Roteiro - Eukaryota

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1. I: Mulher agachada num canto do quarto e o homem fora de foco no fundo ainda deitado na cama mas já acordando. Foco na expressão inerte da face da mulher VO: No momento de falar do meu casamento, tenho a impressão de que tudo me escapa. Uma espécie de força nua diante da qual se desliza, sobre a qual as mãos não tem poder. É a presença dessa força, móvel e fugidia, que me impede de falar do relacionamento, e quem sem dúvida me prende a ele. Talvez o amor seja feito para isso: para que se deixe escapar, para que não seja retido. Enquanto eu, permaneço com a minha crença infantil de que a linguagem possa construir uma narrativa capaz de dar conta da realidade. 2. I: Mulher na cozinha preparando algo e o homem entra também na cozinha. Eles trocam algumas palavras. Mulher com a mesma expressão quase muda. VO: Tento declarar-te algo. Falo silêncios. O silêncio amplo e calado, calado fica. A quietação quieta. O tique-taque do relógio invisível é como a voz do silêncio, que um dia vai triunfar. E então tudo será silencioso e as coisas estariam, finalmente, em seu lugar. 3. I: Mulher vai sozinha a um lugar do apartamento e passa a aguar seus vasos e posteriormente vai olhar a janela. VO:

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Primeiro Corte

Transcript of Roteiro - Eukaryota

1.

I:

Mulher agachada num canto do quarto e o homem fora de foco no fundo ainda deitado na cama mas j acordando.

Foco na expresso inerte da face da mulher

VO:

No momento de falar do meu casamento, tenho a impresso de que tudo me escapa. Uma espcie de fora nua diante da qual se desliza, sobre a qual as mos no tem poder. a presena dessa fora, mvel e fugidia, que me impede de falar do relacionamento, e quem sem dvida me prende a ele. Talvez o amor seja feito para isso: para que se deixe escapar, para que no seja retido. Enquanto eu, permaneo com a minha crena infantil de que a linguagem possa construir uma narrativa capaz de dar conta da realidade.

2.

I:

Mulher na cozinha preparando algo e o homem entra tambm na cozinha. Eles trocam algumas palavras. Mulher com a mesma expresso quase muda.

VO:

Tento declarar-te algo. Falo silncios. O silncio amplo e calado, calado fica. A quietao quieta. O tique-taque do relgio invisvel como a voz do silncio, que um dia vai triunfar. E ento tudo ser silencioso e as coisas estariam, finalmente, em seu lugar.

3.

I:

Mulher vai sozinha a um lugar do apartamento e passa a aguar seus vasos e posteriormente vai olhar a janela.

VO:

Minha maior rebeldia talvez consista apenas em mirar uma rosa at pulverizar meus olhos. Alguma vez, alguma vez talvez irei sem permanecer, irei como quem se vai. Aceitarei que todos estamos presos a um destino singular. Ningum nunca encontra o par ideal. As lixeiras da cidade se completam. Os ferros-velhos se completam. Os hospcios se completam. As sepulturas se completam.

4.

I:

Cu.

VO:

Nada mais se completa.

5.

I:

Mulher olhando uma prateleira de livros. Acha algumas fotos, d uma rpida olhada e coloca-as dentro de algum livro.

VO:

Tenho saudades do tempo em que estar do seu lado significava no ter medo de no saber nomear o que no existe. Tento reunir todos os meus desejos de voltar queles tempos para que eles se reinvistam em alguma coisa muita pequena que se tornaria to grande quanto o amor. No entanto, noto ser impossvel. Pois no estou apenas cansada, como quem esgotou a realizao, mas esgotada, como quem esgotou todo o possvel. O cansado no pode mais realizar; mas o esgotado, no pode mais possibilitar.

6.

I:

Mulher aparece com uma caixinha de msica na mo e vai sentar-se no cho para escutar.

VO:

Eu esgotei o possvel porque estou esgotada ou estou esgotada porque esgotei possvel? No importa. Tentar pensar nisso como estar morrendo e explicando a minha morte. O que sei que sinto-me esgotada at para ir-me. O nosso relacionamento frio terminou por lanar-me na sala de espera da vida e daqui no consigo sair.

7:

I:

Mulher na porta do box, despindo-se para entrar no cuveiro. Ela entra, liga o chuveiro e fecha o box.

VO:

Como seria tua ausncia? Seria suportvel? Uma ausncia bem suportada nada mais do que o esquecimento. Se no esquecesse, ns morreramos. O amante que no esquece alguma vezes morre por excesso, cansao e tenso de memria. Mas ser que realmente quero te esquecer?

8:

I:

Ralo do chuveiro engolindo a gua.

VO:

Para onde iriam todos os nossos momentos? Em que relgio se guardariam nossos tempos passados juntos? Em que prateleiras ficariam os albuns de fotografia? Em que limbo permaneceriam nossos sonhos ainda no realizados?

9:

I:

Mulher olhando-se no espelho do banheiro.

VO:

A frieza de sua presena, a indiferena de seu olhar, a insensibilidade de seus gestos. Tudo isso me faz sentir solitria. Como ainda consigo ter o medo de, sem ti, ficar ainda mais solitria?

10:

I:

Mulher caminhando para o quarto e parando em frente a um quadro com uma pintura com aspecto infantil.

11:

I:

Plano fechado no quadro

VO:

Num rompante quase pr reflexivo, comeo a especular se maior solido no seria a do ser que se ausenta, que se defende, que se fecha, que se recusa a participar da vida humana?

12:

I:

Plano fechado em algum aspecto particular do quadro

VO:

No seria necessrio que eu me entregasse ao acaso e tudo o que este sugere de eterno para que eu pudesse, de fato, sentir-me frente a frente novamente com isso que chamam modestamente de a vida ?

13:

I:

Plano fechado em algum outro aspecto particular do quadro

VO:

Sair rua, seguir os signos da noite, deixar que ocorre o que tem de ocorrer, buscar inventar paixes novas.

14:

I:

Plano fechado em algum outro aspecto particular do quadro.

VO:

Unir-me ao movimento de tudo o que foge, tudo o que geme, tudo o que rola, tudo o que canta, tudo o que sopra.

15:

I: Plano fechado em algum outro aspecto particular do quadro.

VO:

Beber a taa do esquecimento onde possa resplandecer a luz, ressoar a poesia, fervilhar a vida, vibrar a msica. Onde uma paixo possa posar diante de meus olhos, onde seja encontrado o eterno no efmero.

16:

I:

Plano fechado de algum desenho de um vestido que sai do plano puxado por algum.

17:

I:

Mulher vestindo o vestido.

VO:

Vou para alm de onde esto toda as promessas, para que o meu gozo encha os mares e enterre todas as florestas da solido.

18:

I:

Mulher, j com o vestido, indo em direo a uma gaiola, abrindo para o passarinho sair e jogando a aliana dentro.

VO:

Sei que o que me espera so alegrias de tambores, montanhas de plstico e doces campos de aucar, enquanto passros brincam na dana dos meus cabelos.

19:

I:

Mulher jogando uma carta sobre a mesa e saindo pela porta.