Árvore e Folha · que há armadilhas para os incautos e calabouços para os demasiado audazes....
Transcript of Árvore e Folha · que há armadilhas para os incautos e calabouços para os demasiado audazes....
E
Notaintrodutória
STASduascoisas,SobrecontosdefadasaeFolha,deMigalhab,estãoaquireimpressasepublicadasemconjunto.Nãosãomaisfáceisdeobter,
masaindapodemserconsideradasinteressantes,especialmenteporquemapreciouOSenhordosAnéis.Apesardeumaserum“ensaio”eaoutraum“conto”,estãorelacionadas:pelossímbolosdaÁrvoreedaFolhaepelofatodeambassereferirem,demaneirasdiferentes,aoqueoensaiochamade“subcriação”.Tambémforamescritasnomesmoperíodo(1938-1939)emqueOSenhordosAnéiscomeçavaasedesenvolvereaapresentarperspectivasdetrabalhoeexploraçãonumaterraaindadesconhecida,tãoassustadoraparamimquantoparaoshobbits.MaisoumenosnaquelaépocahavíamoschegadoaBri,eeutinhatãopoucaideiaquantoelesdoqueforafeitodeGandalfoudequemeraPassolargo;eeucomeçaraadesacreditardequesobreviveriaparadescobrir.
OensaiofoioriginalmentecompostocomoConferênciaAndrewLang,eemformamaisbrevefoiapresentadonaUniversidadedeStAndrews,em19381.Acabousendopublicado,compequenosacréscimos,comoumdositensdeEssayspresentedtoCharlesWilliams[EnsaiosapresentadosaCharlesWilliams],OxfordUniversityPress,1947,atualmenteesgotado.Aquiéreproduzidocomalgumasalteraçõesmenores.
Ocontosófoipublicadoem1947(DublinReview).Desdequechegou,rapidamente,àformamanuscrita,numdiaemqueacordeijácomelenacabeça,nãosofreualterações.Umadesuasfontesfoiumálamodegrandesgalhos,queeuenxergavamesmodeitadonacama.Derepentefoipodadoemutiladopeloproprietário,nãoseiporquê.Agorafoiderrubado,puniçãomenosbárbaraporeventuaiscrimesdequepossatersidoacusado,comoporexemploodesergrandeeestarvivo.Nãoachoquetivessealgumamigooualguémqueopranteasse,anãosereueumpardecorujas.
J.R.R.TOLKIEN
aNooriginalOnFairy-Stories.(N.doT.)bNooriginalLeafbyNiggle.(N.doT.)1.Não1940comofoiincorretamenteafirmadoem1947.(N.doA.)
SOBRECONTOSDEFADAS
P
Sobrecontosdefadas
ROPONHO-MEafalardecontosdefadas,apesardeestarcientedequeéumaaventuratemerária.OReinoEncantadoéumaterraperigosa,em
queháarmadilhasparaosincautosecalabouçosparaosdemasiadoaudazes.Podeserquemeconsideremousadodemais,pois,apesardetersidoamantedecontosdefadasdesdequeaprendialererefletirsobreelesdetemposemtempos,nãoosestudeiprofissionalmente.Provavelmentenadamaisfuidoqueumexploradoreventual(ouintrometido)daárea,cheiodeadmiraçãomasnãodeinformações.
Oreinodoscontosdefadaséamplo,profundoealto,cheiodemuitascoisas:láseencontramtodosostiposdeaveseoutrosanimais;oceanossempraiaseestrelassemconta;umabelezaqueéencantamentoeumperigosemprepresente;alegriaesofrimentoafiadoscomoespadas.Umserhumanotalvezpossaconsiderar-seafortunadoportervagueadonessereino,massuaprópriariquezaeestranhezaatamalínguadoviajantequeasqueirarelatar.E,enquantoestálá,éperigosoquefaçaperguntasdemais,poisosportõespoderãosefechareaschavesseperder.
Noentantoháalgumasperguntasquealguémqueváfalarsobrecontosdefadasprecisasedisporaresponder,ouatentarresponder,nãoimportaoquepensedasuaimpertinênciaopovodoReinoEncantado.Porexemplo:Oquesãocontosdefadas?Qualésuaorigem?Qualsuautilidade?Tentareidarrespostasaessasperguntas,ouasindicaçõesderespostasqueconseguicoligir–principalmentedasprópriashistórias,aspoucasqueconheçodentreamultidãodasqueexistem.
CONTODEFADAS
Oqueéumcontodefadas?NestecasoéinútilconsultaroOxfordEnglishDictionary.Elenãotrazreferênciaàcombinaçãofairy-storyaenãoédenenhumproveitonoqueserefereaotemafadasemgeral.NoSuplemento,fairy-taleestáregistradodesdeoanode1750,eseusentidoprincipalconstacomo(a)umcontosobrefadas,oudemodogeral,umalendadefadas,comdesdobramentosdesentido,(b)umahistóriairrealouincrível,e(c)umafalsidade.
Osdoisúltimossentidosobviamentetornariammeutópicodesalentadoramenteamplo.Masoprimeirosentidoérestritodemais.Nãorestritodemaisparaumensaio;paramuitoslivrosésuficientementeamplo,masérestritodemaisparaabrangerousoreal.Eissoprincipalmenteseaceitarmosadefiniçãodefadasdolexicógrafo:“seressobrenaturaisdetamanhodiminuto,queacrençapopularsupõepossuírempoderesmágicoseteremgrandeinfluênciasobreosassuntosdossereshumanos,paraobemouparaomal”.
Sobrenaturaléumapalavraperigosaedifícilemqualquerumdosseussentidos,maisamplooumaisrestrito.Masdificilmentepoderáseraplicadoafadas,anãoserquesobresejaconsideradomeramenteumprefixosuperlativo.Poiséoserhumanoqueésobrenatural(emuitasvezesdeestaturadiminuta)emcomparaçãocomasfadas,aopassoqueelassãonaturais,muitomaisnaturaisqueele.Essaésuasina.AestradaparaoreinodasfadasnãoéaestradaparaoParaíso;nemmesmoparaoInferno,creio,emboraalgunstenhamafirmadoqueelapodeconduzirindiretamenteatélápelodízimodoDiabo.
Oseeyenotyonnarrowroad
Sothickbesetwi’thornsandbriers?
ThatisthepathofRighteousness,
Thoughafteritbutfewinquires.
Andseeyenotyonbraid,braidroad
Thatliesacrossthelilyleven?
ThatisthepathofWickedness,
ThoughsomecallittheRoadtoHeaven.
Andseeyenotyonbonnyroad
Thatwindsaboutyonferniebrae?
ThatistheroadtofairElfland,
WherethouandIthisnightmaungae.b
Quantoaotamanhodiminuto:nãonegoqueéumanoçãodominantenousomoderno.Muitasvezespenseiqueseriainteressantetentardescobrircomosedeuessatransformação;masmeuconhecimentonãoésuficienteparaumarespostacorreta.AntigamentehaviadefatoalgunshabitantesdoReinoEncantadoqueerampequenos(mascertamentenãodiminutos),porémapequeneznãoeracaracterísticadessepovocomoumtodo.Oserdiminuto,elfooufada,énaInglaterra(achoeu)emgrandeparteumprodutoartificialdafantasialiterária1.TalveznãosejadeestranharquenaInglaterra,opaísemqueoamorpelodelicadoefinofrequentementereapareceunaarte,ogostosevolte,nesseâmbito,paraorequintadoediminuto,assimcomonaFrançachegouàcorteesecobriudepódearrozediamantes.Porémsuspeitoqueessamiudezadeflores-e-borboletastambémtenhasidoprodutoda“racionalização”quetransformouoglamourdaTerradosElfosemmeroartifício,eainvisibilidade,numafragilidadequepodiaesconder-senumaprímulaouencolher-seatrásdeumafolhadecapim.Pareceterentradoemmodalogodepoisquecomeçaramasgrandesviagensquetornariamomundoestreitodemaisparaconteraomesmotempohomenseelfos;quandoaterramágicadeHyBreasailnoOestesetornaramerosBrasis,aterradamadeiradatinturavermelha2.Detodomodo,foiemgrandeparteumcasoliterárioemqueWilliamShakespeareeMichaelDraytontiveramumaparticipação3.NymphidiadeDraytonéumdosancestraisdaquelalongalinhagemdefadasfloraiseduendesadejantescomantenas,quetantomedesagradavamquandocriança,equemeusfilhos,porsuavez,detestavam.AndrewLangtinhasentimentossemelhantes.NoprefáciodeLilacFairy
Book[Livrolilásdefadas]eleserefereàshistóriasdeenfadonhosautorescontemporâneos:“semprecomeçamcomummenininhoouumamenininhaquesaieencontraasfadasdosnarcisos,dasgardêniasedasfloresdemacieira[..]Essasfadastentamserengraçadasefracassam,outentamfazerpregaçãoetêmêxito”.
Masocasocomeçou,comoeudisse,bemantesdoséculoXIX,ehámuitoalcançouotédio,certamenteotédiodetentarserengraçadoefracassar.NymphidiadeDrayton,consideradoumcontodefadas(umahistóriasobrefadas),éumdospioresquejáforamescritos.OpaláciodeOberontemparedesdepernasdearanha,
Andwindowsoftheeyesofcats,
Andfortheroof,insteadofslats,
Iscoveredwiththewingsofbats.c
OcavaleiroPigwiggenmontanumalacraiatravessa,mandaaoseuamor,aRainhaMab,umapulseiradeolhosdeformiga,emarcaumencontronumaflordeprímulasilvestre.Masahistóriacontadaemmeioatodaessalindezaéuminsípidocontodeintrigaeastutosmexeriqueiros;ogalantecavaleiroeomaridofuriosocaemnoatoleiro,esuairaéacalmadaporumgoledaságuasdoLetes.TeriasidomelhorqueoLetesengolisseocasotodo.Oberon,MabePigwiggenpodemserdiminutoselfosoufadas;Artur,GuinevereeLancelotnãosão,masahistóriaboaemádacortedeArturéum“contodefadas”,eestecontodeOberonnãoé.
Fairy[fada],comosubstantivomaisoumenosequivalenteaelf[elfo],éumapalavrarelativamentemoderna,quasenãousadaantesdoperíodoTudor.AprimeiracitaçãonoOxfordDictionary(aúnicaantesde1450)ésignificativa.FoiextraídadopoetaGower:ashewereafaierie[comoseelefosseumafada].MasnãofoiissoqueGowerdisse.Eleescreveuashewereoffaierie,“comosefossedeFaërie[ReinoEncantado]”.Gowerestavadescrevendoumjovemgalantequebuscaenfeitiçaroscoraçõesdasdonzelasnaigreja.
Hiscroketkembdandthereonset
ANouchewithachapelet,
Orellesoneofgreneleves
Whichlatecomoutofthegreves,
Alforhesholdesemefreissh;
Andthushelokethonthefleissh,
Rihtasanhaukwhichhathasihte
Uponthefoultherheschallihte,
Andashewereoffaierie
Heschewethhimtoforehereyhe.4d
Esteéumjovemdesangueeossomortais;maseledáumadescriçãodoshabitantesdaTerradosElfosmuitomelhordoqueadefiniçãode“fada”,sobaqual,porumduploerro,elefoicolocado.PoisoproblemacomrelaçãoaosseresreaisdoReinoEncantadoéquenemsempretêmaaparênciadoquesão;eserevestemdasoberbaedabelezaqueenvergaríamosdebomgrado.Pelomenospartedamagiaquemanejampelobemoupelomaldohomeméumpoderparajogarcomosdesejosdoseucorpoedoseucoração.ARainhadaTerradosElfos,quelevouThomas,oRimador,noseucorcelbrancocomoleiteemaisvelozqueovento,veiocavalgandoatéaÁrvoreEildonsobformadeumasenhora,emboradeencantadorabeleza.Assim,SpenserestavanatradiçãoverdadeiraquandochamouoscavaleirosdeseuReinoEncantadopelonomedeElfe.ErapertinenteacavaleiroscomoSirGuyon,muitomaisqueaPigwiggenarmadodeferrãodevespa.
Agora,apesardeterapenasmencionado(demodocompletamenteinadequado)elfosefadas,precisoretroceder,poismeafasteidomeutemapropriamentedito:oscontosdefadas.Dissequeosentidode“históriassobrefadas”erademasiadorestrito5.Érestritodemaismesmoquerejeitemosotamanhodiminuto,poisnousonormalemlínguainglesaoscontosdefadasnãosãohistóriassobrefadasouelfos,mashistóriassobre
oReinoEncantado,Faërie,oreinoouestadonoqualasfadasexistem.OReinoEncantadocontémmuitascoisasalémdoselfosedasfadas,ealémdeanões,bruxas,trolls,gigantesoudragões;contémosoceanos,osol,alua,ofirmamentoeaterra,etodasascoisasquehánela:árvoreepássaro,águaepedra,vinhoepão,enósmesmos,sereshumanosmortais,quandoestamosencantados.
Ashistóriasquedefatotratamprincipalmentede“fadas”,istoé,decriaturasquenalinguagemmodernatambémpoderiamserchamadasde“elfos”,sãorelativamenteraras,eporviaderegranãomuitointeressantes.Amaioriadosbons“contosdefadas”tratadasaventurasdoshomensnoReinoPerigosoounosseussombriosconfins.Énatural,pois,seoselfossãodeverdade,edefatoexistemindependentementedenossashistóriassobreeles,entãotambémistocertamenteéverdade:oselfosnãoseinteressamprimordialmentepornós,nemnósporeles.Nossosdestinossãodistintos,enossastrilhasraramenteseencontram.MesmonasfronteirasdoReinoEncantadosóosencontramosemalgumcruzamentofortuitodecaminhos6.
Adefiniçãodecontodefadas–oqueé,ouoquedeveriaser–nãodepende,portanto,denenhumadefiniçãoourelatohistóricosobreelfosoufadas,massimdanaturezadoReinoEncantado,dopróprioReinoPerigoso,edoarquesopranessaterra.Nãotentareidefini-lonemdescrevê-lodiretamente.Éimpossívelfazê-lo.OReinoEncantadonãopodesercaptadoporumarededepalavras;poisumadesuasqualidadeséserindescritível,porémnãoimperceptível.Temmuitosingredientes,masaanálisenãonecessariamentedescobriráosegredodotodo.Noentantoesperoqueoquetenhoadizeradiantesobreasoutrasquestõesofereçaalgunsvislumbresdaminhaprópriavisãoimperfeita.Pororasódireiisto:um“contodefadas”éaquelequetocaouusaoReinoEncantado,qualquerquesejaseupropósitoprincipal,sátira,aventura,moralidade,fantasia.OpróprioReinoEncantadotalvezpossasertraduzidomaisproximamenteporMagia7–masémagiadeummodoepoderpeculiares,nopoloopostoaodosartifícioscomunsdomágicolaboriosoecientífico.Háumaressalva:sehouveralgumasátirapresentenoconto,háumacoisadaqualnãose
devezombar:aprópriamagia.Naquelahistóriaeladeveserlevadaasério,semescárnionemexplicaçõesqueainvalidem.DessaseriedadeocontomedievalSirGawaineoCavaleiroVerdeéumexemploadmirável.
Mas,mesmoqueapliquemosapenasesseslimitesvagosemaldefinidos,ficaclaroquemuitos,atéosestudiososdessesassuntos,usaramcommuitodescuidootermo“contodefadas”.Umaolhadanoslivrosrecentesquesedizemcoletâneasde“contosdefadas”ésuficienteparamostrarquehistóriassobrefadas,sobreafamíliadasfadasemqualquerumadesuascasas,ouatésobreanõeseduendes,sãoapenasumapequenapartedoseuconteúdo.Isso,comovimos,eradeesperar.Masesseslivrostambémcontêmmuitashistóriasquenãoenvolvem,nemmesmomencionam,oReinoEncantado;quenaverdadenemdeveriamserincluídas.
Dareiumoudoisexemplosdosexpurgosqueeurealizaria.Issoatenderáaoladonegativodadefinição.Tambémveremosqueissoconduziráàsegundapergunta:quaissãoasorigensdoscontosdefadas?
Onúmerodecoletâneasdecontosdefadasémuitograndeatualmente.Eminglês,provavelmentenenhumarivalizaempopularidade,abrangênciaouméritogeralcomosdozelivrosdedozecoresquedevemosaAndrewLangesuaesposa.Oprimeirofoipublicadomaisdesetentaanosatrás(1889)eaindaéencontrado.Amaiorpartedoseuconteúdopassanoteste,comclarezamaioroumenor.Nãooanalisarei,emboraumaanálisepudesseserinteressante,masobservodepassagemque,dashistóriasdesteBlueFairyBook[Livrodefadasazul],nenhumaéespecialmentesobre“fadas”epoucassereferemaelas.Amaioriadoscontosprovémdefontesfrancesas:naépoca,decertomodo,foiumaescolhajusta,comotalvezaindaseja(emboranãoparameugosto,agoraounainfância).Sejacomofor,étãoforteainfluênciadeCharlesPerrault,desdequeseusContesdemaMèrel’Oye[Contosdaminhamamãegansa]foramtraduzidospelaprimeiravezparaoinglêsnoséculoXVIII,edeoutrosexcertossemelhantesdovastoestoquedoCabinetdesFées[Gabinetedasfadas]quesetornaramfamosos,queatéhoje,suponho,sepedíssemosaalguémquemencionassealeatoriamenteum“contodefadas”típico,provavelmenteapessoamencionariaumadessascoisasfrancesascomoOGatodeBotas,
CinderelaouChapeuzinhoVermelho.PodehaverquemselembreprimeirodosContosdeGrimm.
MasoquedizerdofatodeUmaviagemaLilliputaparecernoBlueFairyBook?Direiqueessahistórianãoéumcontodefadas,nemcomooautorafez,nemcomoaquiaparece“condensada”pelasrta.MayKendall.Essenãoéseulugar.Temoquetenhasidoincluídasimplesmenteporqueosliliputianossãopequenos,atédiminutos–aúnicacaracterísticapelaqualsefazemnotar.MasapequeneznoReinoEncantado,talcomoemnossomundo,éapenasumacidente.Ospigmeussãotãopróximosdasfadasquantoospatagônios.Excluoessahistórianãoporsuaintençãosatírica;existesátira,constanteouintermitente,emcontosdefadasindubitáveis,emuitasvezespodeterhavidointençãodesátiraemcontostradicionaisemquehojenãoapercebemos.Euaexcluoporqueoveículodasátira,pormaisquesejaumainvençãobrilhante,pertenceàclassedashistóriasdeviajantes.Essashistóriasrelatammuitasmaravilhas,massãomaravilhasaseremvistasnestemundomortal,emalgumaregiãodonossoprópriotempoeespaço;somenteadistânciaasoculta.OscontosdeGullivernãotêmmaisdireitodeentrardoqueasnarrativasdoBarãodeMunchhausen,ou,digamos,doqueOsprimeiroshomensnaLuaouAmáquinadotempo.Naverdade,osEloieosMorlocksteriammaisdireitosqueosliliputianos.Osliliputianossãosimplesmentehomensvistosdecima,sarcasticamente,deumaalturaigualàdostelhadosdascasas.EloieMorlocksvivemmuitolonge,numabismodetempotãoprofundoqueexerceumencantamentosobreeles;e,sesãonossosdescendentes,podemosrecordarqueumantigopensadoringlêscertavezafirmouqueosylfe,ospróprioselfos,descendiamdeAdãoatravésdeCaim8.Esseencantamentodadistância,especialmentedotempodistante,sóéenfraquecidopelaprópriaMáquinadoTempo,absurdaeinacreditável.Masvemosnesteexemploumadasprincipaisrazõespelasquaisasfronteirasdocontodefadassãoinevitavelmentedúbias.AmagiadoReinoEncantadonãoéumfimemsi,suavirtuderesidenassuasoperações,entreelasasatisfaçãodecertosdesejoshumanosprimordiais.Umdessesdesejosévistoriarasprofundezasdoespaçoedotempo.Outro(como
veremos)éentraremcomunhãocomoutrosseresvivos.Assim,umahistóriapoderátratardasatisfaçãodessesdesejos,comousemaoperaçãodemáquinaoumagia,enamedidaemquetiverêxitoaproximar-se-ádaqualidadeedosabordocontodefadas.
Emseguida,depoisdashistóriasdeviajantes,eutambémexcluiria,ouconsiderariainadequada,qualquerhistóriaqueuseomecanismodoSonho,dosonhodosonohumanoreal,paraexplicaraaparenteocorrênciadesuasmaravilhas.Pelomenos,mesmoquesoboutrospontosdevistaoprópriosonhorelatadofosseumcontodefadas,eucondenariaotodocomoalgogravementefalho,talcomoumbomquadronumamolduradeturpadora.ÉverdadequeoSonhonãoédesvinculadodoReinoEncantado.Nossonhospodemserdesencadeadosestranhospoderesdamente.Emalgunsumapessoapode,porumtempo,exerceropoderdoReinoEncantado,essepoderque,mesmoenquantoconcebeahistória,fazcomqueelaassumaformaecorvivadiantedosolhos.Àsvezesumsonhorealpodedefatoserumcontodefadasdefacilidadeedestrezaquaseélficas–enquantoestásendosonhado.Mas,seumescritordespertolhedizqueseucontoéapenasumacoisaimaginadaduranteosono,eleestádefraudandodeliberadamenteodesejoprimordialnocoraçãodoReinoEncantado:arealização,independentedamentequeaconcebe,damaravilhaimaginada.Muitasvezesdiz-sedasfadas(verdadeoumentira,nãosei)queelasproduzemilusões,queenganamoshomenscom“fantasia”;masesseéassuntobemdiferente.Éproblemadelas.Sejacomofor,essastrapaçasacontecemnointeriordehistóriasemqueasprópriasfadasnãosãoilusões;portrásdafantasiaexistemvontadesepoderesreais,independentesdasmentesedospropósitosdoshomens.
Dequalquermodo,éessencialaogenuínocontodefadas,diferentementedousodessaformaparafinsmenoresouaviltados,queelesejaapresentadocomo“verdadeiro”.Emummomentoconsiderareiosignificadode“verdadeiro”nestecontexto.Mas,vistoqueocontodefadastratade“maravilhas”,elenãopodetolerarnenhumenquadramentooumecanismoquedêaentenderquetodaahistóriaemqueocorreméumaficçãoouilusão.Éclaroqueoprópriocontopodesertãobomque
podemosignoraroenquadramento.Oupodetersucessoeserdivertidocomohistóriadesonho.SãoassimashistóriasdaAlicedeLewisCarroll,comseuenquadramentodesonhoesuastransiçõesdesonho.Poressemotivo(eporoutros)elasnãosãocontosdefadas9.
Háoutrotipodehistóriamaravilhosaqueeuexcluiriadotítulo“contodefadas”,certamente,maisumavez,nãopornãogostardele:trata-sedapura“fábuladeanimais”.EscolhereiumexemplodosLivrosdefadasdeLang:Ocoraçãodomacaco,umcontosuaíliqueestápublicadonoLilacFairyBook.Nessahistória,umtubarãomalvadoconvenceummacacoamontaremsuascostaseolevaatémetadedocaminhoparasuaterra,paraentãolherevelarqueosultãodaquelereinoestavadoenteeprecisavadeumcoraçãodemacacoparasecurar.Masomacacologrouotubarãoeofezvoltar,convencendo-odequeseucoraçãoficaraemcasa,dentrodeumsacopenduradonumaárvore.
Afábuladeanimais,éclaro,temconexãocomoscontosdefadas.Bichos,pássaroseoutrascriaturasmuitasvezesfalamcomohomensnoscontosdefadasdeverdade.Emparte(muitasvezesempequenaparte),essamaravilhadecorredeumdos“desejos”primordiaisqueestãopróximosdocernedoReinoEncantado:odesejoqueoshomenstêmdesecomunicarcomoutrosseresvivos.Masafaladosanimaisnafábula,quesedesdobrouemramoseparado,tempoucarelaçãocomessedesejo,efrequentementeoesqueceporcompleto.Acompreensãomágicaqueoshomenstêmdaslinguagensprópriasdospássaros,dosoutrosanimaisedasárvoresestámuitomaispertodosverdadeirospropósitosdoReinoEncantado.Masnashistóriasquenãoenvolvemnenhumserhumano,ounaquelasemqueosheróiseheroínassãoanimais,aopassoqueoshomensemulheres,quandoaparecem,sãosimplescoadjuvantes,eprincipalmentenaquelasemqueaformaanimaléapenasumamáscarasobreumrostohumano,artifíciodosatiristaoudopregador,temosfábulasdeanimaisenãocontosdefadas,sejamelasReynardRaposa,Ocontodopadredafreira,IrmãoCoelhoousimplesmenteOstrêsporquinhos.AshistóriasdeBeatrixPottersituam-sepertodafronteiradoReinoEncantado,masquasesempreforadele,pensoeu10.Suaproximidadedeve-seemgrandeparteaseuforte
elementomoral–comissoquerodizersuamoralidadeinerente,nãoalgumasignificatioalegórica.MasPeterRabbit[PedroCoelho],apesardeconterumaproibição,eapesardeexistiremproibiçõesnaterradasfadas(comoprovavelmenteexistememtodoouniverso,emtodososplanoseemtodasasdimensões),continuasendoumafábuladeanimais.
TambémOcoraçãodomacacoéclaramenteapenasumafábuladeanimais.Suspeitoquesuainclusãonum“Livrodefadas”nãosedeveprimordialmenteàqualidadedeentretenimento,masprecisamenteaofatodedizerqueocoraçãodomacacofoideixadoparatrás,dentrodeumsaco.IssoerasignificativoparaLang,estudiosodefolclore,mesmoquenessecasoessaideiacuriosasejausadasomentecomobrincadeira,poisnessecontoocoraçãodomacacoeradefatomuitonormaleestavanopeitodele.Aindaassimessedetalheé,claramente,apenasumusosecundáriodeumaideiaantigaemuitodifundidanofolclore,queocorrenoscontosdefadas11:aideiadequeavidaouaforçadeumhomemououtracriaturapoderesidiremalgumoutrolugarouobjeto,ouemalgumapartedocorpo(especialmenteocoração),quepodeserdestacadaeescondidanumsaco,oudebaixodeumapedra,ounumovo.Emumextremodahistóriaregistradadofolclore,essaideiafoiusadaporGeorgeMacDonaldemseucontodefadasOcoraçãodogigante,quederivaessemotivocentral(bemcomomuitosoutrosdetalhes)defamososcontostradicionais.Nooutroextremo,naverdadenoqueprovavelmenteéumadasmaisantigashistóriasescritas,elaocorrenoContodosdoisirmãos,nopapiroegípcioD’Orsigny.Oirmãomaisnovodizaomaisvelho:
Encantareimeucoração,ecolocá-lo-einoaltodaflordocedro.Ocedroseráderrubadoemeucoraçãocairáaochão,etuvirásbuscá-lo,mesmoquepassesseteanosabuscá-lo;mas,quandootiveresencontrado,coloca-onumvasodeáguafria,eemverdadeviverei.12
Masessepontodeinteresseecomparaçõescomoestalevam-nosaolimiardasegundapergunta:Quaissãoasorigensdos“contosdefadas”?Isso,éclaro,devesignificar:aorigemouasorigensdoselementosfantásticos.Perguntarqualéaorigemdashistórias(nãoimportacomo
estejamqualificadas)éperguntarqualéaorigemdalinguagemedamente.
ORIGENS
Naverdadeapergunta“Qualéaorigemdoelementofantástico?”nosfazaportar,emúltimaanálise,namesmaindagaçãofundamental;mashámuitoselementosnoscontosdefadas(comoaquelecoraçãodestacável,oumantosdecisne,anéismágicos,proibiçõesarbitrárias,madrastasmalvadaseatéasprópriasfadas)quepodemserestudadossemabordaressaquestãoprincipal.Essesestudos,porém,sãocientíficos(pelomenosnaintenção);sãotarefadefolcloristasouantropólogos,istoé,pessoasqueusamashistórias,nãocomosepretendiaquefossemusadas,mascomoumapedreiradaqualpossamextrairprovasouinformaçõessobreassuntosquelhesinteressam.Umprocessoperfeitamentelegítimoemsi–masaignorânciaouoesquecimentodanaturezadeumahistória(comocoisacontadaporinteiro)muitasvezeslevouessespesquisadoresaestranhosjulgamentos.Parapesquisadoresdessetipo,semelhançasrecorrentes(comoesseassuntodocoração)parecemespecialmenteimportantes.Tantoéassimqueestudiososdofolclorepodemacabarsedesviandodoprópriocaminhoouseexpressandonuma“taquigrafia”enganosa,eenganosaespecialmentesesairdassuasmonografiaseentraremlivrossobreliteratura.Elestendemadizerqueduashistóriasconstruídasemtornodomesmomotivofolclórico,ouconstituídasdeumacombinaçãogeralmentesemelhantedessesmotivos,são“amesmahistória”.LemosqueBeowulf“éapenasumaversãodeDatErdmänneken”;que“OTouroNegrodeNorrowayéABelaeaFera”,ou“éamesmahistóriaqueErosePsique”;queaDonzela-Mestranórdica(ouaBatalhadosPássarosgaélica13eseusmuitoscongêneresevariantes)é“amesmahistóriadocontogregodeJasãoeMedeia”.
Afirmaçõesdessetipopodemexpressar(numaabreviaçãoindevida)algumelementodeverdade,masnãosãoverdadeirasnosentidodos
contosdefadas,nãosãoverdadeirasemarteouliteratura.Ocolorido,aatmosfera,osinclassificáveisdetalhesindividuaisdeumahistóriaeacimadetudooteorgeraléquedotamdevidaosossosnãodissecadosdoenredo,querealmentecontam.OReiLeardeShakespearenãoéomesmodahistóriadeLayamonemseuBrut.Ou,tomandoocasoextremodoChapeuzinhoVermelho,édeinteressemeramentesecundárioofatodequeasversõesrecontadasdahistória,nasquaisagarotinhaésalvaporlenhadores,derivamdiretamentedahistóriadePerrault,emqueelaédevoradapelolobo.Oquerealmenteimportaéqueaversãoposteriortemumfinalfeliz(maisoumenos,senãonoscondoermosdemaisdavovó)eaversãodePerraultnãotinha.Eessaéumadiferençamuitoprofunda,àqualvoltarei.
Éclaroquenãonego,poissintointensamente,ofascíniododesejodeelucidarahistóriaintrincadamenteemaranhadaeramificadadosgalhosdaÁrvoredosContos.ElaseligadepertoaoestudodosfilólogosdaconfusameadadaLinguagem,daqualconheçoalgumaspequenaspeças.Mas,mesmonoqueserefereàlinguagem,parece-mequeaqualidadeeasaptidõesessenciaisdedeterminadalíngua,nummomentovivo,sãomaisimportantesdecaptaremuitomaisdifíceisdeexplicitardoquesuahistórialinear.Assim,comrelaçãoaoscontosdefadas,achoqueémaisinteressante,etambémmaisdifícilaoseumodo,consideraroqueelessão,oquesetornaramparanósequevaloresoslongosprocessosalquímicosdotempoproduziramneles.NaspalavrasdeDasenteudiria:“Temosdenossatisfazercomasopaquenosservem,enãoquererverosossosdoboicomquefoifeita.”14Noentanto,curiosamente,por“sopa”Dasentdesignavaumamixórdiadepré-históriaespúriafundamentadanasprimitivasconjeturasdaFilologiaComparada;e“quererverosossos”significavaanecessidadedeenxergarasoperaçõeseasprovasquelevaramaessasteorias.Por“sopa”designoahistóriatalcomoéservidaporseuautorounarrador,epor“ossos”,suasfontesouseumaterial–mesmoque(porrarasorte)possamserdescobertoscomcerteza.Maséclaroquenãoproíboacríticadasopacomosopa.
Portanto,passareiligeiramentesobreaquestãodasorigens.Sou
demasiadoincultoparalidarcomelademododiferente;mas,dastrêsquestões,essaéamenosimportanteparameupropósito,ealgumasobservaçõesserãosuficientes.Éevidentequeoscontosdefadas(emsentidomaisamplooumaisrestrito)sãodefatomuitoantigos.Coisassemelhantesaparecememregistrosmuitoprimevosesãoencontradasuniversalmente,ondequerqueexistalinguagem.Portanto,estamosobviamentediantedeumavariantedoproblemaencontradopelaarqueologiaoupelafilologiacomparativa:odebateentreevolução(ouantes,invenção)independentedossemelhantes,herançadeumancestralcomum,edifusão,emváriasépocas,deumoumaiscentros.Amaioriadosdebatessebaseiaemumatentativa(deumoudeambososlados)deexcessodesimplificação,esuponhoqueessedebatenãosejaexceção.Ahistóriadoscontosdefadasprovavelmenteémaiscomplexaqueahistóriafísicadaraçahumana,etãocomplexaquantoahistóriadalinguagemhumana.Astrêscoisas–invençãoindependente,herançaedifusão–evidentementetiveramseupapelnaproduçãodaintrincadateiadaHistória.Desemaranhá-laestáagoraalémdequalquerhabilidadequenãosejaadoselfos15.Dastrês,ainvençãoéamaisimportanteefundamental,eportanto(nãoédesurpreender)tambémamaismisteriosa.Nofim,asoutrasduasterãodelevardevoltaauminventor,ouseja,umcriadordehistórias.Adifusão(empréstimonoespaço),sejadeumartefatooudeumahistória,sóremeteoproblemadaorigemaoutrolugar.Nocentrodasupostadifusãoháumlugarondeoutroraviveuuminventor.Omesmoocorrecomaherança(empréstimonotempo).Assim,acabamoschegandoapenasauminventorancestral.Seacreditarmosqueàsvezesocorreuacriaçãoindependentedeideias,temaseesquemassemelhantes,estaremossimplesmentemultiplicandooinventorancestral,massemcomissocompreendermaisclaramenteoseudom.
Afilologiafoidestronadadolugarelevadoqueocupavaoutroranessetribunaldeinquérito.AvisãodeMaxMüller,damitologiacomo“doençadalinguagem”,podeserabandonadasemremorso.Amitologianãoénenhumadoença,porémpodeadoecercomotodasascoisashumanas.Damesmaformapoderíamosdizerqueopensamentoéumadoençada
mente.Estariamaispróximodaverdadedizerqueaslínguas,emespecialaseuropeiasmodernas,sãoumadoençadamitologia.MasaindaassimaLinguagemnãopodeserdescartada.Amenteencarnada,alínguaeocontosãocoetâneosemnossomundo.Amentehumana,dotadadospoderesdegeneralizaçãoeabstração,nãovêapenasgramaverde,discriminando-adeoutrascoisas(eachando-abonitadecontemplar),masvêqueelaéverdealémdesergrama.Mascomofoipoderosa,comofoiestimulanteparaaprópriafaculdadequeaproduziu,ainvençãodoadjetivo.NenhumfeitiçonemmágicadoReinoEncantadoémaispotente.Enãoédesurpreender:taisencantamentos,defato,podemserconsideradosapenascomooutravisãodosadjetivos,umapartedodiscursonumagramáticamítica.Amentequeimaginouleve,pesado,cinzento,amarelo,imóvel,veloztambémconcebeuamagiaquetornariaascoisaspesadaslevesecapazesdevoar,transformariaochumbocinzentoemouroamareloearochaimóvelemáguaveloz.Sepodiafazerumacoisa,podiafazeraoutra;inevitavelmentefezambas.Quandopodemostomaroverdedagrama,oazuldocéueovermelhodosangue,játemosopoderdeumencantador–emumplano;edespertaodesejodemanejaressepodernomundoexternoàsnossasmentes.Nãoseseguequeusaremosbemessepoderemqualquerplano.Podemospôrumverdemortalnorostodeumhomemeproduzirumhorror;podemosfazerluzirararaeterrívelluaazul;oupodemosfazercomqueosbosquesirrompamemfolhasdeprataeoscarneirosvistamlanugensdeouro,epôrofogoquentenoventredoréptilfrio.Masnumatal“fantasia”,comoachamamos,umanovaformasefaz;oReinoEncantadocomeça;oHomemtorna-sesubcriador.
Assim,umpoderessencialdoReinoEncantadoéodetornarasvisõesda“fantasia”imediatamenteeficazespormeiodavontade.Nemtodassãobelas,nemmesmosalutares,certamentenãoasfantasiasdoHomemcaído.Eelemaculouoselfosquetêmessepoder(emverdadeoufábula)comsuaprópriamácula.Esseaspectoda“mitologia”–asubcriação,nãoarepresentaçãoouinterpretaçãosimbólicadasbelezasedosterroresdomundo–émuitopoucoconsiderado,pensoeu.SeráporqueémaisvistonoReinoEncantadoquenoOlimpo?Porquesepensaquepertenceà
“mitologiainferior”,nãoà“superior”?Temhavidomuitadiscussãoarespeitodasrelaçõesentreessascoisas,ocontopopulareomito;mas,mesmoquenãohouvessediscussão,aquestãoexigiriaatençãoemqualquerexamedasorigens,porbrevequefosse.
Houveumaépocaemqueeraopiniãodominantequetodosesseselementosderivavamde“mitosdanatureza”.OsOlímpicoserampersonificaçõesdosol,daaurora,danoiteeassimpordiante,etodasashistóriascontadassobreeleseramoriginalmentemitos(alegoriasseriaumapalavramelhor)dasgrandesmudançaselementaiseprocessosdanatureza.Oépico,alendaheroica,asagaentãolocalizavamessashistóriasemlugaresreaiseashumanizavamatribuindo-asaheróisancestrais,maispoderososquehomensenoentantojáhomens.Efinalmenteessaslendassereduziram,transformando-seemcontospopulares,Märchene,contosdefadas–históriasinfantis.
Issopareceaverdadequasedecabeçaparabaixo.Quantomaispróximooassimchamado“mitodanatureza”,oualegoriadosgrandesprocessosdanatureza,estádeseusupostoarquétipo,menosinteressanteeleé,e,defato,menosédeofereceralgumesclarecimentosobreomundo.Vamospresumirporummomento,comopresumeestateoria,quenadaexistedefatoquecorrespondaaos“deuses”damitologia:nenhumapersonalidade,apenasobjetosastronômicosoumeteorológicos.Entãoessesobjetosnaturaissópoderãoserrevestidosdesignificadoeglóriapessoalporumdom,odomdeumapessoa,deumhomem.Apersonalidadesópodederivardeumapessoa.Osdeusespodemderivarsuacoresuabelezadossublimesesplendoresdanatureza,masfoioHomemqueosobteveparaeles,abstraiu-osdosol,daluaedanuvem;elesobtêmsuapersonalidadediretamentedoHomem;atravésdelerecebemdomundoinvisível,oSobrenatural,asombraouacentelhadedivindadequelhescabe.Nãohádistinçãofundamentalentreasmitologiassuperioreseasinferiores.Seusseresvivem,seéquevivem,pelamesmavida,exatamentecomoosreiseoscamponesesnomundomortal.
Tomemosoquepareceumcasoevidentedemitodanaturezaolímpico:odeusnórdicoThórr.SeunomeéTrovão,queéThórremnórdico;enãoé
difícilinterpretarseumarteloMiöllnircomooraio.NoentantoThórrtem(atéondealcançamnossosúltimosregistros)umcaráter,oupersonalidade,bemmarcante,quenãoseencontranotrovãonemnoraio,apesardealgunsdetalhespoderem,decertomodo,serrelacionadosaessesfenômenosnaturais:porexemplosuabarbaruiva,suavozpossanteeseutemperamentoviolento,suaforçaatabalhoadaedestrutiva.Aindaassimnãoteriamuitosentidoindagarmos:oqueveioprimeiro,asalegoriasnaturaissobreumtrovãopersonalizadonasmontanhas,fendendorochaseárvores,ouhistóriassobreumfazendeirodebarbaruiva,irascívelenãomuitoesperto,deforçadescomunal,pessoamuitosemelhante(emtudomenosnaestatura)aosfazendeirosdoNorte,osbændrqueadoravamThórrdemodoespecial?Pode-seconsiderarqueThórr“foireduzido”àimagemdeumhomemcomoesse,ouqueodeusfoiampliadoapartirdela.Masduvidoquealgumadessasvisõesestejacorreta–nãoemsi,nãoseinsistirmosemqueumadessascoisastemnecessariamentedeprecederaoutra.ÉmaisrazoávelsuporqueofazendeirotenhaaparecidonomesmomomentoemqueoTrovãoadquiriuvozerosto;quehaviaumrugidodistantedetrovãonascolinastodasasvezesqueumcontadordehistóriasouviaumfazendeiroenraivecido.
ÉclaroqueThórrdeveserconsideradomembrodamaisaltaaristocraciamitológica,umdossoberanosdomundo.NoentantoahistóriaquesecontadelenoThrymskvitha(naEddaAntiga)écertamenteapenasumcontodefadas.Éantiga,tantoquantopodemserospoemasnórdicos,oquenãosignificatantotempoassim(900d.C.,digamos,ouumpoucoantes,nestecaso).Masnãohámotivorealparasuporqueessecontoseja“nãoprimitivo”,pelomenosemqualidade,ouseja,porserdotipocontopopularenãomuitonobre.Sepudéssemosrecuarnotempo,descobriríamosqueocontodefadasmudarianosdetalhes,ouquedarialugaraoutroscontos.Massemprehaveriaum“contodefadas”enquantohouvesseumThórr.Quandocessasseocontodefadas,haveriaapenasotrovão,quenenhumouvidohumanojamaisescutara.
Ocasionalmentevislumbra-senamitologiaalgorealmente“maiselevado”:aDivindade,odireitoaopoder(diversodasuaposse),odevido
culto;naverdade,“religião”.AndrewLangdisse,ealgunsaindaoelogiampordizê-lo16,queamitologiaeareligião(nosentidoestritodessapalavra)sãoduascoisasdistintasqueficaraminextricavelmenteenredadas,apesardeamitologiaemsiserquaseisentadesignificadoreligioso17.
Noentantoessascoisasdefatoficaramenredadas–outalveztenhamsidoseparadashámuitotempoedesdeentãotenhamvoltadodevagar,tateando,atravésdeumlabirintodeerros,atravésdaconfusão,rumoàrefusão.Mesmooscontosdefadascomoumtodotêmtrêsfaces:aMística,voltadaparaoSobrenatural;aMágica,voltadaparaaNatureza;eoEspelhodedesdémecompaixão,voltadoparaoHomem.AfaceessencialdoReinoEncantadoéadomeio,aMágica.Masograuemqueasoutrasaparecem(seéqueaparecem)évariável,epodeserdecididopelocontadordehistóriasindividual.AMágica,ocontodefadas,podeserusadacomoumMirourdel’Omme;epode(masnãotãofacilmente)sertransformadaemveículodoMistério.PelomenosfoiissoqueGeorgeMacDonaldtentou,realizandohistóriasdepoderebelezaquandobem-sucedido,comoemAchavedourada(queelechamoudecontodefadas);emesmoquandofracassavaparcialmente,comoemLilith(queelechamouderomance).
Voltemosporummomentoà“Sopa”quemencioneiacima.Falandodahistóriadashistórias,eespecialmentedoscontosdefadas,podemosdizerqueaPaneladeSopa,oCaldeirãodaHistória,estavasemprefervendo,equelheforamcontinuamenteacrescentadosnovosingredientes,saborososounão.Poressemotivo,tomandoumexemplofortuito,ofatodeumahistóriasemelhanteàqueseconheceporAmeninadosgansos(DieGänsemagd,emGrimm)sercontadanoséculoXIIIsobreBertaPésGrandes,mãedeCarlosMagno,naverdadenadaprovaemnenhumsentido:nemqueahistória(noséculoXIII)estivessedescendodoOlimpooudeAsgardpormeiodeumantigorei,jálendário,eacaminhodesetornarumHausmärchen,nemqueestivessesubindo.Encontramosahistóriamuitodifundida,semligaçãocomamãedeCarlosMagnonemqualqueroutropersonagemhistórico.CertamentenãopodemosdeduzirdessefatoporsisóquenãosejaverdadecomrelaçãoàmãedeCarlos
Magno,masessetipodededuçãoéoquemaisfrequentementesefazapartirdessetipodeevidência.AopiniãodequeahistórianãoéverdadeiracomrelaçãoaBertaPésGrandesdevebasear-seemalgodiferente:emcaracterísticasdahistóriaqueafilosofiadocríticonãoadmiteserempossíveisna“vidareal”,detalmodoqueeleefetivamentenãoacreditarianahistóriamesmoqueelanãofosseencontradaemnenhumoutrolugar;ounaexistênciadeindícioshistóricosconsistentesdequeaverdadeiravidadeBertafoibemdiferente,demodoquenãoacreditarianahistóriamesmoquesuafilosofiaadmitissequeelaseriaperfeitamentepossívelna“vidareal”.ImaginoqueninguémdeixariadeacreditarnumahistóriadequeoArcebispodeCanterburyescorregounumacascadebananaquandosoubessequeuminfortúniocômicosemelhantefoirelatadosobremuitaspessoas,eprincipalmentesobrecavalheirosidososerespeitáveis.Alguémpoderiaduvidardahistóriasedescobrissequenelaumanjo(oumesmoumafada)avisaraoArcebispodequeescorregariaseusassepolainasnumasexta-feira.Tambémpoderíamosduvidardelasedissessemquetinhaacontecido,digamos,noperíodoentre1940e1945.Chega.Éumargumentoóbvio,efoiusadoantes;masarrisco-mearepeti-lo(apesardeserumpoucoalheioaomeuobjetivoatual),poiseleéconstantementedeixadodeladopelosqueseocupamdasorigensdoscontos.
Maseacascadebanana?Passamosrealmenteanosocupardelasóquandofoirejeitadapeloshistoriadores.Elaémaisútilquandodescartada.Ohistoriadorprovavelmentediriaqueahistóriadacascadebanana“foivinculadaaoArcebispo”,assimcomodiz,comclareza,que“oMärchendaMeninadosGansosfoivinculadaaBerta”.Essamaneiradecolocaraquestãoébastanteinofensiva,noquecomumenteseconhecepor“história”.Masserádefatoumaboadescriçãodoqueestáacontecendo,eaconteceu,nahistóriadacriaçãodehistórias?Achoquenão.CreioqueseriamaisverossímildizerqueoArcebispofoivinculadoàcascadebanana,ouqueBertafoivinculadaàMeninadosGansos.Aindamelhor:eudiriaqueamãedeCarlosMagnoeoArcebispoforamcolocadosnaPanela,naverdadeentraramnaSopa.Foramapenasnovosingredientesacrescentadosaocaldo.Umahonraconsiderável,poisnessasopahavia
muitascoisasmaisantigas,maispotentes,maisbelas,cômicasouterríveisdoqueeles(consideradossimplesmentefigurashistóricas).
ParecebastanteevidentequeArtur,outrorahistórico(mastalveznãomuitoimportantecomotal),tambémfoicolocadonaPanela.Láferveupormuitotempo,juntocommuitasoutrasfiguraseelementosmaisantigos,damitologiaedoReinoEncantado,eatécomalgunsoutrosossosesparsosdahistória(comoadefesadeAlfredcontraosdinamarqueses),atéemergircomoumReidoReinoEncantado.Asituaçãoésemelhantenagrandecortenórdica“arturiana”dosReisdosEscudosdaDinamarca,osScyldingasdaantigatradiçãoinglesa.OReiHrothgaresuafamíliatêmmuitasmarcasevidentesdehistóriaverdadeira,muitomaisqueArtur,enoentantomesmonosrelatos(ingleses)maisantigossãoassociadosamuitasfiguraseeventosdoscontosdefadas:estiveramnaPanela.Masrefiro-meagoraaosremanescentesdosmaisantigoscontosinglesesregistradosdoReinoEncantado(oudesuasfronteiras),apesardeserempoucoconhecidosnaInglaterra,nãoparadiscutiratransformaçãodomenino-ursonocavaleiroBeowulf,nemparaexplicaraintrusãodoogroGrendelnosalãorealdeHrothgar.Querodestacaralgomaisqueessastradiçõescontêm:umexemplosingularmentesugestivodarelaçãoentreo“elementodocontodefadas”eosdeuses,reisehomensanônimos,ilustrando(creio)aopiniãodequeesseelementonemseelevanemcai,masestálá,noCaldeirãodaHistória,esperandopelasgrandesfigurasdoMitoedaHistória,eporEleouElaaindasemnome,esperandopelomomentodeseremlançadosnoensopadoemlentafervura,umporumoutodosjuntos,semlevaremcontacategoriasocialnemprecedência.
OgrandeinimigodoReiHrothgareraFroda,ReidosHeathobards.NoentantoouvimosecosdeumaestranhahistóriasobreFreawaru,filhadeHrothgar–nãoumahistóriacomumnaslendasheroicasnórdicas:ofilhodoinimigodesuacasa,Ingeld,filhodeFroda,apaixonou-seporelaecomelasecasoudesastrosamente.Masissoéextremamenteinteressanteesignificativo.NosegundoplanodaantigacontendaassomaovultodaqueledeusqueosnórdicoschamavamdeFrey(oSenhor)ouYngvi-Frey,eosanglosdeIng;umdeusdaantigamitologia(ereligião)nórdicada
fertilidadeedoTrigo.Ainimizadedascasasreaisestavaligadaaolocalsagradodeumcultodessareligião.Ingeldeseupaitêmnomesquepertencemaela.AprópriaFreawaruéchamadade“ProteçãodoSenhor(deFrey)”.Noentanto,umadasprincipaiscoisasquesecontammaistarde(emislandêsantigo)sobreFreyéahistóriaemqueeleseapaixonadelongepelafilhadosinimigosdosdeuses,Gerdr,filhadogiganteGymir,esecasacomela.IssoprovaqueIngeldeFreawaru,ouseuamor,são“meramentemíticos”?Creioquenão.Ahistóriamuitasvezesseparececomo“Mito”,porqueambos,emúltimaanálise,compõem-sedamesmamatéria.SedefatoIngeldeFreawarujamaisviveram,oupelomenosjamaisamaram,entãoemúltimaanáliseelesobtêmsuahistóriadeumhomemeumamulheranônimos,oumelhor,entraramnahistóriadeles.ForampostosnoCaldeirão,ondetantascoisaspotentesficamfervendolentamentenofogo,entreelasoAmor-à-primeira-vista.Ocasododeusésemelhante.Senenhumjovemjamaissetivesseapaixonadoaoseencontrarfortuitamentecomumadonzela,ejamaistivesseencontradovelhasinimizadesqueseinterpunhamentreeleeseuamor,entãoodeusFreyjamaisteriavistoGerdr,afilhadogigante,dotronodeOdin.Mas,jáquefalamosdeumCaldeirão,nãopodemosesquecertotalmenteosCozinheiros.HámuitascoisasnoCaldeirão,masosCozinheirosnãomergulhamaconchacompletamenteàscegas.Suaseleçãoéimportante.Afinaldecontasosdeusessãodeuses,eéassuntodecertaimportânciaquaishistóriassãocontadassobreeles.Assim,temosdeadmitirfrancamentequeumahistóriadeamorterámaiorprobabilidadedesercontadaarespeitodeumpríncipehistórico,naverdadeterámaiorprobabilidadedeacontecerdefatonumafamíliahistóricacujastradiçõessãoasdoDouradoFreyedosVanir,enãoasdeOdinogodo,oNecromante,quefartaoscorvos,SenhordosMortos.Nãoédeespantarquespell,eminglês,signifiqueaomesmotempoumahistóriacontadaeumafórmuladepodersobrehomensviventes.
Mas,depoisdefazermostudooqueapesquisaécapazdefazer–coletaecomparaçãodashistóriasdemuitasterras–,depoisdeexplicarmosmuitosdoselementosquecomumenteseencontramincrustadosnos
contosdefadas(comomadrastas,ursosetourosencantados,bruxascanibais,tabussobrenomesecoisasassim)comorelíquiasdeantigoscostumesoutrorapraticadosnavidadiária,oudecrençasoutroraabrigadascomocrençasenãocomo“fantasias”,aindarestaumpontomuitofrequentementeesquecido:oefeitoproduzidoagoraporessascoisasantigas,nashistóriastaiscomosão.
Porumlado,agorasãoantigas,eaantiguidadetemumapelopróprio.AbelezaeohorrordoPédeJunípero(VondemMachandelboom),comseuinícioextraordinárioetrágico,oabominávelcozidocanibalesco,osossosrepulsivos,oalegreevingativoespíritodepássaroqueemergedeumanévoaqueseerguiadaárvore,permaneceramcomigodesdeainfância;enoentantosempreoprincipalsabordessahistóriaquesobrevivianalembrançafoinãoabelezanemohorror,masadistânciaeumgrandeabismodetempo,nãomensurávelnemmesmoemtwetusendJohrf.Semocozidoeosossos–dequeascriançasdehojesãomuitofrequentementepoupadasemversõessuavizadasdeGrimm18–essavisãoteriaseperdidoemgrandemedida.Nãopensoquefuiprejudicadopelohorrordocontextodocontodefadas,sejamquaisforemasobscurascrençasepráticasdopassadodasquaiselepossatervindo.Essashistóriastêmagoraumefeitomíticooutotal(inanalisável),umefeitomuitoindependentedasdescobertasdoFolcloreComparado,equeessadisciplinanãoconsegueestragarnemexplicar;elasabremumaportaparaOutroTempo,e,seaatravessarmos,nemquesejaporummomento,estaremosforadenossotempo,talvezforadopróprioTempo.
Senosdetivermos,nãoapenasparanotarqueesseselementosantigosforampreservados,masparapensarcomoforampreservados,deveremosconcluir,pensoeu,queissoaconteceu,muitasvezes,senãosempre,precisamenteporcausadesseefeitoliterário.Nãopodemostersidonós,nemmesmoosirmãosGrimm,osprimeirosasenti-lo.Demaneiranenhumaoscontosdefadassãomatrizesrochosasdasquaisosfósseissópodemserarrancadosporgeólogosperitos.Oselementosantigospodemserextraídos,ouesquecidosedescartados,ousubstituídosporoutrosingredientes,comamaiorfacilidade,talcomomostraráqualquer
comparaçãodeumahistóriacomsuasvariantespróximas.Ascoisasqueexistemnelasdevemtersidomantidas(ouinseridas),muitasvezes,porqueosnarradoresorais,instintivaouconscientemente,sentiramsua“significância”literária19.Mesmoquandosesuspeitaqueumaproibiçãoemumcontodefadasderivadealgumtabu,praticadomuitotempoatrás,provavelmenteelafoipreservadanasetapasposterioresdahistóriadocontoemvirtudedograndesignificadomíticodaproibição.Portrásdosprópriostabus,defato,podeterhavidoumsensodessasignificância.Nãodeves–docontrárioteisolaráscomoindigentenoremorsoinfindável.Osmaisbrandos“contosinfantis”conhecemisso.AtémesmoaPeterRabbitfoiproibidoumjardim,eeleperdeuseucasacoazuleadoeceu.APortaTrancadaéumaeternaTentação.
CRIANÇAS
Agoramevoltareiparaascrianças,eassimchegareiàúltimaemaisimportantedastrêsperguntas:quaissão,seéqueexistem,osvaloreseasfunçõesdoscontosdefadasagora?Geralmentepresume-sequeascriançassãoaplateianaturalouespecialmenteapropriadadoscontosdefadas.Aodescreveremumcontodefadasqueachamqueosadultospoderãolerparaseupróprioentretenimento,oscríticoscostumamsepermitirgracejoscomo:“estelivroéparacriançasdeseisasessentaanos”.Masnuncaviumanúnciodecarrinhoquecomeçasseassim:“estebrinquedovaidivertircriançasdedezesseteasetentaanos”,oque,naminhaopinião,seriamuitomaisapropriado.Haveráalgumaligaçãoessencialentrecriançasecontosdefadas?Haveránecessidadedecomentárioquandoumadultooslêsozinho?Istoé,lêcomocontos,nãoestudacomocuriosidades.Aosadultosépermitidocolecionareestudarqualquercoisa,atémesmovelhosprogramasdeteatroousacosdepapel.
Entreaquelesqueaindatêmsabedoriasuficienteparanãoacharquecontosdefadassãoperniciosos,aopiniãocomumpareceseradequeexisteumaligaçãonaturalentreasmentesdascriançaseoscontosde
fadas,damesmaordemdaligaçãoentreoscorposdascriançaseoleite.Creioqueissoéumerro;namelhordashipótesesumerrodefalsosentimento,eportantoumerrocometidomaisfrequentementeporaquelesque,sejaqualforseumotivoparticular(comonãoterfilhos),tendemaenxergarascriançascomoumtipoespecialdecriaturas,quaseumaraçadiferente,enãocomomembrosnormais,emboraimaturos,deumadeterminadafamíliaedafamíliahumanaemgeral.
Naverdade,aassociaçãoentrecriançasecontosdefadaséumacidentedenossahistóriadoméstica.Nomundoletradomodernooscontosdefadasforamrelegadosao“quartodascrianças”,assimcomoamobíliavelhaouforademodaérelegadaàsaladerecreação,primordialmenteporqueosadultosnãoaquerem,enãolhesimportaquesefaçamauusodela20.Nãoéaescolhadascriançasquedecideisso.Ascriançascomoclasse–classequenãosão,excetopelafaltadeexperiênciaquelhesécomum–nãogostammaisdoscontosdefadas,nemoscompreendemmelhor,doqueosadultos,enãoosapreciammaisquemuitasoutrascoisas.Sãojovenseestãoemcrescimento,egeralmentetêmapetitesaguçados,demodoqueporviaderegraoscontosdefadassãobastantebemdigeridos.Masnaverdadesóalgumascrianças,ealgunsadultos,têmgostoespecialporeles;equandootêmnãoéexclusivo,nemnecessariamentedominante21.Tambéméumgostoque,creioeu,nãosurgiriamuitocedonainfânciasemestímuloartificial;certamenteéumgostoquenãodecresce,esimcrescecomaidade,quandoéinato.
Éverdadequerecentementeoscontosdefadasemgeraltêmsidoescritosou“adaptados”paracrianças.Mastambémpode-sefazerissocommúsica,poesia,romances,históriaoumanuaiscientíficos.Éumprocessoperigoso,mesmoquandonecessário.Naverdadesósesalvadadesgraçapelofatodeasarteseasciênciasnãoserem,comoumtodo,relegadasaoquartodascrianças;esteeasaladeaulasórecebemdoassuntoadultoasamostraseosrelancesqueparecemser-lhesadequadosnaopiniãodosadultos(frequentementemuitoequivocada).Qualquerdessascoisas,sefossedeixadainteiramentenoquartodascrianças,ficariagravementeprejudicada.Tambémumabelamesa,umbomquadroouumaparelhoútil
(comoummicroscópio)seriamdesfiguradosouquebradosseosabandonássemospormuitotemponumasaladeaula.Oscontosdefadasassimbanidos,eliminadosdeumaarteplenamenteadulta,nofimestariamarruinados;naverdade,namedidaemqueforamassimbanidos,foramarruinados.
Então,naminhaopinião,ovalordoscontosdefadasnãopodeserencontradoconsiderandoascriançasemparticular.Naverdade,ascoletâneasdecontosdefadassãopornaturezasótãosequartosdedespejo,equartosdebrinquedoapenasporumcostumetemporárioelocal.Seusconteúdossãodesordenados,frequentementedesmantelados,umamixórdiadediferentesdatas,objetivosegostos;masemmeioaelespode-seocasionalmenteencontraralgodevalorpermanente,umaantigaobradearte,nãoexcessivamentedanificada,quesóaestupidezpoderiaterdesprezadocomocoisasemvalia.
OsLivrosdefadasdeAndrewLangnãosão,talvez,quartosdedespejo.Maisparecemestantesdeumbazar.Alguémcomumespanadoreumbomolhoparacoisasqueaindatêmalgumvalordeuumavoltapelossótãosedepósitos.Suascoletâneassãoemgrandeparteumsubprodutodeseuestudoadultodamitologiaedofolclore,masforamtransformadasemlivrosinfantiseapresentadascomotais22.AlgumasdasrazõesdadasporLangmerecemserconsideradas.
Aintroduçãodoprimeirovolumedasériefalade“criançasàsquaiseparaasquaissãocontados”.“Representam”,dizele,“ajuventudedohomemfielaosseusprimeirosamores,etêmseugumedecrençaafiado,umapetitevivopormaravilhas.”“‘Éverdade?’”dizele,“éagrandeperguntafeitapelascrianças.”
Desconfioquecrençaeapetitepormaravilhassãoaquiconsideradosidênticosouintimamenterelacionados.Sãoradicalmentediferentes,emboraoapetitepormaravilhasnãosejaimediatamenteoudeiníciodiferenciado,pelamentehumanaemcrescimento,doseuapetitegeral.ParecebastanteevidentequeLangusoucrençanosentidocomum:crençadequealgoexisteoupodeocorrernomundoreal(primário).Sendoassim,
achoqueaspalavrasdeLang,despojadasdesentimento,sópodemimplicarqueonarradordecontosmaravilhososparacriançasprecisaoupodeseaproveitar,ouenfimseaproveita,dacredulidadedelas,dafaltadeexperiênciaquetornamenosfácilparaascriançasdistinguirofatodaficçãoemcasosparticulares,mesmoqueadistinçãoemsisejafundamentalparaamentehumanasadia,eparaoscontosdefadas.
Éclaroqueascriançassãocapazesdecrençaliterária,quandoaartedocriadordehistóriasésuficientementeboaparaproduzi-la.Esseestadomentaltemsidochamadode“suspensãovoluntáriadaincredulidade”.Masnãomepareceumaboadescriçãodoqueacontece.Oqueacontecedefatoéqueocriadordahistóriamostraserum“subcriador”desucesso.ElefazumMundoSecundárionoqualnossamentepodeentrar.Dentrodele,oqueelerelataé“verdade”,concordacomasleisdaquelemundo.Portantoacreditamos,enquantoestamosporassimdizerdoladodedentro.Nomomentoemquesurgeaincredulidade,oencantoserompe;amagia,oumelhor,aartefracassou.EntãoestamosdenovonoMundoPrimário,olhandodeforaopequenoMundoSecundáriomalogrado.Seformosobrigadosaficar,porbenevolênciaoucircunstância,entãoaincredulidadeprecisarásersuspensa(ouabafada),docontrárioseráintolerávelouvireolhar.Masessasuspensãodaincredulidadeéumsubstitutodacoisagenuína,umsubterfúgioqueusamosquandocondescendemosemumjogooufazdeconta,ouquandotentamos(maisoumenosvoluntariamente)descobriralgumavirtudenaobradeartequeparanósfracassou.
Umverdadeiroentusiastadecríqueteestánoestadoencantado:aCrençaSecundária.Eu,quandoassistoaumapartida,estounonívelinferior.Consigoatingir(maisoumenos)asuspensãovoluntáriadaincredulidade,quandosoumantidoaliesustentadoporalgumoutromotivoqueafasteotédio:porexemplo,umapredileçãodesenfreada,heráldica,peloazulescurosobreoclaro.Assim,essasuspensãodaincredulidadepodeserumestadodeespíritomeiocansado,aborrecidoousentimental,portantotendendoao“adulto”.Imaginoquefrequentementesejaesseoestadodosadultosnapresençadeumcontodefadas.Elessãomantidosesustentadospelosentimento(lembrançasdainfância,ouideias
decomodeveriaserainfância);achamquedeveriamgostardoconto.Masserealmentegostassemdoconto,porelemesmo,nãoteriamdesuspenderaincredulidade:acreditariam–nessesentido.
SeLangquisessedizeralgoassim,poderiahaveralgumaverdadenassuaspalavras.Pode-seargumentarqueémaisfácilfazerfuncionaroencantamentocomcrianças.Talvezseja,emboraeunãotenhacerteza.Muitasvezesachoqueessaaparênciaéumailusãoadultaproduzidapelahumildadedascrianças,porsuafaltadeexperiênciacríticaedevocabulário,eporsuavoracidade(adequadaaocrescimentorápido).Gostamoutentamgostardoquelhesédado;quandonãogostam,nãoconseguemexpressarbemasuaaversãonemdarmotivosparaela(eportantopodemescondê-la);egostamindiscriminadamentedeumagrandequantidadedecoisasdiferentes,semsepreocuparememanalisarosplanosdasuacrença.Emtodocaso,duvidoqueessapoção–oencantamentodocontodefadaseficaz–realmentesejadotipoquesetorna“cega”comouso,menospotenteapósrepetidosgoles.
“‘Éverdade?’éagrandeperguntafeitapelascrianças”,disseLang.Seiquefazemessapergunta,enãoéumaperguntaquepossaserrespondidademodoimpulsivooudisplicente23.Masdificilmenteéprovade“crençaafiada”,nemmesmodedesejoporessacrença.Maisfrequentementeelaprovémdodesejoqueacriançatemdesaberqueespéciedeliteraturaestádiantedela.Muitasvezesoconhecimentodomundopelascriançasétãopequenoqueelasnãoconseguemjulgar,deimprovisoesemajuda,adistinçãoentreofantástico,oestranho(istoé,fatosrarosouremotos),odespropositadoeosimplesmente“adulto”(istoé,coisascomunsdomundodeseuspais,cujagrandeparteaindapermaneceinexplorada).Masreconhecemasdiferentesclasses,eàsvezespodemgostardetodaselas.Éclaroqueoslimitesentreelasfrequentementeflutuamouseconfundem,masissonãovalesóparacrianças.Todosnósconhecemosasdiferençasdeespécie,masnemsempretemoscertezadecomoclassificaralgoqueouvimos.Umacriançapodemuitobemacreditarnumrelatodequeexistemogrosnocondadovizinho;muitosadultosachamissofácildeacreditarcomrespeitoaoutropaís;e,quantoaoutroplaneta,muito
poucosadultosparecemcapazesdeimaginá-lopovoado,seéqueépovoado,poralgoquenãosejammonstrosperversos.
FuiumadascriançasàsquaisAndrewLangsedirigia–nascimaisoumenosnamesmaépocaqueoGreenFairyBook[Livrodefadasverde]–,ascriançasparaasquaiselepareciapensarqueoscontosdefadaseramoequivalentedoromanceadultoedasquaisdisse:“Seugostopermaneceigualaodosseusantepassadosnusdemilharesdeanosatrás,eparecemgostarmaisdecontosdefadasdoquedehistória,poesia,geografiaouaritmética.”24Masseráquerealmentesabemosmuitacoisadesses“antepassadosnus”,excetoquecertamentenãoeramnus?Nossoscontosdefadas,pormaisantigosquesejamalgunsdosseuselementos,certamentenãosãoosmesmosqueosdeles.Porém,seassumirmosquetemoscontosdefadasporqueelesostinham,entãoprovavelmentetemoshistória,geografia,poesiaearitméticaporqueelestambémgostavamdessascoisas,namedidaemquepodiamobtê-las,enamedidaemquejátinhamseparadoosmuitosramosdeseuinteressegeralportudo.
E,noqueserefereàscriançasdehoje,adescriçãodeLangnãoseajustaàsminhaslembranças,nemàminhaexperiênciacomcrianças.TalvezLangestivesseenganadoquantoàscriançasqueconhecia,mas,senãoestava,pelomenosascriançasdiferemconsideravelmente,mesmodentrodosestreitoslimitesdaGrã-Bretanha,eessasgeneralizaçõesqueastratamcomoumaclasse(desconsiderandoseustalentosindividuaiseasinfluênciasdaregiãoemquevivem,esuaeducação)sãoenganosas.Eunãotinhanenhum“desejodeacreditar”especial.Euqueriasaber.Acrençadependiadomodocomoashistóriasmeeramapresentadas,pelosmaisvelhos,oupelosautores,oudotomedaqualidadeinerentesaoconto.Masemnenhummomentoconsigomelembrardequegostardeumahistóriadependessedacrençadequeaquelascoisaspoderiamacontecer,outinhamacontecido,na“vidareal”.Oscontosdefadasclaramentenãoenvolviamprimordialmenteapossibilidade,massimadesejabilidade.Sedespertavamdesejo,satisfazendo-oaomesmotempoquemuitasvezesoatiçavaminsuportavelmente,tinhamsucesso.Nãoénecessáriosermaisexplícitoaqui,poispretendodizeradiantealgosobreessedesejo,um
complexodemuitosingredientes,algunsuniversais,outrosparticularesaoshomensmodernos(inclusiveàscriançasmodernas),oumesmoacertostiposdehomens.EunãodesejavatersonhosnemaventurascomoAlice,eanarraçãodelessimplesmentemedivertia.Eutinhamuitopoucodesejodeprocurartesourosenterradosoucombaterpiratas,eaIlhadoTesouronãomeentusiasmava.Ospeles-vermelhaserammelhores:nessashistóriashaviaarcoseflechas(eutinhaetenhoumdesejototalmenteinsatisfeitodeatirarbemcomarco),línguasestranhas,vislumbresdeummododevidaarcaicoe,acimadetudo,florestas.MasaterradeMerlineArtureramelhorqueeles,emelhordoquetudoeraonortesemnomedeSigurddosVölsungs,eopríncipedetodososdragões.Essasterraserampreeminentementedesejáveis.Nuncaimagineiqueodragãofossedamesmaordemqueocavalo.Eissonãosóporqueeuviacavalostodososdias,masnuncatinhavistonemapegadadeumlagarto25.Odragãotinhanele,claramenteinscrita,amarcaregistradaDoReinoEncantado.Fossequalfosseomundoemqueeletinhaexistência,eraumOutromundo.Afantasia,acriaçãoouovislumbredeOutrosmundoseraocernedodesejodoReinoEncantado.Eudesejavadragõescomumdesejoprofundo.Éclaroque,commeucorpotímido,nãoqueriatê-losnasproximidades,intrometendo-seemmeumundorelativamenteseguro,ondeporexemploerapossívellerhistóriasempazmental,livredemedo26.MasomundoquecontinhaatémesmoaimaginaçãodeFáfnireramaisricoemaisbelo,fossequalfosseocustodoperigo.Ohabitantedaplanícietranquilaefértilpodeouvirfalardascolinasatormentadasedomarsemcolheitaeansiarporelesemseucoração.Poisocoraçãoéfirme,pormaisfracoquesejaocorpo.
Mesmoassim,pormaisqueeuagorapercebaaimportânciadoelementodocontodefadasnasleiturasinfantis,falandopormimquandocriança,sópossodizerqueogostopeloscontosdefadasnãofoiumacaracterísticadominantedasprimeiraspreferências.Overdadeirogostoporelesdespertoudepoisdosdiasde“quartodecriança”,edepoisdosanos,poucosmasquepareciamlongos,entreaprenderalereirparaaescola.Naqueletempo(quaseescrevi“feliz”ou“dourado”,masnaverdadefoi
tristeeturbulento)eutambémgostava,igualmenteoumais,demuitasoutrascoisas,comohistória,astronomia,botânica,gramáticaeetimologia.Eunãocondizianemumpoucocomas“crianças”generalizadasdeLangemprincípio,esomenteemalgunspontosporacaso:porexemplo,euerainsensívelàpoesia,e,quandoelaaparecianashistórias,euapulava.Descobriapoesiamuitomaistarde,nolatimenogrego,especialmenteporserobrigadoatentarverterversosinglesesparaversosclássicos.Umgostorealporcontosdefadasfoidespertadopelafilologianolimiardaidadeadulta,eestimuladoàplenavidapelaguerra.
Talvezeutenhaditomaisqueosuficientesobreesteponto.Pelomenosficaráclaroquenaminhaopiniãooscontosdefadasnãodeveriamserespecialmenteassociadosàscrianças.Elessãoassociadosaelasnaturalmente,porqueascriançassãohumanaseoscontosdefadassãoumgostohumanonatural(porémnãonecessariamenteuniversal);casualmente,porqueoscontosdefadasrepresentamgrandepartedomaterialliterárioqueaEuroparecenterelegouaossótãos;nãonaturalmente,porcausadeumsentimentoerrôneocomrespeitoàscrianças,umsentimentoquepareceaumentarcomodecréscimodonúmerodecrianças.
Éverdadequeaeradosentimentodeinfânciaproduziualgunslivrosagradáveis(porémespecialmenteencantadoresparaadultos)daespéciedasfadasoupróximosdela,mastambémproduziuumespantosomatagaldehistóriasescritasouadaptadasparaoqueseconcebiaouconcebeseropadrãodasmentesenecessidadesinfantis.Asantigashistóriassãoabrandadasouexpurgadasemvezdeseremreservadas;muitasvezesasimitaçõessãosimplesmentetolas,coisasdePigwiggensemnemsequeraintriga;oucondescendentes;ou(piordetudo)dissimuladamentetrocistas,deolhonosoutrosadultospresentes.NãoacusareiAndrewLangdefazertroça,mascertamenteelesorriaconsigomesmo,etambémcertamentemuitasvezesespiavaorostodeoutraspessoasespertasporcimadascabeçasdesuaplateiainfantil–muitoemdetrimentodasCrônicasdePantouflia.
Dasentrespondeucomvigorejustiçaaospudicoscríticosdesuas
traduçõesdecontospopularesnórdicos.Noentanto,cometeuaespantosabobagemdeproibirespecialmenteascriançasdeleremosdoisúltimosdesuacoleção.Parecequaseincrívelqueumhomempudesseestudarcontosdefadasenãosaberfazermelhorqueisso.Masnemacrítica,nemaresposta,nemaproibiçãoteriamsidonecessáriasseascriançasnãotivessemsidoconsideradas,desnecessariamente,asleitorasinevitáveisdolivro.
NãonegoqueháumacertaverdadenaspalavrasdeAndrewLang(pormaisquepossamsoarsentimentalistas):“QuemquiserentrarnoReinoEncantadodeveráterocoraçãodeumacriancinha.”Poisessaposseénecessáriaparatodaaventuraelevada,emreinosmenoresemuitomaioresqueoReinoEncantado.Mashumildadeeinocência–éissoque“coraçãodecriança”devesignificarnessecontexto–nãoimplicamnecessariamenteumaadmiraçãoisentadecrítica,nemnaverdadeumadelicadezaisentadecrítica.CertavezChestertonobservouqueascriançasemcujacompanhiaassistiuaoPássaroAzul,deMaeterlinck,ficaraminsatisfeitas“porquenãoterminoucomumJuízoFinal,enãofoireveladoaoheróieàheroínaqueoCãofoifieleoGatoinfiel”.“Poisascrianças”,dizele,“sãoinocenteseamamajustiça,aopassoqueamaioriadenósémalvadaenaturalmenteprefereamisericórdia.”
AndrewLangfoiconfusonesteponto.Empenhou-seemdefenderoassassinatodoAnãoAmarelopeloPríncipeRicardoemumdeseuscontosdefadas.“Odeiocrueldade”,disseele,“[...]masissofoinumalutajusta,espadanamão,eoanão,pazàssuascinzas!,morreunocumprimentodesuamissão.”Porémnãoéevidentequeuma“lutajusta”sejamenoscruelqueum“julgamentojusto”;ouquetrespassarumanãocomumaespadasejamaisjustoqueaexecuçãodereismalignosemadrastasmás–queLangrepudia:elemandaoscriminosos(conformesegaba)àaposentadoriacomamplaspensões.Issoémisericórdianãotemperadapelajustiça.Éverdadequeessepleitonãofoidirigidoàscrianças,esimaospaisetutores,aquemLangrecomendavaseusPríncipePrigioePríncipeRicardocomosendoadequadosaosseusencargos27.ForamospaisetutoresqueclassificaramcontosdefadascomoJuvenilia.Eestaéuma
pequenaamostradofalseamentodevaloresresultante.
Seusamoscriançanobomsentido(apalavratambémtem,legitimamente,ummausentido),nãodevemospermitirqueissonosempurreparaosentimentalismodesóusaradultonomausentido(apalavratambémtem,legitimamente,umbomsentido).Oprocessodesetornarmaisvelhonãoestánecessariamentealiadoaodesetornarmaismalvado,emboraosdoismuitasvezesocorramjuntos.Espera-sequeascriançascresçamenãosetransformememPeterPans.Nãoparaperderemainocênciaeomaravilhamento,masparaprosseguiremaviagemdeterminada,aquelaemquecertamentenãoémelhorviajaresperançosodoquechegar,apesardetermosdeviajaresperançosossequisermoschegar.Masumadasliçõesdoscontosdefadas(seéquesepodefalaremliçõesdecoisasquenãoseensinam)éque,àjuventudeimatura,indolenteeegoísta,operigo,opesareasombradamortepodemconferirdignidadeeàsvezesatésabedoria.
NãovamosdividiraraçahumanaemEloieMorlocks:criançasbonitas–“elfos”,comooséculoXVIIIcostumavachamá-lasidiotamente–comseuscontosdefadas(cuidadosamentedesbastados),eMorlockssombrioscuidandodesuasmáquinas.Seocontodefadas,comoespécie,mereceserlido,entãomereceserescritoporadultoselidoporeles.Éclaroqueelesacrescentarãomaiseextrairãomaisdoqueascriançassãocapazes.Então,comoumramodeartegenuína,ascriançaspoderãoteraesperançaderecebercontosdefadasadequadosparaelasleremeaoseualcance;assimcomopoderãoteraesperançadereceberintroduçõesàpoesia,àhistóriaeàsciênciasquelhessejamapropriadas.Emboratalvezsejamelhorparaelasleremalgumascoisas,emespecialcontosdefadas,queestejamalémdoseualcanceenãoaquém.Seuslivros,comosuasroupas,devemdarespaçoparacrescer,edetodomodoseuslivrosdevempromoverocrescimento.
Oramuitobem.Seosadultosdevemlercontosdefadascomoumramonaturaldaliteratura–nembrincandodesercrianças,nemfingindoqueestãoescolhendoparacrianças,nemsendomeninosquenãoqueremcrescer–,quaissãoosvaloreseasfunçõesdessaespécie?Estaé,penso
eu,aúltimaemaisimportantepergunta.Jáaponteiparaalgumasdasminhasrespostas.Antesdetudo:seforemescritoscomarte,ovalorprimordialdoscontosdefadasserásimplesmenteaquelevalorque,comoliteratura,elescompartilhamcomoutrasformasliterárias.Masoscontosdefadastambémoferecem,emgrauoumodopeculiar,estascoisas:Fantasia,Recuperação,Escape,Consolo,coisasdequeascriançasporviaderegraprecisammenosqueosmaisvelhos.Hojeemdiaamaioriadelasémuitocomumenteconsideradanocivaparatodos.Vouconsiderá-lasbrevemente,ecomeçareipelaFantasia.
FANTASIA
Amentehumanaécapazdeformarimagensmentaisdecoisasquenãoestãopresentesdefato.Afaculdadedeconceberasimagensé(ouera)naturalmentechamadadeImaginação.Masemtemposrecentes,emlinguagemtécnica,nãonormal,aImaginaçãomuitasvezestemsidoconsideradaalgomaiselevadoqueameracriaçãodeimagens,atribuídaàsoperaçõesdeFancyg(umaformareduzidaedepreciativadapalavramaisantigaFantasy);assim,tenta-serestringir,eudeveriadizerperverter,aImaginaçãoao“poderdedaracriaçõesideaisaconsistênciainternadarealidade”.
Pormaisquepossaserridículoalguémtãopoucoinstruídoterumaopiniãosobreesteassuntocrítico,arrisco-meaconsideraradistinçãoverbalfilologicamenteinapropriadaeaanáliseimprecisa.Opodermentaldecriaçãodeimagenséumacoisa,ouaspecto,edeveriaserchamado,apropriadamente,deImaginação.Apercepçãodaimagem,acompreensãodesuasimplicações,eocontrole,quesãonecessáriosaumaexpressãobem-sucedida,podemvariaremvivacidadeeintensidade,maséumadiferençadegraudaImaginação,nãoumadiferençadeespécie.Arealizaçãodaexpressão,queconfere(ouparececonferir)“aconsistênciainternadarealidade”28,énaverdadeoutracoisa,ouaspecto,quenecessitadeoutronome:Arte,ovínculooperativoentreaImaginaçãoeoresultado
final,aSubcriação.ParameupresenteobjetivoprecisodeumapalavraquepossaenglobartantoaArteSubcriativaemsiquantoumaqualidadedeestranhezaemaravilhamentonaExpressão,derivadadaImagem:umaqualidadeessencialaocontodefadas.Proponho,assim,atribuir-meospoderesdeHumptyDumptyh,eusarFantasiaparaestefim,ouseja,numsentidoquecombinacomseuusomaisantigoeelevado,comoequivalentedeImaginação,osconceitosderivadosde“irrealidade”(ouseja,dedessemelhançacomoMundoPrimário),deliberdadedadominaçãodos“fatos”observados,emsuma,dofantástico.Assim,estounãosóconscientemascontentecomasconexõesetimológicasesemânticasdefantasiacomfantástico,comimagensdecoisasquenãosomente“nãoestãopresentesdefato”,masquenaverdadenempodemserencontradasemnossomundoprimário,ouquegeralmentesecrêquenãopodemserencontradasnele.Mas,mesmoadmitindoisso,nãoconsintootomdepreciativo.Ofatodeasimagensseremdecoisasquenãosãodomundoprimário(seéqueissoépossível)éumavirtude,nãoumdefeito.Creioqueafantasia(nestesentido)nãoéumaformainferiordeArte,esimsuperior,defatoamaispróximadaformapura,eportanto(quandoalcançada)amaispotente.
ÉclaroqueaFantasiacomeçacomumavantagem:aestranhezacativante.Masessavantagemtemsevoltadocontraela,econtribuiuparasuadifamação.Muitaspessoasnãogostamdeser“cativadas”.NãogostamdenenhumainterferênciacomoMundoPrimário,oucomospequenosvislumbresdelequelhessãofamiliares.Portantoelasconfundem,tolamenteeatémaldosamente,aFantasiacomoSonho,noqualnãoexisteArte29;ecomdistúrbiosmentais,nosquaisnãoexistenemmesmocontrole:comilusãoealucinação.
Masoerroouamaldade,engendradospelainquietaçãoeconsequenteaversão,nãosãoaúnicacausadessaconfusão.AFantasiatambémtemumadesvantagemessencial:édifícildealcançar.AFantasiatalvezseja,emminhaopinião,nãomenosesimmaissubcriativa,porémdequalquermododescobre-senapráticaque“aconsistênciainternadarealidade”serátantomaisdifícildeproduzirquantomaisasimagenseosrearranjos
domaterialprimárioforemdiferentesdosarranjosreaisdoMundoPrimário.Émaisfácilproduziressetipode“realidade”commaterialmais“sóbrio”.Portanto,comdemasiadafrequênciaaFantasiapermanecerudimentar;elaéefoiusadafrivolamente,oucompoucaseriedade,ouapenascomodecoração;permaneceapenas“fantasiosa”.Qualquerpessoaquetenhaherdadoofantásticodispositivodalinguagemhumanapodedizerosolverde.Muitospodementãoimaginá-loouconcebê-lo.Masissonãobasta–emborajápossaseralgomaispotentedoquemuitos“brevesesboços”ou“reproduçõesdavida”querecebemelogiosliterários.
FazerumMundoSecundáriodentrodoqualosolverdesejaverossímil,impondoCrençaSecundária,provavelmenteexigirátrabalhoereflexão,ecertamentedemandaráumahabilidadeespecial,umaespéciededestrezaélfica.Poucostentamtarefatãodifícil.Mas,quandoelassãotentadase,emalgumgrau,executadas,temosumarararealizaçãodaArte:naverdade,aartenarrativa,acriaçãodehistóriasemseumodoprimordialemaispotente.
NaartehumanaaFantasiaéalgoqueémelhorincumbiràspalavras,àverdadeiraliteratura.Napintura,porexemplo,aapresentaçãovisíveldaimagemfantásticaétecnicamentefácildemais;amãotendeasuplantaramente,atémesmoaderrubá-la30.Frequentementeoresultadoétolooumórbido.ÉuminfortúnioqueoDrama,umaartefundamentalmentediversadaLiteratura,sejatãocomumenteconsideradojuntocomela,oucomoramodela.EntreessesinfortúniospodemoscontaradepreciaçãodaFantasia.Poisessadepreciação,pelomenosemparte,deve-seaodesejonaturaldoscríticosdeexaltarasformasdeliteraturaou“imaginação”queelesprópriospreferem,demodoinatoouportreinamento.Eacrítica,numpaísqueproduziutãoimportanteDramaetemasobrasdeWilliamShakespeare,tendeaserdemasiadodramática.MasoDramaénaturalmentehostilàFantasia.AFantasia,mesmodotipomaissimples,dificilmentetemêxitonoDrama,quandoeleéapresentadocomodeveser,atuadodemodovisíveleaudível.Asformasfantásticasnãopodemsersimuladas.Homensvestidosdeanimaisfalantespodemredundarembufonariaouarremedo,masnãoalcançamaFantasia.Pensoqueissoé
bemilustradopelofracassodaformabastarda,apantomima.Quantomaispróximado“contodefadasdramatizado”,piorelaé.Sóétolerávelquandooenredoesuafantasiasereduzemameroenquadramentovestigialparaafarsa,enenhuma“crença”éexigidanemesperadadeninguémemnenhumapartedaencenação.Isso,éclaro,deve-seemparteaofatodequeosprodutoresdodramaprecisam,outentam,trabalharcommecanismospararepresentaraFantasiaouaMagia.Certavezassistiaumaassimchamada“pantomimaparacrianças”,ahistóriaexatadoGatodeBotas,tendoatéametamorfosedoogroemcamundongo.Setivessesidoumsucessodopontodevistamecânico,teriaaterrorizadoosespectadoresouteriasidoapenasumtruquedeprestidigitaçãodealtaclasse.Damaneiracomofoifeita,apesardealgumaengenhosidadenailuminação,adescrençatevenãosódesersuspensa,mastambémenforcada,estripadaeesquartejada.
EmMacbeth,quandoélido,achoasfeiticeirastoleráveis;elastêmumafunçãonarrativaecomoqueumainsinuaçãodesignificadosombrio,emborasejamvulgarizadas,pobresrepresentantesdesuaespécie.Naencenaçãosãoquaseintoleráveis.Seriamabsolutamenteintoleráveisseeunãofossefortalecidoporalgumalembrançadecomosãonahistórialida.Dizem-mequeeumesentiriadiferentesetivesseoespíritodaquelaépoca,comsuascaçaseinquisiçõesdefeiticeiras.Maséprecisodizer:seeuconsiderasseasfeiticeiraspossíveis,defatoprováveis,noMundoPrimário;emoutraspalavras,seelasdeixassemdeser“Fantasia”.Esseargumentoéconclusivo.Serdissolvida,ouserdegradada,éaprovávelsinadaFantasiaquandoumdramaturgotentausá-la,mesmoumdramaturgocomoShakespeare.Macbethédefatoumaobradeartedeumteatrólogoquedeveria,pelomenosnaquelaocasião,terescritoumahistória,setivessehabilidadeoupaciênciaparaessaarte.
Umarazão,creioquemaisimportantedoqueainadequaçãodosefeitosdepalco,éesta:oDrama,porsuapróprianatureza,jáempreendeumaespéciedemagiafalsa,digamospelomenossubstituta:aapresentaçãovisíveleaudíveldepessoasimagináriasnumahistória.Isso,porsisó,éumatentativadearremedaravarinhamágica.Introduzir,mesmocomsucesso
mecânico,maisfantasiaoumagianessemundosecundárioquase-mágico,éexigircomoqueummundointernoouterciário.Éummundodemais.Podenãoserimpossívelconseguirisso.Nuncaviissoserfeitocomêxito.MaspelomenosnãopodeserproclamadocomoomodocorretodoDrama,emquepessoasquecaminhamefalamforamconsideradasinstrumentosnaturaisdaArteeilusão31.
Exatamenteporessarazão–ofatodenoDramaospersonagens,emesmoascenas,nãoseremimaginadosmasobservados–oDrama,apesardeusarmaterialsemelhante(palavras,versos,enredo),éumaartefundamentalmentediferentedaartenarrativa.Assim,sepreferirmosoDramaàLiteratura(comoclaramentepreferemmuitoscríticosliterários),ouformarmosnossasteoriascríticasprimordialmenteapartirdecríticasdeteatro,oumesmoapartirdoDrama,estaremossujeitosacompreendermalapuracriaçãodehistóriasearestringi-laàslimitaçõesdaspeçasdeteatro.Porexemplo,provavelmentepreferiremosospersonagens,mesmoosmaisordinárioseobtusos,aosobjetos.Muitopoucacoisaarespeitodeárvorescomoárvorespodeserintroduzidanumapeça.
Jáo“DramadoReinoEncantado”–aquelaspeçasque,deacordocomabundantesregistros,oselfosmuitasvezesapresentaramaoshomens–écapazdeproduzirFantasiacomumrealismoeumainstantaneidadequeultrapassamoslimitesdequalquermecanismohumano.Comoconsequência,seuefeitousual(sobreumhomem)éultrapassaraCrençaSecundária.AopresenciarmosumdramanoReinoEncantado,estaremos,oupensaremosestar,pessoalmentedentrodoseuMundoSecundário.AexperiênciapodesermuitosemelhanteaoSonho,eàsvezes(peloshomens)temsido(aoqueparece)confundidacomele.MasnodramadoReinoEncantadoestamosemumsonhoqueoutramenteestátecendo,eoconhecimentodessefatoalarmantepodeescaparànossacompreensão.ExperimentardiretamenteumMundoSecundário:apoçãoéfortedemais,enóslheconferimosaCrençaPrimária,pormaisqueosacontecimentossejammaravilhosos.Somosiludidos–seéessaaintençãodoselfos(sempreouaqualquertempo)éoutraquestão.Sejacomofor,elesmesmosnãoestãoiludidos.ParaelesestaéumaformadeArte,distintadaMágica
ouMagiapropriamentedita.Nãovivemnela,emborapossam,talvez,tercondiçõesdegastarmaistempocomeladoqueosartistashumanos.OMundoPrimário,aRealidade,éomesmoparaelfosehomens,aindaqueapreciadoepercebidodemododiverso.
Precisamosdeumapalavraparaessadestrezaélfica,mastodasaspalavrasquelhetêmsidoaplicadasforamobscurecidaseconfundidascomoutrascoisas.Magiaéumaqueseapresentaprontamente,eusei-aacima(p.11),masnãodeveria.MagiadeveriaserreservadaàsoperaçõesdoMágico.AArteéoprocessohumanoqueproduzdepassagemCrençaSecundária(essenãoéseuobjetivoúniconemfinal).OselfostambémconseguemusarArtedamesmaespécie,emboracommaishabilidadeesemesforço,oupelomenoséissoqueosrelatosparecemmostrar.MaschamareideEncantamentoadestrezamaispotente,especialmenteélfica,porfaltadepalavramenosdiscutível.OEncantamentoproduzumMundoSecundárioemquepodementrartantooplanejadorquantooespectador,parasatisfaçãodeseussentidosenquantoestãodentro;masemestadopuroeleéartísticopordesejoepropósito.AMagiaproduz,oufingeproduzir,umaalteraçãonoMundoPrimário.Nãoimportaquemsedigaqueapratica,fadaoumortal,elapermanecedistintadosoutrosdois;nãoéarteesimtécnica;seudesejoépodernestemundo,dominaçãodosobjetosedasvontades.
AFantasiaaspiraàdestrezaélfica,oEncantamento,equandotemêxitoaproxima-semaisdelequetodasasformasdaartehumana.Nocernedemuitashistóriasdeelfosfeitaspeloshomensreside,abertooudissimulado,purooumesclado,odesejoporumaartesubcriativavivaerealizada,que(pormaisqueselheassemelheexteriormente)éinteriormentebemdiferentedaavidezporpoderautocentradoqueéamarcadosimplesMágico.Édessedesejoqueoselfos,nasuamelhorparte(aindaassimperigosa),sãofeitosemgrandeparte;eécomelesquepodemosaprenderqualéodesejoeaspiraçãocentraldaFantasiahumana–mesmoqueoselfossejam,maisaindanamedidaemquesão,somenteumprodutodaprópriaFantasia.Essedesejocriativosóéludibriadoporimitações,quersejamosartifíciosinocentesmasdesastradosdodramaturgohumanoou
asfraudesmalévolasdosmágicos.Nestemundo,eleéinsaciávelparaoshomens,eportantoimperecível.Incorrupto,nãobuscailusãonemfeitiçoedominação;buscaenriquecimentocompartilhado,parceirosnofazerenodeleite,nãoescravos.
ParamuitosaFantasia,essaartesubcriativaquepregaestranhaspeçasaomundoeatudooquehánele,combinandosubstantivoseredistribuindoadjetivos,parecesuspeita,senãoilegítima.Paraalgunselaparecenomínimoumatoliceinfantil,algoquesóserveparapovosoupessoasemsuajuventude.Sobresualegitimidadefareiapenascitarumbrevetrechodeumacartaquecertavezescreviparaumhomemquedescreveuomitoeocontodefadascomo“mentiras”;mas,paralhefazerjustiça,elefoisuficientementegentileestavasuficientementeconfusoparachamaracriaçãodecontosdefadasde“SussurrarumamentiraatravésdePrata”.
“DearSir,”Isaid–“Althoughnowlongestranged,
Manisnotwhollylostnorwhollychanged.
Dis-gracedhemaybe,yetisnotde-throned,
andkeepstheragsoflordshiponceheowned:
Man,Sub-creator,therefractedLight
throughwhomissplinteredfromasingleWhite
tomanyhues,andendlesslycombined
inlivingshapesthatmovefrommindtomind.
Thoughallthecranniesoftheworldwefilled
withElvesandGoblins,thoughwedaredtobuild
Godsandtheirhousesoutofdarkandlight,
andsowedtheseedofdragons–’twasourright
(usedormisused).Thatrighthasnotdecayed:
wemakestillbythelawinwhichwe’remade.”i
AFantasiaéumaatividadehumananatural.Certamenteelanãodestrói
aRazão,muitomenosinsulta;enãoabrandaoapetitepelaverdadecientíficanemobscureceapercepçãodela.Aocontrário.Quantomaisargutaeclaraarazão,melhorfantasiaproduzirá.Seoshomensestivessemnumestadoemquenãoquisessemconhecerounãopudessemperceberaverdade(fatosouevidência),entãoaFantasiadefinhariaatéqueelessecurassem.Sechegaremaatingiresseestado(nãoparecetotalmenteimpossível),aFantasiapereceráesetransformaráemIlusãoMórbida.
PoisaFantasiacriativasefundamentanofirmereconhecimentodequeascoisassãonomundoassimcomoesteaparecesobosol;noreconhecimentodofato,masnãonaescravizaçãoaele.Assimfundamentou-senalógicaoabsurdoqueaparecenoscontosepoemasdeLewisCarroll.Seaspessoasrealmentenãoconseguissemdistinguirsaposdehomens,nãoteriamsurgidocontosdefadassobrereissapos.
ÉclaroqueaFantasiapodeserlevadaaoexagero.Podesermalfeita.Podeserviramaususos.Podeatéiludirasmentesdasquaissurgiu.Mas,nestemundocaído,paraquecoisahumanaissonãoéverdade?Oshomensnãosóconceberamelfos,masimaginaramdeuses,eoscultuaram,ecultuaramatéaquelesmaisdeformadospelomaldeseupróprioautor.Masfizeramfalsosdeusesapartirdeoutrosmateriais:suasopiniões,seusestandartes,seusdinheiros;atésuasciênciasesuasteoriassociaiseeconômicasdemandaramsacrifíciohumano.Abususnontollitusum.AFantasiacontinuasendoumdireitohumano:fazemosemnossamedidaeanossomododerivativo,porquesomosfeitos,enãoapenasfeitos,masfeitosàimagemesemelhançadeumCriador.
RECUPERAÇÃO,ESCAPE,CONSOLO
Quantoàvelhice,sejaelapessoaloudostemposemquevivemos,talvezsejaverdade,comosesupõefrequentemente,queelaimpõeincapacitações(verp.34).Masessaéessencialmenteumaideiaproduzidapelosimplesestudodoscontosdefadas.Oestudoanalíticodecontosdefadaséumapreparaçãotãoruimparaapreciá-losouescrevê-losquanto
seriaoestudohistóricododramadetodosospaísesetemposparaapreciarouescreverpeçasdeteatro.Oestudopodenaverdadetornar-sedeprimente.Éfáciloestudiososentirque,comtodooseutrabalho,estácoletandoapenasumaspoucasfolhas,muitasagorarotasoudeterioradas,daincontávelfolhagemdaÁrvoredosContos,comasquaiséatapetadaaFlorestadosDias.Pareceinútilaumentaressacamada.Quemconsegueprojetarumanovafolha?Ospadrõesdobotãoatéodesabrochareascoresdaprimaveraatéooutonoforamdescobertospeloshomenshámuitotempo.Masissonãoéverdade.Asementedaárvorepodeserreplantadaemquasequalquersolo,mesmotãosaturadodefumaça(assimdisseLang)comoodaInglaterra.Éclaroque,realmente,aprimaveranãoémenosbonitaporquevimosououvimosfalardeoutroseventossemelhantes:eventossemelhantes,nuncaomesmoeventodocomeçodomundoaofimdomundo.Cadafolha,decarvalho,freixoeespinheiro,éumaconcretizaçãosingulardopadrão,eparaalgunsesteanomesmotalvezsejaaconcretização,aprimeirajávistaereconhecida,apesardeoscarvalhosteremproduzidofolhasduranteincontáveisgeraçõesdehomens.
Nãodesanimamos,ounãoprecisamosdesanimardodesenhoporquetodasaslinhastêmdesercurvasouretas,nemdapinturaporquesóexistemtrêscores“primárias”.Naverdadepodemosagorasermaisvelhos,namedidaemquesomosherdeiros,naapreciaçãoounaprática,demuitasgeraçõesdeancestraisnasartes.Nessaherançadefarturapodehaveroperigodotédiooudaansiedadeporseroriginal,eissopodelevaràaversãoporumdesenhofino,umpadrãodelicadooucores“bonitas”,ouentãoàmeramanipulaçãoeelaboraçãoexageradadematerialantigo,hábileinsensível.Masoverdadeirocaminhoparaescapardesseenfadonãopodeserencontradonoqueéintencionalmenteinepto,canhestroedisforme,nememfazertodasascoisassombriasouconstantementeviolentas,nemnamisturadecorespassandodasutilezaàmonotonia,ounafantásticacomplicaçãodeformaschegandoàtolicee,alémdela,aodelírio.Antesdeatingirmosessesestadosprecisamosderecuperação.Precisamosvoltaraolharoverdeenossurpreenderdenovo(masnãonos
ofuscar)comoazul,oamareloeovermelho.Precisamosencontrarocentauroeodragão,etalvezdepoiscontemplarderepente,comoosantigospastores,oscarneiros,oscães,oscavalos–eoslobos.Oscontosdefadasnosajudamarealizaressarecuperação.Nessesentidosóogostoporelespodenostornar,oumanter,infantis.
Arecuperação(queincluioretornoearenovaçãodasaúde)éumare-tomada–aretomadadeumavisãoclara.Nãodigo“verascoisascomoelassão”,poisassimmeenvolveriacomosfilósofos,maspossoarriscar-meadizer“verascoisascomodevemos(oudeveríamos)vê-las”–comocoisasseparadasdenós.Emtodocaso,precisamoslimparnossasjanelas,paraqueascoisasvistascomclarezapossamficarlivresdanódoaopacadatrivialidadeoufamiliaridade–dapossessividade.Detodososrostos,osdenossosfamiliaressãoaomesmotempoaquelesemqueémaisdifícilpregarpeçasfantásticaseosmaisdifíceisdeobservarcomatençãodespojada,percebendosemelhançaedessemelhançaentreeles:quesãorostos,erostossingulares.Essatrivialidadeé,defato,apenasapenalidadeda“apropriação”;ascoisasquesãotriviaisou(nomausentido)familiaressãoascoisasqueapropriamos,legaloumentalmente.Dizemosqueasconhecemos.Tornaram-secomoascoisasqueumdianosatraírampelobrilho,oupelacor,oupelaforma;pusemosasmãosnelaseastrancamosemnossotesouro,nósasadquirimose,umavezadquiridas,deixamosdeolharparaelas.
Éclaroqueoscontosdefadasnãosãooúnicomeioderecuperação,ouprofilaxiacontraperda.Ahumildadeésuficiente.Eexiste(especialmenteparaoshumildes)Mooreeffoc,ouFantasiachestertoniana.Mooreeffocéumapalavrafantástica,maspodia-sevê-laescritaemtodasascidadesdestepaís.ÉapalavraCoffee-roomj,vistadedentroatravésdeumaportadevidro,comoDickensaviunumescurodialondrino;foiempregadaporChestertonparadenotaraestranhezadascoisasquesetornaramtriviais,quandoderepentesãovistasporumnovoângulo.Amaioriadaspessoasconcordariaemqueessaespéciede“fantasia”ébastantesaudável;ejamaislhefaltarámaterial.Mas,pensoeu,elatemapenasumpoderlimitado;poisrecuperarofrescordavisãoésuaúnicavirtude.Apalavra
Mooreeffocpodefazer-nosperceberderepentequeaInglaterraéumpaístotalmenteestranho,perdidonumpassadoremotovislumbradopelahistória,ounumfuturoestranhoeturvoquesópodeseralcançadonumamáquinadotempo;veraespantosaexcentricidadeeointeressedeseushabitantes,seuscostumesehábitosalimentares;porémnadapodefazeralémdisso:funcionarcomoumtelescópiotemporalfocalizadoemumponto.Afantasiacriativa,porqueestáprincipalmentetentandofazeroutracoisa(fazeralgonovo),podeabrirnossotesouroedeixarvoartodasascoisastrancadascomopássarosdegaiola.Todasasjoiassetransformamemfloresouchamas,eseremosalertadosdequetudooquetínhamos(ouconhecíamos)eraperigosoeforte,nãorealmenteacorrentado,livreeselvagem;nãoeranosso,assimcomonãoeranós.
Oselementos“fantásticos”emversoeprosadeoutrostipos,mesmoquandoapenasdecorativosouocasionais,ajudamessaliberação.Masnãotãointeiramentequantoumcontodefadas,umacoisaconstruídasobreaFantasiaouacercadela,cujonúcleoéaFantasia.AFantasiaéfeitadoMundoPrimário,masumbomartíficeamaseumaterialetemumconhecimentoeumasensibilidadedaargila,dapedraedamadeiraquesóaartedefazerpodeproporcionar.AoforjarGramoferrofriofoirevelado;aofazerPégasooscavalosforamenobrecidos;nasÁrvoresdoSoledaLua,raizetronco,florefrutomanifestam-seemglória.
Edefatooscontosdefadastratamemgrandeparte,ou(osmelhores)principalmente,decoisassimplesefundamentais,intocadaspelaFantasia,masessassimplicidadestornam-seaindamaisluminosaspeloseuambiente.Poisocriadordehistóriasquesepermite“tomarliberdades”comaNaturezapodeserseuamante,nãoseuescravo.Foinoscontosdefadasqueprimeiropressentiapotênciadaspalavras,eoprodígiodascoisas,comopedra,madeira,ferro;árvoreegrama;casaefogo;pãoevinho.
AgoraconcluireiconsiderandooEscapeeoConsolo,quenaturalmenteestãomuitoligadosentresi.Emboraoscontosdefadas,éclaro,nãosejamdemodonenhumoúnicomeiodeEscape,hojeelessãoumadasformasmaisóbviase(paraalguns)abusivasdeliteratura“escapista”;assim,é
razoávelacrescentaraumestudodelesalgumasconsideraçõesdotermo“escape”nacríticaemgeral.
AfirmeiqueoEscapeéumadasprincipaisfunçõesdoscontosdefadas,ecomonãoosreprovoéóbvioquenãoaceitootomdedesdémoupiedadecomquetãofrequentementeseusa“Escape”hojeemdia,umtomemnadajustificadopelosusosdapalavraforadacríticaliterária.NaquiloqueosqueusamEscapeerroneamentegostamdechamarVidaReal,porviaderegraoEscapeéevidentementemuitoprático,epodeatéserheroico.Navidarealédifícilcondená-lo,anãoserquefracasse;nacríticaparecesertantopiorquantomaistemsucesso.Evidentementeestamosdiantedeummauusodepalavras,etambémdeumaconfusãodepensamento.Porquedesdenharumhomemse,estandonaprisão,eletentasaireirparacasa?Ouse,quandonãopodefazê-lo,pensaefalasobreoutrosassuntosquenãocarcereirosemurosdeprisão?Omundoexteriornãosetornoumenosrealporqueoprisioneironãoconseguevê-lo.Usandooescapedessaforma,oscríticosescolheramapalavraerrada,e,maisainda,estãoconfundindo,nemsempreporerrosincero,oEscapedoPrisioneirocomaFugadoDesertor.Tambémumporta-vozdoPartidopoderiaterdenominadotraiçãoofatodealguémabandonaramisériadoReichdoFuhrerouqualqueroutro,eatécriticá-lo.Domesmomodoessescríticos,parapioraraconfusãoeassimdesprezarseusoponentes,pregamseurótulodedesdémnãoapenasnaDeserção,masnoverdadeiroEscape,enoquemuitasvezessãoseuscompanheiros,Repugnância,Raiva,CondenaçãoeRevolta.Nãoapenasconfundemoescapedoprisioneirocomafugadodesertorcomotambémparecempreferiraaquiescênciado“colaboracionista”àresistênciadopatriota.Paraquempensacomoeles,bastadizer“aterraqueamavasestácondenada”paradesculparqualquertraição,naverdadeparaglorificá-la.
Umexemplosuperficial:nãomencionar(naverdadenãoexibir)numcontolumináriasderuaelétricas,dotipoproduzidoemmassa,éEscape(nessesentido).Masissopodeprovir,quasecertamenteprovém,deumaestudadaaversãoaumprodutotãotípicodaEraRobótica,quecombinaelaboraçãoeengenhosidadedemeioscomfeiura,e(muitasvezes)com
resultadoinferior.Essaslumináriaspodemtersidoexcluídasdocontosimplesmenteporseremruins,eépossívelqueumadasliçõesaseremaprendidasnahistóriasejaapercepçãodessefato.Masaívemaestocada:“Aslumináriaselétricasvieramparaficar”,dizem.HámuitotempoChestertonobservouveridicamenteque,assimqueouviaquealgo“vieraparaficar”,elesabiaquelogoaquiloseriasubstituído–naverdadeseriaconsideradodeploravelmenteobsoletoeordinário.“AmarchadaCiência,cujoritmoéaceleradopelasnecessidadesdaguerra,prossegueinexorável[...]tornandoalgumascoisasobsoletaseprefigurandonovasevoluçõesnousodaeletricidade”:umanúncio.Eledizamesmacoisa,sóquedemodomaisameaçador.Alumináriaelétricaderuapodedefatoserignorada,simplesmenteporqueétãoinsignificanteetransitória.Sejacomofor,oscontosdefadastêmcoisasmaispermanentesefundamentaisparafalar.Oraio,porexemplo.Oescapistanãoétãoservilaoscaprichosdamodaevanescentecomoaquelesoponentes.Elenãofazdosobjetos(quetalvezsejabemrazoávelconsiderarruins)seusmestresouseusdeuses,cultuando-oscomoinevitáveis,até“inexoráveis”.Eseusoponentes,dedesprezotãofácil,nãotêmgarantiadequeelesedeteráporaí;elepoderáincitaraspessoasaderrubaremaslâmpadasderua.Oescapismotemoutrorosto,aindamaisperverso:aReação.
Nãofazmuitotempo–porincrívelquepareça–ouviumeruditodeOxenfordkdeclararque“saudava”aproximidadedefábricasrobotizadasdeproduçãoemmassa,eorugidodotráfegomecânicoauto-obstruidor,porqueissopunhasuauniversidadeem“contatocomavidareal”.TalvezelequisessedizerqueaformacomooshomensvivemetrabalhamnoséculoXXestáaumentandoembarbárieaumavelocidadealarmante,equearuidosademonstraçãodissonasruasdeOxfordpodeservirdealertadequenãoépossívelpreservarpormuitotempoumoásisdesanidadenumdesertodeirracionalidadecomsimplescercas,semrealaçãoofensiva(práticaeintelectual).Temoquenãoquisesse.Sejacomofor,aexpressão“vidareal”nessecontextopareceficaraquémdospadrõesacadêmicos.Écuriosaaideiadequeautomóveissãomais“vivos”doque,digamos,centaurosoudragões;épateticamenteabsurdodizerquesão
mais“reais”doque,digamos,cavalos.Comoéreal,comoéespantosamentevivaumachaminédefábricacomparadaaumpédeolmo:pobrecoisaobsoleta,sonhoinsubstancialdeumescapista!
Quantoamim,nãoconsigoconvencer-medequeotelhadodaestaçãodeBletchleyémais“real”doqueasnuvens.Ecomoartefatoacho-omenosinspiradordoquealendáriaabóbadaceleste.Aponteparaaplataforma4émenosinteressanteparamimqueBifröstvigiadaporHeimdallcomoGjallarhorn.Darebeldiadomeucoraçãonãopossodeixardeperguntarseosengenheirosferroviários,casotivessemsidocriadoscommaisfantasia,nãopoderiamterfeitocoisamelhordoquefazemgeralmente,comtodososseusabundantesmeios.CreioqueoscontosdefadaspodemsermelhoresMestresdeArtesdoqueoindivíduoacadêmicoaquemmereferi.
Muitodaquiloqueele(suponho)eoutros(certamente)chamariamdeliteratura“séria”nadamaisédoquebrincarsobumtelhadodevidroaoladodeumapiscinamunicipal.Oscontosdefadaspodeminventarmonstrosquevoamnoarouhabitamasprofundezas,maspelomenosnãotentamescapardocéuoudomar.
E,seporummomentodeixarmosdeladoa“fantasia”,nãocreioqueoleitoroucriadordecontosdefadaspreciseseenvergonharnemmesmodo“escape”doarcaísmo,depreferir,nãodragões,mascavalos,castelos,veleiros,arcoseflechas;nãoapenaselfos,mascavaleirosereisesacerdotes.Poisafinalépossívelqueumhomemracional,apósreflexão(desligadadocontodefadasoudoromance),chegueàcondenação,pelomenosimplícitanosimplessilênciodaliteratura“escapista”,decoisasprogressistascomofábricas,oudasmetralhadorasebombasqueparecemserseusprodutosmaisnaturaiseinevitáveis,ousemosdizer“inexoráveis”.
“Acruezaefeiuradavidaeuropeiamoderna”–dessavidarealcujocontatodevemossaudar–“éumsinaldeinferioridadebiológica,dereaçãoinsuficienteoufalsaaoambiente.”32Omaisloucocasteloquejásaiudasacoladeumgigantenumaselvagemhistóriagaélica,alémdesermuitomenosfeioqueumafábricarobótica,tambémé(usandoumafrase
moderna)“numsentidomuitoreal”imensamentemaisreal.Porquenãodeveríamosescaparao“sinistroabsurdoassírio”dascartolas,oucondená-lo,ouaohorrormorlockianodasfábricas?Essascoisasestãocondenadasatémesmopelosescritoresdamaisescapistadetodasasformasdeliteratura,ashistóriasdeFicçãoCientífica.Essesprofetasfrequentementepredizem(emuitosparecemansiarporisso)ummundocomoumagrandeestaçãoferroviáriadetelhadodevidro.Masparaeles,porviaderegra,émuitodifícildeduziroqueaspessoasfarãonumacidademundial.Poderãoabandonara“plenapanópliavitoriana”emfavordetrajesfolgados(comzíperes),masusarãoessaliberdadeprincipalmente,aoqueparece,parabrincarcombrinquedosmecânicosnojogodemover-seaaltavelocidade,quelogosatura.Ajulgarporalgunsdessescontos,aindaserãotãoluxuriosos,vingativosegananciososcomosempre;eosideaisdeseusidealistasmalchegamalémdaesplêndidaideiadeconstruirmaiscidadesdomesmotipoemoutrosplanetas.Édefatoumaerade“meiosaperfeiçoadosparafinsdeteriorados”.Fazpartedaenfermidadeessencialdessesdias–produzindoodesejodeescapar,nãodefatodavida,massimdenossotempopresenteedamisériaquenósmesmosfizemos–estarmosagudamenteconscientestantodafeiuradenossasobrasquantodoseumal.Assim,paranósomaleafeiuraparecemindissoluvelmenteassociados.Achamosdifícilconceberomaleabelezajuntos.Otemordabelafadaqueperpassavaaserasantigasquasenosescapadasmãos.Maisalarmanteainda:abondademesmafoiprivadadesuabelezaprópria.NoReinoEncantadopodemosdefatoconceberumogroquepossuiumcastelomedonhocomoumpesadelo(poisomaldoogroassimodeseja),masnãopodemosconceberumacasaconstruídacombompropósito–umaestalagem,umahospedariaparaviajantes,osalãodeumreivirtuosoenobre–quesejaaomesmotemporepugnantementefeia.Nosdiaspresentesseriatemerárioesperarveralgumaquenãofossefeia–anãoserquetivessesidoconstruídaantesdenossotempo.
Este,noentanto,éoaspecto“escapista”modernoeespecial(ouacidental)doscontosdefadas,queelespartilhamcomosromanceseoutrashistóriasdoousobreopassado.Muitashistóriasdopassadosóse
tornaram“escapistas”emseuapeloporquesobreviveramdesdeumtempoemqueoshomensporviaderegrasedeleitavamcomaobradesuasmãosatéonossotempo,quandomuitossentemaversãoàscoisasfeitaspelohomem.
Mastambémháoutros“escapismos”maisprofundosquesempreapareceramnoscontosdefadasenaslendas.Háoutrascoisasmaisassustadoraseterríveisaevitardoqueobarulho,ofedor,acrueldadeeaextravagânciadomotordecombustãointerna.Háfome,sede,pobreza,dor,pesar,injustiça,morte.E,mesmoquandooshomensnãoestãoenfrentandocoisasdurascomoessas,háantigaslimitaçõesàsquaisoscontosdefadasoferecemumaespéciedeescape,evelhasambiçõesedesejos(tocandoasprópriasraízesdafantasia)aosquaisoferecemumtipodesatisfaçãoeconsolo.Algumassãofraquezasoucuriosidadesperdoáveis,comoodesejodevisitar,livrecomoumpeixe,omarprofundo;ouoanseiopelovoosilencioso,graciosoefrugaldopássaro,esseanseioqueoaviãoburla,excetoemrarosmomentos,emqueévistonoalto,silencioso,graçasaoventoeàdistância,voltandoaosol;istoé,exatamentequandoéimaginadoenãousado.Existemdesejosmaisprofundos,comoodesejodeconversarcomoutrosseresvivos.Sobreessedesejo,tãoantigoquantoaQueda,fundamenta-seemgrandemedidaodiscursodosanimaisedascriaturasnoscontosdefadas,eespecialmenteacompreensãomágicadesuafalacaracterística.Essaéaraiz,enãoa“confusão”atribuídaaoshomensdopassadonãoregistrado,umaalegada“ausênciadosentimentodeseparaçãoentrenóseosanimais”33.Umfortesentimentodessaseparaçãoémuitoantigo,mastambémumasensaçãodequefoiumaruptura;umestranhodestinoeumaculparepousamsobrenós.OutrascriaturassãocomooutrosreinoscomqueoHomemrompeurelações,equeagorasóvêdefora,aolonge,estandoemguerracomelesounacondiçãodeuminquietantearmistício.Háalgunspoucosquetêmoprivilégiodefazeralgumasviagensparaoexterior;outrosprecisamsecontentarcomhistóriasdeviajantes.Mesmosobresapos.FalandodocontodefadasOReiSapo,bastanteestranhomasmuitodifundido,MaxMüllerperguntoucomseumodoempertigado:“Comofoiqueumahistóriacomoessachegouaser
inventada?Ossereshumanos,édeesperar,sempreforamsuficientementeilustradosparasaberqueocasamentoentreumsapoeafilhadeumarainhaéabsurdo.”Defatoédeesperar!Pois,senãofosseassim,essahistórianãoterianenhumpropósito,jáquedependeessencialmentedosensodoabsurdo.Origensfolclóricas(ouconjeturasarespeito)sãototalmentealheiasaestaquestão.Poucoadiantaconsiderarototemismo.Poiscertamente,sejamquaisforemoscostumeseascrençassobresaposepoçosqueestejamportrásdessahistória,aformadosapofoieestápreservadanocontodefadas34precisamenteporsertãoesquisitaeocasamentoserabsurdo,naverdadeabominável.Éclaro,porém,quenasversõesquenosdizemrespeito,gaélicas,alemãs,inglesas35,nãohádefatoumcasamentoentreumaprincesaeumsapo,poisesteeraumpríncipeencantado.Eopontocrucialdahistórianãoestáempensarquesapospossamseresposos,masnanecessidadedemanterpromessas(mesmoaquelascomconsequênciasintoleráveis)que,juntamentecomaobservânciadeproibições,perpassatodaaTerradasFadas.EstaéumanotadastrompasdaTerradosElfos,enãoéumanotadébil.
Eporfimexisteodesejomaisantigoeprofundo,oGrandeEscape:oEscapedaMorte.Oscontosdefadasfornecemmuitosexemplosemodosdele–quepoderiaserchamadodeverdadeiroespíritoescapista,ou(eudiria)fugitivo.Masoutrashistórias(principalmenteasdeinspiraçãocientífica)eoutrosestudostambémosfornecem.Oscontosdefadassãofeitosporhomens,nãoporfadas.OscontoshumanosdoselfossemdúvidaestãorepletosdoEscapedaImortalidade.Masnãosepodeesperarquenossashistóriassempreseergamacimadonossonívelcomum.Frequentementeofazem.Nelas,poucasliçõessãoensinadasmaisclaramentequeofardodessetipodeimortalidade,oumelhor,vidaserialinfinita,paraaqualo“fugitivo”gostariadefugir.Poisocontodefadaséespecialmenteeficazparaensinartaiscoisas,antigamenteeaindahoje.AmorteéotemaquemaisinspirouGeorgeMacDonald.
Maso“consolo”doscontosdefadastemoutroaspectoalémdasatisfaçãoimaginativadeantigosdesejos.MuitomaisimportanteéoConsolodoFinalFeliz.Euquasemearriscariaaafirmarquetodosos
contosdefadascompletosprecisamtê-lo.NomínimoeudiriaqueaTragédiaéaformaverdadeiradoDrama,suafunçãomaiselevada;masocontráriovaleparaocontodefadas.Jáqueaoqueparecenãotemosumapalavraqueexpresseessecontrário–vouchamá-lodeEucatástrofe.Ocontoeucatastróficoéaformaverdadeiradocontodefadas,esuafunçãomaiselevada.
Oconsolodoscontosdefadas,aalegriadofinalfeliz,oumaiscorretamentedaboacatástrofe,darepentina“virada”jubilosa(poisnãoháfimverdadeiroemnenhumcontodefadas)36;essaalegria,queéumadascoisasqueoscontosdefadasconseguemproduzirsupremamentebem,nãoéessencialmente“escapista”nem“fugitiva”.Emseuambientedecontodefadas–oudeoutromundo–elaéumagraçarepentinaemilagrosa;nuncasepodeconfiaremquevolteaocorrer.Elanãonegaaexistênciadadiscatástrofe,dopesaredofracasso;apossibilidadedestesénecessáriaàalegriadalibertação;elanega(emfacedemuitasevidências,porassimdizer)aderrotafinaluniversal,enessamedidaéevangelium,dandoumvislumbrefugazdaAlegria,Alegriaalémdasmuralhasdomundo,pungentecomoopesar.
Amarcadeumbomcontodefadas,dotipomaiselevadooumaiscompleto,éque,pormaisdesvairadosquesejamseuseventos,pormaisfantásticasouterríveissuasaventuras,elepodeproporcionaràcriançaouaohomemqueoescuta,quandochegaa“virada”,umasuspensãodarespiração,umgolpeeumsobressaltonocoração,próximosàslágrimas(oudefatoacompanhadosporelas),tãopenetrantesquantoosdequalquerformadearteliterária,ecomumaqualidadepeculiar.
Atémesmooscontosdefadasmodernosconseguemàsvezesproduziresseefeito.Nãoéalgofácildefazer;dependedetodaahistóriaqueéocenáriodavirada,eaindaassimrefleteumaglóriaretroativa.Umahistóriabem-sucedidanesseponto,emqualquermedida,nãofracassouporcompleto,quaisquerquesejamseusdefeitosequalquerquesejaamisturaouconfusãodepropósitos.IssoaconteceaténocontodefadasPríncipePrigiodopróprioAndrewLang,mesmosendoeleinsatisfatórioemváriosaspectos.Quando“cadacavaleiroreviveu,ergueuaespadaeexclamou:–
VidalongaaoPríncipePrigio”,aalegriatemumpoucodaquelaestranhaqualidadedecontodefadasmítico,maiorqueoeventodescrito.NãoteriaessaqualidadenocontodeLang,seoeventodescritonãofosseuma“fantasia”decontodefadasmaissériaqueomontanteprincipaldahistória,queéemgeralmaisfrívola,comosorrisomeiozombeteirodosofisticadoContepalaciano37.OefeitoémuitomaispoderosoepungentenumcontosériodoReinoEncantado38.Nessashistórias,quandochegaa“virada”repentina,temosumvislumbreintensodaalegriaedodesejodocoração,queporummomentoultrapassaamoldura,rompedefatoaprópriateiadahistória,edeixapassarumacentelha.
“SevenlongyearsIservedforthee,
TheglassyhillIclambforthee,
ThebluidyshirtIwrangforthee,
Andwiltthounotwaukenandturntome?”l
Eleouviuesevoltouparaela.39
EPÍLOGO
Essa“alegria”queselecioneicomoamarcadoverdadeirocontodefadas(ouromance),oucomosuachancela,merecemaioresconsiderações.
Provavelmentetodoescritorquefazummundosecundário,umafantasia,todosubcriador,desejaemcertamedidaserumcriadordeverdade,oupretendeestarsebaseandonarealidade:achaqueaqualidadepeculiardessemundosecundário(senãotodososdetalhes)40sejaderivadadaRealidade,oufluaparaela.Seconseguirdefatoumaqualidadequepossaserdescritahonestamentepeladefiniçãodedicionário:“consistênciainternadarealidade”,édifícilconcebercomoissopoderáacontecerseaobranãotiveralgumascaracterísticasdarealidade.Aqualidadepeculiarda“alegria”naFantasiabem-sucedidapodeportantoserexplicadacomoumrepentinovislumbredarealidadeouverdadesubjacente.Nãoéapenasum“consolo”paraopesardomundo,masuma
satisfação,eumarespostaàpergunta:“Éverdade?”Arespostaquedeiinicialmenteaessafoi(muitocorretamente):“Sevocêconstruiubemseupequenomundo,sim;éverdadenessemundo.”Issobastaaoartista(ouàparteartistadoartista).Masna“eucatástrofe”enxergamosnumabrevevisãoquearespostapodesermaior–podeserumlampejolongínquoouecodoevangeliumnomundoreal.Ousodessapalavradáumaindicaçãodemeuepílogo.Éumassuntosérioeperigoso.Épresunçãominhatocarnessetema;mas,seporventuraoquedigotiveralgumavalidadesobalgumpontodevista,éclaroqueéapenasumafacetadeumaverdadeincalculavelmenterica,finitasomenteporqueéfinitaacapacidadedoHomemparaquemissofoifeito.
Eumearriscariaadizerque,abordandoaHistóriaCristãdestepontodevista,pormuitotempotiveasensação(umasensaçãoalegre)dequeDeusredimiuascorruptascriaturas-criadoras,oshomens,demaneiraadequadaaesseaspectodasuaestranhanatureza,etambémaoutros.OsEvangelhoscontêmumcontodefadas,ouumahistóriadetipomaiorqueenglobatodaaessênciadoscontosdefadas.Contêmmuitasmaravilhas–peculiarmenteartísticas41,belaseemocionantes,“míticas”noseusignificadoperfeitoeencerradoemsimesmo;eentreasmaravilhasestáamaioremaiscompletaeucatástrofeconcebível.MasessahistóriaentrouparaaHistóriaeomundoprimário;odesejoeaaspiraçãodasubcriaçãoforamelevadosaocumprimentodaCriação.ONascimentodeCristoéaeucatástrofedahistóriadoHomem.ARessurreiçãoéaeucatástrofedahistóriadaEncarnação.Essahistóriacomeçaeterminaemalegria.Tempreeminentementea“consistênciainternadarealidade”.Nuncasecontouumahistóriaqueoshomensmaisquisessemdescobrirqueéverdadeira,enãohánenhumaoutraquetantoshomenscéticostenhamaceitocomoverdadeiraporseusprópriosméritos.PoisaArtedelatemotomsupremamenteconvincentedaArtePrimária,istoé,daCriação.Rejeitá-lalevaàtristezaouàira.
Nãoédifícilimaginarapeculiarexaltaçãoealegriaquesentiríamossealgumcontodefadasespecialmentebeloserevelasse“primordialmente”verdadeiro,sesuanarrativafossehistória,semcomissonecessariamente
perderosignificadomíticooualegóricoquetinha.Nãoédifícil,poisnãoseéobrigadoatentarconceberalgodequalidadedesconhecida.Aalegriaseriaexatamentedamesmaqualidade,senãodomesmograu,comoaalegriaproporcionadapela“virada”emumcontodefadas;umatalalegriatemoprópriosabordaverdadeprimária.(Docontrárioseunomenãoseriaalegria.)Elaolhaparaafrente(ouparatrás:nestecontextoadireçãonãoimporta)nadireçãodaGrandeEucatástrofe.Aalegriacristã,aGloria,édamesmaespécie;masépreeminentemente(infinitamente,senãofossefinitanossacapacidade)elevadaejubilosa.Masessahistóriaésuprema;eéverdadeira.AArtefoiverificada.DeuséoSenhor,dosanjos,doshomens–edoselfos.ALendaeaHistóriaencontraram-seesefundiram.
MasnoreinodeDeusapresençadomaiornãodeprimeopequeno.OHomemredimidocontinuasendohomem.Ahistória,afantasiaaindaprosseguem,edevemprosseguir.OEvangeliumnãoab-rogouaslendas;eleasconsagrou,emespecialo“finalfeliz”.Ocristãoaindaprecisatrabalhar,comamenteecomocorpo,sofrer,teresperançaemorrer;masagorapodeperceberquetodasassuasinclinaçõesefaculdadestêmumpropósito,quepodeserredimido.Étãograndeagenerosidadecomquefoitratadoquetalvezagorapossa,razoavelmente,ousarimaginarquenaFantasiaelepoderádefatoajudarodesabrochamentoeomúltiploenriquecimentodacriação.Todasashistóriaspoderãotornar-severdade;enoentanto,finalmenteredimidas,poderãosertãosemelhantesedessemelhantesàsformasquelhesdamosquantooHomem,finalmenteredimido,serásemelhanteedessemelhanteaodecaídoqueconhecemos.
NOTAS
A
Aprópriaraiz(nãosomenteouso)desuas“maravilhas”ésatírica,umazombariadairracionalidade,eoelementode“sonho”nãoémeratramadeintroduçãoeconclusão,masinerenteàaçãoeàstransições.Essascoisasascriançasconseguempercebereapreciar,seasdeixamossozinhas.Mas
paramuitos,comofoiparamim,Aliceéapresentadocomocontodefadas,eenquantoduraressemal-entendidoserásentidaaaversãopelatramadosonho.NãohásugestãodesonhoemOventonossalgueiros.“Toupeiratrabalharamuitodurantetodaamanhã,fazendoemsuacasinhaalimpezadeprimavera.”Começaassim,eessetomcorretosemantém.PorissomesmoésingularqueA.A.Milne,tãograndeadmiradordesselivroexcelente,tenhaprefaciadosuaversãodramatizadacomumaabertura“esdrúxula”emquesevêumacriançafalandoaotelefonecomumnarcisosilvestre.Ouquemsabenãosejamuitosingular,poisumadmiradorperceptivo(diferentedeumgrandeadmirador)dolivrojamaisteriatentadodramatizá-lo.Naturalmentesóosingredientesmaissimples,apantomima,eoselementosdefábuladeanimaissatírica,podemserapresentadosdessaforma.Nonívelinferiordodramaapeçaétoleravelmentedivertida,emespecialparaquemnãoleuolivro,masalgumasdascriançasqueleveiparaverToadofToadHalllevaramcomoprincipallembrançaoenjoopelaabertura.Quantoaoresto,preferiamsuasrecordaçõesdolivro.
B
Éclaroqueporviaderegraessesdetalhesforamincluídosnoscontos,mesmonosdiasemqueerampráticasreais,porquetinhamvalornacriaçãodehistórias.Seeuescrevesseumahistóriaemqueacontecessedeumhomemserenforcado,issopoderiademonstraremtemposfuturos,seahistóriasobrevivesse–porsisóumsinaldequeahistóriatinhaalgumvalorpermanente,enãosólocaloutemporário–,queelafoiescritanumperíodoemqueoshomensrealmenteeramenforcados,comopráticalegal.Poderia:ainferência,éclaro,nãoseriacertanaqueletempofuturo.Paratercertezasobreessepontoofuturopesquisadorteriadesaberprecisamentequandosepraticavaoenforcamentoequandoeuvivi.Eupoderiateremprestadooincidentedeoutrostemposelugares,deoutrashistórias;poderiasimplesmentetê-loinventado.Mas,mesmoqueessainferênciafossecorreta,acenadoenforcamentosóocorrerianahistória(a)porqueeuestavaconscientedaforçadramática,trágicaoumacabra
desseincidenteemmeuconto,e(b)porqueosqueatransmitiramsentiramsuficientementeessaforçaparafazê-losmanteroincidente.Adistâncianotempo,apuraantiguidadeeaestranhezapoderiamdepoisaguçaraarestadatragédiaoudohorror;masaarestaprecisaexistirparaquemesmoaélficapedradeamolardaantiguidadepossaaguçá-la.Portanto,aperguntamenosútilparaserfeitaourespondidasobreIfigênia,ilhadeAgamenon,pelomenosparacríticosliterários,é:AlendadeseusacrifícioemÁulisvemdeumtempoemqueosacrifíciohumanoeracomumentepraticado?
Digoapenas“porviaderegra”,porqueéconcebívelqueaquiloqueagoraconsideramos“história”tenhaoutrorasidoalgodiferentenaintenção,porexemploumregistrodefatoouritual.Querodizer“registro”demodoestrito.Umahistóriainventadaparaexplicarumritual(umprocessoqueàsvezessesupõequetenhaocorridocomfrequência)continuasendoprimordialmenteumahistória.Elatomaformacomotal,esobreviverá(evidentementemuitotempoapósoritual)sóporcausadeseusvaloresdehistória.Emalgunscasos,detalhesquehojesãonotáveisapenasporseremestranhospodemtersidooutroratãocotidianoseinsignificantesqueforamincluídosdemodofortuito:comomencionarqueumhomem“tirouochapéu”,ou“tomouumtrem”.Masessesdetalhesfortuitosnãosobreviverãopormuitotempoàsmudançasdoshábitoscotidianos.Nãoemumperíododetransmissãooral.Emumperíododeescrita(edemudançasrápidasdoshábitos),umahistóriapodepermanecerinalteradaportantotempoquemesmoseusdetalhesfortuitosadquiremovalordaesquisiticeoudaestranheza.GrandepartedeDickenstemessearhojeemdia.Hojepode-seabrirumaediçãodeumdosseusromancesqueeracomprado,efoilidopelaprimeiravez,quandoascoisasdavidacotidianaeramcomosãonahistória,emboraessesdetalhescotidianossejamagoratãodistantesdosnossoshábitosdiáriosquantooperíodoelisabetano.Masessaéumasituaçãomodernaespecial.Osantropólogosefolcloristasnãoimaginamcondiçõesdessetipo.Mas,quandolidamcomtransmissãooraliletrada,deveriamrefletircommaisforterazãoqueestãolidandocomitenscujoobjetivoprimordialeraa
criaçãodehistórias,ecujarazãoprimordialdesobrevivênciaeraamesma.OReiSapo(verp.64)nãoéumcredo,nemummanualdeleitotêmica:éumahistóriaestranhacommoralevidente.
C
Atéondevaimeuconhecimento,ascriançasquetêmtendênciaprecoceaescrevernãotêminclinaçãoespecialparatentarescrevercontosdefadas,anãoserqueessasejaquaseaúnicaformadeliteraturaquelhesfoiapresentada;efracassammuitonotavelmentequandotentam.Nãoéumaformafácil.Seascriançastêmalgumaatraçãoespecial,épelafábuladeanimais,queosadultosfrequentementeconfundemcomocontodefadas.Asmelhoreshistóriasescritasporcriançasquejávieram“realistas”(naintenção),ouentãotinhamanimaisepássaroscomopersonagens,quegeralmenteeramossereshumanoszoomórficoscomunsnafábuladeanimais.Imaginoqueessaformaétãoadotadaprincipalmenteporquepermiteumagrandemedidaderealismo:arepresentaçãodeeventosediálogosdomésticosqueascriançasrealmenteconhecem.Noentanto,aformaemsiéporviaderegrasugeridaouimpostapelosadultos.Elatemumacuriosapreponderâncianaliteratura,boaeruim,quehojeemdiasecostumaapresentaràscriançaspequenas.Suponhoqueseachequecombinacom“HistóriaNatural”,livrossemicientíficossobreanimaisepássarosquetambémsãoconsideradosalimentoadequadoparaosjovens.Eéreforçadapelosursosecoelhosqueemtemposrecentesquaseparecemterexpulsadoasbonecashumanasdosquartosdebrinquedo,mesmodasmenininhas.Ascriançasinventamsagas,muitasvezeslongaseelaboradas,sobreseusbonecos.Seestestêmformadeurso,osursosserãoospersonagensdassagas,masfalarãocomogente.
D
Fuiapresentadoàzoologiaeàpaleontologia(“paracrianças”)tãocedoquantoaoReinoEncantado.Vifigurasdeanimaisviventesedeanimaispré-históricosreais(assimmedisseram).Eugostavamaisdosanimais“pré-históricos”,pelomenostinhamvividohaviamuitotempo,eahipótese
(baseadaemevidênciasumtantoescassas)nãopodeevitarumlampejodefantasia.Masnãogostavaquemedissessemqueaquelascriaturaseram“dragões”.Aindaconsigovoltarasentiramesmairritaçãodainfânciadiantedeparentesinstrutivos(oudoslivrosquedavamdepresente)quefaziamafirmaçõescomoestas:“flocosdenevesãojoiasdefada”ou“sãomaisbelosquejoiasdefada”;“osprodígiosdasprofundezasdooceanosãomaismaravilhososqueaterradasfadas”.Ascriançasesperamqueasdiferençasquesentem,masnãoconseguemanalisar,sejamexplicadaspelosmaisvelhos,ounomínimoreconhecidas,nãoignoradasounegadas.Eueraintensamenteatentoparaabelezadas“coisasReais”,masconfundi-lacomomaravilhamentodas“Outrascoisas”parecia-meequivocado.EraávidoporestudaraNatureza,naverdademaisávidodoqueporleramaioriadoscontosdefadas,masnãoqueriaentrarnaCiênciaequivocadoesairdoReinoEncantadologradoporgentequepareciaassumirque,poralgumtipodepecadooriginal,decertoeupreferiaoscontosdefadas,masdeacordocomumcertotipodenovareligiãodeveriaserinduzidoagostardeciência.ANaturezasemdúvidaéestudoparaumavida,ouestudoparaaeternidade(paraosquetêmessedom),masexisteumapartedohomemquenãoé“Natureza”,equeportantonãoéobrigadaaestudá-la,eficadefatototalmenteinsatisfeitacomela.
E
Existe,porexemplo,umamorbidezouinquietaçãocomumentepresentenosurrealismoquemuitoraramenteseencontranafantasialiterária.Muitasvezespode-sesuspeitarqueamentequeproduziuasimagensmostradasjáera,defato,mórbida;noentantonãoéumaexplicaçãonecessáriaemtodososcasos.Frequentementeproduz-seumcuriosodistúrbiodamentepelosimplesatodedesenharcoisasdessetipo,umestadocujasqualidadeeconsciênciademorbidezsãosemelhantesàssensaçõesdafebrealta,quandoamentedesenvolveumaaflitivafecundidadeefacilidadeparaproduzirfiguras,verformassinistrasougrotescasemtodososobjetosvisíveisàsuavolta.
Faloaqui,éclaro,daexpressãoprimáriadaFantasianasartes
“pictóricas”,nãode“ilustrações”nemdocinema.Pormaisquesejamboasemsi,asilustraçõespoucoajudamoscontosdefadas.Adistinçãoradicalentretodaarte(incluindoodrama)queofereceumaapresentaçãovisíveleaverdadeiraliteraturaéqueaquelaimpõeumaformavisível.Aliteraturaagedementeparamenteeportantoémaisprocriadora.Éaomesmotempomaisuniversalemaispungentementeparticular.Sefaladepão,ouvinho,oupedra,ouárvore,apelaaoconjuntodessascoisas,àssuasideias;noentantocadaouvintelhesdaráumacorporificaçãopessoalpeculiaremsuaimaginação.Seahistóriadiz“elecomeupão”,oprodutordramáticoouopintorpodemapenasmostrar“umpedaçodepão”deacordocomseugostoouarbítrio,masoouvintedahistóriapensaránopãoemgeraleoconceberádealgumaformaprópriasua.Seumahistóriadiz“elesubiuumacolinaeviuumrionovaleláembaixo”,oilustradorpodecaptar,ouquasecaptar,suaprópriavisãodeumacenacomoessa;mascadaouvintedaspalavrasterásuaprópriaimagem,eelaseráfeitadetodasascolinas,riosevalesqueelejáviu,masespecialmentedaColina,doRio,doValequeforamparaeleaprimeiracorporificaçãodapalavra.
F
Éclaroquemerefiroprimordialmenteàfantasiadeformasevultosvisíveis.Odramapodeserfeitoapartirdoimpacto,sobrepersonagenshumanos,dealgumeventodaFantasia,oudoReinoEncantado,quenãorequertrama,ouquesepodepresumirourelatarqueaconteceu.Masissonãoéfantasianoresultadodramático;ospersonagenshumanosdominamopalcoeaatençãoseconcentraneles.Odramadessetipo(exemplificadoporalgumaspeçasdeBarrie)podeserusadodemodofrívolo,oupodeserusadoparasátira,ouparatransmitiras“mensagens”queodramaturgopodeteremmente–paraoshomens.Odramaéantropocêntrico.OcontodefadaseaFantasianãoprecisamser.Existem,porexemplo,muitashistóriasquecontamquehomensemulheresdesapareceramepassaramanosentreasfadas,semperceberemapassagemdotempoousempareceremenvelhecer.EmMaryRoseBarrieescreveuumapeçasobreessetema.Nãosevênenhumafada.Ossereshumanos,cruelmente
atormentados,estãopresentesotempotodo.Adespeitodaestrelasentimentaledasvozesangelicaisdofinal(naversãoimpressa),éumapeçadolorosa,epodefacilmentesertornadadiabólica,substituindo(comojávi)as“vozesdeanjos”nofinalpelochamadoélfico.Oscontosdefadasnãodramáticos,namedidaemqueseocupamdasvítimashumanas,tambémpodemserpatéticosouhorríveis.Masnãotêmdeser.Namaioriadelestambémháfadas,empédeigualdade.Emalgumashistóriaselassãoointeressereal.Muitosdosbrevesrelatosfolclóricosdessesincidentespretendemserapenasexemplosde“evidência”sobrefadas,itensdeumpereneacúmulode“tradição”arespeitodelasedosseusmodosdeexistência.Osofrimentodossereshumanosquetêmcontatocomelas(muitofrequentementedepropósito)évisto,assim,numaperspectivabemdiferente.Poder-se-iafazerumdramasobreosofrimentodeumavítimadepesquisaradiológica,masdificilmentesobreoprópriorádio.Masépossívelinteressar-seprimordialmentepelorádio(nãopelosradiologistas)–ouinteressar-seprimordialmentepeloReinoEncantado,nãopelosmortaistorturados.Uminteresseproduziráumlivrocientífico,ooutroumcontodefadas.Odramanãoconseguelidarbemcomnenhumdeles.
G
Aausênciadessesentimentoémerahipóteseacercadoshomensdopassadoperdido,sejamquaisforemasconfusõesviolentasqueoshomensdehoje,degradadosouiludidos,possamsofrer.Dizerqueessesentimentofoioutroramaisforteéumahipóteseigualmentelegítima,maisdeacordocomopoucoqueestáregistradoacercadospensamentosdoshomensantigossobreoassunto.Ofatodeseremantigasasfantasiasquecombinaramaformahumanacomformasanimaisevegetais,ouderamfaculdadeshumanasaosanimais,naturalmentenãoénenhumaprovadeconfusão.Podeser,issosim,provadocontrário.Afantasianãoesmaeceoscontornosnítidosdomundoreal;poisdependedeles.Noqueconcerneanossomundoocidentaleeuropeu,esse“sentimentodeseparação”temdefatosidoatacadoeenfraquecidoemtemposmodernos,nãopelafantasia,maspelateoriacientífica.Nãoporhistóriasdecentaurosoulobisomensou
ursosenfeitiçados,maspelashipóteses(ousuposiçõesdogmáticas)dosescritorescientíficosqueclassificaramoHomemnãosócomo“umanimal”–essaclassificaçãocorretaéantiga–mascomo“sóumanimal”.Houveumaconsequentedistorçãodosentimento.Oamornaturalpelosanimais,porpartedoshomensnãototalmentecorruptos,eodesejohumanode“entrarnapele”dosseresvivosfoiexcessivo.Agoratemoshomensqueamamosanimaismaisdoqueaospróprioshomens;quetêmtantapenadoscarneirosquemaldizemospastorescomosendolobos;quechoramporumcavalodebatalhaquemorreueaviltamsoldadosmortos.Éagora,nãonosdiasemqueoscontosdefadasforamcriados,quetemosuma“ausênciadosentimentodeseparação”.
H
Aconclusãoverbal–normalmenteconsideradatãotípicadofinaldoscontosdefadascomo“eraumavez”docomeço–“eviveramfelizesparasempre”éumainvençãoartificial.Nãoengananinguém.Frasesfinaisdessetiposãocomparáveisàsbordasemoldurasdosquadros,ejánãopodemserconsideradasoverdadeirofimdealgumfragmentoparticulardainteiriçaTeiadaHistóriaassimcomoamolduradacenavisionária,ouocaixilhodoMundoExterior.Essasfrasespodemsercomunsouelaboradas,simplesouextravagantes,tãoartificiaisetãonecessáriascomomolduraslisas,ouentalhadas,oudouradas.“E,sejánãoseforam,estãoláatéhoje.”“Acabou-seminhahistória–vejaaliumratinho;quemoapanharpodefazerdeleumbelogorrodepele.”“Eviveramfelizesparasempre.”“E,quandoocasamentoterminou,mandaram-meparacasacomsapatinhosdepapelporumcorredordecacosdevidro.”
Finaisdessetiposãoadequadosaoscontosdefadas,porqueessescontostêmumsensoeumacompreensãomaiordainfinitudedoMundodaHistóriaqueamaioriadashistórias“realistas”modernas,jáencerradasnosestreitosconfinsdoseuprópriopequenotempo.Umcortebrusconainfinitatapeçariaépropriamenteassinaladoporumafórmula,mesmogrotescaoucômica.Foiumaevoluçãoirresistíveldailustraçãomoderna(tãolargamentefotográfica)asbordasteremsidoabandonadasea
“figura”acabarjuntocomopapel.Essemétodopodeseradequadoàsfotografias;masétotalmenteinapropriadoàsfigurasqueilustramousãoinspiradasporcontosdefadas.Umaflorestaencantadarequerumamargem,atémesmoumabordaelaborada.Imprimi-laterminandocomapágina,comoum“instantâneo”dasMontanhasRochosasnaPicturePost,comosefossedefatouma“foto”daterradasfadasouum“esboçofeitopornossoartistanolocal”,éinsensatezeabsurdo.
Quantoaocomeçodoscontosdefadas,dificilmentepode-semelhorarafórmulaEraumavez.Elatemefeitoimediato.Esseefeitopodeserapreciadolendo,porexemplo,ocontodefadas“Acabeçaterrível”noLivrodefadasazul.Éumaadaptação,pelopróprioAndrewLang,dahistóriadePerseueaGórgona.Elacomeçapor“eraumavez”,enãomencionanenhumano,nempaís,nempessoa.Ora,essetratamentofazalgoquesepoderiachamar“transformarmitologiaemcontodefadas”.Euprefeririadizerquetransformaumelevadocontodefadas(poisocontogregoéisso)numaformaparticularatualmentebemconhecidaemnossopaís:aformadequartodecriançasou“carochinha”.Aausênciadenomenãoévirtude,esimumacaso,enãodeveriatersidoimitada;poisnessecontextoaimprecisãoéumaviltamento,umacorrupçãodevidaaoesquecimentoeàfaltadehabilidade.Mascreioqueissonãoseaplicaàausênciadetempo.Essecomeçonãoépobre,ésignificativo.Eleproduzdeumgolpeosentidodeumgrandemundoinexploradodotempo.
a“Históriadefadas”.(N.doT.)bÓ,nãovêsaquelaestradaestreita/Cobertadeurzesedeespinhos?/Poiséatrilhada
Honradez,/Poucosperguntamdetaiscaminhos.Enãovêsaquelaestradalarga/Quepassapelocampoliso?/PoiséatrilhadosPerversos,/
QuechamamdeEstradadoParaíso.Enãovêsaquelaestradalinda/Quepelaescarpaagrestedesceu?/PoislevaàbelaTerra
dosElfos,/Lávamosànoite,tueeu.(N.doT.)1.Falodaevoluçãoantesdoaumentodeinteressepelofolcloredeoutrospaíses.Aspalavras
inglesas,comoelf,pormuitotempoforaminfluenciadaspelofrancês(doqualderivaramfayefaërie,fairy);masposteriormente,porteremsidousadasemtraduções,tantofairyquantoelfadquirirammuitodaatmosferadoscontosalemães,escandinavoseceltas,emuitascaracterísticasdoshuldu-fólk,dosdaoine-sitheedostylwythteg.
2.SobreaprobabilidadedequeoHyBreasailirlandêstenhadesempenhadoumpapelnonomedoBrasil,verNansen,InNorthernMists,ii,pp.223-30.
3.AinfluênciadelesnãoserestringiuàInglaterra.OalemãoElf,ElfeparecederivardoSonhodeumanoitedeverão,natraduçãodeWieland(1764).
cEjanelasdeolhosdegato,/Eotelhado,semsarrafos,/Écobertodeasasdemorcego.(N.doT.)
4.ConfessioAmantis,v.7065ss.dSeucachoépenteadoeneleestáposta/Umafivelacomumdiadema,/Ouumadefolhas
verdes/Recém-tiradasdosbosques,/Tudoparaeleparecervigoroso;Eassimelecontemplaacarne,/Comoumfalcãoquefazmira/Naaveondevaipousar,/E
comosetivessevindodoReinoEncantado/Exibe-sediantedosseusolhos.(N.doT.)5.Excetoemcasosespeciaiscomocoletâneasdecontosgalesesougaélicos.Nestesas
históriassobrea“BelaFamília”ouopovoSheeàsvezessedistinguem,como“contosdefadas”,dos“contospopulares”,quetratamdeoutrasmaravilhas.Nesseuso,“contosdefadas”ou“históriasdefadas”sãogeralmentebrevesrelatosdaapariçãode“fadas”,oudesuasintromissõesnosassuntoshumanos.Masessadistinçãoéprodutodatradução.
6.Istotambéméverdadeiro,mesmoquesejamapenascriaçõesdamentehumana,“verdadeiros”somentecomoreflexo,deumcertomodo,daumadasvisõeshumanasdaVerdade.
7.Veradiante(p.51).8.Beowulf,111-12.9.VerNotaA.10.OalfaiatedeGloucestertalvezseaproximemais.Sra.Tiggywinkleficariaàmesma
distância,nãofossepelaalusãodeumaexplicaçãoonírica.EutambémincluiriaOventonossalgueirosentreasfábulasdeanimais.
11.Como,porexemplo,OgigantequenãotinhacoraçãonosContospopularesnórdicos,deDasent;ouAsereianosContospopularesdasWestHighlands,deCampbell(noiv,vertambémnoi);oumaisremotamenteDieKristallkugel[Aboladecristal],emGrimm.
12.Budge,EgyptianReadingBook,p.xxi.13.VerCampbell,op.cit.,vol.i.14.Contospopularesnórdicos,p.xviii.e“Contosdefadas”emalemão.(N.doT.)15.Excetoemcasosespecialmentefelizesouemalgunsdetalhesocasionais.Naverdadeé
maisfácildesemaranharumúnicofio–umincidente,umnome,ummotivo–doquerastrearahistóriadealgumaimagemdefinidapormuitosfios.Poisaimagemnatapeçariaintroduziuumnovoelemento:aimagemémaiordoqueasomadosfioscomponentes,enãoexplicadaporeles.Aíresideafragilidadeinerenteaométodoanalítico(ou“científico”:eledescobremuitosobrecoisasqueocorremnashistórias,maspoucoounadasobreseuefeitonumadeterminadahistória.
16.Porexemplo,ChristopherDawsonemProgressandReligion.17.Istoédemonstradopeloestudomaiscuidadosoecompreensivodospovos“primitivos”,
istoé,dospovosqueaindavivemnumpaganismoherdado,quenãosão,comodizemos,civilizados.Ainspeçãoapressadasomenteachaseuscontosmaisrústicos;umexamemaisdetalhadoachaseusmitoscosmológicos;sóapaciênciaeoconhecimentointeriordescobremsuafilosofiaereligião:o
queéverdadeiramentecultuado,dequeos“deuses”nãosãonecessariamenteumacorporificação,ouosãoapenasemmedidavariável(frequentementedecididapeloindivíduo).
f“Doismilanos”emalemãodialetal.(N.doT.)18.Nãodeveriampoupá-lasdisso–anãoserqueaspoupemdahistóriatodaatéquesua
digestãosejamaisresistente.19.VerNotaB.20.Nocasodehistóriaseoutrosassuntosinfantis,hátambémoutrofator.Asfamíliasmais
ricasempregavammulheresparacuidardascrianças,eashistóriaseramtrazidasporessaspajens,queàsvezesestavamemcontatocomconhecimentosrústicosetradicionaisesquecidospelosseus“superiores”.Fazmuitotempoqueessafontesecou,pelomenosnaInglaterra,masemoutrostemposelatevealgumaimportância.Noentanto,maisumavez,nãoháprovadaadequaçãoespecialdascriançascomodestinatáriasdesse“saberpopular”emdesaparecimento.Aspajenspodiammuitobem(oumelhor)tersidoencarregadasdeescolherosquadroseamobília.
21.VerNotaC.22.PorLangeseusauxiliares.Nãoéverdadeemrelaçãoàmaiorpartedoconteúdoemsuas
formasoriginais(oumaisantigasobrevivente).23.Muitomaisfrequentementetêm-meperguntado:“Eleerabom?Eleeramalvado?”Istoé,
estavammaispreocupadosemdistinguiroladoCertoeoladoErrado.PoisessaéumaquestãoquetemamesmaimportâncianaHistóriaquenoReinoEncantado.
24.PrefáciodoVioletFairyBook[Livrodefadasvioleta].25.VerNotaD.26.Naturalmente,muitasvezeséissoqueascriançasqueremdizerquandoperguntam:“É
verdade?”Queremdizer:“Gostodisso,masécontemporâneo?Estouasalvoemminhacama?”Aresposta“CertamentenãoexistedragãonaInglaterrahojeemdia”étudooquequeremouvir.
27.PrefácioaoLilacFairyBook.gEstapalavrainglesatem,entreoutros,ossignificadosde“ideiavisionária”e“obsessão”.(N.
doT.)28.Ouseja:quecomandaouinduzaCrençaSecundária.hPersonagemdeAventurasdeAlicenoPaísdasMaravilhasquediz:“Quandoeuusouma
palavra,elasignificaexatamenteoqueeuqueroquesignifique–nemmaisnemmenos.”(N.doT.)29.Issonãovaleparatodosossonhos.EmalgunsaFantasiapareceterparticipação.Mas
issoéexcepcional.AFantasiaéumaatividaderacional,nãoirracional.30.VerNotaE.31.VerNotaF.i“Meucaro”,eudisse,“Emboraalheado,/oHomemnãoéperdidonemmudado./Sem
graçasim,porémnãosemseutrono,/temrestosdopoderdequefoidono:/Subcriador,oqueaLuzdesata/edeumsóBrancocoresmilrefrata/quesecombinam,variaçõesviventes/eformasquesemovementreasmentes./Sedestemundoasfrestasocupamos/comElfoseDuendes,secriamos/Deuses,seuslares,trevaeluzdodia,/dragõesplantamos–nossaéaregalia/(boaoumá).Nãomorreessedireito:/eufaçopelaleinaqualsoufeito.(N.doT.)
jSalãodecafé.(N.doT.)kNomeantigodeOxford.(N.doT.)
32.ChristopherDawson,ProgressandReligion,pp.58,59.Maisadianteeleacrescenta:“AplenapanópliavitorianadacartolaesobrecasacasemdúvidaexpressavaalgoessencialàculturadoséculoXIX,eportantoespalhou-seportodoomundocomessacultura,comonenhumamodadovestuárioatéentão.Épossívelquenossosdescendentesreconheçamnelaumaespéciedeausterabelezaassíria,justoemblemadaeraimplacávelegrandiosaqueacriou;mas,sejacomofor,elasedesviadabelezadiretaeinevitávelquetodosostrajesdeveriampossuir,pois,comosuacultura-mãe,elaestavadesconexadavidadanaturezaetambémdanaturezahumana.”
33.VerNotaG.34.Ounogrupodehistóriassemelhantes.35.ArainhaquequisbeberdeumcertopoçoeoLorgann(Campbell,xxiii);DerFroschkönig;A
donzelaeosapo.36.VerNotaH.37.IssoécaracterísticodoequilíbrioinstáveldeLang.Nasuperfícieahistóriaéuma
seguidoradocontefrancês“palaciano”,comumcarátersatírico,eemparticulardeArosaeoaneldeThackeray–umaespécieque,superficialemesmofrívolapornatureza,nãoproduznempretendeproduzirnadatãoprofundo;masporbaixoresideoespíritomaisprofundodoromânticoLang.
38.DotipoqueLangchamavade“tradicional”,edefatopreferia.l“Setelongosanosserviporti,/Nacolinadegramasubiporti,/Acamisasangrentatorci
porti,/Nãovaisdespertaretevoltarparamim?”(N.doT.)39.TheBlackBullofNorroway.40.Poispodeserquenemtodososdetalhessejam“verdadeiros”:éraroquea“inspiração”
sejatãoforteeduradouraquefermenteobolotodoenãodeixemuitacoisaquesejasimples“invenção”nãoinspirada.
41.AquiaArteestánaprópriahistória,nãonanarrativa;poisoAutordahistórianãoforamosevangelistas.
FOLHA,DEMIGALHA
E
Folha,deMigalha(LeafbyNiggle)
RAumavezumhomenzinho,chamadoMigalha,queprecisavafazerumalongaviagem.Elenãoqueriair,defatoaideialheeramuito
desagradável,masnãohaviacomoescapar.Elesabiaquealgumdiateriadepartir,masnãoapressavaospreparativos.
Migalhaerapintor,emboranãodemuitosucesso,emparteporquetinhamuitasoutrascoisasparafazer.Amaioriadessascoisaseleconsideravaaborrecidas,masfazia-asrazoavelmentebem,quandonãoconseguialivrar-sedelas,oque(segundoele)erafrequentedemais.Asleisdoseupaíserambastanterígidas.Haviatambémoutrosobstáculos.Porumlado,àsvezeseleficavadesocupado,simplesmentesemfazernada.Poroutrolado,erageneroso,decertomodo.Aqueletipodegenerosidadequemaisodeixavadesconfortáveldoqueolevavaafazeralgumacoisa;e,mesmoquandofaziaalgumacoisa,nadaoimpediaderesmungar,perderapaciênciaepraguejar(quasesempreparasimesmo).Mesmoassim,acabavafazendoumbocadodeserviçoseventuaisparaseuvizinho,osr.Paróquia,quemancavadeumaperna.Ocasionalmenteeleatéajudavaoutraspessoasdemaislonge,quandovinhamlhepedir.Devezemquandotambémselembravadaviagemecomeçavaaembalaralgumascoisasdemaneiraineficaz;nessasocasiõesnãopintavamuito.
Tinhaalgunsquadrosemandamento,emsuamaioriagrandeseambiciososdemaisparasuahabilidade.Eraaqueletipodepintorquepintafolhasmelhordoqueárvores.Demorava-semuitonumaúnicafolha,tentandocaptarsuaforma,seubrilho,ocintilardasgotasdeorvalhonassuasbordas.Masqueriapintarumaárvoreinteira,comtodasasfolhasnomesmoestilo,etodasdiferentes.
Haviaumquadroemparticularqueopreocupava.Começaracomumafolhaaoventoetornou-seumaárvore;eaárvorecresceu,lançandoinúmerosgalhoseasmaisfantásticasraízes.Pássarosestranhospousaramnosgalhoseeleprecisoulhesdaratenção.Então,emtodaavoltadaÁrvoreeatrásdela,atravésdaslacunasentreasfolhaseosramos,começouaseabrirumapaisagem;ehaviavislumbresdeumaflorestaqueseestendiapelaregiãoedemontanhascompicosnevados.Migalhaperdeuointeressepelosoutrosquadros;oupregou-oscomtachasnasbordasdeseugrandequadro.Logoatelaficoutãograndequeeletevedebuscarumaescada;subiaedescialigeiroporela,acrescentandoumtoqueaquieapagandoumpedaçoali.Quandoaspessoasiamvisitá-lo,eleaparentavagentileza,masficavaremexendooslápisnaescrivaninha.Ouviaoquediziam,masnofundopensavaotempotodonatelaenorme,nogalpãoaltoqueforaconstruídoparaelanojardim(numcanteiroondeoutroraelecultivavabatatas).
Nãoconseguialivrar-sedoseucoraçãogeneroso.“Euqueriasermaisfirme!”,diziaàsvezesparasimesmo,querendodizerquedesejariaqueosproblemasdosoutrosnãooincomodassem.Maspormuitotemponãosedeixouperturbarseriamente.“Sejacomofor,vouterminarestequadro,meuquadrodeverdade,antesdeterdefazeressaviagemdetestável”,eledizia.Noentantoestavacomeçandoaverquenãopodiaadiarapartidaindefinidamente.Oquadroteriadeparardecrescereserfinalizado.
UmdiaMigalhaparouacertadistânciadoseuquadroeoobservoucomatençãoedesprendimentoinusitados.Nãoconseguiasaberexatamenteoqueachavadele,edesejouterumamigoquelhedissesseoquepensar.Naverdadeoquadrolhepareciatotalmenteinsatisfatório,noentantomuitobonito,oúnicoquadrorealmentelindodomundo.Naquelemomentoteriagostadodeverasimesmoentrar,dar-seumtapinhanascostasedizer(comóbviasinceridade):“Absolutamentemagnífico!Vejoexatamenteoquevocêpretende.Continueassim,enãosepreocupecommaisnada!Vamosconseguirumaaposentadoriapúblicaparaquevocênãoprecisepreocupar-se.”
Noentantonãohaviaaposentadoriapública.Eumacoisaelevia:
precisariadeconcentração,trabalho,trabalhoduroeininterrupto,paraterminaroquadro,mesmodotamanhoqueestava.Arregaçouasmangasecomeçouaseconcentrar.Duranteváriosdiastentounãosepreocuparcomoutrascoisas.Maschegouumaimensaondadeinterrupções.Emsuacasahaviacoisasparaconsertar;precisousairparaparticipardeumjúrinacidade;umamigodistanteficoudoente;osr.Paróquiaficoudecamacomlumbago;enãoparavamdechegarvisitas.Eraprimavera,etodosqueriamtomarchádegraçanocampo:Migalhamoravanumacasinhaagradável,aquilômetrosdacidade.Noíntimorogavapragascontraessaspessoas,masnãopodianegarqueelemesmoasconvidaratemposantes,noinverno,quandonãoconsiderava“interrupção”iràslojasetomarchácomconhecidosnacidade.Tentouendurecerocoração,massemsucesso.Haviamuitascoisasparaasquaisnãoousavadizernão,querjulgassequefossemdeveresounão;ehaviacoisasqueeraobrigadoafazer,independentementedoqueachasse.AlgumasvisitasinsinuavamqueojardimestavameiolargadoequepoderiareceberavisitadeumInspetor.Éclaroquemuitopoucossabiamdoseuquadro;esesoubessemnãofariamuitadiferença.Duvidoqueoachassemmuitoimportante.Ousodizerquenãoeramesmoumquadromuitobom,apesardetalvezteralgunsbonstrechos.AÁrvore,sejacomofor,eracuriosa.Bastantesingularàsuamaneira.AssimcomoMigalha;maseletambémeraumhomenzinhomuitocomumemeiobobo.
FinalmenteotempodeMigalhatornou-sepreciosodeverdade.Seusconhecidosdacidadedistantecomeçaramalembrarqueohomenzinhoprecisavafazerumaviagemdesagradável,ealgunscomeçaramacalcularporquantotempo,nomáximo,elepoderiaadiá-la.Perguntavam-sequemficariacomsuacasa,eseojardimseriamaisbemcuidado.
Chegouooutono,commuitachuvaevento.Opintorzinhoestavaemseugalpão.Estavanoaltodaescada,tentandocaptarobrilhodosolpoentenopicodeumamontanhanevada,queavistaralogoàesquerdadapontafrondosadeumdosgalhosdaÁrvore.Sabiaqueteriadepartirlogo,talveznoiníciodoanoseguinte.Malconseguiriaterminaroquadro,eaindaporcimasómaisoumenos:haviaalgunscantosemquejánãoteriatempode
fazermaisdoquesugeriroquedesejava.
Alguémbateunaporta.“Entre!”,eledisseasperamente,edesceudaescada.Ficouparado,revirandoopincel.EraseuvizinhoParóquia,seuúnicovizinhodeverdade,todasasoutraspessoasmoravamlonge.Mesmoassimelenãogostavamuitodaquelehomem;emparteporquetinhaproblemaseprecisavadeajudacomtantafrequência;etambémporquenãoligavaparapintura,maseramuitocriteriosoemrelaçãoajardinagem.QuandoParóquiaolhavaparaojardimdeMigalha(oqueerafrequente),enxergavaprincipalmenteaservasdaninhas,equandoolhavaparaosquadrosdeMigalha(oqueerararo)sóenxergavamanchasverdesecinzentaselinhaspretas,quelhepareciamabsurdas.Nãohesitavaemmencionaraservasdaninhas(umdeverdevizinho),masabstinha-sededarqualqueropiniãosobreosquadros.Achavaqueestavasendomuitogentilenãopercebiaque,mesmosendogentil,nãoerasuficientementegentil.Ajudarcomaservasdaninhas(etalvezelogiarosquadros)seriamelhor.
–Bem,Paróquia,oquefoi?–disseMigalha.
–Eunãodeviainterrompê-lo,eusei–disseParóquia(semnemdarumaolhadelanoquadro).–Comcertezavocêestámuitoocupado.
OpróprioMigalhapretendiadizeralgoparecido,masperderaaoportunidade.Tudooquedissefoi:–Estou.
–Masnãoháninguémmaisaquemeupossarecorrer–disseParóquia.
–Poisé–disseMigalhadandoumsuspiro,umdaquelessuspirosquesãoumcomentáriopessoal,masnãototalmenteinaudíveis.–Oquepossofazerporvocê?
–Fazdiasqueminhamulherestádoente,eestouficandopreocupado–disseParóquia.–Oventoarrancoumetadedastelhasdomeutelhado,eestáentrandoáguanoquarto.Achoqueeudeviaprocuraromédico.Eospedreirostambém,sóqueelesdemorammuitoparachegar.Queriasabersevocêtemmadeiraelonasobrando,sóparaeufazerunsremendosemearranjarporumoudoisdias–entãoeleolhouparaoquadro.
–Puxavida!–disseMigalha.–Vocêestásemsorte.Esperoquesua
mulhersótenhapegoumresfriado.Vouatéláparaajudá-loadesceraescadacomapaciente.
–Muitoobrigado–disseParóquia,comcertafrieza.–Masnãoéresfriado,éfebre.Eunãooincomodariaporcausadeumresfriado.Eminhamulherjáestádecamanoandardebaixo.Nãopossosubiredescercombandejas,comessaminhaperna.Masvejoquevocêestáocupado.Desculpe-meterincomodado.Esperavaquevocêtivesseumtempoparaprocurarummédico,aoverminhasituação;eopedreirotambém,sevocêdefatonãotemlonasobrando.
–Claro–disseMigalha;porémhaviaoutraspalavrasemseucoração,quenomomentoestavasimplesmentemole,semnenhumsentimentodegenerosidade.–Eupoderiair.Euvou,sevocêestámesmopreocupado.
–Estoupreocupado,muitopreocupado.Quiseraeunãosermanco–disseParóquia.
EntãoMigalhafoi.Eracomplicado.Paróquiaeraseuvizinho,etudoficavamuitolonge.Migalhatinhabicicleta,Paróquianãotinhaenãoconseguiaandardebicicleta.Paróquiatinhaumapernaaleijada,umapernaaleijadadeverdadequelhecausavadorintensa;issoeraprecisolembrar,etambémsuaexpressãoamargaesuavozchorosa.Claro,Migalhatinhaumquadroequasenãotinhatempoparaterminá-lo.MaspareciaqueeraParóquiaquetinhadecontarcomisso,nãoMigalha.NoentantoParóquianãocontavacomquadros;eMigalhanãopodiamudarisso.“Comosdiabos!”,eledisseparasimesmo,aotirarabicicleta.
Choviaeventava,ealuzdodiaestavaseextinguindo.“Hojenãovoutrabalharmais!”,pensouMigalha,eenquantopedalavaiapraguejandosozinhoouimaginandosuaspinceladasnamontanhaenoramodefolhasaoladodela,queanteseleimaginaranaprimavera.Seusdedossecontorciamnoguidão.Agoraquesaíradogalpão,enxergavaexatamenteotratamentoquedeveriadaràqueleramobrilhantequeemolduravaavistadistantedamontanha.Mastinhaumasensaçãodeprimentenocoração,umaespéciedemedodequenuncafosseteraoportunidadedetentar.
Migalhaencontrouomédicoedeixouumrecadoparaopedreiro.O
escritórioestavafechado,eopedreirotinhaidoparacasa,instalar-senafrentedalareira.Migalhaficouencharcadoatéosossosetambémpegouumresfriado.OmédiconãosaiutãoprontamentequantoMigalha.Chegounodiaseguinte,oqueparaeleerabemconveniente,poisàquelaalturatinhadoispacientesparatratar,emcasasvizinhas.Migalhaestavadecama,comfebrealta,emaravilhososdesenhosdefolhaseramosintrincadosformavam-seemsuacabeçaenoteto.Nãolhetrouxeconsoloficarsabendoqueasra.Paróquiaestavaapenasresfriadaejásairiadacama.Virouorostoparaaparedeeenterrou-seemfolhas.
Eleficoudecamaporalgumtempo.Oventocontinuousoprando.ArrancoumaismuitastelhasdeParóquia,etambémalgumasdeMigalha:seutelhadotambémcomeçouagotejar.Opedreironãoveio.Migalhanãoseimportou,pelomenosporumoudoisdias.Entãoarrastou-separaforaembuscadecomida(Migalhanãotinhaesposa).Paróquianãoapareceu:apanharachuvanapernaeestavacomdor;esuamulherestavaocupadaenxugandoaáguaeperguntandoasimesmase“aquelesr.Migalha”teriaseesquecidodechamaropedreiro.Sevissepossibilidadedepediremprestadaalgumacoisaútil,teriamandadoParóquiaatélá,comousemperna;masnãovia,demodoqueMigalhafoiabandonado.
Aofimdeumasemana,maisoumenos,Migalhavoltoucambaleandoaogalpão.Tentousubiraescada,massentiutontura.Sentou-seecontemplouoquadro,masaqueledianãotinhanacabeçadesenhosdefolhasnemvisõesdemontanhas.Poderiaterpintadoumavistalongínquadeumdesertoarenoso,masnãotinhaenergia.
Nodiaseguinteestavasesentindobemmelhor.Subiuaescadaecomeçouapintar.Haviaacabadoderetomarapinturaquandobateramnaporta.
–Droga!–disseMigalha.Masfoicomosetivessedito“Entre!”,educadamente,poisaportaseabriumesmoassim.Dessavezentrouumhomemmuitoalto,totalmentedesconhecido.
–Esteéumestúdioparticular–disseMigalha.–Estouocupado.Váembora!
–SouInspetordeCasas–disseohomem,erguendoocartãodeidentificaçãoparaqueMigalhaovissedoaltodaescada.
–Ah!–eledisse.
–Acasadoseuvizinhonãoestáemcondiçõesaceitáveis–disseoInspetor.
–Eusei–disseMigalha.–Leveiumrecadoaospedreiroshámuitotempo,maselesnuncavieram.Depoisfiqueidoente.
–Entendo–disseoInspetor.–Masagoranãoestádoente.
–Masnãosoupedreiro.ParóquiadeveriaprestarqueixaaoConselhoMunicipaleobterauxíliodoServiçodeEmergência.
–Elesestãoocupadoscomestragospioresdoqueosdaqui–disseoInspetor.–Houveumaenchentenovale,emuitasfamíliasestãodesabrigadas.Deviaterajudadoseuvizinhoafazerconsertosprovisórioseevitarqueoreparodosdanosficassemaiscaroqueonecessário.Aleiéessa.Aquiestácheiodematerial:lona,madeira,tintaàprova-d’água.
–Onde?–perguntouMigalha,indignado.
–Ali!–disseoInspetor,apontandoparaoquadro.
–Meuquadro!–exclamouMigalha.
–Imaginoqueseja–disseoInspetor.–Masascasasvêmemprimeirolugar.Aleiéessa.
–Masnãoposso...–Migalhanãodissemaisnada,poisnaquelemomentoentrououtrohomem,muitoparecidocomoInspetor,quaseumsósia:alto,todovestidodepreto.
–Venhacomigo!–disseele.–SouoCondutor.
Migalhadesceudaescadaaostrambolhões.Afebrepareciatervoltadoesuacabeçaflutuava;sentiafrionocorpotodo.
–Condutor?Condutor?–eledisse,batendoosdentes.–Condutordoquê?
–Seuedoseuvagão–disseohomem.–Ovagãofoiencomendadofazmuitotempo.Finalmentechegou.Estáesperando.Vocêvaiiniciarsua
viagemhoje,sabia?
–Ah,sim!–disseoInspetor.–Vocêtemdeviajar;masnãoébomiremboradeixandotrabalhoporfazer.Maspelomenosagorapodemosusaressalonaparaalgumacoisa.
–Ai,minhanossa!–disseopobreMigalha,começandoachorar.–Enem,nemestáterminado!
–Nãoestáterminado?–disseoCondutor.–Bem,detodomodo,noquelhedizrespeito,acabou-se.Vamosembora!
Migalhafoi-seembora,muitoquieto.OCondutornãolhedeutempodefazerasmalas,dizendoqueeledeviaterfeitoissoantesequeiamperderotrem;entãoMigalhasóconseguiuagarrarumasacolanosaguão.Descobriuqueelacontinhaapenasumestojodetintaseumlivrinhocomseusesboços:nemcomidanemroupas.Acabarampegandootrem.Migalhaestavamuitocansadoecomsono;malpercebiaoqueestavaacontecendoquandooenfiaramnasuacabine.Nãoseimportavamuito;tinhaesquecidoaondedeveriairouporqueestavaindo.Quaseimediatamenteotrementrounumtúnelescuro.
Migalhaacordounumaestaçãoferroviáriamuitograndeesombria.UmCarregadorpercorriaaplataformaegritava,masnãoonomedolugar;elegritavaMigalha.
Migalhasaiudepressaesedeucontadequedeixarasuasacolaparatrás.Virou-se,masotremjátinhapartido.
–Ah,vocêestáaí!–disseoCarregador.–Poraqui!Oquê?Nãotembagagem?VaiterdeiràCasadeTrabalho.
Migalhasentiu-semuitomaledesmaiounaplataforma.FoicolocadonumaambulânciaelevadoparaaEnfermariadaCasadeTrabalho.
Nãogostounemumpoucodotratamento.Oremédioquelhederameraamargo.Osfuncionárioseauxiliareseramhostis,silenciososerígidos;eelenuncaviaoutraspessoas,excetoummédicomuitosevero,queiavê-lodevezemquando.Maispareciaestarnaprisãoquenohospital.Eletinhadetrabalharmuito,emhoráriospredeterminados:escavava,faziaserviçosde
carpintariaepintavatábuasbrutastodasdeumacorúnica.Nuncaodeixavamsairaoarlivre,etodasasjanelasdavamparadentro.Eramantidonoescuroporhorasafio,“parapensarumpouco”,diziam.Eleperdeuanoçãodotempo.Nemcomeçouasesentirmelhor,seissofosseentendidocomoprazeremfazeralgumacoisa.Nãosentiaprazernenhum,nemmesmoaosedeitarnacama.
Nocomeço,durantemaisoumenosoprimeiroséculo(estousimplesmentedandosuasimpressões),elesepreocupavavagamentecomopassado.Sórepetiaumacoisaparasimesmo,deitadonoescuro:“EudeviateridoàcasadoParóquianaprimeiramanhãdepoisquecomeçouaventania.Euqueriaterido.Asprimeirastelhassoltasteriamsidofáceisdeconsertar.Entãoasra.Paróquiatalveznãosetivesseresfriado.Entãoeutambémnãometeriaresfriado.Entãoeuteriatidoumasemanaamais.”Mascomotempoacabouesquecendoporquequeriaumasemanaamais.Depoisdisso,sósepreocupavacomseusserviçosnohospital.Eleosplanejava,calculandoquantotempolevariaparafazeraquelatábuapararderanger,ouparaergueraquelaporta,ouparaconsertaraquelapernademesa.Provavelmenteelesetornoumesmobastanteútil,emboraninguémjamaislhedissesseisso.Masessa,éclaro,nãopodetersidoarazãoparateremretidoopobrehomenzinhoportantotempo.Talvezestivessemesperandoqueelemelhorasse,julgandoessa“melhora”poralgumestranhocritériomédicodeles.
Sejacomofor,opobreMigalhanãotinhaprazernavida,nãooqueelechamavadeprazer.Certamentenãoestavasedivertindo.Maséinegávelqueelecomeçavaaterumsentimentode–bem,satisfação:maispãodoquegeleia.Eracapazdepegarumatarefanomomentoemquesoavaumsino,eprontamentedeixá-ladeladonomomentoemquesoavaooutro,emordemepreparadaparaserretomadanahoracerta.Agoraconseguiafazermuitacoisaemumdia;acabavacomesmeroosserviçospequenos.Nãotinha“tempoparasi”(excetoquandoestavasozinhoemsuacela-dormitório),eaindaassimestavasetornandosenhordoseutempo;começavaasaberexatamenteoquepodiafazercomele.Nãohaviasensaçãodepressa.Agoraestavainteriormentemaistranquilo,enahora
dodescansoconseguiarealmentedescansar.
Então,derepente,todososseushoráriosforamalterados;malodeixavamirparaacama;foicompletamenteafastadodacarpintariaesóodeixaramescavando,diaapósdia.Eleaguentoubem.Muitotemposepassouatécomeçaratatearofundodamenteembuscadasimprecaçõesquepraticamenteesquecera.Continuouescavando,atéterasensaçãodeestarcomascostasquebradas,asmãosficarememcarneviva,eelesentirquenãoaguentariamaisumasópazada.Ninguémlheagradeceu.Masomédicoveioeolhouparaele.
–Chega!–disseele.–Repousoabsoluto,noescuro.
Migalhaestavadeitadonoescuro,emrepousoabsoluto;semsentirnempensarnada,nãosabiadizerseestavaalideitadoháhorasouháanos.MasagoraouviaVozes,nãoeramvozesqueelejátivesseouvidoantes.PareciahaverumaJuntaMédica,outalvezumTribunaldeInquérito,alibemperto,numrecintocontíguocomaportaaberta,possivelmente,emboraelenãovissenenhumaluz.
–AgoraocasoMigalha–disseumaVoz,umavozsevera,maisseveraqueadomédico.
–Qualeraoproblemacomele?–disseumaSegundaVoz,quesepoderiadizermansa,emboranãosuave.Eraumavozquetransmitiaautoridade,esoavaesperançosaetristeaomesmotempo.–QualeraoproblemacomMigalha?Ocoraçãodeleestavanolugarcerto.
–Sim,masnãofuncionavadireito–disseaPrimeiraVoz.–Esuacabeçanãoestavabemparafusada;elequasenãopensava.Vejamotempoqueeledesperdiçou,nemmesmosedivertindo!Nuncasepreparouparaaviagem.Eramoderadamentepróspero,noentantochegouaquiquasesemrecursos,etevedeserpostonaaladosindigentes.Temoquesejaumcasograve.Achoquedeveriaficarmaisalgumtempo.
–Talveznãolhefizessenenhummal–disseaSegundaVoz.–Mas,éclaro,eleéapenasumhomenzinho.Nuncaestevedestinadoasetornargrande;enuncafoimuitoforte.VamosverosRegistros.Sim.Háalguns
pontosfavoráveis,vejam.
–Talvez–disseaPrimeiraVoz–;masmuitopoucosquerealmenteresistamaoexame.
–Bem–disseaSegundaVoz–,háestes.Eraumpintornato.Decategoriasecundária,claro;aindaassim,umaFolhaporMigalhatemumencantopróprio.Colocavagrandeempenhonasfolhas,porelasmesmas.Masnuncaachouqueissootornasseimportante.NãoháanotaçãonosRegistrosdequeelepensasse,nemmesmonoseuíntimo,queissodesculpariasuanegligênciaparacomascoisasdeterminadasporlei.
–Entãonãodeveriaternegligenciadotantasdelas–disseaPrimeiraVoz.
–Aindaassim,respondeuamuitosChamados.
–Umaporcentagempequena,namaioriadotipomaisfácil,eeleosconsideravaInterrupções.OsRegistrosestãocheiosdessapalavra,etambémdequeixaseimprecaçõestolas.
–Éverdade;maséclaroqueparaeleeraminterrupções,pobrehomenzinho.Eháumacoisa:elenuncaesperavanenhumRetorno,comotantosdasuaespéciedizem.HáocasoParóquia,aquelequechegoudepois.EravizinhodeMigalha,nuncamoveuumapalhaporele,eraramentedeumostrasdegratidão.MasnãoháanotaçãonosRegistrosdequeMigalhaesperassegratidãodeParóquia;parecequeissonãolhepassavapelaideia.
–Sim,esseéumponto–disseaPrimeiraVoz–;masbempequeno.VocêvaiperceberquemuitasvezesMigalhasimplesmenteesquecia.AscoisasquetinhadefazerparaParóquiaeleapagavadamemóriacomouminconvenientejáresolvido.
–Aindaassim,háesteúltimorelatório–disseaSegundaVoz–,aqueletrajetodebicicletaqueodeixouencharcado.Issoeuquerodestacar.Pareceóbvioquefoiumsacrifíciogenuíno.Migalhapercebeuqueestavajogandoforaaúltimaoportunidadedeterminaroquadro,epercebeutambémqueParóquiaestavasepreocupandodesnecessariamente.
–Achoquevocêestáexagerando–disseaPrimeiraVoz.–Masaúltimapalavraésua.Cabeavocê,éclaro,daramelhorinterpretaçãoaosfatos.Àsvezeselesacorroboram.Oquevocêpropõe?
–Achoqueagoraéocasodedarumtratamentosuave–disseaSegundaVoz.
MigalhaachouquenuncatinhaouvidonadatãogenerosoquantoaquelaVoz.TratamentoSuavesoavacomoummontedericospresenteseumconviteparaobanquetedeumRei.Então,derepente,Migalhasentiuvergonha.OuvirqueeraconsideradocasodeTratamentoSuavedesarmou-oeofezcorarnoescuro.Eracomosermoselogiadosempúblicoquandosabemos,etodaaplateiasabe,queoelogionãoémerecido.Migalhaescondeuseurubornocobertoráspero.
Fez-sesilêncio.EntãoaPrimeiraVozfaloucomMigalha,bemdeperto.–Vocêouviu–disseela.
–Ouvi–disseMigalha.
–Bem,oquetemadizer?
–PoderiammedarnotíciasdeParóquia?–disseMigalha.–Gostariadevê-looutravez.Esperoquenãoestejamuitodoente.Podemcurarapernadele?Elaofaziapassarpormausbocados.Eporfavornãosepreocupemcomeleecomigo.Elefoiumótimovizinho,emearranjavabatatasexcelentesemuitobaratas,oquemepoupoubastantetempo.
–Émesmo?–disseaPrimeiraVoz.–Ficocontenteemsaber.
Fez-sesilênciodenovo.MigalhaouviuasVozesseafastando.–Bem,concordo–ouviuaPrimeiraVozdizeraolonge.–Queeleváparaapróximaetapa.Amanhã,sevocêquiser.
Aoacordar,Migalhaconstatouqueasvenezianastinhamsidoabertasequealuzdosolentravanasuapequenacela.Levantou-seeviuquehaviamdeixadoroupasconfortáveisparaele,nãoumuniformedehospital.Depoisdocafédamanhãomédicotratoudassuasmãosmachucadas,passandonelasumunguentoqueascurouimediatamente.DeuaMigalha
algunsbonsconselhoseumfrascodetônico(casoeleprecisasse).Nomeiodamanhãderamaeleumbiscoitoeumataçadevinho;edepoislhederamumapassagem.
–Agorapodeirparaaestação–disseomédico.–OCarregadorvaitomarcontadevocê.Adeus.
Migalhaesgueirou-sepelaportaprincipaledeuumaspiscadelas.Osolestavamuitoforte.Esperavatoparcomumacidadegrande,compatívelcomotamanhodaestação;masnãofoiassim.Viu-senoaltodeummorroverde,nu,varridoporumventointensoerevigorante.Nãohavianinguémnasredondezas.Láembaixo,aopédomorro,viabrilharotelhadodaestação.
Ágil,massemcorrer,caminhoumorroabaixo,atéaestação.OCarregadorreconheceu-oimediatamente.
–Poraqui!–disseele,conduzindoMigalhaatéumaplataformaondeestavaparadoumtrenzinholocalmuitoagradável:umvagãoeumapequenalocomotiva,ambosmuitobrilhantes,limposerecém-pintados.Eracomosefosseaprimeiraviagemdeles.Atéaferroviaqueseestendiadiantedalocomotivaparecianova:ostrilhosreluziam,oscoxinsestavampintadosdeverdeeosdormentesexalavamumdeliciosocheirodealcatrãosobamornaluzdosol.Ovagãoestavavazio.
–Aondevaiestetrem,Carregador?–perguntouMigalha.
–Achoqueaindanãomarcaramonome–disseoCarregador.–Masvocêvaiencontrarsemproblemas–eelefechouaporta.
Otrempartiuimediatamente.Migalhareclinou-senoassento.Apequenalocomotivaavançoubufandoporumtalhoprofundoentrealtasribanceirasverdes,entelhadopelocéuazul.Parecianãoterpassadomuitotempoquandoalocomotivaapitou,osfreiosforamacionadoseotremparou.Nãohaviaestaçãonemtabuleta,sóumlancedeescadaquesubiapelaribanceiraverde.Noaltodaescadahaviaumacatracanumasebepodada.Aoladodacatracaestavaabicicletadele;pelomenospareciaserdele,enumaetiquetaamarelaamarradaaoguidãoestavaescritoMigalha,com
grandesletraspretas.
Migalhaabriuacatracacomumempurrão,pulounabicicletaedesceuomorrorodandoaosoldaprimavera.Logodescobriuqueatrilhapelaqualtinhaenveredadohaviadesaparecido,eabicicletarolavaporcimadeummaravilhosogramado.Eraumgramadoverdeecompacto,maseledistinguianitidamentecadafolha.Parecialembrar-sedetervistoousonhadocomaquelerelvadoemalgumlugar.Ascurvasdapaisagemeram,decertomodo,familiares.Sim,oterrenoiasetornandoplano,comoeradeesperar,eagora,éclaro,começavaasubirdenovo.Umagrandesombraverdesurgiuentreeleeosol.Migalhaolhouparacimaecaiudabicicleta.
DiantedeleestavaaÁrvore,suaÁrvore,terminada.SeéquesepodiadizerissodeumaÁrvoreviva,cujasfolhasseabriam,osramoscresciamesecurvavamaoventoquetantasvezesMigalhasentiraouadivinhara,etantasvezesnãoconseguiracaptar.Elefitouaárvoreelentamenteergueuosbraçoseosabriulargamente.
–Éumdom!–disseele.Referia-seàsuaarte,etambémaoresultado;masestavausandoapalavrabemliteralmente.
ContinuouolhandoparaaÁrvore.Todasasfolhasemquetrabalharaestavamlá,talcomoasimaginaramasnãocomoasfizera;haviaoutrasquetinhamapenasgerminadoemsuamente,emuitasquepoderiamtergerminado,seeletivessetidotempo.Nãohavianadaescritonelas,eramapenasfolhasprimorosas,noentantoestavamdatadascomaclarezadeumcalendário.Algumasdasmaisbonitas–easmaiscaracterísticas,osmaisperfeitosexemplosdoestilodeMigalha–pareciamproduzidascomacolaboraçãodosr.Paróquia:nãohaviaoutromododedizê-lo.
OspássarosconstruíamninhosnaÁrvore.Pássarossurpreendentes;comocantavam!Elesacasalavam,chocavam,criavamasas,saíamvoandoecantavam,entrandonaFloresta,enquantoeleosolhava.PoisviaagoraqueaFlorestatambémestavalá,esparramando-seportodoladoeafastando-separalonge.AsMontanhasreluziamaolonge.
DepoisdealgumtempoMigalhavoltou-separaaFloresta.NãoporquesecansaradaÁrvore,masporqueagoraelapareciaestarcomtodaa
clarezaemsuamente,estavacientedelaedoseucrescimento,mesmoquandonãoaolhava.Aoseafastar,descobriualgoestranho:aFloresta,éclaro,eraumaFlorestadistante,maselepodiaaproximar-sedela,atéentrarnela,semqueelaperdesseaqueleencantoparticular.Atéentãonuncatinhaconseguidopercorrerdistânciassemastransformaremsimplesarredores.Issodefatoaumentavaoatrativodascaminhadaspelocampo,porque,àmedidaquesecaminhava,novasdistânciasseabriam.Assim,asdistânciasdobravam,triplicavam,quadruplicavam,eseusencantosdobravam,triplicavam,quadruplicavam.Podia-seavançarmaisemais,eterumpaísinteironumjardim,ounumquadro(sepreferíssemoschamá-loassim).Podia-seavançarmaisemais,porémtalveznãoparasempre.HaviaasMontanhasemsegundoplano.Elasseaproximavam,muitodevagar.Nãopareciampertenceraoquadro,ousócomoligaçãocomalgumaoutracoisa,umvislumbredealgodiferenteatravésdasárvores,umaetapaposterior:outroquadro.
Migalhaperambulava,masnãoestavaapenasmatandotempo.Olhavaàsuavoltaatentamente.AÁrvoreestavaterminada,masnãoacabada–“Exatamenteocontráriodecomoera”,elepensou–,masnaFlorestahaviadiversasregiõesnãoconcluídas,queaindaprecisavamdetrabalhoereflexão.Nadamaisprecisavaseralterado,nadaestavaerradoatéaqueleponto,maseraprecisocontinuaratéumpontodefinido.Emcadacaso,Migalhaviaexatamentequaleraoponto.
Sentou-seembaixodeumaárvoredistante,muitobonita–umavariaçãodaGrandeÁrvore,porémbemespecial,ouassimseriaserecebesseumpoucomaisdeatenção–,considerandoporondecomeçariaotrabalho,porondeterminariaequantotempolevaria.Nãoconseguiuconcluiroprojeto.
–Claro!–disseele.–PrecisodoParóquia.Hámuitacoisaarespeitodeterra,plantaseárvoresqueelesabeeeunãosei.Estelugarnãopodeserapenasmeuparqueparticular.Precisodeajudaeconselhos,quedeveriaterprocuradoantes.
Levantou-seefoiatéolugarpeloqualhaviadecididocomeçarotrabalho.Tirouocasaco.Então,láembaixo,numapequenabaixada
protegidaquenãoseviadelonge,avistouumhomemqueolhavaaoredormeioaturdido.Apoiava-senumapá,maseraevidentequenãosabiaoquefazer.Migalhachamou-o.–Paróquia!–gritou.
Paróquiapôsapánoombroesubiuaoencontrodele.Aindamancavaumpouco.Nãodisseramnada,sómenearamacabeça,comofaziamquandoseencontravamnocaminho;masagoraandavamjuntos,debraçosdados.Semfalar,MigalhaeParóquiaconcordaramexatamentesobreondefazeracasinhaeojardim,quepareciamnecessários.
Enquantotrabalhavamjuntos,ficouclaroqueMigalhaeraagoraomelhordosdoisemorganizarotempoecumprirastarefas.Curiosamente,eraMigalhaquemseconcentravamaisnaconstruçãoenajardinagem,aopassoqueParóquiamuitasvezesficavaperambulando,olhandoasárvores,especialmenteaÁrvore.
Certodia,enquantoMigalhaplantavaumacercaviva,Paróquiaestavaaliperto,deitadonagrama,observandoatentamenteumaflorzinhaamarela,bonitaebemformada,quecrescianogramadoverde.MigalhapuseramuitasdelasentreasraízesdesuaÁrvore,haviabastantetempo.DerepenteParóquiaergueuosolhos;seurostoreluziaaosoleeleestavasorrindo.
–Émaravilhoso!–disseele.–Naverdadenãoeraparaeuestaraqui.Obrigadopormerecomendar.
–Bobagem–disseMigalha.–Nãomelembrodoquedisse,masdequalquermodonãofoiobastante.
–Ah,foisim–disseParóquia.–Assimeusaímuitoantes.AquelaSegundaVoz,comovocêsabe,tinhamemandadoparacá;dissequevocêtinhapedidoparamever.Devoissoavocê.
–Não.VocêdeveàSegundaVoz–disseMigalha.–Nósdoisdevemos.
Continuarammorandoetrabalhandojuntos,nãoseiporquantotempo.Nãohácomonegarquenocomeçodiscordavamdevezemquando,especialmentequandosecansavam.Poisnocomeçoàsvezessecansavam.Descobriramqueamboshaviamrecebidotônicos.Osfrascostinhamrótulosiguais:TomaralgumasgotascomáguadaFonte,antesdedescansar.
EncontraramaFontenocoraçãodaFloresta;sóumavez,haviamuitotempo,Migalhaaimaginara,porémnuncaatinhadesenhado.Agorapercebiaqueeraafontedolagoquereluziaaolongeealimentavatudooquecrescianaregião.Aspoucasgotastornavamaáguaadstringente,meioamarga,masrevigorante;edesanuviavamacabeça.Depoisdebeberelesdescansavamsozinhos;entãolevantavam-sedenovoetudoprosseguiaalegremente.NessashorasMigalhapensavaemfloreseplantaslindasenovas,eParóquiasempresabiaexatamentecomoplantá-laseondecresceriammelhor.Muitoantesqueostônicosacabassemdeixaramdeprecisardeles.Paróquiajánãomancava.
Àmedidaqueotrabalhochegavaaofimelessepermitiamcadavezmaistempoparacaminhar,olhandoasárvores,asflores,asluzeseformas,eopanoramadaregião.Àsvezescantavamjuntos,masMigalhaconstatouquecomeçavaasercadavezmaisfrequenteelevoltarosolhosparaasMontanhas.
Chegouumtempoemqueacasanabaixada,ojardim,agrama,afloresta,olagoetodaaregiãoestavamquasecompletos,aseuprópriomodo.AGrandeÁrvoreestavaemplenafloração.
–Vamosterminarhojeàtardinha–disseParóquiaumdia.–Depoisdissovamosfazerumalongacaminhada.
PartiramnodiaseguinteecaminharamatravésdasdistânciasatéchegaremàBeirada.Nãoeravisível,éclaro.Nãohavialinha,nemcerca,nemmuro;massabiamquehaviamatingidoamargemdaquelaregião.Viramumhomemquepareciaumpastordeovelhas;caminhavanadireçãodeles,descendoasencostasgramadasquelevavamàsMontanhas.
–Queremumguia?–perguntouele.–Queremprosseguir?
PorummomentoumasombracaiuentreMigalhaeParóquia,poisMigalhasabiaqueagoraqueriaprosseguir,e(decertomodo)deveriaprosseguir;masParóquianãoqueriaeaindanãoestavaprontoparair.
–Precisoesperarminhamulher–disseParóquiaaMigalha.–Elasesentiriasozinha.Eutinhaentendidoqueamandariamatrásdemim,em
algummomento,quandoestivessepreparadaequandoeutivessepreparadoascoisasparaela.Agoraacasaestáterminada,domelhorjeitoqueconseguimos;maseugostariademostrá-laparaminhamulher.Achoqueelavaisercapazdemelhorá-la,deixá-lamaisaconchegante.Esperoqueelagostedestelugar,também–eelesevoltouparaopastor.–Vocêéguia?–perguntou.–Podemedizeronomedestelugar?
–Nãosabe?–disseohomem.–ÉaTerradeMigalha.ÉoQuadrodeMigalha,ouamaiorparte:umapequenaparteagoraéoJardimdeParóquia.
–QuadrodeMigalha!–disseParóquia,espantado.–Vocêimaginoutudoisto,Migalha?Nuncasoubequevocêeratãoesperto.Porquenãomecontou?
–Eletentoulhedizerhámuitotempo–disseohomem–,masvocênãoolharia.Naépocaelesótinhatelaetinta,quevocêqueriausarparaconsertarseutelhado.EraoquevocêesuamulherchamavamdeBobagemdeMigalha,ouAquelesBorrões.
–Masnaquelaépocanãoeraassim,nãoerareal–disseParóquia.
–Não,naquelaépocaerasóumvislumbre–disseohomem–;masvocêpoderiaterentendidoovislumbre,seachassequevaliaapenatentar.
–Nãolhedeimuitaoportunidade–disseMigalha.–Nuncatenteiexplicar.EuochamavadeVelhoCavoucadordeTerra.Masoqueimporta?Agoramoramosetrabalhamosjuntos.Ascoisaspodiamtersidodiferentes,masnãopodiamtersidomelhores.Aindaassim,achoquevouterdeprosseguir.Decertovamosnosencontrardenovo,assimespero;devehavermuitomaiscoisasquepodemosfazerjuntos.Adeus!–eleapertouamãodeParóquiacalorosamente,pareceu-lheumamãoboa,firme,honesta.Voltou-separatrásporummomento.AsfloresdaGrandeÁrvoreresplandeciamcomoumachama.Todosospássarosvoavamecantavam.Entãoelesorriu,meneouacabeçaparaParóquia,efoi-secomopastor.
Iaaprendersobreovelhas,sobreasaltaspastagens,olhariaparaumcéumaisamplo,caminhariamaisemaisrumoàsMontanhas,sempresubindo.Maisadiantenãoconsigoimaginaroquefoifeitodele.Mesmoo
pequenoMigalhaemsuaantigacasaeracapazdevislumbrarasMontanhasaolonge,eelasentraramnasbordasdoquadrodele;mascomoelassãodeverdadeeoqueexisteparaalémdelassóquemasescalouécapazdedizer.
–Achoqueeleeraumhomenzinhobobo–disseoConselheiroTompkins.–Inútil,naverdade;denenhumaserventiaparaaSociedade.
–Ah,nãosei–disseAtkins,quenãoeraninguémimportante,apenasummestre-escola.–Nãotenhotantacerteza;dependedoquevocêentendeporserventia.
–Semserventiapráticanemeconômica–disseTompkins.–Ousodizerqueelepoderiatersetornadoalgumtipodeengrenagemaproveitável,sevocês,mestres-escola,entendessemdoseuofício.Masnãoentendem,eassimacabamostendogenteinútilcomoele.Seeugovernasseestepaís,dariaaeleeaosdesualaiaalgumserviçoparaoqualfossemadequados,comolavarpratosnumacozinhacomunitáriaoucoisaparecida,ecuidariaparaquetrabalhassemdireito.Ouosdescartaria.Eudeveriatê-lorecolhidohámuitotempo.
–Recolhido?Querdizerqueoteriafeitoviajarantesdotempodele?
–Sim,jáquevocêfazquestãodeusaressavelhaexpressãosemsentido.Empurrá-lopelotúnelparaograndeMontedeEntulho,éissoquequerodizer.
–Entãovocêachaqueoquadronãovalenada,quenãovaleapenapreservá-lo,aprimorá-loouatéaproveitá-lo?
–Éclaroquepinturatemutilidade–disseTompkins.–Masnãodavaparausaroquadrodele.Hámuitasoportunidadesparajovensarrojadosquenãotêmmedodenovasideiasenovosmétodos.Masnãoparaessasbobagensantiquadas.Devaneiosprivados.Elenãoseriacapazdedesenharumcartazeloquenteparasalvarsuavida.Sempremexendocomfolhaseflores.Certavezperguntei-lheporquê.Eledissequeasachavabonitas!Dáparaacreditar?Eledissebonitas!“Oquê,órgãosdigestivosegenitaisdeplantas?”,eulhedisse;eelenãodeuresposta.Boboindolente.
–Indolente–suspirouAtkins.–É,pobrehomenzinho,nuncaterminounada.Tudobem,astelasdeletiveram“melhoruso”desdequeelesefoi.Masnãosei,Tompkins.Vocêselembradaquelagrande,aqueusaramparaconsertarosestragosdacasavizinhaàdele,depoisdasventaniasedasenchentes?Encontreiumpedaçodelarasgado,jogadonumcampo.Estavaestragado,masreconhecível:umpicodemontanhaeumramodefolhas.Nãoconsigotirá-lodamente.
–Tirá-lodoquê?–disseTompkins.
–Dequemvocêsdoisestãofalando?–dissePerkins,intervindoemproldapaz.Atkinsestavavermelho.
–Nãovaleapenarepetironome–disseTompkins.–Nemseiporqueestamosfalandodele.Elenãomoravanacidade.
–Não–disseAtkins–,masmesmoassimvocêestavadeolhonacasadele.Porissoiavisitá-loeficavazombandodeleenquantobebiaseuchá.Bem,agoravocêconseguiuacasadele,eadacidade,demodoquenãoprecisadeixardepronunciaronomedele.Sequersaber,Perkins,estávamosfalandodeMigalha.
–Ah,coitadodopequenoMigalha!–dissePerkins.–Nemsabiaqueelepintava.
ProvavelmentefoiaúltimavezqueonomedeMigalhafoimencionadonumaconversa.Noentanto,Atkinsguardouopedaçoquesobrou.Amaiorparteseesfarelou,masumabelafolhaficouintacta.Atkinsmandouemoldurá-la.Maistardelegou-aaoMuseuMunicipal,epormuitotempo“Folha:deMigalha”ficoupenduradanumnicho,epoucosolhosanotaram.MasporfimoMuseufoidestruídoporumincêndio,eafolha,eMigalha,foraminteiramenteesquecidosnasuaantigaterra.
–Estámostrandoqueémuitoútil,defato–disseaSegundaVoz.–Parafériaserepouso.Éesplêndidaparaconvalescença;enãoapenasisso,paramuitoséamelhorintroduçãoàsMontanhas.Fazmilagresemalgunscasos.Tenhomandadocadavezmaisgenteparalá.Raramenteprecisamvoltar.
–Émesmo–disseaPrimeiraVoz.–Achoquevamosterdedarum
nomeàregião.Oquepropõe?
–OCarregadorresolveuissoháalgumtempo–disseaSegundaVoz.–TremparaParóquiadoMigalhanaplataforma:elegritaissohámuitotempo.ParóquiadoMigalha.Mandeiumamensagemaosdoisparalhescontar.
–Oquedisseram?
–Osdoisriram.Riram–asMontanhasecoaramasrisadas!
FIM