RUSSEL. Introdução de História da Bruxaria

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  • 8/6/2019 RUSSEL. Introduo de Histria da Bruxaria

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    J B. R

    B A

    HISTRIADA

    BRUXARIA

    T

    C W L

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    Para Ky Russell e Michael Thomas.E para Anastsia

    Copyright Jeffrey B. Russell & Brooks Alexander, 2007Copyright Editora Aleph, 2008

    (edio em lngua portuguesa para o Brasil)

    TTULO ORIGINAL: A new history of witchcraftTRADUO: lvaro Cabral (captulos 1 a 8)

    William Lagos (Introduo, Prefcio e captulos 9 a 10)CAPA: Thiago Ventura e Luiza Franco

    REVISO TCNICA: Dbora Dutra VieiraREVISO: Hebe Ester Lucas

    PROJETO GRFICO: Guilherme Xavier/Delfin

    EDITORAO: DelfinCOORDENAO EDITORIAL: Dbora Dutra VieiraEDITOR RESPONSVEL: Adriano Fromer Piazzi

    Ilustrao p. 2:Bruxos no Ar, de Goya, c. 1794-5. Ilustra os pretensos poderes de levitao dos bruxos. Os chapus cnicos, tambm usadospara identificar os hereges na Idade Mdia, devem ter suas origens no simbolismo do chifre de poder ou da fertilidade.

    Todos os direitos reservados. Proibida a reproduo, no todo ou em parte, atravs de quaisquer meios.Publicado mediante acordo com Thames & Hudson Ltd, London.

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Russell. Jeffrey B.Histria da Bruxaria / Jeffrey B. Russell & Brooks Alexander ; traduo lvaro Cabral, William Lagos.

    So Paulo : Aleph, 2008.

    Ttulo original: A new history of witchcraft.BibliografiaISBN 978-85-7657-044-8

    1. Bruxaria - Histria I. Alexander, Brooks. II. Ttulo

    08-00109 CDD-133.4309

    ndices para catlogo sistemtico:

    1. Bruxaria : Histria 133.4309

    EDITORA ALEPHRua Dr. Luiz Migliano, 1110 Cj. 30105711-900 So Paulo SP Brasil

    Tel.: [55 11] 3743-3202Fax: [55 11] 3743-3263

    www.editoraaleph.com.br

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    PREFCIO

    Na Galcia espanhola costuma-se dizer uma frase popular:yo no creo en meigas, pe-

    ro hayas: eu no creio em bruxas, mas elas existem! Quer se acredite ou no nos pode-

    res da bruxaria, tem que se acreditar na existncia de bruxas. Conheo muitas pessoal-

    mente. Este livro uma edio revista deA history of witchcraft, publicado pela ames

    & Hudson em 1980. Inclui um novo prefcio, uma nova introduo, dois captulos com-

    pletamente novos (escritos por meu colaborador, Brooks Alexander) que atualizam a

    histria da bruxaria moderna; uma concluso revisada [o Captulo 11] e uma bibliogra-

    fia completamente atualizada. Em muitos sentidos, um novo livro.

    Gostaria de agradecer a todos os que trabalharam comigo no livro original, espe-

    cialmente minha falecida esposa, Diana M. Russell. Ofereo com alegria um agradeci-mento especial a nosso editor, Jamie Camplin, cujo contnuo interesse no livro originou

    a nova edio. Agradeo, tambm, a minha esposa, Pamela C. Russell, que trabalhou

    comigo na rea da bruxaria histrica durante muitos anos e, naturalmente, a Brooks

    Alexander, cujo conhecimento da bruxaria moderna tornou possvel este novo livro.

    J B. R

    Como a prpria bruxaria moderna, esta apresentao uma colagem das contribui-

    es de muitas pessoas entre as quais a dos prprios bruxos no a menos importante.

    Eu conheci, entrevistei e conversei com um grande nmero de bruxos ao longo dos anos

    e seus generosos conselhos, insights e explicaes pacientes foram indispensveis para a

    criao deste manuscrito. Tenho uma dvida toda especial para com Don Frew, um altosacerdote wiccano, cuja acessibilidade incansvel facilitou muito minha pesquisa.

    Tambm devo gratido aos bruxos de mentalidade ecumnica do CoG (Covenant of the

    Goddess), que consistentemente lutaram (algumas vezes contra a resistncia de mem-

    bros de sua prpria comunidade), a fim de tornar sua religio mais amplamente conhe-

    cida e compreendida pelo pblico em geral; dentre estes, envio meus agradecimentos

    especiais a Anna Korn, Alison Harlow, Jennifer Gibbons, Gus diZerega e Diana Paxson

    bruxos cuja colaborao e amizade pessoal me abriram amplos caminhos de pesquisa

    e compreenso que, de outro modo, teriam permanecido desconhecidos para mim.

    Minha esposa, Victoria, e minhas filhas, Leslie e Anastasia, foram uma profunda

    fonte de apoio e encorajamento durante este projeto, dando-me fora quando encon-

    trei dificuldades e sendo uma defesa contra o desespero. Finalmente, quero agradecerao homem de ampla viso e profundidade de conhecimento, o criador inicial deste no-

    tvel trabalho, Jeffrey Russell, que nos deixou um legado definitivo sobre o assunto.

    Sinto-me honrado, por isso, em participar desta edio revista de seu livro.

    B A

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    INTRODUO

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    Se voc perguntar a seus conhecidos o que uma bruxa, provavelmente eles lhe diro

    que bruxas no existem. Bruxas, afirmaro eles, so personagens imaginrios, representados

    como velhas horrorosas, com verrugas no nariz, chapus compridos e pretos em formato de

    cone, montadas em cabos de vassoura, que criam gatos pretos e do gargalhadas malignas,

    bastante parecidas com cacarejos. A Rainha M de A Branca de Neve de Walt Disney, o de-

    sempenho de Margaret Hamilton como a Bruxa Malvada em O Mgico de Oze, por trs de-

    las, uma longa tradio artstica que se estende do sculo XIII a Goya, fixaram essa imagem

    em nossas mentes. Provavelmente, nenhuma bruxa, em tempo algum, jamais tenha tido as

    caractersticas desse esteretipo.

    Todavia, bruxas existem realmente. De fato, a bruxaria considerada como uma religiode pleno direito por numerosas instituies, inclusive as foras armadas e o sistema legal dos

    Estados Unidos. Dentre as bruxas que conhecemos, nenhuma correspondeu jamais a esse

    esteretipo, exceto talvez em festas fantasia.

    Outros podem dizer que bruxa uma pessoa que tem poderes psquicos. verdade

    que muitas bruxas afirmam ter poderes psquicos, mas isso no prova se de fato elas os pos-

    suem ou no, nem se a simples posse de tais poderes transformaria uma pessoa em bruxa.

    Existem muitos outros elementos para se caracterizar uma bruxa. Algumas pessoas podem

    imaginar vagamente que bruxas praticam alguma coisa parecida com vodu. Isso sinal de

    que tais pessoas interpretam mal tanto a bruxaria como o vodu. O vodu uma religio que

    combina o cristianismo com o paganismo africano, e seus rituais so praticados como um

    meio de proteo contra a bruxaria.H respostas mais acuradas e teis para a pergunta que se coloca no ttulo desta intro-

    duo: (1) bruxa o mesmo que feiticeira: esta a abordagem antropolgica; (2) a bruxa

    adora o Diabo: esta a abordagem histrica para a bruxaria europia; (3) a bruxa reverencia

    deuses e deusas e pratica a magia para boas causas: este o enfoque adotado pela maior par-

    te dos bruxos modernos. Cada um desses pontos de vista pode ser justificado.

    Algum que pretenda mergulhar mais fundo nessa questo encontrar muito pouca aju-

    da na maioria dos inmeros livros populares oferecidos nas sees de ocultismo das livra-

    rias. Recentemente, so muitos os trabalhos que se dedicam ao tar, astrologia, satanismo,

    abertura de canais (psicografia), mediunidade, cristais, tbua Ouija, quiromancia, extrater-

    restres, drogas psicodlicas e tambm bruxaria. Bruxaria e ocultismo no so a mesma

    coisa, e muitos bruxos se esforam ao mximo para dissociar sua imagem e suas prticas dequalquer forma de ocultismo. Por outro lado, hoje, j h muitos livros que discutem seria-

    mente o assunto, e seus ttulos esto na bibliografia deste livro.

    O equvoco mais comum a respeito da bruxaria a concepo de que bruxas no exis-

    tem. Stephen Jay Gould, o grande paleontlogo e ensasta, continuamente deplorou a ten-

    dncia humana dicotomia por exemplo, a de se satisfazer em receber um simples sim

    ou no como resposta , bloqueando, assim, o caminho para a obteno de respostas

    mais profundas. A existncia ou no de bruxas est intimamente relacionada definio

    O

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    Histria da bruxaria10

    Ilustrao marginal para o

    livro Le Champion des

    dames, de Martin Le Franc

    (cerca de 1451). Esse um

    dos primeiros desenhos de

    bruxas na Europa medieval.

    Elas so representadas

    cavalgando uma vassoura e

    um basto pelos ares.

    adotada para caracteriz-las. Est a a justificativa principal

    deste livro.

    Uma srie de enganos nessas muitas definies deve ser

    mencionada antes de seguirmos em frente. A noo de que

    o curandeiro bruxo um deles. O curandeiro [witch-doc-

    tor] pratica a magia, mas sua funo justamente a de com-

    bateras ameaas ou os efeitos da bruxaria. Outra idia mui-

    to comum, mas igualmente errnea, a de que a bruxaria

    igual em qualquer parte do mundo. De fato, existem gran-

    des e profundas variaes entre a bruxaria das diversas cul-

    turas. Como demonstraremos mais adiante, existe, por

    exemplo, uma grande diferena histrica entre a bruxaria

    europia e a das outras culturas. Outra afirmao incorretaque se faz sobre o assunto que a possesso est relacionada

    com a bruxaria. A possesso um ataque interno de maus

    espritos sobre um indivduo, uma invaso da psique; j a

    obsesso um ataque externo e fsico perpetrado por tais

    espritos malignos. Em nenhum dos casos a vtima realiza

    um pacto voluntrio com o esprito maligno. Na chamada

    bruxaria diablica das pocas da Renascena e da Reforma

    europias, por outro lado, a chamada bruxa voluntariamen-

    te convocava o mau esprito por meio de invocaes, dentre

    outras formas. Quase todos os bruxos modernos condenam

    totalmente esse tipo de prtica.Outra concepo errnea a de que as bruxas praticam

    a missa negra. A missa negra desconhecida na histria da

    bruxaria europia e certamente no faz parte do repertrio

    dos bruxos modernos. A nica ocasio em que a celebrao

    da missa negra foi historicamente registrada foi na corte do

    rei francs Louis XIV, e mesmo assim como uma espcie de

    stira grosseira do catolicismo. Alguns satanistas modernos

    celebram a missa negra mais ou menos pelas mesmas ra-

    zes, mas o satanismo no tem absolutamente nada a ver

    com a bruxaria moderna.

    Ainda mais uma idia equivocada, mas amplamente di-fundida, a de que a bruxaria um fenmeno caracterstico

    da Idade Mdia. Bem ao contrrio, as acusaes de bruxaria

    diablica somente emergiram bem no final da Idade Mdia.

    As grandes perseguies s bruxas ocorreram durante a

    Renascena, a Reforma e o sculo XVII. A afirmao de que

    bruxas so mulheres velhas igualmente uma distoro da

    verdade e um exagero leviano. Tanto no passado como no

    A Rainha M do Oeste, do

    filme O Mgico de Oz (1939).

    Vestida de preto, usando um

    chapu cnico e ameaando

    uma criana, a mulher velha e

    feia o esteretipo da bruxa.

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    presente, muitos homens praticaram a bruxaria, alm do que muitas bruxas eram bastante

    jovens muitas delas eram at crianas.

    A Inquisio foi a responsvel pela caa s bruxas mais uma afirmao cujo contedo

    , no mximo, uma meia-verdade. A maioria das perseguies s bruxas foi realizada local-

    mente e dirigida tambm por autoridades civis (alm das eclesisticas) e que se encontra-

    vam, usualmente, nos escales mdios. Gradualmente, a partir do sculo XVI, medida que

    as Inquisies (nunca houve uma nica Inquisio, unificada) foram se formalizando, tam-

    bm se traaram regras estritas de procedimento e de aceitao de evidncias para compro-

    vao das acusaes de bruxaria, o que, por outro lado, levou, freqentemente, revogao

    das condenaes locais e libertao de acusados. O caso semelhante do lado secular.

    Quanto mais o procedimento legal secular ia se tornando formal e centralizado (tal como no

    caso do Parlementde Paris, a corte suprema da Frana setentrional), tanto mais acusados

    eram absolvidos. Em grande extenso, a caa s bruxas adquiriu caractersticas locais, emvez de ser imposta por elites religiosas ou seculares.

    Tomar a bruxaria como algo sem importncia, trivial outro erro, em muitos sentidos.

    Durante as perseguies s bruxas, entre 1450 e 1750, aproximadamente 110 mil pessoas

    foram torturadas, sob a acusao de bruxaria, sendo que 40 mil a 60 mil delas foram execu-

    tadas. Este fato cruel certamente no trivial. Alm disso, o nmero de bruxas e bruxos mo-

    dernos vem crescendo enormemente, desde a dcada de 1960, e a bruxaria, hoje, deve ser

    tratada como um importante fenmeno religioso. Mais ainda, as crenas em bruxas tiveram

    grandes efeitos psquicos e sociais, afetando um nmero significativo de culturas durante

    longos perodos de tempo. Atualmente, antroplogos, psiclogos e historiadores tratam a

    bruxaria como assunto srio, conforme se observa pelo aumento dos livros dedicados ao as-

    sunto, desde a primeira edio deste livro, datada de 1980.Mas, enfim, o que uma bruxa? Uma das respostas pode ser obtida nas razes semnti-

    cas e no desenvolvimento dos variados termos ligados sua definio. A palavra witch

    [bruxa, em ingls] deriva de wicca (pronuncia-se utcha, que significa bruxo, um prati-

    cante masculino da bruxaria) e de wicce (uitch, que bruxa); ambos os termos perten-

    centes ao ingls antigo (Old English). Os dois substantivos derivam do verbo wiccian (u-

    tchan, que quer dizer jogar um feitio ou lanar um encantamento). Contrariamente s

    crenas de alguns bruxos modernos, a palavra definitivamente no de origem celta e no

    tem a menor relao com o verbo witan (saber) do ingls antigo, nem com qualquer outra

    palavra com o significado de wisdom ou sabedoria. A explicao de que witchcraft [bru-

    xaria] significa a arte dos sbios (craft of the wise) inteiramente falsa.

    A significao do termo warlock, raramente usado hoje, erroneamente determinadocomo bruxo. Warlock deriva das palavras do ingls antigo waer, verdade, e leogan, men-

    tir e, originalmente, significava qualquer traidor ou algum que quebra um juramento. Era

    Goya, Conjuro, c. 1794-5. Goya, ele mesmo um ctico, pintou cenas grotescas de bruxaria com propsitos satricos. Aqui, as

    bruxas estereotipadas esto acompanhadas por familiares, alfinetam imagens e carregam uma cesta com bebs mortos para

    usar em sua orgia canibalstica.

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    aplicado tanto a homens como a mulheres. O termo warlock foi reutilizado na Esccia du-rante os sculos XVI e XVII, sendo ento associado bruxaria diablica. No um termo

    muito til para ns. A palavra witch se aplica a ambos os sexos.

    Wizard [mago ou mgico], diferentemente de witch, realmente deriva da palavra wis

    do ingls mdio, hoje wise [sbio]. A palavra wizard surgiu por volta de 1425, significan-

    do um homem ou mulher de grande saber, os quais, acreditava-se, possuam certos conhe-

    cimentos e poderes extranormais. Durante os sculos XVI e XVII designou um high magi-

    cian [alto mago]. Foi somente a partir de 1825, e raramente, que o termo foi usado como

    sinnimo de bruxo(a).

    Sorcerer deriva da palavra francesa sorcier, do latim vulgar sortiarius, ou adivinho.

    Mas em francs,sorciersignifica tanto feiticeiro como bruxo. A palavra francesa foi intro-

    duzida no ingls durante os sculos XIV e XV, tornando-se de uso corrente durante o scu-lo XVI. Como no francs, a palavra no ingls sempre foi ambivalente: algumas vezes se re-

    fere simples feitiaria, outras vezes bruxaria diablica. Magician [mago] deriva do

    latim magia, proveniente do grego mageia. A palavra grega magos designava originalmente

    os sacerdotes-astrlogos iranianos que acompanharam o exrcito do rei persa Xerxes,

    quando de sua invaso Grcia ( bastante provvel que os reis magos que viajaram para

    visitar o Menino Jesus fossem alguns desses astrlogos). Em ingls, a palavra magic [ma-

    gia] freqentemente implicou um sistema intelectual sofisticado, em oposio s prticas

    Uma bruxa moderna, Sybil

    Leek, com uma bruxinha de

    sua loja de antiguidades.

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    rudes da sorcery [feitiaria]; muitas vezes a denominao inglesa foi high magic [alta

    magia] (veja abaixo).

    Os conceitos ligados a essas palavras tambm precisam de esclarecimento. Um deles o

    de superstio. Bruxaria no necessariamente superstio. Comumente, as pessoas pen-

    sam em superstio como alguma coisa que destoa da viso de mundo predominante em sua

    sociedade e naquele momento histrico. Esta concepo infeliz, porque contribui para o

    confinamento e a inflexibilidade do pensamento. A crena de uma poca a superstio de

    outra; muitas das crenas que vigoram neste sculo XXI podem algum dia vir a ser conside-

    radas supersties. Ser mais til definir superstio como uma crena que no est funda-

    mentada em qualquer viso de mundo coerente. Sem dvida, essa definio a mais prxima

    do significado original da palavra, no sculo XIII, que indicava uma crena ou prtica falsa

    ou irracional. Os catlicos medievais, os antigos egpcios, os dayaks (grupo tnico natural do

    interior da ilha de Bornu) do sculo XX e os bruxos modernos no so necessariamentemais supersticiosos que os leigos ocidentais do sculo XXI. Se voc defende um ponto de

    vista que examinou cuidadosamente e inseriu numa viso de mundo coerente, ento, para

    voc mesmo, essa crena no em absoluto uma superstio, embora ela pudesse ser se fos-

    se sustentada por algum que tivesse uma viso de mundo diferente. Mas aqui necessrio

    ter cuidado, porque, se voc defende uma crena sem convico ou de maneira acrtica e

    no se preocupa em inseri-la adequadamente dentro de uma viso de mundo coerente, en-

    to essa crena se torna uma superstio tambm para voc. O nmero de supersties

    cientficas, religiosas e polticas modernas no , em seu conjunto, menor que o do passado.

    Algumas pessoas so supersticiosas todo o tempo e todas as pessoas se tornam supersticio-

    sas, pelo menos parte do tempo. Sempre que a bruxaria se enquadrar em uma viso coeren-

    te do mundo, no ser uma superstio.O sobrenatural outro conceito que requer reflexo. Freqentemente se pensa que a

    bruxaria envolve poderes sobrenaturais. Mas os limites entre o natural e o sobrenatural vm

    sendo continuamente reajustados. Nesse processo, os cientistas algumas vezes mutilaram a

    busca do conhecimento ao declararem que certos temas no eram adequados a uma inves-

    tigao cientfica. Na realidade, tudo quanto existe deve ser natural, quer a cincia seja capaz

    ou no de demonstrar sua existncia. Se, por exemplo, os anjos ou os extraterrestres

    existirem, eles fazem parte da ordem natural do Universo. Exceto dentro do contexto de um

    sentido tcnico especial demarcado pela teologia crist, o termo sobrenatural demasiado

    vago para permitir uma definio.

    No cientfico um termo um pouco mais til, embora as linhas de demarcao ainda

    sejam imprecisas, porque o que no cientfico em uma rea da cincia em determinadoperodo pode tornar-se cientfico em outro campo e em outra poca. O mais importante de

    tudo que no queremos recair na atual superstio dominante de que as nicas coisas ver-

    dadeiras so aquelas demonstrveis pela cincia. H muitos caminhos para a realidade. No

    necessrio pensar na magia como uma abordagem inferior da cincia. A teoria do sculo

    XVIII de que a humanidade progrediu e evoluiu naturalmente da bruxaria, por meio da re-

    ligio at chegar cincia, embora ainda seja popular entre os polticos e muitos cientistas,

    no mais encarada favoravelmente por grande nmero de eruditos. A monumentalHistory

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    Histria da bruxaria16

    of magic and experimental science1 em oito volumes, escrita no sculo XX por Lynn

    orndike, no recebeu esse nome por acaso. orndike sabia que as origens da cincia se

    encontram na magia (do mesmo modo que na religio) e que a maioria dos grandes cientis-

    tas dos sculos XVI e XVII tambm era formada por magos, noo reforada alguns anos

    mais tarde, ainda no sculo XX, pela obra de Frances Yates, Giordano Bruno and the herme-

    tic tradition [publicada no Brasil com o ttulo Giordano Bruno e a tradio hermtica].2

    Aqui entra o conceito de alta magia oposto simples feitiaria. A base da alta magia a

    crena no kosmos, um universo ordenado e coerente, cujos elementos se acham inter-rela-

    cionados quem colhe uma flor perturba de algum modo a estrela mais distante. Existem

    evidncias cientficas de que isso de fato acontece. Um exemplo disso o famoso Efeito

    Borboleta, em que a perturbao do ar causada pelo bater das asas de uma nica borboleta

    na Frana pode desencadear uma srie de eventos que, eventualmente, vm a provocar um

    tornado no Kansas. Em um universo no qual todas as partes esto inter-relacionadas e afe-tam umas as outras, mesmo remotamente, h um relacionamento entre cada ser humano

    individual e as estrelas, plantas, minerais e outros fenmenos naturais. Essa a crena mgi-

    ca da correspondncia, uma doutrina que foi cuidadosamente elaborada na Europa, desde

    o princpio da Idade Moderna e dentro de padres coerentes e sofisticados. Essa sofisticada

    alta magia, intelectualmente em voga durante o sculo XVII, competiu seriamente, durante

    algumas dcadas, com a cincia fisicista derivada de John Locke e David Hume. Ao longo

    dos sculos que se sucederam, a abordagem fisicista triunfou, devido aos numerosos suces-

    sos de carter prtico que demonstravam, em oposio aos raros resultados que os altos ma-

    gos conseguiam apresentar. Hoje em dia, no comeo do sculo XXI, somente permanecem

    os traos mais simples do sistema da alta magia, tais como os modismos verdadeiramente

    supersticiosos envolvendo a astrologia.Embora suas origens tenham sido comuns, existe realmente uma diferena fundamental

    entre a alta magia e a cincia. A magia no pode ser submetida aos testes da investigao

    emprica ou ser codificada em uma teoria coerente, portanto sua validao problemtica.

    H muitos caminhos para a verdade, alm do cientfico, mas em cada um desses caminhos

    as regras do pensamento crtico devem ser empregadas para testar cada afirmao. Os sofis-

    ticados altos magos do sculo XVII sinceramente tentaram fundar sistemas coerentes, mas

    nenhum deles obteve sucesso nessa empresa, e uma caracterstica infeliz de muitos livros

    modernos que defendem a magia a de realizarem poucas ou nenhuma tentativa nesse sen-

    tido. Seu problema de validao muito mais agudo do que aquele enfrentado no sculo

    XVII. Se algum afirma que fez uma viagem astral ou que viu uma nave espacial intergalc-

    tica ou que foram extraterrestres os construtores das grandes pirmides ou que recebe me-diunicamente um antigo sbio guerreiro, a crena nessa pessoa deve ser suspensa at que as

    evidncias se tornem absolutamente inquestionveis. De fato, em geral, no existe evidncia

    alguma. A magia moderna, como a cincia, busca o conhecimento, mas seus meios de ob-

    teno do conhecimento so, usualmente, incoerentes.

    A alta magia intelectualizada dos primeiros astrlogos e adivinhos modernos no par-

    te integrante da histria da bruxaria. De fato, mesmo durante as grandes perseguies s

    bruxas que ocorreram na Europa, muito poucas pessoas foram acusadas ao mesmo tempo

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    de praticar a magia e a bruxaria. As duas tradies so distintas e j estavam separadas nessa

    poca. No obstante, a bruxaria realmente depende em parte da viso mgica do mundo: de

    que existem relacionamentos ocultos entre todos os elementos do cosmos. Presume-se que

    o poder exercido pelo bruxo ou feiticeiro seja um poder natural obtido pela compreenso do

    bruxo sobre esses relacionamentos ocultos e por causa da habilidade que manifesta em con-

    trol-los.

    Bem diferente dos sistemas sofisticados da alta magia a magia aplicada quase tecnolo-

    gicamente com fins prticos. Essa a baixa magia ou simples feitiaria. A feitiaria uma

    magia automtica: realiza-se determinada ao e com ela obtm-se os resultados correspon-

    dentes. H quem faa bruxaria e outro, tecnologia: um homem fertiliza um campo cortando

    sobre ele a garganta de uma galinha meia-noite; outro busca obter o mesmo resultado es-

    palhando nele esterco de novilho ao pr-do-sol.

    Alguns antroplogos no estabelecem nenhuma distino entre feitiaria e bruxaria.Outros adotam uma diferenciao africana que distingue os magos malficos, que usam ob-

    jetos materiais, tais como ervas e sangue para realizar encantos malignos, e aqueles que pre-

    judicam os outros por meio de uma qualidade inerente e invisvel que possuem (por exem-

    plo, sacudindo uma vara de condo e entoando uma cantilena a fim de matar algum). Os

    mesmos antroplogos atribuem o significado da palavra inglesa sorcerer [feiticeiro] aos

    primeiros e o de witch [bruxo], aos ltimos. A distino vlida, mas a escolha das palavras

    inglesas foi arbitrria.

    A maioria dos historiadores estabelece uma distino entre a bruxaria europia, que era

    uma forma de diabolismo isto , a adorao de espritos malignos e a feitiaria de mbito

    mundial, que no envolve a venerao dos espritos, mas a explorao deles. A palavra ingle-

    sa wicca, que j aparece em um manuscrito do sculo nono, significava originalmente feiti-ceiro; todavia, durante as perseguies s bruxas, passou a ser usada como o sinnimo de

    maleficus, do latim, que significava um bruxo(a) adorador(a) do diabo. Os bruxos modernos

    tm um ponto de vista que difere tanto dos antroplogos, como dos historiadores. Para al-

    guns deles, a bruxaria uma sobrevivncia do antigo paganismo, suprimido durante longos

    sculos pelos cristos. Outros, com maior acurcia, argumentam que criaram uma nova re-

    ligio, chamada neopag. Os bruxos modernos tambm se diferenciam das bruxas histri-

    cas por rejeitarem tanto a crena no Deus como no Diabo cristos. Tambm se distinguem

    dos feiticeiros por adorarem deuses e deusas ou a natureza, ou o kosmos em vez de pra-

    ticarem a baixa magia.

    As definies e respectivas utilizaes desses termos so variadssimas; portanto, neste

    livro daremos nossas prprias definies e o conjunto de suas utilizaes. Feitiaria a ma-gia negra (ou baixa magia) praticada em todo o mundo, quer seja benfica ou malfica, quer

    seja mecnica ou envolva a invocao de espritos. Bruxaria significa tanto a chamada bru-

    xaria diablica da caa s bruxas quanto a moderna bruxaria neopag.

    Mais uma vez, enfatizamos que no existem tradies ou conexes de qualquer tipo entre

    os ditos adoradores do Diabo do perodo da Renascena e da Reforma, e os modernos neopa-

    gos. Entretanto, alguns paralelos so traados entre os bruxos diablicos e as crenas que

    floresceram em outras sociedades: em algumas culturas, acredita-se que bruxos causam pra-

  • 8/6/2019 RUSSEL. Introduo de Histria da Bruxaria

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    I N T R O D U O 19

    Alm dos estudiosos citados na bibliografia deste livro, podemos adiantar alguns dos mais

    influentes nomes, como Wolfgang Behringer, Paul Boyer e Stephen Nissenbaum, Robin

    Briggs, Stuart Clark, Valerie Flint, Richard Kieckhefer, Arthur C. Lehmann, Brian P. Levack,

    H. C. Erik Midelfort, E. William Monter, Edward Peters e Rodney Stark. Na abordagem da

    bruxaria moderna: Margot Adler, Brooks Alexander, James A. Herrick e Aidan Kelly.

    Segundo Boyer e Nissenbaum, os historiadores [] comearam a perceber mais ampla-

    mente o quanto informaes obtidas pelo estudo de pessoas comuns, vivendo em comuni-

    dades comuns, podem contribuir para o esclarecimento das questes histricas mais funda-

    mentais. Eles utilizaram a interao da [desta] histria ordinria e o momento

    extraordinrio [os julgamentos das bruxas de Salem, em 1692] a fim de entender a poca que

    produziu ambos.4

    Qualquer que seja a abordagem, o essencial conservar a mente aberta para evidncias

    que possam, inclusive, modificar nosso ponto de vista, nos mantendo dispostos compreen-so de nossos parceiros de estudos, mesmo quando no concordamos com eles.

    O ressurgimento do interesse sobre a histria da bruxaria, ocorrido nas ltimas quatro

    dcadas, tem sido extraordinrio. Muitas abordagens apresentam valor considervel; mas

    tentar seguir todas elas poderia nublar o ponto central de que a idia de bruxaria se desen-

    volveu ao longo do tempo, e de que esse desenvolvimento perceptvel como um padro

    histrico.

    Esse desenvolvimento comea na feitiaria universal.