Ronaldo Abud Cabrera - Domínio Público · O mercado sabe tudo sobre preços, nada sobre valores....

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RONALDO ABUD CABRERA O EFETIVO ACESSO À JUSTIÇA NAS AÇÕES DE CONSUMO PELA APLICAÇÃO DA INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA CENTRO UNIVERSITÁRIO TOLEDO ARAÇATUBA – SP 2006

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RONALDO ABUD CABRERA

O EFETIVO ACESSO À JUSTIÇA NAS AÇÕES DE CONSUMO PELA APLICAÇÃO DA INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA

CENTRO UNIVERSITÁRIO TOLEDO ARAÇATUBA – SP

2006

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RONALDO ABUD CABRERA

O EFETIVO ACESSO À JUSTIÇA NAS AÇÕES DE CONSUMO PELA APLICAÇÃO DA INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA

CENTRO UNIVERSITÁRIO TOLEDO ARAÇATUBA – SP

2006

Dissertação apresentada ao curso de pós-graduação em Direito, nível stricto sensu –mestrado – em Tutela Jurisdicional Constitucional, como requisito parcial para obtenção do grau de mestre, sob a orientação da Profa. Dra. Iara Rodrigues de Toledo.

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BANCA EXAMINADORA

___________________________________________ Profa. Dra. Iara Rodrigues de Toledo

___________________________________________ Prof. Dr. José Sebastião de Oliveira

___________________________________________ Prof. Dr. Ivan Aparecido Ruiz

Araçatuba/SP, 25 de novembro de 2006

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DEDICATÓRIA

À minha esposa Maika e aos meus filhos Caio

Uenner, Thales e Leonardo.

Aos meus pais, pela educação proporcionada,

pelo exemplo e lição de vida.

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AGRADECIMENTOS

À ilustre pessoa do Dr. Antônio Afonso de

Toledo, in memorian, idealizador da criação e

implantação do Curso de Mestrado em Direito

na Unitoledo de Araçatuba e ao digníssimo Dr.

Maurício Leite de Toledo, in memorian,

apoiador louvável do firme propósito da

implantação do Curso de Mestrado.

Ensinaram felicidade, entusiasmo e esperança;

e, assim, perpetuaram-se entre nós.

Ao magnífico Reitor Bruno Roberto Pereira de

Toledo, que segue de forma brilhante os passos

idealizados por seus antecessores.

À Profa. Neusa C. Rosa Nunes e à Secretária

Geral Ana Maria Valereto Nicoletti, que

empenharam todos os esforços possíveis para a

concretização do sonhado curso de Mestrado

em Araçatuba.

À coordenação e ao meritório corpo docente do

curso de mestrado e, em especial, à minha

orientadora Profa. Dra. Iara Rodrigues de

Toledo, que com admirável paciência e

tranqüilidade, soube compartilhar parte da sua

imensa sabedoria.

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O mercado sabe tudo sobre preços, nada sobre valores.

Octávio Paz

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RESUMO

O acesso à justiça é uma preocupação constante dos países em desenvolvimento, sobretudo,

no regime democrático de direito. Mecanismos de facilitação do acesso à justiça pelos

necessitados, pelas minorias, pelos excluídos ou pelos vulneráveis devem ser

disponibilizados, sob pena de se negar os próprios fundamentos do Estado Democrático de

Direito. Este trabalho aborda um dos institutos processuais de proteção ao consumidor, a

inversão do ônus da prova, que permite a realização dos direitos do consumidor até mesmo

nas ações em que o mesmo não houver se desincumbido do ônus de provar os fatos

constitutivos de seus direitos.

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SUMMARY

The access to justice is a constant concern of the developing countries, over all, in the

democratic system of right. Mechanisms of facilitation of the access to justice for the needed

ones, the minorities, the excluded ones or the vulnerable ones must be disponibilizados, duly

warned to refuse the proper beddings of the Democratic State of Right. This work approaches

one of the procedural justinian codes of protection of the consumer, the inversion of the

responsibility of the test, that even though allows the accomplishment of the rights of the

consumer in the actions where if it will the same not have desincumbido of the responsibility

to prove the material facts of its rights.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO………………………………………………………………………... 10

I DO ACESSO À JUSTIÇA............................................................................ 15

1.1 A Evolução Histórica do Acesso à Justiça............................................ 15

1.2 Do Acesso à Justiça............................................................................... 23

II DO DIREITO DO CONSUMIDOR NO ORDENAMENTO JURÍDICO

BRASILEIRO..................................................................................................

29

2.1 Origem do Direito do Consumidor.......................................................... 29

2.2 A tramitação legislativa de elaboração do Código de Defesa do

Consumidor.............................................................................................

32

2.3 O espírito do Código de Defesa do Consumidor.................................... 39

III DA PROVA NO DIREITO BRASILEIRO............................................................... 42

3.1 Conceito de Prova............................................................................................. 42

3.2 Direito à Prova.................................................................................................. 46

3.3 Princípios da Prova ......................................................................................... 47

3.3.1 Princípio da auto-responsabilidade das partes...................................... 47

3.3.2 Princípio Dispositivo............................................................................ 47

3.3.3 Princípio da audiência contraditória.................................................... 48

3.3.4 Princípio da comunhão da prova ou princípio da aquisição da prova 48

3.3.5 Principio da liberdade dos meios de prova........................................... 49

3.3.6 Princípio da relatividade das provas..................................................... 51

3.3.7 Principio do livre convencimento motivado ou Princípio da livre

apreciação ou Princípio da persuasão racional......................................

51

3.4 Sistemas de apreciação da prova no Direito brasileiro..................................... 52

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3.4.1 Sistema de Prova Legal......................................................................... 52

3.4.2 Sistema de livre convicção.................................................................... 52

3.4.3 Sistema do livre convencimento motivado........................................... 53

3.5 Objeto da prova................................................................................................ 55

3.6 Ônus da prova................................................................................................... 58

3.7 A distribuição do ônus da prova no direito brasileiro....................................... 62

3.7.1 A inversão do ônus da prova – requisitos............................................. 64

3.7.2 Momento da inversão do ônus da prova............................................... 69

3.7.2.1 No despacho inicial................................................................ 70

3.7.2.2 No despacho saneador........................................................... 74

3.7.2.3 Na sentença definitiva........................................................... 84

CONCLUSÃO................................................................................................................. 94

REFERÊNCIAS............................................................................................................... 99

ANEXO A Dispositivos constitucionais de proteção ao consumidor (CF 1988)........ 102

ANEXO B Código de Defesa do Consumidor (Lei n.º 8.078 de 11/09/1990)............ 109

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INTRODUÇÃO

No atual estágio dos conhecimentos científicos sobre o Direito, é

predominante o entendimento de que não há sociedade sem Direito (ubi societas ibi jus), pois

o Direito exerce função ordenadora na sociedade, coordenando os interesses que se

manifestam na vida social, organizando a cooperação entre pessoas e compondo os conflitos

que se verificam entre os seus membros, tudo isso orientado pelo critério do justo e do

eqüitativo conforme um determinado povo, lugar e época.

O Direito se manifesta, sobretudo, por meio do ordenamento jurídico,

consubstanciado pelas normas jurídicas que traduzem um comando abstrato externado, nos

sistemas positivistas, pelas leis. Quando ocorre um fato descrito na norma jurídica como

ensejador da sua incidência, deve o aplicador do direito aplicá-la a fim de fazer valer a sua

vontade em concreto.

Para a aplicação da norma jurídica, é necessário que o intérprete da mesma

tenha conhecimento dos fatos que ensejam a sua incidência, pois, em regra, sem ter a nítida

noção dos fatos, torna-se impossível a um juiz proclamar a adequada solução jurídica

pretendida pela lei (justa e eqüitativa).

Por sua vez, para que o juiz conheça o fato que reclama a aplicação material

da norma jurídica, é necessário que o fato seja provado perante o juízo, isto é, deve ser levada

ao juiz a verdade de um fato. Todavia, cabe ressaltar que não basta apenas que a verdade de

um fato seja levada perante o juiz, mas tal fato deve ser conhecido por meios legais,

observando-se o conjunto das normas jurídicas que regulamentam o processo de determinação

e demonstração dos fatos, conjunto este denominado em amplo sentido de devido processo

legal.

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A sociedade é ordenada pelo Direito, que tem por objeto a norma jurídica. A

norma jurídica, por sua vez, busca harmonizar o convívio social, normatizando as condutas

humanas e prescrevendo soluções, em abstrato, aos conflitos sociais. A subsunção da norma

jurídica para a solução dos casos concretos é realizada pelo poder jurisdicional do Estado, por

um devido processo legal, conduzido por um juiz natural que, pela prova, conhecerá a

verdade dos fatos para então aplicar, de forma justa e eqüitativa, a “vontade” da lei (mens

legis).

Levando isso em consideração, o presente trabalho objetiva demonstrar que

a aplicação do princípio constitucional do acesso à justiça nas demandas de consumo, em

muitos casos, dependerá da aplicação do instituto processual da inversão do ônus da prova,

decorrente do princípio da isonomia substancial (ou real).

A atual política de desenvolvimento da ordem econômica, acatando a

normas programáticas da Constituição Federal de 1988, entre outras coisas, alicerça-se no

equilíbrio real das relações de consumo. Na promoção deste equilíbrio, o Estado deve fazer-se

presente dentro do mercado de consumo a fim de tutelar, de um lado, os interesses dos

consumidores, parte vulnerável da relação de consumo, e de outro, os interesses dos

fornecedores. Deve o Estado realizar a plena proteção dos direitos fundamentais do

consumidor (a dignidade, a saúde, a segurança, a qualidade de vida, a proteção econômica,

etc.) e ao mesmo tempo, promover o crescimento e o desenvolvimento econômico

sustentável, garantindo-se proteção à livre iniciativa. Essa paradoxal função estatal é o novo

desafio do direito no Século XXI. Como delimitar a linha de equilíbrio entre a proteção ao

consumidor e a livre iniciativa ?

Na relação de consumo, o consumidor é reconhecidamente a parte

vulnerável, e assim é declarado pela própria legislação consumerista (art. 4º do CDC).

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A vulnerabilidade do consumidor decorre de fator econômico, impulsionada

pelo novo modelo de sociedade de massa. Os bens de produção consistentes no capital,

maquinário, tecnologia, terras, mão-de-obra, etc. concentram-se em poder dos fornecedores.

Por deterem os bens de produção, cabe ao fornecedor decidir as questões fundamentais da

economia: o quê, quanto, como e para quem produzir ?

Ao consumidor, resta apenas o secundário “poder” de decidir se consome ou

não os produtos e serviços fornecidos no mercado de consumo. Ao consumidor não resta

efetiva capacidade de impor sua vontade perante o fornecedor. Diante dessa máxima

econômica de um mercado de livre iniciativa, explica-se o motivo pelo qual o Estado invoca

para si a missão de defender e proteger os interesses do consumidor. Contudo, ao mesmo

tempo, cuida o Estado de preservar e promover o desenvolvimento econômico e tecnológico

de modo sustentável.

Por deter os bens de produção, os fornecedores direcionam o conteúdo de

suas futuras relações de consumo como melhor lhes convém. As regras de oferta de bens e

serviços no mercado de consumo não realizam o justo equilíbrio nas obrigações das partes, ao

contrário, destinam-se a reforçar a posição econômica e jurídica do fornecedor que as

controla.

A legislação consumerista brasileira, considerada exemplar e moderníssima

aos olhos do mundo, sobretudo no campo da tutela dos interesses metaindividuais, é revestida

de institutos que buscam equilibrar a relação de consumo reconhecendo ao consumidor

prerrogativas tanto de direito material, quanto de direito processual. A Lei nº 8.078, de 11 de

setembro de 1990, denominada Código de Defesa do Consumidor, regula as relações de

consumo.

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Na sociedade contemporânea, cuja principal característica é ser uma

sociedade de produção e de consumo de massa, é imprescindível uma legislação que assegure

o necessário equilíbrio das relações de consumo garantindo uma prestação jurisdicional justa.

Dentre os principais institutos processuais trazidos pelo Código

Consumerista, pode-se destacar a possibilidade da inversão do ônus da prova em favor do

consumidor nos processos de natureza cível, instituto que está previsto no ordenamento

jurídico brasileiro pelo Código de Defesa do Consumidor, art. 6º, inciso VIII.

A inversão do ônus da prova trazida pelo diploma consumerista inova de

forma relevante a ordem jurídica brasileira. Traz nova solução, diferente da “regra geral”,

para o julgamento dos processos cujo fato constitutivo do direito alegado pelo autor não tenha

sido provado, ou suficientemente provado.

O instituto da inversão do ônus da prova e sua forma de aplicação, ainda não

encontram consenso doutrinário, sendo até mesmo taxado por alguns juristas (erroneamente),

de ser um instituto parcial e antiisonômico, violador dos princípios constitucionais do devido

processo legal (due process of law), do contraditório e da ampla defesa, da imparcialidade do

juiz e da igualdade.

No plano prático, a aplicação da inversão do ônus da prova pelo juiz

possibilita a resolução do mérito de forma favorável à pretensão do autor consumidor, mesmo

que este não tenha logrado êxito na comprovação do fato por ele alegado e constitutivo do seu

direito.

Nesta pesquisa, o instituto da inversão do ônus da prova será abordado sob

um enfoque constitucional, mediante interpretação gramatical, histórica, sistemática e

teleológica. Esta pesquisa buscará demonstrar que a aplicação do instituto da inversão do ônus

da prova nas demandas de consumo é a plena realização dos princípios constitucionais do

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amplo acesso à justiça e da isonomia, sendo um dos mais importantes instrumentos da sua

efetividade.

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I. DO ACESSO À JUSTIÇA

1.1 A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO ACESSO À JUSTIÇA

Contra a monarquia absolutista e arbitrária, a Revolução Francesa de 1789,

inspirada pelo liberalismo iluminista, concebe a idéia de Estado de Direito, no qual o poder

deve ser exercido mediante representação e submete-se às leis votadas pelo Poder Legislativo,

integrado pelos representantes dos cidadãos governados.

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789, é a mais famosa das declarações. Por força do preâmbulo da Constituição de 1958 – como ocorria na de 1946 – está ela em vigor na França. Integra o chamado “bloc de constitutionnalité”, em face do qual opera o controle de constitucionalidade efetuado pelo Conselho Constitucional. Sua importância e primazia entre as declarações vem exatamente do fato de haver sido considerada como o modelo a ser seguido pelo constitucionalismo liberal. Daí a sua incontestável influência sobre as declarações que, seguindo essa orientação, se editaram pelo mundo afora até a primeira Guerra Mundial.1

Com a ruptura do sistema absolutista monárquico, no transcorrer do Século

XIX, houve o predomínio do Poder Legislativo sobre o Poder Executivo, pois era preciso

consolidar a idéia da legalidade, atributo das democracias liberais.2 Com a implantação dos

ideais democráticos (todo o poder emana do povo e em seu nome será exercido) e legalistas

(ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei)

surge imperativa necessidade de se criar mecanismos de instrumentalização que

potencializem a efetiva realização das liberdades e dos direitos reconhecidos aos cidadãos (e

conquistados por eles). Nos estados liberais burgueses (Século XVIII e XIX), os

procedimentos adotados para solução dos litígios civis refletiam a filosofia essencialmente

individualista dos direitos, então vigorante.

1 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais, pp. 19-20. 2 LIMA, Rogério Medeiros Garcia de. Aplicação do código de defesa do consumidor, p. 15.

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O acesso à justiça, isto é, o direito de acesso à proteção judicial significava

essencialmente o direito formal do indivíduo agravado de propor ou contestar uma ação.

Nesse sentido, o acesso à justiça, embora tido como um direito natural, como tal, não exigia

uma ação do Estado para sua proteção, pois os direitos naturais eram considerados anteriores

ao Estado e predominava a idéia de que sua preservação exigia somente que o Estado não

permitisse que eles fossem violados por outros. O Estado se comportava de forma passiva.

No sistema do laissez-faire (Estado liberal), a justiça, assim como outros

bens, só poderia ser obtida (ou acessada) por aqueles que pudessem suportar seus custos e

aqueles que não pudessem fazê-lo, eram considerados os únicos responsáveis por sua sorte.3

Tratava-se de um acesso puramente formal, mas não efetivo à justiça, o que correspondia à

idéia da igualdade apenas formal, mas não substancial.

Todavia, em razão das condições fáticas revelarem diferenças substanciais

entre as pessoas, o Estado liberal (laissez faire) não realizava a implantação da igualdade

efetiva entre os cidadãos. Era necessário que o Estado deixasse de lado seu comportamento

passivo, passando a um modelo de Estado que interviesse nas relações sociais por meio de

prestações positivas. Passou-se então do Estado liberal (laissez faire) para o Estado do bem-

estar social (welfare state).4

À medida que as sociedades do laissez faire cresceram em tamanho e

complexidade, o conceito de direitos humanos sofreu uma radical transformação, sendo

influenciados pela mudança do contexto das relações interpessoais, que cada vez mais,

passaram a adquirir um caráter mais coletivo do que individual. Surge uma consciência

política de se implantar institutos realizadores de uma função social consistentes na

sobreposição dos interesses coletivos em relação aos interesses meramente individuais.

3 CAPPELLETTI, Mauro et al. Acesso à justiça, p. 9. 4 SANTOS, Elisângela Perussi. Regras de distribuição do ônus da prova nas demandas de consumo, p. 14.

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Pode-se falar em um movimento de transformação das ações e

relacionamentos da sociedade moderna, que assumem um caráter mais coletivo que

individual, deixando para trás a visão individualista dos direitos, o que pode ser percebido nas

declarações de direitos típicas dos Séculos XVIII e XIX.

Esse movimento se concretiza pelo reconhecimento dos direitos e deveres

sociais dos governos, comunidades, associações e indivíduos, surgindo uma nova espécie de

direitos humanos. Esses novos direitos humanos são, antes de tudo, os necessários para tornar

efetivos e realmente acessíveis a todos, os direitos antes proclamados na ordem dos direitos

civis tradicionais.

A ciência do direito, como toda ciência, tem um objeto, que é o direito, apesar de, devido a sua pluridimensionalidade, por conter inúmeros elementos heterogêneos, que dificultam uma bordagem unitária, o estudar ora sob um aspecto ora sob outro, conforme a mundividência ou posição jusfilosófica do jurista.5

“As novas demandas obrigam uma metamorfose na abordagem

individualista (tradicional) do direito para um enfrentamento coletivizado. Além disso, muda

a ótica de observação.”6 “Dá-se ênfase ao consumidor, e não ao produtor do direito.”7

Entre os novos direitos humanos garantidos pelas constituições modernas

estão os direitos ao trabalho, à saúde, à segurança material e à educação, exigindo-se do

Estado uma atuação positiva de modo a promover e assegurar o exercício de todos esses

direitos sociais básicos. Dá-se assim o surgimento do welfare state, estado cujo governo

proporciona o bem-estar dos cidadãos por meio de serviço social.

O acesso efetivo à justiça ganha especial atenção na medida em que o

welfare state se desenvolve, uma vez que há nítida evolução dos direitos substantivos que

5 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. p. 177. 6 PORTANOVA, Rui. Princípios do processo civil. p. 113. 7 CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à justiça, p. 16.

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passam a considerar a qualidade coletiva dos seus titulares, tais como: consumidores,

empregados, locatários, pacientes, deficientes, cidadãos, entre outras.

O direito ao acesso efetivo à justiça tem sido progressivamente reconhecido

como sendo de suma importância tanto para os direitos individuais como para os novos

direitos sociais, uma vez que a titularidade de direitos é destituída de sentido, se não houver

mecanismos aptos a garantir sua efetiva reivindicação.

No nosso atual sistema político, conforme leciona Rogério Medeiros Garcia

de Lima:

O Estado Democrático se destina a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, da liberdade, da segurança, do bem-estar, do desenvolvimento, da igualdade e da justiça, como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social.8

Para que o Estado assegure o exercício dos direitos sociais e individuais, é

necessário que crie mecanismos de acesso efetivo à justiça.

O Estado Democrático de Direito exerce a função pública que é a atividade

exercida no cumprimento do dever de alcançar o interesse público, mediante o uso dos

poderes instrumentalmente necessários conferidos pela ordem jurídica.9

Tem-se tradicionalmente que o Direito é um conjunto de normas –

princípios e regras – dotadas de coercibilidade, que disciplinam a vida social.10 Conquanto a

doutrina tradicional bifurque o direito em dois grandes ramos, submetidos a técnicas jurídicas

distintas, o Direito Público e o Direito Privado, modernamente, há uma tendência em se

reconhecer um ramo intermediário, que não se ocupa só dos interesses privados, regulando

relações entre particulares, e também não se ocupa só dos interesses públicos, ou seja, dos

interesses da Sociedade.

8 Aplicação do código de defesa do consumidor, p. 18. 9 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo, p. 27. 10 Ibidem, p. 25.

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Este ramo intermediário, denominado como direito social, tem por objeto a

proteção e a realização dos interesses particulares interpretados à luz dos interesses públicos

(da coletividade). Nesse novo ramo do Direito, situam-se os sub-ramos do Direito

Previdenciário, Direito do Trabalho, Direito Tributário moderno, com a constante

preocupação de limitação ao poder de tributar do Estado e com estabelecimento de direitos e

garantias fundamentais em favor do contribuinte, Direito Sanitário, Direito de propriedade e,

dentre outros, o Direito do Consumidor.

As modernas constituições consagram o acesso à justiça a título de garantia

e direito humano fundamental, permitindo que todos tenham acesso à justiça para postular

tutela jurisdicional preventiva ou reparatória relativamente a um direito.11 “Seria

incompreensível que o Estado estabelecesse o direito e não estabelecesse concomitantemente

uma atividade específica tendente a garantir a sua eficácia nos casos de violação.”12

Na lição de Mauro Cappelletti,

o acesso à justiça pode ser encarado como o requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos. [...] O ´acesso` não é apenas um direito social fundamental, crescentemente reconhecido; ele é, também, necessariamente, o ponto central da moderna processualística.13

Como se vê, ao longo da história das sociedades, houve três paradigmas

básicos de organização política: o Estado de Direito, também chamado Estado Liberal

(laissez faire), o Estado de Bem-Estar Social (welfare state) e o Estado Democrático de

Direito.14

No Estado liberal, o princípio predominante é o da legalidade, consolidando-

se a teoria da tripartição dos Poderes, de Montesquieu, buscando coibir o arbítrio dos

11 NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na constituição federal, p. 96. 12 ROCHA, José de Albuquerque. Teoria geral do processo, p. 52. 13 Acesso à justriça, pp. 12-13. 14 LIMA, Rogério Medeiros Garcia de. Aplicação do código de defesa do consumidor, p. 23.

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governantes e oferecendo segurança jurídica para os governados. É o Estado legalmente

constituído e contido.

Na lição de Celso Antônio Bandeira de Mello:

No mundo ocidental, prevalece a afirmação de que há uma trilogia de funções do Estado: a legislativa, a administrativa (ou executiva) e a jurisdicional. [...] As funções legislativas, administrativas (ou executivas) e judiciais estão distribuídas entre três blocos orgânicos, denominados “Poderes”, os quais, de regra, são explicitamente mencionados nas constituições modernas do Ocidente. Tais unidades orgânicas absorveriam, senão com absoluta exclusividade, ao menos com manifesta predominância, as funções correspondentes a seus próprios nomes: Legislativo, Executivo e Judiciário. Esta trilogia não reflete uma verdade, uma essência, algo inexorável proveniente da natureza das coisas. É pura e simplesmente uma construção política invulgarmente notável e muito bem sucedida, composta em vista de um claro propósito ideológico do Barão de Montesquieu, a saber: impedir a concentração de poderes para preservar a liberdade dos homens contra abusos e tiranias dos governantes.15 (negritei)

A ordem social tem por pressuposto de sua manutenção a credibilidade dos

destinatários da norma jurídica de que existe um sistema de efetivo acesso à justiça garantidor

dos seus direitos.

Ao término da primeira Guerra Mundial, novos direitos fundamentais foram reconhecidos. São os direitos econômicos e sociais que não excluem nem negam as liberdades pública, mas a elas se somam. Este desenvolvimento foi motivado pelas idéias do liberalismo econômico – livre iniciativa num mercado concorrencial – e propiciado pelas instituições – Estado abstencionista – e regras decorrentes das revoluções liberais. Teria sido impossível sem a abolição das corporações de ofício, sem a liberdade de indústria, comércio e profissão, sem a garantia da propriedade privada, etc. Por um lado, esse processo provocou um acréscimo súbito de riqueza, que atingiu níveis jamais vistos. Mas esta riqueza ficou concentrada nas mãos dos empresários, ou da classe burguesa se se preferir. É verdade, porém,que isto vale globalmente falando, pois os ciclos econômicos, as crises, freqüentemente retiravam tudo daqueles que num momento haviam sido imensamente ricos.16

A classe trabalhadora se viu numa situação de penúria. Não mais havia a

proteção corporativa, o poder político se omitia. O trabalho era uma mercadoria como outra

qualquer, sujeita à lei da oferta e da procura. E a máquina reduzia a necessidade de mão-de-

obra, gerando a massa dos desempregados. E, portanto, baixos salários.

15 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo, p. 27-29. 16 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais, p. 42.

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As condições de trabalho nas fábricas, minas e outros empreendimentos

eram extremamente ruins, tanto para o corpo como para o espírito. Nada impedia o trabalho

de mulheres e crianças em condições insalubres. A marginalização da classe operária, como

excluída dos benefícios da sociedade, vivendo em condições subumanas e sem dignidade,

provocou, em reação, o surgimento de uma hostilidade dessa classe contra os “ricos”, contra

os “poderosos”, que favorece o recrutamento de ativistas revolucionários, inclusive terroristas.

Tal situação era uma ameaça gravíssima à estabilidade das instituições liberais, portanto, à

continuidade do processo de desenvolvimento econômico. Urgia superá-la e isto suscitou uma

batalha intelectual e política, surgindo o Estado social.

No Estado social, predomina o intervencionismo e o garantismo estatal. O

Estado monopoliza funções e realiza a proteção das minorias, em nome do bem estar social. É

um Estado de direito participativo, também ditado pela legalidade.

No Estado democrático de direito, predomina um sistema ao qual se pode

chamar de livre iniciativa temperada, ou seja, em regra, impera a livre iniciativa, porém,

controlada pelo Estado que se preocupa em prover a tutela dos interesses públicos. Não

importa apenas tutelar os interesses sociais, mas sim, promovê-los, realizá-los. Parte-se para a

idéia de um Estado não só formalmente comprometido com uma ordem jurídica justa, mas

substancialmente. É um Estado de conteúdo material. Não basta a mera declaração legal dos

direitos, tampouco a atividade garantista e subsidiária do Estado. O Estado deve programar-se

para realizar funções sociais em prol do interesse público.

Nesse enfoque, a luta pela proteção dos direitos dos consumidores insere-se

como um micro-tema dos direitos humanos. A qualidade de vida, a segurança e a saúde física

e mental do homem é objetivo a ser alcançado pelo Estado. Ao Estado cabe garantir a

efetividade desses direitos, bem como assegurar os meios para que sejam alcançados.17

17 CARVALHO, Micheline Maria Machado. A inversão do ônus da prova no direito do consumidor. disponível

em <www.datavenia.net/artigos/Direito_Processual_Civil/> acesso em 03.07.2006.

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A República Federativa do Brasil, no texto constitucional, se auto-classifica

de Estado Democrático de Direito (art. 1º da CF/88). Também na Constituição Federal de

1988, está determinada a proteção ao consumidor, elevada à categoria de um direito

fundamental (art. 5º, inc. XXXII), conforme será tratado especificamente mais adiante neste

trabalho. Também prevê o texto maior a proteção ao consumidor como princípio referente à

estabilidade da ordem econômica (art. 170, inc. V).

A opção por uma codificação das normas de consumo foi feita pela

Assembléia Nacional Constituinte. A elaboração do Código, portanto, encontra sua fonte

inspiradora diretamente no corpo da Constituição Federal, precisamente no art. 5º, inciso

XXXII, em que o Poder Constituinte originário optou em dar natureza jurídica de direito e

garantia fundamental à defesa do consumidor. Não se pode esquecer ainda do art. 170 da

Constituição Federal que estabelece em seu inciso V como um dos princípios fundamentais da

ordem econômica a “defesa do consumidor”. A proteção ao consumidor é, portanto, uma

liberdade pública.

Adota o sistema de proteção ao consumidor brasileiro o modelo

intervencionista estatal, que pode se manifestar de duas formas:

a) pelo regramento do mercado de consumo mediante as leis esparsas,

específicas para cada uma das atividades econômicas diretamente relacionadas com o

consumidor (publicidade, crédito, responsabilidade civil pelos acidentes de consumo, saúde,

garantias, etc.)

b) pela tutela sistemática e codificada, como conjunto de normas gerais, em

detrimento de leis esparsas. Este modelo, pregado pelos maiores juristas da matéria, foi o

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adotado no Brasil, que surge como o pioneiro da codificação do Direito do Consumidor em

todo o mundo.18

1.2 DO ACESSO À JUSTIÇA

Os estudos dos limites do acesso à justiça encontram dificuldades quanto à

definição de seu alcance e sentido. Conforme já se viu alhures, o sentido da expressão acesso

à justiça é dinâmico e tem evoluído constante e progressivamente conforme a evolução da

sociedade, o que dificulta ainda mais a compreensão de sua acepção.

Rui Portanova define “o acesso à justiça como princípio informativo da ação

e da defesa, na perspectiva de se colocar o Poder Judiciário como local onde todos os

cidadãos podem fazer valer seus direitos individuais e sociais.”19

Como salienta Horácio Wanderlei Rodrigues, a vagueza da expressão acesso

à justiça permite fundamentalmente dois sentidos:

O primeiro, atribuindo ao vocábulo justiça o mesmo sentido e conteúdo que

o de Poder Judiciário, tornando sinônimas as expressões acesso à justiça e acesso ao

Judiciário.

O segundo, partindo de uma visão axiológica da expressão justiça,

compreendendo o acesso a ela como o acesso a uma determinada ordem de valores e direitos

fundamentais para o ser humano.20

Diante desses sentidos, verifica-se que a formulação do princípio do acesso

à justiça opta pela segunda significação. Esta opção justifica-se tanto por ser mais abrangente,

18 GRINOVER, Ada Pellegrini et alii. Código de defesa do consumidor comentado pelos autores do

anteprojeto, p. 8. 19 Princípios do processo civil, p. 113. 20 Acesso à justiça no direito processual brasileiro, p. 28.

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como pelo fato de o acesso à justiça, enquanto princípio, inserir-se no movimento para a

efetividade dos direitos sociais.

Nesse sentido, ensina Kazuo Watanabe:

A problemática do acesso à Justiça não pode ser estudada nos acanhados limites do acesso aos órgãos judiciais já existentes. Não se trata apenas de possibilitar o acesso à Justiça enquanto instituição estatal, e sim de viabilizar o acesso à ordem jurídica justa.21

A função jurisdicional se desenvolve em três níveis complementares e

interdependentes: a informação sobre as normas gerais a serem utilizadas na avaliação do caso

concreto, o conhecimento do dado social conflitivo, confrontando-o com os parâmetros legais,

e a avaliação prudente, que redimensiona a norma geral e a situação fática, para produzir a

norma jurídica individual.22

Sobre o princípio do acesso à justiça, leciona Rui Portanova:

Trata-se de filosofia libertária, aberta socialmente e realista, que busca, imperativamente, métodos idôneos de fazer atuar os direitos sociais e uma justiça mais humana, simples e acessível. Enfim, é um movimento para efetividade da igualdade material almejada por todos e consagrada pelo Estado Social.23

Mauro Cappelletti, analisando de forma comparativa o movimento de acesso

à justiça, estabelece três ondas (waves) que influenciam e compõem os Estados modernistas.

Estabelece uma primeira onda de acesso à justiça se revela pela

preocupação com o pobre, isto é, a pobreza, não só vista em seu aspecto econômico, mas

também de seus efeitos culturais, sociais e jurídicos, é vista como obstáculo ao acesso ao

Judiciário. Assim, buscam-se soluções para antes mesmo do processo, tais como o instituto da

assistência judiciária, bem como para durante o desenvolvimento do processo, por exemplo, o

patrocínio gratuito para ação e defesa e custeio das despesas processuais.

21 Acesso à justiça e sociedade moderna, p. 128. 22 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito, p. 271. 23 Princípios do processo civil, p. 112.

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A segunda onda se revela pela preocupação com os interesses difusos,

decorrente da massificação das relações humanas. Surge interesse na tutela dos interesses de

massa, como o mercado de consumo, a adequação dos alimentos, o combate à poluição,

proteção das minorias raciais, de idosos etc.

A terceira onda diz respeito à preocupação com a crise burocrática

instaurada no Poder Judiciário.

Nesse sentido, surgem duas alternativas de melhora ou solução: a primeira

diz respeito a uma atuação mais humana do julgador para acolher os consumidores pobres que

acessam o Judiciário. A segunda, consiste na simplificação do procedimento e dos atos

judiciais e do próprio direito substancial.

Nos últimos tempos, a sociedade tem sofrido transformações substanciais,

alcançando progressivas mudanças de ordem social, econômica, cultural e tecnológica.

Um dos grandes desafios do direito é a garantia do acesso à justiça. Uma

sociedade que evolui tão rapidamente exige uma renovação e adequação de suas normas

jurídicas.

Nesse sentido, o Código de Defesa do Consumidor procura garantir o amplo

acesso do consumidor à justiça reconhecendo sua vulnerabilidade na relação de consumo e

estabelecendo regras de proteção visando ao equilíbrio da relação pela análise substancial e

casuística das suas desigualdades. As legislações modernas têm a constante preocupação de

promover e entregar função social às relações humanas, partindo da idéia basilar do direito de

que “o homem é, ao mesmo tempo, indivíduo e ente social. Embora seja um ser independente,

não deixa de fazer parte, por outro lado, de um todo, que é a comunidade humana.”24

Para que criaturas racionais atinjam seus objetivos, a condição fundamental

é a de se associarem. Sozinho o homem é incapaz de vencer os obstáculos que o separam de

24 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito, p. 300.

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seus objetivos ou fins. A idéia de homem é uma idéia de comunidade. A sua existência só é

possível dentro do contexto convivencial, onde vive e age em contato com outros indivíduos.

O homem vive na sociedade e em sociedades. A sociedade sempre foi regida e há de se reger

por certo número de normas, sem o que não poderia subsistir.

A vida em sociedade exige o estabelecimento de normas jurídicas que

regulem os atos de seus componentes, preocupando-se com a tutela das minorias ou das

classes vulneráveis, garantindo-lhes a liberdade.

As normas de direito visam a delimitar a atividade humana,

preestabelecendo o campo dentro do qual pode agir. Tem a finalidade de traçar as diretrizes

do comportamento humano na vida social, para que cada um tenha o que lhe é devido, sempre

em busca da paz e da ordem da sociedade. Nas sociedades modernas, coloca-se no campo das

preocupações jurídicas a organização do mercado de consumo e da ordem econômica, uma

vez que o equilíbrio das sociedades cada vez mais depende da sua produção industrial e

estímulo ao consumo.

Assim, embora se fale das necessidades dos consumidores e do respeito à sua dignidade, saúde e segurança, proteção de seus interesses econômicos, melhoria da sua qualidade de vida, já que sem dúvida são eles a parte vulnerável no mercado de consumo, justificando-se dessarte um tratamento desigual para partes manifestamente desiguais, por outro lado se cuida de compatibilizar a mencionada tutela com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, viabilizando-se os princípios da ordem econômica, e educação – informação de fornecedores e consumidores quanto aos seus direitos e obrigações.25

O chamado consumo sustentável é uma constante preocupação da ciência

consumerista. O próprio consumo de produtos e serviços, em grande parte, pode e deve ser

considerado como atividade predatória dos recursos naturais. E como se sabe, enquanto as

necessidades do ser humano, sobretudo quando alimentado pelos meios de comunicação em

25 GRINOVER, Ada Pellegrini et alii. Código de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto,

p. 18.

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massa e pelos processos de marketing, são infinitas, os recursos naturais são finitos, sobretudo

quando não renováveis.

A nova vertente do consumerismo, busca promover o necessário equilíbrio

entre essas duas realidades, a fim de que a natureza não se veja privada de seus recursos, via

de regra, não renováveis, o que, em conseqüência, estará a ameaçar a própria sobrevivência

do ser humano neste planeta.

A proteção ao consumidor no direito brasileiro foi elevada ao patamar de

direito fundamental (CF/88, art. 5º, inciso XXXII). No mesmo texto constitucional, no art. 5º,

§1º, foi editada a regra da “aplicabilidade imediata” das normas definidoras de direitos e

garantias fundamentais. A intenção da sua criação é compreensível e louvável: evitar que

essas normas fiquem letra morta por falta de regulamentação. Mas o constituinte não se

apercebeu que as normas têm aplicabilidade imediata quando são completas na sua hipótese e

no seu dispositivo. Ou seja, quando a condição de seu mandamento não possui lacuna, e

quando esse mandamento é claro e determinado. Do contrário ela é não-executável pela

natureza das coisas.26

A norma constitucional que institui a proteção ao consumidor, elevando-a ao

status de direito e garantia fundamental, consistente, portanto, em uma liberdade pública, é,

na carta magna, uma norma de eficácia limitada, que depende de lei para produzir os seus

efeitos concretos desejados. Sem a elaboração de uma norma regulamentadora, a norma

constitucional de eficácia limitada produz apenas efeitos mínimos, insuficientes para a

concretização da mens legislatoris. Exemplo disto é a norma constitucional (1988) que institui

a proteção ao consumidor nos seguintes termos: “o Estado promoverá, na forma da lei, a

defesa do consumidor”.

26 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais, p. 100.

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Referida defesa só se tornou concreta mediante a elaboração (tardia) da Lei

nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, isto é, do Código de Defesa do Consumidor.

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II. DO DIREITO DO CONSUMIDOR NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

2.1 ORIGEM DO DIREITO DO CONSUMIDOR

Conforme foi mencionado, o direito do consumidor surge num contexto

histórico de preocupação Estatal com a proteção das classes sociais discriminadas,

minoritárias ou vulneradas. O consumidor, parte vulnerável da relação de consumo, diante da

massificação das relações econômicas, necessita de normas jurídicas de proteção que

propiciem a sua equiparação contratual em face do fornecedor na relação de consumo.

A vulnerabilidade do consumidor decorre da concentração da riqueza nas

mãos dos fornecedores, que, por terem a detenção dos bens de capital, têm a prerrogativa de

organizar o mercado econômico de acordo aos seus interesses da sua atividade econômica,

decidindo as questões fundamentais da ciência da escassez, ou seja, da economia,

determinando o quê, quanto, como e para quem produzir.

A massificação das relações econômicas e a mecanização dos meios de

produção entregam ao mercado de consumo produtos e serviços mais quantificados do que

qualificados. A nova ordem produtiva, decorrente da revolução industrial, impõe um sistema

de produção em série e oferta em massa de produtos e serviços em busca da maior

lucratividade. Com isso, a figura do fornecedor distancia-se do consumidor, tornando a

relação de consumo cada vez mais impessoal.

Grandes corporações, com evidentes e sobressalentes interesses econômicos,

passam a ser os fornecedores de massa, monopolizando os setores produtivos e dificultando a

proteção ao consumidor, que cada vez mais perde a sua capacidade de impor a sua vontade

dentro da relação de consumo.

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Com a vulneração do consumidor e, por outro lado, com o enriquecimento

cada vez maior do fornecedor, que passa a concentrar cada vez mais os bens de capital, o

equilíbrio econômico é colocado em xeque, pois os consumidores passam a ser

ilimitadamente explorados no mercado de consumo, submetendo-se à vontade contratual

unilateral do fornecedor e prejudicando a circulação de riqueza. Tal realidade revela-se

prejudicial à manutenção da ordem econômica e, conseqüentemente, ao interesse público.

Diante da realidade econômica e social, diante das significativas alterações dos meios de

produção e comércio, fica evidente a necessidade de se criar uma tutela jurídica para o

consumidor, parte vulnerável da relação de consumo, de modo a fazer com que a sua condição

de vulnerável diante do fornecedor seja suprida pelo Estado.

Os fenômenos de intercâmbio de bens e de convivência entre os homens são derivados de sua própria natureza gregária. São, por isso mesmo, anteriores à sua regulamentação jurídica e, ao longo da evolução das sociedades organizadas politicamente, continuam a inovar e surpreender os legisladores. Dessa maneira, não é o direito que cria a realidade da circulação de riquezas. Ele apenas constata essa realidade e procura outorgar à sociedade instrumentos que orientem as pessoas a se garantir contra práticas abusivas e a contar com o apoio da autoridade estatal para atingir os resultados econômicos legítimos, dentro de um ambiente de equilíbrio e segurança.27

O Código de Defesa do Consumidor surge com esse propósito, isto é,

Procura dar ao consumidor proteção no campo pré-contratual, contratual em si, pós-contratual e extracontratual. Evidente que o consumidor como destinatário final de tudo que o mercado produz, como aquele que coloca um fim na cadeia produtiva, o que realmente busca o fornecedor é que o contrato seja celebrado para assim possibilitar sua própria atuação no mercado. Se o consumo dá-se primacialmente, com a efetivação do contrato, e se é também com a sua efetivação que o fornecedor aufere maior ou menor vantagem econômica, é plausível que o espírito do CDC seja de voltar sua atenção para as abusividades das cláusulas contratuais, bem como para o momento anterior à celebração do próprio contrato, inserindo-se aí a preocupação com o controle de publicidade, cujo objetivo é o de levar o consumidor a contratar, enfim, a consumir. Efetivado o contrato, há também a preocupação com a execução das próprias obrigações nele pactuadas, para que esta execução satisfaça às legítimas expectativas criadas no consumidor, eleito pelo legislador como o mais vulnerável da relação.28

27 WEINGARTEN, Célia. El contrato como institución jurídica es la consecuencia de un sistema económico, La

equidad como principio de seguridad económica para los contratantes, in Revista de Direito do Consumidor, p. 33 apud THEODORO JÚNIOR, Humberto. Direitos do consumidor, p. 02.

28 KHOURI, Paulo Roberto Roque Antônio. Direito do consumidor. Contratos, responsabilidade civil e defesa do consumidor em juízo, p. 17-18.

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O Estado passa a ter legitimidade, em nome do interesse público na

manutenção da ordem econômica, de intervir nas relações de consumo em favor do

consumidor, buscando a promoção do reequilíbrio da relação de consumo fazendo, em

concreto, valer a vontade do consumidor dentro da relação de consumo.

A liberdade de contratar, baseada na soberania da vontade individual dos contratantes, que formava o fundamento do instituto jurídico do contrato concebido sob o domínio das idéias individualistas e liberais dos Séculos XVIII e XIX, naturalmente não vigora mais em nossos dias, tantas são as interferências nesse domínio efetuadas pelo legislador e pela jurisprudência.29

Importante registrar que o intervencionismo estatal, sobretudo na figura do

dirigismo contratual em favor do consumidor, não foi introduzido no ordenamento jurídico

brasileiro com o fito de enfraquecer a força do vínculo contratual nem de eliminar a presença

da vontade individual na sua formação. Apenas se agregou ao princípio da autonomia da

vontade a responsabilidade social traduzida no princípio da boa-fé objetiva.

Essa concepção objetiva de boa-fé se prende ao regime atual da sociedade de consumo e das contratações de massa, onde as condições contratuais são pela própria conjuntura fruto de regras unilaterais impostas pelo contratante que detém o controle do negócio. Predominam as chamadas “condições gerais” e os contrato são, via de regra, “de adesão”, sem possibilidade da normal e prévia discussão de condições entre as partes.30

O surgimento do Direito do consumidor como parte do Direito brasileiro é

parte da evolução do pensamento jurídico, criando novos conceitos, pensando topicamente e

dando novo conteúdo a noções chaves como a boa-fé, a eqüidade contratual, a válida

manifestação de vontade, a equivalência de prestações, a transparência e o respeito entre as

partes do mercado de consumo.31

O Direito do consumidor surge na ordem jurídica brasileira num contexto de

constitucionalização dos direitos sociais e das garantias fundamentais típicos do regime

29 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Direitos do consumidor, p. 10. 30 Ibidem, p. 20. 31 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor, p. 25.

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democrático de direito, ensejando a participação ativa do Estado na manutenção e realização

dos chamados direitos sociais, dentre os quais situa-se o direito do consumidor.

Ensina o eminente jurista José Afonso da Silva,

Realça de importância a inserção do Direito dos consumidores entre os direitos fundamentais, com o que se erigem os consumidores à categoria de titulares de direitos constitucionais fundamentais. Conjugue-se isso com a consideração do art. 170, V, que eleva a defesa do consumidor à condição de princípio da ordem econômica. Tudo somado, tem-se o relevante efeito de legitimar todas as medidas de intervenção estatal necessárias a assegurar a proteção prevista no art. 5º, inciso XXXII da Constituição Federal.32

Insta salientar que, dada a concentração dos bens de capital nas mãos do

fornecedor e, sendo o diploma legal parcial e desigualmente protetivo do consumidor, não foi

tranqüila a sua elaboração. Uma simples análise quanto ao prazo de 120 dias fixado para a sua

elaboração (ADCT, art. 48) e a data em que efetivamente foi promulgada a norma

consumerista (11/09/1990), revela a grande resistência que enfrentou o processo legislativo da

sua criação, conforme será de forma mais detalhada a seguir.

2.2 A TRAMITAÇÃO LEGISLATIVA DE ELABORAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

Conforme já visto, a proteção ao consumidor tem índole constitucional.

Prescreve a Constituição Federal de 1988:

Art. 5º omissis Inciso XXXII – o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor.

Como se vê, a norma constitucional é evidentemente incompleta, pois lhe

falta a conclusão, o mandamento, a regulamentação, classificando-se como norma

constitucional de eficácia limitada, dependendo de lei para surtir seus esperados efeitos.

32 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 265-266.

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Imperativa foi, portanto, a elaboração do Código de Defesa do Consumidor,

conforme prelecionado pelo art. 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias:

Art. 48. O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor.

Antes mesmo da promulgação da Constituição de 1988, o então presidente

do Conselho Nacional de Defesa do Consumidor, Dr. Flávio Flores da Cunha Bierrenbach,

constituiu comissão, no âmbito do referido Conselho, com o objetivo de apresentar

Anteprojeto de Código de Defesa do Consumidor, previsto, com essa denominação, pelos

trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte. A comissão foi composta pelos seguintes

juristas: Ada Pellegrini Grinover, que recebeu a função de coordenadora, Daniel Roberto

Fink, José Geraldo Brito Filomeno, Kazuo Watanabe e Zelmo Denari. Durante os trabalhos de

elaboração do anteprojeto, a coordenação foi dividida com José Geraldo Brito Filomeno e a

comissão contou com a assessoria de Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin, Eliana

Cáceres, Marcelo Gomes Sodré, Mariângela Sarrubo, Nelson Nery Júnior e Régis Rodrigues

Bonvicino. Também contribuíram com valiosos subsídios os promotores de Justiça de São

Paulo, Marco Antônio Zanellato, Roberto Durço, Walter Antônio Dias Duarte e Renato

Martins Costa. A comissão ainda levou em consideração trabalhos anteriores do Conselho

Nacional de Defesa do Consumidor (CNDC), que havia contado com a colaboração de Fábio

Konder Comparato, Waldemar Mariz de Oliveira Júnior e Cândido Dinamarco.

Após diversas reuniões realizadas na Secretaria de Defesa do Consumidor

de São Paulo, a comissão apresentou ao ministro Paulo Brossard o primeiro anteprojeto, que

foi amplamente divulgado pelo encaminhamento a pessoas e entidades ligadas ao assunto e

debatido em diversas capitais, recebendo, assim, críticas e sugestões. Desse trabalho conjunto,

longo e ponderado, resultou a reformulação do anteprojeto, que veio a ser publicado no Diário

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Oficial de 4 de janeiro de 1989, acompanhado do parecer da comissão, justificando o

acolhimento ou a rejeição das propostas recebidas.

A publicação do anteprojeto ocasionou novas sugestões, inclusive dos

membros do Conselho Nacional de Defesa do Consumidor, todas devidamente levadas em

consideração. Novos encontros seguiram-se, continuando o anteprojeto a ser amplamente

discutido pelos segmentos interessados. A comissão fez mais revisões, levando em

consideração o substitutivo do Ministério Público em São Paulo – Secretaria de Defesa do

Consumidor, que acabaria sendo incorporado pelos substitutivos do deputado Geraldo

Alckmin.

A Comissão de Juristas do Conselho Nacional de Defesa do Consumidor

(CNDC) prestou especial atenção às proposições e sugestões dos juristas brasileiros e

estrangeiros reunidos no I Congresso Internacional de Direito do Consumidor, realizado em

São Paulo, de 29 de maio a 2 de junho de 1989.

Finalmente, quando da constituição da Comissão Mista do Congresso

Nacional, incumbida de apresentar Projeto do Código de Defesa do Consumidor, a comissão –

notadamente por intermédio de Ada Pellegrini Grinover, Antônio Herman de Vasconcellos e

Benjamin e Nelson Nery Júnior – assessorou o relator, deputado Joaci Góes, na consolidação

dos projetos legislativos existentes, a partir principalmente dos apresentados pelos deputados

Geraldo Alckmin Filho e Michel Temer. Dessa consolidação, amplamente discutida em

debates públicos, dos quais participaram segmentos interessados e a sociedade civil em geral,

inclusive pela OAB/CF, surgiu o substitutivo da Comissão Mista, que acabaria finalmente se

transformando no Código de Defesa do Consumidor.

Assim, foi que esse longo e democrático trabalho de gestação, que envolveu

pessoas físicas e jurídicas, entes e associações, representantes dos consumidores e dos

fornecedores de produtos e serviços, tendo como fonte e raiz o trabalho da comissão, foi por

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esta acompanhado em todas as suas etapas, resultando finalmente num Código que é de

encontro, equilíbrio e consenso e que representa a síntese de um esforço coletivo.

No entanto, é forçoso reconhecer que a própria técnica, aberta e

transparente, utilizada para a elaboração do texto definitivo, que incorporou muitas novidades

em relação aos projetos primitivos, acabou resultando em defeitos formais do Código, com

diversos erros de remissão e, em alguns casos, em falhas mais graves, com uma certa ruptura

do sistema.

Tão logo foi divulgado o primeiro anteprojeto da comissão do Conselho

Nacional de Defesa do Consumidor, antes mesmo da sua revisão e publicação no Diário

Oficial, alguns deputados, que a ele tiveram acesso, apresentaram-no como Projetos: primeiro,

o den. 1.149/88, do deputado Geraldo Alckmin Filho; depois, o de nº 1.330/88, da deputada

Raquel Cândido, seguido pelo de nº 1.449/88, do deputado José Yunes.

Ainda em 1988, o deputado Geraldo Alckmin filho apresentou um

substitutivo a seu primeiro Projeto, que lhe foi apensado, e que trazia algumas novidades com

relação ao trabalho da comissão, especialmente extraída do substitutivo MP-SP/Secretaria de

Defesa do Consumidor.

A publicação do anteprojeto, revisto pela comissão, provocou a

apresentação de novos Projetos legislativos, nele calcados: é o caso do Projeto nº 97/89, do

senador Jutahy Magalhães e do Projeto nº 01/89, do senador Ronan Tito, este último

incorporando sugestões de membros do Conselho Nacional de Defesa do Consumidor que não

haviam sido acolhidas pela comissão.

Finalmente, a comissão entregou versão mais adiantada e aperfeiçoada de

seu anteprojeto, resultante dos inúmeros subsídios e sugestões que havia recebido, ao

deputado Michel Temer, que a apresentou como Projeto nº 1.955/89.

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Pode-se, portanto, afirmar, como aliás reconhecem os parlamentares autores

dos projetos legislativos, que todos estes têm como matriz o trabalho desenvolvido pela

comissão instituída pelo Conselho Nacional de Defesa do Consumidor, espelhando cada qual

as diversas fases, mais ou menos adiantadas, pelas quais ele havia passado.

Somente o substitutivo Alckmin, apesar de guardar grande semelhança com

o original, dele se distanciava em alguns pontos, por exemplo, no estabelecimento da

responsabilidade civil objetiva para os vícios de qualidade por insegurança de bens e serviços;

na previsão do controle administrativo preventivo e abstrato, pelo Ministério Público, das

condições gerais dos contratos; na cominação de penas de detenção – e não de reclusão – para

as condutas criminalmente tipificadas.

O Senado adiantou-se à Câmara dos Deputados na tramitação de seus

Projetos e, após diversas audiências públicas, acabou aprovando o Projeto Jutahy Magalhães,

ao qual havia sido fundido o Projeto Ronan Tito. Mas, antes que o Projeto chegasse à Câmara,

o Congresso Nacional, com fundamento no art. 48 do Ato das Disposições Constitucionais

Transitórias, constituiu Comissão Mista destinada a elaborar Projeto do Código do

Consumidor. Presidiu a Comissão Mista o senador José Agripino Maia, sendo seu vice-

presidente o senador Carlos Patrocínio e relator o deputado Joaci Góes.

Distinguindo com sua confiança os membros da comissão do Conselho

Nacional de Defesa do Consumidor, por intermédio de Ada Pellegrini Grinover, Antônio

Herman de Vasconcellos e Benjamin e Nelson Nery Júnior, o relator da comissão incumbiu-

os de preparar uma consolidação dos trabalhos legislativos existentes. Verificados, assim, os

pontos de convergência e divergência, um novo texto foi preparado, que tomou

essencialmente por base o Projeto Michel Temer – que espelhava a fase mais adiantada dos

trabalhos da comissão – e o substitutivo Alckmin, que oferecia algumas novidades

interessantes.

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Para debate dos pontos polêmicos do Código e apresentação de sugestões, a

Comissão Mista realizou ampla audiência pública, colhendo o depoimento e as sugestões de

representantes dos mais variados segmentos da sociedade: indústria, comércio, serviços,

governo, consumidores, cidadãos. A absoluta transparência e a isenção do relator da

Comissão Mista criaram um clima de conciliação, a que se pôde chegar ao consenso,

adotando-se posições intermediárias, que atendiam a todos os interessados.

Finalmente, o Projeto da Comissão Mista, publicado em 4 de dezembro de

1989, recebeu novas emendas, até ser aprovado pela própria comissão e a seguir – superados

alguns problemas procedimentais – pelo Plenário, durante a convocação extraordinária do

Congresso Nacional, no recesso de julho de 1990.

Enviado à sanção presidencial, o Projeto acabou sendo sancionado, com

nada menos do que 42 vetos parciais. Alguns foram o resultado de lobbies que não haviam

conseguido sensibilizar a Comissão Mista e que, vencidos nas audiências públicas, voltaram à

carga na instância governamental. Outros parecem trair a pouca familiaridade dos assessores

com as técnicas de proteção ao consumidor. Outros, ainda, recaíram em pontos

verdadeiramente polêmicos, sendo até certo ponto justificáveis.

Vale salientar que a grande maioria dos vetos se revelou totalmente ineficaz,

por ter ficado o assunto regulado em outros dispositivos não vetados. Sabedores das fortes

pressões políticas que seriam exercidas pelos fornecedores junto ao Congresso Nacional, os

autores do anteprojeto regularam em vários dispositivos da Lei assuntos afins, permitindo

que, mesmo com os inúmeros vetos, a defesa do consumidor fosse efetivamente possível pelo

CDC.

Por fim, em 12 de setembro de 1990, foi publicada a Lei nº 8.078, de 11 de

setembro de 1990, designada Código de Defesa do Consumidor, que entrou em vigor em 11

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de março de 1991, representando uma considerável inovação no ordenamento jurídico

brasileiro, uma verdadeira mudança na ação protetora do direito.

De uma visão liberal e individualista do Direito Civil, passamos a uma visão social, que valoriza a função do direito como ativo garante do equilíbrio, como protetor da confiança e das legítimas expectativas nas relações de consumo no mercado. Nas sociedades de consumo, com seu sistema de produção e de distribuição em massa, as relações contratuais se despersonalizaram, aparecendo os métodos de contratação estandardizados, como os contratos de adesão e as condições gerais dos contratos, deixando claro o desnível entre os contratantes – um, autor efetivo das cláusulas, e outro, simples aderente. Ao Estado coube, portanto, intervir nas relações de consumo, reduzindo o espaço para a autonomia de vontade, impondo normas imperativas de maneira a restabelecer o equilíbrio e a igualdade de forças nas relações entre consumidores e fornecedores.33

A defesa do consumidor, no Brasil, está entre os Direitos e Garantias

fundamentais. “Trata-se de uma verdadeira cláusula pétrea, daí por que não se pode sequer

cogitar em proposta de emenda constitucional tendente a abolir da Carta aquela defesa (art.

60, §4º, inc. IV, da Constituição Federal de 1988).”34

Nos dizeres de José Geraldo Brito Filomeno,

O Código de Defesa do Consumidor, muito mais do que um corpo de normas, é um elenco de princípios epistemológicos e instrumental adequado à defesa do consumidor. Cuida-se de um verdadeiro exercício de cidadania, ou seja, a qualidade de todo ser humano, como destinatário final do bem comum de qualquer Estado, que o habilita a ver reconhecida toda a gama de seus direitos individuais e sociais, mediante tutelas adequadas colocadas à sua disposição pelos organismos institucionalizados, bem como a prerrogativa de organizar-se para obter esses resultados ou acesso àqueles meios de proteção e defesa.35

O Código de Defesa do Consumidor é um microssistema jurídico autônomo

e possui princípios que lhe são peculiares, é interdisciplinar, porque se relaciona com

inúmeros outros ramos de direito e é também multidisciplinar, porque traz em seu conteúdo

normas jurídicas de caráter variado, de cunho civil, processual civil, penal, processual penal,

administrativo, dentre outros.

33 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor, p. 27. 34 FONSECA, Antônio Cezar Lima da. Direito penal do consumidor, p. 20. 35 Manual de direitos do consumidor, p. 09.

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O legislador consumerista valeu-se da técnica de redação aberta, deixando a

critério do intérprete do direito a avaliação dos casos concretos, para a melhor aplicação da

norma jurídica de proteção ao consumidor. Por exemplo, traz o Código de Defesa do

Consumidor rol meramente exemplificativo de práticas abusivas (art. 39), de cláusulas

abusivas (art. 51), de publicidade abusiva (art. 37, §2º), permitindo uma constante adaptação

interpretativa da norma jurídica às necessidades de solução dos casos concretos advindos da

dinâmica realidade social.

2.3 O ESPÍRITO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

Conforme já se adiantou, o Código de Defesa do Consumidor veio com a

finalidade precípua de buscar corrigir o desequilíbrio das relações de consumo, em que o

consumidor, vulnerável diante da figura do fornecedor, necessitava de uma proteção legal a

fim de que pudesse, em concreto, fazer atuar a sua vontade dentro do mercado de consumo

pela implantação de um “política nacional de relações de consumo” que promova o respeito à

dignidade do consumidor, à sua saúde, segurança, proteção de seus interesses econômicos,

melhoria da sua qualidade de vida.

Buscando ampliar a proteção jurídica do consumidor, o Código de Defesa

do Consumidor apresenta estrutura e conteúdo modernos, em sintonia com a realidade

brasileira.

Entre as principais inovações cabe ressaltar as seguintes: formulação de um conceito amplo de fornecedor, incluindo, a um só tempo, todos os agentes econômicos que atuam, direta ou indiretamente, no mercado de consumo, abrangendo inclusive as operações de crédito e securitárias; um elenco de direitos básicos dos consumidores e instrumentos de implementação; proteção contra todos os desvios de quantidade e qualidade (vícios de qualidade por insegurança e vícios de qualidade por inadequação); melhoria do regime jurídico dos prazos prescricionais e decadenciais; ampliação das hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica das sociedades; regramento do marketing (oferta e publicidade); controle das práticas e cláusulas abusivas, controle sobre bancos de dados e cobrança de dívidas de

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consumo; introdução de um sistema sancionatório administrativo e penal; facilitação do acesso à justiça para o consumidor.36

Diante da vulnerabilidade do consumidor, justifica-se um tratamento

desigual entre os integrantes da relação de consumo (fornecedor-consumidor). No entanto, é

necessário compatibilizar a tutela do consumidor com a necessidade humana de

desenvolvimento econômico e tecnológico, que tende a se tornar cada vez mais homogêneo

em relação aos produtos e serviços, provocando uma “estandartização” das relações jurídicas

que são necessárias para a transação desses bens.

Por vulnerabilidade do consumidor, o legislador tomou a sua fragilidade em

face dos fornecedores, quer no que diz respeito ao aspecto econômico e de poder aquisitivo,

quer no que diz respeito às chamadas informações disponibilizadas pelo próprio fornecedor

ou ainda técnica. Nesse aspecto, as regras de distribuição do ônus da prova no direito do

consumidor são influenciada pela Teoria da Carga Dinâmica da Prova, pela qual a prova

incumbe à parte que tem melhores condições para produzir uma determinada prova que se

revele necessária ao processo. Em regra, o fornecedor possui essa capacidade superior em

relação ao consumidor, de produzir as provas, seja pela sua maior capacidade econômica, seja

pela maior aptidão técnica acerca das características do produto ou serviço.

“A edição do Código de Defesa do Consumidor inaugurou um novo modelo

jurídico dentro do Sistema Constitucional Brasileiro, ainda pouco explorado pela Teoria do

Direito.”37 O CDC é norma de ordem pública e de interesse social, geral e principiológica. É

prevalente sobre todas as demais normas anteriores que com ela colidirem, ainda que

especiais.38

36 GRINOVER, Ada Pellegrini et alii. Código de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto,

p. 11. 37 NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. Comentários ao código de defesa do consumidor, p. 65. 38 Ibidem, p. 69.

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O Código de Defesa do Consumidor proclama uma constante presença do

Estado no mercado de consumo com a função pública de regular, disciplinar e fiscalizar as

relações de consumo, protegendo-se a parte vulnerável desta, ou seja, o consumidor. Cria

mecanismos não só de declaração dos direitos do consumidor, mas dota as normas de

proteção de instrumentos capazes de realizar em concreto a finalidade da norma. Dentre os

institutos de proteção, destaca-se nesta pesquisa o instituto processual da inversão do ônus da

prova ope judicis, previsto no art. 6º, inciso VIII da Lei nº 8.078/90.

Referido instituto, sem dúvida, é uma das mais polêmicas inovações

processuais do direito brasileiro. Na ótica da instrumentalidade processual, a inversão do ônus

da prova revela-se bastante eficaz na aplicação da finalidade da norma consumerista.

É importante ter sempre em mente que o Código de Defesa do Consumidor

se rege pela idéia de promover o equilíbrio da relação de consumo buscando anular a posição

de desvantagem ocupada pelo consumidor vulnerável. Assim, um dos princípios que regem o

direito do consumidor é o princípio protecionista, que estabelece que as normas de direito

material, bem como as de direito processual devem ser direcionadas à promoção da proteção

ao consumidor, tratando-o desigualmente em relação ao seu fornecedor, estabelecendo-se uma

desigualdade por meio de um tratamento privilegiado do consumidor até o limite da

desigualdade perante o fornecedor.

Nesse sentido, a inversão do ônus da prova vem permitir que o consumidor,

ainda que não tenha logrado êxito em se desincumbir de um ônus processual que, por lei, lhe

incumbia, consistente na produção probatória suficiente para a formação da convicção do

julgado, consiga alcançar a sua pretensão. Trata-se, portanto, de uma modalidade de

responsabilidade civil do fornecedor, não sem culpa, mas sem prova até mesmo dos elementos

ensejadores da responsabilidade civil, a saber: o dano, a conduta e o nexo de causalidade,

conforme será visto a seguir.

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III. DA PROVA NO DIREITO BRASILEIRO

Antes de se entrar na discussão do instituto da inversão do ônus da prova em

si, é necessário se fazer uma análise do que vem a ser prova. Também se faz necessária a

abordagem do instituto da distribuição do ônus da prova adotado pelo sistema processual

brasileiro, e só então se passar para uma abordagem direta do instituto da inversão do ônus da

prova.

3.1 CONCEITO DE PROVA

Juridicamente, o vocábulo “prova” é polissêmico, já que pode ser referido a

mais de um sentido, alundindo-se ao fato representado, à atividade probatória, ao meio ou

fonte de prova, ao procedimento pelo qual os sujeitos processuais obtêm o meio de prova ou,

ainda, ao resultado do procedimento, isto é, à representação que dele deriva (mais

especificamente, à convicção do juiz).39

Prova, vocábulo derivado do latim: proba, significa “aquilo que atesta a

veracidade ou a autenticidade de alguma coisa; é a demonstração evidente.” É a atividade

realizada no processo com o fim de ministrar ao órgão judicial os elementos de convicção

necessários ao julgamento. É cada um dos meios empregados para formar a convicção do

julgador.40

Etimologicamente, o termo prova provém do latim probo, probatio e probus. Probus significa bom, reto, honrado, sendo possível,então, afirmar que o que resulta provado é autêntico ou corresponde à verificação ou demonstração da autenticidade (lembrando que a palavra autêntico deriva do latim authenticus, que significa aquilo que tem autoridade.

39 SANTOS, Moacyr Amaral, prova judiciária no cível e comercial, p. 11. 40 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa, p. 1408.

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Essencialmente, provar significa demonstrar a verdade de uma proposição afirmada (probatio est demonstrationis veritas).41

Entende-se assim que, no sentido jurídico, “prova é a demonstração que se

faz, pelos meios legais, da existência ou veracidade de um fato material ou de um ato jurídico,

em virtude da qual se conclui por sua existência do fato ou do ato demonstrado.”42

A prova consiste, pois, na demonstração de existência ou da veracidade

daquilo que se alega como fundamento do direito que se defende ou que se contesta. E, nesta

razão, no sentido processual, designa também os meios admitidos em lei, para a realização

dessa demonstração, ou seja, a soma de meios para constituição da própria prova em busca da

produção da certeza.

“A prova constitui, em matéria processual, a própria alma do processo ou a

luz, que vem esclarecer a dúvida a respeito dos direitos disputados.”43

A prova pode ser tomada em duplo sentido: objetivo ou subjetivo. Em

sentido objetivo, prova é o conjunto de meios utilizados para a demonstração da existência

dos fatos. Em sentido subjetivo, prova é a própria certeza ou convicção a respeito da

veracidade da afirmação feita.

Nesse sentido, juridicamente considerada, a prova é a própria convicção

acerca da existência dos fatos alegados, nos quais se fundam os próprios direitos, objetos da

discussão ou do litígio. Portanto, somente há prova quando, pela demonstração, se produz um

vetor suficiente para achar a verdade ou quando os elementos componentes da demonstração

estabeleceram uma força suficiente para produzir a certeza ou convicção.

A força da prova objetiva produzindo a prova subjetiva, é que forma

integralmente a prova jurídica, gerando os efeitos pretendidos, isto é, os de estabelecer uma

demonstração inequívoca acerca dos fatos alegados ou afirmados.

41 CAMBI, Eduardo. Direito constitucional à prova no processo civil, p. 47. 42 SILVA, De Plácido. Vocabulário jurídico, p. 656. 43 Ibidem, p. 656.

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Sobre o tema, leciona o festejado mestre Humberto Theodoro Júnior:

Há dois sentidos em que se pode conceituar a prova no processo: a) um objetivo, isto é, como o instrumento ou o meio hábil, para demonstrar a

existência de um fato (os documentos, as testemunhas, a perícia, etc.); b) e outro subjetivo, que é a certeza (estado psíquico) originada quanto ao fato, em

virtude da produção do instrumento probatório. Aparece a prova, assim, como convicção formada no espírito do julgador em torno do fato demonstrado.44

Assim, para o processo, a prova não é somente um fato processual, mas sim

uma indução lógica, é um meio com que se estabelece a existência positiva ou negativa do

fato probando, e é a própria certeza dessa existência. A um só tempo, deve-se ver na prova a

ação e o efeito de provar, quando se sabe, como leciona Couture, que “provar é demonstrar de

algum modo a certeza de um fato ou a veracidade de uma afirmação”.45

Para Mittermaier, prova judiciária é a soma dos meios produtores da certeza

a respeito dos fatos que interessam à solução da lide.46

O processo moderno procura solucionar os litígios à luz da verdade real e é,

na prova dos autos, que o juiz busca localizar essa verdade. Todavia, o processo não pode

deixar de prestar a tutela jurisdicional, ou seja, não pode deixar de entregar solução jurídica à

lide. Sendo assim, muitas vezes a solução jurisdicional, na prática, na corresponde exatamente

à verdade real.

Toda prova tem um objeto, uma finalidade e um destinatário. A prova

judiciária tem como objeto os fatos deduzidos pelas partes em juízo. Sua finalidade á a

formação da convicção em torno dos mesmos fatos. O destinatário da prova, por sua vez, é o

juiz, pois é ele que deverá se convencer da verdade dos fatos para dar solução jurídica ao

litígio. Mas o juiz não pode eternizar a pesquisa da verdade, sob pena de inutilizar o processo

e de recusar a justiça postulada pelas partes. As partes têm que se submeter às regras

procedimentais para que suas pretensões, alegações e defesas sejam eficazmente

44 Curso de direito processual civil, p. 412. 45 COUTURE, Eduardo J. Fundamentos del dereclho procesal civil, p. 215. 46 apud MONTEIRO, João. Programa do curso de processo civil, p. 90.

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consideradas. Se a parte não utilizar a faculdade processual de provar e a verdade real não

emergir no processo, não poderá queixar-se pela não realização da justiça pura, que, sem

dúvida, é a aspiração das partes e do próprio Estado-juiz.

Ao juiz, só é lícito julgar segundo o alegado e provado nos autos. É lição

fundamental do direito de que o que não se encontra no processo para o julgador não existe. O

instituto da inversão do ônus da prova, nesse aspecto, gera polêmica, pois permite ao juiz

decidir em favor daquele que não se desincumbiu do ônus da prova.

O juiz pode formar livremente a sua convicção; todavia, essa liberdade não é irrestrita, não confundindo-se com o arbítrio. Com efeito, deve ser exercida com responsabilidade e, por isso, exige-se que o juiz motive racionalmente a sua decisão. Para poder motivar sua decisão, o juiz, na atividade de valoração da prova, deve, basicamente, comparar aquilo que foi alegado com aquilo que foi provado. Havendo dúvida quanto à existência dos fatos, o juiz, para melhor esclarecê-los, pode valer-se dos poderes de iniciativa probatória, previstos na lei processual, e, persistindo as incertezas, aplicar o art. 333 do CPC, como regra de julgamento.47

Nos processos civis que tenham por objeto uma relação de consumo, é

possível ainda que o juiz inverta o ônus da prova em favor do consumidor. Vale ressaltar que

a regra da inversão do ônus da prova não é um direito subjetivo do consumidor, tampouco

uma decorrência automática nos processos despidos de prova ou com sua insuficiência. Ao

contrário, fica a critério do juiz a inversão do ônus da prova, desde que presentes os

requisitos autorizadores.

Luis Eduardo Boaventura Pacífico, referindo-se expressamente ao Código

de Defesa do Consumidor (Lei nº 8078/90), menciona que “as normas de inversão do ônus

probatório, revestem-se desenganadamente de caráter excepcional e, como tal, só podem ser

interpretadas restritivamente: Exceptiones sunt strictissimae interpretationis.48

47 CAMBI, Eduardo. Direito constitucional à prova no processo civil, p. 48-49. 48 O ônus da prova no direito processual civil, p. 161.

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3.2 DIREITO À PROVA

O instituto da prova tem grande importância na sistemática processual, pois

não há dúvida de que a prova no processo judicial, seja qual for sua natureza, é imprescindível

para se chegar à solução dos conflitos de interesses. Isto porque, é ela quem vai confirmar a

verdade dos fatos afirmados pela partes, servindo, também, como fundamento da pretensão

jurídica.

A prova, no processo, está voltada ao mundo empírico, desconhecido pelo juiz. Tem, pois, uma conotação histórica, uma vez que está voltada a suscitar na mente do juiz uma representação (imagem) da existência ou do modo de ser dos fatos concretos, no tempo e no espaço, refletindo tanto no mundo externo dos sentidos quanto no mudo interior do espírito.49

A atividade probatória é parte integrante do processo. A prova é elemento

essencial para a resolução dos conflitos. Sem a prova, não se é possível a formação da

convicção do magistrado, destinatário da prova, a quem incumbe aplicar o direito ao conflito

de interesses posto em juízo. Para a segurança jurídica, em regra há de se ter prova segura que

revele a existência do direito pretendido pelo autor da demanda.

Um dos tradicionais conceitos de prova é “o conjunto de atos realizados

pelas partes, pelo juiz e por terceiros, afigurando-se meio instrumental destinado a comprovar

fatos, cuja finalidade é formar a convicção do julgador para a decisão da causa.”50

O direito à prova decorre do texto da Constituição Federal e constitui-se

num direito subjetivo das partes. Integra os princípios do devido processo legal, do

contraditório e da ampla defesa. É corolário do princípio do amplo acesso à justiça.

O direito à prova é uma conquista do Estado Democrático de Direito que pretende aproximar os consumidores da justiça dos órgãos estatais responsáveis pela tutela jurisdicional dos direitos. Visa assegurar a possibilidade de as partes se valerem de todos os meios de prova que se revelem idôneos e úteis para demonstrar a verdade

49 CAMBI, Eduardo. Direito constitucional à prova no processo civil, p. 50. 50 SOUZA, Luiz Antônio. Aula ministrada no complexo jurídico Damásio de Jesus. Outubro/2006.

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ou falsidade dos fatos alegados e que sirvam como suporte para as suas respectivas pretensões e defesas. Compreende, também, a proibição ao legislador infraconstitucional de colocar obstáculos não razoáveis que impeçam ou dificultem a utilização das provas dos direitos buscados em juízo.51

Analisando o conceito jurídico de “prova”, é possível extrair-se alguns

princípios processuais a ela inerentes, os quais serão apresentados a seguir e comentados

singularmente.

3.3 PRINCÍPIOS DA PROVA

3.3.1 PRINCÍPIO DA AUTO-RESPONSABILIDADE DAS PARTES

Estabelece que as partes têm que arcar com as conseqüências da sua inércia

probatória. Mais adiante, ver-se-á que o instituto processual da inversão do ônus da prova

previsto no Código de Defesa do Consumidor, estabelece uma exceção a este princípio,

consagrando o sobreprincípio da proteção ao consumidor.

3.3.2 PRINCÍPIO DISPOSITIVO

Estabelece o princípio dispositivo que às partes incumbe o dever de requerer

e custear as provas que entendam necessárias e pretendam produzir. O princípio dispositivo

em matéria probatória deve ser interpretado em conjunto com o princípio da causalidade que

rege o custeio das despesas para a realização das provas.

51 CAMBI, Eduardo. Direito constitucional à prova no processo civil, p. 46.

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3.3.3 PRINCÍPIO DA AUDIÊNCIA CONTRADITÓRIA

Estabelece que qualquer prova produzida ou trazida pela parte contrária,

deverá ser dada à outra parte a oportunidade de contraditá-la. Cabe ressalvar aqui que o termo

audiência deve ser entendido em sentido amplo, não significando o ato processual de

audiência (sentido estrito).

3.3.4 PRINCÍPIO DA COMUNHÃO DA PROVA ou PRINCÍPIO DA AQUISIÇÃO DA PROVA

Estabelece que a prova produzida por quaisquer das partes é adquirida pelo

processo e passa a ser comungada, isto é, compartilhada por todos os envolvidos, integrando-

se ao próprio processo.

Pelo princípio da aquisição, todas as atividades processuais pertencem à mesma relação jurídica processual, sendo que seus resultados recaem, igualmente, tanto sobre o autor quanto sobre o réu, o que significa que cada um desses sujeitos tem liberdade para produzir a prova que desejar e que a regra de distribuição do ônus da prova serve, essencialmente, para que o juiz possa decidir qual das partes deve sucumbir, em caso de falta da prova necessária para a comprovação do fato controvertido.52

Chegado o momento de proferir decisão, o juiz analisa o processo a fim de

conhecer todas as provas nele produzidas, não importando mais quem trouxe a prova ao

processo, uma vez que o seu destinatário é o juiz, que julgará conforme a prova dos autos,

independentemente de quem seja a parte que a tenha produzido.

52 CAMBI, Eduardo. Direito constitucional à prova no processo civil, p. 41.

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3.3.5 PRINCÍPIO DA LIBERDADE DOS MEIOS DE PROVA

Estabelece que, no processo, são admitidos todos os meios de prova aptos à

demonstração de um fato ou alegação.

Preceitua o Código de Processo Civil:

Art. 332. Todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a ação ou a defesa.

Os meios legais e os moralmente legítimos são os meios de prova

considerados idôneos pelo ordenamento jurídico para demonstrar a verdade, ou não, da

existência e verificação de um fato jurídico.

Todavia, a liberdade dos meios de prova não é absoluta, pois a própria

Constituição Federal determina que “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por

meios ilícitos” (art. 5º, inc. LVI).

A Constituição Federal garante o direito de petição aos Poderes Públicos

(art. 5º, inc. XXXIV, alínea “a”), a inafastabilidade da jurisdição garantindo o amplo acesso à

justiça (art. 5º, inc. XXXV), bem como garante que aos litigantes, em processo judicial ou

administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com

os meios e recursos a ela inerentes (art. 5º, inc. LV).

Tendo a Constituição Federal garantido o amplo acesso à justiça, o

contraditório e a ampla defesa, cabe, do mesmo modo, assegurar os meios pelos quais ser

realizarão tais institutos. Todos os meios legais e os moralmente legítimos podem ser

utilizados para provar fato ou alegação que necessitam ser demonstrados. Vale lembrar que o

princípio da liberdade dos meios de prova decorre de um princípio maior: o princípio da

verdade real. A liberdade dos meios de prova visa a assegurar a busca da verdade real,

constituindo-se num dos principais meios de realização efetiva da justiça.

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50

Existem, porém, algumas limitações ao direito de provar, sendo que alguns

meios de prova são definidos pela própria lei, que fixa prazo, modo ou forma para produzir

prova. Poder-se-ia questionar se essas limitações legais dos meios de prova são

constitucionais ? A resposta é afirmativa, porque o princípio da liberdade dos meios de prova

está inserido no princípio do devido processo legal, que abrange também o devido

procedimento legal. Garante-se o direito de provar, mas o interessado deve exercer esse

direito dentro do devido processo legal.

Existe estreita relação entre a prova e o princípio do devido processo legal.

Para Nelson Nery Junior o devido processo legal é o principio fundamental do processo civil,

é a base que sustenta todos os outros princípios e bastaria a norma constitucional haver

adotado o princípio do due process of law para que daí decorressem todas as conseqüências

processuais garantidas aos litigantes o direito a um processo e uma sentença justa.53

O devido processo legal abrange uma série de direitos e deveres e dentre

eles o dever de se propiciar ao litigante a oportunidade de apresentar provas ao juiz. A imensa

importância da prova na experiência do processo erigiu o direito à prova em um dos mais

respeitados postulados inerentes á garantia política do devido processo legal, a ponto de se

constituir num dos fundamentais pilares do sistema processual contemporâneo.54

Na perspectiva constitucional, o direito à prova deve ser concebido como um direito público subjetivo, que tem a mesma natureza dos direitos de ação e de defesa assegurados pela Constituição, reconhecendo a titularidade de posições jurídicas ativas em relação à autoridade estatal. O status jurídico de direito subjetivo à prova torna possível contextualizar a problemática probatória no enfoque constitucional. A Constituição Federal brasileira de 1988 assegura a garantia do acesso à ordem jurídica justa, que é uma expressão ampla que abarca um complexo de direitos fundamentais processuais, dentre os quais deve ser incluído o direito à prova.55

53 apud CARVALHO, Micheline Maria Machado. A inversão do ônus da prova no direito do consumidor.

Disponível em www.datavenia.net/artigos/Direito_Processual_Civil/ acesso em 03.07.2006. 54 DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno, p. 463. 55 CAMBI, Eduardo. Direito constitucional à prova no processo civil, p. 45.

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51

A parte tem o direito de produzir as provas para constituir sua pretensão

jurídica na demanda processual, ou seja, desde que por meios admitidos em lei ou moralmente

legítimos, a parte deverá empenhar-se em trazer para os autos as provas para a demonstração

dos fatos e alegações dos quais emerge o direito que pretende. A produção da prova e da

contraprova pelos litigantes no processo são inerentes ao princípio do contraditório e da ampla

defesa.

3.3.6 PRINCÍPIO DA RELATIVIDADE DAS PROVAS

Estabelece que o direito à prova é limitado, pois não serão admitidas no

processo as provas ilícitas ou as provas imorais, ou ainda, não serão admitidas no processo as

provas que forem produzidas por meios ilícitos ou imorais.

3.3.7 PRINCÍPIO DO LIVRE CONVENCIMENTO MOTIVADO ou PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO ou PRINCÍPIO DA PERSUASÃO RACIONAL

Estabelece que o magistrado deve, ao decidir, expor os motivos

informadores e formadores da sua convicção, ou seja, o juiz deverá, ao resolver o mérito de

uma demanda, expor as razões de fato e de direito que o levaram a decidir daquela forma.

Nesse sentido, estabelece a Constituição Federal:

Art. 93 omissis inciso IX – todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação. (negritei)

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3.4 SISTEMAS DE APRECIAÇÃO DA PROVA NO DIREITO BRASILEIRO

Basicamente, existem 03 (três) sistemas de valoração e apreciação da prova:

3.4.1 SISTEMA DA PROVA LEGAL

No sistema da prova legal ou critério legal, também denominado de prova

tarifada ou da certeza moral do legislador, é a lei que determina o meio e a prova necessária

para a demonstração de um fato ou alegação, hierarquizando as provas.

No critério legal o juiz é quase um autômato, apenas afere as provas

seguindo uma hierarquia legal e o resultado surge automaticamente. Representa a supremacia

do formalismo sobre o ideal da verdadeira justiça. O sistema do critério legal está

ultrapassado e era o sistema do direito romano primitivo e do direito medieval, ao tempo em

que prevaleciam as ordálias ou juízos de Deus, os juramentos.

“Da rigorosa hierarquia legal do valor das diversas provas, o processo

produzia simplesmente uma verdade formal, que, na maioria dos casos, nenhum vínculo tinha

com a realidade.”56

3.4.2 O SISTEMA DA LIVRE CONVICÇÃO

No sistema da livre convicção, também denominado de íntima convicção ou

certeza moral do julgador, não é exigido do julgador que exponha as razões, isto é, os

motivos e as causas que o levaram à decisão.

56 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil, p. 415.

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53

O sistema da livre convicção é o oposto do critério da prova legal. Nesse

sistema, o que deve prevalecer é a íntima convicção do juiz, que é soberano para investigar a

verdade e apreciar as provas. Não há nenhuma regra que condicione essa pesquisa, tanto

quanto aos meios de prova, como ao método de avaliação.

O sistema da livre convicção vai ao extremo de permitir o convencimento

extra-autos e contrário à prova das partes. Peca o sistema, que encontrou defensores entre os

povos germânicos, portanto, por excessos, que chegam mesmo a conflitar com o princípio

básico do contraditório, que nenhum direito processual moderno pode desprezar.

3.4.3 SISTEMA DO LIVRE CONVENCIMENTO MOTIVADO

No sistema do livre convencimento motivado, também denominado de livre

apreciação ou da persuasão racional, o julgador é livre para apreciar as provas, porém, ao

decidir, deve, sob pena de nulidade da decisão, expor os motivos que formaram a sua

convicção.

Ensina Humberto Theodoro Júnior que o sistema da persuasão racional é

fruto da mais atualizada compreensão da atividade jurisdicional. Mereceu consagração nos

Códigos Napoleônicos e prevalece entre nós, como orientação doutrinária e legislativa.57

O Brasil adota o sistema do livre convencimento motivado. Motivar é

indicar as razões de fato e de direito que levaram à decisão.

O Código de Processo Civil estabelece:

Art. 131. O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento.

57 Curso de direito processual civil. p. 247.

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54

Enquanto no livre convencimento o juiz pode julgar sem atentar,

necessariamente, para a prova dos autos, recorrendo a métodos que escapam ao controle das

partes, no sistema da persuasão racional, o julgamento deve ser fruto de uma operação lógica

armada com base nos elementos de convicção existentes no processo.

Se a rigidez da prova legal, em que o valor de cada prova é previamente

fixado na lei, o juiz, atendo-se apenas às provas do processo, formará seu convencimento com

liberdade e segundo a consciência formada. Embora seja livre o exame das provas, não há

arbitrariedade, porque a conclusão deve ligar-se logicamente à apreciação jurídica daquilo que

restou demonstrado nos autos. E o juiz não pode fugir dos meios científicos que regulam as

provas e sua produção, nem tampouco às regras da lógica e da experiência.

Na visão do Prof. Cândido Rangel Dinamarco, “é direito de cada uma das

partes empregar todas as provas de que dispõe, com o fim de demonstrar a verdade dos fatos

que fundamentam sua pretensão.”58

Segundo Moacir Amaral Santos, a convicção do juiz fica condicionada aos

fatos nos quais se funda a relação jurídica controvertida; às provas desses fatos, colhidas no

processo; às regras legais e máximas de experiência; e o julgamento deverá sempre ser

motivado.59

Para Nelson Nery Júnior, “o juiz é soberano na análise das provas

produzidas nos autos. Deve decidir de acordo com o seu convencimento. Cumpre ao

magistrado dar as razões de seu convencimento.”60

Cabe ressaltar que a decisão judicial despida de motivação, por

determinação constitucional, é nula, nos termos do Art. 93, inciso IX:

58 Fundamentos do processo civil moderno, p. 463. 59 Primeiras linhas de direito processual civil, p. 17. 60 NERY JUNIOR, Nelson et al. Código de Processo civil comentado e legislação civil extravagante em vigor,

p. 481.

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55

Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade [...] (negritei)

3.5 OBJETO DA PROVA

Nas demandas judiciais, em regra, antes mesmo da própria formulação da

pretensão da parte, uma constante busca processual se realiza, consistente na produção das

provas acerca das alegações fáticas (ser) que, em tese, fundamentam o direito (dever ser)

pretendido, previsto, até então, somente de forma abstrata, genérica e impessoal no

ordenamento jurídico, regulando uma determinada situação. Em outras palavras, à parte que

pretende a realização de um direito descrito no ordenamento jurídico, compete antes

demonstrar os fatos que lhe permitam o acesso a tal direito. Cabe à parte titular de um direito

alegado em juízo, demonstrar, mediante um devido processo legal, a situação fática que a

qualifica como tal. Deve a parte demonstrar os fatos que transformam um direito objetivo,

genérico e abstrato, em um direito subjetivo titularizado por ela de modo específico e

realizável.

O objeto da prova, em regra, são os fatos. Leciona o renomado Prof.

Humberto Theodoro Júnior que “todos os pretensos direitos subjetivos que podem figurar nos

litígios a serem solucionados pelo processo se originam de fatos (ex facto ius oritur).”61

A verdade em relação aos mesmos deverá ser reconstruída em juízo, sob a

égide de um devido processo legal com todos os seus corolários. Vale registrar que o direito

não será, em regra, objeto da prova porque o juiz conhece o direito (da mihi factum, dabo tibi

jus) e diante dos fatos, deve aplicá-lo (jura novit cúria). Apenas em caráter excepcional, o

sistema admite a prova do direito de ordem municipal, estadual, estrangeiro ou

consuetudiário.

61 Direitos do consumidor, p. 87.

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Nesse sentido, prescreve o Código de Processo Civil:

Art. 337. A parte, que alegar direito municipal, estadual, estrangeiro ou consuetudinário, provar-lhe-á o teor e a vigência, se assim o determinar o juiz.

É importante ainda se frisar que o fato probando, isto é, o fato objeto da

prova, é o fato controvertido. A norma indica, a contrario sensu, que só podem ser objeto da

prova os fatos controvertidos. Os fatos incontrovertidos não podem ser objeto da prova, nos

termos do Código de Processo Civil:

Art. 334. Não dependem de prova os fatos: I – notórios; II – afirmados por uma parte e confessados pela parte contrária; III – admitidos, no processo, como incontroversos; IV – em cujo favor milita presunção legal de existência ou de veracidade.

Na linguagem comum, prova se utiliza como comprovação da verdade de

uma proposição. Somente se fala de prova a propósito de alguma coisa que foi afirmada e cuja

exatidão se trata de comprovar. Denomina-se prova, todo elemento que contribui para a

formação da convicção do juiz a respeito da existência de determinado fato. É tudo aquilo que

for levado aos autos com o fim de convencer o juiz que o fato ocorreu. Portanto, a colheita de

provas é fundamental, pois será o material com base em que o julgador formará o seu juízo de

valor acerca dos fatos da causa.

Analisa-se sucintamente cada um dos dispositivos legais acima:

Fato notório é o de conhecimento pleno pelo grupo social onde ele ocorreu

ou desperta interesse, no tempo e no lugar onde o processo tramita e para cujo deslinde sua

existência tem relevância.

Quanto aos fatos confessados, vale salientar que a confissão pode ser

judicial ou extrajudicial, espontânea ou provocada.

Nesse sentido, prescreve o Código de Processo Civil:

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Art. 348. Há confissão, quando a parte admite a verdade de um fato, contrário ao seu interesse e favorável ao adversário. A confissão é judicial ou extrajudicial. Art. 349. A confissão judicial pode ser espontânea ou provocada. Da confissão espontânea, tanto que requerida pela parte, se lavrará o respectivo termo nos autos; a confissão provocada constará do depoimento pessoal prestado pela parte.

A confissão tem natureza jurídica de prova. Para que haja validade da

confissão, exige-se capacidade da parte, a declaração de vontade e o objeto possível.

A confissão faz prova contra o confitente, conforme preceitua o Código de

Processo Civil em seu Art. 350, e pode a confissão não coincidir com o reconhecimento

jurídico do pedido (CPC, art. 269, inc. II), que é conceito jurídico mais amplo. O objeto da

confissão são os fatos capazes, eventualmente, de dar procedência ao pedido da parte

contrária. Já o objeto do reconhecimento jurídico do pedido é o reconhecimento do próprio

direito pretendido pelo autor. Sendo assim, a confissão de um fato nem sempre produz, contra

o confitente, a perda da demanda, ao passo que o reconhecimento jurídico do pedido,

verificados todos os pressupostos para sua validade e eficácia, conduz sempre à procedência

do pedido em favor do autor (CPC, art. 269, inc. II).62

O fato confessado, desde que a seu respeito a confissão seja admitida , não

carece de outra prova para sua demonstração. A confissão ficta também é admitida por nosso

ordenamento jurídico (CPC, art. 302 e 319 caput), desde que não haja contestação de nenhum

dos litisconsortes (CPC, art. 320, inc. I e art. 350), o litígio não verse sobre direitos

indisponíveis (CPC, art. 320, inc. III), e a citação não tenha sido ficta, caso em que a

contestação será feita pelo curador especial (CPC, art. 9º, inc. II), e os efeitos da revelia não

ocorrerão.

Fatos incontrovertidos, conforme já se disse acima, são os fatos alegados

pelo autor e não contestados pelo réu, que se presumem verdadeiros, por força da disposição

legal do Art. 302 caput do Código de Processo Civil.

62 NERY JUNIOR, Nelson et al. Código de Processo civil comentado e legislação civil extravagante em vigor,

p. 710.

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O processo civil brasileiro admite uma dicotomia entre verdade formal e

verdade real. Contudo, vale ressaltar que um fato ou é verdadeiro ou não é. Sem exceção, o

que não é verdade, é inverdade. Logo, a repercussão processual da dicotomia diz respeito à

exigência ou não de se produzir uma determinada prova como condição para que haja a

aplicação do direito.

Em alguns casos, o legislador se antecipa ao eventual conflito que possa

surgir entre as partes e faz presumir, de maneira relativa ou absoluta, a veracidade do fato que

especifica. Se a presunção é relativa (juris tantun), admite-se prova em contrário. Se a

presunção é absoluta (jure et de jure), o direito não admite prova em contrário. Os efeitos da

revelia tornam os fatos afirmados pelo autor como presumivelmente verdadeiros, de sorte que

independem de prova em audiência. Em regra, os direitos indisponíveis não admitem dispensa

da prova cabal dos fatos que justificam a aplicação do direito.

Nesse sentido, é a lição do renomado mestre Nelson Nery Junior:

O ideal do direito é a busca e o encontro da verdade real, material, principalmente se o direito for indisponível. No direito processual civil brasileiro vige o princípio do livre convencimento motivado do juiz (CPC, art. 131), mas sempre com o objetivo de buscar a verdade real. Contudo, o sistema processual civil admite, para o julgamento, a verdade formal, salvo os casos de direito indisponível, como já se disse, ou daqueles em que se exige prova legal, cuja valoração o legislador prefixa.63

3.6 ÔNUS DA PROVA

O vocábulo ônus significa “fardo”, “encargo”. O ônus probante não se limita

a uma obrigação de provar, mas traduz uma necessidade de provar.

O Código de Processo Civil adotou como regra que “ônus da prova incumbe

a quem alega”. Se quer dizer com essa regra que a parte tem a possibilidade de agir, desde que

63 NERY JUNIOR, Nelson et al. Código de Processo civil comentado e legislação civil extravagante em vigor,

p. 693.

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nos limites legais, para conseguir realizar a sua pretensão. Para alcançar o bem da vida

almejado, tem a parte que demonstrar a verdade dos fatos que alegou como condição do

reconhecimento da sua pretensão. Portanto, é sua incumbência provar suas afirmações.

“Entende-se por ônus a subordinação de um interesse próprio a outro

interesse próprio.”64

Importante ressaltar que o ônus em matéria processual não se confunde com

a obrigação processual, pois nesta não se tem uma faculdade, mas sim uma imposição de um

comportamento e não cumpri-lo gera um ilícito jurídico.

Obrigação é a subordinação de um interesse próprio a outro, alheio.

Já o ônus de provar determina que a parte deve fazê-lo, sob pena da sua

inércia impossibilitar a concessão da sua pretensão por insuficiência de provas.

À parte que alega a existência de determinado fato para dele derivar a

existência de algum direito incumbe o ônus de demonstrar sua existência. É pacífico o

entendimento de que o ônus da prova é uma conduta que se espera da parte incumbida de

provar. Se não provar os fatos alegados assume o risco de perder a causa. Em resumo o ônus

significa o interesse da parte em produzir a prova que lhe traga conseqüências favoráveis.

Para ser respeitado o princípio da igualdade das partes no processo, o ônus de afirmar e de provar se distribui entre elas, de modo que cada qual tem o encargo de provar os fatos que pretende ver considerados pelo juiz. Entretanto, enquanto o autor não provar os fatos que afirma, o réu não tem necessidade de provar coisa alguma: actore non probante, réus absolvitur.65

A distribuição do ônus da prova serve para nortear a atividade processual,

mostrar a quem incumbe demonstrar seu direito a fim de evitar prejuízos ou impasses por

inexistência ou insuficiência de provas nos autos.

64 LOPES, João Batista. A prova no direito processual civil, p. 34. 65 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil, p. 379.

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No processo civil, em que quase sempre predomina o princípio dispositivo,

que entrega a sorte da causa à diligência ou interesse da parte, assume especial relevância a

questão pertinente à distribuição do ônus da prova.

É importante ressaltar que as regras de distribuição do ônus da prova são

dispensáveis quando no processo já existe prova suficiente para o julgamento, não importando

quem a produziu (princípio da comunhão da prova), restando ao juiz subsumir os fatos

provados à norma jurídica pertinente.

Nesse sentido, João Batista Lopes ensina:

Havendo nos autos elementos probatórios suficientes, não há razão para o juiz preocupar-se com a questão do ônus da prova, isto é, se tais elementos foram carreados ao processo pela parte a quem tocava o ônus de fazê-lo. Em verdade, no momento da produção da prova, o juiz não se preocupa com a questão do respectivo ônus, isto é, não diz a quem incumbe a demonstração das alegações, tema que só será objeto de indagação por ocasião do julgamento.66

O Código de Processo Civil para a distribuição do ônus da prova vale-se da

posição processual em que a parte se encontra. Ao autor compete provar o fato constitutivo do

direito que afirma possuir. E ao réu quanto ao fato impeditivo, modificativo ou extintivo do

direito alegado pelo autor, desde que assim tenha aduzido em sua defesa.

Cabe ao autor provar o fato constitutivo de seu direito, buscando a

procedência do direito pedido. Ao réu incumbe provar os fatos que aduziu quando levantou o

não reconhecimento do direito alegado pelo autor. Admite-se ao réu articular fato impeditivo,

modificativo e extintivo do direito alegado pelo autor, incumbindo-lhe o ônus da prova em

relação aos mesmos. Todavia, a atuação probatória do réu, que recebe o ônus de provar fato

impeditivo, modificativo ou extintivo do direito alegado pelo autor é uma atribuição

subsidiária, uma vez que se o autor deixar de provar o fato constitutivo do seu direito, ainda

66 A prova no direito processual civil, p. 43.

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que o réu também não se desincumba de provar qualquer fato que impeça, modifique ou

extinga o direito do autor, este, em regra, deverá ter negada a pretensão formulada em juízo.

Humberto Theodoro Júnior sustenta que “o ônus da prova consiste na

conduta processual exigida da parte para que a verdade dos fatos por ela arrolados seja

admitida pelo juiz.”67

Não há um dever de provar, mas sim, um simples ônus, de modo que o

litigante assume o risco de perder a causa se não provar os fatos alegados e do qual depende a

existência do direito que pretende resguardar pela tutela jurisdicional. Isto porque, segundo

máxima antiga, fato alegado e não provado é o mesmo que fato inexistente.

Segundo Eduardo Cambi, o ônus da prova tem uma dupla função: a) servir

de regra de conduta para as partes, pré-determinando quais são os fatos que devem ser

provados por cada uma delas e, assim, estimulando suas atividades; b) servir de regra de

julgamento, distribuindo, entre as partes, as conseqüências jurídicas e os riscos decorrentes da

suficiência ou da ausência da produção da prova, bem como permitindo que, em caso de

dúvida quanto à existência do fato, o juiz possa decidir, já que não se admite que o processo

se encerre com uma decisão non liquet. A partir dessa compreensão, pode-se falar, no

primeiro caso, em ônus da prova em sentido subjetivo, e, no segundo caso, em ônus da prova

em sentido objetivo.68

O aspecto objetivo do ônus da prova está intimamente ligado com o aspecto

subjetivo, sendo ambos necessários para a compreensão do instituto do ônus da prova.

Pelo princípio da aquisição processual, para o juiz somente importam os

fatos que foram demonstrados, não quem os demonstrou. Quando o juiz não tem certeza sobre

esses fatos, deve determinar quem sofre as conseqüências decorrentes da falta de prova,

necessitando, para isso, recorrer ao aspecto subjetivo do ônus da prova. Trata-se de um

67 Curso de direito processual civil, p. 419. 68 Direito constitucional à prova no processo civil, p. 40.

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critério lógico estabelecido pela lei processual para a solução dos processos que não tenham

prova suficiente para a prolação de uma decisão, norteado pelo princípio da distribuição do

ônus da prova.

3.7 A DISTRIBUIÇÃO DO ÔNUS DA PROVA NO DIREITO BRASILEIRO

Conforme já visto, o ônus da prova é o poder ou faculdade de executar

livremente certos atos ou adotar certa conduta prevista na norma, para benefício e interesse

próprios, sem sujeição nem coerção e sem que exista outro sujeito que tenha o direito de

exigir seu cumprimento, mas cuja inobservância acarreta conseqüências desfavoráveis.

O sistema brasileiro quanto ao ônus da prova rege-se pelo princípio

distributivo e tem base legal no Código de Processo Civil:

Art. 333. O ônus da prova incumbe: I – ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito; II – ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. Em regra, na sistemática processual, o autor tem o ônus de provar os fatos constitutivos do seu direito, e o réu, o de provar os fatos modificativos, impeditivos e extintivos do direito do autor.69

Entende-se por fato constitutivo o acontecimento da vida que serve de

fundamento ao pedido do autor.

Fato impeditivo é aquele que obsta as conseqüências jurídicas objetivadas

pelo autor.

Fato modificativo é o que opera alteração na relação jurídica.

Fato extintivo é o que acarreta o fim da relação jurídica.

69 SANTOS, Sandra Aparecida Sá dos. A inversão do ônus da prova como garantia constitucional do devido processo legal, p. 67.

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Constitutivos são os fatos que fazem nascer a relação jurídica, decorrem do interesse material, por exemplo: venda e compra de imóvel. Em oposição aos constitutivos, temos os extintivos que têm o condão de causar a cessação da relação jurídica, como o pagamento, na ação de cobrança. Os fatos impeditivos obstam ao efeito que seria decorrência normal do fato constitutivo alegado. Assim, na venda e compra, embora provada a celebração do negócio jurídico, identificado o seu objeto e a forma de pagamento do preço, poderá ocorrer o impedimento, em razão de algum dos vícios do consentimento, como por exemplo, a fraude. E, finalmente, os fatos modificativos que, embora não fulminem a relação jurídica nem impeçam seus efeitos, revestem os fatos constitutivos com outra roupagem, como é o caso de transação feita entre as partes, resultando no pagamento parcial de um débito, de modo que, se o credor promove ação de cobrança no valor total da dívida, o devedor, em sua defesa, poderá obstar a pretensão inicial do autor, ainda que em parte. Este é o sistema do ônus probandi, adotado pelo legislador brasileiro. Indispensável, no entanto,destacar que referido sistema é enunciado como regra geral, sujeito, assim, a exceções.70

De acordo com esse sistema, cada parte tem a faculdade de produzir prova

favorável às suas alegações. A divisão do ônus da prova acompanha o da afirmação,

compatível com a diferente posição processual das partes.

Carnelutti considera que o critério para determinação do ônus da prova

reside no interesse na afirmação, o que se harmoniza com o conteúdo da lide e decorre de

regra de experiência, segundo a qual as partes buscam a prova dos fatos que lhes sejam

favoráveis.71

Resulta óbvio que nenhuma das partes será obrigada a (ou terá interesse em)

fazer prova contrária às suas alegações, a favor do demandante adverso, ficando o tema

restrito à seara da prova negativa quanto ao fato constitutivo.

O Código de Processo Civil adotou o sistema de distribuição do ônus da prova, consubstanciado na disposição do art. 333, segundo o qual incumbe ao Autor o ônus da prova do fato constitutivo e ao réu dos fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do autor, resultando na teoria do denominado ônus da afirmação.72

No ônus, há a idéia de carga, e não de obrigação ou dever. Por outras palavras, a parte a quem a lei atribui um ônus tem interesse em dele se desincumbir; mas se não o fizer nem por isso

70 SANTOS, Sandra Aparecida Sá dos. A inversão do ônus da prova como garantia constitucional do devido

processo legal, p. 68. 71 CARNELUTTI, Francesco. Diritto Processuale Civile Italiano, p. 196. 72 CIANCI, Mirna. A responsabilidade do Estado e o ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor sob o

enfoque da teoria do risco administrativo. Disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2159, acesso em 02.11.2006.

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será automaticamente prejudicada, já que o juiz, ao julgar a demanda, levará em consideração todos os elementos dos autos, ainda que não alegados pelas partes (CPC, art. 131).73

João Batista Lopes propõe alguns princípios que são critérios descritivos das

diversas doutrinas expostas sobre o tema da distribuição do ônus da prova:

- a prova deve ser feita por quem possa satisfazer mais fácil, menos inconveniente

e menos dispendiosamente; - a prova incumbe a quem pleiteia um direito ou uma liberação em relação a fatos

ainda incertos; - deve presumir-se a existência de um direito, uma vez fundado; - só a alegada mutação de um estado anterior necessita ser provada; - cabe o ônus da prova a quem dela auferir vantagem.74

Assim, em regra, incumbe ao autor a prova dos fatos constitutivos do seu

direito, e ao réu a dos fatos extintivos, impeditivos e modificativos. Tal regra não é absoluta,

comportando exceção, dentre as quais a da inversão do ônus da prova nas demandas de

consumo.

3.7.1 A INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA - REQUISITOS

A norma consumerista que prevê a possibilidade de inversão do ônus da

prova decorre dos princípios constitucionais do devido processo legal, do acesso a um

provimento jurisdicional justo e do contraditório e ampla defesa.

Conforme se extrai do texto legal (art. 6º inciso VIII), deve ser facilitada a

defesa do consumidor em juízo, de sorte a ser possível, inclusive, a inversão do ônus da

prova.

O processo civil tradicional permite a convenção sobre o ônus da prova, de sorte que as partes podem estipular a inversão em relação ao critério da lei (CPC, art. 333 parágrafo único, a contrário sensu). O CDC permite a inversão do ônus da prova em favor do consumidor, sempre que for ou hipossuficiente ou verossímil sua alegação. Trata-se de aplicação do princípio constitucional da isonomia, pois o consumidor, como parte reconhecidamente mais fraca e vulnerável na relação de consumo (CDC,

73 LOPES, João Batista. A prova no direito processual civil, p. 34. 74 Ibidem, p. 37.

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art. 4º, inciso I), tem de ser tratado de forma diferente, a fim de que seja alcançada a igualdade real entre os partícipes da relação de consumo, realizando o princípio constitucional da isonomia, na medida em que trata desigualmente os desiguais, desigualdade essa reconhecida pela própria lei.75

Inicialmente, cabe ressaltar uma peculiaridade em relação ao instituto da

inversão do ônus da prova previsto no art. 6º, inciso VIII do CDC. É que referido instituto dá-

se por obra do juiz (ope judicis), e não por obra da lei (ope legis), como ocorre na distribuição

do ônus da prova pelo CPC, art. 333. Assim, cabe ao magistrado verificar se estão presente os

requisitos legais para que se proceda à inversão.

Como se trata de regra de julgamento, apenas será aplicável o instituto da

inversão do ônus da prova quando o juiz verificar o non liquet probatório, isto é, a

inexistência ou a insuficiência de prova dos fatos que alicerçavam o direito pretendido pelo

autor consumidor. Caso as partes tenham se desincumbido do ônus da prova, o juiz está

obrigado a julgar de acordo com as provas e o seu livre convencimento racional e motivado.

É possível elencar os requisitos para a decretação da inversão do ônus da

prova. Aqui, opta-se por apresentá-los na seqüência lógica em que o juiz deve analisar o seu

cabimento:

Admite-se a inversão do ônus da prova desde que:

1) não haja nos autos prova suficiente para o julgamento da ação;

2) seja um processo civil;

3) seja uma ação de consumo, fundada no Código de Defesa do

Consumidor;

4) seja operada em favor do consumidor;

5) seja a alegação do consumidor verossímil;

ou

6) seja o consumidor hipossuficiente.

75 NERY JUNIOR, Nelson et al. Novo código civil e legislação extravagante anotados. p. 727.

Requisitos alternativos

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De início, é necessário informar que os requisitos autorizadores da inversão

do ônus da prova são cumulativos, com exceção, por disposição legal, da verossimilhança da

alegação e da hipossuficiência do consumidor, embora, boa parte da doutrina não admita ser

possível a inversão do ônus da prova sem que haja, sempre, verossimilhança das alegações do

consumidor.

Não se deve esquecer que a inversão do ônus da prova, por ser regra de

julgamento, só terá lugar nos processos despidos de prova suficiente para o seu julgamento. A

inversão do ônus da prova está restrita às ações submetidas ao regime do Código de Defesa do

Consumidor. Trata-se de norma protecionista do consumidor, e, portanto, enseja sua aplicação

somente nas chamadas demandas de consumo.

Somente se admite a inversão do ônus da prova nos processos civis, uma vez

que o processo penal rege-se pelo princípio constitucional da presunção do estado de

inocência, não se admitindo a responsabilidade penal sem que haja prova inequívoca da

culpabilidade do acusado. Aqui, faz-se necessário ressaltar a dicotomia doutrinária entre

verdade real e verdade formal. O processo civil brasileiro, embora sempre busque a verdade

real, inúmeras vezes, contenta-se com a mera verdade formal dos fatos, decidindo, muitas

vezes, com base em meras presunções de veracidade dos fatos alegados. Assim, no processo

civil submetido ao regime do Código de Defesa do Consumidor, é possível a inversão do ônus

da prova a fim de se atribuir responsabilidade civil ao fornecedor de serviços ou produtos,

mesmo quando o autor-consumidor não tenha conseguido demonstrar no processo a

veracidade dos fatos por ele alegados.

Outro requisito da inversão do ônus da prova é que esta seja sempre em

favor do consumidor. É que o instituto processual da inversão destina-se a promover o

equilíbrio da relação de consumo, protegendo o consumidor, legalmente declarado vulnerável

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pelo Código de Defesa do Consumidor (art. 4º inciso I), perante o fornecedor. É a realização

do princípio da isonomia real, favorecendo-se o consumidor buscando diminuir a sua

vulnerabilidade na relação de consumo. Logo, não se admite a inversão do ônus da prova em

favor do fornecedor, o que significa que, sempre que o fornecedor não conseguir provar os

fatos que alicerçam sua pretensão deduzida contra o consumidor, terá a improcedência do seu

pedido como deslinde da ação.

A figura da inversão do ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor surgiu da necessidade de superação das desigualdades, uma vez que, de um modo geral, à evidência, consumidores e fornecedores estão em patamares diversos. Com a inversão do ônus da prova ocorre uma facilitação da defesa do consumidor em juízo, em razão de ser a parte mais fraca ou, quase sempre, hipossuficiente.76

Bastante polêmica surge em relação aos dois últimos requisitos:

verossimilhança das alegações ou hipossuficiência do consumidor, uma vez que há,

inquestionavelmente, uma carga de subjetividade nesses conceitos, mas é claro que o juiz não

poderá afastar-se da razoabilidade, do bom senso e das regras de experiência.

A inversão pode ocorrer em duas situações distintas: a) quando o consumidor for hipossuficiente; b) quando for verossímil sua alegação. As hipóteses são alternativas, como claramente indica a conjunção ou expressa na norma ora comentada.77

“Alegação verossímil é a que tem aparência de verdade. Hipossuficiente é

quem não possui renda ou rendimentos bastantes para atender às suas necessidades materiais e

intelectuais”78

Para Luiz Antônio Rizzatto Nunes, para a avaliação da verossimilhança da

alegação, é necessário que da narrativa decorra verossimilhança tal que naquele momento da

leitura, desde logo, possa-se aferir forte conteúdo persuasivo. E, já que se trata de medida

76 SANTOS, Sandra Aparecida Sá dos. A inversão do ônus da prova como garantia constitucional do devido

processo legal, p. 69. 77 NERY JUNIOR, Nelson et al. Novo código civil e legislação extravagante anotados, p. 727. 78 LOPES, João Batista. A prova no direito processual civil, p. 44.

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extrema, deve o juiz aguardar a peça de defesa para verificar o grau de verossimilhança na

relação com os elementos trazidos pela contestação.79

Não se deve confundir a vulnerabilidade com a hipossuficiência. A

vulnerabilidade é o conceito que afirma a fragilidade econômica do consumidor e também

técnica. Mas hipossuficiência, para fins da possibilidade de inversão do ônus da prova, tem

sentido de desconhecimento técnico e informativo do produto e do serviço, de suas

propriedades, de seu funcionamento vital, dos modos especiais de controle, dos aspectos que

podem ter gerado o acidente de consumo e o dano, das características do vício, etc.

Por isso, o reconhecimento da hipossuficiência do consumidor para fins de

inversão do ônus da prova não pode ser visto como forma de proteção ao mais “pobre”. Ou,

em outras palavras, não é por ser pobre que deve ser beneficiado com ao inversão do ônus da

prova, até porque a questão da produção da prova é processual, e a condição econômica do

consumidor diz respeito ao direito material.

Em cada caso concreto, o juiz deverá analisar o preenchimento dos

pressupostos da verossimilhança ou da hipossuficiência, valendo-se das regras de experiência

(ou máximas de experiência), conforme a própria lei refere-se expressamente, que, como se

sabe, não são normas jurídicas, mas noções abstratas extraídas da observação do que

comumente acontece.

No que respeita à hipossuficiência, não deve o juiz limitar-se ao aspecto

econômico do termo, mas considerar também o grau de cultura do consumidor e o meio social

onde vive.

Como se vê, a lei confere ao juiz o poder de inverter o ônus da prova nas

hipóteses sobreditas, o que significa dizer que, em se cuidando de relações de consumo, a

inversão do ônus da prova não é fruto de convenção das partes, mas de deliberação do juiz.

79 Comentários ao código de defesa do consumidor. p. 123.

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Outrossim, a inversão não é automática, mas depende da observância dos requisitos já

mencionados.

3.7.2 MOMENTO DA INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA

Conforme já se expôs acima, o Código de Defesa do Consumidor prevê a

possibilidade de inversão do ônus da prova em favor do consumidor, no processo civil, como

uma forma de facilitar a sua defesa no processo, desde que estejam presentes determinadas

condições.

A inversão do ônus da prova é uma facilitação dos direitos do consumidor e se justifica como uma norma dentre tantas outras previstas no CDC para garantir o equilíbrio da relação de consumo, face a reconhecida vulnerabilidade do consumidor.80

A inversão do ônus da prova pode ocorrer em qualquer ação ajuizada com

fundamento no Código de Defesa do Consumidor. Mesmo em se tratando de ação de

indenização fundada na responsabilidade objetiva, deve o autor comprovar os fatos

constitutivos de seu direito (existência do dano e nexo de causalidade entre a atividade do

fornecedor e o dano), de modo que pode haver a inversão do ônus da prova nessas ações.81

Muito se discute acerca de qual seria o momento adequado para a aplicação

da inversão do ônus da prova. A legislação silenciou a respeito, o que fez surgir

entendimentos diversos acerca do momento adequado para a decretação da inversão do ônus

da prova.

Inicialmente cumpre destacar que há dissenso quanto ao adequado momento

para se decretar a inversão do ônus da prova. Em regra, três são os momentos processuais

80 CARVALHO, Micheline Maria Machado. A inversão do ônus da prova no direito do consumidor. Disponível

em <www.datavenia.net/artigos/DireitoProcessualCivil/> Acesso em 03.07.2006. 81 NERY JUNIOR, Nelson et al. Novo código civil e legislação extravagante anotados, pp. 725-726.

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admitidos e indicados, doutrinária e jurisprudencialmente, como adequados para a aplicação

da inversão do ônus da prova, a saber:

a) no despacho inicial;

b) no despacho saneador;

c) na sentença definitiva.

A seguir, cada uma das hipóteses acima será analisada especificamente.

Nesse sentido, Sandra Aparecida Sá dos Santos:

Atualmente, existem três teorias acerca do momento próprio para o ato judicial que determina a inversão: a) no despacho inicial; b) no despacho saneador; c) na sentença.82

3.7.2.1 NO DESPACHO INICIAL

Alguns doutrinadores sustentam que a inversão do ônus da prova, quando

decretada pelo juiz, deve ser feita no próprio despacho inicial que recebe a ação e determina a

citação do réu. Tal entendimento alicerça-se no argumento da aplicação do princípio

constitucional da segurança jurídica, que irradia efeitos aos princípios do devido processo

legal e do contraditório e ampla defesa.

Ao se decretar a inversão do ônus da prova no despacho inicial, o

magistrado estaria ofertando ao pólo passivo da demanda mais uma garantia de contraditório e

ampla defesa, transferindo-lhe, com a máxima antecedência possível, a incumbência de

provar a verdade dos fatos nos quais o autor sustenta a sua pretensão.

Nesse sentido é a lição do renomado jurista José Geraldo Brito Filomeno:

82 A inversão do ônus da prova como garantia constitucional do devido processo legal, p. 81.

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Temos para nós que a solução mais adequada no que tange ao momento da decretação do ônus da prova será initio litis, até para que o réu não seja surpreendido, caso isso se desse ao ensejo do despacho saneador, quando se determina que as partes especifiquem as provas, ou, o que é muito pior, quando da conclusão dos autos para sentença, quando o magistrado da causa tem dúvida, ou então teria de julgar a ação improcedente por insuficiência das provas.83

Tais argumentos, embora marcados por grande carga de boa-fé processual

objetiva, não devem prevalecer. No despacho inicial, cabe ao magistrado analisar apenas as

condições da ação e os pressupostos processuais, não se preocupando, ainda nesta fase, com a

produção probatória, até porque não lhe é possível saber se o réu terá interesse na impugnação

dos fatos alegados pelo autor. Determinar a inversão do ônus da prova antes mesmo da

citação válida do réu, contraria os princípios da economia processual e da instrumentalidade

do processo, uma vez que o magistrado estaria a decidir questão processual atinente à fase de

instrução antes mesmo de saber se tal fase seria necessária no processo.

Nesse sentido, ensina Humberto Theodoro Júnior:

Há quem admita possa o juiz decretar a inversão do ônus da prova já no despacho da petição inicial. Tal posição nos parece extremada e injustificável. Antes da contestação, nem mesmo se sabe quais fatos serão controvertidos e terão, por isso, de se submeter à prova. Torna-se, então prematuro o expediente do art. 6º, inciso VIII do CDC.84

Conforme já se expôs alhures, é possível que o réu, citado, sequer possua

interesse em impugnar os fatos alegados pelo autor, o que, em regra e de plano, dispensaria a

necessidade de produção ou dilação probatória. Nada impede, porém, que haja uma mera

advertência do réu quanto a possibilidade da inversão do ônus da prova, em nome da

segurança jurídica processual.

É nesse sentido que o FÓRUM PERMANENTE DE JUÍZES

COORDENADORES DOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS E CRIMINAIS DO BRASIL,

83 Manual de direitos do consumidor, p. 373. 84 Direitos do consumidor, p. 148

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no XIV ENCONTRO NACIONAL, realizado na cidade de São Luis – Maranhão, editou o

Enunciado, que a seguir, se passa a transcrevê-lo:

Enunciado nº 53 – Deverá constar da citação a advertência, em termos claros, da possibilidade de inversão do ônus da prova.

Conforme se verifica, a orientação do enunciado é para que nas ações em

que o magistrado vislumbre a possibilidade de uma futura inversão do ônus da prova, nos

processos de competência do Juizado Especial Cível, determine a inserção, no mandado de

citação, de advertência, em termos claros, da possibilidade de inversão do ônus da prova.

Não se pode confundir a mera advertência com a efetiva inversão do ônus da

prova. Em uma primeira leitura, mais desatenta, talvez se tenha a impressão de que o

Enunciado nº 53 estabelece que o momento adequado de se decretar a inversão do ônus da

prova seja o despacho inicial, o qual determina a citação do ré, fazendo-se constar do próprio

mandado a decisão. Contudo, numa leitura mais técnica e atenciosa, verifica-se que a intenção

do enunciado é justamente o de não se decretar a inversão do ônus da prova antes da citação,

pois deixa claro que nesta (citação) deve ser inserida apenas uma advertência sobre a

possibilidade da inversão.

Como se vê, o Enunciado nº 53 relativiza o rigor do instituto da inversão do

ônus da prova tido como regra de julgamento, uma vez que o maior fundamento daqueles que

sustentam não ser possível a inversão do ônus da prova somente na sentença é o de que o réu

não poderia ser surpreendido pela inversão uma vez que durante o curso do processo não tinha

conhecimento de que o ônus da prova lhe pertencia.

Lembre-se, porém, que o Enunciado nº 53 se destina a regular os processos

de competência dos Juizados Especiais Cíveis, que, conforme disposição legal, têm sua

competência fixada, em regra, pela matéria e/ou pelo valor, destinando-se às causas de

pequeno valor e de baixa complexidade. Tanto é assim, que nos Juizados Especiais da Justiça

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Estadual, nas causas de até 20 (vinte) salários mínimos, a lei não exige a assistência de

advogado. Por estes motivos, é que o Enunciado nº 53 orienta a se fazer uma advertência da

possibilidade da inversão do ônus da prova nos feitos que correrem pelo Juizado Especial

Cível, uma vez que por muitas vezes, sequer a parte terá o patrocínio de advogado, o que, de

certo modo, impediria a compreensão pela parte do real alcance e natureza do instituto da

inversão do ônus da prova, o que poderia prejudicar-lhe injustamente.

Já na justiça comum, por não se admitir a propositura de ações sem a

presença de advogado, exigindo-se a capacidade postulatória, a advertência sobre a

possibilidade da inversão do ônus da prova seria “dispensável”, ou, no mínimo, desnecessária,

uma vez que o advogado tem o conhecimento técnico das normas processuais aplicáveis às

demandas que correm sob o seu patrocínio.

Assim, não é necessário advertir as partes, em nenhum momento, de que é

possível a inversão do ônus da prova nas demandas de consumo, até porque, nos termos da

também principiológica Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei nº 5.657, de 4 de

setembro de 1942, art. 3º, “ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece”.

Mais ainda quis o legislador consumerista que o Código de Defesa do

Consumidor realizasse uma “seleção natural” dos fornecedores no mercado de consumo,

criando normas severas, com natureza de ordem pública e de interesse social, proporcionando

uma forçosa profissionalização da exploração da atividade econômica no mercado de

consumo. Dentre as finalidades almejadas pela norma consumerista, encontra-se a progressiva

qualificação do fornecedor, eliminando do mercado aqueles que não tenham condições

econômicas, técnicas ou científicas de oferecerem produtos e serviços com qualidade e

segurança ao vulnerável consumidor.

Dentre as melhoras esperadas pelo legislador consumerista, inclui-se a

necessidade do fornecedor de conhecer as novas regras de proteção ao consumidor, a fim de

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adequar a sua conduta aos ditames do Código de Defesa do Consumidor. Sendo assim,

incumbe ao fornecedor conhecer as normas que regulam as relações de consumo,

proporcionando assim maior segurança e qualidade às relações de consumo. Dentre as normas

que devem ser conhecidas pelo fornecedor, inclui-se o instituto da inversão do ônus da prova,

que, inclusive, integra a margem de risco a que está sujeito o fornecedor na exploração da sua

atividade econômica, conforme a teoria do risco da atividade adotada pelo Código de Defesa

do Consumidor.

3.7.2.2 NO DESPACHO SANEADOR

Posição respeitável e sustentada com razoáveis fundamentos por renomados

juristas e com freqüência aplicada pela jurisprudência, é a de que a inversão do ônus da prova

deve ser decretada pelo juiz no despacho saneador, pois nesta fase é que o juiz, fixando os

pontos controvertidos da demanda, tem a exata noção de quais serão os fatos e alegações que

necessitam ser provados. Sendo assim, para essa corrente, seria no despacho saneador o

momento processual adequado para a decretação da inversão do ônus da prova, em decisão

interlocutória, fixando as provas que devem ser produzidas no curso do processo e, ao mesmo

tempo, incumbindo ao pólo passivo da ação a sua produção.

Os adeptos desta corrente alicerçam os seus argumentos sobretudo na

observância ao princípio constitucional do contraditório e da ampla defesa, garantidores da

segurança jurídica ao réu que, devidamente intimado da inversão do ônus da prova antes da

fase processual probatória, poderia decidir se realizaria ou não a prova, empenhando-se para a

sua realização caso fosse esse o seu interesse. Por decisão interlocutória, o ônus da prova que

originalmente incumbia ao autor, em atendimento ao princípio da causalidade, passa a ser do

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réu, que saberia com antecedência suficiente para se desincumbir de tal encargo probatório

acerca dos fatos sobre os quais o autor sustenta a sua pretensão.

Nesse sentido são os ensinamentos de Luiz Antônio Rizzatto Nunes:

Há alguma polêmica em torno do momento processual no qual o magistrado deverá decidir a respeito da inversão do ônus da prova. [...] o momento processual mais adequado para a decisão sobre a inversão do ônus da prova é o situado entre o pedido inicial e o saneador. Na maior parte dos casos a fase processual posterior à contestação e na qual se prepara a fase instrutória, indo até o saneador, ou neste, será o melhor momento. Não vemos qualquer sentido, diante da norma do CDC, que não gera inversão automática, que o magistrado venha a decidir apenas na sentença a respeito da inversão, como se fosse uma surpresa a ser revelada para as partes. Há, também, a importante questão do destinatário da norma estatuída no inciso VIII do art. 6º. Entendemos que, muito embora essa norma trate da distribuição do ônus processual de provar dirigido às partes, ela é mista no sentido de determinar que o juiz expressamente decida e declare de qual das partes é o ônus. Como a lei não estipula a priori quem está obrigado a se desonerar e a fixação do ônus depende da constatação da verossimilhança ou hipossuficiência, o magistrado está obrigado a se manifestar antes da verificação da desincumbência, porquanto é ele que dirá se é ou não caso de inversão. E ainda há mais. Trata-se do problema do ônus econômico da produção de certas provas, como, por exemplo, perícia. Se ficasse para a sentença a resolução e se o juiz decidisse que não havia nem verossimilhança nem hipossuficiência do consumidor e que este, portanto, teria de ter produzido prova pericial e não o fez por que não tinha dinheiro para adiantar os honorários provisórios do perito, estaríamos diante de um absurdo. Esse outro fato corrobora nosso entendimento no sentido de que a inversão deve ser decidida até ou no despcho saneador, com o seguinte acréscimo: sendo invertido o ônus da prova, quem deve arcar com o custo do adiantamento das despesas, por exemplo, relativas à perícia ? Qual parte deve arcar com o adiantamento dos honorários do perito judicial ? Ora, a resposta salta aos olhos: se o sistema legal protecionista cria norma que obriga à inversão do ônus da prova, como é que se poderia determinar que o consumidor pagasse as despesas ou honorários ? Uma vez determinada a inversão, o ônus econômico da produção da prova tem de ser da parte sobre a qual recai o ônus processual. Caso contrário, estar-se-ia dando com uma mão e tirando com a outra, regra esta que vale quer as partes requeiram a produção da prova, quer o juiz a designe ex officio. Se a norma prevê que o ônus da prova pode ser invertido, então automaticamente vai junto para a outra parte a obrigação de proporcionar os meios para sua produção, sob pena de – obviamente – arcar com o ônus de sua não-produção. Se assim, não fosse, instaurar-se-ia uma incrível contradição: o ônus da prova seria do réu, e o ônus econômico seria do autor (consumidor). Como este não tem poder econômico, não poderia produzir a prova. Nesse caso, sobre qual parte recairia o ônus da não-produção da prova? Anote-se, em acréscimo, que, em matéria de perícia técnica, o grande ônus é econômico, relativo ao pagamento de honorários e despesas do perito e do assistente técnico. Para terminarmos os comentários desta parte, deixe-se consignada a correta decisão da 4ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, que dispôs que o “deferimento da inversão do ônus da prova deverá ocorrer entre o ajuizamento da demanda e o despacho saneador, sob pena de se configurar prejuízo para a defesa do réu”(AI 14.305-5/8, rel. Des. José Geraldo de Jacobina Rabello, j. 5-9-1996).85

85 Comentários ao código de defesa do consumidor, p. 127.

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76

Também no mesmo sentido, Humberto Theodoro Júnior sustenta que alguns

admitem possa o juiz inverter o ônus da prova no momento de proferir a sentença. Contudo,

aduz que a inversão seria medida tardia porque já encerrada a atividade instrutória.86

E continua:

É certo que boa doutrina entende que as regras sobre ônus da prova se impõem para solucionar questões examináveis no momento de sentenciar. Mas, pela garantia do contraditório e ampla defesa, as partes, desde o início da fase instrutória, têm de conhecer quais são as regras que irão prevalecer na apuração da verdade real sobre a qual se assentará, no fim do processo, a solução da lide. A não ser assim, ter-se-ia uma surpresa intolerável e irremediável, em franca oposição aos princípios de segurança e lealdade imprescindíveis à cooperação de todos os sujeitos do processo na busca e construção da justa solução do litígio. Somente assegurando a cada litigante o conhecimento prévio de qual será objeto da prova e a quem incumbirá o ônus de produzi-la é que se preservará a garantia constitucional da ampla defesa.87

Novamente, o que se vê é um pensamento marcado por uma grande carga de

boa-fé processual objetiva, em prol de uma “superproteção” ao réu, típica dos processos

fundados em normas da teoria geral clássica do processo, em que as partes se encontram em

situação de igualdade. Todavia, não é este o melhor entendimento acerca do momento

adequado para a aplicação do instituto da inversão do ônus da prova. Na verdade, não se pode

confundir o instituto da inversão do ônus da prova com o poder geral de instrução que os

magistrados possuem na condução do processo.

O Código de Processo Civil estabelece que:

Art. 130. Caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias à instrução do processo, indeferindo as diligências inúteis ou meramente protelatórias.

“O juiz pode determinar, de ofício, a realização de provas de fatos que sejam

importantes para o deslinde da causa.”88

86 Direitos do consumidor, p. 148 87 Ibidem, p. 148. 88 NERY JUNIOR, Nelson et al. Código de processo civil comentado e legislação processual civil extravagante

em vigor, 2002. p. 479.

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O poder instrutório do juiz respeita a sua atividade no sentido da realização

da prova, ao passo que a distribuição do ônus da prova é regra de julgamento, que só vai ser

aplicada pelo juiz no momento da sentença, quando a prova já tiver sido realizada.

O Código de Processo Civil também entrega poder instrutório ao juiz em

seu:

Art. 33. Cada parte pagará a remuneração do assistente técnico que houver indicado; a do perito será paga pela parte que houver requerido o exame, ou pelo autor, quando requerido por ambas as partes ou determinado de ofício pelo juiz. (grifei)

Verifica-se que o Código de Processo Civil não consagra o princípio

dispositivo em sua plenitude no que tange à prova. Se a parte tem a disposição da ação, que só

pode ser ajuizada por ela, o impulso do processo, após o ajuizamento, é oficial.89

Além do interesse da parte, a demanda também envolve o interesse estatal

de que a lide seja composta de forma justa e segundo as regras do direito.

Para Nelson Nery Júnior, o poder instrutório do juiz, principalmente de

determinar ex officio a realização de provas que entender pertinentes, não se configura como

exceção ao princípio dispositivo, uma vez que o princípio dispositivo estabelece um limite ao

juiz que não poderá conhecer de matéria não deduzida em juízo.90

Determina o Código de Processo Civil:

Art. 262. O processo civil começa por iniciativa da parte, mas se desenvolve por impulso oficial.

Proposta a ação por iniciativa da parte, o processo se desenvolve por

impulso oficial. Uma vez iniciado, o processo se desenvolve por impulso oficial, isto é, por

atos do juiz e dos auxiliares da justiça. Dentre esses atos, inclui-se o poder instrutório do juiz,

que deve ser exercido de forma a garantir a igualdade de tratamento das partes.

89 Curso de direito processual civil. p. 417. 90 Código de processo civil comentado e legislação processual civil extravagante em vigor, 2002. p. 479.

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Nesse sentido, valioso é o entendimento jurisprudencial relatado pelo

ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira:

Iniciativa probatória do juiz. O juiz pode assumir uma posição ativa, que lhe permite, dentre outras prerrogativas, determinar a produção de provas, desde que o faça, é certo, com imparcialidade e resguardando o princípio do contraditório. Tem o julgador iniciativa probatória quando presentes razões de ordem pública e igualitária, como, por exemplo, quando esteja diante de causa que tenha por objeto direito indisponível (ações de estado), ou quando o julgador, em face das provas produzidas, se encontre em estado de perplexidade ou, ainda, quando haja significativa desproporção econômica ou sócio-cultural entre as partes.91

O juiz no processo moderno, deixou de ser simples árbitro diante do duelo

judiciário travado entre os litigantes e assumiu poderes de iniciativa para pesquisar a verdade

real e bem instruir a causa.92

Mas esse poder não é ilimitado, pois, segundo as regras que tratam dos ônus

processuais e presunções legais, na maioria das vezes a vontade ou a conduta da parte influi

decisivamente sobre a prova e afasta a iniciativa do juiz nessa matéria.

Assim acontece quando o réu deixa de contestar a ação e esta não versa

sobre direitos indisponíveis, ou quando, na contestação, deixa de impugnar precisamente os

fatos ou algum fato narrado na inicial. Nesses casos, admite-se a presunção legal de

veracidade dos fatos que se tornaram incontroversos (CPC, Arts. 319 e 302) e ao juiz não será

dado produzir prova de sua iniciativa para contrariar a presunção.

Pode-se concluir que o poder instrutório do juiz, em regra, é subsidiário,

pois sempre que as partes requererem todas as provas pertinentes para a cabal instrução do

processo ou que se fizerem presentes as presunções legais (dispensando-se a dilação

probatória), não deverá prevalecer o poder do juiz de promover provas ex officio.

A Constituição Federal de 1988 consagra um direito de conteúdo material, e

não apenas formal, repercutindo assim no modo de se desenvolver o processo judicial, uma

91 STJ, RT 729/155. 92 Curso de direito processual civil. p. 417.

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vez que este é o instrumento pelo qual o Estado-juiz deve entregar a prestação jurisdicional

justa aos administrados. Nesse sentido, as legislações processuais anteriores à Constituição

Federal merecem ser reinterpretadas sempre à luz da nova vertente de um Estado Democrático

de Direito (art. 1º), adaptando e compatibilizando seus conteúdos aos ditames da Carta

Magna; por outro lado, as legislações que se seguirem à Constituição Federal de 1988, regem-

se pelos princípios do Estado Democrático de Direito.

De certo modo, surge a necessidade de se reescrever as normas jurídicas ou

interpretá-las conforme os princípios e os fundamentos do Estado Democrático de Direito.

Muitas vezes, a mera interpretação conforme os ditames constitucionais não é suficiente para

adequar a aplicação da norma jurídica ao regime democrático de direito. Nesses casos, torna-

se imperativa a elaboração de novas leis, inovando a ordem jurídica seja substituindo as

normas concebidas na vigência de um regime diverso do regime democrático de direito, seja

criando normas jurídicas regulamentadoras de matérias até então não legisladas, observando-

se sempre no processo legislativo os princípios e fundamentos inerentes ao Estado

Democrático de Direito.

Um dos melhores exemplos desta moderna era legislativa, impulsionada

pelo fenômeno mundial de constitucionalização do direito que atinge os Estados

Democráticos de Direito, é o Código de Defesa do Consumidor, que atendendo à norma

programática constitucional, busca proteger o consumidor em todas as suas esferas, editando

normas protecionistas tanto de direito material, quanto de direito processual.

De início, cumpre registrar que as normas de proteção ao consumidor são de

ordem pública e de interesse social. Nesse sentido dispõe o Código de Defesa do Consumidor:

Art. 1º O presente Código estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social, nos termos dos arts. 5º, inciso XXXII, 170, inciso V, da Constituição Federal e art. 48 de suas Disposições Transitórias.

Nos dizeres de Maria Helena Diniz,

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80

São normas de imperatividade absoluta ou impositivas, também chamadas absolutamente cogentes ou de ordem pública, aquelas que ordenam ou proíbem alguma coisa (obrigação de fazer ou de não fazer) de modo absoluto. As que determinam, em certas circunstâncias, a ação, a abstenção ou o estado das pessoas,sem admitir qualquer alternativa, vinculando o destinatário a um único esquema de conduta. A imperatividade absoluta de algumas normas é motivada pela convicção de que determinadas relações ou estados da vida social não podem ser deixados ao arbítrio individual, o que acarretaria graves prejuízos para a sociedade. As normas impositivas tutelam interesses fundamentais, diretamente ligados ao bem comum, por isso são também chamadas de “ordem pública”.93

Por serem as normas de proteção e defesa do consumidor de ordem pública

e de interesse social, o juiz está não só autorizado, mas também incumbido de exercer o seu

poder geral de instrução em busca da verdade real, o que deverá fazê-lo, aí sim, no despacho

saneador, quando então se dará início à fase de instrução probatória, determinando às partes

quais as provas e a quem incumbe o esforço de trazê-las aos autos.

Contudo, é importante ressaltar que a determinação judicial para a

realização de uma prova não constitui a aplicação do instituto da inversão do ônus da prova, e

sim, é o mero exercício do poder geral de instrução que tem o juiz na condução do processo,

em decorrência do princípio do impulso oficial e em busca da realização do princípio da

verdade real.

É exatamente nesse ponto que se equivoca grande parte da doutrina, que

confunde o poder geral de instrução do juiz com o instituto da inversão do ônus da prova.

A inversão do ônus da prova não é um instituto voltado para a realização de

provas, ou para a redistribuição do dever de custeio das despesas processuais relativas à

produção probatória. Conforme já se adiantou acima, a inversão do ônus da prova é uma regra

supletiva, subsidiária, que deve ser adotada exclusivamente para o julgamento de processo

cujos fatos alegados não tenha sido suficientemente provados.

Não se revela adequado, portanto, o entendimento de que o momento

propício para a aplicação da inversão do ônus da prova seria no despacho saneador, pois,

93 Compêndio de introdução à ciência do direito. pp. 345/346.

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conforme vimos, a decisão no despacho saneador que determina a realização da prova pelo

réu nada mais é do que a exteriorização do poder geral de instrução do juiz, nos termos do art.

130 do CPC.

Alguns juristas confundem o instituto da inversão do ônus da prova com

uma regra de inversão do dever de adiantamento dos honorários periciais. Conforme já se

mencionou acima, a inversão do ônus da prova não se destina a transferir o dever de antecipar

os honorários periciais, tal como dispõe o Código de Processo Civil, em seu Art. 33, que

estabelece “Cada parte pagará a remuneração do assistente técnico que houver indicado; a do

perito será paga pela parte que houver requerido o exame, ou pelo autor, quando

requerido por ambas as partes ou determinado de ofício pelo juiz.”

Note-se que a distribuição do ônus do adiantamento dos honorários do perito

vem bem resolvida na legislação processual e rege-se pelo princípio dispositivo e,

subsidiariamente, pelo princípio da causalidade, isto é, aquele que requerer a produção da

prova pericial, dever arcar, antecipando o pagamento dos honorários do perito, a fim de trazer

aos autos a referida prova.

O legislador optou por carrear ao autor os ônus do depósito antecipado das despesas processuais, porque em tese tem ele interesse no rápido desfecho da demanda. Se vencedor, o autor será reembolsado desse adiantamento pela parte perdedora; se vencido, não terá direito ao reembolso.94

O mesmo Código Processual estabelece ainda que incumbirá ao autor o ônus

de antecipar os honorários do perito se ambas as partes requererem a prova pericial; ou ainda,

quando a prova pericial for determinada de ofício.

A lei processual exige da parte que litigue com responsabilidade, de sorte que deve ela arcar com as despesas dos atos que requerer, depositando antecipadamente seu valor. Sem o depósito, não há obrigatoriedade da realização da diligência u da prática do ato.95

94 Código de processo civil comentado e legislação processual civil extravagante em vigor, 2002. p. 309. 95 Ibidem, p. 309.

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Cabe registrar ainda que existe ainda uma quarta hipótese em que também

será do autor o ônus de antecipar o pagamento das despesas processuais inerentes à prova

pericial; é o caso em que o exame pericial tenha sido requerido pelo órgão do Ministério

Público, seja nos processos em que estiver atuando como parte, quer esteja atuando como

fiscal da lei.

Portanto, ainda que o autor seja um consumidor, deverá custear a

antecipação dos honorários do perito, conforme determina a lei processual, nas seguintes

situações:

a) se o consumidor-autor requerer o exame pericial;

b) se ambas as partes (consumidor e fornecedor) requererem o exame

pericial;

c) se o exame pericial for determinado ex officio magistrado;

d) se o exame pericial for requerido pelo membro do Ministério Público,

seja na qualidade de parte, seja na qualidade de fiscal da lei.

É certo que se o consumidor for pobre, na acepção jurídica do termo, poderá

valer-se dos benefícios da Assistência Judiciária, previstos pela Lei nº 1.060, de 05 de

fevereiro de 1950, desde que assim requeira e faça nos autos do processo afirmação da sua

pobreza. A assistência judiciária libera a parte que dela dispõe de prover as despesas dos atos

que realizam e requerem no processo, dentre os quais, os honorários de perito, bem como de

responder pelas custas e honorários advocatícios.

Vale consignar aqui parte da Lei da Assistência Judiciária:

Art. 3º A assistência judiciária compreende as seguintes isenções: V – dos honorários de advogado e peritos;

Nesse sentido, a jurisprudência vem firmando acertada posição:

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AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROCESSUAL CIVIL. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. NÃO OBRIGA PARTE CONTRÁRIA AO PAGAMENTO DE HONORÁRIOS PERICIAIS. SFH. NÃO SE CARACTERIZA COMO RELAÇÃO DE CONSUMO. INAPLICABILIDADE DO CDC. 1. Inicialmente, deve-se afastar a invocação da Lei nº 8.078/90, uma vez que o mutuário do Sistema Financeiro de Habitação "não é consumidor, no sentido da lei, desde que, nem adquire, nem utiliza produto ou serviço como destinatário (consumidor) final e não intervém em qualquer relação de consumo." (STJ, T1, RESP nº 97455/SP, Rel Min. Demócrito Reinaldo, DJ de 10.03.97). 2. Nesta linha, “mutatis mutandis”, o Superior Tribunal de Justiça, quando envolva programa de governo (RESP 625.904/RS, DJ 28/06/04 e RESP 536.055/RS, DJ 14/03/2005). 3. Contudo, ainda, que a aludida relação fosse considerada relação de consumo, faz-se necessário diferenciar a inversão do ônus da prova, com a obrigação de pagar os honorários periciais, nos termos do art. 33 do CPC. 4. Como bem elucida Cândido Rangel Dinamarco: "Ônus da prova é o encargo, atribuído pela lei a cada uma das partes, de demonstrar a ocorrência dos fatos de seu próprio interesse para as decisões a serem proferidas no processo. (...) Os fenômenos de inversão do ônus da prova são mais complexo do que o nome insinua. Todas as causas de inversão atuam num primeiro momento sobre o objeto da prova e não sobre as regras de distribuição do ônus de provar (...) Só num segundo momento, portanto, e mediante prévia alteração do objeto da prova, essas inversões atuam sobre o ônus probatório." . 5. Precedentes. 6. Agravo Interno prejudicado. 7. Agravo de Instrumento conhecido e provido. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO DE INSTRUMENTO - 141183 Tribunal Regional Federal – 2ª Região – Processo: 2005.02.01.010357-5 UF: RJ Órgão Julgador: 8ª TURMA ESP. Data Decisão: 16/05/2006 RELATOR: DESEMBARGADOR FEDERAL POUL ERIK DYRLUND - DJU – Data publicação:19/05/2006 - PÁGINA: 254

INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. CUSTAS DA PERÍCIA. PRECEDENTES. 1. Como já decidiu esta Terceira Turma a “regra probatória, quando a demanda versa sobre relação de consumo, é a da inversão do respectivo ônus. Daí não se segue que o réu esteja obrigado a antecipar os honorários do perito; efetivamente não está, mas, se não o fizer presumir-se-ão verdadeiros os fatos afirmados pelo autor” (Resp nº 466.604/RJ, relator ministro Ari Pargendler, DJ de 2/6/03). E, ainda, na mesma toada, o Resp nº 443.208/RJ, relatora a ministra Nancy Andrighi (DJ de 17/3/03), destacando que a “inversão do ônus da prova não tem o efeito de obrigar a parte contrária a arcar com as custas da prova requerida pelo consumidor. No entanto, sofre as conseqüências processuais advindas de sua não produção” 2. Recurso especial conhecido e provido. RECURSO ESPECIAL – 579944 – Processo nº 200301647266 UF: RJ Órgão Julgador: Terceira Turma. Relator Carlos Alberto Menezes Direito. Data da decisão: 26/08/2004. Data publicação 17/12/2004

Conclui-se que a inversão do ônus da prova não deve ser confundida com a

inversão do ônus de antecipar as despesas com as provas que se pretende produzir no

processo. Em regra, as despesas com a produção de provas, pelo princípio dispositivo, são de

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responsabilidade da parte que requerer a prova. Será, portanto, do autor, se este requerer a

produção da prova, ou ainda, se requerer em comum com a parte contrária a produção da

prova, ou, por fim, se a prova for determinada de ofício pelo magistrado ou requerida pelo

membro do Ministério Público.

Mesmo o consumidor submete-se a tais regras de distribuição do ônus de

antecipar as despesas da produção probatória, até porque, não é antes da fase de instrução

probatória que se deve aplicar o instituto da inversão do ônus da prova, e sim, na sentença,

como regra supletiva de julgamento nos processos em que não se tenha produzido prova, ou

que ainda que se tenha produzido alguma prova, esta não se faz suficiente para a convicção do

magistrado. Não pelo fato de ser o consumidor vulnerável que automaticamente terá direito à

inversão do ônus da prova em seu favor, pois, conforme já se tratou alhures, a inversão do

ônus da prova não é um direito subjetivo do consumidor e sim um instrumento processual à

disposição do juiz para aplicá-lo a seu critério.

3.7.2.3 NA SENTENÇA DEFINITIVA

Posição mais acertada na doutrina e que vem ganhando apoio

jurisprudencial é a de que o momento adequado para o juiz decretar da inversão do ônus da

prova é o momento da sentença. Em que pese toda a severidade do instituto quando aplicado

como regra de julgamento, é esta a adequada aplicação do instituto da inversão do ônus da

prova. Partindo-se da lição de Ronald Duorkin de que “às vezes não há uma única resposta

certa, mas somente respostas”96, adotar-se-á como resposta à questão de qual o momento

adequado para a inversão do ônus da prova, o momento da prolação da sentença definitiva, ou

96 Levando os direitos a sério. p. 429.

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seja, da sentença de resolução do mérito, porque se entende que se trata de regra de

julgamento, conforme restará evidenciado a seguir.

Nesse sentido, ensina a promotora de justiça Cecília Matos:

A prova destina-se a formar a convicção do julgador, que pode estabelecer com o objeto do conhecimento uma relação de certeza ou de dúvida. Diante das dificuldades próprias da reconstrução histórica, contenta-se o magistrado em alcançar não a verdade absoluta, mas a probabilidade máxima; a dúvida conduziria o julgador ao estado de non liquet, caso não fosse elaborada uma teoria de distribuição do ônus da prova. Conceituado como risco que recai sobre a parte por não apresentar a prova que lhe favorece, as normas de distribuição do ônus da prova são regras de julgamento utilizadas para afastar a dúvida. Neste enfoque, a Lei nº 8.078/90 prevê a facilitação da defesa do consumidor pela inversão do ônus da prova, adequando-se o processo à universalidade da jurisdição,na medida em que o modelo tradicional mostrou-se inadequado às sociedades de massa, obstando o acesso à ordem jurídica efetiva e justa. Fortaleceu sua posição pela associação de grupos, possibilitando a defesa coletiva de seus interesses, além de sistematizar a responsabilidade objetiva e reformular os conceitos de legitimação para agir e conferir efeitos à coisa julgada secundum eventum litis. A inversão do ônus da prova é direito de facilitação da defesa e não pode ser determinada senão após o oferecimento e valoração da prova, se e quando o julgador estiver em dúvida. É dispensável caso forme sua convicção,nada impedindo que o juiz alerte,na decisão saneadora que, uma vez em dúvida, se utilizará das regras de experiência a favor do consumidor. Cada parte deverá nortear sua atividade probatória de acordo com o interesse em oferecer as provas que embasam seu direito. Se não agir assim, assumirá o risco de sofrer a desvantagem de sua própria inércia, com a incidência das regras de experiência a favor do consumidor.97

A inversão do ônus da prova encontra-se elencada dentre os chamados

direitos básicos do consumidor. Dispõe o Código de Defesa do Consumidor:

Art. 6º São direitos básicos do consumidor: VIII – a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias da experiência.

Inicialmente, é possível, pela interpretação literal, concluir-se que o instituto

da inversão do ônus da prova deve ser aplicado como regra de julgamento nos processos em

que não haja prova suficiente para a formação do convencimento do magistrado. É porque, se

entendêssemos não ser regra de julgamento, importaria o rito processual para se indicar o

momento da decretação da inversão do ônus da prova. Ocorre que o legislador não faz

97 apud FILOMENO, José Geraldo Brito. Manual de direitos do consumidor. pp. 129-130.

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qualquer distinção de procedimento, o que revela que a intenção do legislador (interpretação

finalista/teleológica) foi a de introduzir a inversão do ônus da prova como regra de

julgamento a todos os processos em que se façam presentes os requisitos da inversão,

independentemente do rito processual.

Em geral, como se sabe, a prova de um fato incumbe a quem o alega. No

caso do consumidor, contudo, em face de sua reconhecida vulnerabilidade (art. 4º, inciso I do

CDC), é possível haver a inversão desse ônus, ou seja, fica a cargo do réu demonstrar a

inviabilidade do fato alegado pelo autor. Referida inversão, contudo, não é obrigatória, mas

faculdade judicial, desde que a alegação tenha aparência de verdade, ou quando o consumidor

for hipossuficiente, isto é, exige-se, neste último caso, que ele não tenha meios para custear

perícias e outros elementos que visem demonstrar a viabilidade de seu interesse ou direito.98

Não se pode perder de vista que o instituto da inversão do ônus da prova é

uma das prerrogativas de facilitação da defesa do consumidor, assim como o sistema de

responsabilidade civil objetiva (art. 12 e ss.), ou a garantia legal para produtos e serviços (art.

26), ou ainda a proteção contratual (art. 46 e ss.) ou a prerrogativa de foro (art. 101, inciso I),

dentre tantos outros institutos protecionistas.

Conforme já se expôs, a sociedade moderna massificou as relações

econômicas, vulnerabilizando o consumidor dentro das relações de consumo. Dada a extrema

desvantagem do consumidor no mercado de consumo, a legislação consumerista buscou

reequilibrar a relação de consumo pela entrega de prerrogativas jurídicas à parte mais fraca.

Nesse sentido, leciona Cláudia Lima Marques:

O Código de Defesa do Consumidor, como lei nova e rejuvenescedora do Direito Civil brasileiro, tem atraído a atenção de juristas interessados na evolução da ciência jurídica e dos instrumentos legais garantidores de relações sociais mais equilibradas e leais; O CDC é uma lei de assumida função social que impõe um novo patamar de harmonia e de boa-fé objetiva no mercado de consumo.99

98 FILOMENO, José Geraldo Brito. Manual de direitos do consumidor. p. 366 99 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor. p. 23

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Não se pode ficar limitado à proteção do réu típica das demandas de

relações comuns ou paritárias, pois nas demandas de consumo, deve-se dispensar às partes

tratamento desigual, justamente porque são partes desiguais (fornecedor-consumidor); devem-

se reconhecer as prerrogativas da parte vulnerável, sem que isso signifique violação ao

princípio da isonomia, do contraditório, da ampla defesa, do devido processo legal e da

segurança jurídica. É, pois, justamente o contrário. Se o magistrado deixar de aplicar as regras

de proteção inerentes ao consumidor, aí sim, estará violando o princípio da isonomia,

recusando-lhe o justo e devido tratamento desigual aos desiguais, na medida em que se

desigualam.

O legislador moderno, atento às necessidades de manutenção do equilíbrio

da ordem econômica, da promoção do desenvolvimento sustentável e integrado, percebeu a

necessidade de se proteger o consumidor, parte vulnerável da relação de consumo, entregando

maior grau de responsabilidade ao fornecedor. Institui a teoria do risco da atividade,

imputando ao fornecedor a responsabilidade pelos eventuais danos, cujo risco tenha sido

gerado pela atividade econômica exercida pelo fornecedor. Outrossim, quis o legislador

operar verdadeira seleção natural quanto ao fornecedor, idealizando a permanência no

mercado de consumo somente dos fornecedores profissionais, conhecedores dos seus deveres

e garantidores dos direitos dos consumidores. Logo, não se justifica a alegação de que o

fornecedor réu tenha o direito, sob pena de violação do princípio do contraditório e da ampla

defesa, de ser previamente comunicado da inversão do ônus da prova para, só então,

desincumbir-se de tal encargo.

Ora, se a idéia da proteção ao consumidor baseia-se na boa-fé objetiva, no

princípio da confiança e na prevenção e reparação integral dos danos ao consumidor, como

imaginar um fornecedor que não tenha interesse, sem que haja a necessidade de decretação

judicial, na descoberta da verdade ? O fornecedor, de saída, deve conhecer as normas de

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proteção ao consumidor, e, por conseqüência, já sabe que nas demandas em que o consumidor

não lograr êxito na prova dos fatos por ele alegado, é possível que o fornecedor ainda assim

perca a demanda.

Quanto ao momento da inversão do ônus da prova, em brilhante lição, expõe

o renomado jurista Nelson Nery Junior:

O juiz é o destinatário mediato da prova, de sorte que a regra sobre ônus da prova a ele é dirigida, por ser regra de julgamento. Nada obstante, essa regra é fator indicativo para as partes, de que deverão se desincumbir dos ônus sob pena de ficarem em desvantagem processual. O juiz, ao receber os autos para proferir sentença, verificando que seria o caso de inverter o ônus da prova em favor do consumidor, não poderá baixar os autos em diligência e determinar que o fornecedor faça a prova, pois o momento processual para a produção dessa prova já terá sido ultrapassado. Caberá ao fornecedor agir, durante a fase instrutória, no sentido de procurar demonstrar a inexistência do alegado direito do consumidor, bem como a existência de circunstâncias extintivas, impeditivas ou modificativas do direito do consumidor, caso pretenda vencer a demanda. Nada impede que o juiz, na oportunidade de preparação para a fase instrutória (saneamento do processo), verificando a possibilidade de inversão do ônus da prova em favor do consumidor, alvitre a possibilidade de assim agir, de sorte a alertar o fornecedor de que deve desincumbir-se do referido ônus, sob pena de ficar em situação de desvantagem processual quando do julgamento da causa. (grifei)100

A inversão do ônus da prova pode ocorrer em qualquer ação ajuizada com

fundamento no Código de Defesa do Consumidor, inclusive naquelas em que se trate de

indenização fundada na responsabilidade civil objetiva, pois cabe ao autor comprovar os fatos

constitutivos de seu direito (existência do dano e nexo de causalidade entre a atividade do

fornecedor e o dano), de modo que pode haver a inversão do ônus probatório nessas ações. A

mesma regra se aplica às ações de indenização pelo fato do serviço dos profissionais liberais,

cuja responsabilidade é subjetiva e apurada a título de culpa. O juiz pode inverter, em favor

do consumidor, o ônus da prova, que deverá recair sobre o fornecedor do serviço, sendo,

conforme já sustentamos, a sentença o momento adequado para aplicar a inversão do ônus da

prova.

100 NERY JUNIOR, Nelson et al. Código de processo civil comentado e legislação civil extravagante em vigor, 1997, pp. 1354-1355.

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Cabe aqui registrar que quando das discussões sobre o anteprojeto do

Código de Defesa do Consumidor, houve ampla discussão acerca do instituto da inversão do

ônus da prova, chegando-se a dizer ser inconstitucional o dispositivo, porque no processo

penal existe o princípio da inocência presumida, incumbindo ao autor da ação penal a prova

da existência, materialidade e autoria do fato típico. A norma que instituía a inversão do ônus

da prova, na redação que se transformou em lei, não deixa dúvida de que somente poderá

ocorrer no processo civil, em respeito ao princípio constitucional da presunção de inocência

que rege o direito penal, não havendo qualquer vício quanto à sua constitucionalidade.

Considerando que o Direito do Consumidor é um direito social, encontra-se

permeado de interesses típicos do Direito Privado e do Direito Público. Individualmente

considerado, o consumidor deve ser tutelado quanto aos seus interesses privados, porém,

coletivamente considerado, há de se promover a defesa do consumidor à luz do interesse

público. Sendo assim, tanto ao interesse privado, quanto ao interesse público, interessa a

profissionalização do mercado de consumo, pela criação de normas rígidas que assegurem a

saúde, a segurança e a liberdade do consumidor no mercado. Nessa linha de pensamento, não

se pode cogitar de ser inconstitucional o tratamento mais benéfico ao consumidor nas

demandas de consumo, com vistas à facilitação da sua defesa. Conforme já se expôs acima, o

consumidor é a parte vulnerável da relação de consumo, que não tem reais condições de

impor a sua vontade perante o fornecedor. Por outro lado, o fornecedor detém todos os

elementos controladores das políticas e ações do mercado de consumo. Diante dessa

realidade, o legislador consumerista viu somente uma possibilidade de efetiva proteção aos

consumidores: elevá-los às mesmas condições de liberdade e imposição da vontade que

dispõe o fornecedor dentro da relação de consumo. Assim, entregou prerrogativas

protecionistas, marcadas por regras de parcialidade em favor do consumidor, para que este

pudesse “compensar” a sua vulnerabilidade dentro do mercado de consumo. O instituto da

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inversão do ônus da prova, assim como vários outros mecanismos de proteção, foi criado com

o propósito de favorecer (realmente) o consumidor dentro da relação de consumo, criando a

possibilidade do consumidor lograr êxito nas demandas de consumo ainda que não tenha

realizado a prova dos fatos por ele alegados. Não se pode perder de vista que a dinâmica das

relações de consumo modernas torna cada vez mais informais os negócios jurídicos. Os

negócios jurídicos cada vez mais são massificados. A sobrevivência no mercado de consumo,

cada vez mais depende da oferta quantitativa mais do que qualitativa. Em geral, os negócios

jurídicos são celebrados despidos de formalidades. Contratos meramente verbais, ou modelos

de adesão (não necessariamente nessa ordem), passaram a ser a forma da esmagadora maioria

dos negócios jurídicos realizados no mercado de consumo.

Hodiernamente, é raro um consumidor que detenha consigo uma cópia do

contrato de consumo celebrado, por exemplo, com uma instituição bancária; ou com uma

instituição de ensino, ou ainda, com uma operadora de plano ou seguro de saúde. Mais rara

ainda é a possibilidade do consumidor alterar substancialmente o conteúdo de tais contratos.

Sendo assim, o grau de vulnerabilidade do consumidor, em algumas relações de consumo, é

aumentado pelas próprias práticas (ou costumes) mercadológicas e comerciais, justificando

assim um aumento da proteção dos consumidores pela criação de normas jurídicas parciais e

protecionistas. Não raras vezes, o consumidor lesado não possui condições de demonstrar

cabalmente a veracidade das suas alegações. Suponha-se, por exemplo, um consumidor que

tenha sido lesado pela cobrança abusiva de tarifa maior do que a contratada para manutenção

de conta corrente bancária, porém que, como ocorre com a quase totalidade dos

consumidores, não possua a sua via de contrato para fazer prova da dissonância entre a tarifa

contratada e a efetivamente cobrada. Ou ainda, Suponha-se que o consumidor tenha

contratado verbalmente certa condição de pagamento para a aquisição de um determinado

produto, mas que receba cobrança com valor acima do combinado no momento da

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contratação. Como em tais situações poderá o consumidor fazer prova das suas alegações ?

Como se vê, torna-se difícil ao consumidor tutelar os seus interesses, uma vez que as práticas

comerciais, seja por serem contratadas, em regra, com informalidade, seja pela prevalência do

fornecedor (e de seus interesses) no momento da edição do contrato, muitas vezes

impossibilita-se a prova das alegações do consumidor numa demanda judicial.

Há que se entender que o Código de Defesa do Consumidor, por ordem

constitucional, atendendo à determinação constitucional, inovou a ordem jurídica brasileira

com o especial propósito de proteger o consumidor na relação de consumo, pois, dada a sua

vulnerabilidade, vinha sendo massacrado pela política predatória de obtenção de lucros

imposta pelos fornecedores.

Pode-se citar como um dos principais mecanismos de proteção ao

consumidor, adotado pelo legislador consumerista, a de entregar exclusivamente ao

fornecedor os riscos da sua atividade econômica exploratória. Assim, é o fornecedor (e nunca

o consumidor) quem responde pelos riscos da sua atividade. Pode-se citar como sendo um dos

riscos da exploração da atividade econômica realizada pelo fornecedor o fato de que, num

eventual processo judicial, o consumidor lesado não consiga lograr êxito em provar as suas

alegações, mas que, dada a verossimilhança das mesmas, ou devido a condições que indiquem

a sua hipossuficiência, ainda assim, tenha o fornecedor que responder pelos danos suportados

pelo consumidor, o que só se torna possível diante da regra da inversão do ônus da prova.

Assim, a aplicação do instituto da inversão do ônus da prova na sentença

permite o acesso efetivo do consumidor à justiça, tomando como sentido de acesso à justiça, o

acesso do consumidor à ordem jurídica justa por um provimento jurisdicional justo. Justa é a

procedência da ação que, mesmo não tendo o consumidor provado as suas verossímeis

alegações, obtenha do Estado-juiz o reconhecimento do direito de ser indenizado pelos danos

que lhe foram causados pelo fornecedor. E ainda que se admita que os danos suportados pelo

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consumidor não tenham sido causados pelo fornecedor demandado, a decisão de procedência

da ação de consumo nem assim se tornaria injusta, pois está dentro do âmbito do risco da

atividade do fornecedor, ter que indenizar, eventualmente, um consumidor que não tenha sido

diretamente lesado por ele.

Sandra Aparecida Sá dos Santos, em análise profunda do instituto da

inversão do ônus da prova, classifica-o como “uma garantia constitucional realizadora do

princípio da igualdade” e incita a sua adoção para todas as relações jurídicas de natureza civil.

Os cidadãos devem ter á sua disposição instrumentos processuais para a concreta efetividade da tutela de seus direitos, motivo que, só por si, torna imprescindível a aplicação do instituto da inversão do ônus da prova, em qualquer relação jurídica de natureza civil, como garantia constitucional do devido processo legal.101

Lembre-se que o instituto da inversão do ônus da prova é regra

excepcionalíssima, aplicável apenas subsidiariamente, nos processos cíveis despidos de

provas suficientes para a resolução do mérito da causa. Logo, é um risco “aceitável” e

perfeitamente “absorvível” pelo fornecedor ter, eventualmente, um processo civil contra ele

decidido sem que tenha sido o causador do dano alegado pelo consumidor.

Os autores do anteprojeto, de que resultou o Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, além do jurista Cândido Rangel Dinamarco, são os defensores da teoria de que o momento oportuno para a inversão é o da sentença, tendo como fundamentação o seguinte argumento: os dispositivos sobre ônus da prova constituem regras de julgamento.102

Ao se visualizar a inversão do ônus da prova como uma regra de julgamento

(tal como fora a intenção dos autores do anteprojeto), não se viola o princípio do contraditório

e ampla defesa do fornecedor, e sim, promove-se a concretização do princípio do amplo

acesso à justiça e da segurança jurídica do consumidor. Lembrando lição basilar do Direito

Constitucional, toda vez que duas normas constitucionais (regras ou princípios) se puserem

101 SANTOS, Sandra Aparecida Sá dos. A inversão do ônus da prova como garantia constitucional do devido

processo legal, p. 108. 102 Ibidem, p. 81.

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em situação de aparente conflito, cabe ao intérprete e aplicador do Direito, por uma

investigação racional de proporcionalidade e razoabilidade, interpretá-las de modo a delinear

o âmbito de incidência de cada norma garantindo a sua co-existência.

Desse modo, a inversão do ônus da prova vista como regra de

julgamento coloca em aparente conflito os princípios constitucionais do contraditório e da

ampla sob a ótica do fornecedor e o princípio do acesso à justiça e da segurança jurídica sob

a ótica do consumidor. Por um lado, o fornecedor, por lógica decorrência do princípio do

devido processo legal, tem o direito ao contraditório e ampla defesa nos processos e

procedimentos em geral. Por outro lado, o consumidor, por determinação constitucional (art.

5º, inc. XXXII da CF/88), tem o direito de acesso efetivo à justiça, mediante um tratamento

desigual, dada a sua desigualdade perante o fornecedor, que lhe garanta um provimento

jurisdicional eficaz para lhe garantir a segurança jurídica (proteção à saúde, segurança e

liberdade).

A jurisprudência vem firmando entendimento nesse sentido:

PROVA – Ônus – Regra técnica de decidir, que o Magistrado terá presente no instante do julgamento da lide – Inversão pretendida com sucedâneo no Código de Defesa do Consumidor – Efeito de deslocar à parte contrária o custeio da perícia – Inadmissibilidade – Realidades processuais materialmente distintas – Recurso não provido.103

Conforme se vê, não há violação a qualquer garantia ou direito

constitucionalmente assegurado. Na verdade, a aplicação da inversão do ônus da prova é

justamente o que promove a mens legis constitucional, que em nível de liberdade pública,

incumbiu o Estado de promover efetivamente a defesa do consumidor.

103 TJSP – 3ª Câm. Civ., AI 64.343-4-SP – Rel. Ney Almada, j. 23.09.1997, v.u., JTJ 210/213.

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CONCLUSÃO

A Constituição Federal brasileira de 1988 assegura a garantia do acesso à

ordem jurídica justa, que é uma expressão ampla que abarca um complexo de direitos

fundamentais processuais, dentre os quais deve ser incluído o direito à prova. A mesma

Constituição determina que o Estado deve promover, na forma da lei, a defesa do consumidor,

sendo a um só tempo um direito e garantia fundamental e um dos princípios da ordem

econômica.

O Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), atendendo à

programação normativa constitucional, atribuiu às normas de proteção e defesa ao

consumidor a natureza de normas de ordem pública e de interesse social, retirando da esfera

da disponibilidade das partes a possibilidade da sua derrogação, sancionando as práticas e as

cláusulas desproporcionais com a idéia de equilíbrio, de nulidade de pleno direito. Introduziu

no ordenamento jurídico brasileiro uma nova sistemática de direito material e processual, que

busca neutralizar a vulnerabilidade do consumidor dentro da relação de consumo, fazendo

com que a sua vontade, em concreto, seja observada pelo fornecedor.

Dentre os institutos mais importantes previstos em favor do consumidor, o

Código de Defesa do Consumidor estabeleceu que o consumidor tem como um dos seus

direitos básicos (art. 6º) “a facilitação da defesa de seus direitos”, inclusive pela aplicação,

ope judicis, da inversão do ônus da prova, no processo civil, em favor do consumidor,

quando, a critério do juiz, houver verossimilhança nas alegações do consumidor ou por

decorrência da sua hipossuficiência, técnica ou financeira.

A inversão do ônus da prova permite ao juiz, diante da verossimilhança das

alegações do consumidor ou, verificando a sua hipossuficiência (técnica ou financeira) em

relação às provas que esperava que tivessem sido produzidas dentro do processo, julgar a

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pretensão do consumidor procedente, ainda que sem provas, cabais ou suficientes, dos fatos

nos quais o consumidor fundamenta o seu pretenso direito.

Desse modo, a inversão do ônus da prova inova em relação ao critério

tradicional de solução dada pelo Código de Processo Civil (art. 333) pelo qual, fundado no

princípio da causalidade, ao autor incumbe provar os fatos dos quais decorre o direito

pretendido. Pela regra tradicional do Código de Processo Civil, se o autor não demonstrar, de

forma suficiente à formação segura da convicção do juiz, a verdade dos fatos por ele alegados,

a conseqüência processual é única: a improcedência do seu pedido.

Já pela aplicação do instituto da inversão do ônus da prova, mesmo o

consumidor não se desimcumbindo do ônus de provar os fatos por ele alegados, pode o juiz, a

seu critério, julgar procedente o seu pedido, considerando que ao fornecedor incumbia o ônus

de demonstrar que as afirmações do consumidor não eram verdadeiras. Em síntese, o autor-

consumidor vence a demanda, mesmo não tendo provado os fatos por ele alegados.

O momento oportuno para se decretar a inversão do ônus da prova é no

momento da prolação da sentença de mérito, uma vez que as regras de distribuição do ônus da

prova são regras de julgamento, destinadas única e exclusivamente ao juiz, que, por não poder

julgar o non liquet, precisa de um método para a solução das controvérsias postas em juízo

mesmo quando o processo restar despido de provas seguras para a formação da sua convicção

e tomada de decisão.

O instituto da inversão do ônus da prova, aplicado quando da prolação da

sentença de mérito, é compatível com o sistema constitucional brasileiro, sobretudo porque

permite ao consumidor o efetivo acesso à justiça, no seu sentido material. Realiza em

concreto o direito do consumidor de receber um provimento jurisdicional justo,

desburocratizando o processo e desprendendo-se dos rigores meramente formais e tecnicistas.

Ao invés da solução “fria” do sistema tradicional, dá-se lugar à interpretação substancial do

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direito. Torna-se o juiz, intérprete da norma, um instrumento atuante da concretização da

justiça do consumidor. Dá-se maior liberdade ao órgão jurisdicional para buscar a justiça.

Significa dizer que o fornecedor, na demanda de consumo de natureza cível,

quando houver a aplicação da inversão do ônus da prova, responderá mesmo não havendo

prova suficiente dos fatos ensejadores da sua obrigação de reparar os danos alegados pelo

consumidor.

É, sem dúvida, um tratamento desigual e parcial em favor do consumidor;

porém, não é inconstitucional. Pelo contrário, o texto constitucional determina que a

igualdade material se revela pelo tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais, na

medida em que se desigualam. É também a própria Constituição que determina expressamente

que incumbe ao Estado promover a defesa do consumidor, parte vulnerável da relação de

consumo.

O direito do consumidor alicerça-se no princípio do desenvolvimento

econômico sustentável e equilibrado, exaltando os princípios da regular circulação de

riquezas, do não enriquecimento indevido e da boa-fé objetiva.

É certo que os bens de capital estão concentrados nas mãos do fornecedor,

que por tal razão, passa a ter preponderância na relação de consumo, estabelecendo as regras

para o exercício da sua atividade econômica. Ao consumidor, resta uma única opção:

consumir ou não.

Dada essa desigualdade, as normas de proteção ao consumidor devem ser

aplicadas pelo Estado-juiz à luz da ordem constitucional, de modo a minorar a sua

desvantagem decorrente da sua vulnerabilidade na relação de consumo. Ao fornecedor, por ter

ampla vantagem perante o consumidor no mercado de consumo, sobretudo porque é ele quem

edita, em regra, as condições gerais do fornecimento de seus produtos e serviços, incumbe

arcar com os riscos da exploração da atividade econômica por ele desenvolvida,

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profissionalizando e selecionando os fornecedores no mercado de consumo. É essa a chamada

teoria do risco da atividade, diante da qual se impõe ao fornecedor, dentre outras

conseqüências, o sistema da responsabilidade civil objetiva como regra, que dispensa a

apuração da culpa do fornecedor na causação do dano para que ele esteja obrigado a indenizar

o consumidor.

Nessa mesma linha de raciocínio, também decorre da teoria do risco da

atividade a aplicação da inversão do ônus da prova, não se pode taxá-la de “injusta” por ser

aplicada quando da prolação da sentença de mérito. O fornecedor deve assumir dos danos

decorrentes da sua atividade. Ao explorar atividade econômica no mercado de consumo, é do

fornecedor todos os riscos dela decorrentes. Dentre esses riscos, certamente está o de

indenizar, eventualmente, um consumidor que não tenha se desincumbido de provar os fatos

constitutivos do seu direito.

O direito do consumidor não se limita à prescrição formal e abstrata de

direitos. Pelo contrário, a fundamentalidade dos direitos do consumidor exige que sejam eles

materialmente realizados, sendo, só assim, possível o acesso efetivo do consumidor à justiça.

A inversão do ônus da prova é a materialização do princípio do in dubio pro

misero, sendo certo que atende melhor ao interesse público o fato de um consumidor, que não

tenha razão, ser indenizado, eventualmente, do que se ter um consumidor, que tenha razão,

não ser indenizado.

Não se trata de um sistema inconstitucional; pelo contrário, é a pura

manifestação do princípio constitucional da proteção jurídica integral do consumidor,

permitindo-lhe acesso a um provimento jurisdicional justo pela possibilidade de ter sua

pretensão acolhida mesmo nos processos em que não tenha se desincumbido do ônus de

provar suficientemente os fatos constitutivos do seu direito. Alinha-se a prestação

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jurisdicional à intenção da Constituição Federal, uma vez que a defesa do consumidor é dever

do Estado.

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ANEXO A

DISPOSITIVOS CONSTITUCIONAIS DE PROTEÇÃO AO CONSUMIDOR

(Constituição Federal de 1988)

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988

PREÂMBULO

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.

TÍTULO I Dos Princípios Fundamentais

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - a soberania;

II - a cidadania;

III - a dignidade da pessoa humana;

IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

V - o pluralismo político.

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II - garantir o desenvolvimento nacional;

III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

TÍTULO II Dos Direitos e Garantias Fundamentais

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CAPÍTULO I DOS DIREITOS E DEVERES INDIVIDUAIS E COLETIVOS

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;

II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;

IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;

VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;

VII - é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva;

VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;

IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;

XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal; (Vide Lei nº 9.296, de 1996)

XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;

XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;

XV - é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens;

XVI - todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente;

XVII - é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar;

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XVIII - a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento;

XIX - as associações só poderão ser compulsoriamente dissolvidas ou ter suas atividades suspensas por decisão judicial, exigindo-se, no primeiro caso, o trânsito em julgado;

XX - ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado;

XXI - as entidades associativas, quando expressamente autorizadas, têm legitimidade para representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente;

XXII - é garantido o direito de propriedade;

XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;

XXIV - a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição;

XXV - no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano;

XXVI - a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento;

XXVII - aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar;

XXVIII - são assegurados, nos termos da lei:

a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas;

b) o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras que criarem ou de que participarem aos criadores, aos intérpretes e às respectivas representações sindicais e associativas;

XXIX - a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País;

XXX - é garantido o direito de herança;

XXXI - a sucessão de bens de estrangeiros situados no País será regulada pela lei brasileira em benefício do cônjuge ou dos filhos brasileiros, sempre que não lhes seja mais favorável a lei pessoal do "de cujus";

XXXII - o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor;

XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado; (Regulamento)

XXXIV - são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas:

a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder;

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b) a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal;

XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;

XXXVI - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;

XXXVII - não haverá juízo ou tribunal de exceção;

XXXVIII - é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:

a) a plenitude de defesa;

b) o sigilo das votações;

c) a soberania dos veredictos;

d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida;

XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;

XL - a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;

XLI - a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais;

XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;

XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura , o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;

XLIV - constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático;

XLV - nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido;

XLVI - a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes:

a) privação ou restrição da liberdade;

b) perda de bens;

c) multa;

d) prestação social alternativa;

e) suspensão ou interdição de direitos;

XLVII - não haverá penas:

a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;

b) de caráter perpétuo;

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c) de trabalhos forçados;

d) de banimento;

e) cruéis;

XLVIII - a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado;

XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;

L - às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação;

LI - nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei;

LII - não será concedida extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião;

LIII - ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;

LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;

LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

LVI - são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos;

LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;

LVIII - o civilmente identificado não será submetido a identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei;

LIX - será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal;

LX - a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem;

LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;

LXII - a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada;

LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado;

LXIV - o preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial;

LXV - a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária;

LXVI - ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança;

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LXVII - não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel;

LXVIII - conceder-se-á "habeas-corpus" sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder;

LXIX - conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por "habeas-corpus" ou "habeas-data", quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público;

LXX - o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por:

a) partido político com representação no Congresso Nacional;

b) organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados;

LXXI - conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania;

LXXII - conceder-se-á "habeas-data":

a) para assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público;

b) para a retificação de dados, quando não se prefira fazê-lo por processo sigiloso, judicial ou administrativo;

LXXIII - qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência;

LXXIV - o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos;

LXXV - o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença;

LXXVI - são gratuitos para os reconhecidamente pobres, na forma da lei:

a) o registro civil de nascimento;

b) a certidão de óbito;

LXXVII - são gratuitas as ações de "habeas-corpus" e "habeas-data", e, na forma da lei, os atos necessários ao exercício da cidadania.

LXXVIII a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)

§ 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

§ 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

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§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)

§ 4º O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)

TÍTULO VII Da Ordem Econômica e Financeira

CAPÍTULO I

DOS PRINCÍPIOS GERAIS DA ATIVIDADE ECONÔMICA

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

I - soberania nacional;

II - propriedade privada;

III - função social da propriedade;

IV - livre concorrência;

V - defesa do consumidor;

VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)

VII - redução das desigualdades regionais e sociais;

VIII - busca do pleno emprego;

IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 6, de 1995)

Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.

ATO DAS DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS TRANSITÓRIAS

Art. 48. O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará

código de defesa do consumidor.

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ANEXO B

CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

LEI Nº 8.078, DE 11 DE SETEMBRO DE 1990.

Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte lei:

TÍTULO I

Dos Direitos do Consumidor

CAPÍTULO I

Disposições Gerais

Art. 1° O presente código estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social, nos termos dos arts. 5°, inciso XXXII, 170, inciso V, da Constituição Federal e art. 48 de suas Disposições Transitórias.

Art. 2° Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.

Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.

Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.

§ 1° Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial.

§ 2° Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.

CAPÍTULO II

Da Política Nacional de Relações de Consumo

Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: (Redação dada pela Lei nº 9.008, de 21.3.1995)

I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo;

II - ação governamental no sentido de proteger efetivamente o consumidor:

a) por iniciativa direta;

b) por incentivos à criação e desenvolvimento de associações representativas;

c) pela presença do Estado no mercado de consumo;

d) pela garantia dos produtos e serviços com padrões adequados de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho.

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III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores;

IV - educação e informação de fornecedores e consumidores, quanto aos seus direitos e deveres, com vistas à melhoria do mercado de consumo;

V - incentivo à criação pelos fornecedores de meios eficientes de controle de qualidade e segurança de produtos e serviços, assim como de mecanismos alternativos de solução de conflitos de consumo;

VI - coibição e repressão eficientes de todos os abusos praticados no mercado de consumo, inclusive a concorrência desleal e utilização indevida de inventos e criações industriais das marcas e nomes comerciais e signos distintivos, que possam causar prejuízos aos consumidores;

VII - racionalização e melhoria dos serviços públicos;

VIII - estudo constante das modificações do mercado de consumo.

Art. 5° Para a execução da Política Nacional das Relações de Consumo, contará o poder público com os seguintes instrumentos, entre outros:

I - manutenção de assistência jurídica, integral e gratuita para o consumidor carente;

II - instituição de Promotorias de Justiça de Defesa do Consumidor, no âmbito do Ministério Público;

III - criação de delegacias de polícia especializadas no atendimento de consumidores vítimas de infrações penais de consumo;

IV - criação de Juizados Especiais de Pequenas Causas e Varas Especializadas para a solução de litígios de consumo;

V - concessão de estímulos à criação e desenvolvimento das Associações de Defesa do Consumidor.

§ 1° (Vetado).

§ 2º (Vetado).

CAPÍTULO III

Dos Direitos Básicos do Consumidor

Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

I - a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos;

II - a educação e divulgação sobre o consumo adequado dos produtos e serviços, asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações;

III - a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentem;

IV - a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços;

V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas;

VI - a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos;

VII - o acesso aos órgãos judiciários e administrativos com vistas à prevenção ou reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos ou difusos, assegurada a proteção Jurídica, administrativa e técnica aos necessitados;

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VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências;

IX - (Vetado);

X - a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral.

Art. 7° Os direitos previstos neste código não excluem outros decorrentes de tratados ou convenções internacionais de que o Brasil seja signatário, da legislação interna ordinária, de regulamentos expedidos pelas autoridades administrativas competentes, bem como dos que derivem dos princípios gerais do direito, analogia, costumes e eqüidade.

Parágrafo único. Tendo mais de um autor a ofensa, todos responderão solidariamente pela reparação dos danos previstos nas normas de consumo.

CAPÍTULO IV

Da Qualidade de Produtos e Serviços, da Prevenção e da Reparação dos Danos

SEÇÃO I

Da Proteção à Saúde e Segurança

Art. 8° Os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumidores, exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição, obrigando-se os fornecedores, em qualquer hipótese, a dar as informações necessárias e adequadas a seu respeito.

Parágrafo único. Em se tratando de produto industrial, ao fabricante cabe prestar as informações a que se refere este artigo, através de impressos apropriados que devam acompanhar o produto.

Art. 9° O fornecedor de produtos e serviços potencialmente nocivos ou perigosos à saúde ou segurança deverá informar, de maneira ostensiva e adequada, a respeito da sua nocividade ou periculosidade, sem prejuízo da adoção de outras medidas cabíveis em cada caso concreto.

Art. 10. O fornecedor não poderá colocar no mercado de consumo produto ou serviço que sabe ou deveria saber apresentar alto grau de nocividade ou periculosidade à saúde ou segurança.

§ 1° O fornecedor de produtos e serviços que, posteriormente à sua introdução no mercado de consumo, tiver conhecimento da periculosidade que apresentem, deverá comunicar o fato imediatamente às autoridades competentes e aos consumidores, mediante anúncios publicitários.

§ 2° Os anúncios publicitários a que se refere o parágrafo anterior serão veiculados na imprensa, rádio e televisão, às expensas do fornecedor do produto ou serviço.

§ 3° Sempre que tiverem conhecimento de periculosidade de produtos ou serviços à saúde ou segurança dos consumidores, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão informá-los a respeito.

Art. 11. (Vetado).

SEÇÃO II

Da Responsabilidade pelo Fato do Produto e do Serviço

Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos.

§ 1° O produto é defeituoso quando não oferece a segurança que dele legitimamente se espera, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais:

I - sua apresentação;

II - o uso e os riscos que razoavelmente dele se esperam;

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III - a época em que foi colocado em circulação.

§ 2º O produto não é considerado defeituoso pelo fato de outro de melhor qualidade ter sido colocado no mercado.

§ 3° O fabricante, o construtor, o produtor ou importador só não será responsabilizado quando provar:

I - que não colocou o produto no mercado;

II - que, embora haja colocado o produto no mercado, o defeito inexiste;

III - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.

Art. 13. O comerciante é igualmente responsável, nos termos do artigo anterior, quando:

I - o fabricante, o construtor, o produtor ou o importador não puderem ser identificados;

II - o produto for fornecido sem identificação clara do seu fabricante, produtor, construtor ou importador;

III - não conservar adequadamente os produtos perecíveis.

Parágrafo único. Aquele que efetivar o pagamento ao prejudicado poderá exercer o direito de regresso contra os demais responsáveis, segundo sua participação na causação do evento danoso.

Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.

§ 1° O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais:

I - o modo de seu fornecimento;

II - o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam;

III - a época em que foi fornecido.

§ 2º O serviço não é considerado defeituoso pela adoção de novas técnicas.

§ 3° O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar:

I - que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste;

II - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.

§ 4° A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa.

Art. 15. (Vetado).

Art. 16. (Vetado).

Art. 17. Para os efeitos desta Seção, equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do evento.

SEÇÃO III

Da Responsabilidade por Vício do Produto e do Serviço

Art. 18. Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com a indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas.

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§ 1° Não sendo o vício sanado no prazo máximo de trinta dias, pode o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha:

I - a substituição do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso;

II - a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos;

III - o abatimento proporcional do preço.

§ 2° Poderão as partes convencionar a redução ou ampliação do prazo previsto no parágrafo anterior, não podendo ser inferior a sete nem superior a cento e oitenta dias. Nos contratos de adesão, a cláusula de prazo deverá ser convencionada em separado, por meio de manifestação expressa do consumidor.

§ 3° O consumidor poderá fazer uso imediato das alternativas do § 1° deste artigo sempre que, em razão da extensão do vício, a substituição das partes viciadas puder comprometer a qualidade ou características do produto, diminuir-lhe o valor ou se tratar de produto essencial.

§ 4° Tendo o consumidor optado pela alternativa do inciso I do § 1° deste artigo, e não sendo possível a substituição do bem, poderá haver substituição por outro de espécie, marca ou modelo diversos, mediante complementação ou restituição de eventual diferença de preço, sem prejuízo do disposto nos incisos II e III do § 1° deste artigo.

§ 5° No caso de fornecimento de produtos in natura, será responsável perante o consumidor o fornecedor imediato, exceto quando identificado claramente seu produtor.

§ 6° São impróprios ao uso e consumo:

I - os produtos cujos prazos de validade estejam vencidos;

II - os produtos deteriorados, alterados, adulterados, avariados, falsificados, corrompidos, fraudados, nocivos à vida ou à saúde, perigosos ou, ainda, aqueles em desacordo com as normas regulamentares de fabricação, distribuição ou apresentação;

III - os produtos que, por qualquer motivo, se revelem inadequados ao fim a que se destinam.

Art. 19. Os fornecedores respondem solidariamente pelos vícios de quantidade do produto sempre que, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, seu conteúdo líquido for inferior às indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou de mensagem publicitária, podendo o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha:

I - o abatimento proporcional do preço;

II - complementação do peso ou medida;

III - a substituição do produto por outro da mesma espécie, marca ou modelo, sem os aludidos vícios;

IV - a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos.

§ 1° Aplica-se a este artigo o disposto no § 4° do artigo anterior.

§ 2° O fornecedor imediato será responsável quando fizer a pesagem ou a medição e o instrumento utilizado não estiver aferido segundo os padrões oficiais.

Art. 20. O fornecedor de serviços responde pelos vícios de qualidade que os tornem impróprios ao consumo ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade com as indicações constantes da oferta ou mensagem publicitária, podendo o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha:

I - a reexecução dos serviços, sem custo adicional e quando cabível;

II - a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos;

III - o abatimento proporcional do preço.

§ 1° A reexecução dos serviços poderá ser confiada a terceiros devidamente capacitados, por conta e risco do fornecedor.

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§ 2° São impróprios os serviços que se mostrem inadequados para os fins que razoavelmente deles se esperam, bem como aqueles que não atendam as normas regulamentares de prestabilidade.

Art. 21. No fornecimento de serviços que tenham por objetivo a reparação de qualquer produto considerar-se-á implícita a obrigação do fornecedor de empregar componentes de reposição originais adequados e novos, ou que mantenham as especificações técnicas do fabricante, salvo, quanto a estes últimos, autorização em contrário do consumidor.

Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.

Parágrafo único. Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste código.

Art. 23. A ignorância do fornecedor sobre os vícios de qualidade por inadequação dos produtos e serviços não o exime de responsabilidade.

Art. 24. A garantia legal de adequação do produto ou serviço independe de termo expresso, vedada a exoneração contratual do fornecedor.

Art. 25. É vedada a estipulação contratual de cláusula que impossibilite, exonere ou atenue a obrigação de indenizar prevista nesta e nas seções anteriores.

§ 1° Havendo mais de um responsável pela causação do dano, todos responderão solidariamente pela reparação prevista nesta e nas seções anteriores.

§ 2° Sendo o dano causado por componente ou peça incorporada ao produto ou serviço, são responsáveis solidários seu fabricante, construtor ou importador e o que realizou a incorporação.

SEÇÃO IV

Da Decadência e da Prescrição

Art. 26. O direito de reclamar pelos vícios aparentes ou de fácil constatação caduca em:

I - trinta dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produtos não duráveis;

II - noventa dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produtos duráveis.

§ 1° Inicia-se a contagem do prazo decadencial a partir da entrega efetiva do produto ou do término da execução dos serviços.

§ 2° Obstam a decadência:

I - a reclamação comprovadamente formulada pelo consumidor perante o fornecedor de produtos e serviços até a resposta negativa correspondente, que deve ser transmitida de forma inequívoca;

II - (Vetado).

III - a instauração de inquérito civil, até seu encerramento.

§ 3° Tratando-se de vício oculto, o prazo decadencial inicia-se no momento em que ficar evidenciado o defeito.

Art. 27. Prescreve em cinco anos a pretensão à reparação pelos danos causados por fato do produto ou do serviço prevista na Seção II deste Capítulo, iniciando-se a contagem do prazo a partir do conhecimento do dano e de sua autoria.

Parágrafo único. (Vetado).

SEÇÃO V

Da Desconsideração da Personalidade Jurídica

Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A

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desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

§ 1° (Vetado).

§ 2° As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas, são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.

§ 3° As sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.

§ 4° As sociedades coligadas só responderão por culpa.

§ 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.

CAPÍTULO V

Das Práticas Comerciais

SEÇÃO I

Das Disposições Gerais

Art. 29. Para os fins deste Capítulo e do seguinte, equiparam-se aos consumidores todas as pessoas determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas.

SEÇÃO II

Da Oferta

Art. 30. Toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado.

Art. 31. A oferta e apresentação de produtos ou serviços devem assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores.

Art. 32. Os fabricantes e importadores deverão assegurar a oferta de componentes e peças de reposição enquanto não cessar a fabricação ou importação do produto.

Parágrafo único. Cessadas a produção ou importação, a oferta deverá ser mantida por período razoável de tempo, na forma da lei.

Art. 33. Em caso de oferta ou venda por telefone ou reembolso postal, deve constar o nome do fabricante e endereço na embalagem, publicidade e em todos os impressos utilizados na transação comercial.

Art. 34. O fornecedor do produto ou serviço é solidariamente responsável pelos atos de seus prepostos ou representantes autônomos.

Art. 35. Se o fornecedor de produtos ou serviços recusar cumprimento à oferta, apresentação ou publicidade, o consumidor poderá, alternativamente e à sua livre escolha:

I - exigir o cumprimento forçado da obrigação, nos termos da oferta, apresentação ou publicidade;

II - aceitar outro produto ou prestação de serviço equivalente;

III - rescindir o contrato, com direito à restituição de quantia eventualmente antecipada, monetariamente atualizada, e a perdas e danos.

SEÇÃO III

Da Publicidade

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Art. 36. A publicidade deve ser veiculada de tal forma que o consumidor, fácil e imediatamente, a identifique como tal.

Parágrafo único. O fornecedor, na publicidade de seus produtos ou serviços, manterá, em seu poder, para informação dos legítimos interessados, os dados fáticos, técnicos e científicos que dão sustentação à mensagem.

Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva.

§ 1° É enganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços.

§ 2° É abusiva, dentre outras a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeita valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança.

§ 3° Para os efeitos deste código, a publicidade é enganosa por omissão quando deixar de informar sobre dado essencial do produto ou serviço.

§ 4° (Vetado).

Art. 38. O ônus da prova da veracidade e correção da informação ou comunicação publicitária cabe a quem as patrocina.

SEÇÃO IV

Das Práticas Abusivas

Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: (Redação dada pela Lei nº 8.884, de 11.6.1994)

I - condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos;

II - recusar atendimento às demandas dos consumidores, na exata medida de suas disponibilidades de estoque, e, ainda, de conformidade com os usos e costumes;

III - enviar ou entregar ao consumidor, sem solicitação prévia, qualquer produto, ou fornecer qualquer serviço;

IV - prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços;

V - exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva;

VI - executar serviços sem a prévia elaboração de orçamento e autorização expressa do consumidor, ressalvadas as decorrentes de práticas anteriores entre as partes;

VII - repassar informação depreciativa, referente a ato praticado pelo consumidor no exercício de seus direitos;

VIII - colocar, no mercado de consumo, qualquer produto ou serviço em desacordo com as normas expedidas pelos órgãos oficiais competentes ou, se normas específicas não existirem, pela Associação Brasileira de Normas Técnicas ou outra entidade credenciada pelo Conselho Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Conmetro);

IX - recusar a venda de bens ou a prestação de serviços, diretamente a quem se disponha a adquiri-los mediante pronto pagamento, ressalvados os casos de intermediação regulados em leis especiais; (Redação dada pela Lei nº 8.884, de 11.6.1994)

X - elevar sem justa causa o preço de produtos ou serviços. (Incluído pela Lei nº 8.884, de 11.6.1994)

XI - Dispositivo incluído pela MPV nº 1.890-67, de 22.10.1999, transformado em inciso XIII, quando da converão na Lei nº 9.870, de 23.11.1999

XII - deixar de estipular prazo para o cumprimento de sua obrigação ou deixar a fixação de seu termo inicial a seu exclusivo critério.(Incluído pela Lei nº 9.008, de 21.3.1995)

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XIII - aplicar fórmula ou índice de reajuste diverso do legal ou contratualmente estabelecido. (Incluído pela Lei nº 9.870, de 23.11.1999)

Parágrafo único. Os serviços prestados e os produtos remetidos ou entregues ao consumidor, na hipótese prevista no inciso III, equiparam-se às amostras grátis, inexistindo obrigação de pagamento.

Art. 40. O fornecedor de serviço será obrigado a entregar ao consumidor orçamento prévio discriminando o valor da mão-de-obra, dos materiais e equipamentos a serem empregados, as condições de pagamento, bem como as datas de início e término dos serviços.

§ 1º Salvo estipulação em contrário, o valor orçado terá validade pelo prazo de dez dias, contado de seu recebimento pelo consumidor.

§ 2° Uma vez aprovado pelo consumidor, o orçamento obriga os contraentes e somente pode ser alterado mediante livre negociação das partes.

§ 3° O consumidor não responde por quaisquer ônus ou acréscimos decorrentes da contratação de serviços de terceiros não previstos no orçamento prévio.

Art. 41. No caso de fornecimento de produtos ou de serviços sujeitos ao regime de controle ou de tabelamento de preços, os fornecedores deverão respeitar os limites oficiais sob pena de não o fazendo, responderem pela restituição da quantia recebida em excesso, monetariamente atualizada, podendo o consumidor exigir à sua escolha, o desfazimento do negócio, sem prejuízo de outras sanções cabíveis.

SEÇÃO V

Da Cobrança de Dívidas

Art. 42. Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça.

Parágrafo único. O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável.

SEÇÃO VI

Dos Bancos de Dados e Cadastros de Consumidores

Art. 43. O consumidor, sem prejuízo do disposto no art. 86, terá acesso às informações existentes em cadastros, fichas, registros e dados pessoais e de consumo arquivados sobre ele, bem como sobre as suas respectivas fontes.

§ 1° Os cadastros e dados de consumidores devem ser objetivos, claros, verdadeiros e em linguagem de fácil compreensão, não podendo conter informações negativas referentes a período superior a cinco anos.

§ 2° A abertura de cadastro, ficha, registro e dados pessoais e de consumo deverá ser comunicada por escrito ao consumidor, quando não solicitada por ele.

§ 3° O consumidor, sempre que encontrar inexatidão nos seus dados e cadastros, poderá exigir sua imediata correção, devendo o arquivista, no prazo de cinco dias úteis, comunicar a alteração aos eventuais destinatários das informações incorretas.

§ 4° Os bancos de dados e cadastros relativos a consumidores, os serviços de proteção ao crédito e congêneres são considerados entidades de caráter público.

§ 5° Consumada a prescrição relativa à cobrança de débitos do consumidor, não serão fornecidas, pelos respectivos Sistemas de Proteção ao Crédito, quaisquer informações que possam impedir ou dificultar novo acesso ao crédito junto aos fornecedores.

Art. 44. Os órgãos públicos de defesa do consumidor manterão cadastros atualizados de reclamações fundamentadas contra fornecedores de produtos e serviços, devendo divulgá-lo pública e anualmente. A divulgação indicará se a reclamação foi atendida ou não pelo fornecedor.

§ 1° É facultado o acesso às informações lá constantes para orientação e consulta por qualquer interessado.

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§ 2° Aplicam-se a este artigo, no que couber, as mesmas regras enunciadas no artigo anterior e as do parágrafo único do art. 22 deste código.

Art. 45. (Vetado).

CAPÍTULO VI

Da Proteção Contratual

SEÇÃO I

Disposições Gerais

Art. 46. Os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance.

Art. 47. As cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor.

Art. 48. As declarações de vontade constantes de escritos particulares, recibos e pré-contratos relativos às relações de consumo vinculam o fornecedor, ensejando inclusive execução específica, nos termos do art. 84 e parágrafos.

Art. 49. O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 dias a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio.

Parágrafo único. Se o consumidor exercitar o direito de arrependimento previsto neste artigo, os valores eventualmente pagos, a qualquer título, durante o prazo de reflexão, serão devolvidos, de imediato, monetariamente atualizados.

Art. 50. A garantia contratual é complementar à legal e será conferida mediante termo escrito.

Parágrafo único. O termo de garantia ou equivalente deve ser padronizado e esclarecer, de maneira adequada em que consiste a mesma garantia, bem como a forma, o prazo e o lugar em que pode ser exercitada e os ônus a cargo do consumidor, devendo ser-lhe entregue, devidamente preenchido pelo fornecedor, no ato do fornecimento, acompanhado de manual de instrução, de instalação e uso do produto em linguagem didática, com ilustrações.

SEÇÃO II

Das Cláusulas Abusivas

Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:

I - impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos. Nas relações de consumo entre o fornecedor e o consumidor pessoa jurídica, a indenização poderá ser limitada, em situações justificáveis;

II - subtraiam ao consumidor a opção de reembolso da quantia já paga, nos casos previstos neste código;

III - transfiram responsabilidades a terceiros;

IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade;

V - (Vetado);

VI - estabeleçam inversão do ônus da prova em prejuízo do consumidor;

VII - determinem a utilização compulsória de arbitragem;

VIII - imponham representante para concluir ou realizar outro negócio jurídico pelo consumidor;

IX - deixem ao fornecedor a opção de concluir ou não o contrato, embora obrigando o consumidor;

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X - permitam ao fornecedor, direta ou indiretamente, variação do preço de maneira unilateral;

XI - autorizem o fornecedor a cancelar o contrato unilateralmente, sem que igual direito seja conferido ao consumidor;

XII - obriguem o consumidor a ressarcir os custos de cobrança de sua obrigação, sem que igual direito lhe seja conferido contra o fornecedor;

XIII - autorizem o fornecedor a modificar unilateralmente o conteúdo ou a qualidade do contrato, após sua celebração;

XIV - infrinjam ou possibilitem a violação de normas ambientais;

XV - estejam em desacordo com o sistema de proteção ao consumidor;

XVI - possibilitem a renúncia do direito de indenização por benfeitorias necessárias.

§ 1º Presume-se exagerada, entre outros casos, a vontade que:

I - ofende os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence;

II - restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou equilíbrio contratual;

III - se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso.

§ 2° A nulidade de uma cláusula contratual abusiva não invalida o contrato, exceto quando de sua ausência, apesar dos esforços de integração, decorrer ônus excessivo a qualquer das partes.

§ 3° (Vetado).

§ 4° É facultado a qualquer consumidor ou entidade que o represente requerer ao Ministério Público que ajuíze a competente ação para ser declarada a nulidade de cláusula contratual que contrarie o disposto neste código ou de qualquer forma não assegure o justo equilíbrio entre direitos e obrigações das partes.

Art. 52. No fornecimento de produtos ou serviços que envolva outorga de crédito ou concessão de financiamento ao consumidor, o fornecedor deverá, entre outros requisitos, informá-lo prévia e adequadamente sobre:

I - preço do produto ou serviço em moeda corrente nacional;

II - montante dos juros de mora e da taxa efetiva anual de juros;

III - acréscimos legalmente previstos;

IV - número e periodicidade das prestações;

V - soma total a pagar, com e sem financiamento.

§ 1° As multas de mora decorrentes do inadimplemento de obrigações no seu termo não poderão ser superiores a dois por cento do valor da prestação.(Redação dada pela Lei nº 9.298, de 1º.8.1996)

§ 2º É assegurado ao consumidor a liquidação antecipada do débito, total ou parcialmente, mediante redução proporcional dos juros e demais acréscimos.

§ 3º (Vetado).

Art. 53. Nos contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações, bem como nas alienações fiduciárias em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado.

§ 1° (Vetado).

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§ 2º Nos contratos do sistema de consórcio de produtos duráveis, a compensação ou a restituição das parcelas quitadas, na forma deste artigo, terá descontada, além da vantagem econômica auferida com a fruição, os prejuízos que o desistente ou inadimplente causar ao grupo.

§ 3° Os contratos de que trata o caput deste artigo serão expressos em moeda corrente nacional.

SEÇÃO III

Dos Contratos de Adesão

Art. 54. Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo.

§ 1° A inserção de cláusula no formulário não desfigura a natureza de adesão do contrato.

§ 2° Nos contratos de adesão admite-se cláusula resolutória, desde que a alternativa, cabendo a escolha ao consumidor, ressalvando-se o disposto no § 2° do artigo anterior.

§ 3° Os contratos de adesão escritos serão redigidos em termos claros e com caracteres ostensivos e legíveis, de modo a facilitar sua compreensão pelo consumidor.

§ 4° As cláusulas que implicarem limitação de direito do consumidor deverão ser redigidas com destaque, permitindo sua imediata e fácil compreensão.

§ 5° (Vetado).

CAPÍTULO VII (Vide Lei nº 8.656, de 1993)

Das Sanções Administrativas

Art. 55. A União, os Estados e o Distrito Federal, em caráter concorrente e nas suas respectivas áreas de atuação administrativa, baixarão normas relativas à produção, industrialização, distribuição e consumo de produtos e serviços.

§ 1° A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios fiscalizarão e controlarão a produção, industrialização, distribuição, a publicidade de produtos e serviços e o mercado de consumo, no interesse da preservação da vida, da saúde, da segurança, da informação e do bem-estar do consumidor, baixando as normas que se fizerem necessárias.

§ 2° (Vetado).

§ 3° Os órgãos federais, estaduais, do Distrito Federal e municipais com atribuições para fiscalizar e controlar o mercado de consumo manterão comissões permanentes para elaboração, revisão e atualização das normas referidas no § 1°, sendo obrigatória a participação dos consumidores e fornecedores.

§ 4° Os órgãos oficiais poderão expedir notificações aos fornecedores para que, sob pena de desobediência, prestem informações sobre questões de interesse do consumidor, resguardado o segredo industrial.

Art. 56. As infrações das normas de defesa do consumidor ficam sujeitas, conforme o caso, às seguintes sanções administrativas, sem prejuízo das de natureza civil, penal e das definidas em normas específicas:

I - multa;

II - apreensão do produto;

III - inutilização do produto;

IV - cassação do registro do produto junto ao órgão competente;

V - proibição de fabricação do produto;

VI - suspensão de fornecimento de produtos ou serviço;

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VII - suspensão temporária de atividade;

VIII - revogação de concessão ou permissão de uso;

IX - cassação de licença do estabelecimento ou de atividade;

X - interdição, total ou parcial, de estabelecimento, de obra ou de atividade;

XI - intervenção administrativa;

XII - imposição de contrapropaganda.

Parágrafo único. As sanções previstas neste artigo serão aplicadas pela autoridade administrativa, no âmbito de sua atribuição, podendo ser aplicadas cumulativamente, inclusive por medida cautelar, antecedente ou incidente de procedimento administrativo.

Art. 57. A pena de multa, graduada de acordo com a gravidade da infração, a vantagem auferida e a condição econômica do fornecedor, será aplicada mediante procedimento administrativo, revertendo para o Fundo de que trata a Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985, os valores cabíveis à União, ou para os Fundos estaduais ou municipais de proteção ao consumidor nos demais casos. (Redação dada pela Lei nº 8.656, de 21.5.1993)

Parágrafo único. A multa será em montante não inferior a duzentas e não superior a três milhões de vezes o valor da Unidade Fiscal de Referência (Ufir), ou índice equivalente que venha a substituí-lo. (Parágrafo acrescentado pela Lei nº 8.703, de 6.9.1993)

Art. 58. As penas de apreensão, de inutilização de produtos, de proibição de fabricação de produtos, de suspensão do fornecimento de produto ou serviço, de cassação do registro do produto e revogação da concessão ou permissão de uso serão aplicadas pela administração, mediante procedimento administrativo, assegurada ampla defesa, quando forem constatados vícios de quantidade ou de qualidade por inadequação ou insegurança do produto ou serviço.

Art. 59. As penas de cassação de alvará de licença, de interdição e de suspensão temporária da atividade, bem como a de intervenção administrativa, serão aplicadas mediante procedimento administrativo, assegurada ampla defesa, quando o fornecedor reincidir na prática das infrações de maior gravidade previstas neste código e na legislação de consumo.

§ 1° A pena de cassação da concessão será aplicada à concessionária de serviço público, quando violar obrigação legal ou contratual.

§ 2° A pena de intervenção administrativa será aplicada sempre que as circunstâncias de fato desaconselharem a cassação de licença, a interdição ou suspensão da atividade.

§ 3° Pendendo ação judicial na qual se discuta a imposição de penalidade administrativa, não haverá reincidência até o trânsito em julgado da sentença.

Art. 60. A imposição de contrapropaganda será cominada quando o fornecedor incorrer na prática de publicidade enganosa ou abusiva, nos termos do art. 36 e seus parágrafos, sempre às expensas do infrator.

§ 1º A contrapropaganda será divulgada pelo responsável da mesma forma, freqüência e dimensão e, preferencialmente no mesmo veículo, local, espaço e horário, de forma capaz de desfazer o malefício da publicidade enganosa ou abusiva.

§ 2° (Vetado).

§ 3° (Vetado).

TÍTULO II

Das Infrações Penais

Art. 61. Constituem crimes contra as relações de consumo previstas neste código, sem prejuízo do disposto no Código Penal e leis especiais, as condutas tipificadas nos artigos seguintes.

Art. 62. (Vetado).

Art. 63. Omitir dizeres ou sinais ostensivos sobre a nocividade ou periculosidade de produtos, nas embalagens, nos invólucros, recipientes ou publicidade:

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Pena - Detenção de seis meses a dois anos e multa.

§ 1° Incorrerá nas mesmas penas quem deixar de alertar, mediante recomendações escritas ostensivas, sobre a periculosidade do serviço a ser prestado.

§ 2° Se o crime é culposo:

Pena Detenção de um a seis meses ou multa.

Art. 64. Deixar de comunicar à autoridade competente e aos consumidores a nocividade ou periculosidade de produtos cujo conhecimento seja posterior à sua colocação no mercado:

Pena - Detenção de seis meses a dois anos e multa.

Parágrafo único. Incorrerá nas mesmas penas quem deixar de retirar do mercado, imediatamente quando determinado pela autoridade competente, os produtos nocivos ou perigosos, na forma deste artigo.

Art. 65. Executar serviço de alto grau de periculosidade, contrariando determinação de autoridade competente:

Pena Detenção de seis meses a dois anos e multa.

Parágrafo único. As penas deste artigo são aplicáveis sem prejuízo das correspondentes à lesão corporal e à morte.

Art. 66. Fazer afirmação falsa ou enganosa, ou omitir informação relevante sobre a natureza, característica, qualidade, quantidade, segurança, desempenho, durabilidade, preço ou garantia de produtos ou serviços:

Pena - Detenção de três meses a um ano e multa.

§ 1º Incorrerá nas mesmas penas quem patrocinar a oferta.

§ 2º Se o crime é culposo;

Pena Detenção de um a seis meses ou multa.

Art. 67. Fazer ou promover publicidade que sabe ou deveria saber ser enganosa ou abusiva:

Pena Detenção de três meses a um ano e multa.

Parágrafo único. (Vetado).

Art. 68. Fazer ou promover publicidade que sabe ou deveria saber ser capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa a sua saúde ou segurança:

Pena - Detenção de seis meses a dois anos e multa:

Parágrafo único. (Vetado).

Art. 69. Deixar de organizar dados fáticos, técnicos e científicos que dão base à publicidade:

Pena Detenção de um a seis meses ou multa.

Art. 70. Empregar na reparação de produtos, peça ou componentes de reposição usados, sem autorização do consumidor:

Pena Detenção de três meses a um ano e multa.

Art. 71. Utilizar, na cobrança de dívidas, de ameaça, coação, constrangimento físico ou moral, afirmações falsas incorretas ou enganosas ou de qualquer outro procedimento que exponha o consumidor, injustificadamente, a ridículo ou interfira com seu trabalho, descanso ou lazer:

Pena Detenção de três meses a um ano e multa.

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Art. 72. Impedir ou dificultar o acesso do consumidor às informações que sobre ele constem em cadastros, banco de dados, fichas e registros:

Pena Detenção de seis meses a um ano ou multa.

Art. 73. Deixar de corrigir imediatamente informação sobre consumidor constante de cadastro, banco de dados, fichas ou registros que sabe ou deveria saber ser inexata:

Pena Detenção de um a seis meses ou multa.

Art. 74. Deixar de entregar ao consumidor o termo de garantia adequadamente preenchido e com especificação clara de seu conteúdo;

Pena Detenção de um a seis meses ou multa.

Art. 75. Quem, de qualquer forma, concorrer para os crimes referidos neste código, incide as penas a esses cominadas na medida de sua culpabilidade, bem como o diretor, administrador ou gerente da pessoa jurídica que promover, permitir ou por qualquer modo aprovar o fornecimento, oferta, exposição à venda ou manutenção em depósito de produtos ou a oferta e prestação de serviços nas condições por ele proibidas.

Art. 76. São circunstâncias agravantes dos crimes tipificados neste código:

I - serem cometidos em época de grave crise econômica ou por ocasião de calamidade;

II - ocasionarem grave dano individual ou coletivo;

III - dissimular-se a natureza ilícita do procedimento;

IV - quando cometidos:

a) por servidor público, ou por pessoa cuja condição econômico-social seja manifestamente superior à da vítima;

b) em detrimento de operário ou rurícola; de menor de dezoito ou maior de sessenta anos ou de pessoas portadoras de deficiência mental interditadas ou não;

V - serem praticados em operações que envolvam alimentos, medicamentos ou quaisquer outros produtos ou serviços essenciais .

Art. 77. A pena pecuniária prevista nesta Seção será fixada em dias-multa, correspondente ao mínimo e ao máximo de dias de duração da pena privativa da liberdade cominada ao crime. Na individualização desta multa, o juiz observará o disposto no art. 60, §1° do Código Penal.

Art. 78. Além das penas privativas de liberdade e de multa, podem ser impostas, cumulativa ou alternadamente, observado odisposto nos arts. 44 a 47, do Código Penal:

I - a interdição temporária de direitos;

II - a publicação em órgãos de comunicação de grande circulação ou audiência, às expensas do condenado, de notícia sobre os fatos e a condenação;

III - a prestação de serviços à comunidade.

Art. 79. O valor da fiança, nas infrações de que trata este código, será fixado pelo juiz, ou pela autoridade que presidir o inquérito, entre cem e duzentas mil vezes o valor do Bônus do Tesouro Nacional (BTN), ou índice equivalente que venha a substituí-lo.

Parágrafo único. Se assim recomendar a situação econômica do indiciado ou réu, a fiança poderá ser:

a) reduzida até a metade do seu valor mínimo;

b) aumentada pelo juiz até vinte vezes.

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Art. 80. No processo penal atinente aos crimes previstos neste código, bem como a outros crimes e contravenções que envolvam relações de consumo, poderão intervir, como assistentes do Ministério Público, os legitimados indicados no art. 82, inciso III e IV, aos quais também é facultado propor ação penal subsidiária, se a denúncia não for oferecida no prazo legal.

TÍTULO III

Da Defesa do Consumidor em Juízo

CAPÍTULO I

Disposições Gerais

Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.

Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:

I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;

II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base;

III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.

Art. 82. Para os fins do art. 81, parágrafo único, são legitimados concorrentemente: (Redação dada pela Lei nº 9.008, de 21.3.1995)

I - o Ministério Público,

II - a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal;

III - as entidades e órgãos da Administração Pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos por este código;

IV - as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos por este código, dispensada a autorização assemblear.

§ 1° O requisito da pré-constituição pode ser dispensado pelo juiz, nas ações previstas nos arts. 91 e seguintes, quando haja manifesto interesse social evidenciado pela dimensão ou característica do dano, ou pela relevância do bem jurídico a ser protegido.

§ 2° (Vetado).

§ 3° (Vetado).

Art. 83. Para a defesa dos direitos e interesses protegidos por este código são admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela.

Parágrafo único. (Vetado).

Art. 84. Na ação que tenha por objeto o cumprimento da obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.

§ 1° A conversão da obrigação em perdas e danos somente será admissível se por elas optar o autor ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático correspondente.

§ 2° A indenização por perdas e danos se fará sem prejuízo da multa (art. 287, do Código de Processo Civil).

§ 3° Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou após justificação prévia, citado o réu.

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§ 4° O juiz poderá, na hipótese do § 3° ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando prazo razoável para o cumprimento do preceito.

§ 5° Para a tutela específica ou para a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz determinar as medidas necessárias, tais como busca e apreensão, remoção de coisas e pessoas, desfazimento de obra, impedimento de atividade nociva, além de requisição de força policial.

Art. 85. (Vetado).

Art. 86. (Vetado).

Art. 87. Nas ações coletivas de que trata este código não haverá adiantamento de custas, emolumentos, honorários periciais e quaisquer outras despesas, nem condenação da associação autora, salvo comprovada má-fé, em honorários de advogados, custas e despesas processuais.

Parágrafo único. Em caso de litigância de má-fé, a associação autora e os diretores responsáveis pela propositura da ação serão solidariamente condenados em honorários advocatícios e ao décuplo das custas, sem prejuízo da responsabilidade por perdas e danos.

Art. 88. Na hipótese do art. 13, parágrafo único deste código, a ação de regresso poderá ser ajuizada em processo autônomo, facultada a possibilidade de prosseguir-se nos mesmos autos, vedada a denunciação da lide.

Art. 89. (Vetado).

Art. 90. Aplicam-se às ações previstas neste título as normas do Código de Processo Civil e da Lei n° 7.347, de 24 de julho de 1985, inclusive no que respeita ao inquérito civil, naquilo que não contrariar suas disposições.

CAPÍTULO II

Das Ações Coletivas Para a Defesa de Interesses Individuais Homogêneos

Art. 91. Os legitimados de que trata o art. 82 poderão propor, em nome próprio e no interesse das vítimas ou seus sucessores, ação civil coletiva de responsabilidade pelos danos individualmente sofridos, de acordo com o disposto nos artigos seguintes. (Redação dada pela Lei nº 9.008, de 21.3.1995)

Art. 92. O Ministério Público, se não ajuizar a ação, atuará sempre como fiscal da lei.

Parágrafo único. (Vetado).

Art. 93. Ressalvada a competência da Justiça Federal, é competente para a causa a justiça local:

I - no foro do lugar onde ocorreu ou deva ocorrer o dano, quando de âmbito local;

II - no foro da Capital do Estado ou no do Distrito Federal, para os danos de âmbito nacional ou regional, aplicando-se as regras do Código de Processo Civil aos casos de competência concorrente.

Art. 94. Proposta a ação, será publicado edital no órgão oficial, a fim de que os interessados possam intervir no processo como litisconsortes, sem prejuízo de ampla divulgação pelos meios de comunicação social por parte dos órgãos de defesa do consumidor.

Art. 95. Em caso de procedência do pedido, a condenação será genérica, fixando a responsabilidade do réu pelos danos causados.

Art. 96. (Vetado).

Art. 97. A liquidação e a execução de sentença poderão ser promovidas pela vítima e seus sucessores, assim como pelos legitimados de que trata o art. 82.

Parágrafo único. (Vetado).

Art. 98. A execução poderá ser coletiva, sendo promovida pelos legitimados de que trata o art. 82, abrangendo as vítimas cujas indenizações já tiveram sido fixadas em sentença de liquidação, sem prejuízo do ajuizamento de outras execuções. (Redação dada pela Lei nº 9.008, de 21.3.1995)

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§ 1° A execução coletiva far-se-á com base em certidão das sentenças de liquidação, da qual deverá constar a ocorrência ou não do trânsito em julgado.

§ 2° É competente para a execução o juízo:

I - da liquidação da sentença ou da ação condenatória, no caso de execução individual;

II - da ação condenatória, quando coletiva a execução.

Art. 99. Em caso de concurso de créditos decorrentes de condenação prevista na Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985 e de indenizações pelos prejuízos individuais resultantes do mesmo evento danoso, estas terão preferência no pagamento.

Parágrafo único. Para efeito do disposto neste artigo, a destinação da importância recolhida ao fundo criado pela Lei n°7.347 de 24 de julho de 1985, ficará sustada enquanto pendentes de decisão de segundo grau as ações de indenização pelos danos individuais, salvo na hipótese de o patrimônio do devedor ser manifestamente suficiente para responder pela integralidade das dívidas.

Art. 100. Decorrido o prazo de um ano sem habilitação de interessados em número compatível com a gravidade do dano, poderão os legitimados do art. 82 promover a liquidação e execução da indenização devida.

Parágrafo único. O produto da indenização devida reverterá para o fundo criado pela Lei n° 7.347, de 24 de julho de 1985.

CAPÍTULO III

Das Ações de Responsabilidade do Fornecedor de Produtos e Serviços

Art. 101. Na ação de responsabilidade civil do fornecedor de produtos e serviços, sem prejuízo do disposto nos Capítulos I e II deste título, serão observadas as seguintes normas:

I - a ação pode ser proposta no domicílio do autor;

II - o réu que houver contratado seguro de responsabilidade poderá chamar ao processo o segurador, vedada a integração do contraditório pelo Instituto de Resseguros do Brasil. Nesta hipótese, a sentença que julgar procedente o pedido condenará o réu nos termos do art. 80 do Código de Processo Civil. Se o réu houver sido declarado falido, o síndico será intimado a informar a existência de seguro de responsabilidade, facultando-se, em caso afirmativo, o ajuizamento de ação de indenização diretamente contra o segurador, vedada a denunciação da lide ao Instituto de Resseguros do Brasil e dispensado o litisconsórcio obrigatório com este.

Art. 102. Os legitimados a agir na forma deste código poderão propor ação visando compelir o Poder Público competente a proibir, em todo o território nacional, a produção, divulgação distribuição ou venda, ou a determinar a alteração na composição, estrutura, fórmula ou acondicionamento de produto, cujo uso ou consumo regular se revele nocivo ou perigoso à saúde pública e à incolumidade pessoal.

§ 1° (Vetado).

§ 2° (Vetado).

CAPÍTULO IV

Da Coisa Julgada

Art. 103. Nas ações coletivas de que trata este código, a sentença fará coisa julgada:

I - erga omnes, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação, com idêntico fundamento valendo-se de nova prova, na hipótese do inciso I do parágrafo único do art. 81;

II - ultra partes, mas limitadamente ao grupo, categoria ou classe, salvo improcedência por insuficiência de provas, nos termos do inciso anterior, quando se tratar da hipótese prevista no inciso II do parágrafo único do art. 81;

III - erga omnes, apenas no caso de procedência do pedido, para beneficiar todas as vítimas e seus sucessores, na hipótese do inciso III do parágrafo único do art. 81.

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§ 1° Os efeitos da coisa julgada previstos nos incisos I e II não prejudicarão interesses e direitos individuais dos integrantes da coletividade, do grupo, categoria ou classe.

§ 2° Na hipótese prevista no inciso III, em caso de improcedência do pedido, os interessados que não tiverem intervindo no processo como litisconsortes poderão propor ação de indenização a título individual.

§ 3° Os efeitos da coisa julgada de que cuida o art. 16, combinado com o art. 13 da Lei n° 7.347, de 24 de julho de 1985, não prejudicarão as ações de indenização por danos pessoalmente sofridos, propostas individualmente ou na forma prevista neste código, mas, se procedente o pedido, beneficiarão as vítimas e seus sucessores, que poderão proceder à liquidação e à execução, nos termos dos arts. 96 a 99.

§ 4º Aplica-se o disposto no parágrafo anterior à sentença penal condenatória.

Art. 104. As ações coletivas, previstas nos incisos I e II e do parágrafo único do art. 81, não induzem litispendência para as ações individuais, mas os efeitos da coisa julgada erga omnes ou ultra partes a que aludem os incisos II e III do artigo anterior não beneficiarão os autores das ações individuais, se não for requerida sua suspensão no prazo de trinta dias, a contar da ciência nos autos do ajuizamento da ação coletiva.

TÍTULO IV

Do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor

Art. 105. Integram o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (SNDC), os órgãos federais, estaduais, do Distrito Federal e municipais e as entidades privadas de defesa do consumidor.

Art. 106. O Departamento Nacional de Defesa do Consumidor, da Secretaria Nacional de Direito Econômico (MJ), ou órgão federal que venha substituí-lo, é organismo de coordenação da política do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, cabendo-lhe:

I - planejar, elaborar, propor, coordenar e executar a política nacional de proteção ao consumidor;

II - receber, analisar, avaliar e encaminhar consultas, denúncias ou sugestões apresentadas por entidades representativas ou pessoas jurídicas de direito público ou privado;

III - prestar aos consumidores orientação permanente sobre seus direitos e garantias;

IV - informar, conscientizar e motivar o consumidor através dos diferentes meios de comunicação;

V - solicitar à polícia judiciária a instauração de inquérito policial para a apreciação de delito contra os consumidores, nos termos da legislação vigente;

VI - representar ao Ministério Público competente para fins de adoção de medidas processuais no âmbito de suas atribuições;

VII - levar ao conhecimento dos órgãos competentes as infrações de ordem administrativa que violarem os interesses difusos, coletivos, ou individuais dos consumidores;

VIII - solicitar o concurso de órgãos e entidades da União, Estados, do Distrito Federal e Municípios, bem como auxiliar a fiscalização de preços, abastecimento, quantidade e segurança de bens e serviços;

IX - incentivar, inclusive com recursos financeiros e outros programas especiais, a formação de entidades de defesa do consumidor pela população e pelos órgãos públicos estaduais e municipais;

X - (Vetado).

XI - (Vetado).

XII - (Vetado).

XIII - desenvolver outras atividades compatíveis com suas finalidades.

Parágrafo único. Para a consecução de seus objetivos, o Departamento Nacional de Defesa do Consumidor poderá solicitar o concurso de órgãos e entidades de notória especialização técnico-científica.

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TÍTULO V

Da Convenção Coletiva de Consumo

Art. 107. As entidades civis de consumidores e as associações de fornecedores ou sindicatos de categoria econômica podem regular, por convenção escrita, relações de consumo que tenham por objeto estabelecer condições relativas ao preço, à qualidade, à quantidade, à garantia e características de produtos e serviços, bem como à reclamação e composição do conflito de consumo.

§ 1° A convenção tornar-se-á obrigatória a partir do registro do instrumento no cartório de títulos e documentos.

§ 2° A convenção somente obrigará os filiados às entidades signatárias.

§ 3° Não se exime de cumprir a convenção o fornecedor que se desligar da entidade em data posterior ao registro do instrumento.

Art. 108. (Vetado).

TÍTULO VI

Disposições Finais

Art. 109. (Vetado).

Art. 110. Acrescente-se o seguinte inciso IV ao art. 1° da Lei n° 7.347, de 24 de julho de 1985:

"IV - a qualquer outro interesse difuso ou coletivo".

Art. 111. O inciso II do art. 5° da Lei n° 7.347, de 24 de julho de 1985, passa a ter a seguinte redação:

"II - inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, ou a qualquer outro interesse difuso ou coletivo".

Art. 112. O § 3° do art. 5° da Lei n° 7.347, de 24 de julho de 1985, passa a ter a seguinte redação:

"§ 3° Em caso de desistência infundada ou abandono da ação por associação legitimada, o Ministério Público ou outro legitimado assumirá a titularidade ativa".

Art. 113. Acrescente-se os seguintes §§ 4°, 5° e 6° ao art. 5º. da Lei n° 7.347, de 24 de julho de 1985:

"§ 4.° O requisito da pré-constituição poderá ser dispensado pelo juiz, quando haja manifesto interesse social evidenciado pela dimensão ou característica do dano, ou pela relevância do bem jurídico a ser protegido.

§ 5.° Admitir-se-á o litisconsórcio facultativo entre os Ministérios Públicos da União, do Distrito Federal e dos Estados na defesa dos interesses e direitos de que cuida esta lei.(Vide Mensagem de veto) (Vide REsp 222582 /MG - STJ)

§ 6° Os órgãos públicos legitimados poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais, mediante combinações, que terá eficácia de título executivo extrajudicial". (Vide Mensagem de veto) (Vide REsp 222582 /MG - STJ)

Art. 114. O art. 15 da Lei n° 7.347, de 24 de julho de 1985, passa a ter a seguinte redação:

"Art. 15. Decorridos sessenta dias do trânsito em julgado da sentença condenatória, sem que a associação autora lhe promova a execução, deverá fazê-lo o Ministério Público, facultada igual iniciativa aos demais legitimados".

Art. 115. Suprima-se o caput do art. 17 da Lei n° 7.347, de 24 de julho de 1985, passando o parágrafo único a constituir o caput, com a seguinte redação:

"Art. 17. Em caso de litigância de má-fé, a danos".

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Art. 116. Dê-se a seguinte redação ao art. 18 da Lei n° 7.347, de 24 de julho de 1985:

"Art. 18. Nas ações de que trata esta lei, não haverá adiantamento de custas, emolumentos, honorários periciais e quaisquer outras despesas, nem condenação da associação autora, salvo comprovada má-fé, em honorários de advogado, custas e despesas processuais".

Art. 117. Acrescente-se à Lei n° 7.347, de 24 de julho de 1985, o seguinte dispositivo, renumerando-se os seguintes:

"Art. 21. Aplicam-se à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, no que for cabível, os dispositivos do Título III da lei que instituiu o Código de Defesa do Consumidor".

Art. 118. Este código entrará em vigor dentro de cento e oitenta dias a contar de sua publicação.

Art. 119. Revogam-se as disposições em contrário.

Brasília, 11 de setembro de 1990; 169° da Independência e 102° da República.

FERNANDO COLLOR Bernardo Cabral Zélia M. Cardoso de Mello Ozires Silva

Este texto não substitui o publicado no D.O.U. de 12.9.1990