Rosseau -Contrato Social

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Autor: Jean-Jacques Rousseau Traduo: Rolando Roque da Silva Edio eletrnica: Ed Ridendo Castigat Mores (www.jahr.org) DO CONTRATO SOCIAL Jean-Jacques Rousseau NDICE BIOGRAFIA DO AUTOR LIVRO I Do Contrato Social file:///C|/site/livros_gratis/contrato_social.htm (1 of 72) [4/1/2002 14:09:38] # I -- Assunto deste primeiro livro. II -- Das primeiras sociedades. III -- Do direito do mais forte. IV -- Da escravido. V -- preciso remontar sempre a um primeiro convnio. VI -- Do pacto social. VII -- Do soberano. VIII -- Do estado civil. IX -- Do domnio real. LIVRO II I -- A soberania inalienvel. II -- A soberania indivisvel. III -- A vontade geral pode errar. IV -- Dos limites do poder soberano. V -- Do direito de vida e morte. VI -- Da lei. VII -- Do legislador. VIII -- Do povo. IX -- Continuao do captulo precedente. X -- Continuao. XI -- Dos diversos sistemas de legislao. XII -- Diviso das leis. LIVRO III I -- Do governo em geral. II -- Do princpio que constitui as diversas formas de governo. Do Contrato Social file:///C|/site/livros_gratis/contrato_social.htm (2 of 72) [4/1/2002 14:09:38] # III -- Diviso dos governos. IV -- Da democracia. V -- Da aristocracia. VI -- Da monarquia. VII -- Dos governos mistos. VIII -- Nem toda forma de governo apropriada a todos os pases. IX -- Dos sinais de um bom governo. X -- Do abuso do governo e de sua tendncia a degenerar. XI -- Da morte do corpo poltico. XII -- Como se mantm a autoridade soberana. XIII -- Continuao. XIV -- Continuao. XV -- Dos deputados ou representantes. XVI -- Quando a instituio do governo no um contrato. XVII -- Da instituio do governo. XVIII -- Meios de prevenir as usurpaes do governo. LIVRO IV

I -- A vontade geral indestrutvel. II -- Dos sufrgios. III -- Das eleies. IV -- Dos comcios romanos. V -- Do tribunato. VI -- Da ditadura. VII -- Da censura. VIII -- Da religio civil. Do Contrato Social file:///C|/site/livros_gratis/contrato_social.htm (3 of 72) [4/1/2002 14:09:38] # IX -- Concluso. NOTAS BIOGRAFIA DO AUTOR Jean-Jacques Rousseau nasceu em Genebra no ano de 1712 e morreu no de 1778. Dotado de excepcionais qualidades de inteligncia e imaginao, foi ele um dos maiores escritores e filsofos do seu tempo. Em suas obras, defende a idia da volta natureza, a excelncia natural do homem, a necessidade do contrato social para garantir os direitos da coletividade. Seu estilo, apaixonado e eloqente, tornouse um dos mais poderosos instrumentos de agitao e propaganda das idias que haviam de constituir, mais tarde, o imenso cabedal terico da Grande Revoluo de 1789-93. Ao lado de Diderot, D'Alembert e tantos outros nomes insignes que elevaram, naquela poca, o pensamento cientfico e literrio da Frana, foi Rousseau um dos mais preciosos colaboradores do movimento enciclopedista. Das suas numerosas obras, podem citar-se, dentre as mais notveis: Jlia ou A Nova Helosa (1761), romance epistolar, cheio de grande sentimentalidade e amor natureza; O Contrato Social (1762), onde a vida social considerada sobre a base de um contrato em que cada contratante condiciona sua liberdade ao bem da comunidade, procurando proceder sempre de acordo com as aspiraes da maioria; Emlio ou Da Educao (1762), romance filosfico, no qual, partindo do princpio de que ``o homem naturalmente bom'' e m a educao dada pela sociedade, preconiza ``uma educao negativa como a melhor, ou antes, como a nica boa''; As Confisses, obra publicada aps a morte do autor (1781-1788), e que uma autobiografia sob todos os pontos-de-vista notvel. O CONTRATO SOCIAL ...Foederis aequas Dicamus Leges. (AEneid., XI) LIVRO I Eu quero investigar se pode haver, na ordem civil, alguma regra de administrao, legtima e segura, que tome os homens tais como so e as leis tais como podem ser. Cuidarei de ligar sempre, nesta pesquisa, o que o direito permite com o que o direito prescreve, a fim de que a justia e a utilidade de modo algum se encontrem divididas. Entro na matria sem provar a importncia de meu assunto. Perguntar-se-me- se sou prncipe ou legislador, para escrever sobre poltica. Se eu fosse prncipe ou legislador, no

perderia meu tempo em dizer o que preciso fazer; eu o faria ou me calaria. Nascido cidado de um Estado Livre (1) e membro do soberano, por frgil que seja a influncia de minha voz nos negcios pblicos, basta-me o direito de votar para me impor o dever de me instruir no tocante a Do Contrato Social file:///C|/site/livros_gratis/contrato_social.htm (4 of 72) [4/1/2002 14:09:38] # isso: feliz, todas as vezes que medito sobre os governos, de achar sempre, em minhas pesquisas, novas razes para amar o de meu pas. I -- Assunto deste primeiro livro. O homem nasceu livre, e em toda parte se encontra sob ferros. De tal modo acredita-se o senhor dos outros, que no deixa de ser mais escravo que eles. Como feita essa mudana? Ignoro-o. Que que a torna legtima? Creio poder resolver esta questo. Se eu considerasse to-somente a fora e o efeito que dela deriva, diria: Enquanto um povo constrangido a obedecer e obedece, faz bem; to logo ele possa sacudir o jugo e o sacode, faz ainda melhor; porque, recobrando a liberdade graas ao mesmo direito com o qual lha arrebataram, ou este lhe serve de base para retom-la ou no se prestava em absoluto para subtra-la. Mas a ordem social um direito sagrado que serve de alicerce a todos os outros. Esse direito, todavia, no vem da Natureza; est, pois, fundamentado sobre convenes. Mas antes de chegar a, devo estabelecer o que venho de avanar. II -- Das primeiras sociedades. A mais antiga de todas as sociedades, e a nica natural, a da famlia. As crianas apenas permanecem ligadas ao pai o tempo necessrio que dele necessitam para a sua conservao. Assim que cesse tal necessidade, dissolve-se o lao natural. As crianas, eximidas da obedincia devida ao pai, o pai isento dos cuidados devidos aos filhos, reentram todos igualmente na independncia. Se continuam a permanecer unidos, j no naturalmente, mas voluntariamente, e a prpria famlia apenas se mantm por conveno. Esta liberdade comum uma conseqncia da natureza do homem. Sua primeira lei consiste em proteger a prpria conservao, seus primeiros cuidados os devidos a si mesmo, e to logo se encontre o homem na idade da razo, sendo o nico juiz dos meios apropriados sua conservao, torna-se por s seu prprio senhor. a famlia, portanto, o primeiro modelo das sociedades polticas; o chefe a imagem do pai, o povo a imagem dos filhos, e havendo nascido todos livres e iguais, no alienam a liberdade a no ser em troca da sua utilidade. Toda a diferena consiste em que, na famlia, o amor do pai pelos filhos o compensa dos cuidados que estes lhe do, ao passo que, no Estado, o prazer de comandar substitui o amor que o chefe no sente por seus povos.

Grotius nega que todo poder humano seja estabelecido em favor dos governados. Sua mais freqente maneira de raciocinar consiste sempre em estabelecer o direito pelo fato (2) . Poder-se-ia empregar um mtodo mais conseqente, no porm mais favorvel aos tiranos. , pois duvidoso, segundo Grotius, saber se o gnero humano pertence a uma centena de homens, ou se esta centena de homens que pertence ao gnero humano, mas ele parece pender, em todo o seu livro, para a primeira opinio. este tambm o sentimento de Hobbes. Eis assim a espcie humana dividida em rebanhos de gado, cada qual com seu chefe a guard-la, a fim de a devorar. Assim como um pastor de natureza superior de seu rebanho, os pastores de homens, que so seus chefes, so igualmente de natureza superior de seus povos. Desta maneira raciocinava, no relato de Flon, o imperador Calgula, concluindo muito acertadamente dessa analogia que os reis eram deuses, ou que os povos eram animais. Do Contrato Social file:///C|/site/livros_gratis/contrato_social.htm (5 of 72) [4/1/2002 14:09:38] # O raciocnio de Calgula retorna ao de Hobbes e ao de Grotius. Aristteles, antes deles todos, tinha dito que os homens no so naturalmente iguais, e que uns nascem para escravos e outros para dominar. Aristteles tinha razo, mas ele tomava o efeito pela causa. Todo homem nascido escravo nasce para escravo, nada mais certo: os escravos tudo perdem em seus grilhes, inclusive o desejo de se livrarem deles; apreciam a servido, como os companheiros de Ulisses estimavam o prprio embrutecimento. Portanto, se h escravos por natureza, porque houve escravos contra a natureza. A fora constituiu os primeiros escravos, a covardia os perpetuou. Eu nada disse do rei Ado, nem do imperador No, pai de trs grandes monarcas que partilharam entre si o Universo, como o fizeram os filhos de Saturno, nos quais se acreditou reconhecer aqueles. Espero que me agradeam por esta moderao, porque, descendente que sou de um desses prncipes, qui do ramo mais velho, quem sabe se, pela verificao dos ttulos, eu no me sentiria de algum modo como o legtimo rei do gnero humano? Seja como for, no se pode deixar de convir em que Ado no foi soberano do mundo como Robinson o foi em sua ilha, enquanto permaneceu o nico habitante; e o que havia de cmodo nesse imprio era o fato de que o monarca, seguro em seu trono, no tinha a recear nem rebelies, nem guerras, nem conspiraes. III -- Do direito do mais forte. O mais forte no nunca assaz forte para ser sempre o senhor, se no transforma essa fora em direito e a obedincia em dever. Da o direito do mais forte, direito tomado ironicamente na aparncia e realmente estabelecido em princpio. Mas explicar-nos-o um dia esta palavra? A fora uma potncia fsica; no

vejo em absoluto que moralidade pode resultar de seus efeitos. Ceder fora constitui um ato de necessidade, no de vontade; no mximo um ato de prudncia. Em que sentido poder ser um dever? Imaginemos um instante esse suposto direito. Eu disse que disso no resulta seno um galimatias inexplicvel; porque to logo seja a fora a que faz o direito, o efeito muda com a causa; toda fora que sobrepuja a primeira sucede a seu direito. Assim que se possa desobedecer impunemente, pode-se faz-lo legitimamente, e, uma vez que o mais forte sempre tem razo, trata-se de cuidar de ser o mais forte. Ora, que isso seno um direito que perece quando cessa a fora? Se preciso obedecer pela fora, no necessrio obedecer por dever, e se no mais se forado a obedecer, no se a isso mais obrigado. V-se, pois, que a palavra direito nada acrescenta fora; no significa aqui coisa nenhuma. Obedecei aos poderosos. Se isto quer dizer: cedei fora, o preceito bom, mas suprfluo; eu respondo que ele jamais ser violado. Toda potncia vem de Deus, confesso-o; mas toda doena igualmente vem dele: quer isto dizer que se no deva chamar o mdico? Quando um assaltante me surpreende no canto de um bosque, sou forado a dar-lhe a bolsa; mas no caso de eu poder subtrai-la, sou em s conscincia obrigado a entregar-lha?. Afinal a pistola que ele empunha tambm um poder. Convenhamos, pois, que fora no faz direito, e que no se obrigado a obedecer seno s autoridades legtimas. Assim, minha primitiva pergunta sempre retorna. IV -- Da escravido. Uma vez que homem nenhum possui uma autoridade natural sobre seu semelhante, e pois que a fora no produz nenhum direito, restam pois as convenes como base de toda autoridade legtima entre os Do Contrato Social file:///C|/site/livros_gratis/contrato_social.htm (6 of 72) [4/1/2002 14:09:38] # homens. Se um particular diz Grotius, pode alienar a liberdade e tornar-se escravo de um senhor, por que no poderia todo um povo alienar a sua e se fazer vassalo de um rei? H aqui excesso de termos equvocos, necessitados de explicao; mas atenhamo-nos ao termo alienar. Alienar dar ou vender. Ora, um homem que se escraviza a outro no se d, vende-se, pelo menos em troca da subsistncia; mas um povo, por que se vende ele? Longe se acha um rei de fornecer a subsistncia dos vassalos; ao contrrio, deles que tira a prpria, e, segundo Rabelais, um rei no vive de pouco. Os vassalos do, portanto, suas prprias pessoas com a condio de que se lhes tome tambm a fazenda. No vejo o que lhes resta a conservar. Dir-se- que o dspota assegura aos vassalos a tranqilidade civil. Seja; mas que ganham eles com isso, se as guerras, que a ambio do dspota ocasiona, se sua insacivel avidez, se os vexames de seu

ministrio os aflige mais do que o fariam as prprias dissenses? Que ganham eles a, se essa mesma tranqilidade constitui uma de suas misrias? Vive-se igualmente tranqilo nos calabouos; basta isto para se viver bem? Os gregos encerrados no antro do ciclope ali viviam tranqilos, espera de que chegasse a sua vez de serem devorados. Dizer que um homem se d gratuitamente dizer coisa absurda e inconcebvel; um tal ato ilegtimo e nulo, pelo simples fato de no se achar de posse de seu juzo quem isto comete. Dizer a mesma coisa de todo um povo supor um povo de loucos: a loucura no faz direito. Mesmo que cada qual pudesse alienar-se a si mesmo, no poderia alienar os filhos: estes nascem homens e livres; sua liberdade pertence-lhes; ningum, exceto eles prprios, tem o direito de dela dispor. Antes de atingirem a idade da razo, pode o pai estipular, em nome deles, condies para a sua conservao, para o seu bem-estar, mas no os pode dar irrevogvel e incondicionalmente, porque tal dom contrrio aos fins da Natureza e sobrepuja os direitos da paternidade. Portanto, para que um governo arbitrrio fosse legtimo, seria preciso que o povo, em cada gerao, fosse senhor de o admitir ou rejeitar; mas ento tal governo j no seria arbitrrio. Renunciar prpria liberdade o mesmo que renunciar qualidade de homem, aos direitos da Humanidade, inclusive aos seus deveres. No h nenhuma compensao possvel para quem quer que renuncie a tudo. Tal renncia incompatvel com a natureza humana, e arrebatar toda moralidade a suas aes, bem como subtrair toda liberdade sua vontade. Enfim, no passa de v e contraditria conveno estipular, de um lado, uma autoridade absoluta, e, de outro, uma obedincia sem limites. No claro no estar a gente a nada obrigada em relao quele de quem se tem o direito de tudo exigir? E esta simples condio, sem equivalncia, sem permuta, no arrasta a nulidade do ato? Que direito teria meu escravo contra mim, uma vez que me pertence tudo quanto ele possui, e, sendo meu o seu direito, esse meu direito contra mim mesmo no porventura um termo sem sentido? Grotius e outros extraem da guerra uma outra origem do pretenso direito de escravatura. Segundo eles, tendo o vencedor o direito de matar o vencido, pode este resgatar a vida s expensas de sua liberdade, conveno tanto mais legtima porque beneficia os dois. Mas claro que esse pretenso direito de matar os vencidos no resulta de nenhuma maneira do estado de guerra, pelo simples fato de que os homens, vivendo na sua primitiva independncia, no possuem de modo algum relaes assaz freqentes entre si para constiturem nem o estado de paz nem o estado de guerra; naturalmente, no so em absoluto inimigos. a relao das coisas, e no dos homens, que Do Contrato Social file:///C|/site/livros_gratis/contrato_social.htm (7 of 72) [4/1/2002 14:09:38] #

constitui a guerra, e como o estado de guerra no pode nascer de simples relaes pessoais, mas unicamente de relaes reais, a guerra privada, ou de homem contra homem, no pode existir, nem no estado natural, em que no h nenhuma propriedade constante, nem no estado social, em que tudo se encontra sob a autoridade das leis. Os combates particulares, os duelos, os encontros, so atos que de modo algum constituem um estado; e, no que concerne s guerras privadas, autorizadas pelas instituies de Lus IX, rei de Frana, e suspensas pela paz de Deus, trata-se de abusos do governo feudal, sistema absurdo como jamais houve, contrrio aos princpios do direito natural e a toda organizao poltica. No , pois, a guerra uma relao de homem para homem, mas uma relao de Estado para Estado, na qual os particulares apenas acidentalmente so inimigos, no na qualidade de homens, nem mesmo como cidados, mas como soldados; no como membros da ptria, mas como seus defensores. Enfim, cada Estado no pode ter como inimigo seno outro Estado, nunca homens, entendido que entre coisas de naturezas diversas impossvel fixar uma verdadeira relao. Tal princpio est conforme as mximas estabelecidas no decorrer de todos os tempos e a prtica constante de todos os povos civilizados. As declaraes de guerra constituem advertncias dirigidas menos s autoridades que a seus vassalos. O estrangeiro, seja rei, particular, ou povo, que roube, mate ou detenha os vassalos, sem declarao de guerra ao prncipe, no um inimigo, um salteador. Mesmo em plena guerra, um prncipe justo apropria-se, em pas inimigo, completamente de tudo que pertence ao pblico, mas respeita a pessoa e os bens dos particulares; respeita direitos sobre os quais esto alicerados os seus. Como o objetivo da guerra consiste em destruir o Estado inimigo, tem-se o direito de matar os defensores enquanto estiverem com as armas na mo; mas to logo as deponham e se rendam, cessam de ser inimigos ou instrumentos do inimigo, voltam a ser simplesmente homens, e no mais se dispe de direito sobre suas vidas. Pode-se por vezes matar o Estado sem matar um nico de seus membros; ora, a guerra no d nenhum direito desnecessrio ao seu objetivo. Estes princpios no so os mesmos de Grotius; no esto alicerados nas autoridades de poetas, mas derivam da natureza das coisas e so baseados na razo. A respeito do direito de conquista, no h outro fundamento afora a lei do mais forte. Se a guerra no d ao vencedor o direito de massacrar os povos vencidos, o direito, que ele no possui, no pode estabelecer o de os escravizar. S se tem o direito de matar o inimigo quando no se pode escraviz-lo; o direito de o escravizar no vem por conseguinte do direito de mat-lo; constitui, pois, uma troca inqua faz-lo comprar, ao preo da liberdade, a vida, sobre a qual no se possui nenhum direito. Estabelecendo-se o

direito de vida e morte sobre o direito de escravatura, e o direito de escravatura sobre o direito de vida e morte, no est claro que tombamos no crculo vicioso? Mesmo admitindo esse terrvel direito de tudo matar, afirmo que um escravo obtido na guerra, ou um povo conquistado, s constrangido a obedecer ao senhor enquanto a isto for forado. Tomando-lhe um equivalente sua vida, o vencedor no lhe concedeu graa: ao invs de o matar sem proveito, matou-o inutilmente. E no tendo adquirido nenhuma autoridade junto fora, o estado de guerra subsiste entre eles como anteriormente; sua prpria relao o efeito disso, e o uso do direito da guerra no supe nenhum tratado de paz. Concluram uma conveno, quando muito; mas tal conveno, longe de destruir o estado de guerra, supe a sua continuidade. Assim, por qualquer lado que se encarem as coisas, nulo o direito de escravizar, no s pelo fato de ser ilegtimo, como porque absurdo e nada significa. As palavras escravatura e direito so contraditrias, Do Contrato Social file:///C|/site/livros_gratis/contrato_social.htm (8 of 72) [4/1/2002 14:09:38] # excluem-se mutuamente. Seja de homem para homem, seja de um homem para um povo, este discurso ser igualmente insensato: ``Fao contigo um contrato, todo em teu prejuzo e todo em meu proveito, que eu observarei enquanto me aprouver, e que tu observars enquanto me aprouver.'' V -- preciso remontar sempre a um primeiro convnio. Mesmo se eu conciliasse tudo o que refutei at aqui, os favorecedores do despotismo no estariam, a este respeito, mais avanados. Sempre haver grande diferena entre submeter uma multido e reger uma sociedade. No fato de homens esparsos serem sucessivamente subjugados a um nico, independente do nmero que constituam, no vejo nisto seno um senhor e escravos, e no um povo e seu chefe; , se se quiser, um ajuntamento, mas de modo algum uma associao; no h nisto nem bem pblico, nem corpo poltico. Tal homem, tenha embora escravizado a metade do mundo, no deixa de ser sempre um particular; seu interesse, separado do interesse dos outros, no seno um interesse privado. Se esse mesmo homem vier a perecer, seu imprio, aps si, ficar disperso e desligado, como um carvalho que se desfaz e tomba reduzido a um monto de cinzas, depois de consumido pelo fogo. Um povo, diz Grotius, pode entregar-se a um rei. Segundo Grotius, um povo , pois, um povo antes de se entregar a um rei. Essa doao um ato civil; supe uma deliberao pblica. Antes, portanto, de examinar o ato pelo qual o povo elege um rei, seria bom examinar o ato pelo qual o povo um povo, porque esse ato, sendo necessariamente anterior ao outro, constitui o verdadeiro fundamento da sociedade. Com efeito, se no houvesse em absoluto convnio anterior, onde estaria, a menos que a eleio fosse unnime, a obrigao, por parte do pequeno nmero, de submeter-se escolha do

grande nmero, e como cem indivduos que desejam um senhor podem ter um direito de votar por dez que de modo nenhum o desejam? A lei da pluralidade dos sufrgios por si mesma um estabelecimento de convnio e supe, ao menos uma vez, a unanimidade. VI -- Do pacto social. Eu imagino os homens chegados ao ponto em que os obstculos, prejudiciais sua conservao no estado natural, os arrastam, por sua resistncia, sobre as foras que podem ser empregadas por cada indivduo a fim de se manter em tal estado. Ento esse estado primitivo no mais tem condies de subsistir, e o gnero humano pereceria se no mudasse sua maneira de ser. Ora, como impossvel aos homens engendrar novas foras, mas apenas unir e dirigir as existentes, no lhes resta outro meio, para se conservarem, seno formando, por agregao, uma soma de foras que possa arrast-los sobre a resistncia, p-los em movimento por um nico mbil e faz-los agir de comum acordo. Essa soma de foras s pode nascer do concurso de diversos; contudo, sendo a fora e a liberdade de cada homem os primeiros instrumentos de sua conservao, como as empregar ele, sem se prejudicar, sem negligenciar os cuidados que se deve? Esta dificuldade, reconduzida ao meu assunto, pode ser enunciada nos seguintes termos. ``Encontrar uma forma de associao que defenda e proteja de toda a fora comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual, cada um, unindo-se a todos, no obedea portanto seno a si mesmo, e permanea to livre como anteriormente.'' Tal o problema fundamental cuja soluo dada pelo Do Contrato Social file:///C|/site/livros_gratis/contrato_social.htm (9 of 72) [4/1/2002 14:09:38] # contrato social. As clusulas deste contrato so de tal modo determinadas pela natureza do ato, que a menor modificao as tornaria vs e de nenhum efeito; de sorte que, conquanto jamais tenham sido formalmente enunciadas, so as mesmas em todas as partes, em todas as partes tacitamente admitidas e reconhecidas, at que, violado o pacto social, reentra cada qual em seus primeiros direitos e retoma a liberdade natural, perdendo a liberdade convencional pela qual ele aqui renunciou. Todas essas clusulas, bem entendido, se reduzem a uma nica, a saber, a alienao total de cada associado, com todos os seus direitos, em favor de toda a comunidade; porque, primeiramente, cada qual se entregando por completo e sendo a condio igual para todos, a ningum interessa torn-la onerosa para os outros. Alm disso, feita a alienao sem reserva, a unio to perfeita quanto o pode ser, e nenhum associado tem mais nada a reclamar; porque, se aos particulares restassem alguns direitos, como no haveria

nenhum superior comum que pudesse decidir entre eles e o pblico, cada qual, tornado nalgum ponto o seu prprio juiz, pretenderia em breve s-lo em tudo; o estado natural subsistiria, e a associao se tornaria necessariamente tirnica ou intil. Enfim, cada qual, dando-se a todos, no se d a ningum, e, como no existe um associado sobre quem no se adquira o mesmo direito que lhe foi cedido, ganha-se o equivalente de tudo o que se perde e maior fora para conservar o que se tem. Portanto, se afastarmos do pacto social o que no constitui a sua essncia, acharemos que ele se reduz aos seguintes termos: ``Cada um de ns pe em comum sua pessoa e toda a sua autoridade, sob o supremo comando da vontade geral, e recebemos em conjunto cada membro como parte indivisvel do todo.'' Logo, ao invs da pessoa particular de cada contratante, esse ato de associao produz um corpo moral e coletivo, composto de tantos membros quanto a assemblia de vozes, o qual recebe desse mesmo ato sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade. A pessoa pblica, formada assim pela unio de todas as outras, tomava outrora o nome de cidade (3) , e toma hoje o de repblica ou corpo poltico, o qual chamado por seus membros: Estado, quando passivo; soberano, quando ativo; autoridade, quando comparado a seus semelhantes. No que concerne aos associados, adquirem coletivamente o nome de povo, e se chamam particularmente cidados, na qualidade de participantes na autoridade soberana, e vassalos, quando sujeitos s leis do Estado. Todavia, esses termos freqentemente se confundem e so tomados um pelo outro. suficiente saber distingui-los, quando empregados em toda a sua preciso. VII -- Do soberano. V-se, por esta frmula, que o ato de associao encerra um acordo recproco do pblico com os particulares, e que cada indivduo, contratante, por assim dizer, consigo mesmo, se acha obrigado sob uma dupla relao, a saber: como membro do soberano para com os particulares, e como membro do Estado para com o soberano. Mas no se pode aqui aplicar a mxima do direito civil, que ningum est obrigado aos acordos tomados consigo mesmo; porque h grande diferena entre obrigar-se consigo mesmo ou com um todo de que se faz parte. necessrio assinalar ainda que a deliberao pblica, que pode obrigar todos os vassalos ao soberano, Do Contrato Social file:///C|/site/livros_gratis/contrato_social.htm (10 of 72) [4/1/2002 14:09:38] # em virtude de suas diferentes relaes sob as quais cada um deles considerado, no pode, pela razo contrria, obrigar o soberano consigo mesmo, e que, em conseqncia, contra a natureza do corpo poltico o soberano impor-se uma lei que no possa infringir. Podendo considerarse sujeito a uma s e mesma relao, encontra-se ele no caso de um particular contratante consigo mesmo;

por onde se observa que no h nem pode haver nenhuma espcie de lei fundamental obrigatria para o corpo do povo, nem mesmo o contrato social. O que no significa no possa esse corpo obrigar-se com outrem no que de modo algum derrogue esse contrato porque, no tocante ao estrangeiro, ele se torna um simples ser, um indivduo. Contudo, o corpo poltico ou o soberano, extraindo sua existncia cinicamente da pureza do contrato, no pode jamais obrigar-se, mesmo para com outrem, a nada que derrogue esse ato primitivo, como alienar qualquer poro de si mesmo, ou submeter-se a outro soberano. Violar o ato pelo qual existe seria aniquilar-se, e o que nada nada produz. To logo se encontre a multido reunida num corpo, no se pode ofender um dos membros sem atacar o corpo, menos ainda ofender o corpo sem que os membros disso se ressintam. Assim, o dever e o interesse obrigam igualmente as duas partes contratantes a se auxiliarem de forma recproca, e os prprios homens devem procurar reunir sob essa dupla relao todas as vantagens que disso dependem. Ora, sendo formado o soberano to-s dos particulares que o compem, no h nem pode haver interesse contrrio ao deles; por conseguinte, no necessita a autoridade soberana de fiador para com os vassalos, por ser impossvel queira o corpo prejudicar todos os membros, e por, como logo veremos, no lhe ser possvel prejudicar nenhum em particular. O soberano, somente pelo que , sempre tudo o que deve ser. No sucede, porm, o mesmo com os vassalos em relao ao soberano, perante o qual, malgrado o interesse comum, ningum responderia por suas obrigaes, se ele no encontrasse os meios de fazer com que lhe fossem fiis. Com efeito, cada indivduo pode, como homem, ter uma vontade particular contrria ou dessemelhante vontade geral que possui na qualidade de cidado. O interesse particular pode faltar-lhe de maneira totalmente diversa da que lhe fala o interesse comum: sua existncia absoluta, e naturalmente independente, pode faz-lo encarar o que deve causa comum como uma contribuio gratuita, cuja perda ser menos prejudicial aos outros que o pagamento oneroso para si; e, olhando a pessoa moral que constitui o Estado como um ser de razo, pois que no se trata de um homem, ele desfrutar dos direitos do cidado, sem querer preencher os deveres do vassalo: injustia, cujo progresso causaria a runa do corpo poltico. A fim de que no constitua, pois, um formulrio intil, o pacto social contm tacitamente esta obrigao, a nica a poder dar foras s outras: quem se recusar a obedecer vontade geral a isto ser constrangido pelo corpo em conjunto, o que apenas significa que ser forado a ser livre. Assim esta condio: oferecendo os cidados ptria, protege-os de toda dependncia pessoal; condio

que promove o artifcio e o jogo da mquina poltica e que a nica a tornar legtimas as obrigaes civis, as quais, sem isso, seriam absurdas, tirnicas e sujeitas aos maiores abusos. VIII -- Do estado civil. A passagem do estado natural ao estado civil produziu no homem uma mudana considervel, substituindo em sua conduta a justia ao instinto, e imprimindo s suas aes a moralidade que Do Contrato Social file:///C|/site/livros_gratis/contrato_social.htm (11 of 72) [4/1/2002 14:09:38] # anteriormente lhes faltava. Foi somente ento que a voz do dever, sucedendo ao impulso fsico, e o direito ao apetite, fizeram com que o homem, que at esse momento s tinha olhado para si mesmo, se visse forado a agir por outros princpios e consultar a razo antes de ouvir seus pendores. Embora se prive, nesse estado, de diversas vantagens recebidas da Natureza, ganha outras to grandes, suas faculdades se exercitam e desenvolvem, suas idias se estendem, seus sentimentos se enobrecem, toda a sua alma se eleva a tal ponto, que, se os abusos desta nova condio, no o degradassem com freqncia a uma condio inferior quela de que saiu, deveria abenoar incessantemente o ditoso momento em que foi dali desarraigado para sempre, o qual transformou um animal estpido e limitado num ser inteligente, num homem. Reduzamos todo este balano a termos fceis de comparar. O que o homem perde pelo contrato social a liberdade natural e um direito ilimitado a tudo que o tenta e pode alcanar; o que ganha a liberdade civil e a propriedade de tudo o que possui. Para que no haja engano em suas compensaes, necessrio distinguir a liberdade natural, limitada pelas foras do indivduo, da liberdade civil que limitada pela liberdade geral, e a posse, que no seno o efeito da fora ou do direito do primeiro ocupante, da propriedade, que s pode ser baseada num ttulo positivo. Poder-se-ia, em prosseguimento do precedente, acrescentar aquisio do estado civil a liberdade moral, a nica que torna o homem verdadeiramente senhor de si mesmo, posto que o impulso apenas do apetite constitui a escravido, e a obedincia lei a si mesmo prescrita a liberdade. Mas j falei demasiadamente deste assunto, e o sentido filosfico do termo liberdade no constitui aqui o meu objetivo. IX -- Do domnio real. Cada membro da comunidade d-se a ela no instante em que esta se forma, tal como se encontram no momento, ele e todas as suas foras; os bens que ele possui dela fazem parte. No quer dizer que, em virtude desse ato mude a posse de natureza mudando de mos e se torne propriedade em mos do soberano; mas como as foras da cidade so incomparavelmente maiores que as de um particular, o

domnio pblico est tambm no fato mais forte e irrevogvel, sem que o seja mais ou menos legtimo para os estrangeiros; porque o Estado, no tocante a seus membros, senhor de todos os seus bens, pelo contrato social, que, no Estado, serve de base a todos os direitos; mas no o , no que concerne s outras autoridades, seno pelo direito de primeiro ocupante, recebido dos particulares. O direito de primeiro ocupante, embora mais real que o direito do mais forte, s se toma um direito verdadeiro aps o estabeiecimento do direito de propriedade. Todo homem tem naturalmente direito a tudo que lhe necessrio; mas o ato positivo que o faz proprietrio de algum bem o exclui de todo o resto. Feita a sua parte, deve ele a isso limitar-se, e no mais tem nenhum direito na comunidade. Eis por que o direito de primeiro ocupante, to frgil no estado natural, responsvel para todo homem civil. Nesse direito, respeita-se menos o que pertence a outrem que o que no lhe pertence. Em geral, para autorizar sobre um terreno qualquer o direito de primeiro ocupante, so necessrias as seguintes condies: primeiramente, que esse terreno ainda no se encontre habitado por ningum; em segundo lugar, que apenas seja ocupada a rea de que se tem necessidade para subsistir; em terceiro, que se tome posse dela, no em virtude de uma v cerimnia, mas pelo trabalho e pela cultura, nico sinal de propriedade que, falta de ttulos jurdicos, deve ser respeitado por outrem. Com efeito, conciliar com a necessidade e o trabalho o direito de primeiro ocupante, no significa Do Contrato Social file:///C|/site/livros_gratis/contrato_social.htm (12 of 72) [4/1/2002 14:09:38] # estend-lo to longe quanto possa ir? Pode-se deixar de impor limites a esse direito? Ser o bastante pr os ps num terreno comum para logo se pretender a sua propriedade? Bastar ter a fora de dele afastar os outros homens, por um instante, para os privar do direito de a jamais voltarem? Como pode um homem ou um povo apropriar-se de um imenso territrio e dele privar todo o gnero humano, graas a uma usurpao punvel, uma vez que esta retira aos demais homens a residncia e os alimentos que a Natureza lhes oferece em comum? Quando Nuez Balboa, pisando na praia, tomava posse do mar do Sul e de toda a Amrica meridional, em nome da coroa de Castela, era isso suficiente para despojar todos os seus habitantes e deles excluir todos os prncipes do mundo? Em razo disso, multiplicavam-se assaz inutilmente essas cerimnias, e o rei catlico, de seu gabinete, podia apossar-se de vez de todo o Universo, salvo suprimir, em seguida, de seu imprio o que estava anteriormente de posse dos outros prncipes. Concebe-se como as terras dos particulares, reunidas e contnuas se transformam em territrio pblico, e como o direito de soberania, estendendo-se dos vassalos ao terreno por eles ocupado, se toma a um

tempo real e pessoal, o que coloca os possuidores numa maior dependncia e faz de suas prprias foras os penhores de sua fidelidade; vantagem que, parece, no foi bem compreendida pelos antigos monarcas, os quais, atribuindo-se apenas os ttulos de reis dos persas, dos citas, dos macednios, davam a impresso de que se olhavam, de preferncia, como os chefes de homens e no como senhores do pas. Os monarcas de hoje chamam-se a si mesmos, mais habilmente, reis de Frana, de Espanha, de Inglaterra, etc. Conservando dessa maneira o terreno, sentem-se mais seguros para conservar os habitantes. O que h de singular nessa alienao consiste em que, ao aceitar os bens dos particulares, a comunidade os despoja, e outra coisa no faz seno assegurar-lhes a posse legtima, mudar a usurpao num verdadeiro direito e a fruio em propriedade. Ento, os possuidores, considerados como depositrios do bem pblico, com seus direitos respeitados por todos os membros do Estado, e mantidos por todas as suas foras contra o estrangeiro, em virtude de uma cesso vantajosa ao pblico e mais ainda a si mesmos, adquirem, por assim dizer, o que tinham dado: paradoxo facilmente explicvel pela distino dos direitos que o soberano e o proprietrio possuem sobre o mesmo solo, como veremos mais adiante. Pode tambm acontecer que os homens comecem a unir-se antes de nada possurem, e que, apropriando-se em seguida de um terreno suficiente para todos, o desfrutem em comum ou o dividam entre si, seja em iguais pores, seja segundo as propores estabelecidas pela soberania. De qualquer modo que se faa tal aquisio, o direito de cada particular sobre sua parte do solo est sempre subordinado ao direito da comunidade sobre o todo, sem o que no haveria solidez no lao social nem fora real no exerccio da soberania. Terminarei este captulo e este livro por uma observao que deve servir de base a todo o sistema social: que o pacto fundamental, ao invs de destruir a igualdade natural, substitui, ao contrrio, por uma igualdade moral e legtima a desigualdade fsica que a Natureza pode pr entre os homens, fazendo com que estes, conquanto possam ser desiguais em fora ou em talento, se tornem iguais por conveno e por direito (4) . LIVRO II I -- A soberania inalienvel. A primeira e mais importante conseqncia dos princpios acima estabelecidos est em que somente a Do Contrato Social file:///C|/site/livros_gratis/contrato_social.htm (13 of 72) [4/1/2002 14:09:38] # vontade geral tem possibilidade de dirigir as foras do Estado, segundo o fim de sua instituio, isto , o bem comum; pois, se a oposio dos interesses particulares tomou necessrio o estabelecimento das sociedades, foi a conciliao desses mesmos interesses que a tornou possvel. Eis

o que h de comum nesses diferentes interesses fornecedores do lao social; e, se no houvesse algum ponto em torno do qual todos os interesses se harmonizam, sociedade nenhuma poderia existir. Ora, unicamente base desse interesse comum que a sociedade deve ser governada. Digo, pois, que outra coisa no sendo a soberania seno o exerccio da vontade geral, jamais se pode alienar, e que o soberano, que nada mais seno um ser coletivo, no pode ser representado a no ser por si mesmo; perfeitamente possvel transmitir o poder, no porm a vontade. Com efeito, se no impossvel fazer concordar uma vontade particular com a vontade geral, em torno de algum ponto, pelo menos impossvel fazer com que esse acordo seja durvel e constante; porque a vontade particular, por sua natureza, tende s preferncias, e a vontade geral igualdade. ainda mais impossvel haja um fiador desse convnio; e mesmo quando sempre devesse existir, no seria ele um efeito da arte, mas do acaso. O soberano pode perfeitamente dizer: Desejo neste instante o que tal homem deseja, ou ao menos o que ele diz desejar, mas no pode dizer: O que este homem desejar amanh, eu o desejarei ainda, visto ser absurdo entregar-se a vontade aos grilhes para o futuro e no depender de nenhuma vontade consentir em nada que contrarie o interesse do ser que deseja. Se o povo, portanto, promete simplesmente obedecer, dissolve-se em conseqncia desse ato, perde sua qualidade de povo; no instante em que houver um senhor, no mais haver soberano, e a partir de ento o corpo poltico estar destrudo. No quer isso dizer que as ordens dos chefes no possam ser consideradas como vontades gerais, enquanto o soberano, livre para a isso se opor, no o faz. Em semelhante caso, deve-se, do silncio universal, presumir o consentimento do povo, o que se explicar mais demoradamente. II -- A soberania indivisvel. Pela mesma razo que a torna alienvel, a soberania indivisvel, porque a vontade geral (5), ou no o ; a vontade do corpo do povo, ou apenas de uma de suas partes. No primeiro caso, essa vontade declarada constitui um ato de soberania e faz lei; no segundo, no passa de uma vontade particular ou um ato de magistratura: , no mximo, um decreto. Porm nossos polticos, no podendo dividir a soberania em seu princpio, dividemna em fora e em vontade, em poder legislativo e em poder executivo, em direitos de impostos, de justia e de guerra, em administrao interior e em poder de tratar com o estrangeiro; ora confundem todas essas partes, ora as separam; fazem do soberano um ser fantstico formado de peas ajustadas; como se compusessem o homem reunindo diversos corpos, um dos quais teria os olhos, outro os braos, outro os ps, e nada mais. Os pelotiqueiros do Japo, segundo dizem, despedaam uma criana vista da assistncia; em seguida

lanam ao ar, um aps outro, todos os membros, e fazem a criana voltar ao cho viva e completamente reajuntada. Tais so aproximadamente os engodos de nossos polticos: depois de haverem desmembrado o corpo social graas a uma prestidigitao digna da feira, renem as peas no se sabe como. Provm esse erro da inexistncia de noes exatas a respeito da autoridade soberana, e por se haverem tomado como partes dessa autoridade o que no era mais que emanaes da mesma. Assim, olhou-se, por exemplo, o ato da declarao de guerra e o de assinar a paz como atos de soberania, o que falso, uma vez que cada um desses atos de modo algum constitui uma lei, mas to-somente uma aplicao da lei, um Do Contrato Social file:///C|/site/livros_gratis/contrato_social.htm (14 of 72) [4/1/2002 14:09:38] # ato particular que determina o caso da lei, como se ver com clareza quando a idia unida ao termo lei for fixada. Observando igualmente as demais divises, perceberamos que todas as vezes que imaginamos ver a soberania partilhada nos enganamos, que os direitos tomados como partes dessa soberania lhe so todos subordinados e sempre supem vontades supremas, dos quais esses direitos s do a execuo. No se saberia dizer quanto essa inexatido tem obscurecido as decises dos autores em matria de direito poltico, quando pretenderam julgar os respectivos direitos dos reis e dos povos, no tocante aos princpios estabelecidos. Todos podem ver, nos captulos III e IV do primeiro livro de Grotius, de que maneira este sbio e Barbeyrac, seu tradutor, se encabrestam e embaraam em sofismas, receosos de dizer muito ou de no dizer o suficiente, consoante seus intentos, e de pr em choque os interesses que tinham de conciliar. Grotius, refugiado em Frana, descontente da ptria e querendo cair nas boas graas de Lus XIII, a quem dedicou o livro, nada economiza no sentido de despojar os povos de todos os direitos e revestir os reis com toda a arte possvel. Foi tambm essa a atitude de Barbeyrac, que dedicava sua traduo ao rei da Inglaterra, Jorge I. Mas, desgraadamente, a expulso de Jacques II, por ele chamada de abdicao, forava-o a manter reserva, a esquivar-se, a tergiversar, para no transformar Guilherme num usurpador. Se esses dois escritores tivessem adotado os verdadeiros princpios, todas as dificuldades seriam superadas e eles se teriam mostrado sempre conseqentes; mas, nesse caso, teriam, com tristeza, dito a verdade e cortejado unicamente o povo. Ora, a verdade de nenhum modo conduz fortuna, e o povo no concede embaixadas, nem ctedras, nem penses. III -- A vontade geral pode errar. Resulta do precedente que a vontade geral sempre reta e tende sempre para a utilidade pblica; mas no significa que as deliberaes do povo tenham sempre a mesma retitude. Quer-se sempre o prprio bem,

porm nem sempre se o v: nunca se corrompe o povo, mas se o engana com freqncia, e somente ento que ele parece desejar o mal. H muitas vezes grande diferena entre a vontade de todos e a vontade geral: esta olha somente o interesse comum, a outra o interesse privado, e outra coisa no seno a soma de vontades particulares; mas tirai dessas mesmas vontades as que em menor ou maior grau reciprocamente se destroem (6), e resta como soma das diferenas a vontade geral. Se, quando o povo, suficientemente informado, delibera, no tivessem os cidados nenhuma comunicao entre si, sempre resultaria a vontade geral do grande nmero de pequenas diferenas, e a deliberao seria sempre boa. Quando, porm, h brigas, associaes parciais s expensas da grande, a vontade de cada uma dessas associaes torna-se geral em relao a seus membros, e particular no concernente ao Estado; pode-se ento dizer que j no h tantos votantes quantos so os homens, mas apenas tantos quantas forem as associaes; as diferenas se tornam mais numerosas e fornecem um resultado menos geral. Finalmente, quando uma dessas associaes se apresente to grande a ponto de sobrepujar todas as outras, no mais tereis por resultado uma soma de pequenas diferenas, porm uma diferena nica; deixa de haver ento a vontade geral, e a opinio vencedora to-somente uma opinio particular. Portanto, a fim de se ter o perfeito enunciado da vontade geral, importa no haja no Estado sociedade parcial e que cada cidado s manifeste o prprio pensamento (7). Foi assim a nica e sublime instituio Do Contrato Social file:///C|/site/livros_gratis/contrato_social.htm (15 of 72) [4/1/2002 14:09:38] # do grande Licurgo. Pois se houver sociedades parciais, ser necessrio multiplicar o seu nmero e prevenir a desigualdade entre elas, como o fizeram Slon, Numa e Servius. Tais precaues so as nicas adequadas para que a vontade geral esteja sempre esclarecida e o povo de modo nenhum se equivoque. IV -- Dos limites do poder soberano. Se o Estado ou a cidade s constitui uma pessoa moral, cuja vida consiste na unio de seus membros, e se o mais importante de seus cuidados o de sua prpria conservao, necessrio uma fora universal e compulsria para mover e dispor cada uma das partes da maneira mais conveniente para o todo. Como a Natureza d a cada homem um poder absoluto sobre todos os seus membros, d o pacto social ao corpo poltico um poder absoluto sobre todos os seus, e esse mesmo poder que, dirigido pela vontade geral, recebe, como eu disse, o nome de soberania. Contudo, alm da pessoa pblica, temos a considerar as pessoas privadas que a compem e cuja vida e liberdade so naturalmente independentes delas. Trata-se, pois, de distinguir com acerto os respectivos

direitos dos cidados e do soberano (8), e os deveres a cumprir por parte dos primeiros, na qualidade de vassalos, do direito natural que devem desfrutar na qualidade de homens. Convm que tudo quanto cada qual aliene em virtude do pacto social de seu poder, de seus bens, de sua liberdade, seja apenas a parte cujo uso interesse sociedade, todavia, preciso igualmente convir que s o soberano pode ser juiz desse interesse. Todos os servios que possa um cidado prestar ao Estado, to logo o soberano os solicite, passam a constituir um dever; mas, de seu lado, o soberano no tem o direito de sobrecarregar os vassalos de nenhum grilho intil comunidade; sequer o pode desejar: porque, sob a lei da razo, nada se faz sem causa, do mesmo modo que sob a lei natural. Os empenhos que nos ligam ao corpo social s so obrigatrios pelo fato de serem recprocos, e tal sua natureza que, desempenhando-os, no se pode trabalhar para outrem sem trabalhar tambm para si mesmo. Por que sempre reta a vontade geral, e por que desejam todos, constantemente, a felicidade de cada um, se no pelo fato de no haver quem no se aproprie dos termos cada um e no pense em si mesmo ao votar por todos? Isso prova que a igualdade de direito e a noo de justia que aquela produz derivam da preferncia que cada qual se atribui, e, por conseguinte, da natureza do homem; que a vontade geral, por ser realmente conforme, deve existir no seu objeto, bem como na sua essncia; que deve partir de todos, para a todos ser aplicada; e que perde sua retido natural quando tende a algum objeto individual e determinado, porque ento, julgando do que nos estranho, no temos nenhum real princpio de eqidade a conduzir-nos. Com efeito, to logo se trate de um fato ou de um direito particular, sobre ponto no regulado por conveno geral e interior, o negcio se toma contencioso; constitui um processo em que os particulares interessados representam uma das partes e o pblico outra, mas no qual no vejo nem a lei a ser seguida nem o juiz que deve pronunciar. Seria ento ridculo remontar a uma expressa deciso da vontade geral, que s pode ser a concluso de uma das partes, e que, por conseguinte, no passa para a outra de uma vontade estranha, particular, induzida injustia e sujeita ao erro. Assim, do mesmo modo, como uma vontade particular no pode representar a vontade geral, a vontade geral, por seu turno, muda de natureza quando tem um objeto particular, e no pode, como geral, decidir nem sobre um homem nem sobre um fato. Por exemplo, quando o povo de Atenas nomeava ou destitua os chefes, tributava honras a um, impunha castigos a outro, e, por infinidade de decretos particulares, exercia indistintamente todos os atos Do Contrato Social file:///C|/site/livros_gratis/contrato_social.htm (16 of 72) [4/1/2002 14:09:39] # do governo, no mais estava ento de posse da vontade geral propriamente dita, no

mais agia como soberano, mas como magistrado. Isto parecer contrrio s idias comuns, mas preciso me concedam o tempo de expor as minhas. Deve-se por a conceber que o que generaliza a vontade menos o nmero de vozes que o interesse comum que as une; porque, numa instituio, cada qual se submete necessariamente s condies que impe aos outros: admirvel acordo do interesse e da justia, que fornece s deliberaes comuns um carter eqitativo, o qual se v desvanecer-se na discusso de todo negcio particular, falta de um interesse comum que una e identifique a regra do juiz com a da parte. Por qualquer dos lados que se remonte ao princpio, chega-se sempre mesma concluso, a saber, que o pacto social estabelece tal igualdade entre os cidados, que os coloca todos sob as mesmas condies e faz com que todos usufruam dos mesmos direitos. Destarte, pela natureza do pacto, todo ato de soberania, isto , todo ato autntico da vontade geral, obriga ou favorece todos os cidados, de maneira que o soberano apenas conhea o corpo da nao e no distinga nenhum dos corpos que a compem. Que , pois, na realidade, um ato de soberania? No um convnio entre o superior e o inferior, mas uma conveno do corpo com cada um de seus membros: conveno legtima, porque tem por base o contrato social; eqitativa, porque comum a todos; til, porque no leva em conta outro intento que no o bem geral, porque possui como fiadores a fora do pblico e o poder supremo. Enquanto os vassalos estiverem apenas sujeitos a tais convenes, no obedecero a ningum, mas unicamente prpria vontade; e perguntar at aonde se estendem os respectivos direitos do soberano e dos cidados perguntar at que ponto podem estes empenhar-se consigo mesmos, cada um com todos, e todos com cada um deles. V-se por a que o poder soberano, todo absoluto, todo sagrado, todo inviolvel que , no passa nem pode passar alm dos limites das convenes gerais, e que todo homem pode dispor plenamente da parte de seus bens e da liberdade que lhe foi deixada por essas convenes; de sorte que o soberano jamais possui o direito de sobrecarregar um vassalo mais que outro, porque ento, tornando-se o negcio particular, deixa o seu poder de ser competente. Uma vez admitidas essas distines, to falso haver no contrato da parte dos particulares, qualquer renncia verdadeira, que sua situao, por efeito do contrato, se torna realmente prefervel que tinha anteriormente, pois que, em lugar de uma alienao, fizeram a troca vantajosa de uma maneira incerta e precria por uma outra melhor e mais segura, da, independncia natural pela liberdade, do poder de causar dano a outrem por sua prpria segurana, e da fora, que podia ser por outros sobrepujada, por um direito que a unio social transforma em invencvel. A prpria vida, consagrada

por eles ao Estado, fica continuamente protegida, e quando a expem na defesa deste, que fazem ento seno devolver o que dele receberam? Que fazem eles alm do que teriam freqentemente feito, e com maior perigo, no estado natural, quando, entregando-se a inevitveis combates, defendessem, com perigo de vida, o que lhes serve para a conservar? Todos devem necessariamente lutar em defesa da ptria, verdade; mas tambm verdade que ningum necessita de combater para a prpria defesa. Com referncia nossa segurana, no ganhamos ainda, quando nos dispomos a correr os riscos que seria necessrio correr em nosso favor to logo fossemos dessa segurana despojados? V -- Do direito de vida e morte. Pergunta-se como podem os particulares, desprovidos do direito de dispor de suas vidas, transferir ao Do Contrato Social file:///C|/site/livros_gratis/contrato_social.htm (17 of 72) [4/1/2002 14:09:39] # soberano esse mesmo direito que no possuem? Tal questo s parece difcil de ser resolvida, porque est mal colocada. Todo homem tem o direito de arriscar a prpria vida a fim de a conservar. Alguma vez foi dito que quem se lana por uma janela para escapar de um incndio seja culpado de cometer suicdio? Imputou-se alguma vez o mesmo crime a quem, embarcando, sem conhecer o perigo, vem a morrer durante uma tempestade? O tratado social tem por objetivo a conservao dos contratantes. Quem quer o fim quer tambm os meios, e esses meios so inseparveis de alguns riscos, inclusive de algumas perdas. Quem quer conservar a vida s expensas dos outros deve d-la por eles quando se faz necessrio. Ora, o cidado no juiz do perigo ao qual a lei o expe; e quando o prncipe lhe diz: ``Ao Estado til que morras'', ele deve morrer, pois no foi seno sob essa condio que viveu em segurana at esse momento, e sua vida no mais uma merc da Natureza, mas um dom condicional do Estado. A pena de morte, imposta aos criminosos. pode ser de certa forma encarada sob esse ponto de vista: para no ser vtima de um assassino que se consente em morrer, sendo o caso. Nesse tratado, longe de se dispor da prpria vida, pensa-se em garanti-la, e no de presumir premedite ento um contratante fazer-se enforcar. De resto, todo malfeitor, ao atacar o direito social, torna-se, por seus delitos, rebelde e traidor da ptria; cessa de ser um de seus membros ao violar suas leis, e chega mesmo a declarar-lhe guerra. A conservao do Estado passa a ser ento incompatvel com a sua; faz-se preciso que um dos dois perea, e quando se condena morte o culpado, se o faz menos na qualidade de cidado que de inimigo. Os processos e a sentena constituem as provas da declarao de que o criminoso rompeu o tratado social, e, por conseguinte, deixou de ser considerado membro do Estado. Ora, como ele se

reconheceu como tal, ao menos pela residncia, deve ser segregado pelo exlio, como infrator do pacto, ou pela morte, como inimigo pblico, pois um inimigo dessa espcie no uma pessoa moral; um homem, e manda o direito da guerra matar o vencido. Mas, dir-se-, a condenao de um criminoso constitui um ato particular. De acordo: essa condenao, tambm, no pertence em absoluto ao soberano; um direito que este pode conferir sem o poder exercer pessoalmente. Todas as minhas idias se coordenam, mas eu no saberia exp-las simultaneamente. Ademais, a freqncia dos suplcios constitui sempre um sinal de fraqueza ou indolncia no governo: no existe malvado que no possa servir para alguma coisa. No se tem o direito de matar, mesmo para exemplo, seno aquele que se no pode conservar sem perigo. Quanto ao direito de agraciar ou isentar um culpado da pena imposta pela lei e pronunciada pelo juiz, da competncia exclusiva de quem se encontra acima do juiz e da lei, isto , do soberano; seu direito no que a isto concerne no est ainda bem ntido, e o uso dele tem sido muito raro. Num Estado bem governado, h poucas punies, no porque se concedam muitas graas, mas pelo fato de haver poucos criminosos; a quantidade de crimes assegura a impunidade, quando o Estado se deteriora. Na Repblica romana, jamais o Senado ou os cnsules intentaram conceder graa; o prprio povo no a fazia, muito embora revogasse algumas vezes a prpria sentena. As graas freqentes anunciam que breve os delitos no mais necessitaro delas, e cada um pode ver aonde isso nos conduzir. Sinto, porm, que o corao murmura e me detm a pena; deixemos que discuta esses problemas o homem justo, que jamais pecou e que nunca necessitou para si mesmo de perdo. VI -- Da lei. Do Contrato Social file:///C|/site/livros_gratis/contrato_social.htm (18 of 72) [4/1/2002 14:09:39] # Pelo pacto social demos existncia ao corpo poltico; trata-se agora de lhe dar o movimento e a vontade por meio da legislao. Porque o ato primitivo, pelo qual esse corpo se forma e se une, no determina ainda o que ele deve fazer para se conservar. O que bom e conforme a ordem o pela natureza das coisas e independentemente das convenes humanas. Toda justia vem de Deus; s Ele sua fonte; mas, se soubssemos recebla de to alto, no teramos necessidade nem de governo nem de leis. Est fora de dvida a existncia de uma justia universal, s da razo emanada; tal justia, porm, para ser admitida entre ns, deve ser recproca. Considerando humanamente as coisas, falta de sano natural, so vs as leis da justia entre os homens; fazem o bem do perverso e o mal do justo, quando este as observa com todos, sem que ningum as observe consigo. necessrio, pois, haja convenes e leis para unir os

direitos aos deveres e encaminhar a justia a seu objetivo. No estado natural, onde tudo comum, nada devo queles a quem nada prometi; s reconheo como sendo de outrem o que me intil. Isso no ocorre no estado civil, onde todos os direitos so fixados pela lei. Mas que enfim uma lei? Enquanto continuarmos a juntar a esse termo somente idias metafsicas, prosseguiremos a raciocinar sem nada entender, e quando tivermos dito o que uma lei natural, no saberemos melhor o que uma lei do Estado. J tive ocasio de dizer que, de modo algum, havia vontade geral num objeto particular. Esse objeto particular encontra-se, com efeito, no Estado ou fora do Estado; uma vontade que lhe seja estranha no em absoluto geral em relao a ele; e se esse objeto est no Estado, dele faz parte, e ento se forma entre o todo e sua parte uma relao que os transforma em dois seres separados, cuja parte um, e o todo, menos esta mesma parte, constitui o outro. Mas o todo menos uma parte, no de nenhum modo o todo, e enquanto essa relao subsiste, no mais h o todo, mas sim duas partes desiguais; de onde se conclui que a vontade de uma no tambm mais geral em relao outra. Mas quando todo o povo estatui sobre todo o povo, s a si mesmo considera; e se se forma ento uma relao, do objeto inteiro sob um ponto de vista ao objeto inteiro sob outro ponto de vista, sem nenhuma diviso do todo. Ento, a matria sobre a qual estatumos passa a ser geral, como a vontade que estatui. A esse ato que eu chamo uma lei. Quando digo que o objeto das leis sempre geral, entendo que a lei considera os vassalos em corpo e as aes como sendo abstratas, jamais um homem como indivduo, nem uma ao particular. Destarte, pode a lei estatuir perfeitamente que haver privilgios, mas no pode ofert-los nominalmente a ningum; pode a lei instituir diversas classes de cidados, assinalar inclusive as qualidades que daro direito a essas classes; mas no pode nomear este ou aquele para ser nelas admitido; pode estabelecer um governo real e uma sucesso hereditria, mas no pode eleger um rei nem nomear uma famlia real: numa palavra, toda funo que se relacione com um objeto individual no pertence de nenhum modo ao poder legislativo. No tocante a esta idia, v-se imediatamente no mais ser preciso perguntar a quem compete fazer as leis, pois que elas constituem atos da vontade geral; nem se o prncipe se encontra acima das leis, pois que ele membro do Estado; nem se a lei pode ser injusta, pois que ningum injusto consigo mesmo; nem em que sentido somos livres e sujeitos s leis, pois que estas so apenas registros de nossas vontades. V-se ainda que, reunindo a lei da universalidade da vontade e a do objeto, tudo que um homem, seja quem for, ordena de sua cabea no em absoluto uma lei; mesmo o que ordenado pelo soberano

Do Contrato Social file:///C|/site/livros_gratis/contrato_social.htm (19 of 72) [4/1/2002 14:09:39] # acerca de um objeto particular no igualmente uma lei, mas um decreto; nem constitui um ato de soberania, mas de magistratura. Eu chamo, pois, repblica todo Estado regido por leis, independente da forma de administrao que possa ter; porque ento somente o interesse pblico governa, e a coisa pblica algo representa. Todo governo legtimo republicano (9) . Explicarei mais adiante o que o governo. As leis no so propriamente seno as condies de associao civil. O povo, submetido s leis, deve ser o autor das mesmas; compete unicamente aos que se associam regulamentar as condies de sociedade; mas de que maneira as regulamentaro? F-lo-o de comum acordo, como que por uma inspirao sublime? Possui o corpo poltico um rgo qualquer para enunciar-lhe as vontades? Quem lhe dar a previso necessria para formar e publicar os atos antecipadamente, ou como os pronunciar no momento de necessidade? De que maneira uma turba cega, que em geral no sabe o que quer, porque raramente conhece o que lhe convm, executar por si mesma um empreendimento de tal importncia e to difcil como um sistema de legislao? O povo, de si mesmo, sempre deseja o bem; mas nem sempre o v, de si mesmo. A vontade geral sempre reta; mas o julgamento que a dirige nem sempre esclarecido. E necessrio fazer-lhe ver os objetos tais como so, e muitas vezes tais como devem parecer-lhe; preciso mostrar-lhe o bom caminho que procura, proteg-la da seduo das vontades particulares, aproximar de seus olhos os lugares e os tempos, equilibrar o encanto das vantagens presentes e sensveis com o perigo dos males afastados e ocultos. Os particulares vem o bem que rejeitam, o pblico deseja o bem que no v. Todos igualmente necessitam de guias; preciso obrigar uns a conformar suas vontades com sua razo; necessrio ensinar outrem a conhecer o que pretende. Ento, das luzes pblicas resulta a unio do entendimento e da vontade no corpo social; d o exato concurso das partes e, finalmente, a maior fora do todo. Eis de onde nasce a necessidade de um legislador. VII -- Do legislador. Para descobrir as melhores regras de sociedade convenientes s naes, far-se-ia preciso uma inteligncia superior que visse todas as paixes e no provasse nenhuma; que no tivesse nenhuma relao com nossa natureza e a conhecesse no ntimo; cuja felicidade fosse independente de ns, e que, portanto. quisesse ocupar-se da nossa; enfim que, no progresso dos tempos, procurando-se uma glria longnqua, pudesse trabalhar em um sculo e usufruir em um outro (10). Haveria necessidade de deuses para dar leis aos homens.

O mesmo raciocnio que fazia Calgula com referncia ao fato, fazia Plato no tocante ao direito, a fim de definir o homem civil ou real, procurado por ele em seu livro Do Reino; porm verdade que um grande prncipe tambm um homem raro; como no h de s-lo um grande legislador? Ao primeiro basta seguir o modelo a ser proposto pelo outro; este representa o mecnico inventor da mquina, aquele apenas o operrio que a monta e a faz funcionar. No nascimento das sociedades, diz Montesquieu, encontram-se os chefes das repblicas que fazem as instituies, e , em seguida, a instituio que forma os chefes das repblicas. Aquele que ousa empreender a instituio de um povo deve sentir-se com capacidade de, por assim dizer, mudar a natureza humana; de transformar cada indivduo, que, por si mesmo, constitui um todo perfeito e solidrio, em parte de um todo maior, do qual esse indivduo recebe, de certa forma, a vida e o ser; de alterar a constituio do homem a fim de refor-la; de substituir uma existncia parcial e moral Do Contrato Social file:///C|/site/livros_gratis/contrato_social.htm (20 of 72) [4/1/2002 14:09:39] # existncia fsica e independente que todos recebemos da Natureza. Numa palavra, preciso que arrebate ao homem as foras que lhe so inerentes, para lhe dar foras estranhas, das quais ele no possa fazer uso sem a ajuda alheia. Quanto mais essas foras naturais estejam mortas e aniquiladas, maiores e mais durveis so as aquisies, e tambm mais slida e perfeita a instituio; de sorte que, se cada cidado nada , nada pode ser sem a ajuda de todos os outros, e a fora adquirida pelo todo igual ou superior soma das foras naturais de todos os indivduos, pode-se dizer que a legislao se encontra no ponto mais alto de perfeio que possa ser atingido. O legislador, a todos os respeitos, no Estado um homem extraordinrio. Se o deve ser por seu engenho, no o menos por seu emprego; no de modo algum magistratura, no de nenhum modo soberania. O emprego, que constitui a repblica, no entra em absoluto em sua constituio; uma funo particular e superior, que nada tem de comum com o imprio humano; porque, se quem dirige os homens no deve dirigir as leis, quem dirige as leis no deve, pela mesma razo, dirigir os homens; do contrrio, suas leis, ministras de suas paixes, perpetuariam muitas vezes suas injustias, e ele jamais poderia evitar que intuitos particulares alterassem a santidade de sua obra. Ao dar leis sua ptria, comeou Licurgo por abdicar a realeza. Era costume da maioria das cidades gregas confiar a estrangeiros o estabelecimento de suas leis. As modernas repblicas da Itlia imitaram muitas vezes esse uso. A de Genebra fez o mesmo e achou-se bem (11). Roma, em seus mais belos tempos, viu renascer em seu seio todos os crimes da tirania e viu-se prestes a perecer, pelo fato de haver

reunido sobre as mesmas cabeas a autoridade legislativa e o poder soberano. Entretanto, os prprios decnviros jamais se arrogaram o direito de forar a introduo de nenhuma lei, partida de sua autoridade. ``Nada do que propomos'', diziam eles ao povo, ``pode transformar-se em lei sem vosso consentimento. Romanos, sede vs mesmos os autores das leis incumbidas de promover a vossa felicidade.'' Quem redige as leis no tem, portanto, ou no deve ter nenhum direito legislativo, e o prprio povo no pode, mesmo se o quisesse, despojar-se desse incomunicvel direito, porque, de acordo com o pacto fundamental, a vontade geral a nica que obriga os particulares, e nunca se pode afirmar que uma vontade particular est conforme a vontade geral, seno depois de hav-la submetido aos livres sufrgios do povo. J tive oportunidade de dizer tal coisa, mas no me parece intil repetila. Assim, acham-se simultaneamente na obra da legislao duas coisas na aparncia incompatveis: um empreendimento acima da fora humana, e, para execut-lo, uma autoridade que nada representa. Outra dificuldade a merecer ateno: os sbios, desejosos de falarem ao vulgo a sua linguagem, no a deste, no conseguiriam fazer-se entender. Ora, h mil espcies de idias impossveis de traduzir na lngua do povo. As intenes bastante gerais e os objetos excessivamente distantes ficam, da mesma maneira, fora de sua compreenso. Cada indivduo, no apreciando outro plano de governo que no o relacionado com seu interesse particular, dificilmente percebe as vantagens a retirar das contnuas privaes impostas pelas boas leis. Para que um povo nascente possa saborear as salutares mximas da poltica e seguir as regras fundamentais da razo do Estado, seria indispensvel que o efeito pudesse tornar-se a causa, que o esprito social, que deve constituir a obra da instituio, presidisse a prpria instituio, e que fossem os homens, antes das leis, o que devem ser graas a elas. Assim, pois, j que o legislador no pode empregar nem a fora nem o raciocnio, mister que recorra a uma autoridade de outra ordem, que possa conduzir sem violncia e persuadir sem convencer. Do Contrato Social file:///C|/site/livros_gratis/contrato_social.htm (21 of 72) [4/1/2002 14:09:39] # Eis o que forou, em todos os tempos, os pais das naes a recorrer interveno celeste e honrar os deuses por sua prpria sabedoria, a fim de que os povos, submetidos s leis do Estado como s da Natureza, e reconhecendo o mesmo poder na formao do homem e na da cidade, obedeam com liberdade e aceitem docilmente o jugo da felicidade pblica. Essa sublime razo, que se eleva acima do entendimento dos homens vulgares, aquela pela qual o legislador pe as decises na boca dos imortais, a fim de conduzir, atravs da autoridade divina, os que no seriam abalados pela prudncia humana (12). Mas no dado a todo homem fazer

os deuses falarem, nem ser acreditado quando se anuncia como intrprete deles. O elevado esprito do legislador o verdadeiro milagre que deve provar sua misso. Todo homem pode gravar tbuas de pedra, ou comprar um orculo, ou simular um comrcio secreto com alguma divindade, ou adestrar um pssaro que lhe fale ao ouvido, ou encontrar outros meios grosseiros para se impor ao povo. Quem nada souber, alm disso, poder inclusive reunir por acaso um bando de insensatos, mas jamais fundar um imprio, e sua extravagante obra cedo perecer consigo. Vos prestgios apenas formam um lao passageiro; no h seno a sabedoria para torn-lo durvel. A lei judaica, sempre subsistente, a do filho de Ismael, que h dez sculos vem regendo a metade do mundo, proclamam ainda hoje os grandes homens que as ditaram, e conquanto a orgulhosa filosofia ou o cego esprito de partido no veja nelas seno felizes impostores, a verdadeira poltica admira em suas instituies o grande e poderoso esprito que preside os estabelecimentos durveis. Disso tudo no se deve concluir, juntamente com Warourton, que a poltica e a religio tenham entre ns um objetivo comum; mas sim que, na origem das naes, uma serve de instrumento outra. VIII -- Do povo. Assim como um grande arquiteto, antes de construir, observa e sonda o solo, para ver se este tem condies de sustentar o peso, o sbio instituidor no comea por redigir boas leis em si mesmas; mas examina anteriormente se o povo, ao qual so destinadas, est apto para as aceitar. Foi por isso que Plato recusou dar leis aos rcades e aos cirenaicos, sabendo que esses dois povos eram ricos e no podiam admitir a igualdade; foi tambm por isso que se viram em Creta leis perfeitas e homens perversos, porque Minos s havia disciplinado um povo sobrecarregado de vcios. Brilharam aqui na Terra milhares de naes que jamais teriam podido suportar boas leis; e mesmo essas que elas teriam admitido no duraram seno um curto espao de tempo para isso. Os povos, assim como os homens, somente so dceis na juventude; ao envelhecerem, tornam-se incorrigveis; uma vez estabelecidos os costumes e enraizados os preconceitos, constitui empreendimento perigoso e intil pretender reform-los; o povo sequer concorda que se lhe toque nos males a fim de os destruir, semelhana desses estpidos e medrosos doentes que estremecem com a presena do mdico. No quer isso dizer que, do mesmo modo como certas enfermidades transtornam a mente dos homens e nelas apagam a lembrana do passado, no se achem s vezes, na durao dos Estados, pocas violentas em que as revolues fazem no povo o mesmo que determinadas crises fazem nos indivduos, em que o horror do passado substitui o esquecimento, e o Estado, incendiado pelas guerras civis, renasce por assim

dizer das cinzas e readquire o vigor da juventude, saindo dos braos da morte. Foi assim Esparta no tempo de Licurgo, foi assim Roma aps os Tarqunios, e foram assim, entre ns, a Holanda e a Sua, depois da expulso dos tiranos. So raros, porm, esses acontecimentos, so excees cujo motivo sempre se acha na constituio Do Contrato Social file:///C|/site/livros_gratis/contrato_social.htm (22 of 72) [4/1/2002 14:09:39] # particular do Estado excetuado. No poderiam acontecer duas vezes no seio do mesmo povo, o qual pode tornar-se livre enquanto brbaro, mas no o pode quando a alada civil se apresenta gasta. As agitaes, ento, podem destru-lo, sem que as revolues tenham possibilidades de o restabelecer; e to logo seus grilhes se rompam, tomba o povo disperso e deixa de existir. Da por diante, passa a necessitar de um senhor, no de um libertador. Povos livres, recordai-vos desta mxima: Pode-se adquirir a liberdade, mas nunca recobr-la. H para as naes, como para os homens, um tempo de maturidade, que preciso esperar, antes de as sujeitarmos s leis; mas a maturidade de um povo no fcil de conhecer, e se a antecipamos, aborta a obra. Certo povo pode ser disciplinado ao nascer; outro no o ser ao trmino de dez sculos. Os russos no sero nunca verdadeiramente policiados, porque o foram muito cedo. Pedro o Grande tinha o talento imitativo, no o verdadeiro gnio, o que cria e tudo faz do nada. Algumas coisas que fez eram boas, a maioria delas indevida. Ele viu que seu povo era brbaro, mas no viu em absoluto que seu povo no estava amadurecido para a polcia; ele desejou civiliz-lo, quando devia torn-lo aguerrido; quis, de incio, fazer deles alemes, ingleses, quando era preciso comear por faz-los russos; impediu seus vassalos de jamais se tornarem o que poderiam realmente ser, persuadindo-os de que eram aquilo que so. dessa maneira que o preceptor francs educa o seu aluno, fazendo-o brilhar um momento, durante a infncia, para, em seguida, no vir a ser jamais ningum. O imprio russo desejar subjugar a Europa, e acabar por ser subjugado. Os trtaros, seus vassalos ou seus vizinhos, se tornaro seus senhores e nossos: esta revoluo parece-me infalvel. Todos os reis da Europa trabalham de comum acordo para aceler-la. IX -- Continuao do captulo precedente. Assim como a Natureza estabeleceu limites estatura de um homem bem conformado, alm dos quais s produz gigantes ou anes, fez o mesmo no tocante melhor constituio de um Estado, limitando-lhe a extenso, a fim de que no venha a ser nem muito grande para poder ser bem governado, nem muito pequeno para se poder manter por si mesmo. Em todo corpo poltico h um mximo de fora que ele no poderia ultrapassar, e do qual com freqncia se afasta medida que se expande.

Quanto mais se estende o lao social, tanto mais afrouxa; e, em geral, um pequeno Estado proporcionalmente mais forte que um grande. Mil razes demonstram essa mxima. A administrao, em primeiro lugar, torna-se mais penosa nas grandes distncias, assim como um peso qualquer se torna mais pesado na ponta de uma alavanca maior. Torna-se mais onerosa medida que os degraus se multiplicam; porque cada cidade tem, de incio, a sua administrao, que o povo paga; cada distrito a sua, paga ainda pelo povo; a seguir, cada provncia, depois os grandes governos, as satrapias, os vice-reinados, cuja administrao se torna cada vez mais cara, medida que se sobe, e sempre custa do inditoso povo; vem, por fim, a administrao suprema, que tudo esmaga: com tanta sobrecarga a exauri-los continuamente, os vassalos, longe de serem melhor governados por essas diferentes ordens, acabam por s-lo pior que se tivessem um s desses governos a dirigi-los. No obstante, apenas sobram recursos para os casos extraordinrios; e quando se faz preciso a eles recorrer, que se encontra o Estado s vsperas da runa. Isso no tudo: no somente o governo possui menos vigor e rapidez para fazer observar as leis, impedir os vexames, corrigir os abusos, prevenir os empreendimentos sediciosos que possam ser promovidos nos pontos distantes, como tambm o povo demonstra menor afeio aos chefes, os quais nunca v, ptria, que a seus olhos se assemelha ao mundo, e aos concidados cuja maioria lhe estranha. As mesmas leis Do Contrato Social file:///C|/site/livros_gratis/contrato_social.htm (23 of 72) [4/1/2002 14:09:39] # no podem convir igualmente a tantas provncias diversas, com costumes diferentes, e climas opostos, e que no admitem a mesma forma de governo. Leis diferentes engendram perturbao e confuso no seio dos povos que, vivendo sob a direo dos mesmos chefes, em contnua comunicao, transitam de um lado para outro ou se casam entre si, e que, sujeitos a outros costumes, nunca sabem se o prprio patrimnio lhes pertence. Em meio multido de homens que se desconhecem mutuamente, reunidos pela sede da suprema administrao num mesmo lugar, os talentos permanecem ocultos, as virtudes ignoradas e os vcios impunes. Os chefes, sobrecarregados de tarefas, nada vem por si mesmos; comissrios governam o Estado. Enfim, as medidas necessrias manuteno da autoridade geral, a que tantos oficiais destacados em regies longnquas desejam subtrair-se, quando no ludibriar, absorvem todos os cuidados pblicos; e nada mais resta para a felicidade do povo, exceto o indispensvel sua defesa em caso de necessidade; e assim que um corpo muito grande, por sua constituio, definha e perece, esmagado pelo prprio peso. De outro lado, deve o Estado fornecer-se determinada base para contar com solidez,

para resistir aos sacolejos que no deixar de experimentar e aos esforos que ser obrigado a despender a fim de se manter; porque todos os povos possuem uma espcie de fora centrfuga, pela qual atuam seguidamente uns sobre outros e tendem a engrandecer-se s expensas dos vizinhos, como os turbilhes de Descartes. Destarte, correm os fracos o risco de ser engolidos, e ningum consegue conservarse a no ser colocando-se em relao a todos numa espcie de equilbrio que torna a compreenso em toda parte mais ou menos igual. V-se por a haver razes para alargar e razes para estreitar os limites do Estado, e no constitui o menor aspecto do talento do poltico, encontrar, entre umas e outras, a proporo mais vantajosa conservao do Estado. Pode-se dizer em geral que as primeiras, sendo apenas exteriores e relativas, devem ser subordinadas s outras, que so internas e absolutas; uma s e forte constituio a primeira coisa a pesquisar, e, de preferncia, deve-se contar com o vigor nascido de um bom governo que com os recursos fornecidos por um grande territrio. Ademais, viram-se Estados assim constitudos, cuja necessidade de conquistas entrava nas prprias constituies, e que, a fim de se manterem, eram forados a ampliar-se sem cessar. Talvez muito se felicitassem por essa feliz necessidade, que lhes mostrava, com o termo de sua grandeza, o inevitvel momento de sua queda. X -- Continuao. Pode-se mensurar um corpo poltico de duas maneiras, a saber: pela extenso do territrio, e pelo nmero da populao; e entre uma e outra dessas medidas, h uma relao conveniente para dar ao Estado sua verdadeira grandeza. So os homens que fazem o Estado, e o terreno que alimenta os homens; essa relao consiste, pois, em que a terra baste para a manuteno de seus habitantes e haja tantos habitantes quantos a terra possa nutrir. nessa proposio que se acha o maximum de fora de um nmero dado de povo; porque, se houver terreno em demasia, ser oneroso proteg-lo, a cultura se mostrar insuficiente, o produto suprfluo; e ser a causa prxima de guerras defensivas. Se no houver terreno suficiente, o Estado se achar, para o suprir, discrio de seus vizinhos; e ser a causa prxima de guerras ofensivas. Todo povo que, por sua posio, se acha na alternativa entre o comrcio ou a guerra, em si mesmo dbil; depende de seus vizinhos, depende dos acontecimentos; jamais ter seno uma existncia incerta e breve; subjuga e muda de situao, ou subjugado e no ser coisa alguma. No poder manter-se livre a no ser fora de sua pequenez ou de sua grandeza. Do Contrato Social file:///C|/site/livros_gratis/contrato_social.htm (24 of 72) [4/1/2002 14:09:39] # impossvel calcular uma relao fixa entre a extenso das terras e o nmero de

homens que se bastem mutuamente, no s por causa das diferenas existentes nas qualidades do terreno, em seus graus de fertilidade, na natureza de suas produes, na influncia dos climas, como pelas assinaladas nos temperamentos dos homens que as habitam, uns consumindo pouco num pas frtil, e outros consumindo muito num solo ingrato. preciso ainda levar em conta a maior ou menor fecundidade das mulheres, ao que pode ter o pas de mais ou menos favorvel populao, quantidade com a qual pode o legislador esperar a concorrer por seus estabelecimentos, de sorte que no deve ele fundar o julgamento sobre o que v, mas sobre o que prev, nem tanto se deter no estado atual da populao, mas sim no que ela vir naturalmente a ser. Enfim, h mil ocasies em que os acidentes particulares do lugar exigem ou permitem que se tome mais terreno que o que parece necessrio. Assim, estender-nos-emos muito num pas montanhoso onde as produes naturais, isto , os bosques, as pastagens, demandam menos trabalho, onde a experincia ensina que as mulheres so mais fecundas que nas plancies, e onde um grande solo inclinado s permite uma pequena base horizontal, a nica com que se pode contar para a vegetao. Ento, ao contrrio, podemo-nos restringir orla do mar, ou mesmo aos rochedos e s areias quase estreis, porque a pesca pode a suprir em grande parte as produes da terra, e os homens devem permanecer mais juntos para repelir os piratas, e porque, de resto, temos maiores facilidades para desembaraar o pas, por meio das colnias, dos habitantes que o sobrecarregam. Nessas condies, para instituir um povo, preciso ajuntar uma outra que no pode suprir nenhuma outra, mas sem a qual todas se revelam inteis: a de que se desfrute de paz e abundncia; porque o tempo durante o qual se ordena um Estado igual quele em que se forma um batalho, ao instante em que o corpo tem menos capacidade de resistncia e, portanto, mais fcil de ser destrudo. Resistir-se-ia melhor em meio a uma desordem absoluta que num momento de fermentao, quando cada qual se ocupa de sua classe e no do perigo. Se uma guerra, uma crise de fome, uma sedio sobrevem em tempo de crise, o Estado infalivelmente derrubado. No quer isto dizer no haja muitos governos estabelecidos durante essas tempestades, mas ento so esses mesmos governos que destroem o Estado. Os usurpadores conduzem ou escolhem sempre esses tempos de perturbaes para fazerem passar, graas ao espanto pblico, leis destruidoras que o povo no adotaria jamais em situao normal. A escolha do momento da instituio um dos caracteres mais seguros pelos quais se pode distinguir a obra do legislador da obra do tirano. E qual o povo apto a receber a legislao? Aquele que, estando j ligado atravs de alguma unio de origem, de interesse ou conveno, no foi ainda submetido ao verdadeiro jugo das leis; aquele que no

possui nem costumes nem supersties bem arraigadas; aquele que no receia ser esmagado por uma invaso sbita, que, sem entrar nas querelas de seus vizinhos, tem condies de resistir sozinho a cada um deles ou obter a ajuda de um a fim de repelir o outro; aquele em que cada membro pode ser conhecido de todos, e em que no se faz necessrio sobrecarregar um homem de um grande fardo que no possa carregar; aquele que pode dispensar os outros povos, e do qual nenhum outro povo deixa de necessitar (13); aquele que nem rico, nem pobre, e pode bastar-se a si mesmo; enfim, aquele que rene a consistncia de um povo antigo com a docilidade de um hodierno. O que torna penosa a obra da legislao no tanto o que preciso estabelecer, mas sim o que preciso destruir; e o que torna o xito to raro a impossibilidade de encontrar a simplicidade da Natureza junto s necessidades da sociedade. Todas essas condies, verdade, dificilmente se encontram reunidas: eis por que se vem poucos Estados bem constitudos. Existe ainda na Europa um pas digno de legislao: a Ilha da Crsega. O valor e a constncia com as Do Contrato Social file:///C|/site/livros_gratis/contrato_social.htm (25 of 72) [4/1/2002 14:09:39] # quais esse valente povo tem sabido reconquistar e defender a liberdade bem mereceria que algum sbio lhe ensinasse a conserv-la. Tenho certo pressentimento de que um dia essa pequena ilha assombrar a Europa. XI -- Dos diversos sistemas de legislao. Se se procura saber em que consiste precisamente o maior dos bens, que deve ser o objetivo de todo sistema de legislao, achar-se- que se reduz a estes dois objetos principais: a liberdade e a igualdade. A liberdade, porque toda independncia particular outra tanta fora subtrada ao corpo do Estado; a igualdade, porque a liberdade no pode subsistir sem ela. J tive ocasio de dizer em que consiste a liberdade civil; a respeito da igualdade, no se deve entender por essa palavra que os graus de poder e riqueza sejam absolutamente os mesmos, mas que, quanto ao poder, esteja acima de toda violncia e no se exera jamais seno em virtude da classe e das leis; e, quanto riqueza, que nenhum cidado seja assaz opulento para poder comprar um outro, e nem to pobre para ser constrangido a vender-se (14): o que supe, por parte dos grandes, moderao de bens e de crdito, e, do lado dos pequenos, moderao de avareza e ambio. Essa igualdade, dizem, uma quimera especulativa, que no pode existir na prtica; contudo, se o abuso inevitvel, segue-se que se no deve ao menos regulament-lo? precisamente porque a fora das coisas tende sempre a destruir a igualdade que a fora da legislao deve sempre tender a conserv-la. Todavia. esses generosos objetivos de toda boa instituio devem ser modificados em cada pas pelas

relaes nascidas tanto da situao local como do carter dos habitantes; e com base nessas relaes que cumpre destinar a cada povo um sistema particular de instituio, que seja o melhor, no talvez em si mesmo, mas sim para o Estado ao qual destinado. Por exemplo: ingrato e estril o solo, ou o pas excessivamente exguo para os habitantes? Voltai-vos para a indstria e as artes, cujas produes trocareis pelos gneros de que necessitais. Ocupais, ao contrrio, ricas plancies e frteis encostas? Em um bom terreno, tendes carncia de habitantes? Empregai na agricultura todos os vossos cuidados, que ela multiplica os homens, e afastai as artes, que acabaro por despovoar o pas, agrupando em alguns pontos do territrio os poucos habitantes que possui (15). Ocupais extensas e cmodas praias? Cobri o mar de navios, cultivai o comrcio e a navegao, e tereis uma existncia curta e brilhante. No banha o mar em vossas costas seno rochedos quase inacessveis? Permanecei brbaros e ictifagos; vivereis assim mais tranqilos, qui sereis melhores, e certamente mais felizes. Numa palavra, afora as mximas comuns a todos os povos, cada um deles encerra em si alguma causa que as ordena de maneira particular e faz com que sua legislao se torne exclusivamente sua. Foi assim que os hebreus outrora, e recentemente os rabes, tiveram como matria principal a religio; os atenienses, as letras; Cartago e Tiro, o comrcio; Rodes, a marinha; Esparta, a guerra; e Roma, a virtude. O autor de O Esprito das Leis demonstrou, em inmeros exemplos, com que arte dirige o legislador a instituio para cada uma dessas matrias. O que torna a constituio de um Estado verdadeiramente slida e durvel o fato de as convenincias serem de tal modo observadas, que as relaes naturais, bem como as leis, tombam sempre, harmoniosamente, sobre os mesmos pontos, e estas ltimas assegurarem, acompanharem e retificarem as outras. Mas, se o legislador, enganando-se em sua matria, toma um princpio diverso daquele que nasce da natureza das coisas, um que tenda para a servido e outro para a liberdade, um para as riquezas e outro para o povoamento, um para a paz e outro para as conquistas, veremos as leis debilitarem-se Do Contrato Social file:///C|/site/livros_gratis/contrato_social.htm (26 of 72) [4/1/2002 14:09:39] # insensivelmente, a constituio alterar-se, e o Estado no cessar de ser agitado, at ser destrudo ou mudado, e a invencvel Natureza retomar o seu imprio XII -- Diviso das leis. Para ordenar o todo, ou dar a melhor forma possvel coisa pblica, h que considerar diversas relaes. Primeiramente, a ao do corpo inteiro agindo sobre si mesmo, isto , a relao do todo com o todo ou do soberano com o Estado; e essa relao composta da dos termos intermedirios, como o veremos mais

adiante. As leis que regulamentam essas relaes so denominadas leis polticas; chamam-se tambm leis fundamentais, no sem alguma razo, no caso de serem feitas com sabedoria; porque se em cada Estado, no h seno uma maneira de o dirigir, o povo que a encontrou deve a ela ater-se; mas, no caso de ser m a ordem estabelecida, por que se h de tomar por fundamentais as leis que impedem de ser bom? De resto, em todo estado de causa, o povo sempre senhor de mudar suas leis, mesmo as melhores, porque, se lhe aprouver prejudicar a si mesmo, quem ter o direito de impedi-lo? A segunda relao a dos membros entre si ou com o corpo inteiro, e essa relao deve ser, no primeiro caso, to pequena, e, no segundo, to grande quanto possvel; de sorte que cada cidado se sinta perfeitamente independente de todos os outros e numa excessiva dependncia da cidade, o que sempre se faz atravs dos mesmos meios, uma vez que no h seno a fora do Estado para promover a liberdade de seus membros. E desta segunda relao que nascem as leis civis. Pode-se considerar uma terceira espcie de relao entre o homem e a lei: isto , a da desobedincia ao castigo, e esta d lugar ao estabelecimento das leis criminais, que, no fundo, constituem menos uma espcie particular de leis que a sano de todas as outras. A essas trs espcies de leis acrescenta-se uma quarta, a mais importante de todas, que no se grava nem no mrmore nem no bronze, mas no corao do,- cidados; que adquire diariamente foras novas; que reanima ou substitui as outras leis quando envelhecem ou se extinguem, e retm o povo dentro do esprito de sua instituio, e substitui insensivelmente a fora do hbito da autoridade. Falo dos usos, dos costumes e, em especial, da opinio, parte desconhecida de nossos polticos, mas da qual depende o xito de todas as outras; parte de que o grande legislador se ocupa em segredo, enquanto parece limitar-se a regulamentos particulares, que outra coisa no so seno o cimbre da abbada, cujos costumes, mais lentos no nascer, compem enfim a chave imutvel. Entre essas diversas classes, as leis polticas que constituem a forma do governo so as nicas que se relacionam com o meu assunto LIVRO III Antes de falar das diversas formas de governo, tratemos de fixar o sentido exato desta palavra, no perfeitamente explicado ainda. I -- Do governo em geral. Advirto o leitor de que este captulo deve ser lido pausadamente; desconheo a arte de ser claro para quem no deseje ser atento. Do Contrato Social file:///C|/site/livros_gratis/contrato_social.htm (27 of 72) [4/1/2002 14:09:39] # Toda ao livre tem duas causas, que concorrem para produzi-la: uma, moral, a saber, a vontade que determina o ato; outra, fsica, isto , o poder que a executa. Quando caminho na

direo de um objeto, faz-se primeiramente necessrio que eu l queira ir; em segundo lugar, que meus ps me levem. Que um paraltico deseje correr e um homem gil no queira, d na mesma: ambos permanecero no mesmo stio. O corpo poltico possui mbiles idnticos: distinguem-se igualmente a a fora e a vontade, esta sob o nome de poder legislativo, a outra sob o nome de poder executivo. Sem o concurso de ambas, nada se faz ou se deve fazer. Vimos que o poder legislativo pertence ao povo e s a ele pode pertencer. E, ao contrrio, fcil ver pelos princpios anteriormente expo