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    Resumo:

    Joalheira da linguagem, Hilda Hilst nos desafia com uma obra ora doce comum afago, ora terrvel como um beijo de sangue. assim que somosconfrontados ao primeiro contato com Rtilo Nada. Prosa potica ganhadorado Prmio Jabuti de 1994, fragmentada, composta por uma orquestraodissonante de vozes, Rtilo Nada se aproxima do teatro do absurdo de Ionescoe do teatro da crueldade de Beckett. Este estudo explora os caminhos obscuros/luminosos do texto hilstiano buscando seus atravessamentos com os estudosda Ps-modernidade.

    Palavraschave:Rtilo Nada, ps-modernidade, prosa potica.

    Abstract:

    Hilda Hilst, who is a language jeweller, dares the reader with a work sometimessweet like a caress, or terrible like a blood kiss. So, we stay face to face with RtiloNada, a poetic text, that won the Jabuti Prize, in 1994. Rtilo Nada is afragmentad work, which is compound of a dissonant orchestration of voices,which approaches it to Ionescos absurd theater and to Becketts cruelty theater.This study explores the unknown/shining ways of Hildas Hilst text, looking

    for their intersections into the post-modernity.Keywords: Rtilo Nada; post-modernity; prose-poetic.

    O BEIJO DE SANGUE: A PS-MODERNIDADE DO

    CORPUS HILSTIANO EM RTILO NADA

    Renata Bomfim

    UFES

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    100- RevistaMosaicum, n. 6 - Ago./Dez. 2007

    As palavras de amor trabalham feito um luto.

    Henri Heine

    Certa vez Hilda Hislt disse em entrevista ao Caderno de literatura brasileira:

    Toda a minha fico poesia. No teatro, em tudo, sempre o texto potico, sempre(HILST, 1993, p. 39). O percurso potico hilstiano pode ser conhecido e apreciado apartir da vasta obra deixada por esta escritora, que compreende, aproximadamente,cinqenta anos de produo literria que transita entre os gneros da poesia, da msica,da prosa e da dramaturgia.

    Este ensaio pretende abordar aspectos da ps- modernidade a partir da prosapotica Rtilo Nada, ganhadora do Prmio Jabuti em 1994. Acredito que tais aspectosso fatores importantes, pois fazem com que a obra de Hilda Hilst seja cada vez mais

    lida e conhecida no s no Brasil como em outros pases.Hilda Hislt nasceu em Ja, interior de So Paulo, no dia 21 de abril de 1930.

    considerada, hoje, uma das mais importantes vozes da literatura brasileira contempornea.A crtica literria Nelly Novaes Coelho, no ensaio intitulado Da Poesia descreve a poticahilstiana como sendo obscura/ luminosa e destaca ainda a paixo desmesurada comque a poeta se entrega, desde sempre, ao corpo-a-corpo com a vida. Para Coelho, apoesia de Hilda Hilst ilumina- se contra o pano de fundo da tortuosa/luminosa/efmera vida terrena, que se pressente participe de algo imensurvel e eterno, assumindo

    o papel de buscar Deus nas coisas terrenas (COELHO, 1999, p. 66-71).Rtilo Nada, desde o ttulo, j nos desafia. Insurreto e com uma abstrao

    quase absurda, a prosa potica nos lana num vazio que reverbera o vazio que existedentro de cada um de ns. No Dicionrio eletrnico Houaiss da Lngua Portuguesa 1.0,encontramos a palavra rtilodefinida como um adjetivo que designa luzente, cintilante,cujo brilho chega a ofuscar, j a palavra nada, descrita como coisa nenhuma, entre outrassignificaes, encontramos, verdadeira natureza divina concebida como oposio, [...] diferena outranscendncia absoluta em relao aos seres e a realidade do mundo natural.

    Conforme Terry Eagleton em As Iluses do Ps-modernismo (1998, p. 37), ahistria ps-moderna desconfia de histrias lineares. Assim, Hilda Hilst estrutura Rtilo

    Nadade forma que sua temporalidadesejano linear, Ela subverte o tempo ordinriotumultuando as cenas e as falas, os tempos presente-passado-futuro se misturam,resultando em um mosaico que vai sendo construdo numa relao dialtica com oleitor.

    A linguagem se metamorfoseia e experimenta em crculos e espirais, fluindo

    ora doce com um afago, ora terrvel como um beijo de sangue.Este texto traz variadaspossibilidades de leitura, multifacetado e possui uma polifonia que busca capturar asvozes do mundo. Ele nos apresenta uma orquestrao dissonante, onde diferentes vozese timbres formam um coro que evolui e reproduz o statu quo, como por exemplo, as

    vozes ouvidas por Lcius Kod no velrio de Lucas, as quais, ele no consegue identificar,mas que, aparentemente, so de pessoas estranhas a ele: coitado, o que foi hein? Tdemais branco o homem, olha ali, saiu de um velrio, quem que morreu? Foi o filhodele foi? foi a me? [...] ele est desfigurado, olha, olha (HILST, 1993, p. 14).

    Destas vozes Kod afirma poder ver apenas as caras ptreas, caras granticas,dio e vergonha. Esta passagem da prosa nos instiga a pergunta: estaria este mesmogrupo to sensibilizado se soubesse que ali, um homem chora a morte de seu amante,

    Renata Bomfim

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    namorado de sua filha de 15 anos, que foi induzido ao suicdio pelo pai/av/perverso?

    Hilda Hilst dona de um eu lrico do co, e fazem parte da sua assinaturaa polmica, a ousadia e a inquietude, que culminam numa busca ferrenha por configurarDeus. O narrador hilstiano, implacvel e muitas vezes cruel, nos ameaa com suas

    questes hermticas, filosficas e de alta erudio, como uma esfinge ps-moderna.Em uma escrita onde nada gratuito, onde a palavra cinzelada, Hilda uma artes dalinguagem, percorre as dimenses da lngua, deslocando-se sem cerimnia do eruditopara o chulo, o baixo calo, propositadamente brincando com as sensaes e emoesdo leitor.

    Os personagens Lcius Kod e Lucas experimentam as delcias e as dores dapaixo, o desabrochar do amor, e conhecem o alto preo que deve ser pago pelarealizao amorosa. A partir da fala destes personagens revelam-se facetas e nuanas do

    erotismo do texto hilstiano, que busca um para alm do amor orgnico e fsico dasexualidade, um algo mais profundo, um sentido maior para a existncia, um re-ligare,busca Deus.

    No trecho que se segue, o personagem Lcius Kod descreve poeticamente omomento em que se abre para o amor descobrindo suas contradies:

    [...] Os atos no podem ficar flutuando, fiapos de paina desgarrados daquela casca toconsistente, a casca era firme, abriu-se, o delicado foi se desfazendo, crculos, volutas,

    assim pelos ares, desfazido. Posso deduzir que escapei da casca consistente que euestava encerrado ali, no, que o meu corpo era o fruto da paineira, todo fechado, e neminstante abriu-se. Abriu-se por qu? Porque j era noite para mim e aquele era o meuinstante de maturao e rompimento. Porque fui atingido pela beleza como se umtigre me lanhasse o peito. O salto. O pnico. O que a beleza? Translcida como se omarfim do jade se fizesse carne, translcido Lucas, intacto, luz sobre os degraus ocres decerta escada na eloqncia da tarde. [...] Vejo-o de costas agora, slido, crvel, nada deanglico ou inefvel, e um novo ou talvez um antigo e insuspeitado Lucius irrompe,dois escuros e contraditrios, aguados e leves, violentos e slidos(HILST, p. 16,- Grifos nossos).

    A potncia da escrita hilstiana traduz as inquietudes do nosso tempo e expressas transformaes e as contradies de uma poca que ainda se configura. Terry Eagletondescreve a ps-modernidade como:

    Uma linha de pensamento que questiona as noes clssicas de verdade, razo, identidade

    e objetividade, a noo de progresso ou emancipao universal, os sistemas nicos, as

    grandes narrativas, ou os fundamentos definitivos de explicao. [o mundo torna-se]um contingente gratuito, diverso, instvel, imprevisvel, [...] fenmeno to hbrido que

    qualquer afirmao sobre um aspecto dele, quase com certeza, no se aplicar a outro

    (EAGLETON, 1998, p. 35).

    Rtilo Nadatem uma estrutura literria dinmica: as cenas se entrecruzam, aescrita muitas vezes do tipo telegrfica, que estilhaa as idias, desestruturando-as,

    adiciona-se uma violncia sem precedentes na prosa brasileira, que revela jogos ideolgicose de poder que buscam inviabilizar o dilogo e a expresso das alteridades.

    Entre os personagens da trama destaca-se a figura do banqueiro capitalista,

    O beijo de sangue: a ps-modernidade do corpus hilstiano em Rtilo Nada

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    pai de Lcius Kod. Este personagem j desnudado por Kod no incio da narrativa:[...] Lucas, meu amor, meus 35 anos de vida colados a um indescritvel verdugo,algum Humano e h tantos indescritveis Humanos feitos de fria e desesperana,existindo apenas para nos fazer conhecer o nome da torpeza e da agonia (HILST,1993, p. 13 - Grifos nossos). O discurso deste personagem totalitrio, intolerante erepressor, e o corpo de Lucas, torna-se lugar privilegiado de enunciao, depositriodos desejos deste personagem, de Lcius Kod, e de sua filha de 15 anos:

    Um ilgico de carne e seda, um conflito esculpido em harmonia, luz dorida sobre as

    ancas estreitas, o dorso deslizante e rijo, a nuca sumarenta, omoplatas lisas como a

    superfcie esquecida de um grande lago nas alturas, docilidade e submisso de uma fmea

    enfim subjugada e aos poucos um macho novamente , altivo e austero, enfiando o sexo

    na minha boca viscoso. Cintilante. Pela primeira vez o meu olhar encontrava a juno donojo e da beleza (HILST, 1993 p. 22).

    O corpo de Lucas a representao da alteridade, ele o outro, o poeta,Orfeu ps-moderno, encantado/ encantando com seu corpo lrico/potico,impiedosamente despedaado pelas bacantes. assim tambm o corpus literrio deRtilo Nada como um todo,fragmentado, sacrificado, prenhe de transgresso e denunciada opresso social amorosa, familiar, profissional, etc.

    Roland Barthes levanta a questo: como fazer que o corpo fale?. Ele recorrea um meio tambm utilizado por Bataille, que julga interessante do ponto de vista dotrabalho atual sobre o texto, articular o corpo no no discurso, mas na lngua (BARTHES,2004, p. 306).

    Hilda Hilst faz isso em profuso, em Rtilo Nadao corpo parte importanteda trama, desdobrando-se em metforas at ao final: pesadelos da carne, o adoradocorpo morto de Lucas, que mesmo morto no se cala, e conta, e denuncia, e fala,transgresso esta possvel apenas na literatura. A morte, um personagem que rondacomo uma sombra faminta, a escura e finssima senhora, grande ventre sem decoro[...] recebendo o mundo, migalhas, excrementos, enfim, todos se alimentam do corpo.

    Em Rtilo Nada h uma busca por respostas para a esquizofrenia ps-moderna, a busca pela unidade mtica, pela completude. Percebemos este aspecto narelao entre os personagens Lcius Kod e Lucas:

    Quem s, Lucas? Inteirissimo poeta, de fiel construo, de realeza at, severo [...] quandovi que no sabia da tua identidade, eras aquele que me mostrava o poema?

    Muros escuros, tmidos

    Escorpies de seda

    No acanhado da pedra.

    [...] Ou eras o outrono quase escuro do quarto. Tua macia rouquido de uma sonhadamulher, s que no eras uma mulher, eras o meu eu pensando em muitos homens e emmuitas mulheres (HILST, 1993 p. 22 - Grifos nossos).

    Coellho nos diz que na escrita hilstiana a experincia de comunho com oOutro, a partir do corpo, atinge razes metafsicas do Ser e o faz sentir partcipe datotalidade (COELHO, 1999, p. 74). Terry Eagleton, por sua vez, destacou o corpo

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    como lugar privilegiado de enunciao na ps-modernidade ao afirmar que

    O prazer voltou com fora total para infestar um radicalismo cronicamente puritano, [...] Ocorpo- um tema to bvio e inoportuno para ser ignorado sem a menor cerimnia,durante sculos abalou as estruturas de um discurso racionalista enxge, e est no mento,em vias de tornar-se o maior fetiche de todos (EAGLETON, 1998, p. 34).

    Em Rtilo Nadaa questo da alteridade repensada, o oprimido no umfora, um excludo; pea importante do jogo que atua com fora, no havendo lugarpara a figura do coitado.

    Dentre os temas que perpassam esta prosa potica encontramos o amor, ohomo erotismo, o martrio, a morte, o encantamento, a busca por Deus, muitos deles,recorrentes tambm em outras obras da escritora. Amor e erotismo, em especial, do

    tnica a Rtilo Nada, e o instinto sexual no corresponde apenas a uma funo orgnicaespecfica, [...] mas a algo vasto e profundo, [diverso] do que se entende vulgarmentepor funo sexual (COELHO,1999, p. 74). Para Hilda Hist, O ertico, quase umasantidade! (HILST, 1999, p. 31).

    Octvio Paz examina a proximidade entre o erotismo e a poesia, dizendo queo primeiro uma potica corporal, e a segunda uma ertica verbal. Ambos feitos deuma oposio complementar. Para Paz a linguagem composta de sons que emitemsentido, um trao, uma materialidade que d a idia de corpo e possibilita que sejam

    nomeadas sensaes, que so o que h de mais fugaz e evanescente no indivduo, e oerotismo sexualidade transfigurada em metfora (PAZ, 1994, p. 12 - Grifo nosso).

    A metfora um artefato literrio muito utilizado por Hilda Hilst, elas soespecialmente luxuosas e cinzeladas com um preciosismo barroco: gritos finos demarfim, musgos finos pendendo dos abismos, areia- anil, ces de gelo,escorpies de seda. As metforas hilstianas tambmpossibilitam que o inominvelseja nomeado, dito, muitas vezes gritado:

    Os sentimentos vastos no tm nome. Perdas, deslumbramentos, catstrofes do esprito,pesadelos da carne, os sentimentos vastos no tem boca, fundo de soturnez, mudo desvario,escuros enigmas habitados de vida mas sem sons, assim eu neste instante diante do teu corpomorto. Inventar palavras, quebr-las, recomp-las, ajustar- me digno diante de tanta ferida, teriasido preciso, Lucas meu amor [...] (HILST, p. 13 - Grifos nossos).

    Octvio Paz declara que o significado da metfora ertica ambguo eplural, dizendo coisas diferentes, mas que em todas elas aparecem duas palavras:

    prazer e morte, para este autor o amor se apresenta na maioria das vezes como umaruptura, uma violao da ordem social, desafiando costumes e instituies dasociedade (PAZ, 1994, 19-103), tal aspecto pode ser verificado em dilogos entreLcius Kod e seu pai:

    [...] ento, anos de decncia e de luta por gua abaixo e eu um banqueiro, com que caravoc acha que eu vou aparecer diante dos meus amigos, ou voc imagina que ningumsabia, crpula, canalha, tua srdida ligao, e esse moleque bonito era o namoradinho de

    minha neta, ento vocs combinaram seus crpulas, aquele crapulazinha namorou minha netapara ficar perto de voc.Gosta de cu seu canalha? Gosta de merda? Fez-se tambm demulherzinha com o moo macho? Ele s pode ter sido teu macho porque teve a

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    decncia de se dar um tiro na cabea, mate-se tambm seu desgraado mate-se. (HILST,1993, p. 13-4 - Grifo nosso).

    Risadas. Meu pai: pederastas, vadios e vadias, escritorezinhos de merda,articulistas do meu caralho, voc defende esta corja de apartados [...] viciosos, assassinosmiserveis e no me venha com discursos, com esse tipo de sensibilidade cretina, ou

    voc pensa que a ordem se faz com choramingas, com coraezinhos partidos, comtremeliques como que voc pensa que se faz uma fortuna, uma empresa de porte, umbanco? Trabalho e sagacidade (HILST, 1993, p.19).

    Lcius Kod, encontra em Lucas, Eros, a expresso de uma subjetividade austera.Lucas um jovem de 20 anos, que estuda histria e poeta. Ele escreve sobre muros,Lucas pe os muros em xeque, por meio da poesia. Entendamos estes muros como

    uma das metforas centrais de Rtilo Nada, que desdobra- se ao final do conto com umpoema deixado por Lucas. Otvio Paz alude poesia como sendo

    o testemunho dos sentidos. Testemunho verdico: suas imagens so palpveis, visveise audveis. [...] feita de palavras enlaadas, que permitem reflexos, vislumbres e nuances:[...]A poesia nos tocar o impalpvel e escutar a mar do silncio cobrindo uma paisagemdevastada pela insnia. O testemunho potico nos revela outro mundo dentro deste, o mundo outroque este mundo.Os sentidos sem perder seus poderes, convertem-se em servidores daimaginao e nos fazem ouvir o inaudvel e ver o imperceptvel (PAZ, 1994, p. 11 - Grifo

    nosso).

    Lucas uma ameaa ao socialmente institudo, no caso, o capital simblico dehonra da famlia convencional, ele pe em xeque tambm, o prprio Lcius Kod, ofilho do banqueiro capitalista, o herdeiro, que em inmeras passagens do texto humilhado pelo pai por rejeitar um modo de vida pautado na hipocrisia e na mentira, epor ousar ser ele mesmo.

    O banqueiro, pai de Lcius Kod, o outro lado da moeda, no suporta vero filho inteiro livre, emancipado. Inveja-lhe o estado de liberdade de alma, livre peloamor, contraditoriamente preso numa armadilha jamais pensada, apaixonado poroutro homem. Esta figura emblemtica e autoritria, julga-se dona do poder, podendoarbitrar na vida do filho no apenas no mbito financeiro, mas tambm no afetivo-emocional. Este patriarca uma figura contraditria, mas, ao final da narrativa, quandoa sua mscara cai, podemos ver o que est por trs, o mais miservel e pobre dosindivduos, cuja nica relao possvel a de dominao e aniquilamento do outro, seudinheiro no consegue comprar o amor.

    Otvio Paz define este tipo como libertino, segundo este autor, na libertinagem,a relao ertica est totalmente desvinculada do religioso, este tipo afirma o prazercomo nico fim diante de qualquer outro valor como religio e tica, assim:

    O Libertino necessita sempre do outro e nisto consiste sua condenao, dependede seu objeto e escravo de sua vitima.

    A relao ertico-ideal implica , por parte do libertino, um poder ilimitado sobre o

    objeto ertico, unido a uma indiferena igualmente sem limites sobre a sua sorte, porparte do objeto- ertico uma complacncia total diante dos desejos do seu senhor(1994, p. 25- 26).

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    Para o libertino, importante saber que o corpo que toca uma sensibilidadee uma vontade que sofre. Estabelece-se um jogo entre vitima e algoz de prazer e de dor.No cerne da libertinagem est o sadomasoquismo que, contraditoriamente, nega a

    soberania do libertino por tornar este dependente de seu objeto, e nega tambm apassividade da vtima. Paz nos esclarece que [...] A libertinagem contraditria: buscasimultaneamente a destruio e a ressurreio do outro (PAZ, 1994, p. 26).

    O jogo ertico desenrola-se: o pai de Lcius Kod contrata dois capangaspara espancarem Lucas. Estes personagens, ritualisticamente e com requintes decrueldade, tambm o violentam, deixando Lucas muito ferido. E o corpo da alteridade,representado pelo corpo de Lucas, revela a verdade ao deixar um bilhete para LciusKod:

    Lcius,Os dois homens me tomaram como duas fomes, duas mandbulas.Um claro de dentes.Sorriam enquanto tiravam as camisas.vagarosamente desabotoaram os botes. Cheguei asorrirporque os gestos eram como que ensaiados, lentos... lentos... idnticos. Depois oscintos escuros, as fivelas de metal. Depois as calas. Imagine, dobraram as calas, acertaramos vincos, colocaram as calas no espaldar da poltrona. Pensei: eles esto brincando. Edisse: vocs esto brincando. Sorriram. O olhar era afvel, meus pulsos amarrados atrsdas costas. [...] Vocs s podem estar brincando [eles responderam] pode chamar debrincadeira se quiser garoto (HILST, 1993, p. 23 - Grifo nosso).

    Quando os capangas foram embora, o banqueiro passou para ver o servio,o texto nos revela que o pai de Lcius Kod desliza o dedo ao longo da espinha deLucas e lhe diz: vai ter tudo comigo , moo. Afaste-se de meu filho, e depois, volta afalar com Lucas: posso te tocar menino? (HILST, 1993, p. 24). Lucas suspende acabea para ver e os lbios do banqueiro tremem. Rtilo Nada tem um desfechoexcepcional, o pai de Kod sela com um beijo na boca, um pacto de morte com o seuobjeto de desejo:

    Ele beijou minha boca ensangentada.Eu sorri. De pena da volpia.[...] At um dia. Nanoite ou na luz. No devo sobreviver a mim mesmo. Sabes porque ? Parodiando aqueleoutro: tudo o que humano me foi estranho.

    Lucas (HILST, 1999, p. 25- 8 - Grifo nosso).

    Quanto a Lucas escolheu a morte, ele comete suicdio com uma arma deixada

    pelo banqueiro em cima da mesa. Neste jogo no houve ganhador, segundo OtvioPaz, como castigo, o parceiro [Lucas] no ressuscita como corpo, mas como sombra,o libertino transforma em sombras tudo o que toca, e ele prprio se torna sombraentre as sombras (1994, p. 26).

    Coelho acrescenta que Hilda Hilst rompe o circulo mgico de seu prprioeu, [...] para lanar-se na voragem do eu- outro, em face do enigma (da existncia, damorte, de Deus, da sexualidade, da finitude , da eternidade...). Para esta crtica, aoabordar o tema da morte, a poeta se entrega a um desafiante dilogo, [a morte ]

    enfrentada cara a cara [permitindo que a poeta entre] na intimidade dessa temerosafigura, revelando-a essencialmente participante da vida. (COELHO, 1999, p. 73- 75).

    O beijo de sangue: a ps-modernidade do corpus hilstiano em Rtilo Nada

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    Os muros, sobre os quais Lucas escreve, tema que nos leva a refletiracerca da grande misria humana chamada preconceito, e os emparedamentos dasalteridades que impedem o contato, as trocas simblicas, a aproximao, promovendoo isolamento, a dor e a morte. E o poeta nos apresentado como quele capaz deextravasar, de romper, transbordar e de sair dos confinamentos. Rtilo Nada terminacom um poema sobre muros, escrito por Lucas:

    [...]

    Muros longnquos

    Na polidura esgarada dos sonhos

    To altos. Fulgindo iluminuras.

    Muros de como eu te amei: Brindisi.

    Altamura.[...]

    Muros prisioneiros do seu prprio murar.

    Campos de morte. Muros de medo.

    Muros silvestres, de ramagens e ninhos:

    Os meus muros da infncia. Esfacelados.

    Muros de gua. Escuros. Tua palavra:

    Um mosaico de vidro sobre o rosto altivo.

    Devo me permitir te repensar?[...]

    (HILST, 1993, p. 27)

    Paz nos diz que jogando conforme as regras dos opostos complementares,um dos acordes da unio amorosa a separao. Este autor salienta que estarapaixonado no nos exime de sentir dor, medo, que este sentimento no nos protege,

    ao contrrio, nos expe, nos abre para o outro, nos diz que qualquer amor, feito detempo, e nenhum amante pode evitar a grande calamidade: [...] a morte (PAZ,1994,p. 188).

    O dilogo em Rtilo Nada uma caracterstica que abre espao para o teatral,e ao enunciar o texto, como defende Roland Barthes em O rumor da lngua(2004, p. 40),o leitor toma parte na trama como personagem, sendo convidado a captar amultiplicidade de sentidos, dos pontos de vista, das estruturas, como um espao estendidofora das leis que proscrevem a prpria contradio. Voyers, assistimos extasiados/

    assombrados ao espetculo, onde o narrador hilstiano domina a cena.Leo Gilmar Ribeiro no ensaio intitulado Da Fico, aproxima a teatralidade da

    obra hilstiana com o teatro do absurdo, de Eugene Ionesco, e Samuel Beckett do teatro dacrueldade, por espelharem questes comuns no campo do humano, revelando mazelasda uma sociedade hipcrita, mascarada (RIBEIRO, 1999, p. 80).

    Terry Eagleton afirma que o globo est mesmo perdendo funestamente aidentidade (1998, p. 20), pensamento ratificado por Stuart Hall, que afirma que odeclnio das velhas identidades que, durante muito tempo estabilizaram o indivduo

    socialmente esto ruindo, sendo fragmentadas, descentradas e deslocadas, dandoorigem a um sujeito de identidades mltiplas e gerando uma crise de identidade

    Renata Bomfim

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    (HALL, 1998, p. 14). Percebemos estas crises na estrutura estilhaada e convulsiva dotexto e em especial nos personagens de Rtilo Nada.

    O termo crise vem do grego krsis e significa ao ou faculdade de distinguir, deciso(HOUAISS, 2001). Esta definio encaixa-se bem nas personagens Lucius Kod e Lucas,

    que a despeito do que pudesse acontecer, fizeram suas escolhas, buscando transpor osmuros do preconceito, e romper com a dominao de um pai tirano, que bem umarepresentao do sistema patriarcal vigente.

    Embora haja todo um discurso de igualdade, percebemos que vivemos umapoca to excludente quanto s anteriores, percebemos formas de subjetividade sedegladiando, e que a alardeada abertura para o outro que nos aponta um caminho demaior justia e respeito sociais, compartilha como concebeu Hilda, de momentos rtilosde esperana e neutro, nulos de desnimo e indiferena (EAGLETON, 1998, p. 43).

    Em considerao ao que foi explicitado neste estudo, podemos concluir quea obra de Hilda Hilst est em total consonncia os novos tempos, pois ela desnuda osujeito contemporneo cindido, dividido entre o desejo e a tradio e em busca de simesmo e de suas verdades. Outra razo o fato de esta no ser uma obra unilateral. Elaacolhe as contradies e oposies possibilitando que num mesmo universo coexistamluz e sombra, amor e dio, sagrado e profano, vida e morte, plos necessrios ao fiatlux. Afinal, positivo e negativo, no assim que o fenmeno da luz se d? E rtila,HildaHilst j ultrapassou as fronteiras da lngua portuguesa, suas obras j foram traduzidas

    para o francs , o ingls, o espanhol, o alemo, o italiano. Pelo visto, nadaser empecilhopara que continue, cada vez mais, conquistando novos espaos.

    Recebido e aprovado para publicao em outubro de 2007.

    Referncias

    BARTHES, Roland. O rumor da lngua. Traduo de Mrio laranjeira;reviso de traduoAndra Stahel M. da Silva. 2. ed. So Paulo: Martins Fontes, 2004.

    COELHO, Nelly Novaes. Da poesia. Cadernos de literatura brasileira. So Paulo, n. 8, out.de 1999.

    EAGLETON, Terry.As iluses do ps-modernismo. Traduo de Elisabeth Barbosa. Rio deJaneiro: Jorge Zahar Editora, 1998.

    HALL, Stuart.A identidade cultural na ps-modernidade. 2. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 1998.

    HARVEY, David. Condio ps-moderna. Traduo de Adail Ubirajara Sobral. Rio de

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