. Isso caiu no gosto do povo.” “Carlos Imperial: adeus às ‘lebres’”. Manchete(16/4/1983), nº 1.617, pp. 40-1.

15. Texto de contracapa do LP Pilantrália com Carlos Imperial e a Turma da Pesada(1968).

16. Por “música universitária” entende-se a música feita por egressos das faculdades,que se constituíram o principal grupo forjador do conceito estético-político daMPB.

17. “Carlos Imperial: o monstro pré-fabricado”. A Notícia (16/6/1973).18. O Pasquim (julho de 1969), nº 4. Entrevista com Wilson Simonal.19. Idem.20. “Simonal dá a receita da canção popular”. Última Hora (18/10/1967), coluna de

Chico de Assis.21. Realidade, dezembro de 1969 p. 148. Ao contrário do que diz o próprio Simonal,

a Pilantragem teve sim uma preocupação com neologismos, com ressignificar ecriar palavras. A crítica do cantor parece não se dirigir ao neologismo em si. Aquestão não era tanto o novo, mas esse ser ou não intelectualizado.

22. Correio da Manhã (4/12/1970). Caderno Anexo, p. 3.23. “Simonal: eu sou um deles.” Jornal do Brasil (1-2/2/1970), Caderno B, p. 10.24. O Pasquim (julho de 1969), nº 4.25. Folha de S. Paulo (25/11/1994), caderno Folha Ilustrada, entrevista com Wilson

Simonal (grifo meu).26. “Jorge Ben e Simonal: nossa música em Cannes”. Fatos & Fotos (5/2/1970), ano

X, nº 470.27. Correio da Manhã (4/12/1970), Caderno Anexo, p. 3.28. “Bom gosto” está sempre entre aspas por ser um juízo de valor. Para uma análise

do padrão estético forjado pela MPB, ver, especialmente, o capítulo “Tradição emodernidade” do livro: ARAÚJO, Paulo Cesar de. Eu não sou cachorro, não:música popular cafona e ditadura militar. Rio de Janeiro: Record, 2003.

29. Fundo Ibope, Arquivo Edgar Leuenroth da Unicamp.30. Pesquisa feita no Fundo Ibope — Vendagem de discos (1968), Arquivo Edgar

Leuenroth, Unicamp.31. Para Carlos Nelson Coutinho, a esquerda hegemonizava a produção cultural do

país nas décadas de 1960 e 1970. “As pessoas que tinham forte interesse pelapolítica terminaram levando esse interesse para a área da cultura. Isso teve umlado positivo. Claramente a cultura tem uma dimensão política. Mas, às vezes,também tem um lado negativo, no sentido de que se politizaram excessivamente

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29211

212

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

disputas que na verdade são mais culturais do que partidariamente políticas [...]

A esquerda era forte na cultura e em mais nada. É uma coisa muito estranha. Os

sindicatos reprimidos, a imprensa operária complemente ausente. E onde a es-

querda era forte? Na cultura.” In: RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasi-

leiro — Artistas da revolução, do CPC à era da TV. Rio de Janeiro: Record, 2000,

p. 55. De forma semelhante, críticos musicais chegaram a exagerar na vitimização

da MPB, como fez Tárik de Souza: “O AI-5 promoveu a MPB a inimiga cultural

número um do regime militar.” ZAPPA, Regina, op. cit., p. 103.

32. A bibliografia sobre outro gênero musical que não a MPB é rara. Durante a pes-

quisa encontrei algumas poucas honrosas exceções. Sobre a música sertaneja a

única obra encontrada foi uma autobiografia dos irmãos Chitãozinho e Xororó.

O funk, apesar de ter nascido há mais de 30 anos e de ter grande penetração na

sociedade (há de se perguntar qual sociedade?), não tem uma bibliografia pro-

porcional a sua realidade social. O livro de Silvio Essinger tenta cobrir a lacuna,

com brilhantismo. Ver, respectivamente: CHITÃOZINHO & XORORÓ. Nasce-

mos para cantar. São Paulo, Editora Artemeios, 2005; ESSINGER, Silvio. Batidão

— Uma história do funk. Rio de Janeiro: Record, 2005.

33. A memória construída acerca da ditadura tornou-se a memória daqueles que

foram derrotados politicamente em 1964 e 1968. Aliás, muitos militares são

unânimes em relatar que mesmo sendo vitoriosos em 1964 e, especialmente,

contra a luta armada, foram derrotados em relação à memória histórica do período.

Como lembra o historiador Daniel Aarão Reis, as esquerdas derrotadas parecem

ter conseguido impor uma memória que vitimiza a sociedade perante o governo

ditatorial. Aliás, na própria sociedade poucos são aqueles que não se reconhecem

ou não se identificam com a resistência ao regime militar. O problema é que essa

visão ao mesmo tempo vitimizadora e redentora das esquerdas não explica por

que a ditadura se sustentou por tanto tempo. Em trabalho pioneiro, Daniel Aarão

Reis demonstrou como essa memória começou a ser construída momentos após

os conflitos decisivos dos anos 1960/1970. Logo após 1964 as esquerdas cons-

truíram para si a ideia de que foram surpreendidas pelo golpe. Parecem querer

esquecer que o golpe também poderia vir por parte dessas mesmas esquerdas,

que raramente tinham algum apego à democracia que não o de uma forma

instrumentalizada. Reis mostra como as esquerdas consolidaram a ideia da resis-

tência à ditadura diante da necessidade de se reintegrar nova democracia pós-

ditatorial, memória forjada em conjunto com a sociedade que procurava diabolizar

o regime. Assim, o período de lutas pela Anistia foi essencial para a catalisação e

consolidação dessa memória vitimizadora. AARÃO, REIS, Daniel. “Ditadura e

sociedade: as reconstruções da memória”, in: AARÃO REIS, Daniel; RIDENTI,

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29212

213

S I M O N A L , D I TA D U R A E M E M Ó R I A

Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá. O golpe e a ditadura militar — 40 anosdepois (1964-2004). Bauru: Edusc, 2004.

34. Para as opiniões de Jô Soares, Juca Chaves e Chacrinha, ver: Jô Soares — O Pas-quim (4-10/12/1969), s/nº, pp. 10-13; Juca Chaves — O Pasquim (18/12/1969), nº26, pp. 8-11; Chacrinha — O Pasquim (13-19/11/1969), nº 21, pp. 10-13.

35. Para a entrevista de Vinicius de Moraes, ver: O Pasquim (agosto de 1969), nº 6,p. 8.

36. Roberto Carlos — O Pasquim (7/10/1970), nº 68, pp. 8-11.37. Nara Leão — O Pasquim (agosto de 1969), nº 7, p. 10.38. Norma Benguel — O Pasquim (5/9/1969), s/nº, p. 11.39. Juca Chaves na revista Realidade (dezembro de 1968), pp. 96-7 e p. 139; (julho

de 1970), p. 130.40. Brazuca — Fatos & Fotos (5/11/70), nº 509, p. 83.41. Ziraldo — Realidade (outubro de 1970), p. 106.42. Cynara, Cybele e MPB4 — Realidade (junho de 1969), p. 105.43. Chico Buarque faz propaganda do Banco da Indústria e Comércio de São Paulo

S/A — Realidade (dezembro de 1968), p. 152.44. ZAPPA, Regina, op. cit., p. 10.45. RICARDO, Sérgio. Quem quebrou meu violão. Uma análise da cultura brasileira

nas décadas de 40 a 90. Rio de Janeiro: Record, 1991, p. 11.46. NOVAES, José. Nelson Cavaquinho: luto e melancolia. Rio de Janeiro: Intertexto,

2003, p. 86.47. Para o escritor Ruy Castro, Simonal “encalacrou-se numa obscura história que o

envolvia como informante dos órgãos de segurança do governo Médici no meioartístico e isso destruiu sua carreira. Para usar o jargão que ele criou nos seus diasde glória, Simonal deixou cair e se machucou”. CASTRO, Ruy. Chega de sauda-de: a história e as histórias da bossa nova. São Paulo: Companhia das Letras,1990, pp. 362-3 (grifo meu).

48. “Simonal ameaçado de cadeia por sequestro”. Última Hora (27/8/1971). Arqui-vado no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (Aperj), Dossiê Dops,Pasta 153, Folha 113.

49. “Processo contra Simonal”. Correio da Manhã 27/8/1971. Arquivado no ArquivoPúblico do Estado do Rio de Janeiro (Aperj), Dossiê Dops, Pasta 153, Folha 114.

50. “Simonal ameaçado de cadeia por sequestro”. Última Hora (27/8/1971). Arqui-vado no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (Aperj), Dossiê Dops,Pasta 153, Folha 113.

51. Para uma cópia da declaração de Viviani, ver: Anexos — Declaração de RaphaelViviani sob coerção. Documento encontrado no Arquivo Público do Estado doRio de Janeiro (Aperj), Dossiê Dops, Pasta 153, Folha 102.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29213

214

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

52. “O presidente não admite torturas”. Veja (3/12/1969), in: MOLICA, Fernando. Dezreportagens que abalaram a ditadura. Rio de Janeiro: Record, 2005, pp. 65-90.

53. Em teoria, Dops e polícias civis eram órgãos distintos. Na prática havia uma sinis-tra combinação da repressão civil e política. Segundo Percival de Souza, “... [noinício da repressão] o Dops pediu reforço à Secretaria da Segurança. A ajuda veioda Delegacia de Roubos, com todo o seu estilo, a sua cultura, os seus métodos. (...)O know-how da repressão foi civil”. SOUZA, Percival de. Autópsia do medo: vidae morte do delegado Sérgio Paranhos Fleury. São Paulo: Globo, 2000, p. 33.

54. Para a cópia, ver: Anexos — Termo de Declarações de Simonal em 24/8/1971.Documento encontrado no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (Aperj),Dossiê Dops, Pasta 153, Folha 106. Original de 24/8/1971.

55. Idem.56. Idem.57. Idem.58. Para a cópia, ver: Anexos — Carta confidencial de Mário Borges aos seus superio-

res. Documento encontrado no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro(Aperj), Dossiê Dops, Pasta 153, Folha 112-108 [Confidencial — de circulaçãointerna do Dops: do chefe da Seção de Buscas Ostensivas (SOB), Mário Borges,ao chefe de Serviço de Buscas]. Datado de 28/9/1971.

59. “Simonal ameaçado de cadeia por sequestro”. Última Hora (27/8/1971). Arqui-vado no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (Aperj), Dossiê Dops,Pasta 53, Folha 113.

60. A sentença final do processo de Simonal e seus comparsas foi encontrada noAperj. Não foi possível encontrar o processo inteiro, que aparentemente está na23a Vara Criminal do Rio de Janeiro. O processo está arquivado no Fórum doRio de Janeiro, no centro da cidade, mas não foi possível obtê-lo. A burocraciada instituição e as diversas viagens do arquivo por vários departamentos levaramao sumiço do processo, segundo me disseram os responsáveis. Não duvido, noentanto, que uma busca cuidadosa levada a cabo por funcionários internos doFórum volte a encontrá-lo. Para a cópia da sentença final: Anexo — Sentençafinal. Documento encontrado no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro(Aperj), Alvará 6, Folha 42, p. 41. Processo nº 3.540. Cópia da sentença final de11/11/1974.

61. Para ver a cópia: Anexo — Sentença final. Documento encontrado no ArquivoPúblico do Estado do Rio de Janeiro (Aperj), Alvará 6, Folha 42, p. 40. Processonº 3.540. Cópia da sentença final de 11/11/1974.

62. Anexo — Sentença final. Documento encontrado no Arquivo Público do Estadodo Rio de Janeiro (Aperj), Alvará 6, Folha 42, p. 37. Processo nº 3.540. Cópia dasentença final de 11/11/1974.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29214

215

S I M O N A L , D I TA D U R A E M E M Ó R I A

63. Anexo — Sentença final. Documento encontrado no Arquivo Público do Estadodo Rio de Janeiro (Aperj), Alvará 6, Folha 42, pp. 36-7. Processo nº 3.540.Cópia da sentença final de 11/11/1974.

64. O juiz João de Deus Lacerda Menna Barreto julgou que o motorista Luiz Ilogtiagiu de acordo com as funções profissionais: “Destarte, à ação do terceiro de-nunciado nenhum reparo é possível fazer, pois agiu consoante os ditames da lei eas exigências da sua função”. Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (Aperj),Alvará 6, Folha 42, p. 40. Processo nº 3.540. Original de 11/11/1974.

65. Em sentença final, o juiz Menna Barreto absolveu o chefe Mário Borges, poisesse não teria participado da sessão de tortura. Mário Borges era chefe do Servi-ço de Buscas Ostensivas: “Com efeito, é o próprio Raphael Viviani quem (...) dizque Mário Borges não exerceu qualquer pressão contra o declarante e não estavapresente quando das sevícias que lhe foram infligidas; que sua atuação se limitoua indagar do declarante se confirmava os termos daquela declaração, fazendoalgumas perguntas sobre o caso.” Anexo — Sentença final. Documento encon-trado no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (Aperj), Alvará 6, Folha42, p. 40. Processo nº 3.540. Cópia da sentença final de 11/11/1974.

66. “Simonal ouve sentença”. O Globo (14/11/1974), pp. 1 e 11.67. Sursis: suspensão condicional da pena. “Simonal tem pena reduzida”. Jornal do

Brasil (4/6/1976), p. 12. Cópia encontra-se no Arquivo Público do Estado do Riode Janeiro (Aperj), Dossiê S Secreto, Pasta 159, Folha 188.

68. O Pasquim (9-15/11/1971), p. 9; Sérgio Cabral não estava sozinho. Jornalistasda revista Fatos & Fotos tinham opinião idêntica. Para esses, as letras do compo-sitor têm “conteúdo lírico e crítico” que “vai descobrindo novos e sugestivoscaminhos”. Fatos & Fotos (22/1/1970), nº 468, p. 81.

69. Tratava-se de um festival “sem competição” organizado pela Philips, gravadoraque abrigava quase todos os artistas da MPB. Realizado entre 11 e 13 de maio de1973 no Palácio de Convenções do Anhembi, em São Paulo, tinha uma estruturasui generis. Primeiro um artista cantava uma ou duas músicas do seu repertório edepois dividia o palco com o artista seguinte. Depois de cantar “Cabaré”, Elisdividiu o palco com Gilberto Gil e cantou “Ladeira da Preguiça”, música dopróprio Gil. Dentre os presentes estiveram Toquinho e Vinicius de Moraes, JairRodrigues, Jorge Mautner, Caetano Veloso, Odair José (este em parceria comCaetano, que insistiu em cantar ao lado do “brega” o sucesso popular “Eu vou tirarvocê desse lugar” — o que causou vaias preconceituosas da plateia), Raul Seixas,Ronnie Von, Erasmo Carlos, Wanderléa, Gilberto Gil, Jorge Ben, Ivan Lins, MPB-4, Chico Buarque, Fagner, Nara Leão, Jards Macalé, Gal Costa, Maria Bethânia eaté Wilson Simonal, que cantou “Hino ao Senhor” (de Tony Osanah).

70. ARAÚJO, Paulo C. de, op. cit., p. 288.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29215

216

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

71. “Eu só podia resistir”. Veja (27/10/1976). Páginas Amarelas, pp. 3-5.

72. O Pasquim, nº 169 (s/d).

73. “Uma noite com Waldick Soriano no Harém e na Urca”. Zero Hora (8/4/1973).

In: ARAÚJO, Paulo C. de, op. cit., p. 71.

74. RENNÓ, Carlos. Luiz Gonzaga. São Paulo: Martin Claret, 1990, p. 78 (Coleção

Vozes do Brasil).

75. Entrevista de Glauber à revista Visão (11/3/1974), pp. 64-74.

76. ARAÚJO, Paulo C. de, op. cit., p. 219.

77. Ver idem para um relativização do ufanismo de Dom & Ravel, especialmente

capítulos “Um grande açoitando um pequeno” e “No país dos mortos-vivos”.

78. Idem, p. 222.

79. Segundo Paulo César de Araújo, as canções de Chico estavam presentes em várias

novelas. “João e Maria” em Dancin’Days (1978-1979), “Olhos nos olhos” em

Duas Vidas (1976-1977), “Carolina” em O Casarão (1976), “Vai levando” em

Espelho Mágico (1977), “Não existe pecado ao sul do equador”, tema de abertu-

ra de Pecado Rasgado (1978-79). Idem, pp. 301-2.

80. Michael Pollak lembra que a criação de uma versão homogênea do passado reve-

la um enquadramento da memória. POLLAK, Michael. “Memória, esquecimen-

to, silêncio”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, nº 3, 1989, pp. 3-15;

POLLAK, Michael. “Memória e identidade social”. Estudos Históricos, Rio de

Janeiro, vol. 5, nº 10, 1992, pp. 200-212.

81. Até o primeiro semestre de 2007, todas as “comunidades” encontradas no

site de relacionamentos Orkut, na internet, eram favoráveis ao cantor. Eram

cinco comunidades. Na maior delas, com quase dois mil integrantes, todos

sem exceção acham que Simonal deve ser reintegrado à MPB. Não obstante,

acham que ele era inocente de todas as acusações. Comunidade criada por

Kléssius Leão: http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=66520.

Acessado em 12/06/2007.

82. MOTTA, Nelson. Noites tropicais: solos, improvisos e memórias musicais. Rio

de Janeiro: Objetiva, 2000, p. 213.

83. OAB absolve cantor Wilson Simonal. O Estado de S. Paulo Digital. Acessado em

24/9/2003: http://www.estadao.com.br/divirtase/noticias/2003/set/24/164.htm

84. “César Camargo Mariano faz show no Sesc Mariana” (entrevista a Pedro Ale-

xandre Sanches): acessado em 19/3/2003: http://www/.folha.uol.com.br/folha/

ilustrada/ult90u31444.shtml.

85. Quando digo “a sério” quero dizer que a MPB não lidava bem com brincadeiras,

especialmente durante os anos mais repressivos da ditadura militar. O riso, a

alegria e a ironia eram vistos como coadjuvantes do regime.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29216

217

S I M O N A L , D I TA D U R A E M E M Ó R I A

86. Essa é a razão principal por eu não ter feito uma biografia do cantor. Penso queo formato da biografia poderia levar mais facilmente, embora não necessaria-mente, à vitimização do cantor. Ver: FERREIRA, Gustavo Alves Alonso. Quemnão tem swing morre com a boca cheia de formiga: Wilson Simonal e os limites deuma memória tropical. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal Flu-minense, Niterói, 2007.

Bibliografia

ARAÚJO, Paulo Cesar de. Eu não sou cachorro, não: música popular cafona e ditaduramilitar. Rio de Janeiro: Record, 2003.

CASTRO, Ruy. Chega de saudade: a história e as histórias da bossa nova. São Paulo:Companhia das Letras, 1990.

CHITÃOZINHO & XORORÓ. Nascemos para cantar. São Paulo: Editora Artemeios,2005.

ESSINGER, Silvio. Batidão — Uma história do funk. Rio de Janeiro: Record, 2005.FERREIRA, Gustavo Alves Alonso. Quem não tem swing morre com a boca cheia de

formiga: Wilson Simonal e os limites de uma memória tropical. Dissertação deMestrado, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2007.

MOLICA, Fernando. Dez reportagens que abalaram a ditadura. Rio de Janeiro: Record,2005.

MOTTA, Nelson. Noites tropicais: solos, improvisos e memórias musicais. Rio de Ja-neiro: Objetiva, 2000.

NOVAES, José. Nelson Cavaquinho: luto e melancolia. Rio de Janeiro: Intertexto, 2003.POLLAK, Michael. “Memória, esquecimento, silêncio”. Estudos Históricos, Rio de

Janeiro, vol. 2, nº 3, 1989, pp. 3-15.——. “Memória e identidade social”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, nº 10,

1992, pp. 200-212.REIS, Daniel Aarão. “Ditadura e sociedade: as reconstruções da memória”, in: REIS,

Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá. O golpe e a ditadu-ra militar — 40 anos depois (1964-2004). Bauru: Edusc, 2004.

RENNÓ, Carlos. Luiz Gonzaga (Coleção Vozes do Brasil). São Paulo: Martin Claret,1990.

RICARDO, Sérgio. Quem quebrou meu violão. Uma análise da cultura brasileira nasdécadas de 40 a 90. Rio de Janeiro: Record, 1991.

RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro — Artistas da revolução, do CPC àera da TV. Rio de Janeiro: Record, 2000.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29217

218

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

SOUZA, Percival de. Autópsia do medo: vida e morte do delegado Sérgio Paranhos Fleury.São Paulo: Globo, 2000.

VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras. 1997.ZAPPA, Regina. Chico Buarque. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1999 (Coleção Per-

fis do Rio).

Fontes pesquisadas

A NotíciaCorreio da ManhãFatos & FotosFolha de S. PauloJornal do BrasilMancheteO GloboO PasquimRealidadeÚltima HoraVejaVisãoZero Hora

Arquivos pesquisados

Arquivo Edgar Leuenroth da Unicamp, Fundo Ibope.Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (Aperj), Dossiê Dops; Dossiê S Secreto.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29218

CAPÍTULO 6 As atividades político-partidárias e aprodução de consentimento durante oregime militar brasileiro

Alessandra Carvalho*

*Professora de História do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro(UFRJ). Autora de “Realidades e desafios: experiências educativas en Argentina, Uruguay yBrasil” (com Federico Lorenz, Aldo Marchesi e Laura Mombello), in: Elizabeth Jelin eFederico Lorenz (orgs.). Educación y memória. La escuela elabora el pasado. Madri/BuenosAires: Siglo XXI, 2004, e “31 de marzo de 1964 en Brasil: memorias deshilachadas” (comLudmila da Silva Catela), in: Elizabeth Jelin (org.). Las conmemoraciones: las disputas enlas fechas “in-felices”. Madri/Buenos Aires: Siglo XXI, 2002.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29219

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29220

Em fevereiro de 1974, o presidente da República eleito, general ErnestoGeisel, encontrou-se com o general Dale Coutinho para convidá-lo a assu-mir o Ministério do Exército em seu governo. E expôs um dos problemasque o afligiam:

Na área política continuamos com a mesma droga. [...] Todos nós, de um modo

geral, temos uma repulsa ao político, mas o político é necessário. Nós não

podemos ter os políticos só para dar uma fantasia, quer dizer, não vamos ter

o político para chegar no dia lá e votar no general Geisel ou votar no Médici.

Não é? Ou chegar no dia tal e votar a lei que o governo quer. Quer dizer, isso

tem que evoluir. (...) eu vou ver se consigo fazer um esforço para melhorar

este país, tem que trabalhar nesse sentido. Não vou dar aos políticos o que

eles querem, não vou, não vou me mancomunar com eles, mas vou viver com

eles, eu tenho que viver com eles. Porque senão como é? Nós vamos, nós te-

mos a outra alternativa, que é ir para uma ditadura. Então vamos fechar esse

troço, vamos fechar o Congresso, vamos fechar tudo isso e vamos para uma

ditadura, que é uma solução muito pior. Não é? Quer dizer, esse é um dos

quadros em que a Revolução, no meu modo de ver as coisas, fracassou. (...)

Ora o sujeito vai conversar com os políticos, ora dar coice nos políticos, fecha

o Congresso, abre o Congresso, e vivemos nessa porcaria.1

As afirmações acima, publicadas por Elio Gaspari no terceiro volume desua obra sobre o regime militar, introduzem algumas das questões funda-mentais que permearam as relações entre o governo autoritário e o sistemapolítico. Nesse breve trecho, as declarações de Ernesto Geisel dão conta dainstabilidade e tensão que marcaram os 21 anos da ditadura, com a abertu-ra e o fechamento sucessivos do Congresso, as tentativas de aproximação

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29221

222

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

entremeadas por cassações de mandatos e direitos, o esvaziamento do exer-cício parlamentar pela centralização das decisões no Executivo e a aprova-ção automática dos projetos de lei oriundos da cúpula governamental, aameaça sempre latente de supressão total da atividade política.

A prova cabal dessa instabilidade pode ser encontrada nas mudançasconstantes promovidas na legislação que ordenou as atividades partidáriase eleitorais sob a ditadura, como a instituição de dois sistemas partidários —1965 e 1979 —, mudanças no cálculo da representação dos estados, altera-ções na lei orgânica dos partidos e normas casuísticas para organizar elei-ções.2 Sem dúvida, para os políticos essa dinâmica embutiu uma extremaincerteza acerca da continuidade de seus trabalhos e do espaço que suasações poderiam alcançar. Para o regime militar, o objetivo primeiro foi as-segurar para o governo maiorias parlamentares e que o partido de oposiçãonão conseguisse alcançar posições-chave no Congresso Nacional, além deafastar da política formal determinado grupo de indivíduos.3

A cassação de mandatos e direitos políticos foi, certamente, um dos ins-trumentos usados pelo regime recém-instalado em 1964 e recebeu o apoiode lideranças importantes, adversários de primeira linha ou não do gover-no de João Goulart, que acreditavam ser necessário banir seus partidáriosda cena pública.4 Além das cassações, relevantes atores sociais e políticosdefenderam a necessidade de alterações mais profundas. Analisando os edi-toriais publicados por jornais dos estados do Rio de Janeiro e de São Pauloem 1964 e 1965, Vasconcelos encontrou reiteradas críticas à atuação doCongresso Nacional nos últimos meses do governo Jango e a defesa de me-didas autoritárias que reorganizassem a ordem política. Isso não significavadesqualificar totalmente as atividades partidárias e parlamentares — em-bora o jornal O Estado de S. Paulo chegasse a defender o fechamento doCongresso em distintas ocasiões — mas o apoio de diferentes setores à al-teração das regras do jogo por meio da intervenção do governo militar.5

No bojo dessa percepção, as mudanças no código eleitoral para a esco-lha dos governadores em 1965 determinaram a proibição das coligaçõespartidárias nos pleitos proporcionais e o aumento da cláusula de barreirapara o funcionamento dos partidos, entre outros dispositivos usados paradiminuir o número de legendas presentes na competição.6 Muitos acredi-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29222

223

A S AT I V I D A D E S P O L Í T I C O - PA R T I D Á R I A S E A P R O D U Ç Ã O D E C O N S E N T I M E N T O. . .

tavam que o novo código serviria para superar os graves problemas que aco-meteram o sistema político e dar maior racionalidade ao processo decisório,incluindo as relações entre o Executivo e o Legislativo depurado.7

Isso demonstra que a fragmentação partidária era percebida como umfator crucial no processo de aprofundamento da crise de 1964 por jorna-listas, políticos e autoridades militares, o que justificaria a necessidade demodificações a serem feitas pelo novo governo. Nesse contexto, FrancoMontoro, cujo primeiro mandato eletivo de vereador fora conquistado em1950 pelo PDC, partido no qual se manteve até se filiar ao MDB em 1966,afirmou sobre as novas determinações que “seu objetivo, aliás meritório,era acabar com a excessiva multiplicidade de partidos. Nada menos do que15 existiam naquela época, muitos deles sem linha política, simples ajunta-mentos em defesa de interesses menores”8 — argumento muito presentetambém nas avaliações do sistema político brasileiro feitas por defensoresdo golpe militar.

A derrota de candidatos apoiados pelo regime autoritário, em fins de 1965,mostrou que as reformas até ali empreendidas podiam assegurar a reduçãodo número de partidos, mas não a eleição dos indivíduos identificados coma ditadura militar. Desse momento em diante, as intervenções se tornarammais profundas com o Ato Institucional nº 2, que o mesmo Montoro afir-mou ser “o grande divisor de águas da política brasileira”,9 e seguidas altera-ções na legislação eleitoral, feitas e refeitas de modo a assegurar maioriasparlamentares para a Arena, uma oposição moderada e cautelosa e o contro-le dos governantes militares sobre as principais instâncias de poder.

Todavia, a despeito da fluidez e incerteza institucional descritas, forammantidas as atividades partidárias e as eleições diretas para os cargos devereador, deputados estadual e federal e senador, bem como de prefeito —excetuando-se as capitais dos estados e os municípios classificados comoáreas de segurança nacional e estâncias hidrominerais. Esse aspecto distin-guiu o regime autoritário brasileiro de seus congêneres latino-americanos ecolocou-se como um canal por meio do qual puderam ser construídas ereconstruídas as relações entre o regime e a sociedade.

Simultaneamente à manutenção das eleições diretas para esses cargos,durante os governos militares assistiu-se a uma expressiva expansão do

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29223

224

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

número de eleitores, decorrente, em grande parte, da extensão dos direitospolíticos a indivíduos jovens dos centros urbanos. Entre 1966 e 1978, o elei-torado brasileiro cresceu 51%. No início da década de 1960, 43% da popu-lação adulta eram inscritos como eleitores; 20 anos depois, esse número atingiucerca de 83% dos brasileiros adultos.10 Segundo Maria D’Alva Kinzo, issosignificou que um terço dos eleitores no início dos anos 1980 só conhecia ospartidos criados durante a ditadura — MDB e Arena. É possível afirmar, então,que um grande número de cidadãos brasileiros teve suas primeiras experiên-cias com eleições, votos e candidatos sob o sistema bipartidário criado pelosgovernos militares. Se não podemos dizer que esse período participou doprocesso de criação de uma democracia de massa no Brasil, com certezaestamos tratando de um sistema eleitoral desse porte. E, na dinâmica político-partidária e eleitoral, o regime militar sempre viu um potencial para a con-quista de legitimidade, apoio e consentimento da sociedade.

UM BREVE BALANÇO DA LITERATURA

Os estudos sobre as atividades político-partidárias durante os anos do regi-me militar são marcados por algumas características e perspectivas de in-terpretação. A primeira a ser ressaltada é a descontinuidade, uma vez queapenas períodos específicos da ditadura despertaram uma curiosidade aca-dêmica sobre a política. É o caso, por exemplo, dos anos que se seguiram a1974, quando o MDB alcançou uma grande votação nas eleições legislativasestaduais e federais, iniciando um processo de crescimento que se reveloucontínuo nas eleições de 1978. Esse fenômeno foi, então, alvo de inúmerasinvestigações por parte, principalmente, de sociólogos e cientistas políticos.

De forma predominante, essas análises se debruçaram sobre os resulta-dos eleitorais da década de 1970, buscando entender e explicar a opçãopelo voto no MDB a partir de variáveis sociológicas como a localização geo-gráfica do voto dado aos dois partidos, sua distribuição entre os segmentossocioeconômicos e sua relação com o surgimento de identidades partidá-rias.11 Essas análises, todavia, não se sustentaram como um campo específi-co de estudos, aspecto apontado no balanço bibliográfico elaborado por

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29224

225

A S AT I V I D A D E S P O L Í T I C O - PA R T I D Á R I A S E A P R O D U Ç Ã O D E C O N S E N T I M E N T O. . .

Lima Jr., Schmitt e Nicolau. A década de 1980 registrou um progressivoabandono do tema, que cedeu o lugar para discussões sobre o processo deredemocratização e os períodos de multipartidarismo na república brasileira.12

Os 15 anos que nos separam do levantamento bibliográfico citado pare-cem não ter alterado de forma significativa esse quadro, embora, nos últi-mos tempos, alguns trabalhos no âmbito dos programas de pós-graduaçãotenham se voltado para diferentes aspectos do período bipartidário.13 En-tre eles, podemos apontar o estudo pioneiro de Maria D’Alva Gil Kinzosobre o MDB, Oposição e autoritarismo. Gênese e trajetória do MDB (1966-1979), publicado em 1988. O mesmo partido foi objeto da análise deRodrigo Patto Sá Motta em Partido e sociedade — A trajetória do MDB,publicada em 1997. O interessante é que sobre a Arena, partido de sus-tentação do regime em que atuaram destacadas lideranças políticas anterioresa 1964 e também posteriores a 1985, não há obra semelhante, apesar dosinstigantes trabalhos de mestrado e doutorado de Lucia Grinberg, que tra-taram da criação e institucionalização da legenda, da atuação dos militan-tes e dos espaços de atuação autônoma dos políticos arenistas.14 Outraspesquisas de mestrado e doutorado voltaram-se para a dinâmica das ativi-dades político-partidárias nos níveis regional e local.15

Uma das explicações para a descontinuidade nas investigações sobre apolítica formal pode ser encontrada no questionamento ou descrédito desua relevância durante o regime autoritário. Isso se daria por, pelo menos,duas razões. Primeira, as seguidas intervenções, com o uso de métodos co-ercitivos e repressivos e o esvaziamento das funções e prerrogativas do poderLegislativo, estabeleceram limites muito estreitos para as atividades políti-cas. Das cassações e perda de direitos, da criação de sucessivas legislaçõeseleitorais e partidárias chegando aos tristemente famosos “porões da dita-dura”, uma série de mecanismos de vigilância e repressão foi acionada emdiferentes momentos com o objetivo de enquadrar a vida política brasileiranos moldes pensados pelos militares que governaram o país.16

Nessa perspectiva, os partidos, os políticos e o Congresso Nacional pas-saram a ser vistos como atores sem poder efetivo. Suas ações não teriamproduzido resultados importantes para a compreensão dos rumos do Esta-do autoritário no que se refere, por exemplo, ao processo decisório gover-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29225

226

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

namental. Apontando as “deturpações” e “deformações” dos procedimen-tos democráticos vigentes sob a ditadura, grande parte das avaliações aca-bou sempre por realçar as imperfeições do jogo político, aquilo que eledeveria ser e não foi. Sob esse prisma, eleições, campanhas, discursos e ne-gociações no Congresso Nacional se assemelhariam a um mundo de fanta-sia distante da realidade, já que os políticos teriam perdido a capacidade decriar leis, de influenciar a elaboração de programas públicos e de se colocarcomo um contrapeso às ações do poder Executivo.17

Uma segunda razão para a pouca atenção analítica às atividades políti-cas diz respeito ao novo sistema partidário, que, imposto pela ditadura,enquadrou compulsoriamente as forças existentes nas duas legendas cria-das em 1965. Dessa forma, reuniram-se no mesmo partido indivíduos comdiferentes matizes ideológicos e bases políticas, conferindo um caráter deheterogeneidade e indefinição ao MDB e à Arena. Como consequência, nãoseria possível relacioná-los claramente a interesses e setores sociais especí-ficos — função considerada precípua das agremiações eleitorais. Ao ladodesse aspecto, as limitações e os controles legais e ilegais aos quais as açõespolíticas foram submetidas também colaborariam para diminuir a capaci-dade de representação dos eleitos, que não construiriam relações “orgâni-cas” com a sociedade. Assim, por outro caminho, chegaríamos à mesmaconclusão: as atividades políticas eram uma fantasia, entendida agora comodisfarce “democrático” de um regime autoritário que trabalhava constan-temente para enfraquecer a participação dos cidadãos e impedir a livre defesade seus interesses.18

Importantes políticos que atuaram nos anos de autoritarismo corrobo-raram esse tipo de interpretação. Num discurso feito no Senado em 1975,o arenista Teotônio Vilela, senador alagoano de longa trajetória política,fundador da UDN em seu estado, lamentava o que ele chamou de declíniosistemático da ação política e dos políticos que, diminuindo seu trabalho esua influência, terminou por criar “um mundo à parte, um clube de deli-rantes que luta em campanhas eleitorais para ser uma coisa e é outra — oensimesmado de hoje, não por requinte, mas por confinamento, e aindacom a ingrata missão de ornar o quadro do governo com a presença do fazde conta”.19

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29226

227

A S AT I V I D A D E S P O L Í T I C O - PA R T I D Á R I A S E A P R O D U Ç Ã O D E C O N S E N T I M E N T O. . .

Essas conclusões, entretanto, são contestadas por uma série de trabalhossobre as atividades políticas durante o regime militar. Em algumas investi-gações, como as de Motta sobre o MDB e de Grinberg sobre a Arena, oquadro que emerge aponta em direção, se não oposta, ao menos divergen-te. Nessas análises, os autores puderam identificar uma ação constante dospolíticos, governistas ou da oposição, no sentido de enfrentar e ampliar oslimites impostos pelo governo autoritário, reforçar a legitimidade de seusmandatos populares e estabelecer laços com grupos, organizados ou não,buscando enraizar socialmente seus partidos e atuar como representantes.A própria acusação de Teotônio Vilela foi feita por um senador situacionistana tribuna do Senado. Isso não significa afirmar que o objetivo dessas açõesera o combate à ditadura ou a oposição franca ao regime militar, mas realçaa necessidade de se considerarem os elementos específicos que constituem aação dos atores políticos em um sistema eleitoral, mesmo sob uma ditadura.

Para situar melhor a divergência nas interpretações sobre a importânciae o escopo das atividades político-partidárias, é preciso assinalar que a pers-pectiva adotada por Grinberg e Motta enfoca não só as questões insti-tucionais, que estabeleceram uma ordem autoritária, mas principalmenteas ações e práticas empreendidas pelos indivíduos como políticos e homensde partido, em suas tentativas de garantir e alargar seu espaço dentro doslimites definidos pelo regime — seja para afirmar a legitimidade de suaocupação ou assegurar a manutenção de suas carreiras. Nesse processo, oque se constata é a existência de uma atuação incessante dos políticos pormeio da qual as relações com o Estado autoritário são marcadas por en-frentamento, negociação, diálogo e influência. Por outro lado, participan-tes da competição eleitoral e, portanto, dependentes do voto, eles sempreviram a urgência de estabelecer contatos e relações com a sociedade, de-fendendo as demandas dos eleitores junto às esferas de decisão — locais,regionais ou federais.

Aproximando-nos dessa abordagem, as ações daqueles que optaram pelavida político-partidária perdem um pouco do seu caráter de artificialidadee ineficiência, podendo ser vistas como interações concretas com os eleito-res, com organizações sociais e com o Estado.20 É nessa chave interpretativaque propomos, neste texto, analisá-las como um meio para forjar social-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29227

228

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

mente o consentimento à ditadura militar sublinhando três dinâmicas prin-cipais. A primeira delas refere-se à permanência no regime autoritário departe relevante das elites políticas advindas do sistema multipartidário an-terior a 1964, com bases eleitorais sólidas conquistadas ao longo de traje-tórias que, muitas vezes, remontavam às décadas de 1930 e 1940. A segundadinâmica se estabelece com a atuação dos arenistas junto à população, dis-putando eleições, ocupando cargos em órgãos legislativos e executivos eatuando como um canal de mediação entre a sociedade e o regime.

Por último, acreditamos que a manutenção da vida partidária, do funcio-namento mínimo do Congresso e do calendário eleitoral fez com que mui-tos indivíduos, até da oposição, aceitassem participar da ordem institucionalestabelecida pela ditadura, vista como um espaço para a contestação aoregime. Fernando Lyra, deputado federal eleito pelo MDB em 1970 queintegrou o grupo autêntico, explicou sua opção pela vida político-partidáriaafirmando que pretendia lutar contra o regime e seu partido, que conside-rava muito cauteloso, e acreditando que isso era importante para “despertara juventude, debelar a luta armada, extinguir o voto nulo”.21 Nesse movi-mento, acabou-se por legitimar uma via de resolução dos conflitos políti-cos e sociais pensada e controlada pelos governantes autoritários até atransição para o governo civil.

A CONTINUIDADE DAS ELITES POLÍTICAS E SUAS BASES SOCIAIS

Os efeitos negativos do cerceamento das funções e dos espaços da políticasão muito frequentes nas avaliações do regime militar feitas por diferenteslíderes. Para Tancredo Neves, cuja carreira se iniciou na vereança de SãoJoão Del Rey, em 1935, se construiu no PSD mineiro e, depois, no MDB,os 21 anos de regime militar mutilaram as tradições democráticas brasilei-ras e impediram o avanço das forças populares na luta pela liberdade e jus-tiça social — duas das principais bandeiras que seriam consagradas peloMDB. Saturnino Braga conquistou o primeiro cargo eletivo — deputadofederal — em 1962 pelo PSB e optou pelo MDB após o AI-2. Para ele, aditadura impediu a formação de novas lideranças e de partidos representa-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29228

229

A S AT I V I D A D E S P O L Í T I C O - PA R T I D Á R I A S E A P R O D U Ç Ã O D E C O N S E N T I M E N T O. . .

tivos das correntes de opinião existentes na sociedade. Por último, JoséRicha, deputado federal em 1962 pelo PDC que se filiou ao MDB com ainstalação do bipartidarismo, lamentou o que chamou de involução, poisos jovens foram mantidos longe do aprendizado da política, o que, segun-do ele, teve reflexos negativos na sociedade brasileira.22

Para esses homens, uma das mais graves consequências da ditadura foi oafastamento da população do exercício da política, que teria provocado umdano irreparável na formação e educação de uma geração de brasileiros —fossem eleitores ou “elegíveis”. Cabe, todavia, relativizar esse afastamento,uma vez que, como assinalado antes, o contingente de eleitores cresceu demodo significativo nas décadas de 1960 e 1970. Nesse sentido, algumamodalidade de socialização ocorreu no Brasil, mesmo que não a da “verda-deira” política, feita por “genuínos” partidos. Os jovens, e não só eles, aocontrário do que afirmou José Richa, não foram mantidos longe do apren-dizado da política. Mais do que isso, a cada dois anos, os eleitores brasilei-ros compareceram às urnas, envolvendo-se minimamente com questõespolíticas e alimentando continuamente as atividades partidárias.23

No caso específico dos três líderes citados, como também no de muitosoutros, o golpe militar de 1964 e as intervenções na área política que a elese seguiram não representaram uma ruptura em suas carreiras pessoais.Tancredo Neves continuou sua trajetória no Congresso Nacional até 1982,quando foi eleito governador de Minas Gerais, e, 1985, quando se tornoupresidente da República. Saturnino Braga encerrou, em 2007, o mandatode senador, com uma carreira marcada por postos no Executivo e Legislativo.José Richa esteve presente no Congresso como deputado federal ou sena-dor até 1982, quando foi eleito governador do Paraná. Posteriormente,retornou ao Senado, onde permaneceu até o início de 1995. A partir daí,retirou-se da vida pública, mas seu filho, Beto Richa, elegeu-se deputadoestadual e prefeito de Curitiba.

Esses três exemplos demonstram que o novo contexto estabelecido apartir de 1964, radicalmente transformado em muitos aspectos, acarretoualterações substantivas nas formas de agir e pensar dos atores políticos, mas,para muitos, não significou uma barreira intransponível. Antes, instituiu umnovo cenário, marcado por sérias limitações, incerteza e repressão, mas no

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29229

230

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

qual o jogo continuava — na medida do possível, ainda que longe do dese-jável. Como bem colocou Rafael Madeira, o AI-2, em 1965, instituiu umanova moldura institucional, mas de maneira nenhuma significou a anula-ção das histórias partidárias e individuais até ali construídas.24 Em artigopublicado em 1977 no jornal O Estado de S. Paulo, o jornalista MauroSantayana afirmava que no regime militar “permaneceram os homens anti-gos em seu exercício, amparados por uma biografia que os excluía dassuspeições novas”.25

A continuidade das elites políticas no regime militar pode ser verificadanos quadros a seguir, que indicam os altos números de filiação partidáriaanterior a 1965 dos governadores, senadores e deputados federais eleitosdurante o regime militar:

Quadro 1Filiação partidária anterior a 1965

dos governadores eleitos entre 1965 e 1978

Ano de eleição Nº de eleitos Nº de filiados a siglas

anteriores a 1965

1965* 10 10

1966 12 11

1970 22 12

1974 21 13

1978 22 15

Total (a) 87 61

Total (b) 83 57

Fonte: ABREU, Alzira Alves de et alii., op. cit.*O governador de Alagoas eleito em 1965 não foi considerado, uma vez que não chegou a tomarposse.(a) Referente ao número total de cargos de governador para os quais houve eleições diretas (1965)e indiretas (1966 a 1978).(b) Referente ao número de indivíduos eleitos, subtraindo quatro nomes que ocuparam o postode governador por duas vezes: Alacid da Silva Nunes (Pará), Antônio Carlos Magalhães (Bahia),Chagas Freitas (Guanabara e Estado do Rio de Janeiro) e Pedro Pedrossian (Mato Grosso e MatoGrosso do Sul).

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29230

231

A S AT I V I D A D E S P O L Í T I C O - PA R T I D Á R I A S E A P R O D U Ç Ã O D E C O N S E N T I M E N T O. . .

Quadro 2Filiação partidária anterior a 1965

dos senadores eleitos entre 1966 e 1978

Nº de eleitos Nº de filiados Nº de filiados Nº de eleitos

antes de 1966 a siglas a siglas por via direta antes de

antes de 1965 antes de 1965 1965 e depois de 1979

111* 96 63 92**

Arena (88)

MDB (23)

Fonte: ABREU, Alzira Alves de et alii., op. cit.*Nesse número estão incluídos os senadores eleitos de forma indireta em 1978.**Para postos legislativos e/ou executivos nos níveis municipal, estadual ou federal.

Quadro 3Filiação partidária anterior a 1965

dos deputados federais eleitos entre 1966 e 1978

Legislatura Legislatura Legislatura Legislatura

1967-1971 1971-1975 1975-1979 1979-1982

98,5% 89% 81% 72%

Fonte: FLEISCHER, David. “A evolução do bipartidarismo brasileiro 1966-1979”. Revista Brasi-leira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, 1980, nº 51, pp. 55-85.

O caminho para essa continuidade se deu com a criação do MDB e da Are-na a partir do Congresso, num processo em que se transferiram para as novasagremiações não só as principais lideranças, mas também suas redes políticas ebases eleitorais.26 André Marenco dos Santos afirma que no realinhamentopartidário ocorrido em 1966 houve um trânsito cruzado; ou seja, as siglas ex-tintas ofereceram quadros tanto para o MDB como para a Arena, havendoalguma fidelidade às alianças e aproximações anteriores a 1964 somente emMinas Gerais, Guanabara, Estado do Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.27

Todavia, apesar de não ser verificada uma convergência total entre as prefe-rências anteriores a 1965 e o sistema bipartidário, é possível afirmar que ascorrentes mais conservadoras tenderam a encaminhar-se para a Arena, enquantoalguns grupos liberais, de centro e esquerda agruparam-se no MDB.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29231

232

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Na divisão dos membros das antigas legendas, para a Arena dirigiram-sea quase totalidade dos parlamentares da UDN e parte majoritária do PSD.O MDB foi o destino da maior parte dos parlamentares petebistas, princi-palmente dos deputados federais, e parcela do PSD, que somados repre-sentaram 80% do partido.28 A formação das primeiras direções partidáriasda Arena e do MDB demonstra a presença de destacados líderes políticosdas legendas anteriores a 1965. No partido do governo, a proeminênciaera de lideranças udenistas, donos de larga experiência política e fortes basesestaduais.29 No MDB, principalmente após o arrastão na representaçãoparlamentar promovido pelo Ato Institucional nº 5, o partido passou a tersua direção composta por políticos do antigo PSD, embora a presença sig-nificativa dos ex-petebistas possa ser assinalada, ainda que de forma decres-cente, até o fim do bipartidarismo.30

Com as velhas lideranças, manteve-se também muito da identidade par-tidária construída até 1965. É interessante perceber que mais de dez anosapós a criação do bipartidarismo muitos políticos ainda eram identificadospelo pertencimento às siglas anteriores a 1965, principalmente a UDN e oPSD, e as disputas internas opunham correntes surgidas então. MargaretJenks, em seu estudo sobre as legendas políticas durante a ditadura, retra-tou a permanência dos velhos laços partidários por meio de um eventoprosaico durante a campanha para as eleições municipais de 1976. Nummesmo voo para Mato Grosso, estavam o líder do governo na Câmara, CélioBorja, e o presidente da MDB, deputado Ulysses Guimarães. No aeropor-to, esperavam pelo deputado arenista dois grupos, formados por políticosda ex-UDN e do ex-PSD. Ao ver o líder oposicionista, imediatamente ogrupo formado por ex-pessedistas pediu licença para ir cumprimentar o “com-panheiro de partido”, deixando de lado a recepção ao representante daArena.31 Em outros casos, as disputas intrapartidárias em relação à indica-ção de nomes para candidaturas ou ocupação de cargos importantes, prin-cipalmente na Arena, continuavam colocando em oposição grupos cujalealdade era fornecida pelo pertencimento a uma sigla pretérita a 1965.

A continuidade das identidades partidárias deve muito à manutençãodas redes individuais dos políticos, que foram transferidas para os novospartidos. Houve um esforço permanente de mobilização e direcionamento

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29232

233

A S AT I V I D A D E S P O L Í T I C O - PA R T I D Á R I A S E A P R O D U Ç Ã O D E C O N S E N T I M E N T O. . .

dos antigos diretórios municipais, cabos eleitorais e bases para a Arena e oMDB. Nesse sentido, como afirma Grinberg, se os partidos eram novos eartificiais, seus membros tinham longa prática política, o que permitia a per-manência das identidades anteriormente construídas junto ao eleitorado eàs forças políticas atuantes.32

Do que foi dito, é possível afirmar que muitos políticos continuaram de-senvolvendo uma atuação permanente junto aos partidos, às instituições e àpopulação. O prestígio, os redutos eleitorais e o espaço público de muitaslideranças foram mobilizados em um novo contexto institucional, muitas vezesna defesa da intervenção militar em 1964 e do regime autoritário estabeleci-do nas décadas seguintes. Ao mesmo tempo, essa ação fazia parte do traba-lho cotidiano necessário para garantir a manutenção das carreiras políticasindividuais, o que obrigava esses homens a buscarem se aproximar das auto-ridades, intermediarem as reivindicações de seus eleitores, influenciarem de-cisões e nomeações governamentais, entre outras práticas características dospolíticos. Nesse duplo movimento, o regime autoritário assentava lugar emuma história que se iniciara para aquém do golpe de 1964.

O FORTALECIMENTO DA DINÂMICA ELEITORAL E O SURGIMENTO

DE NOVAS IDENTIDADES

Se a identidade partidária de antigas lideranças resistiu no sistema bipar-tidário, outras foram criadas a partir da dinâmica eleitoral no decorrer doregime militar. Esse é o caminho apontado por grande parte das análisesproduzida sobre as eleições ocorridas durante a ditadura. Um dos aspectosverificados foi a tendência constante do crescimento do MDB, principal-mente nas áreas mais urbanizadas, acompanhada do declínio da Arena, queconcentrou seu poder eleitoral nos municípios menores e nas áreas rurais.Isso se pronunciou nos primeiros anos da década de 1970 e adquiriu maisforça nos pleitos parlamentares seguintes.33

Esse movimento não significa, porém, uma reversão de expectativas an-teriores, e sim uma intensificação da força que o partido oposicionista sem-pre teve nos maiores centros urbanos, enquanto a Arena se caracterizou desde

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29233

234

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

o seu surgimento pela maior presença em regiões do interior do país. Esseaspecto está diretamente ligado ao que vimos tratando: a transferência dasredes políticas anteriores a 1964. Os ex-udenistas e ex-pessedistas que sefiliaram ao partido do governo tinham fortes raízes nas áreas rurais e foramcapazes de organizar diretórios municipais e impulsionar o novo partido emsuas regiões.34 O MDB, por sua vez, herdou um grande número de parla-mentares com atuação destacada no meio urbano e aí foi possível se articularmais rapidamente, ao contrário do que ocorreu no interior dos estados.35

O avanço das conquistas parlamentares do MDB a partir de 1974 aba-lou seriamente a supremacia que os arenistas haviam alcançado em 1966 e1970, permitindo estabelecer uma divisão do período bipartidário em duasfases no que se refere às eleições para o poder Legislativo — a primeiraengloba os pleitos de 1966 e 1970, com enorme vantagem para a Arena, ea segunda refere-se às eleições de 1974 e 1978, quando os oposicionistastomaram conta de posições importantes.36 A Arena conseguiu manter seucontrole nos estados das regiões Norte e Nordeste, sua maior base eleitorale da qual passou a depender cada vez mais; entretanto, mesmo aí o MDBlogrou penetrar nas cidades mais industrializadas.37

No âmbito dos municípios, também pode ser registrado um crescimentocontínuo do MDB durante a década de 1970, decorrente não só da imagemoposicionista que o partido adquiriu a partir da campanha de 1974 comodo trabalho de organização e enraizamento por meio da criação de dire-tórios. Ainda assim, a Arena permaneceu com uma larga vantagem nonúmero de prefeitos eleitos. Isso indica que, a despeito do crescimento doMDB nas maiores cidades, a capilaridade da estrutura organizacional do par-tido governista lhe garantiu uma grande força política e controle sobre oeleitorado. A herança de grande parte de líderes locais e estaduais do PSDe UDN, como já apontamos, somada à chegada, após 1970, de muitos pre-feitos que, eleitos pelo MDB, migraram para a Arena buscando aproximar-se do governo, foram fundamentais nesse processo.38 O MDB só veio aalcançar uma abrangência nacional em fins da década de 1970, quandoconseguiu organizar quase três mil diretórios no país.39

Os números do controle arenista sobre as prefeituras são muito expres-sivos. Em 1968, conquistou o poder em 80% dos municípios; quatro anos

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29234

235

A S AT I V I D A D E S P O L Í T I C O - PA R T I D Á R I A S E A P R O D U Ç Ã O D E C O N S E N T I M E N T O. . .

depois, esse índice subiu para 88%. Segundo Jenks, nesse pleito o MDBsequer foi capaz de apresentar candidatos em um quarto dos municípios,principalmente nas regiões Norte e Nordeste.40 Em 1976, a alteração foimínima em relação ao número de municípios controlados pela Arena, quealcançou 83%. O interessante a notar é que, embora os arenistas perdessemsomente 5% do número de prefeituras conquistadas em 1972, a votaçãodo MDB cresceu 30% em 1976, praticamente se equiparando ao adversá-rio em número de votos, o que corrobora a força oposicionista nos maiorescentros urbanos.41

Para entender a discrepância entre o crescimento alcançado pelo MDBnas eleições para os órgãos legislativos e a força arenista nos municípios, éimportante indicar um elemento fundamental das atividades políticas du-rante o regime militar. A dinâmica que regeu as eleições parlamentares sediferenciou do que podemos encontrar no âmbito municipal, no qual asdisputas estaduais ou nacionais cediam lugar às questões locais e a proxi-midade com os governos estadual e federal adquiria grande importância.42

Nesse processo, os governadores desempenharam um papel crucial, umavez que serviram como elo entre as orientações, os recursos e programasdo governo federal e os políticos da Arena em seus estados, responsáveispelo trabalho de base para a conquista de votos.

Fato é que, ao longo da década de 1970, o crescimento eleitoral do MDBfoi inegável, sendo embasado na construção de uma imagem oposicionistade tons inéditos que lhe garantiu grande apoio entre a população assalariadae mais pobre dos grandes centros urbanos.43 Essa nova identidade, por suavez, foi cuidadosamente construída pelas lideranças oposicionistas. Desdeinícios de 1971, a atuação no Congresso Nacional do grupo de deputadosconhecido como autênticos e a campanha da anticandidatura de UlyssesGuimarães, em 1973, iniciaram o trabalho de divulgar uma imagem públicado MDB como um partido crítico ao regime e com objetivos de luta claros,superando a apatia e moderação extremada que pareciam dominá-lo desde acrise de 1968. A campanha eleitoral desenvolvida em 1974 foi bastante impor-tante para agregar a essa imagem o aspecto de partido defensor dos pobres.44

Os sinais de mudança na orientação do MDB podiam ser vistos na reu-nião do partido ocorrida em Campinas, em 1971. Nessa ocasião, o jovem

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29235

236

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

prefeito dessa cidade, Orestes Quércia, cuja carreira se iniciara em 1963como vereador pelo Partido Libertador, defendeu a adoção de uma atitudepragmática, afirmando que, para além das questões democráticas, haviaoutros problemas de cunho social e econômico que afetavam diretamentea população e diante das quais o partido era obrigado a se manifestar.45 Aforça de Orestes Quércia advinha de um intenso trabalho de estruturaçãodo partido, em São Paulo, ao qual ele se dedicava, com a criação de cente-nas de diretórios municipais.46 Nessa mesma época, os deputados autênti-cos chamavam a atenção para a necessidade de o MDB organizar-se não sóem diretórios, mas também junto a grupos específicos como os jovens, asmulheres e os trabalhadores.47 Em ambas as iniciativas, deve ser sublinhadaa percepção interna da necessidade de aproximação do partido com a socie-dade, discutindo importantes questões e trabalhando no sentido de inten-sificar a participação e a mobilização políticas.

A proposta de Quércia sobre as diretrizes que deveriam nortear a atuaçãodo MDB acabou ganhando apoio. Na campanha eleitoral de 1974, todo umesforço foi feito para elaborar um discurso unificado para os candidatos dopartido, redirecionando algumas críticas e incorporando, então, os temassocioeconômicos ao debate.48 Franco Montoro, coordenador nacional dacampanha desse ano, reuniu-se em São Paulo com os principais líderes dopartido para traçar uma estratégia comum e percorreu exaustivamente o país,participando, segundo ele, de uma infinidade de programas de televisão.49

A partir desse momento, o MDB construiria sua posição diante do governorelacionando temas sociais e econômicos às questões políticas. Daí o slogan“O país vai bem. E você? Vote no MDB. Você sabe por quê”. No mesmo tomvinham os discursos proferidos pelos candidatos do partido, contra os quais osarenistas diziam ficar sem respostas — a comparação entre o “preço do frangoe as horas de trabalho necessárias para comprá-lo”, a crítica à construção de“grandes obras enquanto a população passava fome”, as denúncias da concen-tração de renda confrontadas com os índices de crescimento da economia.50

Em 1974, o senador Paulo Torres, militar que participara do levante te-nentista de 1922 e foi candidato à reeleição pela Arena derrotado porSaturnino Braga no Estado do Rio de Janeiro, resumiu seu dilema nos se-guintes termos:

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29236

237

A S AT I V I D A D E S P O L Í T I C O - PA R T I D Á R I A S E A P R O D U Ç Ã O D E C O N S E N T I M E N T O. . .

Eu apresentava gráficos e estatísticas na televisão, mostrando que em 1963

havia tantos analfabetos e que agora só existiam tantos. Falei das obras da

Revolução, principalmente da ponte Rio-Niterói. Aí eles vinham e falavam

que precisavam tantas horas de trabalho para comprar um quilo de carne e que

ponte não enche barriga.51

A partir desse ponto, a relação entre liberdade política e condenação dadesigualdade social (vista pela ótica popular e do trabalhador) passou a for-mar o eixo fundamental do discurso público do MDB — a liberdade e ajustiça social enfatizadas por Tancredo Neves. A propagação dessa leiturada realidade e dos problemas brasileiros deitou raízes no eleitorado nos anosseguintes. No programa que o MDB exibiu em cadeia de rádio e televisão,em junho de 1977, o mesmo raciocínio esteve presente na fala do presi-dente do partido, o deputado Ulysses Guimarães, e do líder no Senado, Fran-co Montoro: as restrições à participação política dos cidadãos impostas peloregime levaram à adoção de uma política econômica marcada pelo arrochosalarial e pelos preços altos.52 Essa ação capitaneada pelos líderes do parti-do, mas contando com a participação de diferentes correntes internas, pro-porcionou aos emedebistas a oportunidade de estabelecer novos laços comos eleitores e, assim, aprofundar a legitimação de seus mandatos popularescomo representantes dos interesses sociais. Nesse processo desenvolvidodesde o início dos anos 1970, o MDB terminou por desempenhar o que,para Serge Berstein, é uma das funções primordiais dos partidos: a articula-ção, numa linguagem própria da política, de um discurso sobre a realidadeque propõe uma solução para os problemas vividos pela sociedade. Em ou-tras palavras, os políticos são responsáveis por fazer a mediação entre umproblema e a maneira como ele é lido e compreendido socialmente, o que alegenda oposicionista esmerou-se por realizar a partir da década de 1970.53

Citando Bolivar Lamounier, os “partidos não são somente agregadoresde interesses, mas também formadores de opiniões e atitudes”.54 Construirum discurso público no qual a solução dos problemas econômicos, temafundamental para a população mais pobre dos centros urbanos, se ligavadiretamente ao reforço das instituições democráticas foi a explicação darealidade e o caminho indicado pelo MDB. A partir das eleições de 1974,

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29237

238

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

esse discurso oposicionista atraiu muitos votos. Conferiu à disputa de al-guns cargos, como o de senador, um caráter plebiscitário, na medida emque se colocou como um julgamento do governo — e nessa categoria seincluiria o crescimento dos votos na legenda.55 Foi capaz também de origi-nar ideologias e líderes, identificados com as mudanças e os problemas dasociedade brasileira na década de 1970.

Com essa imagem forjada para e pelo MDB, novas identidades surgi-ram, coexistindo e se mesclando com lealdades aos partidos extintos em1965 e às antigas lideranças. Hélgio Trindade e Fernando Henrique Car-doso, em estudos sobre os resultados das eleições de 1974 no Rio Grandedo Sul e em São Paulo, afirmaram que os eleitores dos candidatos do MDBseriam os que apoiavam as antigas siglas de centro-esquerda e transferiramsuas preferências para os emedebistas, a partir do início da década de 1970.56

Dessa forma, os autores verificaram uma continuidade ideológica em partedo eleitorado, disposta a apoiar candidatos novos cujo discurso mostravasemelhanças com a plataforma defendida pelos trabalhistas. Ao lado dessegrupo, novos eleitores — principalmente jovens, urbanos, de estratos maisbaixos da população — encaminharam-se também para o apoio ao MDB.

Retomando a distinção sobre as duas fases do período bipartidário, pode-se afirmar que o pleito de 1974 explicitou a emergência de uma nova dinâ-mica política e eleitoral, marcada por uma intensificação dos debatespúblicos, pela identificação de bases sociais e geográficas diferenciadas paraArena e MDB e pela maior mobilização social. Nesse sentido, a artificialidadedebitada aos partidos criados em 1965 perdeu cada vez mais espaço diantedos aspectos renovados das atividades político-partidárias.57

O enraizamento social do MDB e sua força crescente tiveram, comoefeito, o fortalecimento na sociedade do caminho pensado pela ditadurapara sua própria legitimação e transformação: as instituições políticas re-presentativas clássicas — o Congresso Nacional, a atuação partidária, acompetição eleitoral.58 Encontrando nas eleições uma possibilidade de con-quistar posições cada vez mais importantes, os líderes do MDB comprome-teram-se progressivamente com uma atuação dentro dos limites permitidospelo regime ditatorial, ainda que sob o preço de enfrentar constantes crisesinternas por conta de setores que defendiam para o partido uma atitude

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29238

239

A S AT I V I D A D E S P O L Í T I C O - PA R T I D Á R I A S E A P R O D U Ç Ã O D E C O N S E N T I M E N T O. . .

mais oposicionista e desafiadora. Essa opção terminou por unir situação eoposição em torno de alguns temas comuns, como a defesa do fortaleci-mento do Congresso Nacional, ao lado da necessidade de negociação cons-tante e “respeitosa” com as autoridades do regime.

O APOIO ELEITORAL À ARENA: CLIENTELISMO E CONSERVADORISMO

O crescimento do MDB e o destaque alcançado por ele durante a décadade 1970 atraíram muita atenção de jornalistas, sociólogos, cientistas políti-cos e historiadores sobre o partido; daí o grande peso que adquire até nestetrabalho. Mas o que dizer acerca da força eleitoral da Arena? À primeiravista, a literatura disponível parece indicar que não há muito a se questio-nar sobre os votos que esse partido recebeu ou sobre o que eles poderiamnos informar acerca de identidades partidárias e ideologias. Se o apoio aoMDB foi entendido como canal de protesto e repúdio às ações governa-mentais ou expressão de eleitores de centro e de esquerda, os votos dadosaos arenistas foram geralmente debitados na conta de práticas clientelistas.Tendo seus redutos eleitorais localizados nos chamados “grotões”, em áreasmenos urbanizadas, e, principalmente, nos estados das regiões Norte eNordeste onde reinariam as oligarquias tradicionais e cenários marcadospor altos índices de pobreza e analfabetismo, o suporte à Arena não carece-ria de maiores investigações, podendo ser compreendido como resultadodo uso da máquina estatal para a conquista do voto.59

Sem dúvida, não há como negar a maior presença arenista nas áreas ru-rais e a força que o partido retirou daí. Também é difícil deixar de reconhe-cer as estreitas relações do Estado autoritário com os políticos da Arena,que facilitaram a esses o acesso a recursos federais e estaduais. A necessidadede estar próximo das benesses do Estado fez com que muitos políticos, cujabase eleitoral se sustentava na distribuição de bens públicos, se ligassem aopartido do governo. Por outro lado, a premência pelo sucesso eleitoral daArena que a própria ditadura exigia, principalmente a partir de 1974, deri-vou na intensa manipulação dos recursos federais em benefício dos candi-datos arenistas.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29239

240

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Muitos autores sublinharam a relação entre o fortalecimento eleitoraldo MDB e a ação governamental em benefício da Arena. Margaret Jenksidentificou o uso em larga escala de práticas clientelistas, intensificado apartir de 1975, pelos grupos políticos anteriores a 1965 que formaram asprincipais correntes arenistas. Fernando Abrúcio enfatizou o aumento dosrepasses federais para os estados após 1974, especialmente aqueles maispobres localizados nas regiões Norte e Nordeste do país, onde a Arenaobteve grande força eleitoral. Sônia Draibe investigou a aplicação das polí-ticas sociais durante a ditadura, encontrando uma relação direta entre oaumento da competição eleitoral e o uso clientelista dos programas públi-cos. Frances Hagopian, num estudo sobre Minas Gerais, afirmou que aselites políticas tradicionais conseguiram manter uma articulação importan-te com as agências burocráticas criadas pelos governos estadual e federal;relação fortalecida, segundo a autora, nos momentos em que o regime tevede enfrentar o crescimento do MDB. Por fim, Alzira Alves de Abreu, anali-sando o arquivo pessoal do general Geisel doado ao CPDoc-FGV, apontouas relações estreitas entre a política de concessão de canais de rádio duran-te o governo Geisel e os imperativos das disputas da Arena com o MDB.60

Essa argumentação pode nos ser bastante útil para pensar o emprego depráticas clientelistas como forma de produzir o apoio social à ditadura, for-talecendo as posições dos políticos arenistas — o que, de resto, coloca-secomo um elemento tradicional das relações políticas no Brasil. Acredita-mos, porém, que ela não é a única a explicar os votos da Arena, pois seconcentra exclusivamente numa variável não ideológica. Ao fazer isso, des-preza o dado de que, assim como o MDB conquistou votos defendendoideias sobre liberdade, distribuição de renda, custo de vida e desigualdadesocial, os candidatos arenistas também apresentaram suas bandeiras, em-bora sobre elas tenhamos pouco conhecimento.

É interessante observar a predominância desse tipo de visão restrita acercado apoio à Arena por parte até dos autores que se dispõem a analisar ospartidos conservadores por uma dimensão ideológica, como é o caso deMainwaring, Meneguello e Power.61 Em seu estudo, os autores não usamuma definição de conservadorismo calcada em um núcleo ideológico es-sencial, tomando por base as posições programáticas dos partidos em rela-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29240

241

A S AT I V I D A D E S P O L Í T I C O - PA R T I D Á R I A S E A P R O D U Ç Ã O D E C O N S E N T I M E N T O. . .

ção a políticas e propostas específicas. Esse critério confere um caráter

conjuntural a essas classificações, na medida em que são as posições adotadas

diante de questões discutidas em cada período histórico que situam os par-

tidos no espectro ideológico.

No Brasil republicano, de uma forma geral os autores sublinharam que o

clientelismo e personalismo são características distintivas da ação dos con-

servadores para a conquista de suporte eleitoral e o estabelecimento de redes

políticas.62 Para o período do regime militar, essa interpretação se acentuou.

Afirmando que a ditadura se apoiou nas siglas conservadoras e que a Arena

seria “o novo veículo do conservadorismo”,63 continuando o trabalho do PSD

e da UDN, os autores explicaram a força arenista pela patronagem e pelo

clientelismo, sobretudo rural. Nas áreas urbanas e mais desenvolvidas, o apoio

ao partido governista seria declinante em razão do maior nível de informa-

ção política e da menor dependência dos recursos federais. Mais uma vez, a

possibilidade de analisar a Arena a partir de suas linhas programáticas, inclu-

sive das votações de diferentes projetos no Congresso Nacional, foi ignorada

e o peso recai sobre esquemas clientelistas e de patronagem.

As diferenças entre as legendas no sistema bipartidário se resumiriam,

segundo os autores citados, às atitudes em relação ao regime militar e à de-

mocracia. Todavia, a seguirmos esse raciocínio, como entender a rejeição dos

deputados arenistas a projetos governamentais, como ocorreu em 1968, ou

as críticas constantes feitas no Parlamento à falta de liberdade política ou às

restrições impostas aos partidos? Em vários desses momentos, as atitudes dos

governistas concernentes à democracia e ao regime militar se aproximaram

muito daquelas defendidas pelo MDB, o que tornaria mais confusa a distin-

ção entre os dois partidos. Para além, as questões debatidas pelos políticos

durante a ditadura foram bem mais amplas e diversificadas e sua análise po-

deria fornecer importantes subsídios para ampliar a compreensão da atua-

ção partidária nesse período, sob um viés ideológico.

Na obra de Motta, ele expõe uma pesquisa feita pelo Jornal do Brasil com

parlamentares dos dois partidos em 1975 demonstrando diferenças relevan-

tes entre as convicções de arenistas e emedebistas, que aproximariam os pri-

meiros de concepções de direita e conservadoras. Finalmente, analisando as

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29241

242

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

votações na Assembleia Constituinte em 1986 nos temas referentes ao capi-

tal e trabalho, Madeira encontrou uma diferenciação relevante entre os vo-

tos de ex-emedebistas e ex-arenistas — a despeito dos partidos políticos aos

quais esses se filiaram após 1979 — que permitiria alocá-los em posições mais

progressistas e mais conservadoras, respectivamente.64

As práticas clientelistas e de cooptação não são muito úteis, por exem-

plo, para explicar o apoio, ainda que decrescente, que a Arena recebeu nos

centros urbanos, vindo de parte relevante das classes média e alta. Se o voto

no MDB nas cidades foi o voto dos mais jovens e da identificação do pobre

contra o rico, como podemos entender o eleitor urbano e rico da Arena,

que não se colocava na dependência da distribuição de bens públicos? Se as

antigas bases eleitorais petebistas se aproximaram do MDB, por que as

udenistas não se encontrariam nas ideias da Arena? Essa é até uma das con-

clusões apontadas por Fábio Wanderley Reis em seu estudo sobre as elei-

ções de 1974 em Minas Gerais, no qual os eleitores udenistas tenderam a

apoiar os candidatos da Arena. Numa survey realizada em São Paulo no

mesmo ano, Lamounier encontrou diferenças ideológicas entre os eleito-

res emedebistas e arenistas, que situavam os segundos em posições conser-

vadoras e evocavam, segundo o autor, características da velha UDN.

Se o surgimento de novas identificações partidárias no MDB foi uma

questão a demandar explicações, a continuidade das correntes conserva-

doras também deveria ser — e, para além, o exame das transformações no

próprio pensamento conservador em meio a um período de profundas trans-

formações sociais como os anos entre 1964 e 1985. Por isso, e fazendo eco

aos trabalhos de Lúcia Grinberg, analisar mais profundamente o caráter

ideológico da Arena pode suscitar uma reflexão sobre a atuação das cor-

rentes políticas de direita na política brasileira.65 Desse modo, não só o MDB,

mas também a Arena pode ser entendida como um canal de participação e

representação das ideologias e setores sociais, canalizando para o regime

militar o apoio de eleitores conservadores.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29242

243

A S AT I V I D A D E S P O L Í T I C O - PA R T I D Á R I A S E A P R O D U Ç Ã O D E C O N S E N T I M E N T O. . .

Notas

1. GASPARI, Elio. A ditadura derrotada. São Paulo, Companhia das Letras, 2003,pp. 319-320.

2. SCHMITT, Rogério. Partidos políticos no Brasil (1945-2000). Rio de Janeiro:Jorge Zahar Editor, 2000; FLEISCHER, David. “Manipulações casuísticas dosistema eleitoral durante o período militar, ou como usualmente o feitiço se vol-tava contra o feiticeiro”, in: SOARES, Gláucio Ary Dillon; D’ARAUJO, MariaCelina (orgs.). 21 anos de regime militar: balanços e perspectivas. Rio de Janeiro:FGV, 1994; ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis: Vozes, 1987.

3. BAAKLINI, Abdo. O Congresso e o sistema político no Brasil. Rio de Janeiro: Paze Terra, 1993.

4. GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras,2002; GRINBERG, Lúcia. Partido político ou bode expiatório: um estudo sobre aAliança Renovadora Nacional. Tese de Doutorado, Universidade FederalFluminense, Niterói, 2004a. Sobre a lógica das primeiras ondas de cassação demandatos e direitos políticos, ver SOARES, Gláucio Ary Dillon. “As políticas decassações”. Dados, Rio de Janeiro, nº 21, 1979, pp. 69-85; DINIZ, Eli. Voto emáquina política: patronagem e clientelismo no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:Paz e Terra, 1982.

5. VASCONCELOS, Cláudio B. A preservação do Legislativo pelo regime militarbrasileiro: ficção legalista ou necessidade de legitimação (1964-1968). Disserta-ção de Mestrado, UFRJ, 2004.

6. FLEISCHER, David. “Os partidos políticos”, in: AVELAR, Lúcia; CINTRA, An-tônio Octávio (orgs.). Sistema político brasileiro: uma introdução. Rio de Janei-ro/São Paulo: Fundação Konrad-Adenauer-Stiftung/Fundação Unesp, 2004, pp.249-285.

7. GRINBERG, Lúcia. A Aliança Nacional Renovadora (Arena): a criação do bipar-tidarismo e do partido do governo (1965-1979). Dissertação de Mestrado, Uni-versidade Federal Fluminense, Niterói, 1998.

8. MONTORO, André Franco. Memórias em linha reta. São Paulo: Editora SenacSão Paulo, 2000, p. 14.

9. Idem, p. 123.10. KINZO, Maria D’Alva Gil. “Partidos, eleições e democracia no Brasil pós-1985”.

Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, vol. 19, nº 54, 2004, pp. 23-41;SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Votos e partidos: almanaque de dados elei-torais: Brasil e outros países. Rio de Janeiro: FGV, 2000.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29243

244

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

11. Sobre essa literatura, ver a introdução de Hélgio Trindade em MAINWARING,

Scott; MENEGUELLO, Rachel; POWER, Timothy. Partidos conservadores no

Brasil contemporâneo. Quais são, o que fazem, quais são suas bases. São Paulo:

Paz e Terra, 2000.

12. LIMA Jr., Olavo Brasil; SCHMITT, Rogério A.; NICOLAU, Jairo César. “A pro-

dução brasileira recente sobre partidos, eleições e comportamento político: ba-

lanço bibliográfico”. BIB, Rio de Janeiro, nº 34, 2º semestre de 1992.

13. O minucioso levantamento bibliográfico feito pelo historiador Carlos Fico e

publicado em 2004 pode corroborar essa avaliação. FICO, Carlos. Além do gol-

pe: a tomada do poder em 31 de março de 1964 e a ditadura militar. Rio de

Janeiro: Record, 2004.

14. GRINBERG, Lucia, op. cit., 1998; GRINBERG, Lucia, op. cit., 2004a.

15. MELHEM, Célia Soibelmann. Política de botinas amarelas: o MDB-PMDB paulista

de 1965 a 1988. São Paulo, Hucitec/Departamento de Ciência Política da USP,

1998; CANATO, César. Arena e MDB em Araraquara (1965-1979). Dissertação

de Mestrado, Unicamp, 2003; DOCKHORN, Gilvan O.V. A redefinição do Esta-

do autoritário brasileiro: a perspectiva do Parlamento sul-rio-grandense (1974-

1984). Tese de Doutorado, UFRGS, 2004; VERSIANI, Maria Helena. Padrões e

práticas na política carioca: os deputados federais eleitos pela Guanabara em 1962

e 1970. Dissertação de Mestrado em História Social, UFRJ, 2007.

16. FIGUEIREDO, Marcus; KLEIN, Lúcia. Legitimidade e coação no Brasil pós-64.

Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 1978; Brasil, nunca mais. Petrópolis: Vo-

zes, 1985; GASPARI, Elio, op. cit., 2002; GASPARI, Elio, op. cit., 2003. Para as

relações entre o regime autoritário e o Congresso Nacional, ver BAAKLINI, Abdo,

op. cit.; PESSANHA, Charles. “O poder Executivo e o processo legislativo nas

constituições brasileiras: teoria e prática”, in: VIANNA, L.J.W. (org.). A demo-

cracia e os três poderes no Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

17. Sobre a produção legislativa durante o regime militar, ver BAAKLINI, Abdo, op.

cit.; ASTIZ, Carlos. “O papel atual do Congresso brasileiro”, in: MENDES, Cân-

dido (org.). O Legislativo e a tecnocracia. Rio de Janeiro: Imago/Conjunto Uni-

versitário Cândido Mendes, 1975.

18. Uma discussão dessas visões é feita em GRINBERG, Lúcia. “Uma memória polí-

tica sobre a Arena: dos ‘revolucionários de primeira hora’ ao ‘partido do sim,

senhor’”, in: REIS, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto

Sá (orgs.). O golpe e a ditadura militar: 40 anos depois (1964-2004). Bauru:

Edusc, 2004b, pp. 141-159.

19. VILELA, Teotônio. A pregação da liberdade. Andanças de um liberal. Porto Ale-

gre: L&PM Editores, 1977, pp. 63-64.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29244

245

A S AT I V I D A D E S P O L Í T I C O - PA R T I D Á R I A S E A P R O D U Ç Ã O D E C O N S E N T I M E N T O. . .

20. Conclusão semelhante se origina da leitura de depoimentos e biografias de figuraspolíticas que atuaram durante a ditadura militar. Ver, por exemplo, MONTORO,op. cit.; VILELA, op. cit.; NADER, Ana Beatriz. Autênticos do MDB: históriaoral de vida política. São Paulo: Paz e Terra, 1998; GUIMARÃES, Ulysses et al. Aluta pela democracia: MDB no rádio e na TV. Florianópolis: Instituto de EstudosPedroso Horta, s/d.

21. NADER, Ana Beatriz, op. cit., p. 116.22. Para as citações, Retratos do Brasil (Da Monarquia ao Estado militar). São Paulo:

Política Editora de Livros, Jornais e Revistas, 1994, vol. 4, pp. 27; 93; 107-108.As informações biográficas se basearam em ABREU, Alzira Alves de et al. (orgs.).Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro Pós-1930. Rio de Janeiro, FGV, 2001.

23. As eleições para prefeitos e vereadores, a partir de 1970, passaram a se realizarentre os pleitos para deputados estaduais, federais e senadores. FLEISCHER,David, op. cit., 1994.

24. MADEIRA, Rafael Machado. Vinhos antigos em novas garrafas: a influência deex-arenistas e ex-emedebistas no atual multipartidarismo brasileiro. Tese deDoutoramento em Ciência Política, UFRGS, 2006, pp. 51-52.

25. SANTAYANA, Mauro. Conciliação e transição, as armas de Tancredo. Rio deJaneiro: Paz e Terra, 1985.

26. A lei exigia a filiação de 120 deputados federais e 20 senadores, o que implicavao surgimento de, no máximo, três siglas, considerando o número de 409 deputa-dos e 66 senadores que compunham o Congresso Nacional em 1966.

27. SANTOS, André Marenco dos. Não se fazem mais oligarquias como antigamen-te. Recrutamento parlamentar, experiência política e vínculos partidários entredeputados brasileiros (1946-1988). Tese de Doutorado, UFRGS, 2000.

28. FLEISCHER, David. “A evolução do bipartidarismo brasileiro 1966-1979”. RevistaBrasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, nº 51, 1980, pp. 55-85; MOTTA,Rodrigo Patto Sá. Partido e sociedade: a trajetória do MDB. Ouro Preto, UFOP, 1997.

29. GRINBERG, Lúcia, op. cit., 2004a.30. KINZO, Maria D’Alva Gil. Oposição e autoritarismo. Gênese e trajetória do MDB

(1966-1979). São Paulo, Vértice/Revista dos Tribunais, 1988; MOTTA, RodrigoPatto Sá, op. cit.; MELHEM, Célia S., op. cit.

31. JENKS, Margaret. Political Parties in Authoritarian Brazil. Dissertação de Ph.D.,Duke University, 1979, pp. 301-302.

32. GRINBERG, Lúcia, op. cit., 1998, pp. 50-51.33. CARDOSO, Fernando Henrique; LAMOUNIER, Bolívar (orgs.). Os partidos e

as eleições no Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978; KINZO, MariaD’Alva Gil, op. cit., 1988; LAMOUNIER, Bolívar; REIS, Fábio Wanderley (eds.).Os partidos e o regime. São Paulo: Símbolo, 1978.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29245

246

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

34. A Arena se organizou também contando com quase todos os diretórios do Partidoda Representação Popular, Partido Republicano, Partido Democrata Cristão ePartido Social Trabalhista. Cf. o texto de Lúcia Grinberg, “‘Saudações arenistas’:a correspondência entre partidários da Aliança Renovadora Nacional (Arena),1966-1979”, nesta coleção.

35. JENKS, Margaret, op. cit.; MOTTA, Rodrigo Patto Sá, op. cit.36. SCHMIT, Rogério, op. cit.37. DINIZ, Eli. “O ciclo autoritário: a lógica partidário-eleitoral e a erosão do regi-

me”, in: LIMA Jr., Olavo Brasil de (org.). O balanço do poder: formas de domi-nação e representação. Rio de Janeiro: Iuperj/Rio Fundo Editora, 1990; SCHMIT,Rogério, op. cit.; CAROPRESO, Álvaro; PEREIRA, Raimundo; RUY, José Carlos.Eleições no Brasil pós-64. São Paulo: Global, 1984.

38. JENKS, Margaret, op. cit.39. ANASTACIA, Maria de Fátima. Partido Democrático Social e a crise da ordem

autoritária no Brasil (1979-1984). Dissertação de Mestrado, UFMG, 1985.40. É importante lembrar que, nesse período, o partido oposicionista se debatia in-

ternamente com as cassações derivadas do AI-5 e os números desanimadores daseleições parlamentares em 1970. A proposta de dissolução foi aventada diversasvezes, diante dos limites impostos pelo governo autoritário a suas ações.

41. JENKS, Margaret, op. cit.42. TRINDADE, Hélgio. “Padrões e tendências do comportamento eleitoral no Rio

Grande do Sul”, in: CARDOSO, Fernando Henrique; LAMOUNIER, Bolívar.(orgs.), op. cit.

43. CARDOSO, Fernando Henrique. “Partidos e deputados em São Paulo: o voto ea representação política”, in: CARDOSO, Fernando Henrique; LAMOUNIER,Bolívar (orgs.), op. cit.; REIS, Fábio Wanderley. “As eleições em Minas Gerais”,in: CARDOSO, Fernando Henrique; LAMOUNIER, Bolívar (orgs.), op. cit.;CAROPRESO, Álvaro; PEREIRA, Raimundo; RUY, José Carlos, op. cit.

44. KINZO, Maria D’Alva Gil. “O legado oposicionista do MDB, o partido do Mo-vimento Democrático Brasileiro”, in: SOARES, Gláucio Ary Dillon; D’ARAUJO,Maria Celina (orgs.), op. cit.

45. JENKS, Margaret, op. cit.46. MELHEM, Célia S., op. cit.47. MOTTA, Rodrigo Patto Sá, op. cit.48. KINZO, Maria D’Alva Gil, op. cit., 1988.49. MONTORO, André Franco, op. cit.50. GASPARI, Elio, op. cit., 2003.51. KINZO, Maria D’Alva Gil, op. cit., 1988, p. 157.52. GUIMARÃES, Ulysses et al., op. cit.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29246

247

A S AT I V I D A D E S P O L Í T I C O - PA R T I D Á R I A S E A P R O D U Ç Ã O D E C O N S E N T I M E N T O. . .

53. BERSTEIN, Serge. “Os partidos”, in: RÉMOND, René. Por uma história políti-

ca. Rio de Janeiro: UFRJ/FGV, 1996, pp. 57-98.

54. CARDOSO, Fernando Henrique; LAMOUNIER, Bolívar, op. cit., p. 33.

55. LAMOUNIER, Bolívar. “O Brasil autoritário revisitado, o impacto das eleições

sobre a abertura”, in: STEPAN, Alfred. Democratizando o Brasil. Rio de Janeiro:

Paz e Terra, 1988.

56. TRINDADE, Hélgio, op. cit., 1978; CARDOSO, Fernando Henrique;

LAMOUNIER, Bolívar (orgs.), op. cit.

57. MADEIRA, Rafael M., op. cit.; MELHEM, Célia S., op. cit.

58. LAMOUNIER, Bolívar, op. cit., 1988.

59. GRINBERG, Lúcia, op. cit., 2004b.

60. JENKS, Margaret, op. cit.; ABRÚCIO, Fernando Luiz. Os barões da federação:

os governadores e a redemocratização brasileira. São Paulo: Hucitec, 2002;

DRAIBE, Sônia. “As políticas sociais do regime militar: 1964-1985”, in: SOA-

RES, Gláucio Ary Dillon; D’ARAUJO, Maria Celina (orgs.) op. cit.; HAGOPIAN,

Frances. Traditional Politics and Regime Change in Brazil. Cambridge: Cambridge

University Press, 1996; ABREU, Alzira Alves de. “As telecomunicações no Brasil

sob a ótica do governo Geisel”, in: CASTRO, Celso; D’ARAUJO, Maria Celina

(orgs.). Dossiê Geisel. Rio de Janeiro: FGV, 2002.

61. MAINWARING, Scott; MENEGUELLO, Rachel; POWER, Timothy, op. cit.

62. Idem, capítulos 1 e 2.

63. Idem, p. 24.

64. LAMOUNIER, Bolívar; REIS, Fábio Wanderley, op. cit.; MOTTA, Rodrigo Patto

Sá, op. cit., pp. 46-59; MADEIRA, Rafael M., op. cit., pp. 99-102.

65. GRINBERG, Lúcia, op. cit., 2004b.

Bibliografia

ABREU, Alzira Alves de et al. (orgs.). Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro Pós-

1930. Rio de Janeiro: FGV, 2001.

——. “As telecomunicações no Brasil sob a ótica do governo Geisel”, in: CASTRO, Celso;

D’ARAUJO, Maria Celina (org.). Dossiê Geisel. Rio de Janeiro: FGV, 2002.

ABRÚCIO, Fernando Luiz. Os barões da federação: os governadores e a redemocratização

brasileira. São Paulo: Hucitec, 2002.

ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis:

Vozes, 1987.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29247

248

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

ANASTACIA, Maria de Fátima. Partido Democrático Social e a crise da ordem autori-tária no Brasil (1979-1984). Dissertação de Mestrado, UFMG, 1985.

ARNS, Paulo Evaristo. Brasil: Nunca mais. Petrópolis: Vozes, 1985.ASTIZ, Carlos A. “O papel atual do Congresso brasileiro”, in: MENDES, Cândido (org.).

O Legislativo e a tecnocracia. Rio de Janeiro: Imago Editora/Conjunto Universitá-rio Cândido Mendes, 1975.

BAAKLINI, Abdo. O Congresso e o sistema político no Brasil. Rio de Janeiro: Paz eTerra, 1993.

BERSTEIN, Serge. “Os partidos”, in: RÉMOND, René. Por uma história política. Riode Janeiro: UFRJ; FGV, 1996, pp. 57-98.

CANATO, César. Arena e MDB em Araraquara (1965-1979). Dissertação de Mestrado,Unicamp, 2003.

CARDOSO, Fernando Henrique; LAMOUNIER, Bolívar (orgs.). Os partidos e as elei-ções no Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

CAROPRESO, Álvaro; PEREIRA, Raimundo; RUY, José Carlos. Eleições no Brasil pós-64. São Paulo: Global, 1984.

D’ARAUJO, Maria Celina. “Ministério da Justiça, o lado duro da transição”, in: CAS-TRO, Celso; D’ARAUJO, Maria Celina (org.), op. cit., 2002.

DINIZ, Eli. Voto e máquina política: patronagem e clientelismo no Rio de Janeiro. Riode Janeiro: Paz e Terra, 1982.

——. “O ciclo autoritário: a lógica partidário-eleitoral e a erosão do regime”, in: LIMAJr., Olavo Brasil de (org.). O balanço do poder: formas de dominação e representa-ção. Rio de Janeiro: Iuperj/Rio Fundo Editora, 1990.

DOCKHORN, Gilvan O.V. A redefinição do Estado autoritário brasileiro: a perspectivado Parlamento sul-rio-grandense (1974-1984). Tese de Doutorado, UFRGS, 2004.

DRAIBE, Sônia. “As políticas sociais do regime militar: 1964-1985”, in: SOARES,Gláucio Ary Dillon; D’ARAUJO, Maria Celina (orgs.). 21 anos de regime militar:balanços e perspectivas. Rio de Janeiro: FGV, 1994.

FICO, Carlos. Além do golpe: a tomada do poder em 31 de março de 1964 e a ditaduramilitar. Rio de Janeiro: Record, 2004.

FIGUEIREDO, Marcus; KLEIN, Lúcia. Legitimidade e coação no Brasil pós-64. Rio deJaneiro: Forense Universitária, 1978.

FLEISCHER, David. “A evolução do bipartidarismo brasileiro 1966-1979”. RevistaBrasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, 1980, nº 51, pp. 55-85.

——. Do antigo ao novo pluripartidarismo. Partidos e sistemas partidários no Congres-so Nacional, 1945-1984. Brasília: Câmara dos Deputados, 1984.

——. “Manipulações casuísticas do sistema eleitoral durante o período militar, ou comousualmente o feitiço se voltava contra o feiticeiro”, in: SOARES, Gláucio Ary Dillon;D’ARAUJO, Maria Celina (orgs.), op. cit.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29248

249

A S AT I V I D A D E S P O L Í T I C O - PA R T I D Á R I A S E A P R O D U Ç Ã O D E C O N S E N T I M E N T O. . .

——. “Os partidos políticos”, in: AVELAR, Lúcia; CINTRA, Antônio Octávio (orgs.).

Sistema político brasileiro: uma introdução. Rio de Janeiro/São Paulo: Fundação

Konrad-Adenauer-Stiftung/Fundação Unesp, 2004, pp. 249-285.

GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

——. A ditadura derrotada. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

GRINBERG, Lúcia. A Aliança Nacional Renovadora (Arena): A criação do bipartidarismo

e do partido do governo (1965-1979). Dissertação de Mestrado, Universidade Fe-

deral Fluminense, Niterói, 1998.

——. Partido político ou bode expiatório: um estudo sobre a Aliança Renovadora Nacio-

nal. Rio de Janeiro: Mauad/Faperj, 2009.

——. “Uma memória política sobre a Arena: dos ‘revolucionários de primeira hora’ ao

‘partido do sim, senhor’”, in: REIS, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA,

Rodrigo Patto Sá (orgs.). O golpe e a ditadura militar: 40 anos depois (1964-2004).

Bauru: Edusc, 2004b, pp. 141-159.

GUIMARÃES, Ulysses et al. A luta pela democracia: MDB no rádio e na TV. Florianópolis:

Instituto de Estudos Pedroso Horta, s/d.

HAGOPIAN, Frances. Traditional Politics and Regime Change in Brazil. Cambridge:

Cambridge University Press, 1996.

JENKS, Margaret. Political Parties in Authoritarian Brazil. Dissertação de Ph.D., Duke

University, 1979.

KINZO, Maria D’Alva Gil. Oposição e autoritarismo. Gênese e trajetória do MDB (1966-

1979). São Paulo: Vértice/Revista dos Tribunais, 1988.

——. “A questão política no Brasil”, in: LAMOUNIER, Bolívar. De Geisel a Collor: o

balanço da transição. São Paulo: Editora Sumaré/Idesp, 1990.

——. “O legado oposicionista do MDB, o partido do Movimento Democrático Brasi-

leiro”, in: SOARES, Gláucio Ary Dillon; D’ARAUJO, Maria Celina (orgs.), op. cit.

——. “Partidos, eleições e democracia no Brasil pós-1985”. Revista Brasileira de Ciên-

cias Sociais, São Paulo, vol. 19, nº 54, 2004, pp. 23-41.

LAMOUNIER, Bolívar. “O Brasil autoritário revisitado: o impacto das eleições sobre a

abertura”, in: STEPAN, Alfred. Democratizando o Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra,

1988.

——; REIS, Fábio Wanderley (eds.). Os partidos e o regime. São Paulo: Símbolo, 1978.

LIMA Jr., Olavo Brasil; SCHMITT, Rogério A.; NICOLAU, Jairo César. “A produção

brasileira recente sobre partidos, eleições e comportamento político: balanço biblio-

gráfico”. BIB, Rio de Janeiro, nº 34, 2º semestre de 1992.

MAINWARING, Scott; MENEGUELLO, Rachel; POWER, Timothy. Partidos conser-

vadores no Brasil contemporâneo. Quais são, o que fazem, quais são suas bases. São

Paulo: Paz e Terra, 2000.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29249

250

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

MADEIRA, Rafael Machado. Vinhos antigos em novas garrafas: a influência de ex-arenistas e ex-emedebistas no atual multipartidarismo brasileiro. Tese de Douto-ramento em Ciência Política, UFRGS, 2006.

MELHEM, Célia Soibelmann. Política de botinas amarelas: o MDB-PMDB paulista de1965 a 1988. São Paulo: Hucitec/Departamento de Ciência Política da USP, 1998.

MONTORO, André Franco. Memórias em linha reta. São Paulo: Editora Senac SãoPaulo, 2000.

MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Partido e sociedade: a trajetória do MDB. Ouro Preto: UFOP,1997.

NADER, Ana Beatriz. Autênticos do MDB: história oral de vida política. São Paulo: Paze Terra, 1998.

PESSANHA, Charles. “O poder Executivo e o processo legislativo nas constituiçõesbrasileiras: teoria e prática”, in: VIANNA, L.J.W. (org.). A democracia e os três po-deres no Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

REIS, Daniel Aarão. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge ZaharEditor, 2000.

Retratos do Brasil (Da Monarquia ao Estado militar). São Paulo: Política Editora deLivros, Jornais e Revistas, 1985, vol. 4.

SANTAYANA, Mauro. Conciliação e transição, as armas de Tancredo. Rio de Janeiro:Paz e Terra, 1985.

SANTOS, André Marenco dos. Não se fazem mais oligarquias como antigamente. Re-crutamento parlamentar, experiência política e vínculos partidários entre deputadosbrasileiros (1946-1988). Tese de Doutorado, UFRGS, 2000.

SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Votos e partidos: almanaque de dados eleitorais:Brasil e outros países. Rio de Janeiro: FGV, 2000.

SCHMITT, Rogério. Partidos políticos no Brasil (1945-2000). Rio de Janeiro: JorgeZahar Editor, 2000.

SOARES, Gláucio Ary. “As políticas de cassações”. Dados, Rio de Janeiro, nº 21, 1979,pp. 69-85.

VASCONCELOS, Cláudio B. A preservação do Legislativo pelo regime militar brasilei-ro: ficção legalista ou necessidade de legitimação (1964-1968). Dissertação deMestrado, UFRJ, 2004.

VERSIANI, Maria Helena. Padrões e práticas na política carioca: os deputados federaiseleitos pela Guanabara em 1962 e 1970. Dissertação de Mestrado em História Social,UFRJ, 2007.

VILELA, Teotônio. A pregação da liberdade. Andanças de um liberal. Porto Alegre:L&PM Editores, 1977.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29250

CAPÍTULO 7 “Saudações arenistas”: a correspondênciaentre partidários da Aliança RenovadoraNacional (Arena), 1966-1979

Lucia Grinberg*

*Professora da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Autora de Par-tido político ou bode expiatório: um estudo sobre a Aliança Renovadora Nacional (Arena).Rio de Janeiro: Mauad/Faperj, 2009, e Memórias da Justiça Federal, em coautoria com Pau-lo Knauss. Rio de Janeiro: Centro Cultural da Justiça Federal, 2009.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29251

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29252

O correligionário que esta lhe escreve é o arenista desde as primei-ras horas, revolucionário de 64, ingressei na Arena, não apenas porser o partido da revolução, mas sim, porque sempre fui contra ocomunismo, a anarquia e a corrupção, razão pela qual consenti queminha esposa saísse em companhia de minhas cunhadas na passea-ta que deu início à revolução de 64, COM DEUS, PÁTRIA EFAMÍLIA.1

O BRASIL É FEITO POR NÓS2

Entre os anos de 1965 e 1979, havia apenas dois partidos políticos na lega-lidade, sendo a Aliança Renovadora Nacional (Arena) uma legenda gover-nista e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) um partido de oposiçãoà ditadura. No arquivo do Diretório Nacional da Arena encontra-se umavasta correspondência entre os arenistas por meio da qual podemos ver opartido em atividade — membros do diretório nacional, dos diretórios re-gionais e municipais trocavam impressões e tomavam atitudes. As narrati-vas de políticos, militantes e simpatizantes do partido, de municípios muitodistintos, apresentam uma visão em comum da política nacional, uma certainterpretação sobre a história do Brasil recente e muitas recomendações parao futuro do partido e da nação. As cartas indicam uma das maneiras comoparte da sociedade participava politicamente na ditadura, militava e se sen-tia representada pelo partido.3

Os estudos sobre o regime autoritário têm sido feitos principalmente soba ótica dos militares e da oposição. A proposta deste trabalho é analisá-lo e aseu sistema partidário a partir da perspectiva dos políticos locais e simpati-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29253

254

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

zantes da Arena. Após a deposição de João Goulart, em março de 1964, muitospolíticos e sindicalistas foram cassados, mas os partidos políticos continua-ram em atividade.4 No entanto, após as eleições para governadores em 1965e a vitória de candidatos do Partido Social Democrático (PSD)5 na Guanabarae em Minas Gerais, o governo Castelo Branco determinou a extinção de to-dos os partidos políticos por meio do Ato Institucional n° 2 (AI-2), em 27 deoutubro de 1965. O objetivo do governo não era instalar uma ditadura sempartidos, mas alterar profundamente as forças políticas em jogo.

A Arena e o MDB organizaram-se a partir de exigências do AI-2 e doAto Complementar n° 4, que limitavam fortemente a organização dos par-tidos. Esses só poderiam ser organizados por membros do Congresso Nacio-nal (em número não inferior a 120 deputados e 20 senadores), as novasorganizações não poderiam usar quaisquer símbolos dos partidos extintose tampouco a palavra partido em seus nomes. O objetivo do governo eracriar um sistema partidário novo, procurando descaracterizar as organiza-ções partidárias em atividade desde 1945.

As análises sobre a Arena são marcadas pela ideia de artificialidade, sejapela limitada influência no governo ou pela diversidade de origens partidá-rias de seus membros. No entanto, a Arena foi formada pela nata dos polí-ticos conservadores, lideranças egressas da União Democrática Nacional(UDN)6, do PSD, do Partido Social Progressista (PSP), do Partido Liberta-dor (PL), alguns nomes do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), entre outros.Quer dizer, a sigla Arena era recente e podia não ter identificação popularinicialmente, mas as lideranças que formaram o partido eram representan-tes de forças políticas enraizadas em cada estado ou município. Portanto,se a Arena foi inventada na ditadura, seus membros não o foram, tendo emsua maioria longa prática na política partidária de 1945 a 1964. A extinçãodos partidos e a criação de um sistema com apenas dois e da Arena, comolegenda governista, não foram consensuais nem mesmo entre os políticosque apoiavam o movimento de 1964.7 De qualquer maneira, todos que nãoforam presos e/ou tiveram seus direitos políticos cassados e quiseram per-manecer na política partidária tiveram de escolher entre Arena e MDB.8

Em 1965 tornou-se notória a dificuldade de formar o MDB, quando amaioria dos deputados e senadores procurou se filiar à Arena.9

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29254

255

“SAU D A Ç Õ E S A R E N I S TAS”

A história dos partidos políticos brasileiros é repleta de sucessivas inter-venções por parte de governos autoritários de vários tipos. Entre elas estáa da Revolução de 1930; a do Estado Novo, em 1937; a do regime militar,em 1965; e, em 29 de novembro de 1979, a última extinção de partidos,por iniciativa do Executivo federal, aprovada pelo Congresso Nacional. Asinterpretações — acadêmicas ou não — sobre a história dos partidos têmreforçado muito mais o fator de instabilidade dessas organizações do que ofato de sua extinção ocorrer através de medidas autoritárias. Com isso, res-salta-se mais a fragilidade dos partidos do que a arbitrariedade por partedos regimes que os eliminaram por meio de decretos.10

“O BRASIL É FEITO POR NÓS”: MEMÓRIA E HISTÓRIA NO ARQUIVO DO

DIRETÓRIO NACIONAL DA ARENA

Entre 1966 e 1979, a Arena esteve em atividade. A memória política con-solidada após o fim da ditadura desqualifica a legenda como se ela fosseorientada principalmente por interesses fisiológicos e não fosse represen-tativa de uma corrente de opinião defendida por uma parte da sociedadebrasileira naqueles tempos.11 No material conservado pelo Diretório Nacio-nal encontra-se uma outra memória sobre a organização, diferente da visãodesqualificadora da Arena que circulou na imprensa, construída principal-mente por seus adversários políticos. A documentação produzida peloDiretório Nacional e enviada para os seus dirigentes, ao longo dos anos,indica dimensões distintas da organização, possibilitando uma releitura damemória social que se tornou hegemônica nas últimas décadas.

A documentação depositada no arquivo do Diretório Nacional da Are-na não revela grande novidade. Não há furo, no sentido jornalístico. Mas aleitura dos documentos possibilita o estudo do tema a partir de uma pers-pectiva original. Os papéis arquivados no Diretório Nacional foram pro-duzidos na ocasião da fundação da Arena e ao longo de suas atividades.Como são contemporâneos dos fatos, mostram uma sensibilidade distintada memória construída a posteriori tratando dessa questão. O historiadorfrancês Henry Rousso refere-se a um processo de recontextualização, “que

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29255

256

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

implica que sejam examinadas séries mais ou menos completas para se com-preender a lógica, no tempo e no espaço, do ator ou da instituição queproduziu esse ou aquele documento”.12

No caso, a documentação da Arena permite-nos conhecer a perspectivados políticos e simpatizantes que formaram o partido, na qual se destaca areferência constante ao pertencimento aos partidos extintos em 1965 e oesforço organizacional para manter funcionando diretórios municipais, regio-nais e o nacional. Como todo partido político, a Arena era formada por umconjunto de pessoas que estabeleceram relações diferenciadas com a organi-zação: políticos profissionais, militantes e simpatizantes. Sem falar dos elei-tores, afinal a Arena contou com muitos votos em todas as eleições durantea ditadura. A documentação depositada no arquivo do Diretório Nacionalpermite a observação de indícios variados da participação das pessoas nopartido, em muitos municípios, no interior e nas metrópoles. Uma visão ge-ral da documentação do Diretório Nacional permite-nos avaliar os mean-dros da sua burocracia que remetem para o esforço organizacional necessáriopara manter um partido funcionando em todo o território nacional.

As séries criadas pelos arquivistas para organizar o acervo mostram gran-de parte da rotina de um partido político: correspondência, eleições, orga-nização partidária e assuntos constitucionais. A série Eleições é formadapelas subséries: processos eleitorais, legislação eleitoral, campanhas eleito-rais. Entre os processos eleitorais, encontram-se recursos ao DiretórioNacional referentes a candidaturas e diretórios, tratando de intervençãonos diretórios, fidelidade partidária e campanhas eleitorais. A subsérie cam-panhas eleitorais é formada por documentos diversos: relatórios sobre pes-quisas e resultados eleitorais e um manual de campanha elaborado peloDiretório Nacional para os candidatos.

A série Organização Partidária é formada pelas subséries: atas (relativasàs reuniões dos diretórios da Arena, incluindo as atas de votação, apuraçãoe das convenções partidárias); Arena Jovem; constituição partidária (docu-mentos referentes à constituição das comissões diretoras regionais e seusrespectivos gabinetes executivos; documentos relativos à fundação do par-tido: documento constitutivo, estatutos, carta de princípios, regimento in-terno do gabinete nacional, normas gerais para a formação das comissões

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29256

257

“SAU D A Ç Õ E S A R E N I S TAS”

diretoras municipais; documentos relativos ao programa da Arena em váriasconjunturas); convenções partidárias (discursos e documentos variadosrelativos às convenções partidárias); diretórios (relação dos membros dosdiretórios nacional, regionais e municipais e das comissões executivas; trans-crições de reuniões do Diretório Nacional para tratar dos recursos provin-dos dos diretórios regionais e municipais); reunião das bancadas da Arenana Câmara dos Deputados e no Senado (transcrições de reuniões sobre as-suntos diversos).

A série Assuntos Constitucionais é subdividida em documentos relati-vos à reforma constitucional de 1967 e documentos relativos à campanhaliderada pelo MDB para a convocação de uma Assembleia Constituinte(1976).

Afinal, um dos maiores fundos do arquivo do Diretório Nacional é asérie Correspondência. Ela é formada pelas subséries: correspondência geral,pedidos e convites. A correspondência de membros da Arena compreendecartas, telegramas e circulares trocadas principalmente pelos presidentes doDiretório Nacional, dirigentes regionais e municipais, deputados federais eestaduais e vereadores. Além de correspondência de dirigentes partidáriose filiados ou simpatizantes da Arena, associações e sindicatos.

Entre os pedidos, há cartas relativas a emprego, bolsas de estudos, car-tas de apresentação, transferências no serviço público, audiências. Muitosprefeitos pediam os mais diversos donativos, entre os quais ambulâncias,assim como auxílio para obtenção de financiamentos para a construção depontes, calçamentos, quadras de esportes. Além de pedidos e recomenda-ções de correligionários aos dirigentes partidários. Certamente nem todasas cartas foram arquivadas, outras podem ter sido retiradas do arquivo naocasião da doação do acervo para consulta pública. Mas mesmo assim sãorepresentativas da participação política na Arena, registros das iniciativas edos investimentos empreendidos pelos membros da Arena para a constru-ção do partido, colocando em destaque sua dimensão de projeto político.“O Brasil é feito por nós”, carimbou o Diretório Nacional.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29257

258

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

“SAUDAÇÕES ARENISTAS”:13 A PARTICIPAÇÃO NA ARENA

Por meio das cartas de correligionários e simpatizantes é possível conheceros homens e as mulheres responsáveis por movimentar o partido nos mu-nicípios. Muitas pessoas militaram na Arena e estabeleceram vínculos como partido ao organizar diretórios municipais, elaborar campanhas eleito-rais, acompanhar a situação política nas suas localidades ou denunciar ad-versários por meio de cartas endereçadas ao Diretório Nacional.

As maneiras de participar da organização, mais ou menos engajadas,como membros de diretórios, candidatos, filiados ou apenas escrevendo paraos seus dirigentes, não podem ser entendidas senão a partir da perspectivada participação política. Quer dizer, essas atitudes, que têm sido registradasprincipalmente como adesismo, expressam alternativas de participaçãopolítica favorável à ditadura. Seja em pequenos municípios do interior ounas grandes metrópoles, houve empenho de boa parte da sociedade emorganizar a Arena, seus diretórios, suas candidaturas, possibilitando a rea-lização de eleições em todo o país. A manutenção da estrutura para realizaras disputas eleitorais pelo poder local indica, a nosso ver, um dos pilares dorespaldo social que possibilitou uma duração tão longa ao regime autoritá-rio. Nesse sentido, a política local era parte fundamental da política nacio-nal, não sendo possível considerá-la uma questão menor.14

Uma das considerações decorrentes dessa perspectiva é que a realizaçãode eleições não é acontecimento passível de ser interpretado como meroprocesso de legitimação do regime autoritário junto à comunidade interna-cional. Certamente esse é um argumento importante para a manutençãodas eleições, mas, por meio delas, o regime também permitiu a continuidadeda participação política de grande parte da sociedade brasileira. As eleiçõessão fatos complexos que envolvem a participação de muitos na organiza-ção dos partidos, na composição das candidaturas e no próprio voto. Nãobastam os servidores públicos, funcionários da Justiça Eleitoral, cumpriremos procedimentos legais para a realização das eleições, o mais importante éa iniciativa dos filiados aos partidos em cada localidade.15

A correspondência arquivada indica os valores, as normas e as práticascomuns dos membros da Arena. Trata-se de uma correspondência entre os

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29258

259

“SAU D A Ç Õ E S A R E N I S TAS”

políticos locais e os militantes, filiados ou simpatizantes da Arena com osdirigentes nacionais. As cartas caracterizam-se por dirigir-se a autoridadesna direção partidária e no governo, os endereçados eram geralmente ospresidentes do Diretório Nacional da Arena, com poder no próprio partido,no Congresso Nacional e contatos no poder Executivo. As cartas se dirigemprincipalmente aos sucessivos presidentes do Diretório Nacional: DanielKrieger, Filinto Müller, Rondon Pacheco, Petrônio Portella, FrancelinoPereira e José Sarney. Algumas cartas endereçadas originalmente aos presi-dentes da República, marechal Castelo Branco e general Ernesto Geisel, porexemplo, foram enviadas pela assessoria da presidência ao Diretório Nacio-nal da Arena.

O Diretório Nacional, por sua vez, enviava telegramas em nome do pre-sidente da Arena agradecendo as colaborações recebidas. Muitos foramarquivados: “Agradeço caro amigo carta vinte et quatro último pt sua cola-boração vitoriosa arenista bem recebida. Abraços deputado Francelino Pe-reira.” Simpatizantes escreviam para agradecer a atenção dedicada e orecebimento de material do partido: “Foi com imenso prazer que recebifolhetos e livretos explicativos da Arena, bem como discurso presidenteGeisel em MT.” Ou ainda: “Exmo. deputado recebi telegrama de V. Excia.que me dá mais forças para colaborar e lutar pela vitória arenista.”16 “Acusa-mos em nosso poder ofícios de Vossa Excelência de 15 e 16 de dezembrode 1975 e como entusiasta partidário temos a agradecer o expediente, lou-vando sobretudo a sua iniciativa em reviver as diretrizes do nosso partidoem todo o vasto território nacional.”17 “Recebi o telegrama de V. Excia., oqual muito me alegrou...”18

Há muitos pedidos de favores, como em muitos arquivos de autoridades.Mas há também verdadeiros discursos políticos, reiterando o apoio à ditadu-ra. As cartas de militantes ou simpatizantes da Arena apresentando propos-tas políticas mostram o desejo de participar do partido e de colaborar com ogoverno. A disposição para a redação de cartas expressa o envolvimentopolítico daquelas pessoas, que se apresentam e querem colaborar, de manei-ras mais ou menos enfáticas: “É movido de inteira alegria e com o sentidovoltado para a nossa pátria, que, descendo serras, deixei minha querida e

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29259

260

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

adorada Belo Horizonte, nossa simpática capital das Gerais!”19 “Peço vêniapara lhe apresentar algumas sugestões que me vieram à mente, agora emminhas férias na cidade serrana (...)”. “Leia toda esta carta. Leia mesmo.”

Muitas cartas, ofícios, telegramas e bilhetes conservados na série cor-respondência do Arquivo do Diretório Nacional da Arena expressam a cul-tura política dos arenistas, suas esperanças na construção de um novo paíse seus ódios em relação aos adversários políticos. Por meio da correspon-dência enviada ao Diretório Nacional da Arena entre 1965 e 1979, de mu-nicípios espalhados por todo o território nacional, é possível traçar um perfildas pessoas que se identificavam com a organização.

As cartas mostram que os remetentes, militantes e simpatizantes da Are-na, ocupavam os mais variados lugares na sociedade brasileira. Há cartasenviadas de todas as regiões do país, os arenistas escreviam tanto de capi-tais, como Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Campo Grande,Goiânia, Manaus, Recife e Porto Alegre, quanto de cidades pequenas emédias dos diversos estados: Petrópolis (RJ), Teresópolis (RJ), São Fidélis(RJ), Guarulhos (SP), São Vicente (SP), Pontal (SP), São Sebastião (SP),Penápolis (SP), Buritis (MG), João Pinheiro (MG), Cruz Alta (RS), Santarém(PA), Vila Rondon (PA), Londrina (PR), entre outros. Há cartas datilo-grafadas e manuscritas, a maior parte era datilografada. Entre as manuscri-tas, há caligrafias bem desenhadas de quem tem o hábito da escrita e letrasirregulares que revelam o enorme esforço empreendido naquela redação.A maioria das cartas era escrita ou datilografada em papéis em branco, semidentificação. Mas muitas foram redigidas em papéis com o timbre de dire-tórios municipais da Arena e de câmaras municipais. Poucas indicam o lo-cal de trabalho do missivista, como os impressos de escritórios de advocaciae engenharia, assim como de sindicatos de trabalhadores e associações demoradores de bairros. Muitos se identificaram como trabalhadores, médi-cos, advogados, artistas, engenheiros agrônomos.

Como estavam se reportando ao presidente do Diretório Nacional, quenão poderia conhecê-los todos, os políticos locais e os simpatizantes daArena procuravam se identificar por meio de suas trajetórias políticas. Nessesentido, o conjunto das cartas forma um painel da participação política con-servadora de algumas gerações na história do Brasil. Na maioria das cartas,

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29260

261

“SAU D A Ç Õ E S A R E N I S TAS”

nos primeiros parágrafos, o remetente se identifica por meio da narrativade sua biografia política. Procuram mostrar que não são iniciantes no cam-po político, ao contrário, se identificam como representantes legítimos dospartidos políticos em atividade de 1945 a 1965. Ao aludir aos partidos aosquais pertenciam, procuram lembrar de um passado comum, em busca dacumplicidade das lideranças nacionais.

De Recife, um arenista escreveu a Aderbal Jurema, pessedista histórico,então presidente do Diretório Regional da Arena em Pernambuco: “Preza-do amigo e correligionário. Tangido pelo espírito de franqueza que me épeculiar, venho à presença de V. Excia., na qualidade de cidadão filiado àArena, desde a sua fundação, e velho militante do extinto PSD...”20

De Minas Gerais, há uma vasta correspondência de congratulações aodeputado Francelino Pereira pela indicação para a presidência do partidoem 1975 e ao longo de seu mandato. Em muitas delas, conhecidos e mem-bros da Arena mineira remontam suas trajetórias políticas destacando amilitância na UDN, da qual também fizera parte Francelino Pereira. Há sau-dações ao “conterrâneo” de Minas Gerais, mesmo lembrando que o depu-tado nasceu no Piauí, manifestando o tradicional “orgulho mineiro”.21

Com relação ao meu ponto de vista político, explico a V. Excia., sempre fui

pendente ao partido da antiga UDN e hoje graças a Deus fui o pioneiro neste

município a enfrentar a luta a favor da nossa gloriosa Arena (...) sou de ori-

gem udenista desde os meus antepassados (...).22

“Quem vos fala é um arenista de coração e de alma, que não quer vê-laderrubada, e que também é um udenista por tradição de família, e que amatambém a nossa Gloriosa Revolução de 31 de março de 1964 (...).”23 “... naqualidade de ex-udenista, revolucionário civil de março de 64 e arenista.”24

“Na qualidade de filiado à Aliança Renovadora Nacional deste município,tendo pertencido por diversas vezes ao diretório municipal da extinta UDN[...].”25 “Sendo arenista e, antes de tudo, revolucionário, porque antes ha-via sido o vice-presidente do diretório da UDN (...).”26 “Aguardo a respostade V. Excia., pois cumpri com meu dever de Brasileiro, udenista de tradi-ção desde jovem no nosso longínquo Piauí.”27 “Desculpe a massada, mas

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29261

262

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

eu sofro desde 1935, como presidente da UDN, de uma coligação e da Arena,como vice no exercício da presidência quase sempre, e como presidenteem dois períodos.”28

Os missivistas se apresentam como membros dos diretórios ou filiadosà Arena, explicitando o que consideram os marcos de sua trajetória políticaanterior ao novo sistema partidário, o que para eles legitima a sua partici-pação na vida pública naquele contexto por meio da Arena. Em muitos casos,os políticos enumeram os cargos que exerceram em partidos e os mandatoseleitorais exercidos. Os significados que esses correspondentes dão às suasbiografias são referenciais indispensáveis, as biografias constituem parte desuas identidades e também de seu capital simbólico.29 Nesse sentido, ospolíticos valorizavam sua inserção nas organizações extintas, explicitandoa importância desse capital no campo político.

Cada militante, por meio de relatos biográficos, narrava a sua históriade lutas, a sua contribuição para a fundação e as vitórias da Arena em seumunicípio. Nas cartas, eles relatam o trabalho de organização de cadadiretório do partido, uma etapa considerada fundamental para a consoli-dação de uma ampla rede organizacional, o que garantiu ao partido tercandidatos e votos em todos os municípios. A rede de diretórios munici-pais da Arena foi formada por quase todos os diretórios da UDN, do Parti-do da Representação Popular (PRP) e do Partido Republicano (PR) e pelamaioria dos diretórios do PSD, do Partido Social Trabalhista (PST) e doPartido Democrata Cristão (PDC), possibilitando uma ampla vantagem daArena sobre o MDB na corrida organizacional.30

Como eram organizações novas, Arena e MDB tiveram no primeiro anode fundar diretórios municipais e regionais, assim como aprovar filiações emtodo o território nacional, tendo em vista as eleições parlamentares em outu-bro de 1966. Nessa conjuntura de reorganização partidária, muitos políticosescreveram para o presidente do Diretório Nacional da Arena de todos oscantos do país. Em muitos casos relatavam disputas em seus estados pelascandidaturas da legenda governista. Em contrapartida, o senador DanielKrieger, presidente da Arena, enviou telegramas comunicando a decisão de“considerar candidatos automáticos a cargos eletivos, atuais deputados federaisdevidamente inscritos mesa câmara dos deputados como pertencentes ban-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29262

263

“SAU D A Ç Õ E S A R E N I S TAS”

cada arenista”.31 No entanto, em alguns casos, algumas lideranças desistiramda filiação na Arena. O argumento recorrente era a disputa entre membrosde partidos extintos, egressos do PSD e da UDN, principalmente, agora naArena. Em abril de 1966, o deputado José Barbosa Reis alegava a

(...) impossibilidade de continuar oferecendo a minha colaboração à Arena

face ao radicalismo das forças coligadas da ex-UDN, PSP e PTB, que vêm

praticando atos de perseguição a centenas de humildes e leais funcionários

de minhas bases eleitorais, muitos deles com mais de 20 anos de bons servi-

ços prestados ao Estado.32

Em carta ao senador Daniel Krieger, então presidente da Arena, os de-putados Castro Costa e Benedito Vaz também explicaram o seu desligamentoda Arena devido a

(...) as imensas dificuldades com que lutamos para fazer a integração de uma

ala do ex-PSD nos quadros da Arena de Goiás. Constituída a Arena goiana,

ao invés de criar condições de convivência partidária, o governo estadual

passou a agir discriminadamente, demitindo e transferindo nossos compa-

nheiros funcionários e pressionando nossos prefeitos.33

Durante toda a existência da Arena houve uma grande disputa pelo con-trole dos diretórios regionais e municipais. Não era nada fácil depois de 20anos de pluralismo partidário (1945-1965) os políticos se organizarem emapenas dois partidos. Os arenistas procuravam mostrar a sua participaçãona organização dos diretórios locais e em campanhas eleitorais. De SãoVicente (SP), em 21 de fevereiro de 1977, um militante escreveu:

(...) tomei parte em todas as campanhas da Arena, mesmo não sendo candida-

to, não só aqui nesta cidade, como em diversos municípios pelo litoral, como

Praia Grande, Itanhaém, Itariri, Toledo, e outros, sempre às minhas próprias

expensas, meu pequeno escritório nesta cidade foi sempre comitê de candi-

datos da Arena sem que eles me pedissem, formei o comitê pró-Carvalho Pin-

to (...) procurei sempre aumentar o número de correligionários inscritos na

Arena, mandando imprimir fichas de inscrição às minhas expensas.34

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29263

264

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Cada um descreve as suas iniciativas para o sucesso do partido nas dis-putas eleitorais e algumas maneiras habituais de fazer campanha:

O correligionário que esta lhe escreve foi candidato a vereador pela nossa

legenda; [...] acostumado em campanhas eleitorais, procurou organizar jun-

to a amigos e parentes, equipes de trabalho, bem como comitês em casas

particulares de amigos e parentes requerendo em nome do partido.35

De Presidente Nereu (SC), o presidente do Diretório Municipal narra asua iniciativa de aproximar-se da juventude, organizar um diretório misto com“sete professores, um industrial, um dono de transporte, um comerciante eos demais agricultores, dentre eles jovens solteiros”.36 De Caxias do Sul (RS),em papel timbrado da Câmara Municipal de Vereadores, o arenista relata asatividades do Diretório Municipal em 1977 com o objetivo de divulgar oprograma do partido: criação de vários departamentos e assessorias, realiza-ção de palestras, organização de subdiretórios de bairros, reunião e convitespelo rádio, organização de nova sede, departamento jovem e departamentofeminino.37 De Belo Horizonte (MG), o missivista se identifica como um“velho artista e idealista sincero correligionário”. Ele conta que irá realizar“apresentações em comícios e shows em praça pública, durante a campanhavoluntária [...] a fim de conscientizar o povo das Minas Gerais a votar con-victo na grandeza e estabilidade nacional”. E reitera o seu entusiasmo: “Lu-taremos sem esmorecimentos e daremos, mais uma vez sem favor algum, maisuma merecida, justa e indiscutível vitória a nossa grande e imbatível Arena!”38

Entre as contribuições para as campanhas eleitorais, também há marchinhas:

É hora, é hora/É hora/De entrar em cena

Vamos votar/Vamos votar/Nos candidatos da Arena.39

E poemas:

Quem planta por certo colhe

É o povo quem dá guarida

Ao desempenho magistral

Da nossa Arena aguerrida

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29264

265

“SAU D A Ç Õ E S A R E N I S TAS”

Viva a REVOLUÇÃO

No rojão da ARENA

O voto é a suprema ação

Tal escolha, nosso condão

Atendendo supremo anseio

Que nos reclama a Não.40

Em anos eleitorais, os políticos e militantes locais escreviam comfrequência ao Diretório Nacional relatando as disputas entre os membrosda Arena e do MDB em seus municípios. A partir do crescimento eleitoraldo MDB em 1974 — quando elegeu 16 senadores — os arenistas procu-ram se organizar ainda mais para enfrentá-lo nas urnas. De Presidente Nereu(SC), em 12 de fevereiro de 1976, o presidente do Diretório Municipal en-viou sua análise da conjuntura política:

(...) todos nós, das pequenas e médias comunas, observamos uma radical

mudança e fortalecimento assustador da oposição nos dois últimos pleitos

eleitorais. Verificamos facilmente que certos banidos pela Revolução de

março de 1964 indiretamente influem muito com os antirrevolucionários

que permaneceram intactos, mesmo como sacrifício de uns e outros de seus

líderes, começaram lentamente a penetrar em todas as camadas, daí, ele-

mentos ambiciosos, antes ligados ao partido revolucionário, por não conse-

guir de imediato qualquer posição pretendida nas causas públicas, facilmente

deixaram-se entusiasmar e aderiram à oposição e estes semilíderes levando

farta bagagem eleitoral consigo, daí o rápido fortalecimento.

(...) em nosso município não há doadores, rendas eventuais à família

arenista — fiel a nossa liderança, praticamente gente modesta.

A nosso ver, um grande passo seria o de o Diretório Nacional (...) colo-

car ao alcance de pequenos e médios municípios um Programa de Rádio à

disposição destes diretórios em horas adequadas e em determinadas escalas,

tanto para entrevistas como para pronunciamentos, isto pela facilidade de

contato que teriam os líderes de cada comuna, pois que certamente cada um

tem um elemento capaz e de confiança do governo e da Arena antes da

divulgação.41

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29265

266

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

O anticomunismo era uma referência muito comum entre os arenistas.Muitos políticos da Arena denunciavam seus adversários locais como co-munistas. De Guarulhos (SP), um arenista acusa o MDB de “cabide de comu-nistas”.42 De Cruz Alta (RS), o missivista envia uma “denúncia de infiltraçãocomunista no MDB”, conforme suas palavras. A “denúncia” consiste emuma lista de nomes de autoridades locais filiadas ao MDB qualificadas umaa uma: “Militante velho do PCB, integrou a claque de Luiz Carlos Prestesem Porto Alegre. Caráter ditatorial e temperamento violento”; “Subversi-vo por convicção. Expurgado do Banco do Brasil, por ato revolucionário,em 1964. Chefe de greve de bancários...”; “comuno-anarquista”; “comu-nista confesso e implacável contestador da Revolução”; “Inconformada econtestadora”; “No discurso de posse, elogiou Érico Veríssimo principal-mente por ter detectado as mazelas das republiquetas militares do conti-nente. Tido como comunista militante”; “chefe geral do Grupo de Onze”.43

Ao qualificar os emedebistas traça as suas trajetórias políticas mostrandoque são adversários históricos e localiza-os em uma rede mais ampla dereferências da esquerda brasileira, como o Partido Comunista Brasileiro(PCB) e Luiz Carlos Prestes, o líder comunista mais popular no país; assimcomo da política e da intelectualidade gaúcha, como o escritor ÉricoVeríssimo e o Grupo dos Onze, movimento de resistência organizado peloentão governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, em 1961, tendoem vista assegurar a posse de João Goulart na presidência da República.

De maneira semelhante, um arenista de Londrina (PR) narra com orgu-lho a sua história de enfrentamento com militantes comunistas:

Sou marcado por essa casta de traidores vendilhões da Pátria de nos outros,

pois que eles não têm Pátria. Fui Suplente do Delegado Regional durante mui-

tos anos e, tive que enfrentar — com muito prazer — à frente de um “Contin-

gente” de Polícia, quando respondia pela Regional justamente quando (1955)

realizaram por todo Brasil, nas capitais e principais cidades, todavia, não em

Londrina, porque não consenti e, no sábado véspera de tais concentrações era

aniversário de Prestes, e na calada da noite hastearam uma enorme Bandeira

Russa, bem no centro da cidade, no mastro do altar da Pátria, onde se hasteia o

Pavilhão Sagrado. Ali mesmo queimei aquele Pano Vermelho nojento.44

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29266

267

“SAU D A Ç Õ E S A R E N I S TAS”

A mobilização anticomunista no Brasil cresceu ao longo dos anos 1950

até 1964. Os líderes do movimento de 1964 não usavam o argumento antico-

munista apenas como fachada para justificar suas ações. Como mostrou

Rodrigo Patto Sá Motta, o temor da ameaça comunista durante a crise no

governo João Goulart era real.45 Naquele contexto, a força do PCB apare-

ceu multiplicada no discurso comunista, que passou a intitular de comunista

toda a esquerda radical. Muitos arenistas louvaram seu passado antico-

munista e usaram o mesmo expediente ao denunciar políticos do MDB, os

seus únicos adversários nas eleições, como comunistas.

Para os arenistas, a “revolução de 1964” era o marco fundador da histó-

ria da Arena. É a principal constante na correspondência enviada ao Diretório

Nacional, caracterizando o arenista como antes de tudo um “revolucioná-

rio” de 1964: “Como homens públicos, imbuídos dos princípios consagra-

dos pelo movimento ordeiro revolucionário de março de 1964, membros do

Diretório Municipal da Aliança Renovadora Nacional (...).”46 “Na qualidade

de um admirador da Revolução brasileira e consequentemente de seu parti-

do, Arena, desejo trazer a minha parcela de colaboração (...).”47

Na memória dos arenistas a “revolução de 1964” não foi uma realiza-

ção apenas dos militares, as Forças Armadas aparecem como instrumento

da vontade do povo contra o comunismo. De São Joaquim do Monte (PE)

chegam lembranças das disputas políticas nas zonas rurais contra Miguel

Arraes e Francisco Julião à frente das Ligas Camponesas:

As Forças Armadas brasileiras interpretaram o sentimento patriótico do nosso

povo, realizando a Revolução de março de 1964. No anonimato do interior,

vozes corajosas ecoaram contra a subversão que tentava se implantar no seio

da classe trabalhadora e essas vozes anônimas que testemunharam e comba-

teram a infiltração de comunistas no campo (...).48

De Belo Horizonte (MG), a rememoração das Marchas da Família com

Deus pela Liberdade se assemelha à descrição de uma cruzada:

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29267

268

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Torna-se necessário que evitemos questões e possamos, unidos, levarmos

avante os sagrados postulados de 31 de março de 1964, que tira das mãos

vermelhas do comunismo a dignidade de nossa santa e idolatrada Bandeira

Brasileira! [...] O que fizeram durante tantos e tantos anos, estes idiotas, ateus

e sem Pátria pelo povo, pelo Brasil? Nada! (...) Onde se podia orar com

tranquilidade? O povo se sentia apavorado. Nenhum direito. Eram irmãos

contra irmãos, pais contra seus próprios filhos! Veio a passeata Família com

Deus! O terço em mãos confiantes, contra os ateus comunistas, em plena

Belo Horizonte. Fomos pisados e nos faltaram com o respeito (...) jamais

conseguiram nos vencer porque onde se faz presente Deus, a vitória foi de-

morada... mas veio. Lembram-se do Comício da Central em 13/3/1964? Foi

ali que o Comunismo ateu selou a sua derrota total! As gloriosas Forças

Armadas... unidas ao povo, deu um basta! E graças ao bom Deus, em 31/3/

64, desfraldou sobre o nosso solo Pátrio, a alvorada de Paz, amor e progres-

so, onde estamos dentro de um padrão de honra-trabalho-direito e liberda-

de dentro da Lei! E o que mais podemos desejar? Apenas que, ao entrar na

cabine de votar, se conscientize e vote na Arena! Para grandeza e estabilida-

de de nossa Pátria! Muito obrigado.49

Para muitos arenistas, o contexto de mobilização política anterior ao gol-pe de Estado é rememorado como argumento para a deposição de JoãoGoulart. De Manaus (AM) chegam votos de confiança: “Confiamos quesob a administração de V. Excia. a Arena se torne uma força organizada capazde mostrar que os brasileiros apoiam a Revolução de Março de 64 e quejamais permitirão que se volte à situação anárquica anterior.”50

Na conjuntura de abertura, nos governos de Ernesto Geisel e de JoãoBatista Figueiredo, entre a extensa correspondência há poucos elogios àsmedidas adotadas e raras manifestações de incentivo à abertura, como otelegrama das arenistas gaúchas: “Sucessor do presidente Geisel deve serpolítico. Proposição aprovada em reunião do Departamento Feminino daArena de Porto Alegre no dia 13 de agosto do corrente [1977].”51 Ou orepúdio às eleições indiretas: “Sou apenas um simples brasileiro que desejaum Brasil próspero e tranquilo, sem dever tantos bilhões, confiando nassuas próprias forças. Mas essa coisa de senador sem voto é um pecado muitogrande.”52

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29268

269

“SAU D A Ç Õ E S A R E N I S TAS”

A maior parte das manifestações era contrária à liberalização política.De férias, em Petrópolis (RJ), um médico morador do Rio de Janeiro seapresenta ao presidente da Arena como um brasileiro interessado no de-senvolvimento nacional, pede licença e apresenta algumas sugestões:

Julgo, por vezes, a Arena com certa tibieza, na defesa dos princípios revolu-

cionários, e mesmo acovardada, durante certos impactos, como foi o caso

da aplicação do AI-5 a dois deputados paulistas.53 Ora, não se pode com-

preender isso, pois nós estamos ainda em pleno processo revolucionário.

Vejamos: a Revolução Russa tem a minha idade — 59 anos — e ainda con-

tinua; a Revolução Chinesa tem 27 anos (início 1949); a Revolução Cuba-

na, 20 anos (1956). A nossa, que não é comunista e que adota outros métodos,

ainda vai fazer 12 anos e já estamos pensando em “distensão” quando os

resultados da détente mundial ainda são incertos, ou melhor, na visão dos

chineses, os russos é que estão levando as melhores vantagens (Angola!). Ora,

a nossa política interna tem naturalmente que sofrer os reflexos da política

externa e da crise mundial de guerras revolucionárias. (...). Para os que não

esposam os princípios marxistas, não podemos fazer política em termos de

democracia utópica. Caminhemos para uma democracia plena, no seu devi-

do tempo e dentro de um modelo brasileiro (...).54

Em muitas delas, o argumento é justamente o possível retorno da situa-ção pré-revolucionária. Havia o temor de que líderes do extinto PTB, comoo ex-governador do Rio Grande do Sul Leonel Brizola e o presidente de-posto João Goulart retornassem ao jogo eleitoral com grande capacidadede mobilização:

Se tivemos os Costa e Silva, e se temos os Garrastazu Médici, os Ernesto

Geisel, para a felicidade do povo e bem da Nação, ainda temos, infelizmen-

te, e nas sombras, os Jangos, os Brizolas, na espreita de novas derribadas.

Felizmente a Revolução de 64 é irreversível e o povo jamais esquecerá do

que foi o Brasil antes de 64 e do que é atual: Grande, forte, próspero e feliz;

com este grande Presidente Geisel, graças a Deus!55

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29269

270

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Durante o longo processo de abertura, muitos políticos locais e simpa-tizantes da Arena apoiavam a continuidade da ditadura, eram contráriosà extinção do AI-5 e à realização de eleições. Quer dizer, defendiam pro-postas políticas extremamente autoritárias em nome da “Revolução de1964”. Ao mesmo tempo que estava em debate no Congresso Nacional aaprovação da emenda constitucional prevendo o fim do AI-5, havia mui-tas divergências:

Sou vereador há 15 anos e desde 1945 vínhamos augurando um clima de

tranquilidade e de prosperidade idêntico ao que se vive no Brasil de hoje

(...). Que o AI-5 não seja nunca abolido, se possível até adaptá-lo na Cons-

tituição Federal. Consideramo-o como um pneu sobressalente de um carro,

que nos deixa tranquilo e seguro a uma longa viagem e que só é usado na

hora precisa.56

Políticos de Minas Gerais e do Rio Grande do Sul também escreveramcriticando a possibilidade de eleições diretas para governadores em 1978:

Senhor presidente,

Esta tem por finalidade solicitar toda a atenção de V. Excelência, a fim

de que não permita a realização de pleito DIRETO para o Governo do Es-

tado do Rio Grande do Sul, primeiro por entender eu que a REVOLUÇÃO

DE 64 não atingiu todos os seus objetivos e que para tumultuar o resto da

Nação, ainda somando-se que nossos líderes não estão preparados e exis-

tem muitos poucos líderes que consigam encontrar apoio para uma candi-

datura à Governança do Estado. Sugiro eleições através de colégio eleitoral,

única forma de manter o governo da Arena no poder.57

De Araçatuba (SP), em novembro de 1977, um correligionário escrevia:

Agora o Exército fez uma Revolução forçada pelo povo e, vai deixar tudo

como estava? Ajude o presidente Geisel para que não cometa o crime de

perder mais esta REVOLUÇÃO que o povo quis e apoia, entregando o

BRASIL à gang de políticos militares e civis ... Porque ouvir Médici, Jura

(sic) Magalhães, Cordeiro e, outros carcomidos? Porque não usar o AI-5 com

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29270

271

“SAU D A Ç Õ E S A R E N I S TAS”

mais frequência contra militares e civis desonestos ou contestadores? Por

que pensar em retirá-lo da CONSTITUIÇÃO se, tivemos há pouco tempo,

um julgamento, pelas duas casas do CONGRESSO absolvendo um SENA-

DOR DESONESTO? [...] As eleições devem ser indiretas para PRESIDEN-

TE DA REPÚBLICA E GOVERNADORES quer queira ou não o MDB, que

precisa ser controlado juntamente com a IMPRENSA pois, abusam da liber-

dade existente para prejudicar o BRASIL.58

Por ocasião do debate sobre a liberalização partidária e a anistia políti-ca, o que significaria o retorno de líderes políticos cassados e/ou exilados,há muitos diagnósticos fatalistas:

Se ressurgir estas siglas a confusão vai retornar e aí então o governo (por

força das circunstâncias) terá que dissolver tudo e começar tudo de novo. O

revanchismo está na mira dos Brizolas, Arraes etc. etc. com a cooperação

do MDB — comunista que já faz a trama com as viagens de seus líderes à

Europa para avistarem-se com os exilados. Brizola e Arraes, hoje, são os Reis

pequenos do Brasil.

E continuava sua análise política mostrando o impacto esperado com oretorno de líderes políticos como Leonel Brizola e Miguel Arraes:

Quando esses políticos CARICATOS pisarem o solo pátrio será uma apoteose

política, nunca vista no Brasil: mulheres chorando, homens desmaiando, até

a terra é capaz de tremer, tal é a importância que estão dando a estes inde-

sejáveis brasileiros que nenhuma falta vêm fazendo ao Brasil desde 1964,

31 de março passados.

Como se pôde ver na cobertura jornalística na época, o arenista estava cer-to, a cada chegada houve uma festa nos aeroportos.59 Em seguida, completava:

A Revolução de março deveria ter feito tal como no Irã atualmente. Pergun-

to V. Excia. quem vai reclamar direitos humanos dos Arraes? Carter, o CNBB,

o MDB, os comunistas? Dom Hélder Câmara? Os Bispos? Os Arcebispos?

Os Padres? A imprensa falada e escrita? A Rádio? A Televisão? O certo é,

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29271

272

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

excelência, que o Irã é que está certo. Não é patriota, fogo nele. Se a Revo-

lução tivesse adotado tal medida, hoje o Brasil seria um seio de Abrahão.

(...) O governo tem que tomar medidas enérgicas, contra todos os crimes,

inclusive mandar prender os “advogados” que surgirem pedindo habeas

corpus para esta marca de gente ordinária que infestam as Capitais, as gran-

des cidades etc. etc.60

Como ocorre em muitos movimentos políticos, o significado da “revo-lução” esteve sempre em disputa entre os seus partidários. Algumas cartassão verdadeiras provocações aos arenistas e ao governo, os missivistas seidentificam como defensores da “Revolução de 1964”, no entanto possuemvárias restrições a lideranças da Arena e ao governo, mostrando divergên-cias entre os simpatizantes do movimento de 1964 por meio da disputa dosverdadeiros objetivos da “revolução”. Há cartas com ataques e denúnciasque jamais seriam publicados na imprensa, pois usam uma linguagem chulae raivosa. De São Paulo, em 29 de setembro de 1977, um cidadão questio-nava o partido:

A Arena fala muito na revolução. É a revolução pra aqui, revolução pra colá.

Marcha da revolução. Contestação etc. O governo, idem. Como se a revo-

lução fosse alguma coisa ou um patrimônio deles. Quando a revolução foi

feita, em 1/4/64 (1º de abril) por Magalhães Pinto, Adhemar de Barros e

Carlos Lacerda, gostaria de saber onde se encontravam os bravos revolucio-

nários de hoje: José Bonifácio (o velho gagá), Dinarte Mariz, Eurico Resende

(o grosso), Portela (ih ... esse aí era até contra a revolução), Francelino Pe-

reira (o puxa-saco) e os generais da copa e da cozinha do ALVORADA, que

se arvoram de donos da revolução.61

“SOU ARENISTA, EU E MEUS IRMÃOS, GRAÇAS A DEUS!”62

A historiografia recente sobre a ditadura civil-militar procura mostrar queo processo político de 1964 não foi apenas um golpe arquitetado pelas ForçasArmadas, mas um movimento político com a participação de civis e demilitares, com amplo apoio da sociedade, o que é uma dimensão funda-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29272

273

“SAU D A Ç Õ E S A R E N I S TAS”

mental para a sua compreensão. No estudo sobre a Arena, essa questão rea-parece com o sentido de conhecer a perspectiva dos entusiastas da deposi-ção de João Goulart e do regime autoritário que se autodenominavam“revolucionários”. Não havia qualquer tabu em defender a deposição dopresidente da República João Goulart por meio de um golpe de Estado em1964. Nas leituras das fontes produzidas pelos filiados ao partido, em reu-niões e debates parlamentares é notável o orgulho da designação do movi-mento de 1964 como “revolução” e a autodesignação de “revolucionários”.Nessa perspectiva, a “Revolução de 1964” é um evento fundador da iden-tidade política arenista. Apesar de a Arena, sua expressão partidária, tersido criada por decreto, tinha um lastro social significativo.

Em cada município do território nacional, políticos locais e militantesorganizaram os diretórios municipais da Arena. Apesar de ser organiza-ção partidária recente, a Arena canalizou a participação política favorávelà ditadura. As cartas mostram o tipo de representação política defendidapor muitos arenistas: a valorização da representação por meio de parti-dos políticos, a valorização da tradição partidária brasileira anterior aoAI-2, assim como a ambiguidade em relação às eleições diretas e aopluralismo partidário. Havia debates sobre o futuro da Arena e do regimetanto entre os deputados federais e senadores arenistas no CongressoNacional como entre os políticos locais e os simpatizantes da Arena.63 Asdivergências sobre as políticas de liberalização a partir do governo ErnestoGeisel indicam que o retorno à democracia não era consensual entre oscivis, nem todos apoiaram a liberalização, mesmo feita por meio de“distensão lenta, segura e gradual”.

Notas

1. Todas as cartas citadas neste artigo encontram-se no Arquivo da Aliança Renova-dora Nacional (Arena) depositado no Centro de Pesquisa e Documentação deHistória Contemporânea do Brasil (CPDOC/FGV).

2. Carimbo do Diretório Nacional da Arena. Arena 65.08.31 cor/cg pasta 59, CPDoc,FGV.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29273

274

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

3. As análises sobre a correspondência entre cidadãos e autoridades têm mostradoque se trata de uma prática comum na política brasileira, como podemos ver empesquisas sobre a relação entre Getúlio Vargas e os trabalhadores, a ascendênciade Filinto Müller na chefia de Polícia (1933-1942), as pressões de cidadãos naDivisão de Censura de Diversões Públicas (DCPC) nos anos 1970, as sugestõesao Programa Nacional de Desburocratização inaugurado em 1979 e as cartas demilitantes da Ação Integralista Brasileira. Ver respectivamente, FERREIRA, Jor-ge. Os trabalhadores do Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 1999; HEYMANN, LucianaQuillet. “Quem não tem padrinho morre pagão: fragmentos de um discurso so-bre o poder”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 13, nº 24, 1999, pp. 323-349; FICO, Carlos. “Prezada censura: cartas ao regime militar”. Topoi, Rio deJaneiro, nº 5, setembro 2002, pp. 251-286; REIS, Elisa. “Opressão burocrática:o ponto de vista do cidadão”, in: ——. Processos e escolhas: estudos de sociologiapolítica. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 1998; POSSAS, Lídia M. Vianna.“Vozes femininas na correspondência de Plínio Salgado (1932-38)”, in: GOMES,Angela de Castro (org.). Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro: Funda-ção Getulio Vargas, 2004.

4. FIGUEIREDO, Marcus; KLEIN, Lucia. Legitimidade e coação no Brasil pós-64.Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1978.

5. HIPPOLITO, Lúcia. De raposas e reformistas: o PSD e a experiência democráticabrasileira, 1945-64. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.

6. BENEVIDES, Maria Vitória de Mesquita. A UDN e o udenismo: ambiguidadesdo liberalismo brasileiro (1945-1965). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981; DULCI,Otávio Soares. A UDN e o antipopulismo no Brasil. Belo Horizonte, UFMG,1986.

7. GRINBERG, Lucia. Partido político ou bode expiatório: um estudo sobre a Alian-ça Renovadora Nacional (Arena). Rio de Janeiro: Mauad; Faperj, 2009.

8. Carlos Lacerda pretendia fundar o Parede. Não se filiou à Arena nem ao MDB. OParede não foi adiante e seus membros se filiaram à Arena. “Ata da reunião doGabinete Executivo Regional da Aliança Renovadora Nacional da Guanabara. Aosseis de julho de mil novecentos e sessenta e seis, sob a presidência do deputadoAdauto Lúcio Cardoso... É apresentada e lida pelo ministro Danilo Nunes umacarta do ministro Venâncio Igrejas, na qual argumenta favoravelmente à aceitaçãodos membros do Parede como componentes da Arena.” Arena 66.01.20 op/a

9. KINZO, Maria Dalva Gil. Oposição e autoritarismo. Gênese e trajetória do MDB.São Paulo: Idesp; Vértice, 1988.

10. É notável, por exemplo, que muitos pesquisadores se refiram aos partidos extin-tos em 1965 como partidos “tradicionais”, já que essa qualificação expressa umjulgamento negativo. Com isso deixa-se de enfatizar que o AI-2 extinguiu os

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29274

275

“SAU D A Ç Õ E S A R E N I S TAS”

partidos em atividade, minimizando-se a violência da destruição daquelas orga-nizações. Sobre o processo de consolidação do sistema partidário brasileiro entre1945-1964, cf. LAVAREDA, Antônio. A democracia nas urnas. Rio de Janeiro:Rio Fundo, 1991.

11. GRINBERG, Lucia. “Uma memória política sobre a Arena: dos ‘revolucionáriosde primeira hora’ ao ‘partido do sim, senhor’”, in: MOTTA, Rodrigo Patto Sá;AARÃO REIS, Daniel; RIDENTI, Marcelo (orgs.). O golpe e a ditadura. 40 anosdepois. Bauru: Edusc, 2004b.

12. ROUSSO, Henry. “O arquivo ou o indício de uma falta”. Estudos Históricos, Riode Janeiro, vol. 9, n° 17, 1996, p. 89.

13. Arena 65.08.31 cor/cg, CPDoc, FGV.14. REVEL, Jacques. “Microanálise e construção do social”, in: ——. Jogos de esca-

las: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 1998.15. OFFERLÉ, Michel. “Mobilisation électorale et invention du citoyen l’exemple

du milieu urbain français à la fin du XIXe siècle”, in: GAXIE, Daniel (ed.).Explication du vote. Paris, Presses FNSP, 1985.

16. Arena 65.08.31 cor/g pasta 37, CPDoc, FGV.17. Arena 65.08.31 cor/g pasta 20, CPDoc, FGV.18. Arena 65.08.31 cor/g pasta 24, CPDoc, FGV.19. Arena 65.08.31 cor/g, CPDoc, FGV.20. Arena 65.08.31 cor/cg pasta 23, CPDoc, FGV.21. Arena 65.08.31 cor/cg pastas 7 e 8, CPDoc, FGV.22. Arena 65.08.31 cor/cg, CPDoc, FGV.23. Arena 65.08.31 cor/cg pasta 23, CPDoc, FGV.24. Arena 65.08.31 cor/cg, CPDoc, FGV.25. Arena 65.08.31 cor/cg, CPDoc, FGV.26. Arena 65.08.31 cor/cg pasta 35, CPDoc, FGV.27. Arena 65.08.31 corg/cg pasta 24, CPDoc, FGV.28. Arena 65.08.31 cor/cg pasta 23, CPDoc, FGV.29. PENDARIES, Jean-René. “Approche biographique et approche structurelle:

quelques remarques sur le ‘retour du biographique’ en sociologie”. L’Homme etla Société, État et Société Civile, Paris, n° 4, 1991, pp. 51-63.

30. SOARES, Glauco Ary Dillon. “A política brasileira: novos partidos e velhos con-flitos”, in: FLEISCHER, David. Da distensão à abertura: as eleições de 1982.Brasília: UnB, 1988, p. 105.

31. Arena 65.08.31 cor/g pasta 1, CPDoc, FGV.32. Arena 65.08.31 cor/g pasta 1, CPDoc, FGV.33. Arena 65.08.31 cor/g pasta 1, CPDoc, FGV.34. Arena 65.08.31 cor/g, CPDoc, FGV.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29275

276

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

35. Arena 65.08.31 cor/g pasta 44, CPDoc, FGV.36. Arena 65.08.31 cor/cg pasta 20, CPDoc, FGV.37. Arena 65.08.31 cor/cg pasta 63, CPDoc, FGV.38. Arena 65.08.31 cor/g pasta 69, CPDoc, FGV.39. Arena 65.08.31 cor/g pasta 37, CPDoc, FGV.40. Arena 65.08.31 cor/g pasta 38, CPDoc, FGV.41. Arena 65.08.31 cor/g pasta 20, CPDoc, FGV.42. Arena 65.08.31 cor/g pasta 50, CPDoc, FGV.43. Arena 65.08.31 cor/g pasta 50, CPDoc, FGV.44. Arena 65.08.31 cor/g pasta 49, CPDoc, FGV.45. MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o perigo vermelho: o anticomunismo

no Brasil (1917-1964). São Paulo: Perspectiva; Fapesp, 2002.46. Arena 65.08.31 cor/g, CPDoc, FGV.47. Arena 65.08.31 cor/g, CPDoc, FGV.48. Arena 65.08.31 cor/g pasta 38, CPDoc, FGV.49. Arena 65.08.31 cor/g, CPDoc, FGV.50. Arena 65.08.31 cor/g pasta 8, CPDoc, FGV.51. Arena 65.08.31 cor/g pasta 62, CPDoc, FGV.52. Arena 65.08.31 cor/g pasta 71, CPDoc, FGV.53. Em janeiro de 1976, o general Geisel cassou os mandatos do deputado federal

Marcelo Gato e do deputado estadual Nelson Fabiano Sobrinho, ambos do MDBde São Paulo.

54. Arena 65.08.31 cor/g, CPDoc, FGV.55. Arena 65.08.31 cor/g pasta 7, CPDoc, FGV.56. Arena 65.08.31 cor/g pasta 75, CPDoc, FGV.57. Arena 65.08.31 cor/p pasta 90, CPDoc, FGV.58. Arena 65.08.31 cor/cg pasta 60, CPDoc, FGV.59. Nos anos 1980, após a anistia e a liberalização partidária, Leonel Brizola e Miguel

Arraes de fato voltaram a organizar partidos políticos. Brizola não conseguiu alegenda histórica do PTB, mas criou o Partido Democrático Trabalhista (PDT) eArraes reorganizou o Partido Socialista Brasileiro (PSB). Ambos foram eleitosgovernadores após a abertura. Sobre Leonel Brizola e o PDT, ver: SENTO SÉ,João Trajano. Brizolismo: estetização da política e carisma. Rio de Janeiro: Espa-ço e Tempo; Fundação Getulio Vargas, 1999.

60. Arena 65.08.31 cor/g, CPDoc, FGV.61. Arena 65.08.31 cor/g pasta 58, CPDoc, FGV.62. Pontal (SP), 22/7/1976. Arena 65.08.31 cor/cg pasta 38, CPDoc, FGV.63. GRINBERG, Lucia, op. cit., p. 200.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29276

277

“SAU D A Ç Õ E S A R E N I S TAS”

Bibliografia

AARÃO REIS, Daniel. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar Editor, 2000.

BENEVIDES, Maria Vitória de Mesquita. A UDN e o udenismo: ambiguidades do libe-

ralismo brasileiro (1945-1965). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.

BERSTEIN, Serge. “L’historien et la culture politique”. Vingtième siècle. Revue d’Histoire.

Paris, n° 35, 1992, pp. 67-77.

——. “Os partidos”, in: RÉMOND, René (org.). Por uma história política. Rio de Ja-

neiro: UFRJ; FGV, 1996.

DULCI, Otávio Soares. A UDN e o antipopulismo no Brasil. Belo Horizonte: Editora

UFMG, 1986.

FERREIRA, Jorge. Os trabalhadores do Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 1999.

FICO, Carlos. “Prezada censura: cartas ao regime militar”. Topoi, Rio de Janeiro, nº 5,

setembro de 2002, pp. 251-286.

FIGUEIREDO, Marcus; KLEIN, Lucia. Legitimidade e coação no Brasil pós-64. Rio de

Janeiro: Forense Universitária, 1978.

GOMES, Angela de Castro (org). Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro: Fun-

dação Getulio Vargas, 2004.

GRINBERG, Lucia. “Adauto Lúcio Cardoso, da UDN à ARENA”, in: KUSHNIR, Beatriz

(org.). Perfis cruzados, trajetórias e militância política no Brasil. Rio de Janeiro:

Imago, 2002.

——. Partido político ou bode expiatório: um estudo sobre a Aliança Renovadora Na-

cional (Arena). Rio de Janeiro: Mauad, Faperj, 2009.

——. “Uma memória política sobre a Arena: dos ‘revolucionários de primeira hora’ ao

‘partido do sim, senhor’”, in: MOTTA, Rodrigo Patto Sá; REIS, Daniel Aarão;

RIDENTI, Marcelo (orgs.). O golpe e a ditadura. 40 anos depois. Bauru: Edusc,

2004b.

HEYMANN, Luciana Quillet. “Quem não tem padrinho morre pagão: fragmentos de

um discurso sobre o poder”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 13, nº 24,

1999, pp. 323-349.

HIPPOLITO, Lúcia. De raposas e reformistas: o PSD e a experiência democrática brasi-

leira, 1945-64. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.

KINZO, Maria Dalva Gil. Oposição e autoritarismo. Gênese e trajetória do MDB. São

Paulo: Idesp; Vértice, 1988.

LAVAREDA, Antônio. A democracia nas urnas. Rio de Janeiro: Rio Fundo, 1991.

MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o perigo vermelho: o anticomunismo no

Brasil (1917-1964). São Paulo: Perspectiva; Fapesp, 2002.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29277

278

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

OFFERLÉ, Michel. “Mobilisation électorale et invention du citoyen l’exemple du milieuurbain français à la fin du XIXe. siècle”, in: GAXIE, Daniel (ed.). Explication duvote. Paris: Presses FNSP, 1985.

PENDARIES, Jean-René. “Approche biographique et approche structurelle: quelquesremarques sur le ‘retour du biographique’ en sociologie”. L’Homme et la Société,État et Société Civile, Paris, n° 4, 1991, pp. 51-63.

POSSAS, Lídia M. Vianna. “Vozes femininas na correspondência de Plínio Salgado(1932-38)”, in: GOMES, Angela de Castro (org). Escrita de si, escrita da história.Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 2004.

REIS, Elisa. “Opressão burocrática: o ponto de vista do cidadão”, in: ——. Processos eescolhas: estudos de sociologia política. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 1998.

REVEL, Jacques. “Microanálise e construção do social”, in: ——. Jogos de escalas: aexperiência da microanálise. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 1998.

ROUSSO, Henry. “O arquivo ou o indício de uma falta”. Estudos Históricos, Rio deJaneiro, vol. 9, n° 17, 1996, pp. 85-91.

SENTO SÉ, João Trajano. Brizolismo: estetização da política e carisma. Rio de Janeiro:Espaço e Tempo; Fundação Getulio Vargas, 1999.

SOARES, Glauco Ary Dillon. “A política brasileira: novos partidos e velhos conflitos”, in:FLEISCHER, David. Da distensão à abertura: as eleições de 1982. Brasília: UnB, 1988.

Arquivo

Arquivo da Arena (Aliança Renovadora Nacional), depositado no CPDoc (Centro dePesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil) da FGV (Funda-ção Getulio Vargas).

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29278

CAPÍTULO 8 Desbundar na TV : militantes da VPR eseus arrependimentos públicos1

Beatriz Kushnir*

*Diretora do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Professora visitante de Históriado Brasil na UFF. Pesquisadora do NEC. Autora de Cães de guarda: jornalistas e censores, doAI-5 à Constituição de 1988. São Paulo: Boitempo, 2004, e organizadora de Maços na gave-ta. Reflexões sobre mídia; Niterói: EdUFF, 2009.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29279

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29280

DEMARCANDO O TERRITÓRIO: COLABORACIONISMO EM FOCO

Ao refletir acerca das relações da grande imprensa brasileira com os órgãosde censura do Estado no pós-1964, centrei as ponderações nos exemplos decolaboração de parte dos jornalistas. Essa perspectiva inaugurou uma abor-dagem diferenciada e que anteriormente era marcada majoritariamente peloponto de vista da resistência. Não estou aqui generalizando nem incluindotodos os jornalistas sob o manto do apoio ao arbítrio. Mas foram os jorna-listas que apoiaram o ponto que elegi para analisar. Da mesma maneira queoutras trajetórias, opostas à tratada, já foram localizadas e estudadas, esseolhar distinto auxilia na compreensão e apreensão do contexto, ampliandoos focos de análise.

É essencial, portanto, esta ressalva: o eixo desta apreciação ancora-seem um território do qual participava apenas um pequeno grupo de dirigen-tes — donos de jornais — e um diminuto círculo de jornalistas nas reda-ções. A força que tiveram esses homens de jornal, entretanto, foi oposta aoreduzido número de componentes.

Nesse sentido, não quero dar a entender que a autocensura e o colabo-racionismo tenham sido praticados pela maioria dos jornalistas, pois issoestá longe da verdade. Muitos dos que “combateram” as práticas do Esta-do pós-1964 e pós-AI-5 ficaram desempregados, foram encarcerados ouperseguidos. Muitos jornalistas igualmente desempenhavam uma militânciade esquerda — de simpatizantes a engajados — e padeceram (muitas vezescom marcas na própria pele) por tais atitudes.

Não é meu propósito, entretanto, assentar em uma mesma casta os do-nos de jornais e os jornalistas de várias tendências. Não estou esquecendo

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29281

282

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

a multiplicidade de papéis possíveis de se desempenhar. Assim, o ponto departida foi como a relação imprensa versus Estado autoritário apreendeu aexistência de jornalistas que colaboraram com o regime, de outros que re-sistiram e de outros ainda que lutaram contra ele. Tais avaliações tambémse aplicam aos seus patrões.

Minha inquietação, no entanto, não se debruçou sobre a resistência. Nãonegligencia a sua existência, mas buscou focar outro lado da problemática,sem, espero, desejar generalizar, afirmando que todos colaboraram. Ape-nas quis mostrar que nem todos combateram. O que essa avaliação preten-deu foi revelar um dado oculto, que assim estava por força de um hábito oupela expressão dos acordos de uma convenção. Revelar aqui tem o sentidode tirar um véu, não de “fazer uma revelação”. A vontade foi examinar paradesmistificar tanto a noção generalizante de que os jornalistas arguiram oarbítrio, como também a percepção de que o censor é, antes de tudo, umbilontra. É importante enfatizar, por conseguinte, que não quis delatar,denunciar pura e simplesmente, mas “fazer conhecer” outra faceta da nar-rativa histórica contemporânea que oculta personalidades menos “nobres”.

No âmbito da pesquisa mais ampla e que culminou na tese de doutora-mento, os focos de análise confluíram em dois cenários e no diálogo queeles estabeleceram. Busquei arrolar, por um lado, os jornalistas de formaçãoe atuação que trocaram as redações pela burocracia e fizeram parte, comotécnicos de censura, da DCDP (Divisão de Censura de Diversões Públicas),órgão vinculado ao DPF (Departamento de Polícia Federal) e subordinadoao Ministério da Justiça. E, por outro, os policiais de carreira que atuaramcomo jornalistas, colaborando com o sistema repressivo e censor do pós-1964. Para encontrar exemplos dessa trajetória, procurei redesenhar o per-curso do jornal Folha da Tarde, do Grupo Folha da Manhã, de 1967 a 1984.Ao deparar com essa interseção, que reunia jornalistas e censores em ummesmo lado, unidos para resguardar um modus operandi, a imagem de cãesde guarda para defini-los tornava-se cada vez mais adequada.

Foi instigante, todavia, notar que, na busca por abarcar e delimitar oconjunto de censores, me surpreendi ao encontrar, no primeiro grupo des-locado para Brasília, dez jornalistas. A avaliação da trajetória do jornal Fo-lha da Tarde se divide em dois períodos: do retorno da circulação, em 1967,

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29282

283

D E S B U N D A R N A T V

até o AI-5, quando se torna um instrumento de apoio e propaganda doEstado autoritário. Na seção sobre os jornalistas, investigo a redação que láse encontrava em 1967, vinculada à cobertura dos movimentos políticosda época, da qual faziam parte militantes de esquerda — de simpatizantesa engajados. No ponto sobre os policiais, o foco é a mudança de contornoe de conteúdo dos que lá passaram a trabalhar, já que o jornal ficou conhe-cido como o Diário Oficial da Oban.2

É necessário mencionar que cheguei à história da Folha da Tarde por umacaso. Na realidade, buscava uma entrevista com o delegado Romeu Tuma— que, ao ser convidado pelo presidente José Sarney (1985-1990) para as-sumir a direção do DPF, rompeu a tradição de militares ocuparem o cargomáximo dessa instituição. Para tentar agendar com o delegado Tuma,contatei o seu assessor de imprensa, em São Paulo, mas não conseguia mar-car um encontro. Ao entrevistar o jornalista Boris Casoy para compreen-der os reflexos da censura na redação da Folha de S. Paulo, mencionei adificuldade de localizar o já então senador Tuma. Casoy me explicou quemera o assessor de imprensa de Tuma e o significado da frase que definia aFolha da Tarde como “o jornal de maior tiragem”, pelo número de tiras,policiais, na redação.

O espanto da revelação guiou a investigação. Se existiram censores ex-jornalistas, também houve tiras escrevendo em jornal. Este é um estudo,portanto, que toca na questão da ética, mas centra-se na prática de um ofício,nas regras a serem seguidas e, sobretudo, nos seus momentos de rompi-mento da prática e da conduta esperada. Ao mencionar a temática da ética,é importante apontar igualmente que as empresas de comunicação vendemum serviço. Ao comprar o impresso, adquire-se uma informação. Nessesentido, negocia-se com a veracidade de um relato. Assim, o que ocorreuna Folha da Tarde de 1969 a 1984 é algo muito relevante para refletir acer-ca das normas que regem esse “negócio”.

Da mesma maneira, creio ser importante assimilar que, ao focar a expe-riência do colaboracionismo em parte da grande imprensa e, em especial,nesse jornal, pude perceber que essa atuação se ramificou por todos os estra-tos da sociedade brasileira. Exemplo disso está no objeto a ser cotejado nestaanálise: os desbundados. Essa pulverização e a multiplicidade de atuações

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29283

284

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

possíveis ratificam as considerações do historiador Daniel Aarão Reis, ex-militante do MR-8.3 Para o autor,

(...) a sociedade brasileira viveu a ditadura como um pesadelo que é preciso

exorcizar, ou seja, a sociedade não tem, e nunca teve, nada a ver com a di-

tadura. [Então], como explicar por que a ditadura não foi simplesmente

escorraçada? Ou que tenha sido aprovada uma anistia recíproca?4

OS GANSOS: SEUS PESCOÇOS E OS MEANDROS DA INFORMAÇÃO

Percival de Souza, repórter especializado em polícia de O Estado de S. Pau-lo e do Jornal da Tarde, tem se dedicado a conceber biografias de figurasenigmáticas e de trajetórias sombrias da recente ditadura civil-militar brasi-leira. Nessa linha, transcreveu e publicou o depoimento do cabo Anselmo5

e continuou na mesma trilha ao traçar o perfil do delegado Sérgio ParanhosFleury — o temido e sanguinário torturador do Deops do Largo GeneralOsório — como um amante adolescente.6

Esses relatos igualmente esquadrinham a estreita cumplicidade entre amaioria dos profissionais da grande imprensa que se dedica a cobrir a áreapolicial e os meandros daquela instituição. Não foram poucos os jornalis-tas que trabalharam como policiais contratados, como também existirampoliciais que cumpriram expediente nas redações, narrando e assinando co-lunas e artigos. As biografias escritas por Percival de Souza, entretanto, nãoagradaram nem mesmo a uma parte das antigas esquerdas armadas — queo acusam, por exemplo, de fazer uso de uma estratégia escusa para conse-guir o relato de Anselmo. Além disso, constrói uma imagem que muitos ex-militantes consideram pouco fidedigna desse momento recente da históriabrasileira. Ao que parece, também não saciou os desejos do outro lado.

Uma das críticas “bem à direta” à mais recente publicação de Percival deSouza foi feita por Rômulo Augusto Romero Fontes, figura cuja trajetóriaexpõe uma das inúmeras comicidades, se não fossem tragédias, que per-passaram a imprensa e as esquerdas armadas no pós-1968. Fontes foi mem-bro de um grupo de cinco militantes da Vanguarda Popular Revolucionária

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29284

285

D E S B U N D A R N A T V

(VPR),7 que, depois de capturados pelos órgãos de repressão, negociaramum arrependimento público nos jornais e na TV. Os que desbundaram, comoficaram conhecidos, é o mote central desta análise, após essas observaçõespreliminares.

Apreendidos por mim como fiéis cães de guarda, os jornalistas colabora-cionistas nas redações ou nos órgãos de censura foram definidos por RômuloFontes, na sua crítica ao livro de Percival de Souza, com a imagem de “ni-nho de gansos” (possivelmente por ser esse também um frequentador des-sas “moradas de informantes”). Assim descreveu Fontes a atitude de doisgrupos diversos diante do prédio do Deops:8 havia profissionais da grandeimprensa que esperavam para serem revistados na portaria, para só depoister acesso às informações e elaborar suas reportagens, e jornalistas tidoscomo “da casa”, como Fontes classificou Percival, que seguiam por umaentrada lateral, reservada aos policiais e apelidada de “passagem dos gansos”.

Percebendo-os como gansos ou cães, ao que tudo indica, parte da gran-de imprensa brasileira seguiu uma “tradição” não inaugurada em 1964 e/ouem 1968. Usando-se essa “passagem”, essa entrada lateral, esse outro lugar(escuso, alternativo, não legal), alguns jornalistas eram habitués do lado delá do balcão. Esses trocaram a narrativa de um acontecimento pela publica-ção de versões que corroborassem o ideário repressivo. Certamente acre-ditavam nas suas ações, compactuando sempre com o poder vigente. Alémde usar as penas, que também servem para escrever, mais do que isso, comoos gansos, esticaram os pescoços, “viram” e nos contaram uma versão bemparticular da realidade que se vivia. A esse ato se pode dar o nome deautocensura, como também de colaboração.

Submissamente leais aos seus “donos”, esses cães de guarda farejaramuma brecha, protegeram uma suposta morada e, principalmente, ao defen-der o castelo, nos venderam uma imagem errônea, desfocada e particular.Quando o tabuleiro do poder se alterou, muitos desses servidores foramaposentados, ao passo que outros construíram para si uma imagem positi-va e até mesmo heroica, distanciando-se do que haviam feito. Outros tan-tos se readaptaram e estão na mídia como sempre.

De todos esses esquemas e estruturas formulados para “perder poucosanéis”, algo deve ser sublinhado: a informação impressa, narrada ou tele-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29285

286

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

visionada é um produto vendido por jornais, rádios e TVs. Na condição deserviço — difundir a notícia ou a informação — tornou-se um bem públicoe uma relação de comércio, quando comprada pelos leitores, e confiança,ao se adquirir esse e não aquele jornal, revista etc. Mais um exemplo dessasnarrativas desfocadas pode ser apreendido quando se analisa a experiênciados mea culpas públicos.

DAS ONDAS QUE VÃO E VÊM: AÇÕES E REAÇÕES

Parecia que quase tudo era possível, bastava ousar. Pisar na Lua erapossível.Pisaram. Recusar ir para a guerra era possível. Recusaram. Desviarum avião para Cuba era possível. Desviaram. (...) Obrigar a dita-dura militar a ler em todas as televisões um manifesto contra elamesma era possível. Obrigaram. Livrar -se da URSS era possível.Tentaram, os tchecos tentaram. Ganhar o trimundial de futebol erapossível. Ganhamos.9

IVAN ÂNGELO

Ousados sequestros de diplomatas estrangeiros retiravam militantes doscárceres com notas divulgadas pela TV. Em algum momento, a repressãorevidaria tanto “atrevimento”. Mas, antes de exemplificar esses atos de re-taliação do governo, é preciso compreender um termo aqui usado. Paracircunscrever o conceito de desbundar, uso um comentário que me foi feitopor Daniel Aarão Reis. Preocupado com possíveis interpretações irônicasou que atraíssem a ira sobre as vítimas das torturas, e não sobre os tortura-dores, Aarão Reis refletiu que

(...) devemos ter, sempre, compaixão dos que não aguentaram os maus-tra-

tos. Desbundado foi uma palavra inventada pelos caras “duros” de vanguar-

da que, assim, se referiam desprezivelmente a todos que não viam com bons

olhos a aventura das esquerdas armadas. Depois, passou a se referir especi-

ficamente às pessoas que cediam diante da tortura. Mais tarde, o termo tor-

nou-se um genérico, designando, ambiguamente, seja os que eram contra a

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29286

287

D E S B U N D A R N A T V

luta armada, desqualificando-os, seja os que cediam diante da tortura. Enfim,

trata-se de um termo carregado de sentido pejorativo e deve ser usado com

muito cuidado. Em tempo: os torturadores gostavam muito de utilizá-lo.

Para adentrar esta narrativa talvez seja importante fixar como um mar-co o assassinato de Bacuri. Eduardo Collen Leite era um jovem quadro deação armada, fundador da Resistência Democrática (REDE), pequena or-ganização de São Paulo, que ingressou na Ação Libertadora Nacional (ALN)10

em 1970. Preso em 21 de agosto de 1970 e torturado por cerca de cemdias, foi assassinado em dezembro de 1970. A notícia oficial de sua morte,transformada em reportagem pela Folha da Tarde, legalizou, atribuindooutras causas, um assassinato decorrente de tortura. Mas não eram só essastemáticas que preocupavam aquele jornal a partir de julho de 1969.

No sábado 24 de outubro de 1970, Joaquim Câmara Ferreira, o Toledo,caiu. A manchete da Folha da Tarde do dia 26 tem o seguinte título em letrasgarrafais: “LAMARCA, O LOUCO, É O ÚLTIMO CHEFE DO TERROR.”Na exposição sobre o homicídio de Toledo, quando se refere a Lamarca, ojornalista da Folha da Tarde menciona que “(...) resta a esses grupos uma únicae péssima alternativa: aceitar a chefia do delinquente Carlos Lamarca, quenão passa — e eles bem o sabem — de um criminoso comum e psicopata”.11

O veredicto do tabloide expõe os pressupostos das medidas repressivascontra a luta armada — quebrar as organizações das esquerdas capturandoseus líderes. Objetivando desmoralizar um dos últimos líderes das esquer-das armadas ainda vivo e fora da prisão, a notícia da morte de Bacuri fina-liza emitindo as opiniões de um ex-militante da VPR, Massafumi Yoshinaga,sobre o ex-militar. As declarações de Massafumi, o Massa, fazem parte deuma outra ponta da teia montada para destruir as ações das esquerdas, quetinha nesse órgão de imprensa um aliado.

Assim, além da captura de seus líderes e militantes, também fez parte daestratégia “induzir” alguns militantes a protagonizar um arrependimentopúblico. Nesse contexto, em 2 de julho de 1970, os dois principais jornaisde São Paulo tinham como manchete: “Terrorista entrega-se ao Deops”(Folha de S. Paulo); e “Desiludido e cansado, terrorista entrega-se” (O Estadode S. Paulo).12

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29287

288

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Essas reportagens narram a trajetória de Massafumi Yoshinaga, de 21 anos,que, engajado na VPR e com participação política havia cinco anos, fazia partedo grupo do estudante Marcos Vinício Fernandes dos Santos e que, segundodeclarou, se entregou ao Deops paulista por livre e espontânea vontade. Parao jornal Folha de S. Paulo, um dos principais motivos desse ato seria o nãorepasse de recursos da organização para mantê-lo na clandestinidade. Já OEstado de S. Paulo noticiou que foram membros da família do militante quenegociaram com as autoridades policiais a “rendição” de Massafumi.

Essa história, entretanto, começou um mês e meio antes. A manchete daFolha da Tarde de 22 de maio de 1970 anunciava: “Terrorismo é uma farsa,denunciam jovens presos”, expondo o arrependimento de cinco militantespolíticos recém-ingressos na VPR — Marcos Vinício Fernandes dos Santos,Rômulo Augusto Romero Fontes,13 Marcos Alberto Martini, Gilson Teodorode Oliveira e Osmar de Oliveira Rodello Filho. Capturados pela políciapolítica de São Paulo em janeiro de 1969, decidiram escrever, quase umano e meio depois, duas cartas abertas, em que reavaliariam suas posiçõesante a militância armada. Uma seria dirigida à opinião pública internacio-nal, “tranquilizando quanto ao tratamento carcerário dos presos políticosà disposição da Justiça brasileira”,14 e a outra, aos jovens brasileiros, con-denando as ações armadas e o engajamento na militância de esquerda, que“alienariam os seus participantes”. Adequando assim seus discursos à prá-tica policial do momento, esse grupo de militantes “inaugurou” essa práticade “arrependimentos públicos”, que, infelizmente, seria repetida por outros.15

Esses cinco militantes estavam detidos na ala para presos políticos dopresídio Tiradentes, em São Paulo, quando foram a público prestar depoi-mento, ou seja, desbundar. Ricardo Azevedo, ex-integrante da Ação Popu-lar (AP),16 que esteve confinado entre 18 de setembro de 1969 e 3 de outubrode 1970, relembrou que eles estavam na sua cela, a de número 3, e que,frequentemente, saíam para conversas com advogados. Essas ausências

(...) aumentavam. Passaram a ser chamados quase diariamente e permaneciam

fora da cela por várias horas. Um dia, constatamos que tinham sido levados

para fora do presídio. (...) Qual não foi nossa surpresa quando, à noite, em

horário nobre, vimos os cinco na televisão, dando declarações de arrepen-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29288

289

D E S B U N D A R N A T V

dimento. (...) A revolta foi geral. (...) Imediatamente, os coletivos das diver-

sas celas se reuniram e, não me lembro como, os coordenadores de cela fe-

charam unanimemente nossa posição.

(...) Para nossa surpresa, por volta da uma da madrugada, o camburão

chegou ao presídio trazendo-os de volta. (...) Todos nos aglomeramos junto

às portas das celas. (...) Eles assomaram à entrada do corredor. Imediata-

mente nos pusemos a gritar como loucos, com toda a força que a raiva nos

dava. (...) Creio que por cinco minutos, na madrugada paulistana, mais de

cem presos gritamos: “Traidores! Traidores! Traidores!” (...) Rômulo sorria

ironicamente, Marquinhos xingava e os outros três estavam de cabeça baixa.17

É importante ressaltar que os desbundados aqui relatados pertenciam auma mesma organização: a VPR. Isso não quer dizer, entretanto, que sócometeram esse ato os militantes dessa organização. É necessário, contu-do, compreender que organização era essa. A Vanguarda Popular Revolucio-nária surgiu, em março de 1968, da “(...) união de militantes de origensdiversas: dissidentes que cindiram”. Tal ruptura se deu porque alguns doscompanheiros “(...) defendiam a necessidade de partir imediatamente paraa construção do foco guerrilheiro”.18 Seguindo os passos dos integrantesdo MNR19 — que tentaram iniciar em Caparaó o foco de luta rural — e delíderes operários ligados ao movimento sindical da cidade paulista de Osasco,na VPR, segundo Rollemberg, podem-se (...) distinguir (...) duas fases bemclaras. No 1º Congresso, em dezembro de 1968, (...) [se] explicitou a ten-são entre o grupo dos militantes do MNR, que defendia propostas de con-fronto imediato com o regime, e o setor liderado pelo então teórico da VPRJoão Quartim de Moraes, que recomendava o recuo na linha responsávelpelas ações de grande impacto que a organização vinha fazendo.20 Assim,

(...) Em 1º de julho de 1969, a VPR juntou-se aos Comandos de Libertação

Nacional (Colina), organização que também se formou com dissidentes de

Minas Gerais do 4º Congresso da Polop. Nessa fusão, entraram outros gru-

pos, como o do Rio Grande do Sul.

(...) A união não resistiu ao primeiro congresso da nova organização, em

setembro de 1969, quando a maioria dos militantes recuperou antigas posi-

ções da Polop que buscavam limitar o militarismo.21

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29289

290

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Os que discordaram da posição que prevaleceu no congresso e defende-ram o desencadeamento imediato das ações armadas partiram para a re-construção da VPR.

Nesse sentido, os militantes que desbundaram adentraram na organiza-ção nessa segunda etapa, “(...) cujas posições estão expressas no documen-to elaborado por Ladislas Dowbor, com o codinome Jamil Rodrigues, [como título de] Caminhos da Revolução”.22 As diretrizes ali traçadas instituíama necessidade de uma entidade disposta a enveredar pela luta armada. Feitaessa observação, pela qual se compreende o perfil da VPR em que estavamesses ativistas, é preciso destacar outro ponto: embora as notícias desse“arrependimento” não tenham sido veiculadas apenas pela Folha da Tarde,o que chama a atenção é o destaque dado a elas por esse jornal. Os infor-mes acerca dos fatos eram sempre notas oficiais divulgadas à imprensa. Arevista Veja publicou uma reportagem de seis páginas, em que as duas últi-mas pinçavam os principais trechos dos depoimentos tanto do grupo deMarcos Vinício como do de Massafumi.23 A Folha da Tarde, além de terfeito do argumento uma manchete de primeira página, contratou, comotambém o fizeram outros jornais um pouco mais tarde, dois desses “arre-pendidos” como jornalistas.

Marcos Vinício Fernandes dos Santos e Rômulo Augusto Romero Fon-tes, após ser libertos, passaram a escrever para a Folha. Marcos Vinícioparticipou da greve dos metalúrgicos de Osasco, em 1968, em que conhe-ceu José Ibrahim Pereira, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos daquelacidade, e, a partir de então, envolveu-se nas atividades do MNR. Na Folhada Tarde, foi um colaborador.

Fontes pertenceu ao quadro do periódico até 1984. Pernambucano,narrou sua militância vinculada aos movimentos estudantis, às Ligas Cam-ponesas e, mais tarde, à IV Internacional, de cunho trotskista. Encarcerado,permaneceu, de dezembro de 1966 a agosto de 1967, no Recife. Evadiu-separa São Paulo, em março de 1968, depois de saber de sua condenação naAuditoria Militar do Recife, e vinculou-se ao grupo de Pedro Chaves, RoqueAparecido da Silva e José Ibrahim Pereira.

Fontes, Marcos Vinício, Ibrahim e os outros caíram dias depois da deser-ção do capitão do Exército Carlos Lamarca, em 24 de janeiro de 1969.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29290

291

D E S B U N D A R N A T V

Lamarca, que naquele momento se ligou à VPR, servia no 4º Regimento deInfantaria, no Quartel de Quitaúna, em Osasco, na época comandado pelocoronel Antônio Lepiane. Desses militantes, em setembro, Ibrahim foi umdos presos políticos trocados pelo embaixador americano sequestrado.Marcos Vinício revelou, tempos depois, que foi a prisão que possibilitouuma reflexão sobre suas atividades na militância de esquerda, ideia corro-borada por Osmar de Oliveira.24 Fontes, no período em que ficou presopela segunda vez, já em São Paulo, esteve incomunicável até agosto de 1969.Rememorando, revelou que foi a partir das visitas, que começou a receber,que o grupo deliberou (...) expressar uma posição contrária. [Portanto], “aentrevista [de maio de 1970] foi um produto de um trabalho que fizemos.O manifesto de maio de 1970 foi o coroamento de uma visão nacionalista,de plena identificação ao ideário do governo Médici. Entrei no presídioTiradentes como um homem de esquerda e saí como [um homem de] direi-ta. Hoje sou integralista”.25

Nessa mesma direção, Marcos Alberto Martini assumiu, um ano depoisdo seu “arrependimento público”, que teria sido o discurso de posse dopresidente Médici, ouvido por ele na prisão, o que o levara a (...) [pensar]“na necessidade de questionar os fundamentos da minha doutrina”. Princi-palmente o papel político que tinha desempenhado como membro de umaorganização esquerdista radical.26

Buscando ressaltar esses atos de desbunde, Fontes sublinhou o ineditismoda ação de maio de 1970, o manifesto, como denominou. Nessa trilha, igual-mente enfatizou que foi uma decisão de foro íntimo e que não houve pedidode pessoas do governo para que isso se realizasse. Havia, segundo ele, ape-nas um “encontro” de propósitos.

Desse modo, Fontes destacou que, quando os cinco se decidiram, aí simhouve a “visita” de representantes do governo — dos quais Fontes não quismencionar os nomes — na tentativa de delimitar de onde viria essa ajuda.É oportuno destacar que Fontes e mais dois amigos tiveram como advoga-do o dr. Juarez Alencar de Araripe, da Auditoria Militar. Como consequênciadas declarações de maio de 1970, foi transferido para Fortaleza, no Ceará,só sendo libertado em 14 de julho de 1971. Seus quatro companheiros, en-tretanto, ganharam liberdade no Natal de 1970.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29291

292

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Ainda refletindo sobre essas “exposições públicas”, vale enfatizar o casode Massafumi. Após a sua queda — sendo esse o último participante dogrupo de desbundados da VPR — existiram, é claro, inúmeras reportagens,em todos os jornais do país, que exibiram o seu arrependimento público.Há, contudo, uma referência do Jornal da Tarde, de 18 de julho de 1970,que procurou manipular o fato, construindo mais uma vez, e de forma ne-gativa, uma reflexão acerca da militância armada.

Nessa direção, o jornal narrou uma reação de parte da militância, queteria arremessado de cima do prédio da rua Santa Teresa, em São Paulo,panfletos assinados pela Unidade Operária com o título “O que Massafumideixou de dizer”. Neles, eram expostos o (suposto) vínculo de Massafumi coma polícia e as questões nacionais que sua carta à imprensa se “esqueceu” demencionar.

Era uma tentativa das militâncias das esquerdas de apresentar um outroquadro da situação e circunscrever o negativismo em relação à causa da lutaarmada a um grupo de “maus” companheiros. Dias depois, o Jornal do Bra-sil divulgou que os “arrependidos voltariam à TV”. Seriam eles Massafumi,Fontes e Marcos Vinício, em um programa gravado na TV Tupi de São Pauloe que, após aprovação das autoridades, seria exibido na noite de 23 de ju-lho de 1970. A mesma nota do jornal carioca informava as investigaçõesdo Deops paulista para descobrir os autores dos panfletos contra Massafumi,que “não teria falado das torturas, da exploração de flagelados do Nordes-te e da suspensão das eleições diretas, (...) anulação da lei de remessa delucros e da venda de terras a estrangeiros”.27

Anos mais tarde, sem se reconciliar com seu passado, Massafumi se sui-cidou. Mais uma vez refletindo acerca dos comentários de Daniel AarãoReis, é importante sublinhar o que esse processo representou para cada umdos envolvidos — os militantes, o governo e os desbundados.

Essa triste memória — a ida à TV para um expurgo público que infeliz-mente não parou nesses cinco casos — também marcou outras pessoas, todasmilitantes de esquerda. São eles: o carioca Manoel Henrique Ferreira, ex-militante do MR-8, e o militante responsável pelo setor de inteligência daVPR, Celso Lungaretti. Isso porque a crueldade dessa ação, desse arrepen-dimento público, não cessava de aparecer nas notas na imprensa. Muito

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29292

293

D E S B U N D A R N A T V

provavelmente, a maioria desses indivíduos teve sua “rendição” conseguidapelos órgãos de repressão, que, certamente, usaram de violência física paratal. Programas gravados foram veiculados minutos antes do único jornaltelevisivo nacional da época, o da Rede Globo, recentemente colocado noar. Ou seja, o intuito era afirmar, em cadeia nacional de TV, que ser oposi-ção ao governo era um exercício realizado por pessoas que, arrependidas,expunham quão sem sentido era o combate.

Destruir a imagem desses militantes diante da população em geral, fa-zendo do povo um aliado contra a luta armada, era, em primeira e últimainstância, o alvo.28 O Jornal do Brasil de 3 de setembro de 1977 trouxe umdepoimento de Manoel Henrique Ferreira sob o título “Terrorista presoafirma que ‘se arrependeu’ sob tortura”. Na época com 31 anos e condena-do a 57 de prisão, Manoel escreveu uma carta ao arcebispo de São Paulo,dom Paulo Evaristo Arns, em que afirmava ter comparecido à TV sob coa-ção e com promessas de que seria libertado. Debatendo-se com a dor daprisão e com o esquecimento momentâneo das propostas da luta, Manoelficou profundamente marcado pelos episódios de julho de 1971. Ele eraprocurado, entre outras atividades, por ter sido um dos quatro guardas res-ponsáveis pelo embaixador alemão sequestrado em 11 de junho de 1970.Seu nome foi divulgado pela imprensa um dia após o seu pronunciamentona TV, em 13 de julho de 1971.

Esse pronunciamento (...) deveria ter como objetivo impedir que outras

pessoas ingressassem na subversão. Eu deveria dirigir-me sobretudo à juven-

tude. Deveria também falar sobre o bom tratamento que estava recebendo,

sobre a inexistência de torturas. (...) Dias depois, descumprindo um dos tra-

tos, é levada uma televisão à cela, onde é passado o meu pronunciamento,

gravado anteriormente em videotape. Aquilo foi uma verdadeira agressão

aos presos, principalmente pela surpresa e pelo fato de eu tê-los enganado,

não falando nada para ninguém.29

Centrando nesses outros dois militantes — Manoel Henrique Ferreira eCelso Lungaretti — e tendo como foco a versão da Folha da Tarde sobreesses casos, publicada na manchete de 9 de julho de 1970, o Jornal do Brasil

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29293

294

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

sentencia, no caso de Lungaretti, que: “Terrorismo em pânico: outro ban-dido deserta.” Detido desde 16 de junho, Lungaretti renegou sua militânciaem um manifesto divulgado no dia anterior, na 1ª Região Militar, no Rio.As declarações desse militante na prisão, coletadas sob tortura, iniciaramuma nova devassa nos quadros da VPR. Sua atuação, renegando a luta, foiexposta durante uma hora na TV, no mesmo dia em que o jornal estava nasbancas.30

Ivan Seixas lembra que, na ocasião do depoimento de Lungaretti na te-levisão, Carlos Lamarca estava escondido em sua casa, em São Paulo. Naentrevista, Lungaretti chamou Lamarca de “paranoico exibicionista, queusava nomes de guerra de personagens grandiosos, como Cid, César etc., eque tinha um plano de sequestrar o delegado Fleury para fazer um duelo,do tipo faroeste, para ver quem era mais rápido no gatilho”. Essa clara ten-tativa de desmoralizar e ridicularizar Lamarca, como recorda Seixas, dei-xou o ex-capitão profundamente magoado.

Se um lado dessa estratégia aproxima os militantes “arrependidos” dosórgãos de repressão, outro necessariamente precisava ser ocupado pela re-lação desses órgãos repressivos com a TV e a imprensa. Como me relatouDuarte Franco31 — funcionário do Departamento de Qualidade da TVGlobo por mais de 30 anos —, os trâmites para a apresentação desses pro-gramas naquela emissora de televisão eram de responsabilidade de um fun-cionário com profundas ligações com o Estado-Maior do Exército, ManoelEdgardo Ericsen. O objetivo era apontar à população a certeza da diretrizdo governo na repressão aos movimentos de guerrilha. Alguns desses de-poimentos na TV foram posteriormente exibidos aos companheiros de celado militante. O anseio talvez fosse o de que ali se realizasse um justiçamento.

No cerne desse mesmo enfoque, Judith Patarra, redesenhando a biogra-fia de Iara Iavelberg — a mulher de Carlos Lamarca —, reflete sobre a ques-tão. Assim, em 21 de maio [de 1970], cinco presos denegriram a militânciaem vídeo gravado e posto no ar pela TV. À revolta seguiu-se comiseração.O que haviam sofrido, qual a fraqueza a provocar simbiose com o algoz?32

A mesma autora usa essa investida biográfica para, pela fala de Iara, ques-tionar esse ato. Nessa reflexão, a militante, nas palavras de sua biógrafa,procurava (...) o deletério nos semblantes. Há graus de sucumbência, dizia,

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29294

295

D E S B U N D A R N A T V

onde [há] diferença entre eles e Olavo Hansen, do grupo trotskista, presoem 1º de maio e torturado sem nada abrir até a morte?

Um dia [diria Iara por Judith] “estudo o lado emocional da militância”.33

O importante a ressaltar é que, em parte da imprensa brasileira, em deter-minados momentos desse período, se pode pinçar um ou outro episódioestranhamente reportado. Um exagero na análise e a ausência de uma in-vestigação mais precisa comprometeram, olhando do presente, a clarezado fato. Além disso, muitas análises iam de encontro — no sentido de sechocar e opor — à ação das esquerdas armadas. Certamente, uma parcelagrande da imprensa condenava a guerrilha e usava termos como “subversi-vo”, “terrorista” e “terror” para referir-se ao assunto. Nessa direção, umexemplo encontra-se na ponderação feita pela revista Veja sobre o militan-te Carlos Lamarca, em que são apresentadas muitas das ideias e imagensque circunscreviam a temática no momento.

Na edição de 3 de junho de 1970, em uma capa que copiava trechosmanuscritos do militante, expõe-se sua caligrafia, que, segundo o semaná-rio, revela a letra de um menino. Desse fato, pelas impressões de Iara, trazidaspor Patarra, tem-se que a (...) reportagem [era] sobre Lamarca, as quedasde 21 de abril omitindo a morte de Juarez [Guimarães de Brito], as tortu-ras. Páginas assépticas. Censura. A capa reproduzia um texto manuscrito,(...) junto ao rosto recortado, sem traços. Forma de máscara mortuária. [Otítulo diz] “A nova face do Terror”. Começa com a plástica de Lamarca,que a repressão mantivera em segredo. (...) Alguém da VAR-Palmares aju-dou a reportagem, conclui.34

No exercício de uma arqueologia do léxico, o jornalista João Batista deAbreu35 ponderou acerca do vocabulário que permeou a imprensa brasilei-ra no pós-1964. Unindo uma terminologia policialesca às questões damilitância política, os guerrilheiros da luta armada tornaram-se “elemen-tos”, como qualquer “meliante” que assalta um banco ou rouba um carro.No decorrer do processo, “subversivo” era toda e qualquer pessoa que seopunha ao golpe. A exemplo da figura de Che Guevara, o militante era tam-bém um “guerrilheiro”, mas no sentido negativo do termo, ou seja, não oque luta, mas o que se opõe. Influenciado pelas ações de guerrilha urbanana Europa, na América e no Oriente Médio, que, para o noticiário da épo-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29295

296

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

ca, geravam terror e caos, o militante também passou a ser “terrorista”. Nessesentido, nos cartazes de procurados, liam-se “terroristas políticos” e a ad-vertência: “Para a sua segurança, coopere, identificando-os. Avise a polícia.”

Esquadrinhando a gênese do termo, Abreu entrevistou jornalistas. ParaAlberto Dines — editor-geral do Jornal do Brasil entre 1961 e 1973 — te-ria sido o governo que recomendou o termo “terrorista” a partir do AI-5.Já para José Silveira — secretário de redação do mesmo jornal — foi umainvenção do próprio jornal. Mas, como demonstra Abreu, foi o jornal OGlobo que, em 1966, pela primeira vez envergou o termo, sem qualquerpedido das autoridades.

Na manchete da primeira página desse periódico, em 26 de julho de1966, lê-se: “Terrorismo não interrompe o programa de Costa e Silva.”Assim, antes mesmo de o governo impor, alguns jornais já tinham condenadoas guerrilhas urbanas. Tal qual o PCB, que, em 1967, no seu VI Congresso,não acreditava na luta armada como uma forma de combater a ditaduracivil-militar, uma grande parte da imprensa nacional igualmente não ade-riu a essa forma de combate. Para os pecebistas, o caminho seria a (...) par-ticipação em todas as instituições permitidas pelo regime ditatorial. Por meiodo caminho eleitoral, consideravam possível e desejável restabelecer a or-dem democrática no país. (...) criticando todos aqueles que no pós-64 rom-peram com o partido e aderiram à luta armada, os pecebistas afirmavam:

Já nos primeiros dias após o golpe militar, (...) recusaram-se ao esquerdismo

aventureiro, diagnosticando os aspectos essenciais da ditadura militar. Nega-

ram-se ao radicalismo e colocaram no centro de sua estratégia a luta organi-

zada das massas contra o autoritarismo, a autocracia, o fascismo.36

Mesmo depois do AI-5, para muitos ainda, a luta não deveria ser associa-da às armas. Se alguns jornais mantinham uma política híbrida, a Folha daTarde, entretanto, foi radical. A diferença encontrada no caminho percor-rido pelo jornal é mais agravante e, por isso, tão inusitada. Sua trajetória, apartir de julho de 1969, assenta o debate na questão da ética, da função dojornal e do papel do jornalista. Radical em sua reflexão, Cláudio Abramosentencia que

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29296

297

D E S B U N D A R N A T V

(...) a ética dos jornalistas, portanto, é um mito que precisa ser desfeito. (...)

O jornalista não deve ser ingênuo, deve ser cético. Ele não pode ser impiedoso

com as coisas sem um critério ético. Nós não temos licença especial, dada

por um xerife sobrenatural, para fazer o que quisermos.

(...) O jornalismo é um meio de ganhar a vida, um trabalho como outro

qualquer; é uma maneira de viver, não é nenhuma cruzada. E por isso você

faz um acordo consigo mesmo: o jornal não é seu, é do dono. Está suben-

tendido que se vai trabalhar de acordo com a norma determinada pelo dono

do jornal, de acordo com as ideias do dono do jornal.

(...) O jornalismo não é uma profissão, é uma ocupação. Um dia desses

Paulo Francis melhorou o meu pensamento — e definiu jornalismo como uma

carreira, o que eu acho uma definição correta. É uma carreira, não uma pro-

fissão. O que é o jornalismo é uma questão complicada. Depende muito do

conceito que se tem da função do jornal, do jornalismo e do papel que eles

exercem na sociedade. O que tenho a oferecer é a minha visão, que provavel-

mente não é compartilhada por outros jornalistas brasileiros ou do resto do

mundo. O papel do jornalista é o de qualquer cidadão patriota, isso é, defen-

der seu povo, defender certas posições, contar as coisas como ocorrem com o

mínimo de preconceito pessoal ideológico, sem ter o preconceito de não ter

preconceitos. O jornalista deve ser aquele que conta a terceiros, de maneira

inteligível, o que acabou de ver e ouvir; ele também deve saber interpretar

coisas como decretos presidenciais, fenômenos geológicos, a explosão de um

foguete, um desastre de rua. Deve saber explicar para o leitor como o fato se

deu, qual foi o processo que conduziu àquele resultado e o que aquilo vai

trazer como consequência. (...) Caso se dê a notícia simplesmente, ela não é

mentirosa: aconteceu aquilo. (...) Mas a informação pode ir mais fundo.37

A redação da Folha da Tarde depois de 1° de julho de 1969, ao que tudoindica, concedeu uma leitura muito particular às imagens que vinham dasruas e das instâncias do poder. Desse grupo de desbundados, a opção poruma vida oposta à que tinham na militância parece que foi a conduta esco-lhida. No caso de Fontes, a militância integralista o absorve no momento.No exemplo de Lungaretti, após anos se sentindo injustiçado pela reaçãodos seus companheiros militantes de esquerda às suas opções, veio à tonacom um relato particular do que teria acontecido.38 Na apresentação dolivro, Luís Alberto de Abreu expõe as

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29297

298

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

(...) duas graves acusações (que) pesavam contra Celso. Uma delas era con-

creta: imputava-lhe a responsabilidade pela queda do segundo campo de

treinamento da guerrilha de Lamarca, no Vale do Ribeira.39 Essa acusação

durante mais de 30 anos teimou em tornar-se História, mas neste ano novas

informações isentaram completamente Celso Lungaretti da acusação de

delação, como está bem documentado e reconhecido neste livro.

A outra acusação era abstrata. Tratava-se de um julgamento moral sobre o

fato de Celso Lungaretti ter, publicamente, abjurado da luta armada e lança-

do acusações contra Lamarca, seu comandante na clandestinidade. Não se

levaram em consideração as evidências de que tal abjuração tenha sido

conseguida por meio de tortura como podia ser percebida no rosto, ainda

inchado por maus-tratos, exposto nas imagens da TV e em revista de circula-

ção nacional. E é aqui onde a ficção se aproxima perigosamente da realidade.40

No relato de Lungaretti, de mais de 200 páginas — bem como em sitesde jornalistas, como o de Carlinhos Brickman,41 no qual escreveu em 30 demarço de 2007 o texto “Há 43 anos o país entrava nas trevas” —, nunca háqualquer menção que exponha o que teria acontecido para que essa dela-ção pública tenha ocorrido. Lungaretti “optou” por circunscrever esse pe-ríodo de sua trajetória a um momento que deve ser absorvido pelo “terrenodo abstrato”, como, parece, seus amigos o preferiram classificar. O silênciofoi a opção/estratégia para (não) encarar esse episódio.

Notas

1. Uma versão anterior deste texto, bem como as linhas gerais desta reflexão, sãofrutos de minha tese de doutoramento em História, defendida na Unicamp emoutubro de 2001 e publicada no livro de KUSHNIR, Beatriz. Cães de guarda: jor-nalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988. São Paulo: Boitempo, 2004.

2. A Operação Bandeirantes (Oban) era a ação repressiva vinculada ao II Exército,financiada, em parte, por empresários. Foi uma iniciativa conjunta do II Exércitoe da Secretaria de Segurança Pública do governo Abreu Sodré, como uma tenta-tiva de centralizar as atividades de combate às crescentes ações de guerrilha urba-na em São Paulo. Criada em 29/6/1969, a Oban permaneceu até setembro de1970 em caráter extralegal (não era encontrada no organograma do serviço pú-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29298

299

D E S B U N D A R N A T V

blico). Isso demonstra que esse tipo de expediente era usado pelo governo dita-torial para manter em sigilo operações mais incisivas.

3. O Movimento Revolucionário 8 de outubro (MR-8) originou-se da Dissidênciada Guanabara (DI) do PCB (Partido Comunista Brasileiro), tendo uma grandeinfluência sobre o movimento estudantil. Destacou-se nacional e internacional-mente ao idealizar, em conjunto com a ALN (Ação Libertadora Nacional), oprimeiro sequestro de caráter político que obteve êxito: o do embaixador norte-americano no Brasil. Sua nomenclatura é uma lembrança da data de prisão deErnesto “Che” Guevara, na Bolívia, em 1967, assassinado no dia seguinte.

4. AARÃO REIS, Daniel. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro,Jorge Zahar Editor, 2000, p. 10. É importante também sublinhar uma imagemcunhada pelo mesmo autor quando analisou as recentes apropriações imagéticasdos anos de chumbo, como o filme O que é isso, companheiro? Formulando aexpressão de uma “memória da conciliação”, em que a dor não tem lugar, AarãoReis demonstra certa continuidade de olhares sobre um dado momento históri-co. Ver “Um passado imprevisível: a construção da memória da esquerda nosanos 60”, in: AARÃO REIS, Daniel et al. Versões e ficções: o sequestro da histó-ria. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 1997.

5. A trajetória do cabo Anselmo tem diferentes interpretações. Para alguns, ele era,naqueles tempos, um esquerdista talentoso e excelente agitador que despontouna militância de esquerda por suas articulações com o MNR (Movimento Nacio-nalista Revolucionário). Muitos se referem a ele sublinhando sua ousadia e arro-gância. O cerco aos movimentos da luta armada e o medo da morte justificariam,para alguns, sua traição e colaboração com a repressão policial. A ideia de tersido ele um delator infiltrado é uma leitura do PCB, que se comprazia em dizer,desde 1962-1963, que o cabo era um agente do serviço secreto americano (CIA).Para o Partidão, a mudança de posição e sua colaboração são tidas como uma“prova” que corrobora sua reflexão.

6. SOUZA, Percival de. Eu, cabo Anselmo. Rio de Janeiro: Globo, 1999.7. Fruto da fusão, em 1968, da Organização Revolucionária Marxista (ORM), da

Política Operária (Polop) de São Paulo e da seção paulista do Movimento Nacio-nal Revolucionário (MNR). Sua principal figura pública foi o capitão CarlosLamarca, que desertou do 4º Regimento de Infantaria do quartel de Quitaúna,no município de Osasco (SP), em 24/1/1969. Em 1969, a VPR fez uma novaaglutinação com o Comando de Libertação Nacional (Colina), adotando, a par-tir de então, a nomenclatura Vanguarda Armada Revolucionária-Palmares (VAR-Palmares). Em setembro de 1969, ocorreu uma cisão, fazendo ressurgir a VPR.Em 1970, a organização esteve envolvida no sequestro dos diplomatas japonês,alemão e suíço, bem como nas tentativas de guerrilha rural do Vale do Ribeira

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29299

300

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

(SP). As divergências e prisões marcaram o ano de 1971. Nesse período, Lamarcadeixou a organização. A VPR passou a receber orientação de Onofre Pinto, doexterior, que eram executadas pelo cabo Anselmo no Nordeste. Mais tarde, des-cobriu-se que esse era um agente infiltrado e que foi responsável por uma sériede prisões e mortes, como a dos militantes assassinados em Pernambuco. A VPRteve 37 militantes mortos pela ditadura.

8. Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops): apelidado de Casada Vovó, foi chefiado pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury. A diferença dessaagência do Dops para as outras estaduais era, segundo GORENDER, Jacob. Com-bate nas trevas, a esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. 5ª ed.São Paulo: Ática, 1998, que, nas outras capitais, “os Deops se converteram emapêndices dos DOI-Codi, reduzidos quase somente ao cumprimento burocráticoda formalização final dos processos judiciais a serem encaminhados às autorida-des militares”. São Paulo tornou-se exceção por ocasião da transferência, para apolícia política do Departamento Estadual de Investigação Criminal (Deic), dopessoal do Esquadrão da Morte, chefiado pelo delegado Fleury, para o terceiroandar do edifício de fachada avermelhada, em estilo inglês, onde funcionava oDeops, no Largo General Osório. Nas reflexões de Gorender, “(...) se tornouuma oficina de massacre tão sinistra quanto a câmara de interrogatórios da RuaTutoia. Fleury garantiu seu lugar na disputa do butim da repressão por meio daligação com o Cenimar, órgão de inteligência da Marinha. Colocada em planosubordinado pelo Exército após a criação da Oban e dos DOI-Codi, interessavaà Marinha dispor de um poder autônomo de luta contrarrevolucionária e, porisso, deu cobertura ao chefe do Esquadrão da Morte implantado no Deops paulista.Vale ressaltar que tanto o Esquadrão da Morte como a Oban são dois marcos dogoverno Abreu Sodré na história do estado de São Paulo”.

9. ÂNGELO, Ivan. O jornal da era de Aquário. Disponível em http://www.jt.com.br/frame/indexqu.htm.

10. Uma das organizações de maior expressão e número de militantes. Originou-sede uma dissidência do Partido Comunista Brasileiro (PCB), quando esse expul-sou de seus quadros Carlos Marighella e Joaquim Câmara Ferreira, entre outros,em 1967. Defendia a luta armada contra a ditadura civil-militar do pós-1964.Uma de suas principais ações foi, em conjunto com o MR-8, o sequestro doembaixador americano no Rio, em 4/9/1969. Entre 1969 e 1975, teve 53 mili-tantes mortos pela repressão.

11. Folha da Tarde, 26/10/1970, p. 1.12. O cantor Geraldo Vandré foi lembrado por muitos como um dos que também

teriam feito um depoimento desse tipo. Não consegui encontrar uma nota de jor-nal ou um documento que provasse essa afirmação. Em uma reportagem do jornal

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29300

301

D E S B U N D A R N A T V

Correio Braziliense, de 15/9/1985, lê-se: “Vandré não é só o último, mas, quemsabe, o eterno exilado brasileiro. Ele exilou-se de si próprio desde sua volta aoBrasil, em 17 de julho de 1973, quando, depois de um mês de depoimentos epressões no I Exército, no Rio, foi obrigado a aparecer no Jornal Nacional, saltan-do de um Electra da Varig, em Brasília, como se tivesse acabado de chegar deSantiago do Chile, pondo fim a um exílio físico e geográfico que começou emdezembro de [19]68, após o malfadado AI-5.” Tornou-se nacionalmente conheci-do graças à canção Caminhando — Pra não dizer que não falei de flores, um hinocontra a ditadura, que foi censurado no fim dos anos 1960. Em 1994, no Memorialda América Latina (SP), em um concerto para o 4º Comar da FAB, Vandré apresen-tou Fabiana, uma canção feita em homenagem à FAB. O jornalista Percival deSouza, no relato biográfico sobre o delegado Fleury, menciona que “Vandré, preso,passou por uma conversão no cárcere, transformando-se em um profundo admira-dor da Força Aérea Brasileira” (SOUZA, Percival de. Autópsia do medo: vida emorte do delegado Sérgio Paranhos Fleury. Rio de Janeiro: Globo, 2000, p. 34).

13. Entrevista concedida à autora em 3/11/1999.14. No início de outubro de 1970, o ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, em visita

oficial à Alemanha, conheceria a ira de manifestantes que defendiam os direitoshumanos.

15. Outro exemplo de confissões forçadas é o relato de Bete Mendes. O segundo co-mandante do DOI-Codi de São Paulo, major do Exército Carlos Alberto BrilhanteUstra, oficial de Estado-Maior que permaneceu nesse posto de 29/9/1970 a 23/1/1974, tornou-se, em meados dos anos 1980, adido militar do Brasil em Montevi-déu. A atriz Bete Mendes, ex-militante da VAR-Palmares, também foi obrigada aassinar um depoimento em que renegava a eficácia das organizações de luta arma-da. Ao ser eleita deputada federal, Bete Mendes, em visita oficial ao Uruguai, reco-nheceu Ustra, naquele momento já coronel, como torturador. Acusado desse crime,Ustra perdeu seu cargo e escreveu um livro autobiográfico: USTRA, Carlos AlbertoBrilhante. Rompendo o silêncio. 2ª ed. Brasília: Editerra, 1987.

16. Organização política católica formada em 1963 a partir dos quadros da Juventu-de Universitária Católica (JUC). Até 1964, produziu um jornal intitulado AçãoPopular, Brasil Urgente. Entre 1965 e 1967, aproximou-se do marxismo e, em1968, assumiu uma variante maoista. No início dos anos 1970, pregou a unifica-ção das correntes marxista-leninistas, fundindo-se com o PCdoB em 1971. Dezdos seus militantes foram mortos pela repressão.

17. Esse depoimento e também o de Francisco Luiz Salles Gonçalves, da VPR, quelembram o fato, estão em ALMADA, Izaías; FREIRE, Alípio; PONCE, J.A. de G.(orgs.). Tiradentes: um presídio da ditadura (memória de presos políticos). SãoPaulo: Scipione, 1997, pp. 83-95.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29301

302

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

18. ROLLEMBERG, Denise. “A Vanguarda Popular Revolucionária: ‘os marginais’na revolução brasileira”, in: MENEZES, Lená Medeiros; ROLLEMBERG, Deni-se; MUNTEAL Filho, Oswaldo (orgs.). Olhares sobre o político. Rio de Janeiro:Eduerj, 2002, pp. 77-88.

19. Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR): sob a liderança de LeonelBrizola, não chegou a ser, propriamente, uma organização. Foi antes um nomeque serviu para designar o projeto que nasceu durante o seu exílio no Uruguai.Reunia sargentos e marinheiros expulsos das corporações e perseguidos pelosmilitares no pós-64 e outros líderes políticos. Com a formação do MNR, Brizolateria aderido à teoria foquista, engajando-se no projeto de implantação de focosguerrilheiros no Brasil, com o apoio de Cuba.

20. Cf. entrevista com Antônio Roberto Espinosa concedida a Marcelo Ridenti.Osasco, 20/1/1986.

21. Cf. GORENDER, Jacob, op. cit., p. 136.22. Apud ROLLEMBERG, Denise, op. cit. Jamil Rodrigues, Caminhos da revolução.

1969/70 (Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, Coleção Daniel AarãoReis, pasta 25, documento 3). O capítulo 7, “A vanguarda armada e as massas naprimeira fase da revolução”, está publicado no livro AARÃO REIS, Daniel; SÁ,J.F. de. Imagens da revolução. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1985.

23. Veja, 15/7/1970, pp. 20-1. Essas duas páginas sobre os “desertores”, publicadaspela revista, são a parte final de uma reportagem intitulada “Autocrítica do ter-ror” que tem como imagem central uma foto do presidente Médici em seu gabi-nete (pp. 16-9). Nessa, o presidente “adverte para o terror” e menciona a suasatisfação com as declarações de Massafumi, que citou obras do governo (“visitado presidente ao Nordeste, construção da Transamazônica e a extensão em 200milhas do mar territorial”) como estímulo para deixar a luta armada.

24. O Globo, 15/4/1971, p. 19.25. Entrevista à autora, concedida em 3/11/1999. No fim dela, em um bar na Vila

Mariana, em São Paulo, Rômulo Fontes me ofereceu os números 3 e 4 do jornalAção Nacional, publicados em 1999. Esse periódico, cujo editor é o próprioFontes, difunde as ideias de Plínio Salgado.

26. O Globo, 15/4/1971, p. 19.27. Jornal do Brasil, 23/7/1970.28. O jornal carioca O Globo, de 15/4/1971, um ano depois dos primeiros arrependi-

mentos, publicou uma reportagem intitulada “Um alerta para jovens” (p. 19). Nela,narrou a existência de 12 depoentes: os cinco do grupo de Marcos Vinício,Massafumi, Lungaretti, Irgeu João Menegon (militante da VPR que declarou ter serecusado a fazer parte da lista de presos políticos trocados por um dos três diplo-matas sequestrados), Hans Rudolf Jakob Manz, Maria Júlia de Oliveira (militante

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29302

303

D E S B U N D A R N A T V

da AP), Milton Campos de Souza e Newton Morais. O texto sublinha a preocupa-ção do governo de “evitar que outros jovens incorram no mesmo engano”.

29. Jornal do Brasil, 3/9/1977.30. Lungaretti repetiu essas acusações e outras em uma entrevista a Murilo Mello

Filho, publicada na revista Manchete, sob o título “Lungaretti: ‘terroristas doBrasil, ouvi-me’”, em 1º/8/1970.

31. Entrevista à autora, concedida em 20/10/1999.32. PATARRA, Judith. Iara: reportagem biográfica. 4ª ed. Rio de Janeiro: Rosa dos

Tempos, 1993, p. 388.33. Idem.34. Idem, p. 389.35. ABREU, João Batista de. As manobras da informação: análise da cobertura

jornalística da luta armada no Brasil (1965-1979). Rio de Janeiro: Mauad; EdUFF,2000.

36. Jornal Voz da Unidade, de 8 a 14/5/1981, apud PANDOLFI, Dulce. Camaradas ecompanheiros. Rio de Janeiro: Relume-Dumará; Fundação Roberto Marinho,1995, p. 206.

37. ABRAMO, Cláudio. A regra do jogo: o jornalismo e a ética do marceneiro. SãoPaulo: Companhia das Letras, 1988, pp. 109-11.

38. LUNGARETTI, Celso. Náufrago da utopia. São Paulo: Geração Editorial, 2005.39. Idem.40. Luís Alberto de Abreu se apresentou como “autor de mais de 40 peças teatrais

encenadas — Bella Ciao, Xica da Silva, A Guerra Santa, O livro de Jó e Bar, docebar, entre outras — e um dos iniciadores do Projeto Comédia Popular Brasileira.Escreve também roteiros para cinema e TV. Coordenou o núcleo de Dramaturgiana Escola Livre de Teatro de Santo André (SP) e no Grupo Galpão (MG). Rece-beu os prêmios Molière, Mambembe, APCA, Apetesp, Panamco e Shell”.

41. BRICKMAN, Carlinhos. Há 43 anos o país entrava nas trevas. Disponível emhttp://www.brickmann.com.br/artigos.php

Bibliografia

AARÃO REIS, Daniel. “Um passado imprevisível: a construção da memória da esquer-da nos anos 60”, in: —— et al. Versões e ficções: o sequestro da história. São Paulo:Fundação Perseu Abramo, 1997.

——. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.——; SÁ, J.F. de. Imagens da revolução. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1985.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29303

304

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

ABRAMO, Cláudio. A regra do jogo: o jornalismo e a ética do marceneiro. São Paulo:Companhia das Letras, 1988.

ABREU, João Batista de. As manobras da informação: análise da cobertura jornalísticada luta armada no Brasil (1965-1979). Rio de Janeiro: Mauad; EdUFF, 2000.

ALMADA, Izaías; FREIRE, Alípio; PONCE, J. A. de G. (orgs.). Tiradentes: um presídioda ditadura (memória de presos políticos). São Paulo: Scipione, 1997.

ÂNGELO, Ivan. O jornal da era de Aquário. Disponível em http://www.jt.com.br/frame/indexqu.htm

BRICKMAN, Carlinhos. Há 43 anos o país entrava nas trevas. Disponível em http://www.brickmann.com.br/artigos.php

GORENDER, Jacob. Combate nas trevas, a esquerda brasileira: das ilusões perdidas àluta armada. 5ª ed. São Paulo: Ática, 1998.

KUSHNIR, Beatriz. Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de1988. São Paulo: Boitempo, 2004.

—— (org.). Perfis cruzados: trajetórias e militância política no Brasil. Rio de Janeiro:Imago, 2001.

LUNGARETTI, Celso. Náufrago da utopia. São Paulo: Geração Editorial, 2005.PANDOLFI, Dulce. Camaradas e companheiros. Rio de Janeiro: Relume-Dumará; Fun-

dação Roberto Marinho, 1995.PATARRA, Judith. Iara: reportagem biográfica. 4ª ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tem-

pos, 1993.ROLLEMBERG, Denise. “A Vanguarda Popular Revolucionária: ‘os marginais’ na re-

volução brasileira”, in: MENEZES, Lená Medeiros; ROLLEMBERG, Denise;MUNTEAL Filho, Oswaldo (orgs.). Olhares sobre o político. Rio de Janeiro: Eduerj,2002.

SOUZA, Percival de. Eu, cabo Anselmo. Rio de Janeiro: Globo, 1999.——. Autópsia do medo: vida e morte do delegado Sérgio Paranhos Fleury. Rio de Ja-

neiro: Globo, 2000.USTRA, Carlos Alberto Brilhante. Rompendo o silêncio. 2ª ed. Brasília: Editerra, 1987.

Arquivo

Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, Coleção Daniel Aarão Reis Filho.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29304

PARTE 2 América Latina

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29305

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29306

CAPÍTULO 1 O peronismo e a classe trabalhadora,1943-1955*

Daniel James**Tradução de Silvia de Souza

*Este artigo é o primeiro capítulo (“Los Antecedentes: 1. El Peronismo y la clase trabajadora,1943-1955”) do livro Resistencia e integración. El Peronismo y la clase trabajadora argenti-na, 1946-1976. Buenos Aires: Siglo XXI, 2005. Agradecemos ao autor e ao editor a autori-zação da publicação no Brasil.**Daniel James (Argentina). Professor do Departamento de História da Universidade de In-diana, Estados Unidos. Autor de Doña María’s Story: Life History, Memory, and PoliticalIdentity. Durmam/Londres: Duke University Press, 2000, e Resistance and Integration:Peronism and the Argentine Working Class, 1946-1976. Cambridge: Cambridge UniversityPress, 1988.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29307

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29308

— Falem tranquilos. Qual é o problema? Fale você, Tedesco. Ocoronel vai entender melhor.— Bem...— O senhor é Tedesco? Filho de italianos, não?— Sim, coronel.— Foi o que pensei. O que está acontecendo, Tedesco?— Muito simples, coronel: muito trabalho e pouca grana.— Isso está claro. Onde?— Trabalhamos de noite em... Nos pagam 3,30 pesos cada noite.— Que barbaridade! Logo daremos um jeito nisso. Chamarei osdonos da fábrica para que façam um acordo com vocês. Quantoquerem ganhar?— Trabalhamos a 3,33 pesos, mas o justo seria 3,50 por noite.— Tudo vai ser resolvido. É inadmissível que ainda se explorem assimos trabalhadores.— Obrigado, coronel.— Tedesco, o senhor fica. Os demais podem ir e devem ter confiança.

MARIANO TEDESCO, FUNDADOR DA ASSOCIAÇÃO OPERÁRIA TÊXTIL

Bem, olhem, digo de uma vez. Eu não inventei Perón. Digo de umavez, pois assim termino com essa ação de boa vontade que estourealizando, no afã de libertar vocês de tanta mentira. A verdade:não inventei Perón nem Eva Perón, a milagrosa. Eles nasceram comouma reação a seus maus governos. Eu não inventei Perón, nem EvitaPerón, nem sua doutrina. Não trouxe, em sua defesa, um povo aquem você e os seus tenham enterrado em um longo caminho demiséria. Nasceram de vocês, por vocês e para vocês.

ENRIQUE SANTOS DISCÉPOLO

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29309

310

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

O TRABALHO ORGANIZADO E O ESTADO PERONISTA

Após sucessivos governos conservadores, a economia argentina reagiu àrecessão mundial da década de 1930 com a produção local de um cres-cente número de bens manufaturados que antes eram importados.1 En-quanto, em geral, manteve adequados níveis de renda para o setor rural egarantiu os privilegiados laços econômicos da elite tradicional com a Grã-Bretanha, o Estado argentino estimulou essa substituição de importaçõesmediante uma prudente política de proteção tarifária, controle de câmbioe provisão de crédito industrial.2 Entre 1930-1935 e 1945-1949, a pro-dução industrial mais do que duplicou: as importações, que em 1925-1930correspondiam a quase uma quarta parte do Produto Interno Bruto, fo-ram reduzidas a 6% no quinquênio 1940-1944. Depois de importar cer-ca de 35% de suas máquinas e seus equipamentos industriais no primeiroperíodo, a Argentina passou a importar apenas 9,9% no segundo.3 Alémdisso, durante a Segunda Guerra Mundial, houve um considerável aumentodo crescimento industrial, liderado pelas exportações, à medida que bensmanufaturados argentinos ingressaram em mercados estrangeiros.4 Emmeados da década de 1940, a Argentina tinha uma economia cada vezmais industrializada; enquanto o tradicional setor agrário continuava cons-tituindo a sua principal fonte de divisas, o centro dinâmico de acumula-ção de capital agora se encontrava na manufatura.

Na estrutura social, houve mudanças que refletiam essa evolução eco-nômica. O número de estabelecimentos industriais aumentou de 38.456em 1935 para 86.440 em 1946, enquanto o número de trabalhadores des-se setor passava de 435.816 para 1.056.673 em 1946.5 Foi modificada tam-bém a composição interna da força de trabalho. Seus novos integrantesvinham agora de províncias do interior, e não mais da imigração estrangei-ra, extremamente reduzida desde 1930. Deslocavam-se atraídos pelos cen-tros urbanos, em expansão, do litoral e, em especial, pela Grande BuenosAires, área periférica da capital federal. Até 1947, aproximadamente1.368.000 migrantes do interior chegaram a Buenos Aires, atraídos pelorápido crescimento industrial.6 Em Avellaneda, centro suburbano essencial-mente industrial, separado da capital pelo Riachuelo, de 518.312 habitan-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29310

311

O P E R O N I S M O E A C L A S S E T R A B A L H A D O R A , 1 9 4 3 - 1 9 5 5

tes existentes em 1947, mais de 173 mil tinham nascido fora da capital ouda província de Buenos Aires.7

Embora a economia industrial tenha se expandido rapidamente, a clas-se trabalhadora não foi beneficiada por esse processo. Os salários reais emgeral declinaram, ao serem corrigidos abaixo da inflação. Diante da repres-são orquestrada por empregadores e Estado, os operários pouco podiamfazer para melhorar sua remuneração e as condições de trabalho. A legisla-ção trabalhista e social era escassa e a obediência a suas determinações sóocorria esporadicamente. Fora dos locais de trabalho, a situação não eramuito melhor, pois as famílias operárias deviam enfrentar, sem a ajuda doEstado, os problemas sociais criados pela rápida urbanização. Uma pesqui-sa feita em 1937 revelou, por exemplo, que 60% das famílias da classeoperária da capital viviam em apenas um cômodo.8

O movimento trabalhista existente na época do golpe militar de 1943estava dividido e era frágil. Havia na Argentina quatro centrais sindicais:Federação Operária Regional Argentina (Fora), anarquista, hoje com ape-nas um punhado de militantes; a União Sindical Argentina (USA), dissiden-te de Fora, também pouco influente; e a Confederação Geral do Trabalho(CGT), dividida entre CGT nº 1 e CGT nº 2.9 Por causa dessa fragmenta-ção, a influência sobre a classe trabalhadora era limitada. Em 1943, talvezcerca de 20% da força trabalhadora urbana se encontrassem organizados,com uma maioria, nesse percentual, do setor terciário. A grande maioriado proletariado industrial encontrava-se à margem de qualquer organizaçãosindical efetiva. O grupo mais dinâmico que tentou se organizar em setoresnão tradicionais foram os comunistas, obtendo certo êxito entre os operá-rios da construção, da alimentação e das madeireiras. Mas áreas vitais daexpansão industrial nas décadas de 1930 e 1940 e seguinte — os têxteis eos metalúrgicos — ainda eram virtualmente, em 1943, desconhecidas pelaorganização sindical. Dos 447.212 filiados a sindicatos em 1941, o setorde transportes e o de serviços representavam mais de 50%, enquanto a in-dústria tinha apenas 144.922 filiados.10

Em seu posto de secretário do Trabalho e, depois, vice-presidente dogoverno militar instaurado em 1943, Juan Domingo Perón dedicou-se aatender a algumas das reivindicações fundamentais da emergente força tra-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29311

312

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

balhadora industrial.11 Ao mesmo tempo, empenhou-se em minar a influên-cia das forças de esquerda que competiam com ele na esfera sindical. Suapolítica social e trabalhista conquistou simpatias tanto entre os trabalhado-res sindicalizados quanto entre os que estavam fora de qualquer organização.Além disso, setores decisivos da liderança sindical chegaram a ver o seupróprio futuro na organização ligado à sobrevivência política de Perón, emmomentos em que as forças políticas tradicionais, tanto de esquerda quan-to de direita, atacavam a sua figura e as suas políticas, ao longo de 1945. Ocrescente apoio operário a Perón, produzido por essas circunstâncias, ma-nifestou-se pela primeira vez em 17 de outubro de 1945, data em queuma manifestação popular conseguiu tirá-lo da prisão e colocou-o no cami-nho para a vitória, ao vencer as eleições presidenciais de fevereiro de 1946.12

Embora no período 1943-1946 tenham melhorado muito as condiçõesespecíficas de trabalho e a legislação social, a década de governo peronista,1946-1955, produziu efeitos ainda muito mais profundos sobre a posiçãoda classe trabalhadora na sociedade. Antes de mais nada, houve nesse perí-odo um considerável aumento da capacidade de organização e do peso socialda classe trabalhadora. A combinação da simpatia do Estado pelo fortaleci-mento da organização sindical com o anseio da classe trabalhadora em tra-duzir sua vitória política em vantagens concretas determinou uma rápidaampliação do sindicalismo. Em 1948, o índice de sindicalização havia subi-do para 30,5% da população assalariada e, em 1954, era de 42,5%. Namaioria das indústrias manufatureiras, o índice oscilava entre 50% e 70%.13

Entre 1946 e 1951, o total de filiados a sindicatos aumentou de 520.000para 2.334.000. Atividades manufatureiras, como a têxtil e a metalúrgica,nas quais antes de 1946 o sindicalismo era fraco ou inexistente, no fim dadécada tinham sindicatos cujo número de filiados chegava a centenas demilhares. Além disso, pela primeira vez, um grande número de funcionáriospúblicos se sindicalizou. Essa ampliação do sindicalismo em grande escalafoi acompanhada da implantação de um sistema global de negociações co-letivas. Os acordos assinados em toda a indústria argentina no período 1946-1948 regulavam os níveis salariais, as especificações trabalhistas e incluíam,ainda, um conjunto de dispositivos sociais que incluía a licença médica, alicença-maternidade e as férias pagas.14

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29312

313

O P E R O N I S M O E A C L A S S E T R A B A L H A D O R A , 1 9 4 3 - 1 9 5 5

A estrutura de organização imposta pela expansão sindical foi impor-tante, no sentido de que moldou o futuro desenvolvimento do movimentosindicalista. A sindicalização devia se basear em uma unidade de atividadeeconômica, e não na profissão ou em determinada empresa. Em cada setoreconômico foi concedido a um sindicato o reconhecimento oficial que lhepermitia negociar com os empregadores nessa atividade. Os empregadoreseram obrigados por lei a negociar com o sindicato oficial e os salários e ascondições estabelecidos nessa negociação deviam ser estendidos a todos ostrabalhadores dessa indústria, independentemente de serem sindicalizadosou não. Foi criada também uma estrutura sindical específica centralizada,que abrangia as representações locais e chegava, por intermédio de federa-ções nacionais, até uma única central, a Confederação Geral do Trabalho(CGT). Finalmente, ficou estabelecido o papel do Estado na supervisão earticulação dessa estrutura. O Ministério do Trabalho era a autoridade estatalque outorgava a um sindicato o reconhecimento que lhe permitia negociarcom os empregadores. O Decreto 23.852, de outubro de 1945, conhecidocomo Lei de Associações Profissionais, que criou esse sistema, estipulavatambém o direito do Estado de supervisionar amplas áreas da atividade sin-dical. Dessa forma, a estrutura legal assegurava aos sindicatos várias vanta-gens: direitos de negociação, proteção dos funcionários sindicais contra aadoção de medidas punitivas que os afetassem, estrutura sindical centrali-zada e unificada, dedução automática dos salários das cotas sindicais e apli-cação dessas em grandes planos de bem-estar social. Mas, ao mesmo tempo,outorgou ao Estado as funções de fiador e supervisor final desse processo edos benefícios dele derivados.

Enquanto a expansão em grande escala da organização sindical assegu-rava o reconhecimento da classe trabalhadora como força social na esferada produção, assistiu-se também, durante o período peronista, à integraçãodessa força social a uma coalizão política emergente, supervisionada peloEstado. Do ponto de vista dos trabalhadores, a índole exata de sua incor-poração política ao regime não ficou imediatamente evidente. Os contor-nos gerais dessa integração política só se manifestaram durante a primeirapresidência de Perón e foram confirmados e desenvolvidos durante a se-gunda. No primeiro período, de 1946 a 1951, houve a gradual subordina-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29313

314

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

ção do movimento sindical ao Estado e a eliminação dos líderes da velha

guarda, de ação decisiva na mobilização dos sindicatos em apoio a Perón,

em 1945, que haviam constituído o Partido Trabalhista para que atuasse

como braço político dos trabalhadores. Suas ideias de autonomia política e

organizacional, assim como o caráter condicional de seu apoio a Perón, não

combinavam com as ambições políticas desse. É preciso reconhecer que

tampouco sua insistência no princípio da autonomia sindical correspondia

aos conceitos que prevaleciam entre os filiados a sindicatos, cujo número

aumentava rapidamente.15 Como agravante, o peso da intervenção estatal

e o apoio político popular recebido por Perón dos trabalhadores sindicali-

zados limitou inevitavelmente as opções abertas aos líderes da velha guar-

da sindical. Cada vez mais, os sindicatos se incorporaram a um monolítico

movimento peronista e foram chamados a atuar como agentes do Estado

perante a classe trabalhadora, organizando o apoio político a Perón e ser-

vindo como condutores das políticas do governo para os trabalhadores.

À medida que, na segunda presidência, se delineou mais claramente o

Estado justicialista, com suas pretensões corporativistas de organizar e di-

rigir amplas esferas da vida social, política e econômica, tornou-se evi-

dente o papel oficialmente destinado ao movimento sindical: incorporar

a classe trabalhadora a esse Estado. Os atrativos que essa relação oferecia

eram grandes, tanto para os dirigentes quanto para as bases. Foi criada

uma grande rede de bem-estar social, operada pelo Ministério do Traba-

lho e Previdência, a Fundação Eva Perón e os próprios sindicatos. Os diri-

gentes sindicais ocupavam agora cadeiras no Congresso, eram habitualmente

consultados pelo governo sobre uma variedade de problemas nacionais e

ingressavam no corpo diplomático na categoria de adidos trabalhistas.16

As vantagens econômicas concretas para a classe trabalhadora ficavam

claras e eram imediatas. Com a expansão da indústria argentina, impulsio-

nada pelos incentivos estatais e por uma situação econômica internacio-

nal favorável, os trabalhadores sentiram-se beneficiados. Entre 1946 e

1949, os salários reais dos trabalhadores industriais aumentaram 53%.

Embora esses salários reais tenham declinado durante a crise econômica

dos últimos anos do regime, a proporção da renda nacional correspon-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29314

315

O P E R O N I S M O E A C L A S S E T R A B A L H A D O R A , 1 9 4 3 - 1 9 5 5

dente aos trabalhadores não se alterou. Entre 1946 e 1949, a parte dossalários na renda nacional subiu de 40,1% para 49%.17

Embora tenham surgido manifestações de oposição da classe trabalha-dora a certos aspectos da política econômica peronista, a integração políti-ca do sindicalismo ao Estado peronista foi muito pouco questionada, emgeral. Certamente, um legado crucial que os sindicalistas receberam da eraperonista consistiu na integração da classe trabalhadora a uma comunida-de política nacional e um correspondente reconhecimento de seu statuscívico e político dentro dessa comunidade. Fora isso, a experiência dessadécada legou à presença da classe trabalhadora dentro da comunidade umnotável grau de coesão política. A era peronista apagou, em grande parte,as lealdades políticas anteriormente existentes nas fileiras operárias e im-plantou outras. Os socialistas, comunistas e radicais, que antes de Peróntinham competido para conseguir o apoio da classe trabalhadora, encon-travam-se, em 1955, bastante marginalizados, no que diz respeito à suainfluência. Para os socialistas e radicais, o peronismo continuaria sendo umultraje moral e cívico, uma prova de atraso e da carência de virtudes cívicasdos trabalhadores argentinos. Essa atitude determinou sua oposição ao re-gime militar de 1943-1946, seu apoio à União Democrática, coalizão antipe-ronista e sua contínua hostilidade a Perón durante a década seguinte.

O Partido Comunista tentou assumir uma posição mais flexível de que ade seus ex-aliados. Pouco depois da vitória eleitoral peronista, o PC deixou decaracterizar o peronismo como uma forma de fascismo, dissolveu seu apa-rato sindical e ordenou aos militantes que se incorporassem à CGT e seussindicatos, a fim de trabalhar com as desgarradas massas peronistas econquistá-las.18 Mas tampouco o comunismo foi capaz de recuperar-se doerro político que havia sido seu apoio à União Democrática, nas eleições de1946; nem foi capaz de oferecer uma alternativa crível às notórias vanta-gens que derivavam da integração ao Estado peronista. Embora no planolocal alguns militantes comunistas tenham sido capazes de conservar suacredibilidade e de comandar algumas greves importantes, o PC nunca pôdedesafiar a hegemonia política do peronismo no ambiente sindical. A im-portância desse legado de coesão política pode ser mais bem avaliada selevarmos em conta a relativa homogeneidade étnica da classe trabalhadora

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29315

316

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

argentina e sua concentração em uns poucos centros urbanos, principal-mente a Grande Buenos Aires. Somados, esses fatores contribuíram paraoutorgar à classe trabalhadora argentina e a seu movimento sindical um pesosem paralelo na América Latina dentro da comunidade nacional.

OS TRABALHADORES E A ATRAÇÃO POLÍTICA DO PERONISMO

A relação entre os trabalhadores e suas organizações e o movimento e oEstado peronistas resulta, portanto, indubitavelmente vital para a compreen-são do período 1943-1955. A intimidade desse relacionamento foi consi-derada em geral, seguramente, definidora do caráter excepcional doperonismo no espectro das experiências populistas latino-americanas. Comodevemos interpretar a base dessa relação e, além disso, o significado daexperiência para os trabalhadores peronistas? As respostas a essas pergun-tas recusam cada vez mais as explicações anteriores, que entendiam o apoiodos operários a Perón em função de uma divisão entre a velha e a nova clas-se trabalhadora. Sociólogos como Gino Germani, esquerdistas que compe-tiam pelas simpatias da classe trabalhadora e inclusive alguns peronistasexplicaram a adesão popular ao peronismo como fruto da inexperiência deoperários migrantes, que, incapazes de afirmar, em seu novo âmbito urba-no, uma identidade social e política própria, e insensíveis às instituições e àideologia da classe trabalhadora tradicional, se encontravam “disponíveis”para ser utilizados por setores dissidentes da elite. Foram esses proletáriosimaturos que, de acordo com essa explicação, se reuniram sob a bandeiraperonista no período 1943-1946.19

Nos estudos revisionistas, o apoio da classe trabalhadora a Perón foi vistocomo o lógico compromisso dos operários com um projeto reformista di-rigido pelo Estado, que lhes prometia vantagens materiais concretas.20 Es-ses estudos não apresentam a imagem de uma massa passiva manipulada,mas a de atores, dotados de consciência de classe, que procuravam encon-trar um caminho realista para a satisfação de suas necessidades materiais.Em consequência, nesse enfoque, a adesão política era vista, ao menos im-plicitamente, como passível de redução a um racionalismo social e econô-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29316

317

O P E R O N I S M O E A C L A S S E T R A B A L H A D O R A , 1 9 4 3 - 1 9 5 5

mico básico. Esse instrumentalismo tinha, ao que parece, um respaldo no

senso comum. Quase todos os que perguntavam a um peronista sobre as

causas de seu apoio a Perón recebiam como resposta o significativo gesto

de apalpar o bolso, o que simbolizava um pragmatismo de classe básico,

atento às necessidades de dinheiro e à sua satisfação. Não há dúvida de que

o peronismo, do ponto de vista dos trabalhadores, foi num sentido funda-

mental, uma resposta às dificuldades econômicas e à exploração de classe.

Mas era, contudo, algo mais. Era também um movimento representati-

vo de uma mudança decisiva na conduta e nas lealdades políticas da classe

trabalhadora, que adquiriu uma visão diferente da realidade. Para compre-

ender o significado dessa nova filiação política, precisamos examinar cui-

dadosamente seus feitos específicos e o discurso no qual se expressou, em

vez de considerar o peronismo uma inevitável expressão de insatisfação eco-

nômica e social. Gareth Stedman Jones, ao comentar a recusa dos historia-

dores de fenômenos sociais de levar suficientemente em conta o político,

observou há pouco tempo que: “Um movimento político não é simples-

mente uma manifestação de miséria e dor; sua existência se caracteriza pela

convicção, comum a muitos, que articula uma solução política para a misé-

ria e um diagnóstico político de suas causas.”21 Portanto, embora o pero-

nismo tenha representado uma solução concreta para as necessidades

materiais vividas, ainda nos falta compreender por que a solução adotou a

forma específica de peronismo, e não uma outra, diferente. Outros movi-

mentos políticos se preocuparam com essas mesmas necessidades e oferece-

ram soluções. Havia até, do ponto de vista programático, muitas semelhanças

formais entre o peronismo e outras forças políticas. O que precisamos en-

tender é o êxito do peronismo, as qualidades que o distinguiram, o motivo

pelo qual seu apelo político inspirou mais confiança nos trabalhadores; em

suma, que aspectos alcançou que outros não atingiram. Para isso, necessi-

tamos considerar seriamente o atrativo político e ideológico de Perón, as-

sim como examinar a índole da retórica peronista e compará-la com a

daqueles que disputaram com ela a adesão da classe trabalhadora.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29317

318

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

OS TRABALHADORES COMO CIDADÃOS NA RETÓRICA POLÍTICA PERONISTA

O atrativo fundamental do peronismo reside em sua capacidade de redefinira noção de cidadania dentro de um contexto mais amplo, essencialmentesocial. A questão da cidadania em si e a do acesso à plenitude dos direitospolíticos foram aspectos poderosos do discurso peronista, constituindo partede uma linguagem de protesto, de grande ressonância popular, diante daexclusão política. Alguns aspectos do poder desses componentes da lingua-gem política peronista se originaram do fato de já constituírem parte dalinguagem tradicional da política democrática, que demandava igualdadede acesso aos direitos políticos. Essa tradição fora encarnada principalmentepela União Cívica Radical e por seu líder, Hipólito Yrigoyen. Antes de 1930,o Partido Radical mobilizou as classes médias urbana e rural, assim comouma parcela que não era pequena das classes humildes urbanas, com umaretórica em que prevaleciam os símbolos da luta contra a oligarquia e uma lin-guagem tradicional acerca da cidadania e dos direitos e obrigações de cará-ter político.22 O peronismo era bastante eclético para postular seu direito aelementos desse legado yrigoyenista e apoderar-se deles.23

Em parte, a força desse interesse pelos direitos políticos dos cidadãos seoriginava da folha de escândalos da “década infame”, que sucedeu a derru-bada de Yrigoyen pelos militares, em 1930.24 Na “década infame”, que arigor se estendeu de 1930 até o golpe militar de 1943, se assistiu a umanova imposição e à manutenção do poder político pela elite conservadorapor meio de um sistema de fraude e corrupção institucionalizadas. Era aépoca do “já votou, volte logo para sua casa”, imposto pelos pistoleirospagos pelos comitês conservadores.25 Em Avellaneda, Alberto Barceló con-trolava a incipiente zona industrial com a ajuda da polícia, de sua máquinapolítica, de gangues e dos votos dos mortos, da mesma forma que fazia, emgrande medida, desde a Primeira Guerra Mundial.26 No resto da provínciade Buenos Aires, o governador Manuel Fresco coordenava um aparato se-melhante de favoritismos e corrupção. A única ilha de relativa reação polí-tica era a capital federal, onde a fraude era rara. A corrupção política deuum tom de degeneração social à elite tradicional, protagonista de uma sériede escândalos, aparentemente interminável, em que intervinham figuras pú-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29318

319

O P E R O N I S M O E A C L A S S E T R A B A L H A D O R A , 1 9 4 3 - 1 9 5 5

blicas e grupos econômicos estrangeiros — episódios que os nascentes gru-pos nacionalistas condenaram em várias oportunidades.27

Da mesma forma, essa corrupção institucional alimentou um vasto ci-nismo público. Nas palavras de um autor, “era uma corrupção que faziaescola”.28 O mal-estar político e moral produzido por essa situação provo-cou uma notória crise de confiança nas instituições políticas estabelecidas ede crença em sua legitimidade. O peronismo pôde, em consequência, reu-nir capital político, denunciando a hipocrisia de um sistema democráticoformal que tinha escasso conteúdo democrático real. O peso das acusaçõesperonistas contra esse sistema aumentou até pelo fato de que os partidosque formalmente se opunham à fraude na década de 1930 passaram a servistos como comprometidos com o regime conservador. Esse foi particu-larmente o caso do Partido Radical, que, ao cabo de um período de absten-ção, entre 1931 e 1936, se reincorporou à contenda política, sob a direçãode Marcelo T. de Alvear, com o objetivo de atuar como oposição leal a umsistema político do qual o radicalismo sabia que jamais poderia desalojá-lo.A crise de legitimidade estendeu-se então muito além da elite conservadoraem si e foi um tema constantemente reiterado pela propaganda peronista em1945 e 1946. Na campanha que antecedeu as eleições de 1946, o órgãooficial do Partido Trabalhista expressou esse conceito da seguinte forma:

Os velhos e tradicionais partidos há muitos anos deixaram de ser intérpre-

tes do povo para sê-lo em círculos e grupos de evidente matiz impopular,

surdos e cegos às inquietudes dessa massa que chamam em seu auxílio, quan-

do se trata de eleições.29

A atração exercida pelo peronismo sobre os trabalhadores, contudo, nãopode ser explicada simplesmente por causa de sua capacidade de articularexigências de participação política e pleno reconhecimento dos direitos dacidadania. Formalmente, os direitos associados a essas reclamações — su-frágio universal, direito de associação, igualdade perante a lei — existiamhá muito tempo na Argentina. A Lei Saenz Peña, que estabeleceu o sufrágiouniversal masculino em 1912, continuou em vigor durante a “década infa-me”. De forma semelhante, havia no país uma sólida tradição de institui-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29319

320

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

ções sociais e políticas representativas. A formulação pelo peronismo de

demandas democráticas era, portanto, a exigência de um restabelecimento

de direitos anteriormente reconhecidos. E, mais ainda, Perón não tinha o

monopólio desse discurso contra a exclusão política. Essa foi a mesma lin-

guagem que seus adversários da União Democrática utilizaram contra ele,

acusando-o de representar um sistema fechado e antidemocrático. E foi

também o discurso que continuaria constituindo a base da oposição políti-

ca a Perón, durante todo o seu regime e após a sua queda. Finalmente, no

sentido de que se referia a uma questão geral dos cidadãos, não era um

chamamento dirigido especificamente aos trabalhadores, mas, por defini-

ção, a todos os eleitores cujos direitos haviam sido violados.

O êxito de Perón com os trabalhadores pode se explicar, sobretudo, por

sua capacidade de refundir o problema geral dos cidadãos em um novo

molde, de caráter social.30 O discurso peronista negou a validade da sepa-

ração, formulada pelo liberalismo, entre o Estado e a política, de um lado,

e a sociedade civil, de outro. A cidadania não deveria mais ser definida sim-

plesmente em função de direitos individuais e relações dentro da sociedade

política, mas redefinida em função da esfera econômica e social da socieda-

de civil. Em sua retórica, lutar por direitos na esfera da política implicava

inevitavelmente uma mudança social. E mais ainda: ao destacar constante-

mente a dimensão social da cidadania, Perón desafiava de forma explícita a

validade de um conceito de democracia que a limitava aos direitos políti-

cos formais e, por sua vez, ampliava esse conceito até fazê-lo incluir a par-

ticipação na vida social e econômica da nação. Em parte, isso se refletiu na

exigência de uma democracia que incluísse direitos e reformas sociais, as-

sim como em uma atitude de ceticismo em relação às demandas políticas

formuladas na retórica do liberalismo formal. Isso ficou muito claro na cam-

panha eleitoral de 1946. O chamamento político da União Democrática

expressou-se quase totalmente nas palavras de ordem democráticas libe-

rais. Nos discursos e manifestos políticos, não houve virtualmente menção

alguma ao tema social. Ao contrário, vê-se um discurso político totalmente

estruturado em termos de “liberdade”, “democracia”, “Constituição”, “elei-

ções livres”, “liberdade de expressão” e outras noções.31

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29320

321

O P E R O N I S M O E A C L A S S E T R A B A L H A D O R A , 1 9 4 3 - 1 9 5 5

Perón, ao contrário, recordava constantemente ao seu público que portrás do discurso do liberalismo havia uma divisão social básica e que umaverdadeira democracia só poderia ser construída se enfrentasse na justiçaessa questão social. Em um discurso de julho de 1945, em que contestou ascrescentes exigências de eleições formuladas pela oposição, disse: “Se al-guns pedem liberdade, nós também a pedimos [...], mas não a liberdade dafraude [...]. Nem tampouco a liberdade de vender o país, nem a de explo-rar o povo trabalhador.”32

Luis Gay, secretário-geral do Partido Trabalhista, fez eco desse conceito nodiscurso que pronunciou ao proclamar formalmente a fórmula presidencialperonista, em fevereiro de 1946:

A democracia política é uma mentira em si. É realidade unicamente quando

está efetivamente acompanhada por uma estruturação econômica da socie-

dade que a torne possível no terreno das realizações práticas. Mentem aqueles

que não tornem seu esse conceito e só falem da Constituição e da liberdade que

desvirtuaram e negaram até 3 de junho de 1943.33

Não há dúvida alguma de que esse tipo de retórica atingiu um pontosensível aos trabalhadores que acabavam de sair da “década infame”. Noprimeiro ato público organizado pela CGT para apoiar Perón contra o cres-cente ataque oposicionista, em julho de 1945, Manuel Pichel, delegadodaquele organismo sindical, afirmou: “Não basta falar de democracia. Umademocracia defendida pelos capitais reacionários, não a queremos. Uma de-mocracia que seja um retorno à oligarquia, não a apoiaremos.”34

Mariano Tedesco, dirigente têxtil, recordou alguns anos depois que: “Em1945, as pessoas já estavam cansadas. Durante anos e anos haviam engana-do sua fome com canções sobre a liberdade.”35

De forma análoga, o ceticismo com que eram recebidos os símbolos for-mais do liberalismo torna-se patente em uma historieta que Julio Mafudlembra, de 1945. Segundo Mafud, perguntaram a um grupo de trabalhado-res se temiam pela existência da liberdade de expressão, caso Perón triun-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29321

322

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

fasse nas eleições. Responderam: “Liberdade de expressão é coisa de vocês.Nós nunca a tivemos.”36

Mais fundamentalmente ainda, a refundação feita por Perón do tema dacidadania envolvia uma visão diferente e nova do papel da classe trabalha-dora na sociedade. Tradicionalmente, o sistema político liberal da Argentina,como em outros lugares, havia reconhecido a existência política dos traba-lhadores como atomizados cidadãos individuais, dotados formalmente deiguais direitos no campo político, mas ao mesmo tempo havia rejeitado, ouobstaculizado, sua constituição como classe social nesse terreno. Certamentefiel à separação liberal entre Estado e sociedade civil, aquele sistema tinhanegado a legitimidade de transferir para o terreno político a identidade socialconstruída em torno do conflito no nível social. Entendia que toda essaunidade, coesão social e todo esse sentimento de interesses distintos, queforam alcançados na sociedade civil, deviam se dissolver e se atomizar nomercado político, no qual os cidadãos podiam, por intermédio dos parti-dos, influir sobre o Estado e, assim, reconciliar e equilibrar os interessesque existem na recíproca competência na sociedade civil.

O radicalismo, apesar de toda a sua retórica sobre “o povo” e a “oligar-quia”, nunca questionou os pressupostos do sistema político liberal. E maisainda: sua máquina política, baseada no favoritismo pessoal e estruturadaem torno de chefes locais, estava na posição ideal para atuar como “ven-dedora” das exigências dos cidadãos individuais no mercado político.37 Operonismo, ao contrário, baseava o seu apelo político aos trabalhadores emum reconhecimento da classe trabalhadora como força social propriamen-te dita, que pedia reconhecimento e representação como tal, na vida polí-tica da nação. Essa representação já não ia se materializar simplesmentemediante o exercício dos direitos formais da cidadania e a mediação pri-mária dos partidos políticos. Em vez disso, a classe trabalhadora, como forçasocial autônoma, devia ter acesso direto e até privilegiado ao Estado, porintermédio de seus sindicatos.

O caráter excepcional dessa visão da integração política e social da classetrabalhadora na Argentina da década de 1940 torna-se mais patente se exa-minarmos a diferença na maneira com que Perón se dirigiu aos trabalhado-

res nos discursos pronunciados durante a campanha eleitoral de 1945-1946

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29322

323

O P E R O N I S M O E A C L A S S E T R A B A L H A D O R A , 1 9 4 3 - 1 9 5 5

e depois.38 Ao contrário do caudilho ou cacique político tradicional, Perón

não dirigiu seu discurso aos operários como indivíduos isolados, cuja única

esperança de conseguir coerência social e significado político na vida era

estreitar laços com um líder capaz de interceder por eles diante de um Es-

tado todo-poderoso. Perón falou como quem se dirige a uma força social

cuja organização e vigor próprios eram vitais para que ele pudesse afirmar

com êxito, no plano do Estado, os direitos deles. Ele era só seu porta-voz,

e só podia ter sucesso na medida em que eles se unissem e se organizassem.

Continuamente, Perón destacou a fragilidade dos indivíduos e a arbitrarie-

dade do destino humano e, portanto, a necessidade de os trabalhadores

dependerem somente de sua própria vontade para materializar seus direi-

tos. Com essa retórica, por conseguinte, o Estado não se limitava a ser um

fornecedor todo-poderoso de recursos, que os distribuía — por intermé-

dio de seu instrumento escolhido, o líder — a indivíduos passivos. O Estado,

sobretudo, era um espaço em que as classes — não os indivíduos isolada-

mente — podiam atuar política e socialmente uns com os outros para esta-

belecer direitos e exigências de ordem corporativa. Por esse discurso, o

árbitro final desse processo podia ser o Estado, e em definitivo a figura de

Perón identificada com o Estado, mas esse não constituía esses grupos como

forças sociais, pois eles tinham certa independência, assim como uma pre-

sença irredutível, social e, portanto, política.39

Sem dúvida alguma, a retórica peronista continha fortes elementos de

caudilhismo personalista, quase místico, associados às figuras de Perón e

Evita. Isso resultou, em parte, das diferentes necessidades políticas de Perón

e do peronismo, em distintos momentos. A partir de uma posição segura

no poder estatal, a necessidade de acentuar a autonomia organizativa e a

coesão social da classe trabalhadora era notoriamente menor do que no

período de luta política anterior à conquista desse poder. Mesmo durante

o período anterior a 1946, os elementos personalistas da atração política

peronista encontravam-se presentes, como prova o grito de “Perón! Perón!”,

insistentemente repetido na mobilização de 17 de outubro de 1945. Até no

momento de maior adulação a Evita e do crescente culto, patrocinado pelo

governo, ao poder pessoal de Perón, durante a segunda presidência, esse

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29323

324

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

elemento personalista não se fez presente à custa de uma contínua afirma-ção da força social e organizacional da classe trabalhadora.

Essa afirmação dos trabalhadores como presença social e sua incorpora-ção direta no cuidado da coisa pública supunham obviamente um novoconceito das legítimas esferas de interesse e atividade da classe trabalhado-ra e suas instituições. Isso se tornou patente sobretudo na afirmação, porparte de Perón, de que os trabalhadores tinham direito a se interessar pelodesenvolvimento econômico da nação e a contribuir para ele. As questõesda industrialização e do nacionalismo econômico, fatores-chave da atraçãoexercida pelo peronismo, deviam se situar no marco dessa nova visão dopapel dos operários na sociedade. A retórica peronista era bastante abertapara absorver as correntes de pensamento nacionalista existentes. Algumasdelas remontavam, ainda, ao legado yrigoyenista, em particular o conflitocom as empresas estrangeiras de petróleo, durante os últimos anos deYrigoyen no poder. Outros elementos foram tirados de grupos de intelec-tuais nacionalistas que surgiram na década de 1930, cujas ideias tiveraminfluência sobre os militares. Por exemplo, termos como cipayo e “vende-pátria” foram incorporados à linguagem política peronista para designar asforças que desejavam manter a Argentina dentro da órbita econômica dosEstados Unidos e da Grã-Bretanha como provedora de produtos agro-pecuários.40 Essa linguagem se tornou simbólica de um esforço pela indus-trialização, processo que devia ser guiado e supervisionado no sentido dameta “Argentina potência”, em vez da “Argentina granja” defendida, segundoos peronistas, por seus adversários.

O êxito da identificação de Perón com a criação de uma Argentina in-dustrial, assim como a atração política exercida por esse símbolo, não re-sidia primordialmente em termos programáticos. Considerando o evidenteinteresse de uma força de trabalho industrial emergente pela questão daindustrialização, assim como a vigorosa autoidentificação do peronismocom esse símbolo e seu posterior monopólio do tema desenvolvimentoeconômico, seria tentador explicar esse êxito em função de um interesse,também monopólico, de Perón nesse programa. No que se refere a pla-nos políticos e compromissos formais, contudo, a identificação do pero-nismo com a industrialização e de seus adversários com uma Argentina

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29324

325

O P E R O N I S M O E A C L A S S E T R A B A L H A D O R A , 1 9 4 3 - 1 9 5 5

agropecuária estava longe de ser precisa. Com diferentes ênfases e uma

certa irregularidade no compromisso assumido, só muito poucos dos prin-

cipais partidos argentinos negavam, na década de 1940, a necessidade de

algum tipo de industrialização patrocinada pelo Estado. Com o Plano

Pinedo, de 1940, o setor mais articulado da elite conservadora afirmara

seu reconhecimento da irreversibilidade da industrialização. O Partido

Radical também adotou uma atitude cada vez mais favorável à industria-

lização e sua ala yrigoyenista aprovou, em abril de 1945, a Declaração de

Avellaneda, um projeto econômico tão industrialista, em qualquer de suas

expressões, quanto o de Perón. Também a esquerda, encarnada pelos co-

munistas e socialistas, havia recorrido persistentemente a uma retórica anti-

imperialista durante a década de 1930.41

A verdadeira questão em jogo na década de 1940 não era, consequen-

temente, tanto a industrialização versus desenvolvimento agrário, como in-

tervenção estatal versus laissez-faire. Tratava-se, sobretudo, do problema dos

diferentes significados potenciais da industrialização, quer dizer, os parâ-

metros sociais e políticos com os quais esse processo devia ocorrer. Perón

teve a habilidade de definir esses parâmetros de uma forma nova, que atraiu

a classe operária, assim como para abordar esse problema de um modo que,

particularmente crível para os trabalhadores, lhe permitiu apropriar-se do

tema e do símbolo do desenvolvimento industrial, convertendo-os em uma

arma política mediante a qual pôde se diferenciar de seus adversários.

O sucesso dessa apropriação deveu-se, em alguma medida, à forma como

a percebia. Certamente, o vínculo entre os rivais políticos de Perón em

1945-1946 e os bastiões da elite agropecuária tradicional, como a Socieda-

de Rural e o Jockey Club, enfraquecia a credibilidade de seu compromisso

com a industrialização. De forma análoga, sua estreita ligação com o em-

baixador norte-americano não fortalecia a crença em sua devoção à sobe-

rania nacional e à independência econômica. No que diz respeito à imagem,

até o fim da campanha eleitoral de 1946 já estava estabelecida a identifica-

ção do peronismo com o progresso industrial e social e com a modernidade.

Mas não se tratou exclusivamente de um problema de imagem e relações

públicas. Fundamentalmente, a classe operária via no apoio de Perón ao

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29325

326

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

desenvolvimento industrial um papel vital para si própria, como agente naesfera pública, consideravelmente ampliada, que o peronismo lhe ofereciacomo campo de atividade. Na realidade, Perón estabelecia como premissado conceito de desenvolvimento industrial a plena participação da classetrabalhadora na vida pública e a justiça social. Em seu pensamento, a indus-trialização não era concebível, como havia sido antes de 1943, se exploras-se de forma extrema a classe trabalhadora. Em um discurso pronunciadodurante a campanha eleitoral, Perón afirmou:

Em definitivo: a Argentina não pode permanecer no ritmo sonolento a que

foi condenada pelos que passaram a viver de suas costelas. A Argentina vai

recuperar o pulso firme, de uma juventude sã e de um sangue limpo. A Ar-

gentina precisa desse sangue juvenil da classe operária.42

Na retórica peronista, a justiça social e a soberania nacional eram assuntosbastante inter-relacionados, e não palavras de ordem meramente enunciadas.

Uma visão digna de crédito: caráter concreto e crível do discurso políticode Perón

A questão da credibilidade é decisiva para compreender tanto a bem-suce-dida identificação de Perón com símbolos importantes, como por exemploo da industrialização, quanto o impacto político de seu discurso junto aostrabalhadores. No ensaio a que já nos referimos, Gareth Stedman Jonesassinala que, para ter êxito, “um vocabulário político específico deve pro-por uma alternativa geral capaz de inspirar uma esperança factível e ummeio de realizá-la que, sendo crível, permita aos possíveis recrutas pensarnesses termos”.43 O vocabulário do peronismo era ao mesmo tempo visio-nário e crível. A credibilidade se devia em parte à índole imediata e concre-ta dessa retórica. Isso envolvia a limitação das palavras de ordem políticasabstratas a seus aspectos materiais mais concretos. Como já vimos, essaretórica contrastou nitidamente, nos decisivos anos 1945-1946, com a lin-guagem de alta abstração empregada pelos adversários de Perón. Emboraele fosse capaz de discursar em termos elevados, sobretudo depois de che-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29326

327

O P E R O N I S M O E A C L A S S E T R A B A L H A D O R A , 1 9 4 3 - 1 9 5 5

gar à Presidência, e conforme a plateia a que se dirigia, seus discursos aos

operários no período inicial tiveram um tom único.

Encontram-se estruturados, por exemplo, em uma linguagem claramen-

te distinta da empregada pelo radicalismo clássico, que abusava das densas

generalidades sobre a renovação nacional e a virtude cívica. A terminolo-

gia radical sobre “a oligarquia” e “o povo” continuava presente, mas ago-

ra era normalmente definida com mais precisão. Perdurava o emprego de

categorias gerais que distinguiam o bem e o mal, ou seja, os que estavam

a favor de Perón e os que se opunham a ele, mas agora esses termos eram

frequentemente colocados em bases concretas, às vezes como ricos e po-

bres, seguidamente como capitalistas e trabalhadores. Embora se falasse

de uma comunidade indivisível — simbolizada pelo “povo” e pela “na-

ção” —, a classe trabalhadora desempenhava um papel implicitamente

superior nessa totalidade e, com frequência, era transformada em deposi-

tária dos valores nacionais. O “povo” muitas vezes passava a ser “o povo

trabalhador”, de modo que “o povo”, “a nação” e “os trabalhadores”

fossem intercambiáveis entre si.

Negação semelhante do abstrato pode ser encontrada no chamamento

peronista em favor do nacionalismo econômico e político. Do ponto de

vista da construção formal, pelo Estado, da ideologia peronista, categorias

como “a nação” e “a Argentina” recebiam um significado abstrato, místico.44

Nos discursos que Perón dirigiu especificamente à classe operária, contu-

do, particularmente no período inicial, mas também depois, observam-se

poucos dos elementos místicos e irracionais da ideologia nacionalista. Es-

ses discursos não demonstravam interesse especialmente pelas virtudes in-

trínsecas da “argentinidade”, nem pelos antecedentes históricos da cultura

“crioula”, que encontravam expressão em uma nostalgia evocadora de al-

guma essência nacional desaparecida muito tempo atrás. Essas preocupa-

ções estavam reservadas de fato, principalmente, a intelectuais de classe

média, pertencentes aos diversos grupos nacionalistas que procuravam, com

escasso êxito, servir-se do peronismo como veículo para realizar suas aspi-

rações. O nacionalismo da classe trabalhadora era invocado principalmen-

te em função de problemas econômicos concretos.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29327

328

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Assim, a credibilidade política que o peronismo oferecia aos trabalha-dores devia-se não só ao caráter concreto de sua retórica, mas também aoseu imediatismo. A visão peronista de uma sociedade baseada na justiça sociale na integração social e política dos trabalhadores nessa sociedade não es-tava sujeita ao prévio cumprimento de premissas — como estava, por exem-plo, o discurso político esquerdista —, tais como transformações estruturaisabstratas de longo prazo, nem na aquisição gradual, em alguma data futu-ra, de uma consciência apropriada por parte da classe operária. A doutrinaperonista tomava a consciência, os hábitos, os estilos de vida e os valoresda classe trabalhadora tais como os encontrava e afirmava sua suficiência esua validade. Glorificava o cotidiano e o comum como base suficiente paraa rápida obtenção de uma sociedade justa, desde que alcançadas certas metasfáceis e evidentes por si mesmas. Primordialmente, isso significava apoiarPerón como chefe de Estado e manter um forte movimento sindical. Nessesentido, a atração política do peronismo é essencialmente plebeia: ignora-va a necessidade de uma elite política particularmente iluminada e refletiae inculcava um profundo anti-intelectualismo.

A glorificação de estilos de vida e hábitos populares envolveu um estiloe um idioma políticos bem no tom da sensibilidade popular. Assumindosimbolicamente a atitude de “descamisado” em uma reunião política e como universo imaginário que utilizava em seus discursos, Perón tinha uma es-pecial capacidade, que faltava a seus rivais, de comunicação com as plateiasoperárias. O poeta Luis Franco observou em Perón “uma afinidade de espí-rito com as letras do tango”.45 Sua habilidade para usar essa afinidade como objetivo de estabelecer um nexo com seu público manifestou-se claramenteno discurso que fez para uma multidão reunida na Praça de Maio, em 17de outubro de 1945.

No fim do pronunciamento, Perón lembrou sua mãe, “minha velha”:“Por isso, há pouco disse-lhes que os abraçaria como abraçaria minha mãe.Porque vocês sofreram as mesmas dores e tiveram os mesmos pensamentosque minha pobre velha haverá sentido nesses dias.”46

A referência parece gratuita, frases vãs de alguém que não encontra nadamelhor para dizer. Ali identificamos, entretanto, o eco de um importante

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29328

329

O P E R O N I S M O E A C L A S S E T R A B A L H A D O R A , 1 9 4 3 - 1 9 5 5

tema sentimental das letras de tango: a pobre mãe sofredora, cuja angústia

simboliza a angústia de seus filhos, de todos os pobres. A identificação efe-

tuada por Perón, de sua própria mãe com os pobres, estabelecia uma sintonia

sentimental entre ele e sua plateia, nota patética que refletia a sensibilidade

da cultura popular argentina do momento.47 Igualmente significativo foi

que o discurso tenha terminado com outro toque “tangueiro”. Perón lem-

brou a seu público, no momento em que ia deixar a praça: “Recordem que

entre todos há numerosas mulheres operárias que devem ser protegidas aqui

e na vida pelos mesmos operários.”48

O tema da ameaça às operárias e da necessidade de proteger as suas mulhe-

res era constante no tango e em outras formas de cultura popular.

O fato de Perón usar essa linguagem em seu chamamento político fre-

quentemente nos parece hoje, e seguramente pareceu aos críticos de sua

época, um resquício da condescendência paternalista própria da tradicio-

nal figura do caudilho. A seguida utilização de versos de Martin Fierro e o

uso deliberado de expressões do lunfardo podem parecer estranhos à sen-

sibilidade atual. Devemos ser cuidadosos, contudo, ao apreciar o impacto

de sua capacidade de usar termos que refletiam a sensibilidade popular

daquele momento. Em relatos de observadores e jornalistas, nos decisivos

anos iniciais do peronismo, encontramos com frequência os adjetivos

chabacano* e burdo** para descrever o estilo de Perón e seus partidários,

qualificativos que denotam uma característica grosseira, própria de uma

pessoa rústica. Entretanto, não são epítetos que os peronistas teriam neces-

sariamente rejeitado.

Não há dúvida de que essa capacidade de reconhecer, refletir e promover

um estilo e um idioma políticos baseados no realismo popular contrastava

nitidamente com o apelo lançado por partidos políticos que tradicional-

mente representavam a classe operária. O tom adotado por esses, frente à

efervescência dos trabalhadores, em meados da década de 1940, era didá-

*Vulgar, grosseiro. (N. da T.)**Rústico, tosco. (N. da T.)

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29329

330

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

tico e parecia se dirigir a um público moral e intelectualmente inferior. Esse

foi particularmente o caso do Partido Socialista. Sua análise dos episódios

de 17 de outubro ilustra a sua atitude e o seu tom: “A parte do povo que

vive seu ressentimento, que diariamente transborda nas ruas, ameaça, atro-

pela, assalta, persegue, em sua fúria demoníaca, os próprios caudilhos per-

manentes e responsáveis por sua elevação e dignificação.”49

Por trás desse tom atemorizado, frustrado e moralizador, havia um discurso

dirigido a uma classe trabalhadora abstrata, quase mítica. O peronismo, ao

contrário, estava disposto, em particular em seu período inicial, a reconhe-

cer e até a glorificar os trabalhadores.

Ao comparar o enfoque político de Perón com o de seus adversários,

não é possível deixar de recordar o comentário de Ernst Bloch sobre a apro-

priação, pelos nazistas, das simpatias que socialistas e comunistas desfruta-

vam entre os operários: “Os nazistas falavam falsamente, mas para as pessoas;

os comunistas diziam a verdade, mas falavam de coisas.”50

A capacidade de Perón de captar a sensibilidade da classe trabalhadora

e as hipóteses com que se conduzia refletiu-se também em outros terre-

nos. A retórica peronista, por exemplo, incluía um reconhecimento táci-

to da imutabilidade da desigualdade social, uma resignada aceitação, ditada

pelo senso comum, da realidade das desigualdades sociais e econômicas,

um reconhecimento do que Pierre Bourdieu denominou “um sentido dos

limites”.51 Os remédios propostos para mitigar essas desigualdades eram

plausíveis e imediatos. Em um discurso feito em Rosário, em agosto de

1944, Perón pôs em destaque o caráter razoável, evidente, de seu apelo,

quer dizer, a realidade mundana que havia por trás da retórica abstrata da

igualdade social:

Queremos que desapareça de nosso país a exploração do homem pelo ho-

mem e que, assim que esse problema termine, as classes sociais sejam de certa

forma igualadas, para que não haja, como disse, neste país, homens demasia-

damente pobres nem demasiadamente ricos.52

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29330

331

O P E R O N I S M O E A C L A S S E T R A B A L H A D O R A , 1 9 4 3 - 1 9 5 5

Esse realismo supunha uma visão política limitada, mas não descartavaressonâncias utópicas; simplesmente fazia com que as ressonâncias — umanseio de igualdade social, de que se pusesse fim à exploração — se tornas-sem mais críveis para uma classe trabalhadora imbuída, por sua experiên-cia da década infame, de certo cinismo diante das promessas políticas e daspalavras de ordem abstratas. Mais ainda, a credibilidade da visão políticade Perón e a possibilidade de colocar em prática a esperança que ofereciaeram afirmadas diariamente por ações que executava, no plano do Estado.A confirmação das soluções que oferecia não dependia de algum futuroapocalipse, mas podia ser vista claramente, a partir da atividade e da ex-periência políticas de cada dia. Em 1945, já havia começado a circular entreos trabalhadores o slogan que simbolizaria essa credibilidade: “Perón cumpre!”

O HERÉTICO IMPACTO SOCIAL DO PERONISMO

O peronismo significou uma presença social e política muito maior da clas-se trabalhadora na sociedade argentina. O impacto disso pode ser medido,em termos institucionais, a partir de fatores tais como a relação íntima en-tre governo e sindicalismo durante a era Perón, o grande crescimento dosindicalismo e o número de parlamentares de origem sindical. Esses sãofatores de fácil comprovação empírica e, em mais de um caso, estatistica-mente mensuráveis. Existiram, contudo, outros que se precisa levar em contaao avaliar o significado social do peronismo para a classe trabalhadora —bem menos tangíveis e muito mais difíceis de quantificar. Referimo-nos aorgulho, respeito próprio e dignidade.

Significado da “década infame”: respostas da classe operária

Para avaliar a importância desses fatores, devemos voltar à “década infa-me”, pois foi sem dúvida alguma o ponto de referência em relação ao qualos trabalhadores mediram a sua experiência do peronismo. A cultura po-pular da era peronista era dominada por uma dicotomia temporal, que con-trastava o presente peronista com o passado recente. Como observa Ernesto

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29331

332

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Goldar, em sua análise da ficção literária popular peronista, essa dicotomia

foi acompanhada de um correspondente contraste de valores associado ao

“hoje”, de 1940-1950, e ao “ontem”, de 1930-1940.53 Alguns desses con-

trastes se referiam às mudanças sociais concretas relacionadas à ampliação

do bem-estar social, ao aumento dos salários e à eficaz organização sindi-

cal. Outros, entretanto, se relacionavam a um campo social mais amplo e

mais pessoal, além das melhorias obtidas na linha de produção, no valor

dos salários ou no sindicato. Isso sugere claramente que a década infame

foi vivida por muitos trabalhadores como um período de frustração e hu-

milhação profundas, sentidas coletiva e individualmente.

Embora não tenhamos um informe detalhado e amplo dos elementos

que configuravam o universo social da classe trabalhadora do período pré-

peronista, há provas consistentes em historietas, depoimentos pessoais,

manifestações da cultura popular e trechos de biografias de operários que

podem nos fornecer fragmentos ilustrativos da imagem total. A dureza das

condições de trabalho e a disciplina observada por muitos naquele período

tiveram impacto, sem dúvida alguma, sobre a classe trabalhadora em geral.

Nas memórias em que relata suas experiências como organizador dos ope-

rários dos frigoríficos de Berisso, por exemplo, nas décadas de 1930 e na

seguinte, Cipriano Reyes destaca:

A empresa era dona das vidas e das finanças de seus operários. Uns de seus

cuenteniks, conto isso como exemplo, andavam pelas casas vendendo rou-

pas à prestação. Quando um operário não pagava a prestação da roupa com-

prada na porta de casa, o mascate ia ao chefe de pessoal e o empregado era

suspenso. A vigilância era incrível, tudo era controlado.54

Provavelmente, um controle com essas características era mais duro em

comunidades de trabalhadores dominadas por uma só empresa grande, como

um frigorífico. As condições sociais, contudo, que essa situação refletia, de

domínio por parte do empregador, não se limitavam ao caso extremo dacidade-empresa. Angel Perelman recorda ter deixado a escola primária aos

10 anos para ingressar em uma metalúrgica da capital federal, onde traba-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29332

333

O P E R O N I S M O E A C L A S S E T R A B A L H A D O R A , 1 9 4 3 - 1 9 5 5

lhava: “jornadas sem horário [...] a hora da saída era determinada pelopatrão. Toda a felicidade para uma família operária consistia... em conser-var seu trabalho.”

Perelman recorda os anos 1930: “eram os tempos dos desesperados, doscriativos e dos pequenos roubos”.55

Outro autor, ao comentar as condições gerais da situação do trabalhona mesma época, diz:

O medo do desemprego nessa época levava à humilhação. O se calar e não

falar, o não agir em defesa de direitos elementares, tudo leva ao declínio

moral, ao ceticismo. Dentro de uma fábrica, de um estabelecimento, o tra-

balhador estava só, desintegrado de toda consciência social.56

Embora generalizações tão taxativas sobre o declínio moral e o cinismo queteriam caracterizado a atitude da classe operária na década de 1930 devam serconsideradas com cautela, existem provas que apontam nessa direção.

Alguns dos indícios mais reveladores a esse respeito podem ser obtidos nasmanifestações da cultura popular, em particular o tango. O universo socialretratado nos tangos da década de 1930 era sombrio. Os temas tradicionaisseguiram presentes — a traição amorosa, a nostalgia de um passado maissimples, centrada na recriação idílica do bairro ou das redondezas, a afir-mação de virtudes como a coragem —, mas a eles se somou, em algunstangos, um contexto social amplo. Em particular, nos de Enrique SantosDiscépolo, a impossibilidade de uma relação significativa entre um homeme uma mulher chega a simbolizar a impossibilidade de qualquer relação socialque não se baseie na cobiça, no egoísmo e em uma total falta de escrúpulosmorais, em um mundo baseado na injustiça e no engano. Em muitos tangosde Discépolo, a figura crucial é o “gilito embanderado”, o iludido que vivehonestamente ou, mais ainda, é bastante ingênuo para imaginar que pode-rá mudar um mundo injusto.57 A intenção do tango é, então, remover suasilusões e fazê-lo enfrentar a realidade, em que “nem Deus resgata o perdi-do”.58 O tom é de amargura e resignação. A ideia popular da vida social,

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29333

334

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

como refletem essas letras, aconselha a adotar os valores dominantes, quer

dizer, o egoísmo e a imoralidade. Levada até suas últimas consequências,

essa ideia envolve a compreensão — ou a aprovação — da atração que exerce

sobre os pobres a lógica da “vida má”, a prostituição, a gigolotagem, o de-

lito.59 A alternativa, no caso dos que não acatavam o ethos social dominan-

te, era uma aceitação resignada ou um “obstinado silêncio”.60

Evidentemente, é preciso cuidar de extrair, do tango e de outras formas

de manifestação cultural do momento, conclusões sobre as atitudes da classe

trabalhadora. O tango, por exemplo, era cada vez mais uma forma de arte

comercializada, com uma tênue conexão com o “bairro” dos trabalhadores.

O que chegava ao público em geral era determinado, em grande medi-

da, pelas gravadoras e o sucesso ou o fracasso comercial dependia da

receptividade do disco no mercado de consumo e nos teatros e salões de

baile da zona central de Buenos Aires. Parece provável também que o ele-

mento boêmio, que sempre fora parte importante do tango, recebesse maior

destaque à medida que as letras se originavam cada vez mais da baixa classe

média urbana. Certamente, o desesperado lamento de Discépolo em seu

grande tango “Cambalache”, escrito em 1935 — “tudo é igual, nada é

melhor, tanto faz que seja um burro ou um grande professor” —, soa como

o desencanto de um educado membro da classe média cujo mérito não é

reconhecido pela sociedade. As letras da “década infame” também carecem

de algum otimismo ou compromisso social existente em alguns tangos do

período anterior. De uma maneira ou de outra, a imensa popularidade des-

ses tangos entre a classe trabalhadora de Buenos Aires parece demonstrar

que, quaisquer que fossem as manipulações da indústria cultural, e quaisquer

que sejam as precauções com que lemos a consciência da classe trabalhado-

ra diretamente nas letras de tango, essas certamente representavam algu-

mas atitudes e experiências que, recriadas nessas letras, eram reconhecidas

como legítimas pelos trabalhadores.

Ainda que reconheçamos que esses fatos são significativos, devemos tam-

bém admitir que as únicas respostas com que os trabalhadores contaram

não foram o cinismo, a apatia e a resignação. Luis Danussi, que, depois de

1955, lideraria o sindicato dos gráficos, ao chegar a Buenos Aires, em 1938,

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29334

335

O P E R O N I S M O E A C L A S S E T R A B A L H A D O R A , 1 9 4 3 - 1 9 5 5

viu uma cidade “tumultuada e com uma febril atividade sindical, que ofere-cia um amplo campo de ação: congressos nacionais, zonais, de comarcas,assembleias de funcionários e de sindicatos”.61

Encontrava-se ainda presente a característica militante que a cultura da classetrabalhadora havia experimentado numa época anterior. Essa culturacentrava-se em torno da existência de

[...] sindicatos, associações culturais, bibliotecas, distribuição de panfletos,

jornais, diários, revistas, folhetos e livros; manifestações, comitês pró-pre-

sos, grupos teatrais, cooperativas, comunidades ou ensaios de vida solidária.

Também se realizavam campanhas contra o alcoolismo e o tabaco, se orga-

nizavam piqueniques, leituras comentadas e se procurava dar amplitude ao

espírito de apoio mútuo.62

Floresciam ainda, em 1938, elementos com esse tipo de cultura militan-te tradicional, compartilhada igualmente por socialistas, comunistas, anar-quistas e sindicalistas. Eles encontraram expressão em muitos comitêsformados na década de 1930 para ajudar a Espanha republicana e tinhamuma presença viva em sindicatos como os dos gráficos, ao qual se incorpo-rou Luis Danussi.

O próprio Danussi possuía alguma formação anarquista ao chegar aBuenos Aires, mas os trabalhadores alheios a essa cultura podiam ser atraí-dos por ela e utilizá-la como canal para expressar seu ressentimento pelaexploração e como parte de sua busca de soluções políticas. Ángel Perelmandestaca, por exemplo, que:

A exploração capitalista e a luta de classes foram coisas que aprendi primei-

ro nessa fábrica, no ano de 1930, do que lendo nos livros [...] Aos 14 anos

e já com quatro como operário, não pude deixar de me interessar pela po-

lítica. Como não se interessar! Havia muitas manifestações realizadas por

desempregados. Alguns partidos de esquerda protestavam pela miséria rei-

nante. As assembleias sindicais [...] reuniam os trabalhadores mais militan-

tes e decididos.63

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29335

336

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Outros dados sugerem ainda um aumento da atividade sindical e daparticipação em reuniões sindicais, no fim de 1930 e no início da décadaseguinte, à medida que o desemprego diminuía, a indústria se expandia e omovimento operário se recuperava, de alguma forma, do declínio experi-mentado nos anos que sucederam o golpe militar de 1930. A filiação aossindicatos respondia a um ambiente nacional e internacional melhor e cres-ceu cerca de 10% entre 1941 e 1945.64

[...] abrir caminho para as organizações sindicais era uma tarefa que enfren-

tava inúmeras dificuldades, em muitos aspectos devido à repressão patronal

e policial, mas a que apresentava maiores obstáculos, quase impossíveis de

superar, era muitas vezes a indiferença e a descrença dos próprios trabalha-

dores, que reagiam a se organizar em defesa dos seus próprios interesses.65

Um pouco do sentimento de impotência e resignação que, como sugeri-mos, caracterizou a resposta de muitos trabalhadores à experiência do pe-ríodo anterior a 1943 pode ser encontrado no depoimento pessoal dos nãomilitantes. A seguir, reproduzimos, com a intenção de transmitir, na medidado possível, a essência desse sentimento, dois fragmentos de testemunhos.O primeiro é de um trabalhador em portos situados ao longo do Rio Paraná,especialmente em Rosário:

Pergunta: Como foram os anos 30 para o senhor?

Don Ramiro: Bem, a vida era muito dura naquela época [...] os trabalhado-

res não valiam nada e não éramos respeitados pelos que controlam tudo [...]

Era preciso saber se manter no seu lugar. Eu votava pelos radicais nos anos

20, mas depois de 1930 tudo piorou. Os caudilhos conservadores controla-

vam tudo. Nos dias de eleição, eu ia ao município para votar, mas não con-

seguia entrar [...] Ocorre que eu era conhecido como alguém em quem não

se podia confiar, de modo que não me permitiam votar. De acordo com a

lei, não poderiam fazer isso, mas eles não a respeitavam. Naqueles anos, que

importância tinha a lei? Havia um grupo deles, de pistoleiros, pagos pelo

comitê conservador [...] todo mundo conhecia [...] e eles cortavam o cami-

nho de quem tentasse entrar. Podia se ver as pistolas por baixo do paletó.

Pergunta: Quer dizer que o obrigavam a desistir de votar com ameaças?

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29336

337

O P E R O N I S M O E A C L A S S E T R A B A L H A D O R A , 1 9 4 3 - 1 9 5 5

Resposta: Não. Nunca o fariam abertamente [...] pelo menos comigo; não

havia por que fazê-lo [...] sabíamos que teríamos que pagar de alguma for-

ma se nos opuséssemos a eles. Era uma espécie de jogo para eles.

Pergunta: Mas e o que o senhor fazia?

Resposta: Eu, bem, que podia fazer? Nada. Voltar para casa. Talvez queixar-

me para os amigos desses filhos da puta. Se alguém armasse um escândalo,

faria você pagar de alguma forma e não serviria para nada. Nós não tínha-

mos nenhuma importância para eles. Mas, depois, com Perón tudo mudou.

Votei nele.

Pergunta: Mudou como?

Resposta: Bem, com Perón éramos todos machos.66

O segundo fragmento é de um trabalhador jovem, de Buenos Aires, queingressou na força de trabalho no fim da década de 1930:

Lautaro: Uma coisa que lembro dos anos 30 foi a maneira como nos trata-

vam. Sentíamos que não tínhamos direito a nada. Tudo parecia ser um favor

que nos faziam, através da igreja ou alguma caridade, e se pedíamos um fa-

vor ao caudilho do comitê, ele ajudava a conseguir remédios ou vaga no

hospital. Outra coisa que recordo dos anos 30 é que sempre me sentia estra-

nho quando ia ao centro de Buenos Aires [...] como se não estivesse em meu

ambiente, o que era absurdo, mas se sentia que nos olhavam depreciativa-

mente, como se não estivéssemos bem-vestidos. A polícia também nos trata-

va como se fôssemos animais.

Pergunta: Os sindicatos e partidos políticos tiveram importância para o se-

nhor, naquela altura?

Resposta: Bem, normalmente eu votava pelos socialistas. Meu irmão se in-

teressava mais do que eu por eles, embora eu sempre tenha pensado que

eram honestos. Nunca achei que Perón servisse para alguma coisa. O mes-

mo com relação aos sindicatos. Não tínhamos um sindicato no local onde

eu trabalhava. Deve ter sido nos primeiros anos de 40, antes de Perón. Tí-

nhamos muito do que nos queixar, mas mesmo assim não creio que levásse-

mos a sério o sindicalismo. A vida era simplesmente assim, a gente tinha

que aguentar tudo, sua maldita arrogância, o modo como nos tratavam.

Alguns dos ativistas companheiros de meu irmão quiseram mudar isso, mas

eram exceções. Não havia muitos trabalhadores que quisessem ser heróis.67

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29337

338

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Experiência privada e discurso público

O mais profundo impacto social do peronismo deve ser considerado à luzdessa experiência da classe trabalhadora, no período anterior a 1943. Nacrise da ordem tradicional, iniciada com o golpe militar de 1943, o questio-namento foi muito além da autoridade política e institucional da elite con-servadora. Antes de 1945, a crise política havia provocado e, além disso,continha em seu próprio seio um questionamento de todo um conjunto depressupostos pertencentes às relações sociais, as deferências e os acordos,em grande medida tácitos, acerca dos quais havia “a ordem natural dascoisas” e o “sentido dos limites”, em relação ao que se podia e não se podiadiscutir e expressar legitimamente. Nesse sentido, o poder do peronismoradicou-se, definitivamente, em sua capacidade de dar expressão públicaao que até então havia sido internalizado, vivido como experiência priva-da. Como destaca Pierre Bourdieu:

As experiências privadas passam por uma mudança de estado quando se

reconhecem a si mesmas na objetividade pública de um discurso já constituí-

do, sinal objetivo de seu direito a que se fale delas e que se fale publicamen-

te. “As palavras”, diz Sartre, “fazem estragos quando encontram um nome

para o que até então vivia sem nome.”68

Não há dúvida alguma de que esse é o contexto em que os fragmentosque se apresentaram no período anterior adquirem seu significado. Em par-ticular, podemos apreciar a imagem de silêncio que passa de um para outro:“Você tem que ficar calado, não falar”; “um obstinado silêncio” ou a respos-ta de don Ramiro, quando lhe perguntaram o que fazia frente ao poder doscaciques políticos: “Nada. Voltar para casa. Talvez me queixar para os ami-gos.” A capacidade do discurso peronista de articular essas experiências nãoformuladas constituiu a base de seu poder, autenticamente herético. Na rea-lidade, existiam outros discursos heréticos — no sentido de que ofereciamalternativas diferentes da ortodoxia instituída — na forma da retórica socia-lista, ou comunista, ou radical. Como vimos, contudo, não foram capazes deconquistar uma autoridade indiscutível, com expressões válidas da experiên-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29338

339

O P E R O N I S M O E A C L A S S E T R A B A L H A D O R A , 1 9 4 3 - 1 9 5 5

cia da classe trabalhadora. Sobre essas outras forças políticas o peronismoteve a enorme vantagem de ser um “discurso já constituído”, articulado apartir de uma posição de poder estatal, o que aumentava consideravelmentea legitimidade que conferia às experiências que expressava.

O poder social herético que o peronismo representava se refletiu em seuemprego da linguagem. Termos que traduziam as noções de justiça social,equidade, decência — cuja expressão havia sido silenciada (ou ridiculariza-da, como no tango) — tinham que ocupar agora posições centrais na novalinguagem do poder. Mais importante do que isso, entretanto, foi a cir-cunstância de que termos que antes simbolizavam a humilhação da classeoperária e sua explícita falta de status em uma sociedade profundamenteconsciente desses valores adquiriram então conotações e importânciadiametralmente opostas. O exemplo mais famoso sem dúvida reside nasimplicações da palavra “descamisado”. Esse vocábulo havia sido usado ini-cialmente pelos antiperonistas, antes do triunfo eleitoral de Perón, em 1946,como qualificador dos trabalhadores que o apoiavam.69 A explícita cono-tação de inferioridade social e, portanto, política e moral baseava-se emum critério de valor que levava em conta um dos sinais mais evidentes destatus da classe trabalhadora — as roupas — e que o apresentava comoevidente demonstração de inferioridade. O peronismo adotou o termo einverteu seu significado simbólico, transformando-o em afirmação do va-lor da classe trabalhadora. Essa inversão foi ampliada mediante a adesãodo termo “descamisados”, na retórica oficial, à figura de Eva Perón, suaprincipal protetora.70

Mais significativo ainda talvez seja o fato de se encontrar em termos deuso corrente, antes de 1943, para mencionar de forma ainda mais deprecia-tiva a classe trabalhadora, transformados e invertidos então de modo se-melhante. No geral, “negro” era usado para designar moradores do interiordo país e, frequentemente, tinha evidentes conotações étnicas pejorativas.A elite radical usava “negros radicais” para depreciar aqueles que apoia-vam Yrigoyen.71 Com a afluência em massa de migrantes do interior paratrabalhar na indústria de Buenos Aires, em 1930-40, o termo passou a sersinônimo de trabalhador manual e “negrada” tornou-se um equivalente ge-nérico de proletariado. As conotações são inconfundíveis: uma “negra” sig-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29339

340

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

nifica, na linguagem coloquial dos portenhos, uma mulher de condiçãohumilde; e “negrar” significava procurar essas mulheres para finalidadessexuais. Como observa José Gobello, em seu Dicionário de lunfardo, todasas variações de negro, exceto uma, estão carregadas de desprezo e falta derespeito por algo inferior.72 O uso de “negrada” como sinônimo de prole-tariado, nos anos 1930-40, possuía, pois, um forte simbolismo social, deonde se originou o seu posterior emprego pelas forças antiperonistas. Emmeados de 1940-50, os adversários de Perón empregavam com frequênciaexpressões debochadas e depreciativas como “a negrada de Perón” e “oscabeças negras”. Sua incorporação à linguagem do peronismo outorgou-lhes um novo status. O fato de que nesse discurso público “a negrada” te-nha encontrado sua expressão e afirmação significou que toda uma gamade experiências geralmente associadas ao termo — e que, por ter sido de-signadas assim, foram consideradas ilegítimas, indignas de preocupação e,em consequência, condenadas a ser sofridas em silêncio, internalizadas ouexpressas obliquamente em certas manifestações angustiadas da cultura po-pular — podia agora ser dita em voz alta e entrar no campo do debate pú-blico, da preocupação social e, portanto, da ação política.

Algo desse significado herético tornou-se patente na ampla mobilizaçãoda classe trabalhadora que se verificou de 17 de outubro de 1945 até a vi-tória eleitoral peronista, em fevereiro de 1946. Essa mobilização demons-trou a capacidade dos trabalhadores de atuar em defesa do que consideravamos seus interesses. Mas, além disso, representou, de maneira mais difusa,uma rejeição das formas existentes de hierarquia social e dos símbolos deautoridade. Isso foi particularmente perceptível durante a manifestaçãode 17 de outubro. Embora a atenção tenha se concentrado no objetivo es-sencial do ato — a figura de Perón e sua libertação —, a mobilização em sie as formas que assumiu sugerem por si só um significado social mais am-plo. Os observadores mais sagazes desse episódio concordaram no tom pre-dominante, de irreverência e ironia bem-humorada que caracterizou osmanifestantes. Félix Luna resumiu esse clima dizendo que parecia “uma festagrande, de murga*, de candomblé”.73 A imprensa comunista falou deprecia-

*Estilo musical. (N. da T.)

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29340

341

O P E R O N I S M O E A C L A S S E T R A B A L H A D O R A , 1 9 4 3 - 1 9 5 5

tivamente dos grupos com “aspecto de murga” que participaram do acon-tecimento.74 O uso do termo murga é interessante, pois popularmente de-signa os grupos que, no carnaval, se disfarçam e vão tocando pelas ruas,cantando e dançando. Como essa conduta era tolerável dentro dos estritoslimites do carnaval e se manifestava sobretudo em bairros operários, a rup-tura desses confins durante uma manifestação de indiscutível conteúdopolítico representou uma subversão simbólica dos códigos de conduta aceitose, desse modo, um ato de deferência com a classe trabalhadora.

Um aspecto importante dessa subversão está relacionado ao lugar ondese manifestava essa conduta, quer dizer, aos critérios tácitos de hierarquiaespacial. Ao se deslocarem as multidões irreverentes dos subúrbios operáriosem torno da capital federal, ou ao cruzar as pontes do Riachuelo, a partirde Avellaneda e outros locais situados ao sul, para se concentrar na áreacentral e na Praça de Maio, em frente à Casa do Governo, esses critériosforam violados. O comportamento dos trabalhadores ao cruzar os subúrbiosmais ricos agravou a blasfêmia implícita em tal violação. Suas canções eramcada vez mais insultantes para os endinheirados, a “gente decente” da socie-dade portenha, que ridicularizavam. Um dos muitos refrões dirigidos aosestupefatos espectadores que, em seus balcões no Bairro Norte, observa-vam o surgimento da “Argentina invisível”75 dizia assim: “Sai da esquina,oligarca louco, tua mãe não te quer e Perón tampouco.”76

O fato de a manifestação ter culminado na Praça de Maio foi, em si,significativo. Até 1945, essa praça, em frente à Casa de Governo, fora, emgrande medida, um território reservado à “gente decente” e os trabalhado-res que se aventuravam por lá, sem paletó nem gravata, foram mais de umavez afastados ou mesmo detidos. Uma fotografia amplamente divulgada do17 de outubro mostra os operários de mangas arregaçadas e sentados naborda das fontes da praça, com os pés dentro d’água. O simbolismo implí-cito dessa imagem é fácil de avaliar, se for levado em conta o incômodoque tomava conta do operário Lautaro Ferlini, quando visitava a área cen-tral, nos anos que precederam o peronismo.

Grande parte desse espírito de irreverência e blasfêmia e essa redistri-buição do espaço público, característicos do 17 de outubro e da campanhaeleitoral que se seguiu, pareceriam constituir um tipo de “antiteatro”, ba-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29341

342

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

seado na ridicularização e no insulto à autoridade simbólica e às pretensõesda elite argentina.77 O resultado foi, certamente, reduzir consideravelmentea segurança que a elite tinha em si mesma. Representou também uma recu-peração do orgulho e da autoestima da classe trabalhadora, sintetizados naexpressiva frase de don Ramiro: “Bem, com Perón, éramos todos machos.”Talvez tenha significado, sobretudo, uma afirmação da existência da classetrabalhadora e um ponto final, colocado em forma de desafio, ao silêncio eà ocultação da irritação experimentada. Essa combinação de significadossimbólicos é sagazmente captada nas lembranças de Félix Luna do 17 deoutubro, do dia em que ele e seus companheiros de estudos, todos radicaisantiperonistas, viram desfilar pela cidade as colunas de trabalhadores:

Bem, aí estavam. Como se tivessem desejado mostrar todo o seu poder paraque ninguém duvidasse de que realmente existiam. Aí estavam por toda acidade, pululando em grupos que pareciam o mesmo grupo, multiplicadopor centenas. Víamos passarem com um sentimento parecido com compai-xão. De onde saíam? Então existiam? Tantos? Tão diferentes de nós? Real-mente vinham a pé desses subúrbios cujos nomes compunham uma geografiavaga e desconhecida, uma terra incógnita, pela qual nunca tínhamos anda-do? [...] Havíamos percorrido todos esses dias os lugares onde eram debatidaspreocupações como as nossas. Havíamos nos movido em um mapa conheci-do, familiar: a faculdade, a Recoleta no enterro de Salmún Feijóo,* a PraçaSan Martin, a Casa Radical. Tudo, até então, era coerente e lógico: tudoapoiava nossas próprias crenças. Mas, nesse dia, quando começaram a seouvir as vozes e a ver as colunas de rostos anônimos da cor da terra, senti-mos vacilar algo que até então havia sido inabalável.78

Os limites da heresia: ambivalência do legado social peronista

Seria enganoso, contudo, deixar nesse nível a caracterização do impactosocial do peronismo. Uma vez no poder, o peronismo não contemplou aebulição e a espontaneidade mostradas pela classe trabalhadora, de outu-

*Estudante morto em confronto com a polícia durante a invasão da Universidade de BuenosAires, em 5 de outubro de 1945. (N. do T.)

Y920-01(Civilização).p65 4/5/2011, 16:20342

343

O P E R O N I S M O E A C L A S S E T R A B A L H A D O R A , 1 9 4 3 - 1 9 5 5

bro de 1945 até fevereiro de 1946, com um olhar tão favorável quanto nesseintervalo de luta. E, mais ainda, grande parte dos esforços do Estadoperonista, de 1946 até sua deposição em 1955, pode ser vista como umatentativa de institucionalizar e controlar o desafio herético que havia de-sencadeado no período inicial e de absorver essa atitude desafiante no seiode uma nova ortodoxia patrocinada pelo Estado. Considerado nessa pers-pectiva, o peronismo foi, em certo sentido, para os trabalhadores, umaexperiência social de desmobilização passiva. Em sua retórica oficial, pôscada vez mais ênfase na mobilização controlada e limitada dos trabalhado-res sob a tutela do Estado. O próprio Perón se referiu frequentemente a suapreocupação com os perigos das “massas desorganizadas”. Na situaçãoperonista ideal, os sindicatos deviam atuar em grande medida como instru-mentos do Estado para mobilizar e controlar os trabalhadores. Esse aspectocooptativo da experiência peronista se refletiu na palavra de ordem funda-mental dirigida pelo Estado aos trabalhadores na época de Perón, paraexortá-los a se conduzirem pacificamente: “De casa para o trabalho e dotrabalho para a casa.”

A ideologia peronista formal refletia essa preocupação. Defendia a ne-cessidade de harmonizar os interesses do capital e do trabalho, dentro daestrutura de um Estado benevolente, em nome da nação e de seu desen-volvimento econômico. Em seu discurso do Primeiro de Maio de 1944,Perón disse: “Buscamos suprimir a luta de classes, substituindo-a por umacordo justo entre operários e patrões, com o amparo da justiça que ema-na do Estado.”79

A ideologia peronista fazia a distinção entre o capital explorador e desu-mano e o capital progressista, socialmente responsável, comprometido como desenvolvimento da economia nacional. Desse, os trabalhadores nada ti-nham a temer: “O capital internacional é instrumento de exploração e ocapital patrimonial é de bem-estar. O primeiro representa, portanto, a mi-séria, enquanto o segundo, a prosperidade.”80

Como conclusão lógica dessa premissa, a ideologia peronista também des-taca que os interesses da nação e de seu desenvolvimento econômico deviam

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29343

344

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

se identificar com os dos trabalhadores e de seus sindicatos. Entendia-seque os trabalhadores compartilhavam com o capital nacional, não explora-dor, um interesse comum, na defesa do desenvolvimento nacional, contraas depredações do capital internacional e de seu aliado interno, a oligarquia,que queriam impedir o desenvolvimento independente da Argentina.

No contexto dessas considerações sobre o significado social do pero-nismo para os trabalhadores e o sucesso que obteve, ao canalizar e absorvero que temos chamado de potencial social herético dessa classe, é necessáriolevar em conta vários fatores. O Estado peronista teve, sem dúvida alguma,considerável êxito no controle da classe trabalhadora, tanto social comopoliticamente, e embora o conflito de classes não tenha sido abolido, assimcomo não houve o idílio de harmonia social retratado pela propagandaoficial, as relações entre capital e trabalho certamente melhoraram. A temidavingança dos sans-culotte portenhos, aparentemente anunciada pelos tu-multos sociais e políticos de 1945-46, não se materializou. Vários motivospodem explicar esse sucesso. Um deles foi a capacidade da classe trabalha-dora de satisfazer suas aspirações materiais dentro dos parâmetros oferecidospelo Estado; outra, o prestígio pessoal de Perón. Mas também é precisolevar em consideração a habilidade do Estado e de seu aparato cultural,político e ideológico para promover e inculcar noções de harmonia e inte-resses comuns entre as classes. Devemos, contudo, cuidar de analisar issoexclusivamente em função da manipulação e do controle social. A eficáciada ideologia oficial dependeu, decisivamente, de sua capacidade de se asso-ciar às percepções e à experiência da classe trabalhadora. A retóricaperonista, como qualquer outra, derivou seu influxo, definitivamente, desua capacidade de dizer ao público o que ele desejava escutar.

Como exemplo do que desejamos mostrar, pode-se tomar a maneiracomo a retórica peronista tratou o assunto do Primeiro de Maio, o Dia doTrabalho. Um órgão oficial publicou, em 1952, um documento intituladoEmancipation of the Workers* típico dos esforços do governo naquela di-reção. Sua parte fundamental consiste em uma coleção de fotografias, emque a cada uma delas corresponde um texto. As primeiras fotos mostram

*Emancipação dos trabalhadores. (N. do T.)

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29344

345

O P E R O N I S M O E A C L A S S E T R A B A L H A D O R A , 1 9 4 3 - 1 9 5 5

trabalhadores reunidos para celebrar o Primeiro de Maio, com bandeirasvermelhas e bandeiras vermelhas e pretas, dos anarquistas. Nas fotos, apa-recerem soldados da polícia montada. O comentário diz: “O Dia do Traba-lho, tal como era celebrado antigamente neste país”, “para tomar parte nascelebrações, era preciso muita coragem. A polícia, poderosamente armadae pronta para qualquer eventualidade, impediu que os trabalhadores pro-clamassem suas justas aspirações”. A terceira foto reflete “um triste teste-munho dos trágicos acontecimentos do Dia do Trabalho, de 30 anos atrás”e mostra trabalhadores mortos ou feridos pela polícia. As três fotos seguin-tes estão em alto contraste e expõem a moral da história. Mostram umagrande manifestação na Praça de Maio, festejando o Dia do Trabalho: veem-se muitos símbolos sindicais, mas não bandeiras vermelhas. Os textos dizem:“Na nova Argentina criada por Perón, o Primeiro de Maio é alegrementecelebrado por um povo unido” e “O Dia do Trabalho é sempre um aconte-cimento popular de grande importância na Argentina”. A foto mostra mul-tidões de operários a caminho da Praça de Maio para escutar um discursode Perón.81

Esse documento é, sem dúvida alguma, ilustrativo da capacidade doperonismo de se apropriar dos símbolos das tradições da classe operária an-teriores e rivais, que os peronistas absorveram e neutralizaram. Mais impor-tante para essas considerações é a maneira como essa apropriação envolveuuma alteração de significados. É impossível não reparar o contraste simbóli-co proposto pelo documento. Longe de ser a afirmação de uma identidadeforjada no conflito de classes, um símbolo de luta e firmeza de posição emnome de um princípio, o Primeiro de Maio antes de Perón representava atristeza, a dor e a impotência, revelados pelos rostos esmaecidos que olhamo leitor a partir do documento. Por outro lado, o Dia do Trabalho na era dePerón significava rostos sorridentes de operários em marcha, em direção àCasa de Governo, num clima de tranquilidade e harmonia, sem pânico, po-liciais ou ferimentos. Certamente, tratava-se de propaganda governamental,mas o importante é que sua eficácia dependia, pelo menos em parte, dareceptividade dessa mensagem por parte dos trabalhadores.

Entre esses havia essa receptividade. Uma vez mais, sustentamos que sebaseava na experiência dos trabalhadores anterior a 1943. As lições deixa-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29345

346

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

das por essa experiência constituíram um tema importante da cultura po-pular nos anos peronistas. Goldar resumiu do seguinte modo a maneira comoa narrativa popular abordou esse tema:

O dia dos trabalhadores, durante a década infame, será de luta, repressão,

palavras de ordem internacionais, rebelião impotente, “tua fome, o ódio dessa

gente, a miséria de vocês, a espera, a roupa suja e rasgada, a pele cansada, as

vozes roucas”. Lutando para que “a vida não fosse algo além de cansaço e

sonho velho”.82

Em contraste com essa imagem de conflito e dor associada ao Primeirode Maio antes de Perón, a cultivada após 1946 foi a de uma tranquilidadeque marcava o dia de festa do trabalho, enquanto as manifestações que ter-minavam com derramamento de sangue se desvaneciam na lembrança dopassado.

Depoimentos pessoais mostram a constância de atitudes semelhantes,diante de símbolos das lutas de classes de outros tempos. Um operário,ativista de muito tempo atrás e com importante papel na fundação do PartidoTrabalhista, disse, ao explicar por que se interessara pela política, em 1945:

Decidi colaborar também na ação política para que a classe trabalhadora, a

minha classe, conquistasse o direito de viver melhor sem correr o risco de

ter que enfrentar tragédias como a da semana de janeiro de 1919, o massa-

cre da Patagônia em 1921, Gualeguaychú, Berisso, Avellaneda, Mendoza e

muitos casos, que se tornaria longo demais enumerar.83

Devemos ter o cuidado de interpretar esse depoimento só em termos deincorporação da classe trabalhadora. Fragmentos desse tipo refletem clara-mente uma vontade de conseguir o progresso social sem enfrentar a dordas lutas de classes, desejo de estabilidade e rotina em comparação com aarbitrariedade e a impotência características do período anterior. Essa von-tade, contudo, podia coexistir, como veremos, com um reconhecimento deque na realidade havia menos harmonia. E, mais ainda, o rochedo sobre oqual essas atitudes se baseavam — o que conferia credibilidade tanto a elas

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29346

347

O P E R O N I S M O E A C L A S S E T R A B A L H A D O R A , 1 9 4 3 - 1 9 5 5

quanto à retórica oficial que as refletia — era a sensação de terem recupe-rado a dignidade e o respeito próprio. Algumas vezes esse fator parecia es-tar em primeiro plano, como significado social irredutível e mínimo daexperiência peronista, na avaliação dos trabalhadores. Enrique Dickmann,com 80 anos e mais de 50 como militante e dirigente do Partido Socialista,tentou por fim, não sem resistência, reconhecer o que havia significado operonismo para a classe trabalhadora:

Conversei com muitos operários na capital e no interior e cada um diz: “Agora

sou algo, sou alguém.” E eu perguntei a um operário a sua opinião e, em sua

ingênua simplicidade, disse: “Para que o senhor compreenda a mudança ocor-

rida, direi que quando tínhamos alguma questão a resolver com o antigo

Departamento do Trabalho, o patrão estava sentado e eu, operário, de pé.

Agora, eu, operário, estou sentado e o patrão está de pé.”84

Para resumir nossa análise da natureza da experiência peronista para ostrabalhadores argentinos no período 1943-1955, devemos começar por des-tacar o óbvio: o peronismo marcou uma conjuntura decisiva no surgimentoe na formação da moderna classe trabalhadora argentina. Sua existência eseu sentido de identidade como força nacional coerente, tanto no socialquanto no político, remontam à era Perón. O legado que esse período dei-xou não poderia ser fácil de manter com a derrubada de Perón. Mas o lega-do não era inequívoco. Seu impacto sobre os trabalhadores foi, tanto socialquanto politicamente, complexo. Sugerimos, por exemplo, que a atraçãoque exerceu sobre os trabalhadores não pode ser reduzida simplesmente aum instrumentalismo básico de uma classe. Sugerimos ainda que prestar adevida atenção à atração especificamente política do peronismo permitedescobrir um discurso que, não sem dar ênfase à correção das desigualdadessociais e econômicas, a associava a uma certa visão da cidadania e do papelda classe trabalhadora na sociedade. Essa visão se expressou em uma retó-rica diferente e um estilo político particularmente atraente para os traba-lhadores argentinos.

Dessa análise, podem-se extrair várias consequências. Em primeiro lu-gar, o apoio que os trabalhadores deram a Perón não se baseou exclusiva-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29347

348

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

mente em sua experiência de classe nas fábricas. Foi também uma adesãode índole política, produzida por uma forma particular de mobilização ediscurso políticos. Fica claro que as duas bases da mobilização não devemser contrapostas; certamente não devem sê-lo na forma da clássicadicotomia entre classes trabalhadoras “velha” e “nova”, “tradicional” e“moderna”. Uma retórica política exige que se dirija a necessidades declasse verdadeiras para ter êxito na mobilização política dos operários,mas isso não esgota a gama de seus atrativos. Como observaram SilviaSigal e Juan Carlos Torre, na América Latina foi frequentemente a praçapública, mais do que a fábrica, o principal ponto de constituição da classetrabalhadora como força política.85

Isso coloca uma questão relacionada com a anterior. A classe trabalha-dora não chegou ao peronismo plenamente formada e se limitou a adotaressa causa e sua retórica como o mais conveniente dos veículos disponíveispara satisfazer suas necessidades materiais. Em um importante sentido, aclasse trabalhadora em si foi formada por Perón. Sua própria identificaçãocomo força social e política dentro da sociedade nacional foi, ao menos emparte, construída pelo discurso político peronista, que ofereceu aos traba-lhadores soluções viáveis para seus problemas e uma visão crível da socie-dade argentina e do papel que lhes correspondia nela. Esse foi evidentementeum processo complexo, que envolveu para alguns trabalhadores umareconstituição de sua identidade e sua lealdade política, quando abandona-vam identidades e lealdades estabelecidas. A construção da classe trabalha-dora não implicou necessariamente a manipulação e a passividade associadasà poderosa imagem das “massas disponíveis” formulada por Gino Germani,contra a qual se dirigiu grande parte do que foi escrito sobre o peronismo.86

Estava em jogo, indiscutivelmente, um processo de interação em duasdireções e, embora a classe trabalhadora fosse constituída em parte peloperonismo, esse era, por sua vez, em parte, criação da classe trabalhadora.

Do ponto de vista social, o legado que a experiência peronista deixoupara a classe trabalhadora foi profundamente ambivalente. É certamenteverdade, por exemplo, que a retórica peronista pregava e a política socialprocurou, cada vez mais, a identificação dos trabalhadores com o Estado ea sua incorporação a ele, que supunha, como sugerimos, uma atitude pas-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29348

349

O P E R O N I S M O E A C L A S S E T R A B A L H A D O R A , 1 9 4 3 - 1 9 5 5

siva. A visão peronista oficial do papel da classe trabalhadora tendia a ser ade um idílio profundamente soporífero, em que os operários se deslocam,satisfeitos, de um harmonioso âmbito de trabalho para um hotel de vera-neio fornecido pelo sindicato e, dali, aos organismos estatais que resolveriamseus problemas pessoais e sociais. Além do Estado, o próprio Perón seria aderradeira garantia dessa visão.

De forma análoga, o movimento sindical emergiu desse período imbuídode um profundo espírito reformista, baseado na convicção de que era pre-ciso conseguir uma conciliação com os empregadores e satisfazer as neces-sidades dos filiados mediante o estabelecimento de uma relação íntima como Estado. Essa relação supunha um compromisso, por parte dos dirigentessindicais, com o conceito de controlar e limitar a atividade da classe traba-lhadora dentro dos parâmetros estabelecidos pelo Estado, além de servircomo conduto político para essa mesma classe. Nesse sentido, pode-se con-siderar que o peronismo desempenhou um papel profilático, ao anteciparo surgimento de um sindicalismo ativo e autônomo.

A era peronista, contudo, também legou à classe trabalhadora um senti-mento muito profundo de solidez e importância potencial no país. Emconsequência, a legislação trabalhista e de bem-estar social representou, emseu conjunto, uma realização em grande escala no que diz respeito a direitose reconhecimento da classe trabalhadora; uma realização que refletia mobi-lização dos trabalhadores e consciência de classe, e não simplesmente a acei-tação passiva da generosidade estatal. O desenvolvimento de um movimentosindical centralizado e de massas — qualquer que fosse a medida em quecontasse com o apoio e a supervisão do Estado — confirmou inevitavelmen-te a existência dos trabalhadores como força social dentro do capitalismo.Isso significava que, em termos de movimento sindical, e por mais que umacúpula cada vez mais burocratizada atuasse como porta-voz do Estado, osinteresses de classe conflitantes realmente se manifestassem e os interessesda classe operária fossem em verdade articulados. Até que ponto a integraçãodos sindicatos com o Estado peronista seria capaz de assegurar a aceitação depolíticas inconvenientes para os trabalhadores? Sempre haveria um limite.Em geral, o sindicato cumpria com notável fidelidade sua função para o Es-tado, mas esse, que significava fundamentalmente Perón, devia ceder, em troca,

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29349

350

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

um mínimo para representar uma mudança. A relação não era de decreto,mas sobretudo de um acordo que deve ser negociado.

De forma semelhante, o peso de uma filosofia formal de conciliação eharmonia entre as classes, uma filosofia que colocava em destaque valo-res decisivos para a reprodução das relações sociais capitalistas, era con-siderável. Por outro lado, a eficácia dessa ideologia estava limitada, naprática diária, pelo desenvolvimento de uma cultura que afirmava os di-reitos dos trabalhadores dentro da sociedade em geral e do local de tra-balho em particular.

O peronismo aspirava a conseguir uma alternativa hegemônica viávelpara o capitalismo argentino, queria promover um desenvolvimento eco-nômico baseado na integração social e na política da classe trabalhadora.Nesse sentido, estão corretas as comparações do peronismo com o NewDeal, de Roosevelt, e com o desenvolvimento do capitalismo sob um Esta-do de bem-estar, na Europa Ocidental, depois de 1945. Em diferentes graus,todos esses sistemas proclamaram os “direitos civis econômicos” da classetrabalhadora, ao mesmo tempo que confirmavam, e certamente fortaleciam,a contínua existência das relações de produção capitalistas. O peronismo,por sua vez, definiu a si mesmo em um sentido importante e foi definido,da mesma forma, por seu eleitorado operário, como um movimento deoposição política e social, como uma negação do poder, dos símbolos evalores da elite dominante. Em um sentido fundamental, continuou sendopotencialmente herético, que dava expressão às esperanças dos oprimidostanto dentro quanto fora da fábrica, como demanda de dignidade social ede igualdade.

As tensões resultantes desse legado ambíguo foram consideráveis. Emsuma, poder-se-ia dizer que a primeira delas centrou-se no conflito entre osignificado do peronismo como movimento social e suas necessidades funda-cionais, como forma específica de poder estatal. Em relação a esse ponto,falar do peronismo como movimento monolítico mais obscurece do queesclarece. Para aqueles que aspiravam a posições de poder na burocraciaadministrativa e na máquina política, o peronismo encarnava um conjuntode políticas e instituições formais. Para os empregadores que haviam apoiadoPerón, tratava-se de uma jogada arriscada: um mercado interno expandi-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29350

351

O P E R O N I S M O E A C L A S S E T R A B A L H A D O R A , 1 9 4 3 - 1 9 5 5

do, incentivos econômicos fornecidos pelo Estado e uma garantia contra atomada dos sindicatos pela esquerda, em troca da qual deviam aceitar umaclasse operária com poder institucional muito maior e consciente de seupróprio peso. Para alguns setores da classe média, o peronismo talvez re-presentasse, de forma ampliada até, maiores oportunidades de emprego naárea estatal. Para a massa operária que apoiava Perón, as políticas sociaisformais e os benefícios econômicos eram importantes, mas não esgotavamo significado do peronismo. Em um sentido mais duradouro, caso esse sig-nificasse para ela a visão de uma sociedade mais digna, em que lhe fossereconhecido um papel vital, visão manifestada em uma linguagem que eracapaz de compreender. Supunha também uma cultura política de oposição,de rejeição a tudo o que havia existido antes no campo político, no social eno econômico, e um sentimento de blasfêmia contra as normas da elite tra-dicional e a estima que essa tinha por si mesma.

Mas para quem controlava o aparato político e social do peronismo, essacultura de oposição era um peso morto, pois indicava a incapacidade doperonismo de se oferecer como opção hegemônica viável para o capitalis-mo argentino. Reconheciam o potencial de mobilização inerente à adesãoda classe operária ao peronismo e utilizavam-no na mesa de negociações,onde mediam forças com outros pretendentes ao poder político, o que equi-valia a um tipo de tática après moi le déluge. Finalmente, tiveram que re-conhecer que era como cavalgar num tigre. Sem dúvida alguma, as forçaseconômicas e sociais que prevaleciam na sociedade argentina, que inicial-mente tiveram que tolerar o peronismo, reconheceram no início da décadade 1950 o perigo inerente àquela ambivalência. Mas do ponto de vista doperonismo como movimento social, esse elemento de oposição represen-tou uma enorme vantagem, pois conferiu-lhe uma base dinâmica, que so-breviveria longo tempo depois que as condições econômicas e sociaisparticularmente favoráveis tivessem se desvanecido e que nem sequer a cres-cente esclerose de dez anos de servilismo e corrupção conseguira minar.Foi nesse substrato que se nutriu a atitude dos militantes de base que resis-tiram aos regimes posteriores a 1955 e que possibilitou a reafirmação doperonismo como força dominante no movimento operário argentino.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29351

352

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Notas

1. Os antecedentes militares do golpe de 1943 encontram-se em Robert Potash.

The Arm and Politics in Argentina, 1928-1945, Yirigoyen to Peron, Stanford:

Stanford University Press, 1969 (há tradução em espanhol). Há uma análise geral

da era 1943-55 em Peter Waldmann. El peronismo, 1943-55. Buenos Aires:

Sudamericana, 1981. A evolução dos acontecimentos no campo trabalhista está

em Samuel L. Baily. Labor, Nationalism, and Politics in Argentina. New Brunswick:

Rudgers University Press, 1967 (há tradução em espanhol, da Hispanoamérica) e

em Hugo del Campo. Sindicalismo y peronismo. Buenos Aires: Siglo XX, 1983.

2. Os interesses econômicos da elite rural foram protegidos pelo tratado Roca-

Runciman, de 1933, que garantiu o contínuo acesso de carne argentina aos mer-

cados britânicos, em troca de significativas concessões em favor das importações

britânicas pela Argentina. Esse tratado assegurou, em definitivo, a manutenção

da Argentina na posição que tradicionalmente ocupava na esfera britânica da

economia internacional e como tal foi denunciado por nacionalistas e outras

forças. Ver Miguel Murmis e Juan Carlos Portantiero. “Crecimiento industrial y

alianza de clases en la Argentina, 1930-40”. In: Estudios sobre los orígenes del

peronismo, vol. 1. Buenos Aires: Siglo XXI, 1972.

3. Cifras calculadas sobre a base de dados da Comissão Econômica para a América

Latina (Cepal), em El desarrollo económico en la Argentina. Buenos Aires, 1959,

citado em Miguel Angel Garcia. Peronismo: desarrollo económico y lucha de clases,

Barbacena: Llobregat, 1979, p. 54.

4. Isso culminou em 1943, quando as exportações de manufaturados não tradicio-

nais corresponderam a 19,4% do total das exportações. Estima-se que, nos anos

da guerra, essa evolução, encabeçada pela indústria, tenha determinado a criação

de 180 mil postos de trabalho. Ver Juan José Llach. “El Plan Pinedo de 1940: su

significación histórica y los Orígenes de la economia política del peronismo”.

Desarrollo Econômico, vol. 23, nº 92, 1984, pp. 515-58.

5. Garcia. Peronismo, p. 62.

6. Gino Germani, Política y sociedad en una época de transición. Buenos Aires:

Paidés, 1962, p. 307.

7. Rubén Rotondaro. Realidad y cambio en el sindicalismo, Buenos Aires: La Pleyade,

1972, p. 128.

8. Alejandro Bunge. Una nueva Argentina. Buenos Aires: Kraft, 1940, p. 372.

9. Há uma análise detalhada das divisões internas dentro do sindicalismo organizado

nesse período em Hiroschi Matsushita. Movimiento obrero argenino, 1930-45:

sus proyecciones en los orígenes del peronismo. Buenos Aires: Hyspanamericana,

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29352

353

O P E R O N I S M O E A C L A S S E T R A B A L H A D O R A , 1 9 4 3 - 1 9 5 5

1983, e em David Tamarin. The Argentine Labor Movement, 1930-40: a Study inthe Origins of Peronism. Albuquerque: University of New Mexico Press, 1985.

10. Ver Miguel Murmis e Juan Carlos Portantiero. “El movimiento obrero en losorígenes del peronismo”. Estudios, p. 80.

11. Os antecedentes pessoais de Perón e suas ideias podem ser encontrados em JosephPage: Perón: a biography, Nova York: Randem House, 1983. Existe uma análiseda política operária de Perón e do seu impacto em 1943-45 em Walter Little: “Laorganización obrera y el Estado peronista”, Desarrollo Económico, vol. 19, nº75, 1979, pp. 331-76.

12. Os antecedentes do episódios de outubro estão em Félix Luna. El 45, crónica deun año decisivo. Buenos Aires: J. Alvarez, 1969.

13. Ver Louise Doyon: “El crecimiento sindical bajo el peronismo”, DesarrolloEconómico, vol. 15, nº 57, 1975, pp. 151-61.

14. Ver Louise Doyon: “Conflictos obreros durante el régimen peronista, 1946-55”,Desarrollo Económico, vol. 17, nº 67, 1977, pp. 437-73.

15. Ver Juan Carlos Torre: “La caída de Luis Gay”, Todo es Historia, vol. 8, nº 89,1974. Um dos últimos símbolos da autonomia trabalhista foi Cipriano Reyes, olíder dos trabalhadores no setor de carne, que permaneceu no Congresso comodeputado trabalhista até 1948, ano em que terminou seu mandato. Perón entãomandou prendê-lo e Reyes permaneceu preso até o fim do regime. Sobre otrabalhismo, ver Cipriano Reyes. ¿Que es el laborismo? Buenos Aires: EdicionesRA, 1946.

16. Ver Rotondaro, Realidad y cambio, cap. 4. A Fundação Eva Perón, criada por leido Congresso, era totalmente controlada por Eva Perón. Atuava como poderosamáquina de favores e distribuição de recursos de bem-estar social.

17. Cepal, El desarrollo econômico, pp. 122 e seg.18. Ver em Jorge Abelardo Ramos. Historia del stalinismo en la Argentina, Buenos

Aires: Coyocán, 1974, um relato altamente crítico. Uma versão oficial comunistaexiste em Esbozo de la historia del Partido Comunista argentino, Buenos Aires,1947. Ver também Rubens Iscaro. Historia del movimiento sindical, vol. 1. BuenosAires: Anteo, 1974.

19. Existem exemplos desse enfoque em Germani. Política y sociedad; RodolfoPuiggrós. El peronismo: sus causas, Buenos Aires: J. Alvarez, 1965; e AlbertoBelloni. Del anarquismo al peronismo, Buenos Aires: Peña Lillo, 1960. Um exa-me crítico de alguns dos pressupostos básicos encontra-se em Walter Little: “ThePopular Origins of Peronism”, em David Rock (comp.). Argentina in the TwentiethCentury. Pittsburgh, University of Pittsburgh Press, 1975.

20. Um estudo sobre essa bibliografia revisionista encontra-se em Ian Roxborough:“Unity and Diversity in Latin American History”, Journal of Latin American

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29353

354

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Studies, vol. 16, parte 1, 1984, pp. 1-26. As interpretações revisionistas nãoforam aceitas sem discussões. Em sua última contribuição ao debate sobre asorigens do peronismo, Gino Germani reafirma seus argumentos básicos sobre opeso dos novos migrantes na formação do peronismo e a importância das pautasculturais psicossociais tradicionais. Ver sobre isso “El rol de los obreros y losmigrantes internos en los orígenes del peronismo”, Desarollo Económico, vol.13, nº 51, 1973, pp. 435-88. Comentários críticos sobre esse aspecto estão emTulio Halperin Donghi. “Algunas observaciones sobre Germani, el surgimientodel peronismo y los migrantes internos”, Desarollo Económico, vol. 15, nº 56,1975, pp. 765-81.

21. Gareth Stedman Jones. “Rethinking Chartism”. In: Languages of Class: Studiesin English Working Class History, Cambridge: Cambridge University Press, 1984,p. 97.

22. Sobre o Partido Radical, ver David Rock, Politics in Argentine, 1890-1930: theRise and Fall of Radicalism, Cambridge: Cambridge University Press, 1975 (hátradução em espanhol).

23. O reconhecimento por Perón da importância da herança yrigoyenista está emFélix Luna. El 45: crônica de un año decisivo. Buenos Aires: Sudamericana, 1969,pp. 205 e seg.

24. O termo foi criado pelo historiador nacionalista José Luis Torre e chegou a seramplamente utilizado na bibliografia nacionalista e oposicionista da época.

25. Uma história política da década de 1930 está em Alberto Ciria. Parties and Powerin Modern Argentina, 1930-46. Albany: State University of New York Press, 1969(há tradução em espanhol). Exemplos dos mecanismos específicos da fraude po-dem ser encontrados em Félix Luna. Alvear, Buenos Aires: Libras Argentinas,1958.

26. Ver Norberto Folino. Barceló, Ruggierito y el populismo oligárquico. Buenos Aires:Falbo, 1966.

27. Um relato desse processo de corrupção é feito em Luna, Alvear, pp. 196-234.28. Ibid., p. 232.29. El Laborista, 24 de janeiro de 1946, citado em Dario Cantón. Elecciones y parti-

dos políticos en Argentina. Buenos Aires: Siglo XXI, 1972, p. 227.30. A questão das diferentes categorias de direitos associados ao conceito evolutivo

de cidadania é analisada por T.H. Marshall em Citizenship and Social Class. Lon-dres: Pluto Press, 1947. Marshall distingue entre direitos civis e políticos associa-dos com a democracia formal e a gradual ampliação desse conceito de cidadaniaaté incluir nele os “direitos sociais”. Um esboço e uma crítica desse conceitoencontram-se em Anthony Goddens. “Class divisions, class conflict and citizenshiprights”. In: Profiles and Critiques in Social Theory. Berkeley: University of

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29354

355

O P E R O N I S M O E A C L A S S E T R A B A L H A D O R A , 1 9 4 3 - 1 9 5 5

California Press, 1982. Uma tentativa de elaborar esses conceitos, no caso dos

países em desenvolvimento, está em Gino Germani. “Clases populares y demo-

cracia representativa en América Latina”, vol. 2, nº 2, 1962, pp. 23-43.

31. O comentário do político conservador Marcelo Sánchez Sorondo sobre os dis-

cursos de Alvear poderia ser estendido, com razão, aos pronunciados pelos polí-

ticos da União Democrática: “Seus discursos pareciam arrancados de uma antologia

ou de lugares comuns democráticos.” Citado em Ciria, Parties and Power, p. 128.

Ver também Luna, El 45, pp. 108 e seg., um exame da retórica do antiperonismo

em 1945-46.

32. Luna, El 45, p. 206.

33. Citado em Carlos Fayt. La naturaleza del peronismo. Buenos Aires: Viracocha,

1967, p. 143.

34. Citado em Luna, El 45, p. 192.

35. Ver Primera Plana, “História del peronismo”, 31 de agosto de 1965.

36. Julio Mafud, Sociologia del peronismo. Buenos Aires: Americalee, 1972, p. 07.

37. Ver Rock, Politics in Argentina, p. 59: “Como mostram as atividades dos comi-

tês, os radicais confiavam muito nas medidas paternalistas. Também nesse caso, a

principal vantagem residia em que o método podia servir para desintegrar os

laços que separavam o grupo de interesse porque atomizava o eleitorado e indi-

vidualizava o votante.”

38. Os principais discursos pronunciados por Perón nesse período foram reunidos e

publicados em Juan D. Perón. El pueblo quiere saber de qué se trata. Buenos

Aires: s/e, 1957.

39. Guita Grin Debert, em Ideologia e populismo. São Paulo: TAQ, 1979, apresenta

uma interessante análise dos papéis dos indivíduos, das classes e do Estado em

diferentes formas de discurso populista. Seu exame da retórica quinta-essencial

de um líder populista como Adhemar de Barros permite estabelecer um instruti-

vo contraste com o discurso político de Perón.

40. O principal grupo que influiu no peronismo foi a Força de Orientação Radical da

Jovem Argentina (Forja), constituída principalmente por intelectuais radicais dis-

sidentes. Embora sua influência política tenha sido limitada, o status de alguns

intelectuais que militavam nela, como Raúl Scalabrini Ortiz, Arturo Jauretche,

Luis Dellepiane e outros, foi considerável. Cipayo significa literalmente soldado

nativo a serviço do Exército britânico na Índia e implicava ser um instrumento

servil de potência colonial. O fato de que a referência tenha sido tomada direta-

mente da história colonial britânica mostrava claramente que a Argentina, gover-

nada por sua elite tradicional, estava a serviço dos interesses britânicos, da mesma

forma que a Índia colonial.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29355

356

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

41. Ver em Llach, “El Plan Pinedo de 1940”, diferentes respostas políticas ao proble-ma da industrialização.

42. Milcíades Peña. El peronismo, selección de documentos para la historia. BuenosAires: Fichas, 1973, p. 10.

43. Stedman Jones, Languages of Class, p. 96.44. Ver, por exemplo, Juan D. Perón. Doctrina peronista. Buenos Aires: Macacha

Güemes, 1973, pp. 51-83.45. Luis Franco. Biografia pátria. Buenos Aires: Stilcograf, 1958, p. 173.46. Eduardo Colom. 17 de octubre, la revolución de los descamisados. Buenos Aires:

La Epoca, 1946, pp. 106-7.47. Um estudo de assuntos como o tango está disponível em Judith Evans, “Tango

and popular culture in Buenos Aires”, trabalho não publicado, mas apresentadona conferência da American Historical Association, Washington, 1958. Uma aná-lise do subtexto do discurso peronista, tal como expresso no discurso pronuncia-do por Perón em 17 de outubro, encontra-se em Emílio de Ipola, “Desde estosmismos balcones”. Ideología y discurso populista. Buenos Aires: Folios, 1983.

48. Colom, 17 de octubre, p. 107.49. Do diário socialista La Vanguardia, citado em Ángel Perelman. Como hicimos el

17 de octubre. Buenos Aires: Coyoacám, 1961, p. 78.50. Ver Anson Rabinach. “Bloch’s Theory of Fascism”. New German Critique, pri-

mavera de 1977.51. Pierre Bourdieu. Outline of a Theory of Practice. Cambridge: Cambridge

University Press, 1977, p. 178.52. Citado em Manuel Gálvez. En el mundo de los seres reales. Buenos Aires: Alpe,

1955, p. 79.53. Ernesto Goldar. “La literatura peronista”. In: Gonzalo Cárdenas e outros. El

peronismo. Buenos Aires: Garamond, 1969, p. 151.54. Así, 25 de outubro de 1970.55. Perelman, Cómo hicimos el 17 de octubre, p. 12.56. Mafud, Sociología del peronismo, p. 107.57. Ver, por exemplo, os clássicos tangos de Discépolo “Qué vachaché” e “Yira, yira”.

Temas semelhantes podem ser encontrados em outras expressões da cultura po-pular das décadas de 1920 e seguinte, como o teatro do grotesco. Ver NoemíUlla. Tango, rebelión y nostalgía. Buenos Aires: Ceal, 1967; Norberto Galaso.Discépolo y su época. Buenos Aires: J. Alvarez, 1967; Gustavo Sosa Pujato. “Po-pular culture”. In: Ronald Dockhart e Mark Falcoff. Prologue to Perón: Argenti-na in depression and war. Berkeley: University of California Press, 1975.

58. Do tango de Discépolo “Qué vachaché”. A letra se encontra em Osvaldo Pelletieri.Enrique Santos Discépolo: obra poética. Buenos Aires: Palermo, 1976, p. 80.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29356

357

O P E R O N I S M O E A C L A S S E T R A B A L H A D O R A , 1 9 4 3 - 1 9 5 5

59. Ver Julio Mafud. La vida obrera en la Argentina. Buenos Aires: Proyeccion, 1976,p. 241.

60. A frase é de Osvaldo Pelletieri, em Discépolo, p. 63.61. Jacinto Cimazo e José Grunfeld. Luis Danussi en el movimiento social y obrero

argentino. Buenos Aires: Proyeccion, 1976, p. 93.62. Ibid., p. 86.63. Perelman, Cómo hicimos el 17 de octubre, p. 12.64. Ver del Campo, Sindicalismo y peronismo. Também é interessante Ricardo Gaudio

e Jorge Pilone, Estado y relaciones obrero-patronales en los orígenes de la negociacióncolectiva en Argentina, Cedes, Estúdios Sociales, nº 5, Buenos Aires, 1976.

65. Cimazo e Grunfeld, Luis Danussi, p. 103. Ver também Tamarin, Argentine LaborMovement, em especial o capítulo 7. Tamarin destaca a importância da atividadede organização dos comunistas, que foi além dos limites dos setores tradicional-mente organizados da classe trabalhadora, embora assinale que o aumento dafiliação sindical, no fim de 1930 e início da década seguinte, conseguiu apenasmanter o ritmo de aumento da força de trabalho ou penetrar nas áreas de maiorexpansão industrial.

66. Entrevista com Ramiro González, Rosário, novembro de 1976.67. Entrevista com Lautaro Ferlini, Buenos Aires, novembro/dezembro de 1976.68. Bourdieu, Outline, p. 170.69. De acordo com Félix Luna, essa palavra foi empregada pela primeira vez pelos

socialistas em seu diário La Vanguardia, para mencionar os partidários de Perón.Em Luna, El 45.

70. Ver Julie M. Taylor. Eva Perón: the nyths of a Woman. Chicago: University ofChicago Press, 1979. A biografia mais completa de Evita é a de Nicholas Fraser eMarysa Navarro. Eva Perón. Nova York: Norton, 1981.

71. Destaca Dario Cantón em Fayt, La naturaleza del peronismo, p. 343.72. José Gobello. Diccionario lunfardo y otros términos antiguos y modernos usados

en Buenos Aires. Buenos Aires: Peña Lillo, 1975. A exceção consistia no uso de“negra” ou “negro” como expressão de afeto, pelos pobres, entre homem e mulher.

73. Luna, El 45, p. 350.74. Citado em Perelman, Como hicimos el 17 de octubre, p. 78.75. A frase é de Leopoldo Marechal: “Era a Argentina invisível que alguns haviam

anunciado literariamente, sem conhecer nem amar suas milhões de caras concre-tas e a que, nem bem as conheceram, lhe deram as costas.” Ver Elbia RosbacoMarechal. Mi vida con Leopoldo Marechal. Buenos Aires: Paidós, 1973, p. 91.

76. Luna, El 45, p. 350.77. Sobre o conceito de contrateatro, ver E.P. Thompson. “Eighteenth-Century English

Society”, Social History, maio de 1978.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29357

358

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

78. Luna: El 45, p. 397.79. Citado em Mônica Peralta Ramos. Etapas de acumulación y alianzas de clases en

la Argentina, 1930-1970. Buenos Aires: Siglo XXI, 1972, p. 120. No que serefere à ideologia justicialista, ver Alberto Ciria. Perón y el justicialismo. BuenosAires: Siglo XXI, 1974.

80. Peralta Ramos, Etapas de acumulación.81. Servicio Internacional de Publicaciones Argentinas, Emancipation of the Workers,

Buenos Aires, 1952, pp. 27-30.82. Goldar, “Literatura peronista”, p. 155.83. Citado em Dario Cantón, El parlamento argentino en épocas de cambio, 1890,

1916 y 1946. Buenos Aires: Editorial del Instituto, 1966, p. 168.84. Argentina de hoy, agosto de 1953.85. Silvia Sigal e Juan Carlos Torre. “Reflexiones en torno a los movimientos laborales

em América Latina”. In: Rubén Katzman e José Luis Reyna (orgs.). Fuerza detrabajo y movimientos laborales en América Latina. México, El Colegio de Mé-xico, 1969, p. 145.

86. O conceito de “disponibilidade” encontra-se em muitas das principais obras deGermani. Ver, em especial, Política y sociedad e “Clases populares y democraciarepresentativa”. Embora pareça-me que as críticas a esse e outros conceitos daobra de Germani, quanto a seus significados de passividade e manipulação, sejustificam. Ela contém, sem dúvida, muitas intuições fundamentais sobre a especi-ficidade e a peculiaridade de um movimento como o peronismo, que concordamcom a orientação geral do que foi argumentado neste texto. Em particular, creioque sua insistência no caráter excepcional do peronismo como forma demobilização política continua a meu ver sendo válida. Sua insistência em que issoseja entendido no âmbito de uma dicotomia tradicional/moderno me parece tãoerrônea quanto desnecessária, ponto que sagazmente assinala Túlio HalperinDonghi em “Algunas observaciones”.

Bibliografia

BAILY, Samuel L. Labor, Nationalism and Politics in Argentina. New Brunswick, N.J.,:Rutgers University Press, 1967.

BELLONI, Alberto. Del anarquismo al peronismo. Buenos Aires: A. Peña Lillo Editor,1960.

BOURDIEU, Pierre. Outline of a Theory of Practice. Cambridge. Cambridge UniversityPress, 1977.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29358

359

O P E R O N I S M O E A C L A S S E T R A B A L H A D O R A , 1 9 4 3 - 1 9 5 5

BUNGE, Alejandro. Una nueva Argentina. Buenos Aires: Guillermo Graft, 1940.

CAMPO, Hugo Del. Sindicalismo y peronismo. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano

de Ciencias Sociales, 1983.

CANTÓN, Darío. Elecciones y partidos políticos en Argentina, Buenos Aires: Siglo

Veintiuno, 1973.

——. El parlamento argentino en épocas de cambio, 1890, 1916 y 1946. Buenos Aires:

Instituto Torcuato di Tella, 1966.

CIMAZO, Jacinto e GRUNFELD, José. Luis Danussi en el movimiento social y obrero

argentino. Buenos Aires: Editorial Reconstruir, 1976.

CIRIA, Alberto. Parties and Power in Modern Argentina, 1930-46. Albany: State

University of New York Press, 1969.

——. Perón y el justicialismo. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 1974.

COLOM, Eduardo. 17 de octubre, la revolución de los descamisados. Buenos Aires:

Editorial La Época, 1946.

DEBERT, Guita Grin. Ideologia e populismo. São Paulo: T. A. Queiroz, 1979

DONGHI, Tulio Halperin. “Algunas observaciones sobre Germani, el surgimiento del

peronismo y los migrantes internos”. In: Desarrollo Económico, vol. 15, nº 56, 1975,

pp. 765-81.

DOYON, Louise. “Conflictos obreros durante el régimen peronista, 1946-55”, De-

sarrollo Económico, vol. 17, nº 67, 1977, pp. 437-73.

——. “El crecimiento sindical bajo el peronismo”. In: Desarrollo Económico, vol. 15,

nº 57, 1975, pp. 151-61.

EVANS, Judith. “Tango and popular culture in Buenos Aires”, trabalho não publica-

do, mas apresentado na conferência da American Historical Association, em Wa-

shington, 1958.

FAYT, Carlos. La naturaleza del peronismo. Buenos Aires: Editorial Viracocha, 1967.

FOLINO, Norberto Barceló. Ruggierito y el populismo oligárquico. Buenos Aires: Falbo

Librero Editor, 1966.

FRANCO, Luis. Biografia patria. Buenos Aires: Editorial Stilcograf, 1958.

FRASER, Nicholas e NAVARRO, Marysa. Eva Perón. Nova York: W W Norton & Co

Inc, 1981.

GALASO, Norberto. Discépolo y su época. Buenos Aires: Ed. Jorge Alvarez, 1967.

GÁLVEZ, Manuel. En el mundo de los seres reales. Buenos Aires: Hachette, 1955.

GARCÍA, Miguel Ángel. Peronismo: desarrollo económico y lucha de clases. Llobregat:

M. Acosta, 1979.

GLAUDIO, Ricardo e PILONE, Jorge. Estado y relaciones obrero-patronales en los

orígenes de la negociación colectiva en Argentina. Buenos Aires: Centro de Estudios

de Estado y Sociedad, CEDES, Série Estúdios Sociales, nº 5, 1976.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29359

360

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

GERMANI, Gino. “Clases populares y democracia representativa en América Latina”,Desarrollo Econômico, vol. 2, nº 2, 1962, pp. 23-43.

——. “El rol de los obreros y los migrantes internos en los orígenes del peronismo”,Desarollo Económico, vol. 13, nº 51, 1973, pp. 435-88.

GOBELLO, José: Diccionario lunfardo y otros términos antiguos y modernos usados enBuenos Aires, Buenos Aires: A. Peña Lillo Editor, 1975.

GODDENS, Anthony. “Class divisions, class conflict and citizenship rights”. In: Profilesand Critiques in Social Theory. Berkeley: University of California, 1982.

GOLDAR, Ernesto. “La literatura peronista”. In: CÁRDENA, Gonzalo e outros: Elperonismo, Buenos Aires: Ediciones Cepe, 1969.

IPOLA, Emílio: “Desde estos mismos balcones”. In: Ideología y discurso populista.Mexico: Folios Ediciones, 1982.

ISCARO, Rubens. Historia del movimiento sindical, vol. 1. Buenos Aires: EditorialFundamentos 1974.

JONES, Gareth Stedman. “Rethinking Chartism”. Languages of Class: studies in Englishworking class history. Cambridge: Cambridge University Press, 1984.

LITTE, Walter Little. “La organización obrera y el Estado peronista”. In: DesarrolloEconómico, vol. 19, nº 75, 1979.

——. “The popular origins of Peronismo”. In: ROCK, David (ed.). Argentina in theTwentieth Century. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 1975.

LUNA, Félix. Alvear. Buenos Aires: Libros Argentinos, 1958.——. El 45, crónica de un año decisivo. Buenos Aires: Editorial Brújula, 1969.MAFUD, Julio. La vida obrera en la Argentina. Buenos Aires: Editorial Proyeccion, 1976.——. Sociologia del peronismo. Buenos Aires: Editorial Américalee, 1972.MARECHAL, Elbia Rosbaco. Mi vida con Leopoldo Marechal. Buenos Aires: Editorial

Paidos, 1973.MARSHALL, T. H. Marshall. Citizenship and Social Class. Londres: Pluto Press, 1947.MATSUSHITA, Hiroschi. Movimiento obrero argentino, 1930-45: sus proyecciones en

los orígenes del peronismo. Buenos Aires: Editorial Siglo Veinte, 1983.MURMIS, Miguel e PORTANTIERO, Juan Carlos. “Crecimiento industrial y alianza

de clases en la Argentina, 1930-40”. In: Estudios sobre los orígenes del peronismo,volume 1. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1972.

——. “El movimiento obrero en los orígenes del peronismo”. In: Estudios sobre losorígenes del peronismo, vol. 1. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1972.

PAGE, Joseph. Perón: a biography. Nova York: Random House, 1983.PELLETIERI, Osvaldo. Enrique Santos Discépolo: obra poética, Buenos Aires: Todo es

Historia, 1976.PEÑA, Milcíades. El peronismo, selección de documentos para la historia. Buenos Aires:

Ediciones Fichas, 1973.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29360

361

O P E R O N I S M O E A C L A S S E T R A B A L H A D O R A , 1 9 4 3 - 1 9 5 5

PERELMAN, Ángel. Como hicimos el 17 de octubre. Buenos Aires: Ediciones Coyoa-cán, 1961.

PERÓN, Juan D. Doctrina peronista. Buenos Aires: Macacha Güemes, 1973.——. El pueblo quiere saber de qué se trata. Buenos Aires, 1957.POTASH, Robert. The Arm and Politics in Argentina, 1928-1945. Yirigoyen to Peron.

Stanford: Stanford University Press, 1969.PUIGGRÓS, Rodolfo. El peronismo: sus causas. Buenos Aires: Jorge Alvarez, 1965.PUJATO, Gustavo Sosa. “Popular culture”. In: DOCKHART, Ronald e FALCOFF, Mark:

Prologue to Perón: Argentina in depression and war. Berkeley: University of CaliforniaPress, 1975.

RAMOS, Jorge Abelardo. Historia del stalinismo en la Argentina. Buenos Aires:Ediciones del Mar Dulce [1969], 1974.

RAMOS, Mónica Peralta. Etapas de acumulación y alianzas de classe en la Argentina,1930-1970. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 1972.

ROCK, David. Politics in Argentine, 1890-1930: the rise and fall of Radicalism.Cambridge: Cambridge University Press,1975

ROTONDARO, Rubén. Realidad y cambio en el sindicalismo. Buenos Aires: EditorialPleamar, 1971.

ROXBOROUGH, Ian: “Unity and diversity in Latin American history”. In: Journal ofLatin American Studies, vol. 16, parte 1, 1984, pp. 1-26

Servicio Internacional de Publicaciones Argentinas: Emancipation of the Workers, BuenosAires, 1952, págs. 27-30.

SIGAL, Silvia e TORRE, Juan Carlos. “Reflexiones en torno a los movimientos laboralesem América Latina”. In: KATZAMAN, Rubén e REYNA, José Luis (orgs.). Fuerzade trabajo y movimientos laborales en América Latina. México, D.F., 1979.

TAMARIM, David. “The Argentine Labor Movement, 1930-40: a study in the originsof Peronism”. Albuquerque: University of New Mexico Press, 1985.

TAYLOR, Julie M. Eva Perón: the myths of a woman, Chicago: University of ChicagoPress, 1979.

THOMPSON, E. P. “Eighteenth-century English society”. Social History, 1978.TORRE, Juan Carlos. “La caída de Luis Gay”. Todo es Historia, vol. 8, nº 89, 1974.ULLA, Noemí. Tango, rebelión y nostalgia. Buenos Aires: Jorge Alvarez, 1967.WALDMANN, Peter. El peronismo, 1943-55. Buenos Aires: Editorial Sudamericana,

1981.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29361

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29362

CAPÍTULO 2 A revolução e o socialismo em Cuba:ditadura revolucionária e construção doconsenso

Daniel Aarão Reis*

*Professor titular de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF).Pesquisador do Núcleo de Estudos Contemporâneos (NEC) e do CNPq. Autor de As revolu-ções russas e o socialismo soviético. São Paulo: EdUnesp, 2003, e Uma revolução perdida.São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2007.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29363

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29364

A CONSTRUÇÃO DO CONSENSO (1959-1970)

Jamais poderemos nos tornar ditadores... quanto a mim, sou umhomem que sabe quando é preciso ir embora.Dentro da revolução, tudo; contra a revolução, nada.

FIDEL CASTRO

Quando a revolução cubana triunfou, nos primeiros dias de 1959, a eufo-ria, como nos dias das grandes vitórias que todos imaginam compartilhar,tomou conta da sociedade.

Uma ampla e heterogênea frente constituíra-se contra a ditadura san-guinária e corrupta de Fulgêncio Batista.1 Dela participavam, sob a lideran-ça do Movimento Revolucionário 26 de Julho (MR-26) e da pessoa de FidelCastro, afirmadas sobretudo a partir de 1957, os estudantes da Universida-de de La Habana — agrupados majoritariamente em torno do DiretórioRevolucionário dos Estudantes (DRE) e da Federação dos Estudantes Uni-versitários (FEU), os liberais de Prio Socarrás,2 os remanescentes filiadosao Partido Ortodoxo,3 democratas de todos os bordos, os comunistas doPartido Socialista Popular/PSP e até mesmo quadros civis e oficiais das For-ças Armadas vinculados ao regime, mas insatisfeitos com os desmandos daditadura.4 No fim, desde 1958, até mesmo nos EUA, entre as correntes li-berais,5 se fortalecera um movimento de apoio à revolução, o que, decerto,terá contribuído para a suspensão da ajuda militar a Batista, decretada pelogoverno dos EUA em meados daquele ano.6

A unanimidade dos processos históricos que eliminam inimigos podero-sos, comuns, parecendo diluir as diferenças sociais, políticas e culturais, não

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29365

366

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

fora obra do acaso, mas tessitura difícil e hábil, capaz de articular interessesdisparatados em torno de determinados objetivos programáticos comuns.7

Quais eram eles?A reafirmação da independência nacional, revogada na prática pelas

opções e práticas da ditadura de Batista, que havia escancarado as portasdo país aos interesses comerciais e financeiros estadunidenses. E mais, oque ofendia os brios cubanos, transformado o país num imenso puteiro,aberto a turistas estrangeiros e a todos os tráficos de drogas que possam serimaginados. Certo, e desde maio de 1934, havia sido revogada a infameEmenda Platt, incluída na Constituição de 1902, garantindo o direito deintervenção estadunidense, sempre e quando os interesses e a vida de seuscidadãos fossem considerados — pelos governos dos EUA — ameaçados.Entretanto, mesmo no quadro da política de boa vizinhança, de F. Roosevelt,e ainda depois, aprofundara-se a dependência econômica de Cuba, evi-denciada, entre outros fatores, pela venda, quase exclusiva, de seu grandeproduto de exportação, o açúcar, a preços preferenciais, ao mercado esta-dunidense, e pela compra de terras e bens industriais e imobiliários peloscapitais da mesma origem. Daí por que se tornara notória a importância dafigura do embaixador dos EUA em La Habana, chave crucial para toda sor-te de articulações e projetos políticos.

Não se tratava apenas de conseguir a emancipação econômica, mas derecuperar a dignidade, a cubanidad, o orgulho de pertencer a uma socieda-de livre para escolher seus destinos. Nesse sentido, a gesta épica das lutaspela independência (1868-1878 e 1895-1898) e as figuras históricas en-volvidas nelas, em particular a de José Martí, o Apóstolo da Independên-cia, eram acionadas com reverência e unção quase religiosas. Era necessárioretomar a luta, frustrada pelas circunstâncias históricas, dos grandes ante-passados. A revolução contra Batista o faria. Era seu compromisso essencial.8

O outro aspecto básico era o restabelecimento da democracia. Desde ainstauração da ditadura, todos, Fidel Castro principalmente, brandiam a ne-cessidade de recolocar em vigor a Constituição de 1940, considerada umareferência-chave na retomada do caminho da democracia e do revigoramentode instituições democráticas.9 Não gratuitamente, assumiram postos de rele-vância no primeiro governo revolucionário, constituído nos primeiros dias

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29366

367

A R E V O LU Ç Ã O E O S O C I A L I S M O E M C U B A

de janeiro de 1959, as figuras de José Miro Cordona e de Manuel Urrutia,10

liberais democratas, comprometidos com as liberdades democráticas.Reconquistar a independência e a democracia: a força desses dois eixos

conferia à vitória revolucionária de 1959 um claro caráter nacional-demo-crático. O que não quer dizer que fossem os únicos. Também muito se fala-va, desde o famoso discurso de Fidel Castro quando de seu julgamento, em1954, das reformas necessárias ao combate às gritantes injustiças sociaisexistentes em Cuba.11 Durante a luta guerrilheira, em 1957-1958, compro-missos nesse sentido seriam explicitamente assumidos pelo MR-26 e porFidel Castro e tiveram até, em certas áreas, um início de aplicação, como,por exemplo, medidas de reforma agrária, beneficiando camponeses queviviam nas sierras. Entretanto, tais referências e aspirações poderiam sercompreendidas no contexto da Constituição de 1940 e seria um evidenteanacronismo sustentar que a revolução, sobretudo em seus inícios, confe-risse ao programa de reformas sociais a mesma ênfase que atribuía à ques-tão nacional e ao restabelecimento da democracia na Ilha.

Assim, nos primeiros dias de 1959, em torno da reconquista da demo-cracia e da independência nacional, constituíra-se uma sólida frente políti-ca, aglutinando uma ampla maioria, ou francamente favorável, ou apenassimpática, ou ainda que passara a aceitar a situação dominante como algoinevitável, uma espécie de onda contra a qual não valia a pena resistir, porinexistirem os meios ou a vontade, ou ambos.

No entanto, sob essa aparente unidade, estavam em curso movimentose tendências que iriam cedo surpreender as gentes. Apontariam, como logose tornou evidente, para uma afirmação enfática da questão nacional, à custa,ou em detrimento, da organização de instituições democráticas. Um con-junto de circunstâncias e opções contribuiria nesse sentido.

Em primeiro lugar, a dinâmica autoritária, inerente aos movimentosnacionalistas. Pelo fato mesmo de apelar à constituição de uma identidadesuprema, por sobre especificidades de toda ordem — étnicas, sociais, cor-porativas, de gênero, entre outras — a referência nacional tende a exigir adiluição dos particularismos, considerados egoísticos, em proveito do forta-lecimento do todo nacional, figurado como generoso e sublime. Questionaras propostas nacionais, quando elas se avantajam, pode, muito rapidamen-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29367

368

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

te, transformar-se numa questão de impatriotismo, desqualificada como ato

de traição nacional.

Deve-se ressaltar também o caráter decisivo que assumiu a guerra de

guerrilhas. Não se trata de retomar a equivocada leitura da revolução feita

por R. Débray e avalizada, nos anos 1960, por Fidel Castro e Che

Guevara.12 Sem dúvida, a revolução cubana tornou-se vitoriosa em virtude

de um concurso complexo de movimentos e de formas de luta, mas seria

descabido não reconhecer o papel determinante que a ação das colunas

guerrilheiras, e de suas vitórias militares, assumiu na desagregação final,

política e moral, das Forças Armadas que defendiam a ditadura. Não gra-

tuitamente, quando se conseguiu a vitória, nos primeiros dias de 1959, a

instituição revolucionária, par excellence, era o Exército Rebelde, reco-

nhecido como tal pela imensa maioria da população e dos líderes políti-

cos, muitas vezes, malgré eux-mêmes.

Ora, por mais que as guerrilhas de caráter popular estimulem o exercí-

cio de um certo participacionismo político, sobretudo nas áreas libertadas,

ou em certos momentos específicos, quando os guerrilheiros e os simples

soldados da revolução são chamados a opinar, a discutir e, mesmo, a deci-

dir a adoção de certas medidas, ou à realização de certas operações, de modo

geral, como tendência universal, a guerra e a instituição do Exército, mes-

mo de exércitos rebeldes ou revolucionários, costumam fortalecer estrutu-

ras e procedimentos políticos centralistas, verticais, em suma, autoritários.

Nos momentos seguintes à vitória revolucionária, dissolvidas as insti-

tuições da ditadura, inclusive as Forças Armadas, surgiu, inconteste, a es-

trutura do Exército Rebelde, comandada por Fidel Castro. Desde então, o

país seria galvanizado por uma incontornável tendência militarista, muito

presente no vocabulário político. Foi sintomático que a revolução tenha assu-

mido uma cor, e ela já não era vermelha ou negra (as cores originais do

MR-26), mas verde-oliva. E os líderes da revolução tornaram-se jefes, os

dirigentes, comandantes. No topo, o comandante máximo, jefe supremo,

Fidel Castro.

Nas dobras desses símbolos e títulos, militares, militarizados, já se dese-

nhava a face sombria da ditadura.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29368

369

A R E V O LU Ç Ã O E O S O C I A L I S M O E M C U B A

Um outro aspecto, não menos importante, reforçou a tendência. É que,embora tendo sido empreendida por uma pluralidade de forças e de formasde luta, no curso mesmo do processo, as formas de luta urbanas (guerrilhaurbana, sabotagem, movimentos grevistas etc.) sofreram derrotas catastró-ficas. O assalto frustrado ao Palácio de Batista (março de 1957); a revoltaesmagada da base naval em Cienfuegos (setembro de 1957); a drástica der-rota da greve geral contra Batista (abril de 1958), todas essas experiências,embora de grande importância, foram, no entanto, literalmente esmagadas.

Debilitaram-se aí as organizações, as lideranças e os espaços políticosmais envolvidos nesses episódios. E, como consequência, perderam-se, afas-tadas e enfraquecidas politicamente, ou assassinadas, personalidades polí-ticas de primeiríssima importância, que, eventualmente, poderiam fazersombra, ou rivalizar, com os jefes das guerrilhas: José Antonio Echeverría eoutras importantes lideranças das guerrilhas urbanas de La Habana, vincu-ladas ao DRE, assassinados depois da ação de março de 1957; Frank País,figura chave do MR-26, em Santiago de Cuba, também assassinado em 1957;Faustino Perez, líder urbano do MR-26, afastado de posições importantesdesde o fracasso da greve geral de 1958.

Depois, e já em 1959, o afastamento de comandantes do próprio Exér-cito Rebelde descontentes com os rumos da revolução, mas impotentes parareorientá-los (Huber Mattos, Manuel Ray, entre outros), e o desapareci-mento trágico de Camilo Cienfuegos, em outubro daquele ano, o mais popu-lar líder guerrilheiro do MR-26 depois de Fidel Castro.13

Entre as grandes lideranças, sobrou apenas Ernesto Che Guevara, que,na época, contudo, era um decidido defensor do socialismo soviético, damilitarização da revolução e das tendências favoráveis à instauração de umaditadura revolucionária.14

O processo que se seguiu, até 1970, só fez reforçar essas tendências. Astentativas contrarrevolucionárias para desestabilizar o novo governo, da in-vasão de 1961 na Baía dos Porcos, passando pelas guerrilhas rurais (Escam-bray), às sabotagens urbanas e aos bombardeios, até 1965, e mais as tentativasde assassinato dos líderes, cometidas, em particular, contra Fidel Castro; acrise dos mísseis, em outubro de 1962; as maciças migrações de desconten-tes, os chamados gusanos (vermes). Numa atmosfera dessas, cada vez mais

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29369

370

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

se tornava difícil defender posições intermediárias ou debater alternativasàs polarizações extremas.15

No contexto do confronto aberto entre os EUA e a nação revolucionáriaque se erguia, desencadeou-se uma dialética exasperante de pressões, avan-ços, bloqueios e retaliações empreendidas pelos governos de Eisenhower eKennedy para destroçar o novo regime. Em contraposição, a unidade doscubanos, humilhados e ofendidos durante décadas, surgia como algo quaseimposto pelas circunstâncias.

Surpreendendo o mundo, David enfrentava Golias e, revivendo o com-bate bíblico, e apesar das perdas, ganhava, ou melhor, sobrevivia. As duasDeclarações de Havana,16 gritos de guerra contra o capitalismo internacio-nal e o imperialismo, e as ondas guerrilheiras nas Américas ao sul do RioGrande, em determinado momento, pareceram ser capazes de quebrar oisolamento internacional da Cuba revolucionária, um processo épico, deenfrentamento e de guerras, em que as propostas eram ofensivas, não setemendo, se fosse o caso, a hipótese de eventuais catástrofes e apocalipses.17

E assim, uma revolução nacional-democrática, plural em suas origens edesdobramentos, tornou-se única, quase monolítica. A opção pelo socialis-mo jogou aí também um papel-chave, considerando-se a dinâmica do mo-delo soviético, baseado na estatização da vida social e econômica, no planocentralizado e na ditadura política.18 Também pesaram, evidentemente, asfrágeis tradições das instituições democráticas cubanas, marcadas por jogosoligárquicos, corrupção galopante, eleições fraudadas e desmoralização dospolíticos profissionais.

Condicionada por essas circunstâncias, emergiu a ditadura revolucioná-ria, baseada, politicamente, no partido único e na liderança pessoal, incon-testável, do comandante en jefe.19 Bafejado pelo seu imenso talento e tambémpelo apagamento de rivais potenciais, projetou-se a figura do ditador: FidelCastro Ruz. Empalmado o poder, ele não mais o deixaria. Mesmo porque,em torno dele, constituiu-se, sustentando-o, um sólido consenso.20

Aos primeiros anos verdadeiramente épicos, da vitória revolucionária àcrise dos mísseis, entre 1959-1962, seguiu-se, até 1970, um período difí-cil: Cuba rompera com a dependência histórica em relação aos EUA, masdeslizava, quase inexoravelmente, para uma outra dependência, da URSS.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29370

371

A R E V O LU Ç Ã O E O S O C I A L I S M O E M C U B A

Muito rapidamente, as ilusões românticas, algo ingênuas, do internacio-nalismo proletário decantaram-se. Che Guevara, que embarcara de corpo ealma nessas ilusões, cedo compreendeu os limites e as servidões da aliançacom a URSS.21 Fidel e seu irmão Raul tiveram disso uma visão mais realista,pragmática, e tenderam a considerar inevitável um certo grau de depen-dência. O importante seria preservar margens de autonomia, lutando sem-pre para alargá-las.

Uma grande chave nesse sentido residia num processo de ampliação darevolução em escala mundial, particularmente na América Latina.

Com esse propósito, e aí ainda havia acordo entre Che e Fidel, tratava-se de fazer o possível para criar dois, três e outros Vietnãs, como gostavade dizer o Che. A fundação da Organização de Solidariedade aos Povos daÁsia, África e América Latina (Ospaaal), em Havana, em 1966, constituía,na prática, um esboço de uma verdadeira internacional revolucionária dospovos terceiro-mundistas. Em cada grande região, seria necessário estruturaruma organização específica. No ano seguinte, em 1967, também em Havana,fundou-se a Organização Latino-Americana de Solidariedade (Olas), reu-nindo os movimentos revolucionários alternativos da região que já tinhamlançado ou estavam se preparando para lançar guerrilhas populares na áreade Nuestra América.22

No entanto, por inadequação das formas de luta, ou porque os governosda região, apoiados agressivamente pelos EUA, já não se deixavam sur-preender, ou por escassear dinâmica social revolucionária, ou pela conjuga-ção de todas essas circunstâncias, os projetos revolucionários não vingaram,foram derrotados, alguns ainda em formas embrionárias, abortados. A der-rota da tentativa do próprio Che na Bolívia, em 1967, seguida por seu as-sassinato, em 9 de outubro daquele ano, foi um dobrar de sinos.23

Cuba estava isolada. E permaneceria isolada.Mas a URSS estava consciente da especificidade cubana. E tinha grande

interesse em mantê-la no campo socialista, sem transformar a Ilha numademocracia popular nos padrões da Europa Central. Em toda uma primei-ra fase, ao longo dos anos 1960, até tendeu a suportar com estoicismo osdiscursos revolucionários e as críticas dos cubanos, porque, em certa medi-da, eram percebidos como um tônico revitalizante para a acomodada socie-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29371

372

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

dade soviética. Entretanto, as compras maciças de açúcar cubano, o forne-

cimento de petróleo e de todo tipo de insumos e mercadorias, e de armas emunição, a preços baixos ou gratuitamente, haveria que ter contrapartidas.

A formação do Partido Comunista Cubano (PCC), em 1965, já fora um

sinal, assim como a crescente importância nos altos postos do aparelho de

Estado de ex-dirigentes do PSP, ou de partidários de uma aliança sem reservascom a URSS.24 Mais tarde, o discurso de apoio à invasão da Tchecoslováquia

pela URSS e por seus aliados, em agosto de 1968, feito por Fidel Castro,

assinalou para muitos a adesão definitiva à órbita soviética.25

Contudo, ainda haveria uma última tentativa no sentido de manter aber-tas as chances da autonomia: a Gran Zafra, em 1970, com a qual se compro-

meteu o próprio Fidel Castro, quase de forma obsessiva, no seu voluntarismo

habitual. Em sua visão, a meta das 10 milhões de toneladas, uma vez alcan-çada, permitiria ao país ganhar divisas suficientes para, no mínimo, estabe-

lecer termos razoáveis de incorporação à aliança soviética.

A aposta foi perdida novamente.

Nada mais restava senão a integração no campo socialista nos termos esegundo as condições propostos pela URSS.

A PROSPERIDADE SOB A SOMBRA SOVIÉTICA:

A CONSOLIDAÇÃO DO CONSENSO (1970-1985)

É mais importante acabar com a fome, a pobreza, as doenças e odesemprego do que realizar eleições. De que adianta ter liberdade edireitos se não se pode usufruir dessa liberdade e desses direitos?

FIDEL CASTRO

Em 1972, Cuba ingressou oficialmente no Conselho de Assistência Eco-

nômica Mútua (Came), uma espécie de mercado comum socialista, dirigi-

do e regido pela URSS. Doravante, na condição de país participante, a Ilhase subordinaria à divisão internacional do trabalho ditada pelos soviéticos.

A dependência agora se consolidaria e se acentuaria. Mas os resultados, ao

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29372

373

A R E V O LU Ç Ã O E O S O C I A L I S M O E M C U B A

menos a curto prazo, não seriam nem um pouco decepcionantes, pelo me-nos para a maioria do povo cubano.

Com efeito, segundo dados da Cepal, entre 1950 e 1971 Cuba regis-trou um crescimento médio anual do produto bruto de 3,4%. Ora, entre1972 e 1985, anos de ouro de prevalência do modelo de integração ao mun-do soviético, a taxa média anual de crescimento quase que duplicou, pas-sando para confortáveis 6% ao ano.26

Uma análise dos dados do comércio exterior também é muito ilustrativa,registrando um crescimento sustentado das importações e das exportações,sobretudo a partir dos primeiros anos da década de 1970, sendo relevantesublinhar que os déficits são permanentes e, de modo geral, em ascenso.Na segunda metade dos anos 1970, ainda há zigue-zagues, mas o déficit seamplia de modo alarmante desde então, atingindo picos de mais de 2 bi-lhões de dólares por ano, chegando a alcançar, em fins dos anos 1980, maisde 2,5 bilhões de dólares. Nessa época, Cuba acumulava uma dívida de 23,555bilhões de dólares.27 Ou seja, o país estava sendo financiado pela URSS eseus aliados.

Milhares de técnicos soviéticos e de outras procedências, mas do camposocialista, civis e militares, afluíam para assessorar e aconselhar.

Na economia, em larga medida estatizada, ou sob controle do Estado,primava a Junta Central de Planificação (Juceplan) e o Sistema de Direçãoe Planificação da Economia (SDPE) — o triunfo do modelo soviético adap-tado às realidades dos trópicos, ou, segundo alguns críticos, adaptando ostrópicos à lógica do referido modelo.

No plano político, uma nova Constituição, aprovada em 1976, estabele-cia um sistema rigoroso, também de padrão soviético, encabeçado pelo Par-tido Comunista Cubano (PCC), único, articulando organizações populares,as correias de transmissão (Conselhos de Defesa da Revolução — CDRs, sin-dicatos de trabalhadores, juventude, mulheres etc.) e o chamado Poder Popu-lar, assembleias eleitas, piramidais, dos distritos ao plano nacional, com amplospoderes formais mas, na prática, estritamente controladas pelo PCC. Assim,nas várias circunscrições, sempre podia haver diversos candidatos, e nãonecessariamente vinculados ao PCC, mas passavam todos pela sua triagem, esem sua aprovação não podiam se apresentar ao sufrágio popular.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29373

374

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Não se subestime, contudo, o nível obtido de participação popular. Nabase da sociedade, e também nos níveis intermediários, uma série de inicia-tivas era estimulada, garantindo um participacionismo expressivo para adiscussão e resolução de problemas locais e/ou setoriais, estimulado, mascontrolado e enquadrado, pelas organizações de massa e pelos órgãos dopoder popular.

É evidente que não se podia exercitar aí, nem seria tolerado, o ques-tionamento das premissas da revolução, ou das orientações centrais doEstado ou do PCC, ou ainda, da liderança política de Fidel Castro. Se al-guém ousasse fazê-lo, mesmo que indiretamente, seria considerado fora da,ou contra a, revolução. No entanto, se se partisse desses postulados, se fos-sem aceitos, um amplo leque de considerações críticas e propostas de mu-dança em padrões locais ou setoriais de organização era perfeitamenteadmissível, e admitido, gerando-se até em torno delas, e não raro, amplose acalorados debates.

Os altos índices de desenvolvimento econômico e as políticas radicaisde redistribuição de renda permitiram consolidar um estado de bem-estarsocial que as profundas reformas empreendidas logo após o triunfo da re-volução, entre 1959 e 1962, haviam almejado construir. As leis de reformaagrária (1959 e 1960), a reforma urbana, a construção de sistemas gratui-tos de educação e saúde e a formação acelerada de quadros em todos osníveis produziram resultados que suscitaram, e até hoje suscitam, respeitoe admiração.

A taxa de analfabetismo das pessoas maiores de 10 anos, comparadosos censos de 1953 e 1981, baixara de 24% para 4%.28 O índice de desem-prego (sem contar o trabalho informal e o subemprego) caíra de 20%, em1958, para 8%, em 1989. A taxa de mortalidade infantil reduziu-se de maisde 60 a pouco mais de 11 por mil nascidos vivos, em cerca de 30 anos,entre 1958 e 1989. Na proporção de médicos e enfermeiras por cem milhabitantes, Cuba aparecia em primeiro lugar no concerto latino-americano,longe na frente dos demais países.29 Na área educacional, eram tambémmuito elevadas as taxas brutas de matrículas em todos os níveis, com des-taque para os de ensinos fundamental e médio.30 Em fins do século XX, eapesar da terrível crise dos anos 1990, a esperança de vida ao nascer alcan-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29374

375

A R E V O LU Ç Ã O E O S O C I A L I S M O E M C U B A

çava 76 anos, um honroso terceiro lugar na América Latina, inferior ape-nas às situações da Costa Rica e de Barbados.31 A miséria então pratica-mente desaparecera nas cidades e mesmo nas zonas rurais.32 E o quadro eraconfirmado pela boa posição assumida por Cuba no Índice de Desenvolvi-mento Humano (IDH) e no Índice da Pobreza Humana (IPH), reconheci-dos internacionalmente para aferir as condições sociais das populações emtodo o planeta.33

Ainda haveria de se referir uma outra dimensão em que o padrão sovié-tico também triunfara e que aparecia como expressão dos avanços do estadode bem-estar social e forte motivo de orgulho nacional: os esportes, massi-ficados, cujos espetáculos eram oferecidos gratuitamente, projetariam Cubainternacionalmente, em particular nas Américas, onde o país, embora depequena população, passara a ocupar sempre o segundo lugar, depois dosEUA, nos Jogos Pan-Americanos.

Os anos soviéticos seriam assim, em Cuba, de apogeu das políticas pú-blicas sociais e de distribuição de renda, expandindo e consolidando o con-senso conquistado ainda na primeira década da revolução triunfante.

Havia sombras, sem dúvida. Não há jardins sem espinhos. Assim, e des-de o desaparecimento de Che Guevara, e mesmo antes, um conjunto deintelectuais, dentro e fora de Cuba, se afastava do regime, adotando atitu-des críticas. Carlos Franqui, o dinâmico diretor da Rádio Rebelde na SierraMaestra e, depois, editor de Revolución, um dos mais prestigiados jornaisda revolução, em sua fase épica, partiu para um exílio voluntário, desdemeados dos anos 1960. Pela mesma época, o mesmo aconteceria comGuillermo Cabrera Infante, laureado escritor cubano. Entre os intelectuaisalternativos, crescia o desencanto com aquela revolução que fora, e prome-tera ser, em certo momento, um outro caminho, diferente dos propostospelos comunistas soviéticos e chineses. O fenômeno se cristalizaria com oaffaire em torno de Heberto Padilla, em começos dos anos 1970. Poeta pre-miado, até em Cuba, conhecido internacionalmente, passou a ser perseguido,foi preso em março de 1971 e condenado por escrever... versos contrar-revolucionários (sic). O pior viria mais tarde, quando o poeta trocou a re-conquista da liberdade por uma infame autocrítica, fazendo lembrar, comoobservaram muitos intelectuais que denunciaram o processo, os sinistros

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29375

376

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

anos soviéticos sob Stalin.34 Eram os primeiros dissidentes, também um ter-mo cunhado na União Soviética e muito simbólico: numa sociedade onde éimpensável a oposição, quem está contra não se opõe, dissente.

Com um caráter de massa, um outro movimento abalaria o prestígio dogoverno: a migração maciça, pelo porto de Mariel, entre abril e outubro de1980, de cerca de 130 mil pessoas. Embora autorizada pelo governo, ex-primiu desconfortos e demandas não atendidas. Não adiantava insultar osque partiam como gusanos e escória, eles eram um atestado vivo de quealgo não ia bem, pelo menos para todos os cubanos.

Havia sombras, portanto, mas não chegaram a abalar o consenso con-solidado.

Esse seria ainda mais reforçado com as expedições revolucionárias afri-canas. Em meados dos anos 1970, Cuba voltaria a se notabilizar internacio-nalmente pelo envio de tropas e assessores a um sem-número de paísesafricanos. Destacaram-se aí o auxílio prestado ao MPLA em Angola, inicia-do ainda em 1975, e que se estenderia por mais de uma década, salvandoliteralmente a independência do país, recém-conquistada, e infligindo der-rota político-militar desmoralizante à até então considerada invencível Áfricado Sul; e a ajuda à revolução etíope, liderada por oficiais do Exército local,que, num assomo voluntarista, e herético, segundo todas as ortodoxiasmarxistas-leninistas, resolveram proclamar uma revolução socialista (1977-1978). Fidel Castro estava convencido de que a África era então o elo maisfraco do imperialismo. De forma autônoma, no caso angolano, ou em aliançaestreita com a URSS, no caso etíope, as intervenções africanas aumenta-vam o prestígio de Cuba e de seu líder máximo — não gratuitamente, FidelCastro foi eleito presidente do Movimento dos Não Alinhados em 1979.35

No contexto latino-americano, vários países restabeleciam relações diplo-máticas e comerciais com Cuba. Sucediam-se em Havana líderes políticos detodo o mundo. Nos próprios EUA, viveu-se um momento de distensão, soba presidência de Jimmy Carter (1976-1980), abrindo-se os chamados escri-tórios de interesses, verdadeiras embaixadas, de ambos os países nas respectivascapitais. Até mesmo entre os exilados cubanos em Miami surgiam correntesde distensão, estimuladas por uma relativa liberalização dos voos entre osEUA e Cuba para propiciar os encontros de famílias apartadas há décadas.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29376

377

A R E V O LU Ç Ã O E O S O C I A L I S M O E M C U B A

Assim, e apesar das sombras, o consenso que a revolução cubana conse-guira construir parecia ter alcançado seu apogeu.

OS ANOS DE CRISE: O CONSENSO SUBMETIDO À PROVA (1986-...)

Nós estamos com Fidel, o que ele disser, nós fazemos! Até a vitó-ria, sempre!

ALMA GUILLERMOPRIETO

Há indicações de que, desde os começos dos anos 1980, os cubanos já

haviam recebido advertências dos soviéticos no sentido de que a prosperi-

dade subsidiada a fundo perdido não poderia durar indefinidamente.36 Na

verdade, duraria ainda, e largamente, até o fim daquela década, mas a cons-

ciência crescente a respeito dos descalabros e dos colossais desperdícios faria

com que, já em abril de 1986, fosse tentada uma outra política: a campanha

de retificação, quando Fidel Castro se permitiu criticar de forma contunden-

te, entre outros desvios, o burocratismo, os egoísmos e a corrupção.37 Alguns

responsáveis, mais comprometidos com o modelo soviético, como Hum-

berto Pérez, dirigente da Junta Central de Planejamento (Juceplan), desa-

pareceram de cena, desempenhando o papel de bodes expiatórios.

A progressão da Perestroika e as metamorfoses de M. Gorbatchev nada

auguravam de bom. O livro do dirigente soviético, Perestroika, best-seller

em todo o mundo, foi censurado em Cuba. Demarcando-se cada vez mais

da URSS, Fidel Castro passou a advertir o povo cubano, às vezes por meio

de comícios públicos, que, no caso de uma eventual desintegração da URSS,

Cuba se manteria firme na opção socialista.

Ninguém, no entanto, poderia prever que o fim da URSS estivesse tão

próximo e a amplitude dos efeitos catastróficos que disso decorreriam para

o país.

Foi uma débâcle. Segundo os especialistas, pior do que a crise de 1929 e

mais profunda do que a crise provocada pelo rompimento com os EUA nos

começos dos anos 1960.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29377

378

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

O produto interno bruto, que, em contraste com os resultados dos anos1980, crescera apenas 1,5%, em 1989, decresceu 2,9%, em 1990. Foi ne-gativo outras vezes em 1991 e 1992 (–9,5% e –9,9%), para chegar ao piorano, em 1993 (–13,6%).

O fundo do poço.Desde 1994, uma lenta retomada, alcançando-se, nos anos 1990, bons

resultados apenas em 1996 (+7,6%). A segunda metade dessa década, ape-sar de ligeira melhoria, ainda seria marcada por um grande marasmo.

Interrompidas as relações com o mundo socialista, desfeito o Came, foino setor externo que se registrou o maior baque. Na relação dos preços dointercâmbio, a partir de uma base = 100, em 1989, houve uma queda para69,9 em 1991 e para 51,5 em 1992. Em 1998, o índice continuava em 66,8.38

A evolução das contas externas de Cuba, de 1950 a 1998, oferece umoutro ângulo para a análise da crise. O intercâmbio total com o exterior(exportações + importações) que, em 1960, atingira 1,1 bilhão de dólares,com um saldo de 28,4 milhões de dólares, ultrapassara, desde o início dosanos 1980, o patamar dos 10 bilhões de dólares, com saldo negativo cres-cente, é verdade, como já referido. Atestavam o vigor da economia socialistacubana... e o começo do auge da festa do desperdício. Em 1989, o patamarsaltou para seu limite, 13,5 bilhões de dólares, com um saldo negativo de2,7 bilhões de dólares. A queda foi brusca. Em 1993, o total do intercâm-bio baixara para 3,3 bilhões de dólares, mantendo-se um saldo negativo de851,5 milhões de dólares.39

O grande cliente, aliado e sócio quase desaparecera do mapa. Em 1990,Cuba exportara produtos para a então URSS no valor de 3,2 bilhões de pe-sos, mas em 1993 esse valor caíra para apenas 400 milhões de pesos.40 Quan-to às importações, tinham despencado de um valor de cerca de 5 bilhões depesos, em 1990, para insignificantes 86 milhões de pesos, em 1993.41

Enquanto, por toda a parte, sustentava-se que era iminente a desagre-gação do regime e o fim do longo reinado de Fidel Castro, como fora ocaso na Europa Central e na URSS, o governo definia políticas inovado-ras, à altura dos desafios da crise, o chamado “período especial em tem-pos de paz”: abertura controlada para os capitais externos, dolarizaçãoparcial da economia, admissão da iniciativa privada numa série de seto-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29378

379

A R E V O LU Ç Ã O E O S O C I A L I S M O E M C U B A

res, liberdade para o trabalho autônomo, estímulos para as cooperativas

e mercados privados agrícolas.

Os governos dos EUA não dariam descanso, apertando as cravelhas: as

leis Torricelli e Helms-Burton, de 1992 e 1996, previam uma série de res-

trições suplementares ao comércio, aos investimentos, às remessas de dóla-

res e até às viagens de cidadãos estadunidenses a Cuba, ameaçando até

empresas de outros países, no caso de tentarem estabelecer negócios com

ex-empresas estadunidenses expropriadas pela revolução nos anos 1960.

A Ilha sofria uma situação comparável a uma guerra, ou a uma catástro-

fe natural de grandes proporções. Desemprego, escassez de todo tipo de

bens, marginalização, fome, desespero, perspectivas de abandonar de qual-

quer maneira o país, como foi o caso em 1994, quando se esboçaram mo-

vimentos sociais de descontentamento, rapidamente controlados.42

Mas o improvável aconteceu.

Nem Fidel Castro morreu, nem foi derrubado. E o regime sobreviveu à

tempestade.

O consenso suportou a prova da crise.43

Para isso foi peça-chave, sem dúvida, o reacionamento das referências

nacionalistas revolucionárias. Nunca de todo abandonadas, mas colocadas

num plano secundário durante os anos dourados soviéticos, voltariam ago-

ra ao centro do palco, iluminadas com força máxima, para cumprir o papel

de unir, coesionar e mobilizar a opinião pública, mantendo o consenso. Em

não pequena medida, e mais uma vez, a intransigência dos sucessivos go-

vernos estadunidenses e suas políticas restritivas e sectárias contribuiriam

para o restabelecimento da dialética da antiga luta de David e Golias, pro-

porcionando ao governo cubano as melhores condições para o desenca-

deamento de campanhas nacionalistas.

Por outro lado, soube o regime também manter, no essencial, os inves-

timentos sociais, distribuindo equanimemente os sacrifícios impostos pelas

circunstâncias. O exame dos indicadores sociais, mesmo nos difíceis anos

1990, evidencia a preocupação de evitar, a qualquer custo, a degradação

dos serviços públicos essenciais.44 Pesquisas de opinião pública, empreendi-

das nos anos 1990, revelaram, et pour cause, o alto grau de prestígio dos

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29379

380

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

serviços públicos sociais gratuitos, associados com razão ao regime revolu-cionário, entre 75% e 80% da população.45

Finalmente, o participacionismo voltaria a ser estimulado, incentivando-se a discussão e a aprovação das novas medidas legais, implementadas nosanos 1990, em assembleias abertas, controladas e conduzidas pelos mili-tantes comunistas. Os resultados foram positivos. Em uma pesquisa priva-da, contratada pelo governo em eleições realizadas em 1992, pode-se aferiro considerável apoio político mantido pelo governo, em torno de 65% doseleitores, apesar da erosão de seu prestígio, em virtude dos sofrimentoscausados pela crise.46

Em fins dos anos 1990, início do século XXI, o país parecia engajadonovamente numa rota ascendente, o que vem se confirmando em anos re-centes, com a recepção de 2 milhões de turistas em 2005 (para uma popula-ção total de cerca de 11 milhões de habitantes) e um crescimento de 11,6%neste mesmo ano, o maior em toda a história do socialismo em Cuba.

Na economia, a grande novidade é que a crise gerou, afinal, a diversifi-cação da produção, que fora tão desejada por Che Guevara e pela maioriados revolucionários nos anos 1960. Desde 1995, o turismo ultrapassou oaçúcar como gerador de divisas. Ao mesmo tempo, tem decrescido substan-cialmente a mão de obra ocupada com a cana-de-açúcar e sua colheita etransformação.

Mas consenso não é unanimidade.Em termos políticos, surgiram em Cuba, e também em Miami, novas ten-

dências dissidentes que tentaram criar uma terceira margem, entre a in-transigência dos governos estadunidenses e seus aliados raivosos, os chamadosexilados anticastristas, e o nacionalismo ditatorial do regime, lutando paranão ser instrumentalizados por qualquer dos dois lados. O chamado ProjetoVarela, lançado em maio de 2002, sob liderança de Oswaldo Payá Sardiñas, éo mais articulado e interessante nesse âmbito.47 Propõe a democratização doregime, mantidas as conquistas sociais e a independência nacional.

Os dissidentes almejariam ser reconhecidos como opositores. Mas o go-verno não lhes faz a vida fácil, reprimindo-os em moldes soviéticos, alter-nando repressão dura e liberalidades imprevistas, ambas marcadas peloarbítrio puro e simples, que manda prender e/ou soltar sem se deixar cons-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29380

381

A R E V O LU Ç Ã O E O S O C I A L I S M O E M C U B A

tranger por impedimentos ou restrições de ordem legal.48 Sequer reconhe-ce o caráter político da luta que travam, acusando-os de gusanos e agentesdo imperialismo. Como seus congêneres que lutavam na ex-URSS, os dissi-dentes, embora contem com um apoio difuso na sociedade e no exterior,têm um deserto pela frente. Só o futuro dirá se o conseguirão atravessar.

FIDEL CASTRO: CRIATURA OU CRIADOR DO CONSENSO

A emoção de estar na Plaza com o El Caballo em pessoa, todos jun-tos, prestando atenção em seus pensamentos; (...) Todos a la Plazacom Fidel! Eu também, pensei, grata por haver aterrissado em talhistórico momento e lugar. Eu sou todo mundo agora, também.

ALMA GUILLERMOPRIETO

O povo e eu somos ditadores

FULGÊNCIO BATISTA

Atravessando os anos 1990 e pontificando ainda nesta primeira décadado século XXI, a figura incontornável de Fidel Castro merece análise espe-cífica: teria sido ele fator essencial para a construção do consenso em tor-no do regime nas diferentes fases de sua evolução? Ou mera expressão deum processo social mais profundo?

Sua longa carreira, sem dúvida, mais do que ao talento pessoal, inegável,deve-se às metamorfoses que soube incorporar, segundo as suas circuns-tâncias e as da revolução da qual se tornou o melhor intérprete. Nesse sen-tido, sempre procurou estar atento às demandas da sociedade, estabelecendocom a mesma uma sintonia fina.

Começou liderando uma revolução nacionalista e democrática, conde-nando as ditaduras de todos os bordos, de direita e de esquerda, e foi capazde articular ampla e heterogênea frente política com propósitos vagos, sus-cetíveis de mobilizar unanimidades. O triunfo veio em 1959. O líder, acla-mado por todos, ou quase todos, surgia como a própria encarnação da luta

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29381

382

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

de um povo pela reconquista de sua dignidade e pela afirmação das liber-dades democráticas.

Na sequência, comprometeu-se com um processo revolucionário inter-nacional, radical, alternativo, baseado em guerrilhas populares. Nem haviaainda sido derrotada a aventura do Che, que encarnou melhor do que nin-guém esses novos propósitos, e já Fidel encontrava-se amarrando-se, eamarrando Cuba, numa aliança complexa com a URSS. Transmudou-seentão mais uma vez, figurando-se agora como um marxista-leninista convictoe nessa posição seria um fiel aliado dos soviéticos, calando críticas e apro-vando os desmandos do grande aliado, como as invasões na Tchecoslováquia,em 1968, e no Afeganistão, em 1979. Grande parte do povo o acompa-nhou nesses zigue-zagues: se Fidel é socialista, nós também o somos, dizia-se nas ruas, conforme flagrou nos anos 1960 um arguto analista dos“guerrilheiros no poder”.49 Com sua oratória poderosa, tediosa, para osmais críticos, mas envolvente para as grandes maiorias, Fidel, sendo leva-do, parecia também, às vezes, levar a sociedade para rumos que nem todoscontrolavam.50

No período de maior dependência em relação à URSS, manteve-se, noentanto, alerta, pronto a desempenhar o papel de líder de propostas tercei-ro-mundistas, num momento em que a própria noção de Terceiro Mundoestava se esmaecendo. As expedições revolucionárias africanas, em Angolae na Etiópia, o levariam novamente, no contexto do Movimento dos NãoAlinhados, de que se tornou presidente, em 1979, ao centro de articula-ções alternativas, embora de alternativo, formalmente, ele nada tivesse,dados seus vínculos, estreitos, com o Came e a URSS. Para as grandes maio-rias, essa foi a melhor fase, de plena vigência do estado de bem-estar social.Além disso, a aventura africana fazia vibrar a corda épica daquele povoousado, investindo-o de um orgulho nacional justificado: a pequena Ilha sefazia grande no mundo.

Nos anos 1990, diante da crise, Fidel soube novamente encontrar cami-nhos heterodoxos, embora reivindicando a ortodoxia socialista. Readquiriuentão a identidade de líder nacionalista e voltou a acionar a figura míticade Martí, como o fizera antes de chegar ao poder, nos longínquos anos1950, estimulando o participacionismo localista e setorialista, cortando

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29382

383

A R E V O LU Ç Ã O E O S O C I A L I S M O E M C U B A

cabeças indesejadas, demarcando-se dos fracassos como se fossem alheios

à sua responsabilidade.

Evoluiu com desenvoltura em âmbitos diversos, muitas vezes hostis,

reaproximando-se de ex-inimigos e se afastando de ex-amigos, como fez,

por exemplo, com os cristãos, antes condenados, acolhidos desde os anos

1990, para os quais se abriram as portas do próprio Partido Comunista

Cubano, agora partido laico.51 Na esteira dessa metamorfose, recebeu o papa

conservador João Paulo II, com quem fez, para espanto mundial, um

improbabilíssimo dueto anticapitalista, ovacionados, os dois, por multidões

entusiasmadas.Manteve-se no poder por meio de uma ditadura severa, não hesitando

em condenar à morte velhos camaradas, em obscuros processos, comoArnaldo Ochoa.52 Ou a longas penas de cárcere, às vezes sem processo algum,ou por meio de simulacros de processos, toda a sorte de oposicionistas, oschamados dissidentes, como atestam as repetidas, embora mal ouvidas, ouregistradas, denúncias das organizações internacionais que monitoram o res-peito pelos direitos humanos. Foi de muita valia aí a escassa tradição de-mocrática do país. As grandes maiorias provaram estar mais interessadasnas glórias nacionais e no bem-estar social do que na observação escrupu-losa dos direitos de protesto das minorias, característica essencial dos regi-mes democráticos.

Herdeiro conspícuo da tradição nacional-estatista em terras de Nuestra

América, afastou-se da mesma, demarcando-se dela formalmente, mas

construiu um Estado mais poderoso do que nenhum político dessa tradi-

ção jamais imaginara. E se associou ao Estado de maneira tão íntima que

se tornou dele indissociável, uma ambição que raros líderes nacionalistas

lograram realizar.

Conseguiu, apesar disso, e quase sempre, demonstrar uma notável ca-

pacidade de seduzir as pessoas, especialmente intelectuais, que, magnetiza-

dos, suspenderam não raro sua capacidade de análise, esquecendo-se das

virtudes do pensamento crítico e se prostraram diante do comandante en

jefe como as rãs da fábula diante do rei.53

Criatura ou criador?

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29383

384

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Criatura e criador. O consenso o construiu como líder inconteste, ocaballo, reinando como um gladiador na praça, as massas parecendo ferasdomadas, dóceis e submissas ao seu Verbo,54 que, no entanto, não fazia maisdo que dizer o que elas queriam realmente ouvir. Nessa simbiose, povo elíder perdiam o que há de mais caro no exercício das faculdades humanas:a autonomia, transmitindo a aparência enganosa de que o consenso era umaexclusiva construção de Fidel Castro. Seus inimigos, paradoxalmente, acres-centar-lhe-iam essa fama, ao se referir a ele de forma obsessiva, ressentida,mergulhados, apesar de si mesmos, na problemática clássica dos renegados.55

De tanto se transformar, o homem virou um símbolo, quase desencar-nado, embora encarne do modo mais vivo a revolução que procurou sem-pre monopolizar e que ajudou a forjar como uma ditadura revolucionária.E se fez assim um ditador amado. Para glória sua e miséria das gentes, darevolução e de si mesmo.

Notas

1. A figura de Fulgêncio Batista merece um registro específico. Liderança de raízespopulares, sargento do Exército, mestiço, emergiu na revolução de 1933 quederrubou uma outra ditadura, de Gerardo Machado (1927-1933). Ascendeu demodo fulminante, política e militarmente. Figura carismática, dominaria a vidapolítica cubana até 1959, ora como homem forte, “fazedor de presidentes” (1934-1940), ora como presidente eleito democraticamente (1940-1944), quando fezaprovar uma constituição liberal que reconhecia os direitos sociais dos trabalha-dores, governando, em certo momento, com dois ministros comunistas; ora comoeminência parda e principal chefe militar (1944-1952). Voltou ao poder pormeio de um golpe, uma quartelada, tipicamente latino-americana, em 1952. Suaspromessas de restauração democrática (eleições de 1954 e 1958) nunca passaramde um simulacro repudiado por todas as forças políticas, deslizando o governo,assim, e progressivamente, para uma ditadura sem disfarces. Para a visão construídapelos revolucionários sobre a ditadura de Batista, antes da vitória, a melhor fon-te é FRANQUI, Carlos. Journal de la révolution cubaine. Paris: Seuil, 1976.

2. Prio Socarrás foi presidente eleito entre 1948-1952. Seu governo, imerso emescândalos de corrupção, contribuiria fortemente para desmoralizar as referênciasdemocráticas, ensejando pretextos para o golpe de Batista, em 1952. Consta que

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29384

385

A R E V O LU Ç Ã O E O S O C I A L I S M O E M C U B A

veio do esquema de Socarrás o financiamento para a compra do pequeno iateGranma (diminutivo carinhoso de Grand Mother, Vovó), que levou os revolu-cionários, sob liderança de Fidel Castro, ao desembarque de dezembro de 1956,quando teve início a saga das guerrilhas da Sierra Maestra.

3. Formado a partir de uma dissidência do Partido Autêntico, o Partido Ortodoxo,liderado por Eduardo Chibás (que se suicidou em 1951), constituiu importanteforça de oposição a Batista. Das fileiras da Juventude dos ortodoxos emergiria afigura de Fidel Castro, que era candidato a deputado pela legenda às eleições de1952, revogadas com o golpe de Batista, e muitos dos filiados ao MR-26.

4. Umas das muitas expressões do descontentamento com a ditadura, entre os ofi-ciais das Forças Armadas cubanas, evidenciou-se na revolta da base naval deCienfuegos, esmagada pela força da ditadura, em 5 de setembro de 1957.

5. O termo liberal, no contexto político estadunidense, refere-se às correntes de-mocráticas, não necessariamente filiadas ao Partido Democrata, que hostilizamas ditaduras e simpatizam, até, eventualmente, com apoio financeiro, com osmovimentos antiditatoriais, em particular na América ao sul do Rio Grande.

6. Reportagens simpáticas, de impacto, porque publicadas em jornais e revistas degrande circulação nos EUA, desempenhariam um papel importante namobilização de uma opinião pública favorável aos revolucionários cubanos nosEUA. Cf. PALMA, Anthony de. O homem que inventou Fidel. São Paulo: Com-panhia das Letras, 2006.

7. As articulações no sentido da constituição de frentes políticas amplas podem serregistradas desde setembro de 1956, quando o MR-26 e o DRE firmaram umpacto de Unidade e Ação. Posteriormente, em novembro de 1957, houve o cha-mado Pacto de Miami, que seria repudiado pelo MR-26 por ter sido feito semautorização expressa da direção da organização. Finalmente, em 20 de julho de1958, houve o Pacto de Caracas, incluindo desde os liberais até os comunistas doPSP. Um novo pacto de unidade e ação seria firmado por Che Guevara comrepresentantes do PSP e do DRE em dezembro de 1958. Cf. KAROL, K.S. Lesguerilleros au pouvoir: l’itinéraire politique de la révolution cubaine. Paris: R.Laffont, 1970; FRANQUI, Carlos, op. cit.

8. BANDEIRA, L.A.M. De Martí a Fidel. A revolução cubana e a América Latina.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998, entre muitos outros, enfatizou bemo peso fundamental da questão nacional no processo da revolução cubana. Comoveremos, a questão voltará a ser acionada com grande força, e eficácia, depois dadesagregação da URSS. Cf. também BARÃO, Carlos Alberto. O debate econômi-co dos anos 60 em Cuba. Tese de Doutorado, Universidade Federal Fluminense,Niterói, 2005; HABEL, Janette. Ruptures à La Havane: le castrisme en crise.Paris: La Brèche, 1989.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29385

386

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

9. Tornou-se conhecido o recurso jurídico, interposto por Fidel Castro, à CorteSuprema cubana no sentido de que o golpe de Batista fosse considerado ilegal, àluz dos preceitos da Constituição de 1940. O recurso foi denegado, mas a ação,uma cause célèbre, obteve ampla repercussão e consolidou, entre os que lutavamcontra a ditadura, a proposta do respeito à legalidade constitucional democrática.

10. Urrutia era juiz e ganhou notoriedade ao decidir pela liberdade de militantes doMR-26, considerando que sua luta contra a ditadura era “legal”. Desde março de1958, o MR-26 anunciara que, após a vitória, ele seria o presidente de um futurogoverno provisório. Renunciou em julho de 1959, contrariado com a radicalizaçãoda revolução. Cf. KAROL, K.S., op. cit.

11. Cf. CASTRO, Fidel. A história me absolverá. São Paulo: Expressão Popular, 2005.12. Cf. DEBRAY, Régis. La critique des armes. Paris: Seuil, 1974; DEBRAY, Régis.

Les épreuves du feu. Paris: Seuil, 1974; DEBRAY, Régis. Revolução na revolução.São Paulo: Centro Editorial Latino-Americano, s/d; GUEVARA, Ernesto Che.Obra revolucionária. México: Era, 1973. Nessa leitura, houve uma glorificaçãodesmedida das guerrilhas instaladas na Sierra Maestra, como se delas tivesse de-pendido, quase que exclusivamente, a vitória da revolução. A famosa metáforaempregada por R. Debray, da mancha de óleo, espalhando-se pela Ilha a partirdo foco guerrilheiro da Sierra Maestra, tornou-se emblemática e desempenhouum papel importante na derrota catastrófica das tentativas guerrilheiras empreen-didas em Nuestra América nos anos 1960 e 1970. Cf. ROLLEMBERG, Denise. Oapoio de Cuba à luta armada no Brasil, o treinamento guerrilheiro. Rio de Janei-ro: Mauad, 2001.

13. Cf. FRANQUI, Carlos. Cuba, la revolución: mito o realidad? Memorias de umfantasma socialista. Barcelona: Península, 2006, que insiste, quase obsessivamente,no desaparecimento das lideranças potencialmente rivais como circunstância fa-vorável à ditadura pessoal de Fidel Castro.

14. Mencione-se também a figura de Raul Castro. Entretanto, sublinhe-se que, em-bora tenha havido, desde a guerrilha na Sierra, um grande investimento em fazerdele um grande jefe, tornando-se mesmo, já há alguns anos, o sucessor designadode Fidel Castro, Raul nunca passou do irmão do seu irmão.

15. Toda uma literatura de apoio e de defesa da revolução cubana, e de suas carac-terísticas centralistas e ditatoriais, consideradas inevitáveis, insistirá no argu-mento de que o bloqueio e as ações desferidas pelos sucessivos governosestadunidenses foram condições decisivas para que a revolução assumisse essasconfigurações. Cf. BARÃO, Carlos Alberto, op. cit.; SADER, Emir. A revoluçãocubana. São Paulo: Urgente, 1992; SADER, Eder (org.). Fidel Castro. São Pau-lo: Ática, 1986; AYERBE, Luis Fernando. A revolução cubana. São Paulo:Edunesp, 2004. Debate interessante, e controvertido, a respeito dessas ques-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29386

387

A R E V O LU Ç Ã O E O S O C I A L I S M O E M C U B A

tões está em CARVALHO, Carlos Eduardo (ed.). Socialismo em debate. 1917-1987. São Paulo: Instituto Cajamar, 1988.

16. A I Declaração de Havana foi aprovada em 2 de setembro de 1960 e condenavaa exploração do homem pelo homem e a exploração dos povos pelo capital fi-nanceiro. A II Declaração de Havana foi aprovada em 4 de fevereiro de 1962 eprescrevia que o dever de todo revolucionário é fazer a revolução. Pela sua im-portância e contundência, foi por alguns chamada de O Manifesto Comunista doSéculo XX. Cf. LÖWY, M. O marxismo na América Latina. 2a ed., revista e am-pliada. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006.

17. F. Castro, ao comentar a crise dos mísseis e criticar a atitude dos soviéticos derecuar ante as pressões e o ultimatum do presidente Kennedy, admitiu que estavadisposto a ir às últimas consequências em 1962, mesmo que para isso Cuba pre-cisasse desaparecer do mapa. Cf. RAMONET, Ignacio. Fidel Castro. Biografia aduas vozes. São Paulo: Boitempo, 2006; PALMA, Anthony de, op. cit. A denún-cia oficial, e abalizada, de variadas e múltiplas ações contrarrevolucionárias estáem COMISIÓN DE HISTÓRIA DE LOS ORGANOS DE LA SEGURIDAD DELESTADO. Las reglas del juego. 30 años de Historia de la Seguridad Cubana. LaHabana, Dirección Política Central, Minint, 1989.

18. A influência de Ernesto Guevara, secundado por Raul Castro, e pelos comunistasdo PSP, muito ativos na formação do Partido Comunista Cubano, foi notávelnesse momento.

19. Em processo lento, pelo alto, por etapas, fundiram-se as principais organizaçõesrevolucionárias nas Organizações Revolucionárias Integradas (ORI), depois noPartido Unificado da Revolução Socialista Cubana (PURSC) e, finalmente, noPartido Comunista de Cuba (PCC), em 1965.

20. O conceito de consenso, na acepção com que o emprego para compreender asrelações complexas entre sociedades e regimes autoritários ou ditatoriais, designaa formação de um acordo de aceitação do regime existente pela sociedade, explíci-to ou implícito, compreendendo o apoio ativo, a simpatia acolhedora, a neutrali-dade benévola, a indiferença ou, no limite, a sensação de absoluta impotência. Sãomatizes bem diferenciados e, segundo as circunstâncias, podem evoluir em dire-ções distintas, mas concorrem todos, em dado momento, para a sustentação de umregime político, ou para o enfraquecimento de uma eventual luta contra esse regi-me. A repressão e a ação da polícia política em particular podem induzir ao, oufortalecer o, consenso, mas nunca devem ser compreendidas como decisivas para asua formação. Para o uso e a discussão do conceito, com distintos ângulos e acepções,cf., nesta obra coletiva, os textos de D. Musiedlak, “O fascismo italiano: entreconsentimento e consenso”; M. Ferro, “Há ‘democracia demais’ na URSS?”, e P.Dogliani, “Consenso e organização do consenso na Itália fascista”.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29387

388

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

21. O discurso pronunciado em Argel, em 1965, muito crítico à URSS e às relaçõesestabelecidas entre os países socialistas, foi simbólico, quase uma ruptura, e desa-gradou profundamente Fidel Castro. Cf., para a apreciação diversa desse pronun-ciamento-chave, as melhores biografias do Che: ANDERSON, J.L. Che Guevara,uma biografia. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997; CASTAÑEDA, Jorge. Che Guevara.A vida em vermelho. São Paulo: Companhia das Letras, 1997; TAIBO II, PacoIgnácio. Ernesto Guevara connu aussi comme le Che. Paris: Métaillé; Payot, 2001.

22. Na Ásia, os governos socialistas da República Democrática do Vietnã, a Frente deLibertação Nacional (FLN) no Vietnã do Sul e a República Democrática da Coreia,que seriam os bastiões de uma organização regional, não levaram o projeto à fren-te, provavelmente receando reações negativas da URSS e da China, poderososvizinhos e aliados. Na África, e apesar da presença do Che no Congo, também nãochegaram a se estruturar formas organizativas regionais revolucionárias.

23. Cf. GUEVARA, Ernesto Che. O diário do Che na Bolívia. Rio de Janeiro: Record,1997, e as biografias citadas na nota 21 supra. Para a saga guerrilheira, cf. tam-bém GUILLERMOPRIETO, Alma. Looking for History. Dispatches from LatinAmerica. Nova York: Vintage Books, 2001.

24. Em paralelo, foram declinando, tolhidos ou silenciados, os partidários de umaalternativa cubana. Desse ponto de vista, foi simbólica a interdição da revistaPensamiento Crítico, reduto do pensamento revolucionário cubano alternativo,em 1970.

25. Entre muitos outros, é a opinião defendida por GOTT, Richard. Cuba: umanova história. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006, pp. 266-268. Em 1968,o governo cubano decretaria uma estatização generalizada de pequenos serviçose comércios, um passo importante no sentido do modelo soviético de organiza-ção econômica. Cf. Idem, p. 267. Já em 1970, de 2.408.800 pessoas ocupadas,um pouco menos de 350 mil trabalhavam em atividades privadas. Cf. COMISIÓNECONÓMICA PARA AMÉRICA LATINA Y EL CARIBE. La economía cubana.Reformas estructurales y desempeño en los noventa. México, Fondo de CulturaEconómica, 2000, quadro A.48.

26. Cf. COMISIÓN ECONÓMICA PARA AMÉRICA LATINA Y EL CARIBE. op.cit., p. 13.

27. Idem, pp. 64-69.28. Observe-se, sem com isso desmerecer os inegáveis avanços promovidos pelas

políticas revolucionárias, que os dados demonstram a situação peculiar de Cubamesmo antes da revolução, considerando-se seus vizinhos latino-americanos. Comefeito, uma taxa de analfabetismo de menos de 25%, em fins dos anos 1950,para o conjunto da América Latina, era um resultado nada desprezível. Em finsdo século XX, Cuba só perdia no índice de analfabetos para Argentina e Barbados.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29388

389

A R E V O LU Ç Ã O E O S O C I A L I S M O E M C U B A

29. Cf. CEPAL, op. cit., quadro A.54. Segundo esse quadro, em Cuba a média demédicos por cem mil pessoas era de 518. As melhores médias seguintes eramdetidas pelo Uruguai (309) e Argentina (268). O Brasil detinha a média de 134médicos por cem mil pessoas (1992-1993).

30. Cf. Idem, quadro A.54.31. No Brasil, então, a esperança de vida não passava de 67,9 anos. Cf. Idem, quadro

A.54.32. Cf. Idem, pp. 70-71.33. O IDH combina três dimensões: esperança de vida, padrão educacional e produ-

to interno bruto por habitante. O IPH mede o grau de privação, combinandotrês variáveis: mortalidade antes dos 40 anos, analfabetismo entre adultos e ca-rências em serviços básicos (saúde, água potável e crianças de menos de 5 anoscom peso insuficiente). Cf. Idem, quadro A.54.

34. Em todo o mundo, e sobretudo na Europa, mobilizaram-se muitos intelectuais, atéentão admiradores de Cuba, para protestar e redigir abaixo-assinados pela liberta-ção de Padilla e denunciando o processo forjado de autocrítica. Foram então cha-mados por Fidel Castro de “máfia de intelectuais pseudoesquerdistas burgueses”.Cf. GOTT, Richard, op. cit., pp. 279-280.

35. Há controvérsias sobre as reais margens de autonomia cubana na organizaçãodas expedições africanas. Entretanto, pelo menos no caso angolano, adversáriose simpatizantes reconhecem que o governo cubano exercitou então, e ampliou,suas margens de autonomia em relação aos soviéticos. Em fins dos anos 1980,em novos enfrentamentos, como na famosa batalha de Cuito Canavale, em 1988,os cubanos tornariam a vencer os sul-africanos, desferindo um golpe mortal noprestígio do regime racista. Para os adversários, cf. Gott, Richard, op. cit.; ALARCÓNRAMÍREZ, D. (Benigno). Memorias de un soldado cubano — Vida y muerte de laRevolución. Barcelona: Tusquets Eds., 1997. Entre os simpáticos, o relato épicode MÁRQUEZ, Gabriel García. “Operation Carlota: the Cuban Mission to An-gola”. New Left Review, Londres, nº 101-102, fevereiro-abril de 1977, sobre agesta de 1976, a Operação Carlota.

36. Cf., entre muitos outros, GOTT, Richard, op. cit., p. 307.37. Cf. RAMONET, Ignacio, op. cit., p. 583.38. Cf. CEPAL, op. cit., quadro A.1.39. Cf. Idem, quadro A.32.40. Cf. Idem, quadro A.33.41. Cf. Idem, quadro A.34.42. Voltaram ao centro da cena os chamados balseros, que procuravam partir de

Cuba com os meios de bordo. Obras literárias retrataram com sensibilidade aprofundidade da crise. Entre muitos outros, cf. GUTIERREZ, Pedro Juan. Ani-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29389

390

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

mal Tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 2002; GUTIERREZ, Pedro Juan.Trilogia suja de Havana. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

43. Para uma interpretação otimista (que se confirmou) sobre as possibilidades deCuba superar a crise, cf. SEGRERA, F.L. Cuba cairá?. Petrópolis: Vozes, 1995.

44. Cf. CEPAL, op. cit., Anexos Estatísticos, pp. 576 e segs.45. Cf. GOTT, Richard, op. cit., p. 397, nota 47.46. Cf. Idem, p. 397, nota 57.47. Cf. REPORTERS SANS FRONTIÈRES. Cuba, le Livre Noir (prefácio de R.

Ménard). Paris: La Découverte, 2004, p. 152. O padre Félix Varela, que viveuno século XIX, era nacionalista, defensor da independência de Cuba e de pro-jetos de educação popular. Não tem sido possível, até o momento, caracterizá-lo como gusano.

48. Cf. Idem; o exercício arbitrário do poder em face do povo cubano, pp. 162 esegs.; Lista parcial das pessoas presas por motivos políticos e sociopolíticos, pp.171 e segs. e fichas biográficas dos jornalistas presos, pp. 188 e segs. O livrotambém reproduz análises de diversas ONGs, entre as quais a da AmnestyInternational, com denúncias de suma gravidade contra o arbítrio do poder re-volucionário cubano contra os dissidentes, ainda hoje recusados na sua condiçãode oposicionistas ou de presos políticos.

49. KAROL, K.S., op. cit. Foi um dos raros intelectuais que, frente a Fidel, soubepreservar o espírito crítico.

50. Cf. GUILLERMOPRIETO, Alma. Dancing with Cuba, a Memoir of the Revolution.Nova York: Pantheon Books, 2004.

51. Para a reviravolta concernente aos cristãos, cf. BETTO, Frei. Fidel e a religião.São Paulo: Brasiliense, 1985.

52. O affaire Ochoa, como se tornou conhecido, desenrolou-se em 1988. Num jul-gamento sumaríssimo, permeado das conhecidas autocríticas, que durou cercade um mês, um dos mais brilhantes generais do Exército cubano foi executadocom mais três companheiros. A versão oficial está em POLÍTICA (Equipo deeditores de Política actual). Vindicación de Cuba (Sobre o caso do general de divisiónArnaldo Ochoa Sánchez). La Habana: Editora Política, 1989.

53. Cf., entre muitas outras, as obras de pura hagiografia, elaboradas por RAMONET,Ignácio, op. cit.; FURIATI, Claudia. Fidel Castro: uma biografia consentida. Riode Janeiro: Revan, 2003. Em seus elogios desabridos, fazem lembrar melancoli-camente o mesmo que faziam intelectuais de todo o mundo em relação a Stalin,nos anos 1930, ou em relação a Mao Zedong, nos anos 1960. SZULC, Tad. Fidel.Rio de Janeiro: Best-Seller, 1986; KAROL, K.S., op. cit., foram dos poucos quenão se renderam ao magnetismo do líder máximo, conseguindo preservar pa-drões de objetividade crítica.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29390

391

A R E V O LU Ç Ã O E O S O C I A L I S M O E M C U B A

54. A metáfora do gladiador é de GUILLERMOPRIETO, Alma, op. cit., 2004.55. Cf. FRANQUI, Carlos, op. cit., 2006; ALARCÓN RAMÍREZ, D. (Benigno), op.

cit. No mesmo diapasão, cf. RAFFY, Serge. Castro l’infidèle. Paris: Fayard, 2003.

Bibliografia

ANDERSON, J.L. Che Guevara, uma biografia. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997.AYERBE, Luis Fernando. A revolução cubana. São Paulo: Edunesp, 2004.BANDEIRA, L.A.M. De Martí a Fidel. A revolução cubana e a América Latina. Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.BARÃO, Carlos Alberto. O debate econômico dos anos 60 em Cuba. Tese de Doutora-

do, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2005.ALARCÓN RAMÍREZ, D. (Benigno). Memorias de un soldado cubano — Vida y muerte

de la Revolución. Barcelona: Tusquets Eds., 1997.BETTO, Frei. Fidel e a religião. São Paulo: Brasiliense, 1985.CARVALHO, Carlos Eduardo (ed.). Socialismo em debate. 1917-1987. São Paulo: Ins-

tituto Cajamar, 1988.CASTAÑEDA, Jorge. Che Guevara. A vida em vermelho. São Paulo: Companhia das

Letras, 1997.CASTRO, Fidel. A história me absolverá. São Paulo: Expressão Popular, 2005.COMISIÓN DE HISTÓRIA DE LOS ORGANOS DE LA SEGURIDAD DEL ESTADO.

Las reglas del Juego. 30 años Historia de la Seguridad Cubana. La Habana: DirecciónPolítica Central, Minint, 1989.

COMISIÓN ECONÓMICA PARA AMÉRICA LATINA Y EL CARIBE. La economíacubana. Reformas estructurales y desempeño en los noventa. México: Fondo deCultura Económica, 2000.

DEBRAY, Régis. La critique des armes. Paris: Seuil, 1974.——. Les épreuves du feu. Paris: Seuil, 1974.——. Revolução na revolução. São Paulo: Centro Editorial Latino-Americano, s/d.FRANQUI, Carlos. Journal de la révolution cubaine. Paris: Seuil, 1976.——. Cuba, la revolución: mito o realidad? Memorias de um fantasma socialista. Bar-

celona: Península, 2006.FURIATI, Claudia. Fidel Castro: uma biografia consentida. Rio de Janeiro: Revan, 2003.GOTT, Richard. Cuba: uma nova história. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.GUEVARA, Ernesto Che. Obra revolucionária. México: Era, 1973.——. O diário do Che na Bolívia. Rio de Janeiro: Record, 1997.GUILLERMOPRIETO, Alma. Looking for History. Dispatches from Latin America. Nova

York: Vintage Books, 2001.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29391

392

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

——. Dancing with Cuba, a Memoir of the Revolution. Nova York: Pantheon Books,2004.

GUTIERREZ, Pedro Juan. Animal Tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.——. Trilogia suja de Havana. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.HABEL, Janette. Ruptures à La Havane: le castrisme en crise. Paris: La Brèche, 1989.KAROL, K.S. Les guerilleros au pouvoir: l’itinéraire politique de la révolution cubaine.

Paris: R. Laffont, 1970.LÖWY, M. O marxismo na América Latina. 2a ed., revista e ampliada. São Paulo: Fun-

dação Perseu Abramo, 2006.MÁRQUEZ, Gabriel García. “Operation Carlota: the Cuban Mission to Angola”. New

Left Review, Londres, nº 101-102, fevereiro-abril de 1977.PALMA, Anthony de. O homem que inventou Fidel. São Paulo: Companhia das Letras,

2006.POLÍTICA (Equipo de editores de Política actual). Vindicación de Cuba (Sobre o caso

do general de división Arnaldo Ochoa Sánchez). La Habana: Editora Política, 1989.RAFFY, Serge. Castro l’infidèle. Paris: Fayard, 2003.RAMONET, Ignacio. Fidel Castro. Biografia a duas vozes. São Paulo: Boitempo, 2006.REPORTERS SANS FRONTIÈRES. Cuba, le Livre Noir (prefácio de R. Ménard). Pa-

ris: La Découverte, 2004.ROLLEMBERG, Denise. O apoio de Cuba à luta armada no Brasil, o treinamento guer-

rilheiro. Rio de Janeiro: Mauad, 2001.SADER, Eder (org.). Fidel Castro. São Paulo: Ática, 1986.SADER, Emir. A revolução cubana. São Paulo: Urgente, 1992.SEGRERA, F.L. Cuba cairá?. Petrópolis: Vozes, 1995.SZULC, Tad. Fidel. Rio de Janeiro: Best-Seller, 1986.TAIBO II, Paco Ignácio. Ernesto Guevara connu aussi comme le Che. Paris: Métaillé;

Payot, 2001.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29392

CAPÍTULO 3 “Data Feliz” no Paraguai.Festejos de 3 de novembro,aniversário de Alfredo Stroessner*

Myrian González Vera**Tradução de Silvia de Souza Costa

*Agradecemos à autora e a Elizabeth Jelin a autorização da publicação no Brasil do artigo“‘Fecha Feliz’ en Paraguay. Los festejos del 3 de noviembre, cumpleaños de AlfredoStroessner”, publicado em Elizabeth Jelin (comp.). Las Commemoraciones: las disputas emlas fechas “in-felices”. Madri/Buenos Aires: Siglo XXI, 2005. O artigo foi desenvolvido noâmbito do Projeto Collective Memory of Repression in the Southern Cone and Peru, coor-denado por Elizabeth Jelin e Carlos Ivan Degregori e ligado ao Painel Regional da AméricaLatina do Social Science Research Council, sob a direção de Eric Hershberg.**Pesquisadora do Centro de Documentação e Estudos (CDE), Assunção, Paraguai. Autorade “Los archivos del terror del Paraguay”, in: Ludmila Da Silva Catela, Elizabeth Jelin (orgs.).Los archivos de la represión. Documentos, memoria y verdad. Buenos Aires: Siglo XXI, 2002.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29393

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29394

Nos ainda não distantes tempos em que o ditador era dono absolu-to do nível dos rios e da temperatura do verão, a “Data Feliz” sesituava nesse vasto território das simbologias. Se a vida e a morte,durante 365 dias, girava de forma visível ou invisível, de maneiraexplícita ou implícita, em torno de quem acreditava que ia morrerde velhice no Palácio de López, o aniversário do mais ilustre repre-sentante do Centauro de Ybycuí, o mais genuíno intérprete dos sen-timentos populares e os deuses da pátria, era o dia dedicado aexpressar publicamente que ninguém havia existido, nem antes nemdepois dele.

(MARIO RUBÉN ALVAREZ, “DATA

FELIZ”, ÚLTIMA HORA, 4 DE NOVEMBRO DE 1998)

O GOLPE DE ESTADO

Em 4 de maio de 1954, o general Alfredo Stroessner, apoiado pela Junta deGoverno do Partido Colorado e por grande parte da população, protago-nizou um golpe de Estado no Paraguai. Revelando astúcia política, não as-sumiu o poder imediatamente após o golpe, preferindo designar umpresidente interino (Tomás Romero Pereira) para depois convocar eleiçõespresidenciais. Em 15 de agosto de 1954, Stroessner assumiu a Presidênciada República do Paraguai, depois de vencer as eleições como candidatoúnico. Inicia-se um período de 35 anos de governo unipessoal, com totalconcentração de poder em suas mãos.

O Paraguai conhecia bem o personalismo ditatorial. Trata-se do únicopaís da América Latina que conquistou a independência da Espanha para

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29395

396

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

cair na ditadura “perpétua”: a de Gaspar Rodríguez de Francia (1814-1840),seguida pelas de Carlos Antonio López (1842-1862) e Francisco SolanoLópez (1862-1870). Desde 1887, a alternância dos dois partidos tradicio-nais (colorado e liberal) nunca se resolveu pacificamente nas urnas, mas pormeio de “revoluções” — mudanças de governo por golpes de Estado, rebe-liões intestinas e guerras civis — além de duas guerras internacionais —Tríplice Aliança (1865-1870) e do Chaco (1932-1935) — que dizimaramsua população.

Em consequência de uma das mais violentas guerras civis, impõe-se, apartir de 1947, uma equação perdurável no futuro do poder paraguaio: Par-tido Colorado — governo — e Forças Armadas. Entre 1947 e 1954, suce-deram-se sete presidentes, para dar lugar à ditadura de Stroessner, que seprolongou até 1989.

Entre 1954 e 1960, as forças dentro do Partido Colorado vão se aco-modando, com sucessivos expurgos dos dirigentes que poderiam disputara autoridade com Stroessner.1 Uma vez assegurado o controle partidário,Stroessner inicia a reorganização do Exército, “de maneira que a lealdadeinstitucional dos comandos militares a seu comandante em chefe e ao pre-sidente da República (obediência ao superior hierárquico e obrigação dedefender o governo constitucional) ficasse estreitamente vinculada a umaadesão pessoal ao caudilho-general-presidente, com prévia depuração daoficialidade resistente à sua liderança e à partidarização da corporaçãomilitar”.2

Nos primeiros anos de governo, seus principais opositores foram sepa-rados, detidos ou mandados para o exílio. As atividades políticas e sociaisestavam proibidas e sob repressão direta, não havendo liberdade de expres-são nem de imprensa. Isso explica por que nos jornais da época só apare-cem informações sobre atividades oficiais, internacionais, esportes e belezafeminina, passando a imagem de que tudo estava em ordem no Paraguai.Os conflitos, entretanto, se intensificavam, produzindo crises e divisõesprofundas entre os colorados.3

Stroessner consolidou sua liderança com a instalação do triângulo depoder Governo-Forças Armadas-Partido Colorado,4 reprimindo duramen-te os opositores do regime até conseguir ser o único homem poderoso do

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29396

397

“ D ATA F E L I Z ” N O PA R A G UA I . F E S T E J O S D E 3 D E N O V E M B R O

Paraguai, provocando até um “autogolpe”.5 Sua estratégia teve êxito por-

que combinou a construção de apoios institucionais com uma forte dose de

personalismo. “O personalismo — a inclinação a aderir com lealdade a um

líder político em particular — é uma força muito importante no Paraguai,

assim como no resto da América Latina. Para aproveitá-lo bem, um líder

tem que se tornar acessível às pessoas”.6 Nesse sentido, a história política

do Paraguai está cheia de heróis guerreiros, existindo uma forte identidade

com o nacionalismo militarista e conservador que estende “o conceito de

militar a todo paraguaio, cujo argumento é o de que todo ‘bom paraguaio’

deve manter uma disciplina militar”.7 Com isso, o país converte-se em campo

fértil para impor ditaduras autoritárias e repressivas.

Outro aspecto de sua estratégia foi o fato de Stroessner ter se cercado

de elementos leais nas Forças Armadas e mantido essa lealdade ao longo de

seus 35 anos de governo, por meio de benefícios especiais e privilégios.

Fazendo uso de sua autoridade, os militares puderam intervir em negócios

que tornaram muitos deles, em pouco tempo, ricos. Tudo lhes era permitido,

sempre e quando se comportassem como subalternos. No Partido Colorado,

ocorreu o mesmo. Para ser funcionário público, era preciso se filiar. As ins-

tituições públicas foram se enchendo de trabalhadores e planilheros.8 Em

suma, “existia um sistema institucionalizado de clientelas, baseado no uso

arbitrário do Erário nacional, por parte da classe política, tendo como

beneficiários os filiados ao partido oficial”.9

Em todo o país, foram sendo criadas seccionais coloradas, organismos

de base do Partido Colorado.10 As pessoas procuravam-nas para pedir fa-

vores, sempre que cumprissem o requisito indispensável de ser colorado/a

e, além disso, trabalhar pelo partido e pelo governo.11 Os “favores” se so-

mavam a um propagado medo diante da autoridade (seja essa o presidente

da seccional, algum ministro ou legislador ou até qualquer pessoa que ti-

vesse alguma relação com o poder).Ao longo de 35 anos, todos os âmbitos da política e da sociedade foram

submetidos ao culto a Stroessner. Ele gostava de ser admirado e “fomenta-va o culto a sua pessoa, a tal ponto que a adulação, a genuflexão e a submis-são se converteram em importantes caminhos para a mobilidade social e o

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29397

398

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

acesso a cargos públicos. Ruas, praças, escolas e distritos do interior rece-beram seu nome ou o de algum integrante de sua família. Até o aeroportointernacional de Assunção e a segunda cidade mais importante do país sechamavam Presidente Stroessner”.12

A propaganda era o melhor meio para difundir o culto ao único líder.

Em cada instituição pública havia uma placa em que constava ter sido a

inauguração durante o governo do “Excelentíssimo Senhor Presidente da

República General de Exército Don Alfredo Stroessner”. Uma grande foto

dele presidia a sala principal de cada organismo estatal.13 Nas instituições

educativas, a propaganda stronista era parte da lição cotidiana. Para ob-

ter um cargo docente, as professoras deviam apresentar sua filiação parti-

dária e, em geral, eram os caudilhos locais que nomeavam e removiam os

diretores(as) e supervisores(as) da região. Uma prática comum nos povo-

ados era relegar as professoras que não tivessem sua identidade de colorada

às “escolinhas rurais”.

É provável que a ditadura stronista tenha se mantido no poder duran-

te tanto tempo por apelar permanentemente à repressão e ao terror, con-

seguindo desmobilizar e paralisar as forças opositoras. Por outro lado, a

sociedade passiva e desmobilizada permitiu ao governo stronista manter

as regras e “cumprir” as determinações constitucionais, convocando elei-

ções a cada cinco anos. Isso foi possível porque tinha assegurada a maio-

ria colorada e, além disso, porque conseguiu atrair setores da oposição

(liberais, especialmente) para que participassem das eleições. Essa facha-

da pseudodemocrática foi o argumento mais usado para defender o go-

verno ditatorial perante a comunidade internacional. Ao longo de seu

governo, Stroessner conseguiu ajustar a lei aos seus interesses: “O empre-

go da legalidade foi um dos dispositivos mais eficazes para fortalecer o

núcleo de decisões do Estado e desarmar a sociedade, impondo uma or-

dem rigorosamente controlada”.14 Nesse contexto, as eleições desse perío-

do jamais foram livres ou transparentes.15

Stroessner soube construir um governo autoritário e obter um poder

absoluto porque contou com o apoio popular: uma parte importante da

população paraguaia preferia e ainda prefere o autoritarismo e a ditadura

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29398

399

“ D ATA F E L I Z ” N O PA R A G UA I . F E S T E J O S D E 3 D E N O V E M B R O

como formas de governo. Não era stronista só por ter recebido benefícios

econômicos, mas por uma forte convicção emocional ou ideológica.

“DATA FELIZ”16 NOS TEMPOS DE STROESSNER

Escolher o aniversário de Stroessner para um trabalho sobre a memória cole-

tiva e a repressão pode chamar a atenção de muita gente que não vive no

Paraguai. Entretanto, durante a ditadura, o 3 de novembro foi se tornando

uma data significativa de homenagem e comemoração, para depois se trans-

formar em uma ocasião de possíveis conflitos e debates. Na realidade, para

um setor da população paraguaia, essa data resume a imagem de um gover-

no que reprimiu, torturou e assassinou; para outra, é uma data de regozijo,

carregada de simbolismo, que remete a uma época de progresso, bem-estar

e tranquilidade. Após mais de dez anos da queda do regime, a data ainda é

comemorada por grupos que apoiaram o ditador e que sentem que a demo-

cracia tirou tudo aquilo que o antigo regime garantia. Desde março de 1999,

tanto o Executivo quanto o Parlamento promovem e saúdam a figura de

Stroessner.17

Como uma data privada, como um aniversário, se transforma em pública?

O 3 de novembro converteu-se em um festejo popular e institucional em

poucos anos, a partir de uma intervenção específica no espaço público, orien-

tada para implantar Stroessner como figura central, suporte de anos de “paz

e tranquilidade”, após tantos anos de instabilidade política. O preço dessa

paz autoritária, contudo, foi alto. Mas o 3 de novembro não é a primeira

data privada incluída no calendário oficial de festejos, embora seja a única

que consegue se manter no tempo e na memória popular. É provável que a

ideia da festividade tenha surgido nos meios próximos a Stroessner, que

conheciam a grande admiração que ele cultivava pelos “grandes heróis da

pátria” e, especialmente, pelo marechal Francisco Solano López, “herói

máximo” da guerra contra a Tríplice Aliança (1864-1870), cujo aniversá-

rio, como motivo de celebração pública, foi promovido por um dos princi-

pais pensadores do revisionismo histórico paraguaio.18

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29399

400

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Em 3 de novembro de 1954 — seu primeiro aniversário como presiden-

te da República —, Stroessner foi saudado pelas Forças Armadas com uma

salva de 21 tiros de canhão e um desfile aéreo sobre a residência presidencial

Mburuvicha Roga. Numerosas autoridades nacionais, assim como represen-

tantes de setores da sociedade, acudiram para apresentar seus cumprimen-

tos. Da Argentina, chegou a saudação de Juan Domingo Perón. Nesse dia,

o presidente recebeu também a mais alta condecoração argentina: o Gran-

de Colar da Ordem do Mérito. Outras mensagens de saudação foram envia-

das por embaixadas e missões estrangeiras (de Argentina, Brasil e Chile,

entre outras) e por diversas organizações paraguaias, entre elas a Comissão

Central da Juventude Colorada e a Comissão Feminina Colorada, delega-

ções de governo, moradores da capital e do interior do país etc.19

À noite, os militares ofereceram um jantar e a Associação de Autores

Associados (APA) organizou a primeira homenagem, com o Festival de Canto

e Guitarra no Teatro Municipal de Assunção, que depois se converteu em

um evento tradicional. Nesse festival, que, em meados dos anos 1980, mu-

dou de nome para Festival da Paz, se apresentaram dezenas de artistas que,

com sua presença, afirmavam lealdade a Stroessner. Demonstrar amizade e

admiração pelo presidente e por seu governo proporcionava vantagens, na

hora de pedir favores ou privilégios.

A aprovação do presidente a esse tipo de manifestação abriu as portas

para que outros setores e pessoas aderissem à celebração. Para a maioria de

seus opositores, contudo, a festa era “uma coisa fabricada, maquinada e im-

posta por essa gente que cultivava sua imagem ou lhe fazia reverência por-

que buscava benefícios”.20

Em 1956, um grupo de militares idealizou (embora não se saiba se por

causa de um pedido expresso por Stroessner) a criação de um bairro, no

limite da capital com a vizinha cidade de Fernando de la Mora, que teria o

seu nome. Assim, a partir de 1957, ano em que o bairro foi inaugurado, é

elaborado um calendário oficial de festividades pelo aniversário de nasci-

mento do presidente da República.

O calendário oficial, publicado com antecedência pela imprensa, esta-

belecia os seguintes atos: toque militar de despertar, saudação aérea e 21

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29400

401

“ D ATA F E L I Z ” N O PA R A G UA I . F E S T E J O S D E 3 D E N O V E M B R O

tiros de canhão, apresentação de saudações e congratulações em MburuvichaRoga e ato central no bairro Stroessner. À noite, as Forças Armadas ofere-ciam ao presidente um tradicional jantar militar e seguia-se o festival dehomenagens organizado por Autores Associados (APA). Em alguns anos,eram incluídos outros atos, especialmente a inauguração de “obras de pro-gresso”, como eram denominadas as obras de infraestrutura do país.

Com os anos, foram surgindo novos atos e homenagens promovidos porinstituições públicas, que converteram a data em uma comemoração nacio-nal. Em um artigo publicado em 1967 no semanário Pueblo, do PartidoRevolucionário Febrerista,21 um dos poucos meios alternativos de oposição,o 3 de novembro é descrito dessa maneira:

O 3 de novembro de cada ano converteu-se em uma festa nacional por ser o

aniversário do presidente e, a cada dia, são maiores as manifestações de ale-

gria de seus amigos [...] Não é comum festejar o onomástico de uma pessoa

com demonstrações de forças políticas, porque o acontecimento geralmen-

te fica restrito ao círculo muito reduzido de amigos íntimos. Mas com o

general Stroessner não acontece o mesmo que com Johnson ou De Gaulle,

que nesse dia se afastam dos relacionamentos políticos para se dedicar à

família, longe de todo o protocolo e das exigências da função de primeiro

magistrado que exercem”.22

A SAUDAÇÃO EM MBURUVICHA ROGA

A saudação matinal nos jardins de Mburuvicha Roga era um dos atos obrigató-rios para os funcionários públicos, especialmente os da alta hierarquia. Autori-dades nacionais e partidárias, embaixadores, representantes de setores sociaise empresariais e “o povo” tentavam conseguir os primeiros lugares para apre-sentar pessoalmente seus cumprimentos. “O ‘não vi você’ dito a um funcioná-rio é uma crítica e uma ameaça, assim como ter sido visto representa umaascensão no conceito junto aos chefes.”23

Gente de todo o país e de todas as classes sociais chegava a MburuvichaRoga: professores, pequenos comerciantes, sindicalistas, empresários e po-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29401

402

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

líticos se encontravam a cada ano nesse lugar, esperando ter a sorte de serrecebidos pelo general e apertar sua mão:

Desde cedo muitas pessoas comparecem mesmo sem ter funções públicas, o

fazem movidas por um verdadeiro afeto em relação ao ditador ou porque se

deixam contagiar pelo ambiente festivo que envolve uma grande parte do

país, estimuladas pelas seccionais coloradas, pelas repartições públicas, muitas

rádios — comandadas pela Rádio Assunção — e pelos outros meios de co-

municação oficialistas.24

O que para muitos era uma demonstração de afeto e agradecimento“ao homem que trouxe a paz e o progresso”, para outros era simplesmen-te uma humilhação: esperar horas e horas na rua para tentar ser recebidopelo presidente.

[...] já não é cortesia, mas submissão... A procissão na Avenida Marechal

López, em 3 de novembro, se parece com a festa de 8 de dezembro, que

reúne todo o Paraguai em Caacupé, e os motivos são quase idênticos, pois

os crentes vão à cidade serrana para pedir uma graça à Virgem ou para pa-

gar uma promessa por um milagre, enquanto à residência presidencial che-

gam os agradecidos usufrutuários do poder e também os que esperam o

milagre de desfrutá-lo.25

Com o passar do tempo, e à medida que crescia a quantidade de pessoasque iam saudar o presidente, aumentavam os presentes26 e as flores. Os jar-dins da casa presidencial ficavam cheios de flores de todas as cores e todosos tamanhos.

A HOMENAGEM NO BAIRRO STROESSNER

O ditador comparecia sempre às homenagens feitas no bairro que levavaseu nome, inaugurado em 3 de novembro de 1957. Nesse ano, colocou apedra inaugural do bairro, batizou a Praça 3 de Novembro e um busto em

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29402

403

“ D ATA F E L I Z ” N O PA R A G UA I . F E S T E J O S D E 3 D E N O V E M B R O

sua homenagem. Entregou também as primeiras casas populares a algunsbeneficiados, que se sentiam na obrigação de demonstrar seu agradecimen-to ao presidente, por ter lhes dado acesso à casa própria. Nesse bairro, oaniversário do ditador nunca deixou de ser celebrado.

Nos anos seguintes, o programa se repetiu e incluiu saudação com fo-gos, seguida de um toque do alvorecer, missa e, posteriormente, atos orga-nizados pelas instituições educacionais (desfile estudantil, festival artísticoe entrega de presentes ao general). Finalmente, chegava o momento maisesperado pelos moradores do bairro: a saudação pessoal ao presidente.

Em cada ano, algo era inaugurado: podia ser a pedra inicial do campa-nário de uma futura igreja, as bases do muro de uma escola ou a pavimen-tação de uma quadra. Sempre precisava haver uma “obra de progresso”,apresentada como um presente do presidente para a comunidade. A perso-nalização do poder era tal que toda obra do governo era vista como umademonstração de apreço ou uma ajuda do líder a seu povo.27

A organização desses festejos estava a cargo de uma comissão compostapor prestigiados líderes do partido, da Igreja, da polícia, além de autorida-des educacionais do bairro. Dona Clara, uma das pessoas que fizeram parteda comissão durante toda a ditadura, conta: “Escolhiam-se as pessoas quequeriam trabalhar, pois tudo era voluntário. Era gente do bairro, como ocomissário de polícia, o paí (sacerdote), o médico, enfim, os mais destacadosda comunidade.”

Muitas mulheres trabalhavam na organização dos atos do bairro Stroessner.Eram professoras e donas de casa as mais fervorosas admiradoras do gene-ral. Enfeitavam a igreja, a praça e o bairro para receber a visita do presiden-te no dia de seu aniversário.28 Dona Clara relata:

O 3 de novembro era uma festa muito grande. Sempre nos preparávamos

bem antes. Era preciso ver quem precisava de vestido ou sapatos novos. Nós,

mesmo sendo pobres, nos esmerávamos para apresentar os filhos bem-

vestidos, fazíamos uma comida especial — assado, sopa — em nossas casas

nesse dia e íamos com nossas crianças participar dos festejos.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29403

404

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Nas entrevistas, aparece a grande admiração das mulheres por Stroessner.

Admiravam-no porque “é forte”, “governa com pulso firme”, “é como um

pai”, atraídas pela figura masculina tradicional, patriarcal. Sem dúvida, o

autoritarismo e o patriarcado estão intimamente unidos. Essas mulheres

representavam o apoio e a base da figura patriarcal: “Estavam plenamente

identificadas com seu papel submisso [...]; a vida cotidiana do autoritarismo

está cheia desses símbolos.”29 É importante ressaltar aqui que Stroessner

era um mulherengo empedernido e não se preocupava de forma alguma

com que essa faceta transcendesse sua vida privada. E, principalmente, isso

o convertia em um típico macho paraguaio, que pode ter filhos com dife-

rentes mulheres sem prejudicar seu “bom nome”. Todo mundo sabia que

seu casamento com dona Eligia Mora era apenas uma fachada.30

Em franco contraste com a imagem benfeitora e de pai espiritual, outras

mulheres conheceram o lado obscuro do ditador. Mercedes, militante opo-

sicionista desde muito jovem, detida e presa várias vezes, conta:

Eu tinha muito medo quando ele era presidente, porque trabalhava em grê-

mios estudantis no colégio. Desde os 11 anos participei de algum grupo de

leitura ou de análises... Tinha medo dele, de seu aparato policial. Quando

chegava em casa, olhava para ver se não havia algum pyrague (agente secre-

to)... era uma sensação de insegurança terrível, de ter pesadelos, pensando

em policiais que vinham me buscar e coisas assim.

AS INAUGURAÇÕES

A inauguração de “obras de progresso” era outro dos rituais criados para o

3 de novembro. Nas instituições públicas e privadas, na indústria e no co-

mércio, nas escolas, nos hospitais ou em associações de moradores, era fei-

to o impossível para que qualquer melhoria coincidisse com o aniversário,

tanto nos prédios quanto no equipamento, em modernização tecnológica,

formatura de cursos etc., de maneira que a população associasse o progres-

so e o desenvolvimento do país à própria existência do general.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29404

405

“ D ATA F E L I Z ” N O PA R A G UA I . F E S T E J O S D E 3 D E N O V E M B R O

De fato, durante seu governo o Paraguai começa a desenvolver grandeparte de sua infraestrutura moderna: surgem estradas, ruas são asfaltadas,multiplicam-se escolas e hospitais. A estabilidade política permite atrairinvestimentos estrangeiros para o setor privado, que possibilitam um im-portante crescimento econômico.31 Com o boom de Itaipu na década de1970,32 o país viveu um período econômico extraordinário. Algumas pes-soas beneficiadas pelo regime recordam esse bem-estar econômico, alémda “paz e tranquilidade”.33 “Claro que foi ditadura, porque ele governoumais de 30 anos, mas para nós não era ditadura porque nos deu garantias,o dinheiro valia mais, podíamos mandar nossos filhos à escola, não faltavao que comer.”34

Por outro lado, setores de oposição ao regime, entre os quais se destacaa Igreja Católica — que, desde o fim da década de 1960, assume institu-cionalmente um papel de ativa oposição ao regime de Stroessner e se conver-te em um referencial de peso para a sociedade paraguaia, majoritariamentecatólica35 —, duvidam da natureza desse “progresso”:

Que progresso? Qual progresso? Não há nada, era mais propaganda do que

qualquer outra coisa. Ocorre que essa gente não sabe de nada, pois a Bolí-

via tem estradas melhores do que as do Paraguai, para não falar das do Equa-

dor. O que aconteceu aqui foi que o regime foi mantido pela ignorância do

povo. Não superamos os problemas de saúde, de educação, nem de segu-

rança pública. O stronismo continua porque há muitos stronistas no poder,

que nunca se afastaram.36

OS ESPAÇOS NA IMPRENSA E OUTRAS DEMONSTRAÇÕES

Nos primeiros anos do governo stronista, poucas eram as instituições queusavam os meios de comunicação para saudar o presidente no dia de seuaniversário. À medida que a ditadura se consolidava, provavelmente tam-bém porque o controle e a repressão cresciam, esses espaços foram se mul-tiplicando. Instituições estatais, municipalidades, embaixadores, cônsules,presidentes de seccionais e delegações governamentais disputavam as pri-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29405

406

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

meiras páginas. Jornais como El País, La Tarde, Pátria (porta-voz do Parti-

do Colorado) incluíam na primeira página a foto do general com frases alu-

sivas a seu governo e sua pessoa. Atualmente, no diário La Nación, cujo

proprietário é um empresário que enriqueceu com a ditadura, essa prática

ressurgiu.

Em geral, as mensagens refletiam o culto ao “grande herói vivo, herdei-

ro de López e Caballero”. Em 1987, por exemplo, a Direção Geral da Al-

fândega afirmava: “Não só por florescer o coco se percebe que o Natal está

próximo. Em cada 3 de novembro — ‘Data Feliz’ — começa a festa popu-

lar de fim de ano.”37

Essa ideia de que Stroessner é o pai protetor, quase um Deus, é produ-

to de sua criação. Ele sempre se “considerou o autêntico herdeiro dos

‘grandes do passado’. Considerava uma ofensa pessoal criticá-los [...]”.38

Nos lares colorados, era normal ter a foto do general no melhor lugar da

casa — ao lado da Virgem, de Jesus ou qualquer outro elemento religio-

so. “Deus, Pátria e Stroessner” era a Santíssima Trindade, que devia ser

respeitada e venerada. Stroessner soube promover e manter essa ideia de

ser o protetor e o benfeitor de uma parte importante da população

paraguaia. Ainda assim, para conquistar a sua simpatia, muitos intelectu-

ais consideravam-no “o continuador dos três grandes que forjaram a na-

cionalidade”.39

As canções, as poesias, os telegramas e outros recursos similares servi-

am também para demonstrar a admiração por Stroessner. Já em 1954, o

músico Samuel Aguayo dedicou ao presidente a polca General Stroessner e,

a partir de então, numerosas canções surgiram ao longo da ditadura.40

O telegrama é outra maneira utilizada para manifestar os desejos de longa

vida ao governante: alguns dias antes e outros depois de cada 3 de novem-

bro, os diários publicam telegramas e mensagens recebidos pelo chefe de

Estado. A lealdade era um valor apreciado pelo ditador e, ao se tornarem

públicas, essas manifestações se convertiam em garantia de tranquilidade

para as pessoas, pois eram a prova de que o remetente estava de acordo e

apoiava o governo. Também se convertiam em pontos na hora de pedir

empregos, subsídios, colaborações, construção de escolas etc.41

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29406

407

“ D ATA F E L I Z ” N O PA R A G UA I . F E S T E J O S D E 3 D E N O V E M B R O

Uma vez criada a tradição de celebrar o aniversário de Stroessner, todosesses atos e homenagens passaram a fazer parte de um ritual cumprido anoapós ano, invariavelmente, até 1988. O 3 de novembro converteu-se emum dia de festa nacional, mas também em um momento de simbiose entrea nação e seu líder. Paraguai e Stroessner foram um só e o mesmo. Na tran-sição, a ausência física de Stroessner não impediu que seus seguidores con-tinuassem recordando o 3 de novembro, embora incorporando novas formasde adesão, que tiveram que reelaborar a relação entre a pessoa e a nação.

Durante a ditadura, não houve manifestações expressas que repudias-sem as homenagens a Stroessner em seus aniversários.42 Por um lado, fazê-lo implicava enfrentar seguramente repressão policial. Além disso, a datatinha grande aceitação popular e, por outro lado, a oposição era sumamen-te fraca para resistir. Houve apenas alguns arroubos humorísticos43 e arti-gos no semanário febrerista El Pueblo, que documentam o repúdio a essadata símbolo do poder autoritário e personalista que dominava esse perío-do, embora, naturalmente, todos assinados com pseudônimos. Em 1967,no artigo intitulado “O aniversário do Presidente”, o 3 de novembro é des-crito como uma festa nacional em que “o espetáculo de beija-mão é franca-mente desalentador, porque demonstra um estado de submissão e sujeiçãoque não é próprio de cidadãos dignos, nem de um povo livre”.44 Em 1978,no artigo “Um aniversário mais”, destaca-se a presença de “representantesdas potências estrangeiras, embaixadores, seguidos de comerciantes, indus-triais, financistas...”.45 Claro que isso estava vinculado às relações de “ami-zade e cooperação” que tinham com as ditaduras militares da região, empleno apogeu.46

O ANIVERSÁRIO DE STROESSNER NA TRANSIÇÃO (1989-1999)

Na noite de 2 e madrugada de 3 de fevereiro de 1989, um golpe militarderrubou o governo de Stroessner. O comandante do Exército e líder darebelião, Andrés Rodríguez, assumiu a presidência. Rodríguez era o segun-do homem na esfera do poder e consogro do ditador. Dois dias depois,Stroessner viajou para o Brasil na condição de asilado político.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29407

408

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Um dos acontecimentos mais interessantes dos primeiros dias e mesesda transição foi que, com uma canetada, desapareceram da cena públicatodos aqueles que cultuavam e adoravam o líder: já não havia mais stronistasno Paraguai. Afastado do chamado “quatrinômio de ouro”,47 assumiu opoder no Partido Colorado o Movimento Tradicionalista Colorado. A famí-lia do ditador e algumas das pessoas de seu círculo próximo haviam deixa-do o país, alguns poucos de seus colaboradores tinham sido presos, acusadosde corrupção ou enriquecimento ilícito, enquanto a grande maioria de di-rigentes e operadores colorados se adaptava aos novos tempos, declarandoque havia muito tempo não aprovava mais as ações do governo. Os menosimportantes optaram pelo silêncio. Pouco depois, ocorreram algumas prisõespor violações de direitos humanos, que incluíram o chefe da polícia e o doDepartamento de Investigações (principal centro de detenção e torturas).48

Rodríguez assumiu a Presidência da República imediatamente depois dogolpe. Os principais motivos alegados para a insurgência foram a “defesada dignidade e da honra das Forças Armadas; a unificação plena e total docoloradismo no governo; o respeito aos direitos humanos; a defesa da reli-gião cristã, apostólica, romana...”.49 As eleições nacionais (para presidentee membros do corpo legislativo) foram convocadas para maio desse mes-mo ano e, nelas, Rodríguez — que se apresentou como candidato do Parti-do Colorado — venceu com 72% dos votos, derrotando o liberal DomingoLaíno, candidato do principal partido de oposição e reconhecido militantecontra a ditadura stronista. A abertura democrática permitiu que os oposi-tores do governo voltassem ao país e os perseguidos se organizassem. Fo-ram criados e legalizados partidos políticos (incluindo os de esquerda),organizações sociais (centrais de trabalhadores, sindicatos, organizações cam-ponesas, de mulheres e de bairros) e os meios de comunicação passaram adesfrutar de uma até então desconhecida liberdade. Uma nova Constitui-ção foi elaborada em 1992.

Em 1993, Rodríguez entregou a presidência a seu sucessor, Juan CarlosWasmosy, também do Partido Colorado, configurando um novo marco his-tórico: a passagem do poder de um militar para um civil. A oposição seapresentou dividida e perdeu a oportunidade de conseguir a alternânciapolítica no poder da República, embora tenha obtido maioria no Parlamento.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29408

409

“ D ATA F E L I Z ” N O PA R A G UA I . F E S T E J O S D E 3 D E N O V E M B R O

O PRIMEIRO 3 DE NOVEMBRO SEM STROESSNER

Em 3 de novembro de 1989, houve uma quebra na tradição de festivida-des. Não se ouviram toques de alvorada, nem salvas de canhões, tampoucoo povo foi para Mburuvicha Roga ou aviões deixaram o solo para mano-bras. Não se ouviam nas rádios as tradicionais polcas, nem apareceram nosjornais grandes fotos de Stroessner com poemas ou felicitações. Um impor-tante setor da sociedade paraguaia organizou uma marcha pelas ruas, como objetivo de dar um sentido diferente a essa data. Foi a primeira e únicavez em que houve uma grande manifestação cidadã protestando contra osignificado do 3 de novembro.

Contrastando com a denominação “Data Feliz” dos tempos ditatoriais,nesse primeiro ano de transição a Coordenadoria “Não à Impunidade”50

manifestou seu repúdio, chamando-a de Dia da Infâmia Nacional, no mes-mo momento em que um grupo de moradores do bairro Stroessner cele-brava o aniversário sob o lema “O eterno retorno triunfa”.

A Coordenadoria havia sido criada com o objetivo de dar continuidadeaos processos judiciais abertos contra as autoridades stronistas e facilitar ocontrole desses processos. Era formada pelas principais organizações soci-ais e políticas que lutaram contra o regime e por setores da Igreja Católica.De fato, na primeira etapa da transição, a Igreja liderava as ações sociais,mas pouco a pouco sua participação declinou.

Oficialmente, o ato da Coordenadoria não teve um nome, mas nos meiosde comunicação e nos discursos se ouviam as denominações “dia da infâmianacional”, “dia do repúdio nacional”, “não à impunidade”. Nos discursosdo ato principal, predominaram as referências à “infâmia” e ao “repúdio”.Os apelos por justiça estavam muito presentes: “Que a Justiça arranque deuma vez o véu dos olhos para ver e conhecer a realidade; que fortaleça seubraço armado de espada para executar as sentenças ditadas pela balança daverdade e da equidade... Basta de privilegiados e marginalizados! Basta dejustiça dirigida!”51

Os apelos por justiça surgiam porque, quase um ano antes do início datransição, haviam ocorrido avanços significativos na instauração das liber-dades públicas e individuais, mas o governo não dava sinais concretos de

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29409

410

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

que iria castigar os responsáveis pela repressão e pelo roubo dos cofres do

Estado durante o período stronista. Surgiram denúncias de corrupção com

provas, mas os processos não andavam. Pior ainda, alguns eram resolvidos

com a liberdade ou a isenção de culpa dos acusados, enquanto um advoga-

do que fizera denúncias de enriquecimento ilícito de autoridades stronistas

permanecia detido em uma prisão na capital. A manifestação assumiu como

bandeira a libertação do detido.52

Como parte da manifestação de repúdio, na noite do dia 2, se realizou

a Vigília Contra a Impunidade em uma esplanada da Catedral Metropolita-

na de Assunção. Escolher uma igreja e dar ao ato um nome identificado

com a religião mostra o que representou a Igreja Católica para os cidadãos

durante a ditadura. Foi o único manto sob o qual era possível organizar

atos de pressão e exigências, embora nunca tenha garantido total proteção

contra a polícia repressora. A intenção dos organizadores era também im-

pedir que o ato “se politizasse”. Na ditadura, o “político” estava ligado ao

comunismo, a partidos políticos e subversivos, o que, por um lado, gerava

medo e, por outro, podia limitar a participação de muitas pessoas que, além

das bandeiras político-partidárias, queriam se manifestar.

Umas duas mil pessoas, entre jovens e adultos, se reuniram na catedral.

Houve apresentação de mensagens e cantos que identificavam a luta anti-

ditatorial. O simbolismo da vigília estava no fato de que, após a longa noi-

te, a ditadura, nascia um novo dia, a liberdade, a democracia. A música fazia

recordar também as noites que muita gente passou nos corredores do Hos-

pital de Clínicas53 e nas universidades, lugares onde se concentraram as lu-

tas no fim do período ditatorial.Na manhã do dia 3, as rádios informavam sobre a marcha que se reali-

zaria à noite. Os cidadãos eram convocados a participar do ato e, diantedos rumores de que haveria violência, os organizadores destacaram que aintenção era fazer uma manifestação pacífica e que não seriam permitidosexcessos, como forma de incentivar a participação.54 À noite, umas 15 milpessoas caminharam pelas ruas em torno do Palácio da Justiça, onde serealizou o ato principal. As pessoas carregavam bandeiras paraguaias e car-tazes com dizeres variados: “Stroessner, assassino, destronado, queremos

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29410

411

“ D ATA F E L I Z ” N O PA R A G UA I . F E S T E J O S D E 3 D E N O V E M B R O

te ver pendurado”, “Sem mais tumbas NN”,* “Nascerás em uma pátria sem

corruptos, te prometo”, “Liberdade para Abílio Rolón”, “Cárcere para os

torturadores”.

No pronunciamento da Coordenadoria, a principal reivindicação era

justiça. Pediam que Stroessner fosse processado por todos os delitos come-

tidos durante seu governo e reafirmavam o compromisso de velar para que

as instituições encarregadas de fazer justiça cumprissem sua função. Essa

mensagem foi reiterada por diversos oradores, entre os quais se destacaram

os representantes da Igreja Católica, da Organização dos Trabalhadores na

Educação do Paraguai (Otep) e do Partido Comunista Paraguaio.55

Tratava-se, sem dúvida, de um momento “fundacional”, em que o pedi-

do de justiça baseado no presente retomava e atualizava uma interpretação

e uma memória do passado, que colocava ênfase nos crimes cometidos, tanto

com relação às violações aos direitos humanos como aos delitos econômi-

cos. Ao mesmo tempo que estabelecia uma relação com a experiência pas-

sada, a ênfase era no futuro: estava sendo “criado” um horizonte futuro,

em que as instituições, especialmente as judiciais, iam funcionar como ga-

rantia dos direitos básicos.

É preciso recordar que ideias como “esquecer o passado”, “construir o

futuro sem ódios nem rancores”, “para que recordar a dor” foram fortes

na transição paraguaia. Importantes atores políticos e sociais repetiam sem-

pre a necessidade de “não olhar para o passado”. Alguns meios de comuni-

cação tentaram repercutir essa mensagem, recuperando a memória da

repressão e a falta de liberdades públicas durante o regime. Rendendo-se

ao repúdio nacional, o diário ABC Color fez um editorial sobre o aniversá-

rio, assinalando: “Hoje se recorda uma data que, nas últimas três décadas

de nossa história, havia se tornado símbolo do que conseguimos reunir de

depreciável no Paraguai [...] Foi uma excelente ideia escolher esta data para

protestar contra a impunidade daqueles que constituíram os mais altos ex-

poentes daquele regime vergonhoso e que, processados hoje, estão negocian-

*“Nenhum nome”, correspondente no Brasil a indigente, manto sob o qual foram enterra-dos adversários da ditadura mortos pelos organismos de repressão. (N. da T.)

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29411

412

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

do seu retorno à normalidade [...] A história recordará por muito tempo o3 de novembro como data exemplar, para que as futuras gerações tenhamestima por sua honra e jamais persigam a fortuna e o poder inclinando-sediante de algum semideus...”.56

A FESTA NO BAIRRO STROESSNER

Na noite de 2 de novembro de 1989, enquanto na catedral soavam as mú-sicas antiditatoriais, na Praça 3 de Novembro do bairro Stroessner (que aindanão tinha mudado de nome), um grupo de pessoas se reunia para recordaro aniversário do ditador. Fotos, cartazes e faixas faziam parte do cenáriomontado na praça. À meia-noite, os participantes celebraram a chegada donovo dia com foguetes e vivas pelo regresso do general. Enquanto isso, emalgumas residências em torno da praça, os telefones colocavam em contatoos seus donos e amigos de Stroessner, em Brasília, que recebeu as felicita-ções de seus seguidores. A ação converteu-se em um novo ritual, pois desdeentão, a cada ano, o ditador recebe o “carinho de sua gente” dessa maneira.

No dia seguinte, os meios de comunicação repercutiram os festejos nobairro e publicaram as declarações de autoridades nacionais e do partido,além de alguns organizadores do ato. O deputado Angel Roberto Seifart,líder da bancada colorada na Câmara dos Deputados, manifestou seu de-sacordo em relação ao ato, dizendo: “O grupo de pessoas que realizou osfestejos de aniversário devia seguramente algum tipo de favores de natu-reza social ou material ao ex-ditador, porque sabemos que durante seugoverno ajudava materialmente, com dinheiro que não saía de seu bolso,muita gente”.57

Embora tenha indagado quem foram os responsáveis pela festividade, aimprensa não conseguiu identificá-los. Alguns entrevistados destacaram tersido um ato espontâneo “das pessoas”, referindo-se a elementos ligados aostronismo. Um deles, César Palacios — embora delimitando sua responsa-bilidade —, esclareceu que não houve organizadores visíveis: “As pessoasque festejaram o 3 de novembro no bairro Stroessner o fizeram por grati-dão, porque o povo paraguaio é grato. Além disso, de alguma maneira, todos

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29412

413

“ D ATA F E L I Z ” N O PA R A G UA I . F E S T E J O S D E 3 D E N O V E M B R O

nos beneficiamos durante seu governo”.58 A marginalização em que se en-contravam os stronistas, nos primeiros meses de transição, impedia queassumissem a responsabilidade pela celebração. Alguns até revelaram que oato era um protesto pela iminente mudança de nome do bairro, enquantooutros poucos destacaram que se devia ao aniversário de fundação da co-munidade. Provavelmente, o fato de não contar com a proteção das auto-ridades significava que não podiam se manifestar livremente, como aconteciacom a oposição durante a ditadura.

1990-1999: DEZ ANOS DE LUTA PELA MEMÓRIA DO 3 DE NOVEMBRO

Na noite de 2 de novembro de 1990, no bairro San Pablo (ex-bairroStroessner), jovens stronistas se preparavam para celebrar a “Data Feliz”. Apolícia, que não ia ser apanhada de surpresa como em 1989, chegou à Pra-ça 3 de Novembro para impedir os organizadores de montarem o cenárioe os alto-falantes. O desacato à ordem resultou em uma grande repressãopor parte das Forças de Operações Especiais da Polícia (Fope) e na posteriordetenção de algumas pessoas. O que chamou atenção é que, na memóriados moradores do bairro, essa repressão ocorreu no primeiro ano após ogolpe, quer dizer, em 1989. Essa confusão aparece na memória dos mora-dores dez anos depois.59

A repressão não foi detalhadamente retratada pela imprensa. Segundoos jornalistas, a organização dos festejos esteve a cargo de um grupo que seidentificou como “jovens stronistas” e era liderado por mulheres. O diárioABC Color publicou uma foto em que apareciam várias jovens discutindocom a polícia. Depois da ação policial, os manifestantes foram para a fren-te da Igreja San Pablo, a poucos metros da praça — novamente é um localreligioso que serve de proteção — para gritar “Viva Stroessner” e dançarao som das polcas General Stroessner e Colorado.

O fato produziu discussões no rádio e na imprensa sobre o sentido dademocracia e do autoritarismo, embora a atitude da polícia e as declaraçõesde alguns políticos conhecidos como democratas deixassem transparecer aprofunda contradição em que incorriam. A repressão policial contra os que

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29413

414

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

festejavam o aniversário se originou de autoridades que, nesse momento,proclamavam seu repúdio a Stroessner e à ditadura, entretanto atuaram damesma maneira que antes, ao reprimir qualquer ato que expressasse desa-cordo com o regime em vigor.

Em contraste com a comemoração stronista, nesse ano não houve qual-quer ato para recordar o Dia da Infâmia Nacional, data que haviam tenta-do criar um ano antes. Por que aqueles setores para os quais o 3 de novembrosignifica ditadura, repressão, mortes e exílios não puderam neutralizar essacelebração no bairro Stroessner? Podem-se buscar interpretações que po-nham ênfase em características culturais.60 Mas também é preciso levar emconta que há conjunturas propícias à construção da memória. Em 1990, aaposta era o futuro. A classe política produzia esperanças e seu discurso sebaseava no esquecimento da ditadura. Os cidadãos acompanhavam, espe-rançosos, o processo de mudanças que, nesse momento, se concentrava napossibilidade de alternância política. Colorados, liberais, frebreristas e pe-quenos partidos de esquerda se preparavam para competir, em 26 de maiode 1991, por cargos municipais (prefeituras e câmaras), em mais de 200distritos em todo o país. Nessa conjuntura, a preocupação central era com-petir em um ambiente eleitoral o mais transparente possível. Havia umapredisposição geral em acreditar que, por meio das urnas, se alcançaria ademocracia real e, como consequência, a justiça se imporia.61

O país vivia um período de disputas eleitorais permanentes: eleiçõesmunicipais em 1991, de constituintes para preparar uma nova constituiçãoem 1992, presidenciais em 1993. Abundavam acordos e negociações, espe-cialmente dentro do Partido Colorado, em que muitos líderes stronistasbrigavam por sua reinserção política. Nesse contexto, o 3 de novembro de1992 não podia deixar de ser emoldurado pela luta eleitoral interna entrecolorados, com vistas às eleições presidenciais de 1993.62 A disputa pelosignificado da data apareceu então entre ambos os setores do partido. AngelRoberto Seifart, pré-candidato à Vice-Presidência da República, recordou:“O ditador caiu em um desviacionismo contraditório, incompatível comos princípios da doutrina da ANR”, enquanto o argañismo defendia a figu-ra e o governo de Stroessner. Na festa do bairro, apareceram alguns dessespolíticos, compartilhando as comemorações com os moradores.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29414

415

“ D ATA F E L I Z ” N O PA R A G UA I . F E S T E J O S D E 3 D E N O V E M B R O

No 3 de novembro de 1993, o Partido Colorado estava dividido: de um

lado, encontrava-se o setor oficialista, cujos líderes faziam parte do gover-

no nacional; e, de outro, o argañismo, que detinha o poder partidário. A

comemoração no bairro diferenciou-se esse ano pela presença de dirigen-

tes desse setor, mas também pela motivação do ato, de oposição ao gover-

no, acusado de pactuar com a oposição para ter respaldo político, e ao

presidente Wasmosy, por não ser um “autêntico” colorado.

Novamente nesse ano, a justiça apareceu como a grande ausente da tran-

sição. Alguns meios de comunicação recordaram, no dia do aniversário de

Stroessner, que os Arquivos do Terror63 permitiriam julgá-lo e castigá-lo pelos

múltiplos delitos cometidos durante seu governo. Destacavam que a atua-

ção dos juízes não era adequada para um estado de direito. Nesse sentido,

informava-se sobre os pedidos de extradição que tramitavam no Brasil, onde

o ditador havia se asilado, e mencionavam-se casos de violações que podiam

ser documentados.64 Uma das tantas vítimas do stronismo, Martín Almada,65

recordou que um ano antes a Justiça havia expedido uma ordem de captu-

ra contra o ditador pelo caso de sua mulher, Celestina Ríos, e afirmou seu

desejo: “Que no próximo 3 de novembro o fugitivo Stroessner esteja atrás

das grades de Tacumbú e preste contas de todos os seus crimes, comprova-

dos nos Arquivos do Terror”.66

Na festa realizada no bairro, a filha do ditador mencionou igualmente a

falta de justiça. Olívia Stroessner afirmou que leis injustas eram as que im-

pediam a volta de seu pai, que “foi um homem que fez tantas obras boas,

em favor do povo paraguaio...”.67 Assim, fica claro que a data de comemo-

ração se converte em um momento privilegiado para a manifestação de opi-

niões e demandas, geralmente ligadas à situação conjuntural.

Embora o governo de Rodríguez não tenha se caracterizado por uma

luta frontal contra a corrupção e a impunidade, durante o período de

Wasmosy aumentaram de forma alarmante os roubos ao Estado. Em 1994,

como repúdio ao 3 de novembro, a Central Unitária dos Trabalhadores

(CUT), apoiada por organizações não governamentais, promoveu a Expo-

Corrupção, com a finalidade de mostrar aos cidadãos os incontáveis casos

de corrupção que continuavam impunes. Alan Flores, presidente da CUT,

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29415

416

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

afirmava: “O 3 de novembro foi perfeito para inaugurar a Expo-Corrup-

ção porque, nesse dia, nasceu a pessoa que instaurou um regime de terror

e corrupção no país [...] Foi a aliança Partido Colorado-Forças Armadas

que permitiu converter o Paraguai no ‘paraíso da corrupção’.”68

Nesse mesmo dia, a Câmara de Senadores analisou o projeto de lei so-

bre a concessão de pensão para 12 ex-integrantes das Ligas Agrárias Cris-

tãs, que foram vítimas da ditadura. O debate teve de ser adiado porque os

colorados se retiraram, depois de uma calorosa discussão sobre o procedi-

mento de votação. A atitude da bancada oficialista foi considerada pela

oposição um presente para Stroessner em seu aniversário, pois se a lei fosse

aprovada teria representado um reconhecimento dos delitos da ditadura e

uma reparação para os dirigentes camponeses.

Em 1995, quando muitos stronistas voltaram à atividade política, uma

comitiva integrada por umas 40 pessoas visitou Stroessner no dia de seu

aniversário. Provavelmente, não se tratava da primeira visita, mas foi a

primeira vez que assumiram publicamente que mantinham relações com

o ditador. A visita a Brasília serviu como detonador para refrescar a me-

mória da ditadura dos opositores do regime stronista. Com isso, a im-

prensa também recordou a repressão: “Nosso povo tem memória fraca.

Se não a refrescamos, recordando essas atrocidades, podemos nos enca-

minhar novamente no sentido da ignomínia do passado... Contemplando

as pilhas da Investigações, as masmorras da Técnica, os tejuruguay69 e os

choques elétricos que eram aplicados nos opositores do regime, um rela-

to das sessões de “amolecimento” que os presos políticos aguentavam, os

casos de camponeses mortos impunemente, talvez esses irresponsáveis e

descarados que ‘reivindicam’ a presença de Stroessner sintam alguma ver-

gonha ao menos...”.70

Embora o esquecimento tenha sido a constante no discurso da maioria

da classe dirigente, durante as campanhas eleitorais os cidadãos recordavam

o passado, associando-o aos candidatos, como um termômetro da credi-

bilidade de suas promessas. Em 1996, a proximidade de data do aniversá-

rio com a das eleições municipais foi propícia: dias antes do 3 de novembro,

a capital amanheceu “decorada” com a imagem do ditador e, para que não

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29416

417

“ D ATA F E L I Z ” N O PA R A G UA I . F E S T E J O S D E 3 D E N O V E M B R O

houvesse dúvidas, a legenda dizia: “O povo com Stroessner.” No bairro,muitas das casas em torno da praça, onde a cada ano se realizavam os fes-tejos, também estavam cheias de cartazes do candidato junto com os doditador. Era evidente que o candidato não estava, em absoluto, preocupa-do em ocultar a sua relação próxima e sua admiração pelo general. Aposta-va em conquistar o apoio stronista, ignorando que no próprio partido haviasetores que se opunham ao ressurgimento do stronismo e da ditadura.

Por parte da oposição, houve também apelos ao passado para conquis-tar votos. No dia do aniversário, a aliança oposicionista organizou a Cara-vana da Dignidade, enfrentada pelo candidato colorado com outro ato, nomesmo lugar e na mesma hora. A Caravana da Dignidade partiu do parqueÑu Guazú (no limite na capital), rumo ao Jardim Botânico, onde se reali-zaria o ato principal. No ponto de partida, foi acesa uma tocha, simboli-zando a dignidade dos cidadãos, em contraste com outra, que a cadaaniversário expressava a adulação ao ditador. Na hora dos discursos, con-tudo, o candidato aliancista caiu em contradições, pois convocou “a es-quecer os episódios passados, os ressentimentos criados pela ditadura, ecaminhar unidos por um caminho diferente e próspero”, quando o atofora convocado para “devolver um pouco de dignidade aos cidadãos”,perdida durante a ditadura. Finalmente, a Caravana da Dignidade che-gou ao Jardim Botânico, onde se encontraram “frente a frente, os apolo-gistas e os detratores de quem foi, até 1989, o ‘único líder’”.71 Em contrastecom a quantidade de gente que participou da manifestação da aliança (aimprensa estima em cinco mil pessoas), foram poucos os colorados quecompareceram ao improvisado cenário onde se desenrolou um festival ar-tístico. Ambos os atos ocorreram sem problemas e a polícia — preparadapara conter possíveis distúrbios — teve uma jornada tranquila, talvez pelapequena quantidade de colorados presentes.

Em abril de 1996, o então comandante do Exército, Lino Oviedo, prota-gonizou uma rebelião militar e um golpe fracassado, devido à decisão dopresidente Wasmosy de afastá-lo do comando. A crise terminou depois queOviedo encerrou sua carreira militar e passou a incursionar abertamentena política. Então começou a conquistar importantes setores colorados, entreos quais aqueles que festejavam cada 3 de novembro. A partir desse ano, os

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29417

418

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

decalques, as bandeiras e os cartazes alusivos a Stroessner se somaram aos

que exaltavam também a figura de Oviedo. A presença de muitos seguido-

res de Lino Oviedo na comemoração do 3 de novembro chamou a atenção,

se lembrarmos que foi ele quem prendeu Stroessner com uma granada na

mão. Para esse grupo, entretanto, Stroessner foi “um perseguido político”,

como acontecia agora com Oviedo.

Em 1998, o jornalista Alcibiades González del Valle escolheu o 3 de

novembro para lançar seu livro Contra el olvido: la vida cotidiana en los

tiempos de Stroessner,* trabalho que resgata a maneira como foi se insta-

lando a ditadura e os mecanismos empregados por Stroessner e seus auxi-

liares mais próximos no poder para manter a sociedade passiva e indiferente

às ações repressivas que cometiam em nome da paz. Tanto a data quanto o

local do lançamento (o Centro Cultural Espanhol Juan de Salazar) foram

escolhidos pelo autor: “Não foi por acaso a escolha do lugar do lançamen-

to, nem a data. O local, porque foi um espaço de liberdade que se tinha no

tempo de Stroessner — lá os democratas se reuniam para manifestar pelo

menos seu descontentamento diante das arbitrariedades cotidianas; e o dia,

porque o 3 de novembro nos recorda o grau de degradação a que chegou

muita gente por instinto de sobrevivência”.72

Nessa noite, enquanto no bairro San Pablo (ex-bairro Stroessner) come-

çava a tradicional festa, o autor do livro dedicava o lançamento a uma das

vítimas mais emblemáticas do stronismo: o dirigente comunista Ananías

Maidana, que, ao agradecer à dedicatória, disse que a transferiria “aos com-

batentes que caíram na luta, muitos companheiros de todos os partidos polí-

ticos, que perderam suas vidas para que hoje seja possível participar deste

ato”.73 Esse foi um dos poucos espaços em que, em uma data simbólica da

ditadura, se recordavam explicitamente os desaparecidos e assassinados

durante o regime.

Na realidade, o jornalismo e alguns meios de comunicação tiveram um

papel central na luta pela memória da repressão nas comemorações do 3

de novembro. Tanto as rádios quanto a imprensa74 se empenharam para

*Contra o esquecimento: a vida cotidiana nos tempos de Stroessner. (N. da T.)

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29418

419

“ D ATA F E L I Z ” N O PA R A G UA I . F E S T E J O S D E 3 D E N O V E M B R O

que, a cada ano, houvesse um resgate da memória do passado, como formade fazer frente à celebração no bairro e entre os setores ligados ao ditador.Um papel fundamental na transmissão geracional, pois serviu para que ajuventude atual, que não viveu os rigores do regime, pudesse conhecer aparte mais obscura do governo de Alfredo Stroessner.

1999: A FESTA NO BAIRRO, 10 ANOS DEPOIS

Na noite do 2 de novembro de 1999, dez anos após a queda de Stroessner,um setor do bairro San Pablo estava em festa. Na praça central, que teve onome trocado para Carmem de Lara Castro,75 as pessoas se mobilizavampara a celebração. Como o busto de Stroessner foi derrubado após o golpe,surgiu no lugar a sua imagem desenhada em um grande lenço preso aosgalhos de uma frondosa mangueira. Era uma má reprodução de uma dasfotos mais difundidas de Stroessner durante a ditadura, na qual ainda apa-rece jovem.

De um lado do precário cenário havia um potente equipamento de somque difundia músicas dedicadas a Stroessner: Volte general Stroessner, Portua chegada, Reclamamos tua presença, Teu regresso ao Paraguai, Volte ou-tra vez general Stroessner, Volte logo. A essas novas canções, somavam-seantigas músicas que recordam “o valente guerreiro do templo de aço”, “Teucanto ao vento é um canto de paz, o cantar da vitória que leva uma mensa-gem, nesta homenagem ao grande general.”76 As casas em torno da praça seintegravam à decoração e aos festejos, com bandeiras coloradas e equipa-mento de som nas calçadas.

Na vestimenta dos participantes, destaca-se o ao pyta (roupa colorada):os homens, com camisa e lenço de cor vermelha, as mulheres com cami-sa, lenço na cabeça e saias típicas dessa cor. O ao pyta representa o orgu-lho de ser colorado.77 Os broches com a foto de Stroessner também eramparte da vestimenta, assim como a imprescindível bandeira colorada, comsua estrela branca no lado superior esquerdo. Havia grandes faixas com ins-crições diversas, algumas de grupos internos do Partido Colorado ou deseções de bairro de cidades vizinhas. Outras tinham legendas alusivas a

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29419

420

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Stroessner: “Sou stronista de coração”, “Stroessner com o povo”, “Paz ebem-estar com Stroessner”, “1954-1989, um país sério”, “1954-1989, euera feliz e não sabia”.

A festa incluiu, como em outros anos, o baile na praça e caravanas deveículos adornados com flores, balões e a foto do líder desfilando durantetoda a noite. Houve também fogos de artifício, contratados diretamenteem Foz de Iguaçu, no Brasil, por um custo aproximado de 30 mil dólares.78

À meia-noite, o céu ficou cheio de milhares de luzes e estrelas coloridas.Foi um alvoroço total: o júbilo de aproximadamente 500 pessoas tomouconta da praça, das ruas e das casas. Outro 3 de novembro chegou e o es-trondo dos fogos de artifício faz parecer Natal ou Ano-Novo. Enquantoisso, em algumas residências, os telefones ligavam para o Brasil: o generalrecebia as saudações e felicitações desse povo que não o esquecia.

As promotoras dos festejos foram sempre, e continuam sendo, as mu-lheres. Contam com o apoio dos líderes nacionais: “Sua filha Chela, suasobrinha Clara, o presidente da seccional, enfim, todos trazem algo — fo-gos, dinheiro para refrigerantes. São dirigentes que preferem apoiar semaparecer.” Os dirigentes políticos fornecem dinheiro, mas preferem se man-ter no anonimato.

Muitos jovens participam dos festejos de 3 de novembro, o que mostraa importância da transmissão de valores e rituais entre as gerações. Stroessnerfoi derrubado há mais de dez anos, motivo pelo qual pouco é o que os jovenspodem lembrar dessa época. Cresceram em um ambiente diferente, nãoconheceram o regulamento policial número 3,79 não sofreram nem conhe-cem detenções políticas, torturas ou assassinatos. Embora essas práticasrepressivas tenham existido durante a ditadura, seus pais e mães lhes trans-mitiram a lembrança de um “outro” passado: o que consideram de paz,progresso e bem-estar, do qual têm saudades. Em meio a essas imagens, osjovens festejam a figura de Stroessner com base em sua avaliação do pre-sente, pois “o governo é um desastre, desde que ele foi derrubado não hádinheiro, não há trabalho, há assassinatos, não se pode ir tranquilamenteàs festas. Um ladrão pode entrar em sua casa e matá-lo. Há violadores edelinquentes por todos os lados”.80 Em contraste, então, se idealiza o pas-sado. Carlos, um jovem de 24 anos, afirma: “Antes havia segurança nas ruas,

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29420

421

“ D ATA F E L I Z ” N O PA R A G UA I . F E S T E J O S D E 3 D E N O V E M B R O

geladeira cheia, o dinheiro rendia mais. Tinha 12 anos quando houve o golpe(de 1989), mas lembro que se vivia melhor e sei, por meio de meus primos,que se faziam boas farras sempre que e quando não se ia ‘contra’.” Para ele,viver na época stronista e em “qualquer período ditatorial é melhor”, o quereafirma sua adesão a formas autoritárias de governo.

Nos primeiros anos da transição, as pessoas se reuniam para festejar adata como uma maneira de demonstrar agradecimento ao general pela paze tranquilidade com que lhes havia brindado. Com a passagem dos anos, oato converteu-se em um espaço de protesto pela situação econômica, pelainsegurança e pela instabilidade política do presente. Há um reconhecimentode que o governo stronista foi uma ditadura, mas justificam sua atuaçãorepressiva como uma necessidade e como o preço da paz. Nessas condi-ções, a democracia é uma palavra “vazia de conteúdo”, associada a fome,delinquência, libertinagem: “Creio que nem no Kindergarten* estamos emmatéria de democracia. Não sabemos o que significa. As pessoas dizem que,porque estamos na democracia, se pode fazer tudo o que se quer”, diz donaFelicita, moradora do bairro.

À primeira vista, a prosperidade econômica, a segurança dos cidadãos ea estabilidade política aparecem como motivos pelos quais se tem saudadesdo passado. Visto dessa maneira, poderíamos dizer que, melhorando essesaspectos, a democracia é visível no Paraguai. Contudo, há uma cultura doautoritarismo arraigada na população. Os stronistas de ontem que hoje semanifestam nunca perderam o seu pensamento autoritário e os jovens quenão viveram sob o stronismo são os que hoje, em outras circunstâncias,poderiam valorizar a democracia, mas preferem ficar com o discurso dosautoritários, por não viver em uma situação melhor. As afirmações de Carlos— que diz não ter muita clareza sobre os conceitos de democracia e ditadu-ra — refletem essa atitude: “Gostaria de ter... não sei se é ditadura, mas terno comando alguém firme, patriota, que dê oportunidades aos jovens, aosoposicionistas, mas que seja ele quem tome as decisões...” Consultado so-bre se gostaria de viver em uma época como a de Stroessner, afirma: “Éverdade que sim, porque prefiro uma ditadura, militar se possível, porque

*Jardim de infância. (N. da T.)

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29421

422

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

o militar tem uma conduta correta... na realidade, deve ter sua máfia, comotodo mundo, mas tem uma conduta que nós, civis, não temos.”

REFLEXÕES FINAIS

O início de uma pesquisa sempre produz expectativas em torno do que seencontrará ao longo do trabalho e, especialmente, o que se terá no fim.Neste caso, notam-se as tensões que surgiram por ter trabalhado sobre umacomemoração que — nas palavras de uma entrevistada — é “para festejarStroessner”.

“É impossível encontrar uma memória, uma visão e uma interpretaçãoúnicas do passado, compartilhadas por toda uma sociedade”.81 A data ob-jeto deste estudo é interpretada de diferentes maneiras por distintos seto-res da sociedade paraguaia e isso produz tensões e conflitos. Os casos maisevidentes foram as mobilizações durante o 3 de novembro do primeiro anoda transição (1989) e a repressão aos festejos do bairro Stroessner, em 1990.Posteriormente, a comemoração passa a ser quase exclusiva daqueles quelamentam sua ausência e moram no bairro fundado pelo ditador, com opróprio nome. O 3 de novembro como motivo de condenação da ditadurapassou a produzir apenas atividades isoladas.

As propostas políticas em torno dos festejos também foram mudando,conforme os atores e o passar dos anos. No momento da transição, as au-toridades apostaram no esquecimento do “bom” que a ditadura podia sig-nificar para alguns setores. Essa proposta de esquecimento surgiu por meioda repressão ou da proibição das festividades e de outras ações, como amudança de nomes das ruas, praças, dos bairros e das cidades, a derrubadade bustos, monumentos e placas — enfim, de todo símbolo que pudesserepresentar uma afirmação de Stroessner como figura positiva. Essa políti-ca, contudo, não se refletiu na implantação de um sentido oposto ou alter-nativo. A proposta de setores associados à defesa dos direitos humanos, deconsiderar o 3 de novembro Dia da Infâmia Nacional, não prosperou.

Pelo contrário, a data continuou sendo de homenagem a Stroessner, apartir da iniciativa popular no bairro, ampliada por causa do crescimento

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29422

423

“ D ATA F E L I Z ” N O PA R A G UA I . F E S T E J O S D E 3 D E N O V E M B R O

do poder político das forças ligadas à figura do ditador. Esse paulatino cres-

cimento político do stronismo se manifestou de maneira cabal nas come-

morações de 2001, quando o saudosismo adquiriu um caráter oficial: “O

governo do presidente Luis González Macchi recordou ontem o ditador

Stroessner com um programa especialmente preparado em homenagem ao

89º aniversário do tirano, difundido pela rádio oficial do Estado”.82 Quan-

do surgiram as críticas, entretanto, o governo não assumiu a responsabili-

dade e pediu desculpas, afirmando que foi “um erro administrativo”.83

Para Le Goff,84 a memória é um elemento essencial da identidade, seja

essa individual ou coletiva. Pode-se dizer então que o grupo que recorda

a ditadura se sente identificado com ela? Para os que hoje continuam fes-

tejando o 3 de novembro, o governo de Stroessner foi melhor do que os

da transição. Não veem a democracia como a forma mais adequada de

funcionamento da sociedade paraguaia e manifestam seu desejo de que

“os militares” governem o país. Identificam-se com um governo autoritá-

rio, militarista e ditatorial e justificam isso afirmando que lhes propor-

cionou paz, bem-estar e progresso. Nesse sentido, é importante destacar

que não se trata precisamente de propor o retorno do ditador* — embo-

ra haja hoje incipientes iniciativas nesse sentido — mas de protestar dian-

te da situação atual, de mal-estar econômico e social, além da insegurança

cotidiana.

No início do século XXI, o Paraguai está retrocedendo a passos gigan-

tescos em seu processo de democratização, com a cultura autoritária se for-

talecendo dia a dia, enquanto a adesão dos cidadãos a propostas messiânicas

e populistas ganha terreno no espaço político.85 Não devemos nos surpreen-

der então se, no futuro, talvez muito próximo, a “Data Feliz” volte a fazer

parte do calendário oficial de festas, levando em conta que importante

parcela dos atuais dirigentes colorados defende ferreamente “o passado

glorioso com Stroessner” e que o Partido Colorado conseguiu consolidar

sua hegemonia eleitoral, ao passo que a oposição, profundamente enfra-

quecida, não produz novas propostas nem novos líderes democráticos.

*O artigo foi escrito antes da morte de Stroessner, em 16 de agosto de 2006. (N. do T.)

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29423

424

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Uma parte da memória “positiva” da ditadura refere-se ao fato de queas pessoas não valorizam os passos dados para instaurar a democracia noParaguai, nem os avanços em matéria de pluralismo, de institucionalidade,de transparência nos processos eleitorais. É muito mais relevante a estag-nação em termos econômicos e sociais. A isso somam-se a fragilidade doaparato judicial e a corrupção generalizada. Como se pode fazer frente ànostalgia do passado com Stroessner?

A vontade política é a chave na construção da memória histórica.86 Osseguidores de Stroessner lutam por uma memória que os identifica e aglutina;e não surgem grupos que tentem recuperar a memória da repressão. Talvezisso possa estar relacionado ao fato de que, nesses anos, não houve alter-nância política no governo. Embora em um primeiro momento suas açõesparecessem demonstrar o contrário, o Partido Colorado nunca teve inten-ção de esquecer o passado com Stroessner. O stronismo volta a se encon-trar na cúpula do poder do partido e do governo. Mas os dirigentes daoposição tampouco mostraram interesse em liderar mudanças que levem àdemocratização do país e recordam o passado obscuro da ditadura apenasnos discursos.

Segundo Yerushalmi, “um povo ‘esquece’ quando a geração possuidorado passado não o transmite à seguinte”.87 A questão das gerações é chavenesse processo. Muitos jovens participam da festa de 3 de novembro e seapropriam das memórias de um passado glorioso com Stroessner, contras-tando-o com os tempos atuais, para mostrar seu inconformismo com o pre-sente. Talvez seja mais difícil recordar o que dói do que o que proporcionoufelicidade e bem-estar. A memória da repressão deve ser construída a partirda dor de vidas despedaçadas, enquanto a memória da ditadura se manifes-ta com as saudades de “tempos dourados” para aqueles que se beneficia-ram dela. Para resgatar aquela memória — que hoje está empalidecida pelainsistente movimentação dos autoritários — devem existir muita força einteresse coletivos, o que talvez ainda não seja possível no Paraguai.

É provável que aqueles que detêm efetivamente a memória da repressãoda ditadura de Stroessner ainda não tenham adotado datas específicas, masoutras formas de expressão políticas e culturais, que apareceram em dife-rentes momentos em que o processo de democratização esteve em perigo.88

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29424

425

“ D ATA F E L I Z ” N O PA R A G UA I . F E S T E J O S D E 3 D E N O V E M B R O

Esses momentos têm como protagonistas setores da população que lutaramcontra a ditadura e também as novas gerações que adotam o lema “Ditadu-ra nunca mais”. Nessas circunstâncias, a lembrança à repressão stronistaaparece distante e pouco significativa, embora possivelmente seja um dosmotivos pelos quais as pessoas se mobilizam em defesa da democracia. Pa-rece que a memória da ditadura stronista vai cedendo lugar a outros riscospara a democracia e que as possibilidades de ativar essa memória são cadavez menores. Nesse cenário, não se descarta o risco de que a memória do“bom governo” de Stroessner possa ir se convertendo em “verdade históri-ca” para as gerações mais jovens.

Notas

1. O reagrupamento das novas forças partidárias em torno de Stroessner permiteque elimine seu principal rival, Efipanio Méndez Fleitas, da presidência do Ban-co Central, para depois enviá-lo em “missão cultural” para a Espanha. Era oinício de um exílio que terminaria com sua morte (Martini, 1997, p. 880). Alémde Méndez Fleitas, outros importantes dirigentes colorados deixaram o país.Waldino Ramón Lovera, Miguel A. González Casabianca e Mario Mallorquín,entre outros, fundaram na Argentina o Movimento Popular Colorado (Mopoco),que empreendeu tenaz oposição ao regime de Stroessner do exílio. Seus dirigen-tes sofreram perseguições durante quase toda a ditadura.

2. Arditi, 1992, p. 21.3. O sindicalismo, por exemplo, fortemente politizado, tinha em seu seio líderes

contrários a Stroessner. Devido à expulsão de Méndez Fleitas e à grave criseeconômica no país, adotou uma série de medidas que levaram à primeira grevenacional, em agosto de 1958. Essa greve resultou na prisão e no exílio dos prin-cipais líderes da Confederação Paraguaia dos Trabalhadores (CPT), em sua maioriapertencentes ao Partido Colorado, que também se instalaram na Argentina, for-mando a CPT no Exílio (CPT-E).

4. Abente Brun, 1993.5. Após um longo conflito, envolvendo correntes internas do Partido Colorado,

setores sociais e estudantis, que terminou com a greve geral de 1958, Stroessnerdissolveu, no ano seguinte, a Câmara de Representantes.

6. Lewis, 1986, p. 205.7. Conferência Episcopal Paraguaia, 1986, p. 154.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29425

426

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

8. Pessoa que faz parte da planilha de salários de alguma instituição pública semobrigação de trabalhar.

9. Arditi, 1993, p. 43.10. As seccionais ou os comitês de base (347 no total) estão presentes em todas as

cidades e todos os povoados do Paraguai. Suas autoridades, que são eleitas dire-tamente pelos filiados do partido em cada zona ou distrito, têm grande podernas comunidades.

11. Também deviam participar das “atividades programadas pelos organismos debase, como torneios esportivos, desfiles, festas dançantes, cursos de capacitação”.(Morínigo y Silvero, 1986, p. 34.)

12. Arditi, 1992, p. 10.13. Segundo González del Valle, a Administração Nacional de Telecomunicações

(Antelco) é o pai (ou a mãe?) do culto ao ditador: “Seu administrador geral,Salvador Guanes, assina a circular número 20, com data de 11 de novembro de1954, que impõe às emissoras do país as músicas e as palavras com que deveminiciar suas transmissões diárias... As ordens recebidas são: 1) execução da polcaGeneral Stroessner, de Samuel Aguayo; 2) execução de uma música patriótica 1ºde março, Colorado e 26 de fevereiro, alternando diariamente uma delas”(González del Valle, 1998: 45). Em todas as partes do país, à beira de estradas ecaminhos, destacavam-se amplos cartazes que reproduziam a bandeira coloradacom a sempre presente estrela branca na parte superior esquerda. Em um ângulo,ficava a foto de Stroessner e, mais abaixo, a legenda: “Paz, Progresso e Bem-Estarcom Stroessner.” Na estrada que leva à outrora chamada Cidade PresidenteStroessner, existe até hoje uma frondosa árvore de lapacho,* chamada pelos lo-cais de tajy Stroessner, porque era “forte, robusta e bela”. Essa associação tãopitoresca é provavelmente resultado da propaganda tão bem montada dostronismo.

14. Arditi, 1992, p. 21.15. “[...] o estado de sítio vigorou ininterruptamente durante décadas; renovando-se

com rigorosa precisão a cada 90 dias e sendo suspenso, com igual precisão, du-rante 24 horas, para a realização de alguma votação [...] Além das disposiçõesconstitucionais, deve-se levar em conta o uso da legislação penal, especialmentedas leis 294 de 1955 [Lei de Defesa da Democracia] e 209 de 1970 [Lei deDefesa da Paz e da Liberdade das Pessoas], que só foram derrubadas após a quedade Stroessner, em 1989” (Arditi, 1992, p. 25).

16. “Data Feliz” (fecha feliz, em espanhol) é o título de uma canção dedicada aStroessner. Essa expressão foi tão usada por autoridades nacionais e dirigentes

*Tecoma lapacho. (N. da T.)

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29426

427

“ D ATA F E L I Z ” N O PA R A G UA I . F E S T E J O S D E 3 D E N O V E M B R O

partidários nos espaços reservados nos meios de comunicação para saudar o dita-dor que seu significado é conhecido em todo o Paraguai.

17. Em 3 de novembro de 2001, a Rádio Nacional (estatal) transmitiu um programaem homenagem a Stroessner. O fato perturbou outros meios de comunicação e aopinião pública, obrigando o porta-voz presidencial a “esclarecer” que por “umerro administrativo foi permitido que se cantassem loas ao ex-presidente AlfredoStroessner em seu aniversário” (Notícias, 6 de novembro de 2001, p. 8). Nin-guém, entretanto, acreditou nessa versão, especialmente levando em conta quetanto o presidente da República, Luis González Macchi, quanto outros impor-tantes líderes colorados que ocupavam cargos no governo jamais ocultaram suaadmiração pelo ditador. Já em fevereiro de 2000 foi ignorado oficialmente oaniversário do golpe que derrubou Stroessner em 1989. Consultado sobre a de-cisão de não fazer qualquer cerimônia para recordar o evento, González Macchidisse: “Não se pensou, nem em nível oficial ou de gabinete, nem nos corredoresdo Palácio [...] Não sei se este governo, mas creio que todos os cidadãos devemrecordar uma data de mudanças, digamos, mudanças de governo, mas [...] o 3 defevereiro, para mim e alguns colorados, não mudou nada.” (La Nación, 3 de marçode 2001).

18. Juan O’Leary (1879-1965) era um colaborador próximo de Solano López e, comNatalício González — que governou por um curto período o Paraguai, imediata-mente depois da Revolução de 1947, e é considerado por muitos o pai do nacio-nalismo paraguaio — foi o promotor da festa de aniversário de Solano López,em 1926. Em 1936, o presidente da República, coronel Rafael Franco — tam-bém nacionalista, que assumiu o poder após o golpe militar de 17 de fevereirodesse ano —, decretou que o 1º de março, data da morte de López, fosse feriadonacional e declarou-o herói máximo. Tanto o 24 de julho como o 1º de marçosão datas especiais no calendário escolar (Rodríguez Alcalá, G., em Bareiro,Escobar e Sosnowski (comps.), 1994, p. 71-76).

19. El País, 2, 3 e 4 de novembro de 1954.20. Entrevista a Livio González Santacruz, encarregado da área sindical do Partido

Comunista paraguaio durante a década de 1950, que passou 11 anos preso, de1960 a 1971.

21. O Partido Revolucionário Febrerista (PRF) tem sua origem no movimento mili-tar de 17 de fevereiro de 1936, cujo líder foi o coronel Rafael Franco, que “reu-niu em torno de si diferentes correntes que vinham se manifestando de diversasmaneiras nos meios de comunicação contra os partidos tradicionais. Desde en-tão, nasce um novo partido no Paraguai, embora sua organização como tal sótenha sido formalizada em 1951 [...]” (Granada, 1985, p. 40). Em agosto de1937, Franco era derrubado por outro golpe que o levou ao exílio. O PRF per-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29427

428

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

maneceu, durante toda a ditadura e nos primeiros anos do processo de transiçãodemocrática iniciada em 1989, como a terceira força política do Paraguai.

22. Granada, 1985, p. 97.23. González del Valle, 1998, p. 41.24. Ibidem.25. Granada, 1985, p. 97.26. Os presentes recebidos por Stroessner eram de qualidade e preço diversos: peque-

nos artesanatos, em geral feitos especialmente para ele, placas com saudações,danças, acrósticos, utensílios de pesca (um dos hobbies prediletos do general) etc.

27. Um desses presentes, que ainda vive na memória das pessoas como uma atitudede agradecimento de Stroessner, é a criação, em 1966, da Vila Campeã, nessemesmo bairro, composta de 15 residências entregues como prêmio do “primeirodesportista do país” às jogadoras de basquete que venceram o campeonato sul-americano em 1962.

28. Não foram encontrados homens entre os organizadores da festa no bairro. Nasconsultas prévias, feitas para a seleção das pessoas a serem entrevistadas, só apa-receram nomes de mulheres, embora, a julgar pelo que conta dona Clara, muitoshomens faziam parte da comissão de festejos. Isso se explica porque tradicional-mente são as mulheres que se encarregam das festas e homenagens, enquanto oshomens assumem o papel de provedores, de ideólogos.

29. Entrevista a Clyde Soto, pesquisadora feminista.30. O regime stronista estimulou uma política de formação profissional das mulhe-

res. Muitas se formaram em profissões tradicionalmente femininas, como cabe-leireira, costureira, massagista e datilógrafa. Nos comitês de base colorados, maisconhecidos como seccionais, havia cursos com horários adequados para que asdonas de casa pudessem participar. Foi criada a Comissão Nacional Republicanade Ação Social (Conaras), dirigida por dona Eligia Mora e outras mulheres deautoridades nacionais, que se dedicava, entre outras coisas, à formação profissio-nal feminina. Por isso, muitas mulheres recordam que, graças a Stroessner, con-seguiram capacitação profissional e obtiveram sua independência econômica.

31. Lewis, 1986.32. A construção da hidrelétrica binacional produziu um período de bonança, que se

tornou conhecido com o boom de Itaipu. Foram criados quatro mil postos detrabalho diretos. Essa época de bem-estar econômico foi aproveitada pelo gover-no para promover uma feroz repressão contra aqueles setores e pessoas que seopunham ao regime.

33. Dona Felicita afirma: “Em nosso bairro todo, o que temos é dessa época — ocentro de saúde, o Clube 3 de Novembro, a igreja, as ruas, as casas onde vivemos...”

34. Entrevista de dona Maria, no bairro de San Pablo (ex-bairro Stroessner).

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29428

429

“ D ATA F E L I Z ” N O PA R A G UA I . F E S T E J O S D E 3 D E N O V E M B R O

35. Em um trabalho sobre o assunto, afirma-se que esse novo papel da Igreja Católi-ca atendia “às renovações eclesiais e, especialmente, às conclusões de Medellín,que estimularam um setor da Igreja a assumir um notável ativismo social e umaatitude de denúncia diante das arbitrariedades políticas e das injustiças sociais[...] poderíamos localizar a Igreja paraguaia desses anos entre as mais progressis-tas do continente latino-americano, com a do Peru e a do Brasil” (Carter, 1991,p. 66).

36. Entrevista de monsenhor Medina.37. Última Hora, 3 de novembro de 1987.38. Bareiro et al., 1994, p. 71.39. Juan E. O’Leary, sabendo da admiração de Stroessner pelos “heróis da pátria”,

declarou-se, por sua vez, seu admirador e considerou-o seguidor da causa de JoséGaspar Rodríguez de Francia (prócer da independência paraguaia, que governouo país durante 26 anos e se declarou “ditador perpétuo”), do marechal FranciscoSolano López (herói da Guerra da Tríplice Aliança) e de Rigoberto Caballero(fundador da Associação Nacional Republicana-Partido Colorado e conhecido

como o Centauro de Ybycuí). Em recordação das festas pátrias (14 e 15 de maio),

O’Leary escreveu “Uma carta ao presidente”, que foi publicada no diário El País,

em 21 de maio de 1959, e que diz, entre outras coisas: “Mas voltemos ao aniver-

sário que chega [...], aproximemo-nos de reverenciar o Pai, o Filho e o Espírito

Santo de nossa Trindade Patriótica: o Doutor Francia, o Patriarca de nosso Pro-

gresso e o Mártir do Cerro Corá [...]” (Bareiro et al., 1994, p. 71).

40. Por ocasião do aniversário de 1963, por exemplo, é publicado na imprensa um

acróstico intitulado “Ao general Stroessner”.

Guarani alemã em suas veias é sua gloriosa estirpe

Encarnação, nas margens do Paraná, sua cidade natal

Novembro, mês florido, perfumado e primaveril

O três em um lar feliz, entre flores, música e alegria

Louro, são e forte como o sol radiante do meio-dia

Alfredo nasceu para a prosperidade do Paraguai

Legado para a Paz, a Justiça e a Liberdade Nacional.

Alegres, orgulhosos e livres, festejando hoje seu dia

Chegamos irmanados e lhe desejamos, meu general

Felicidades, saúde sempre, amor e alegria

Rogando-lhe que aceite nossa homenagem e admiração

Em reconhecimento à paz e a seu amor pela nação

Deus ilumine o herói e grande presidente do ParaguaiOrgulho da Pátria em jardim de oliveiras em floração.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29429

430

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Subiu em maio refulgente como estrela celestialTendo em mente a prosperidade e paz nacionalRompendo as cadeias da Pátria enclausuradaOstentando em suas mãos a bandeira imaculadaEnlaçada em suas linhas e com franjas desenroladasSeguido por um povo valente, viril e imortalSurgido de duas guerras para ser livre no mundo sem igualNem opressores nem servos existem no ParaguaiÉs símbolo de amizade e paz na América meridionalReprocessando por Stroessner para glória e honra nacional.

(Isaías G. Barreto, La Tarde, 3 de novembro de 1963, p. 3.)

41. Outra maneira de agradecer ao general era dar o nome de “3 de novembro” a“empresas de transporte, oficinas mecânicas, salões de beleza, salões de baile,clubes de futebol, residências, municípios, bairros, ruas etc. Por mais grave quefosse o delito ou a falta, as autoridades fiscais nacionais ou regionais considera-vam incômodo e arriscado intervir em uma empresa que tivesse o nome de ‘3 denovembro’” (González del Valle, 1998, p. 42).

42. Em 1956, quando o 3 de novembro ainda não tinha tanta relevância, dirigentesliberais e militares institucionalistas armaram uma conspiração para derrubarStroessner um dia depois de seu aniversário. A conspiração foi abortada. O fatoé mencionado em numerosos trabalhos publicados, embora nenhum dos livrosconsultados para este artigo relacione o aniversário com a conspiração.

43. É muito lembrada aquela engenhosa frase que diz: “Em novembro, o 1º é dia detodos os santos, o 2º é dia de todos os mortos e o 3º é o dia do único vivo.”

44. Granada, 1985, p. 97.45. Ibidem, p. 159.46. É preciso levar em conta que, nessa época, as ditaduras militares haviam aderido

à doutrina de segurança nacional e trabalhavam em conjunto para “combater ocomunismo”. “Na prática, isso se traduziu inicialmente a um pacto de cooperaçãoentre os exércitos de Argentina, Brasil, Chile, Bolívia e Paraguai. Esse convêniodas forças de segurança recebeu o nome em código de Operação Condor e, rapi-damente, estendeu-se além do Cone Sul” (Boccia, González, Palau, 1994, p. 249).

47. Assim foi chamado o grupo que ocupou a presidência e as três vice-presidênciasda Junta de Governo do Partido Colorado, em 1987, após o afastamento doMovimento Tradicionalista, levando Stroessner a retirar seu apoio porque come-çaram a questionar sua forma de governar.

48. A sentença mais importante foi a aplicada a Pastor Coronel, temido chefe do

Departamento de Investigações, de janeiro de 1968 até a queda da ditadura.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29430

431

“ D ATA F E L I Z ” N O PA R A G UA I . F E S T E J O S D E 3 D E N O V E M B R O

Coronel recebeu a pena máxima de 25 anos pela morte de Mario Shaerer Prono,

em abril de 1976. Outros colaboradores próximos receberam a mesma pena pelo

mesmo caso.

49. Associação Nacional Republicana, 1989, p. 3. O grupo é nosso.

50. A Coordenadoria “Não à Impunidade” aglutinava mais de 40 organizações sociais

(centrais de trabalhadores, movimentos estudantis, associações de moradores, de

mulheres, partidos políticos). Entre elas destacavam-se a Central Unitária dos

Trabalhadores (CUT), a Central Nacional dos Trabalhadores (CNT), a Federação

de Estudantes Universitários do Paraguai (Feup), a Organização dos Trabalhado-

res na Educação do Paraguai (Otep), a Federação dos Trabalhadores Bancários, o

Tribunal Permanente dos Povos e a Pastoral Social da Igreja Católica. A

Coordenadoria convidou organizações sociais e políticas de todo o país a se uni-

rem a essa manifestação, motivo pelo qual se realizaram, nesse 3 de novembro,

atos de repúdio em várias cidades.

51. Parte da mensagem do monsenhor emérito Ismael Rolón, lida no ato. Rolón foi

arcebispo do Paraguai durante grande parte do regime ditatorial e, a partir da

Igreja Católica, estimulou, no fim dos anos 1960, um combate frontal contra

Stroessner.

52. O advogado Abilio Rolón iniciou uma investigação e denunciou casos de bens

obtidos de forma irregular por parte de ex-autoridades nacionais, mas foi acusa-

do por alguns deles de tentativa de suborno em troca de seu silêncio. Os antece-

dentes de Rolón indicam que sua detenção foi apenas mais um recurso para adiar

a abertura dos processos judiciais por ele promovidos.

53. A luta do Hospital de Clínicas, iniciada em meados de 1985, é representativa dos

últimos anos do período stronista. Nesse hospital-escola surgiu um espaço social

de forte oposição ao governo, envolvendo os cidadãos de Assunção na luta pelo

fim da ditadura, que ia paulatinamente se enfraquecendo, enquanto crescia a

força da cidadania. As pessoas participavam ativamente dessas manifestações,

marchas e festivais realizados contra Stroessner. Os médicos e enfermeiras do

hospital foram presos em várias ocasiões. Apesar disso, a tortura das décadas

anteriores deixou de ser uma prática usual, devido às constantes denúncias no

exterior de violação dos direitos humanos no Paraguai.

54. Rádio Cáritas, 3 de outubro de 1989.

55. Última Hora, 4 de novembro de 1989; ABC Color, 4 de novembro de 1989.

Houve, contudo, manifestações divergentes, devido à participação como ora-

dor de Domingos Laíno, principal líder da oposição durante o stronismo. Em

seu discurso, Laíno exigiu castigo para aqueles que roubaram o Estado paraguaio.

Os manifestantes responderam lembrando que, de sua cadeira no Senado, nada

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29431

432

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

havia feito para mudar a situação de corrupção e impunidade que persistia.Fazendo coro, gritavam “Destape a panela de pressão” e “Laíno, Rodríguez éteu paíno” (padrinho), recordando sua promessa como candidato, seis mesesantes. Naquela ocasião, Laíno prometeu divulgar todos os delitos cometidospelo stronismo. Mas suas ações como senador foram fortemente criticadas pordiversos setores sociais.

56. ABC Color, 3 de novembro de 1989, p. 10. A conjuntura de 1989 foi, sem dúvi-da, excepcional. Essas afirmações foram esquecidas pelo diretor e proprietáriodesse diário, convertido depois em férreo defensor de Lino Oviedo, militar queteve um papel de protagonista no golpe de 1989, mas que mais tarde tentoulevar adiante uma rebelião militar, em abril de 1996, sem sucesso. A partir dali,Lino Oviedo foi acusado de atuar como fator desestabilizador das instituiçõesdemocráticas no Paraguai.

57. ABC Color, 4 de novembro de 1989, p. 4.58. Ibidem.59. Dona Estela, antiga moradora do bairro que continua colorada e se considera de

oposição, porque tanto seu pai quanto seu marido foram vítimas da repressãostronista, assegura: “Nesse primeiro ano, muita gente se reuniu na praça. Haviacaravanas de veículos, intermináveis, e aí foi que a polícia avisou para não fazera festa, que tudo fosse suspenso, mas eles não deram bola. Começaram e, comohavia liberdade, fizeram a festa. Aí, surgiu a repressão. E não era só da polícia.Vieram também os da Fope e até militares com tanques.” Cabe esclarecer que aFope é uma força criada especialmente para reprimir manifestações. Na época daditadura, sua atuação significava quase sempre que a manifestação era considera-da importante pelas autoridades.

60. Monsenhor Medina, por exemplo, acha que aquela mobilização de 1989 nãopôde se repetir em outros anos porque “a cultura paraguaia é assim. Não somosperseverantes, não temos memória histórica e, por isso, perdemos nossa identi-dade, somos muito dóceis à dominação e obedientes”.

61. O triunfo de um movimento independente na capital e do principal partido deoposição em umas 40 cidades consolidou a ideia de que, por meio do voto, sepoderia instaurar a democracia, o estado de direito e a justiça social, embora nosanos seguintes essa esperança tenha declinado, quando os partidos opositores —que antes criticavam o empreguismo, a corrupção e o autoritarismo — tambémadotaram os vícios que acreditavam ser exclusivos dos colorados.

62. Os adversários eram Luis Maria Argaña, afastado do governo de Rodríguez, queaglutinava em torno de si conhecidos stronistas que até esse momento não atua-vam na política, e Juan Carlos Wasmosy, empresário que enriqueceu com a constru-ção da represa de Itaipu, eleito pelo grupo oficialista como candidato presidencial

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29432

433

“ D ATA F E L I Z ” N O PA R A G UA I . F E S T E J O S D E 3 D E N O V E M B R O

na disputa interna no partido. Finalmente, em fevereiro de 1993, após uma lon-ga contagem de votos, Wasmosy foi proclamado vencedor e passou a ser o candi-dato oficial do partido.

63. Os Arquivos do Terror (ou do Horror) são documentos da ditadura encontra-dos em uma dependência policial, que servem de prova irrefutável dos abusoscometidos durante o governo Stroessner. Graças a eles, também se comprovoua existência da Operação Condor, implementada pelas ditaduras militares doCone Sul.

64. Como exemplo, menciona-se o caso dos irmãos Ramírez Villalba, assassinadosno Departamento de Investigações, nos anos 1970. Os advogados dessa causaencontraram importantes provas nesses arquivos, o que lhes permitiu solicitara extradição de Stroessner. Sobre esse assunto, o promotor-geral do Estadoafirmava, baseando-se nos arquivos, “[...] que Stroessner tinha conhecimentodetalhado de tudo o que ocorria nas Investigações” (ABC Color, 3 de novem-bro de 1993, p. 6).

65. Sua mulher, Celestina Ríos, teria morrido em consequência de torturas psicoló-gicas sofridas enquanto estava na prisão. Almada foi acusado de atividades sub-versivas, como diretor de um colégio secundário. Além disso, havia escrito umatese sobre a educação e a dependência, em que criticava o regime. Foi tambémum dos estimuladores da descoberta dos arquivos policiais.

66. ABC Color, 3 de novembro de 1993, p. 6.67. Última Hora, 3 de novembro de 1993, p. 4.68. Última Hora, 4 de novembro de 1994, p. 13.69. Tejuruguay: espécie de haste feita com couro de vaca. O cabo é grosso e vai

afinando até chegar à ponta (o nome em guarani provém da semelhança com orabo do lagarto).

70. Última Hora, 4 de novembro de 1995, p. 8.71. Última Hora, 2 de novembro de 1996.72. Rádio Ñandutí, 3 de novembro de 1998.73. ABC Color, 4 de novembro de 1998, p. 6.

74. A televisão não foi incluída como fonte de informação neste trabalho. Não

obstante, não desempenhou o mesmo papel que a rádio e a imprensa no que diz

respeito às comemorações do 3 de novembro.

75. O nome foi mudado pela Prefeitura de Assunção, em honra a uma militante

da oposição stronista que impulsionou a luta pelos direitos humanos no

Paraguai. Trata-se de uma importante dirigente do Partido Liberal Radical

Autêntico (PLRA), líder da Comissão Paraguaia dos Direitos Humanos. Dona

Coca, como era chamada, visitava as prisões onde havia presos políticos, se

interessava pelo estado em que se encontravam, levava roupa e comida. Era

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29433

434

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

uma das poucas que ousavam desafiar o regime, ao divulgar as atrocidadescometidas no país.

76. Versos da canção General Stroessner, de Samuel Aguayo. Essa música, escrita em1954, foi o presente de aniversário de Stroessner no seu primeiro ano comopresidente da República.

77. Para a oposição, causa medo ver alguém vestido de vermelho, porque a cor reme-te ao autoritarismo, à repressão e à intolerância. Na ditadura, usar a cor azul,símbolo do Partido Liberal, tradicional inimigo dos colorados, podia significaraté prisão, pois representava um desafio ao governo colorado.

78. Dados fornecidos pelos técnicos que instalavam as luzes, que disseram desconhe-cer a pessoa que contratara os serviços da empresa.

79. O regulamento policial número 3 proibia a atividade pública após 1h nos diasúteis e após 2h nos sábados e nas vésperas de feriados. Permaneceu em vigor de1978 até pouco antes da queda da ditadura.

80. Expressões de Luís, um jovem de 24 anos, filho de pessoas que sempre admira-ram Stroessner.

81. Jelin, 1998.82. ABC Color, 3 de novembro, de 2001, p. 5.83. Noticias, 6 de novembro de 2001, p. 8.84. Le Goff, 1991.85. Em setembro de 2001, em uma pesquisa sobre democracia e cultura política

feita pelo Centro de Informação e Recursos para o Desenvolvimento (Cird),Stroessner foi eleito o melhor governante e o militar Lino Oviedo ocupou oprimeiro lugar na preferência para presidente da República. Isso indica a forteadesão de uma parte importante dos cidadãos a formas de governo autoritáriase militares.

86. Jelin, 1998.87. Yerushalmi, 1989, p. 18.88. Por exemplo, na tentativa de golpe de abril de 1996 e nos episódios violentos

ocorridos em 1999, conhecido como o Março Paraguaio, que acabou com a tro-ca de presidente da República.

Bibliografia

ABENTE BRUN, Diego (coord.). Paraguay en transición. Caracas: Nueva Sociedad, 1993.ARDITI, Benjamin. Adiós a Stroessner: la reconstrución política del Paraguay. Assun-

ção: CDE, RP Ediciones, 1992.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29434

435

“ D ATA F E L I Z ” N O PA R A G UA I . F E S T E J O S D E 3 D E N O V E M B R O

ASOCIACIÓN NACIONAL REPUBLICANA. Andrés Rodríguez Presidente. Vamos aconstruir el Paraguay moderno y democrático. Assunção: ANR, 1994.

BAREIRO, Line; ESCOBAR, Ticio; e SOSNOWSKI, Saul (comps.). Hacia una culturapara la democracia en el Paraguay, Assunção: CDE, Municipalidade de Assunção,1994.

BLANCH, José M. (coord.), El precio de la paz. Assunção: Cepag, 1991.BOCCIA PAZ, Alfredo; GONZÁLEZ, Myrian; e PALAU AGUILAR, Rosa. Es mi infor-

me: los archivos secretos de la policía de Stroessner. Assunção: CDE, 1994.CARTER, Miguel. El papel de la Iglesia em la caída de Stroessner. Assunção: RP

Ediciones, 1991.CONFERENCIA EPISCOPAL PARAGUAYA. “VII Semana Social paraguaya: el hombre

paraguayo em su cultura”, em Cuadernos de pastoral social, nº 7. Assunção: CEP,1986.

FRUTOS, Juan Manuel. Con el hombre y la tierra hacia el bienestar rural. Assunção:Cuadernos Republicanos, 1982.

GONZÁLEZ DEL VALLE, Alcibiades. Contra el olvido: la vida cotidiana en los tiemposde Stroessner. Assunção: Intercontinental, 1998.

GRANADA, Juan G. Reflexiones políticas. Assunção: Imán, 1985.HALBWACHS, Maurice. “Memoria colectiva y memoria histórica”, revista Sociedad,

nºs 12/13. Buenos Aires: Facultad de Ciencias Sociales, Universidad de Buenos Aires,1995.

JELIN, Elizabeth. “La política de la memoria: el movimiento de derechos humanos y laconstrucción democrática em Argentina”, in: Juicio, castigos y memorias: derechoshumanos y justicia em la política argentina. Buenos Aires: Nueva Visión, 1995.

——. Las luchas por la memoria: hacia un programa de investigación comparada(mimeo), 1998.

LE GOFF, Jacques. El orden de la memoria. El tiempo como imaginario, Barcelona:Paidós Ibérica, 1991.

LEWIS, Paul H. Paraguay bajo Stroessner. México: Fondo de Cultura Econômica, 1986.MARTINI, Carlos. “Alfredo Stroessner”, in: Crônica Histórica Ilustrada del Paraguay,

tomo III. Buenos Aires: Distribuidora Quevedo, 1997.MORÍNIGO, José, e SILVERO, Ilde. Opiniones y actitudes políticas en Paraguay. As-

sunção: Fundación Friedrich Naumann, 1986.PAEZ, D.; BASABE, N.; e GONZÁLEZ, J.L. “Memoria colectiva y traumas políticos:

investigación transcultural de los procesos sociales del recuerdo de sucesos políti-cos traumáticos”, in: AAVV, Memorias colectivas de procesos culturales y políticos.Espanha: Universidad del País Vasco, 1998.

PARAGUAY, Presidencia de la República. Biografia del excelentísimo señor general delejército don Alfredo Stroessner. Assunção: Secretaria de Informaciones y Cultura, 1985.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29435

436

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

RODRÍGUEZ ALCALÁ, Guido. Ideologia autoritária. Assunção: RP Ediciones, 1987.——. “Temas del autoritarismo”, in: BAREIRO, ESCOBAR e SOSNOWSKI (comps.),

op. cit.SEIFERHELD, Alfredo M. (comp.). La caída de Federico Chaves: una visión documen-

tal norteamericana. Assunção: Histórica, 1987.YERUSHALMI, Yosef H. “Reflexiones sobre el olvido”, in: AAVV, Usos del olvido.

Buenos Aires: Nueva Visión, 1989.YORE, Fátima Myriam. La dominación stronista: orígenes y consolidación. Seguridad

nacional y repressión. Assunção: BASE/IS, 1992.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29436

CAPÍTULO 4 Stroessner e “Eu”:a cumplicidade social com a ditadura(1954-1989)

Miguel H. López*Tradução de Maria Alzira Brum

*Professor da Universidade Nacional de Assunção. Jornalista do Última Ibra. Autor de Enlos sotanos de los generales. Los documentos ocultos del Operativo Cóndor. Assunção:Expolibro/Servilibro, 2001, e Los silencios de la palabra. Lo que dijeron y callaron los peri-ódicos sobre las memorias de la dictadura durante la transición paraguaya. Assunção:Servilibro, 2003.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29437

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29438

“1954-1989. Eu era feliz e não sabia.”1

O presente trabalho se refere a fatos e protagonistas — atores e instituições— que tomaram parte, por ação ou omissão, do longo processo de cumpli-cidade que permitiu à última ditadura no Paraguai garantia, desenvolvimentoe projeção durante quase 35 anos. Por não ser propósito central do estudo,não é abordada a resistência civil, política e armada, que também houve efoi brutalmente perseguida durante o regime autoritário. Fica a ressalva emhomenagem a tantos homens e mulheres cuja luta antiditatorial deixou umamarca indelével na história paraguaia contemporânea.

MILITARISMO E DITADURA

No Paraguai, falar de como a última ditadura formou uma base sociallegitimadora e reprodutora do modelo ou, em outras palavras, da cumpli-cidade social de distintos estamentos e setores expõe uma necessária revi-são das circunstâncias que precederam à instauração desse regime e da longatradição de governos encabeçados por militares e presidentes de acentua-do perfil autoritário.

O fator militar como poder político começou a configurar-se em 1936,com a chamada Revolução de Fevereiro. Foi então que o Exército ingres-sou como instituição no poder, tornou-se deliberante e passou a ter deci-são direta na conformação dos governos e das políticas públicas.2

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29439

440

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Esse predomínio das Forças Armadas como agente político e ator im-

portante no controle do Estado tem antecedente na vitória do Exército na

Guerra do Chaco (1932-1935), que confrontou Paraguai e Bolívia.3 O con-

flito bélico e a vitória permitiram aos militares definirem claramente sua

identidade e gozarem de alta simpatia na população, derivada da exacerbação

nacionalista.

Paralelamente, os partidos tradicionais e o poder civil perderam legiti-

midade, acusados de ser responsáveis por uma ordem caduca e espoliadora.4

A primeira consequência desse processo foi a vitória, em 17 de fevereiro de

1936, do movimento revolucionário encabeçado pelo coronel Rafael Fran-

co.5 A derrocada do presidente Eusebio Ayala pôs fim ao modelo sustentado

por um oligárquico Estado liberal e deu passo a um processo revolucioná-

rio com traços autoritários. Isso acelerou a decadência dos dois partidos

tradicionais — Colorado e Liberal — como atores políticos.

Ao chegar ao poder, os militares assumiram o papel de representantes

dos genuínos interesses da nação. O decreto número 152 ditado pelo novo

governo deu legitimidade institucional e força inapelável a essa ideia, mar-

cando um precedente repressivo.6 Identificou a nação com o Estado, trans-

formando os militares no próprio Estado e em árbitros para decidir a quem

designar presidente e erigir-se em um tribunal frente ao qual se rendiam os

atos de governo.7

Franco foi derrubado em 13 de agosto de 1937 por militares simpati-

zantes do Partido Liberal e assumiu o governo o civil Félix Paiva. Abria-se

assim o caminho para a criação do marco jurídico institucional de um regi-

me político autoritário.

Depois das eleições, em agosto de 1939, chegou à Presidência da Repú-

blica o general Félix Estigarribia (liberal e condutor da Guerra do Chaco),

apoiado pelos Estados Unidos. Valendo-se de uma crescente instabilidade

política, econômica e social de pós-guerra (do Chaco), em 1940 dissolveu

o Parlamento e concentrou os poderes. Nesse ano, por decreto, promul-

gou a chamada Carta Política, legitimada em plebiscito popular, que insti-

tuía um governo autoritário em que o Estado assumia o controle total da

sociedade, incluída a economia, a atividade religiosa e a cultural.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29440

441

S T R O E S S N E R E “ E U ” : A C U M P L I C I D A D E S O C I A L C O M A D I TA D U R A

Esse documento criou as bases jurídicas e políticas que mais tarde deulegalidade à ditadura militar antipartidária do general Higinio Morínigo,que assumiu a primeira magistratura depois da morte em um acidente aé-reo de Estigarribia.8 A sucessão no poder foi resolvida pelos ministros mi-litares lançando uma caixa de fósforos ao ar.

Morínigo governou em meio a irrupções e instabilidades até 1948, como acompanhamento de diversos setores sociais. Nesse tempo desenvolveuuma política marcadamente nazifascista.9

O controle militar ia se afirmando. De junho de 1946 a janeiro de 1947,depois da ação de um movimento militar que impôs limites a Morínigo,um gabinete de coalizão dos partidos Colorado e Febrerista e militares im-pulsionou uma abertura política. A experiência durou sete meses e culmi-nou na trágica guerra civil de 1947,10 originada no sectarismo dos setoresno poder e no afastamento dos febreristas depois de um golpe palaciano. Avitória militar das forças governamentais ocorreu em agosto desse anomediante o apoio das chamadas milícias coloradas pynandi11 contra os re-beldes militares institucionalistas apoiados pelos partidos Liberal, Febreristae Comunista. Sobreveio um drástico expurgo no Exército e as vagas foramocupadas por efetivos leais e subordinados ao Partido Colorado.

As Forças Armadas aceitaram que o Partido Colorado governasse entre1948 e 1954, com respaldo militar, instalando uma ditadura de partidoúnico. Sua base legitimadora era a soldadesca, a massa camponesa que acom-panhou o enfrentamento armado em 1947 e a polícia, cujo papel repressi-vo seria determinante depois de 1954.

Os partidos opositores sofreram dura perseguição e sua direção, incluí-dos os militares rebeldes, foi para o exílio. Essa foi a primeira grande diásporapor razões políticas ocorrida no século XX. A Argentina serviu como refú-gio para a maioria.

O domínio governamental colorado garantiu a filiação partidária dosmembros das Forças Armadas e da polícia. Ambos os estamentos, sob con-trole dessa, subordinaram-se à Junta de Governo da Associação NacionalRepublicana, a representação institucional do Partido Colorado. Essa co-optação fazia parte da estratégia do partido para manter-se no poder asse-gurando lealdade e apoio permanente dos militares.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29441

442

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Durante os quase sete anos de hegemonia colorada no governo, os gru-pos internos, os Guiones Rojos e Democráticos, respaldados indistintamentepela polícia e pelo Exército, protagonizaram violentas perseguições e gol-pes de Estado, levando ao poder sucessivamente cinco presidentes, em meioao descontentamento e à instabilidade geral.

Esse período se caracterizou pela vigência do terror político. Os nãocolorados foram perseguidos e submetidos a um regime de medo, aplicadopelos pynandi nas zonas rurais e pelos guardas urbanos12 nas cidades.

O MILITAR PROVIDENCIAL

Na última etapa do governo hegemônico colorado, os Guiones Rojos fo-ram derrotados pelos democráticos, que impuseram no governo FedericoChávez (o último civil desse período). Esse, depois de assumir, afastou deseu círculo um influente ativista, Epifanio Méndez Fleitas, e seus homens,que se encontravam nas estruturas policial e militar. Em represália, MéndezFleitas gestou um golpe de Estado, aliado ao comandante em chefe dasForças Armadas, general de divisão Alfredo Stroessner,13 que desaprova-va as medidas adotadas por Chávez entre os fardados. O plano foi execu-tado em 4 de maio de 1954 e constituiu o quinto golpe de que o militarparticipava.14

Stroessner não cumpriu a promessa de permitir uma abertura política apóso tumulto, como tinha pactuado. Preparou a própria estratégia e base desustentação; e nos cinco primeiros anos criou um exército próprio e afastouMéndez Fleitas, que se transformou no seu mais férreo inimigo do exílio.

Durante os primeiros três meses que se seguiram ao golpe, o país foipresidido pelo civil Tomam Romero Pereira — ex-ministro do Interior — aquem Stroessner deu o título, mas não o poder para governar, enquantopreparava sua subida ao comando por meio de mecanismos institucionais edemocráticos formais.

Em 11 de julho desse ano, em eleições sem concorrência, Stroessner,que tinha articulado para ser candidato único do Partido Colorado, ga-nhava com 99% dos votos e em 15 de agosto assumia a Presidência da

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29442

443

S T R O E S S N E R E “ E U ” : A C U M P L I C I D A D E S O C I A L C O M A D I TA D U R A

República. Sua chegada ao poder se deu num momento em que a instabi-

lidade reinante tornava caótica a vida nacional. Com o discurso da paci-

ficação, sua irrupção foi aplaudida por seguidores e opositores em distintos

estamentos da sociedade.

O novo governante tirou do gabinete os elementos populistas e os subs-

tituiu pelos representantes da oligarquia agropecuária15 que apoiaram a

queda de Chávez, para impulsionar um Plano de Estabilização e Fomento

Econômico num momento em que a Associação Rural do Paraguai (ARP)

exigia um aumento desmesurado da fazenda.

Os liberais e os febreristas aplaudiram o golpe e viram em Stroessner o

militar “providencial e saudável” que os reintegraria à vida partidária legal

depois de terem sido proscritos pelo regime colorado.16 Acreditaram que

ele não duraria no poder e esperavam ser chamados para integrar um pos-

sível governo de coalizão. Por esses dias o Partido Comunista Paraguaio

percebeu que o plano de Stroessner buscava debilitar o Partido Colorado

para “restabelecer uma ditadura pessoal ao estilo de Higinio Morínigo”; e

que “certos dirigentes liberais e febreristas de direita” tentavam ajudar

Stroessner “com a ideia de ocupar os lugares dos dirigentes colorados”.

Entre 4 e 8 de maio — dias em que o país esteve sem governante e sob

controle militar — os colorados negociaram sua permanência no poder. Não

obstante, com a ideia de que Stroessner cairia logo, os opositores se manti-

veram inativos e sem tomar uma atitude. Essa circunstância favoreceu os-

tensivamente a estruturação do plano stronista em seus primeiros meses.

Em Lima, Peru, pouco antes de assumir, e em Marechal Estigarribia, no

Chaco paraguaio, pouco depois de assumir a Presidência, Stroessner se reu-

niu em segredo com membros do Comando Sul dos Estados Unidos.17 Ali

assinou um pacto com altos oficiais americanos e brasileiros, dentro do plano

hemisférico de aliados anticomunistas no marco da guerra fria e da Doutri-

na da Segurança Nacional, que seria implantada na década de 1960, por

meio da ditadura do Brasil.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29443

444

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

BASE SOCIAL COLORADA

Mediante a aliança com o Partido Colorado, Stroessner manteve sob con-trole possíveis golpes militares e começou a articular e a consolidar umaampla base social (a que sustentava o partido) a fim de legitimar e sustentarseu regime. Em troca permitiu ao setor colorado viciado no governo o con-trole da burocracia estatal (cargos públicos) como objeto de compra e vendade favores, lealdades e benefícios mútuos.

Enquanto a oposição continuava como espectadora, nos primeiros cincoanos de governo Stroessner expurgou o Partido Colorado e reprimiu em1955 os Guiones Rojos e os militares dissidentes. Essa determinação foiapoiada pela Junta de Governo, presidida por Tomam Romero Pereira, porproposta de Méndez Fleitas (antes da sua expulsão), e do Comitê Centralda Juventude Colorada, presidido por Waldino Ramón Lovera,18 que depoisse tornaria contrário à ditadura. Desfez-se dos que representavam algumaoposição ou perigo possível dentro do Partido Colorado e instaurou pro-gressivamente uma ideologia autoritária, obtendo lealdades e incondicio-nalidades em troca de favores, cargos e prebendas. Institucionalizou amilitarização da Junta de Governo e partidarizou o Exército.

Apoiado no pacto/aliança Governo-Partido Colorado-Forças Armadas,o novo governante sustentou seus 34 anos e seis meses de poder ditatorial.19

Os generais começaram a ingressar na cúpula partidária e o emergente di-tador nomeou militares para os cargos estratégicos de ministro da Defesa,de Obras Públicas e Comunicações e da Fazenda; e colocou-os à frente desete das 12 empresas estatais.

À exceção dos comunistas, que vinham denunciando o stronismo e seuplano ditatorial em marcha, liberais e febreristas em todo esse tempo man-tiveram-se como espectadores à espera do momento propício para ocuparo espaço de poder que não chegaria.

Ao finalizar a primeira etapa de sua chegada ao poder, Stroessner consi-derava que a paz já tinha sido “solidamente garantida”, mediante a articu-lação de um mecanismo de favores e incondicionalidades. No país imperavao estado de sítio, renovado a cada três meses e que permitia ao regime ado-tar medidas repressivas transgredindo direitos. A reunião de mais de três

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29444

445

S T R O E S S N E R E “ E U ” : A C U M P L I C I D A D E S O C I A L C O M A D I TA D U R A

pessoas já era considerada pelos organismos stronistas uma conspiração ou

algo com sentido sedicioso.

Os últimos vestígios de oposição interna contra a estruturação do regi-

me nesse período reagiram entre 1958 e 1959. A Confederação Paraguaia

de Trabalhadores (CPT), leal a Epifanio Méndez Fleitas, afastado do poder

em 1955, declarou em agosto uma greve geral por reajuste dos salários con-

gelados há três anos, liberdades sindicais e políticas. Os comunistas tive-

ram papel relevante na articulação das bases sindicais. Pronunciaram-se

contra o Partido Colorado a Federação da Produção, da Indústria e do

Comércio (Feprinco), o Departamento Nacional do Trabalho e as Forças

Armadas. Da mesma forma, legitimaram a repressão, que provocou a ida

maciça de opositores para o exílio e deixou milhares de presos políticos,

principalmente comunistas, febreristas e liberais. A CPT sofreu interven-

ção por Enrique Volta Gaona, e o governo assumiu sua direção.

A crise decisiva que Stroessner aproveitou para impor-se definitivamen-

te ocorreu em 1959. Uma anunciada abertura política requerida pelo Parti-

do Colorado com algum apoio militar, ante o descontentamento interno e

o surgimento de guerrilhas da Argentina insufladas pelo triunfo da revolu-

ção cubana, sucumbiu abruptamente em 30 de maio. Stroessner dissolveu

o Parlamento unicameral (inteiramente colorado) e prendeu vários de seus

membros, aplicando a Carta Política de 1940 herdada de Estigarribia. Ar-

gumentou que havia conflito de poderes (Legislativo e Executivo) porque

o Congresso repudiou a repressão policial-militar contra membros da Fe-

deração de Estudantes Secundários de Assunção durante uma manifesta-

ção contra o aumento do custo do bilhete de transporte público, cujo saldo

foi um morto, centenas de presos e expatriados. O autogolpe executado

pelo presidente foi para livrar-se de 400 colorados dissidentes, entre polí-

ticos e parlamentares, e monopolizar esses espaços com seus leais, selando

assim sua gravitação em todos os estamentos. A batida continuou nos dias

posteriores e as dependências policiais se encheram de detidos. Em seguida

a Junta de Governo e o desmembrado Parlamento juraram seu apoio in-

condicional a Stroessner. A domesticação do partido chegava ao seu ponto

máximo (alinhando ex-democráticos e ex-guiones rojos com os stronistas).

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29445

446

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

O Legislativo foi recomposto com leais absolutos. Restabeleceu-se a paz par-tidária e não houve crise interna colorada até a década de 1980.20

PARTIDO COLORADO: A CHAVE

O Partido Colorado jogou um papel crucial na conformação da base sociallegitimadora do stronato. Seu lastro popular partidário era multitudináriodepois de governar como poder único durante seis anos (de 1948 a 1954).Essa foi uma das razões que determinaram que Stroessner se aliasse ao par-tido depois do golpe e repousasse nele sua legitimação social e a reprodu-ção doutrinária de seu regime.

Depois de 1959 — após sucessivos expurgos — a agremiação partidáriafoi dominada por Stroessner e transformou-se no seu principal braço exe-cutor, olhos e ouvidos. Criou perto de 200 seccionais e subseccionais21 emtodas as cidades e bairros do país — incluindo 24 seccionais na capital As-sunção22 — e exerceu por meio delas o controle social, escrutinando as ati-vidades da população, seguindo o movimento de opositores, cooptandoadesões por meio de favores de amizade, assistencialismo, prebendas, car-gos públicos ou impunidade; e, quando necessário, funcionava como apa-relho de repressão.

Por meio das bases partidárias, o regime instaurou uma disciplina abjetae executou a doutrinação autoritária. Durante toda a ditadura os presiden-tes de seccional ostentaram um poder ilimitado, superior até ao dos juízesporque dispunham da liberdade de “amigos” ou da prisão de “inimigos”do “Único Líder”.23

A ditadura impôs a filiação partidária ao Partido Colorado como condi-ção praticamente ineludível para acessar cargos no setor público e exercerum cerrado controle para o ingresso na Universidade Nacional. Essa exi-gência às vezes se estendia às empresas privadas cujos proprietários aderiamao regime.

Sob essa plataforma, o partido, atravessado pelo stronismo, desenvol-veu várias outras manobras para infeccionar os distintos estamentos da so-ciedade e reforçar a base social da ditadura. Os centros estudantis, em

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29446

447

S T R O E S S N E R E “ E U ” : A C U M P L I C I D A D E S O C I A L C O M A D I TA D U R A

particular os universitários, foram monopolizados por movimentos promo-vidos e sustentados administrativa e economicamente pelo regime. Se osseus representantes não conseguiam dominar esses organismos intermediá-rios, pessoas alheias a eles tomavam de assalto as assembleias e impunhamnas direções os seus leais. Quando essa mecânica não funcionou, principal-mente nos grêmios profissionais, a ditadura os dividiu e criou associaçõesparalelas de advogados, médicos, engenheiros,24 economistas colorados etc.Esses procedimentos pretenderam debilitar e sufocar os núcleos de oposi-ção organizada e fortalecer a base de legitimação da ditadura.

Um recurso de cooptação do setor juvenil constituiu a organização decursos gratuitos de ingresso na universidade pública por meio da Divisãode Assuntos Universitários do Partido Colorado. O mesmo objetivo tinhamas Residências Tintas, que albergavam estudantes pobres do interior em trocade lealdade ao governo.

As “recomendações” de um padrinho25 colorado se transformaram emuma instituição inapelável por intermédio da qual se obtinha acesso diretoa colégios ou universidades, conseguiam-se emprego, promoções e algumbenefício adicional, seja no Estado ou no setor privado.

Por meio do imenso aparelho partidário, Stroessner transformou um vas-to setor do grupo de camponeses “na base social e política fundamental deseu governo”.26 Por volta de meados dos anos 1960 essa tendência já regis-trou grupos de oposição entre os lavradores e progrediu com respaldo ecle-siástico para a criação das Ligas Agrárias Cristãs, que acabaram arrasadaspelo aparelho repressivo.

Uma importante ferramenta de mobilização de suas bases para o controlesocial era o programa de rádio A Voz do Coloradismo, difundido pela esta-tal Rádio Nacional, que chegava a todos os rincões do país por retransmissãoobrigatória pelas demais emissoras do país. Nele o regime difundia as li-nhas de ação, apontava os grupos ou indivíduos a quem seus seguidores e oaparelho deviam perseguir e as ações que eram requeridas para manter “aordem e a paz” da República. O jornal do partido, Pátria, completava otrabalho. Todo funcionário público estava obrigado a comprar diariamenteum exemplar e o custo era descontado compulsoriamente todo mês, alémda contribuição para o partido, equivalente a 5% do salário.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29447

448

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Por volta da segunda metade dos anos 1970 a sociedade já estava alta-mente coloradizada. Isso permitiu que grandes grupos partidários do regi-me entrassem nas organizações intermediárias, ganhando pelas vias formaisdiferentes direções (estudantis, sindicais etc.). O aparelho também consti-tuiu centros de estudantes colorados, universitários e secundários, comoauxiliares da Junta de Governo.27 Nessa época se tornou frequente o ingressode policiais e militares como estudantes nas faculdades da UniversidadeNacional, com o propósito de controlar o movimento interno e identificarestudantes e docentes críticos a Stroessner.

OBSEQUIOSIDADE E DELAÇÃO

Ligado ao funcionamento do partido como órgão de controle social, ogoverno fomentou a cultura da traição e da denúncia. Os pyrague28 consti-tuíram um exército de espionagem do cidadão. Nada nem ninguém esca-pava a eles. Muitas vezes intrigavam ou difamavam para congraçar-se como ditador ou resolver problemas pessoais pela via do castigo que o regimeimpunha a seus detratores.

Com a acusação de comunistas — fiel ao discurso de Stroessner — estig-matizavam quem não comungava com o sistema ou militava em gruposopositores. Como consequência, milhares de homens e mulheres padeceramde cárcere, tortura e desaparecimento forçado. Instalaram o medo e a des-confiança para todos, porque qualquer um podia ser um informante do sis-tema. Pertenciam a distintos estratos sociais e exerciam na prática ou estavamdevidamente registrados e certificados pelo Ministério do Interior, pelo De-partamento de Assuntos Técnicos (a central anticomunista) ou pelos órgãospoliciais.29 Havia os que operavam como agentes permanentes com salário,aqueles que o faziam por favores ou prebendas e aqueles que ocasionalmentepassavam informações para não ser acusados de omissão. Empresários, reli-giosos, profissionais, donas de casa, estudantes, operários, docentes, toda agama de atividades humanas tinha em seu seio um ou vários delatores.

Dentro da lógica do regime ser delator a serviço da ditadura significavaser patriota e defender a nação. Foi a assimilação local da ideia central da

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29448

449

S T R O E S S N E R E “ E U ” : A C U M P L I C I D A D E S O C I A L C O M A D I TA D U R A

doutrina da segurança nacional, a dos contrários: amigos/inimigos, lealdade/traição, bem/mal; e chegou-se a aplicar o nacionalismo como sinônimo deanticomunismo, um dos mais poderosos argumentos de Stroessner abriga-do pela guerra fria e pelo apoio dos Estados Unidos. “Perseguir comunistassignificava manter a paz, e isso justificava qualquer repressão.”30

EUA E A COMPRA DE LEALDADES

Em 1963 os EUA entregaram a Stroessner um poderoso respaldo econômi-co, por meio do programa Aliança para o Progresso, impulsionado pelo pre-sidente John F. Kennedy. Esse financiamento lhe foi fundamental paraampliar a lealdade de vastos setores da sociedade para com a ditadura.

Desde Washington impulsionava-se uma abertura controlada que mantivesseo sistema ditatorial com alguns bolsões de participação que tornassem apre-sentável internacionalmente o regime paraguaio. Liberais e febreristas entra-ram em jogo mediante uma participação eleitoral limitada. Os comunistasestavam proibidos no país. Como recompensa ao processo de “abertura”, oregime recebeu 34,6 milhões de dólares. Esse dinheiro fortaleceu o patronatodo Estado stronista, que outorgou esmolas a grandes grupos camponeses comprogramas de colonização rural e cargos públicos. Assim cresceu o número deleais e Stroessner assegurou sua quase perpetuidade como caudilho.

Os EUA tinham no ditador paraguaio um aliado imponderável. Sua le-aldade ao anticomunismo exacerbado lhe valeu apoio econômico internacio-nal para manter contentes seus partidários e comprar potenciais dissidentes,prebendar organizações de base preexistentes e prevenir o surgimento degrupos que desafiassem seu poder.31

A OPOSIÇÃO RENDIDA

Os partidos de oposição, num primeiro momento, e suas facções depois,cooperaram na justificação e garantia da ditadura. Depois do golpe de 1954,liberais e febreristas enalteceram Stroessner, que em seguida os proscreveu

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29449

450

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

para reincorporá-los nos primeiros anos da década de 1960 para participarlegitimando o processo.

Dentro da “abertura gradual” impulsionada pelos EUA, um setor doPartido Liberal participou da eleição presidencial de fevereiro de 1963. Eramos chamados renovadores, encabeçados pelos irmãos Carlos e Fernando LevyRuffinelli. Ambos tinham sido expulsos do Partido Liberal como renegados.

O encarregado das conversações com outros grupos políticos que pode-riam se submeter àquele processo eleitoral viciado foi o ministro do Interior,Edgar L. Insfrán, um dos ideólogos do stronismo, logo destituído. Estavamexcluídos os colorados seguidores de Méndez Fleitas e os comunistas. Váriasdas reuniões foram feitas na embaixada dos EUA em Assunção. GanhouStroessner, como dispunha o sistema, e os novos aliados ficaram com 20das 60 cadeiras parlamentares. Ernesto Gavilán, candidato derrotado apresidente, foi nomeado embaixador em Londres.32

O exemplo foi seguido pelos febreristas, que solicitaram sua legalização,concedida em agosto de 1964, e começaram a competir pelas prefeiturasem 1965, fazendo o jogo do regime. O prefeito era designado por Stroessner.

Em 1967, os liberais, os liberais radicais — facção majoritária do Parti-do Liberal legalizada para essa oportunidade — e o Partido Febrerista foramàs eleições para integrar a Convenção Nacional Constituinte que aprovoua Constituição stronista. Nela incorporaram a reeleição do presidente em1968 e 197333 e concentraram o poder no Executivo, ao qual se subordina-vam os poderes Legislativo e Judiciário. Esse era o primeiro passo dentrodo plano de Stroessner para perpetuar-se no poder.34 Com a legitimidadeque lhe brindou a oposição, a ditadura teve seu marco legal autoritário;estabeleceu poderes ilimitados e irrevogáveis para o ditador e a potestadeplena para nomear e destituir todos os membros do Judiciário.

Os três grupos políticos de oposição também participaram das eleiçõespresidenciais de 1968,35 aceitando que os resultados estavam pré-anuncia-dos a favor do ditador. Depois os febreristas se retiraram, mas mantiveramseu status legal.

Em 1977, os liberais e febreristas já não participaram da nova Consti-tuinte. Os colorados reformaram por unanimidade o artigo 173 e instituí-ram a reeleição ilimitada para eternizar o ditador no poder.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29450

451

S T R O E S S N E R E “ E U ” : A C U M P L I C I D A D E S O C I A L C O M A D I TA D U R A

Como Stroessner deixou de ter os partidos políticos opositores que da-vam sustentação formal ao regime, dividiu a seu favor os grupos liberais.Nesse mesmo ano reconheceu como partidos legais uma parte das direçõesdo Partido Liberal e do Partido Liberal Radical, que depois participaramcomo “oposição oficial” de todas as eleições até sua queda (1968; 1973;1978; 1983 e 1988). Os setores liberais contestatários — que o regimechamou de irregulares — formaram em setembro de 1977 o Partido Libe-ral Radical Autêntico.

Durante quase toda a ditadura, a chamada, nos círculos políticos e sociais,“oposição rendida” ou zoquetera (prebendária) manteve suas bancadas noLegislativo, embora soubesse que seus projetos só prosperariam com a apro-vação de Stroessner.

A responsabilidade desses grupos políticos não se limitou à participaçãolegitimadora nos processos eleitorais; além disso, davam validade jurídicaaos resultados fraudulentos. Cada partido era membro — com sua repre-sentação — da Junta Eleitoral Central, o órgão supremo que organizava aseleições e proclamava as novas autoridades.

Como contrapartida à submissão daqueles setores da oposição políticaà ditadura, o movimento social se articulou e cresceu, embora seu propósi-to tenha apontado para restabelecer liberdades públicas, e não para dispu-tar o poder central.

LEALDADE VERSUS CAPITAL

O empresariado, caracterizado pelo poder econômico e pela influência emestamentos econômicos, sociais e políticos, constituiu outro importante elode legitimação. O setor recebeu privilégios, impunidade para a corrupção eprebendas. Em troca rendeu ao ditador lealdade e submissão; e guardoucompleto silêncio sobre o que acontecia no país.

Stroessner distribuiu cargos, adjudicou serviços, concedeu contratos efavores por meio das empresas estatais criadas em áreas comerciais impor-tantes (combustível, processamento de álcool, siderurgia, frota mercante,transporte ferroviário etc.). Os benefícios abarcavam partidários civis, mi-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29451

452

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

litares e policiais de alta classe. “Aos empresários que aceitavam as regrasde jogo, sem questionamento, lhes foi permitido amealhar imensas fortu-nas, independentemente de suas preferências partidárias.”36

A União Industrial Paraguaia (UIP) e a Federação da Produção, da In-dústria e do Comércio (Feprinco) apoiaram sem maiores objeções até 1981(equivalente a 27 anos seguidos) as políticas econômicas de Stroessner. Nesseperíodo questionavam formalidades genéricas sobre impostos, tarifas e cor-rupção. A classe empresarial paraguaia, em geral, beneficiou-se de “ummodelo político que protegia seus interesses econômicos”.37

Por meio do Ministério de Obras Públicas e Comunicações, o governomantinha uma clientela de consórcios e empresas de amigos que era adju-dicada em todas as licitações com obras de infraestrutura superfaturadas esuperdimensionadas para permitir importantes benefícios.

A construção com o Brasil (aliado de Stroessner), na década de 1970,da monumental Hidrelétrica de Itaipu, com um investimento de 18 bilhõesde dólares, permitiu o surgimento de uma nova classe de ricos e a confor-mação de uma oligarquia beneficiada por contratos fraudulentos de favor.As empresas de engenheiros amigos foram profusamente agraciadas, gerandoo que logo se chamou a casta dos “barões de Itaipu”, que seriam depoisimportantes membros do governo e até se tornariam, na transição demo-crática, presidentes da República, como Juan Carlos Wasmosy (1993-1998)e Raúl Cubas Grau (1998-1999).38 Ambos, membros do Grêmio dos Enge-nheiros Colorados.

A cumplicidade empresário-governo diminuiu na década de 1980. Nãoobstante, por volta de 1988, Stroessner aplacou as hostilidades com a en-trega de créditos a juros baixos. E, embora a Feprinco tenha reivindicadoseu direito de reclamar, a UIP obrigou seu presidente, Ubaldo Scavone, asuspender qualquer crítica ao regime.39

Tanto a UIP como a Feprinco, que agrupam desde sua criação a quasetotalidade dos empresários do Paraguai, formaram parte do Conselho deEstado e do Conselho de Comércio Exterior, órgãos com representaçãode setores da sociedade em que o ditador legitimava suas decisões.

A elevada demanda internacional do algodão e da soja ocorrida na dé-cada de 1970, mais o aumento do fluxo de capitais estrangeiros para o

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29452

453

S T R O E S S N E R E “ E U ” : A C U M P L I C I D A D E S O C I A L C O M A D I TA D U R A

agronegócio, permitiu o fortalecimento de grupos agroindustriais que, aoamparo do governo e de seus representantes, gozaram de importantes be-nefícios. As beneficiadoras se transformaram em monopólios intocáveis,desde que se omitissem de ver e ouvir o que estava ocorrendo no país. Nessaépoca se registrou uma das etapas repressivas mais violentas do stronismo.

Os empresários constituíram um dos setores-chave para a conformaçãoda estrutura ditatorial. Por um lado, a burocracia corrupta fundada sobre abase de setores obsequentes e puxa-sacos de todo tipo; e por outro, “osque atuavam como empresários bem-sucedidos”.40 Muitos dos que amea-lharam fortunas nesses anos, ao abrigo do sistema, apareceram na transi-ção como a reserva democrática do país e criticando o passado cujos crimesajudaram a ocultar.

A Associação Rural do Paraguai (ARP), integrada por antigos e novosfazendeiros e pecuaristas criados pelo stronismo, foi um importante supor-te para a ditadura. Prodigalizou amparo mútuo porque muitos membrosdo grêmio pecuário monopolizaram grandes extensões de terra por meiode mecanismos de apropriação indevida ou fraudulentos articulados peloInstituto Nacional da Terra, depois Instituto de Bem-Estar Rural.41 Comeles se ampliaram os latifúndios que prosperaram no século XIX sob ogoverno do general Bernardino Cavalheiro, fundador do Partido Colorado.Em contrapartida, um setor do grupo de camponeses foi submetido a umregime minifundiário e obrigado a sobreviver sem qualquer parcela. Du-rante quase 35 anos de governo agroexportador e pecuarista, os próximosao ditador se adjudicaram mais de 11 milhões de hectares em todo o país,não recuperados até a data. Isso incentivou a negociação e a degradaçãoprogressiva dos recursos naturais.

A COLABORAÇÃO E A BATINA

A Igreja Católica, instituição preponderante na cultura paraguaia, acompa-nhou o regime de Stroessner em sua primeira etapa até os primeiros anosda década de 1960, quando o Concílio Vaticano II (1962-1965) levou-a ase distanciar e a aprofundar suas críticas, a partir da Conferência Episcopal

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29453

454

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Latino-Americana de Medellín (1968-1973), orientada para a opção pre-ferencial pelos pobres dentro da Teologia da Libertação.

Padres, freiras e laicos comprometidos trabalharam individualmente pelacausa antiditatorial. No entanto, a instituição clerical como estrutura con-tinuou jogando indiretamente a favor da manutenção do modelo inaugura-do em 1954. Uma de suas primeiras manifestações foi em 1957, quando, apedido do Stroessner e com aprovação da Nunciatura, o Vaticano criou aDiocese de Missões, uma zona rural distante da capital, para enviar para láo então bispo auxiliar de Assunção, Ramón Pastor Bogarín, que incomoda-va o regime com suas frequentes críticas e confrontações.42

Ante o crescimento da população camponesa empobrecida e o auge daRevolução Cubana, que acelerou a tarefa dos comunistas de fundar núcle-os agrários em distintos departamentos, em princípios dos anos 1960 a IgrejaCatólica, preocupada com que o marxismo “ateu” prosperasse no campo elhe tirasse seguidores, impulsionou a criação de comunidades, depois con-vertidas em Ligas Agrárias Cristãs, críticas ao regime e comprometidas coma causa dos pobres. Esse fato truncou o processo que os comunistas impul-sionavam para gerar uma revolta popular contra a ditadura.

Stroessner, que também recriou estratégias de observação e dominaçãono campo, não viu com maus olhos os assentamentos que a Igreja ia orga-nizando, porque lhe permitiam manter sob controle vastos grupos de lavra-dores sem riscos de desestabilização contra seu governo.

Em 13 de setembro de 1965, a Igreja Católica executou um dos atos maisvisíveis do jogo favorável ao ditador. No Departamento da Cordilheira le-vou 103 camponeses da Frente Unida de Liberação Nacional (Fulna) a abjurarpublicamente do comunismo e “a voltar para a religião católica”.43 Executa-ram essa ação na paróquia de Piribebuy o presbítero Cantalicio Gauto e, aseu lado, Juan Arturo Hellman, chefe repressor de Stroessner nessa região.Na mesma tarde houve outro ato similar na paróquia da Santa Elena, emSapucái (Departamento de Paraguari) e Nova Londres (Departamento deCaaguazú). O ministro do Interior, Edgar L. Insfrán, dirigia o oficialmentechamado “rebatismo”. Alguns participantes, todos aldeãos, levavam cartazesque diziam: “Os colonos do Piraretã repudiam o comunismo.” Essa colôniatinha uma importante base de resistência contra a ditadura.44

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29454

455

S T R O E S S N E R E “ E U ” : A C U M P L I C I D A D E S O C I A L C O M A D I TA D U R A

O Estado paraguaio era constitucionalmente católico e como tal outor-gava uma contribuição financeira mensal que oxigenava os cofres clericais.

O bispo Demetrio Aquino, responsável pela Diocese do Caacupé, con-siderado o centro da fé católica paraguaia,45 foi o aliado mais explícito deStroessner da hierarquia. Em suas homilias e com mais veemência em todo8 de dezembro, festa da padroeira que concentrava quase todo o país, pre-gava as bondades do regime, desestimulava a oposição e tinha sempre comoconvidados especiais o ditador e seu séquito. Além da função de pastor,controlava até o que os fiéis liam e informava detalhadamente o governosobre o que faziam os grupos políticos e sociais no Departamento da Cor-dilheira,46 onde operava uma importante base de camponeses contestatários.

Até fins dos anos 1960 a Igreja ocupou sua cadeira no Conselho de Es-tado e, mesmo quando expunha críticas ao governo, a presença de seu re-presentante era um poderoso fator legitimador das decisões que Stroessnertomava por meio daquela instância dominada por seus seguidores, repre-sentantes de outros estamentos. Em 1969 o arcebispo de Assunção, IsmaelRolón, desistiu de continuar participando.

Em 1972, dentro das Ligas Agrárias Cristãs, os dirigentes analisaram apossibilidade de iniciar uma luta política, sem descartar a via armada, comomecanismo de confrontar a ditadura. Foi o sinal claro de que a Igreja tinhaperdido o controle sobre as organizações camponesas e a instituição cató-lica se distanciou progressivamente dos dirigentes. Alguns religiosos conti-nuaram individualmente no processo, mais por opção pessoal do que pordisposição hierárquica. Nessa época, no interior do país, os comerciantescomeçaram a acusar as Ligas de “organizações comunistas”,47 adubando maisainda o terreno para que a ditadura desencadeasse a repressão. A causa detal atitude era que o projeto comunitário camponês ameaçava suas possibi-lidades comerciais mercantilistas.

Em meados da década de 1970 um importante setor das Ligas se uniu àvanguarda da Organização Político-Militar (OPM),48 articulada como guer-rilha, para derrubar o regime. Por volta de 1976 os órgãos de segurançaexecutaram uma irrefreável repressão, que destruiu a experiência agrária edeixou milhares de presos, centenas de torturados, dezenas de desapareci-dos e causou a destruição total de cultivos e animais. A Igreja Católica, já

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29455

456

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

distante, mostrou-se então contrária a continuar apoiando organizaçõessociais, alegando temor à infiltração guerrilheira.49

Algum tempo antes da grande repressão às Ligas Agrárias, a Igrejareiniciou sua política conciliadora com o governo. Quando Stroessner ex-pulsou 15 padres vinculados às Ligas e interveio no colégio católico CristoRei, que formava jovens críticos ao sistema, a reação da hierarquia eclesiás-tica foi meramente testemunhal: os bispos lamentaram a situação por meiodo envio de cartas às autoridades e conhecidas pela opinião pública. Longeficavam atitudes como as de 1969, quando, pela entrada de defensores daditadura no claustro dos jesuítas, a Igreja excomungou vários altos funcio-nários do regime.

O renovado entendimento entre a Igreja e o Estado durou de 1978 a1981. Ante sua ausência no cenário nacional, “o papel de documentar edenunciar violações dos direitos humanos foi assumido principalmente peloComitê das Igrejas, uma instituição ecumênica”.50

Com o tempo, as relações amistosas foram cedendo à tensão, por efeitodo aumento das denúncias de perseguições e desaparecimentos. A Confe-rência Episcopal Paraguaia convocou em 1986 ao Diálogo Nacional, paraunir os setores democráticos e partidos de oposição na busca de participa-ção e abertura política. Isso incomodou Stroessner, porque voltava a per-der um aliado estratégico, e como resposta rompeu relações com a Igreja.Nessa época a conjuntura internacional e regional já pressionava fortementeo governo ditatorial, que ia ficando cada vez mais isolado.

A IMPRENSA AMIGA

Os grandes meios de comunicação foram fundamentais na legitimação daditadura, principalmente entre os anos 1960 e fins dos 1970; e em menorintensidade na primeira parte dos anos 1980. A única teledifusora existen-te no país — até 1984 — o Canal 9, era de Stroessner, com testas de ferro.Por esse meio se construía a imagem e o sentido dos atos de governo e seimpunha nos lares a ideologia autoritária do regime. A abertura e o fecha-mento da programação era uma obrigatória adulação ao ditador.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29456

457

S T R O E S S N E R E “ E U ” : A C U M P L I C I D A D E S O C I A L C O M A D I TA D U R A

Os jornais nacionais agiam paralelamente. La Tribuna, criada em 1950 e

até seu desaparecimento, na década de 1970, de um meio de comunicação

sem vinculação partidária passou a desenvolver um jornalismo complacen-

te com o stronismo. Os jornais ABC Color, criado em 1967,51 Última Hora,

fundado em 1973,52 e Diario Hoy, aberto em 197753 — todos inaugurados

por Stroessner — mantiveram relações cordiais e sem incomodar o regime

até fins dos anos 1970. Por essa época começaram a agudizar-se as tensões

com a ditadura — Última Hora fechou em 1979 e La Tribuna e o ABC Color,

em 198454 —, mas só em meados dos anos 1980 os jornais se descolaram

mais visivelmente do governo. Em todo esse tempo foram reprodutores e

legitimadores dos informes oficiais e, mesmo quando faziam críticas, mi-

nimizavam ou soterravam as denúncias dos setores que davam uma versão

diferente dos fatos. A existência de perseguidos, torturados e desapareci-

dos era em grande medida ocultada.55

Paralelamente aos anos de graça que viveram os grandes meios, inume-

ráveis expressões de comunicação críticas à ditadura se desenvolveram e

pereceram sufocadas pela repressão e seus membros foram perseguidos,

encarcerados ou desterrados.

As emissoras de rádio eram também aliadas do sistema. À exceção da

religiosa Rádio Cáritas, as demais difundiram tudo aquilo que dispunham

os atos oficiais e as informações que não incomodassem o ditador. A Rádio

Ñandutí foi criada em 1962 com recursos intermediados pelo stronismo,

entre outras razões para apoiar a reeleição de Stroessner em 1963, e inau-

gurada com a presença do ditador. O proprietário-diretor, Humberto Rubín,

era o encarregado de animar alguns aniversários de Stroessner e em 1977

foi gratificado com dois mil hectares de terras destinadas à reforma agrá-

ria.56 Em 1987 acabou a sociedade e, incomodado por algumas críticas e

manobras que lhe fizeram perder o controle da rádio,57 Stroessner fechou a

estação e proibiu o proprietário de usar os microfones. Assim, a Ñandutí se

transformou de íntima aliada em emblema nacional e internacional de opo-

sição ao regime. Algo similar ocorreu com a ABC Color, cujo proprietário,

Aldo Zuccolillo, de amigo íntimo e companheiro de viagens, passou a cri-

ticar ao ditador quando esse foi isolado internacionalmente.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29457

458

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Stroessner tinha os próprios meios, como o Canal 9, o jornal Pátria, porta-

voz do Partido Colorado e difusor exclusivo dos atos e ideias do governo,

e a estação pública Rádio Nacional. Em 1984 foi criada a Rede Privada de

Comunicação, em copropriedade de Stroessner com seu amigo Nicolás Bo.

Integravam-na o Canal 13, o jornal Notícias — que ocupava o lugar do

fechado ABC Color para repaginar a imagem do ditador — e a Rádio Car-

dinal.

Paralelamente, a autocensura ajudou o regime a encobrir seus crimes.

Os consórcios midiáticos e os jornalistas estavam acostumados às ditadu-

ras. Uma importante parcela, em especial os jornalistas-estrela, atuaram

como vitrines que mudavam de tom segundo o humor do ditador. Muitos

receberam favores e enriqueceram. Uma mistura de acomodação, compla-

cência e medo articulou essa cumplicidade.

FORMADORES DE OBSEQUIEDADES

Os professores e docentes de escolas, colégios secundários e faculdades

públicas formaram o “exército branco” de Stroessner. A partir das salas de

aula constituíram os pilares para sustentar e reproduzir o modelo autoritá-

rio; e moldaram uma população dócil e obsequente. Com a filiação obriga-

tória ao Partido Colorado, eles formaram um corpo coeso, que operava para

sufocar qualquer possibilidade de pensamento dissonante e exercia não

apenas controle sobre o movimento dos estudantes, mas sobre o que ocor-

ria em seus lares e faziam seus pais.

As supervisões,58 distribuídas em distintas áreas de influência dentro dos

departamentos e da capital do país, eram os poderosos centros de articula-

ção de lealdades, controle e obsequência. Uma das condições praticamente

obrigatórias para ingressar na docência era ser colorado. Os docentes que

não tinham esse requisito eram perseguidos, marginalizados e facilmente

expulsos se não se subordinassem às regras não escritas da ditadura.

Além da prédica diária, os professores submetiam o ensino a textos que

elogiavam a figura de Stroessner e falavam de suas obras de governo como

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29458

459

S T R O E S S N E R E “ E U ” : A C U M P L I C I D A D E S O C I A L C O M A D I TA D U R A

a segunda e verdadeira reconstrução do país depois de duas grandes guer-ras (1865-1870, de extermínio, e 1932-1935, do Chaco).

Além dos professores, em sua maioria viciados no regime, nas estrutu-ras educativas criavam-se cooperativas de pais, instâncias geralmente infil-tradas pelo partido e que, além de obras de fomento, ocupavam-se decontrolar os outros pais.

Na universidade, uma grande parte dos catedráticos era do PartidoColorado ou simplesmente stronista. Aqueles que se assumiam independen-tes ou de filiação opositora eram expulsos, abandonados ou mantidos sobconstante perseguição. Os docentes do sistema se encarregavam de exercercontrole sobre o conteúdo educativo para manter as bases doutrinárias dostronismo e mantinham sob coação os estudantes cujos comportamentosquestionavam o modelo.

Os alunos colorados e submissos ao regime eram premiados com boasnotas (abonados) e às vezes nem precisavam fazer as provas. Depois da quedada ditadura, o setor dos professores foi o que mais resistência opôs à mu-dança de orientação e perspectiva; e apesar da reforma na educação funda-mental feita em 1993, o modelo stronista continuou vigente. Essa situaçãofoi visível em todos os atos dos governos de transição — ininterruptamentecolorados até a data — em que o conjunto de professores, em sua maioria,continuou trabalhando pelo Partido Colorado e por seus candidatos, que-brando resistências e orientando os votos dos pais dos estudantes, princi-palmente nas comunidades do interior, onde a figura do docente constituiuma autoridade praticamente indiscutível.

DE CAMPONESES E LATIFUNDIÁRIOS

Entre 1956 e 1988, 1% dos latifundiários tinha em seu poder quase 80%das terras do país.59 Essa circunstância mostrava claramente os privilégiosque mantinham os pecuaristas e outros capitalistas financeiros — nacionaise estrangeiros — em troca de silêncio e beneplácito com o stronismo. Osbeneficiários eram colaboradores do regime, incluindo militares, que seapropriavam de grandes extensões destinadas à reforma agrária.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29459

460

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Com a ditadura, os integrantes da Associação Rural do Paraguai (ARP)

constituíram um sindicato poderoso que apoiou as políticas do governo.

Por meio dele, também se mantinha o controle sobre a população nas zo-

nas de influência de suas fazendas e enclaves pecuários.

Em paralelo, 99% da população (lavradores, pequenos produtores e

habitantes urbanos) dividiam os 20% da terra disponíveis. Essa circunstân-

cia, e frente à assimetria que representava, não foi motivo para que a dita-

dura não obtivesse um importante lastro social no interior. Historicamente

um importante setor do grupo de camponeses paraguaio respondia a vín-

culos clientelistas de lealdade a latifundiários do Partido Colorado ou do

Liberal. Esse modelo de vínculos manteve praticamente inalterado o mo-

delo autoritário.

Em 1963, com os recursos outorgados pelos EUA por meio da Aliança

para o Progresso, o governo iniciou programas de colonização maciça para

aliviar as pressões da população em áreas fronteiriças com o Brasil e prevenir

conflitos de terra entre pequenos sitiantes e poderosos barões do algodão. A

terra distribuída beneficiou até um quinto da população rural, assegurando

uma ampla base camponesa a Stroessner e ao Partido Colorado.60

Entre os que trabalhavam a terra como lavradores estavam pequenos e

grandes produtores e os que tinham ingressado nessas categorias depois das

divisões de terra dirigidas e controladas pela ditadura. Para preservar os

privilégios, mantiveram inalterado o status quo e impediram que outros se-

tores que pudessem pôr em perigo essa “estabilidade” conseguissem se de-

senvolver. Serviram de legitimação para os presidentes de seccionais no

interior, denunciavam eventuais focos de críticas ao regime, davam apoio

logístico e econômico quando as autoridades das regiões requeriam como

contribuição “voluntária” e constituíam em grande medida a sustentação

do governo no campo. Só aqueles que não tinham tido acesso ao “benefí-

cio oficial” da terra nem aos créditos exerciam dissidência, isso quando não

se deixavam seduzir por prebendas.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29460

461

S T R O E S S N E R E “ E U ” : A C U M P L I C I D A D E S O C I A L C O M A D I TA D U R A

SINDICALISMO STRONISTA

Nos primeiros quatro anos da ditadura o movimento operário estava prati-camente em sua totalidade sob hegemonia do Partido Colorado, que tinhasob seu controle a Confederação Paraguaia de Trabalhadores (CPT), a úni-ca autorizada a existir. Não obstante, outros grupos, em particular os co-munistas, estavam instalados nos sindicatos de base.

Depois da greve geral que paralisou Assunção em 1958, o stronismoesmagou o movimento operário e monopolizou todas as suas instâncias.Substituiu a anterior direção da CPT por seus leais. Rodolfo Echeverría,ex-chefe de polícia de San Bernardino, foi designado secretário-geral e, parapassar uma imagem aceitável internacionalmente, alguns cargos foram da-dos a representantes dos partidos Democrata-Cristão e Febrerista, que emseguida renunciaram por carecer de influência.61

Entre 1964 e 1974 o movimento operário passou a fazer parte da buro-cracia governamental por meio do Ministério de Justiça e Trabalho, doPartido Colorado e da polícia. A Direção Geral do Trabalho, responsávelpelo reconhecimento de sindicatos, controlava os existentes e os que dese-javam constituir-se. Os grupos opositores não eram reconhecidos, enquan-to os oficialistas eram autorizados, mesmo quando existiam apenas no nome,criados apenas para se contrapor àqueles que tinham organização e lastroreais. A linha telefônica da CPT figurava na lista como uma dependênciado Ministério de Justiça e Trabalho.

O Departamento de Assuntos Trabalhistas do Partido Colorado e suasseccionais, em todo o país, tinham por função evitar que a confederaçãofosse tomada pelos opositores. Os dirigentes sindicais sempre deviam seradeptos da ditadura e com frequência também eram, ao mesmo tempo,presidentes de seccional. Muitas reuniões corporativas eram feitas em se-des do Partido Colorado.

A polícia também controlava a CPT por meio da Divisão Trabalhista doDepartamento de Investigações, um dos principais centros de repressão.Quase todas as reuniões da confederação se realizavam com presença poli-cial para reprimir, dispersar ou capturar os grupos opositores aos sindica-tos oficialistas que aparecessem questionando.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29461

462

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Na década de 1980, a CPT reivindicava como base 153 sindicatos (80mil trabalhadores, 80% da população trabalhadora, de três milhões de ha-bitantes); desses, pelo menos 25 existiam apenas no papel, mas serviam paraassegurar o controle estatal do setor, e 118.200 trabalhadores públicos nãoestavam sindicalizados.

ARTE E ESPORTE DA SUBMISSÃO

No ambiente artístico também houve apoio ao ditador e seu regime. NoArquivo do Horror de Assunção constam cartas e saudações de músicosque aderiam ao regime e cantavam loas ao ditador no seu aniversário todo3 de novembro.

Até o renomado Prêmio Cervantes 1990, o escritor Augusto Roa Bastos,62

antes de ser açoitado pelo regime, rendeu comemoração ao ditador em 1954e lhe dedicou um poema elogiando sua assunção ao poder. Roa tinha che-gado da Argentina acompanhando a comitiva do presidente Juan DomingoPerón, amigo e aliado de Stroessner. O escritor se transformaria depois emdetrator de ditador.

Numerosos grupos e pessoas do canto folclórico aderiram à causastronista. O teatro também teve seus seguidores da ditadura e muito da artese reduziu a universos, valores estéticos e simbologias com veleidades fas-cistas e elementos do nazismo alemão.

O esporte também foi manipulado para elogiar e sustentar o ditador,chamado o primeiro esportista do país. Era frequente que em todos os clu-bes fosse convidado e lhe apresentassem os troféus ganhos como solicitan-do uma bênção providencial. A maioria dos diretores lhe rendia homenageme nas escolinhas era reproduzida a mentalidade de obsequência. A ingerên-cia do regime chegou a tirar e colocar dirigentes e a criar campeões e per-dedores. Em 1976 o Clube Liberdade, do qual Stroessner era seguidor,ganhou o campeonato. Previamente seu filho Alfredo tinha assumido a pre-sidência da entidade.

Grande parte da juventude universitária também foi dirigida por meiodos imponentes jogos universitários. As aberturas eram rendição de come-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29462

463

S T R O E S S N E R E “ E U ” : A C U M P L I C I D A D E S O C I A L C O M A D I TA D U R A

moração por meio de desfiles e loas, como parte de um ritual para apoiar a

figura de Stroessner, “protetor da juventude estudiosa”. A Federação de

Estudantes Universitários e o Conselho Universitário de Esportes tinham

sido monopolizados por membros do regime. Em contrapartida criou-se

em 1985 a Federação de Estudantes Universitários do Paraguai, que, além

de se aliar à resistência, organizaria torneios paralelos com um discurso

marcadamente antiditatorial.

SEM FAVORES DIMINUI A LEALDADE

Em meados dos anos 1980 a ditadura começou a perder uma importante

base de legitimação social. A recessão econômica que se seguiu ao apogeu e

à boa fase que tinha permitido a construção da Hidrelétrica de Itaipu —

coincidente com o aumento das exportações agrícolas — gerou um pro-

gressivo descontentamento entre aqueles que sustentavam o regime em troca

de comodidade e privilégios. E a maioria dos legisladores opositores que

justificavam o sistema se retirou do processo. Paralelamente, o contexto

regional de países que retomaram governos democratizadores e a pressão

internacional pelo respeito aos direitos humanos estavam deixando Stroessner

e sua ditadura cada vez mais sozinhos. As nações democráticas do mundo

já não recebiam em visita o ditador, que só tinha acolhida no Japão, em

Taiwan ou na África do Sul.

A crítica dos setores contestatários e a desobediência civil começavam a

aumentar. Os organismos multilaterais, como o Banco Mundial e o Fundo

Monetário Internacional, que eram aliados da ditadura, também negavam

créditos.

Quando diminuiu o volume de recursos para manter o nível de apoio,

grande parte das relações de lealdade se converteu em distanciamento e o

próprio Partido Colorado se dividiu. Por volta da segunda metade dos anos

1980, os tradicionalistas são deslocados pelos militantes stronistas, que se

escudam no entorno e tomam decisões que afetam até os militares e seus

privilégios. Tudo isso derivou no golpe de 3 de fevereiro de 1989, que de-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29463

464

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

pôs o ditador e seus 34 anos e seis meses de reinado unipessoal, sustentadomediante uma extensa cumplicidade social.

Os efeitos dessa inter-relação de incondicionalidades, benefícios e dívi-das de favor construídas como lógica de sustentação de Stroessner continuamdirigindo até hoje os argumentos de defesa da ditadura nos grupos que areivindicam. E em vastos setores da sociedade paraguaia, a menos de 20anos da queda do regime, esses temas são omitidos, reproduzindo uma cum-plicidade silenciosa.

O funcionamento dos organismos governamentais e do Partido Colo-rado, nestes princípios do século XXI, é similar à época da ditadura. Já sema presença do medo institucionalizado nem das repressões “persuasivas”, oaparelho estatal continua constituindo uma instância para outorgar cargos,benefícios econômicos, adjudicações de obras a grupos ou consórcios ami-gos, corrupção e impunidade, em troca de adesão e lealdade ao partido eao governo para manter legitimidade e decisões nem sempre legais. A es-trutura montada sob a ditadura continua vigente na estrutura pública, nopoder e na prática dos caudilhos políticos da chamada etapa democrática.

Uma história resume a presença e vigência do stronismo e suas práticasnos distintos estamentos: depois do golpe militar de fevereiro de 1989 atelevisão divulgava ao mundo a instauração de um governo provisório noParaguai. À cabeça do novo gabinete, que abria a transição para a democra-cia, estava o general de divisão Andrés Rodríguez, consogro do ditador, sobcujo amparo enriqueceu. Stroessner, já exilado no Brasil, reconheceu to-dos os que estavam na cerimônia porque tinham sido seus leais, amigos ecolaboradores; e então disse: “Ali só falta eu…”

Notas

1. Decalcomania reivindicatória da ditadura aparecida nos primeiros dez anos dogolpe militar que a derrubou.

2. BLANCH, José M. (coord.). El precio de la paz. Asunción: Cepag, 1991.3. Os motivos da guerra do Chaco foram a incursão boliviana no território paraguaio

reivindicando direito de posse e buscando uma saída para o mar através do rioParaguai; também estavam por trás as transnacionais Standar Oil of New Jersey

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29464

465

S T R O E S S N E R E “ E U ” : A C U M P L I C I D A D E S O C I A L C O M A D I TA D U R A

e a Deutch Holland Shell, que desejavam concessões de exploração na crença deque no subsolo havia petróleo.

4. YORE, Myriam. La dominación stronista. Orígenes y consolidación. Asunción:Base Investigaciones Sociales, 1992.

5. Em 17 de fevereiro de 1936 um grande setor do Exército se constituía na direçãoarmada de uma revolução social impulsionada por um amplo movimento de se-tores sociais e políticos, contra o regime liberal. Impugnava-se uma filosofia euma doutrina política que havia plasmado na sociedade nacional uma ordemindividualista, desnacionalizante e espoliadora, fundada na dupla exploração dostrabalhadores urbanos e rurais pela oligarquia política e econômica governante;e do campo pela cidade. O projeto não prosperou e fracassou.

6. AMARAL, Raúl. Los presidentes del Paraguay. Crónica política (1844-1954). Tomo1. Asunción: Servilibro, 2005.

7. LIVIERES BANKS, Lorenzo, 1982, p. 25, mimeo.8. YORE, Myriam, op. cit.9. AMARAL, Raúl, op. cit.

10. Essa ação beligerante ficou conhecida como a Revolução de 47. O Exército sedivide em dois. Os moriniguistas de um lado e de outro a maioria que era deno-minada institucionalista, que acabou vencida. Nessa luta civil os colorados tive-ram apoio militar por parte do governo argentino de Juan Domingo Perón.

11. Em guarani, pés descalços. Bandos de camponeses armados que semearam o ter-ror e a destruição de bens e vidas dos opositores no interior do país.

12. Os guardas urbanos eram seguidores civis fervorosos do Partido Colorado que, in-vestidos de um poder não amparado em leis, mas legitimado pela anuência do podercolorado, perseguiam, reprimiam, usavam armas e faziam justiça com as própriasmãos com absoluta impunidade, alegando a defesa da ordem e da paz social do país.

13. Stroessner morreu em Brasília aos 93 anos, depois de uma curta agonia que seseguiu a uma cirurgia de hérnia. O enterro foi às 11h30, hora local, de 16 deagosto de 2006, no momento em que este texto estava sendo redigido.

14. Stroessner participou em junho de 1948 da derrubada do presidente HiginioMorínigo; em outubro de 1948, do abortado golpe contra Natalicio González; eem janeiro e fevereiro de 1949, da derrubada dos presidentes Natalicio Gonzáleze Raimundo Rolón.

15. YORE, Myriam, op. cit.16. Entrevista a Humberto Pérez Cáceres, feita em 1988 pela pesquisadora Myriam

Yore e publicada no livro: YORE, Miriam, op. cit.17. DÍAZ DE ARCE, Omar. “El Paraguay contemporáneo (1925-1975)”, in:

CASANOVA, Pablo González. América Latina: Historia de medio siglo. Vol. 1.México: Edición Siglo XXI; Unam, 1977 apud YORE, Myriam, op. cit.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29465

466

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

18. BLANCH, José M. (coord.), op. cit.19. Em 1951 Stroessner foi nomeado comandante em chefe das Forças Armadas,

segundo o Decreto 7.631. Esse fato constituiu o início de seu lento e contínuotrabalho para formar seu próprio exército e dominar a milícia, preparando suachegada ao poder, que ocorreria três anos depois.

20. BLANCH, José M. (coord.), op. cit.21. As seccionais constituíam sedes que se convertiam em uma filial do poder políti-

co. A partir delas se exercia o poder e o controle absoluto sobre a população. Assubseccionais foram sua extensão nos lugares mais afastados que não permitiama chegada dos caudilhos principais. Era além disso uma forma de manter leais eprebendas. Funcionam até hoje, embora não com o poder de antes.

22. MORÍNIGO, José; SILVERO, Ilde. Opiniones y actitudes políticas en el Paraguay.Asunción: Editorial Histórica, 1986.

23. Stroessner também era reconhecido e chamado pelos seus seguidores como oÚnico Líder. Isso significava que era o primeiro em tudo. O primeiro esportistado país, o primeiro colorado etc.

24. A Associação dos Engenheiros Colorados foi uma poderosa instituição. Tem atéhoje sua sede numa importante avenida da capital paraguaia. Dali apoiavam oregime e constituíam um grupo de pressão para manter os privilégios amealhadospor concessões e contratação de seus associados.

25. Os padrinhos eram protetores, influentes operadores políticos colorados ou dahierarquia do regime. Permitiam impunidade e trânsito livre para o progresso e aprosperidade sem importar os mecanismos. Mantinham a obsequência ao dita-dor e, ao mesmo tempo, seus privilégios.

26. PAREDES, Roberto. La lucha de clases en el Paraguay (1989-2002). Asunción:Roberto Paredes, 2002.

27. BAREIRO, Line; ESCOBAR, Manuelita. “Obstáculos para la participación polí-tica de las mujeres en el Paraguay. El caso del Movimiento Estudiantil Indepen-diente”, in: Participación política de la Mujer en el Cono Sur. Buenos Aires:Fundación Friedrich Naumann, 1987.

28. Em guarani, espião, delator, dedo-duro, sabujo. Sua tradução literal se refere apelos nos pés ou pés peludos, aludindo à leveza e ao silêncio com que se deslocaquem caminha sobre pelos, aludindo ao movimento sigiloso dos espiões. Tam-bém se usava como sinônimo a expressão Tî ro’ysâ (nariz gelado).

29. Numerosas fichas e registros encontrados no Arquivo do Horror de Assunçãodemonstram a existência institucional desses delatores.

30. BLANCH, José M. (coord.), op. cit.31. BOUVIER, Virginia M. Washington Office on Latin America. El ocaso de un

sistema. Encrucijada en Paraguay. Asunción: Ediciones Ñandutí Vive, 1988.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29466

467

S T R O E S S N E R E “ E U ” : A C U M P L I C I D A D E S O C I A L C O M A D I TA D U R A

32. LEWIS, Paul. Paraguay bajo Stroessner. México: Fondo de Cultura Económica,1986.

33. Da Convenção Constituinte participaram 79 colorados, 29 liberais radicais, oitoliberais e três febreristas. Cf. BLANCH, José M. (coord.), op. cit.

34. A Comissão Redatora da Nova Constituição foi integrada por Ezequiel GonzálezAlsina e Luis María Argaña (Partido Colorado), Carlos Alberto González (Parti-do Liberal Radical), Carlos Alberto Levi Ruffinelli (Partido Liberal) e FranciscoSosa Jovellanos (Partido Revolucionário Febrerista). Citado em BLANCH, JoséM. (coord.), op. cit.

35. BOUVIER, Virginia M., op. cit.36. PAREDES, Roberto, op. cit.37. LEWIS, Paul. Paraguay under Stroessner. Chapel Hill: University of North Caro-

lina Press, 1980.38. Cubas Grau renunciou em 28 de março de 1999 depois do levante político-

popular conhecido como Março Paraguaio, como derivação do assassinato nodia 23 do vice-presidente Luis María Argaña, atribuído por seus partidários aogoverno aliado com o golpista general Lino Oviedo. Esse acontecimento deixouoito jovens assassinados por franco-atiradores nas praças do Congresso.

39. BLANCH, José M. (coord.), op. cit.40. José Nicolás Morínigo (sociólogo e Senador), “De la muchedumbre a la soledad de

la muerte”. Comentário publicado no jornal Última Hora, 21 de agosto de 2006.41. A instituição encarregada da terra lucrou indistintamente com ela, adjudicando-a

por ordem do ditador a amigos e colaboradores como se fossem sujeitos da re-forma agrária. Essa prática ultrapassou a transição. Hoje funciona como Indert(Instituto Nacional de Desenvolvimento Rural e da Terra). Sempre foi dirigidapor colorados e militares. Sua função também foi exercer controle e eventualrepressão.

42. SANTOS, Augusto dos. “Inventario de una vida extraordinaria”. Revista CorreoSemanal. Diário Última Hora. Asunción, 2 de setiembre de 2006.

43. LACHI, Marcello (comp.). Insurgentes. La resistencia armada a la dictadura deStroessner. Asunción: Uninorte; Arandurã Editorial (Colección Nova Polis), 2004.

44. SILVA, Agripino. “El ‘rebautismo’ o la humillación colectiva de los campesinosdel Fulna”. Revista Memoria y Dictadura. Asunción, nº 9, 2006.

45. Caacupé, a 54km da capital, era e é considerado o centro da fé, porque todo 8 dedezembro, na data da padroeira, metade da população vai até lá em peregrina-ção, paralisando o país, transformando o local num cenário religioso e político.

46. No Arquivo do Horror de Assunção existem bilhetes e documentos enviados aoditador e seus organismos de repressão pelo bispo Demetrio Aquino denuncian-do opositores.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29467

468

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

47. COMISIÓN NACIONAL DE RESCATE Y DIFUSIÓN DE LA HISTORIACAMPESINA. Kokueguára rembiasa. Experiencias campesinas. Ligas AgrariasCristianas. 1960-1980. Misiones y Paraguari. Tomo III. Asunción: Cepag, 1992.

48. Organização Político-Militar ou Organização Primeiro de Março. Grupo clan-destino orientado para a guerrilha urbana que operou na segunda metade dadécada de 1960. Sua repressão durou meses e atingiu distintos setores sociais.

49. BLANCH, José M. (coord.), op. cit.50. BOUVIER, Virginia M., op. cit.51. ABC Color pertence até a data a Aldo Zuccolillo, cuja família está vinculada a

grandes negócios. Já na época de Stroessner tinha a maior financeira do país e amaior empresa de financiamento de moradias.

52. Última Hora foi criado pelo jornalista Isaac Kostianovsky. Em seguida entroucomo capitalista o coronel Pablo Rojas, amigo e tesoureiro de Stroessner. Seufilho Demetrio tomou as rédeas quando seu diretor — fundador — foi exiladopara a Argentina.

53. Hoy era propriedade do ex-genro de Stroessner Humberto Domínguez Dibb.54. Última Hora e La Tribuna foram fechados por 30 dias sob o argumento de que

tinham alarmado a cidadania ao publicar cruamente uma das mais dramáticasenchentes do Rio Paraguai; e o ABC foi fechado ilimitadamente — reabriu emmarço de 1989 depois da queda de Stroessner — por “subverter a ordem” com“a pregação diária de opiniões de caráter sedicioso”.

55. LÓPEZ, Miguel H. Los silencios de la palabra. Lo que dijeron y callaron losdiarios sobre las memorias de la dictadura durante la transición paraguaya.Asunción: Servilibro, 2003.

56. BARRETO, Nemesio. Historia sincera del Paraguay contemporáneo. Sobreperiodismo y servilismo. Documento de discusión, diciembre/2003.

57. MIRANDA, Aníbal. Stroessner. Asunción: Diario Última Hora; Universidad delNorte, 2004.

58. As supervisões eram centrais regionais representativas do Ministério de Educa-ção e Culto (hoje Cultura). Seu papel é o de controlar todo o movimento dasinstituições educativas escolar e média e executar a política do governo. Foramórgãos de doutrinamento, controlavam o conteúdo do que se devia ou não ensi-nar e se fosse preciso reprimiam estudantes com expulsões ou proscrições se aatividade de seus pais fosse contrária ao regime.

59. BOUVIER, Virginia M., op. cit.60. Idem.61. Idem.62. Augusto Roa Bastos tinha ido para o exílio depois da Revolução de 47, que levou

o Partido Colorado a governar numa ditadura de partido único. Posteriormente

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29468

469

S T R O E S S N E R E “ E U ” : A C U M P L I C I D A D E S O C I A L C O M A D I TA D U R A

seu exílio continuaria depois de ser expulso pela ditadura stronista por causa desuas críticas. Como muitos, o escritor acreditou inicialmente na possibilidade dainstauração de uma abertura política com Stroessner. Embora haja pessoas nasquais as ingenuidades são menos perdoáveis.

Bibliografia

AMARAL, Raúl. Los presidentes del Paraguay. Crónica política (1844-1954). Tomo 1.Asunción: Servilibro, 2005.

BAREIRO, Line; ESCOBAR, Manuelita. Obstáculos para la participación política delas mujeres en el Paraguay. El caso del Movimiento Estudiantil Independiente, enParticipación Política de las Mujer en el Cono Sur. Buenos Aires: Fundación FriedrichNaumann, 1987.

BARRETO, Nemesio. Historia sincera del Paraguay contemporáneo. Sobre periodismoy Servilismo. Documento de discusión, diciembre/2003.

BLANCH S.I., José M. (coord.). El precio de la paz. Asunción: Cepag, 1991.BOUVIER, Virginia M. Washington Office on Latin America. El ocaso de un sistema.

Encrucijada en Paraguay. Asunción: Ediciones Ñandutí Vive, 1988.COMISIÓN NACIONAL DE RESCATE Y DIFUSIÓN DE LA HISTORIA CAMPESINA.

Kokueguára rembiasa. Experiencias campesinas. Ligas Agrarias Cristianas. 1960-1980. Misiones y Paraguari. Tomo III. Asunción: Cepag, 1992.

DÍAZ DE ARCE, Omar. “El Paraguay contemporáneo (1925-1975)”, in: CASANOVA,Pablo González. América Latina: Historia de medio siglo. Vol. 1. México: EdiciónSiglo XXI; Unam, 1977.

LACHI, Marcello (comp.). Insurgentes. La resistencia armada a la dictadura de Stroessner.Asunción: Uninorte; Arandurâ Editorial (Colección Nova Polis), 2004.

LEWIS, Paul. Paraguay under Stroessner. Chapel Hill: University of North Carolina Press,1980.

——. Paraguay bajo Stroessner. México: Fondo de Cultura Económica, 1986.LIVIERES BANKS, Lorenzo, 1982, p. 25, mimeo.LÓPEZ, Miguel H. Los silencios de la palabra. Lo que dijeron y callaron los diarios

sobre las memorias de la dictadura durante la transición paraguaya. Asunción:Servilibro, 2003.

MIRANDA, Aníbal. Stroessner. Asunción: Diario Última Hora; Universidad del Norte,2004.

MORÍNIGO, José; SILVERO, Ilde. Opiniones y actitudes políticas en el Paraguay.Asunción: Editorial Histórica, 1986.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29469

470

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

PAREDES, Roberto. La lucha de clases en el Paraguay (1989-2002). Asunción: RobertoParedes, 2002.

SANTOS, Augusto dos. “Inventario de una vida extraordinaria”. Revista Correo Sema-nal. Diario Última Hora. Asunción, 2 de setiembre de 2006.

SILVA, Agripino. “El ‘rebautismo’ o la humillación colectiva de los campesinos delFULNA”. Revista Memoria y Dictadura. Asunción, nº 9, 2006.

YORE, Myriam. La dominación stronista. Orígenes y consolidación. Asunción: BaseInvestigaciones Sociales, 1992.

Arquivo

Arquivo do Horror de Assunção

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29470

CAPÍTULO 5 O lado escuro da lua. O momentoconservador em 1968*

Ariel Rodríguez Kuri**Tradução de Maria Alzira Brum

*Este artigo foi publicado no livro em dois volumes, PANI, Erika (ed.). Conservadurismos yderechas en la historia de México. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 2007.Parte da pesquisa documental para este capítulo foi financiada pelo Concejo Nacional deCiencia e Tecnologia (Conacyt) dentro do projeto “Ciudades mexicanas del siglo XX, ca.1900-1970”, dirigido por Carlos Lira na UAM Azcapotzalco. Agradeço a Erika Pani, LuisAboites, Clara E. Lida, Rodrigo Negrete Prieto, Ignacio Marván, Gerardo Palomo e JuanPedro Viqueira seus comentários e críticas às distintas versões do texto. (N. do A.)Agradecemos ao autor e ao editor a autorização da publicação no Brasil do artigo “El ladoescuro de la Luna. El momento conservador en 1968”. Agradecemos a Pablo Yankelevich aindicação do trabalho. (N. das Orgs.)**Professor do Centro de Estudos Históricos, do Colégio de México, na Cidade do Méxi-co. Autor de La experiencia olvidada. El ayntamiento de México: política y gobierno, 1876-1912. México: El Colégio de México, Universidade Autônoma Metropolitana, 1996 e “Laproscriptión del aura. Arquitetura y política en la restauración de la catedral de México,1967-1971”. Historia Mexicana, vol. LVI, nº 4 (224, abr.-jun., 2007.)

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29471

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29472

A PROPÓSITO

Na escrita da história contemporânea do México, o registro de vozes deveampliar-se tanto quanto possível. Nesse sentido, o protesto estudantil de1968 pode ser um caso exemplar. Devemos encontrar e analisar aquelestestemunhos que dão conta não apenas dos fatos circunstanciais e das mo-tivações diretas do movimento, mas também dos ambientes, estados deânimo e das percepções que o constituíram.1 Recuperar em toda sua rique-za e complexidade o momento, as circunstâncias e o ânimo dos protago-nistas e antagonistas nos permitirá inquirir, sobre uma base teórica, empíricae interpretativa mais sólida, a natureza de época — se de fato o foi — da-quelas jornadas.

Neste trabalho pretendo reconstruir alguns dos argumentos das pessoas,dos grupos e das organizações que em diversos níveis se mostraram con-cordantes e apoiaram explicitamente a política do presidente Gustavo DíazOrdaz frente ao protesto dos estudantes e seus aliados. A unidade relativadessas atitudes e desses argumentos conforma o que chamo o momentoconservador em 1968. O estudo foi dividido em quatro partes. Na primei-ra apresento duas interpretações, no meu entender paradigmáticas, dosacontecimentos de maio de 1968 em Paris; procedo dessa maneira porqueentre essas duas interpretações (a de Raymond Aron e a de Carlos Fuentes)encontra-se a maioria dos problemas e clichês necessários numa caracteri-zação do momento conservador mexicano. Não é o isolamento, e sim, porassim dizer, a universalização do caso mexicano o que permitirá avançarno seu melhor entendimento. Na segunda, e inspirado na discussão de Arone Fuentes, procuro avançar na definição geral dos componentes políticos e

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29473

474

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

culturais do momento conservador de 1968 no México. Na terceira e quartapartes desenvolvo dois desses componentes, que julgo centrais: as políticasda ansiedade e a pragmática conservadora.

DOIS ESTILOS, UM DIAGNÓSTICO: RAYMOND ARON E

CARLOS FUENTES EM PARIS

Em maio de 1968 Raymond Aron quis ser Tocqueville. Tratava-se de algomais do que uma imagem. Aron ensaia a própria performance em meio aoque chamou, não obstante, “o psicodrama” do fim da civilização. A con-vicção intelectual e ideológica empenhada nessa empresa é notável. Aronacompanhou o desenvolvimento da “comuna estudantil”, da greve dosoperários, da esquerda francesa e do governo gaullista como o médicoencarregado da terapia intensiva de um paciente. A mescla de ânsia pes-soal e veemência política não é suficiente para explicar a natureza extra-ordinária do documento.2

No meu entender, é imprescindível considerar que Aron, conscientemen-te, quis culminar uma linha de pensamento — a de Tocqueville3 — que nãoconsiste apenas em apontar os perigos do transbordamento popular, darevolução política e social que ameaça uma ordem; há, por certo, mais: Aronpretende mostrar os alcances e limites “objetivos” da revolução, de suaslinguagens e de seus atores. Aron culmina Tocqueville, sim, mas tambémcompleta a épica da derrota e do julgamento frio sobre a impossibilidadeda revolução que é o 18 Brumario. Provavelmente desde 1848 ninguémpode ser Tocqueville sem ser, ao mesmo tempo, um pouco Marx.

Efetivamente, para Aron o Maio de 1968 foi uma coisa impossível de sepensar como tentativa revolucionária. Por uma série de razões políticas esociológicas os estudantes não podiam ser revolucionários; portanto, deci-diram representar uma revolução (tal é o psicodrama).4 Entre os operáriose suas organizações (a Central Geral de Trabalhadores, o Partido Comunis-ta, as famílias do socialismo em plena reorganização) não existia unidadede critério sobre a necessidade e atualidade da revolução. Maio de 1968teria sido então um gigantesco ritual contra a ordem centralizada e racio-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29474

475

O L A D O E S C U R O D A LUA . O M O M E N T O C O N S E R VA D O R E M 1 9 6 8

nalizada nas universidades, nas empresas, na administração pública; uma

batalha de atitudes e contralinguagens; uma insubordinação colossal, qua-

se primitiva, contra o cotidiano, mas não um ataque frontal ao poder do

Estado burguês. As barricadas podem bem ser um dado equivocado, e Aron

mostra uma tendência a diminuir os níveis de violência investidos naquelas

jornadas; para Aron as Companhias Republicanas de Segurança (as CRSs,

os granadeiros de lá) nunca mereceriam uma lenda negra.5

Mas representar uma revolução implica, seja como for, enormes peri-

gos. A saída para a crise política que se estava expondo em maio não pode-

ria ser específica, e sim genérica, e esta é outra das grandes alegações de

Aron: o radicalismo dos jovens e dos ultras ao estilo dos grupos trotskistas

ou maoistas ou anarquistas, e dos intelectuais que os acompanham na via-

gem, não tem absolutamente nada para oferecer em termos de uma alter-

nativa política viável. Se o governo de De Gaulle tivesse caído, teria surgido

ou um governo de esquerda de espectro amplo, mas com uma inevitável

tendência a ser controlado pelos comunistas no curto prazo; ou um gover-

no autoritário de direita, provavelmente à margem da Constituição.6 Obvia-

mente é o fantasma da guerra civil, em uma conjuntura geopolítica como a

da guerra fria, o que obceca Aron.

O modo libertário de 1968 é nesse sentido detestável, na mesma medida

em que é utópico, desfocado e invertebrado. Esse modo libertário produz,

na interpretação de Aron, dois fenômenos paradoxais: certo reconhecimento

da disciplina e do senso da responsabilidade dos comunistas; e uma irritação

frente à atitude daqueles intelectuais que, embora se declarem inimigos do

movimento, não conseguem esconder seu encantamento com as ordens, os

modos de agir e o sentido crítico e irreverente de maio.7 Nem essa simpatia

só do coração é tolerada por Aron, para quem os adolescentes brincando

de revolução na rua são um perigo tremendo para a liberdade e o futuro da

República. Não foi a imaginação, mas sim a sensibilidade frente à revolu-

ção e sua parafernália o que foi castrado no pensamento de Aron.

O exercício de análise política conservador (mas radicalmente moder-

no)8 que é o panfleto de Aron merece mais dois comentários. A noção de

psicodrama, com a qual se abre toda a argumentação contra o maio pari-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29475

476

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

siense, é uma maneira de destacar as diferenças entre o que se jogava em

1968 e o que se jogou em 1848 ou 1871 ou 1936 (durante as grandes gre-

ves no governo de Frente Popular).9 Embora em 1968 não haja uma violên-

cia de morte, o ponto de Aron é advertir que o baile de máscaras pode se

transformar em tragédia e que ninguém pode controlar essa mutação:

“Como esse psicodrama pôde ter se transformado num drama de verdade?

Como essa tragicomédia pôde ter terminado em uma tragédia?”10 Mas a

memória de Aron é aqui muito seletiva. Em sua contagem dos momentos

de ruptura (1848, 1871, 1936), em que a sensatez do pensamento liberal/

conservador deve salvar a sociedade de si própria, esquece sem mais o agosto

de 1944.11 No meu entender, essa é uma omissão sintomática, porque agos-

to de 1944, ou seja, os dias da liberação de Paris da ocupação alemã, guar-

dam semelhanças inquietantes com o psicodrama de maio: barricadas que

culminam um entusiasmo popular transbordado; impulsos autogestionários

que se expressam na insurreição e na execução de colaboradores, às vezes

sem formalidades; confraternização social horizontal e vertical que levaria,

também, a celebrações em que o vinho e o sexo se combinam em um carna-

val de liberdade pessoal e comunitária.12 Psicodrama, catarse, cuja intensi-

dade levaria o general De Gaulle a advertir que o ponto nodal de toda

autoridade na França liberada era, apenas a alguns dias da emancipação do

nazismo, o restabelecimento da ordem pública.13 A omissão de Aron é, in-

sisto, sintomática mas explicável: sua imagem de ordem é idêntica à de seu

nacionalismo, algo que não se deve esquecer no estudo de quase todo con-

servadorismo moderno.

Aron escreveu que aos rebeldes de 1968 não havia que escutá-los, só

interpretá-los.14 Por outro lado, Carlos Fuentes acreditou em tudo o que

escutou; a palavra foi para ele uma verdade absoluta. Fuentes, como Aron,

escreveu sobre o maio francês e publicou no México um texto que conden-

sou e difundiu quase todos os clichês de 1968.15 Se Aron se afasta dos acon-

tecimentos para entendê-los, Fuentes afunda neles até a intoxicação. Todo

o folheto (32 páginas em formato grande) é uma montagem de entrevistas

e imagens in situ:

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29476

477

O L A D O E S C U R O D A LUA . O M O M E N T O C O N S E R VA D O R E M 1 9 6 8

Segundo a lenda que ele mesmo construiu então, no meio do campo de

batalha, entre as barricadas, o novelista tirava sua caderneta de notas e

escrevia suas ideias sobre o que via. Enquanto os jovens lançavam bombas

ou frases célebres, Fuentes analisava [seu] comportamento [...] e o discu-

tia ali mesmo.16

A imagem conservadora de 1968 (Aron) exige do folheto de Fuentes: éseu espelho, seu inverso. Flo, filha de uma amiga dele, participou da toma-da e ocupação da universidade em Nantes, onde um dia desapareceram ospoliciais quando foram chamados com toda urgência à Paris em chamas;“Flo se liberou em uma cidade onde os policiais desapareceram”, entusias-ma-se Fuentes. Outra mulher, em Paris, cede seu apartamento para o aten-dimento aos estudantes feridos nas barricadas. Seu marido, funcionário datelevisão estatal, mostra preocupação, pois é necessário “estar bem com ogoverno”, argumento que pelo visto não se inventou no PRI (Partido Re-volucionário Institucional mexicano, governista); a resposta da mulher élapidar: “Escolha entre Pompidou [o primeiro-ministro] e eu.” Modalida-des e dobras do psicodrama no casal: Fuentes explicou que no maio de Paris“maridos e mulheres se separaram por incompatibilidade política, moral eerótica (pois se trata de sinônimos)”.17

Não há dúvida de que Fuentes está nas barricadas.18 A espiral da violência,a indignação e o entusiasmo se elevam imensamente. A abertura de um pará-grafo é a equação CRS = SS, que se traduz como se os granadeiros de láfossem iguais às tropas de assalto de Hitler; “A besta mostrou seu cabelo;são os fios do fascismo”, conclui.19 O isolamento analítico e certamente asobrevalorização da violência policial em Paris são os procedimentos doromancista para lançar a crítica aberta à sociedade de consumo, à alienação,à vida universitária, ao isolamento e à irrealidade do sujeito moderno.20

Fuentes destaca a voz dos insurretos com energia e devoção admiráveis.A partir de um determinado momento quem fala na reportagem são os ra-dicais, cujos estilo e valores são plenamente assumidos pelo cronista. O ex-tenso diálogo com um estudante de Nanterre (o berço de maio) é colocadonum marco de referências que é tudo menos inócuo: “A profunda serie-dade e capacidade de trabalho da estudantada revolucionária é evidente”,

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29477

478

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

diz Fuentes, a propósito do ambiente da entrevista. “Estamos entre doisturnos das eleições legislativas. Sobriamente indiferentes a esse trâmite for-mal, os estudantes preparam a Convenção Nacional de Universidades [...].”21

Rapidamente a virulência discursiva contra a ordem política e cultural daburguesia tende a adquirir outra dinâmica e outro objetivo: enterrar a velhaesquerda, inventar (ou ao menos destacar) a nova esquerda. O vocabulárioe a sintaxe são desumanos; Fuentes escreve: “E quando dez milhões deoperários entram em greve por algo mais do que simples reivindicações econô-micas (embora essa atitude original tenha sido posteriormente frustradapelos dirigentes da CGT e do Partido Comunista [...]).”22 Mais adiante oestudante a quem Fuentes entrevista alfineta:

Ao perceber a intensidade do movimento revolucionário contra as atuais

instituições, as velhas formações de esquerda se sentiram ameaçadas por-

que, como disse Sartre na Sorbonne, elas também são instituições e fazem o

jogo formal da burguesia.23

Esse mesmo estudante, ao analisar a recuperação espetacular do governonas eleições antecipadas de junho (nas quais um bom número de jovens foi,ao que parece, excluído da votação), resumiu: “O que importa? Já votei nasbarricadas pelo socialismo revolucionário. Meu título foi um paralelepípedo.”24

MOMENTOS E COORDENADAS DO MOMENTO CONSERVADOR

MEXICANO EM 1968

Raymond Aron e Carlos Fuentes sabiam, ao escrever seus testemunhos, queo Maio de 1968 tinha fracassado como alternativa política (embora nãotivessem certeza de suas consequências culturais e intelectuais).25 E, o que éainda mais importante, ambos contribuem para a delimitação de um campode problemas no qual o feixe de respostas políticas, ideológicas e argumentosconservadores ocupa lugar central. Aron escreveu sobre a impossibilidadeda revolução na sociedade francesa contemporânea; Fuentes fez uma repor-tagem (e de certa forma uma arqueologia) do pensamento contestatório,

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29478

479

O L A D O E S C U R O D A LUA . O M O M E N T O C O N S E R VA D O R E M 1 9 6 8

antiautoritário e desarticulado dos jovens radicais franceses; sem se propora isso, Fuentes mostrou os limites e as debilidades desse pensamento.

Aron explicitamente e Fuentes por omissão chegam a um ponto em co-mum: há momentos, até em meio à enorme efervescência, agitação e violên-cia, em que setores majoritários, ou pelo menos estratégicos, das sociedadesnão optam pela mudança brusca da forma de governo, nem pelo desloca-mento das elites políticas, nem pela definição de outros modelos de relaçõesde classe e desenvolvimento socioeconômico. Ao contrário, um conjuntode correntes de opinião e de atitudes e respostas políticas se articula, usual-mente sob a batuta essencial de uma forte liderança política, em um mo-mento conservador.

Mostrar as determinantes políticas e socioculturais de um momentoconservador requereria um estudo exaustivo. Em todo caso, e para avançarem uma primeira aproximação ao caso mexicano, identifico dois processossuperpostos, de distinta temporalidade, mas que em um dado momento con-fluíram para precipitar o próprio momento conservador. Em primeiro lu-gar está aquilo que chamarei neste trabalho de políticas da ansiedade, ouseja, os mecanismos subjetivos (mas num contexto político e cultural bas-tante estruturado) por meio dos quais pessoas “comuns”, “normais”, racio-nalizam, dão sentido e respondem a certas novidades (nesse caso, sobretudode índole demográfica e cultural) que aparecem no domínio social. Em úl-tima instância, as políticas da ansiedade são um testemunho (às vezes ime-diato, às vezes postergado) das dificuldades experimentadas por algunssetores para enfrentar a mudança social do segundo pós-guerra no Méxi-co. Essa mudança tinha colocado os jovens e seus modos de vida no centrode uma ágora imperfeita, ágora fortemente distorcida pelos hábitos e pelasinércias de uma sociedade patriarcal, autoritária, católica e conservadora.26

Em segundo lugar se prefigura o que chamo de pragmática conservado-ra, ou seja, a opinião, as sugestões e atitudes imediatas, quase fotos instan-tâneas, de pessoas, grupos e organizações frente ao movimento estudantilde 1968. A pragmática conservadora se define com todo seu potencial de-pois da ocupação militar de Cidade Universitária, em 18 de setembro. Oque importa nesse segundo processo é o apoio expresso ao presidente daRepública com motivo da ocupação militar das instalações universitárias;

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29479

480

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

mas importa também a maneira de racionalizar e dar sentido à tentativagovernamental de impor pela força uma disciplina. A pragmática conserva-dora foi, em mais de um sentido, a maneira como se constituiu o partido daordem em 1968.

O momento conservador expressa, mas também modifica, uma correla-ção de forças. Se mudarem os ânimos e as sensibilidades dos protagonistasde uma conjuntura, ou se tem lugar uma transformação material ou simbó-lica significativa no contexto de uma crise, tudo pode se modificar, em umsentido ou em outro. Aron lembra como setores médios e altos de Parissimpatizaram com os estudantes universitários... até que deixaram de simpa-tizar. É igualmente claro no caso mexicano que a “opinião pública” flutuouentre o apoio, a simpatia, a indiferença e a franca condenação aos estudantes.27

Um fato a considerar: observando as manifestações estudantis europeiasem um contexto mais amplo, vemos que se desenvolveram em modelospolíticos de certa rigidez; e esses modelos não foram seriamente transtorna-dos pelas manifestações estudantis. Como mostram as perspectivas globaisdo comportamento eleitoral na França, Itália, Alemanha ou Grã-Bretanha,os ganhos e as perdas de votos e percentagens de votos dos blocos de centro-esquerda e de centro-direita durante a década foram na verdade marginais.O que realmente constituiu uma novidade política foi a modificação doconsenso nas elites políticas em relação às prioridades de governo: a pro-fundidade e o alcance da aliança estratégica com os Estados Unidos, as res-postas às desigualdades do ciclo econômico, a expansão do estado debem-estar, o desenho de políticas salariais de longo fôlego, a natureza doplanejamento econômico etc. Quando um partido de esquerda chegou aogoverno, como no caso alemão de 1966, foi coligado com os socialistascristãos (seus grandes rivais históricos). Não estamos — insisto — diantede uma grande mutação no comportamento do eleitorado, e sim frente a umamudança de prioridades das elites: os socialistas cristãos, ainda majoritários,decidiram governar em coalizão com os socialdemocratas de Willy Brandtpara antecipar uma agenda com ênfase na esquerda e para dividir os custosda recessão. Embora com outras consequências, o mesmo se pode dizer dasambiguidades do Partido Socialista Italiano, sempre dúbio frente à possibi-lidade de aliar-se com os democratas-cristãos ou com os comunistas.28

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29480

481

O L A D O E S C U R O D A LUA . O M O M E N T O C O N S E R VA D O R E M 1 9 6 8

No caso mexicano, o momento conservador de 1968 não é a mesmacoisa que um bloco eleitoral conservador.29 Isso seria um abuso das palavras,dado o modelo eleitoral não competitivo do regime. Em todo caso, o mo-mento conservador é inteligível a partir dessa constelação histórica que aliteratura gramsciana chamou de bloco histórico; é também necessário con-siderar a utilidade da noção de hegemonia (política, cultural) para o enten-dimento de uma conjuntura. Devo enfatizar, no entanto, uma limitação destaperspectiva de análise: tem-se a impressão de que os historiadores carecemde uma teoria da conjuntura.30 Essa ausência é relevante na medida em quenão estão definidos os modos analíticos e interpretativos para transitar daenunciação, bem mais genérica, de um estado de coisas político cujo hori-zonte é o médio prazo para o reconhecimento e a explicação de crises po-líticas que podem precipitar-se em pouquíssimas semanas, às vezes em dias(como demonstram amplamente os casos de Paris e da Cidade do México).

O momento conservador de 1968 no México tem vários componentes:descreve de entrada um alinhamento discursivo enfático, dramatizado, depessoas ou grupos que racionalizam e justificam as medidas (inclusive o usoda violência física) do governo de Gustavo Díaz Ordaz contrárias ao cum-primento das reivindicações estudantis; esse alinhamento se dá entre pes-soas, grupos e organizações de origem supostamente diversa do ponto devista de classe, cultural e ideológico. O momento conservador não se defi-ne sempre, de forma direta e mecânica, pelos antecedentes políticos e ideo-lógicos de seus protagonistas, mas sim pelos argumentos imediatamentevertidos por esses frente às mobilizações, linguagens e modalidades de in-formação dos estudantes nas escolas e nas ruas. Os partícipes do momentoconservador tendem a interpretar o protesto estudantil unicamente comoum ato de indisciplina política e social, e não a consideram em qualquermomento um exercício de direitos constitucionais (políticos, cívicos) dosestudantes e seus aliados. Enfim, a corrente conservadora recorre a duasoperações típicas: a denúncia de influências externas no protesto (de co-munistas, de imperialistas, de priistas ressentidos) e a exibição dos jovenscomo a prova vivente do fracasso da ordem moderna no México.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29481

482

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

POLÍTICAS DA ANSIEDADE: RESPOSTAS AO DETESTÁVEL

Rebeca Rodríguez, 34 anos, escreveu ao presidente da República em 3 desetembro de 1968.31 Ela vivia no bairro Moctezuma, no leste da cidade.Era secretária ou assistente de um dentista cujo consultório ficava na ruaTacuba, no que hoje conhecemos como Centro Histórico. Na carta nadapede para si e não há nela um tema específico, porque provavelmente aliestão todos os temas.

É certo que Rebeca decidiu escrever a carta depois de ouvir o relatóriopresidencial de Gustavo Díaz Ordaz, em 1° de setembro. O primeiro recur-so de Rebeca é uma identificação plena com Díaz Ordaz; a intenção damensagem, diz, “é [...] lhe enviar minha consideração pelos insultos e pelascalúnias que lhe lançaram [os estudantes]”; “vi no seu rosto dor e senti-mento”; “é duro e fere sentir-se injuriado”, reflete. Há esperança: “Nãotema essas pomadinhas”, ou seja, os insultos, pois “lhe darão mais brilho”.Rebeca sabe do que fala: “Eu também já me senti terrivelmente ferida”, até“caluniada”; as pessoas “me xingam na rua” porque “sou feia e gorda”.

Estabelecida a identidade com Díaz Ordaz, a mensagem de Rebeca dáum giro notável. Embora continue falando do lugar que ela imagina com-partilhar com o presidente (ser objeto de críticas e gozações por sua apa-rência), expressa deste modo a angústia pelo que acontece nas ruas: “Seestiver em suas mãos resolver o conflito estudantil, lhe imploro da formamais suplicante que o faça.” O conflito deve ser resolvido por duas razões.Em primeiro lugar, para que não continuem aparecendo “esses escritos nasparedes”, essas pichações furiosas, divertidas, iconoclastas, que em si mes-mas são uma das histórias do movimento estudantil.32 Provavelmente adessacralização fulminante e radical da figura presidencial nos muros dacidade (a partir de frases e caricaturas) perturba os esforços de identifica-ção de Rebeca com o presidente: “Dói-me ver sua reputação manchada nasparedes [...] me causa tristeza, digo sem nenhuma fantasia.”

Não há fantasia, certamente, na segunda justificação de Rebeca. “Tenhomedo”, diz ao presidente, “que volte a se repetir o problema da circulaçãodos ônibus”. Durante oito dias, diz, teve de caminhar longamente paraencontrar um ônibus e “então senti o rigor dos meus 34 anos, pois a caminha-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29482

483

O L A D O E S C U R O D A LUA . O M O M E N T O C O N S E R VA D O R E M 1 9 6 8

da foi terrível para mim”. “Ai senhor, rogo-lhe [que], se em suas veneráveis

mãos está [,] ponha paz nos ânimos desses jovens em parte amalucados [...]”.

“(...) esses jovens em parte amalucados” é uma chave, um resumo que

deve nos transportar a outra das dimensões de 1968, e que é uma das con-

dições (necessária, não suficiente) na formação de uma conjuntura conser-

vadora nas sociedades modernas: a ansiedade. Essa contribuiu para a

formação do momento conservador no México por um tipo de condensação

do detestável (no sentido do desgraçado, sinistro, funesto, ameaçador). Há

pistas documentais de que a sociedade mexicana teve dificuldades, ao me-

nos uma década antes de 1968, para gerar um olhar equilibrado, maduro,

sobre a novidade multifacetada que significaram os jovens urbanos. Apare-

ceu em distintos grupos sociais um olhar às vezes suspicaz, mas em outras

ocasiões francamente condenatório aos modos de vida dos jovens.

Luis Garrido (ex-reitor da Universidade Nacional) escrevia, em 1958,

em uma revista de pretensões científicas: o aumento da “delinquência ju-

venil” revela “uma grave infecção coletiva”; o comportamento dos adoles-

centes “obedece sem dúvida a uma desordem íntima, a certas exigências e

intenções inconfessáveis”. Note-se a relação causa-efeito: “A literatura e o

cinema de nossos dias têm uma influência grave” sobre os jovens e seu com-

portamento. Mas provavelmente mais importantes, por seu impacto nas

percepções de certos setores sociais, eram os estilos e as linguagens das

coberturas jornalísticas de certos meios. Alarma, rainha das publicações de

notícias policiais no México, resenhava com entusiasmo as ações policiais

contra jovens. Em uma reportagem de 1960, aceitava que pudesse haver

razões de fundo para a delinquência juvenil (a crise moral do segundo pós-

guerra, a ameaça nuclear, a desintegração familiar), mas de qualquer ma-

neira os jovens não podiam ser considerados vítimas da sociedade: “Não

são incompreendidos. São delinquentes!”. Em uma reportagem posterior

se descreve uma batida “em bilhares e cafés estranhos”, onde os “rebel-

dinhos” foram “surpreendidos em suas próprias e vis tocas, que foram ao

fim saneadas”. Um ponto realmente notável, sintomático diria eu, dessas

reportagens é que não se identifica falta ou delito específicos dos jovens

capturados e fichados pela polícia.33

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29483

484

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

É difícil estabelecer em que medida as pessoas comuns compartilhavamesse olhar.

Temos apenas indícios a esse respeito. Julio Monteverde Varela, “obs-curo cidadão entre milhares”, segundo sua definição, felicitou o presidenteDíaz Ordaz, em novembro de 1967, por uma iniciativa enviada aos depu-tados com o suposto fim de “acabar com o vandalismo”. A medida era opor-tuna, dizia o missivista, “pois já era alarmante” a “proliferação” de vândalos.Esses, “como um câncer incrustado no seio da pátria”, estão “carcomendoas raízes da nossa sociedade” e são um “nefasto exemplo para as futurasgerações”. Note-se mais adiante a atitude francamente defensiva do Monte-verde, que, no meu entender, define uma reação emocional e política frentea um ambiente que se torna ameaçador: “O valor, a nobreza e a integridadecomo qualidades superiores” foram subvertidos lentamente pelo “desenfreiomoral que se respira por todo o âmbito nacional”. E, embora esse fenômenoseja um “mal da época moderna”, estendido pelo mundo todo, no Méxicoera já necessário “talhar o mal” para dar um exemplo “às demais nações”.34

Monteverde quer uma autoridade que restaure um mundo; seu olhar reco-nhece acuamentos, o que radicaliza sua demanda num vocabulário que nãoesconde sua carga de violência: talhar é a expressão do açougueiro.

Se entendermos a ansiedade como uma reação frente ao detestável, 1968não inaugura, e sim culmina, a trajetória dessa ansiedade. Essa nasce daincerteza, do medo frente àquilo que muda, às vezes de forma acelerada,no horizonte social; essa ansiedade, no entanto, não é exclusiva do casomexicano e tampouco dos anos 1960. Provavelmente não exista um conser-vadorismo idêntico a si mesmo para toda a década de 1960, como, comcerteza, não há uma moral burguesa para todo o horizonte moderno; emtodo caso, não existe um nem outro se antes não reconhecermos seus con-teúdos. Peter Gay encarou esse assunto, especialmente naquele período tãochamativo e que parece inesgotável que vai da Revolução Francesa à Pri-meira Guerra Mundial.35 Para Gay, a ansiedade e o conjunto de termos querepousam num campo de problemas similar (agressão, sublimação) não sãoredutíveis nem privativos de uma classe social, da moral religiosa ou dasmúltiplas possibilidades da sensibilidade artística. “A experiência burgue-sa” é para Gay notavelmente diversa quanto a suas respostas políticas, ar-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29484

485

O L A D O E S C U R O D A LUA . O M O M E N T O C O N S E R VA D O R E M 1 9 6 8

tísticas e eróticas à ansiedade: é um amplo leque de dispositivos repressi-vos, sim, mas de gratificações, de evasões e de autoafirmações. Por isso Gayduvida da existência de uma moral burguesa, monolítica, isto é, de siste-mas valorativos e de tecnologias incontestáveis para o controle do corpo eda mente. Contra o olhar paranoico dos filhos de Foucault na historiografia,que monopolizaram as aproximações ao corpo e à mente do homem mo-derno, Gay desenvolve as ideias freudianas de pulsão (de vida, de morte),mas toma desse modo muito a sério os mecanismos de controle e auto-controle dos homens e das mulheres. Para Gay, o pan-óptico e o Big Brothernão importam. Interessam-lhe muito mais os indivíduos confrontados como inesperado, o desejo, o amor, a morte, as decisões pequenas e grandesque fazem a vida.

A moral metodológica de Gay é, no meu entender, essencial. As ansie-dades que contribuíram para o aparecimento do conservadorismo da décadade 1960 estão sujeitas a um exercício interpretativo, é claro, mas não a umaredução em última instância. A diversidade dos argumentos e de seus des-dobramentos deve prevalecer. Segundo o momento, é tão efetiva a po-lítica da inocência de Rebeca, cuja identificação com Díaz Ordaz é tambémfenotípica, quanto os diagnósticos sobre o detestável que provêm não dasmargens, mas sim do main stream de um conservadorismo de pretensõesilustradas. Em 1º de outubro de 1968, Constantine Paul Lent, engenheiromecânico, escreveu ao presidente do México do seu escritório em NovaYork.36 Lent — que também se apresentava como escritor e editor — tinhauma explicação para os distúrbios estudantis que naquela altura se estende-ram por mais de oito semanas na capital da República. Na verdade, a teoriado engenheiro não ficava circunscrita ao verão mexicano, mas era perfeita-mente aplicável — conforme postulava ele mesmo — aos distúrbios nasuniversidades americanas, francesas, italianas e até na movimentação atrásda Cortina de Ferro.

Mas Lent estava preocupado de maneira especial com o México, dada aiminência dos Jogos Olímpicos: “É imperativo”, disse Lent ao presidente,“que a lei e a ordem sejam restauradas na cidade e que os distúrbios dosestudantes terminem”. Para isso era necessário adiantar um diagnóstico sobreas causas do descontentamento estudantil. O descontentamento “não é basi-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29485

486

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

camente político”, por mais que “elementos subversivos” tenham sobressa-ído e tomado vantagens em meio aos distúrbios. O descontentamentotampouco está relacionado com as práticas da administração escolar. A res-posta é outra: “É óbvio” — assevera — que os distúrbios têm “uma origem[...] sexual.”

A origem do descontentamento dos jovens é sexual, sim, mas se trata deum descontentamento induzido pelas promessas do olhar, pelo espetáculo,mais do que pela carne diretamente conhecida: os distúrbios dos estudan-tes no México e no mundo “foram causados pela exposição indiscreta docorpo das mulheres quando vestem minissaias”. Lent só aceita que as me-ninas vistam minissaia. Mas seu uso pelas adolescentes, pelas mulheres ma-duras e até pelas anciãs causa problemas nas ruas, nos lugares de convivênciasocial, nos centros de trabalho. Certamente o lugar mais crítico, onde aminissaia tem o impacto mais profundo e subversivo, é nas escolas e uni-versidades, onde as estudantes “exibem desvergonhosamente as partes ín-timas de seus corpos nus” para seus colegas e professores. Um resultadoimediato dessa exposição do corpo feminino é o aumento dos desejos“psicossomáticos”, que são muito difíceis de controlar e mais ainda de sa-tisfazer. Os desejos reprimidos dos estudantes, ansiosos frente ao vislum-bre cotidiano das coxas femininas, são a explicação mais profunda, maisradical, das atitudes contestatórias, violentas até, contra as autoridades es-colares e políticas. “É surpreendente”, escreveu, que em “um país que édevotamente católico” se permita que as mulheres usem “as vergonhosasminissaias”. Irritante assunto — diz Lent —, pois, além disso, definiu-seum duplo padrão: obrigam as mulheres a cobrirem a cabeça para assistir àmissa, mas ao mesmo tempo não ligam quando mostram suas “nádegas aospadres na Igreja”.

A carta é um documento político na medida em que propõe soluções con-cretas a problemas concretos e na medida em que essas soluções devem serimpostas pela autoridade. “Para deter a revolta” estudantil, recomenda Lenta Díaz Ordaz, “o governo da Cidade do México deve decretar uma lei queimpeça o uso de minissaia durante os Jogos Olímpicos” — ordem e geopolítica.Todas as saias devem estar cinco centímetros abaixo dos joelhos e essa medi-da deve ser dirigida primeiro às mulheres que fazem parte da equipe olímpica.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29486

487

O L A D O E S C U R O D A LUA . O M O M E N T O C O N S E R VA D O R E M 1 9 6 8

Elas serão o exemplo. Mas a lei deve estar além da conjuntura, pois seu obje-

tivo último é desterrar a minissaia das salas de aula e das residências estudan-

tis. A paz do reino e as coxas expostas são incompatíveis.

Tratemos de entender o conservadorismo de Lent além da correlação

— espúria, mas sintomática — entre as coxas das moças e as barricadas no

Bairro Latino e na Cidadela. Como, no meu entender, mostra sua carta,

Lent parte de premissas que não estão explícitas. O historiador Arthur

Marwick fez uma colocação fascinante a respeito, que ajuda a esboçar as

obsessões de Lent: a década de 1960 foi dos jovens, mas também foi, pro-

vavelmente, na mesma medida, dos pais (de alguns pais, pelo menos). Nos

Estados Unidos, na França, na Inglaterra, talvez principalmente na Itália,

Marwick encontra homens e mulheres maduros mais permissivos, mais aten-

tos, com frequência mais amorosos com seus filhos adolescentes do que os

próprios pais tinham sido com eles.37

Na medida em que houve uma rebelião dos jovens, essa foi uma rebelião

tardia dos pais, de alguns pais pelo menos. Os pais nasceram entre 1900 e

1930. Na Europa (e de outra maneira nos Estados Unidos) são veteranos com

plena memória dos acontecimentos mais extraordinários do século XX: as

guerras mundiais, a ascensão do fascismo e do comunismo, a Grande De-

pressão, a guerra fria. Esses pais foram os cidadãos que na plenitude de suas

vidas refundaram a Europa em meio ao pântano deixado pelas bombas e, de

boa ou má vontade, ficaram sabendo dos campos de extermínio. Interpreto

Marwick: o amor, em todo caso, e a compreensão dos pais com relação ao

mundo dos filhos são o amor e a compreensão dos sobreviventes, mas tam-

bém dos refundadores de uma civilização, a do reino novo de 1945.

Não discordo de forma alguma de que a rebelião dos jovens nos anos

1960 foi também contra os pais. A preguiça dos mais velhos, a conivência

dos quarentões e cinquentões com o gaullismo francês e a democracia cris-

tã italiana devem ter irritado aqueles europeus e norte-americanos jovens,

bárbaros e ilustrados. Mas nem todos os homens e as mulheres maduros

devem ser incluídos sem mais na “maioria silenciosa”, naquela grande re-

serva de votos do status quo à qual Richard Nixon sempre apresentou seu

programa e sua face política. Pais e mães, dentro e fora das maiorias silen-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29487

488

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

ciosas, terão comprado eles mesmos, ou ao menos pago, as minissaias. Comomostrou Marwick, mas sem esgotar aí a explicação, os jovens dos 1960 fo-ram um novo segmento de mercado, possibilitado por uma economia flu-tuante e pais dispostos a conceder aos filhos, ao menos diante da caixaregistradora.

As políticas da ansiedade não estão dirigidas somente contra o mundodos jovens. Na verdade, sugiro que, para que esse discurso seja eficaz, émais provável que primeiro deve ter se localizado e depois reagido frenteao fato de que os adultos eram companheiros de viagem, cúmplices, dosjovens percebidos como ameaça. Esse pode ter sido o guia oculto do enge-nheiro Lent. Em De perfil (cuja primeira edição é de setembro de 1966), oescritor mexicano José Agustín parece ter entendido o peso enorme da novaaliança entre maduros compreensivos e jovens. O protagonista, um adoles-cente que termina o ensino médio e entra na preparatória número 1 da Uni-versidade Nacional, diz:

Humberto sorriu, provavelmente porque compreendia que isso era falso,

por duas razões: A. ele é psiquiatra; B. nunca lhe digo papai. É claro que

não se zanga, ao contrário, foi ele quem nos acostumou a que lhe chamásse-

mos de Humberto e só. Minha mãe, ao que parece, concorda totalmente

com que lhe chamemos de Violeta.38

De perfil tem muitos temas, mas um essencial é o registro, o acompanha-mento detalhado que o filho adolescente faz do amor de seus pais, essesque o ensinaram a tratá-los por “você”. Em um momento culminante danovela, perto do fim, em uma cena que ninguém sabe se foi sonhada, imagi-nada ou realmente presenciada, seus pais fazem amor e o adolescente deixaum testemunho que não se caracteriza pela perversão, mas sim peloencantamento.39

Só nesse sentido De perfil pode ser também uma novela sobre a rebeliãodos jovens. O protagonista adolescente acompanha seu amigo Esteban (umrapaz com pretensões intelectuais, também muito mimado em casa) quan-do esse vai buscar seu certificado do ensino médio no Colégio Simón Bolívar.Esteban é exortado pelo diretor quando fica sabendo que continuaria seus

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29488

489

O L A D O E S C U R O D A LUA . O M O M E N T O C O N S E R VA D O R E M 1 9 6 8

estudos em uma preparatória da Universidade Nacional (aquela “panela deateus”, lhe diz o diretor). Esteban guarda silêncio durante todo o sermão;quando está com certificado nas mãos, explode:

Cale-se, velho idiota, você está louco se acha que vou continuar numa merda

de escola de religiosos gays. Cale-se, digo. Aí sim eu ia me perverter, dei-

xando-me bolinar por velhos como você. Vomito nesta escola e em todas as

religiosas, cago para o seu deus babaca e na sua puta virgem, vomito em

você e no diretor e nas freiras e em todos os professores! E cuide-se, barri-

gudo, porque qualquer dia desses o sangue me sobe à cabeça, venho aqui e

lhe meto.40

A insurreição de Esteban é outra, de barricadas verbais. Trata-se de umafúria que desata de um lugar relativamente seguro, ou seja, desde seu pró-prio ambiente caseiro. Se o protagonista sem nome em De perfil chamaos pais de você e espia sua intimidade, Esteban dinamita sua trajetóriaescolar, que está inscrita numa tradição discernível do México ideologi-camente conservador. O que Lent disse com tanta veemência a Díaz Ordazé também, e provavelmente sobretudo, uma pregação contra os pais (pou-cos, supõe-se) condescendentes, que autorizam e financiam as minissaiasou, de outra maneira, que permitem aos filhos abandonarem o gueto ca-tólico para mergulhar na anômala, imprevisível mas divertida e promis-sora Universidade Nacional.

A PRAGMÁTICA CONSERVADORA

À sua maneira, Salvador Abascal escreveu um telegrama com sabor corpo-rativo, no mesmo dia em que a Cidade Universitária foi tomada pelo Exér-cito. “Eu, seu servidor, meus 11 filhos e minha mulher o parabenizamos”,diz a Díaz Ordaz. Por via das dúvidas, considerou oportuno notificar opresidente de que “os operários e empregados de [a] Editora Jus em quetrabalho o aplaudem”. Fez-se porta-voz, além disso, “da imensa maioriasensata” da nação, que espera que “com a devida energia você domine [a]

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29489

490

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

situação”. By the way: “os principais focos de subversão se encontram nas

faculdades de economia e ciências políticas”.41 Salvador Borrego não fez

rodeios, mas só escreveu em seu nome. “Como mexicano, celebro que a

universidade tenha sido resgatada pelo Exército.”42

Os dois testemunhos são importantes pela mesma razão: implicam um

alinhamento da direita ideológica com Díaz Ordaz, a partir de um aconte-

cimento de alto significado simbólico: a ocupação militar da Cidade Univer-

sitária. A identificação com essa medida do governo supõe a concordância

tácita de parte do Abascal e Borrego quanto à existência de uma proximi-

dade suficientemente importante para suplantar suas diferenças ideológicas

com o oficialismo. Com suas felicitações a Díaz Ordaz, convertem-se em

companheiros de viagem do presidente; é provável que esse não tenha se

sentido à vontade em tal companhia, mas em política, sobretudo quando se

aceitam e assumem os custos da repressão, escolhem-se unicamente os ini-

migos. Os amigos vêm sozinhos.43

O alinhamento discursivo da direita extrema com Díaz Ordaz é um fato

iniludível, agradasse ou não ao presidente. A Federação Mexicana Antico-

munista do Ocidente conclui um manifesto com sua adesão “à causa da li-

berdade, da pátria e da civilização”; e, além disso, enfatiza seu julgamento

de que “o presidente da República e o Exército Nacional obraram em defe-

sa de tais ideais”. Antes tinha feito um percurso pela história do comunis-

mo no México e tinha identificado as estratégias “para mergulhar a Cidade

do México no caos e no terror” e para “atacar o governo constitucional”.44

O que nos fatos define o momento conservador é a tomada da Cidade

Universitária pelo Exército, em 18 de setembro.45 A partir de então se con-

centra um bom número de mensagens de apoio ao presidente no manejo

do conflito estudantil. Entenda-se: na maioria dos casos são apoios explí-

citos à repressão, que nesse caso significa a violência exercida pelo governo

contra os estudantes e seus aliados, mas também contra seus lugares-te-

nentes ou bastiões.46 Adiantando uma linha de interpretação: sustento que

uma das explicações para entender o nível ascendente da violência gover-

namental a partir da segunda quinzena de setembro de 1968, e que cul-

minaria em 2 de outubro, é que o presidente Díaz Ordaz e seu círculo

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29490

491

O L A D O E S C U R O D A LUA . O M O M E N T O C O N S E R VA D O R E M 1 9 6 8

próximo souberam ou intuíram que, deixando de fora as escolas e suas

zonas de influência imediata, estava se formando uma corrente de opi-

nião que nas peculiares circunstâncias do momento tornava viável medi-

das radicais contra os estudantes, sobretudo a tomada violenta das escolas

e a captura dos líderes do movimento.

Esse processo foi entendido plenamente por Hannah Arendt: a violência

é instrumental; em si mesma não requer legitimidade. Em troca, o poder

político é legítimo ou nada é. Quando o poder (um governo, por exemplo)

decide exercer a violência contra dissidentes ou opositores, confia de início

num cálculo sobre a própria legitimidade, ou seja, confia no reconhecimento

e na aceitação, por parte de setores e grupos significativos da sociedade, de

que a violência usada é pertinente e até indispensável. Não é possível isolar

o estudo da violência do problema da legitimidade do poder, nem mesmo

no caso dos governos totalitários e das ditaduras, insistiu Arendt.47

A violência do governo mexicano contra os estudantes dissidentes é a

expressão de um poder autoritário, mas não caprichoso. O governo intuía

que seu poder, questionado exitosamente pelos estudantes, continuava sendo

legítimo, no sentido de que prevaleciam na maior parte da população a

obediência à autoridade e a confiança nos seus representantes. Sergio Aguayo

revisou uma pesquisa de opinião feita durante o protesto estudantil, mas

anterior a 2 de outubro, na qual 60% dos entrevistados se referiam à atitu-

de “condescendente” do presidente em relação aos estudantes e a suas rei-

vindicações.48 Isso poderia resolver a perplexidade de Daniel Cosío Villegas,

quem em setembro de 1968 perguntava:

A ocupação militar da Cidade Universitária se produz quando a autoridade

do governo se robusteceu; quando a força dos estudantes minguava; quando

esses tinham abandonado suas maneiras vandálicas e exibiam sua disciplina

em duas manifestações ordenadas; enfim, quando haviam dito e repetido

que não tentavam estragar a Olimpíada. Então o que pôde impulsionar o

governo a tirar os estudantes de sua casa e jogá-los na via pública, onde era

inevitável o choque, o sangue e até a morte?49

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29491

492

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Resposta: ao menos do ponto de vista dos argumentos, o governo con-seguiu detectar certa consistência de ideias e estados de ânimo daqueles quese declaravam seus amigos. Em 18 de agosto um cidadão disse ao presiden-te que sob nenhuma circunstância contemplasse a possibilidade de desti-tuir os chefes de polícia, uma das reivindicações mais prementes e sentidasdos estudantes. Os policiais “só cumpriram com o seu dever”. Em com-pensação, os jovens rebeldes, os estudantes, são permanentemente “papa-ricados”, “mimados” pelas autoridades, o que não é justo, pois os estudantes“não são pessoas diferentes do resto da população”.50 Esse argumento en-controu na imprensa uma acolhida destacada ao longo de todo o verão.51

Em agosto a opinião de Daniel Cosío Villegas estava nessa linha. A seu juízo,tinha entendido o descontentamento dos estudantes de Columbia (em NovaYork) com as distorções que o board of trustees* introduzia na vida univer-sitária ou o dos franceses de maio ao rebelar-se contra a excessiva centrali-zação do sistema universitário. Em compensação, os estudantes mexicanos,diz Cosío Villegas, “pediram o desaparecimento dos granadeiros e o afas-tamento do chefe de polícia. Nada, pois, relacionado com sua ocupação deestudantes, mas sim de bagunceiros”.52

Até nos meios que tentaram entender a natureza do movimento estu-dantil, e que ofereceram oportunidades para que os estudantes comunicas-sem seus pontos de vista, o impacto da violência nas ruas e nas escolas deixousua marca. Em editorial de 3 de outubro, o jornal Excelsior dirige uma crí-tica muito dura, embora contida, ao governo federal pelo tiroteio emTlatelolco: “A desolação voltou a invadir a capital mexicana”; transbordou“a prepotência”; “os fatos de ontem à noite nada esclarecem nem a nadarespondem”. Um tipo de cláusula explicativa interrompe, no entanto, apregação: “Embora seja certo que o comportamento estudantil — e o debom número de professores — ultrapassou em alguns momentos os limitesda sensatez e chegou-se à insolência e à provocação inconsciente...”53

A mistificação do protesto estudantil de 1968 tende a diminuir oudistorcer seu impacto sobre setores da sociedade não vinculados de manei-

*Board of trustees: conselho responsável por gerir e supervisionar as atividades da universi-dade. (N. das Orgs.)

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29492

493

O L A D O E S C U R O D A LUA . O M O M E N T O C O N S E R VA D O R E M 1 9 6 8

ra estrita ao mundo da educação superior, ou a certas formas de entender apolítica, ou a certos olhares ideológicos mais ou menos estruturados.54 Nemtodas as pessoas que foram testemunhas tiraram as mesmas conclusões darelação entre os estudantes rebeldes, a violência nas ruas e a atuação dapolícia. Os furiosos combates de rua de fins de julho e, logo depois, de se-tembro, em que os estudantes se saíram melhor do que se supunha até en-tão, provavelmente alinharam com o governo setores sociais temerosos daviolência em si, mas também de suas consequências políticas. Era evidenteque as formas de resistência e resposta dos estudantes frente à polícia e aoExército eram suficientemente bem-sucedidas para transtornar a ordempolítica na cidade. É muito importante constatar, na hora de avaliar a vio-lência do 1968 mexicano, que, apesar dos policiais e soldados, os princi-pais envolvidos nos enfrentamentos de rua foram, sobretudo, centenas etalvez milhares de estudantes adolescentes das preparatórias e vocacionais,aos quais em ocasiões se aliaram arruaceiros e ignorantes e até moradoresdos bairros.55

Além disso, não ficou suficientemente claro se as tarefas de organizaçãoe racionalização das reivindicações do movimento por parte do ConselhoNacional de Greve tiveram a eficácia devida para rebater o fato objetivo (esua percepção) de que o protesto de 1968 começou e se perpetuou nasbarricadas — e na moção reivindicatória dos seis pontos e nas grandesmanifestações pacíficas. Mercedes Padrés era repórter de “sociedade” emjornais e revistas da Cidade do México em 1968. Escreveu um livro dememórias que é, praticamente em todas as páginas, totalmente favorávelaos estudantes. Não obstante, aqui e acolá, conforme vai construindo suahistória daquele ano, infiltram-se julgamentos e impressões que são signifi-cativos do caminho de Damasco de algumas testemunhas. Por circunstânciasdo seu trabalho, o primeiro enfrentamento entre estudantes e granadeirosa surpreende em um ônibus de passageiros na Cidadela, em 22 de julho.Quando o motorista comunica aos desolados passageiros que não podeseguir adiante por causa da manifestação, a jornalista conclui: “Os estu-dantes atrapalham. Opinamos todos [os passageiros] que deviam lhes darumas porradas para acalmá-los. Descemos [do ônibus] e cada um seguiuseu caminho.”56 Insisto que a trajetória de Padrés seria, nos dias posterio-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29493

494

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

res, para a compreensão e simpatia plena com os estudantes. Mas a jorna-lista deixou plantadas e visíveis suas dúvidas à beira do caminho:

Ainda hesitando em se aproximar, duvidando se era um movimento comu-

nista como dizia o governo, se a CIA estava infiltrada [...] as pessoas não se

atreviam a acreditar neles [os estudantes]. Acreditar nos estudantes em seu

protesto, na queima de caminhões, nos sequestros de ônibus, era duro. A

opinião pública ainda estava contra eles. O que eu via eram motoristas con-

trariados que xingavam suas mães [dos estudantes], [os motoristas só] pro-

tegiam seu veículo, que era sua forma de ganhar a vida.57

O assunto fica ainda mais complicado quando às percepções sobre a vio-lência nas ruas se soma a imagem dos estudantes como um grupo desagre-gado e distinguível do resto da sociedade. De bom grado, não sabemos qualé a imagem pública dos estudantes universitários. Em 1966 dois sociólogosnorte-americanos fizeram uma pesquisa de campo em Xalapa (Veracruz)com o fim de medir, entre outras coisas, as diferentes atitudes dos estudan-tes universitários e das pessoas “comuns” com respeito a certos valores po-líticos e cívicos. Uma das conclusões, embora previsível, não deixa de serimportante por sua magnitude estatística: as pessoas não universitárias po-diam ser substancialmente mais intolerantes do que os estudantes em relaçãoao percebido como diferente: os comunistas, os não católicos, os dissiden-tes políticos.58 Mas esse diagnóstico pode ser inquietante: em que momen-tos os estudantes se transformam nos diferentes, nos outros?

Mas 1968 é uma encruzilhada por outra e mais premente razão. A imi-nência dos Jogos Olímpicos, a inaugurar-se em 12 de outubro, colocou umaalternativa para grupos sociais e políticos que não necessariamente erampró-governo, mas que nessa conjuntura decidiram, tácita ou explicitamen-te, alinhar-se com a violência governamental e reforçar o momento conser-vador.59 Em outras palavras, a premência da conjuntura fez mais dramáticaa maneira como os estudantes e seus aliados foram percebidos como dife-rentes e ameaçadores. Em junho, Jesus González Hernández escreveu aopresidente da República, semanas antes que se precipitasse o protesto.González se definiu como “mexicano por todos os conceitos” e, mais ain-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29494

495

O L A D O E S C U R O D A LUA . O M O M E N T O C O N S E R VA D O R E M 1 9 6 8

da, “mestiço como quase todos os que formamos esta formosa, querida e

respeitada pátria”. Sua comunicação é um tipo de autocrítica, pois pouco

antes “não víamos a forma [de] sair do atoleiro em que se encontrava [o

governo] com respeito à próxima XIX Olimpíada”. Para González, era in-

discutível que o governo de Díaz Ordaz “teria que ultrapassar os embates

políticos das grandes nações [...] e dos maus mexicanos que tentavam tor-

nar sua vida desagradável”; felizmente, os céticos acabaram por descobrir

“as grandes qualidades políticas” do presidente. Não é à toa que Díaz Ordaz

tinha recebido o apoio político do “senhor general [Heriberto] Jara” e do

“senhor general Lázaro Cárdenas”.60

Uma vez iniciada a revolta estudantil, os temores que se prefiguram na

carta de González adquirem uma materialidade política óbvia. De maneira

clara depois de 18 de setembro, os documentos de apoio à política de Díaz

Ordaz colocarão o argumento dos Jogos Olímpicos no centro de um racio-

cínio em que a hierarquia entre o compromisso nacional (os Jogos Olímpi-

cos) e os custos pela repressão encontra um equilíbrio desfavorável para os

dissidentes. O doutor Raúl López se congratula pela concepção e execução

da obra olímpica na Cidade do México, pois essas ações refletem “o gran-

de sentido de responsabilidade e o mais alto patriotismo seu e de seus cola-

boradores”. Mas o tema é outro: em vez de estar comemorando “a visita

de tantos homens de boa vontade vindos de todas as partes do mundo”, os

mexicanos tinham de encarar outra e muito dura realidade. “Interesses mes-

quinhos de estrangeiros e nacionais”, diz, provocaram “os vergonhosos atos

contra o México, dos quais todos nós fomos testemunhas”. Pretendeu-se

“demolir o que o progresso dos últimos 40 anos obteve, graças à nossa es-

tabilidade política, econômica e social”. As intenções foram “perversas” e

mostram “a desumanização desses agitadores” que devem ser catalogados

“como seres inferiores”, como “aparelhos internacionais”, “cuja moral se

encontra tão desintegrada que não alcançam sequer a simples denomina-

ção de células em decomposição”. Aos líderes do movimento “só podemos

desprezá-los [e] acusá-los de traidores da pátria”.61

A carta conclui com uma adesão total à política do presidente e contra

o protesto estudantil. Olhando bem, não parece um ato de oportunismo,

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29495

496

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

na medida em que o remetente nada pede para si. É um documento afirma-tivo em que as convicções se expressam histericamente. O médico inter-preta o protesto estudantil como uma sabotagem contra o México, que éuma sabotagem contra o que o próprio médico espera dos Jogos Olímpi-cos. É fácil imaginar que lhe agrada a violência exercida pelo governo con-tra os estudantes porque foi um tipo de desagravo pessoal. Tendo de escolher,a paz do reino, os Jogos Olímpicos e sua satisfação pessoal valem mais doque Tlatelolco.

Um bom número de cartas e telegramas enviados ao escritório do presi-dente exibe o mesmo tom e explora os mesmos problemas. Luis H. Ávila,que se definiu como “cidadão médio”, lembrou ao presidente que as uni-versidades “estão fincadas em nosso território e consequentemente sujeitasàs nossas leis”; não podem ser “esconderijos e santuários de pessoas quenos odeiam”. Para Bernabé Navarro, a ocupação militar da universidadefoi uma verdadeira batalha em “defesa do território nacional”. Outro cida-dão recomendou ao presidente que aproveitasse a ocupação militar para“reorganizar o sistema universitário, a fim de que os professores e estudan-tes” adquiram “a disciplina que não souberam impor-se por si próprios”.Enfim, outro missivista propôs que o presidente decretasse a chamada àsfileiras de todos os jovens estudantes em idade de cumprir o serviço mili-tar, como medida disciplinar.62

Deve-se reparar em mais um aspecto dessas cartas: seu registro geográ-fico tende a ser amplo (ou ao menos vai além da Cidade do México) e prova-velmente também seu registro sociocultural. Díaz Ordaz recebeu mensagensde apoio das cidades de Povoa, Poza Rica, Querétaro, Guasave, Zacatecas,Uriangato, Monterrey, Cuernavaca, embora de maneira nenhuma essa re-lação possa ser considerada exaustiva. Tampouco é possível sistematizar oâmbito de atividade de seus partidários, embora haja evidência de que en-tre eles havia burocratas federais, estatais e municipais; membros dos co-mitês regionais da Confederação Nacional Camponesa; o gerente de umaempresa de venda de automóveis; e membros de associações civis.63

Outra modalidade de apoio ao presidente depois da ocupação da Cida-de Universitária, e que constitui mais um elemento na construção muitoacelerada do momento conservador, proveio do que chamarei aqui de clas-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29496

497

O L A D O E S C U R O D A LUA . O M O M E N T O C O N S E R VA D O R E M 1 9 6 8

se política propriamente dita. Esse é o caso dos deputados e senadores que,além da retórica expressa nas tribunas parlamentares, comunicam-se demaneira pessoal com o titular do Executivo para lhe outorgar o desejadotapinha nas costas. O senador Cristóbal Guzmán Cárdenas disse a DíazOrdaz que o felicitava pelo freio aos que “francamente estiveram incitandoà subversão” das instalações universitárias. O deputado José Valdovinos,lacônico, enviou sua “adesão incondicional”. Adrián Tiburcio lembra emsua mensagem que “a prudência tem limites” e Juan C. Penha renovou sualealdade e simpatia ao presidente ante a atitude “das forças subversivas”contra o “poder público”.64

Blocos dentro do grande bloco: as cartas e os telegramas podem ser or-ganizados de várias maneiras. Os que provêm de funcionários federais deprimeira, segunda ou terceira linha seriam uma delas. Outra, a de jornalistas.Outra, a dos militares reformados, cujas características são a linguagem flo-reada e a mensagem subliminar: Miguel Reséndiz, major de cavalaria, vete-rano, legionário e “sem pensão” felicita o presidente por seu manejo domovimento estudantil; e o major José Tello declara seu apoio ao governocontra o “comunismo e a reação chocolateira”.65 Naquele festival de ade-sões do oficialismo, em que o Estado mexicano opera em uma de suas facetasmais essenciais e por isso distintivas, penetram representações que tradu-zem o ânimo militante dos convidados para o momento conservador. “As-sim se atua, senhor presidente”, escreveu em seu telegrama Carlos Pineda,que assinou em nome do 15º distrito eleitoral do Partido Ação Nacional.66

Uma modalidade essencial dentro dos apoios recebidos no gabinete dopresidente proveio do próprio coração do aparelho corporativo, ou seja,das organizações trabalhistas filiadas ao PRI. A tentação de abandonar essadimensão de análise, por óbvia ou irrelevante, é muito grande; de fato nãofoi usada nos estudos sobre 1968. Proceder assim é um grande equívocodo ponto de vista da explicação histórica. Omitir as adesões que se origi-nam dentro do partido oficial obstaculiza o entendimento dos alcancesmateriais e ideológicos do poder. Negar que esses apoios são ou podem sersignificativos impede, além disso, compreender um tema central no estudodo poder no México: como o governo constrói uma imagem da realidadesociopolítica que lhe permite tomar decisões, às vezes críticas.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29497

498

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Um manifesto assinado pelos setores operário, camponês e popular doPRI foi publicado na imprensa em 20 de setembro. O primeiro ponto defi-ne o tom geral do documento, quando expressa sua

solidariedade e confiança com o governo da República ao ter decidido que

o Exército ocupasse as instalações da Cidade Universitária, já que essas se

converteram [...] em focos onde se propiciava a agitação, a anarquia, o ata-

que às instituições e à sociedade com o deliberado propósito de chegar a

subverter a ordem pública.67

A esse documento seguiu-se um caudal de adesões que chegou direta-mente ao escritório de Díaz Ordaz. Em vários casos, esses documentos re-produzem a mesma redação e só se modifica o signatário: “Organizaçõesque represento”, começa o telegrama, “respaldam em todos os seus termoso manifesto ao povo do México publicado em 19 de setembro por setoresrevolucionários [...]”.68 Outros foram mais liberais, ao menos do ponto devista retórico; um sindicato decidiu “apoiar incondicionalmente sua atitu-de firme diante do artificial conflito provocado entre o setor estudantil”.69

Aqui se abandona a linha dura, mas não o sentido do apoio pleno. O anexoque consta no fim deste capítulo pode dar uma amostra dos alcances e daslimitações desse tipo de adesões ao presidente.

Devemos assumir algumas precauções na leitura dessa relação. Certamen-te a natureza da fonte condiciona que todos os sindicatos adesistas prove-nham do Distrito Federal e do Estado do México; é igualmente significativoque nessa relação estejam ausentes os grandes sindicatos nacionais de in-dústria. Nesse sentido, a lista mostra um grupo de sindicatos de empresa,em atividades não estratégicas (com a exceção da automotriz). Se as limita-ções dos sindicatos adesistas estão à vista, não se pode negar, de qualquerforma, que essa atitude expressa o funcionamento básico, quase íntimo, doaparelho corporativo do sindicalismo oficial, justamente no momento emque o governo tinha passado à ofensiva contra os estudantes dissidentes.

Qual o valor e significado dessas adesões? De um lado sempre será pre-ferível para o governo que os sindicatos informem explicitamente seu apoioa que, por exemplo, guardem silêncio. Em momentos críticos não se pode

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29498

499

O L A D O E S C U R O D A LUA . O M O M E N T O C O N S E R VA D O R E M 1 9 6 8

saber ao certo onde estão os amigos: se você me apoia, diga, parece umadas ordens essenciais do regime pós-revolucionário. O Times de Londres,pelo menos segundo a tradução de um jornal mexicano, anotava em fins desetembro: “A situação [no México] pode ser comparada com a passada re-volta de Paris quanto aos estudantes, mas se diferencia dela em que nãoparece que os trabalhadores mexicanos secundem os estudantes.”70 De outrolado, esse tipo de expressões públicas contribui para gerar um ambiente quefacilita certas decisões; escalar a repressão exige um contexto emocionalmuito definido, que ressalte o isolamento e excepcionalidade do inimigo.

Mas devemos nos perguntar, de qualquer forma, se não estamos antesdiante de práticas rituais da burocracia sindical do que de uma verdadeirademonstração de força organizativa e material. Que vários dos dirigentessindicais atuem em dois ou mais sindicatos parece indicar uma lógica daburocracia (ver anexo) em que o sindicato e seus trabalhadores existem sóno papel e no contrato. Abonando a tese ritualista está o próprio fato deque a única concentração de pessoas em apoio ao governo foi um verdadei-ro fiasco. Em 28 de agosto um comício de trabalhadores do governo dacidade, que tinha o fim explícito de desagravar a bandeira nacional e mos-trar apoio às autoridades, acabou em uma refrega entre os próprios traba-lhadores (apoiados pelos estudantes), de um lado, e soldados e policiais,do outro. O fato de que se usassem até tanques para dispersar a multidão,convocada pelo próprio governo, não era um dado favorável.71 Ao contrá-rio da manifestação de apoio a Charles de Gaulle em 30 de maio (que teriaconcentrado 300 mil ou 400 mil pessoas nos Champs Elysées), em umaconfluência de forças políticas diversas e de intelectuais de renome (comoFrançois Mauriac e Andre Malraux), a de 28 de agosto foi um exercícionarcisista do corporativismo mexicano.72 Se o governo francês e os apósto-los do gaullismo disputaram o controle da rua com os estudantes e os tra-balhadores em greve, não existe evidência de que o governo mexicano tenhaquerido fazer a mesma coisa depois de 28 de agosto.

O governo e a burocracia sindical do oficialismo se mostrarão mais doque prudentes em convocar reuniões ou manifestações públicas de seus agre-miados. Só em fins de setembro se detectam tímidas tentativas, por exem-plo, da Federação de Trabalhadores do Distrito Federal (CTM) para

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29499

500

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

convocar “assembleias de orientação”, a portas fechadas, em que Fidel

Velásquez dirigiria “uma mensagem a todos os trabalhadores da central”.

Esse tipo de reuniões reconhecia que “vários grupos de estudantes, acom-

panhados de agitadores profissionais, pretenderam o apoio dos operários”,

conforme reconheceu um dirigente.73

Só excepcionalmente sindicatos e seções sindicais expressaram seu apoio

aos estudantes e a suas reivindicações.74 O isolamento relativo dos jovens

estudantes, de um lado, e a disciplina ou o controle dos trabalhadores pela

burocracia sindical oficialista, do outro, explicam por que a mobilização e

expressão pública dos trabalhadores, na rua, não foi um recurso do gover-

no nem do partido oficial: arriscava-se mais do que se podia ganhar se qual-

quer ato saísse do controle dos dirigentes sindicais. Ao menos nesse plano,

o momento conservador de 1968 se caracteriza pela ausência dos contin-

gentes oficialistas na ágora. O governo federal se conformava com as de-

clarações na imprensa, com os arrebatados e com os telegramas e as cartas

dos dirigentes sindicais. Naquele ano no México não houve uma guerra de

manifestações e contramanifestações do governo com os estudantes pelo

controle físico dos espaços públicos (ruas, praças). O governo usou, muito

cedo e sem recato, a polícia e o Exército.

Duas grandes configurações sociopolíticas — a Igreja Católica e as or-

ganizações empresariais — permitem reconhecer outro tipo de limites no

que chamei o momento conservador em 1968. Devido à velocidade com que

se desenvolveram os fatos e ao momento pelo qual passava a instituição (as

discussões doutrinais e políticas que se seguiram ao Concílio Vaticano II), a

Igreja aparece apagada nos momentos críticos do protesto. Não é possível

inferir que tenha sido aliada do governo, menos ainda no que se refere ao

uso da violência física. Mostrou-se, por outro lado, dúbia em relação às

práticas e linguagens do protesto estudantil.75

Existe evidência de uma única mobilização pública de organizações filo-

católicas. Em 8 de setembro, o Movimento Unificador de Renovada Orien-

tação (Muro) e a Coalizão de Organizações para a Defesa dos Valores

Nacionais organizaram comícios na Basílica de Guadalupe e em seguida na

Praça de Touros do México (mediando entre ambos uma passeata popu-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29500

501

O L A D O E S C U R O D A LUA . O M O M E N T O C O N S E R VA D O R E M 1 9 6 8

lar). Em seu momento culminante aquelas manifestações teriam reunido dezmil pessoas. A linguagem, segundo testemunhos da imprensa, esteve marcadapor um anticomunismo intenso, pré-conciliar: mesclavam-se ordens ao es-tilo “Viva Cristo Rei” ou “Deus, pátria, família, liberdade” com “o Méxiconunca será comunista” ou “Queremos um, dois, três Ches mortos”.76

Mas a beligerância desses grupos não é a da Igreja institucional. Nãoestamos frente à linguagem nem frente ao tom nem frente ao tipo de mobi-lizações da Igreja Católica de fins dos anos 1960.77 Na verdade, os atos de8 de setembro são de grupos radicalizados.78 Como organização da extrema-direita católica, o Muro não podia ser um aliado aceitável do governo nasua luta simbólica e física contra a dissidência estudantil. O paradoxo éduplo: a extrema direita católica não era assimilável para o discurso auto-ritário e repressivo, mas laico, do governo; mas essa corrente foi a única naconjuntura que disputou a rua e os métodos de mobilização com os estu-dantes rebeldes.

Em um fenômeno mais pronunciado do que no caso dos trabalhadores,o governo teceu longe dos refletores as redes de lealdade com os empresá-rios. Antonio Ortiz Mena, secretário de Fazenda no governo de Díaz Ordaz,lembra como, naquele verão, teve de manter um

contato permanente com os dirigentes da iniciativa privada para evitar que

se alarmassem pela situação. Com regularidade, organizava grupos peque-

nos de empresários para manter reuniões com o presidente [...] nas quais

lhes explicava como se estava enfrentando o movimento e por que não era

de se esperar que transbordasse.79

Em termos gerais, o registro documental e jornalístico das vozes empre-sariais emitidas publicamente tende a ser débil. Não obstante, os estudio-sos do tema consideram 1968 um divisor de águas nas relações do Estadocom os empresários; vendo melhor as coisas, dá-se pouca informaçãoempírica sobre o comportamento do setor durante o protesto estudantil.80

Ao que parece, trata-se outra vez de uma aliança silenciosa, afastada da praçapública, com o poder político. Tampouco no seio das organizações empre-sariais se geraram dinâmicas que levassem os empresários ou os dirigentes

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29501

502

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

a uma política de contramanifestações ou contrainformação sistemática.Mais uma vez, como no caso da burocracia sindical, o recurso da não mobi-lização predominou.

CONCLUSÕES

Para o momento conservador de 1968 concorreram vários fatores, de na-tureza e peso distintos. Mas talvez devamos reconhecer de entrada o óbvio,e aqui o hiper-realismo de Raymond Aron é indispensável: que o governomexicano conservou o controle dos aparelhos de segurança (o Exército, aspolícias) e de boa parte dos meios de comunicação (imprensa, rádio e tele-visão). Manteve, desse modo, alinhados ou neutralizados grupos e organi-zações, seja porque se encontravam inseridos e disciplinados na tramacorporativa do regime (bom número de sindicatos) ou porque as práticasde cooptação e a margem de negociação com grupos de interesse eram su-ficientemente amplas para garantir esse alinhamento ou ao menos o silêncioe a neutralidade (os empresários). No caso da Igreja, as próprias reacomo-dações doutrinais e políticas, e uma organização pouco ágil para respondera conjunturas prementes, acabaram por neutralizá-la.

No entanto, além dessas dimensões políticas e materiais elementares dopoder, devemos reconhecer processos mais sutis e complexos. Para os estu-diosos do protesto estudantil de 1968, e em geral para os historiadores doMéxico contemporâneo, foi árduo, se não impossível, reconhecer que osgovernos mexicanos da pós-revolução fundavam boa parte de sua fortalezae continuidade na legitimidade e no consenso. Como mostrou HannahArendt, o poder (e os recursos a ele associados, como autoridade, obediên-cia e até violência) é um fenômeno coletivo. Seu sistema de representaçõese de persuasão deve ser aceito, assimilado e vivido por um número impor-tante e significativo de pessoas.

Daí que é relevante localizar a coincidência e o apoio desse tipo de pes-soas ao governo nos momentos mais críticos do protesto estudantil. É ine-gável para o historiador a evidência de que pessoas e grupos concordaramenfática e inequivocamente com algumas das medidas extremas do gover-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29502

503

O L A D O E S C U R O D A LUA . O M O M E N T O C O N S E R VA D O R E M 1 9 6 8

no mexicano contra os estudantes dissidentes (nesse caso, a ocupação mili-tar da Cidade Universitária). Essas pessoas e esses grupos não pertenciam àordem corporativa nem representavam a lógica dos grupos de interesse. Édifícil de estabelecer, de maneira sistemática, seu número, sua localizaçãosociocultural e sua representatividade política. Mas é provável que seusargumentos, vertidos em manifestações de distinta índole, tenham contri-buído para que o governo de Díaz Ordaz fizesse um diagnóstico cru da si-tuação e tenha tirado as próprias conclusões sobre os custos e benefícios deaumentar a violência contra os dissidentes. Por volta de setembro de 1968,o governo estava se convencendo de que um setor importante da opiniãoestava do seu lado. Essa certeza coincidiu com (ou provavelmente foi influen-ciada por) certo esgotamento do protesto estudantil e com as incertezasque a iminência dos Jogos Olímpicos gerava.

A natureza conservadora dessas demonstrações de adesão ao governonão foi determinada apenas por uma racionalização ideológica (embora oideológico tenha exercido um papel central nesse alinhamento). Houve ou-tros elementos em jogo, como busquei mostrar neste estudo: a transformaçãoacelerada do horizonte social urbano em virtude da eclosão de um mundojuvenil numeroso e flutuante; as operações mentais e emocionais que asso-ciaram esse novo mundo com a violência nas ruas; as dificuldades paradiscernir o “próprio” e o “estranho” em um ano caracterizado pelos pro-testos estudantis em países de alto impacto simbólico no México, ou seja,França e Estados Unidos (e aqui Fuentes aparece como uma referência obri-gatória); a alta ponderação de noções como “honra”, “compromisso” ou“patriotismo” em uma conjuntura em que os Jogos Olímpicos pareciam estarem perigo; a percepção, pelo menos em alguns setores, de que os universi-tários eram e se comportavam como privilegiados.

Mas as pessoas que apoiaram Díaz Ordaz não eram uma massa disponívelpara a mobilização das ruas. As adesões ao governo configuram um estadode ânimo que deve ser interpretado pelos políticos, mas não são um ponto departida para um contramovimento. O mesmo pode ser dito da disciplina esuperioridade do aparelho corporativo: seus manifestos na imprensa, suasdeclarações públicas e suas comunicações privadas só serviam para formaruma corrente de opinião e para garantir ao presidente certa disciplina social.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29503

504

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Mas levar os operários à rua era outra coisa. O momento conservador de1968 foi isso, um momento. Como aliança política de grupos, ideologias ediscursos, estava destinado a uma vida efêmera, e assim foi.

Notas

1. Sobre a necessidade de ampliar o registro de vozes, testemunhos, situações edefinir de maneira mais ampla os problemas historiográficos de 1968, pode-seconsultar: BRAUN, Herbert. “Protest of Engagement: Dignity, False Love, andSelf-Love in Mexico during 1968”. Comparative Studies of Society and History.Nova York, 39:3, pp. 511-549, 1997; COHEN, Deborah; FRAZIER, Lessie Jo.“Defining the Space of Mexico ’68: Heroic Masculinity in the Prision and ‘Women’in the Streets”. Hispanic American Historical Review. Durkham, 83:4, novembrode 2003; RODRÍGUEZ KURI, Ariel. “Los primeros días. Una interpretación delos orígenes inmediatos del movimiento estudiantil de 1968”. Historia mexica-na. Ciudad del México, nº 209, julho-setembro de 2003b.

2. Refiro-me por certo a ARON, Raymond. The Elusive Revolution. Anatomy of aStudent Revolution. Nova York: Pall Mall, 1969. O livro é um ato peculiar: cons-ta de cinco capítulos, que são outras tantas entrevistas que, exclusivamente sobremaio em Paris, Alain Duhamel fez com Aron; as respostas extensas e precisas deAron são, pois, a substância de todo o livro. Além disso, estão reproduzidos osartigos de opinião publicados no Le Figaro durante as semanas dramáticas demaio e junho de 1968.

3. Dois exemplos, entre vários: ARON, Raymond, op. cit., pp. 11; 17. Nessa últi-ma página diz Aron: “Eu me encontrei como Tocqueville em 25 de fevereiro de1848.”

4. Sobre a noção de psicodrama trata o primeiro capítulo: ARON, Raymond, op.cit., pp. 9-37.

5. A variável dos níveis de violência dos dissidentes e dos policiais (incluindo astécnicas desses para enfrentar e controlar multidões nas ruas) é fundamental noentendimento da década de 1960; ver MARWICK, Arthur. The Sixties. CulturalRevolution in Britain, France, Italy and the United Sates, ca. 1958-1974. Oxford:Oxford University Press, 1998, pp. 26-31; 563-584. Segundo o historiador, se ébastante claro que a polícia francesa não buscava matar, é do mesmo modo indis-cutível que em algumas jornadas (na noite das barricadas de 10-11 de maio, porexemplo) incorreu claramente naquilo que chamamos de brutalidade policial.Para esse argumento, idem, pp. 608-609.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29504

505

O L A D O E S C U R O D A LUA . O M O M E N T O C O N S E R VA D O R E M 1 9 6 8

6. BERSTEIN, Serge. The Republic of de Gaulle, 1958-1969. Cambridge: CambridgeUniversity Press; Editions de la Maison des Sciences de l’homme, 1993, pp. 220-223, detalha essas opções.

7. Sobre os comunistas, ver ARON, Raymond, op. cit., p. 87: “Todos sabiam que oPartido Comunista não queria derrubar o governo por meio de uma insurrei-ção”; sobre o encantamento dos intelectuais, inclusive dos opositores do protes-to, por exemplo, Claude Lefort, ver idem, pp. 3-4.

8. As modalidades de conciliação do conservadorismo político e ideológico com oespírito moderno foram exploradas para o caso alemão por HERF, Jeffrey. Elmodernismo reaccionario. Tecnología, cultura y política en Weimar y el TercerReich. México: Fondo de Cultura Económica, 1993.

9. Por exemplo, ARON, Raymond, op. cit., pp. 78; 99.10. Idem, p. 27.11. Há apenas uma menção a 1944 em idem, p. 98, mas sem peso no argumento.12. BEEVOR, Anthony; COOPER, Artemis. Paris después de la liberación, 1944-1949.

Barcelona: Crítica, 2003, pp. 28-81. Aristide R. Zolberg também atribui uma grandeimportância a agosto de 1944 e o coloca na sequência 1789, 1848, 1871, 1936,1968; ver ZOLBERG, Aristide R. “Moments of Madness”. Politics and Society,inverno 1972, p. 184 apud KATSIAFICAS, George. The Imagination of the NewLeft. A Global Analysis of 1968. Boston: South End Press, 1987, pp. 6-7.

13. BEEVOR, Anthony; COOPER, Artemis, op. cit., p. 53: “A ordem pública é umaquestão de vida ou morte. Se não a restabelecermos nós mesmos, acabarão porimpô-la os estrangeiros.” “Estrangeiros” é como o general de Gaulle chamavaseus aliados americanos e ingleses.

14. ARON, Raymond, op. cit., p. 21: “É muito mais necessário compreender o queos atores sentem do que tratar de compreender o que os atores dizem.” Grifos nooriginal.

15. FUENTES, Carlos. Paris. La revolución de mayo. 4ª ed. Fotografias de AntonioGálvez. México: ERA, 1969. Uma prévia do texto foi publicada em “La culturaen México”, suplemento de Siempre!, em junho. O folheto em si está datadopelo autor de maio-junho. A primeira edição é de 22 de julho de 1968 e foi decinco mil exemplares; houve mais duas edições durante o movimento estudantilmexicano: a de 29 de julho e a de 15 de agosto, cada uma de cinco mil exempla-res. A quarta esperou até 15 de março de 1969, também com cinco mil exempla-res. Bem-vinda qualquer interpretação paranoica. Para esses dados, ver a segundacontracapa da edição de 1969.

16. VOLPI, Jorge. La imaginación y el poder. Una historia intelectual de 1968. Méxi-co: ERA, 1998, p. 209.

17. FUENTES, Carlos, op. cit., p. 1.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29505

506

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

18. Segundo alguns estudiosos, as barricadas não tiveram valor prático em maio, porexemplo, para deter ou dissuadir a polícia; o realmente importante era a cargasimbólica que as erguer significava na tradição política parisiense. Ver READER,Keith A.; WADIA, Khussheed. The May 1968 in France. Reproductions andInterpretations. Nova York: St. Martin’s Press, 1993, pp. 11; 48-86.

19. FUENTES, Carlos, op. cit., p. 2-3. Fuentes não podia saber que entre as políciase outras forças de segurança envolvidas na repressão das manifestações estudan-tis ou étnicas da década (a inglesa, a americana, a italiana e a mexicana, porexemplo), a francesa se sai muito bem. No entanto, estão documentados seusexcessos; ver nota 4, supra.

20. Por exemplo, idem, pp. 5-8.21. Idem, p. 14. Grifos meus.22. Idem, p. 9. Grifos meus.23. Idem, p. 18.24. Idem, p. 24. Os gaullistas, nesse caso o partido da ordem, obtiveram pouco mais

de 45% dos votos nas eleições antecipadas de junho de 1968, o que lhes signifi-cou, no entanto, ocupar dois terços das cadeiras do Parlamento; a esquerda conse-guiu pouco mais de 35%. Ver a respeito MAMMARELLA, Giuseppe. Historia deEuropa contemporánea (1945-1990). Barcelona: Ariel, 1990, p. 281; BERSTEIN,Serge, op. cit., pp. 223-226.

25. Ver MARWICK, Arthur, op. cit., para uma análise global da década.26. Praticamente não existem estudos históricos (seja com enfoques sociais, culturais

ou políticos) sobre os jovens mexicanos do segundo pós-guerra; uma exceção é otrabalho de ZOLOV, Eric. Rebeldes con causa. La contracultura mexicana y lacrisis del Estado patriarcal. México: Norma, 2002, que é hoje a referência paraqualquer discussão a respeito. Para manter uma perspectiva mais ampla, que evi-te o isolamento do caso mexicano, pode-se consultar PASSERINI, Luisa. “Lajuventud, metáfora del cambio social (dos debates sobre los jóvenes en la Italiafascista y en los Estados Unidos durante los años cincuenta)”, in: LEVI, Giovanni;SCHMIT, Jean-Claude (dirs.). Historia de los jóvenes. II La edad contemporánea.Madri: Taurus, 1996; MARWICK, Arthur, op. cit.

27. Uma das preocupações essenciais de um livro como GONZÁLEZ DE ALBA,Luis. Los días y los años. México: ERA, 1980 (a meu ver, e de longe, a melhorcrônica-testemunho do movimento estudantil), é a impossibilidade dos líderesestudantis de calcular o ânimo da opinião pública e, a partir desse diagnóstico,estabelecer negociações com o governo federal. Erik Zolov observou que a grandeimprensa americana modificou seus pontos de vista sobre o movimento estudan-til mexicano; passou de um olhar cético e condenatório a um mais compreensivoentre agosto e setembro de 1968 (ZOLOV, Eric. “Discovering a Land ‘Mysterious

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29506

507

O L A D O E S C U R O D A LUA . O M O M E N T O C O N S E R VA D O R E M 1 9 6 8

and Obvious’: The Narrativizing of Postrevolucionary Mexico”, in: JOSEPH,G.M. et al. Fragments of the Golden Age. The Politics of Culture in Mexico since1940. Londres: Duke University Press, 2001).

28. Para sustentar essa hipótese, são a meu juízo mais úteis os trabalhos de históriageral ou de história política “pura” do que os estudos que versam apenas sobre odescontentamento juvenil ou estudantil; proponho essa linha de pensamento apartir dos seguintes textos: HOBSBAWM, Eric. Historia del siglo XX. BuenosAires: Crítica, 1998, pp. 260-289; SASSOON, Donald. “Política”, in:FULBROOK, Mary (ed.). Europa desde 1945. Barcelona: Crítica, 2002, pp. 24-63, especialmente pp. 46-47; ORLOW, Dietrich. A History of Modern Germany.1871 to Present. Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 1991, especialmente pp. 284-290; MAMMARELLA, Giuseppe, op. cit.

29. No entanto, se suponho a existência de um bloco político ideológico conserva-dor no México, a partir de fins da década de 1950, minha hipótese se inspira notrabalho LOAEZA, Soledad. Clases medias y política en México. La querella es-colar, 1959-1963. México: El Colegio de México, 1999, no qual se estabelecemalguns dos limites e paradoxos da coalizão política contra os livros de texto gra-tuito entre 1960 e 1963.

30. Podem-se consultar de PORTELLI, Hugues. Gramsci y el bloque histórico. México:Siglo XXI, 1983; PORTANTIERO, Juan Carlos. Los usos de Gramsci. México: FoliosEdiciones, 1981, pp. 177-192. ZERMEÑO, Sergio. México: una democracia utó-pica. El movimiento estudiantil de 1968. México: Siglo XXI, 1981, pp. 291 e ss.considerou a hegemonia um instrumento de análise no estudo do movimentoestudantil de 1968.

31. AGN, FGDO, caja 176, exp. 23, 3 de setembro de 1968.32. Foi mais simples documentar e discutir o cartel de 1968 do que a saga das picha-

ções com seus lemas nas paredes da cidade; ver GRUPO MIRA. La grafica del 68.Homenaje al movimiento estudiantil. México: Ediciones Zurda; ClavesLatinoamericanas; El Juglar, 1988; ROQUE, George. “Aproximacionesargumentativas a la gráfica del 68”. Curare. Espacio crítico para las artes. Ciudaddel México, primavera/1997, pp. 141-167; JIMÉNEZ DEL VAL, Nasheli. Elcartel político en 1968: la influencia de Estados Unidos en México. Monografiade Bacharelado, México, Enap, 2002.

33. Ver GARRIDO, Luis. “El estado peligroso de la juventud”. Criminalia. Ciudaddel México, año XIV, octubre de 1958, pp. 672-673; “A prisión todos los rebel-des”, Alarma, 20 de julho de 1960, pp. 7-9; “Guerra a los pandilleros”, Alarma,3 de agosto de 1965, pp. 5-8. Apesar do sentido que outorgou aqui aos testemu-nhos de Alarma, vale a pena um esclarecimento, que é de estrita justiça: essapublicação, como sua prima irmã Alerta, mostra uma qualidade expositiva e até

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29507

508

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

analítica surpreendente. Embora seu conservadorismo seja cortante, o é frequen-

temente mais pela maneira de titular e apresentar as fotografias do que propria-

mente pelos textos. Esses são precisos, plenos de dados, obcecados por relatar e

explicar (à sua maneira).

34. AGN, FGDO, c. 403, s/e, de Monteverde al presidente, 29 de noviembre de 1967.

35. Ver GAY, Peter. Schintzler y su tiempo. Retrato cultural de la Viena del siglo XIX.

Barcelona: Taurus, 2002, que é ao mesmo tempo resumo de suas descobertas e

um verdadeiro programa para uma pesquisa do caráter e do estado de ânimo da

cultura moderna.

36. A carta se encontra no AGN, FGDO, caixa 422, s/e, de Lent al presidente, 1º de

outubro de 1968. A carta está em inglês e a tradução é minha.

37. Estou extrapolando essa linha de reflexão a partir de MARWICK, Arthur, op.

cit., pp. 381-382; 549-552. No entanto, a enunciação, nesses termos, é minha.

38. AGUSTÍN, José. De perfil. 8ª ed. México: Joaquín Mortiz, 1980, p. 16.

39. Idem, pp. 343-344.

40. Idem, p. 118.

41. AGN, FGDO, caixa 501, sem expediente, de Abascal a Díaz Ordaz, 19 de setem-

bro de 1968.

42. AGN, FGDO, caixa 501, sem expediente, de Borrego a Díaz Ordaz, 19 de setem-

bro de 1968.

43. Certamente é complicado localizar o lugar ideológico de Díaz Ordaz. Podem

ser contrastadas duas maneiras de entender sua personalidade: KRAUZE, Enri-

que. La presidencia imperial. Ascenso y caída del sistema político mexicano

(1940-1996). México: Tusquets, 1997, pp. 277-363; LOAEZA, Soledad.

“Gustavo Díaz Ordaz: las insuficiencias de la presidencia autoritaria”, in:

FOWLER, Will (coord.). Presidentes mexicanos. Tomo II (1911-2000). Méxi-

co: INEHRM, 2004, pp. 285-346.

44. Federación Anticomunista Mexicana de Occidente, “El pueblo de México derrotó

al comunismo; el ejército y el gobierno, dignos servidores de la Patria”, Excelsior,

28 de septiembre de 1968 apud OCAMPO, Tarsicio (comp.). México. Conflicto

estudiantil, 1968, II. Cuernavaca: Cidoc, 1969 (dossiê 23), pp. 273-274. Veja-se

também (El Universal, 10 de setembro de 1968 apud OCAMPO, Tarsicio, op.

cit., pp. 323-326) o manifesto do Movimento Universitário de Renovadora Orien-

tação (Muro), que num ensaio de geometria política não alheia à do oficialismo

havia denunciado “a estranha cumplicidade” da “esquerda delirante” com a “di-

reita envergonhante” que “atenta contra o México”.

45. Alguns trabalhos reconheceram o aumento da violência governamental contra os

estudantes e as escolas a partir de 27 de agosto; esse fenômeno teria alcançado

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29508

509

O L A D O E S C U R O D A LUA . O M O M E N T O C O N S E R VA D O R E M 1 9 6 8

seu ápice em setembro, tal como parece ter anunciado o informe do presidente

Díaz Ordaz ao Congresso. Veja-se, por exemplo, AGUAYO QUEZADA, Sergio.

1968. Los archivos de la violencia. México: Grijalbo; Reforma, 1998, pp. 149 e

ss.; GILABERT, César. El hábito de la utopía. Análisis del imaginario sociopolítico

en el movimiento estudiantil de México. México: Instituto Mora; Miguel Ángel

Porrúa, 1993, pp. 225-228; GUEVARA NIEBLA, Gilberto. La libertad nunca se

olvida. Memoria del 68. México: Cal y Arena, 2004, pp. 227 e ss.

46. Não tenho como avaliar estatisticamente a representatividade das cartas e dos

telegramas de adesão ao presidente por sua política frente à manifestação estu-

dantil; em única caixa de AGN, FGDO, c. 501, há entre 400 e 500 documentos

de apoio mais ou menos pleno a Díaz Ordaz, sobretudo depois da ocupação da

Cidade Universitária. Em grandes linhas, podem-se dividir em dois grupos as

mensagens de apoio e incentivo: as que provêm do aparato corporativo do Esta-

do, ao estilo dos sindicatos do oficialismo; e as que estão assinadas por pessoas

que não declaram filiação política ou corporativa, mas que sempre colocam seu

nome completo e seu endereço particular e de trabalho.

47. ARENDT, Hannah. On Violence. Nova York: The Penguin Books, 1970, pp.

49-52.

48. AGUAYO QUEZADA, Sergio, op. cit., p. 151.

49. “Como en Grecia. Los siete actos de una tragedia”, Excelsior, 27 de septiembre

de 1968 apud COSÍO VILLEGAS, Daniel. Crítica del poder. Periodismo real e

imaginario desde 1968. México: Clío, 1997, p. 29.

50. AGN, FGDO, c. 175, s/e, de González ao presidente, 19 de agosto de 1968.

51. Um exemplo é a coluna de Ernesto Julio Teissier em Novedades; ver seu artigo

“Cuatro preguntas sobre los motines...” de 4 de agosto apud OCAMPO, Tarsicio,

op. cit., pp. 89-92.

52. COSÍO VILLEGAS, Daniel, “Primera aproximación. A la deriva”, Excelsior, 16

de agosto de 1968 apud COSÍO VILLEGAS, Daniel, op. cit., p. 19.

53. Apud OCAMPO, Tarsicio, op. cit., p. 282.

54. Participantes e dirigentes insistiram mais de uma vez nos perigos de mistificar a

história do movimento, em qualquer sentido; para um exemplo recente dessa

tendência, ver as intervenções de Joel Ortega e Marcelino Perelló en GÓMEZ

MARÍN, Silvia (coord.). Diálogos sobre el 68. México: Unam; IIB; DGAPA, 2003,

pp. 47; 51.

55. Ver RODRÍGUEZ KURI, Ariel, op. cit.

56. PADRÉS, Mercedes. El diario de una periodista. Una luz de bengala. México: La

Idea Dorada Editores, 1998, p. 25.

57. Idem, p. 33.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29509

510

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

58. Ver AMES, Barry; TUOHY, William S. “Mexican University Students in Politics:

Rebels without Allies?”. Monograph Series in World Affairs. Denver, vol. 7, no 3,

1969-1970, p. 13.

59. Faço um juízo documentado sobre a importância dos Jogos Olímpicos para a

cultura e a política moderna no México em RODRÍGUEZ KURI, Ariel. “Hacia

México 68. Pedro Ramírez Vázquez y el proyecto olímpico”. Secuencia. Revista

de historia y ciencias sociales. Ciudad del México, no 56, abril-junio 2003a. Uma

crítica a minhas posições a respeito está em ZOLOV, Eric. “Showcasing the ‘Land

of Tomorrow’: México and the 1968 Olympics”. The Americas. Washington, 61:

2, outubro de 2004, pp. 161-163.

60. AGN, FGDO, c. 405, s/e, de González al presidente, 8 de junho de 1968.

61. AGN, FGDO, c. 403, s/e, de López al presidente, 7 de outubro de 1968.

62. Para essas mensagens, AGN, FGDO, c. 501, s/e, de Arteaga al presidente, 25 de

setembro; de De la Selva e família ao presidente, 22 de setembro; de Ávila ao

presidente, 20 de setembro; de Ballesteros ao presidente, 19 de setembro de

1968. São telegramas.

63. O mais provável é que a origem geográfica dos apoios seja muito mais ampla. O

grave aqui é atribuí-lo a uma revisão parcial da fonte. Ver AGN, FGDO, c. 501.

Todas essas comunicações são posteriores a 18 de setembro.

64. AGN, FGDO, c. 501, s/e, do senador Guzmán ao presidente, 19 de setembro; do

deputado Valdovinos ao presidente, 19 de setembro; do deputado Tiburcio ao

presidente, 19 de setembro; do deputado Peña ao presidente, 20 de setembro de

1968.

65. Para o caso de funcionários federais, ver AGN, FGDO, c. 501, s/e, de Ignacio

Morones Prieto (diretor-geral do Instituto Mexicano do Seguro Social — IMSS)

ao presidente, 20 de setembro; de Juan Torres (diretor de Aeroportos e Serviços

Auxiliares) ao presidente, 20 de setembro; para o caso dos jornalistas, o telegra-

ma da Sociedade Nacional de Jornalistas e Escritores ao presidente, 19 de setem-

bro; do major Reséndiz ao presidente, 24 de setembro; do major Tello ao

presidente, 24 de setembro de 1968.

66. AGN, FGDO, c. 501, s/e, de Pineda ao presidente, 19 de setembro de 1968.

67. O documento pode ser consultado em OCAMPO, Tarsicio, op. cit., p. 253.

68. Para exemplos que reproduzem exatamente essa redação, ver AGN, FGDO, c.

501, s/e, do Sindicato de Trabalhadores do Comércio de Gás do Distrito Federal

(CTM) ao presidente, 24 de setembro; ou do Sindicato de Trabalhadores de

Papel, Papelão e Indústrias Derivadas ao presidente, 24 de setembro; ou de Jesús

Yurén, secretário-geral da Federação de Trabalhadores do Distrito Federal (CTM),

ao presidente, 21 de setembro.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29510

511

O L A D O E S C U R O D A LUA . O M O M E N T O C O N S E R VA D O R E M 1 9 6 8

69. AGN, FGDO, c. 501, s/e, de Alberto Juárez Blancas, do Sindicato Nacional deTrabalhadores de Restaurantes, ao presidente, 25 de setembro de 1968.

70. Citado en El Universal, 25 de setembro de 1968, apud CANO FERNÁNDEZ,Aurora. 1968. Antología periodística. México: IIB; Unam, 1998, p. 215.

71. Um resenha desses acontecimentos se pode ver em RAMÍREZ, Ramón. Elmovimiento estudiantil de México (julio/diciembre de 1968). México: Era, 1998,vol. II, pp. 258-259; uma análise muito apurada das jornadas de 27 e 28 deagosto em GONZÁLEZ DE ALBA, Luis, op. cit., pp. 105-107; para imagens eanálises de certo tipo de cobertura jornalística da jornada de 28 de agosto, DELCASTILLO, Alberto. “Fotoperiodismo y representaciones del movimientoestudiantil de 1968. El caso de El Heraldo de México”. Secuencia. Revista dehistoria y ciencias sociales, nº 60, setembro-dezembro de 2004, pp. 145-146.

72. READER, Keith A.; WADIA, Khussheed, op. cit., p. 19; BERSTEIN, Serge, op.cit., p. 223.

73. Ver El Día e El Universal, ambos de 30 de setembro, e apud CANO FERNÁNDEZ,Aurora, op. cit., pp. 225; 229.

74. Uma resenha desses apoios em 1968, e uma tentativa para explicar o momentodo sindicalismo mexicano na década, em FERNÁNDEZ CHRISTLIEB, Paulina;RODRÍGUEZ ARAUJO, Octavio. El sexenio de Tlatelolco (1964-1970). Acumu-lación de capital, Estado y clase obrera. México: Siglo XXI, 1985, especialmentepp. 341 e ss.

75. BLANCARTE, Roberto. Historia de la iglesia católica en México. México: Fondode Cultura Económica, 1992, pp. 241-247.

76. Ver El Día e El Heraldo, 9 de setembro, apud CANO FERNÁNDEZ, Aurora, op.cit., pp. 147-148; imagens desse ato são reproduzidas em DEL CASTILLO,Alberto, op. cit., p. 156.

77. Por outro lado, está o documento de CORRUPIO AHUMADA, Ernesto. “Sobreel movimiento estudiantil”. Christus, nº 398, janeiro de 1969, pp. 12-15. Embo-ra não se possa considerar inteiramente representativo nem uma opinião “oficial”da Igreja, esse documento está mais perto de certos consensos dentro da Igrejanaquele momento.

78. Um documento muito representativo do tipo de apelação do Muro é o publicadoem 30 de agosto em Excelsior e recolhido em OCAMPO, Tarsicio, op. cit., pp.166-167.

79. ORTIZ MENA, Antonio. El desarrollo estabilizador: reflexiones sobre una épo-ca. México: El Colegio de México; Fondo de Cultura Económica, 2000, pp.110-111.

80. Para evidenciar a debilidade na caracterização das relações entre as organiza-ções empresariais e o governo, ver CAMP, Roderic A. Los empresarios y la

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29511

512

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

política en México. Una visión contemporánea. México: Fondo de Cultura

Económica, 1990, pp. 40-41; VALDÉS UGARTE, Francisco. Autonomía y

legitimidad. Los empresarios, la política y el Estado en México. México: Siglo

XXI, 1997, pp. 142-172; LUNA LEDESMA, Matilde. Los empresarios y el cam-

bio político. México 1970-1987. México: ERA, 1992, p. 73. TAMAYO, Sergio.

Espacios ciudadanos. La cultura política en la ciudad de México. México: Uníos,

2002, pp. 87-119.

Bibliografia

AGUAYO QUEZADA, Sergio. 1968. Los archivos de la violencia. México: Grijalbo;

Reforma, 1998.

AGUSTÍN, José. De perfil. 8ª ed. México: Joaquín Mortiz, 1980.

AMES, Barry; TUOHY, William S. “Mexican University Students in Politics: Rebels

without Allies?”. Monograph Series in World Affairs. Denver, vol. 7, nº 3, 1969-

1970.

ARENDT, Hannah. On Violence. Nova York: The Penguin Books, 1970.

ARON, Raymond. The Elusive Revolution. Anatomy of a Student Revolution. Nova

York: Pall Mall, 1969.

BEEVOR, Anthony; COOPER, Artemis. Paris después de la liberación, 1944-1949.

Barcelona: Crítica, 2003.

BERSTEIN, Serge. The Republic of de Gaulle, 1958-1969. Cambridge: Cambridge

University Press; Editions de la Maison des Sciences de l’homme, 1993.

BLANCARTE, Roberto. Historia de la iglesia católica en México. México: Fondo de

Cultura Económica, 1992.

BRAUN, Herbert. “Protest of Engagement: Dignity, False Love, and Self-Love in Mexico

during 1968”. Comparative Studies of Society and History. Nova York, 39:3, pp.

511-549, 1997.

CAMP, Roderic A. Los empresarios y la política en México. Una visión contemporánea.

México: Fondo de Cultura Económica, 1990.

CANO FERNÁNDEZ, Aurora. 1968. Antología periodística. México: IIB; Unam, 1998.

COHEN, Deborah; FRAZIER, Lessie Jo. “Defining the Space of Mexico ’68: Heroic

Masculinity in the Prision and ‘Women’ in the Streets”. Hispanic American Historical

Review. Durkham, 83: 4, novembro de 2003.

COSÍO VILLEGAS, Daniel. Crítica del poder. Periodismo real e imaginario desde 1968.

México: Clío, 1997.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29512

513

O L A D O E S C U R O D A LUA . O M O M E N T O C O N S E R VA D O R E M 1 9 6 8

DEL CASTILLO, Alberto. “Fotoperiodismo y representaciones del movimiento estu-

diantil de 1968. El caso de El Heraldo de México”. Secuencia. Revista de historia y

ciencias sociales, no 60, setembro-dezembro de 2004, pp. 137-174.

FERNÁNDEZ CHRISTLIEB, Paulina; RODRÍGUEZ ARAUJO, Octavio. El sexenio de

Tlatelolco (1964-1970). Acumulación de capital, Estado y clase obrera. México:

Siglo XXI, 1985.

FUENTES, Carlos. Paris. La revolución de mayo. 4ª ed. Fotografias de Antonio Gálvez.

México: ERA, 1969.

GAY, Peter. Schintzler y su tiempo. Retrato cultural de la Viena del siglo XIX. Barcelona:

Taurus, 2002.

GILABERT, César. El hábito de la utopía. Análisis del imaginario sociopolítico en el

movimiento estudiantil de México. México: Instituto Mora; Miguel Ángel Porrúa,

1993.

GÓMEZ MARÍN, Silvia (coord.). Diálogos sobre el 68. México: Unam; IIB; DGAPA,

2003.

GONZÁLEZ DE ALBA, Luis. Los días y los años. México: ERA, 1980.

GRUPO MIRA. La grafica del 68. Homenaje al movimiento estudiantil. México:

Ediciones Zurda; Claves Latinoamericanas; El Juglar, 1988.

GUEVARA NIEBLA, Gilberto. La libertad nunca se olvida. Memoria del 68. México:

Cal y Arena, 2004.

HERF, Jeffrey. El modernismo reaccionario. Tecnología, cultura y política en Weimar y

el Tercer Reich. México: Fondo de Cultura Económica, 1993.

HOBSBAWM, Eric. Historia del siglo XX. Buenos Aires: Crítica, 1998.

JIMÉNEZ DEL VAL, Nasheli. El cartel político en 1968: la influencia de Estados Uni-

dos en México. Tese de Licenciatura, México: Enap, 2002.

KATSIAFICAS, George. The Imagination of the New Left. A Global Analysis of 1968.

Boston: South End Press, 1987.

KRAUZE, Enrique. La presidencia imperial. Ascenso y caída del sistema político mexi-

cano (1940-1996). México: Tusquets, 1997.

LOAEZA, Soledad. Clases medias y política en México. La querella escolar, 1959-1963.

México: El Colegio de México, 1999.

—— “Gustavo Díaz Ordaz: las insuficiencias de la presidencia autoritaria”, in: FOWLER,

Will (coord.). Presidentes mexicanos. Tomo II (1911-2000). México: INEHRM,

2004.

LUNA LEDESMA, Matilde. Los empresarios y el cambio político. México 1970-1987.

México: ERA, 1992.

MAMMARELLA, Giuseppe. Historia de Europa contemporánea (1945-1990). Barce-

lona: Ariel, 1990.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29513

514

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

MARWICK, Arthur. The Sixties. Cultural Revolution in Britain, France, Italy and the

United States, ca. 1958-1974. Oxford: Oxford University Press, 1998.

OCAMPO, Tarsicio (comp.). México. Conflicto estudiantil, 1968, II. Cuernavaca: Cidoc,

1969 (dossiê 23).

ORLOW, Dietrich. A History of Modern Germany. 1871 to Present. Englewood Cliffs:

Prentice-Hall, 1991.

ORTIZ MENA, Antonio. El desarrollo estabilizador: reflexiones sobre una época. Mé-

xico: El Colegio de México; Fondo de Cultura Económica, 2000.

PADRÉS, Mercedes. El diario de una periodista. Una luz de bengala. México: La Idea

Dorada Editores, 1998.

PANI, Erika (ed.). Conservadurismos y derechas en la historia de México. México: Fondo

de Cultura Económica, 2007.

PASSERINI, Luisa. “La juventud, metáfora del cambio social (dos debates sobre los

jóvenes en la Italia fascista y en los Estados Unidos durante los años cincuenta)”,

in: LEVI, Giovanni Levi; SCHMIT, Jean-Claude (dirs.). Historia de los jóvenes. II

La edad contemporánea. Madri: Taurus, 1996.

PORTANTIERO, Juan Carlos. Los usos de Gramsci. México: Folios Ediciones, 1981.

PORTELLI, Hugues. Gramsci y el bloque histórico. México: Siglo XXI, 1983.

RAMÍREZ, Ramón. El movimiento estudiantil de México (julio/diciembre de 1968).

México: ERA, 1998, 2 vols.

READER, Keith A.; WADIA, Khussheed. The May 1968 in France. Reproductions and

Interpretations. Nova York: St. Martin’s Press, 1993.

RODRÍGUEZ KURI, Ariel, “Hacia México 68. Pedro Ramírez Vázquez y el proyecto

olímpico”. Secuencia. Revista de historia y ciencias sociales. Ciudad del México, nº

56, abril-junho de 2003a.

——. “Los primeros días. Una interpretación de los orígenes inmediatos del movimiento

estudiantil de 1968”. Historia mexicana. Ciudad del México, no 209, julho-setem-

bro de 2003b.

ROQUE, George. “Aproximaciones argumentativas a la gráfica del 68”. Curare. Espacio

crítico para las artes. Ciudad del México, primavera/1997, pp. 141-167.

SASSOON, Donald. “Política”, in: FULBROOK, Mary (ed.). Europa desde 1945. Bar-

celona: Crítica, 2002, pp. 24-63.

TAMAYO, Sergio. Espacios ciudadanos. La cultura política en la ciudad de México.

México: Uníos, 2002.

VALDÉS UGARTE, Francisco. Autonomía y legitimidad. Los empresarios, la política y

el Estado en México. México: Siglo XXI, 1997.

VOLPI, Jorge. La imaginación y el poder. Una historia intelectual de 1968. México:

ERA, 1998.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29514

515

O L A D O E S C U R O D A LUA . O M O M E N T O C O N S E R VA D O R E M 1 9 6 8

ZERMEÑO, Sergio. México: una democracia utópica. El movimiento estudiantil de1968. México: Siglo XXI, 1981.

ZOLOV, Eric. “Discovering a Land ‘Mysterious and Obvious’: The Narrativizing ofPostrevolucionary Mexico”, in: JOSEPH, G.M. et al. Fragments of the Golden Age.The Politics of Culture in Mexico since 1940. Londres: Duke University Press, 2001.

——. Rebeldes con causa. La contracultura mexicana y la crisis del Estado patriarcal.México: Norma, 2002.

——. “Showcasing the ‘Land of Tomorrow’: México and the 1968 Olympics”. TheAmericas. Washington, 61: 2, outubro de 2004, pp. 159-188.

Fontes

Alarma, 20/6/1960; 3/8/1965AlertaCORRUPIO AHUMADA, Ernesto. “Sobre el movimiento estudiantil”. Christus. Ciudad

del México, nº 398, janeiro de 1969, pp. 12-15.GARRIDO, Luis. “El estado peligroso de la juventud”. Criminalia. Ciudad del Méxi-

co, ano XIV, outubro de 1958.

Arquivos

Archivo General de la Nación (AGN)Fondo Gustavo Díaz Ordaz (FGDO)

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29515

516

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Ane

xo:

Rel

ação

de

orga

niza

ções

sin

dica

is q

ue c

omun

icar

am p

or e

scri

to a

o pr

esid

ente

da

Rep

úblic

a se

u ap

oio

à oc

upaç

ão m

ilita

r da

Cid

ade

Uni

vers

itár

ia,

data

das

de 1

9 de

set

embr

o e

dias

seg

uint

es.

Org

aniz

ação

Sign

atár

io*

Org

aniz

ação

Ass

ina*

Sind

icat

o de

Tra

nspo

rte

Sind

icat

o de

Tra

balh

ador

esPe

dro

Tapi

a

de P

assa

geir

os e

das

Indú

stri

as J

alis

co S

A

da I

ndús

tria

Aut

omot

iva

(CT

M)*

*D

eput

ado

Joaq

uín

del

Olm

o

Sind

icat

o In

dust

rial

dos

Mig

uel

Vás

quez

+Si

ndic

ato

de B

rinq

uedo

s e

Pedr

o R

osas

Trab

alha

dore

s de

Pel

e e

Sim

ilare

s do

DF

Indú

stri

as D

eriv

adas

Sind

icat

o do

s Tr

abal

hado

res

deM

igue

l V

ásqu

ez+

Sind

icat

o de

Tra

balh

ador

esJo

sé M

aría

L.A

. R

uiz+

Dep

ósit

os e

Est

abel

ecim

ento

sda

s Fá

bric

as d

e Pr

odut

os

Mer

cant

is d

o D

F (C

TM

)Q

uím

icos

e I

ndús

tria

s

Rel

acio

nada

s (C

TM

)

Sind

icat

o In

dust

rial

dos

Lui

s M

onti

elSi

ndic

ato

de T

raba

lhad

ores

de

Eul

alio

Pér

ez

Trab

alha

dore

s de

Ind

ústr

ias

dePr

epar

ação

, C

onse

rto

e Se

rviç

o

Óle

os d

o D

F (C

TM

)A

utom

obilí

stic

o no

DF

(CT

M)

Sind

icat

o de

Fun

cion

ário

s de

Ant

onio

Ran

ero

Sind

icat

o de

Tra

balh

ador

es d

eM

aced

onio

Mon

drag

ón

Plan

tas

Ben

efic

iado

ras

de Ó

leos

eM

anuf

atur

as U

nive

rso

SA

(con

tinu

a)

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29516

517

O L A D O E S C U R O D A LUA . O M O M E N T O C O N S E R VA D O R E M 1 9 6 8

Org

aniz

ação

Sign

atár

io*

Org

aniz

ação

Ass

ina*

Fari

nhas

Ind

ustr

iais

, A

limen

tos

Con

cent

rado

s e

Sim

ilare

s do

DF

Uni

ão S

indi

cal

de F

unci

onár

ios

eA

brah

am M

artí

nez+

Sind

icat

o de

Tra

balh

ador

es d

aR

odol

fo J

ádre

z

Trab

alha

dore

s de

Ban

hos

Indú

stri

a da

Cer

âmic

a e

do D

F (C

TM

)Si

mila

res

do D

F (C

TM

)

Sind

icat

o de

Tra

balh

ador

es d

asA

gust

ín V

alle

jo+

Sind

icat

o de

Tra

balh

ador

es d

eJo

sé J

acqu

es

Indú

stri

as V

iníc

olas

e L

icor

eira

sFo

togr

afia

do

DF

do D

F (C

TM

)

Sind

icat

o N

acio

nal

deJo

sé M

aría

A.

L.

Rui

z+Si

ndic

ato

de T

raba

lhad

ores

do

Dav

id M

artí

nez

Trab

alha

dore

s da

Ind

ústr

ia E

létr

ica

Vid

ro e

Ind

ústr

ias

Der

ivad

as n

o

e de

Fab

rica

ção

de A

pare

lhos

,E

stad

o do

Méx

ico

(CT

M)

Equ

ipam

ento

s, A

rtig

os e

Ace

ssór

ios

para

Ele

tric

idad

e e

Ati

vida

des

Rel

acio

nada

s (C

TM

)

Sind

icat

o de

Tra

balh

ador

es d

eA

gust

ín V

alle

jo+

Sind

icat

o In

dust

rial

de

Abr

aham

Mar

tíne

z+

Indú

stri

as d

e L

apid

ação

Trab

alha

dore

s de

Lav

ande

rias

,

Tin

tura

rias

, Pa

ssad

eira

s e

Sim

ilare

s do

DF

(CT

M)

(con

tinu

ação

)

(con

tinu

a)

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29517

518

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Org

aniz

ação

Sign

atár

io*

Org

aniz

ação

Ass

ina*

Sind

icat

o O

perá

rio

deJo

sé M

aría

L.

A.

Rui

z+Si

ndic

ato

de T

raba

lhad

ores

da

Tom

ás R

amír

ez

Indú

stri

as T

êxte

isC

evad

ora

Lev

iatá

n y

Flor

SA

Sind

icat

o de

Tra

balh

ador

es d

eA

gust

ín V

alle

jo+

Sind

icat

o de

Tra

balh

ador

es d

oD

avid

Mar

tíne

z

Dep

ósit

os e

Est

abel

ecim

ento

sV

idro

e I

ndús

tria

s D

eriv

adas

Mer

cant

is (

CT

M)

do D

F (C

TM

)

Sind

icat

o de

Tra

balh

ador

es d

aE

nriq

ue G

. Suz

anSi

ndic

ato

de T

raba

lhad

ores

da

Alf

onso

Val

divi

a+

Indú

stri

a de

Pro

duto

sC

onst

ruçã

o, A

rtes

ãos

e A

reei

ros

Alim

entí

cios

do

DF

(CT

M)

“20

de N

ovie

mbr

e” (

CT

M)

Sind

icat

o de

Tra

balh

ador

es d

aA

lfon

so V

aldi

via+

Sind

icat

o do

s Tr

abal

hado

res

deD

arío

Lag

o

Indú

stri

a de

Pro

duto

s A

limen

tíci

osM

oinh

os d

e Tr

igo,

Fáb

rica

s de

do E

stad

o do

Méx

ico

(CT

M)

Fari

nha

e Si

mila

res

do D

F

Sind

icat

o de

Tra

balh

ador

es d

aA

rtur

o V

arga

s“T

raba

lhad

ores

Fer

rovi

ário

s”A

rman

o R

oser

o

Cos

tura

e S

imila

res

do D

F (

Talv

ez A

lianç

a de

Fer

rovi

ário

s

do M

éxic

o)

Sind

icat

o de

Tra

balh

ador

es d

eFr

anci

sco

S. C

háve

zSi

ndic

ato

Nac

iona

l de

Mar

iano

Pad

illa

Est

acio

nam

ento

s e

Abr

igos

Trab

alha

dore

s da

s

de A

utom

óvei

s no

DF

(CT

M)

Art

es G

ráfi

cas

(con

tinu

ação

)

(con

tinu

a)

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29518

519

O L A D O E S C U R O D A LUA . O M O M E N T O C O N S E R VA D O R E M 1 9 6 8

Org

aniz

ação

Sign

atár

io*

Org

aniz

ação

Ass

ina*

Sind

icat

o N

acio

nal

da I

ndús

tria

Lui

s D

íaz

Sind

icat

o O

perá

rio

das

José

Mar

ía L

. A

Rui

z+

do P

ão n

a R

epúb

lica

Mex

ican

aIn

dúst

rias

de

Ferr

o, M

etai

s e

Man

ufat

uras

Com

post

as n

o

DF

(CT

M)

Sind

icat

o de

Tra

balh

ador

es d

eA

lfon

so V

aldi

via+

Ass

ocia

ção

de E

ngen

heir

osM

ario

Mija

ngos

Obr

as e

Mat

eria

is d

e C

onst

ruçã

oM

ecân

icos

e E

letr

icis

tas*

**

no E

stad

o do

Méx

ico

(CT

M)

Fede

raçã

o N

acio

nal

de C

aval

eiro

s A

C**

*

Font

e: A

GN

, FG

DO

, ca

ixa

501,

s/e

.*E

m t

odos

os

caso

s o

assi

nant

e é

o se

cret

ário

-ger

al d

o si

ndic

ato.

**O

sen

hor

Olm

os d

isse

esc

reve

r em

nom

e de

52

sind

icat

os d

o tr

ansp

orte

de

pass

agei

ros

e da

ind

ústr

ia a

utom

otri

z pe

rten

cent

es à

Fed

eraç

ão d

eTr

abal

hado

res

do D

istr

ito

Fede

ral

(CT

M).

***E

m n

enhu

m d

os d

ois

caso

s de

trá

fico

de

sind

icat

os d

e tr

abal

hado

res.

É n

ão o

bsta

nte

um l

apsu

s m

emor

ável

que

os

asse

ssor

es d

o pr

esid

ente

Día

zO

rdaz

ten

ham

inc

luíd

o a

Fede

raci

ón N

acio

nal

de C

harr

os n

o do

cum

ento

que

res

ume

os a

poio

s do

sin

dica

lism

o of

icia

lista

à o

cupa

ção

mili

tar

daC

idad

e U

nive

rsit

ária

.+

Os

nom

es d

os a

ssin

ante

s se

rep

etem

em

mai

s de

um

sin

dica

to.

(con

tinu

ação

)

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29519

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29520

CAPÍTULO 6 A oposição juvenil à Unidade Popular*

Samantha Viz Quadrat**

*Este artigo faz parte das reflexões do projeto Faces Juvenis Chilenas: da Oposição à Unida-de Popular ao Pinochetismo, financiado pelo edital Universal (2008/09) do CNPq. Agrade-ço a Eric Assis dos Santos, bolsista de IC, pela FAPERJ, em projeto com o mesmo título. Ea Danilo Moreira, Elisa Campos e Paula Ibañez o auxílio para o acesso aos documentoschilenos.**Professora adjunta de História da América Contemporânea da Universidade FederalFluminense e pesquisadora do Núcleo de Estudos Contemporâneos (NEC) da mesma instituição.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29521

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29522

JUVENTUDES, RUPTURAS E PERMANÊNCIAS: UM DEBATE SOBRE A GERAÇÃO

1968 E O PODER JOVEM

1968! Ano símbolo de uma era marcada pela contestação, revolta e rebe-lião; pelo poder jovem e pela luta da juventude contra o establishment, vis-to como uma instituição doente, atrasada, corrompida. Esse era o momentoem que tudo parecia possível, e a exigência deveria ser então pelo impossí-vel, como dizia o slogan francês.1

1968, como imortalizou o jornalista brasileiro Zuenir Ventura, seria oano que não terminou.2 Rompia-se com o passado e pensava-se o futuro.Para o movimento hippie, seria o início da era de aquarius. Paz e amor ca-minhariam juntos. Para outros, a revolução era a saída, afinal, como disseum dos principais símbolos dessa geração, Che Guevara, assassinado em1967, o “dever de todo revolucionário é fazer a revolução”.

Um mundo novo! Um homem novo!A revolução. De comportamentos, da liberação sexual, da música, da

estética. As lutas contra o imperialismo, pela libertação nacional, contra asditaduras. As vanguardas estavam em todos os lugares.

Para Kurlansky, “nunca houve um ano como 1968, e é improvável quevolte a haver”.3 Assistindo aos filmes e documentários ou lendo biografias,romances e livros de História sobre o período, a sensação que temos é deuma geração de revolucionários, celebrados pela denominação a geração1968, ainda cultuada e transformada em modelo de juventude a ser segui-do. As gerações seguintes foram/são permanentemente submetidas à com-paração com a mágica geração 1968. A generosidade dessa geração teriaperdido o lugar para o individualismo; a ação, para a apatia; o sonho, para

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29523

524

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

o conformismo. Condenadas pela ambição pessoal, pelo desejo de enrique-cimento, pelo consumo. Assim são comumente rotuladas as gerações pos-teriores à de 1968.4

É perceptível no olhar do senso comum para todas as gerações uma er-rônea homogeneização e uma ideia de juventude como um grupo semnuances ou diferenças. Além desta questão, Bourdieu alerta que “falar dosjovens como se fossem uma unidade social, um grupo constituído, dotadode interesses comuns e relacionar estes interesses a uma idade definida bio-logicamente já constitui uma manipulação evidente”.5

Segundo Rossana Cruz, “los jóvenes en tanto categoría social construidano tiene una existencia autónoma, es decir al margen del resto social, seencuentran inmersos en la red de relaciones y de interacciones socialesmúltiples y complejas”.6 Neste sentido, a juventude é um reflexo da pró-pria sociedade, por mais que a literatura enfatize a inegável luta de gera-ções que marca as relações entre jovens e adultos (pais e filhos/professorese alunos), ela é influenciada pelo contexto onde vive, pela família, pelosmestres, por artistas, pela religião etc. Não está isolada em uma câmara ondepensamentos imperfeitos ou impuros não entram.

Para Passerini, a juventude é uma metáfora da mudança social, mas tam-bém da continuidade.7 E para Pàmpols, “a juventude é um Jano de doisrostos: uma ameaça de presentes obscuros e uma promessa de futuros dis-tantes”.8 Na visão de Regina Novais, o jovem, em tese, está biologicamentemais distante da morte e mais predisposto à vida, “tem o gosto pela aven-tura, tem maior curiosidade pelo novo. Em consequência, tem um lado maispropenso ao revolucionário”.9 Contudo, ainda segundo Novais, “aspectoshistóricos demonstram que existem várias juventudes que convivem nummesmo tempo no mesmo espaço social. Não é um ciclo natural e universalda vida em todas as suas etapas”.10

Os anos 1960 e 1970 e seus simbolismos impulsionaram ainda mais osestudos sobre juventude. Contudo, Ruth Cardoso e Helena Sampaio desta-cam que somente a partir dos anos 1990 as pesquisas sobre o tema desloca-ram-se da questão central sobre ser ou não a juventude um motor dasmudanças na sociedade para uma discussão cada vez mais específica e me-nos genérica.11 Os novos trabalhos

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29524

525

A O P O S I Ç Ã O J U V E N I L À U N I D A D E P O P U L A R

são específicos não só porque tendem a priorizar o estudo dos grupos particu-

lares de jovens, mostrando em quê esses se diferenciam ou se assemelham no

diálogo com outros segmentos jovens da sociedade ou de outras gerações (...),

mas porque trabalham com questões que afetam, particularmente, a juventude.12

Na verdade, todos os trabalhos aqui citados caminham no sentido dedemarcar que não temos uma única juventude, mas sim juventudes.13 De-vemos levar em consideração classe social, estrato, etnia, religião, zonaurbana ou rural, gênero etc.14 São grupos que disputam e compartilhamvalores, comportamentos, estilos e espaços.

Além disso, “o lugar social que pessoas jovens ocupam na sociedade influi,portanto, nas maneiras como elas são ou não pensadas como jovens”.15 Umjovem operário é visto de maneira diferente de um jovem estudante, porexemplo.16 Dessa maneira, “a juventude não é uma referência natural e bio-lógica, e sim uma categoria classificatória cultural e histórica”.17

Sem dúvida alguma, com a geração 1968 definitivamente a cultura juve-nil entrou em cena, uma força política mais do que nunca a ser considera-da. As transformações, ainda que tenham repercutido de maneiras diferentesem vários países, são inegáveis. No entanto, da mesma maneira que tantasoutras gerações: nem sempre toda de esquerda, nem sempre toda de direi-ta e muitas vezes indiferente às questões políticas e sociais ao seu redor.

Se por um lado os anos 1960 e 1970 impulsionaram os trabalhos sobreo tema “juventude” e a geração 1968 foi elevada a um modelo a ser segui-do, por outro, é incorreto afirmar que foi nesse período a primeira vez quea juventude apareceu com destaque no cenário político mundial. ParaRossana Cruz, os jovens foram importantes protagonistas da história doséculo XX em diversos sentidos.18

Como afirmou Mannheim: “Quando eu era jovem, a crença correnteera de que a juventude é progressista por natureza. Desde então isso reve-lou-se falacioso, pois aprendemos que movimentos reacionários ou con-servadores também podem criar movimentos de juventude.”19

Mannheim está dialogando diretamente com as experiências que lhe sãocontemporâneas, com os fascismos. Para ele, “a juventude não é progres-sista nem conservadora por natureza, porém é uma potencialidade pronta

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29525

526

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

para qualquer nova oportunidade”.20 A participação de jovens nesses mo-

vimentos já foi alvo de diversos estudos.

Ao analisar a Juventude Hitlerista, uma das principais faces do Terceiro

Reich, Guido Knopp chega à conclusão de que se trata de uma geração ma-

nipulada e seduzida por Hitler.21 Já Eric Michaud, no artigo “Soldados de

uma ideia: os jovens sob o Terceiro Reich”,22 busca compreender a integração

de parcelas da juventude alemã ao nazismo, as formas de relacionamento

com o Führer, a emancipação e o sentimento de pertença a um grupo. O

combate travado por esses jovens não estava apenas inserido no velho con-

flito de gerações; não era contra Weimar, mas “inscrevia-se na história do

‘eterno combate’ travado pela raça ariana pela pureza de seu sangue, isto é,

de sua Ideia”.23 Além disso, a Juventude Nazista trazia em si uma liberdade

até então impensável por esses jovens.24

Os jovens hitleristas, que não raramente romperam com seus pais para

seguir o líder Adolf Hitler com extrema lealdade, também cometeram atos

de perseguição e violência em nome do que acreditavam. Contudo, seus in-

tegrantes não foram julgados pelo Tribunal de Nuremberg, que “concluiu que

as crianças e adolescentes do Terceiro Reich foram traídas, desertadas e

sacrificadas por um partido e um regime que as usou para chegar ao poder”.25

O fascismo italiano também cobiçou a juventude. Aos jovens foram atri-

buídos “os poderes de uma missão salvadora em relação ao partido e ao

Estado fascista”.26

Ao longo do século XX a juventude foi vista ora como revolucionária,

ora como fácil de ser enganada, ludibriada, manipulada. Como esperan-

ça, como fim. A forma de ver a juventude é também uma das maneiras de

as sociedades lidarem com o seu passado, especialmente com a memória

dos governos não democráticos. A juventude enganada, traída em seu ro-

mantismo e em sua inexperiência, seria o símbolo máximo da sociedade

que não sabia de nada. A juventude que atendeu ao chamado dos líderes

autoritários foi enganada no que lhe era mais caro: sua inocência e

generosidade.

Inegavelmente, como vimos anteriormente, a juventude é tanto um marco

biológico como um marco geracional. Até agora discutimos as definições

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29526

527

A O P O S I Ç Ã O J U V E N I L À U N I D A D E P O P U L A R

de jovens/juventude. Resta-nos esclarecer o que estamos definindo comogeração. Neste ponto concordamos com a definição de Jean-FrançoisSirinelli, segundo a qual

certamente, a geração, no sentido “biológico”, é aparentemente um fato

natural, mas também um fato cultural, por um lado modelado pelo aconte-

cimento e por outro derivado, às vezes, da autorrepresentação e da autopro-

clamação: o sentimento de pertencer — ou ter pertencido — a uma faixa

etária com forte identidade diferencial (...) a geração é também uma cons-

trução do historiador que classifica e rotula.27

A experiência do 11 de Setembro de 1973 foi uma marca geracional para

os jovens chilenos daquele momento. No entanto, a juventude chilena que

será aqui analisada não é a simpatizante da Unidade Popular, da Federación

de Estudiantes de la Universidad de Chile (FECH),28 não está presente no

Movimiento de Izquierda Revolucionário (MIR),29 também não é aquela

cautelosa diante do conturbado cenário do início dos anos 1970 no Chile

e tampouco é aquela que não participava dos debates. Daremos privilégio

à juventude que costuma ser esquecida do cenário da geração 1968 e sequer

aparece como coadjuvante. Permanece isolada não só no Chile mas tam-

bém em outros países.30 As explicações para isso podem ser muitas. Talvez

porque ela não combine com a mítica do poder jovem.31 Talvez porque não

sonhasse com a revolução como os jovens românticos de 1968. Talvez por-

que sonhasse com outra revolução. Talvez porque lutasse pela continuida-

de. Talvez porque as sociedades no movimento de apagar da memória o

consenso e o consentimento frente às ditaduras tenham atribuído à geração

de 1968 o papel de símbolo da luta de todos contra o autoritarismo. Ou,

quiçá, porque esses jovens não apresentam o mesmo apelo, a mesma sedu-

ção para os meios de comunicação e profissionais de História que os ro-

mânticos de 1968.32

Os jovens que iremos analisar daqui para a frente integravam represen-

tações estudantis contrárias à Unidade Popular; são elas: Federación de

Estudiantes Secundários de Santiago (FESES) e a Federación de Estudiantes

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29527

528

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

de la Universidad Católica (FEUC),33 de onde se originou o gremialismo

liderado por Jaime Guzmán, que, em 1973, aos 27 anos, se transformou

paulatinamente num dos principais ideólogos do pinochetismo. Alguns

desses jovens circularam por outros grupos, como a Frente Nacionalista Pá-

tria y Libertad,34 e, naturalmente, pela própria sociedade, representando uma

voz importante no Chile naquele momento: a oposição à Unidade Popular.

Tomaram as ruas e outros espaços públicos para manifestar a sua insatisfa-

ção. Com isso romperam com outro aspecto importante sobre os jovens

naquele momento. A rua deixou de ser o cenário exclusivo das lutas anta-

gônicas contra o status quo para ser também o local pela defesa da conti-

nuidade e das permanências,35 colocando em xeque o mito do poder jovem.

CONFRONTOS E DISPUTAS NO MOVIMENTO ESTUDANTIL CHILENO

DOS ANOS 1960

Comumente, o período de governo da Unidade Popular (1970-1973) tem

sido marcado como um momento de confrontos e disputas. No entanto,

como discutiremos nesta seção, ao contrário do que muitas publicações

apontam, as diferenças chilenas não tiveram início com a vitória da Unida-

de Popular (UP), e, embora presentes desde o governo de Jorge Alessandri

(1958-1964), foram potencializadas nos anos de Eduardo Frei (1964-1970)

e eclodiram com força nos mil dias de Allende (1970-1973).36

Na interpretação de Deustch, nos anos 1960 houve um declínio da di-

reita e a ascensão das esquerdas, inclusive com as eleições de 1961 a direita

perdeu um terço do Congresso. Isso foi possível graças às crescentes difi-

culdades econômicas, à adoção do voto secreto, às migrações do campo à

cidade e à maior alfabetização das classes baixas.37 A resposta da direita

chilena só viria em 1966, com a criação do Partido Nacional, o qual assu-

miria um papel preponderante de oposição com a eleição de Allende. Foi

das fileiras do Partido Nacional38 que saíram os movimentos paramilitares

Frente Nacionalista Pátria y Libertad e Movimiento Rolando Matus, am-

bos envolvidos em conflitos nas ruas contra partidários da UP.39

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29528

529

A O P O S I Ç Ã O J U V E N I L À U N I D A D E P O P U L A R

Além da própria agitação interna, o Chile não se encontrava alheio ao

cenário internacional no período. Vivia-se um momento de intensos deba-

tes e questionamentos que atingiam os aspectos políticos e sociais, bem como

a produção cultural chilena.40

Contudo, o crescimento das esquerdas institucionalizadas, especialmente

dos Partidos Socialista e Comunista, faz do Chile um caso singular no Cone

Sul da América Latina. Nesse sentido, Allende acreditava que o Chile de

fato era um caso diferente. Presente na Reunião Tricontinental e represen-

tante chileno na I Conferência da Organização Latino-Americana de Soli-

dariedade (Olas), ocorrida em Havana entre 31 de julho e 10 de agosto de

1967, Salvador Allende declarou apoio à luta armada nos demais países,

mas fez uma ressalva para o caso chileno, no qual ele acreditava ser possí-

vel fazer a revolução dentro da legalidade.41

Apesar dessa defesa, a luta armada, a exemplo de outros países, não

deixou de ser um importante ponto de pauta na agenda política das esquer-

das chilenas. Dois anos antes da Olas, em 1965, na cidade de Concepción,

havia sido criado o Movimiento de Izquierda Revolucionária (MIR). Na

Declaração de Princípios de 14 de agosto de 1965, o MIR rechaçou a teo-

ria de “via pacífica”, alegando que:

desarma políticamente al proletariado y por resultar inaplicable, ya que la

propia burguesía es la que resistirá, incluso con la dictadura totalitaria y

la guerra civil, antes de entregar pacíficamente el poder. Reafirmamos el

principio marxista-leninista de que el único camino para derrocar al régimen

capitalista es la insurrección armada.42

O avanço da oposição tornou o Chile alvo das atenções das esquerdas e

direitas internacionais. E despertou o interesse dos Estados Unidos, preo-

cupados com o avanço desses setores desde a vitória da Revolução Cubana,

em 1959. Para dificultar a chegada dos grupos de esquerda ao poder no

Chile, os Estados Unidos atuaram por meio da Aliança para o Progresso e

também de ações “encobertas” que financiavam partidos políticos e movi-

mentos sociais para evitar a vitória da Frente de Acción Popular (FRAP),43

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29529

530

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

que tinha Salvador Allende como candidato à presidência da República pela

terceira vez.44 Contudo, como defendem Arrate e Rojas, a vitória de Frei

não se explica somente pelo poder unificado do “imperialismo” e da direi-

ta, mas porque despertou um apoio genuíno em amplos setores sociais,

sobretudo jovens, envolvidos com a consigna “Patria Joven”, usada pela

Democracia Cristã para afirmar seu compromisso com mudanças.45

A vitória nas urnas foi avassaladora: 1.049.072 votos, ou seja, cerca de

56%.46 Com uma das maiores votações da história chilena, Frei foi o pri-

meiro presidente eleito pela Democracia Cristã na América Latina e ainda

conseguiu o feito de criar um governo unipartidário com a maioria dos

assentos tanto entre os deputados quanto senadores.

A “Revolución en Libertad” do governo Frei

O programa da Democracia Cristã tinha como bandeira a “Revolución en

Libertad” e estava baseado na defesa dos seguintes pontos: reforma agrá-

ria, nacionalização do cobre, promoção popular47 e reforma da educação.48

Tais temas não eram novidades no Chile, mas correspondiam a antigas de-

mandas de vários setores políticos e sociais.

Entre os projetos de Frei o que nos interessa é a reforma educacional,

que nesses anos 1960, com a grande agitação do movimento estudantil, tinha

se tornado uma demanda fundamental. Inclusive, estudantes ligados ao pró-

prio partido do novo presidente, que em 1962, dentro da Universidad Cató-

lica de Chile, haviam discutido com o reitor Alfredo Silva Santiago sobre o

afastamento da instituição da sociedade. Contudo, a reforma educacional

abrangeu tanto o ensino básico quanto o universitário, embora o segundo

caso seja alvo do maior número de pesquisas.

Para o ensino básico, Frei criou em 27 de janeiro de 1967 o Centro de

Perfeccionamiento, Experimentación e Investigaciones Pedagógicas (CPEIP),

órgão ligado ao Ministério da Educação e que existe até os dias atuais.49

Ao CPEIP caberia:

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29530

531

A O P O S I Ç Ã O J U V E N I L À U N I D A D E P O P U L A R

la realización de los curso de capacitación y perfeccionamiento que consti-

tuyen requisitos de ingreso, ascenso o permanencia en los servicios educa-

cionales, como asimismo, las tareas de experimentación e investigaciones

pedagógicas y perfeccionamiento en lo que concierne al Ministerio de

Educación Pública.50

Até 1964, um terço da população em idade escolar não tinha acesso àeducação, porque não havia escolas e/ou professores suficientes, e as taxasde repetência e evasão eram bastante altas.51 Além disso, havia um consensode que o sistema educacional chileno reproduzia e mantinha as diferençassociais do país. Um exemplo disso era a impossibilidade de alunos dos cursostécnicos e professores das Escolas Normais poderem fazer cursos universi-tários. Esses eram destinados apenas aos alunos egressos dos chamados liceus.52

O CPEIP promoveu mudanças nos currículos, atualização e treinamen-to de professores, sistema de avaliações etc. Alterou também a própria es-trutura do ensino básico. Antes dividido em 6 anos de escola básica e outros6 de secundária, com a reforma teríamos a formação pré-básica, 8 anos deensino básico e 4 de ensino médio.53

O segundo alvo da reforma educacional de Frei é a universidade. Aolongo de todo o século XX as universidades chilenas foram se desenvol-vendo, se expandindo para além da capital, abrindo novos cursos e assis-tindo à entrada cada vez maior do número de mulheres, um passo importantena democratização do ambiente universitário.54 Entre 1958 e 1971 temosum aumento significativo do número de alunos matriculados em institui-ções de nível superior. Em 1958, ano em que Alessandri assumiu a presi-dência, tínhamos somente entre as maiores universidades — a Universidadde Chile, Universidad Técnica, Universidad Católica de Chile e Univer-sidad de Concepción — 18.743 alunos. Em 1964, ano que Frei assumiu apresidência, tínhamos 28.830 alunos. Já em 1970, ano do término do go-verno Frei e assunção de Allende, as universidades chilenas citadas reuniam67.317 alunos matriculados. O período de maior número de matrículas foinos anos da Unidade Popular. Em 1973, ano do golpe, só entre as princi-pais universidades chilenas havia 127.713 alunos, praticamente o dobro.55

Esse crescimento de mais de 680% em 15 anos tem uma influência nas/das

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29531

532

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

reformas,56 pois ao mesmo tempo que pressiona pela sua realização é tam-bém resultado das mudanças desencadeadas por ela.

As principais críticas ao sistema universitário eram: o caráter elitista dosestudantes; a estrutura administrativa oligárquica; a tendência à profissio-nalização sem que houvesse preocupação com currículos, métodos e o poucoinvestimento em pesquisas; a falta de coordenação entre as universidades,que implicava a duplicação de esforços sem um planejamento conjunto; e aincapacidade de dar conta do desenvolvimento e das mudanças sociais.57

Garreton e Martinez apontam que a reforma universitária teve duas fa-ses. A primeira, o chamado processo de gestação, ocorre entre 1960 e 1966,dependendo da universidade.58 Nesse momento, as universidades experi-mentavam um processo parcial de modernização. A segunda etapa é o pro-cesso de desencadeamento e ruptura e também varia de acordo com auniversidade, podendo ser de 1965 a 1967 ou de 1966 a 1968.59

As reformas atingiram todas as universidades do país de maneira dife-renciada. Contudo, daremos ênfase a seu impacto na Universidade Católi-ca, especialmente no que diz respeito à ação do movimento estudantil.60

A Universidade Católica é uma das mais antigas do Chile, fundada em21 de junho de 1888. A sua criação pode ser vista como uma resposta aoprocesso de laicização do Estado chileno.61 Extremamente conservadora62

e estreitamente ligada ao Vaticano, até o final dos anos 1960 seus reitoreseram sacerdotes com nomes confirmados diretamente pelo papa. Esse qua-dro só foi alterado pela Reforma Universitária do período aqui estudado.63

Para Garreton e Martinez, a expansão universitária dos anos 1950 e iníciodos 1960 não significou a superação das características fortemente conser-vadoras da instituição. O que ainda, segundo os mesmos autores, explica ocaráter fortemente geracional e radical do movimento estudantil de 1967 eo aparecimento do gremialismo logo em seguida.64

Na universidade caracterizada como a mais conservadora ocorrerá o augeda radicalização do movimento estudantil no processo de reforma universitá-ria, com a ocupação da instituição em 11 de agosto de 1967. Ao mesmo tem-po, e refletindo as próprias disputas e contradições internas da sociedade chilena,surgirá o gremialismo, força extremamente conservadora, e a Ação PopularUnificada (MAPU), que se integrará à UP, e o Movimento 11 de Agosto.65

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29532

533

A O P O S I Ç Ã O J U V E N I L À U N I D A D E P O P U L A R

O movimento estudantil e as reformas

As mudanças propostas e promovidas por Frei atingiram o movimento es-tudantil secundarista e universitário. Para Huneeus, os estudantes conse-guiram manter o protagonismo durante a reforma porque o contextodemocrático permitiu ampla continuidade política, que incluiu a políticaestudantil; por sua vez, tal continuidade permitiu que uma ampla elite “sefamilizara con los temas académicos, preocupación que se canalizaba a tra-vés de las federaciones de estudiantes y de los centros de alumnos de aquellasfacultades en las cuales se impulsaban iniciativas de modernización”.66

Comumente, o movimento secundarista desperta bem menos atençãodos pesquisadores. Nesse sentido, as pesquisas sobre esse grupo não sãotão abundantes quanto as sobre o movimento universitário. Não se trata,porém, de uma característica exclusivamente da academia chilena, mas umtraço que podemos identificar em outros países, inclusive no Brasil. Naavaliação de Flores isso ocorre porque, comparativamente, “el movimientode los ‘secundario’ (...) ha sido más débil, menos estructurado, más depen-diente de otros sujectos sociales y más inestable a lo largo do tempo.”67

Entretanto, como defende Flores, devemos ter atenção ao fato de que “endeterminadas coyunturas, la situación ha sido muy distinta, adquiriendo unanotable fuerza y protagonismo.”68

O movimento secundarista no Chile acompanhou a criação da FECH, eas primeiras notícias de sua atuação datam de 1919. No entanto, uma es-trutura mais organizada demorou a ser elaborada.

A Federación de Estudiantes Secundarios de Santiago (FESES) foi cria-da em 1948, após inúmeras outras tentativas. Somente no ano seguinte,em 1949, o governo de Gabriel González Videla regulou a existência e fun-cionamento dos centros de alunos. A FESES, porém, não reunia estudantesdos liceus industriais, técnicos ou comerciais, que tinham suas própriasorganizações. E a participação variava de liceu para liceu; alguns mais ati-vos do que outros. Essa divisão também valia para esquerdas e direitas, maisforte em um e outro liceu. Isso fez com que no início dos anos 1970 algu-mas lideranças de ambos os lados mudassem de escola para conseguir am-pliar o quadro de atuação.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29533

534

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

As primeiras reivindicações da FESES diziam respeito unicamente às

questões escolares, como tarifa especial para estudantes nos meios de trans-

portes, bolsas, criação de uma universidade técnica e mudanças no currículo.

No entanto, a exemplo de outros grupos, a partir dos anos 1950 e, espe-

cialmente, nos anos 1960, o movimento secundarista começou a radicalizar.

A esquerda assumiu a direção do movimento e os alunos secundaristas co-

meçaram a organizar greves e manifestações nas ruas.

Nesse período a FESES contava com militantes majoritariamente oriun-

dos dos partidos Democrata Cristão, Socialista, Radical e Comunista; o

primeiro dominou as principais organizações até 1968, quando perdeu a

FEUC para os gremialistas e a FECH para os grupos de esquerdas.

Por sua vez, a FEUC foi fundada em 1939, e até o final da década de 1950

os presidentes da organização estiveram ligados ao conservadorismo. O ce-

nário só mudou em 1959, quando foi eleito Fernando Munita, um estudante

de agronomia simpatizante da Democracia Cristã. A partir de Munita,

se puede marcar el inicio de una nueva etapa para los estudiantes y la

federación: preocupación por la participación estudiantil, por formar equipos

de trabajo comprometidos con los principios de la Universidad u la Iglesia,

apertura al mundo social externo a la universidad, debate sobre los proble-

mas nacionales e internacionales (Guerra Fría, Revolución Cubana).69

Com a vitória da Democracia Cristã, em 1964, a FEUC aprofundou ain-

da mais os debates traduzidos nos lemas “una nueva Universidad para un nuevo

Chile” e “nuevos hombres para la nueva Universidad”. Essa visão é corrobo-

rada por Garretón e Martinez, para quem a FEUC desde sua criação estava

voltada para as atividades internas e, somente com o crescimento da juven-

tude democrata-cristã e seu processo de radicalização, conseguiu se abrir.70

Em maio de 1967, pela primeira vez em sua história, os estudantes da

Universidade Católica paralisaram suas atividades por 24 horas. Era o iní-

cio de uma série de manifestações que culminariam com a ocupação da

universidade em 11 de agosto de 1967. Era o “maio de 1968” chileno ocor-

rendo com quase um ano de antecedência ao francês.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29534

535

A O P O S I Ç Ã O J U V E N I L À U N I D A D E P O P U L A R

A ocupação do prédio central da universidade gerou a solidariedade da

CUT e dos estudantes de outras instituições de ensino. Ao mesmo tempo,

despertou também um forte movimento de oposição. O Conselho Superior

da Universidade qualificou a ocupação como um ato de violência, e o jor-

nal El Mercurio, de um “plan elaborado y divulgado por los comunistas”.71

As informações falsas publicadas pelo jornal levaram o movimento estu-

dantil a estender uma faixa no prédio central com os dizeres: “!Chilenos:

El Mercurio miente!”

Para as lideranças da FEUC o “proceso de democratización universitaria

es irreversible”.72 Sem dúvida, as manifestações estudantis foram em parte

vitoriosas, pois, num balanço geral, o reitor Silva Santiago acabou renun-

ciando em dezembro de 1967, demandas estudantis foram aceitas e a de-

mocratização da instituição, com a participação do corpo discente e docente

nas escolhas dos dirigentes, por exemplo, ocorreu.73

No entanto, em outubro de 1967, com 45,8% dos votos, os estudantes

elegeram Ernesto Illanes o novo presidente da FEUC. A eleição de Illanes

marca a chegada do gremialismo, movimento conservador, à liderança do

movimento estudantil na UC.

O gremialismo, oriundo da Escola de Direito da Universidade Católi-

ca, tinha em Jaime Guzmán, aluno e futuro professor da instituição, a sua

principal liderança. Como movimento, o gremialismo começou a se or-

ganizar a partir de 1965, quando já ganhou as eleições do centro estu-

dantil de direito.

Segundo Durruti, podemos entender o movimento gremialista “como

la actuación práctica de las ideas corporativistas de la derecha tradicional

chilena”.74 Em sua Declaración de Principios de Movimiento Gremial,

afirmava:

El Movimiento Gremial afirma como base fundamental de su pensamiento,

que la naturaleza de la universidad es ajena a cualquier concepción ideológi-

ca o política, porque tiene como causa su propia y específica finalidad, que

es universal y permanente.75

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29535

536

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Ainda na Declaração:

(...) el Movimiento Gremial rechaza categóricamente la existencia de una idea

socialista, democráta cristiana o nacional de la universidad. Para sostener lo

contrario, habría que negar que la finalidad de la Universidad emana de su

mismo ser, o afirmar que la ciencia carece de autonomía en sus métodos y

objetivos, proposiciones ambas, manifiestamente absurdas.76

O movimento se expandiu para a Universidade Católica de Valparaíso ea Universidad de Concepción. Dentre outros fatores, Huneeus atribui essecrescimento à presença de Guzmán no programa A esta hora se improvisa,que ia ao ar com grande audiência no canal de TV da Universidade Católica.77

Na análise da própria FEUC, no documento que “conta a sua história”,o declínio da Democracia Cristã e a ascensão do gremialismo podem serexplicados pelo esgotamento do discurso, que perdeu de vista seus objetivose se afastou progressivamente dos estudantes e seus interesses, a radicalizaçãodas posições e a “ideologização”, que afastou os alunos que não tinhaminteresse nos temas extrauniversitários.78

Garretón e Martínez apontam em direção semelhante à análise anterior.Para eles, a partir de 1968 já não é mais possível falar em um movimentoestudantil como uma realidade, pois a direção havia se afastado da base.79

Isso ocorreu em função de dois motivos: a concretização institucional daReforma já não atrai mais a massa estudantil e a radicalização dos dirigentes.80

Na primeira carta aberta ao reitor e estudantes da UC, Hernán Larraín,primeiro presidente gremialista da FEUC, mostrava a mudança de tom nainstituição ao convocar todos a “defender la libertad sin postular ningunaideología política, perso cerrándole el paso al marxismo totalitario”.81

Apesar da ocupação da Universidade Católica ser o grande símbolo daação do movimento estudantil no âmbito da reforma educacional, Valledefende que:

la Universidad de Chile fue el verdadero epicentro de la lucha por la demo-

cratización de las estructuras universitarias, puesto que en ella se reproducían

o estaban representadas todas las tendencias sociales, políticas, económicas

e intelectuales de la sociedad chilena.82

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29536

537

A O P O S I Ç Ã O J U V E N I L À U N I D A D E P O P U L A R

De qualquer maneira, os anos de Frei foram fundamentais para a inser-ção de uma geração de jovens na política.83 Nesse sentido, a reforma terá,sem dúvida alguma, grande influência no movimento estudantil, muitas vezesa porta de entrada para a militância de novas gerações. E, apesar de servisto sempre como um movimento único, por contar geralmente com ape-nas uma representação, autônoma e independente do Estado, o movimentoestudantil também apresentou suas fissuras. No caso chileno, tais diferen-ças ficarão ainda mais visíveis no governo da Unidade Popular.

AS CONSERVADORAS FACES JUVENIS CHILENAS

Em 5 de setembro de 1970, tão logo foi confirmada a vitória da UnidadePopular, Salvador Allende fez seu primeiro discurso como presidente eleitodos balcões da FECH.84 O ato estava revestido de grande simbolismo. Allendecomeçou a militar nas fileiras do movimento estudantil e, quando candidatoà presidência, encontrou na FECH um forte núcleo de apoio. Um presidenteque aos 62 anos representava um projeto “novo e jovem” para o Chile.

Ao longo dos seus três anos de governo, Allende fez diversos discursosdestinados à juventude — não apenas a chilena, mas para jovens de todo omundo — em muitas das suas viagens internacionais. Entre esses discursos,gostaria de destacar o pronunciado no Estádio Nacional, no dia seguinte àposse, em 5 de novembro de 1970:

(...) Miles y Miles de jóvenes reclamaron un lugar en la lucha social. Ya lo

tienen. Ha llegado el momento en que todos los jóvenes se incorporen. A los

que aún están marginados de este proceso les digo: vengan, hay un lugar para

cada uno en la construcción de la nueva sociedad.85

A “Mensaje a los jóvenes” se encaixava perfeitamente no cenário de agi-

tação política que já se encontrava o movimento estudantil desde o gover-

no democrata-cristão, bem como no próprio desafio que a Unidade Popular

teria pela frente. Afinal, a pequena diferença de votos para o segundo colo-

cado na eleição presidencial86 e o fato de não ter conquistado a maioria dos

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29537

538

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

votos deixavam nítido que seria necessário despertar “corações e mentes”

para o projeto da “via chilena ao socialismo”.

Em dezembro de 1972, em Guadalajara, México, Allende discursou na

universidade e afirmou que “ser joven y no ser revolucionario es una con-

tradicción hasta biológica”.87 Contudo, como veremos, será de parcelas da

juventude chilena que sairá uma grande força de oposição ao projeto da UP.

Para isso, continuaremos dando ênfase às questões educacionais. No caso

da UP, ao projeto da Escuela Nacional Unificada (ENU).

No programa de governo assinado em 17 de dezembro de 1969 pelos

partidos Socialista, Comunista, Radical, Social-Democrata e os movimen-

tos Ação Popular Unificada e Ação Popular Independente (API), a UP afir-

mava que as necessidades da população em termos de educação e saúde

não eram suficientemente atendidas.88 O programa da UP previa:

a) Sistema educacional democrático, único e planificado: promoção da

melhoria geral das condições de ensino, com treinamento de profes-

sores, bolsas, construção de escolas, inclusive de jardins de infância;

incentivo à participação ativa e crítica dos estudantes em todo o proces-

so educacional; combate ao analfabetismo por meio de uma ampla

campanha nacional de mobilização; incentivo à educação de adultos

a partir dos próprios centros de trabalho; integração das instituições

privadas de ensino, especialmente daquelas que selecionavam os alunos

por razões de classe, origem social ou religião, aos cuidados do Estado;

b) Educação Física: prática de atividades desportistas desde os níveis

básicos da educação até nas organizações sociais de jovens e adultos;

c) Democracia, autonomia e orientação da universidade: neste item a

UP assegurava que o Estado forneceria os recursos suficientes para

manutenção e desenvolvimento das universidades e daria respaldo ao

processo da reforma universitária. Por outro lado, a reorientação das

funções acadêmicas de docência, investigação e extensão em função

dos problemas nacionais seria incentivada pelas realizações da UP.

Outra preocupação dizia respeito à admissão de filhos de trabalhado-

res e pessoas já adultas nas universidades.89

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29538

539

A O P O S I Ç Ã O J U V E N I L À U N I D A D E P O P U L A R

As mudanças seriam resultado não apenas do trabalho dos especialistas

indicados pelo governo, mas também de debates realizados em organiza-

ções de professores, trabalhadores, estudantes e pais.90

Como afirma Luiz Antônio Cunha, inicialmente a UP não fez grandes

alterações na estrutura herdada de Frei, visto que “os esforços do governo

concentraram-se na ampliação da oferta educacional e na democratização

do sistema”.91 Entre 1970 e 1971 foram aprovados programas de estudos

que remetiam à reforma de 1965. Contudo, a partir do ano de 1971, a ENU

começou a ser discutida, e a proposta, gestada.

Em 30 de janeiro de 1973, o Informe da Escuela Nacional Unificada foi

apresentado pelo governo ao Conselho Nacional de Educação. Era o de-

senvolvimento da proposta de democratização do ensino apresentada por

Allende em 1971, ano em que o Ministério da Educação e o Sindicato Único

de Trabajadores de la Educación (SUTE) começaram a discutir a ENU. O

Informe foi publicado em fevereiro na Revista de Educación, com tiragem

de mais de 100 mil exemplares, e nos principais jornais chilenos.92 O mi-

nistro da Educação na época era Jorge Tapia Valdés que, a partir da divul-

gação do Informe, participou de diversos debates em diferentes instituições

e meios de comunicação para explicar e defender a proposta do governo.93

O Informe tinha apenas 15 páginas e estava dividido em sete seções. A

primeira, Um Sistema Nacional para a Educação Permanente em uma Socie-

dade de Transição ao Socialismo, em que há a caracterização geral da pro-

posta. A segunda, a seção de fundamentos para a sua criação. A terceira, a

caracterização da ENU em 10 itens: nacional unificada, diversificada, demo-

crática, pluralista, produtiva, integrada à comunidade, científica e tecno-

lógica, humanista e planificada. Quarta seção, objetivos. Quinta, a estrutura

da ENU dividida entre educação infantil (0 a 6 anos) e educação geral epolitécnica. Sexta seção, definição da sua estrutura. E, sétima, ações e re-quisitos para o seu desenvolvimento.94

No início do Informe, na seção Um Sistema Nacional para a EducaçãoPermanente em uma Sociedade de Transição ao Socialismo, encontramos ajustificativa e perspectiva da ENU:

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29539

540

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

La perspectiva estratégica que ilumina la nueva política educacional presupone

la construcción de una sociedad socialista humanista, basada en el desenvolvi-

miento de las fuerzas productivas en la superación de la dependencia

económica, tecnológica y cultural, en el establecimiento de nuevas relacio-

nes de propiedad y en una auténtica democracia y justicia social garantizadas

por el ejercicio efectivo del poder por el pueblo.95

Iván Ñuñez Prieto defende três hipóteses sobre a ENU. A primeira, a deque ela seria o auge de uma antiga corrente chilena de pensamento e de po-lítica educativa. A segunda, a de que a ENU foi uma das expressões culturaisnacionais de novas utopias que, nos anos 1960 e 1970, se desenvolveram emescala internacional, ao mesmo tempo que foi uma resposta à “crise mundialda educação”. A terceira hipótese apresenta a ideia de que, ainda que atacadanos anos da UP e desprezada pela ditadura pinochetista, boa parte dos seuscomponentes foram efetivados nas três décadas seguintes à sua proposta.96

A ENU gerou grandes desconfianças entre os setores de oposição aogoverno, que passaram a direcionar ataques viscerais ao projeto. Para al-guns autores, entre os quais me incluo, a ENU foi um ponto forte para ogolpe de 11 de setembro, pois uniu a oposição e acirrou ainda mais os âni-mos contra a UP.

As críticas e resistências levaram a novos debates, que ocorreram duran-te toda a primeira metade de 1973. Em 11 de abril, por exemplo, ocorreuuma reunião no Ministério de Defesa Nacional, com a presença do minis-tro da Educação e de oficiais das Forças Armadas, na qual houve um abertodebate sobre as mudanças propostas no Informe. Nele, todos os oficiais pre-sentes se manifestaram contrários à ENU.

Como vimos na seção anterior, o gremialismo chegou à direção da FEUCem 1968 e nela permaneceria até abril de 1985, quando, nas primeiras elei-ções universais, o movimento conservador foi derrotado com a eleição dodemocrata-cristão Tomás Jocelyn-Holt. Nesse sentido, a FEUC tornou-seum foco de oposição à UP. O Informe do governo gerou dentro da FEUC aconsigna “No a la ENU”, que a classificava como um “instrumento deconcientización política a servicio del marximo”. A ação da FEUC se deuatravés de duas frentes, a saber: interna e externa à Universidade Católica.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29540

541

A O P O S I Ç Ã O J U V E N I L À U N I D A D E P O P U L A R

No âmbito interno, convocou um plebiscito entre os alunos da UC parasaber como o corpo discente se definia frente à ENU. No âmbito externo,organizaram trabalhos políticos em colégios, liceus, centros de pais, cen-tros de alunos e também em poblaciones.97

A primeira manifestação pública da FEUC sobre a ENU ocorreu em 16de março de 1973. Trata-se um pronunciamento do seu presidente, JavierLeturia, que foi publicado no La Prensa. Para Leturia, estava em curso o“más grave intento por implantar el totalitarismo en Chile”. Sendo assim, aFEUC convocou todos os setores democráticos do país, com destaque paraos mais ligados à educação, para construir um comando nacional para de-finir a liberdade educacional e lutar contra a ENU. E mais:

Como jóvenes, no podemos aceptar que se pretenda encasillar la mente denuestra generación y de las que vengan en moldes estrechos, anticuados ycopiados de otros países. El mundo progresa demasiado rápido como paraque una minoría dogmática pretenda coloca la juventud chilena al margende su legítima posibilidad de optar con amplitud entre los muchos caminosque hoy se abren ante los ojos del hombre contemporáneo. No queremos queel marxismo empobrezca por muchos años el espíritu de una juventud a lacual pertenecemos, intentando en la práctica clavar la rueda de una historiacada vez más dinámica y apasionante. En nombre de la espiritualidad ytranscendencia de la persona humana, exigimos, además, que se respete lalibertad de su inteligencia y rechazamos el intento por uniformar a la fuerzatodas las consciencias, porque jamás saldrá de ellos una sociedad más libre,sino, por ele contrario, más pobre, chata y sometida.98

A primeira declaração da FEUC já demonstra o tom com que o projetoda ENU seria tratado pelo movimento estudantil da Universidade Católi-ca. Além disso, já encontramos algumas das justificativas que serão usadas

para o golpe de 11 de setembro: a acusação de que o país caminhava para

um regime totalitário, a perda da chamada chilenidade (ao dizer que são

modelos copiados de outros países) e um retrocesso aos avanços do país,

contrário, assim, ao futuro grandioso que o país poderia ter.

Seguindo o ataque às propostas educacionais do governo, a FEUC pu-

blicou em abril de 1973 o Informe Crítico ENU: el control de las conciencias.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29541

542

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

O documento é resultado da análise de comissões de estudos de distintos

níveis (conta inclusive com a colaboração de professores), a partir de três

ângulos: ideológico, jurídico e pedagógico.99

Sobre o ângulo ideológico, a FEUC acusa a ENU de ser um caminho

para a criação de uma sociedade marxista-leninista, na qual não se aplica o

pluralismo, “un baluarte substancial para la preservación de la libertad, el

que hoy, debido a la amenaza del totalitarismo marxista, debemos reafirmar

con la mayor fuerza y energía, pues sin él no hay régimen democrático y

libertario que subsista”.100 E mais, para a FEUC, a ENU é uma cópia do

sistema educacional de países socialistas da Europa Ocidental, especialmente

da Alemanha Oriental. E aponta como comprovação dessa cópia a colabo-

ração, reconhecida pelo próprio ministro Jorge Tapia, de técnicos daquele

país em função das similitudes de ambos os sistemas educacionais.101

No que diz respeito aos aspectos jurídicos, a FEUC alegava que o Infor-

me feria as modificações realizadas na Constituição chilena em 1970, na

qual, no corpo do Estatuto de Garantias do Estado de Direito, a UP havia

se comprometido a respeitar as liberdades públicas e o pluralismo ideoló-

gico.102 Além disso, recorre ao artigo 10, nº 7, que, entre outras coisas,

afirma: “La educación que se imparta a través del sistema nacional será demo-

crática y pluralista y no tendrá orientación partidaria oficial.”103 O mesmo

artigo assegura independência às instituições de ensino privadas.

Já os aspectos pedagógicos foram apontados como vagos e imprecisos

pela FEUC,104 assim como todo o Informe da ENU.

De um modo geral, o documento da FEUC aponta que o Informe da

ENU era vago, autoritário, improvisado e contraditório. Nele, o aluno era

visto “como masa y no como persona, como grupo y no como individuo,

manifestándose una clara intencionalidad de despersonificación”.105 Os paisperdiam o direito de educar seus filhos, uma vez que, segundo a FEUC, oInforme quase impõe a obrigatoriedade do jardim de infância.106 E atingiatambém os professores, ao abrir o leque de quem poderia ser docente emfunção da educação realizada “por las masas”. Para a FEUC: ou os profes-sores se “massificam”, ou ficariam de fora.107 Ainda no que diz respeito àcadeia escolar, a ENU atingia também as instituições. A educação particu-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29542

543

A O P O S I Ç Ã O J U V E N I L À U N I D A D E P O P U L A R

lar estava sendo atacada diretamente em sua existência e na obrigação deadotar a estrutura curricular da ENU. E a formação docente estaria “presa”a apenas uma estrutura, impedindo, na visão da FEUC, a possibilidade decriatividade e desenvolvimento de alternativas curriculares.108

Em 12 de março de 1973, o jornal El Mercurio publicou parte do Infor-me sobre a ENU. No seu editorial fez duras críticas ao projeto do governo:

Basta examinar el texto del Informe para comprender la gravedad de lo que

ocurre. (...) Sin apoyo de ley alguna (...) el Superintendente plantea una re-

forma integral de educación chilena (...) de inspiración marxista leninista y

que se pretende sentar las bases de una ideología totatlitaria para hacerla

vigente desde la infancia hasta la ancianidad de los ciudadanos.

O jornal também ouviu representantes da oposição, dentre eles o sena-dor do Partido Nacional, Pedro Ibáñez, que avaliou a ENU como o “másrepudiable de los muchos abusos que ha cometido la Unidade Popular”.109

A ENU enfrentou a oposição de partidos políticos. O PDC expressou orechaço por meio do senador Patrício Aylwin,110 que respondeu em cadeiade rádio e televisão o discurso do ministro Jorge Tapia: “Hace tambiénindispensable que se garantice el caráter democrático, pluralista, sin orientaciónpartidária oficial.”111 No discurso “Chile enfrenta la escalada final del comu-nismo”, pronunciado em 13 de abril de 1973, o presidente do Partido Nacio-nal, Sergio Onofre Jarpa, afirmou que as universidades viviam um períodode retrocesso, acusou os comunistas de manterem o controle do InstitutoPedagógico, “donde se formam los maestros que han de enseñar a las geracionesfuturas”, e da Universidad Técnica del Estado, “que instruye a los jóvenesllamados a dirigir el desarollo industrial y tecnológico del país”. Ainda segun-

do o presidente os convênios entre a Universidad Técnica e as Forças Arma-

das tinham como propósito “ir eliminando la enseñanza técnica impartida

por escuelas e institutos militares”.112

Além do movimento estudantil e dos partidos políticos, a ENU provo-

cou também reflexos na Igreja Católica, que, apesar de reconhecer como

positivos alguns dos pontos do Informe (como a expansão do ensino, por

exemplo), pela primeira vez nos anos da UP se posicionou abertamente con-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29543

544

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

trária a um projeto do governo. Em 21 de março, o arcebispo de Valparaíso,

Emilio Tagle Covarrubias, declarou a La Tercera de la Hora, que “la Iglesia

no acepta que se imponga un tipo de política en la educación”.113 Menos de

um mês depois, em 11 de abril, a Conferência Episcopal publicou um do-

cumento no qual critica durante a ENU: “declaramos claramente que nos

oponemos al fondo le proyecto, por su contenido que no respeta valores

humanos ni cristiniamos fundamentales, sin perjuicio de sus méritos peda-

gógicos en discusión.”114 Por trás da revolta da Igreja está a política de

estatização das escolas privadas (maioria ainda estava sob o controle do clero

católico) e a implementação de valores humanistas ligados ao socialismo.

Todos esses setores, a exemplo da FEUC, alegavam que a ENU feria a

Constituição chilena e as leis complementares à educação.

Ao longo do ano de 1973, a FEUC estava cada vez mais no ataque ao

governo da Unidade Popular. Além do forte protesto contra a ENU, os es-

tudantes vão apoiar a greve dos mineiros de El Teniente. Em 15 de junho

de 1973, a FEUC recebeu os grevistas na Universidade Católica com o amplo

apoio do reitor Fernando Castillo Velasco.115 Na revista Presencia, publica-

ção oficial da FEUC, foi veiculada a reportagem “Los 12 días”. A matéria

descrevia a convivência entre os mineiros e os estudantes na Casa Central

da UC, considerada pelos estudantes “o asilo contra a opressão”.116 A ex-

periência foi vista não apenas como um conflito de sindicato-governo, mas

uma reflexão para a própria relação entre a sociedade e o governo, especi-

almente sobre o lugar da universidade.

Dias antes da recepção aos mineiros, em 3 de junho, a FEUC enviou

uma carta a Allende afirmando que o governo da UP destruiu a economia

nacional, desestimulou os jovens a seguirem uma carreira universitária, foi

repudiado pela maioria dos chilenos, suscitou o ódio na convivência inter-na e colocou em perigo a segurança externa do país. A carta culminava comum dramático pedido de renúncia do presidente eleito:

Es inútil que Ud. pretenda ya quedar como un hombre que gobernó bien a

Chile. Su desastre es ya definitivo. Pero todavía le queda a Ud. un último

recurso: quedar como un hombre que, reconociendo su fracaso definitivo como

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29544

545

A O P O S I Ç Ã O J U V E N I L À U N I D A D E P O P U L A R

gobernante tuvo al menos el patriotismo de evitarle al país las peores

consecuencias de sus desaciertos y atropellos. Quiera Dios que la conciencia

le haga escoger este último camino.117

Em 3 de setembro, às vésperas do golpe, a FEUC apoia mais uma mani-festação contra o governo. Dessa vez, o presidente Javier Leturia entregouo escritório da FEUC para Juan Jara, presidente da Confederacion deTransportistas, e León Vilarín, presidente da Confederación del Dueños deCamiones, para que dali os dirigentes das empresas pudessem coordenar agreve que desestabilizou de forma definitiva o governo da UP. O ato foicaracterizado pelos dirigentes como solidariedade estudantil.118 E, segundoafirmou Leturia, “los estudiantes estarán luchando junto as los transportistas,ya que nuestra universidad es un símbolo del gremialismo y para que estegremialismo triunfe, juntos lucharemos por la libertad”.119

Para o dia 11 de setembro estava marcada uma marcha juvenil para as11h30, com o intuito de exigir a renúncia de Allende. Foi chamada paraparticipar “toda la juventud estudiantil de la capital, tanto de enseñanzamedia como de la universitaria, sin distinción de colores políticos”.120 Amarcha não chegou a ser realizada, pois, como sabemos, desde o iníciodaquela manhã, o golpe já estava em curso.

A FESES teve uma trajetória bastante diferente da FEUC durante o go-verno da UP. Isso porque não havia o domínio de apenas uma correntepolítica e as disputas ocorriam entre os liceus, um ambiente muito maisamplo e diverso do que o universitário. Na FESES dos anos da UP encon-tramos o reflexo da disputa política, cultural e social que víamos no restan-te do país, tanto entre partidários pró e contra a UP quanto as disputastambém encontradas dentro da própria coligação governista. Um exemploé o fato de comunistas e socialistas não se entenderem sobre o lançamento

de um candidato conjunto no ano de 1969 ou quando, em 1972, não apoia-

ram o ministro da Educação.121 Direita, centro e esquerda disputaram

acirradamente os pleitos de 1971 e 1972, as primeiras eleições diretas da

organização, ou seja, todos os estudantes dos liceus votavam sem a necessi-

dade de delegados.122 Esse procedimento aumentou a base da FESES, mas

concedeu maior espaço para a participação da oposição.123

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29545

546

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

A eleição de 1971 foi vencida por Guillermo Yunge, candidato da De-

mocracia Cristã. A derrota dos representantes da UP foi avaliada como

consequência da falta de unidade da esquerda e a incorporação de estudan-

tes de “menor consciência política” com a instalação do voto direto.124 Na

imprensa de oposição à UP e entre os democratas-cristãos, a vitória de Yunge

mostrava o isolamento em que se encontrava a coligação governista e a

“capacidad que tenían los jóvenes (del más variado origen social) para liderar

un proceso de lucha por la libertad y la democracia, contra la manipulación

y el ‘totalitarismo marxista’”.125

Ainda assim, não encontramos nos anos 1970 e 1971, entre os estudan-

tes secundaristas, uma oposição declarada ao governo. Ao contrário, em

1970, mantendo uma longa tradição do movimento estudantil chileno, eles

participaram ativamente dos trabalhos voluntários convocados pelo Estado.

Isso apenas começou a mudar a partir do final de 1971, quando os debates

sobre a educação irromperam no cenário nacional.

Em 11 de abril de 1972, a FESES convocou uma greve de 24 horas con-

tra o Ministério da Educação. Segundo Flores, as razões alegadas foram:

“la escalada de tomas de liceos por parte de ultraizquierda y la ineficacia del

Ministerio para enfrentarlas, la falta de presupuesto universitario y sus efectos

sobre la matrícula y las dificultades de infraestructura y dotación de materi-

al didático”.126 No dia seguinte, parte dos estudantes secundaristas engros-

saria as fileiras da Marcha de la Democracia, que aconteceu na Avenida

Grecia e Salvador, em Santiago.

O ano de 1972, agitado pela ocupação dos Liceus e a nomeação dos

diretores, foi marcado por conflitos extremos entre os estudantes secunda-

ristas e autoridades da Educação, o que levou ao pedido de uma audiência

com o próprio Salvador Allende, que acabou por recebê-los. Ainda nessemesmo ano, incidentes violentos levaram à renúncia do ministro da Educa-ção Aníbal Palma Fourcade.

A escalada dos conflitos internos na FESES externados através das, cadavez mais recorrentes, ocupações dos liceus levou a organização a ter a maisacirrada de suas eleições. Com a estimativa de cerca de 70 mil votantes,disputaram o pleito anual: Miguel Salazar, representante da Democracia

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29546

547

A O P O S I Ç Ã O J U V E N I L À U N I D A D E P O P U L A R

Cristã; Camilo Escalona, da UP; Luis Valenzuela, do MIR; Andrés Allamand,dos partidos de direita; e María Eugenia Román, do Movimiento Espartaco,de cunho maoista. As cifras eleitorais acabaram sendo postas em dúvida,com acusações de fraudes de ambos os lados. Com isso, Salazar e Escalonase autoproclamaram vitoriosos, cindindo assim a FESES.

Em 29 de março de 1973, Escalona, então com 17 anos, se manifestoufavorável à ENU. Segundo o presidente, a FESES havia analisado toda adocumentação disponível sobre a proposta do governo e apontado aspec-tos positivos dessa proposta para a crise educacional.127 Quase um mêsdepois, em 26 de abril, a FESES se reuniu no Teatro Caupolicán, em Santia-go, para manifestar mais uma vez o apoio e a solidariedade à ENU e aosfuncionários do Ministério da Educação que estariam sendo caluniados pelosPartidos Democrata Cristão e Nacional. Para Escalona, “la oposición quiereutilizar los estudiantes como carne de cañon”.128

No entanto, como falamos anteriormente, a FESES se encontrava divi-dida, e a outra parte do movimento, liderada por Miguel Salazar, se mani-festava amplamente contrária à ENU. No mesmo dia 26 de abril, na frenteda Biblioteca Nacional, a outra FESES se reuniu para marcar posição con-trária. Era a disputa nas ruas por partidários pró e contra Allende. Naquelaocasião, Salazar se referiu ao ministro da Educação, Jorge Tapia, como “unmiserable porque trata de engañar a los estudiantes, pero nosotros sabemoscómo tratar a los miserables. Los personeros del Gobierno van a recibir sumerecido. Si el ministro no quiere entender por las buenas, los estudiantes seencargarán de hacerlos entender”.129

A grande concentração de manifestantes acabou em confusão, com pe-dras atiradas que acertaram estudantes e pessoas que passavam pelo local.A polícia acabou sendo chamada e usou jatos de água e bombas de efeitomoral. Ninguém soube precisar o início das agressões.

Com o adiamento da ENU, anunciado pelo governo no mês de abril,para que houvesse ainda mais debates, e com a cisão interna, o movimentoestudantil secundarista começou a dar sinais de cansaço e de esvaziamento.O que não impediu de manifestar apoio à greve de El Teniente com decla-rações públicas, participar de manifestações nas ruas e convocar uma grevede 24 horas em solidariedade aos mineiros.130

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29547

548

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

A tentativa de golpe frustrada de 29 de junho, o chamado Tanquetazo,

colocou a FESES em alerta e cautela. As manifestações de Salazar foramcontrárias à quebra do regime institucional chileno. No entanto, e como

temos afirmado ao longo deste texto, assim como a sociedade chilena, o

movimento secundarista estava bastante dividido, e setores de extrema-

direita, ligados especialmente à Juventude Nacional e ao Patria y Libertad,pressionavam a direção democrata-cristã a partir para uma plena ofensiva

contra o governo. Nas palavras acusatórias de Allamand, atualmente sena-

dor eleito, a direção da FESES estava com uma “conducta vacilante, titubean-te y preferentemente indefinida”, havia deixado de ser a “vanguardia de lalucha juvenil antimarxista”.131 Diante da forte pressão, Salazar convocou

mais uma greve para o dia 12 de setembro. Essa não foi necessária. O golpe

havia sido vitorioso na manhã do dia anterior.Por fim, devemos ressaltar que há um consenso de que, às vésperas do

golpe, o engajamento de parcelas da juventude chilena, a favor ou contra a

UP, e as disputas políticas precipitaram o amadurecimento desses jovens,

que reproduziam no interior de seus grupos os mesmos questionamentos econfrontos vistos na sociedade chilena naquele momento.132

Em busca de outras faces

O golpe de 11 de setembro de 1973 derrubou o governo da Unidade Popu-

lar e abriu caminho para uma ditadura que duraria 17 anos, sob a liderança

do general Augusto Pinochet.

Em 15 de setembro de 1973, dias após o golpe, o presidente da FEUC,Javier Leturia, declarou:

la adhesión irrestricta de los estudiantes de la Universidad Católica a la Jun-

ta Militar que rige los destinos de nuestro país (...) En este amanecer de la

patria, llamo a todos los estudiantes de Universidad Católica, a reintegrarse

a sus actividades académicas cuando la junta de gobierno lo disponga.133

A exemplo de outros governos autoritários do século XX, alguns inclu-sive discutidos no início deste texto, a ditadura pinochetista também vol-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29548

549

A O P O S I Ç Ã O J U V E N I L À U N I D A D E P O P U L A R

tou o seu interesse para os jovens.134 Devemos lembrar que se tratava deuma ditadura que derrubou a Unidade Popular, repleta de jovens, uma di-tadura que se deparava com o MIR, também marcado pela forte presençajuvenil, uma ditadura que teria eleições “não competitivas”, mas consultase plebiscito para a continuidade ou não do governo. Nesse sentido, os jo-vens adquiriram maior relevância e tornaram-se alvo de atenções, disputas,seduções e políticas próprias.

No Bando nº 4,135 o novo governo conclamava:

a la gente joven, más que nadie, debe confiar en los destinos superiores de

Chile y en las F.F.A.A. que serán las encargadas de velar por ellos. Se les hace

presente que la mejor manera en que pueden cooperar con las nuevas autori-

dades es obedeciendo los Bandos y las Instrucciones que se les dan.136

Ao mesmo tempo, foi uma ditadura que absorveu muitos integrantes dosmovimentos vistos anteriormente e que agora também queriam participardo governo. Não queriam estar fora dele, pois se sentiam no direito de rei-vindicar sua presença. E mais, jovens que desejavam o poder. É o caso dosgremialistas liderados por Guzman,137 figura-chave do pinochetismo e fun-dador da União Democrata Independente (UDI).138

A ditadura pinochetista criou três grandes secretarias: a dos sindicatos,a da mulher e a da juventude. A Secretaria Nacional de la Juventud não erauma experiência nova. Outros governos, inclusive a própria Unidade Po-pular, destinaram espaços próprios para os jovens. No caso ditatorial chile-no, a Secretaria foi o destino para alguns integrantes dos grupos queapoiaram o golpe, especialmente oriundos do movimento gremialista daFEUC, e também para os jovens que se formaram posteriormente a 1973nessa universidade. Foi através da Secretaria, propositalmente instalada noprédio da FECH, no mesmo balcão de onde Allende fez o seu primeiro dis-curso como presidente eleito, que muitos jovens começaram sua carreirapolítica, ainda que num contexto autoritário.

Para Huneeus, a Secretaria Nacional de la Juventud obteve maior êxitodo que as demais justamente por conta da presença gremialista, principalgrupo civil de apoio à ditadura, que tinha coesão e mística para impulsio-nar o trabalho pelo país.139 E para Valle,

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29549

550

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

lós jóvenes gremialistas se convirtieron con el tiempo no sólo en los nuevos

“líderes” que el gobierno militar designó para “dirigir” las organizaciones

estudiantiles en cada universidad, sino también en la columna vertebral de

la intervención militar entre la juventud, en los municipios y en la reforma

económica.140

Com o advento da ditadura, somente a FEUC pôde continuar funcio-nando.141 Já a FESES, outro objeto deste texto, foi proscrita, a exemplo dosdemais movimentos estudantis do período.

No entanto, nos secundaristas o apoio ao golpe havia deixado suas marcase uma memória extremamente negativa do período, que foi capaz inclusivede sobrepujar as ações de oposição à ditadura que esse mesmo movimentoliderou nos anos 1980. Somente através do documentário Actores secundá-rios, de 2004, em que a história de oposição ao pinochetismo e a presençanas ruas contra o governo foi contada, o movimento secundarista “fez aspazes” com o seu passado.142

***

Quando iniciei este texto chamei atenção para as recorrentes comparaçõesentre a geração 1968 e suas sucessoras. A ideia deste trabalho não é um “acertode contas” por meio do questionamento do caráter mítico atribuído à geração1968, trata-se de discutir a existência de outras vozes juvenis comumente si-lenciadas e, em alguns casos, transformadas em tabus para os pesquisadorespor romperem com a visão idealizada de uma época.

Nasci nos anos 1970 e faço parte de uma geração comumente adjetivadapor dois “ista”, ou seja, individualista e consumista. Na visão de Abramo,essa caracterização foi forjada a partir dos anos 1980, quando o declíniodos movimentos estudantis abriu espaço para essa idealização da geração1968 e a desqualificação para a política de outras manifestações juvenis.143

No entanto, procurei observar que os mesmos erros continuam a se re-petir ao termos uma visão homogênea do que é ser jovem em determinadomomento histórico. Engajada, alienada, de direita, de esquerda etc. sãorótulos ainda bastante evidentes entre os jovens de ontem e os de hoje. Neste

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29550

551

A O P O S I Ç Ã O J U V E N I L À U N I D A D E P O P U L A R

sentido, enquanto olharmos apenas os antagonismos entre gerações e man-tivermos a visão da juventude como unitária e força propulsora das trans-formações sociais, estaremos perdendo outras faces e, de certa maneira,desconhecendo a própria sociedade na qual os jovens estão inseridos.

Notas

1. A consagrada demanda “Sejamos realistas, peçamos o impossível”. Sobre o ano

de 1968, ver: KURLANSKY, Mark. 1968: o ano que abalou o mundo. Rio de

Janeiro: José Olympio, 2005, e ZAPPA, Regina e SOTO, Ernesto. 1968: eles só

queriam mudar o mundo. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

2. VENTURA, Zuenir. 1968, o ano que não terminou. Rio de Janeiro: Nova Fron-

teira, 1988.

3. KURLANSKY, op. cit., p. 13.

4. Para um debate mais aprofundado sobre a geração 1968 e as seguintes, ver:

URRESTI, Marcelo. “Paradigmas de participación juvenil: un balance histórico”.

In: BALARDINI, Sérgio (org.). La participación social y políticas de los jóvenes

en el horizonte del nuevo siglo. CLACSO — Grupo de Trabajo — Juventud, 200.

pp. 177-205, e ABRAMO, Helena. “Considerações sobre a tematização da ju-

ventude no Brasil”. In: Revista Brasileira de Educação, ANPED, nº 5, mai./jun./

jul./ago.; nº 6, set./out./nov./dez., 1997, pp. 25-36.

5. BOURDIEU, Pierre. “A ‘juventude’ é apenas uma palavra”. In: Questões de Socio-

logia. São Paulo: Marco Zero, s/d., p. 113.

6. CRUZ, Rossana. Emergencia de culturas juveniles. Colombia: Norma, s/d., p. 49.

7. PASSERINI, Luisa. “A juventude, metáfora da mudança social. Dois debates so-

bre jovens: a Itália fascista e os Estados Unidos da década de 1950”. In: LEVI,Giovanni; SCHMITT, Jean-Claude (orgs.). História dos Jovens. A época contem-porânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp. 319-382.

8. PÀMPOLS, Carles Feixa. “A construção histórica da juventude”. In: CACCIA-BAVA, A.; PÁMPOLS, Carles Feixa; CANGAS, Yanko (orgs.). Jovens na AméricaLatina. São Paulo: Escrituras, 2004, p. 257. Na mesma página, o tradutor Caccia-Bava esclarece que o mito de Jano está associado a muitas experiências históri-cas, mas “desde o aspecto temporal, a imagem de Jano se interpreta, habitualmente,como símbolo do passado (o perfil de um velho) e do porvir (o perfil de umjovem). Interpretação correta, ainda que incompleta, dado que entre o passado,que já não é, e o futuro, que ainda não é, encontra-se um terceiro e verdadeiro

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29551

552

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

rosto de Jano, invisível, que olha o presente, que em sua manifestação temporalnão é senão um momento inexequível. Não obstante, em sua manifestação trans-cendente do espaço-tempo, é eterno, contém toda a realidade”. A citação foiretirada pelo tradutor de GONZÁLES, José R. Jano, os solstícios e a Franco-maçonaria.

9. NOVAIS, Regina. “Juventude e participação social: apontamentos sobre a reinvençãoda política”. In: ABRAMO, Helena; FREITAS, Maria Virginia; SPOSITO, MariliaPontes (orgs.). Juventude em debate. São Paulo: Cortez, 2000, p. 46.

10. Idem.11. CARDOSO, R.; SAMPAIO, H. Bibliografia sobre a juventude. São Paulo: Edusp,

1995.12. Idem, p. 28.13. BOURDIEU, op. cit., p. 113.14. Aspectos considerados relevantes pelos autores aqui citados.15. NOVAIS, Regina, op. cit., p. 47.16. BOURDIEU, op. cit., p. 113.17. NOVAIS, Regina. “Apresentação: Juventude, conflito e solidariedade”. Comuni-

cações do ISER, no 50, ano 17, 1998, p. 7.18. CRUZ, Rossana, op. cit.19. MANNHEIM, Karl. Diagnóstico do nosso tempo. Rio de Janeiro: Zahar, 1980,

p. 51.20. Idem, p. 52.21. KNOPP, Guido. Los niños de Hitler. Barcelona: Planeta, 2005.22. MICHAUD, Eric. “Soldados de uma ideia: os jovens sob o Terceiro Reich”. In:

LEVI, Giovanni e SCHMITT, Jean-Claude (orgs.), op. cit., pp. 291-317.23. Idem. p. 291. Grifo do autor.24. SAVAGE, Jon. A criação da juventude. Rio de Janeiro: Rocco, 2009, p. 198.

Savage aponta ainda que as estruturas de resistência para os jovens eram muitopoucas, p. 293.

25. BARTOLETTI, Susan. Juventude hitlerista. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2006,p. 136. Embora não tenham sido julgados pelo tribunal internacional, a autoraaponta que alguns integrantes foram levados a tribunais populares.

26. PASSERINI, L., op. cit., p. 320.27. SIRINELLI, Jean-François. “A geração”. FERREIRA, Marieta; AMADO, Janaína.

Usos e abusos da História Oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996, p. 133.28. A FECH foi criada em 1907 e ao longo de todo o século XX teve um papel de

destaque no cenário chileno. De suas fileiras saíram líderes, como o próprio Salva-dor Allende, e em suas revistas Juventud e Claridad publicaram seus primeirostextos autores como Pablo Neruda e Gabriela Mistral. Sobre a história da FECH,

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29552

553

A O P O S I Ç Ã O J U V E N I L À U N I D A D E P O P U L A R

ver: CACCIA-BAVA, A.; PÁMPOLS, Carles Feixa; CANGAS, Yanko (orgs.). Jovensna América Latina. São Paulo: Escrituras, 2004, e MONGE, Diego G.,MADARIAGA, J.; BLANCO, Pablo. Los muchachos de antes: historias de la FECH1973-1988. Santiago: Universidad Alberto Hurtado, 2006. Site oficial: http://fech.cl

29. De acordo com o Informe Rettig o número oficial de mortos e desaparecidos daditadura chilena por ações de agentes do Estado ou particulares a seu serviço éde 3.195 pessoas. A maior parte é composta por integrantes da Unidade Popular,especialmente dos Partidos Comunista e Socialista, e do MIR. Infelizmente, orecorte por faixa etária feito pela comissão é acima ou abaixo dos 21 anos. Nessesentido, teríamos 2.359 homens maiores de 21 anos, e 633 abaixo dessa idade.No grupo das mulheres, 143 teriam mais de 21 anos, e 56, menos. O InformeRettig pode ser consultado no site: http://www.ddhh.gov.cl/ddhh_rettig.html

30. No Brasil, ainda está por ser feito um estudo sobre como os estudantes conserva-dores, longe da imagem mítica da UNE dos anos 1960 e 1970, ganharam no votoo direito de representação em várias instituições de ensino dos níveis médio esuperior, públicas e privadas. Esse debate foi levantado na defesa da tese “A lutaarmada gaúcha contra a ditadura militar nos anos 1960 e 1970”, de Fábio AndréGonçalves das Chagas, em 29 de agosto de 2007, no Programa de Pós-Gradua-ção em História da Universidade Federal Fluminense. O orientador do trabalhoera Daniel Aarão Reis Filho, e a banca, composta por mim, Denise Rollemberg,Francisco Carlos Palomanes Martinho e Luis Edmundo Moraes.

31. Sobre o tema, ver: POERNER, Arthur. O poder jovem. Rio de Janeiro: Civiliza-ção Brasileira, 1979.

32. Sobre o tema, ver: RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro. Record:São Paulo/Rio de Janeiro, 2000.

33. Site oficial: http://www.feuc.cl34. Pelo seu caráter armado, o grupo Pátria y Libertad será analisado em futuros

trabalhos. No entanto, devemos ressaltar que o próprio Jaime Guzmán foi inte-grante do conselho político do grupo entre 1970 e 1972.

35. CRUZ, R., op. cit.

36. Partidários do pinochetismo chegam a acusar a democracia cristã de ter entrega-

do o país ao comunismo. Ver: FERRER, Claudio. Cómo la democracia cristiana

entrego a Chile al marxismo (material obtido na sede da Fundação Augusto

Pinochet, Santiago — Chile), e ROBERT, Julio; PÁEZ, Francisco. Pinochet y la

restauración del consenso nacional. s.n: Santiago, 1998.

37. DEUTSCH, Sandra. Las derechas. La extrema derecha en la Argentina, el Brasil y

Chile 1890-1939. Buenos Aires: Universidad Nacional de Quilmes, 2005, p. 398.

38. O Partido Nacional se apresentou como uma alternativa entre a democracia cris-

tã e a esquerda chilena, defendendo a iniciativa e a propriedade privada e dese-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29553

554

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

jando uma ordem mais autoritária. Zárate, Verónica. “‘Crónica de una muerte

anunciada’: la disolución del Partido Nacional, 1973-1980”. In: VALDIVIA, V.;

ÁLVAREZ, Rolando; PINTO, Julio. Su revolución contra nuestra revolución:

izquierdas y derechas en el Chile de Pinochet (1973-1981). Santiago: LOM, 2006,

p. 19.

39. DEUTSCH, op. cit.

40. Ver: SALAZAR, Gabriel; PINTO, Julio. Historia Contemporânea de Chile V: nuñez

y juventud. Santiago: LOM, 2002, e SAGREDO, Rafael; GAZMURI, C. Historia

de la vida privada en Chile: el Chile contemporáneo — de 1925 a nuestro días.

Santiago: Taurus, 2007.

41. ALDUNATE, Arturo Fontaine. Todos querían la Revolución. Santiago: Zig Zag,

2000, p. 77.

42. A Declaração de Princípios encontra-se disponível do sítio oficial do MIR: http://

www.chile-mir.net

43. A FRAP foi formada em 1956 e reunia os Partidos Socialista, Comunista, Demo-

crático, Nacional Socialista Popular e do Trabalho.

44. Sobre o tema ver: QUADRAT, Samantha. A repressão sem fronteiras: Perseguição

política e colaboração entre as ditaduras do Cone Sul. Niterói: Programa de Pós-

Graduação em História da UFF, 2005. Tese de doutorado. Devo ressaltar que

não concordo com a tese, que aponta a intervenção estadunidense como a maior

responsável pela queda da UP.

45. ARRATE, Jorge; ROJAS, Eduardo. Memoria de la izquierda chilena — Tomo I

(1850-1970). Santiago: Javier Vergara Editor, 2003, p. 372. É uma referência ao

discurso de Frei em Parque Causiño, em 21 de junho de 1964, onde ele afirmou:

“ustedes, jóvenes que han marchado, son mucho más que un Partido, son mucho

más que un hecho electoral. Son verdaderamente la Patria Joven que se ha puesto

en marcha”. Esse e outros discursos de Frei estão disponíveis em http://

www.casamuseoeduardofrei.cl

46. Allende obteve cerca de 39% dos votos num total de 977.902. Interessante ob-

servar que na eleição seguinte, a que finalmente o levaria ao Palácio La Moneda,

Allende obteve um maior número de votos (1.075.616), mas com um percentual

abaixo do total, cerca de 36,63%. O que leva para o Congresso a decisão de

ratificar ou não o resultado obtido nas urnas.

47. Segundo Arrate e Rojas, como promoção popular o governo Frei está entenden-

do um amplo e intensivo programa de organização, integração e educação das

camadas mais pobres do Chile. As medidas iam desde reformas estruturais até o

incentivo para a organização dos grupos “marginais” (ARRATE; ROJAS, op. cit.,

p. 384).

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29554

555

A O P O S I Ç Ã O J U V E N I L À U N I D A D E P O P U L A R

48. GALDAMES, Osvaldo Silva. Breve Historia Contemporánea de Chile. México

D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1995, pp. 310-311.

49. Ver o site oficial: http://www.cpeip.cl/website/index.php. O Centro virou uma

referência em educação, reconhecida por várias instituições internacionais e ou-

tros países.

50. Lei nº 16.617, de 27 de janeiro de 1967. Citada por: SOTO, Mario L. “Los

inicios del Centro de Perfeccionamiento, Experimentación e Investigaciones Pe-

dagógicas (CPEIP)”. In: Docencia, nº 40, maio de 2010, p. 88. O CPEIP funcio-

nava informalmente desde 1964.

51. Idem, p. 86.

52. Idem. Ainda segundo Soto, a divisão atingia também os professores, formando

diferentes níveis entre os corpos docentes que chegavam até mesmo aos sindica-

tos. Professores do ensino secundário nos liceus eram formados nas universida-

des; professores do chamado primário e cursos técnicos nas Escolas Normais ou

Institutos Técnicos. Idem, p. 86.

53. Foi criada também uma rede de jardins de infância públicos que até então não

existia. Havia apenas instituições privadas. Idem, p. 89.

54. A Universidade Católica, por exemplo, só aceitou mulheres a partir de 1922.

55. GARRETON, M.; MARTINEZ, J. Antecedentes estructurales de las universida-

des chilenas. Santiago: SUR, 1985 (Biblioteca del Movimiento Estudantil — Tomo

5). Quadro 20, p. 73.

56. Como veremos, o governo da Unidade Popular também promoverá mudanças na

Educação.

57. GARRETON, M.; MARTINEZ, J. Universidades chilenas: história, reforma e

intervención. Santiago: SUR, 1985. (Biblioteca del Movimiento Estudantil —

Tomo 1), pp. 53-58.

58. Idem, p. 66.

59. Idem, p. 73.60. Infelizmente, pela delimitação do espaço deste artigo, não trataremos nem da

Universidad de Chile nem de Concepción e demais instituições. Ao todo haviaoito universidades no Chile nos anos 1960.

61. GARRETON, M.; MARTINEZ, op. cit. Tomo 1, p. 22.62. Até os anos 1960, por exemplo, a universidade exigia aos jovens postulantes de

uma vaga certificado de batismo, carta de um padre e recomendação de umapessoa de reconhecido prestígio que atestasse a boa conduta do candidato. KREBS,R.; MUÑOZ, M.; VADIVIESO, P. Historia de la Pontificia Universidad Catolicade Chile (1888-1988). Santiago: Ediciones Universidad Catolica de Chile, 1988,p. 484.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29555

556

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

63. GARRETON, M.; MARTINEZ, J. op. cit. Tomo 5, p. 21.64. Idem, p. 23.65. Mais adiante, nos 1970, surgirá ainda o Partido de Esquerda Cristã.66. HUNEEUS, Carlos. La Reforma Universitaria veinte años después. Santiago: CPU,

1988, p. 29.67. FLORES, Jorge Rojas. “Los estudiantes secundarios durante la Unidad Popular,

1970-1973”. In: Historia, nº 42, vol. II, jul./dez. 2009: 471-503, p. 472.68. Idem.69. “Cincuenta años de FEUC”. Documento enviado à autora no ano de 2007 por

Emilio Urriola, a quem agradeço.70. GARRETON, M.; MARTINEZ, J. op. cit. Tomo 5, p. 43.71. ARRATE; ROJAS, op. cit., p. 421.72. FRANCISCO, Alejandro. La toma de la Universidad Católica de Chile. Santiago:

Globo, 2007, p. 137.73. Idem, p. 139.74. DURRUTTI, Belén. Jaime Guzmán: el político de 1964-1980. Santiago: Ril, 2006.

pp. 41-42.75. Idem, p. 43.76. Idem, p. 44.77. HUNEEUS, Carlos. El régimen de Pinochet. Santiago: Sudamericana, 2000, p. 339.78. “Cincuenta años de FEUC”.79. GARRETON, M. e MARTÍNEZ, J. La reforma en la Universidad Católica de

Chile. Santiago: SUR, 1985 (Biblioteca del Movimiento Estudantil — Tomo 2),p. 42.

80. Idem.81. Idem, p. 65.82. VALLE, Fabio. “Se joven y no ser revolucionario’. La juventud y el movimiento

estudiantil durante la Unidad Popular”. In: ZAPATA, F. (comp.). Frágiles suturas.México D.F.: Fondo de Cultura Económica, 2003, p. 395.

83. Ver POZO, José del. Rebeldes, reformistas y revolucionários. Santiago: EdicionesDocumentas, 1992.

84. Tão logo se deu o triunfo de Allende, o Patria y Libertad convocou os jovensuniversitários para se reunirem na Casa Central da UC e realizar uma “marchadel silencio” pelas ruas do centro. SALAZAR, M. Roberto Thieme: el rebelde dePatria y Libertad. Santiago: Mare Nostrum, 2007, p. 76.

85. ALLENDE, Salvador. “Mensaje a los jóvenes”. In: Allende y la juventud. s/l: s/n,2003, p. 8.

86. Allende obteve 1.075.616 de votos enquanto o segundo lugar, Jorge Alessandri,1.036.278. O percentual de votos foi de 36,3% e 34,9%, respectivamente.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29556

557

A O P O S I Ç Ã O J U V E N I L À U N I D A D E P O P U L A R

87. Allende, Salvador. “Discurso en la Universidad de Guadalajara”, México, dic. de1972 citado por VALLE, Fabio, op. cit., p. 374.

88. O Programa de Governo da Unidade Popular está disponível em vários sites dainternet. Dentre eles: http://www.abacq.net/imagineria/frame5.htm

89. Idem.90. Idem.91. CUNHA, Luiz Antônio. “Ensino médio e ensino técnico na América Latina: Brasil,

Argentina e Chile”. In: Cadernos de Pesquisa, nº 111, São Paulo, dezembro de 2000.Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-15742000000300003

92. PRIETO, I. La ENU entre dos siglos. Santiago: LOM, 2003, p. 36.93. ALDUNATE, Arturo. Todos querían la Revolución. Santiago: Zig-Zag, 1999, p.

165.94. PINO, Miguel e TALAVERA, Arturo (editores). Los mil dias de Allende. Santia-

go: Centro de Estudios Públicos, 1997. Tomo 2, pp. 1.217-1.232.95. Idem, p. 1.218.96. PRIETO, I. op. cit., p. 7.97. VALDIVIA, Verónica. “Lecciones de una revolución: Jaime Guzmán y los

gremialistas, 1973-1980”. In: VALDIVIA, V.; ÁLVAREZ, R.; PINTO, Julio. Surevolución contra nuestra revolución. Santiago: LOM, 2006, p. 62. Ainda segun-do Valdivia, o gremialismo havia descoberto a importância da ação política nosanos 1960, ao mesmo que durante a Unidade Popular compreendeu que na lutapelo imaginário social e a demonstração de força era vital a mobilização. Idem,p. 62.

98. PINO, Miguel e TALAVERA, Arturo (editores). Los mil dias de Allende. Santia-go: Centro de Estudios Públicos, 1997. Tomo 1, p. 602.

99. FEUC. ENU: el control de las conciencias. Abril de 1973, p. 9.100. Idem, p. 18.101. Idem, p. 29.102. Idem, p. 34.103. Idem, p. 34.104. Idem, p. 47.105. Idem, p. 52.106. Idem, p. 52.107. Idem, p. 53.108. Idem, p. 54.109. ALDUNATE, op. cit., p. 164.110. Patricio Aylwin viria a ser o primeiro presidente eleito após a ditadura pela coligação

Concertación, que contava com o PDC e o PS dentre outros partidos, em 1989.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29557

558

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

111. Discurso pronunciado em 5 de abril de 1973. PINO e TALAVERA, op. cit. Tomo1, p. 617.

112. JARPA, S. “Chile enfrenta la escalada final del comunismo”. Santiago: PartidoNacional, 1973, p. 6.

113. PINO e TALAVERA, op. cit. Tomo 1, p. 607.114. El Mercurio — Idem, p. 620.115. Devido à militância dos seus dois filhos no MIR, Velasco parte para o exílio em

1974.116. PINO e TALAVERA, op. cit. Tomo 2, pp. 1255-1262.117. PINO e TALAVERA, op. cit. Tomo 1, pp. 659 e 660.118. PINO e TALAVERA, op. cit. Tomo 2, pp. 2845 e 2846.119. PINO e TALAVERA, op. cit. Tomo 1, p. 846.120. Publicado no El Mercurio de 11 de setembro de 1973. Citado por Valle, op. cit.,

p. 406.121. Para alguns autores, foram as disputas internas entre as esquerdas uma das princi-

pais razões para a queda da UP. Ver: AGGIO, A. “Chile de Allende: entre a derrotae o fracasso”. In: FICO, C.; FERREIRA, M.; ARAUJO, M.; QUADRAT, S. (orgs.).Ditadura e democracia na América Latina. Rio de Janeiro: FGV, 2008, pp. 77-94.

122. Não tivemos eleições em 1973 porque o pleito ocorria em novembro. Com ogolpe de 11 de setembro, a FESES foi fechada pela ditadura, assim como outrasorganizações estudantis.

123. FLORES, op. cit., p. 477.124. Idem, pp. 479.125. Idem, pp. 480.126. Idem, pp. 483.127. PINO e TALAVERA, op. cit. Tomo 1, p. 614.128. Idem, pp. 629-630.129. Idem, p. 630.130. Idem, pp. 647-648.131. FLORES, op. cit., p. 500.132. A ideia de amadurecimento precoce aparece em vários depoimentos de “ambos

os lados”. Ver: SALAZAR, Gabriel; PINTO, Julio. Historia Contemporânea deChile V: nuñez y juventud. Santiago: LOM, 2002.

133. VALLE, op. cit., p. 407.134. Até hoje, os seguidores de Pinochet se preocupam em transmitir ser legado para

as novas gerações. Ver: QUADRAT, Samantha. “Para Tata, com carinho!”: a boamemória do pinochetismo”. In: QUADRAT, S. V.; AZEVEDO, C.; BICALHO,M. F.; ROLLEMBERG, D.; KNAUSS, P. Cultura política, memória e historiografia.Rio de Janeiro: FGV, 2009, pp. 399-419.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29558

559

A O P O S I Ç Ã O J U V E N I L À U N I D A D E P O P U L A R

135. Trata-se das primeiras leis da ditadura. No bando 10, intitulado Ultimátum adirigentes, no qual a Junta de Governo das Forças Armadas e Carabineiros deChile convocam vários dirigentes de diversas orientações, inclusive os brasileirosJosé Maria Tabello e Teotonio dos Santos, constava também o nome do presi-dente da FECH, Alejandro Rojas. Eles deveriam se apresentar até as 16h30 dodia 11/09/1973 no Ministério de Defesa Nacional. GARRETON, Manuel Anto-nio. Por la fuerza sin la razón. Santiago: LOM, 1998, pp. 64-65.

136. Idem, pp. 58-59.137. Ver o site oficial da Fundação Jaime Guzmán: http://www.fjguzman.cl. Guzmán

foi assassinado em 1991, por um comando da Frente Patriótica Manuel Rodríguez,que em 1986, já havia tentado sem sucesso assassinar Pinochet. Em troca doapoio para a construção de monumentos a Allende, os senadores socialistas ne-gociaram com a UDI, em 1992, a reciprocidade para monumentos a Guzmán.Ver: HITE, K. “El monumento a Salvador Allende en el debate político chileno”.In: JELIN, E.; LANGLAND, V. (comps.). Monumento, memoriales y marcasterritoriales. Buenos Aires: Siglo XXI, 2003, pp. 19-55.

138. A UDI começou a atuar em 1983 e tinha como um dos seus principais integrantesAndrés Allamand. Ver o site oficial: http://www.udi.cl/sitio

139. HUNEEUS. Op. cit., p. 357.140. VALLE. Op. cit., p. 407.141. Apesar de ter enfrentado uma repressão em menor grau que a Universidade do

Chile, por exemplo, vários professores da Universidade Católica, alguns militan-tes do MAPU, foram exonerados, e estudantes, expulsos. O processo de reversãodas reformas foi levado a cabo por Jorge Swett, representante da Marinha nomea-do reitor-delegado pela Junta de Governo. Esse, por sua vez, nomeou integran-tes do gremialismo, alguns ex-dirigentes da FEUC, para postos-chaves nauniversidade.

142. Em 2006, o movimento secundarista voltou às ruas mais uma vez. Dessa vez, aRevolución de los pingüinos (por conta dos uniformes) foi contra uma presidentesocialista, Michelle Bachelet, e mais uma vez contra mudanças no ensino. Ver:ORTEGA, Juan et al. Me gustan los estudiantes. Santiago: LOM, 2006.

143. ABRAMO, Helena. Op. cit., 1997, pp. 25-36.

Bibliografia

ABRAMO, Helena; FREITAS, Maria Virginia; SPOSITO, Marilia Pontes (orgs.). Juven-tude em debate. São Paulo: Cortez, 2000.

Y920-01(Civilização).p65 4/5/2011, 16:20559

560

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

ABRAMO, Helena. “Considerações sobre a tematização da juventude no Brasil”. In:Revista Brasileira de Educação, ANPED, nº 5, mai./jun./jul./ago.; nº 6, set./out./nov./dez, 1997, pp. 25-36.

AGGIO, A. “Chile de Allende: entre a derrota e o fracasso”. In: FICO, C. FERREIRA;M. ARAUJO, M.; QUADRAT, S. (orgs.). Ditadura e democracia na América Latina.Rio de Janeiro: FGV, 2008, pp. 77-94.

ALBUQUERQUE, J. A. Movimento estudantil e consciência social. Rio de Janeiro, 1977.ALDUNNATE, Arturo. Todos querían la Revolución. Santiago: Zig-Zag, 1999.ALLENDE, Salvador. “Mensaje a los jóvenes”. In: Allende y la juventud. s/l: s/n, 2003.ARRATE, Jorge; ROJAS, Eduardo. Memoria de La izquierda chilena (1870-1970). San-

tiago: Javier Vergara Editor, 2003. Tomos 1 e 2.BARTOLETTI, Susan. Juventude Hitlerista. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2006.BOURDIEU, Pierre. “A ‘juventude’ é apenas uma palavra”. In: Questões de Sociologia.

São Paulo: Marco Zero, s/d.CACCIA-BAVA, Augusto; PÀMPOIS, Carles; CANGAS, Yanko. Jovens na América

Latina. São Paulo: Escrituras, 2004.CARDOSO, Ruth; SAMPAIO, Helena. Bibliografia sobre juventude. São Paulo: EDUSP,

1995.CAVALCANTE, Maria Juraci Maia. “O mito da rebeldia da juventude — uma aborda-

gem sociológica”. In: Educação em debate, Fort, 13 (1): jan./jun., 1987, pp. 11-23.CRISTI, Renato. El pensamiento político de Jaime Guzmán. Santiago: LOM, 2006.CRUZ, Rossana. Emergencia de culturas juveniles. Colombia: Norma, s/d.CUNHA, Luiz Antônio. “Ensino médio e ensino técnico na América Latina: Brasil,

Argentina e Chile”. In: Cadernos de Pesquisa, nº 111, São Paulo, dezembro de 2000.DEUTSCH, Sandra. Las derechas. La extrema derecha en la Argentina, el Brasil y Chile

1890-1939. Buenos Aires: Universidad Nacional de Quilmes, 2005.DURRUTTI, Belén. Jaime Guzmán: el político de 1964-1980. Santiago: Ril, 2006.

FLORES, Jorge Rojas. “Los estudiantes secundarios durante la Unidad Popular, 1970-

1973”. In: Historia, nº 42, vol. II, jul.-dez. de 2009: 471-503

FRANCISCO, Alejandro. La toma de la Universidad Católica de Chile. Santiago: Glo-

bo, 2007.

GALDAMES, Osvaldo Silva. Breve Historia Contemporánea de Chile. México D.F.:

Fondo de Cultura Económica, 1995.

GARRETÓN, Manuel et al. Por la fuerza sin la razón. Santiago: LOM, 1998.

——; MARTÍNEZ, Javier. Universidades chilenas: história, reforma e intervención.

Santiago: SUR, 1985 (Biblioteca del Movimiento Estudantil — Tomo 1).

——; La reforma en la Universidad Católica de Chile. Santiago: SUR, 1985 (Biblioteca

del Movimiento Estudantil — Tomo 2).

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29560

561

A O P O S I Ç Ã O J U V E N I L À U N I D A D E P O P U L A R

——; Antecedentes estructurales de las universidades chilenas. Santiago: SUR, 1985

(Biblioteca del Movimiento Estudantil — Tomo 5).

HITE, K. “El monumento a Salvador Allende en el debate político chileno”. In: JELIN,

E.; LANGLAND, V. (comps.). Monumento, memoriales y marcas territoriales. Buenos

Aires: Siglo XXI, 2003, pp. 19-55.

HUNEEUS, Carlos. El régimen de Pinochet. Santiago: Sudamericana, 2000.

——. La Reforma Universitaria veinte años después. Santiago: CPU, 1988.

KNOPP, Guido. Los niños de Hitler. Barcelona: Planeta, 2005.

KREBS, R., MUÑOZ, M.; VADIVIESO, P. Historia de la Pontificia Universidad Catolica

de Chile (1888-1988). Santiago: Ediciones Universidad Catolica de Chile, 1988.

KURLANSKY, Mark. 1968: o ano que abalou o mundo. Rio de Janeiro: José Olympio,

2005.

LEVI, Giovanni; SCHMITT, Jean-Claude (orgs.). História dos Jovens. São Paulo: Com-

panhia das Letras, 1996, vol. 2.

MANNHEIN, Karl. “O problema sociológico das gerações”. In: FORACCHI, M. M.

(org.). Mannheim: Sociologia. São Paulo: Ática, 1982.

——. Diagnóstico do nosso tempo. Rio de Janeiro: Zahar, 1980.

MARTINS FILHO, João Roberto. A rebelião estudantil. Campinas: Mercado de Le-

tras, 1996.

MONGE, Diego; MADARIAGA, José; BLANCO, Pablo. Los muchachos de antes. San-

tiago: Universidad Alberto Hurtado, 2006.

NOVAIS, Regina. “Apresentação: Juventude, conflito e solidariedade”. Comunicações

do ISER, n. 50, ano 17, 1998, pp. 5- 13.

ORTEGA, Juan et al. Me gustan los estudiantes. Santiago: LOM, 2006.

PINO, Miguel; TALAVERA, Arturo (eds.). Los mil dias de Allende. Santiago: Centro de

Estudios Públicos, 1997. Tomos 1 e 2.

POERNER, Arthur. O poder jovem. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.

POZO, José del. Rebeldes, reformistas y revolucionários. Santiago: Ediciones Docu-

mentas, 1992.

PRIETO, I. La ENU entre dos siglos. Santiago: LOM, 2003.

QUADRAT, Samantha Viz. “Para Tata, com carinho!”: a boa memória do pinochetismo.

In: QUADRAT, S. V.; AZEVEDO, C.; BICALHO, M. F.; ROLLEMBERG, D.;

KNAUSS, P. Cultura política, memória e historiografia. Rio de Janeiro: FGV, 2009,

pp. 399-419.

——. A repressão sem fronteiras: perseguição e colaboração entre as ditaduras do Cone

Sul. Niterói: Programa de Pós-Graduação em História/Universidade Federal

Fluminense, 2005.

RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 2000.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29561

562

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

——. “1968: rebeliões e utopias”. In: REIS FILHO, Daniel Aarão; FERREIRA, Jorge;

ZENHA, Celeste. O século XX: o tempo das dúvidas. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 2002, pp. 133-161.

ROBERT, Julio; PÁEZ, Francisco. Pinochet y la restauración del consenso nacional.

Santiago: s/nº, 1998.

SAGREDO, Rafael y GAZMURI, C. Historia de la vida privada en Chile: el Chile

contemporáneo — de 1925 a nuestro días. Santiago: Taurus, 2007.

SALAZAR, Gabriel; PINTO, Julio. Historia Contemporânea de Chile V: nuñez y

juventud. Santiago: LOM, 2002.

SALAZAR, M. Roberto Thieme: el rebelde de Patria y Libertad. Santiago: Mare Nostrum,

2007, p. 76.

SAVAGE, Jon. A criação da juventude. Rio de Janeiro: Rocco, 2009.

SIRINELLI, Jean-François. “A geração”. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO,

Janaína (orgs.). Usos e abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Fundação Getulio

Vargas, 1996, pp. 131-139.

SOTO, Mario Leyton. “Los inicios del Centro de Perfeccionamiento, Experimentación

e Investigaciones Pedagógicas (CPEIP)”. In: Docencia, nº 40, maio de 2010, pp.

85-91.

URREJOLA, Isidora Salinas. “Contrapunto: el rostro juvenil de la memória pino-

chetista”. In: JELIN, Elizabeth e SEMPOL, Diego (comps.). El pasado en el futuro:

los movimientos juveniles. Buenos Aires: Siglo XXI, 2006, pp. 137-142.

——. “Ecos y resignificaciones del pinochetismo. El rostro juvenil de la memoria”.

Mimeo.

URRESTI, Marcelo. “Paradigmas de participación juvenil: un balance histórico”. In:

BALARDINI, Sérgio (org.). La participación social y política de los jóvenes en el

horizontes del nuevo siglo. s/l: FLACSO, 2000, pp. 177-205.VALDIVIA, Verónica; ÁLVAREZ, Rolando; PINTO, Julio. Su revolución contra nuestra

revolución. Santiago: LOM, 2006.—— e ZÁRATE, Ortiz. El golpe después del golpe. Santiago: LOM, 2003.VALLE, Fabio. “Se joven y no ser revolucionario. La juventud y el movimiento estudiantil

durante la Unidad Popular”. In: ZAPATA, F. (comp.). Frágiles suturas. México D.F.: Fondo de Cultura Económica, 2003.

VENTURA, Zuenir. 1968, o ano que não terminou. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1988.

WENDLING, Manuel Fuentes. Memorias secretas de Pátria y Libertad. Santiago:Grijalbo, 1999.

ZAPPA, Regina e SOTO, Ernesto. 1968: eles só queriam mudar o mundo. Rio de Janei-ro: Zahar, 2008.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29562

CAPÍTULO 7 “Uma parte do povo uruguaiofeliz, contente, alegre”:os caminhos culturais do consensoautoritário durante a ditadura

Aldo Marchesi*Tradução de Maria Alzira Brum

*Professor de História do Instituto de Ciência Política da Facudade de Ciências Sociais daUniversidad de la Republica/Uruguai. Pesquisador do Centro de Estudos InterdisciplinaresLatino-americanos da Faculdade de Humanidades e Ciências da Educação da Universidadde la Republica. Autor de El Uruguay inventado. La política audiovisual de la dictadura,reflexiones sobre su imaginario. Montevidéu: Trilce, 2001, e coorganizador com VaniaMarkarian, Álvaro Rico, Jaime Yaffé de El presente de la dictadura. Estudios y reflexiones a30 años del golpe de Estado en Uruguay. Montevidéu: Trilce, 2004.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29563

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29564

Em um contexto autoritário em que a política é anulada, a cultura se apre-senta como um possível caminho para legitimar o poder estatal. No casouruguaio, a ditadura viu esta oportunidade. Por meio de certas propostasculturais, o regime tentou construir um caminho para consolidar e amplifi-car o possível apoio de setores da sociedade civil ao Estado autoritário.Aparicio Méndez, um dos presidentes do período, falando em uma das maisimportantes festas populares organizadas pelo regime, reconhecia que erauma nota reconfortante (…) ver uma parte do povo uruguaio feliz, conten-te, alegre sentindo-se dono do seu destino.1 A análise das maneiras como aditadura utilizou certas propostas culturais para construir consensos ao re-dor de “parte do povo uruguaio” é central para explicar um regime quepor sua duração e por seus efeitos não pode ser reduzido unicamente a suasdimensões repressivas.

A maioria dos analistas negou a existência de um projeto cultural daditadura e o fato de que legados desse projeto poderiam ter permanecidodurante o período democrático. Uma automática negação imperou nos pri-meiros enfoques. Um exemplo é um simpósio realizado em 1986 na Uni-versidade de Maryland-College Park, em que vários intelectuais se reunirampara pensar a cultura uruguaia no reinício da vida democrática. Os partici-pantes do simpósio analisaram a cultura na ditadura com conceitos tais comoescuridão, silêncio ou ausência. A maioria dos participantes, com maior oumenor tom melancólico, enfatizava tudo o que se perdeu durante o perío-do. Certamente isto era verdade, a ditadura perseguiu de uma maneira ter-rível a distintos atores culturais. Entretanto, enfatizando estas perdas, poucosintelectuais pareciam ver as transformações que a ditadura tinha criado emmatéria cultural.2

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29565

566

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Esta relativa ausência de reflexão a respeito da cultura oficial existente

foi uma tendência geral nas análises da ditadura durante os primeiros anos

de democracia. Em geral, os enfoques priorizaram a análise das dimensões

repressivas do regime, mas não atenderam às maneiras como essas políticas

repressivas em conjunção com outras, não necessariamente coercitivas, pro-

curaram gerar novos consensos ao redor do regime ditatorial. Tal memória

simplificada da ditadura foi funcional para diversos e contraditórios inte-

resses. Enquanto a ditadura se nomeava como “cívico militar”, na demo-

cracia o rol dos “colaboradores” civis pareceu dissipar-se da lembrança

coletiva. O discurso dos setores democráticos colaborou com a referida

omissão com sua ênfase na oposição civil militar. A ditadura era um regime

militar cujo único elemento para perpetuar-se no poder tinha sido sua polí-

tica repressiva. Alguns chegaram a compará-la com um exército de ocupação

estrangeiro que governava contra “nossas melhores tradições nacionais”.3

Embora efetivo na prática política, este tipo de discurso nublou certos as-

pectos importantes do regime. Por um lado, em alguns momentos o regime

tinha contado com certo apoio popular que tinha procurado amplificar. Por

outro, a ditadura não tinha sido um acidente na história nacional; grande

parte de suas propostas e suas ideias expressava uma longa tradição conser-

vadora que, embora nunca tivesse conseguido adquirir um papel tão pre-

ponderante, tinha existido ao longo do século XX.4

Na década de 1990 uma série de novos enfoques começou a questionar

de maneira mais aberta a respeito das transformações em diversos aspectos

da subjetividade e da cultura dos uruguaios durante o referido período.5

Propondo-se a indagar a relação existente entre as políticas culturais e as

buscas de consenso do regime, este artigo pretende ser uma contribuição

para a referida linha de trabalho. Considerando pesquisas anteriores, per-

correremos alguns aspectos da cultura oficial, analisando as políticas e as

instituições que contribuíram para a sua criação.

Embora a maioria dos enfoques a respeito da cultura tenha se centrado

na censura e na repressão cultural, nas consequências que o regime teve

sobre pessoas e produções culturais, aqui analisaremos a outra face da

moeda: aqueles que não receberam nenhuma ou escassa perseguição du-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29566

567

“ U M A PA R T E D O P O V O U R U G UA I O F E L I Z , C O N T E N T E , A L E G R E ”

rante o período. A repressão e a perseguição perpetradas pela ditadura no

campo da cultura serão entendidas em um contexto mais amplo, cujo obje-

tivo último foi avançar para um novo projeto de cultura. Portanto, para

entender algumas das apostas culturais centrais para o regime, indagare-

mos estas políticas repressivas em conjunção com outras políticas ativas que

a ditadura desenvolveu em alguns campos.

Serão variadas as instituições consideradas no artigo. Por um lado, as

instituições estatais associadas à cultura, tais como o Ministério de Edu-

cação e Cultura, o Serviço Oficial de Difusão, Radiotelevisão e Espetácu-

los (Sodre), as seções culturais das Intendências e o sistema educativo

formal. Todas estas instituições foram em maior ou menor medida milita-

rizadas. Durante o período o exército se transformou em um novo ator

imprescindível na hora de considerar as políticas culturais. O exército

transferiu pessoal militar para trabalhar em áreas chave dessas instituições.

Por outro, a Direção Nacional de Relações Públicas (Dinarp), uma insti-

tuição sui generis criada em 1975, que também teve um papel central como

censora e como promotora de diversas atividades culturais vinculadas aos

meios de comunicação.

No artigo também serão considerados alguns atores e instituições priva-

das que tiveram papel importante no desenvolvimento das propostas cul-

turais do regime. O período ditatorial promoveu o aparecimento de

determinadas associações culturais, meios de comunicação e intelectuais que

constituíram um tipo de paradoxal “sociedade civil” do regime ditatorial e

atribuiu um novo status a elas. Estes atores se conceberam e foram conce-

bidos pela ditadura como independentes do Estado, embora as autoritárias

condições que cercavam esta relação desafiassem a realidade desta referida

independência.

O artigo se estruturará a partir de uma periodização similar à que foi

sugerida por enfoques anteriores. No campo da cultura pode-se dizer que

também existiu um primeiro momento policial em que a prioridade foi

perseguir aqueles que eram considerados uma ameaça para o regime; um

segundo momento institucional em que se apostou em construir um novo

tipo de proposta cultural emoldurada em uma visão mais ampla a respeito

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29567

568

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

do que devia ser o “novo Uruguai” que os militares aspiravam a construirno período; e, por último, um terceiro momento em que este projeto ten-deu a dissolver-se no contexto da transição democrática.

OS DELEGADOS DA CULTURA (1973-1975)

O espaço em que a perseguição à cultura foi mais claramente institucio-nalizada e explícita foi a educação formal. No caso do ensino fundamentale secundário, o processo de perseguição expressou uma radicalização da-quele que tinha iniciado em administrações democráticas anteriores.6 Du-rante fevereiro de 1970 e junho de 1971, os Conselhos de Ensino Médio eUniversidade do Trabalho (UTU) sofreram intervenção do Poder Executi-vo com o objetivo de perseguir a suposta politização e infiltração marxistaque a educação pública estava sofrendo, na visão dos setores conservado-res e autoritários. Neste período existiram variados casos de perseguiçãoideológica a estudantes e docentes de esquerda. Em 1973, o Poder Legis-lativo votou uma lei de educação que dava maior influência ao Poder Exe-cutivo nas decisões do sistema educativo.

O que ocorreu depois do golpe de Estado foi uma radicalização quanti-tativa e qualitativa dos processos que já vinham se desenvolvendo. A desti-tuição de pessoal docente chegou a níveis impensáveis.7 Em 1974, o PoderExecutivo emitiu um decreto no qual declarava que “a carência de notóriafiliação democrática dos funcionários docentes, técnicos, administrativos,de serviços ou outros dependentes da Universidade da República constituicausa de destituição por inépcia”.8 O processo de destituição continuouaumentando nos anos seguintes, estabelecendo-se critérios cada vez maisestritos na perseguição ideológica. A universidade sofreu um tipo similarde perseguição, mas, diferentemente do ocorrido com o ensino fundamen-tal e secundário, as transformações perpetradas pela ditadura realmenteimplicaram uma ruptura definitiva com relação ao marco autonômico quea mesma tinha mantido durante o período democrático.9 Além das mudan-ças que isso implicou em matéria educativa, a perseguição política tambémgerou um colapso da pesquisa científica, que se concentrava principalmen-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29568

569

“ U M A PA R T E D O P O V O U R U G UA I O F E L I Z , C O N T E N T E , A L E G R E ”

te na Universidade da República. Os efeitos da repressão a diversos profes-sores transcenderam as mais previsíveis áreas das ciências sociais para in-clusive chegar a deter programas de pesquisa na área das ciências exatas.

No caso daqueles intelectuais, jornalistas e artistas que foram conside-rados pela ditadura “perigosos”, mas sobre os quais não existia nenhumaforma de controle, já que não pertenciam a nenhum âmbito da cultura es-tatal, os mecanismos básicos de controle foram a censura e a perseguiçãopolítica.

A censura teve diversas modalidades e manteve intencionalmente umcaráter ambíguo e confuso. Cinco organismos, nem sempre de forma coor-denada, dirigiram a censura: o Estado-Maior Conjunto, o Departamentode Informação e Inteligência, o Ministério do Interior, o Conselho da Crian-ça e as Intendências municipais. Nem sempre os critérios foram claros pe-los censores.10 Vários artistas, jornalistas e intelectuais que falaram a respeitode sua experiência com os censores mencionaram como o tipo de estratégiasem que estes não explicitavam claramente o que se podia e não se podiadizer tendia a promover a autocensura em suas próprias práticas.

Alguns desses mecanismos já tinham sido experimentados nos anos an-teriores durante as administrações de Pacheco e Bordaberry. Novamente, amaior diferença entre o período prévio e os primeiros anos da ditadura foisua expansão e efetividade. A censura agora se ocuparia de todos os âmbi-tos relativos à produção midiática e artística, e em poucos anos conseguiriaconstruir um sistema de meios totalmente dócil ao regime, sem nenhumtipo de expressão crítica, e simultaneamente reduzir ao máximo as expres-sões críticas dentro da produção artística.11

Enquanto a maioria dos meios maciços de comunicação rapidamente seadaptou às novas condições, a convivência dos artistas e intelectuais com oregime foi um pouco mais complexa. Aqueles membros que tiveram umforte compromisso com as propostas políticas da esquerda durante os anos1960 e primeiros anos da década de 1970 foram perseguidos, alguns cap-turados, e outros fugiram para o exterior, prevendo possíveis prisões.12

Aqueles que sobreviveram à primeira onda de perseguição porque suas pro-duções não tinham um perfil tão politizado, ou aqueles novos que emergi-am no contexto da ditadura, desenvolveram diversas estratégias para escapar

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29569

570

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

da censura e da perseguição. No caso da literatura, houve uma virada parauma poesia de tipo intimista13 e para o romance de tipo fantástico.14 Namúsica popular também existiu o mesmo tipo de mudança e uma tentativasutil de experimentar diferentes estratégias comunicacionais de crítica po-lítica que pudessem ser lidas pelo público, mas desconhecidas pelos cen-sores.15 O teatro, durante os primeiros anos, sofreu fortemente o embaterepressivo, e a aposta foi um repertório clássico.16 Os cientistas sociais quesobreviveram à perseguição se refugiaram em centros privados de pesquisae inicialmente tenderam a retrair sua participação na esfera pública.

A CULTURA DO “NOVO URUGUAI” (1975-1980)

Em 1975 começam a se delinear alguns aspectos do que será uma políticamais ativa no campo da cultura. O primeiro ensaio foram os festejos do“Ano da Orientalidade”.17 Isabela Cosse e Vania Markarian estudaram a“parafernália patriótica” dos eventos pelos quais a ditadura se propôs cele-brar o 150º aniversário da nação e os sentidos que a ditadura tentou atri-buir a essa comemoração. Embora as historiadoras deem conta de umarealidade contraditória, em que “as celebrações estiveram marcadas pelaimprovisação e pela urgência”, que inclusive “permite interrogar sobre suaqualidade de projeto”,18 essa pesquisa demonstra que tais eventos geraramideias e canais para promover a participação de atores civis:

A exaltação patriótica se converteu desse modo em um veículo adequado

para a conformação de núcleos de sociabilidade nos quais o governo pre-

tendia sustentar-se. Em 1975 a atração dos festejos históricos habilitou o

surgimento de uma série de iniciativas particulares, velando pronunciamen-

tos mais explícitos e fazendo da veneração nacionalista um modo privilegiado

de participação social.19

A criação, no mesmo ano, da Direção Nacional de Relações Públicas(Dinarp) na órbita do Poder Executivo antecipou o outro núcleo da propostacultural da ditadura: seu interesse nos temas relacionados à comunicação.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29570

571

“ U M A PA R T E D O P O V O U R U G UA I O F E L I Z , C O N T E N T E , A L E G R E ”

O decreto de sua criação delineava claramente o rumo. As consideraçõesdiziam, entre outras coisas, “que o processo revolucionário que orienta econduz o governo da República deve ser conhecido e compreendido pelaopinião pública, para efeitos de inclinar, com seu consenso e adesão à ob-tenção dos objetivos nacionais”.20

A Dinarp teria duas funções: por um lado, produzir informação e ativida-des que em seguida se amplificavam pelos meios de comunicação (algunsreproduziam quase de forma textual seus informes); ao mesmo tempo esteorganismo atuava como censor sobre a mídia.

Em síntese, “O Ano da Orientalidade” foi um ponto de inflexão na pro-posta cultural da ditadura: marcou o tom patriótico que no futuro teria suaproposta, impulsionou uma nova “sociedade civil”, que colaborará noseventos impulsionados, e, por último, criou um marco institucional (Dinarp),a partir do qual sua proposta adquirirá maior ressonância e coerência nosanos vindouros.

A partir de 1976, no contexto das transformações institucionais produ-zidas pelo regime, houve maior impulso às propostas culturais que tinhamsido impulsionadas no ano anterior.21 Como se tratava de uma real “refun-dação” do Uruguai, o projeto dos militares também requeria mudar asmaneiras como os uruguaios se relacionaram com sua cultura nacional nasúltimas décadas. A cultura do “novo Uruguai” devia ser construída comreferentes alternativos ao que tinha sido a cultura da década de 1960. Re-queria renovar o impulso nacionalista, debilitado como consequência dascrises anteriores, para convocar importantes setores da população na tare-fa de refundar uma nação que tinha estado à beira do colapso pela ameaçasubversiva. Este impulso nacionalista devia ser promovido num clima deconsenso por meio de um sistema de meios que o impulsionasse e de inte-lectuais que, nos distintos âmbitos da cultura, apoiassem esta refundação.O principal objetivo deste projeto eram os jovens, que estavam crescendonesse novo regime, pois eles eram a maior esperança para assegurar suacontinuidade. No campo cultural, estas apostas podiam ser sintetizadas emquatro aspectos: as políticas para a juventude, a exaltação patriótica, a cria-ção de um sistema dos meios oficialistas, e a promoção de uma nova con-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29571

572

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

cepção de intelectual, alternativa à predominante nas décadas anteriores.Estes aspectos eram necessários para seu ideal de novo Uruguai.

As políticas para a juventude

O governo expôs como prioridade a atenção daquelas gerações que cresciamnesta nova etapa. A viabilidade do ensaio fundacional dependia da forma-ção das novas gerações, uma vez que as anteriores eram irrecuperáveis. Ojornal El País, em um editorial de 1975, dizia:

falamos de uma geração perdida. Pois bem, ela equivale à passagem de qua-

tro ou cinco turmas de alunos pelo primeiro ciclo completo de escola secun-

dária, que é onde o rapaz adquire a atitude política que o sustentará como

homem (...) O resgate da nação no terreno psicológico, emocional e

intelectual (paralelamente à recuperação material) é uma tarefa de máxi-

ma prioridade.22

A violência da expressão “geração perdida” expressava a dureza comque foram atacadas as imagens representativas da geração anterior. O índi-ce mais importante de presos políticos pertenceu a esta geração, seus âmbitosde socialização educativos sofreram intervenções (secundária e universitá-ria) e suas organizações sociais foram dissolvidas.23 O governo nunca tevenenhum pudor em expressar de maneira explícita a dicotomia entre estageração e a de seus antecessores. Em 1980, no ato do Dia dos Caídos naLuta Contra a Rebelião, o orador, falando em nome da universidade, dizia:

A cidadania da República volta a acreditar em vocês (estudantes) e já não os

vê como rebeldes sem causa, nem como depredadores do bem coletivo. As

autoridades e professores de sua casa de estudo confiam no esforço e no afã

de superação de quem conserva limpo o coração.24

Era necessário encontrar novas formas e modelos de identificação juve-nis alternativos aos que se desenvolveram nos anos 1960. Esta busca teveque ver em sua maioria com aspectos culturais.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29572

573

“ U M A PA R T E D O P O V O U R U G UA I O F E L I Z , C O N T E N T E , A L E G R E ”

Um aspecto central desta ênfase sobre a juventude será o trabalho nocampo educativo. Depois do primeiro momento centrado na perseguição,junto a este interesse policial que continua sendo executado, acrescenta-seuma maior preocupação em renovar os recursos humanos, os conteúdosdos programas e o caráter da educação.

Em 1976 há uma mudança de programas no ensino médio; em 1977,nos institutos de formação docente; e, em 1979, a reformulação dos pro-gramas na educação primária. Todas as reformulações irão numa mesmadireção. As autoridades deram uma especial atenção aos conteúdos das ciên-cias sociais. Os programas foram reformulados seguindo os ditados de duasvertentes ideológicas que formavam parte do discurso oficial: a doutrinada segurança nacional e o catolicismo de ultradireita. Emma Massera eNiurka Sala resumem os principais valores nos quais estes programas esta-rão apoiados:

De um modo geral, é possível destacar os principais valores que informam a

visão de mundo transmitida pelos novos conteúdos da educação. Uma lista

dos conceitos fundamentais pode dar uma ideia: família, pátria, Estado-Forças

Armadas, trabalho, ordem natural, tradição, desigualdade, hierarquia, au-

toridade. Dentro de uma perspectiva totalizadora, beligerante e bipolar,

desempenhou também um papel importante a caracterização do “inimigo”

e de suas supostas formas de atuação, que vão da Enciclopédia e do liberalis-

mo ao marxismo, ao comunismo, à subversão, à dissolução social (feminismo,

aborto, adultério, homossexualismo, rebeldia estudantil etc., etc.) (...).25

A “formação do caráter” dos jovens que a ditadura buscava não remetiasomente aos aspectos programáticos. A transformação nos programas sedeu no contexto de um aumento das normativas disciplinadoras dentro dasinstituições educativas. Um estrito controle do uso do uniforme escolar, ocorte de cabelo dos meninos, as filas à maneira militar antes da entrada naclasse foram apenas alguns dos aspectos que progressivamente assemelha-ram a disciplina escolar a certos elementos da disciplina militar.

A militarização também se expressou no controle das instituiçõeseducativas. Em 1975 se deu “uma espécie de intervenção dentro da interven-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29573

574

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

ção, por parte das forças armadas” já que se criou a “Comissão Supervisorado Ensino, integrada por oficiais gerais com poder de decisão maior ao doMinistério de Educação”.26 Nesse sentido as transformações progressiva-mente tendiam a militarizar o conjunto do sistema educativo. Muitas vezesisso implicou o repasse de pessoal militar, que passou a desenvolver diver-sas tarefas acadêmicas em instituições educativas de todos os níveis (da es-cola primária à universidade).

Embora a maioria das destituições tenha sido realizada até 1976, depoisdeste ano as legislações internas continuaram marcando as característicasda perseguição e determinando claramente os limites do que os professorespodiam falar e o que não. Em 1978 o estatuto docente exigia a declaraçãode “fé democrática” da escola docente. Um ano mais tarde, uma nova re-gulamentação tinha como objetivo classificar o conjunto de todos os fun-cionários públicos em três categorias em relação aos seus antecedentesideológicos. Não só os professores foram perseguidos durante o período,vários livros foram retirados das bibliotecas das instituições educativas eautores clássicos vinculados às ciências sociais e à literatura foram suprimidosdos programas.

Na área do esporte o regime também realizou uma aposta importante.Por um lado, na área educativa a ditadura reimpulsionou a ComissãoNacional de Educação Física (CNEF). Nesta “nova etapa” a CNEF teráum papel central. Esta comissão adquirirá novas funções, obterá maiorautonomia, aumentará seus recursos e terá uma importante presença pú-blica. Na concepção militar a educação física tinha um papel importantena formação dos jovens. No dizer da CNEF: “a prática organizada e siste-mática da educação física se insere no processo de transformação do paísforjando uma juventude fisicamente apta, moralmente sã e mentalmentecapaz, protagonizando com seu patriótico esforço a afirmação de uma vidamelhor para todos os orientais.”27

O impulso da educação física se expressou de duas maneiras; por umlado com a obrigatoriedade da Educação Física como parte do currículo doensino fundamental e secundário, por outro, com a promoção de novas for-mas de sociabilidade juvenil controladas pelo Estado. Os Jogos AtléticosEsportivos Estudantis (Jade) organizados pelo Conselho Nacional de

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29574

575

“ U M A PA R T E D O P O V O U R U G UA I O F E L I Z , C O N T E N T E , A L E G R E ”

Educação (Conae) e a Comissão Nacional de Educação Física são um claro

exemplo desse tipo de empreendimento. Ao longo do ano, em diferentes

atividades se convocavam aproximadamente 150 mil jovens. Os eventos

tinham toda a cerimônia das celebrações olímpicas: desfile com bandeiras,

transporte da chama olímpica, pódio de vencedores, bandas musicais etc.

Geralmente estes eventos representavam oportunidade para inaugurar uma

série de instalações esportivas que os militares construíram especialmente

no interior do país.

Os militares também tentaram capitalizar politicamente os êxitos inter-

nacionais dos esportistas uruguaios. Todos os lucros esportivos são enfati-

zados pela imprensa do período em tom apologético. Isto foi particularmente

notório no futebol, em que os militares, aproveitando um período em que

as seleções juvenis obtiveram muito bons resultados no âmbito internacio-

nal, procuraram capitalizar politicamente estes êxitos. Estes simples triun-

fos esportivos são emoldurados em uma série de vitórias nacionais que está

desenvolvendo o “novo Uruguai”. O esporte se apresentava como um ele-

mento a mais da “pujança” que a nação adquiriu nestes anos. Na recepção

à seleção juvenil depois do campeonato de Cannes se decora o Estádio Cen-

tenário com uma infinidade de cartazes que dizem “Uruguai tarefa de

Todos”. O futebol foi mais uma ferramenta para gerar essa mística do im-

pulso nacional.

Este tipo de empreendimento contou com um importante apoio de or-

ganizações civis de bairros, que promoveram estas atividades fundamental-

mente entre crianças e jovens. Os clubes profissionais de futebol também

participaram destas iniciativas. Depois que o regime militar interveio na

Associação Uruguaia de Futebol, o tradicional relacionamento entre atores

políticos e clubes de futebol foi reconfigurado para efeito de obter melhor

adaptação dos clubes às demandas da ditadura. Em síntese os empreendi-

mentos na área esportiva foram o resultado de um forte impulso estatal,

mas também necessitaram da colaboração de diversos atores civis, sem os

quais tais atividades teriam sido impossíveis.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29575

576

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

O patriotismo do novo Uruguai

A exaltação nacionalista foi outro caráter central do período e difícil decircunscrever a uma instituição específica. Embora tenham existido algu-mas instituições, como a Dinarp, que tiveram papel importante na promoçãode certos eventos, a exaltação nacionalista invadiu as mais diversas institui-ções estatais e espaços públicos. As transformações urbanas do período, ascerimônias patrióticas nas instituições educativas e públicas, os desfiles cí-vico militares, a euforia escultórica relacionada com a figura de Artigas sãoapenas algumas amostras desta expansão.28

Nesta seção trabalharemos com um exemplo que no nosso modo de verfoi paradigmático para entender os sentidos que se tentou atribuir à naçãodurante o período e o projeto que se tentava construir por meio destaexaltação.

Desde 1971 se realizava a chamada Semana de Lavalleja no interior dopaís. Nela se comemorava a vitória das tropas “orientais” lideradas porLavalleja na batalha do Sarandi contra o exército brasileiro de ocupaçãoem 1825. A partir de 1975 (certamente no contexto do ano da orientali-dade), esta comemoração adquiriu uma relevância particular. Em torno deuma ideia do coronel Pascal Cirilo, da divisão de Exército NE IV, criou-se“a noite das fogueiras”. Esta atividade consistia na realização de uma vigí-lia coletiva, na colina Artigas, durante a madrugada de 12 de outubro.Faziam-se fogueiras “na mais típica maneira oriental” ao redor da colinaonde está a estátua equestre de Artigas.29 As fogueiras eram organizadas pelasinstituições de ensino, pela divisão do exército IV, pelo próprio comitê exe-cutivo organizador da semana de Lavalleja, por empresas locais e associa-ções nativistas. Em cada fogueira se desenvolviam atividades folclóricas, taiscomo cantos, danças, o típico mate amargo, assado com couro. À meia-noite, a multidão cantava, com caráter de hino: “A don José.” Enquantotudo ficava às escuras, potentes refletores iluminavam a gigantesca estátuaequestre que se encontrava no topo da colina. O efeito era impactante, aestátua aumentava de tamanho e parecia suspensa no céu. O presidente daRepública Aparicio Méndez lembrava esse momento da seguinte maneira:

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29576

577

“ U M A PA R T E D O P O V O U R U G UA I O F E L I Z , C O N T E N T E , A L E G R E ”

Fui tocado também por esse amanhecer de 12 de outubro com a figura do

herói iluminando-se lentamente, acendendo como continua acendendo o

coração dos orientais. Olhando aquele perfil contra o céu iluminado pensa-

va também que grande figura é a deste homem para que à medida que passa

o tempo a devoção de seu povo aumente e aumente e continue aumentan-

do, acredito, indefinidamente.30

Logo depois desse ritual se alternavam diversos espetáculos massivos,que iam de recitais folclóricos, dramatizações e fogos a espetáculos de luzes.31

Ano após ano a imprensa nacional atribuiu maior importância ao even-to; em 1978, os jornais de maior tiragem, El País e El Día, publicavam anotícia como capa. Informavam que 20 mil pessoas tinham participado doevento. O presidente, que participou quase todos os anos do evento, mos-trou sua satisfação por esta manifestação popular:

É a mensagem que deixo ao povo de Minas; o de gratidão por esta evocação

histórica, o agradecimento pelo esforço que tem feito para estar presente e

a nota reconfortante que significa ver uma parte do povo uruguaio feliz,

contente, alegre sentindo-se dono de seu destino, como sonhamos e como o

queremos.32

No dia seguinte se realizava um desfile cívico militar na cidade e se inau-guravam diversas obras públicas. Ao longo da semana realizava-se uma in-finidade de atividades sociais e esportivas.

O Prócer José Gervasio Artigas terá um lugar privilegiado neste evento.Embora o “culto” a Artigas (termo cunhado por P. Devoto) tenha sido umelemento chave da identidade do Uruguai contemporâneo, a ditadura odesenvolveu de uma maneira extrema.33 A ritualização de sua lembrançacresceu de maneira insólita. A ditadura pôs especial cuidado neste culto, jáque em sua visão não somente representava o passado, mas também con-tinha um tipo de sagrada essência nacional, e então seu culto adquiria umadimensão comparável ao culto das relíquias religiosas. Das práticas e daspalavras se desprendia uma espécie de sacralização de sua figura; usavam-se termos como “peregrinação” e “vigília” para atividades que realizavam.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29577

578

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

A noite das fogueiras que ano após ano se realizava no departamento daLavalleja exemplifica estes aspectos aos quais fazemos menção.

Na visão da ditadura, o “Prócer” era o fundador de dois aspectos cen-trais do Uruguai: a nação e o exército. A figura de Artigas condensava estesdois aspectos que estavam em questão no projeto institucional do “novoUruguai”. A segunda independência ou refundação nacional eram concei-tos utilizados para expressar o desejo de liberar definitivamente a nação daameaça subversiva que tinha sofrido nas últimas décadas.

Nenhum destes aspectos foi novo por si só. Esta visão expressava as cren-ças que alguns setores conservadores da sociedade e o Exército tinham so-bre Artigas, simplesmente durante a ditadura esta visão se expandiu aoconjunto da sociedade e não contou com contrapesos. O que tinha muda-do era o contexto autoritário, em que todas estas celebrações se transfor-maram em inquestionáveis, e era difícil expor uma versão diferente doArtigas sacralizado.

A ditadura constantemente se preocupará em mostrar a dimensão po-pular destes eventos. Ali participavam os diferentes esquadrões militares,os escolares, secundaristas, sociedades “nativistas” por meio de suas “cava-larias gaúchas”, muitas vezes trabalhadores públicos de forma obrigatória,e diversos atores da sociedade civil. A imprensa oficial cobria a participa-ção popular nestes eventos como uma demonstração da legitimação popu-lar que a ditadura tinha. Legitimação que não fugia de uma lógica “moderna”e “democrática”. A ideia era que o “povo na rua” expressava o apoio aogoverno. Entretanto este não era todo o povo. Nas incrivelmente honestaspalavras do presidente Aparicio Méndez esta era a “parte do povo uruguaio”que se sentia “feliz, contente, alegre sentindo-se dono de seu destino, comoo sonhamos e como o queremos”, assumindo que existia outra parte dopovo uruguaio que não se sentia tão feliz com o novo regime.

Os motivos da participação popular eram diversos: para alguns foi obri-gatório como consequência de seu lugar de trabalho, para outros simples-mente estes lugares foram um espaço de socialização, mas para outrosimplicou uma forma de apoio explícito e implícito ao regime. O compro-misso com este tipo de eventos não se limitou à mera participação, mastambém à preparação de diversos eventos sociais durante as semanas préviase posteriores aos 12 de outubro.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29578

579

“ U M A PA R T E D O P O V O U R U G UA I O F E L I Z , C O N T E N T E , A L E G R E ”

O terceiro aspecto destas demonstrações é que nelas se estabeleceu umvínculo de tipo essencialista entre certas tradições culturais e a identidadenacional. Existia uma só cultura nacional, que era a que se promovia nesteseventos. Essa proposta cultural basicamente se reduzia a uma visão ideali-zada de certos fenômenos da vida rural do século XIX. A “essência” destatradição tinha como referência histórica o que poderíamos chamar culturagaúcha. O “gaúcho” era o elo entre o presente e o passado heroico. Embo-ra a cultura gaúcha tenha desaparecido a partir da primeira modernização,durante todo o século XX existiram diversos grupos que revalorizaram eprocuraram manter algumas de suas práticas e costumes. A ditadura se ins-tala nesta linha, tentando revitalizar certos aspectos desta cultura, mas comum grau de manipulação política maior que outras experiências prévias eposteriores.34

A experiência da semana da Lavalleja é um modelo das maneiras comoa ditadura, por meio de sua ritualística patriótica, tentou construir consen-sos no interior do país mostrando uma espécie de idílio entre “sociedadecivil” e “governo”. O desfile cívico militar e a reunião entre “governo” e“forças vivas” de cada localidade eram cerimônias obrigatórias cada vez queum governante viajava para o interior do país. Tais cerimônias tentavamenfatizar o compromisso do regime com aqueles setores que eles conside-ravam realmente patrióticos. Neste tipo de diálogo os militares foram ca-pazes de estabelecer interlocutores locais. As “forças vivas” de cada lugarforam as associações de empresários, comerciantes e grupos nativistas inte-ressados em manter “as tradições nacionais”. Esta aposta não se expressouapenas em términos simbólicos, mas também numa expansão de obras pú-blicas em localidades que tinham sido desatendidas por governos anteriores.

A voz única dos meios

Depois dos primeiros anos a censura nos meios de imprensa decresceu. Istonão foi o resultado de uma suavização das medidas do regime autoritário,mas, pelo contrário, a mais clara demonstração de que as medidas impulsio-nadas nos primeiros anos tinham sido efetivas para controlar e promover aautocensura nos jornalistas e empresas. Depois de 1975 criou-se um siste-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29579

580

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

ma de meios no qual já não existiam opositores ao regime. Os meios deimprensa escrita, falada ou televisada que sobreviveram tiveram uma rela-ção muito boa com o governo, inclusive em alguns casos assumindo postu-ras mais radicais que o mesmo regime em temas críticos como a política dedireitos humanos, o processo de abertura, ou a política econômica. Nestesistema o trabalho da Dinarp foi relativamente fácil, marcando a agendados meios e influindo em algumas áreas da cultura.

Dentro deste sistema de meios de comunicação a televisão teve papelcentral durante a década de 1970. As razões não estiveram vinculadas ne-cessariamente à ditadura, mas a processos econômicos. Embora iniciada nosanos 1960, a expansão da televisão em relação à década anterior levou aque a grande maioria dos lares tivesse pelo menos um aparelho de TV. Atelevisão se transformou em um espaço central na vida cotidiana da família.Esta transformação estrutural assumiu no caso uruguaio um caráter parti-cular como resultado da coincidência entre expansão televisiva e emergên-cia autoritária.

Inicialmente os militares consideraram a possibilidade de estatizar a te-levisão privada, mas rapidamente entenderam que isso era desnecessárionum sistema de meios em que os empresários televisivos eram potenciaisaliados do novo regime.35 A incidência sobre a televisão se deu através dascadeias televisivas, da censura nos noticiários e do fomento econômico,através de publicidade, a certo tipo de programas de entretenimento.

As cadeias oficiais tinham duas orientações. Por um lado, o uso cons-tante da propaganda persecutória, como ameaça para todo tipo de opositor,e por outro, a propaganda “construtiva”, criada para dar uma imagem po-sitiva do novo regime, que alguns qualificavam de “revolucionário”.

A censura e o controle foram aplicados fundamentalmente aos noticiá-rios. O formato dos mesmos foi alterado como consequência da ausênciade áreas específicas de informação, que eram censuradas pela ditadura. Amais notória foi a seção política. Após a proscrição dos partidos políticospouco havia para dizer nesta área. A crônica policial também foi suavizadaa fim de não promover imagens alarmistas a respeito de questões vincula-das à segurança. Em síntese o espaço de informação nacional foi reduzido,e como consequência direta o tempo dos noticiários também. O regime

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29580

581

“ U M A PA R T E D O P O V O U R U G UA I O F E L I Z , C O N T E N T E , A L E G R E ”

alterou ainda as práticas jornalísticas. Durante o período as entrevistas seresumiam unicamente àquelas que eram expressamente autorizadas pelogoverno. O trabalho do jornalista se resumia unicamente a ser um trans-missor daquilo que a fonte autorizada queria dizer.36 Vários comunicadosnoticiosos da Dinarp eram textualmente reproduzidos na televisão ou im-prensa escrita.

A programação também foi alterada durante o período. Novamente acoincidência entre fatores políticos e econômicos tendeu a influir nas trans-formações da programação. Como consequência da utilização de novossuportes técnicos, a produção estrangeira começou a ser mais convenienteem termos econômicos para os empresários televisivos. Isto, em conjunçãocom a perseguição a muitos atores que tinham participado de experiênciastelevisivas anteriores, tendeu a aumentar a produção estrangeira em detri-mento da produção nacional. Os programas nacionais que se conservaramdurante o período eram principalmente de entretenimento. Em muitos ca-sos, vinculados com determinadas políticas do regime, tais como o desen-volvimento da educação física, o folclore e a família.

Procuram-se intelectuais…

A ditadura não teve intelectuais ou artistas. Esta parece ser uma crença com-partilhada até pelos próprios ditadores. Os efeitos dos anos 1960 parecemter sido tão fortes no campo da cultura que, quando a ditadura começou aprocurar possíveis intelectuais orgânicos para seus projetos, o deserto queeles tinham criado era notório. Embora a ditadura tenha tentado promo-ver expressões culturais que tivessem caráter oficioso, em sua grande maioriatais projetos fracassaram por não contar com um corpo de intelectuais ca-pazes de impulsioná-los.

No campo literário Teresa Porzecanski descreve sinteticamente o novocontexto de produção literária durante a ditadura, no qual, por meio de“concursos diversos nos meios de comunicação de massa estimularam aemergência dos certamente ‘escondidos talentos’ que a cultura oficialistase empenhou em descobrir, para reconstituir rapidamente os ocos deixa-dos pelos vedados” e conclui que “boa parte destas obras enclausurou, en-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29581

582

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

tretanto, as expectativas agenciadas pela crítica, ao não se sustentar em suaqualidade”.37 Mabel Moraña, comentando alguns desses empreendimen-tos no campo da poesia, também reiterou o caráter efêmero dos novos es-critores do regime.

Os militares também tentaram desenvolver o cinema nacional. Emboratenham desenvolvido uma área de produção cinematográfica a cargo doEstado, a busca de artistas que pudessem ser funcionais ao seu projeto foimuito mais difícil. Os resultados foram minguados. Durante o período pro-duziram um único filme de ficção que não conseguiu obter muito impacto.38

No campo da música popular houve preocupação com o impulso de umnovo tipo de folclore de corte nacionalista que ficou distante da cançãopolítica de fins dos anos 1960. O resultado desta preocupação não se tra-duziu no surgimento de uma nova geração de folcloristas explicitamentefiliados ao regime. No entanto, diferentemente do ocorrido na literatura,no caso da música as apostas da ditadura tiveram alguns tímidos resulta-dos, tais como a expansão de festivais no interior do país, criando a já men-cionada semana de Lavalleja, concursos folclóricos procurando novostalentos e a promoção de alguns músicos oficialistas que chegaram a terrelativo grau de reconhecimento público.

No campo das ciências sociais à primeira vista a ditadura também nãoparece ter desenvolvido nenhuma política efetiva de substituição. Em suagrande maioria os cientistas sociais tinham assumido uma virada à esquer-da durante fins dos anos 1960 e princípio de 1970, grande parte deles foiexpulsa de seus postos de trabalho nas instituições públicas, onde a maioriapesquisava. Entretanto, ocorreram certas transformações no campo inte-lectual durante o período que, embora não suficientemente estudadas, pa-recem ter sido promovidas pelo contexto ditatorial.39 Uma notória é osurgimento de uma nova figura de intelectual: o tecnocrata que de um tipode argumentação técnica, discursivamente apolítica, propõe uma espéciede transformação modernizadora radical da sociedade afinada com os pro-cessos de abertura econômica que começam a ocorrer no mundo durante adécada de 1970.

No Uruguai o surgimento desta nova tecnocracia esteve fortemente rela-cionado ao desenvolvimento de uma revista mensal sobre temas econômicos

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29582

583

“ U M A PA R T E D O P O V O U R U G UA I O F E L I Z , C O N T E N T E , A L E G R E ”

chamada Búsqueda que começou a ser publicada em 1972. A particularidade

do caso uruguaio, assim como de outros países do cone sul, é que esta nova

concepção a respeito da relação entre conhecimento e política se deu sob um

regime autoritário.40 Esta revista representou a única elite intelectual que a

ditadura permitiu existir com uma relativa autonomia com respeito ao regi-

me. Gustavo De Armas e Adolfo Garcé apontaram o caráter inovador desta

publicação, já que representou o surgimento de uma perspectiva crítica so-

bre o Uruguai que não foi gerada pela esquerda, como tinha ocorrido duran-

te as décadas anteriores com a preponderância do semanário Marcha na cultura

uruguaia. Esta “consciência crítica” de Búsqueda transcendia claramente o

econômico para sugerir uma visão mais ampla sobre o Uruguai moderno. A

tentativa de Estado de bem-estar desenvolvido pelo modelo batllista era

acidamente descrito como resultado da “politicagem”, da corrupção e de um

protecionismo negligente que alterou a inserção do Uruguai no mercado in-

ternacional. Ramón Díaz dizia em 1981:

Se queríamos encontrar um símbolo do Uruguai pretérito, esse que se des-

pedaçou em 1973, depois de longa e cruel decadência, que um difundido

consenso acredita que não deve voltar jamais, que melhor emblema que a

Caixa de Aposentadorias? (…) E se quiséssemos especificamente simbolizar

a politicagem que marcou indelevelmente aquela época, não seria a velha

Caixa o distintivo adequado? (...) Por isso é difícil compreender como o re-

gime atual, que às vezes dá mostras de haver se proposto sinceramente a

sanear o país, pode ter decidido preservar basicamente o mesmo regime,

depurado de algumas de suas piores corrupções, mas basicamente o mesmo

de sempre; o mesmo em seu centralismo (…), em seu burocratismo, em sua

prodigiosa ineficiência, e sobretudo em sua flagrante aptidão para voltar a

cair nas garras dos politiqueiros e politicagens da próxima jornada.41

Este texto evidencia o tom em que esta publicação se referia à dita-dura e ao passado. Assumia-se que o Uruguai anterior ao golpe erainviável, reconhecia-se boa vontade no regime e por último se pedia maisradicalidade em suas reformas econômicas. O campo específico da polí-tica geralmente era obliterado ou ressignificado com noções como esta-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29583

584

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

bilidade para apontar as virtudes que o regime ditatorial tinha tido paraa economia. Nos casos em que se referiam diretamente à política as opi-niões seguiam as mesmas linhas expostas por outros meios oficialistasdo momento. A política estava associada à corrupção e a um tipo de re-gime que não devia voltar a se repetir. Inclusive em temas sensíveis deum ponto de vista liberal, como o problema dos direitos humanos,Búsqueda assumia um papel oficialista.

Em um clima de censuras e perseguições esta revista não teve nenhumproblema, recebeu apoio estatal, e em finais da década se transformou emuma publicação semanal. O motivo é que esta “consciência crítica” nãoimplicava nenhum desafio para o regime e se adequava claramente a suasdemandas por algum tipo de organicidade no campo intelectual. ComoGarcé e De Armas apontam, esta publicação continuou sendo uma referênciano campo intelectual no retorno à democracia e gerou uma reconfiguraçãodaqueles que participavam da construção do mesmo.

Em síntese, nesta parte examinamos diversas apostas culturais com asquais a ditadura buscou construir novos consensos ao redor de sua tentati-va institucional. Mas como emerge em cada parte, estas estratégias não sereduziram a um fenômeno discursivo, mas também à busca de atores den-tro da sociedade civil que pudessem contribuir e ser partícipes da constru-ção do “novo Uruguai”. Os projetos anteriormente descritos não teriamsido possíveis se não tivessem contado com o apoio e orientação de gruposprivados. Grupos muito diversos, que vão desde associações tradicionalis-tas locais até grandes meios de comunicação, passando por empresários,clubes esportivos ou tecnocratas, que souberam aproveitar as “oportunida-des” do “novo Uruguai”. O regime recorreu a eles para reforçar a ideia deque, além das condições ditatoriais, era possível um diálogo entre o gover-no e aqueles setores da sociedade civil que aceitassem as normas do jogoautoritário. Onde esta estratégia resultou mais bem-sucedida foi na culturaoficial, gerando certas adesões e consensos que tiveram efeitos de longoalcance, inclusive transcendendo a vida do próprio regime.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29584

585

“ U M A PA R T E D O P O V O U R U G UA I O F E L I Z , C O N T E N T E , A L E G R E ”

UMA PARTE DO POVO URUGUAIO…

Em 1989, a quatro anos do fim da ditadura, um plebiscito encerrou umadas polêmicas centrais da transição democrática: 55,9% do eleitorado apro-varam uma lei que anistiava as violações aos direitos humanos cometidaspelos militares durante a ditadura. O fato de que a anistia tivesse sido re-solvida por aprovação popular foi uma coisa bastante difícil de digerir paraos setores progressistas. Diversos analistas elaboraram diferentes hipótesespara explicar este comportamento eleitoral. A chave das explicações secentra na ideia de que entre os votantes a favor da anistia prevaleceu o “medodo retorno ao passado”: o medo dos conflitos e das ameaças de instabilida-de que podia gerar o fato de que os militares se rebelassem contra a justiça.Nesta análise o voto a favor da anistia foi um voto democrático que sacri-ficava a justiça em prol da estabilidade institucional. Embora este argumentopossa ser pertinente para explicar a decisão de um importante número devotantes, esta análise não integrava à discussão uma pergunta que era bas-tante óbvia. Como tinha sido a experiência desses 55,9% durante a ditadura?

No ano 1980 os militares tinham proposto outro plebiscito. A ditaduratentava permanecer por meio de uma reforma constitucional que legitimaria apresença autoritária por voto popular. Neste caso também a maioria obteve55,9%. Mas o voto foi contra a reforma da ditadura, e a partir daí se iniciou oprincípio do seu fim. Na memória dos setores democráticos este plebiscito élembrado como um gesto heroico, em que com muito poucos recursos e numcontexto de perseguição, os opositores conseguiram derrotar o aparelho pu-blicitário da ditadura. No entanto, na análise novamente não se deu atençãoàqueles 41,9% que votaram a favor da ditadura. Se cruzarmos a informaçãodos dois plebiscitos podemos concluir que o voto de cerca de quarenta porcento da população expressou uma visão no mínimo não negativa da ditaduranos dois casos. Se analisarmos geograficamente a distribuição desses votos,veremos que em ambos os casos os setores que tiveram um perfil mais próxi-mo à experiência ditatorial encontram-se localizados nas mesmas regiões dopaís: o interior, fundamentalmente o centro e o norte.

Estas observações guardam relação com vários dos aspectos comentadosneste artigo. Em um contexto em que a política foi anulada, a cultura se trans-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29585

586

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

formou em um veículo para construir consensos por parte do regime ditato-rial. Por meio de certas linhas culturais o Estado autoritário buscou ampliarsua base de apoio, construindo pontes com setores que por diversos motivoslhe eram próximos. Do descrito anteriormente podem-se ressaltar duas gran-des linhas que, embora contraditórias, conviveram no campo da cultura ofi-cial. Uma linha tradicionalista e outra tecnocrática modernizante.

A linha tradicionalista procurou recuperar as tradições culturais conser-vadoras que se desenvolveram no campo da cultura uruguaia no século XX.A ditadura apoiou-se em tradições que não lhe eram originais. Entre as tra-dições ideológicas e estéticas das quais a ditadura tomou elementos pode-ríamos nomear: o revisionismo nacionalista de direita da primeira metadedo século XX, as correntes nativistas no campo da arte, a historiografia mi-litar sobre o século XIX e as mais recentes correntes do ruralismo político.Elas foram construídas em oposição à matriz batllista. Frente a uma visãootimista do Uruguai como um país de classes médias urbanas, cosmopolitase educadas. A ditadura propunha uma visão fortemente nacionalista em quea identidade se afirmava em outros lugares, fundamentalmente no campo,seus setores sociais, renegando o forte peso simbólico que tinha adquiridoa universidade e sua intelectualidade como representação da cultura uru-guaia.42 As tradições reivindicadas compartilhavam um enfoque dicotômicoa respeito das relações campo-cidade. Nelas existia uma visão idealizadado “homem de campo” em oposição à cidade, que era representada comoum âmbito de corrupção política, econômica e moral. Esta dicotomia foiexplorada pela ditadura, fundamentalmente por meio da oposição Monte-vidéu-Interior. Não por acaso o presidente Aparicio Méndez elogiava a“parte do povo uruguaio” que se sentia feliz com o regime durante a sema-na de Lavalleja. Esta aposta no rural não só procurava convocar setores daselites “pecuaristas” que tradicionalmente tinham sido conservadores, mastambém aqueles setores populares que se sentiam fortemente identificadoscom o imaginário rural construído em oposição à cidade desde fins do sé-culo XIX. Se voltarmos para os resultados eleitorais dos plebiscitos anteri-ormente mencionados, podemos concluir que tal aposta obteve certosresultados positivos. Foi nesses lugares que as propostas mais próximas àditadura tiveram melhor votação.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29586

587

“ U M A PA R T E D O P O V O U R U G UA I O F E L I Z , C O N T E N T E , A L E G R E ”

A educação se encontrou a meio caminho entre esse discurso tradicio-nalista e outro discurso de tipo tecnocrático.43 Por um lado, como váriosautores apontaram, houve uma matriz ideológica fortemente conservado-ra vinculada ao pensamento católico de extrema-direita, que se expressavana renovação programática, na perseguição ideológica e na centralidade deuma particular educação física; mas esta tendência conviveu com novas ten-dências que colocavam a necessidade de que o sistema educativo se ade-quasse às necessidades do mercado de trabalho, às novas tecnologias didáticase modernizasse a gestão administrativa. Em grande medida essa nova ten-dência foi promovida como resultado de uma maior interação entre os or-ganismos multinacionais (OEA, BID) e o Estado. Em geral podemos dizerque neste a aposta na juventude não resultou tão efetiva como a aposta norural. Se novamente utilizarmos a referência dos plebiscitos, eles mostramque os jovens votaram majoritariamente contra as propostas mais próxi-mas dos militares nos dois. Mas outros aspectos mais sutis a respeito dainfluência dos processos educativos do regime autoritário ainda estão pordiscutir-se.44

As apostas culturais dos meios massivos de comunicação privados pare-cem ter estado em sintonia com as transformações que estavam ocorrendono mundo e ser afinados com as propostas modernizantes dentro do regi-me. Na televisão se viu muito pouco da proposta “tradicionalista”, salvo oque o regime impôs através dos comunicados oficiais da Dinarp. A tônicageral da televisão foi a despolitização e o entretenimento. A imprensa es-crita teve um discurso mais comprometido com a chave tecnocrática doregime descrita anteriormente.

Contrariamente ao que foi exposto no começo, o que fica claro é que asimagens de escuridão, silêncio ou ausência não são adequadas para pensara cultura na ditadura. Se partirmos de uma noção ampla de cultura atéWilliams, em que esta não se remete à produção artística mas ao conjuntoda produção simbólica, encontraremos uma abundância de propostas cul-turais no marco da última ditadura. Embora desarticuladas e nem semprebem-sucedidas a ditadura ensaiou estratégias culturais muito diversas, atra-vés das quais procurou manter ou ampliar seu apoio entre variados atores.A verdade é que durante o período a cultura evidenciou sua face mais obs-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29587

588

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

cura, demonstrando como sua interação com um regime autoritário podiater um importante potencial legitimador. As propostas chamadas de tradi-cionalistas neste artigo parecem ter tido uma repercussão maior no nívelpopular, fundamentalmente no interior do país, enquanto as tecnocráticasou modernizantes foram articuladas para obter certo tipo de adesão naselites econômicas e intelectuais.

Tais propostas culturais não podem ser entendidas fora da coerção im-plantada pelo regime autoritário, mas tampouco podem ser explicadas comoseu resultado. De fato a partir de 1980, quando a repressão começou asuavizar-se, o projeto cultural do “novo Uruguai” se fragmentou, perden-do sua unidade. Entretanto muitos de seus fragmentos centrais, como onacionalismo conservador, os discursos tecnocráticos e a despolitização dosmeios de comunicação de massa com seus respectivos atores da sociedadecivis que os impulsionavam souberam como adaptar-se e sobreviver às no-vas condições democráticas.

Notas

1. Jornal El País, 13/10/1979, p. 4.2. É pertinente esclarecer que esta preocupação existiu em alguns participantes.

Entre outros podemos citar Hugo Achugar, Teresa Porsecanski e o próprioorganizador do seminário Saúl Sosnowski, que de diferentes maneiras percebiamas transformações que tinham ocorrido durante o período.

3. Este tipo de representação guarda muitas coincidências com o debate sobre Vichyna França proposto inicialmente por Paxton e depois problematizado por Rousso.A memória do “Terrorismo de Estado” em certa medida anulou a reflexão sobreos apoios que a ditadura recebeu por parte de certos setores da sociedade civil.Para uma análise da representação da ditadura como Terrorismo de Estado verMARCHESI, Aldo. “¿Guerra o terrorismo de Estado? Recuerdos enfrentadossobre el pasado reciente uruguayo”, in: JELIN, Elizabeth (org.). Las conmemo-raciones: Las disputas en las fechas “in-felices”. Madri e Buenos Aires: Siglo XXI,2002.

4. O’Donell nos 1970 já apontava como as novas ditaduras do cone sul estabeleci-am certa continuidade com o pensamento conservador do início do século. Nocaso uruguaio, DEMASI, Carlos. “La dictadura militar: un tema pendiente”, in:

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29588

589

“ U M A PA R T E D O P O V O U R U G UA I O F E L I Z , C O N T E N T E , A L E G R E ”

RICO, Alvaro (comp.). Uruguay: cuentas pendientes. Montevidéu: Trilce, 1995,aponta como uma análise crítica da última ditadura implica também uma releituracrítica do imaginário liberal no qual se havia construído a história contemporâ-nea do Uruguai. COSSE, Isabela; MARKARIAN, Vania. 1975, El año de laorientalidad. Montevidéu: Trilce, 1996, assim como MARCHESI, Aldo. ElUruguay inventado: la política audiovisual de la dictadura, reflexiones sobre suimaginario. Montevidéu: Trilce, 2001, em diferentes trabalhos encontram conti-nuidades em pessoas e ideias entre o pensamento conservador da primeira meta-de do século e as propostas ditatoriais.

5. Ver ULRIKSEN, Maren; VIÑAR, Marcelo. Fracturas de Memoria. Crónicas parauna memoria por venir. Montevidéu: Trilce, 1993; COSSE, Isabela; MARKARIAN,Vania. Memorias de la Historia. Montevidéu: Trilce. 1994; COSSE; Isabela;MARKARIAN, Vania, op. cit., 1996; RICO, Alvaro (org.). Uruguay: cuentas pen-dientes. Montevidéu: Ed. Trilce, 1995; MARCHESI, Aldo, op. cit., 2001.

6. O processo em direção à ditadura no Uruguai teve certas particularidades. O queAlvaro Rico decidiu chamar o caminho democrático para o autoritarismo consis-tiu no desenvolvimento escalonado de medidas autoritárias e repressivas contramilitantes e instituições de esquerda por duas administrações eleitas democrati-camente: Pacheco Areco e Bordaberry. O segundo culminará esse processo com adissolução das câmaras legislativas em 27 de junho de 1973 com o apoio dasForças Armadas. A partir deste momento se iniciou o que se conhece como regi-me cívico militar (ver MARCHESI, Aldo et al. (orgs.). El presente de la dicta-dura: estudios y reflexiones a 30 años del golpe de estado en Uruguay. Montevidéu:Trilce, 2004).

7. Por exemplo, somente 18 dos 33 diretores de colégios oficiais conservavam seuscargos em março de 1974. (DEMASI, Carlos (org.). El régimen cívico militar:cronología comparada de la historia reciente del Uruguay (1973-1980). Tomo II,Montevidéu: Fundación de Cultura Universitaria, Centro de Estudios Inter-disciplinarios Uruguayos, Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación, 2004,p. 40). Não há números sobre as dimensões das destituições e dos novos cargos,vários protagonistas do período lembram que essas mudanças foram maciças.

8. DEMASI, Carlos (org.), op. cit., 2004, p. 232.9. RICO, Alvaro. La Universidad de la República desde el golpe de estado a la

intervención. Montevidéu: Universidad de la República Oriental del Uruguay,Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación, Centro de EstudiosInterdisciplinarios Uruguayos, 2003.

10. Marcos Gabay num interessante trabalho sobre a censura no período encontraquatro modalidades: 1 - Por restrições impostas por meio de disposições de duvi-dosa legalidade, substituindo em muitos casos o delito real pela suspeita de delito,

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29589

590

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

interpretação ilegítima de textos constitucionais e ainda ignorância a respeito de-les etc. 2 - Pela via dos fatos, sem mediação de disposições legais de nenhum tipo;3 - Por técnicas de dissuasão psicológica através de pressões e ameaças para fazerfuncionar os mecanismos de autocensura; 4 - Por falência econômica resultantedos contínuos fechamentos, embargo de edições, campanhas encobertas contraanunciantes, retirada de publicidade oficial etc. (GABAY, Marcos. Política,información y sociedad: represión en el Uruguay contra la libertad de información,de expresión y crítica. Montevidéu: Centro Uruguay Independiente, 1988.)

11. Embora seja verdade que alguns dos meios que mais explicitamente apoiaram oregime também receberam sanções. O nível de castigo e os motivos por trás dosmesmos foram radicalmente diferentes.

12. A produção cultural e intelectual de fins dos anos 1960 foi uma produção forte-mente influenciada pelo clima de polarização política. Todos os críticos culturaisque analisaram o período reconhecem um forte vínculo entre estes produtoresculturais e os ventos de revolução que sopravam na América Latina, ver GILMAN,Claudia. Entre la pluma y el fusil: debates y dilemas del escritor revolucionario enAmérica Latina. Buenos Aires: Siglo XXI Argentina, 2003; RAMA, Angel. Lageneración crítica. Montevidéu: ARCA, 1972.

13. MORAÑA, Mabel. Memorias de la generación fantasma. Montevidéu: MonteSexto, 1988.

14. PORSECANSKI, Teresa. “Ficción y fricción de la narrativa de imaginación escri-ta dentro de fronteras”, in: SOSNOWSKI, Saúl (org.). Represión, exilio y demo-cracia; la cultura uruguaya. Montevidéu; Maryland: Ed. de la Banda Oriental;Universidad de Maryland; College Park, 1987.

15. DONAS, Ernesto; MILSTEIN, Denise. Cantando la ciudad: lenguajes, imaginariosy mediaciones en la canción popular montevideana (1962-1999). Montevidéu:Nordan Comunidad, 2003.

16. MIRZA, Roger. “Memoria, desmemoria y dictadura. Una pespectiva desde elsistema teatral”, in: RICO, Alvaro (comp.). Uruguay: cuentas pendientes. Mon-tevidéu: Trilce, 1995.

17. Orientalidade remete à posição do território uruguaio em relação ao Rio Uru-guai. Esta denominação tem origem no período colonial quando este territórioera considerado a “Banda oriental” do Rio Uruguai.

18. COSSE, Isabela; MARKARIAN, Vania, op. cit., 1996, p. 114.19. Idem, p. 117.20. Decreto 166/975.21. 1976 era ano, segundo a Constituição, de eleições. O regime cancelou as elei-

ções, proscreveu a grande maioria dos políticos que tinham participado da vidapública antes de 1973, propôs um cronograma que incluiu o plebiscito sobre

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29590

591

“ U M A PA R T E D O P O V O U R U G UA I O F E L I Z , C O N T E N T E , A L E G R E ”

uma reforma constitucional que garantiria a permanência institucionalizada dasforças armadas no poder e uma eleição de candidato único em 1981. No mesmoano houve um conflito interno dentro do regime como consequência de diver-gências ideológicas e políticas acerca do caminho que a ditadura deveria tomar.Enquanto o presidente Bordaberry propôs a anulação dos partidos políticos e acriação de um regime corporativo, os militares sugeriram uma proscrição tran-sitória dos setores políticos de centro e direita para num futuro habilitar algumtipo de diálogo. O conflito culminou com a destituição de Bordaberry e a no-meação de outro presidente civil: Aparicio Méndez, muito mais dócil aos inte-resses dos militares. Para uma análise geral deste processo, ver CAETANO,Gerardo; RILLA, José. Breve historia de la dictadura. Montevidéu: Banda Orien-tal, 1987.

22. Apud COSSE, Isabela; MARKARIAN, Vania, op. cit., 1996, p. 100.23. 76% dos presos tinham entre 18 e 34 anos. Tirado de SERPAJ. Uruguay, “Nunca

Mas”. Montevidéu: s/ed., 1989, p. 412.24. Jornal El País, 15/04/1980, p. 10.25. CAMPODÓNICO, Silvia; MASSERA, Emma. SALA, Niurka. Ideología y

educación durante la dictadura. Montevidéu: Ediciones de la Banda Oriental,1991, p. 144.

26. APPRATTO, Carmen; ARTAGAVEYTIA, Lucila. “La educación”, in: VV. AA. ElUruguay de la dictadura (1973-1985). Montevidéu: Ediciones de la Banda Orien-tal, 2004, p. 233.

27. MINISTERIO DE EDUCACIÓN Y CULTURA. C.N.E.F. Montevidéu, 1977, p. 1.28. Por exemplo, o Ministério de Educação e Cultura será responsável por um pro-

grama de símbolos nacionais, responsável de “confecção de bandeiras nacionais,pôsteres de heróis nacionais, partituras e gravações do hino nacional e cançõespatrióticas, bustos de heróis e uma infinidade de materiais a partir dos quais sededicou um aporte destinado à afirmação dos valores de Pátria e Nacionalida-de”. Um informe mostra que esta repartição elaborou mais de 20 mil bandeirasuruguaias em um ano (DINARP. Uruguay 1973-81, Paz y Futuro. Montevidéu:Dinarp, 1981, p. 343).

29. José Gervasio Artigas foi o principal caudilho que liderou a luta contra a domi-nação espanhola na região a partir de 1811. Ainda que seu projeto tenha sido oestabelecimento de uma liga federal com as províncias do Vice-reino do Rio daPrata no Uruguai, é lembrado como o fundador da nação.

30. Jornal El País, 13/10/1978, p. 10.31. Por exemplo, em 1975, enquanto os sinos da igreja da cidade tocavam sem parar,

um grupo de “atletas de diversos centros de ensino partiam precisos desde a está-tua do brigadeiro General Lavalleja (na cidade) até o monumento Artigas (no topo

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29591

592

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

do morro) para acender uma chama votiva na pira instalada no morro (jornal ElPaís, 12/10/1975). Ou no ano de 1978, quando se realizou uma espécie de mega-espetáculo chamado “A epopeia dos orientais”, com roteiro do professor F. O.Assunção “onde seus realizadores mostraram a milhares de pessoas reunidas nomorro de Artigas, os momentos fundamentais da história do Uruguai” (“La vigoro-sa figura del prócer en la noche de fogones”, jornal El País, 15/10/1978, p. 13).

32. Jornal El País, 13/10/1979, p. 4.33. Ver DEVOTO, Pivel. “De la leyenda negra al culto artiguista”. Cuadernos de

Marcha, Montevidéu, 3ª Época, ano XV, Extraordinário.34. Para comparar as experiências da ditadura com outros tipos de festividades fol-

clóricas desenvolvidas num contexto democrático, ver DE GIORGI, Alvaro. Elmagma interior. Política, cultura y territorio en la Fiesta de la Patria. Gaucha.Montevidéu: Trilce, 2002.

35. PALLARES, Laura; STOLOVICH, Luis. Medios masivos de comunicación en elUruguay. Tecnología, poder y crisis. Montevidéu: CUI, 1991.

36. Em 1988 Luciano Alvarez, analisando os noticiários durante o período democrá-tico, mostrava como algumas dessas práticas tinham permanecido, ver ALVAREZ,Luciano. Los héroes de las 7 y media. Montevidéu: Ediciones de la Banda Orien-tal; CLAEH, 1988.

37. PORSECANSKI, Teresa, op. cit., p. 228.38. Para as políticas da ditadura na área audiovisual, ver MARCHESI, Aldo, op. cit., 2001.39. A história intelectual da história recente do Uruguai ainda está por ser elaborada.

As primeiras tentativas não consideraram o efeito que a ditadura, mais além dosefeitos repressivos previamente mencionados, teve na reconfiguração da noçãode intelectual, ver DE ARMAS, Gustavo; GARCÉ, Adolfo. Uruguay y su concienciacrítica: intelectuales y política en el siglo XX. Montevidéu: Trilce, 1997; DEARMAS, Gustavo; GARCÉ, Adolfo (orgs.). Técnicos y política: saber y poder:encuentros y desencuentros en el Uruguay contemporáneo. Montevidéu: Trilce;Instituto de Ciência Política, 2000.

40. Guillermo O’Donnell na década de 1970 antecipava o painel deste setor na con-figuração de um bloco de poder nos Estados autoritários (O’DONNELL,Guillermo. Counterpoints: selected essays on authoritarianism and demo-cratization. Notre Dame, Indiana, EUA: University of Notre Dame Press, 1999).

41. Revista Búsqueda, no 102, maio de 1981, p. 49, apud DE ARMAS, Gustavo;GARCÉ, Adolfo, op. cit., 1997.

42. Sobre a discussão em torno do imaginário contemporâneo do Uruguai, verCAETANO, Gerardo; JACOB, Raúl. “Del primer Batllismo al Terrismo: crisissimbólica y reconstrucción del imaginario colectivo”. Cuadernos del CLAEH.Montevidéu, 49, 1989; PERELLI, Carina; RIAL, Juan. De mitos y memoriaspolíticas. Montevidéu: Ediciones de la Banda Oriental, 1985.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29592

593

“ U M A PA R T E D O P O V O U R U G UA I O F E L I Z , C O N T E N T E , A L E G R E ”

43. Num informe da Dinarp de 1981 a ditadura sugeria esta dualidade sem encon-trar nenhuma contradição: O cumprimento das pautas políticas e dos objetivostraçados se realizou com base num enfoque moderno do conceito ensino-apren-dizagem, sustentado nas correntes mais aceitas pelo mundo ocidental. Estas, nãoobstante, foram adequadas às ideias de nacionalismo, entendendo-o como a exal-tação do conceito de Pátria, de Soberania e de Desenvolvimento em Segurança,da família como núcleo da formação moral do educando e da educação comofator importante para o desenvolvimento (Dinarp, op. cit., p. 356).

44. Se tomamos como referência comparativa o nível de politização dos jovens no mo-mento do início da ditadura e as características das novas gerações no retorno demo-crático, poder-se-ia argumentar que a ditadura promoveu uma efetiva estratégia dedespolitização. Mas é verdade que o contexto de ambas as gerações é radicalmentediferente e não pode ser explicado somente pela influência ditatorial.

Bibliografia

ACHUGAR, Hugo. Cultura(s) y nación en el Uruguay de fin de siglo. Montevidéu: Fesur;

Trilce, 1991.

——. CAETANO, Gerardo (comps.). Identidad Uruguaya: ¿Mito, crisis o afirmación?.

Montevidéu: Trilce, 1992.

ALVAREZ, Luciano. Los héroes de las 7 y media. Montevidéu: Banda Oriental; CLAEH,

1988.

APPRATTO, Carmen; ARTAGAVEYTIA, Lucila. “La educación”, in: VV. AA. El Uruguay

de la dictadura (1973-1985). Montevidéu: Ediciones de la Banda Oriental, 2004.

BAYCE, Rafael. El sistema educativo Uruguayo, 1973-1985. Montevidéu: Centro de

Investigación y Experimentación Pedagógica, 1985

BECEIRO, Ildefonso. La radio y la TV de los pioneros. Montevidéu: Ediciones de la

Banda Oriental, 1994.

BRUSCHERA, Oscar. Las décadas infames. Montevidéu: Ed. Hoy es Historia; Linardi

Risso, 1986.

CAETANO, Gerardo; JACOB, Raúl. “Del primer Batllismo al Terrismo: crisis simbóli-

ca y reconstrucción del imaginario colectivo”. Cuadernos del CLAEH. Montevi-

déu, 49, 1989.

CAETANO, Gerardo; RILLA, José. Breve historia de la dictadura. Montevidéu: Ediciones

de la Banda Oriental, 1987.CAMPODÓNICO, Silvia; MASSERA, Emma. SALA, Niurka. Ideología y educación

durante la dictadura. Montevidéu: Ediciones de la Banda Oriental, 1991.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29593

594

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

COSSE, Isabela; MARKARIAN, Vania. Memorias de la Historia. Montevidéu: Trilce. 1994.——. 1975, El año de la orientalidad. Montevidéu: Trilce. 1996.DE ARMAS, Gustavo; GARCÉ, Adolfo. Uruguay y su conciencia crítica: intelectuales

y política en el siglo XX. Montevidéu: Trilce, 1997.——. (orgs.). Técnicos y política: saber y poder: encuentros y desencuentros en el Uruguay

contemporáneo. Montevidéu: Trilce; Instituto de Ciência Política, 2000.DE GIORGI, Alvaro. El magma interior. Política, cultura y territorio en la Fiesta de la

Patria. Gaucha. Montividéu: Trilce, 2002.DEMASI, Carlos. “La dictadura militar: un tema pendiente”, in: RICO, Alvaro (comp.).

Uruguay: cuentas pendientes. Montevidéu: Trilce, 1995.——. (org.) La caída de la democracia: cronología comparada de la historia reciente del

Uruguay (1967-1973). Montevidéu: Fundación de Cultura Universitaria, Centrode Estudios Interdisciplinarios Uruguayos, Facultad de Humanidades y Ciencias dela Educación, 1996.

——. (org.). El régimen cívico militar: cronología comparada de la historia reciente delUruguay (1973-1980). Tomo II, Montevidéu: Fundación de Cultura Universitaria,Centro de Estudios Interdisciplinarios Uruguayos, Facultad de Humanidades yCiencias de la Educación, 2004.

DEVOTO, Pivel. “De la leyenda negra al culto artiguista”. Cuadernos de Marcha,Montevidéu, 3ª Época, ano XV, Extraordinário.

DINARP. Uruguay 1973-81, Paz y Futuro. Montevidéu: Dinarp, 1981.DONAS, Ernesto; MILSTEIN, Denise. Cantando la ciudad: lenguajes, imaginarios y

mediaciones en la canción popular montevideana (1962-1999). Montevidéu: NordanComunidad, 2003.

FARAONE, Roque. Estado y TV en Uruguay. Montevidéu: Editorial FCU, 1989.GABAY, Marcos. Política, información y sociedad: represión en el Uruguay contra la

libertad de información, de expresión y crítica. Montevidéu: Centro UruguayIndependiente, 1988.

GILMAN, Claudia. Entre la pluma y el fusil: debates y dilemas del escritor revolucionarioen América Latina. Buenos Aires: Siglo XXI Argentina, 2003.

HINTZ, E. (selecc.). Historia y filmografía del cine uruguayo. Montevidéu: Edicionesde La Plaza, 1988.

MARCHESI, Aldo. El Uruguay inventado: la política audiovisual de la dictadura,reflexiones sobre su imaginario. Montevidéu: Trilce, 2001.

——. “¿Guerra o terrorismo de Estado? Recuerdos enfrentados sobre el pasado recienteuruguayo”, in: JELIN, Elizabeth (ed.). Las conmemoraciones: Las disputas en lasfechas “in-felices”. Madri e Buenos Aires: Siglo XXI, 2002.

—— et al. (comps.). El presente de la dictadura: estudios y reflexiones a 30 años delgolpe de estado en Uruguay. Montevidéu: Trilce, 2004.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29594

595

“ U M A PA R T E D O P O V O U R U G UA I O F E L I Z , C O N T E N T E , A L E G R E ”

MINISTERIO DE EDUCACIÓN Y CULTURA. C.N.E.F. Montevidéu, 1977.MIRZA, Roger. “Memoria, desmemoria y dictadura. Una pespectiva desde el sistema tea-

tral”, in: RICO, Alvaro (comp.). Uruguay: cuentas pendientes. Montevidéu: Trilce, 1995.MORAÑA, Mabel. Memorias de la generación fantasma. Montevidéu: Monte Sexto, 1988.O’DONNELL, Guillermo. Counterpoints: selected essays on authoritarianism and

democratization. Notre Dame, Indiana, EUA: University of Notre Dame Press, 1999.PALLARES, Laura; STOLOVICH, Luis. Medios masivos de comunicación en el Uruguay.

Tecnología, poder y crisis. Montevidéu: Ed. CUI, 1991.PERELLI, Carina. Someter o convencer. El discurso militar. Montevidéu: Ediciones de

la Banda Oriental, 1987.——; RIAL, Juan. De mitos y memorias políticas. Montevidéu: Ediciones de la Banda

Oriental, 1985.PAXTON, Robert O. Vichy France: old guard and new order, 1940-1944. Nova York:

Morningside; Columbia University Press, 1982.PORSECANSKI, Teresa. “Ficción y fricción de la narrativa de imaginación escrita den-

tro de fronteras”, in: SOSNOWSKI, Saúl (comp.). Represión, exilio y democracia;la cultura uruguaya. Montevidéu: Universidad de Maryland-College Park; Edicionesde la Banda Oriental, 1987.

RAMA, Angel. La generación crítica. Montevidéu: ARCA, 1972.RICO, Alvaro (comp.). Uruguay: cuentas pendientes. Montevidéu: Trilce, 1995.RICO, Alvaro. La Universidad de la República desde el golpe de estado a la intervención.

Montevidéu: Universidad de la República Oriental del Uruguay, Facultad de Hu-manidades y Ciencias de la Educación, Centro de Estudios InterdisciplinariosUruguayos, 2003.

ROUSSO, Henry. Le syndrome de Vichy. Paris: Seuil, 1987.SERPAJ. Uruguay, “Nunca Mas”. Montevidéu: s/ed., 1989.SOSNOWSKI, Saúl (comp.). Represión, exilio y democracia; la cultura uruguaya. Mon-

tevidéu; Maryland: Ediciones de la Banda Oriental; Universidad de Maryland;College Park, 1987.

ULRIKSEN, Maren; VIÑAR, Marcelo. Fracturas de Memoria. Crónicas para unamemoria por venir. Montevidéu: Trilce, 1993.

VV.AA. El Uruguay de la dictadura (1973-1985). Montevidéu: Ediciones de la BandaOriental, 2004.

WILLIAMS, Raymond. Keywords: a vocabulary of culture and society. Nova York:Oxford University Press, 1976.

ZUM FELDE, Alberto. Proceso Intelectual del Uruguay — III Promoción del Centenario.Montevidéu: Librosur, 1985.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29595

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29596

CAPÍTULO 8 Testemunhas e vizinhos:A ditadura na Grande Rosário(Argentina)*

Gabriela Águila**Tradução de Silvia de Souza Costa

*Agradecemos à autora e à editora, Patrícia Funes, a autorização da publicação no Brasil doartigo “La dictadura en el Gran Rosario. Testigos y vecinos”. Puentes 19, dezembro de 2006.(N. das Orgs.)**Professora titular de História da América Latina e de História Europeia Contemporâneada Universidade Nacional de Rosário, Argentina. Organizadora de De los dos cordonesindustriales al eje de integración Mercosur (1940-2005). Vol. 11. Rosário: La CapitalProhistoria Ediciones, 2006 (Nueva Historia de Santa Fe).

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29597

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29598

O diário La Capital, de Rosário, descrevia, em abril de 1976: “Um supostosubversivo foi capturado, após um intenso tiroteio, em pleno Centro denossa cidade, na manhã de ontem. O fato foi presenciado pelo numerosopúblico que circulava na região e nos arredores.”

Essa narrativa jornalística revela um aspecto interessante a destacar:embora grande parte da repressão fosse clandestina e ocorresse longe dosolhos dos cidadãos, houve muitas operações feitas na presença de testemu-nhas. Essa dimensão social permaneceu velada — e escassamente analisada— por destacar uma perspectiva que priorizou o caráter fundamentalmen-te oculto e/ou secreto das ações repressivas e, portanto, mostrou uma socie-dade que desconhecia o que se passava.

Na cidade de Rosário e em sua área de influência, contudo, muitos doscentros clandestinos de detenção encontravam-se dentro do perímetro ur-bano, rodeados por casas de particulares ou em lugares onde transitavamdiariamente muitos cidadãos. E, embora a maioria das ações fosse feita pelasforças da repressão durante a noite ou de madrugada, outras ocorreram àluz do dia, em geral com a mobilização de efetivos civis e militares, coma exibição de notável poder de fogo, cercando ruas e alertando os vizinhospara que se escondessem em casa.

Pilar Calveiro afirmou que ninguém podia alegar desconhecimento emrelação a essas ações das forças de segurança, seja pelos fatos que presencia-vam, seja pela informação divulgada pelos meios de comunicação de massa.Por todos os lados se filtrava a informação.1 Embora uma parte muito signi-ficativa do plano de extermínio tenha sido mantida oculta aos olhos doscidadãos comuns, pedaços mais ou menos significativos dessas ações eramconhecidos, percebidos ou comentados em diferentes ambientes.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:29599

600

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Uma análise que se proponha a descrever e explicar os comportamen-tos sociais durante a ditadura deve considerar as formas como, nas pala-vras de Christopher Browning, a política criminosa do regime impregnavainevitavelmente a existência cotidiana.2 Assim como o uso da violência —ou a ameaça de seu uso — foi um elemento constitutivo do regime e ad-quiriu uma relevância fundamental em seus primeiros anos, não se deveperder de vista que também atravessou a esfera pública, tanto em seuexercício puro e simples como nos discursos — que defendiam e justifica-vam a adoção de soluções drásticas, frente à ação subversiva — e chegouà informação amplamente difundida pelos meios de comunicação nacio-nais e locais sobre procedimentos, detenções e descoberta de cadáveres,que incluía tanto comunicados oficiais das forças de segurança quanto umacerta cobertura jornalística.

Além disso, não foram a imprensa ou as declarações públicas de repre-sentantes do governo as únicas fontes de informação. Os procedimentos,as detenções, as invasões e os fuzilamentos em vias públicas ou perto dealguns centros clandestinos de detenção eram uma parte significativa dasfacetas públicas do terror estatal, em um contexto em que não apenas secomunicava o que acontecia, mas também se exibiam com crueza — aténos casos em que se pretendia tornar invisível — as ações repressivas.

O estudo das atitudes e dos comportamentos sociais durante a últimaditadura exige que se levem em conta as articulações existentes entre as estra-tégias do regime e a sociedade, ou o modo como os objetivos, as políticas eas convocações implementados pela ditadura foram recebidos e experi-mentados pelos cidadãos: homens e mulheres (ou crianças) que presencia-ram diretamente as ações, invasões, detenções ou os fuzilamentos, e quemconviveu com a realidade — não por oculta, mas por presente — dos cen-tros clandestinos de detenção. Como foram interpretadas e avaliadas essassituações? Qual era o clima da opinião familiar, coletiva, social?

Essas perguntas nos conduzem a um problema: a ausência de fontes docu-mentais ou de relatos contemporâneos que permitam conhecer, em termossociais amplos, as percepções individuais e coletivas diante da repressão. Aanálise aqui apresentada baseia-se em um conjunto de relatos de pessoasque presenciaram esses fatos ou eram vizinhas dos centros clandestinos.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:30600

601

T E S T E M U N H A S E V I Z I N H O S : A D I TA D U R A N A G R A N D E R O S Á R I O ( A R G E N T I N A )

Embora com limitações, propomo-nos a oferecer um panorama de umproblema pouco explorado3 e delinear um conjunto de características equi-paráveis, na análise da dinâmica social e política da época, com comporta-mentos e situações mais generalizados.

EU VI

Nos relatos de parentes de vítimas das ações repressivas há frequentes refe-rências ao papel dos vizinhos, que presenciaram as ações e os sequestros.Muitas vezes, em uma peregrinação desesperada, os parentes puderam re-construir a história das detenções, contando com essas informações de pri-meira mão.

No fim da ditadura, houve testemunhas que denunciaram esse tipo deações, contrariando com seus relatos as versões policiais ou os comunica-dos do 2º Corpo do Exército, que os apresentava como enfrentamentos.No caso de pessoas desaparecidas, consideradas fugitivas pelas forças darepressão, destacavam que essas pessoas tinham sido detidas pelas forçasde segurança.

Um comunicado publicado no diário Tribuna, de Rosário, em dezembrode 1976, informava que:

O comandante do 2º Corpo comunica à população que, em 26 de dezem-

bro, à 1h30, quando homens da chefatura da área 211 patrulhavam a re-

gião de Fisherton, observaram um casal que carregava um volume de

dimensões regulares e, em atitude suspeita, mantinha-se perto da estação de

transformação de energia elétrica, na esquina das ruas Bulevar Argentino e

Colombres. Ao ser dada a ordem de detenção para proceder a sua identifi-

cação, tentaram fugir, sendo abatidos com armas de fogo e causando a deto-

nação de uma carga explosiva que transportavam...

Outra versão do enfrentamento foi relatada em testemunho — muitosanos depois — por um vizinho do irmão de uma das vítimas:

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:30601

602

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

*Processo judicial sobre o terrorismo de Estado na Província de Santa Fé. O nome se refereao chefe de Polícia de Rosário durante a ditadura, Augustin Feced, que encabeça a lista deacusados de violação de residências, tortura e assassinato. (N. da T.)

(...) disse-me que o Exército havia fechado todos os acessos à casa várias

horas antes do fato (...), que viu muita gente, não em posição de combate,

mas como quem espera que algo aconteça naturalmente, não como um aten-

tado. Chegou um Falcon, retiraram os dois de dentro da mala, sendo que o

rapaz não conseguia caminhar, mas a moça sim. Os dois estavam em más

condições (...) colocaram-nos em um cone que a polícia usa para explodir

bombas (...) e detonaram a bomba.

É interessante destacar que isso foi relatado ao parente quase duas déca-das depois e diante da sua interpelação.

Era normal que as ações das forças repressivas envolvessem a mobilizaçãode muitos efetivos, civis e militares, numa exibição notável de poder de fogo,com o fechamento de ruas ou terrenos e a invasão de domicílios. Pedissemou não permissão aos vizinhos para usar os tetos de suas casas, sempre ha-via alertas ou ameaças para que se escondessem. Em alguns casos, foramobrigados a se apresentar como testemunhas e, eventualmente, eram detidos.

A intimidação de vizinhos e transeuntes passou a fazer parte das açõesrepressivas. Em relato que integra a causa Feced*, há menção a uma açãoem que foi detido um militante e também o vizinho, que apenas estava depassagem pelo local, enquanto ameaçavam as pessoas que saíam de casa,para que permanecessem em seu interior e não presenciassem a operação.Um sobrevivente relatou que, no momento de sua detenção, os vizinhostodos viram que me levaram, mas foram obrigados a voltar para suas casas.Em outro caso, enquanto revistavam e destruíam uma residência, algunshomens do grupo de tarefas diziam para as pessoas correrem e não olharem.

Relatos semelhantes foram fornecidos por vizinhos, em meados dos anos1980, sobre um dos casos investigados no âmbito da causa Feced, ocorridoem 2 de janeiro de 1977, no Bairro Gráfico de Rosário. Um vizinho contouque muitos policiais uniformizados passaram pelo jardim de sua casa e pelade outro morador, sem pedir permissão. Um deles anunciou com um mega-fone que deviam permanecer dentro de suas casas e intimou os ocupantes

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:30602

603

T E S T E M U N H A S E V I Z I N H O S : A D I TA D U R A N A G R A N D E R O S Á R I O ( A R G E N T I N A )

da propriedade em questão a se entregarem. Relatou ter observado o queacontecia até começarem os disparos, quando se refugiou com a família emum cômodo protegido da casa. E lá ficaram até tudo terminar, pois os po-liciais atiravam a partir de sua casa, onde entraram sem permissão. Outravizinha contou que policiais pediram autorização para entrar e chegar aosfundos da casa, onde fariam uma ação. Além disso, recomendaram que sefechassem no banheiro, porque poderia haver disparos de armas de fogo. Aatitude de todas as testemunhas da Feced foi acatar a ordem policial e seesconder, como contou um deles, devido ao medo de que algo lhes aconte-cesse, bem como a alguém da família.

Testemunhas de outra ação promovida na zona oeste da cidade citaramsituações semelhantes. Uma delas relatou o que aconteceu quando come-çou o tiroteio:

“A primeira coisa que vi foi um jovem de joelhos e um senhor louro, alto e

corpulento, com o cabelo bem curtinho ao estilo militar, que muito cortes-

mente me disse que fosse para dentro. Em seguida, essa pessoa foi levada para

o Torino e o carro partiu (...), quando voltei, vi que um grupo de pessoas corria

e atirava contra uma jovem, que também corria. Em certo momento, ela caiu

(...) e continuaram atirando no chão... Nesse momento (...), um jovem de

cabelos longos e ondulados, com lentes embaçadas, me insultou, dizendo que

voltasse para minha casa, e de uma distância de aproximadamente uns 20 ou

30 metros apontou sua arma para baixo e atirou perto de meus pés.”

Outra vizinha relatou ter encontrado um jovem de cabelo comprido eóculos com lentes embaçadas que, me insultando, disse que ficasse em casa.Diante disso,

“Pela forma como me tratou, fiquei onde estava, enquanto o jovem repetia

os insultos e a ordem que resisti a cumprir, fazendo com que disparasse duas

vezes, com a enorme arma que tinha nas mãos. Com isso entrei, não em

casa, mas na galeria, onde fiquei, podendo observar o que acontecia (...)

Enquanto isso, o rapaz que atirou ficou na porta de minha casa, como que

vigiando para que ninguém saísse em direção a esse lado, do campo existen-

te na parte de trás.”

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:30603

604

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Em alguns poucos casos, que por sua magnitude comoveram a opiniãopública, a imprensa local forneceu mais informações, como nos primeirosdias de janeiro de 1977, quando uma operação de proporções pouco co-muns mereceu uma extraordinária cobertura jornalística, que registroudepoimentos de vizinhos e foi complementada com um comunicado oficialdo 2º Corpo. Na madrugada de 31 de dezembro de 1976, forças policiaise militares desencadearam um intenso tiroteio em um edifício de Balcarce,número 700, que terminou no meio da manhã seguinte e incluiu um ata-que de bazucas por parte das forças repressoras, culminando com cinco mor-tos, três dos quais eram mulheres jovens que se atiraram ou foram atiradaspelas janelas do apartamento. Um diário local registrou que numerososgrupinhos se formaram na rua para contemplar as paredes perfuradas a bala,na parte correspondente ao apartamento dos rebeldes, e suas janelas destruí-das pelos impactos.

Da mesma maneira, encontramos relatos de alguns sobreviventes queconfirmam a presença de moradores durante as ações que resultaram emsua detenção, seja porque aconteceram durante o dia, em lugares centraisda cidade, ou, ainda, pelas características das ações. Uma delas contou que,quando foi detida, com vários integrantes da família, o veículo ficou nametade do quarteirão e, por um alto-falante, começaram a dizer que a famí-lia G devia sair (...), e os vizinhos saíram, eu vi gente.

Para muitos dos que passaram por essas situações, a presença de teste-munhas ou vizinhos representou uma frágil segurança, uma esperança deque o lugar para onde fossem levados pudesse ser identificado ou, em ou-tros casos, que houvesse algum contato com suas famílias.

Embora a impunidade tenha se tornado um elemento integrante das açõesrepressivas, o fato de haver gente na rua quando elas ocorriam parece terpreocupado as forças de segurança. Uma ex-presa relatou que, no momen-to da ação, os integrantes do grupo de tarefas comentavam: “Vamos espe-rar um pouco, para que haja menos gente na rua.” E, seguramente, a presençade testemunhas nos procedimentos e até o fato de que os vizinhos se vis-sem envolvidos em alguns episódios motivaram o Comando do 2º Corpo adestacar em comunicado publicado na imprensa local, no início de dezem-bro de 1976:

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:30604

605

T E S T E M U N H A S E V I Z I N H O S : A D I TA D U R A N A G R A N D E R O S Á R I O ( A R G E N T I N A )

Pede-se compreensão da população, considerando que esse tipo de ativida-

de é feito com a finalidade de erradicar definitivamente a subversão e criar

as bases necessárias para fazer com que o trabalho e o esforço de todos os

cidadãos de bem se traduzam na conquista dos grandes objetivos fixados

pelo Processo de Reorganização Nacional.

EU VIVIA LÁ

A reconstrução da história de alguns dos centros de detenção que funcio-

naram em Rosário e sua área de influência foi possível não apenas graças

ao testemunho dos sobreviventes, mas, muitas vezes, pelos relatos de mo-

radores, registrados após a ditadura. A instalação de centros clandestinos

em si já representa uma alteração da vida normal de uma região, sobretudo

quando nos referimos a uma modalidade frequentemente usada nas zonas

próximas a Rosário: o aluguel de casas particulares (chácaras). Isso repre-

sentava uma importante diferença em relação àqueles centros que funcio-

naram em dependências policiais ou militares, onde o movimento de pessoal

uniformizado ou de veículos fazia parte do cenário habitual.

Esse foi o caso da cidade de Granadero Baigorria, a dez quilômetros de

Rosário, onde havia um dos centros clandestinos de detenção, chamado “La

Calamita”. No início de 1984, começaram a aparecer notícias nos jornais de

Rosário, juntamente a denúncias de alguns vizinhos e funcionários daquela

localidade. Os testemunhos revelavam que, pelo menos desde 1977, havia

uma forte presença militar e policial na região, com entrada e saída de veícu-

los (automóveis sem placa e caminhões), além de bloqueio de estradas.

Outras testemunhas lembram do movimento que acompanhou a insta-

lação de fios de transmissão de energia, na época em que o campo come-

çou a funcionar, permanecendo em atividade até o início de 1984. O diário

Democracia, de Rosário, mencionava os vínculos entre alguns moradores

ou comerciantes com o centro de detenção: “As lojas da área aumentaram

suas vendas, especialmente de cigarros, jornais e frutas. Seguramente, a carne

e outros alimentos eram levados de Rosário até lá.” Anos mais tarde, outro

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:30605

606

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

diário local contava que “os vizinhos sabiam que pessoas eram mortas nocampo, mas nada além disso”.

Agora reproduziremos alguns depoimentos obtidos em entrevistas mais

recentes. Um casal que viveu em frente ao centro clandestino recordou a

existência de um lugar onde mantinham as pessoas: “(...) isso nos dizem,

nós não sabíamos nada, vivíamos na frente e não sabíamos de nada. Passá-

vamos pela porta, com nosso bebê nos braços, e era só.” Contaram tam-

bém que, de noite, ouviam tiros, mas como viviam no campo isso não

chamava tanto a atenção, e que, ocasionalmente, veículos policiais entra-

vam em seu terreno.

Erravam o caminho e entravam em nossa casa, já que vivíamos bem em frente

(...). Mas estávamos em outra, éramos jovens, nosso bebê era pequeno e não

nos metíamos em política (...) O que também se diz, mas são apenas comen-

tários, nós não vimos nada, é que ali tem gente enterrada. (...) Que coloca-

vam as pessoas em buracos feitos para armazenar vinhos, torturavam e depois

matavam.

Relato semelhante foi feito por integrantes de uma família que vivia muito

perto do ex-centro de detenção. Eles lembram: “A casa era bastante retira-

da, estava ocupada, mas não sabíamos de que lado estavam: se eram milita-

res ou guerrilheiros. Nós não perguntávamos (...), mas não se podia passar

por lá, havia guardas e movimento de veículos. Não se podia entrar.”

Outro vizinho de “La Calamita”, que depôs na Justiça em 1984, recor-

dou que, antes da Copa do Mundo de 1978, observava “um grande movi-

mento de veículos que entravam e saíam do local, em sua maioria carros

particulares” e acrescentou que, muitas vezes, ajudou com seu trator a reti-

rar carros que ficavam atolados no barro. Disseram-lhe ser militares, mas

havia também civis armados. Escutava tiros durante a noite. Mas até forne-

ceu “repolho e outras verduras” que produzia em seu sítio.

No caso da localidade de Funes, onde funcionaram duas ou três casas como

centros de detenção clandestinos, multiplicavam-se os boatos sobre o que

ocorria. Em relação a uma delas, os moradores comentavam que era um cen-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:30606

607

T E S T E M U N H A S E V I Z I N H O S : A D I TA D U R A N A G R A N D E R O S Á R I O ( A R G E N T I N A )

tro clandestino de detenção e viam “entrar e sair caminhões do Exército” e

diziam às crianças que lá havia bruxas, para que não fossem até a casa.

Em todos estes casos, o que parecia predominar era o esforço dos gru-

pos de tarefa ou das forças que operavam esses locais para dar-lhes uma

aparência de normalidade. Os vizinhos de “La Calamita”, por exemplo, con-

sideravam que “estavam ali e não perturbavam ninguém”. Essa aparente

normalidade, contudo, contrastava inúmeras vezes com os movimentos

atípicos que se verificavam, entre os quais a anormal presença e movimen-

tação de veículos, barulho de tiros ou, como lembram algumas testemunhas,

a repetição de uma prática: de alertar os moradores quando deviam liberar

a área para que pudessem operar. Há relatos de “movimentos estranhos”,

“gente que vinha de Rosário e logo depois ia embora”, “disparos” etc. Al-

guns vizinhos de “La Calamita” mencionam em seus depoimentos à Justiça

que, em 1976 ou 1977, suas residências foram revistadas por pessoal do

Exército (“havia uns 40 ou 50 soldados, em caminhões do Exército”), com

o objetivo de ver se estava “tudo em ordem”.

TESTEMUNHOS, RELATOS, MEMÓRIAS

Um elemento que aparece reiteradamente no conjunto de entrevistas feitas

para reconstruir alguns dos enfrentamentos ou fatos relativos à ação repres-

siva é a fidelidade das lembranças. Os vizinhos recordam, muitas vezes sem

ter completo conhecimento de quem eram as vítimas, e com uma precisão

às vezes notável, as características dos fatos que testemunharam, de modo

semelhante ao que foi relatado por outras fontes. Repetiram-se também o

silêncio mantido diante desse conhecimento e a persistência do medo. Uma

entrevistada conta que viveu grande parte de sua vida em uma cidade pró-

xima a Rosário e recorda que presenciou, na “época dos militares”, com a

família e os vizinhos, o “bombardeio” de algumas casas do bairro em que

vivia e a detenção ou o fuzilamento de outros moradores, sem, contudo,

jamais falaram sobre o assunto sequer em âmbito familiar. E, ao relatar es-

ses fatos, era visível a persistência de um certo temor.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:30607

608

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Um homem, que atualmente tem mais de 40 anos e fazia serviço militarnaquela época, contou alguns episódios que testemunhou e o medo queainda sente ao lembrar esses acontecimentos e relatar o que viveu. “Estavano serviço militar porque era a minha vez, tinha 18, 19 anos (...) o que nosdiziam era que se tratava de extremistas, que eram eles ou nós, que vinhampara nos matar e tinham mapas do regimento.” Diante da pergunta sobre omotivo pelo qual se calavam, limitavam-se a responder que “ninguém lhesdizia” que falassem: “Lavaram nossos cérebros, não nos diziam que preci-sávamos ficar calados nem nada. Tínhamos medo, pensávamos na família(...) esse medo ainda está entre nós, porque o medo existe, nós temos famí-lia.” E acrescentou uma frase que tem especial relevância e significado nestaanálise: “Estive lá e não me dava conta.”

Esse destaque, de como era antes e como é agora — marcado pelo fimda ditadura e pelo conhecimento público das violações de direitos huma-nos —, não pode ser omitido, pois permeia as percepções e recordações damaior parte dos entrevistados. Quase todos fazem comentários como este:“Agora seria diferente, a gente vai se dando conta”; “soubemos quando tudoterminou, estávamos em outra”; “agora não poderia justificar atrocidadescomo as que os militares cometeram”; “não se sabia o que acontecia aí, to-mamos conhecimento depois (...) tudo o que se dizia, naquele momento,era contra os extremistas”. Como se vê, entretanto, optaram por não per-guntar, não saber e, finalmente, não questionar esse discurso dominante.

Vale citar as palavras de uma pessoa que morava muito perto de “La Cala-mita” e que depôs na Justiça em 1984. Depois de afirmar que via frequen-temente o movimento de veículos e a presença de gente no local, explica:“Agora, lá dentro, nunca vi nada, porque diante de minha casa tenho umpomar que me impede de ver (...) e, além disso, tampouco me interessavaver.” Outro vizinho, ao ser indagado se havia informado a polícia sobre oque via ou escutava no local (movimento de veículos, disparos etc.), afirmou:“De minha parte, não fiz nada, nem creio que alguém tenha feito algo. Todossabíamos que alguma coisa estranha acontecia, mas ninguém dizia nada.”

É interessante destacar o caso de um ex-funcionário municipal de Gra-nadero Baigorria, que denunciou a existência do centro de detenção em1984:

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:30608

609

T E S T E M U N H A S E V I Z I N H O S : A D I TA D U R A N A G R A N D E R O S Á R I O ( A R G E N T I N A )

Não se sabe a quem pertenciam, não, não se sabe... além disso, eu, nessa

época, não trabalhava aqui, trabalhava em Rosário, passava todo o dia au-

sente... esta é a história (...), saía de manhã e voltava à noite... bem (...),

ficava muito pouco aqui. Se fosse hoje em dia, que passo o dia todo aqui,

teria observado de maneira diferente...

O depoimento mostra como, inclusive para alguém que afirmava tercontinuado militando nas fileiras do radicalismo durante a ditadura e queassumiu um papel importante na denúncia e da divulgação do centro dedetenção, o que acontecia a poucas quadras de sua casa não era do seu co-nhecimento e só adquiriu um significado especial com o surgimento doprimeiro governo constitucional, em fins de 1983.

Mais recentemente, com o relato de uma moradora da cidade de SanLorenzo, foi aberto um processo que atualmente tramita no Juizado Fede-ral número 4, de Rosário. Ela contou que, enquanto visitava o cemitério dalocalidade, viu caminhões militares descarregarem e enterrarem corpos emum determinado lugar. Esse depoimento, um segredo mantido durante 20anos em família, só veio a público recentemente, como evidenciam suasafirmações:

Advertidos para a gravidade dos fatos testemunhados e temerosos de serem

vistos pelos elementos que se encontravam realizando tão macabra tarefa,

resolvemos nos retirar e guardar silêncio sobre o que vimos até esta data.

Apesar de terem transcorrido tantos anos, e ainda com medo das consequên-

cias que poderíamos sofrer pela denúncia desses fatos, resolvi consultar vá-

rios profissionais e, apesar da angústia que sinto, tomei a decisão de trazer

ao conhecimento dos senhores os fatos antes referidos.

REPRESSÃO E SOCIEDADE

Ao comentar o extermínio dos judeus na Alemanha nazista, o historia-dor Hans Mommsen sustenta que, para os observadores contemporâneos(os cidadãos comuns, os alemães normais), foi quase impossível obter umaampla e completa imagem do processo de aniquilação, o que dificultou a

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:30609

610

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

junção das diversas informações disponíveis para obter um quadro comple-to da situação. Assim, as testemunhas podiam presenciar, como fatos isola-dos, a crueldade e a injustiça das ações, a brutalidade das forças da repressão,mas não constituíam uma visão global do plano de extermínio que era leva-do a cabo. Grande parte da historiografia mais recente sobre o problemado consenso social durante o nazismo enfatiza que os seus contemporâneoscontaram com abundante informação sobre o terror e a perseguiçãoimplementados pelo Estado alemão. Mesmo assim, os comportamentossociais dos cidadãos comuns devem ser associados menos ao terror e à apa-tia por ele produzido e mais ao funcionamento de efetivos mecanismos deconsenso social — ativo ou passivo — predominantes, produzindo manei-ras individuais e coletivas de aceitação e apoio, incluindo conhecimentoque se tenha da política criminosa do regime nazista.4

Se focalizarmos a análise da ditadura argentina, seguramente não é er-rado supor que, para a maioria da população, as ações repressivas e os fatosque elas produziam eram abstratos, distantes. Mesmo aqueles que testemu-nharam algumas delas consideravam-nas fatos isolados. O plano de exter-mínio posto em prática pelas forças repressivas teve um caráter seletivo:dirigia-se fundamentalmente contra aqueles considerados subversivos enaqueles espaços onde sua ação havia se desenrolado. Nesse sentido, em-bora os procedimentos repressivos tenham se difundido em espaços sociaismais amplos, pode-se considerar que a maior parte dos cidadãos não pade-ceu ou foi afetada diretamente pelo exercício da repressão estatal. E, maisainda, as articulações iniciais da ditadura produziram mudanças que foramconsideradas positivas por muitos setores da sociedade: havia ordem, umacerta melhoria da situação econômica, pressupostos ideológicos tranquili-zadores e explicações para tudo que saía da normalidade.

Se existiu condenação ou crítica a essas ações, como vários depoimen-tos evidenciaram, elas não emergiram seguramente pelo medo, resultandoem comportamentos que expressavam a apatia ou a impossibilidade de quesurgissem manifestações claras de resistência ao regime. Por outro lado, asimagens e os discursos hegemônicos difundidos pela imprensa, além deoutras iniciativas estatais, enfatizavam que as práticas das forças de segu-rança eram uma drástica resposta à ameaça representada pelos chamados

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:30610

611

T E S T E M U N H A S E V I Z I N H O S : A D I TA D U R A N A G R A N D E R O S Á R I O ( A R G E N T I N A )

inimigos, produzindo um marco ideológico de legitimação do regime e desuas ações. Com o objetivo que anunciamos anteriormente, é fundamentalperguntar como uma percepção fragmentada, ou pelo menos incompleta,do plano da repressão consolidou essas perspectivas e contribuiu para aaceitação das explicações difundidas pelo Estado, levando à generalização,pelo menos durante os primeiros anos, desses comportamentos sociais.

Se chegamos à conclusão de que — ainda que de forma inacabada — ha-via conhecimento do que acontecia, o correlato indispensável desta análisenos leva a conceber algum tipo de explicação para que tenham prevalecidoas atitudes que expressavam o conformismo ou, pelo menos, a ausência derespostas sociais amplas e ações articuladas de resistência, ao menos duranteos primeiros anos da ditadura. Assim, convém perguntar: isso se devia aoconhecimento fragmentado dos procedimentos estatais e repressivos? A di-fusão de estereótipos das vítimas justificava os excessos e permitia escapulir,por meio do não entendimento ou da apatia? A impossibilidade de resistirera produto da magnitude do terror? Tratava-se de conformismo em relaçãoàs metas e aos objetivos do regime? Em contrapartida, houve outro tipo decomportamento que diferia dos descritos: mesmo assim, as reações indivi-duais, a condenação moral, o desgosto diante dos excessos das ações repres-sivas, a sensação de injustiça e a desobediência são suficientes para mudaressa imagem de um consenso social amplo, visível durante os primeiros anos?

Nesse sentido, a relação existente entre o exercício da repressão estatale a sociedade, nos anos da ditadura, adquire rapidamente visibilidade, namedida em que o uso direto da violência não apenas contribuiu para des-mantelar as organizações político-militares e conteve uma etapa de fortemobilização social e política, projetando-se sobre seus atores reais ou po-tenciais, mas se configurou como uma das chaves da explicação para gran-de parte dos comportamentos sociais desse período.

Traduzido no postulado de restauração da ordem, foi um ingredientecentral no discurso da ditadura e, como tal, gerador de consenso ou deadesão voluntária por parte daqueles que participavam do diagnóstico sus-tentado pelas Forças Armadas e apoiavam aberta ou tacitamente esse obje-tivo. Além disso, o uso da violência (ou a ameaça de usá-la) resultou, juntoà sociedade, em um contundente mecanismo de imposição de disciplina so-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:30611

612

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

cial, produzindo temor, apatia, imobilidade ou gerando conformismo ouaceitação passiva da nova ordem das coisas e, em outra dimensão, reduzin-do ao mínimo as expressões de questionamento do regime. O exercício daviolência, contudo, não se configurava como único fator para explicar oscomportamentos sociais desse período.

Vários analistas vêm sustentando a ideia de uma sociedade que patrulhoua si mesma, incorporando comportamentos que — além do uso direto daviolência por parte do regime — se adequavam ao que a ditadura postulavacom relação ao que a sociedade devia fazer: consistentes em uma acentua-da disposição para se recolher ao âmbito privado, sem questionar, sem re-sistir, aceitando a ordem imposta. Que a repressão e o temor tiveram umpapel significativo na produção desses comportamentos sociais é impossí-vel não ver. Entretanto, a preponderância de atitudes conformistas ou deapoio ao regime, e em direta relação com ele, a limitada expressão dos ques-tionamentos e resistências não poderia ser explicada sem a existência deum grau — dificilmente mensurável — de consenso social e político emtorno da ditadura.

Uma perspectiva que insista no desconhecimento, no não saber pela maiorparte da sociedade, deixa de lado aspectos fundamentais das estratégiasadotadas pela ditadura, entre as quais incluíam mostrar e divulgar o queera feito, até em sua fase clandestina. A análise dos depoimentos, a maiorparte deles concedidos por cidadãos comuns, que não estavam diretamen-te envolvidos na estratégia repressiva nem em um aberto apoio ao regime,evidencia essa complexa equação que caracterizou os comportamentos degrande parte da sociedade: o conhecimento, ainda que fragmentado, daviolência estatal, a aceitação das explicações fornecidas, a conformidadepassiva ou o silêncio produzido pelo medo. Seja pela linha do consenso,seja pela do temor, o clima social e político dominante nos primeiros anosse adequou aos objetivos da ditadura, produzindo uma sociedade aparen-temente despolitizada e que aceitava, resignadamente ou de bom grado, anova ordem. Provavelmente, e como ocorreu no caso da ditadura fran-quista,5 o regime se conformava com o silêncio. E foi isso, pelo menos nosprimeiros anos, o que a maior parte da sociedade argentina outorgou.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:30612

613

T E S T E M U N H A S E V I Z I N H O S : A D I TA D U R A N A G R A N D E R O S Á R I O ( A R G E N T I N A )

Notas

1. Poder y desaparición. Los campos de concentración en la Argentina. Buenos Aires:Colihue, 2001, p. 150.

2. Aquellos hombres grises. El Batallón 101 y la Solución Final en Polônia. Barcelo-na: Edhasa, 2002, p. 21.

3. Para uma das poucas abordagens sobre o tema, embora baseada sobretudo ementrevistas obtidas para um documentário feito em 1996, pode-se examinar oartigo de Florência Levin “Arqueologia de la memória. Algunas reflexiones apropósito de Los vecinos del horror. Los otros testigos”, na revista Entrepasados,ano XIV, nº 28, Buenos Aires, 2005.

4. Ver, por exemplo, Robert Gellately, No solo Hitler. Coerción y consenso em laAlemania nazi. Barcelona: Crítica, 2002, ou Ian Kershaw, La dictadura nazi. Pro-blemas y perspectivas de interpretación. Buenos Aires: Siglo XXI, 2004.

5. Michael Richards. Um tiempo de silencio. La guerra civil y la cultura de la represiónen la España de Franco, 1936-1945. Barcelona: Crítica, 1999.

Bibliografia

BROWNING, Christopher. Aquellos hombres grises. El Batallón 101 y la Solución Fi-nal en Polónia. Barcelona: Edhasa, 2002.

CALVEIRO, Pilar. Poder y desaparición. Los campos de concentración en la Argentina.Buenos Aires: Colihue, 2001.

GELLATELY, Robert. No solo Hitler. Coerción y consenso en la Alemania nazi. Barce-lona: Crítica, 2002.

KERSAHAW, Ian. La dictadura nazi. Problemas y perspectivas de interpretación. BuenosAires: Siglo XXI, 2004.

LEVIN, Florência. “Arqueologia de la memória. Algunas reflexiones a propósito de losvecinos del horror. Los otros testigos”, in Entrepasados, anos XIV, número 28,Buenos Aires, 2005.

RICHARDS, Michael. Un tiempo de silencio. La guerra civil y la cultura de la represiónen la España de Franco, 1936-1945, Barcelona: Crítica, 1999.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:30613

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:30614

CAPÍTULO 9 Entendendo as adesões cidadãs aogoverno de Alberto Fujimori

Romeo Grompone*Tradução de Maria Alzira Brum

*Pesquisador do Instituto de Estudos Peruanos. Autor de “La participación desplegada en lapolítica y la sociedad. Temas olvidados, nuevos enfoques”, in: Red para el desarollo de lasCiencias Sociales en el Perú, Lima, 2007, e La escisión inevitable. Partidos y movimentos enel Perú actual. Instituto de Estudos Peruanos: Lima, 2005.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:30615

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:30616

No Peru ainda não se estudaram com o rigor necessário os mecanismos comque Alberto Fujimori exerceu sua autoridade nem as razões pelas quaisdurante toda a década de 1990, até meses antes do colapso de seu governo,contou com a aceitação majoritária da população. A proposta da maioriados estudos sobre o tema não vai além de discutir os graus de autoritarismodo regime ou apontar que seu poder se apoiava no clientelismo e na cor-rupção. Com isso não se chega a entender o modo como esse governo con-seguia captar a vontade majoritária, não apenas entre setores de alto poderaquisitivo, que se beneficiavam diretamente de suas políticas, mas entre osgrupos mais pobres, tanto nas cidades como nas zonas rurais. Possivelmen-te ainda não se superou no Peru o ambiente intelectual e político do perío-do de retorno à democracia em que as elites que conduziram o processo seencontravam isoladas. O descrédito a que finalmente chegaria Fujimori nãose transferiu para novos referentes ou adesões estáveis. Não há ainda naatualidade um sistema partidário, nem mesmo um partido consolidado.Tentar responder ao que estava vigente na política e na sociedade para queum regime com traços autoritários conseguisse se legitimar diante dos ci-dadãos obriga a dar explicações que ainda podem ser consideradas incô-modas ou deslocadas.

A AFIRMAÇÃO DE UMA LIDERANÇA

A trajetória eleitoral de Fujimori impressiona. Desconhecido até poucosmeses antes, ganha em 1990 no segundo turno com 62% dos votos válidosfrente à candidatura amplamente respaldada pelas elites e pelos meios de

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:30617

618

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

comunicação do escritor Mario Vargas Llosa. Quando em abril de 1992

dissolve inconstitucionalmente o Congresso se constata, provavelmente para

surpresa até do próprio autor desse golpe de Estado, pelas primeiras pes-

quisas de opinião feitas por empresas independentes, que a decisão é apro-

vada por mais de 80% da população. Obrigado pela pressão internacional,

convoca uma Assembleia Constituinte Democrática, na qual obtém 49%

dos votos, seguido pelo Partido Popular Cristão, que consegue apenas 10%,

e obtém a maioria de novos representantes. Embora com uma margem re-

duzida, consegue, na etapa seguinte, que se aprove por referendum uma nova

constituição. É reeleito em 1995 no primeiro turno com 64% dos votos

válidos frente à candidatura opositora de Javier Pérez de Cuellar, ex-secre-

tário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU). E em 2000, quando

o país estava em uma grave crise econômica e eram flagrantes os casos de

corrupção, obtém no primeiro turno 48,25% dos votos, uma inesperada

adesão dos eleitores para aqueles que consideravam que Fujimori se encon-

trava isolado. Embora deva-se ter em conta que nesse momento o governo

controlava os meios de comunicação de maior cobertura, especialmente os

canais de sinal aberto, e impunha severos limites à expressão da oposição.

Alejandro Toledo, seu contendor, não concorreu no segundo turno — o

que a Constituição peruana determina quando nenhum dos postulantes

obtém a metade mais um dos votos — devido à falta de garantias que o

regime oferecia para que outros candidatos organizassem a campanha elei-

toral com o conjunto de direitos que esse processo requer.

Recordemos que 1989, durante o primeiro governo de Alan García, foi

o ano em que a hiperinflação chegou a 2.775,3%. Há um crescimento ne-

gativo de –11,9%, é o ano em que se registra maior quantidade de ações

subversivas do Sendero Luminoso e, em menor medida, do Movimento

Revolucionário Tupac Amaru (MRTA), que chegam a 3.149 entre enfren-

tamentos com as Forças Armadas, tomada de povoados ou comunidades

camponesas, assassinato de autoridades locais consideradas inimigas,

sequestros e explosões de torres de alta tensão que deixam as cidades sem

energia elétrica; e o primeiro ajuste, feito pelo governo aprista em setem-

bro de 1988, reduz os salários privados em 36,3%, os soldos privados em

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:30618

619

E N T E N D E N D O A S A D E S Õ E S C I D A D Ã S A O G O V E R N O D E A L B E R T O F U J I M O R I

27,2% e os soldos públicos em 27%.1 O sistema partidário tinha colapsado,

embora o Partido Aprista Peruano (APRA) depois de uma gestão questio-

nada, tenha conseguido obter 20% dos votos. A representação política em

suas diversas organizações não era capaz de acrescentar interesses ou esta-

belecer uma agenda, nem de estabelecer um princípio de unidade em pro-

gramas e em capacidade de condução, que resultassem confiáveis para os

cidadãos.

Como em todo o continente, entra em questionamento o modelo de

Estado central apoiado na substituição de importações, no desenvolvimen-

to do mercado interno e em políticas tarifárias protecionistas. Como apon-

ta Novaro, as identidades e agrupamentos vão perdendo ancoragens

institucionais estruturadas.2 Essas mesmas identidades vão se definindo e

redefinindo, caso a caso e de modo particular. Na sociedade não se encon-

tram interlocutores estáveis e capazes de influenciar nas decisões.

UMA PRECÁRIA COMUNIDADE POLÍTICA E O CONDUTOR PLEBISCITÁRIO

E o que no Peru era um processo de longo percurso histórico se traduz então

em sua expressão mais radical, no que parecia um ponto de não retorno.

Isso tem a ver com os problemas de construir uma comunidade política em

uma ordem política e social amplamente questionada por cidadanias frag-

mentadas ou hierarquizadas, com níveis de integração social e econômica

muito reduzidos, com diferenças extremas em termos de poder e recursos

e com um expansivo desenvolvimento de mecanismos informais ou extra-

institucionais no momento em que se tomam decisões. Elas se sabem pre-

cárias e com frequência desconhecidas por governantes e governados.3

Não é de se estranhar que nessas circunstâncias extremas os cidadãos esti-

vessem dispostos a receber ou a buscar um líder que trabalhasse a partir da

exceção como forma de constituir as normas4 frente a uma ordem imprevisível,

contingente, que, violentando as poucas redes de segurança existentes, impe-

dia ordenar trajetórias pessoais ou de grupo. Os critérios que explicavam ade-

são e consentimento anteriores passavam a ser questionados. Na sociedade,

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:30619

620

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

clamava-se por um princípio de autoridade na qual ia perdendo laços a aceita-ção da democracia, que não conseguia impor-se como aspiração hegemônica.

Parecia que, quando Fujimori chegou ao poder, estava-se diante de umacrise terminal do Estado em suas funções coercitivas e de integração, comopromotor do desenvolvimento, fiador da vigência de lei, de princípios decontrole e dominação aceitos e de projeção simbólica da unidade da nação.Estava em jogo a vigência de suas funções reguladoras, de distribuição. As-sim como sua capacidade de construir vínculos de obrigação, de estabele-cer consensos, de garantir a própria integridade territorial, que estavafracionada pelo conflito interno promovido pelo Sendero Luminoso.

CONSTRUINDO AS REGRAS DO AUTORITARISMO

O regime autoritário de Fujimori não tinha um cuidadoso projeto prévio.Foi construindo-o ao longo do processo. Ficou claro, e em um breve lapso,que devia empreender uma política de ajuste estrutural — contrariando oque tinha sido sua promessa eleitoral — e obter êxitos significativos na lutacontra a subversão.

Como faz notar Guerra García, seguindo Przeworski, quando em prin-cípios dos anos 1990 um país da região chegava a ponto de não poder ob-ter empréstimos do exterior — quaisquer que fossem sua orientação e suasintenções —, a tendência era tomar essas medidas de ajuste. Nesse caso,como aponta o mencionado, autor Fujimori preocupou-se, mais do queprocurar alianças políticas com empresários — pelo menos nas primeirasetapas do processo —, em estabelecer compromissos com os organismosde cooperação internacional, os bancos, os governos estrangeiros e as For-ças Armadas.5 Esse apoio lhe permitia, enquanto persuadia a população docaráter supostamente inevitável das medidas tomadas, contar com o apoiodos grupos de poder externos e nacionais de maior peso político, o quedava bases consistentes ao projeto autoritário que começava a se gerar.Conseguiu projetar tanto no país como no exterior a ideia de que era horade tomar decisões extremas e que a institucionalidade vigente punha limi-tes excessivamente rígidos para aplicá-las. Essa estratégia explicará, em parte,

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:30620

621

E N T E N D E N D O A S A D E S Õ E S C I D A D Ã S A O G O V E R N O D E A L B E R T O F U J I M O R I

que seu autogolpe não tenha recebido condenação da comunidade interna-cional além de uma ou outra declaração formal, mas que entrasse numanegociação que em longo prazo iria favorecer o presidente.

No plano interno, toma medidas que limitam liberdades e direitos nomarco da luta antissubversiva, apresentadas como decretos de urgência ecom prazos deliberadamente urgentes de tal modo que o Congresso nãopudesse abortá-los no período que o governo estipulasse para fazê-lo. Nes-ses decretos, o fundamental dava maiores prerrogativas às Forças Armadaspara intervir em um cenário de guerra civil e outorgava competências aostribunais militares para julgar os supostos integrantes ou colaboradores dosgrupos sublevados em armas, violentando as garantias do devido processo.De fato, antes que Fujimori chegasse ao poder se gerou uma aliança entreos comandos políticos militares e as rondas de camponeses que assumiamfunções de segurança nas chamadas zonas de emergência, que se localiza-vam na maioria dos departamentos da serra central e sul do país. O certo éque, no período em que o presidente se encontra à frente de suas responsa-bilidades, é desmantelada a direção do Sendero Luminoso, poucos mesesdepois do autogolpe.

Atacados dois problemas-chave, o econômico, com os cidadãos aceitan-do suportar sacrifícios diante da incerteza que se padecia, e o da guerrainterna, é quando pode empreender um projeto autoritário pensando já alongo prazo e definir uma estratégia nessa direção, com a colaboração dosServiços de Inteligência e em particular de Vladimiro Montesinos.

A TENDÊNCIA A CONFIAR NA AUTORIDADE E LHE CONFERIR AMPLAS

MARGENS DE DISCRICIONARIDADE

A disposição de vários setores da sociedade de confiar na autoridade dochefe se manifesta na tendência a delegar a tomada de decisões políticas,da qual Fujimori tira partido. Entende-se que existe um progressivodesencontro entre aqueles que formulam a agenda política e a opinião pú-blica. Essa vai crescendo, como se destacou, frente à falta de referênciasinstitucionais estáveis, à progressiva debilitação dos espaços de diálogo,

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:30621

622

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

sobretudo diante da falência de organizações sociais consolidadas, das quais,antes, parte da população participava diretamente ou se sentia integrada asuas decisões.

O poder se torna inevitavelmente opaco, o que não quer dizer que nãoesteja menos presente. O líder é o que guarda as últimas palavras. Sabe-se,entretanto, que o faz em consulta ou em um complexo jogo de negociaçãocom grupos de poder. Entre esses, técnicos, autoridades internacionais, eliteseconômicas desterritorializadas. Só resta confiar, uma vez que se entendeque se está superando uma conjuntura crítica, que se tomem as melhoresmedidas diante de cidadãos que não estão em condições de esperar. A po-pulação parece encontrar-se em uma atitude de expectativa, dessa vez rela-tivamente confiante.

Nos anos do chamado Consenso de Washington, entendia-se como úni-ca opção promover a disciplina fiscal e uma política monetária que nãoestivesse exposta a flutuações, qualificar os empresários que defendiampolíticas tarifárias de financeiros e integrar-se, do modo mais aceleradopossível, ao mercado mundial. Embora, analisando-se o processo em pers-pectiva, não tenha havido uma substantiva reforma do Estado, entendia-senecessário reduzir seus níveis de intervenção. Isso ocorreu muito mais doque com suas estruturas internas administrativas em relação a suas políticaseconômicas e, sobretudo, na definição de suas políticas sociais. Para a maioriade economistas e parte da comunidade de ciência política, esses parâmetrosfixavam quase exclusivamente os termos da discussão a seguir.

A TRANSFERÊNCIA DAS RESPONSABILIDADES DO GOVERNO PARA AS PESSOAS

Se essa era a ordem estabelecida, as pessoas entendiam que nas novas re-gras de jogo e os fracassos em suas expectativas tinham muito mais a vercom sua incapacidade de adaptar-se às novas condições do que com as de-bilidades do sistema econômico. Essa percepção só mudará radicalmentenos países andinos, e no Peru em particular, dez anos depois. A desafeiçãopolítica que afetara a região em seu conjunto muda de perfil com Fujimori.Já não se dirigirá aos novos governantes, mas persistirá como uma ácida

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:30622

623

E N T E N D E N D O A S A D E S Õ E S C I D A D Ã S A O G O V E R N O D E A L B E R T O F U J I M O R I

percepção de rechaço às antigas elites políticas. No país, além disso, terápeso uma persistente noção de alguns influentes formadores de opinião,segundo a qual era necessário passar por um período autoritário, já que setratava de pôr “a casa em ordem”, restabelecer o equilíbrio econômico,acabar com a guerra interna.

Entendidas assim as coisas, os cidadãos, e especialmente os grupos maispobres, têm de delegar as decisões aos governantes. Por um período prolon-gado, deixam-lhe um espaço livre de atuação, à margem de qualquer pro-cedimento de prestação de contas. Importam unicamente os resultados dagestão. Não se levam em conta os procedimentos empregados para obteros resultados propostos,6 que passam a um segundo plano ou simplesmen-te não importam. Já em um estudo anterior, feito em 1993 (a um ano dogolpe de Estado), 81% eram favoráveis à ideia de que merecia ser apoiadoum governo não eleito pelo povo mas que fosse justo e melhorasse a situa-ção dos cidadãos.7

ACEITAR A TRANSGRESSÃO, VIVER A DESCONFIANÇA

Como consequência dessa maneira de entender as coisas, a maioria da po-pulação estava disposta, como evidenciam os resultados expostos, a aceitara transgressão sistemática da lei por parte do presidente. E, na mesma preo-cupação de obter resultados tangíveis e imediatos, encontrava-se disposta aaceitar níveis de corrupção, como se verá depois, sem que isso necessaria-mente afetasse o julgamento sobre os governantes. Acompanhavam as linhasmatrizes de sua gestão e estimavam que não repercutiam diretamente, pelomenos no imediato e perceptível, naquilo que estavam passando.

Esse processo que tende à delegação se sustenta em boa parte nos bai-xos níveis de confiança, tanto interpessoal quanto em relação às institui-ções. A decadência das organizações corporativas de operários, as associaçõesempresariais que só reúnem grupos reduzidos de elite, o fim de boa partedo movimento camponês e de moradores, a alta conflitividade nas comu-nidades rurais, que, como demonstrara a Comissão da Verdade e Reconci-liação, participaram em algumas ocasiões na guerra interna para tirar

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:30623

624

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

vantagens — apoiando-se, segundo as conjunturas, no Exército ou no

Sendero Luminoso — indicavam que as pessoas tendiam a se confinar cada

vez mais em pequenos espaços, reticentes, a estabelecer comunicações flui-

das umas com as outras. E até às vezes encontrar-se radicalmente enfrentadas.

No ambiente criado, em que se podia perceber que o governo ganhava em

termos de definição de estratégias e mecanismos de controle, o ataque aos

chamados “políticos tradicionais” servia para ganhar novos apoios e até para

afirmar a coesão política e social.

O ARRANJO PARTICULARISTA E O RECURSO AO PODER

Preponderavam então os arranjos particularistas. A situação parece com-

parável com a que ocorrera em boa parte da história do México. Como foi

apontado,8 a sociedade mexicana “continuava sendo uma reunião de mun-

dos diferentes, de corpos com pretensões particularistas, de autoridades em

competição”. A obediência, a gestão pública, as lealdades tinham de ser ne-

gociadas. E a reciprocidade era a forma elementar da ação política e uma

forma aceita de justiça. À falta de um consenso sobre a organização da au-

toridade, a ordem se fundava em vínculos pessoais e negociações particula-

res; a sociedade produzia suas formas de poder e ordens não estatais, o

Estado impunha sua definição formal da política e os intermediários admi-

nistravam a coerência e a estabilidade.

Em parte, esse processo no Peru é ao mesmo tempo uma constante e um

retrocesso. Reconhece prolongados antecedentes históricos. Tem a ver tam-

bém com o fracasso do seu processo de modernidade num período que

podemos fixar com certa dose de arbitrariedade em quase um quarto de

século, aproximadamente entre 1963 e 1987. Assistiu-se no país à incor-

poração de setores populares à vida política — em parte pela influência dos

partidos de integração social —, expandiu-se a educação, generalizaram-se

as migrações internas e defenderam-se direitos sociais com aspirações de

cobertura universal. Alguns grupos não conseguiram fazer parte desse

processo, outros enfrentaram situações de postergação em relação a seus

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:30624

625

E N T E N D E N D O A S A D E S Õ E S C I D A D Ã S A O G O V E R N O D E A L B E R T O F U J I M O R I

progressos iniciais. Não é de se estranhar que coexistissem antigas poster-

gações e novos grupos excluídos, velhas e atualizadas desconfianças.

A habilidade de Fujimori, então, foi fazer coexistir uma política econômi-

ca ortodoxa com acordos grupo a grupo, sem integrá-los uns com outros

em um movimento. Tirava vantagens dessa fragmentação para conseguir

adesões, que na divisão existente não pudessem derivar posteriormente em

atitudes críticas. Aparentava solidariedade e fomentava a desconfiança entre

uns e outros. Compreendia que nos grupos de extrema pobreza havia mais

necessidade do que interesses, maiores urgências do que “revolução de ex-

pectativas”. E que nessas condições podia estender-lhes ajuda precisa, que

não mudava no substancial a posição do beneficiário. Ganhava, além disso,

seu reconhecimento. Quiseram chamar essa estratégia de neopopulismo.

Faltam-lhe para merecer esse qualificativo, tão levianamente atribuído, o

instável pacto social em que se apoiaram os populismos históricos latino-

americanos e uma ênfase pelo menos discursiva de mudança, apoiada em

uma suposta confluência do apelo ao povo, a unidade da nação e a mobi-

lização social.

O ATAQUE COMPARTILHADO ÀS INSTITUIÇÕES

A partir de 1992, e como já se pode observar, Fujimori adquire no poder

traços de uma liderança plebiscitária. Quando foi eleito em 1990, funcio-

nava mais uma representação por identificação. Os cidadãos queriam se pro-

jetar em uma figura próxima, uma pessoa de procedência popular, alguém

que, vencendo as dificuldades, se tornara bem-sucedido, que se parecesse

com eles mas que tivesse conseguido uma projeção em sua vida profissio-

nal que a maioria não tinha conseguido alcançar. Frente à classe política

tradicional, representava um discurso antielitista. Fujimori teve durante a

década de 1990 a capacidade de não separar do todo a identificação próxi-

ma com o componente plebiscitário. Impunha sua autoridade, mas esse atoera compreendido por todos. Agia como uma representação que permitiarápidos alinhamentos a seu favor.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:30625

626

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Os juízes durante todo o seu governo foram expulsos ou cooptados; a

oposição política, reprimida seletivamente ou incorporada ao seu movimen-

to por convicções ou por intimidação, a falta de lealdade pela qual a repreen-

diam foi usada pelo próprio governante, incentivando, sobretudo nos

últimos anos do seu regime, o transfuguismo. Como foi apontado,9 Fujimori

conseguiu transmitir a imagem de que os partidos políticos eram um conjun-

to relativamente indiferenciado e que aos políticos só interessava defender

seus interesses particulares. Essa crítica aos partidos — ainda mais simples

e efetiva de fazer quando viviam uma etapa de grave questionamento —

podia transferir-se sem maiores inconvenientes ao conjunto de controles e

balanços requeridos para o funcionamento do estado de direito. Em primeiro

lugar ao Parlamento, lugar de influência privilegiada dessa “partidocracia”

posta sob escrutínio ou condenação. Em um segundo plano, ao Judiciário,

no qual, num bem-elaborado trabalho a favor de seus interesses, a autori-

dade consegue situar nas posições de maior influência os magistrados de

sua confiança ou que optam pela lealdade ao governo para manter-se em

seus cargos. De fato, essa estratégia mostrou ser um legado perdurável, uma

vez que, como se verá depois, essa desconfiança para com a classe política

se manterá mesmo depois de ocorrida a transição democrática.

Para esse governante, também a sociedade era percebida como uma tra-

ma de organizações sem maior peso social que defendiam, sem outra justi-

ficação além de seus interesses particulares, suas ideias à margem do que

seriam as supostas prioridades nacionais. Em um regime de restrição de li-

berdades exacerbavam-se os traços presentes na maioria dos presidencia-

lismos latino-americanos. O presidente representante da unidade da nação

“a personifica” na Constituição peruana e associa os partidos políticos e as

organizações sociais à dispersão, à falta de coerência, à busca de divisão do

corpo social, submetendo-os a interesseiros ou inúteis confrontos.

O certo é que essa prática conseguia apoio nos cidadãos quando o tra-

balho informal preponderava sobre os assalariados. As pessoas que dispu-

nham de estabilidade trabalhista eram um grupo minoritário e a defesa de

seus direitos aparecia como uma reivindicação isolada que não afetava a

maioria. Só saíam à rua para protestar, em boa parte desse período, as ralas

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:30626

627

E N T E N D E N D O A S A D E S Õ E S C I D A D Ã S A O G O V E R N O D E A L B E R T O F U J I M O R I

fileiras do movimento operário, os aposentados, os funcionários públicos

despedidos entre o repúdio e a indiferença, sem margem para se fazer ou-

vir e muito menos para iniciar negociações em que se contemplassem suas

reivindicações.

A ARTE DE RENOVAR INSTITUIÇÕES E DE GANHAR ADESÕES

Até aqui daria a impressão de que as vigas de Fujimori são fincadas sobre-

tudo nas condições em que consegue afirmar a excepcionalidade de sua li-

derança e as estratégias que encontra para desprestigiar seus opositores.

Entretanto, isso não bastaria para afirmar-se no poder se não tivesse existi-

do também uma ativa construção de instituições. Do contrário, incorrería-

mos numa explicação excessivamente simplista. Basta aludir, para uma fácil

justificação do caráter legitimado de sua liderança, uma conjuntura crítica

e a persistente desqualificação dos opositores. Esse jogo do poder não pode

durar indefinidamente. No entanto, com frequência aí se detém a análise

política convencional do sistema estabelecido.

Fujimori encontrou no criado Ministério da Presidência um estilo de

promover políticas sociais que, com pequenas iniciativas, cobriu todo o

território do país, até as regiões mais afastadas. Aquelas nas quais até

então não tinha chegado algum presidente. O Fundo de Compensação

para o Desenvolvimento (Foncodes), recorrendo a parte do dinheiro

obtido com as privatizações, dedicou-se a uma ativa tarefa de constru-

ção de infraestrutura em comunidades afastadas, ajustando-se com fle-

xibilidade e eficácia a quaisquer de suas necessidades. Em algumas regiões

asfaltando as ruas principais de centros povoados, em outros casos cons-

truindo obras imprescindíveis de saneamento, outras vezes construindo

vias trafegáveis que permitiam aproximar as comunidades a pequenos

núcleos povoados.

As autoridades nomeavam núcleos executivos da população da região,

encarregando-os de executar as obras. Comprometiam esforços, remune-

ravam, criavam associações alternativas, debilitavam tanto as organizações

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:30627

628

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

comunais quanto as autoridades locais, expondo programas que fugiam doseu controle.

Do Ministério da Presidência dependia também a Infraestrutura Educa-tiva (Infes), que construíra escolas ao longo do país. Pode aduzir-se, comouma crítica válida, que o problema básico a enfrentar, acima de tudo, era adeficiente qualidade educacional. Provavelmente esse seja o ponto de vistade um observador externo. A população sentia que estava assistindo a umaefetiva melhoria na qualidade desses serviços. E a mesma coisa ocorria como Programa Nacional de Assistência Alimentar (Pronaa), que se encarregade organizar a ajuda em mantimentos à população organizada, em restau-rantes populares. Nessa direção, um projeto que existia desde meados dadécada de 1980 foi usado a favor do governante, cooptando antigos diri-gentes, incorporando-os à sua proposta, sem necessidade de manipular elei-ções ou outros mecanismos de designação.

Nesse caso dependente do Ministério de Agricultura, o Programa Nacio-nal de Manejo de Cuencas na Serra (Pronamachs), encarregado dos usuáriosde irrigações, permitia tanto fazer obras quanto garantir a manipulação ade-quada dos recursos, centralizados e controlados pelo governo.

PASSOS PARA UM PAÍS MAIS BEM-ARTICULADO

O ponto decisivo dessas obras foi colocar em marcha uma agressiva políti-ca de construções vitais que permitiram em boa medida dar um princípiode ordem — ou ao menos indícios consistentes de que o processo ia nessadireção — em um país desarticulado. Esse fato foi provavelmente um dosmais decisivos em termos de geração de ganhos, já que barateava custos epermitia acessar novos mercados e competir neles. No plano das comuni-cações, o contrato com a Telefonica da Espanha, à margem das discussõessobre a conveniência da privatização, estendeu esse serviço a comunidadesrurais onde até então não existia.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:30628

629

E N T E N D E N D O A S A D E S Õ E S C I D A D Ã S A O G O V E R N O D E A L B E R T O F U J I M O R I

A DISTRIBUIÇÃO DE RECURSOS COMO OPERAÇÃO POLÍTICA

O governo teve também a capacidade de fazer uma dupla operação: obter aadesão de setores populares com os quais não tinha estado anteriormenteem contato e debilitar, parcelar e até pulverizar as autoridades provinciais,que podiam eventualmente surgir como líderes confrontadores de sua auto-ridade. O Peru estava dividido nesse período em distritos, uma circunscriçãomais ampla do que as províncias — ambas chegavam ao poder mediante elei-ções —, e responsáveis regionais designados diretamente pelo Executivo. Aunidade mais adequada em termos de contribuição fiscal e administraçãoterritorial, segundo a maioria dos especialistas no assunto, são as províncias.Fujimori inverte essa relação, outorga maiores poderes e recursos aos distri-tos quando cria o chamado Fundo de Compensação Municipal. O podereconômico, e também o político, se dispersa, o que confere ao presidentemaior capacidade de articular iniciativas e fazer uma síntese.

Há, além disso, uma redistribuição de recursos que favorece o chamadoTrapézio Andino — as regiões da serra mais pobres do país, Huancavelica,Cuzco, Puno, Apúrimac e Ayacucho — que entre 1993 e 1994 tiveram au-mentados em mais de 100% os recursos provenientes do Estado. Esse pro-grama foi aplicado com algumas doses de deliberada indeterminação. Nessejogo, podia-se estabelecer uma bem-definida cadeia de lealdades, o que nãoprejudica o impacto que alcançara no conjunto desses territórios.

FUJIMORI E O CUMPRIMENTO DO PROMETIDO

Essa política era acompanhada de um incessante percurso de Fujimori portodo o país. Valia a atitude simbólica. Cidadãos até então marginalizadoseram levados em consideração. Também havia ganhos materiais. Boa partedo solicitado por essa população em situação de pobreza e de pobreza ex-trema acabava sendo atendida, uma obra de escoamento, a construção deum local comunitário, o serviço de eletricidade até então inexistente, a ins-talação de uma antena parabólica. Havia congruência entre o prometido eo cumprido.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:30629

630

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

E como prolongamento provavelmente injustificado do que tinha sidouma situação de guerra interna até 1998 em vastas áreas do país, sobretudona serra central, na sul e na chamada franja de selva zona amazônica, pró-xima às anteriores, os comandos políticos militares exerciam a autoridade,já que não havia autoridades eleitas. Cumpriam funções tutelares e às vezesatuavam diretamente na administração e na resolução de conflitos ante umapopulação que se sentia vencedora na guerra e que nem sempre estava dis-posta a estabelecer políticas de convivência, e muito menos de reconcilia-ção, com aqueles que achavam que estiveram do outro lado, na luta desatada.

Por outro lado, deve-se destacar que, pelo menos nas primeiras etapas,nem todos os funcionários comprometidos na execução de políticas públi-cas mantinham uma adesão manifesta ao regime que os levasse a assumirum compromisso político proselitista. Como foi apontado,10 muitos delescumpriam com honestidade as tarefas encomendadas e facilitavam com suasvisitas não só a execução de obras, mas a troca de informações entre comu-nidades afastadas, centros povoados e cidades.

O ESTILO DE CORRUPÇÃO DO REGIME E SEU IMPACTO NOS CIDADÃOS

É certo que durante o governo de Fujimori se registraram ações de corrup-ção cotidiana de policiais, funcionários, juízes. Não se separavam de umapersistente tradição na história do Peru. Nada que chamasse especialmentea atenção. A corrupção em grande escala se revela desde antes das eleiçõesde 2000, quando são descobertos os recursos secretos de que dispunha oassessor presidencial Montesinos.

Simplificando o pensamento do autor,11 as mais graves transgressões nomanejo dos recursos públicos consistiram em compras irregulares e super-faturadas de armamentos; processos de privatização estabelecidos sem preo-cupar-se com o cumprimento do conjunto de formalidades e com venda deinformação privilegiada; concessões de exploração a algumas mineradorasfrente a outras, nas quais as resoluções do Judiciário respondiam a mal-encobertas pressões políticas; desfalques nas caixas de pensões militares epoliciais; e uso de ministérios ou de outros cargos públicos para celebrar

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:30630

631

E N T E N D E N D O A S A D E S Õ E S C I D A D Ã S A O G O V E R N O D E A L B E R T O F U J I M O R I

contratos com empresas privadas de propriedade de quem aconselhava essamedida. Ou, no extremo dessa conduta delituosa ou de tráfico de influên-cias, um ministro promove um sistema de pensões e quem o impulsionaaparece poucos meses depois à frente da direção das empresas privatizadas.Ou se incorre na venda de uma companhia de aviação nacional para outraestrangeira com manobras no faturamento e desfalque ao fisco.

A gravidade desses fatos demorará para ser compreendida em toda suamagnitude pelos cidadãos mais pobres. Em compensação, estava perto desua experiência cotidiana que o partido Peru Possível, de Alejandro Toledo,o primeiro eleito depois da transição democrática, procurasse ocupar oconjunto de cargos públicos em todos os níveis da administração estatal,em um descuidado e exposto manejo de benesses que supunha privilégiosindevidos, assim como postergações não explicadas.

AUTORITARISMO E COMPETÊNCIA

O regime de Fujimori foi caracterizado como autoritarismo competitivo,12

e essa parece ter sido uma interpretação compartilhada. Esse conceito fazreferência a que se respeitam as instituições democráticas na medida emque formalmente elas são reconhecidas como o procedimento normal parao exercício da autoridade política. E que com frequência os governantesdesconhecem essa institucionalidade que dizem respeitar, violentam-na,transgridem-na. Não é portanto, até onde se consegue entender, um regi-me de equilíbrio, em que cada um desses componentes pesa por igual e emque sua influência relativa se mantenha imutável durante todo o períodode exercício do poder.

Em algumas etapas, e até certo ponto, pareceria que se seguiam regrasmínimas da democracia formal. Em outros, quando confrontados com cir-cunstâncias que lhe são contrárias, afastam-se delas, às vezes violentamen-te. As áreas sensíveis são a concorrência eleitoral, o Judiciário, o Congressoe os meios de comunicação.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:30631

632

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

A POLÍTICA NÃO NEGOCIÁVEL NO CONGRESSO

A maioria no Congresso, que Fujimori manteve pelo menos até 2000, per-mitiu-lhe conservar as formalidades democráticas, independentemente deque se exercessem ou não as “boas maneiras parlamentares”. É certo que àsvezes deixavam-se de lado os princípios elementares de deliberação, em parteporque um setor considerável dos congressistas do oficialismo ignorava oalcance das próprias leis que votavam. Sua elaboração corria por conta degrandes estudos de advogados, relacionados diretamente com o Executivo.A oposição podia fazer ouvir sua opinião, embora, como veremos, houves-se um bloqueio, que foi se tornando crescente, por parte dos canais de te-levisão aberta que chegavam a um público majoritário.

Se houve um ponto em que existiu particular intransigência foi na ree-leição presidencial por um terceiro período, dispositivo que violava flagran-temente a Constituição que o próprio regime tinha estabelecido. Assim, nãose aceita um referendum para que essa reeleição se submetesse a consulta aoobterem-se 25% de assinaturas de cidadãos inscritos no registro eleitoral,exigindo, além disso, que contasse com a aprovação de 2/5 dos congressis-tas, o que não estava previsto na normativa vigente. Cabe reconhecer, é certo,que esse episódio também mostrava a debilidade da oposição. Demorou,com efeito, mais de dois anos para conseguir as assinaturas necessárias. E oCongresso também pactuou a destituição de três membros do TribunalConstitucional que consideravam não válida a postulação do presidente deum terceiro mandato. Cabe tomar em consideração, entretanto, que essadecisão foi tomada pelos magistrados, e não pela maioria reconhecida nes-se organismo, exercendo aquilo que na doutrina jurídica se caracteriza como“controle difuso das leis”, o que por certo se prestava a diversas interpreta-ções e não significava um pronunciamento inequívoco.

O CONTROLE DO JUDICIÁRIO

Pode-se argumentar também que houve nisso uma certa economia de es-forços no controle do Judiciário, uma entidade politizada e sujeita a vín-culos com o poder em vigor durante boa parte da história republicana do

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:30632

633

E N T E N D E N D O A S A D E S Õ E S C I D A D Ã S A O G O V E R N O D E A L B E R T O F U J I M O R I

país. A verdade é que o governo controlava a Corte Suprema e a Procura-doria da Nação e suas ramificações se estendiam a todo o aparato, en-quanto paradoxalmente tentava-se também uma reforma da administraçãopara torná-lo mais ágil e eficaz. Nas decisões transcendentes pesavam oExecutivo e o Serviço Nacional de Inteligência (SNI). Em boa parte des-sas questões, a maioria dos cidadãos sentia que esses problemas não eramde sua incumbência. Não estavam em condições de entender em que semodificara o funcionamento do sistema que percebiam discriminador se-cularmente. Nada de especial tinha acontecido com respeito a eles. A seucritério, persistia a mesma situação.

A INFLUÊNCIA EM DIVERSOS PLANOS NOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO

O governo, em troca, teve especial preocupação com respeito aos meios decomunicação. Deixava que os meios tradicionais de imprensa dirigidos àsclasses média alta e alta estratos médios altos e altos mantivessem margensde independência. Ao mesmo tempo cercava de vasta cobertura midiáticatelevisiva os atos do governo — os donos dos canais de sinal aberto eramoficialistas e, como se saberá depois, financiados pelo regime — e se davaampla cobertura a suas visitas a distintos lugares do país, especialmenteaqueles a que antes não tinha chegado outro presidente. Fujimori insistia,como já se apontou na congruência entre o prometido e o cumprido, demodo convincente inaugurando uma escola, demonstrando que enfim umcentro povoado camponês dispunha de eletricidade ou que o novo trechode uma estrada o ligava a uma cidade maior. Desse cenário que lhe era fa-vorável pronunciava-se, por sua vez, sobre temas da agenda política e eco-nômica nacional.

O governante e seus assessores foram bem além do formato jornalísticotradicional. Os reconhecimentos à sua liderança se faziam presente nos talk-shows mais influentes. A maioria dos programas humorísticos — salvo nofim do governo — cuidava para distinguir entre as gozações amigáveis aopresidente e as de grosso calibre dirigidas aos seus oponentes. Provavel-mente o público entendia nesses termos e se encontrava satisfeito. Repre-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:30633

634

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

sentava um tipo de vitória do engenho do governante frente às más manei-ras de seus opositores. O Serviço Nacional de Inteligência ditava a pauta ea ordem de apresentação das notícias nos programas jornalísticos, e issonão parecia ser percebido pela maioria dos cidadãos, porque, em boa par-te, traduzia seus próprios julgamentos a respeito do que era importante ounão e, mesmo que isso não ocorresse necessariamente assim, não consegui-am perceber a forma como se instrumentava a consequência das notícias.

O entretenimento se voltava para um assunto político de maneira su-postamente inadvertida, sem carga de solenidade alguma, como se o gover-no pairasse por cima dos acontecimentos, quando na realidade os estavaimpulsionando. A imprensa marrom completava a tarefa com manchetescada vez mais agressivas contra as figuras da oposição, acompanhadas denotícias frívolas sobre o mundo das celebridades peruanas. Não importavaàs vezes nem sequer que esses jornais vendessem. Interessava que se exibis-sem nas bancas onde as pessoas liam as chamadas com atenção e tiravamsuas próprias conclusões, em geral favoráveis ao governo.

Os realizadores de programas humorísticos, jornalísticos, de entrevistas— gênero que viveria seu apogeu nesses anos — alinhavam-se com o gover-no por corrupção, chantagem ou pelas próprias convicções. Essa situaçãocomeça a mudar, em 1997, quando um canal de sinal aberto adotou umaatitude de oposição, enquanto a revista e os jornais opositores empreendempesquisas jornalísticas de maior fôlego. O governo parece perder rapidamenteseus reflexos políticos. Pela primeira vez, se queremos falar de autoritarismocompetitivo, o fiel da balança parece mover-se do primeiro lado, o doautoritarismo, e começam a fazer-se notórios os desequilíbrios. Pela primeiravez também, em seus longos anos de gestão, Fujimori procura mobilizar osque o apoiam tentando fazer com que passem do consenso passivo ao ativo.

FISSURAS NO SISTEMA

Este recurso à mobilização mostrava as primeiras fissuras em um regime quetinha preferido o controle ao franco ataque personalizado. Baruch Ivcher,diretor do canal opositor Frecuencia Latina, é despojado de sua nacionalida-

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:30634

635

E N T E N D E N D O A S A D E S Õ E S C I D A D Ã S A O G O V E R N O D E A L B E R T O F U J I M O R I

de peruana, sem uma justificativa jurídica consistente, por denunciar viola-ções aos direitos humanos. Os espaços de imprensa independentes, em par-ticular os dos jornais La Republica e El Comercio, a revista Caretas e até umdeterminado período a revista Sí, chegam a demonstrar convincentementeviolações aos direitos humanos, promovidas pelo Grupo Colina, de militaresencarregados pelos comandos das Forças Armadas e pelo Serviço Nacionalde Inteligência, com conhecimento de Fujimori, de assassinatos clandestinosde supostos integrantes de grupos subversivos ou de atemorizar a população.O grupo é identificado como responsável, entre outros feitos, por matançasindiscriminadas em uma moradia multifamiliar, pelos assassinatos na regiãopopular limenha de Bairros Altos e de estudantes e professores da Universi-dade de Cantuta. É precisamente por ter sido considerado mentor desses fa-tos que, em setembro de 2007, a Suprema Corte chilena acolhe o pedido deextradição de Fujimori e ele é processado pela Justiça peruana.

Não é tema deste trabalho referir-nos às razões que explicam a queda deFujimori e o processo de transição política. Mas não se pode deixar de terem conta que aqueles que se mobilizaram contra Fujimori eram em sua maioriapessoas de procedência popular que tinham tido uma trajetória associativaanterior, estudantes universitários agrupados segundo o centro superior deque procediam e pouco integrados entre si, grupos de direitos humanos, in-telectuais e, é obvio, dirigentes de partidos, que, no entanto, não consegui-ram ser os articuladores do protesto. Os mais pobres não estiveram presentes,e em troca corresponde reconhecer que esses, na campanha eleitoral de 2000,participaram de atos de massa a favor de Fujimori. E, embora as mobiliza-ções contra o presidente tenham sido importantes, os fatores que desencadea-ram sua queda são atribuíveis sobretudo às pressões internacionais, àsevidências flagrantes de corrupção e ao colapso no interior do regime.

PERSISTÊNCIAS DO FUJIMORISMO

Não se pode destacar que a transição democrática terminou em fracasso. Ofato de que Alejandro Toledo tenha passado ordenadamente a investidurapresidencial a Alan García depois de uma campanha eleitoral ordenada e

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:30635

636

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

sem transgressões legais é uma prova disso. Não obstante, o fujimorismocontinua tendo influência na vida do país, tanto no plano das decisões po-líticas quanto na memória e nas adesões populares.

Fujimori, como se apontou, percebeu a debilidade do sistema partidárioe contribuiu decisivamente para o isolamento das organizações políticas.Não é por certo uma situação que só corresponda ao Peru. A verdade é queo que se chamou de “desafeição cidadã” às representações institucionaisno caso peruano foi acompanhada por dez anos de uma adesão entusiastade grupos significativos da população à presença de um mandatário de tra-ços autoritários.

A CONTINUIDADE NO DESCRÉDITO DOS PARTIDOS

O sistema partidário não conseguiu recuperar prestígio. Seguindo, em par-te, uma definição influente na América Latina sobre o tema,13 entende-seque esse sistema requer padrões previsíveis de alternância eleitoral. A vitó-ria do Partido Aprista Peruano, que escapava à maioria das previsões, assimcomo o êxito da candidatura da Ollanta Humala, com um confuso discur-so nacionalista radical que resultou vencedor no primeiro turno com 30%dos votos e com 47% na segunda rodada, indica uma acentuada margemde distância entre o que prevê a classe política, e mesmo os supostosespecialistas em análise de conjunturas eleitorais, com o que finalmenteocorre. Em boa parte, esses resultados obedecem à desestabilização de re-ferentes políticos que Fujimori foi laboriosamente urdindo em seus anosde governo.

Também não há, seguindo os critérios do Mainwaring e Scully, umenraizamento da noção de que os partidos políticos cubram a maior parteda sociedade de modo que exista um vasto conjunto de cidadãos que ostomem em conta. Nem existem organizações internas consolidadas; pre-ponderam ainda as alianças, que se dividem uma vez terminados os comícios,bem como, em parte, o transfuguismo. De fato, no Congresso unicameralperuano de 120 representantes, as únicas bancadas que têm disciplina novoto e provavelmente discussões prévias no momento de tomar decisões

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:30636

637

E N T E N D E N D O A S A D E S Õ E S C I D A D Ã S A O G O V E R N O D E A L B E R T O F U J I M O R I

são as do Partido Aprista e os 13 eleitos pela Aliança para o Futuro, queagrupa os seguidores de Fujimori e que teve uma força eleitoral maior doque supunha a maioria dos analistas políticos.

Também em parte é atribuível ao que sobreviveu do regime anterior adebilitação da rede de organizações da sociedade, especialmente o movi-mento sindical, que, apesar de alguns avanços parciais, não conseguiu serecompor.

PROBLEMAS NA DEMOCRACIA PROCEDIMENTAL

O retorno à democracia não foi acompanhado da recuperação das elitespolíticas e sociais que o regime anterior atacou sistematicamente. Perde-ram vigor definições de democracia inspiradas nos primeiros trabalhos deSchumpeter, segundo o qual a política eleitoral pode se entender como umacordo entre elites que pactuam dirimir suas divergências num mercadoeleitoral. Essas elites se encontram submetidas a um grave escrutínio e auma exacerbada desconfiança. Em boa medida se encontram autorrefe-renciadas e distantes da população.

E o processo não ocorre só no centro do sistema. Os problemas de lide-rança existentes na sociedade se prolongam no âmbito das distintas regiõesdo país, nas principais cidades, nas comunidades rurais. Por isso existe umadificultosa tarefa de intermediação feita por operadores políticos. Boa par-te deles não tem adesão estável a alguma organização e oferece seus servi-ços à margem de qualquer compromisso com uma proposta determinada.Esses intermediários continuam um estilo imposto pelo fujimorismo nosúltimos anos de sua gestão. Esse governante recrutava pessoas com experiên-cia política, quaisquer que tivessem sido suas opções anteriores, e organi-zava redes de adesão ao regime. O estilo é o mesmo, a diferença é que nadécada de 1990, uma vez estabelecidas essas redes, elas se mantinham, eagora se formam e desmancham em pouco tempo. Não há, então, laçosconfiáveis de lealdade. De certa maneira, o sistema democrático se man-tém e mesmo assim parece existir a vertigem que produz alguns vazios po-líticos. Provavelmente no porvir isso seja evitado por uma liderança

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:30637

638

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

fortemente estabelecida como a de Alan García, independentemente de quese compartilhem ou não de seus projetos e orientações. Mas ainda assim serequer também uma oposição com níveis mínimos de articulação que atéagora não se alcançaram.

A PRECÁRIA INSTITUCIONALIZAÇÃO

Alguns acontecimentos ocorridos nos anos de retorno à democracia gera-ram problemas de governabilidade que o fujimorismo teria provavelmenteresolvido sem necessariamente recorrer à repressão. Desmantelaram-se osmecanismos de adesão a um líder e suas redes de apoio e não se criarammecanismos opcionais de resolução de conflitos no que toca a enfren-tamentos da população com autoridades locais, relacionados com as ex-plorações minerais, as resistências a privatizações ou as mobilizações doscocaleros que ocorreram no período.14 Não se trata, nem única nem parcial-mente, de que o retorno a um regime de garantias desencadeie um conjun-to de reivindicações longamente contidas.

Ocorreu que não existem nem partidos políticos nem organizações sociaiscapazes de captar interesses, represá-los, ordenar uma agenda. A buscadadispersão social do fujimorismo em benefício de seu governo como instru-mento de controle social se transformou num efeito perverso e imprevisto,afetando a consolidação democrática. O que caracteriza os anos recentesno Peru são movimentos sociais que começam em alguns dos grupos maispobres e às vezes têm um efeito expansivo no conjunto de uma determina-da comunidade. São com frequência coalizões provisórias e, não obstante,marcadamente confrontacionais.

Em geral valorizam mais do que outras expressões de protesto umaidentidade comum que surge da própria luta em que se encontram imersos,sem que isso se encontre acompanhado de um discurso ideológico queaspire a uma coerência sem fissuras. Surge além disso um novo tipo delíderes, com um protagonismo marcado por mulheres se comparados coma etapa anterior, com maiores níveis de escolarização do que a dos anti-gos dirigentes e cuja liderança é seguida de perto e exposta a um maior

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:30638

639

E N T E N D E N D O A S A D E S Õ E S C I D A D Ã S A O G O V E R N O D E A L B E R T O F U J I M O R I

questionamento pelos que integram essas novas organizações. Umaconflitividade social que, ao seu estilo, Fujimori controlava ou evitava antesde seu surgimento torna-se agora extremamente complexa de conter ourepresar.

A democracia requer instituições que funcionem, ministérios, congres-sistas, fiscais, juízes, policiais, governadores, prefeitos, representantes daProcuradoria Geral da República que sejam reconhecidos em sua repre-sentatividade ou que sejam eficazes no cumprimento de suas tarefas, segundoos casos. Parcialmente como consequência do fujimorismo, as instituiçõesnão conseguem dar conta das responsabilidades que lhe competem ou sãovistas, como na década anterior, com desconfiança pela população. Por isso,o que antes se resolvia por meio de um governo legitimado agora se faz pormeio de mecanismos ad hoc para enfrentar situações críticas em que inter-vêm sacerdotes, notáveis locais, a Defensoria Pública, que têm às vezes demediar, além de suas estritas atribuições jurídicas, inclusive ONGs. A reso-lução dos conflitos e das reivindicações de movimentos sociais dispersosparece ser provisória e, ao não existirem procedimentos regulares parachegar a acordos, não é capaz de gerar precedentes. Por isso as explosõesde protesto podem surgir uma e outra vez. Às vezes até pelas mesmas ra-zões que motivaram a primeira impugnação.

O FUTURO DO FUJIMORISMO

Na América Latina está se discutindo cada vez com maior insistência aqualidade da democracia que estamos vivendo, sobretudo em termos deinclusão social e de confiança dos cidadãos em suas instituições, deslo-cando o tema vigente até poucos anos atrás sobre o grau com que cumpresuas necessárias formalidades. Existe, então, um clima de insatisfação ede desconcerto em que o que não está escrito no roteiro — mas se encon-tra nas entrelinhas do texto — é o temor do ressurgimento de líderes plebis-citários, alguns deles dentro do próprio sistema democrático, como tentouÁlvaro Uribe na Colômbia e mais que provavelmente procure fazer AlanGarcía no Peru.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:30639

640

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Nas campanhas eleitorais de 2001 e 2006, candidatos conservadorescomo Lourdes Flores, do Partido Popular Cristão, e até os procedentesdo partido aprista, que se reivindicam de orientação social-democrata,deram sinais, em alguns casos velados, em outras manifestos, de com-preender e justificar as razões que tiveram os cidadãos que aderiram àspolíticas de quem governou o país na década de 1990. E os grêmios queagrupam os empresários mais poderosos não deixaram de continuaropinando que esse regime cumpriu tarefas que eram necessárias, inevi-táveis de assumir, no período histórico em que teve de se responsabili-zar pela condução do país.

Desmantelou-se em parte o sistema anticorrupção que levara a prender,processar e condenar muitos dos personagens mais visíveis do regime auto-ritário. Fujimori foi extraditado do Chile para o Peru, em parte pela vonta-de política do governo de Alejandro Toledo de levar adiante o processo,condicionando as margens de decisão que podia tomar nesse assunto o novopresidente Alan García. Antes que a Corte Suprema do Peru pronuncie sen-tença em relação ao conjunto de delitos que imputam a Fujimori, referen-tes a violações de direitos humanos, atos de transgressão da ordem jurídicae casos menores de corrupção, provavelmente transcorra mais de um ano.É provável que finalmente vá para a prisão, em parte por pressões da socie-dade e da comunidade internacional. Alan García, além disso, parece terconseguido a adesão das elites econômicas do país e é de se esperar quepaulatinamente se aproxime dos setores populares que antes seguiam ogovernante autoritário. Dessa maneira o fujimorismo pode ser neutraliza-do. Não queríamos aventurar outros prováveis cenários, não é tema desteartigo. O que se pode sustentar com razoável margem de segurança é que afilha de Alberto Fujimori, Keiko Sofía, a congressista com maior votaçãono sistema de voto preferencial que tem o Peru, iniciou sua carreira políti-ca com uma perspectiva muito auspiciosa. Não seria a primeira vez na his-tória da América Latina que os legados políticos se associam também alegados familiares.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:30640

641

E N T E N D E N D O A S A D E S Õ E S C I D A D Ã S A O G O V E R N O D E A L B E R T O F U J I M O R I

Notas

1. Há uma tendência em interpretar os salários em 1988 como regimes trabalhistasinstáveis, sujeitos a contratos caracterizados por sua flexibilidade. Os soldos es-tariam submetidos a um sistema mais regular e estável, com 14 meses de salários

e maiores garantias de acesso ao sistema de seguridade social. LYNCH, Nicolas.

Una tragedia sin héroes: la derrota de los partidos y el origen de los independientes,

Perú 1980-1992. Lima: UNMSM, 1999.

2. NOVARO, Marcos. Representación y liderazgo en las democracias contemporáneas.

Rosário: Homo Sapiens, 2000.

3. FRANCO, Carlos. Acerca del modo de pensar la democracia en América Latina.

Lima: Friedrich Ebert Stiftung, 1998.

4. SCHMITT, Carl. La Dictadura. Madri: Alianza, 1985.

5. GUERRA GARCÍA, Gustavo. “La dimensión política del ajuste económico en el

Perú”, in: ——. Repensando la política en el Perú. Lima: Red para el Desarrollo

de las Ciencias Sociales, 1999.

6. MURAKAMI, Yusuke. La democracia según C y D: un estudio de la conciencia

y el comportamiento político de los sectores populares de Lima. Lima: IEP-

JCAS, 2000.

7. PARODI, Jorge. “Los pobladores, la ciudad y la política: un estudio de actitudes”,

in: ——. Los pobres, la ciudad y la política. Lima: CEDYS, 1993.

8. ESCALANTE, Fernando. “De la necesidad, virtud, moral pública y orden políti-

co en Mexico”. Estudios Sociológicos, México, XXIII, nº 39, 1995.

9. GROMPONE, Romeo. La escisión inevitable: partidos y movimientos en el Perú

actual. Lima: IEP, 2005.

10. GROMPONE, Romeo. “La vigencia social del fujimorismo”. Revista Ideele, Lima,

nº 176, 2006.

11. UGARTECHE, Oscar. Adiós Estado, bienvenido mercado. Lima: UNMSM, 2004.

12. LEVITSKY, Steven; WAY, Lucan. “Elections Without Democracy. The Rise of

Competitive Authoritarism”. Journal of Democracy, Washington, vol. 13, nº 2,

abril, 2002.

13. MAINWARING, Scott; SCULLY, Timothy. “Introduction”, in: —— (eds.). Building

Democratic Institutions. Party Systems in Latin America. Stanford: Stanford Uni-

versity Press, 1995.

14. Essa ideia me foi sugerida pela historiadora e socióloga do Instituto de Estudios

Peruanos María Isabel Remy.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:30641

642

A C O N S T R U Ç Ã O S O C I A L D O S R E G I M E S AU T O R I T Á R I O S — B R A S I L E . . .

Bibliografia

ESCALANTE, Fernando. “De la necesidad, virtud, moral pública y orden político enMexico”. Estudios Sociológicos, México, XXIII, nº 39, 1995.

FRANCO, Carlos. Acerca del modo de pensar la democracia en América Latina. Lima:Friedrich Ebert Stiftung, 1998.

GROMPONE, Romeo. La escisión inevitable: partidos y movimientos en el Perú actual.Lima: IEP, 2005.

——. “La vigencia social del fujimorismo”. Revista Ideele, Lima, nº 176, 2006.GUERRA GARCÍA, Gustavo. “La dimensión política del ajuste económico en el Perú”,

in: ——. Repensando la política en el Perú. Lima: Red para el Desarrollo de lasCiencias Sociales, 1999.

LEVITSKY, Steven; WAY, Lucan. “Elections Without Democracy. The Rise of CompetitiveAuthoritarism”. Journal of Democracy, Washington, vol. 13, nº 2, abril de 2002.

LYNCH, Nicolas. Una tragedia sin héroes: la derrota de los partidos y el origen de losindependientes, Perú 1980-1992. Lima: UNMSM, 1999.

MAINWARING, Scott; SCULLY, Timothy. “Introduction”, in: —— (eds.). BuildingDemocratic Institutions. Party Systems in Latin America. Stanford: StanfordUniversity Press, 1995.

MURAKAMI, Yusuke. La democracia según C y D: un estudio de la conciencia y elcomportamiento político de los sectores populares de Lima. Lima: IEP-JCAS, 2000.

NOVARO, Marcos. Representación y liderazgo en las democracias contemporáneas.Rosario: Homo Sapiens, 2000.

PARODI, Jorge. “Los pobladores, la ciudad y la política: un estudio de actitudes”, in:——. Los pobres, la ciudad y la política. Lima: CEDYS, 1993.

SCHMITT, Carl. La dictadura. Madri: Alianza, 1985.UGARTECHE, Oscar. Adiós Estado, bienvenido mercado. Lima: UNMSM, 2004.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:30642

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:30643

O texto deste livro foi composto em Sabon,

desenho tipográfico de Jan Tschichold de 1964

baseado nos estudos de Claude Garamond e

Jacques Sabon no século XVI, em corpo 10,5/15.

Para títulos e destaques, foi utilizada a tipografia

Frutiger, desenhada por Adrian Frutiger em 1975.

A impressão se deu sobre papel off-white 80g/m2

pelo Sistema Cameron da Divisão Gráfica

da Distribuidora Record.

Y920-01(Civilização).p65 28/4/2011, 18:30644