SABERES, CRENÇAS E REZAS QUE CURAM: a relação entre quem ...

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE - UERN PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO - PROPEG FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS - FAFIC PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS PPGCISH EDIONE RODRIGUES BATISTA SABERES, CRENÇAS E REZAS QUE CURAM: a relação entre quem reza e quem é curado no município de Icapuí/CE. MOSSORÓ 2020

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE - UERN

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO - PROPEG

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS - FAFIC

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS –

PPGCISH

EDIONE RODRIGUES BATISTA

SABERES, CRENÇAS E REZAS QUE CURAM: a relação entre quem reza e

quem é curado no município de Icapuí/CE.

MOSSORÓ

2020

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EDIONE RODRIGUES BATISTA

SABERES, CRENÇAS E REZAS QUE CURAM: a relação entre quem reza e

quem é curado no município de Icapuí/CE.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Ciências Sociais e Humanas, da

Universidade do Estado do Rio Grande do Norte,

para a obtenção do título de Mestre em Ciências

Sociais e Humanas.

Orientadora: Profª. Dra. Karlla Christine Araújo

Souza.

MOSSORÓ

2020

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EDIONE RODRIGUES BATISTA

SABERES, CRENÇAS E REZAS QUE CURAM: a relação entre quem reza e

quem é curado no município de Icapuí/CE.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Ciências Sociais e Humanas, da

Universidade do Estado do Rio Grande do Norte,

para a obtenção do título de Mestre em Ciências

Sociais e Humanas.

Aprovada em: ________/___________/________.

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________________________________

Profª. Dra. Karlla Christine Araújo Souza (Orientadora)

Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN)

_____________________________________________________________________

Prof. Dr. Ailton Siqueira de Sousa Fonseca (Membro Interno)

Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN)

_____________________________________________________________________

Profª. Dr. Luan Gomes dos Santos Oliveira (Membro Externo)

Universidade Federal de Campina Grande (UFCG)

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Dedico este trabalho a todas rezadeiras.

As que nos antecederam.

As atuais.

E àquelas que ainda virão.

Por empregarem tanto cuidado,

devoção e entrega na arte de curar.

Vocês são luz, inspiração de humanidade

e de ajuda ao próximo.

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AGRADECIMENTOS

Creio que saber agradecer é uma das mais belas virtudes do ser humano. Saber

reconhecer que para chegar a um determinado objetivo não estivemos sozinhos, que

houveram outros passos que ajudaram a trilhar esse caminho. Por mais que o processo da

escrita seja solitário e introspectivo, ele não poderia se concretizar se não fosse através de

outros (outros olhares, outras vozes e outras contribuições).

Se o caminho foi fácil? Se tivesse sido o resultado não seria o mesmo. Desconfio da

palavra fácil. Passar pelos percalços foi necessário para a (des) construção e reconstrução de

sentidos, significados e aprendizados. Ao longo dessa trajetória, muito mais que

conhecimentos científicos/acadêmicos, pude adquirir conhecimentos de vida que só

encontramos em vivências práticas do cotidiano e interação sociais, e isso não é ensinado em

nenhum manual ou revista científica.

Agradeço a Deus, Nossa Senhora e ao universo pelas energias emanadas, por

fortalecer minha fé e crenças, por iluminar e guiar meus passos e pensamentos, me

conduzindo da melhor maneira e me fazendo enxergar que sou além daquilo que julgava ser.

Agradeço a minha família, aos meus pais, irmãos, sobrinhos, avós e demais, que direta e

indiretamente fizeram parte da construção do ser humano que sou hoje, e que também está

refletido nesse trabalho. A vocês minha gratidão, amor e reconhecimento.

Aos meus amigos, aos que se mantiveram desde a infância, aos que a graduação me

presenteou e permanecem até hoje, aos novos que a vida gentilmente trouxe para perto, aos

meus companheiros de mestrado por compartilharem das mesmas aflições e também das

mesmas conquistas. Vocês ajudaram a tornar esse processo mais leve, meu muito obrigada

por se fazerem presentes e entenderem minhas ausências.

A UERN, universidade pública que me formou e possibilitou que esse mestrado

acontecesse. Ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Humanas por

oportunizarem a viabilização e concretização deste objetivo. Ao grupo de Pesquisa do

Pensamento Complexo (GECOM) pela riqueza transformadora dos encontros, por serem

estímulo de reflexões e processos criativos, e pela forma humana que enxerga o outro e

considera suas inúmeras possibilidades de ser e fazer ciência.

Agradeço também a todos os professores/mestres, das disciplinas, professores

convidados e todos que tive o prazer de conviver e aprender nesse processo de formação. Em

especial agradeço a Ailton, por ter participado da qualificação, pelas excelentes contribuições

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e por ter aceitado fazer parte da banca de defesa. Aprendi muito com ele no GECOM e nas

disciplinas, era perceptível a paixão com que ele conduzia as aulas, transmitindo seus

conhecimentos/saberes pela fala, pelos gestos e pela intensidade dos discursos. Um professor

que sem dúvidas sabe inquietar e fazer a gente refletir. Agradeço também a Luan Gomes,

professor da UFCG, por ter aceitado o convite para participar da banca. Tive oportunidade de

o conhecer em uma aula, e lembro que quando falei sobre o meu tema ele disse que era fonte

de estudo não só para o mestrado, que se eu quisesse poderia levar também para o doutorado.

A minha orientadora e amiga Karlla Christine, acredito que não poderia ter ninguém

melhor para me orientar. Porque era assim que me sentia com ela, “orientada”, principalmente

quando me achava perdida e sem saber direito para onde remar. Ela, com seu jeito calmo,

sempre sabia perfeitamente para que lado apontar, sendo bússola que dá o norte a seguir,

navio que transporta e também porto seguro. A primeira aula que tive com ela foi como aluna

especial na disciplina de Cultura Popular, cheguei um pouco atrasada, sentei e fiquei admirada

com a forma que ela conduzia a aula e pensei “é exatamente aqui que devo estar, é esse

mestrado que quero fazer parte”. A inteligência dessa mulher é incrível, mas a capacidade de

saber transmitir isso de forma clara, simples e sem soberba é mais incrível ainda. Obrigada

por ser como é, e obrigada por tanto.

A Dona Auxiliadora, figura central dessa pesquisa, na qual sem ela nada disso teria

sido possível. Não tenho nem palavras para agradecer. Sua humildade e ajuda ao próximo são

fontes de inspiração. Que Deus continue abençoando sua vida, fortalecendo esse dom que a

tantas pessoas têm ajudado a curar através de sua reza, da sua acolhida e da forma tão singular

que se dá esse processo. Agradeço também ao seu público, que tão gentilmente aceitou

participar e compartilhar seus relatos de vida, suas experiências e se abrir para expor seus

sentimentos. Essas lições que tive com vocês não encontraria em nenhum outro lugar. Muito

obrigada por despertarem sentidos e mostrarem capacidades que ajudam na construção de um

ser humano melhor.

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BENZEDURA

A bença da velha, eu peço,

Pra bem ficar protegida.

Em mão rugosa, confio

A benza da fé acolhida.

Com ramo tira quebranto,

Mistério pouco revelado.

Ave Cruz, canto em credo!

Sara do mau olhado.

Socorro de mulher prenha,

Aconchego para criança.

Ajuda com erva santa

Corpo fraco que se cansa.

É dom, fonte ancestral,

Quem recebe esse saber.

E se tiver pouca fé,

Nem adianta se benzer.

Elas resistem na cidade

E nas matas do interior.

Senhoras de valentia,

Guerreiras do bom senhor.

Trabalho de caridade,

Auxílio pra alma sofrida.

Com jejum e bom respiro

Apruma espinhela caída.

Sincretismo de benfeitura,

Catolicismo popular.

No terreiro, na pajelança,

Baixinho a sussurrar:

“Quem pra ti olhô

Com os olho malvado

Eu vou jogar nas onda

Do mar sagrado.”

Tal qual essas senhoras,

Tem os velho rezador.

Trabalham com a mesma fé,

Com a força do mesmo amor.

Salve Deus!, essas mãos santas.

A cura do benzimento!

Escudo da santa cruz.

A graça que traz alento.

Keyane Dias

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RESUMO

Rezadeiras são mulheres da tradição que praticam a cura através da fé. Elas exercem uma

forte influência de liderança em suas comunidades, sendo responsáveis por melhorias

significativas no que tange à saúde física, psíquica e espiritual das pessoas que buscam esse

ofício como forma de cura. A presente pesquisa surgiu da necessidade em conhecer melhor a

relação entre rezadeira e público, visto ser algo ainda pouco explorado nos trabalhos

existentes. Teve como questões norteadoras: por que as pessoas buscam a cura através das

rezadeiras? Como se sentem quando são rezadas? O que aprendem com as rezadeiras? E quais

as diferenças que encontram referentes a outros sistemas de cura? O objetivo principal da

pesquisa foi conhecer a prática da rezadeira e os motivos pelos quais as pessoas buscam a

cura através da reza. Foi realizado em uma vila de pescadores, na praia de Quitérias,

localizada no município de Icapuí, estado do Ceará. Teve como público-alvo uma (01)

rezadeira, Dona Maria Auxiliadora e cinco (05) pessoas que buscaram este saber. Trata-se de

uma pesquisa de cunho exploratório e de natureza qualitativa. Tendo a ecologia dos saberes

como instrumento teórico-metodológico e o trabalho de tradução proposto por Boaventura de

Souza Santos. Além de uma escuta sensível e observação participante. Como técnica para

obtenção de informações foi utilizada a entrevista semiestruturada. A pesquisa foi submetida e

aprovada seguindo os critérios estabelecidos pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UERN. A

rezadeira recebe um dom de Deus e se sente na obrigação de devolver esse presente através da

reza, não há cobrança de nenhum valor por isso, segundo ela “ninguém vende a palavra de

Deus”. Ela é a intermediária entre Deus e o público. O principal motivo que leva as pessoas a

procurarem a rezadeira é a fé que têm em Deus e na reza dela. A relação existente entre a

rezadeira e seu público é de muita proximidade, de construção de vínculos, confiança,

compreensão, solidariedade e de afetos, formando uma teia de significados na qual todos se

ajudam. Em comum, o que une essas pessoas é a fé presente em ambos os lados, o que é

primordial para que o processo de cura aconteça. A pesquisa ampliou sobremaneira a

compreensão da temática abordada, permitindo um mergulho mais profundo nesse rico

universo de simbolismos, sentidos e significados presentes em ambas as partes envolvidas no

processo de cura. Essa é apenas parte de um caminho que abre muitos outros. Este tema não

acaba em si mesmo, vai muito além, ele representa um leque de outras possibilidades e

perspectivas que devem ser exploradas.

PALAVRAS-CHAVE: Rezadeira. Fé. Cura. Saberes.

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ABSTRACT

Faith healers are women of the tradition who practice healing through faith. They exert a

strong leadership influence in their communities, being responsible for significant

improvements in terms of physical, psychological and spiritual health of people who seek this

craft as a way of healing. The present research arose from the need to better understand the

relationship between faith healers and the public, as it is something that is still little explored

in existing works. The guiding questions were: why do people seek healing through prayers?

How do you feel when you are prayed? What do they learn from mourners? And what

differences do you find regarding other healing systems? The main objective of the research

was to learn about the practice of praying and the reasons why people seek healing through

prayer. It was held in a fishing village, on the beach of Quitérias, located in the municipality

of Icapuí, state of Ceará. Its target audience was one (01) healer, Dona Maria Auxiliadora and

five (05) people who sought this knowledge. This is an exploratory and qualitative research.

Having the ecology of knowledge as a theoretical-methodological instrument and the

translation work proposed by Boaventura de Souza Santos. In addition to sensitive listening

and participant observation. As a technique for obtaining information, semi-structured

interviews were used. The research was submitted and approved following the criteria

established by the UERN Research Ethics Committee. The faith healer receives a gift from

God and feels obliged to return this gift through prayer, there is no charge for it, according to

her "no one sells the word of God". She is the intermediary between God and the public. The

main reason that leads people to look for healers is their faith in God and in her prayers. The

relationship between the faith healer and its audience is very close, building bonds, trust,

understanding, solidarity and affection, forming a web of meanings in which everyone helps

each other. In common, what unites these people is the faith present on both sides, which is

essential for the healing process to happen. The research greatly expanded the understanding

of the theme addressed, allowing a deeper dive into this rich universe of symbolisms, senses

and meanings present in both parties involved in the healing process. This is just part of a path

that opens up many others. This theme does not end in itself, it goes much further, it

represents a range of other possibilities and perspectives that must be explored.

KEYWORDS: Pray healer. Faith. Healing. Knowledge.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 - Mapa do município de Icapuí/CE ......................................................................................... 24

Figura 2- Praia de Quitérias, Icapuí/CE, 2019. ..................................................................................... 32

Figura 3 - Barcos pesqueiros em atividade no mar – Quitérias, Icapuí/CE, 2019................................. 33

Figura 4 –Sombra das árvores da casa de Dona Auxiliadora. Quitérias, Icapuí/CE, 2019. .................. 35

Figura 5- Dona Auxiliadora, Quitérias – Icapuí/CE, 2019. ................................................................... 38

Figura 6 – Dona Auxiliadora rezando na pesquisadora Edione. Quitérias – Icapuí/CE, 2019. ............ 44

Figura 7 - Imagens A e B das figuras religiosas de Dona Auxiliadora, Quitérias – Icapuí/CE, 2019. . 45

Figura 8 - Pé de pinhão roxo no quintal de Dona Auxiliadora, Quitérias – Icapuí/CE, 2019. ............ 48

Figura 9 - Dona Auxiliadora rezando em uma criança. Quitérias – Icapuí/CE, 2019. .......................... 61

Figura 10 - Dona Auxiliadora rezando em um cachorrinho. Quitérias – Icapuí/CE, 2019. .................. 62

Figura 11 – Dona Auxiliadora rezando na coluna de uma moradora da vila. Quitérias – Icapuí/CE,

2019. ...................................................................................................................................................... 72

Figura 12 - Rezadeira e pesquisadora, Quitérias - Icapuí/CE, 2019. .................................................... 95

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 12

1 LOCAL DE ESTUDO E CENTRALIDADE DA REZADEIRA NA COMUNIDADE 23

1.1. Alguns aspectos gerais sobre o município de Icapuí ..................................................... 23

1.2 Um pouco sobre Icapuí e modos de viver do seu povo .................................................. 25

1.3 “Eu que rezo, mas Deus é quem cura”: Dona Maria Auxiliadora, história de vida, ofício

e experiências compartilhadas na comunidade de Quitérias, Icapuí/CE. ............................. 31

2 DIÁLOGO ENTRE SABERES E AS VOZES DOS QUE CREEM ............................... 51

2.1 Saberes científicos e saberes da tradição: por uma desconstrução da dicotomia e uma

construção dialógica. ............................................................................................................ 51

2.2 “Eu tenho muita fé em Deus e muita fé na reza dela também”: perspectivas das pessoas

que buscam a reza. ................................................................................................................ 60

3 O CUIDADO PRESENTE NAS PRÁTICAS DE CURA ................................................ 74

3.1 Breve abordagem sobre o cuidado a partir do ponto de vista filosófico ......................... 74

3.2 Alguns aspectos históricos sobre o cuidado e a relação deste com o feminino nas

práticas de cura ..................................................................................................................... 77

3.3 Saberes e práticas populares do cuidado: a relação entre rezadeira e seu público ......... 85

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 92

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 96

APÊNDICES ......................................................................................................................... 103

APÊNDICE A – ROTEIRO ENTREVISTA REZADEIRA ........................................... 104

APÊNDICE B – ROTEIRO ENTREVISTA PÚBLICO................................................... 105

ANEXOS ............................................................................................................................... 106

ANEXO A – TCLE PARA AS REZADEIRAS ................................................................. 107

ANEXO B – TCLE PARA O PÚBLICO ............................................................................ 109

ANEXO C – PARECER CONSUBSTANCIADO DO CEP ............................................ 111

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INTRODUÇÃO

Quando surge a pergunta “por que estudar as rezadeiras? ”, vem à memória a época de

infância, na qual este saber era muito presente por meio da reza de Dona Catarina, uma

mulher humilde, querida e estimada por todos no município de Antônio Martins/RN (de onde

sou natural). Apesar de hoje, infelizmente, ela não se encontrar conosco fisicamente,

permanece viva na memória daqueles que conheceram seus saberes, sua fé e sua dedicação à

toda comunidade, e esse reconhecimento da importância que ela teve é perpetuado ao longo

do tempo.

Ainda quando criança, eu não tinha compreensão do significado do ramo murcho, dos

bocejos, das lágrimas que rolavam e dos sussurros, bem como das medições da cordinha que

ela utilizava na reza para espinhela caída 1– não sabia, mas ficava admirada com a diferença

no tamanho da cordinha antes e após a reza, achava interessante e gostava de frequentar a casa

dela. Ainda tenho viva a lembrança da realização do ritual.

Com o passar dos anos, tive oportunidade de cursar uma graduação em enfermagem

pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN, e imersa nesse “universo

científico” senti uma necessidade de revisitar esses saberes relacionados à cura pela rezadeira,

procurar compreender o que antes não compreendia, romper as imposições epistemológicas

que inevitavelmente entramos no decorrer do curso, aprender como entender e melhor lidar

com o outro. Para tanto, fui percebendo que somente os conhecimentos provenientes da

universidade não estavam dando respostas satisfatórias, que para ser uma profissional mais

humana eu precisaria buscar isso em outras formas que complementassem e permitissem uma

visão mais universal e abrangente do outro, não me limitando a quadros clínicos/patológicos e

modelos engessados de um saber mecanicista que muitas vezes se é enfatizado.

Optei, pois, por estudar as práticas populares das rezadeiras como trabalho de

conclusão de curso, relacionando à enfermagem ferramentas que possibilitassem compreender

o outro de forma a considerar seus próprios saberes e os da comunidade para uma finalidade

comum que é a cura. Para tanto, foi preciso me ater mais as histórias de vida das pessoas,

entender que por trás dos sintomas físicos existia algo a mais, que as pessoas não tinham

oportunidade de falar e também que não era dada atenção necessária na identificação desse

algo a mais, pois a lógica presente nos serviços de saúde é muitas vezes de silenciamento. Em

1 Dor no estômago, pernas, costas e cansaço ao realizar esforços físicos.

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alguns casos o simples fato de ouvir essas pessoas pode gerar mais resultados

positivos/benéficos a saúde do que uma prescrição medicamentosa, por exemplo. Se somente

medicamentos resolvessem os problemas de saúde poderíamos nos questionar “por que o

número cada vez maior de farmácias não está curando as pessoas? ”, parece que a resposta

para esse questionamento é justamente o contrário disso, ao que parece, quanto maior o

número de farmácias maior também a quantidade de pessoas adoecidas.

O interesse em estudar sobre as rezadeiras – bem como aprender com elas – persistiu

ao longo da caminhada. Atualmente, visualizei no Programa de Pós-Graduação em Ciências

Sociais e Humanas (PPGCISH) da UERN, uma possibilidade de aprofundar os conhecimentos

já construídos na graduação, além de abrir um leque de possibilidades, interações e

contribuições de diversas áreas do conhecimento, entendendo que é possível a construção

dialógica destes sob olhares diferentes e complementares, isso foi possível através da

perspectiva interdisciplinar que o programa abarca, ampliando o campo de visão para todas as

oportunidades de aprendizagem, toda representação, simbolismos e crenças que estão

envolvidas no processo de adoecimento e cura das pessoas, em todas as suas dimensões, bio-

psico- socio-espiritual.

Nessa trajetória de formação científica – e também pessoal – é inegável a riqueza de

conhecimentos e experiências que venho obtendo pela participação no Grupo de Pesquisa do

Pensamento Complexo (GECOM). Através deste grupo tenho acesso a discussões excelentes

e muito ricas, que abriram a mente para compreensão de uma ciência mais humana, indo

diretamente ao encontro daquilo proposto com a pesquisa. Sendo assim, este trabalho também

é fruto e reflexo do que pude aprender durante os encontros do GECOM, os quais sempre saia

com novas ideias, visões e inquietações, mas também com a alma mais leve – pois esta é

sempre alimentada com a leveza e sensibilidade na qual os diálogos são conduzidos, é

inspirador e extremamente gratificante poder fazer parte disso tudo.

Estudar sobre as rezadeiras também é uma forma de mostrar que esse saber não

acabou – e não irá acabar como querem, em alguns casos, que acreditemos. Trata-se de uma

prática que vem se perpetuando desde a antiguidade, porém não é algo fixo e imutável, e sim

dinâmico de acordo com o contexto no qual está inserida e na forma como o saber sofre

ressignificações ao longo das gerações, estando em constante processo de (re)

construção/adaptação. É antes de tudo uma prática de resistência, principalmente frente

àqueles que a querem invisibilizar e deslegitimar seu saber. “Ao contrário do que possa

parecer, as crenças tradicionais continuam vivas no meio popular, algumas renascem em

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novas formas e são integradas num universo mais amplo, mas a sua estrutura contínua a

mesma” (MINAYO, 1988, p. 377-378).

A maioria dos trabalhos existentes sobre as rezadeiras versam, principalmente, a

respeito do ato da reza em si, da aprendizagem, da memória e identidade, dos símbolos, de

como a prática é desenvolvida, da associação com as religiões e das histórias de vida das

rezadeiras. Portanto, faz-se necessário compreender melhor todos os envolvidos no ritual,

voltar-se mais atentamente para as pessoas que recorrem as rezas, pois são estas – também –

quem mantêm o ofício vivo até hoje, existindo, pois, uma relação de interdependência

profícua, fazendo com que o ofício perdure ao longo do tempo.

Para compreender melhor a relação entre rezadeira e comunidade partimos do

pressuposto de que, por mais que as pessoas tenham acesso a práticas formais/institucionais

de saúde, ainda é possível visualizar àquelas que recorrem às rezadeiras como forma de cura e

de abrandar os sofrimentos referentes a aspectos do seu viver. Questionou-se, pois, por que as

pessoas buscam a cura através das rezadeiras? Como se sentem quando são rezadas? O que

aprendem com as rezadeiras? E quais as diferenças que encontram referentes a outros

sistemas de cura?

Teve como objetivo principal conhecer a prática da rezadeira e os motivos pelos quais

as pessoas buscam a cura através da reza, e os específicos de identificar a relação existente

entre rezadeira e população; conhecer as crenças envolvidas na prática da benzeção; e

compreender como se dá o processo de cura por meio da percepção daqueles envolvidos nesse

processo.

A pesquisa foi realizada em uma vila de pescadores, na praia de Quitérias, localizada

no município de Icapuí, no estado do Ceará. Os participantes da pesquisa foram tanto as

pessoas que buscam a rezadeira como também a própria rezadeira. Por se tratar de um estudo

de abordagem qualitativa, o número de participantes levou em consideração a metodologia

proposta, na qual uma amostra numerosa seria inviável devido à quantidade de informações e

representações que poderiam surgir no desenvolver da pesquisa, o que dificultaria a análise

dos dados. Sendo assim, o público-alvo foi de uma (01) rezadeira e cinco (05) pessoas que

buscaram este saber.

Inicialmente a ideia seria fazer a abordagem do público no momento em que este vai

até à rezadeira para ser curado, mais especificamente na própria casa da rezadeira, local onde

ela desenvolve o ofício e sente-se mais confortável para acolher as pessoas que precisam do

seu auxílio. Contudo, devido ao fato dessa procura em alguns casos não coincidir com os

momentos em que estava em campo, ou possivelmente atrapalhar/interferir no próprio ofício,

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ocorreu a opção de incluir pessoas que já foram curadas pela rezadeira em outros momentos

anteriores, não se limitando a sua condição atual de saúde, nem obrigatoriamente tendo que

estar presentes na casa da rezadeira no momento da entrevista, podendo acontecer em outros

espaços – desde que sabidamente fossem pessoas que frequentam/frequentaram e se

beneficiaram do ofício da rezadeira.

A população estudada não foi previamente delimitada, visto a impossibilidade de se

caracterizar a variedade do público que busca a rezadeira, puderam participar pessoas

independente do seu sexo, cor/raça, gênero ou classe social. Essa variedade de público é

importante no sentido de se observar a abrangência que este saber alcança, não se restringindo

a públicos específicos.

Realizei um total de seis visitas a Quitérias. O contato inicial com Dona Auxiliadora

se deu no dia 02 de maio, onde permaneci os horários da manhã e tarde em sua residência e

retornei a Mossoró no mesmo dia. O segundo encontro aconteceu em 16 de maio, permaneci

em Icapuí para dormir na casa de uma amiga, ficando mais próximo e facilitando o retorno no

dia posterior, no caso dia 17 de maio, onde se deu a terceira aproximação com o campo.

Depois desses três encontros continuei seguindo o processo da escrita e no dia 22 de julho

qualifiquei minha pesquisa. Estive em campo pela quarta e quinta vez, respectivamente, nos

dias 22 e 23 de agosto (as cinco visitas realizadas no ano de 2019). A última visita ocorreu no

dia 18 de março de 2020.

Os dados dispostos ao longo da pesquisa não seguem uma ordem cronológica de

apresentação de acordo com os dias dos encontros, de forma sequencial e isolada. A

organização se deu conforme as falas dos sujeitos da pesquisa que conversavam entre si e

permitiram retomar e complementar informações ditas em outros momentos, permitindo

assim uma melhor compreensão de todos envolvidos nesse processo. Portando, não foi feita

uma descrição dos acontecimentos por dia separadamente, e sim uma abordagem que engloba

essa aproximação com o campo de forma mais dinâmica e interagindo com outros autores.

Trata-se de uma pesquisa de cunho exploratório e de natureza qualitativa. Tendo a

ecologia dos saberes como instrumento metodológico, de um trabalho de tradução de saberes,

proposta por Boaventura de Souza Santos. “A tradução é o procedimento que permite criar

inteligibilidade recíproca entre as experiências do mundo, tanto as disponíveis como as

possíveis, reveladas pela sociologia das ausências e a sociologia das emergências” (SANTOS,

2010, p. 123).

Também foi utilizada a escuta sensível, que é um tipo de escuta própria do

pesquisador-educador segundo a 'abordagem transversal’. “A escuta sensível se apoia na

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empatia. O pesquisador deve saber sentir o universo afetivo, imaginário e cognitivo do outro

para poder compreender de dentro suas atitudes, comportamentos e sistema de ideias, de

valores de símbolos e de mitos” (BARBIER, 1997, p. 1).

Essa metodologia favoreceu uma melhor interação com os sujeitos da pesquisa. Que

foram tanto as pessoas que buscam a rezadeira como forma de reestabelecerem o equilíbrio de

seus quadros de saúde, como também a própria rezadeira, visto que a relação/interação

presente no ofício da reza é dual, de dependência por ambas as partes, sendo, pois,

fundamental compreender essa associação entre as duas.

Nessa interação entre quem reza e quem é curado, a postura do pesquisador para uma

escuta sensível é de uma abertura holística. “Alguém só é pessoa através da existência de um

corpo, de uma imaginação, de uma razão e de uma afetividade, todos em interação

permanente. A audição, o tato, a gustação, a visão e o olfato se aplicam à escuta sensível”

(BARBIER, 1997, p. 4).

A questão do significado vista sob a escuta sensível em educação para saúde é

colocada em três polos: “direção - da cura, ou pelo menos do alívio do sofrimento;

significação - qual o significado da enfermidade para o doente, qual é o significado de sua

vida, quando ela se esvai?; e sensação – qual é a relação do doente com seu próprio corpo,

como vive ele o sofrimento? ” (BARBIER, 1997, p. 5). Nesse sentido, só foi possível permear

esse rico universo de significados dando abertura para compreender as nuances que estão

envolvidas no ofício da reza e nas crenças de quem cura e é curado.

Também ocorreu a observação participante, que segundo Moreira (2002, p. 52), é

conceituada como “uma estratégia de campo que combina ao mesmo tempo a participação

ativa com os sujeitos, a observação intensiva em ambientes naturais, entrevistas abertas

informais e análise documental”.

A escolha da observação participante justifica-se pelo fato da necessidade de se inserir

no universo de ritualização da reza, a fim de ter um contato maior e possibilitar ter uma

compreensão mais abrangente das relações, sentimentos, dinâmica e subjetividades

envolvidas em todo o processo. Para tanto, só é possível captar essas nuances se o

pesquisador estiver imerso em seu local de estudo, sendo também parte deste.

Como técnica para obtenção de informações foi utilizada a entrevista semiestruturada,

que “é o tipo de entrevista na qual o pesquisador, ao se propor realiza-la junto ao objeto de

pesquisa, de um lado, comparece com um temático básico de perguntas anteriormente

preparadas, de outro, também deixa espaço para que, caso aconteça, surjam outras questões

que não estejam previstas nesse temário” (BASTOS, 2009, p. 99). Desta forma foi possível

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17

colocar em prática as diretrizes da escuta sensível e da observação participante, pois os

sujeitos não obedecem a uma sequência fechada de questionamentos e tiveram mais liberdade

para discorrer com base as questões norteadoras do roteiro.

A pesquisa foi submetida seguindo os critérios estabelecidos pelo Comitê de Ética em

Pesquisa (CEP) da UERN com base nas resoluções 466/12 e 510/16, as quais tratam,

respectivamente das “Diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres

humanos” e “Normas aplicáveis as Ciências Humanas e Sociais” do Conselho Nacional de

Saúde. Após submissão e correções sugeridas a pesquisa foi aprovada, tendo com Número do

Parecer: 3.146.837, sendo assim foi possível a ida ao campo de pesquisa. É válido ressaltar

que após a aprovação pelo CEP a pesquisa teve pequenas alterações conforme seu andamento,

como por exemplo na mudança do título e algumas trocas de verbos nos objetivos, porém,

isso não representou algo que interferisse de forma negativa na configuração básica da

proposta que foi aprovada, e sim ajudou a ter uma melhor reorganização e direcionamento de

acordo com o que foi encontrado em campo, facilitando a compreensão final da mesma.

Os participantes da pesquisa foram convidados a participarem mediante apresentação e

explicação do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), de forma apropriada a

cultura e ao local que estavam inseridos. Foi garantido ao participante tempo para discussão e

reflexão do termo a fim de primeiro compreender sua participação antes da assinatura. O

termo contém todas as informações sobre a pesquisa, bem como solicitação de utilização para

gravação de áudio e registro fotográfico.

O benefício desta pesquisa foi a possibilidade de gerar reflexões que contribuíram para

as pessoas terem uma melhor compreensão dos fenômenos que permeiam seu processo saúde

e doença, na ampliação do conhecimento que tem sobre si mesmas, em como podem fazer

para melhorar seus quadros de saúde e bem-estar aliados aos saberes e práticas das rezadeiras,

bem como contribuir para divulgação da importância que as rezadeiras desempenham em

sociedade.

Tem-se também como benefício a contribuição para construção de uma epistemologia

do Sul, com base nos estudos da teoria pós-colonial de Boaventura de Souza Santos, por meio

da produção de saberes.

Os riscos mínimos aos quais os participantes da pesquisa foram expostos consistiu em

possíveis constrangimentos ao responderem questões que levassem a reflexões pessoais e

gerassem algum tipo de desconforto ou frustração. Esses riscos foram minimizados mediante

a garantia da privacidade do participante na pesquisa, onde não foi preciso a identificação de

seus nomes. Foi mantido o respeito e sigilo das informações por ocasião da publicação dos

Page 18: SABERES, CRENÇAS E REZAS QUE CURAM: a relação entre quem ...

18

resultados, visto que não será divulgado dado que identifique o participante – caso ele não

permita.

Os nomes dos participantes foram substituídos por nomes de plantas medicinais,

exceto o de Dona Auxiliadora, pois se trata de uma figura central e que a identificação desta

se fez necessário – ressaltando que ela autorizou o uso do seu nome/imagem na pesquisa.

Com relação ao público, foi mantida a preservação de sua identidade. Os nomes das cinco

pessoas foram substituídos pelos seguintes nomes de plantas medicinais: Alfazema, Alecrim,

Camomila, Erva doce e Eucalipto (todas do sexo feminino). Porém, também houve relatos de

informantes que não fizeram parte das perguntas do roteiro de forma integral, mas se fizeram

presentes em alguns momentos e trouxeram contribuições importantes. Esses informantes

foram predominantemente do sexo masculino. A escolha destes não foi intencional, foram

sendo ouvidos conforme a dinâmica do campo, na qual os diálogos aconteciam.

Além das contribuições no campo social através de reflexões acerca da ressignificação

do processo saúde e doença que as pessoas têm de si mesmas, também traz mais o tema em

discussão para o âmbito epistemológico, expondo a necessidade/importância de reconhecer e

valorizar as práticas populares do cuidado, aproximando e mostrando a influência para a

formação de sujeitos, ocorrendo, pois, uma complementação de saberes.

As rezadeiras têm um papel de liderança significativo em suas comunidades, sendo

responsáveis por melhorias significativas no que tange à saúde física, psíquica e espiritual das

pessoas que buscam esse ofício como forma de cura. A realização desta pesquisa justifica-se

pela importância em se trabalhar também com o público que busca as rezadeiras, visto que

nesse processo está envolvido tanto a crença de quem reza quanto e a de quem é curado.

Sendo, pois, indispensável conhecer melhor o universo que permeia o imaginário das pessoas

sobre o seu processo de saúde e doença.

Em busca de abrandar os sofrimentos que geram os males físicos e afastar de si os

fantasmas da morte, o homem vem percorrendo alguns caminhos ao longo do tempo. Nesta

jornada longa e tortuosa descobriu e criou vários elementos e agentes, tanto integrantes do

saber acadêmico, quanto daqueles provenientes de reinterpretações e empirismos. “É

justamente neste limiar entre essas duas concepções de conhecimento que encontramos uma

das figuras atuantes que têm, no seu trabalho, o objetivo da cura e da proteção dos flagelos: a

rezadeira” (PIMENTEL, 2007, p. 267).

Os agentes da cura recebem denominações diferentes de acordo com o local e cultura

os quais estão inseridos, como por exemplo rezadeiras, benzedeiras e curandeiras, e apesar de

muitas vezes atuarem como sinônimos, cada qual tem suas características próprias que os

Page 19: SABERES, CRENÇAS E REZAS QUE CURAM: a relação entre quem ...

19

fazem únicos e peculiares no desenvolvimento da prática. No decorrer deste trabalho o termo

mais utilizado é o de rezadeira, porém, em alguns momentos, os termos benzedeira e

curandeira também aparecem conforme alguns autores trabalhados, que trazem discussões

pertinentes sobre o assunto. Porém, vale salientar que esta pesquisa não teve pretensão de

explicar a origem de tais denominações, bem como suas diferenças e particularidades, visto

que seria um trabalho mais minucioso e foi dada preferência pela forma como o sujeito da

pesquisa se autodenomina e de como as pessoas a reconhecem, ou seja, como rezadeira.

Segundo Quintana (1999), a caracterização da benzedura se dá, principalmente, por

meio de uma atividade terapêutica, sendo realizada por meio de uma relação dual entre quem

reza e o cliente. Nessa relação, o papel exercido pela rezadeira é de intermediação com o

sagrado para se obter a cura, tendo como processo principal nessa terapêutica a execução de

algum tipo de prece – não sendo, este, exclusivo.

Observa-se, assim, que a eficácia da magia é implicada pela crença na magia,

apresentando-se sob os seguintes aspectos que se complementam, “a crença do feiticeiro na

eficácia de suas técnicas, depois, a do doente que ele trata (...) E, finalmente, a confiança e as

exigências da opinião coletiva” (LÉVI-STRAUSS, 2008, p. 182).

É necessário que através da participação entre a tradição coletiva e invenção

individual, ocorra uma elaboração e modificação contínua de uma estrutura, ou seja, “um

sistema de oposições e de correlações que integre todos os elementos de uma situação total

em que feiticeiro, doente e público, representações e procedimentos, encontrem cada qual o

seu lugar” (LÉVI-STRAUSS, 2008. p. 197).

Como toda prática social, a prática da benzedura vem sofrendo uma sucessão de

modificações. Não poderia ser de outro modo, visto que, a benzedura está em permanente

processo de reconstrução, adquirindo novos sentidos de acordo com a articulação com o

social, não se configurando, portanto, apenas como uma prática estática e sim na constituição

de uma realidade mais dinâmica (ALVES, 1994).

O discurso referente a enfermidade é permeado de sentidos uma vez que é declarado

pelos indivíduos como real. Sendo real por ter origem e ser legitimado primeiramente pelo

senso comum. É necessário ter compreensão deste discurso como resultado dos processos de

interação e comunicação pelos quais os indivíduos incorporam uma rede de sentidos para

responder as suas experiências aflitivas. “Na construção de sentidos, fatores intersubjetivos e

existenciais mesclam-se com formas culturalmente padronizadas de interpretação” (ALVES,

1994, p. 98).

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Kapferer (1979b) argumenta que “o ritual produz cura na medida em que permite uma

mudança na perspectiva subjetiva pela qual o paciente e comunidade percebem o contexto da

aflição” (KAPFERER apud RABELO, 1994, p. 49).

O doente, no ritual de cura, é induzido a redirecionar a atenção para novos aspectos de

sua experiência ou percebê-la sob uma nova visão. “A cura consistiria, assim, não no retorno

ao estado inicial, anterior à doença, mas na inserção do doente em um novo contexto de

experiência (RABELO, 1994, p.49).

O início do processo terapêutico se dá com a solicitação da intervenção pelo cliente,

seguido da exposição das queixas para que a benzedeira possa conhecer suas perturbações.

Não se tratando meramente do conhecimento dos sintomas presentes inicialmente, mas sim na

produção de efeitos de ressignificação. A benzedeira procura observar a colocação do

paciente sobre a terapêutica solicitada, não se limitando a queixa deste. A aproximação, em

muitos casos, ocorre através de conversa informal discutindo temas que não estão diretamente

relacionados a queixa do paciente. “Intercalados os assuntos gerais, é comum a benzedeira

relatar casos de problemas similares aos apresentados pelos pacientes e que tiveram uma

resolução positiva” (QUINTANA, 1999, p. 57).

A partir disto, o doente que busca a rezadeira compartilha com ela a ideia de que a

cura será alcançada por meio da reza. Essa ideia é construída nas informações culturais de

ambas as partes. Não obstante, se uma pessoa que nunca viu uma rezadeira e que não tivesse

nenhum conhecimento sobre a benzedura fosse levada para tal, esta pessoa poderia desconfiar

que o ritual, de fato, fosse um ato de cura, pois, certamente, não teria o mesmo grau de

compreensão daqueles que compartilham socioculturalmente esses conhecimentos e valores

(PIMENTEL, 2007).

Segundo Theotonio (2010, p 15), “a rezadeira é uma mulher repleta de sensibilidades,

de atitudes de acolhimento para com aqueles que chegam a sua casa, em geral outras

mulheres, acompanhadas de seus filhos ou parentes próximos em busca da reza”. Essa busca é

caracterizada pela necessidade de descobrir soluções para problemas relacionados à saúde no

cotidiano das pessoas, buscando a cura e procurando manter um estado de saúde desejado.

Em alguns casos o processo de cura é monopolizado por um único agente, como por

exemplo pelo sistema médico, deixando-se assim de compreender a doença como resultado da

convergência de inúmeros estados e fatores que permeiam a vida das pessoas. Ao se

depararem com problemas de saúde, as pessoas vão em busca de soluções mediante os mais

variados sistemas de cura (SCOTT, 1996).

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21

Segundo Lévi-Strauss, ao abordar a questão da eficácia simbólica, afirma que a cura

consiste “em tornar pensável uma situação dada inicialmente em termos afetivos, e aceitáveis,

pelo espírito, dores que o corpo se recusa a tolerar” (2008, p. 213). A importância, nesse caso,

não se dá pelo fato da mitologia xamânica representar uma realidade objetiva, e sim, na

existência da crença pelo paciente, membro de uma sociedade que nela também crê.

A força da prática das rezadeiras consiste em uma “suplementação psicológica e

social, na medida em que aceitam ouvir o inacreditável e responder aos clientes com a

garantia da cura. Pois estar doente é querer ser amado, ser protegido” (LAPLANTINE E

RABEYRON, 1989, p. 62).

Com relação a combinação de práticas tradicionais e científicas, entende-se que a

união das duas é a melhor forma de garantir as pessoas uma condição de saúde favorável e

que responda às suas reais necessidades de saúde. De acordo com Cancline,

ir ao médico e ao curandeiro ao mesmo tempo - é uma maneira transacional de

aproveitar os recursos de ambas as medicinas e com isso os usuários revelam uma

concepção mais flexível que a do sistema médico moderno sectarizado na alopatia, e

que muitos folcloristas e antropólogos que idealizam a autonomia das práticas

tradicionais. Da perspectiva dos usuários, ambas as modalidades terapêuticas são

complementares, funcionam como repertório de recursos a partir dos quais efetuam

transações entre o saber hegemônico e o popular (2008, p. 348).

De acordo com Thomas, “o maior trunfo do curandeiro era a imaginação de seu cliente

e, em vista do que se sabe hoje sobre as potencialidades de qualquer tratamento que conte

com a absoluta fé, tanto do médico quanto do paciente, a força desse trunfo não deve ser

subestimada” (1991, p. 180). Para Marcel Mauss, o ato médico permaneceu, quase até os

nossos dias, cercado de prescrições religiosas e mágicas, formando um verdadeiro tecido de

simbolismos. “A eficácia dos ritos e a da arte não são distinguidas, mas claramente pensadas

em conjunto” (2008, p. 57).

Considerando o papel de liderança que as rezadeiras desempenham, não devem, pois,

serem combatidas, nem ocorrer uma marginalização desses saberes, e sim ocorrer uma

aliança, juntando-se, por exemplo, programas governamentais de saúde preventiva a este

poder de liderança que essas mulheres exercem, visto que fé e medicina estiveram sempre

ligadas a cultura popular (PIMENTEL, 2007). E ao se pensar essa questão é importante

atentar para que nessa associação de saberes, não seja priorizado apenas um tipo de

conhecimento em detrimento do outro.

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22

Com relação aos aspectos estruturais, para que haja uma melhor organização e

compreensão, a pesquisa foi disposta nesta presente introdução, em três capítulos e nas

considerações finais. No primeiro capítulo, intitulado “Local de estudo e centralidade da

rezadeira na comunidade”, foi realizada uma abordagem sobre os aspectos gerais de Icapuí,

um pouco sobre a história do município, bem como os modos de vida de sua população,

informações sobre a praia de Quitérias – local onde a pesquisa se desenvolve – enfatizando

aspectos culturais, históricos e modos de viver da comunidade. Nesse capítulo também foi

dada ênfase a centralidade que a rezadeira representa na comunidade.

No segundo capítulo, intitulado “Diálogo entre saberes e vozes dos que creem”, foi

abordada uma discussão acerca dos saberes científicos e saberes da tradição, a fim de se

descontruir a ideia dicotômica e construir uma relação dialógica entre esses saberes com base

nos conhecimentos propostos por Boaventura de Sousa Santos. Também foi discutido a fala

das pessoas que buscam a rezadeira como forma de cura.

No terceiro capítulo, intitulado “O cuidado presente nas práticas de cura”, foi

discutida uma breve abordagem sobre o cuidado a partir do ponto de vista filosófico, bem

como alguns aspectos históricos sobre o cuidado e a relação deste com o feminino nas práticas

de cura, e, para encerrar, a discussão sobre os saberes e práticas populares do cuidado,

enfatizando a relação entre rezadeira e seu público. E por fim é apresentada as considerações

finais da pesquisa.

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1 LOCAL DE ESTUDO E CENTRALIDADE DA REZADEIRA NA COMUNIDADE

Icapuí tem*

Tem cultura popular

nos serviços da parteira

nas mãos da labirinteira

e do escultor exemplar

na mágica do dedilhar

no baião do sanfoneiro

crendice de-pai-de-santo

oração contra quebranto

nas preces do curandeiro

Em toda casa alpendrada

há um pedaço da história

uma parte da memória

que deve ser registrada

em cada pau de jangada

encontrado por aí

cada conchinha daqui

levada pra outra parte

traduz a vida e a arte

do povo de Icapuí

* J. Gomes2

1.1. Alguns aspectos gerais sobre o município de Icapuí

O município de Icapuí está situado no extremo leste do estado do Ceará, entre as

latitudes -4°37’40” e -4°51’18” e longitudes -37°15’30” e -37°33’44”. Faz fronteira com o

estado do Rio Grande do Norte e, no Ceará, com a cidade de Aracati. Localizado na

Mesorregião do Jaguaribe e Microrregião do Litoral de Aracati, a uma distância de 202,00 km

da capital Fortaleza. Possui clima tropical quente, semiárido brando. Possui uma área

territorial de 423,539 km². De acordo com o último censo realizado contava com uma

população de 18.392 habitantes (IBGE, 2010). A estimativa populacional para o ano de 2019

é de 19.934 habitantes (IBGE, 2019).

Icapuí teve sua criação confirmada em 15 de janeiro de 1985, quando foi

desmembrado do município de Aracati/CE pelo decreto Lei 11.003. Teve seus limites

demarcados pela Lei de Divisão Territorial do Estado, desde então é composto por três

distritos: Icapuí (Sede), Ibicuitaba, e Manibu. Os três distritos juntos formam um total de 38

comunidades, a grande maioria destas está disposta ao longo dos mais de sessenta quilômetros

de litoral (MEIRELES E SANTOS, 2012).

2 Poeta e compositor popular, é Embaixador da Cultura de Icapuí (MEIRELES E SANTOS, 2012).

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Figura 1 - Mapa do município de Icapuí/CE

Fonte: Projeto de “Olho na Água” – Fundação Brasil Cidadão. Atlas Icapuí-CE, 2012.

As localidades que compõem o município de acordo com seus distritos são: em Icapuí

Sede - Berimbau, Icapuí Sede, Praia de Requenguela, Cajuais, Serra de Cajuais, Mutamba,

Serra da Mutamba, Praia de Barreiras de Baixo, Barreiras de Cima, Barrinha, Picos, Peroba,

Redonda, Vila União, Vila Nova, Ipaumirim (Incra), Belém, Copan, Serra do Mar, Ponta

Grossa e Retiro Grande; em Ibicuitaba - Olho D’Água, Olho D’Água da Serra, Vila de

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Ibicuitaba, Praia de Quitérias3, Morro Pintado, Praia de Tremembé, Melancias de Cima,

Melancias de Baixo, Praia de Melancias, Peixe Gordo, Praia de Peixe Gordo e Gravier; e em

Manibu - Manibu Vila, Barrinha de Manibu, Praia de Manibu, Arisa e Córrego do Sal

(MEIRELES E SANTOS, 2012).

Com relação aos aspectos demográficos e sociais, a maior parte da população vive na

zona rural, representando um percentual de 68,54% quando comparada a zona urbana. A

quantidade de domicilio na zona rural é de 3.523, enquanto a urbana é de 1.717. A população

residente de homens é maior que a de mulheres, representando 51, 19% do total (IBGE,

2010).

Sobre os aspectos religiosos, o município é predominantemente de religião católica

apostólica romana, mais especificamente composta por 12.963 pessoas. A população

evangélica é formada por 3.720 pessoas e também é possível encontrar aqueles que se

denominam espíritas, representados por 27 pessoas (IBGE, 2010).

No âmbito da saúde, de acordo com a Secretaria de Saúde do Estado do Ceará

(SESA), as unidades de saúde ligadas ao Sistema Único de Saúde (SUS) são todas públicas,

representando um total de 13 unidades. Não há instituições privadas no município. Os

profissionais cadastrados em unidades são: 14 médicos, 04 dentistas, 21 enfermeiros, 37

Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e outros profissionais de saúde de nível médio e

superior (IPECE, 2017).

Dos 13 estabelecimentos de saúde apenas um possui atendimento com internação,

porém, todos eles funcionam a nível ambulatorial, não existindo um serviço mais

especializado, um nível maior de complexidade (SESA, 2016). Caso a população precise de

cuidados mais específicos terá que se deslocar para outros pontos de referência – a cidade de

Mossoró é um exemplo a que recorrem para atender determinadas necessidades que o sistema

de saúde do município não abarca.

1.2 Um pouco sobre Icapuí e modos de viver do seu povo

Como grande parte do nordeste brasileiro, a colonização de Icapuí esteve

primordialmente ligado à criação de gado em seu interior. Entretanto, o clima desfavorável,

relevo e terra inadequada, os núcleos do município ficaram a margem e não tiveram um peso

3 Local de estudo da pesquisa.

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26

de relevância na empresa do gado cearense. A partir dos importantes polos regionais, na

segunda metade do século XVIII, quando se efetiva um tímido processo de colonização

(FREITAS FILHO, 2003).

O processo de colonização do Ceará dá origem ao município de Aracati, através da

chegada de holandeses expulsos do Recife, portugueses de Bragança e sertanejos do interior.

Nesse processo de colonização Aracati ganha destaque com o ciclo de gado, e se constitui

como um grande município que ao desmembra-se no século XX dá origem a dois novos

municípios: Icapuí e Fortim, onde deságua o Rio Jaguaribe (PEREIRA, 2015).

A história de Icapuí é bastante especial. Tem início quando era apenas uma pequena

vila, com o primeiro nome de Caiçara, que significa cerca de galhos, que protegia as tribos

dos índios. Em 30 de dezembro de 1943, foi denominada Icapuí, corruptela da palavra

“Igarapuí” que significa coisa ligeira. A palavra Icapuí, como é chamada atualmente, tem o

significado de Canoa Veloz (IGBE, 2017).

Embora o topônimo Caiçara seja de origem indígena, não partia da iniciativa destes e

sim do colono, para designar Curral. Os vocábulos eram sinônimos, então dizer que tinha

uma Caiçara era igual dizer que possuía um Curral. “Naquele ameno recanto, protegido por

íngremes escarpas, a improvisação de estabelecimentos curraleiros para o descanso das

caravanas comerciais que demandavam Aracati, parece ter sido intenso” (FREITAS FILHO,

2003, p. 100).

Manuel de Freitas Filho4, ao contextualizar Icapuí no processo de colonização do

Estado Ceará, legitima a identidade do povo icapuiense como:

[...] protagonistas na construção de um novo espaço social, onde muito contou a

herança ativista dos nossos antepassados, traduzida no gosto irrefreável pelas

façanhas e encantos da vida beira-mar, pelos folgares festeiros das bebedeiras e

vaquejadas, das manifestas fantasias brejeiras, do religioso e do profano. O jeitinho

manso e caviloso, a sinceridade um tanto maneirista, ao lado do desinteresseiro e

cordial espírito hospitaleiro. Somos, pois, essa gente tenaz, guarida dessa

disparatada gama de sentimentos, razão pela qual tornamo-nos tão resistentes as

revessas geográficas e humanas, passível, claro, a desilusão das derrotas, capazes,

porém, do resignativo despertar para um futuro sempre cheio de esperanças.

(FREITAS FILHO, 2003, p. 101-102).

Existem dois traços da cultura de seu povo que apontam sua origem e significado.

Primeiro, à semelhança com a maioria dos municípios rurais brasileiros, a formação da

4 Historiador e Bacharel em Ciência Política. Nasceu em Ibicuitaba (distrito de Icapuí), aos 14 de outubro de

1976. Cursou Ciências Sociais na UERN e presidiu o Centro Acadêmico deste mesmo curso.

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sociedade a partir da influência da cultura indígena; segundo, a satisfação das necessidades da

população com a importância da pesca e do mar, e também na constituição da cultura local.

Antes da chegada dos europeus à região, ali viviam, dentre outros povos, os Pitiguara e os

Tabajara do grupo Tupinambá (CARBOGIM, 2013).

Além da forte influência indígena na pesca artesanal, houve também na agricultura da

mandioca, no artesanato, na construção de casas de palha, em conhecimentos sobre remédios

naturais, interpretação de fenômenos naturais, na nomeação das coisas, na organização social

e em vários hábitos, como por exemplo dormir de rede. “Estas comunidades são chamadas de

tradicionais porque desenvolveram tradições tanto no uso e ocupação de seu território, como

em sua organização social e representação simbólica da vida e dos fenômenos naturais”

(CARBOGIM, 2013, p. 10).

Destarte, o modo de vida, a forma de reconhecer limites e recursos naturais, as

estratégias e instrumentos utilizados para uso dos mesmos, carregam os traços de um passado

distante, constituindo a matriz cultural que, “fundado em relações sociais de forte caráter de

solidariedade, tende a manter em equilíbrio a relação sociedade/natureza no litoral. A maioria

dos núcleos populacionais do município encontra-se na região próxima ao mar”

(CARBOGIM, 2013, p. 10).

Essa disposição linear, uma sucessão contínua de vilas, organizadas em grandes

fileiras, ao longo da vasta planície dos tabuleiros, as residências situadas de forma paralela

umas às outras, em meio as quais explicita-se um caminho extenso no sentido leste-oeste,

onde hoje está convertido na rodovia CE-261. As evidentes configurações destes traços são,

sem dúvidas, um dos mais antigos remanescentes de desbravação deste solar praiano em seus

primeiros tempos (FREITAS FILHO, 2003).

Na lógica dessa disposição espacial está, “a ausência do desejo de se viver em volta de

si mesmos, e sim voltados para a cidade, para a estrada que leva ao mar. Esta atitude não é

peculiar [do] Sertão Nordestino, é comum a todas as organizações primitivas do interior

brasileiro” (LEMOS, 1979, p. 37-39). Constituíam-se, por assim dizer, em verdadeiras

construções satélites,

uma vez que ali estavam em função de um pólo gravitacional maior, o famoso

anteposto de Aracati, para o qual se voltavam grandes fluxos de comboios,

compostos de fazendeiros e toda sorte de mercadores, que aos cincerros de tropas de

mulas, eixavam as imediações do rio Mossoró e o córrego da Mata Fresca para,

naquela praça, se proverem de tecidos e alimentos, ou adquirindo produtos

comerciáveis para o reabastecimento de outras áreas. Percorriam deste modo, todo

território do município, sempre a tocar pontos geográficos selecionados, onde

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faziam acalentáveis repousos, a fim de refazerem os ânimos para cumprir o

extenuante itinerário (FREITAS FILHO, 2003, p. 100).

No desencadear colonizador, configura-se, portanto, uma tríade regional de referência

(Aracati, Mata Fresca e Mossoró), cuja estrutura econômica, sociocultural e política, “pairava

sob os pilares de uma civilização surgida consoante as forças orientadoras do meio físico

natural, caracterizando a marcha indelével de nossa fácies social e histórica” (FREITAS

FILHO, 2003, p. 101).

Segundo dados do IBGE (2017), ao fazer uma abordagem histórica do município, cita

o seguinte relato;

as famílias de Icapuí são em média formadas por 6 pessoas, e em sua grande

maioria, tem o pai pescador e a mãe artesã. São em geral religiosas, predominando o

catolicismo e o protestantismo enquanto religiões. Nota-se que estas famílias

possuem uma forte inclinação para a organização popular participando quase sempre

de associações e grupos comunitários. As moradias do município detêm uma

arquitetura própria, onde as casas mais antigas apresentam em sua grande maioria

alpendres e são construídas de taipa. Eram assim construídas no passado (com

alpendres dos quatro lados) para abrigar os viajantes e retirantes que faziam o trajeto

por dentro do município. Porém, em tempos mais recentes, Icapuí tem ganho

reconhecimento até mesmo fora das fronteiras nacionais devido a atenção e

importância que se tem dado a educação e a saúde. Estas áreas têm sido discutidas

junto com a população, em todas as comunidades, como direito a cidadania (IGBE,

2017).

Em geral, a família icapuiense é tida como tradicional, e a relação com o mar é ainda

mais estreita nas comunidades praianas, por meio da pesca e mariscagem, além de pousadas,

barracas e restaurantes para acolher banhistas e turistas, esses espações possuem um aspecto

familiar, identificando-se com os costumes e práticas locais. Geralmente estabelecimentos

simples, porém bastante atrativos (SANTOS, 2014).

A partir do século XX, foram surgindo atividades econômicas mais diversificadas,

cada vez mais ligadas ao uso de recursos naturais como a extração de sal, a construção de

salinas, a pesca da lagosta, a criação de camarão em cativeiro, o extrativismo e monocultura

do caju e atividades de turismo/veranismo (SANTOS, 2014).

Por muito tempo a pesca e as salinas foram as principais responsáveis pela dinâmica

econômica das comunidades litorâneas. No entanto, levando em consideração a relevante

decadência que essas atividades tiveram nas últimas décadas, houve uma modificação do

padrão econômico por meio da emergência de novas atividades, como o turismo e a

exploração de petróleo (SANTOS, 2014).

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Em meio as antigas e novas atividades econômicas, ainda se destaca na geração de

emprego dessa região a atividade pesqueira. O turismo cresce, porém, as atividades

agropecuárias, que surgiam de maneira bastante incipiente, passaram a corresponder nos

últimos sete anos a 43% do Produto Interno Bruto – PIB municipal (SANTOS, 2014).

Uma das principais atividades tanto econômicas quanto de subsistência para as

comunidades de Icapuí consiste na pesca. A maioria das embarcações que existem são de

pequeno porte e movidas a remo ou vela, realizando viagens nas proximidades de suas

comunidades, geralmente não permanecendo mais de um dia no mar. “As embarcações

motorizadas são representadas pelos botes motorizados e lanchas que, dotadas de casaria

sobre o convés e porão para estocagem de pescado, podem permanecer em alto-mar por vários

dias e se deslocar para áreas distantes” (SANTOS, 2014, p. 77).

O turismo configura-se como mais uma atividade econômica que se expande.

Comparado a outros municípios do Estado do Ceará, em Icapuí ainda acontece de forma

discreta. A origem dos turistas que visitam a região é proveniente de outros municípios do

Estado e também do Rio Grande do Norte, Sendo Fortaleza e Mossoró os principais núcleos

emissores de pessoas, o que caracteriza esta região como desenvolvimento de um turismo

mais local, associado a atividades de lazer (SANTOS, 2014).

Icapuí é explicado pela categoria lugar como uma comunidade que recebe práticas

socioespaciais, onde é possível se estabelecer construções de uma rede de sentidos e

significados, que produzem culturas e identidades. Deste modo lugar é algo ligados tanto as

pessoas quanto as comunidades, com reconhecimento e pertencimento do espaço e das

práticas sociais cotidianas. “No processo de trocas culturais promovidas pelo turismo, o

visitante é foco das relações sociais e emocionais, visto que o turista aprecia a sensação do

acolhimento e bem-estar nos lugares visitados” (PEREIRA, 2015, p. 36).

A palavra aconchego possui raiz no latim “conchego”, que vem de chegar, significa

dirigir-se a, apoiar, abrigar, juntar, amparar, proteger. É utilizada para identificar lugares que

oferecem uma sensação de acolhida, de conforto e bem-estar. No caso de Icapuí, é possível

dizer que consiste em um lugar aconchegante que recebe as pessoas, com suas singularidades

culturais e históricas. Isso é sentido através da hospitalidade e simplicidade com que os

moradores deste lugar recebem as pessoas (PEREIRA, 2015).

Os aspectos essenciais da cultura são preservados através da vida do povo ligado à

pesca artesanal. O município é integrante do Fórum de Turismo do Litoral Leste, e vem

procurando se firmar enquanto destino turístico, oferecendo tanto os seus atrativos históricos

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30

quanto os culturais, associados com as belezas naturais de dunas, praias nativas, falésias e a

areia monazítica (SANTOS, 2014).

É possível observar em Icapuí que os atrativos turísticos vão além das paisagens

naturais, se manifesta também na arquitetura, arqueologia, cultura e gastronomia do lugar. E

apesar de não ocorrer atualmente tantos festejos populares como no passado, com a mesma

intensidade, ainda é possível visualizar essas práticas nas comunidades praianas. “Icapuí

oferece vivências, sensações de bem-estar físico, emocional e espiritual, também sugere troca

de experiências, busca de emoções, conhecimento de novos valores e descoberta de novas

culturas e paisagens” (PEREIRA, 2015, p.35).

Na faixa litorânea do município de Icapuí alguns locais tendem a desenvolver de

forma mais regular atividades turísticas, lugares como: Retiro Grande, Ponta Grossa,

Redonda, Peroba, Picos, Barreiras, Tremembé e Quitérias. O turismo é visto como uma

alternativa nova de sobrevivência pelas comunidades locais. Nos últimos anos, o turismo tem

sido na realidade uma garantia de serviços em determinados períodos do ano, como no mês de

julho, de dezembro a março e durante feriados prolongados. Mais especificamente nos

festejos de carnaval, no ano novo e na semana santa, onde existe um envolvimento mais

efetivo da comunidade na economia gerada pelo turismo (SANTOS, 2014).

As praias mais visitadas segundo os moradores de Icapuí são Ponta Grossa, Redonda,

Requenguela e Tremembé, as pessoas dessas comunidades mantém um interesse na defesa da

natureza e no turismo sustentável, preservando ao máximo as belezas do lugar. “Assim,

conectam-se com polos emissores de fluxos turísticos de diversos lugares revelando o turismo

alternativo com ideias diferenciadas do turismo convencional” (PEREIRA, 2015, p. 48).

O valor do patrimônio cultural de Icapuí é inestimável, não somente para o seu povo,

mas também para o Brasil, com seus atributos naturais, suas falésias coloridas que formam as

paisagens costeiras, manguezais, campos de dunas, matas de tabuleiro, carnaubais e

coqueirais – e sua importância histórica na formação do Brasil, com a riqueza cultural,

observada na arquitetura de antigas casas de alpendre; na agricultura familiar, na pesca

artesanal, no conhecimento tradicional de suas comunidades, na variedade de pratos típicos e

em muitas manifestações populares (GARBOGIM, 2013).

Conhecidas essas características mais gerais sobre Icapuí e o seu povo, o enfoque

agora será voltado para uma figura bastante representativa dessa comunidade, que através do

seu ofício de rezadeira vem prestando uma importante contribuição para a saúde e o

fortalecimento da fé dessa gente, estimulando suas crenças e sabendo ouvi-los em suas mais

diversas necessidades, com base na construção de laços afetivos, de confiança e de ajuda.

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31

1.3 “Eu que rezo, mas Deus é quem cura”: Dona Maria Auxiliadora, história de vida,

ofício e experiências compartilhadas na comunidade de Quitérias, Icapuí/CE.

Para termos uma compreensão mais abrangente sobre Quitérias faz-se mister

compreender como a identidade foi sendo construída no tempo e espaço através da memória

coletiva. Para tanto, utilizaremos o texto Linha da Vida presente em “Memória viva de

Icapuí”, organizado por Maria Leinad Vasconcelos Carbogim (2011), que traz um resumo de

alguns marcos importantes da comunidade seguindo uma linha cronológica de

acontecimentos.

A origem da palavra Quitérias é atribuída pela comunidade a denominação de uma

suposta índia que teria habitado a localidade. Em 1935 eram registradas nove casas e um

abodega – que pertencia ao sr. Neco. Outras famílias da época eram as de José Apolinário,

Raimundo Maria, Maria de Beju, Raimundo Albino, Zé Mariano e do Velho Néu. Todas

viviam da pesca e da agricultura de subsistência (CARBOGIM, 2011).

No que se refere aos aspectos da saúde, na década de 1950, houve um aumento na

utilização de várias plantas medicinais que eram aplicadas a fim de curar diversas moléstias.

Com relação aos partos, as mulheres davam à luz em suas próprias casas com o auxílio das

parteiras – como as senhoras Marcela, Maria de Joãozinho Leocádio e Maria Félix

(CARBOGIM, 2011).

Quitérias foi ponto de parada e apoio de embarcações que traficavam contrabandos

diversos como cargas de café, farinha e whisky na década de 1960. Essas mercadorias eram

vendidas às pessoas de diferentes lugares que ali chegavam. As negociações eram facilitadas

pela participação de algumas pessoas do município (CARBOGIM, 2011).

Em 1970, houve uma intensificação do fluxo comercial com a cidade de Areia

Branca/RN. Uma variedade de produtos como ovos, galinha, palha, melancias, batata,

gergelim, além de patoral (ração natural para animais) e até porcos, eram conduzidos e

comercializados na praça (CARBOGIM, 2011).

A energia elétrica chega a comunidade de Quitérias em 1990. Nesse período ocorreu a

edificação de dezessete casas e a criação de um conjunto habitacional. Também houve a

criação da I Associação de Moradores, tendo como presidente o sr. Airton Paz (Airton de

Damião). Além da construção de uma quadra de esportes (polo de lazer para os jovens e

centro de muitos eventos sociais), que teve em sua inauguração uma grande festa na

comunidade. Existia também mutirões de limpeza da praia, e a partir do ano 2000, começou a

ocorrer a atividade de coleta do lixo (CARBOGIM, 2011).

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Em 2001, passou a existir serviço de telefonia pública e água encanada do SAAE

(Sistema Autônomo de Água e Esgoto). Em 2004 houve a instalação de uma unidade do

Projeto Peixe-boi Marinho, coordenado por Solange. Além disso teve a formação de um

grupo de jovens para o desenvolvimento de projetos e atividades em prol da comunidade. Em

2005, a comunidade é inserida no Projeto “Mulheres em Movimento”. E nesse mesmo ano,

também ocorreu a pavimentação da via pública de acesso a Quitérias (CARBOGIM, 2011).

Ditas essas informações mais gerais sobre Quitérias, seguirei com o relato da minha

experiência dentro desta comunidade.

Figura 2- Praia de Quitérias, Icapuí/CE, 2019.

Fonte: Edione Rodrigues Batista, 2019.

Meu percurso até chegar à Dona Auxiliadora em Quitérias foi por intermédio de

Luciana, uma colega do mestrado e moradora de Icapuí/CE. Ao saber que a minha pesquisa se

tratava de reza e cura, ela me relatou que conhecia uma rezadeira que morava próximo à casa

da sua sogra, e que a sogra já havia levado seu filho algumas vezes para a rezadeira, disse

também que em todas as vezes o filho tinha sido curado e que muita gente procurava a reza

dela. Depois disso, fomos nos comunicando, ela me informou que entrou em contato com o

filho de Dona Auxiliadora, relatando meu interesse em conhecê-la e para saber a

disponibilidade da mesma em me receber em sua casa.

Após essas comunicações iniciais serem estabelecidas e o filho de Dona Auxiliadora

dizer que a visita a casa de sua mãe poderia ser realizada, Luciana me passou os contatos dos

taxistas, disse que todos sabiam onde Dona Auxiliadora morava e só precisaria informar que

ficaria na casa da rezadeira, mãe do vereador Hélio. Sendo assim, no dia 02 de maio de 2019,

pela manhã, falei com um taxista (o acesso até ele fica bem próximo onde moro, poucos

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metros de distância), depois de falar ao telefone, fui até seu encontro. Chegando lá perguntei

se ele sabia onde morava uma rezadeira, mãe de Hélio, em Quitérias. Ele disse que sabia sim,

que me deixaria na porta de sua casa. Durante o percurso de Mossoró à Quitérias, uma

senhora estava conversando no taxi e se referia a Icapuí como Caiçara, mesmo essa

denominação tendo sido alterada desde 1943 para Icapuí, ela permaneceu com o hábito de

chamar a cidade de Caiçara, mantendo o costume de outrora.

Cheguei à Quitérias por volta das nove horas e quarenta minutos da manhã. O taxista,

como dito anteriormente, me deixou na porta da casa de Dona Auxiliadora. Confesso que

fiquei um pouco ansiosa com esse primeiro encontro. Ao chegar lá, a porta da casa estava

aberta, me dirigi até a entrada, bati palmas e cumprimentei com um “bom dia”. Um instante

depois surge uma senhora vindo da cozinha e eu pergunto se é ali que mora uma rezadeira, ao

que ela responde com um sorriso no rosto “é sim, é essa mesma que você está falando”. Me

convidou para entrar e sentar, que não reparasse, pois, a casa era simples. Me senti acolhida

desde aquele primeiro contato. Me apresentei, disse que tinha ficado sabendo dela por

Luciana e expliquei o motivo de eu estar ali. Percebi que ela estava realizando as tarefas na

cozinha, disse que ela ficasse à vontade para concluir o que estava fazendo e que depois

conversaríamos melhor. Ela disse “está certo minha fia, eu vou só ver aqui essas panelas que

estão no fogo, pode ficar à vontade, se quiser ligar a televisão pode ligar ”.

Com relação a alguns aspectos sobre a comunidade, segundo Dona Auxiliadora a

principal atividade dos moradores consiste na pesca, “a ocupação daqui é a pesca, é difícil ter

alguém que trabalhe em agricultura”. O principal produto pesqueiro, que gera mais renda, é a

pesca da lagosta, que acontece entre os meses de julho e novembro. Durante as outras épocas

do ano a atividade se desenvolve com outros tipos variáveis de peixes.

Figura 3 - Barcos pesqueiros em atividade no mar – Quitérias, Icapuí/CE, 2019.

Fonte: Edione Rodrigues Batista, 2019.

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Ao questionar Dona Auxiliadora se ela saberia o número aproximado de famílias que

viviam em Quitérias, ela disse que seria mais de 200. Nesse momento chamou um morador e

perguntou se ele sabia quantos habitantes haviam na comunidade. Ele falou que não sabia o

número exato de habitantes, mas que era fácil contar o número de famílias. O que mais me

chamou atenção foi que os dois começaram a contar casa por casa, rua por rua, e dizendo o

nome dos moradores que viviam em cada casa – um representante por família. Pude perceber

com isso o quão a rezadeira é integrada e tem um conhecimento mais abrangente da

comunidade em que vive. Ao final desse processo, eles chegaram a um total aproximado de

250 famílias.

Uma situação que pude observar a relação de proximidade e afetos com a comunidade,

foi a forma como algumas crianças e adolescentes que passavam em frente à casa de Dona

Auxiliadora interagiam com ela. Sempre a cumprimentavam com um “a benção, vó” ou então

“a benção, madrinha”. Essa cena se repetiu diversas vezes, e quando a questionei se eram

seus netos ela respondeu com um sorriso no rosto, “não sou avó de nenhum desses que

passaram, mas só me chamam de vó”. Em outro momento chegou uma adolescente a

chamando de vó e ela respondeu, “essa aqui é minha neta mesmo”, se referindo a sua neta

biológica. Porém, por mais que não tenha laços consanguíneos com os outros, esse costume

demonstra o respeito que essas pessoas mais jovens da comunidade têm por ela, bem como a

satisfação dela em receber esse carinho e reconhecimento deles.

Em frente à casa tem duas árvores que fazem uma enorme sombra na calçada se

estendendo também pela metade da rua. O interessante nesse ponto é que, além de Dona

Auxiliadora ser muito conhecida e procurada pelas pessoas da vila, a sua casa também

consiste em um ponto de referência e encontro. A sombra proporcionada faz com que as

pessoas se reúnam ali, seja para conversar ou para outras atividades, como por exemplo,

compra de produtos. Passam por ali o cambista – a prática do jogo do bicho é bastante

frequente entre eles –, passam também vendedores de pães, salgados, milho e outros produtos.

Em comum entre eles é o local de parada, à sombra das árvores de Dona Auxiliadora. Isso

também confere uma temperatura mais amena e mais agradável, tornando o ambiente mais

acolhedor para essas paradas e encontros.

Segundo Leloup (1996), acolher significa hospedar, agasalhar, receber, atender,

aceitar, dar ouvidos a, abrigar. Quando você abraça alguém, divide com este alguém o seu

espaço pessoal e abraça toda a sua história.

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Figura 4 –Sombra das árvores da casa de Dona Auxiliadora. Quitérias, Icapuí/CE, 2019.

Fonte: Edione Rodrigues Batista, 2019.

Em um desses momentos de conversa durante à tarde, introduzi o tema das datas

comemorativas da comunidade e foram citadas três principais: a festa da padroeira Nossa

Senhora de Fátima, as quadrilhas juninas e o carnaval. Mas segundo os moradores atualmente

essas comemorações vem perdendo força, comparam com períodos anteriores, nos quais as

festas eram mais tradicionais e atraíam mais pessoas. Um informante cita que, “uma das

praias mais visitadas era Tremembé, mais turísticas, mas a areia acabou Tremembé. Tinha

festas grandes. Tinha acampamento. Todos os shows grandes eram em Tremembé. Festa de

São Pedro muito grande. Barranca de todo canto vinha montar aí em Tremembé. Aí foi

acabando, acabando, acabando”. Relata também o desinteresse dos políticos, que foram

parando de investir e com o passar do tempo essas tradições foram se perdendo.

A época do ano que Quitérias é mais visitada é no veraneio, de dezembro a janeiro é

onde tem um maior fluxo de pessoas. Um informante (chamado por Dona Auxiliadora), relata

que a praia “recebe muita gente, muito morador de fora, de fortaleza, Mossoró, Belo

Horizonte. Que vem a passeio. Através de amigos e de famílias que tem casa aqui”. Diz

também que atualmente as praias de Ponta Grossa, Redonda e Requenguela são as mais

procuradas porque há mais opções de barracas.

Ainda segundo o informante, ao se referir a Ponta Grossa diz que lá é muito nativo.

“Eles não desmatam lá. Ninguém constrói nas abas da serra lá. Uma pessoa de fora não

constrói em ponta grossa. Eles preservam muita lá a natureza”. Ele disse também que

Quitérias não tem muitas barracas. “Antes tinha, mas o mar aqui fez uma destruição grande.

Os moradores daqui moravam tudo na praia e hoje passaram para cá”. A questão do avanço

do mar foi citada em momentos diferentes. Os habitantes locais afirmam que tiveram que

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construir suas casas mais distantes, pois a areia estava destruindo suas moradias. Sobre essa

questão do avanço da areia, Freitas Filho (2003) apresenta fenômeno semelhante em seu livro

“Aldeia do Areal”, traz Ibicuitaba como “A Vila Perdida”, conforme o seguinte noticiário,

A 250 quilômetros de Fortaleza, já nas proximidades da fronteira do Ceará com o

Rio Grande do Norte, cerca de 200 pessoas, entre homens, mulheres e crianças,

assistem imponentes ao sepultamento da Vila onde moram. Falamos de Ibicuitaba,

um dos seis Distritos de Aracati, cujas casas estão sendo soterradas pela areia vindo

do mar. Mais da metade da população já deixou a localidade, buscando residências

em outros pontos do município. Os que ficaram travam uma luta diária com a

natureza, protegendo suas moradias contra o avanço dos ventos uivantes. As 20

casas já sepultadas, com apenas um metro à mostra, dão bem uma ideia de que lhe

acontecerá, dentro em breve ( Jornal UNITÁRIO, Fortaleza, 1996).

A partir daí os moradores foram se mudando para locais um pouco mais distantes da

beira mar. Os espaços antes construídos não foram retomados. O informante relatou que

atualmente um morador havia construído uma pousada. “Agora o menino fez uma ali

embaixo, uma pousada, com umas barraquinhas”, apesar desse exemplo citado, observa-se

que a praia ainda é pouco explorada a nível turístico, que não há muitos investimentos em

pousadas e restaurantes. Mesmo sem tantos investimentos nessa área, segundo os que ali

habitam, a praia recebe muitos visitantes e se configura como um atrativo turístico pelas

belezas naturais.

Voltando-se agora mais especificamente para Dona Auxiliadora, algo que me chamou

bastante atenção foi o próprio nome da rezadeira – Maria Auxiliadora. Pela etimologia da

palavra, esse nome Auxiliadora significa auxílio na dor, é aquela que por meio de suas

orações é capaz de trazer alívio para as dores de quem a procura - sejam dores causadas por

aspectos físicos, mentais, espirituais ou emocionais. Remeteu-me também à figura religiosa

de Nossa Senhora Auxiliadora, a data de Nossa Senhora Auxiliadora é comemorada em 24 de

maio, e sua oração é a seguinte,

Santíssima Virgem Maria

a quem Deus constituiu Auxiliadora dos Cristãos,

nós vos escolhemos como Senhora e Protetora desta casa.

Dignai-vos mostrar aqui Vosso auxílio poderoso.

Preservai esta casa de todo perigo:

do incêndio, da inundação, do raio, das tempestades,

dos ladrões, dos malfeitores, da guerra

e de todas as outras calamidades que conheceis.

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37

Abençoai, protegei, defendei,

guardai como coisa vossa

as pessoas que vivem nesta casa.

Sobretudo concedei-lhes a graça mais importante,

a de viverem sempre na amizade de Deus,

evitando o pecado.

Dai-lhes a fé que tivestes na Palavra de Deus,

e o amor que nutristes para com Vosso Filho Jesus

e para com todos aqueles

pelos quais Ele morreu na cruz.

Maria, Auxílio dos Cristãos,

rogai por todos que moram nesta casa

que Vos foi consagrada.

Amém

A pretensão de trazer esta oração não é fazer uma relação direta entre os nomes e as

representações de ambas, tampouco um comparativo de igualdade, porém, trazer aspectos da

religiosidade da rezadeira associados ao ofício de ajudar ao próximo, em virtude de Dona

Auxiliadora ser católica, devota de Nossa Senhora e de intensa participação/frequência na

igreja.

Dona Auxiliadora é natural de Curral Grande, no município de Aracati/CE, mas já

reside em Quitérias há aproximadamente 30 anos, mais especificamente na vila Santa

Madalena. Tem 64 anos de idade, é casada, tem seis filhos, sete netos e um bisneto. Relata

que tinha doze irmãos, quatro deles faleceram e permaneceram oito, sendo três homens e

cinco mulheres.

Com relação as instituições formais de ensino, conta que frequentou a escola até a

quinta série, aprendeu a ler e escrever, porém não teve como continuar os estudos porque não

tinha condições de se deslocar para onde havia escola e se tratava de uma época na qual a

situação era mais difícil. Esse é um momento que ela relembra aspectos sobre sua vida na

infância, fala com orgulho e empolgação do tempo de escola, que gostava de estudar, que era

uma aluna interessada e que ajudava às colegas a passarem nas provas. A partir dessa fala,

identifica-se que desde cedo ela já trazia consigo essa capacidade de se importar com o outo e

de ajudar àqueles que faziam parte do seu convívio.

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Figura 5- Dona Auxiliadora, Quitérias – Icapuí/CE, 2019.

Fonte: Edione Rodrigues Batista, 2019.

Ao questionar Dona Auxiliadora de como ela começou a rezar, ela me informou que

foi quando brincava de boneca com um grupo de meninas, e segundo ela, quando as bonecas

adoeciam levavam para ela rezar. “Eu era rezadeira das bonecas, aí depois fui continuando, e

pronto, fiquei com esse dom. De velho, de menino, do que vier, de tudo no mundo, de quem

vier aqui e aparecer e tiver fé em Deus fica bom. Fala também que não reza por status, como

forma de superioridade de saber ou grandeza perante os outros, ela reza porque é uma

vocação, um dom dado por Deus para intermediar o processo da cura. “Eu não faço isso para

me mostrar e para crescer não, faço pela vocação que eu tenho”.

O papel da rezadeira é de centralidade, funcionando como uma intermediária entre o

público e Deus, entre o homem e o sagrado, entre o real e o irreal, como um elo para que a

cura aconteça. A benzeção é,

um ato de súplica, de imploração, de pedido insistente, aos deuses para que eles se

dispam dos seus mistérios e se tornem mais concretos. Para que tragam boas novas,

produzindo benefícios aos mortais. A bênção é um veículo que possibilita ao seu

executor (a rezadeira) estabelecer relações de solidariedade e de aliança com os

santos, de um lado, com os homens de outro e entre ambos (AMORIM, 2000, p. 04).

Ela não recorda exatamente com quantos anos iniciou na reza, mas que foi desde a

infância que surgiu o interesse. Relata que o avô era curador, mas que o mesmo nunca havia

ensinado as rezas. Ela aprendeu pegando os livros de oração do avô e fazendo anotações em

um caderninho, bem como observando ele desenvolver a prática. Além do avô o pai também

era curador, mas foi por meio do avô que ela teve uma maior aproximação com a reza. Antes

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que o avô lhe ensinasse, ele acabou indo morar no município de Mossoró/RN e ficou mais

difícil de se encontrarem.

Meu avô era curador. Aí ele dizia a mim que ia ensinar a gente a rezar, só que antes

dele ensinar eu pegava os livros dele, que ele deitava para dormir ao meio dia, aí

nós entrávamos no quarto e tirava aqueles livros que tinha no oratório, era cheio de

livro de oração. Aí eu pegava, a mais interessada era eu, aí eu copiava no caderno

as orações e guardava (Dona Auxiliadora, 2019).

Dona Auxiliadora diz que a tradição é que a reza seja passada de homem para mulher

e vice-versa. Pois se for repassada para uma pessoa do mesmo gênero a reza perde a força.

Corroborando essa questão, Santos (2007) fala de “transmissão cruzada” dos saberes através

do gênero, na qual a força das rezas é atribuída ao curador que ensina a reza. E até a própria

diferenciação na denominação endossa a questão de gênero, na qual o homem é chamado de

curador e a mulher de rezadeira. Além dessa questão relacionada a transmissão por meio do

gênero, em muitos casos os agentes responsáveis por fazer essa disseminação das rezas são

pessoas ligadas a própria família, ou seja, “estes saberes partiam das mães, dos pais, dos

maridos, dos sogros etc. Portanto, observa-se uma ênfase nas relações de parentesco quando

se trata da transmissão dos conhecimentos das rezas” (p. 173).

Para Quintana (1999, p.53) “a formação da benzedeira depende de uma aprendizagem

assistemática, mas que, a rigor, pode ser dividida em dois tipos: aquela que é resultado de um

processo imitativo e a que é consequência de uma experiência sobrenatural”. No caso, a

aprendizagem de Dona Auxiliadora, se deu pelo processo imitativo, de observação através do

seu avô.

Quando indagada sobre como ela prefere ser chamada e em como ela se enxerga, diz

que se identifica como rezadeira, mas que há pessoas que a chamam de curandeira, porém não

vê nenhum problema nisso. A grande maioria se refere a ela como rezadeira, sendo assim a

denominação que predomina por ambas as partes é a de rezadeira. Essa mudança de

nomenclatura não implica em nenhuma alteração na forma como ela desempenha o ofício, na

compreensão do mesmo e no seu significado.

Sobre a questão da procura pela comunidade e de como as pessoas a veem, ela diz ser

muito procurada, inclusive naquela mesma manhã, antes que eu chegasse, já haviam ido duas

pessoas em busca de reza. Uma com um pé inflamado e outra com dores no estômago

(causadas por espinhela caída), esta última pessoa era a terceira vez que rezava, já estava bem

melhor e tinha ido para fechar a cura, pois não pode ficar aberta, tem que ser as três vezes.

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Contou também que tem gente de Fortaleza que manda as roupinhas e os nomes dos filhos

para ela rezar, mandam por familiares e conhecidos que a indicam. A cura, então, não precisa

ser presencial, o que importa é a fé e a crença de quem precisa e de Dona Auxiliadora nesse

processo, independente da distância geográfica em que estejam, “aqui é assim, quem tem fé

em Deus manda só o recado. Eu rezo e fica bom. Graças a Deus”.

Ela reza e recebe a gratidão dos pais pelas crianças terem ficado boas. “Assim manda:

tenha fé em Deus, eu não sou nada, é Deus quem é para mim”. Vale ressaltar que não há

cobrança de nenhuma quantia pela reza. Ela diz que não aceita nenhum valor em dinheiro,

“pagar reza eu não quero que pague não”. Porém quando alguém leva algo ela recebe de bom

grado. “Nunca na minha vida eu abri a boca para dizer é tanto. Às vezes eu estou aqui e vem

uma pessoa que eu nem me lembro. Aí chega com uns copos”, pergunto se ela aceita coisas

desse tipo e diz que aceita, “não é dinheiro. Porque ninguém vende a palavra de Deus”.

Essa fala é bastante interessante pois a reza não é lucrativa, não tem o objetivo de

ganhar dinheiro com a dor do outro. Porém, é possível observar essa prática em instituições

religiosas e até em quem rezam também (há relatos de pessoas que se dizem rezadeiras que

cobram pela prática), isso vai variar de acordo com as peculiaridades de cada um, o fato é que

muitas vezes essas pessoas se utilizam da fé de seus devotos e seguidores para obter

vantagens em benefício próprio, como se a palavra de Deus fosse uma mercadoria que pode

ser vendida.

E é isso que normalmente acontece, as pessoas retribuem a reza com algo em troca.

Segundo Marcel Mauss, “o que eles trocam não são exclusivamente bens e riquezas, bem

móveis e imóveis, coisas úteis economicamente. São antes de tudo, amabilidades, banquetes,

ritos...” (2003, p. 191).

Mauss (2003), levanta o seguinte questionamento: por que as pessoas se sentem na

obrigação de dar ou retribuir? Para responder essa pergunta ele busca uma base arqueológica

a respeito da natureza das transações humanas em sociedades, tanto aquelas que nos cercam

quanto aquelas que nos precederam. Nas economias e direitos precedidos dos nossos, nunca

acontece trocas simples de riquezas, bens e produtos estabelecidos por indivíduos num

mercado. “Em primeiro lugar, não são os indivíduos, são as coletividades que se obrigam

mutualmente, trocam e contratam” (p. 190). A dádiva não é individual, ela é coletiva para

assegurar trocas justas. Ainda de acordo com Mauss, essas bases arqueológicas das culturas,

crenças e rituais de nossas instituições não se perdem com o tempo, elas são mantidas –

apesar da atuação mercadológica e capitalista estarem presentes.

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Para se compreender melhor essa obrigatoriedade em dar e receber, podemos pensar

primeiramente na relação dos homens com os deuses. Todas a trocas acontecem sob a vista

dos deuses e nessas trocas o humano se beneficia, damos pouco e os deuses nos retribuem

com muito, pois eles são sempre mais generosos. Essas trocas devem agradar aos deuses para

que eles possam abençoar, é um pedido de bênção, mas também de sacrifício. Esse sacrifício

pode se dar por vários motivos, um deles é porque os deuses e os ancestrais são os

proprietários de tudo, das terras, das nossas aptidões, da nossa família. É preciso fazer o

sacrifício para oferecer a esses deuses aquilo que na verdade já pertence a eles. É como se nós

estivéssemos apenas fazendo uso, pegando emprestado (MAUSS, 2003).

Nesse sistema, as coisas trocadas possuem espíritos/almas, que é denominado de hau.

Para compreender melhor esse sentido, Mauss diz que os taonga (um determinado artigo) e

todas as propriedades tidas como pessoais têm um hau, um poder espiritual. “Você me dá um,

eu o dou a um terceiro; este retribui um outro, porque ele é motivo do hau de minha dádiva, e

sou obrigado a dar-lhe essa coisa, porque devo devolver-lhe o que em realidade é o produto

do hau de seu taonga” (MAUSS, 2003, p. 198).

Os presentes recebidos, trocados, não são inertes. Mesmo doando esse artigo a outro,

nele ainda irá ser conservado algo do doador, pois esse taonga é animado pelo hau de quem

está doando, e esse hau tem necessidade de voltar ao seu lugar de origem. Observamos com

isso a questão da retribuição. Mauss compreende que,

nesse sistema de ideias, que seja preciso retribuir a outrem o que na realidade é

parcela de sua natureza e substância; pois, aceitar alguma coisa de alguém é aceitar

algo de sua essência espiritual, de sua alma; a conservação dessa coisa seria perigosa

e mortal, e não simplesmente porque seria ilícita, mas também porque essa coisa que

vem da pessoa, não apenas moralmente, mas física e espiritualmente, essa essência,

esse alimento, esses bens, móveis ou imóveis, essas mulheres ou esses descendentes,

esses ritos ou essas comunhões, tem poder mágico e religioso sobre nós. Enfim, a

coisa dada não é uma coisa inerte. Animada, geralmente individualizada, ele tende a

retornar ao que Hertz chamava de seu ‘lar de origem’, ou a produzir, para o clã e o

solo do qual surgiu, um equivalente que a substitua (MAUSS, 2003, p. 200).

Para a rezadeira é uma honra servir as pessoas, saber que poderá acolhê-las em sua

casa. Ela não está preocupada com aquilo que vai receber em troca e sim em dar, se doar –

isso é uma obrigação para ela. Essa obrigação por mais que não possa ser entendida ou

explicada por ela, mesmo sem saber como recebeu essa dádiva dos deuses, tem a

necessidade/obrigação de passar isso adiante e de curar as pessoas, pois foi algo recebido dos

deuses e a vontade deles deve prevalecer, caso contrário, poderá acontecer algo a ela.

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Quando a pessoa busca a rezadeira, quando ela aceita a reza, aceita também algo que

está presente nela própria. A energia espiritual da rezadeira está associada a energia espiritual

da pessoa, então ela precisa acreditar que aquele ritual trará a cura de que tanto precisa, caso

contrário, será mais difícil que se obtenha êxito nesse processo. “Não adianta a pessoa só vir

e não tiver fé. Tem que ser da minha parte e da parte de quem vier. Porque se vem e não tem

fé, eu rezo, Deus cura, mas se não tem aquela fé aí demora mais para ficar bom”.

A pessoa que recebe a cura se sente na obrigação de retribuir de alguma forma. E isso

não se constitui uma regra ou lei, segundo Mauss acontece por meio da criação de vínculos

entre as pessoas, vínculos estes formados exatamente a partir dessa troca espiritual, onde estão

envolvidos não só as pessoas, mas também coisas e sentimentos. Podemos citar nesse caso o

conceito de “contrato e troca” proposto por Mauss, no qual ele fala em misturas, “misturam-se

as almas nas coisas, misturam-se as coisas nas almas. Misturam-se as vidas, e assim as

pessoas e coisas misturadas saem cada qual de sua esfera e se misturam” (MAUSS, 2003,

p.212).

Ainda segundo Mauss (2003) existem três obrigações: a obrigação de dar, a de receber

e a de retribuir. Para melhor exemplificar, faremos uso do que ele denomina de “potlatch”,

ritual que acontece nos Estados Unidos, mais precisamente no inverno em virtude da

abundância na colheita, onde os chefes, comunidades religiosas e xamãs passam por um

processo de prestação, de trocas agonísticas que provam sua hierarquia espiritual. A

hegemonia é garantida por aquele que mais der, aquele que mais se sacrificar será quem irá

receber o maior benefício. O “potlatch” consiste, então, num “fato social total”, onde todas as

coisas acontecem e se misturam, aspectos econômicos, sociais, jurídicos, estéticos, políticos,

religiosos e espirituais.

A essência desse “potlatch” consiste na obrigação de dar. Um chefe, por exemplo,

deve oferecer vários “potlatch” para conservar sua autoridade sobre a tribo e também como

prova de que é visitado e favorecido tanto pelos espíritos quanto pela fortuna. E se ele não

oferecer é considerado como tendo a “face apodrecida”, perde-se no jogo das dádivas, “perder

o prestígio é de fato perder a alma: é perder realmente a ‘face’, a máscara de dança, o direito

de encarnar um espírito, de usar um brasão, um totem, é realmente a persona que é assim

posta em jogo, que se perde no potlatch” (MAUSS, 2003, p. 244).

No que se refere a obrigação de receber, Mauss diz que ela “não é menos

constringente. Não se tem o direito de recusar uma dádiva, de recusar o potlatch. Agir assim é

manifestar que se teme em retribuir, é temer ter de ‘ficar calado’ enquanto não se retribuiu”

(2003, p. 247). As pessoas não estão livres para não receber/aceitar, exemplo disto pode ser

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representado no momento que estive na casa de Dona Auxiliadora, ela me ofereceu almoço e

colocou bastante comida no prato, eu falei que comia pouco e ela disse que a comida não

estava muito boa, mas dava para comer. Ou seja, mesmo sem normalmente consumir aquela

quantidade de comida me senti na obrigação de aceitar, para não fazer uma desfeita, nem ela

achar que tinha algum problema na comida que ela havia preparado.

Por último temos que a obrigação de retribuir “é todo o potlatch, que deve ser

retribuído com juros, toda dádiva deve ser retribuída dessa forma [...] O indivíduo que não

pôde retribuir o empréstimo ou o potlatch é desqualificado e perde mesmo a condição de

homem livre” (MAUSS, 2003, p. 250). No caso da retribuição para com a rezadeira, pode se

dar através de bens materiais, mas o essencial não está nisso, e sim na construção de vínculos,

na confiança e na continuidade da lógica cultural, porque a partir do momento que se aceita

ser rezado/curado, gera-se um sentimento de necessidade de retribuição, de gratidão e de fazer

com que essa energia recebida possa fluir.

Fiquei pensando em como retribuir a disponibilidade que Dona Auxiliadora teve em

participar da pesquisa, a recepção tão acolhedora em sua casa, por ter realizado o ritual da

reza em mim e por todo processo de convivência. Não cogitei valor em dinheiro, pois ela não

cobra pela reza e poderia se sentir ofendida, então pensei em algo representativo e que tivesse

alguma utilidade. Sendo assim, levei para ela uma blusa com a imagem Nossa Senhora e

escrita a oração de “Maria Passa na Frente”. A reação dela foi de gratidão/satisfação/alegria, e

foi logo vestir para ver se servia, “minha fia, será que eu sou merecedora? Eu amei, você

acertou em cheio no tamanho e no bom gosto. Vou usar para ir paras minhas novenas”. Foi

de uma simplicidade significativa, tanto o presente quanto a reação dela ao mesmo.

A última visita que realizei foi dia 18 de março de 2020, um dia após a data do seu

aniversário de 64 anos de idade. Eu só sabia a idade dela, não havia questionado sua data de

nascimento anteriormente. E mesmo sem saber essa data havia separado uma correntinha em

forma de terço para presenteá-la, o que veio a calhar naquele momento. Além disso, tinha um

caderninho que havia ganhado de presente de uma aluna, a capa artesanal com fitas, feito à

mão, e sabendo que Dona Auxiliadora gostava de cadernos para suas anotações revolvi levar

para ela também, colocando em prática a lógica da circulação da energia de que trata Mauss.

Eu falei “não sabia que seu aniversário foi ontem, mas trouxe essa lembrancinha para a

senhora”. Ela agradeceu, gostou bastante e disse que não precisava se incomodar, “mulher

você vive me dando as coisas e eu não dou nada a você”. Eu disse que dava sim, que o que

ela estava me dando era muito importante e me ajudaria muito, que não precisava ser objetos

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materiais, que a acolhida, o carinho, a recepção, o almoço preparado e poder conversar com

ela já eram suficientes para mim.

A relação que mantive com Dona Auxiliadora ao longo da pesquisa foi muito

gratificante e é algo que pretendo manter daqui para frente, e quando possível, continuar

fazendo visitas e frequentando um espaço onde fui tão bem acolhida. Durante a pesquisa

Dona Auxiliadora rezou em mim duas vezes, disse que quando quisesse só precisava ligar

avisando que ela rezaria. Na noite de 31 de dezembro de 2019 ela ligou para desejar feliz ano

novo a mim e meus familiares, isso teve um significado muito especial, é na simplicidade

desses pequenos gestos que tornam as pessoas ainda mais admiráveis.

Figura 6 – Dona Auxiliadora rezando na pesquisadora Edione. Quitérias – Icapuí/CE, 2019.

Fonte: Registro realizado pelo filho de Dona auxiliadora, 2020.

A procura pela reza hoje em dia, segundo ela, é maior que antigamente, há dias que

chega a rezar em dez crianças, mas relata que reza em todo tipo de gente, “gente grande que

desmente5 os pés, chega para rezar eu rezo. Gente com dor de cabeça, pede para rezar eu

rezo. Aí eu rezo, mas quem cura é Deus, certo? Eu faço só rezar e Deus é quem cura”. Dona

Auxiliadora enfatiza nesse e em outros momentos que o poder de curar não é dela e sim de

Deus, não se coloca em posição de agente principal da cura e sim que Deus age por

intermédio da sua reza e da crença das pessoas.

5 Significa alguma torção na articulação do pé.

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Com relação ao público, a maior parte é constituído por crianças que são levadas por

seus pais, parentes ou outras pessoas, porém, também aparece gente de todas as idades,

configurando-se como um público diversificado, abrangendo todo tipo de faixa etária. Sobre

esse assunto Dona Auxiliadora relata uma situação específica sobre um homem que a

procurou para rezar em sua filha,

veio uma vez um de São Paulo para passeio aqui na praia, a criança dele adoeceu,

ele veio bater aqui pra eu curar, e quando saiu ele agradeceu bastante. A bichinha

chegou aqui dormindo, lesa. Aí eu rezei, aí ele ficou um pedacinho conversando,

quando eu dei fé a menina acordou, aí ele disse assim “amor, a menina já acordou

amor”. Olhe eu me arrepio todinha, vai com as ondas do mar... Aí a menina ali já

ficou em pé e não dormiu mais. Deus quando quer levantar levanta estando já na

ânsia (Dona Auxiliadora, 2019).

Era perceptível a satisfação dela ao comentar os exemplos das pessoas que recorriam

em busca de reza. Não estava apenas verbalizando por meio de palavras faladas, mas também

pela entonação da voz, pelos gestos, expressões e pelo olhar. E por meio disto, foi possível

compreender a importância do dom, não apenas para quem sai de lá beneficiado com a cura,

mas também no sentimento que é gerado para ela própria, que transparece na medida que ela

relata os casos. Questionei se ela tinha devoção em algum santo em específico ela disse que

tinha em todos, que gostava de todos, mas depois citou Nossa Senhora de Fátima, padroeira

da comunidade. Relatou também um desejo de algum dia conhecer o Santuário de Nossa

Senhora Aparecida. Quando surgiu esse assunto sobre devoção e religião ela chamou para ver

as imagens que guarda em seu quarto, dentre elas alguns Santos, Nossa (s) Senhora (s) e

Padre Cícero.

Figura 7 - Imagens A e B das figuras religiosas de Dona Auxiliadora, Quitérias – Icapuí/CE, 2019.

Fonte: Edione Rodrigues Batista, 2019.

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Sobre os tipos de doenças que ela reza, diz que é “para quebranto, para mal olhado,

rezo para vento caído, rezo para dor de cabeça, rezo para dor de dente, rezo para dor na

coluna, rezo para desmentir torcicolo nos pés. Agora só quem cura é Deus, entende? Eu

quem rezo, mas Deus é quem cura”. Dona Auxiliadora também reza pelos animais, como por

exemplo quando apresentam bicheira, mal olhado dentre outras queixas que os donos

mencionam.

Quando indago Dona Auxiliadora sobre como se sente ao rezar nas pessoas, ela diz

que se sente muito bem, porque primeiramente se prepara por Deus, “eu fico feliz quando

alguém vem que fica bom, que me diz que ficou bom. Eu acho bom isso aí. Para mim é uma

benção que eu alcanço de Deus”. Pergunto se em algum momento ela já havia se sentido mal

depois de uma reza e ela diz que não, “até agora graças a Deus não. Eu me sinto é feliz em

fazer favor as pessoas”. Com isso, é possível identificar nela, valores como a generosidade,

humildade, entrega e doação para com o outro. Se sente bem ao fazer o bem. Talvez aí esteja

a maior/melhor recompensa, sentir que o seu ato tem importância na vida das pessoas. Se

sentir útil e feliz em poder ajudar.

Perguntei se alguma vez Dona Auxiliadora já havia parado de rezar. Ela diz que sim, e

cita dois exemplos do porque isso ter acontecido. Um deles foi uma reza em uma criança que

a avó havia levado para ser curada. Dona Auxiliadora rezou e disse, “olha, quem botou

quebranto foi fulana”. Sabendo disso, a avó foi atrás da pessoa que a rezadeira havia dito o

nome. Dona Auxiliadora diz não ter concordado com essa atitude, que ela não deveria ter ido.

“Aí eu fiquei com raiva, não fiquei gostando não”.

O outro caso foi relacionado a cura de um cachorro, que ela revelou o nome da pessoa

que tinha colocado quebranto, e essa pessoa estava doente (menstruada). Segundo Dona

Auxiliadora o cachorro não iria resistir, “aí bem, quando foi no outro dia o cachorro morreu”.

A mulher que teve o nome revelado pela rezadeira a procurou, fazendo ameaças de agressão,

mas Dona Auxiliadora disse que ficou tranquila, que não teve medo, “só quem mexe comigo é

Deus, mais ninguém. Ninguém mexe comigo não que Deus não deixa”. Depois dessas

situações ela passou a não dizer mais o nome das pessoas que estavam colocando o quebranto.

“Agora eu vou dar um tempo, não vou mais rezar não”.

Questiono como ela se sentia depois que parou de rezar, disse que foi um período que

não se sentia bem. “Eu não era feliz não, com isso não. Eu me sentia assim, com aquele

aperto dentro de mim quando vinha uma pessoa que eu não curava”. Ela disse que seu filho

mais velho a incentivou a continuar a rezar – “a senhora está fazendo sua parte, não vá por

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ninguém não. Faça o que a senhora tem que fazer, deixe disso, se a Senhora não quiser curar

ela, não cure. Mas cure as outras pessoas”.

A conversa com o filho e o fato dela não se sentir bem quando negava a reza, a

fizeram mudar de ideia e dizer que iria continuar rezando. “A primeira pessoa que veio aqui

para minha casa quando soube que eu estava rezando foi a filha dela (da mulher citada

anteriormente) com a neta dela. Aí eu – o que é que eu vou fazer? ”, ela disse que iria rezar,

fazer a parte dela, “não vou pagar pela mesma moeda o que ela fez comigo não – Aí eu rezei,

a menina ficou boa, com uns três dias ela me viu e disse – a minha neta ficou boazinha,

obrigada – Tudo bem, né”. Desde então ela continuou rezando, exercendo o ofício até hoje e

diz que não pensa em parar mais. Outro exemplo que ela dá de uma situação, é de um idoso

que dizia que não tinha fé na reza dela,

Eu disse ele não tem fé em mim não, mas em Deus ele vai ter. Quando foi um dia eu

estava lá em casa, meio dia, antes de almoço. Ele chegou se acabando, morrendo –

pelo amor de Deus me cure, tire essa espinha que eu estou aqui engasgado, eu vou

morrer –, eu digo, - morre não, se avexe não, tenha calma, você não vai morrer não

–. Aí eu peguei, comecei a botar a mão assim, aí disse – vomite, pode vomitar –, aí

ele vomitou e saiu assim a espinha inteirinha, a espinha da garganta dele. Aí ele

disse que nunca mais duvidava do poder da minha reza. Duvidar de mim não, mas

de Deus você duvidou e teve o castigo (Dona auxiliadora, 2019).

Sobre o horário que ela prefere rezar, diz que é melhor do meio dia para tarde, mas que

não estabelece um horário fixo. “Às vezes vem de manhã. Mas toda hora que chegar aqui eu

não maltrato ninguém não”, reza de acordo com a necessidade das pessoas que vão

aparecendo. Segundo Oliveira (1983, p.161), “as benzedeiras não se prendem com muito rigor

a horários, não tem muita pressa em desocupar-se do cliente, mesmo quando há outros

esperando. E quando abrem sua casa a ele, com ela abrem o seu coração".

Só há uma exceção com relação a questão de horários, mais especificamente no mês

de maio, isso acontece porque Dona Auxiliadora frequenta à igreja todos os dias para rezar o

terço no período da tarde. Como ela não estava em casa entre os horários de 15:40h e 16:40h,

caso alguém a procurasse teria que esperar sua chegada da igreja. Além do terço, ela se veste

somente de branco durante todo o mês para o cumprimento de promessa. “Agora esse mês de

maio é que eu não gosto que venha de tarde. Porque eu saio para igreja, que é celebração, a

gente participa do terço”. Enquanto Dona Auxiliadora estava no terço eu ficava em sua casa

esperando caso alguém chegasse para rezar, sendo assim, poderia fazer uma abordagem e ver

o interesse e disponibilidade de participarem da pesquisa, porém, nesse período de tempo

específico, não houve procura pela reza.

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Dona Auxiliadora disse que já teve gente que chegou para rezar até durante a noite, “e

não é todo mundo que abre sua porta para ninguém não, e eu abria a porta e rezava na

pessoa. Eu acho que vinha com fé, era só rezar que no outro dia já estava bom. Mas era

gente conhecida. É, porque você faz uma coisa com má vontade também não serve não, só

faço se é boa vontade”. Sendo não assim não existe um horário fixo predeterminado por ela,

na hora que chega uma pessoa ela para o que está fazendo e vai rezar. Nos momentos que está

desocupada fica sentada em frente à sua casa, em uma cadeira de balanço a sombra das

árvores, um ambiente calmo, agradável e acolhedor.

No ritual de cura é utilizado por ela um ramo de pinhão roxo, bem presente no quintal

da sua casa e de casas vizinhas. Esse tipo de ramo é utilizado por outras rezadeiras, porém não

é exclusivo, segundo outros estudos existem perfis de rezadeiras que se utilizam de meios

diferentes, como por exemplo objetos como chaves. Isso é importante para perceber que não

há um padrão fixo preestabelecido, cada rezadeira tem suas características próprias, é um

processo dinâmico e variável de acordo com a cultura e os meios disponíveis.

Figura 8 - Pé de pinhão roxo no quintal de Dona Auxiliadora, Quitérias – Icapuí/CE, 2019.

Fonte: Edione Rodrigues Batista, 2019.

Pergunto se ela acha que hoje em dia tem menos rezadeiras que antigamente, ela diz

que sim. “Tem menos. Está se acabando”. Ela justifica que isso ocorre “porque aquelas que

sabiam vão morrendo, aí pronto, a juventude não quer saber de reza. Não tem interesse”.

Mas apesar dela achar que existe menos comparado com antigamente, fala que a procura pelas

rezadeiras que existem ainda é muito grande, o que vai mantendo essa tradição e preservando

o saber. E também que mesmo com o desinteresse da maioria dos jovens, há famílias nas

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quais é possível prosseguir com essa transmissão, sendo assim essa prática não corre o risco

de desaparecer completamente. Conversei com o filho de Dona Auxiliadora que convive na

mesma casa que ela a respeito desse assunto, questionei se era algo que lhe interessava

receber a transmissão do saber através da sua mãe, ele falou que talvez isso possa acontecer,

que teria essa possibilidade mais futuramente, mas que no atual momento não pensava nisso.

Questiono se Dona Auxiliadora também entende de chás e ervas, e ela diz que

entende. Fala que hoje em dia as pessoas procuram muito o médico, “só é em médico, mas

antigamente era remédio caseiro. Era o chá do mastruz – é ótimo. A babosa com laranja, é

ótimo. A vitamina da babosa com laranja. É bom para curar bronquite. E qualquer coisa no

pulmão pode tomar babosa com a laranja”. Dona Auxiliadora diz que não costuma ir muito

ao médico, que a cura dela é Deus. “Os médicos creem mais neles”.

Segundo Dona Auxiliadora, é mais difícil um médico indicar uma rezadeira, mas ela

reconhece que se for algo que ela não consiga resolver é preciso procurar outro tipo de ajuda,

“eu vou rezar mas se não tirar/curar leve para o médico”. Ela não considera o seu saber

como único e absoluto. Ela relata uma situação na qual sua mãe precisou retirar um sinal, e

quando o médico perguntou como ela estava, respondeu que estava bem “graças a Deus”, e

em seguida o médico disse que foi graças a Deus e sim graças a ele, porque se não fosse assim

ela teria continuado com o sinal.

Na percepção social da rezadeira, há uma limitação da prática médica para

determinados níveis de mal. A prática médica muitas vezes é colocada como alternativa

exclusiva à prática médica-popular, “colocam-se, todavia, dificuldades para ambas as

modalidades de saber e de experiência, quando se trata de um fenômeno patológico cuja

origem e desenvolvimento sejam desconhecidos” (OLIVEIRA, 1983, p. 277).

Partindo da visão da rezadeira a atuação de um sistema de saúde não impede que

outros também atuem. “Vemos que suas práticas não são necessariamente excludentes, fato

que possibilita o desenvolvimento de parceria/vinculação entre profissionais e benzedeiras,

cuja atuação conjunta teria como objetivo principal o reestabelecimento da saúde dos

sujeitos” (ROCHA E ROZENDO, 2015, p. 339).

Para que ocorra essa parceria é preciso abertura de ambos os lados, porém ainda há

muita resistência por parte dos profissionais em incluir outras formas de saberes na saúde.

“Embora atualmente se percebam os impasses e divergências entre os sistemas de saúde

oficial e tradicional, observamos que as benzedeiras tendem a buscar a criação de uma relação

com o sistema oficial. Tal fato demonstra seu comprometimento de ajudar os sujeitos,

considerando-os em sua integralidade” (ROCHA E ROZENDO, 2015, p. 339).

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Pergunto por que ela acha que mesmo com o tratamento médico as pessoas ainda

continuam buscando a rezadeira, ao que respondeu de imediato “porque têm fé em Deus”. A

fé é sempre em Deus, ela não cita em nenhum momento que as pessoas devem acreditar nela

ou ter fé nela, se colocando sempre como intermediária entre a fé das pessoas e a cura

proporcionada por Deus.

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2 DIÁLOGO ENTRE SABERES E AS VOZES DOS QUE CREEM

2.1 Saberes científicos e saberes da tradição: por uma desconstrução da dicotomia e uma

construção dialógica.

O pensamento moderno, segundo Boaventura de Souza Santos, é um pensamento

abissal. “Consiste num sistema de distinções visíveis e invisíveis, sendo que estas últimas

fundamentam as primeiras. As distinções invisíveis são estabelecidas por meio de linhas

radicais que dividem a realidade social em dois universos distintos: o deste lado da linha e o

do outro lado da linha” (2007, p. 71). Tudo que está do outro lado da linha torna-se

inexistente, desaparece como realidade, é excluído radicalmente e permanece externo ao

universo de inclusão do que se é considerado como o “outro”. Esse pensamento abissal tem

como característica fundamental a impossibilidade da copresença dos dois lados da linha.

Ainda segundo o autor,

no campo do conhecimento, o pensamento abissal consiste na concessão do

monopólio da distinção universal entre o verdadeiro e o falso à ciência, em

detrimento de dois conhecimentos alternativos: a filosofia e a teologia. Esse

monopólio está no cerne da disputa epistemológica moderna entre as formas de

verdade científicas e não-científicas. Já que a validade universal da verdade

científica sempre é reconhecidamente muito relativa — pois só pode ser estabelecida

em relação a certos tipos de objetos em determinadas circunstâncias e segundo

determinados métodos —, de que modo ela se relaciona com outras verdades

possíveis que até podem reclamar um estatuto superior, mas que não podem ser

estabelecidas conforme o método científico, como é o caso da razão como verdade

filosófica e da fé como verdade religiosa? (SANTOS, 2007, p. 72).

Apesar de se tornarem muito visíveis, essas tensões entre ciência de um lado, filosofia

e teologia de outro, elas não estão em linhas separadas, e sim têm lugar deste lado da linha.

Aquilo que não se enquadra em nenhuma dessas modalidades, ou seja, aquilo que é invisível,

é utilizado para contribuir na garantira de torna-las visíveis. O que está do outro lado da linha

são os conhecimentos leigos, populares, plebeus, indígenas e camponeses, estes são

desconsiderados, irrelevantes, desaparecem e se encontram além daquilo que é tido como

verdadeiro e falso. Não há conhecimento real do outro lado da linha, o que existe são

idolatrias, magias, crenças, opiniões, intuições e subjetividades, que em suas melhores

hipóteses podem ser utilizados como objetos passíveis de investigação científica (SANTOS,

2007).

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De acordo com Shiva (2002), a interação entre o saber ocidental dominante com o

saber local acontece por vários processos e procura gerar um desaparecimento desse saber

local, primeiramente negando sua existência.

O primeiro plano de violência desencadeada contra os sistemas locais de saber é não

considerá-los um saber. A invisibilidade é a primeira razão pela qual os sistemas

locais entram em colapso, antes de serem testados e comprovados pelo confronto com

o saber do Ocidente. A própria distância elimina os sistemas locais da percepção.

Quando o saber local aparece de fato no campo da visão globalizadora, fazem com

que desapareça negando-lhe o status de um saber sistemático e atribuindo-lhe os

adjetivos de "primitivo" e "anticientífico". Analogicamente, o sistema ocidental é

considerado o único "científico" e universal. Entretanto, os prefixos "científico" para

os sistemas modernos e "anticientífico" para os sistemas tradicionais de saber têm

pouca relação com o saber e muita com o poder (SHIVA, 2002, p. 22-23).

O sistema dominante além de invisibilizar o saber local, desconsiderando sua

existência e legitimidade, também faz as alternativas sumirem quando apagam ou destroem a

realidade que tentam representar. As interações entre os sistemas são rompidas pela

linearidade fragmentada do saber dominante. “Desse modo, o saber científico dominante cria

uma monocultura mental ao fazer desaparecer o espaço das alternativas locais, de forma

muito semelhante à das monoculturas de variedades de plantas importadas, que leva à

substituição e destruição do saber local” (SHIVA, 2002, p.25). Segundo Almeida,

discriminado pelo rótulo de não científico, recebendo com a rubrica de popular toda

uma carga cognitiva de um produto inferior, ou ainda, com o qualitativo de mito a

imputação de não veracidade e de ausência de fundamento, o saber ligado a tradição

tem se reduzido, cada vez mais, a um instrumento de análise da ciência e tratado

como um apêndice do acervo do saber universal, uma forma de sobrevivência do

pensamento primitivo e uma maneira pueril e grotesca de representação. Sem

cidadania e sob tutela da ciência, o conhecimento tradicional perde sua identidade ao

deixar de ser reconhecido e de se auto reconhecer como uma das formas de

investigação e interpretação do mundo (ALMEIDA, 2001, p. 57).

Porém, na medida que a introjeção dos valores daqueles tidos como dominantes não se

trata de um fenômeno considerado individual, e sim cultural e social, a sua extrojeção

demanda uma transformação que possa revolucionar as bases materiais da sociedade, e para

se fazer possível tal fenômeno é necessário que haja também uma determinada forma de ação

cultural. Por meio dessa ação cultural é possível se enfrentar culturalmente a cultura

dominadora. “Os oprimidos precisam expulsar os opressores não apenas enquanto presenças

físicas, mas também enquanto sombras míticas, introjetadas neles. A ação cultural e a

revolução cultural, em diferentes momentos do processo de libertação, que é permanente,

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53

facilitam essa extrojeção” (FREIRE, 1981, p. 44). O processo contínuo de ação dos

oprimidos, o não silenciamento e a continuidade da atuação de suas práticas é o que os

mantém, fazendo com que a cultura viva, apesar de todos as investidas contrárias a isso.

A justificativa da suposta separação das ideias religiosas, míticas, científicas e

filosóficas é encontrada nas matrizes da racionalização histórica ocidental, na qual é operada

uma arbitrária separação de razão e mito, como se a ciência não bebesse nem fosse

contaminada pela fonte dos dispositivos míticos (ALMEIDA, 2001).

De acordo com Lévi-Strauss, “o pensamento mítico não é somente o prisioneiro de

acontecimentos e experiências, que ordena e reordena, incansavelmente, para lhes descobrir

um sentido: é também libertador, pelo protesto feito contra a falta de sentido, com que a

ciência estava, a princípio, resignada a transigir” (1976, p. 43). Os saberes da tradição não

devem ser reduzidos ou entendidos como um estágio precedente ao da explicação científica

(ALMEIDA, 2001).

Entre os dois tipos de saberes existe uma incomunicabilidade, mas também uma

necessidade em se resolver alguns problemas postos, neste sentido o saber tido como

tradicional se constitui como funcional e que se adequa às populações humanas. É ele quem

irá recorrer para o enfrentamento de determinados problemas quando da ausência científica,

como por exemplo problemas técnicos e de produção, fixar regras de condutas e ao acesso a

idealidades mais amplas e inconscientes (ALMEIDA, 2001).

Fazendo uma associação para a realidade no campo da saúde com essa lógica de linhas

abissais, temos de um lado da linha os saberes populares/tradicionais oferecidos pelas

rezadeiras e do outro lado os saberes oficiais/científicos por profissionais de saúde. Essa

separação, na qual coloca os saberes populares como invisibilizados se dá pela ideia presente

na lógica atual de saúde, na qual seus representantes oficiais consideram apenas os seus

saberes válidos. Desconsideram os saberes populares, ancestrais, que são valiosos na

percepção, entendimento e ações curativas construídas ao longo do tempo. O modo oficial de

fazer saúde, vem atuando muitas vezes de forma fragmenta, mecanicista, especializada e

biológica, sendo estes os principais aspectos que são considerados no processo de cura.

Enquanto do lado médico há um código de ética profissional, um estatuto escrito que

regulamenta suas práticas, no caso da rezadeira o que existe são pressupostos culturais que

são direcionados a relação que elas têm com o seu público. “Sua prática é sancionada

socialmente pela comunidade e o seu código de ética é ditado por ela. Ele não existe

textualmente, mas está determinado pelas relações sociais de que participam agentes e clientes

e tendem a modificar-se historicamente" (OLIVEIRA, 1983, p. 363). O fato de não existir

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textualmente não faz dela menos importante que o código de ética médico, por exemplo, pois

são visões e construções diferentes que devem ser consideradas e respeitas, ambas com suas

particularidades e contribuições, não se sobrepondo uma forma em detrimento da outra.

Porém, o enfoque do trabalho se recobre sobre como esses saberes populares reconhecem

peculiaridades esquecidas pelo sistema oficial vigente, e sobretudo, como atua na contribuição

da saúde da população.

Com relação a integralidade, as práticas populares comparadas à biomedicina possuem

uma visão mais integral para a saúde e para a doença,

pois enquanto a intervenção médica oficial pretende apenas fornecer uma explicação

experimental dos mecanismos químico-biológicos da morbidez e dos meios eficazes

para controlá-los, as medicinas populares associam uma resposta integral a uma série

de insatisfações (não apenas somáticas, mas psicológicas, sociais, espirituais para

alguns, existenciais para todos) que o racionalismo social não se mostra disposto a

eliminar (LAPLANTINE, 1991, p. 220).

O processo de cura nas culturas tradicionais, consiste no princípio do desequilíbrio,

resultado de problemas tanto de causas físicas quanto mentais. “Pelo contrário, a ciência

médica se assenta num dualismo cartesiano, na separação da mente e corpo; [...] a ênfase é

colocada em curar o corpo, na eliminação do sofrimento físico (HEWSON apud MENESES,

2005, p. 434).

Segundo Peres (2009, p.27), para se entender “a diferença entre o modelo biomédico

em relação às outras vertentes terapêuticas, por exemplo, é preciso aceitar que todos os

saberes se constituem sob diferentes realidades sociais, e recobrem, de maneira heterogênea,

aspectos da doença ligados à compreensão das suas causas”. É preciso entender que a doença

está ligada a um processo multifatorial que nenhum saber – sozinho – ainda é capaz de

responder/resolver de forma absoluta.

A ciência moderna produz, através de sua força hegemônica, a localização de saberes,

podendo ser tanto causa de discriminação como de resistência à globalização. Mas como os

médicos tradicionais percebem a si mesmos? Esse localismo consiste em uma forma de

segurança e especificidade própria, de um saber que pertence a eles e permite que se possa

negociar e até mesmo conquistar espaços de poder. “O processo de negação da medicina

tradicional passou pela identificação da imagem deste terapeuta com a do feiticeiro. Mas

trata-se de atores bem distintos, como o afirmar quer pacientes, quer participantes da medicina

tradicional” (MENESES, 2005, p. 436).

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Para o médico tradicional e os pacientes não há diferença entre curar e tratar, entre

sintomas subjetivos e objetivos, entre dados mensuráveis e não mesuráveis, pois essas são

questões inerentes à prática da biomedicina. O interesse do médico tradicional está em

resolver o problema, no controle dos sintomas e em restabelecer não apenas as funções

físicas, mas também as relações sociais afetadas (MENESES, 2005).

Existe uma hipótese alternativa centrada na argumentação de que os saberes ditos

‘tradicionais’ são detentores de um estatuto legítimo de saber, sendo isto reafirmado aos

terapeutas pelos pacientes.

Apesar das repetidas tentativas de epistemicídio de que estas formas de saber sobre

saúde têm sido alvo, tal fato poderá ajudar a explicar a enorme vitalidade e

persistência dessas práticas, quer no período colonial, quer nos dias de hoje. Mas

muitos outros aspectos têm de ser explorados. O que será uma medicina alternativa?

Alternativa em função de que e de quem? O que deverá ser considerado

conhecimento legítimo? E legítimo na ótica de quem? Para que o saber se

transforme em solidariedade, que garanta a libertação e a igualdade de cada cultura,

é preciso dar a essa cultura, ao ‘outro’, o estatuto de sujeito” (MENESES, 2005, p.

426).

O tema central abordado pela autora consiste em uma interrogação a respeito da

relação dicotômica entre os saberes globais e locais, analisadas sob o ponto de vista da

evolução da medicina ‘tradicional’, o que ainda é pouco explorado como objeto de pesquisa.

O aspecto inicial da discussão está centrado no questionamento sobre as razões de se construir

essa diferença. Quem é o ‘outro’, o que produz e preserva outras formas de saber?

(MENESES, 2005).

O Estado é quem define essa dicotomia entre o oficial e o não oficial. No caso da

medicina, tudo aquilo reconhecido oficialmente tem apoio do Estado. “Toda a medicina que

não é reconhecida como ‘estatal’ é tolerada, mas continua sendo mais frequentemente

ignorada, porque pouco permeável a imposições e controle por parte da biomedicina”

(MENESES, 2005, p. 430). Isso é notório quando por exemplo, as tentativas de considerar o

lado “não oficial” são feitas de uma forma impositiva, tendo sempre que ser adequadas as

proposições do que é “oficial”, sem considerar todo um leque de possibilidades que a

medicina tradicional dispõe.

Vista da perspectiva da medicina moderna, a medicina tradicional surge como

abrangendo vários saberes, como a biologia e a química (i.e., as plantas usadas como

remédios e os extratos/compostos ativos que delas é possível extrair), a biomedicina

(o tratar, o curar do corpo), a justiça (o resolver de problemas, de conflitos que

encontram no corpo e sua expressão), e a religião (as explicações para as crenças

descritas em função de um aparato conceitual mágico-religioso). A redução da

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56

complexidade dos saberes a uma lista de áreas científicas, através da

compartimentação e da normativização do conhecimento, é a expressão mais visível

da formalização do Estado (MENESES, 2005, p.430).

A existência de tentativas para que ocorra uma supressão da medicina tradicional, ou a

delimitação de suas práticas aos “sujeitos” não civilizados, implica um redimensionamento na

atuação destes praticantes, essas ações se configuram como um exemplo da excepcional

capacidade de adaptação desta medicina em se aproximar de mecanismos formados pelo

Estado em benefício dela. Crise de vulnerabilidade tem sido provocada com esse tipo de

interferência (MENESES, 2005).

As várias tentativas por parte do Estado para “promover e valorizar” as medicinas

tradicionais de forma alternativa e complementar à biomedicina terminam em outro polo de

conflito e tensão, isso é fruto da tentativa de controle político das comunidades nas quais esse

conhecimento é gerado. Contudo, a medicina tradicional reconhece sua complexidade, fluidez

e meandros que compõe esse campo, o que torna bastante difícil essa tentativa de controle,

senão até mesmo impossível de ser alcançada (MENESES, 2005). Há muito mais uma

tentativa de se apropriar dos conhecimentos populares em benefícios próprios, utilizando de

tentativas de transmitir uma falsa ideia de valorização dessas práticas – que seguem

resistentes às imposições de controle.

A complementaridade estre os saberes é possível desde que sejam respeitadas e que se

exercite formas menos autoritárias na interação entre os saberes pela relativização dogmática

da verdade. Isso necessita de um trabalho que vise tanto identificar como suprir as carências

que cada saber possui (ALMEIDA, 2001). Nenhum saber é totalmente completo, todos têm os

seus aspectos positivos e suas carências. E, nenhuma das formas, isoladamente, conseguirá

dar respostas absolutas, únicas e verdadeiras, sendo, pois, necessária uma relação de troca e

diálogo entre os saberes.

É imprescindível praticar um conhecimento “transdisciplinar que imploda os

determinismos mecanicistas e unilaterais, produza pesquisas conjuntas da natureza e da

imaginação, do universo e do homem, favoreça o inadiável intercâmbio ciência/tradição,

inaugure uma nova ética” (ALMEIDA, 2001, p. 27).

Para Morin, esses dois modos coexistem, se ajudam e interagem constantemente,

“como se tivessem uma necessidade permanente um do outro; podem por vezes confundir-se,

mas sempre provisoriamente. Toda renúncia ao conhecimento empírico/técnico/racional

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conduziria os humanos à morte, toda a renúncia às suas crenças fundamentais desintegraria a

sua sociedade” (MORIN,1996, p. 144).

A construção do diálogo entre os saberes neste trabalho está pautada na ideia das

epistemologias do Sul, para tanto, primeiro é preciso compreender alguns princípios básicos.

As epistemologias do Sul se referem aos esforços para validar conhecimentos produzidos

através da perspectiva de quem já sofreu ou sofre algum tipo de violência e injustiça

provocadas pelo capitalismo, colonialismo e patriarcado, e que vem resistindo a isso. “Estes

conhecimentos, nascidos na luta, saíram muitas vezes derrotados e foram subalternizados,

invisibilizados, silenciados ou mesmo destruídos. Por isso, não chegaram à universidade e são

desconhecidos de muitos de vós” (SANTOS, 2018, p. 56).

Os conhecimentos das epistemologias do Sul nascem na e da luta. Ninguém vai à luta

somente por razões, é preciso que haja paixão e emoção. Desta luta é que as alternativas

surgem, os projetos utópicos de sociedade mais justa, aquilo que é designado de artesania das

práticas. Uma racionalidade que apela aos muitos sentidos (SANTOS, 2018).

As formas de conhecimento são todas incompletas, e não existe forma de as

completar. Não se completa o conhecimento apenas reunindo conhecimentos, isso apenas

contribui para aumentar o conhecimento da incompletude dos conhecimentos. “A perspectiva

de incompletude é fundamental. E temos de tomar consciência de que as formas dominantes

do conhecimento consagradas pela ciência moderna ocultaram muita realidade” (SANTOS,

2018, p. 56).

A injustiça social global está ligada à injustiça cognitiva global, “de modo que a luta

pela justiça social global também deve ser uma luta pela justiça cognitiva global. Para ser

bem-sucedida, essa luta exige um novo pensamento — um pensamento pós-abissal”

(SANTOS, 2007, p. 77). “O pensamento pós-abissal parte da ideia de que a diversidade do

mundo é inesgotável e continua desprovida de uma epistemologia adequada de modo que a

diversidade epistemológica do mundo está por ser construída” (p. 84).

Outra abordagem discutida pelo autor é a perspectiva da sociologia das ausências,

segundo ele

a sociologia das ausências visa demonstrar que o que não existe é, na verdade,

ativamente produzido como tal, isto é, como uma alternativa não-credível ao que

existe. (...) O objetivo da sociologia das ausências é transformar objetos impossíveis

em possíveis e, com base neles, transformar as ausências em presenças. A produção

das presenças acontece quando nos centramos no estudo e na análise de fragmentos da

experiência social não reconhecidos pela ciência eurocêntrica. O que existe no Sul

global que escapa à dicotomia Norte/Sul? O que existe na medicina tradicional que

escapa à dicotomia medicina moderna/medicina tradicional? (SANTOS, 2018, p. 59).

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Existem cinco lógicas ou modos de produção da não-existência: a primeira deriva da

monocultura do saber e do rigor do saber; s segunda assenta na monocultura do tempo

linear; a terceira é da classificação social que assenta na monocultura da naturalização das

diferenças; a quarta da escola dominante; e a quinta produtivista, que assenta na monocultura

dos critérios de produtividade capitalista. “Essas cinco lógicas são geradoras de várias

formas sociais de não existência, nomeadamente o ignorante, o residual, o inferior, o local e o

improdutivo (SANTOS, 2018, p. 62).

A sociologia das ausências tem como ideia central – com relação a monocultura do

saber – que não existe nem saber geral nem ignorância geral. “Toda ignorância é ignorante de

um certo saber e todo saber é a superação de uma ignorância particular” (p. 63). A

possibilidade de diálogo e disputa epistemológica entre saberes diferentes acontece

justamente pela incompletude desses saberes. A contribuição de cada saber para este diálogo é

a forma de orientação de uma prática a fim de se superar uma ignorância. “O confronto e o

diálogo entre os saberes é um confronto e diálogo entre diferentes processos através dos quais

práticas diferentemente ignorantes se transformam em práticas diferentemente sábias”

(SANTOS, 2018, p.63).

Sendo assim, nesse contexto, o objetivo da sociologia das ausências é de “substituir a

monocultura do saber científico por uma ecologia de saberes. Esta ecologia de saberes

permite não só superar a monocultura do saber científico, como também a ideia de que os

saberes não científicos são alternativos ao saber científico” (SANTOS, 2018, p. 64).

A ecologia de saberes tem como objetivos “a promoção de práticas sociais eficazes e

libertadoras a partir da interpelação cruzada dos limites e das possibilidades de cada um dos

saberes em presença” (p. 71). O campo de interações práticas para realização da ecologia de

saberes não é um lugar exclusivo – como por exemplo no campo hegemônico das

universidades. O lugar de enunciação dessa ecologia é todo lugar no qual os saberes são

convocados e geram experiências transformadoras. “É o terreno onde se planejam ações

práticas, se calculam as oportunidades, se medem os riscos, se pesam os prós e contras. É este

o terreno da artesania das práticas, o terreno da ecologia de saberes” (SANTOS, 2018, p.71).

A ecologia de saberes é uma epistemologia que busca os diálogos possíveis entre os

diversos grupos sociais. Essa é uma maneira de os grupos sociais amplos

representarem o mundo como seu, isto é, como um lugar que lhes pertence, e,

portanto, sobre o qual eles têm possibilidade de mudar. O conceito de ecologia de

saberes e o conjunto teórico em que se insere resultaram exatamente da necessidade

de combinar e de articular conhecimentos diferentes, científicos e populares, com

vistas a fortalecer as ações coletivas, em que todos estávamos de acordo ou nos

quais existem grandes acordos, mas que há perspectivas diferentes ou

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conhecimentos distintos sobre os temas que nos congregam[...] A ecologia de

saberes é uma possibilidade de convivência que tem de ser construída entre

diferentes saberes incompletos e com diversas perspectivas sobre cada um dos

atores. Dessa forma, colocando em voga seus preconceitos, suas limitações e suas

linguagens. Por isso, é preciso criar diálogos que permitam que essa ecologia possa

emergir (SANTOS, 2017, p. 22-23).

Boaventura faz o seguinte questionamento, “como dar conta teoricamente da

diversidade inesgotável do mundo?" (p. 123). Se é inesgotável, nele cabem muitas totalidades,

todas elas sendo, necessariamente, parciais. “Do ponto de vista dessa concepção do mundo,

faz pouco sentido tentar captar este por uma grande teoria, uma teoria geral, porque esta

pressupõe sempre a monocultura de uma dada totalidade e a homogeneidade das suas partes.

A pergunta é, pois, qual é a alternativa à teoria geral? (SANTOS, 2010, p. 123). Para responde

essa pergunta o autor cita, como alternativa à teoria geral, o trabalho de tradução, que segundo

ele é complementar da sociologia das ausências e da sociologia das emergências.

Se estas últimas amentam enormemente o número e diversidade das experiências

disponíveis e possíveis, o trabalho de tradução visa criar inteligibilidade, coerência e

articulação num mundo enriquecido por uma tal multiplicidade e diversidade. A

tradução não se reduz aos componentes técnicos que obviamente tem, uma vez que

este componente e o modo como são aplicados ao longo do processo de tradução

têm de ser objecto de deliberação democrática. A tradução é, simultaneamente, um

trabalho intelectual e um trabalho político. E é também um trabalho emocional

porque pressupõe o inconformismo perante uma carência decorrente do carácter

incompleto ou deficiente de um dado conhecimento ou de uma dada prática

(SANTOS, 2010, p. 129).

É através da junção entre sociologia das ausências, sociologia das emergências e o

trabalho de tradução que é possível desenvolver uma alternativa à razão indolente, na forma

de razão cosmopolita. A presente alternativa é baseada da ideia de que não é possível ter uma

justiça social global sem que haja uma justiça cognitiva global. “O trabalho de tradução é o

procedimento que nos resta para dar sentido ao mundo depois dele ter perdido o sentido e a

direção automáticos que a modernidade ocidental pretendeu conferir-lhes ao planificar a

história, a sociedade e a natureza” (SANTOS, 2010, p. 134).

O trabalho de tradução tem como objetivo a criação de constelações de saberes e

práticas que sejam fortes o suficiente para fornecer alternativas credíveis a globalização

neoliberal. “O trabalho de tradução cria as condições para emancipações sociais concretas de

grupos sociais concretos num presente cuja injustiça é legitimada com base num maciço

desperdício de experiência” (SANTOS, 2010, p. 135). Para que se possa construir uma

transformação social é necessário que as constelações de sentidos gerem práticas

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transformadoras e novos manifesto. No caso das práticas populares de cura, essa construção

de processos de tradução não acontece de forma isolada apenas pela rezadeira, e sim de forma

coletiva, na união entre quem reza e quem busca esse saber.

2.2 “Eu tenho muita fé em Deus e muita fé na reza dela também”: perspectivas das

pessoas que buscam a reza.

Durante o período em que estive na casa de Dona Auxiliadora, gostava de ficar

sentada numa cadeira de balanço em frente à sua casa, sob a sombra das árvores, conversando

com ela e observando a dinâmica da vila, pois há um bom acesso à rua, permitindo

visualização das pessoas que ali passavam. E sempre que isso acontecia, percebia que as

pessoas cumprimentavam Dona Auxiliadora, mostrando uma relação próxima e amigável e

também de respeito por ela. Havia também, uma certa curiosidade sobre mim, para saber

quem eu era. Chegavam, falavam e eu respondia, dizendo de onde eu era e o porquê de estar

em Quitérias.

A primeira pessoa que procurou Dona Auxiliadora foi uma senhora em busca de cura

para o seu neto de quatro anos de idade, a fim de preservar sua identidade a chamaremos de

Alfazema. Ela disse que já havia procurado médico e não tinha resolvido o caso do neto. “Eu

levei ele para uma ruma de doutor. Remédio por cima de remédio, só gastando”. Além da

criança ela também recorre à rezadeira em benefício próprio, que quem estivesse precisando

de cura em sua família também procurava.

Indago também com relação aos motivos que a fazem procurar pela reza e diz que é

quando tem algum tipo de ferida, quando está com febre, vômitos e dores no estômago. Essa

já era a terceira reza que Alfazema levava a criança, mas conta que desde a primeira reza ele

já havia melhorado, “eu levei ele para hospital com quase 40 graus de febre. Aí passei a noite

dando remédio a ele, ele com dor de barriga. Quando ela rezou que chegou bem ali o menino

já estava gelado, não sentiu mais febre não”.

Ela também leva a criança ao médico, e quando pergunto qual a diferença entre os dois

tipos de tratamento ela responde que o tratamento da rezadeira é mais rápido, “eu sei que

vindo aqui melhora mais do que no médico... Ele estava com tanta febre que tive medo de dar

convulsão. Aí só basta Dona Auxiliadora rezar, graças a Deus. Ele não estava comendo, só

vomitando e com diarreia”. Demonstra, com isso, muita confiança na reza, "ao invés da

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61

benzedura ser uma relação fechada, impessoal, ela é uma relação aberta, calorosa,

participativa" (OLIVEIRA, 1983, p.360).

Figura 9 - Dona Auxiliadora rezando em uma criança. Quitérias – Icapuí/CE, 2019.

Fonte: Edione Rodrigues Batista, 2019.

Alfazema fala também de uma vez que precisou da ajuda de Dona Auxiliadora, “não é

porque eu estou na frente dela não, mas ela é muito boa rezadeira. Teve uma vez que eu

estava com uma ferida aqui, já estava comendo minha perna todinha, aí ela rezou, a primeira

vez que rezou já começou a murchar, passei remédio nem nada, fiquei boa”. A crença

também deve acontecer por quem está recebendo a cura, é preciso ter fé de que o ofício da

rezadeira trará alivio para satisfazer as suas necessidades de saúde. “Eu tenho muita fé nela

graças a Deus. Primeiramente Deus e segundo ela. Aonde eu chego eu digo que ela tem a

boca santa”.

Além de rezar nas pessoas das mais variadas idades, Dona Auxiliadora também reza

nos animais. Isso pôde ser observado quando um homem a procurou com uma pena de um de

seus pássaros, uma campina muito estimada por ele. Aqui tratarei o mesmo como um

informante. Segundo o mesmo, a campina adoeceu depois que recebeu uma visita e que

quando a pessoa saiu de sua casa notou que ela ficou mais tristonha. Questionou então Dona

Auxiliadora se isso poderia ser mal olhado e lhe pediu ajuda, “me ajude para essa bichinha

ficar boa, que você vai ver ela muitas vezes”. Relata também a fé que tem, “eu vou lá na

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minha veia, eu vou porque eu tenho fé em Deus”, bem como relembra outra vez que Dona

Auxiliadora curou uma de suas vacas.

Também pude presenciar outro momento no qual um morador da mesma rua que Dona

Auxiliadora trouxe um filhote de cachorro para ela rezar a segunda vez, o animal já se

encontrava bem melhor, mais esperto, porém era necessário fechar a cura.

Figura 10 - Dona Auxiliadora rezando em um cachorrinho. Quitérias – Icapuí/CE, 2019.

Fonte: Edione Rodrigues Batista, 2019.

Conversei também com uma moradora da vila, que naquele momento não procurou

pela reza, mas já o havia feito em outras situações e aceitou compartilhar um pouco sobre

isso. Aqui a chamaremos de Alecrim. Inicialmente indago por que buscou Dona Auxiliadora e

ela diz que já a procurou diversas vezes, “porque eu creio muito na reza dela, eu tenho muita

fé na reza dela. Aqui ela é bastante procurada”. Alecrim continua a fala ressaltando a fé que

tem, “eu tenho muita fé na reza dela. Ela é uma pessoa de uma fé assim que contagia todo

mundo”. Sobre como ela se sente depois da reza, relata que se sente bem melhor, “parece que

sai assim, uns dez quilos de cima de mim”, e que já sente um alivio na mesma hora.

Além da rezadeira, Alecrim também procura tratamento médico, porém é mais difícil

isso acontecer. Sobre os médicos, ela diz que “eles não confiam muito, eles costumam dizer

que esse negócio de reza não existe. Inclusive eu trabalho na casa de um médico e ele diz que

isso não existe. É impressionante. Ele não acredita”. Nesse momento Dona Auxiliadora

intervém e fala sobre o médico, “ele só tem fé nele”. Ainda falando sobre o médico, a Alecrim

diz que a maioria deles não acreditam e dá o exemplo do patrão, “ele não acredita em santo,

ele não acredita em reza, ele não acredita em nada. Para ele Deus nunca existiu. Para ele a

fé nunca existiu. Ele é ateu”.

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63

Alecrim relata que um dia esse médico foi a casa de sua mãe e falou “eu cheguei lá na

sua mãe, sua mãe era um bocado de santo medonho, era um santuário medonho, não sei para

que aqueles santos”. Sobre essa fala, o que se pode visualizar, são as pessoas acharem que por

não acreditarem em determinadas coisas elas simplesmente não existem, acabam impondo seu

saber e desvalorizando as crenças dos outros. Não há obrigatoriedade em crer, porém, o

respeito às crenças é fundamental, pois muitas vezes é isso que gera resultados positivos para

a saúde de quem acredita.

A diferença entre o atendimento da rezadeira para o médico, segundo Alecrim, é que,

“ela reza sem precisar de medicamento. Desses medicamentos que você sabe que prolongado

acabada com seu fígado né. E ela não, a partir do momento que ela reza você já sente a

diferença. E com medicamento não, você vai tomando e ali você vai ter que esperar o

processo do medicamento agir no seu corpo”. É possível perceber a compreensão existente

sobre os efeitos – muitas vezes nocivos – das medicações no organismo.

Ainda sobre o atendimento com o médico, “as vezes você chega lá e diz eu estou

sentindo uma dor, ele faz só passar o remédio e pronto, não pergunta como foi que começou,

ou partiu de que, só faz dizer lá o remédio e pronto. Entendeu? ”. Por essa fala é perceptível

a questão da falta de diálogo, onde não são considerados os diversos fatores que estão ligados

ao adoecimento, focando-se prioritariamente na prescrição medicamentosa para o paciente.

Com relação a este assunto, tem-se hoje uma lógica mercadológica muito intensa, que é a da

medicalização na saúde, uma reação em cadeia que vai gerando uma falsa impressão de que é

necessário fazer uso de muitas medicações, o que acaba fazendo as pessoas ficarem cada vez

mais “dependentes” destas drogas (em alguns casos nem precisam, mas acabam acreditando

nisso).

A medicalização da saúde se fundamenta em práticas que possibilitam o aumento do

uso dos medicamentos e equipamentos em detrimento das formas de prevenção em saúde.

Esta, acaba estimulando o uso de tecnologias novas, transformando assim a saúde num bem

de consumo pela população. Entendendo a saúde nessa perspectiva como uma mercadoria.

Contudo, quando utilizado de forma adequada, essas substancias terapêuticas pode possibilitar

que a saúde seja restabelecida. Funcionando, nesse sentido, como um bem social em

detrimento de todo o coletivo. O processo de medicalização vigente tem ameaçado esse

entendimento sobre os medicamentos. “Desse modo, a medicalização contribuiu para atender

a necessidade da população consumidora de bens e serviços de saúde, visando aos interesses

do mercado, sem levar em conta os excessos alimentados pela indução da compra e do uso

exagerados destes bens e serviços” (BAUMGRATZ-PAULA, 2008, p. 19).

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Os interesses econômicos envolvidos no setor da saúde acabam influenciando a

produção de conhecimentos distantes da real preocupação com os problemas ambientais e

sociais causadores de inúmeras doenças. As empresas farmacêuticas buscam a geração de

novos medicamentos enfatizando a preocupação com o mercado e produção tecnológica

desses medicamentos. “Nesse sentido, as Ciências Sociais levantam a importante questão,

referente ao grande desenvolvimento técnico-operacional e tecnológico conquistado pela

biomedicina, que é inquestionável, não ter repercutido na diminuição das enfermidades na

mesma proporção do investimento” (PERES, 2009, p. 81).

Essa problemática é bastante delicada, pois a legitimação do medicamento pelo

mercado está relacionada ao seu efeito imediato no organismo das pessoas. Sendo que a

prevenção passa a ser desqualificada, pois não traz o mesmo retorno financeiro. Dentre as

principais causas de morte no mundo estão aquelas relacionadas a doenças cardíacas, “ligadas

à forma de vida, aos aspectos sociais que concebem o ritmo e hábito dos indivíduos, então por

que se produz tanto remédio e nunca se mexe na principal causa? Por que não viabilizar aos

indivíduos possibilidades de uma vida mais calma? (FORMAGIO e BARBOSA, 2004: 376).

A utilização de forma abusiva destes insumos, ou não controlada de forma ideal, pode

acarretar danos que podem ser em algumas situações irreparáveis à saúde das pessoas, através

das reações adversas, levando a um crescimento de iatrogenia medicamentosa. Essa situação

acaba gerando muitos problemas de saúde pública. O uso de medicamentos, neste cenário,

contribui para o aumento da medicalização, pois acontece o reforço da concepção de que tal

consumo possa resguardar a saúde. Quando considerado como solução para os problemas de

saúde-doença, a medicação acaba perdendo seu caráter social, reforçando o processo de

medicalização vivenciado pela sociedade (BAUMGRATZ-PAULA, 2008). Ainda segundo a

mesma autora,

o medicamento é visto como uma mercadoria, pois através da compra, pode-se ter

acesso a uma solução encantadora para todos os problemas relacionados à saúde dos

usuários. Todavia, a apreensão dos medicamentos deve ser centrada no conceito

ampliado de saúde, vista como algo concreto, produto de uma determinada formação

social e política. A concepção de saúde deve se fundamentar em todos os fatores

associados à saúde e à doença, pois o entendimento da saúde reduzida à ausência de

doenças, e da doença como um fato orgânico, suscita o medicamento como uma

mercadoria, que precisa ser consumida para se alcançar a saúde. [...]. Portanto, os

medicamentos devem ser compreendidos como um bem social, atendendo aos

anseios de uma coletividade e não se prestando à produção e a reprodução da

ideologia capitalista” (BAUMGRATZ-PAULA, 2008, p. 23).

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65

Segundo Oliveira, “o modo como algumas doenças tem sido objeto de políticas

oficiais de saúde, no Brasil, reflete uma forma capitalista de medicar, espelhando o desamparo

social em que permanecem os sujeitos acometidos por essas doenças" (1983, p. 277). Isso é a

algo já está tão enraizado na população que, muitas vezes de forma inconsciente, acabam

acreditando que o nível de saúde é diretamente proporcional a quantidade de medicamentos

prescritos. Porém, não sabem que muitos medicamentos são usados para cobrir efeitos de

outros usados anteriormente. Além da falta de explicação a nível que o paciente compreenda,

o que ele está tomando e para que, como se ele não tivesse autonomia nesse processo de

entendimento da sua própria saúde. “A medicina passa a ser uma oficina de reparos e

manutenção, destinada a conservar em funcionamento o homem usado como produto não

humano. Ele próprio deve solicitar o consumo da medicina para poder continuar se fazendo

explorado” (ILLICH, 1975, p. 10).

Neste sentido, para Foucault, qual o significado que têm alguns ritos religiosos

populares, “senão uma espécie de resistência difusa à medicalização autoritária de seus corpos

e doenças? Em lugar de ver nessas práticas religiosas um fenômeno residual de crenças

arcaicas ainda não desaparecidas, não serão elas uma forma atual de luta política contra a

medicalização autoritária, o controle médico? ” (FOUCAULT, 1979, p.97).

Conversei também com outra moradora da vila (a chamaremos de Camomila), na

mesma situação que a anteriormente citada, que no momento não buscava por cura, mas que

aceitou dividir algumas situações em que Dona Auxiliadora foi de importância significativa

em sua vida. Ao ser questionada de o porquê procurar a rezadeira, Camomila fala que é

“porque, primeiro, que eu tenho muita fé em Deus e muita fé na reza dela também”.

Camomila relata que naquela mesma semana havia procurado a rezadeira, pois estava

com dores na coluna devido a esforços feitos para realizar a limpeza de sua barraca de praia.

“Essa semana eu vim com uma dor nos meus quartos que eu não podia nem suspender nada.

Mandei ela rezar, minha fia, foi que nem água na fervura”. E complementa acrescentando o

poder de cura da rezadeira. “A mão dela parece uma coisa assim, que bota e cura logo, e

também a fé que a gente tem na reza dela. É por isso que eu digo, a pessoa que vem procurar

ela tem que ter fé, se não tiver fé também eu acho que não vai ser curado”.

Além desse exemplo da coluna, Camomila cita outro no qual precisou procurar a

rezadeira. “Garganta, também. Vim rezar com ela. Que parecia que tinha ‘dois bolões’ que

eu não podia nem ‘dar o goto’, doendo, só mandei ela rezar uma vez, e é três vezes e eu só

vim uma vez”. Apenas com uma reza ela disse que seu problema havia sido resolvido.

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Segundo Camomila, a sua filha tinha constantes crises de garganta e que o médico

havia dito que precisaria fazer uma cirurgia para retirada das amigdalas, essa é uma prática

comum na medicina, na qual antes mesmo de tentar algum tipo de tratamento mais

conservador já fazem indicações de cirurgias como primeira escolha de tratamento. Ela ficou

com medo e preocupada com essa situação, pois não queria passar pelo procedimento

cirúrgico, sendo assim recorreu a sua fé, “eu me apeguei muito com nossa senhora de Fátima,

é minha santa de devoção”. E também levou a filha para Dona Auxiliadora rezar. “Depois da

reza ficou boa da garganta e não teve mais essas crises fortes. Graças a Deus e a reza dela”.

Diz que Dona Auxiliadora tem a mão milagrosa, “parece uma coisa assim, que a gente não

tem nem explicação, sabe. Tem gente que não acredita e acha que é mentira. Ave maria eu

tenho muita fé na reza dela, muita mesmo”. Fala também que aparece pessoas de muitos

lugares procurar pela rezadeira.

Quando questionada sobre o que ela acredita que a reza pode fazer, Camomila diz que

a reza pode fazer tudo, “o que basta é ter fé e crer”. No momento da reza diz que já se sente

ótima, “parece uma coisa que sai de dentro da gente sabe”. Além das queixas físicas melhora

também de outras coisas como desânimo e tristeza, “é assim você está triste, está com

problema, aí procura uma pessoa para desabafar, né, e você não se sente aliviada depois

daquela conversa? “.

Uma situação citada por Camomila foi relacionada ao seu esposo, que por questões de

saúde perdeu um dedo do pé, mas segundo ela o mesmo está bem melhor. Dona Auxiliadora é

madrinha do seu esposo e ela conta que quando ele teve que passar por esse momento ela

recorreu mais uma vez ao seu auxílio, “cheguei aqui de noite, comecei a chorar, eu contei a

ela. Aí eu contando a ela e ela chorou junto comigo quando eu disse que ele tinha que tirar o

dedo... Isso para mim já é ... Não tenho nem explicação. Não tenho nem como agradecer.

Somente a gente entregar ela na mão de Deus, que Deus sabe o que fazer e dá a recompensa,

dá tudo de bom na vida dela. Dê muitos anos de vida”. Se por algum motivo ela ou alguém da

família não pode ir até Dona Auxiliadora, ela vai até eles sem se queixar ou colocar

empecilhos, é sempre solicita.

O tipo mais frequente de ajuda/tratamento que Camomila procura é da rezadeira,

“olhe, se eu sentir uma dor na coluna, ou dor de cabeça, dor de dente, dor de garganta, eu

não vou procurar médico, eu venho para cá. Só se for um caso de dizer assim, vá procurar

um médico, mas se não for minha fia, eu nem vou”.

Ao ser questionada sobre a diferença que ela encontra entre o tratamento médico e da

rezadeira, Camomila diz que acha muito diferente, “porque as vezes uma curandeira cura um

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problema que o médico não cura, e ela descobre o que o médico não descobre. Um exemplo,

uma pessoa botar um quebranto na criança, ela sabe quem foi que botou, só que ela fica só

para ela”. Dona Auxiliadora já havia comentado sobre isso, inclusive esse foi o motivo pelo

qual ela parou de rezar algum tempo. Camomila cita um exemplo de uma situação que Dona

Auxiliadora disse quem havia colocado o quebranto, “aí aquela pessoa devia ficar só para si

mesma, deixar quieto. Mas tem gente que não é assim, que não entende as coisas”, nesse caso

a mãe foi atrás da pessoa gerando uma situação desconfortável para a rezadeira. “Aí depois

dessa daí ela nunca mais disse quem coloca, já para evitar essas coisas. A gente pergunta – É

quebranto? – E ela diz – Volte amanhã de novo”.

Camomila diz que quando uma criança está com quebranto, quando está doente e a

mãe não pode vir até Dona Auxiliadora, “basta só mandar a roupa, ela reza só pela roupa.

Mulher isso é impressionante”. Volta a falar sobre a questão do médico, dizendo que lá

acontecia muito a situação das pessoas irem se consultar “e o médico não olhar nem para

cara da pessoa. Vendo a hora até matar a pessoa envenenada”. A interpretação de uma

consulta médica por parte do paciente pode ser de múltiplos significados. O fato de não haver

diálogo e explicação a nível que o paciente possa compreender, muitas vezes, acaba gerando

muita tensão, ansiedade e até mesmo medo diante da situação. Nessa perspectiva, de acordo

com Leloup,

às vezes, após uma consulta médica, saímos com uma doença que não tínhamos ao

entrar. Trata-se do poder do diagnóstico, que pode ser uma bênção – benedicére: um

bem dizer; ou uma maldição, um mal dizer, que pode encerrar a pessoa nos limites

de seus sintomas. Trata-se bem de dizer a verdade; existem instrumentos para

constatar certo número de fatos e de sintomas que, em absoluto, devem ser negados.

A questão reside na maneira de colocar o diagnóstico, no modo de dizer a pessoa

como e de que ela está doente, que pode ser um modo de fechá-la ou, ao contrário,

de despertar uma saída no coração mesmo dos sintomas (LELOUP, 2007, p. 25).

Não significa iludir nem mentir, e sim saber interpretar de maneira justa, que gere

crescimento para pessoa na ocasião da consulta, que ela possa tomar consciência do processo.

A pessoa deve ser recordada que ela não se trata de um mero objeto de seu sintoma ou

doença, mas sim que é sujeito de sua enfermidade, que tem autonomia para fazer algo com o

que está se passando com ela, atribuindo-lhe algum sentido (LELOUP, 2007).

Acontecendo isso é possível ajudar que os pacientes compreendam a si mesmos,

dando-lhes instrumentos que auxiliem no autocuidado e autonomia no processo saúde-doença,

deixando de serem apenas pacientes e passando a serem ativos, serem autores da sua própria

saúde. “Após dar o remédio necessário para o alívio de sua dor, ofertar à pessoa doente um

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sorriso, um aperto de mão, uma carícia, uma palavra, e lembrar-lhe que não é só um objeto

infectado, uma doença viral do quarto 32 ou 43. Que ela é, de fato, um sujeito” (LELOUP,

2007, p.131).

Conversei também com outra moradora, Erva-doce. Ela relata que já foi curada várias

vezes por Dona Auxiliadora, bem como seus filhos e netos. “Eu já trouxe até uma neta de

Porto do Mangue/RN para ela curar aqui. Eu já trouxe a camisa de outro para ela curar

daqui para lá, que eu tenho muita fé na cura dela”. A relação dela com Dona Auxiliadora

vem desde a infância. “Minha relação com ela é como se fosse uma pessoa da família. Às

vezes eu estou com uma dificuldade, um problema que eu estou sentindo e chego aqui

chorando, eu desabafo com ela, eu me sinto muito bem com ela”.

Sobre o que ela acredita que a reza pode fazer, Erva-doce diz que quando está sentindo

alguma coisa e que recorre à reza, ela é curada. “Eu acredito que a reza dela a gente fica bem,

que cura. Entrava um menino vomitando, com diarreia e ela cura, no outro dia o menino já

está bem melhor, fecha a cura e fica bem. Os meus meninos nem para médico eu levava,

trazia logo para ela”. Relata que já se sente bem logo após a reza, “dor de cabeça, eu já vim

chorando de dor de cabeça para ela me curar, ficava sentada aí com pouco tempo já ia

aliviando”. Diz também que se sente muito bem com a cura dela, “tenho muita fé,

primeiramente eu venho com fé Naquele lá de cima, aí segundo na cura dela”

Erva-doce morou durante 16 anos em Porto do Mangue/RN, mas durante esse período

de tempo, nunca deixou de frequentar Quitérias para recorrer a cura de Dona Auxiliadora,

atualmente ela voltou a residir na comunidade. Relata que existe outra curandeira na vila, mas

só queria Dona Auxiliadora. “Eu não sei seu eu não tinha a fé, eu acho que não tinha fé na

outra não, não vou mentir. Tem que falar a verdade. Porque aqui para a terra a gente mente,

para Deus a gente não mente não. Eu só tinha fé na reza dela. Dor de dente ela já me curou,

eu fiquei boa”. O vínculo criado desde a infância fortalece essa confiança e crença na reza de

Dona Auxiliadora, ficando perceptível que não se trata apenas do ato da reza em si, mas que

vai bem além disso.

Para Erva-doce, Dona Auxiliadora é muito conhecida, não só nos municípios

próximos, mas que também vem gente de longe curar com ela. “E nunca recebeu dinheiro de

ninguém, tinha gente que não conhecia ela, que vinha de longe, - quanto é? Ela dizia: ‘não é

nada’”. E complementa falando, “agora se a pessoa quiser dar uma lembrança ela recebe,

mas ela nunca curou pago. E ela não nega reza a ninguém. Se a pessoa não gostar dela, não

falar com ela, se trouxer ela cura, porque cura de coração”.

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Para solucionar os problemas de saúde, questiono se além da rezadeira ela também

procura uma assistência médica e Erva-doce responde que sim, “se eu ver que é outra dor

diferente, que eu vejo que é com a medicina, eu vou para médico, mas quando é uma dor de

cabeça, eu tenho fé em Deus e com a reza eu vou ficar boa, aí eu venho só para cá mesmo. Aí

se for outra coisa que eu vejo que é muito grave, fazer um exame aí eu vou para o médico”. E

às vezes a própria Dona Auxiliadora sugere isso, “se não for coisa da reza ela diz – não é de

reza não, tem que procurar o médico também”. Sobre os aspectos diferenciais dos dois tipos

de tratamento, ela enfatiza o cuidado da rezadeira e que só vai ao médico quando é realmente

necessário.

Ela também falou que faz uso de medicamento para controle da pressão arterial, e que

depois do acidente (citado anteriormente) ficou nervosa e não toma qualquer tipo de

medicação que os médicos prescrevem, “eu pergunto o que é, se eu for ali para Icapuí e

passar uma injeção eu tenho que saber o que é a injeção e para que é, tem que dizer para

mim porque senão eu não tomo”. Ela relata que isso aconteceu após fazer uso de uma injeção

de buscopan composto e não ter se sentido bem, “acelerou meu coração, uma agonia, um

mal-estar, eu fiquei sem sentir as pernas”. E desde então se recusa a usar essa medicação e

exemplifica com uma situação que aconteceu no hospital, “um dia eu fui para Icapuí com

uma dor aí o doutor passou [buscopan], eu disse, eu expliquei para ele que eu não podia. Aí

quando chegou na sala da enfermeira eu fui e perguntei de novo, porque eu não sei ler né, aí

eu disse”:

- Enfermeira, que injeção é essa?

- Uma injeção para aliviar sua dor.

- Não, mas eu quero saber o nome da injeção.

- É buscopan composto.

- Não vou tomar não.

- A senhora tem certeza que não vai tomar?

- Tenho, porque eu sou de maior, eu tenho certeza que não vou tomar, me dê esse papel que

eu vou lá na sala do doutor de novo.

- Você vai mesmo?

- Vou, me dê.

Ela voltou à sala do médico para dizer que não tomaria a injeção porque já havia dito

que não poderia, e que mesmo assim ele tinha prescrito a injeção, “tomei mesmo não, tomei só

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um comprimido debaixo da língua para pressão alta e pronto”. O diálogo relatado acima não

é algo incomum de acontecer nos serviços de saúde, nos quais as pessoas não são ouvidas,

não são consideradas suas queixas e não é preservado o direito delas de decidirem sobre os

seus próprios tratamentos. Muitas vezes não são informadas sobre o procedimento, e quando

o são, essas informações não são passadas de forma claras e de modo compreensível de

acordo com a cultura e nível de entendimento de quem está ali para ser cuidado.

Com relação ao médico, Erva-doce diz que já vai pensando, “ai meu Deus, vou ter que

tomar injeção, vou tomar remédio, oh meu Deus vou ficar internada – aí eu começo a

chorar”. Essa questão do nervosismo, segundo ela, está associada ao trauma que desenvolveu

após o acidente, e pela fala dela é perceptível que esse aspecto psicológico é muito mais

considerado pela rezadeira do que pelos profissionais da saúde, os quais muitas vezes acabam

limitando as doenças apenas ao seu aspecto físico/biológico.

Semana passada, eu estava com uma agonia, uma coisa ruim, eu já sei que é a

pressão que dá um gelo na mão, um suor nos pés, eu digo, ‘to com a pressão alta,

vou lá na casa da minha amiga pra ela olhar minha pressão’, 160x100. Aí ela disse

‘tá muito alta’, eu digo ‘neguinha eu tenho que ir para Icapuí mesmo, mas eu não

vou tomar injeção’. Ele passou o comprimido de pressão alta e passou um diazepam,

porque ele disse que eu estava nervosa, que fiquei nervosa depois do acidente (Erva-

doce, 2019).

O fato da medicina estar pautada, supostamente, em compreensões científicas e

objetivas de enfermidades físicas relacionadas as suas causas e curas, faz com que os

profissionais sintam uma necessidade menor de ouvir as interpretações dadas pelos próprios

pacientes a respeito de suas condições de saúde. “Os críticos argumentam, no entanto que o

tratamento efetivo somente pode acontecer quando o paciente é tratado como um ser

pensante, capaz, que possui suas próprias interpretações e compreensões válidas” (GIDDENS,

2005, p. 139). Ayres enfatiza que,

torna-se evidente, no que se refere às tecnologias disponíveis, a necessidade de

superar a restrição àquelas que trabalhem restritamente com uma racionalidade

instruída pelos objetos das ciências biomédicas. Embora estas ciências ocupem lugar

fundamental e insubstituível, pelo tanto que já avançaram na tradução de demandas

de saúde no plano da corporeidade, ao atentarmos à presença do outro (sujeito) na

formulação e execução das intervenções em saúde, precisamos de conhecimentos

que nos instruam também desde outras perspectivas. É assim que a tradução objetiva

das identidades e aspirações dos indivíduos e populações de quem cuidamos, para

além da dimensão corporal realizada pelas ciências biomédicas, guarda enorme

interesse para o Cuidar (AYRES 2004, p. 87).

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A comunicação interpessoal, nesse processo, deve considerar a subjetividade de cada

pessoa, seus valores e experiências, sua cultura, bem como seus interesse e expectativas, pois

estes funcionam como filtros e influenciam a mensagem. A comunicação é essencial nas

relações humanos, podendo acontecer de forma verbal e não-verbal. Isso ocorro,

respectivamente, através da fala ou escrita, e em mensagens transmitidas por interações face a

face, gestos e expressões, pois o corpo também fala e dá sinais (SILVA, 2006).

Existe uma relação de poder na prática médico-científica, essa relação fica ainda mais

clara quando ocorre em hospitais públicos, nos quais tem-se uma população com menor

renda. Esta, muitas vezes já excluída da política e no dia-a-dia em sociedade, além de não ter

poder financeiro, geralmente também não tem estudos, e não compartilham da mesma cultura

que o médico, nem parecendo os que valorizam uma ‘racionalidade’ como alguém que seja

digno de ter respeitada a sua autonomia. “Estes pacientes, além de serem pacientes, tenderão a

ver seus direitos de autonomia desrespeitados também por não serem vistos como autônomos

mesmo quando não estão na condição de pacientes, parecendo assim duplamente

inferiorizados perante a onipotência médica, como sentimento tanto sócio-cultural quanto

corporativo” (MARTINS, 2004, p.25). Com relação a diferença entre os tratamentos oficiais e

não oficiais, seguimos a continuação do pensamento de Martins.

Podemos pensar: ora, troca-se uma crença – na cura trazida pela Ciência – por outra

– na cura trazida pela magia, espiritualidade etc. Entre uma e outra, qual a diferença?

Realmente, a reatividade de uma cura total, como a proposta pela Medicina, não se

resolve pela reatividade de uma cura mágica. Porém, é preciso entender que o fato

de estes tratamentos outros serem tão procurados é um indício de que algo vai mal

na proposta oficial. A hipótese de Foucault é que um dos pontos principais é o da

falta de autonomia impingida aos pacientes na Medicina oficial, dita científica, seu

discurso e sua postura de detentora da Verdade do outro. O que está sendo dito e

deve ser ouvido é que, mesmo submetido a práticas mágicas, possivelmente o

paciente sente-se ali mais respeitado como pessoa, em sua dignidade ontológica e

existencial, inalienável e irredutível. Qual a diferença entre um e outro modo de

tratamento? Talvez uma maior autonomia e respeito – e o reconhecimento de que, se

é verdade que nós não temos o controle de nosso próprio corpo, e que um tal saber

sobre si nos ultrapassa, tampouco outra pessoa, por mais diplomada que seja, o terá

(MARTINS, 2004, p.27).

A relação existente entre benzedeira-freguês é diferente da médico-paciente. O traço

autoritário pode também estar presente na relação entre benzedeira e o seu cliente, isso

acontece pelo domínio que a mesma tem com sobre e sagrado e as relações que brotam

através dele. “Contudo, esse monopólio do sagrado, veiculador também de uma linguagem

simbólica, não se traduz em distanciamento, impessoalidade, superioridade de condições, que

denote uma relação de dominação" (OLIVEIRA, 1983, p. 360). Muito pelo contrário, existe

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diálogo, troca, confiabilidade e estímulo a autonomia e autocuidado da rezadeira para com seu

público, incluindo o mesmo para que este também seja inserido, entenda e faça parte do

processo de cura.

Segundo Erva-doce, ao comparar a rezadeira com médico, relata que “a cura dela e o

cuidado é muito bom. Do médico assim, eu só vou se eu ver que é uma coisa muito grave, se

não for eu não vou”. Ainda fazendo essa relação entre as duas formas de cura, Erva-doce diz

que Dona Auxiliadora a recebe muito bem e que se sente muito aliviada. “Se eu venho com

uma dor de cabeça, quando eu vou chegando no portão, eu já venho com aquela fé de que eu

vou ficando boa, só da fé que eu tenho na cura dela”.

Conversei também com Eucalipto, que foi até a casa de Dona Auxiliadora porque

estava sentindo dores na coluna. Após a realização da reza ela aceitou conversar sobre como é

a vivência dela nesse processo. Pergunto sobre o porquê de procurar a rezadeira e Eucalipto

diz que é “porque ela é uma pessoa muito boa e eu me sinto bem com a reza dela”. O motivo

da reza foi a dor na coluna, mas ela relata que as vezes é dor na garganta, “o que eu estou

sentindo assim eu venho para ela rezar”.

Figura 11 – Dona Auxiliadora rezando na coluna de uma moradora da vila. Quitérias – Icapuí/CE, 2019.

Fonte: Edione Rodrigues Batista, 2019.

A tipoia que Eucalipto está usando no braço foi em decorrência de uma cirurgia

realizada no ombro, porém a causa da procura não foi essa e sim dor na coluna. Sobre a

cirurgia relatou que foi a retirada de um sinal, já havia feito outra cirurgia no mesmo local e o

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sinal voltou a aparecer. O médico fez uma biópsia para investigar a possibilidade de um

câncer de pele. Ela justifica o sinal ter aparecido de novo porque não tiraram direto da

primeira vez e também por não ter tido o repouso necessário e ter movimentado muito o

braço.

Com relação a este assunto, não fiz uma pesquisa para saber dados específicos que

mostrassem a incidência de câncer de pele entre os moradores da região, porém, devido a

atividade pesqueira exigir uma grande exposição solar, essas pessoas estão mais suscetíveis a

desenvolverem esse quadro. Não apenas os pescadores, mas também a população como um

todo. E isso foi perceptível pela própria observação dos moradores, antes de ter surgido esse

assunto na conversa, eu já havia atentado para este aspecto, no sentido da necessidade em se

trabalhar a prevenção, o uso de filtro solar e outras medidas que auxiliassem a eles próprios se

cuidarem melhor para se protegerem dessa exposição excessiva.

Questiono também se além da rezadeira ela procura atendimento médico, Eucalipto

diz que não procurar muito o médico. “Só se Deus me defenda eu não ficar boa, mas se ficar

boa eu não vou não. Venho primeiro para ela. Eu, graças a Deus é difícil ir ao médico”. E

quando pergunto qual a diferença que ela vê nos dois tipos de cura ela diz: “eu sou mais vir

para cá, que eu não gosto de médico”. Segundo ela Dona Auxiliadora é muito boa, querida e

procurada por todos. “Eu acredito nela porque eu tenho fé. Primeiramente em Jesus né,

segundo nela”.

As falas das pessoas refletem os sentimentos e sensações envolvidas do processo da

reza, e isso se dá principalmente pela forma como Dona Auxiliadora conduz esse processo.

Ela considera aspectos do viver que afligem as pessoas e que acabam interferindo em seus

estados de saúde e doença, sabendo ouvir de forma atenciosa suas queixas. Ela é uma mulher

da tradição, que exerce seu ofício de rezadeira baseado no cuidado com aqueles que dela

precisam. Dispõe-se a efetuar esse cuidado de forma solidaria, empática e humana, e é isso

que a tornam essa pessoa tão querida e especial para comunidade. O seu dom de curar as

pessoas contribui para manter pulsante a vida dessa comunidade.

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3 O CUIDADO PRESENTE NAS PRÁTICAS DE CURA

Este capítulo não tem pretensão de se chegar a uma conceituação final do que seja o

cuidado, pois a dimensão que o termo abarca é imensa, de sentido polissêmico, não existe,

pois, um conceito único que possa ser aplicável para todas situações de forma igualitária, é

preciso considerar contextos que estão inseridos, bem como interesses/aplicabilidades, e

entendendo que sua construção se dá no cotidiano das relações e interações sociais e com a

natureza, é um processo dinâmico e não estático. Sendo assim, serão discutidas algumas

abordagens sobre o cuidado que podem ser relacionadas à saúde, à relação com a

enfermagem, com o feminino e com os saberes e práticas populares de cura. Não sobrepondo

um ponto de vista sobre o outro, e sim procurando um cuidado que seja fruto da

reorganização, reorientação e contribuições desses pontos de vistas.

3.1 Breve abordagem sobre o cuidado a partir do ponto de vista filosófico

Fábula-mito do cuidado essencial (a fábula de Higino)

"Certo dia, ao atravessar um rio, Cuidado viu um pedaço de barro. Logo teve uma ideia inspirada.

Tomou um pouco do barro e começou a dar-lhe forma. Enquanto contemplava o que havia feito,

apareceu Júpiter.

Cuidado pediu-lhe que soprasse espírito nele. O que Júpiter fez de bom grado. Quando, porém,

Cuidado quis dar um nome à criatura que havia moldado, Júpiter o proibiu. Exigiu que fosse imposto

o seu nome. Enquanto Júpiter e Cuidado discutiam, surgiu, de repente, a Terra. Quis também ela

conferir o seu nome à criatura, pois fora feita de barro, material do corpo da Terra. Originou-se

então uma discussão generalizada.

De comum acordo pediram a Saturno que funcionasse como árbitro. Este tomou a seguinte decisão

que pareceu justa: "Você, Júpiter, deu-lhe o espírito; receberá, pois, de volta este espírito por ocasião

da morte dessa criatura.

Você, Terra, deu-lhe o corpo; receberá, portanto, também de volta o seu corpo quando essa criatura

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morrer. Mas como você, Cuidado, foi quem, por primeiro, moldou a criatura, ficará sob seus

cuidados enquanto ela viver.

E uma vez que entre vocês há acalorada discussão acerca do nome, decido eu: esta criatura será

chamada Homem, isto é, feita de húmus, que significa terra fértil".

Do ponto de vista filosófico, segundo dicionários clássicos de filologia, alguns

estudiosos derivam cuidado do latim cura. Na forma mais antiga a palavra cura em latim era

escrita como coera, sendo utilizada em um contexto das relações de amizade e amor. “Outros

derivam cuidado de cogitare-cogitatus e de sua corruptela coyedar, coidar, cuidar. O sentido

de cogitare-cogitatus é o mesmo de cura: cogitar, pensar, colocar atenção, mostrar interesse,

revelar uma atitude de desvelo e preocupação” (BOFF, 1999, p.91).

A fábula citada anteriormente diz: o Cuidado foi quem primeiro moldou o ser

humano. O cuidado é tão essencial que vem antes do espírito e do corpo infundidos por

Júpiter e pela Terra. “O cuidado se encontra antes, é um a priori ontológico, está na origem da

existência do ser humano” (BOFF, 1999, p. 101).

Foi com cuidado que “Cuidado” moldou o ser humano. Emprenhou aí dedicação,

ternura, devoção, sentimentos e coração. E com isso criou responsabilidades e fez

surgir a preocupação com o ser que se plasmou. Essas dimensões, verdadeiros

princípios constituintes, entraram na composição do ser humano. Viraram carne e

sangue. Sem tais dimensões, o ser humano jamais seria humano. Por isso, a fábula-

mito de Higino termina enfatizando que cuidado acompanhará o ser humano ao

longo de toda sua vida, ao longo de todo o seu percurso temporal no mundo (BOFF,

1999, p.101).

Essa explicação através dos mitos, são linguagens utilizadas para traduzir fenômenos

mais profundos, que não conseguem ser descritos pela razão analítica. É preciso saber fazer

uma combinação entre a inteligência instrumental-analítica, caracterizada pelo rigor

científico, com a inteligência emocional-cordial, originária dos mitos e imagens. Além de

seres corporais e psíquicos somos também seres espirituais. “Cuidar é mais que um ato; é uma

atitude. Portanto, abrange mais que um momento de atenção, de zelo e de desvelo. Representa

uma atitude de ocupação, preocupação, de responsabilização e de envolvimento afetivo com o

outro”. (BOFF, 1999, p. 33).

Anéas e Ayres (2011) também chamam a atenção para o caráter ontológico do

cuidado. Segundo eles o entendimento do que seja cuidado em saúde se desenrola de uma

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percepção ontológica do Cuidado, fazendo deste um elemento central para a compreensão da

existência humana. “Dito de outra forma, a concepção de cuidado em saúde que se vê como

possibilidade para as práticas de saúde só é possível porque, antes de tudo, se assume o

Cuidado em seu sentido ontológico” (p. 654).

Não se pode excluir os cuidados da alma em detrimento dos cuidados do corpo, “os

cuidados da alma (psyché) não dispensam que se leve em consideração a dimensão ontológica

e espiritual do homem. Não existe saúde que não seja ao mesmo tempo salvação. Além do

mais, em grego é a mesma palavra: soteria” (LELOUP, 1996, p. 32).

A capacidade de emocionar-se, de afetar e de sentir-se afetado, de envolver-se, bem

como o sentimento são representações próprias dos seres humanos ao longo do processo

evolutivo, os quais não é possível se encontrar em nenhuma máquina. O mundo é construído

por nós através de laços afetivos. Esses laços fazem com que pessoas e situações se tornem

preciosas, portadoras de valores e onde existe preocupação para com elas (BOFF, 1999).

As emoções também são importantes na construção de uma concepção de

racionalidade mais ampla. “É através das emoções que a razão se afirma, e é através da razão

que as emoções também se afirmam. Ou seja, existe uma relação direta entre racionalidade e

emocionalidade, entre sentimentos, entre afetos” (SANTOS, 2018, p. 77-78).

Tudo começa com o sentimento, “esse sentimento profundo, repetimos, se chama

cuidado. Somente aquilo que passou por uma emoção, que evocou um sentimento profundo e

provocou cuidado nos deixa marcas indeléveis e permanece definitivamente” (BOOF, 1999,

p. 99-100).

É preciso ter cuidado com o nosso corpo na saúde e na doença, o corpo aqui não é

tratado no sentido usual, no qual se contrapõe a alma (corpo-alma, matéria-espírito). O corpo

é uma parte e não a totalidade do ser humano, é um ecossistema vivo. É através do corpo que

a fragilidade humana se mostra. A aceitação de que a vida é mortal é o que faz entender de

forma diferente a saúde e a doença.

A doença significa um dano à totalidade da existência. Não é o joelho que dói. Sou

eu, em minha totalidade existencial, que sofro. Portanto, não é uma parte que está

doente, mas é a vida que adoece em suas várias dimensões: em relação a si mesmo

(experimenta os limites da vida mortal), em relação com a sociedade (se isola, deixa

de trabalhar e tem que se tratar num centro de saúde), em relação com o sentido

global da vida (crise na confiança fundamental da vida que se pergunta por que

exatamente eu fiquei doente?) (BOFF, 1999, p. 143).

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Nesse sentido a doença se remete à saúde. Para que a cura ocorra deve haver uma

integração das dimensões da vida sã, tanto a nível pessoal quanto social. Sendo assim, o

primeiro passo é que seja reforçada a dimensão-saúde afim que ela possa curar a dimensão-

doença. Para tanto é preciso reforçar a compreensão do que seja saúde. “Como disse um

conhecido médico alemão: ‘saúde não é ausência de danos. Saúde é a força de viver com

esses danos’” (BOFF, 1999, p. 145).

O cuidado não é uma meta a se alcançar apenas no término da caminhada e sim um

princípio que acompanhará o ser humano ao longo da vida, em cada passo. Faz-se mister

discutir a importância da aplicabilidade correta do cuidado, pois o cuidado em excesso pode

gerar quadros de obsessão. Isso ocorre quando há cuidado em demasia, na exacerbação. O

cuidado é a essência do ser humano, porém o humano não é apenas a sua essência, existe sua

história, ressonâncias e limitações. São exemplos desses excessos o narcisismo, vaidade,

afetação, perfeccionismo. Também pode ocorrer a carência do cuidado, caracterizada pelo

descuido. São aqueles mais displicentes, que não são inteiros no que fazem, as coisas parecem

desordenadas e confusas, isso gera impaciência e perda da serenidade e calma. É preciso ter

um equilíbrio, pois tanto o excesso quanto a carência são danosos. “O cuidado não convive

nem com o excesso nem com a carência. Ele é o ponto ideal de equilíbrio entre um e outro”

(BOFF, 1999, p 162).

Ainda de acordo com Boff, “o ethos está no próprio ser humano, entendido em sua

plenitude que inclui o infinito. Ele precisa voltar-se para si mesmo e redescobrir sua essência

que se encontra no cuidado” (1999, p. 191). O caminho para a cura, então, não deve ser

buscado fora do ser humano e sim dentro dele próprio.

3.2 Alguns aspectos históricos sobre o cuidado e a relação deste com o feminino nas

práticas de cura

Do ponto de vista histórico, o historiador Peter Burke (2011) discute alguns aspectos

sobre a organização social do cuidado e sua evolução desde a idade média até os dias atuais.

Para tanto, se baseia em três tendências: a institucionalização, a secularização e a

mercantilização ou marketização.

Um ponto levantado pelo autor é que o lugar tradicional do cuidado é a família. O

outro ponto é o cuidar de estranhos. O cuidado oferecido para pessoas fora da família

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costumava ser dominado pela Igreja, hoje em dia é mais provável que seja regido pelo estado,

isso não significa que houve um aumento no cuidado, e sim um deslocamento.

O autor inicia a história na Europa da Idade Média. Mesmo naquela época o cuidado

não se restringia a família, a comunidade também tomava conta coletivamente de alguém do

vilarejo quando necessário. Nas cidades quem assumia esse lugar de cuidado era a paróquia,

pois era o lugar de caridade organizada. O conceito de misericórdia vem daí, e também o de

generosidade e piedade. O primeiro hospital de São Paulo traz esse conceito da Idade Média e

foi chamado de Santa Casa de Misericórdia.

A ideia de “pobres de Deus”, que se pode associar a Madre Teresa, na realidade é uma

ideia medieval que sobreviveu ao nosso tempo. De fato, tanto os pedintes na Europa

Medieval, quanto os pedintes de hoje nos países budistas, diziam que estavam fazendo um

favor aqueles mais prósperos. Os ricos davam dádivas aos pobres, e os pobres davam aos

ricos a oportunidade de ganhar méritos aos olhos de Deus, com isso podiam ter mais certeza

que ganhariam um lugar no céu (BURKE, 2011). O autor não faz uma idealização da Idade

Média, havia de fato pessoas generosas, mas nem todas o eram.

Ainda segundo Burke, na Idade Média o hospital não era uma instituição especializada

em doentes. Era uma instituição geral que prestava cuidados a pessoas que precisavam. O que

é chamado de hospitais médicos só surgiram no final da Idade Média. Os hospitais

começaram a se especializar não apenas no cuidado dos doentes, mas também na cura. O

número também cresceu, o que gerou muitas mudanças sociais e mais especialização. No

século XIX ocorre a profissionalização e especialização dos cuidadores, além dos médicos

também tinha enfermeiras, assistentes sociais e psiquiatras.

Com relação a secularização, o século XV foi uma época que a igreja estava em crise,

de fragmentação da cristandade e abolição de monastérios. Houve também uma crise social,

em partes causada por más colheitas em decorrência do clima, e também por uma explosão

populacional, levando mais pedintes as cidades, o que gerou, como os sociólogos de hoje

chamam de “pânico moral”. A reação do governo diante disso foi mandar os pedintes as suas

paróquias de origem.

Houve uma mudança na postura dos governantes no final do século XIX, com o que

hoje chamamos de “estado de bem-estar social”. Essa mudança ocorreu porque os governos

centrais perceberam que precisavam intervir, pois as famílias estavam se desintegrando por

causa da urbanização resultante da industrialização. A partir disso iniciou um processo de

nacionalização do cuidado. Um movimento que visava afastar a ideia de caridade individual e

passar para as mãos de organizações maiores administradas pelo governo.

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A base das organizações internacionais foi a globalização do cuidado. Como exemplo

pode ser citado a Cruz Vermelha (em 1863) e os Médicos sem Fronteiras (em 1971). Tanto a

internacionalização quanto a nacionalização levaram ao processo de burocratização do

cuidado. O cuidado acontece, porém, é mediado, burocratizado. Com relação a

mercantilização ou marketização, houve uma profissionalização das entidades hospitalares,

transformando com isso o cuidado em um artigo de compra e venda.

O autor fala que essa história não é de progresso, não de um progresso geral, mas

talvez de pequenos progressos. Como exemplo ele cita o caso da enfermeira inglesa Florence

Nightingale, que no século XIX, redesenhou as alas hospitalares pois queria uma maior

circulação de ar nos hospitais. Para ela deveria haver uma janela para cada dois leitos, com

isso os pacientes seriam mais saudáveis.

Peter Burke finaliza sua fala abordando que atualmente a família como instituição de

cuidado parece estar em melhor forma no Brasil do que em outros países europeus. Com

relação a si próprio, relata que prefere um cuidado mais pessoal, um cuidado que seja

oferecido pelos seus conhecidos e não um cuidado institucional de um asilo, por exemplo.

Esse pensamento do autor traduz o pensamento de muita gente, porque por mais que existam

instituições específicas voltadas para o cuidado é muitas vezes no seio e aconchego familiar

que as pessoas se sentem melhor cuidadas.

No âmbito da saúde, Arys define cuidado como “designação de uma atenção à saúde

imediatamente interessada no sentido existencial da experiência do adoecimento, físico ou

mental, e, por conseguinte, também das práticas de promoção ou recuperação da saúde”

(2004, p. 90).

Desde que há vida humana o cuidado existe, e através de atos de humanidade, a vida

se mantém a partir dele. Ao longo de milhares de anos o cuidado não esteve ligado a nenhuma

profissão ou ofício especifico, a sua história se constrói com base em duas orientações que

coexistem, se complementam e se geram de forma mútua: o cuidar para se garantir a vida e o

cuidar para recuar a morte (COELHO; FONSECA, 2005).

Apesar do cuidado por muito tempo não estar relacionado a uma profissão específica,

é na Enfermagem que está presente desde o início histórico da profissão até os dias de hoje,

sendo praticamente impossível não fazer uma associação entre a palavra cuidado e a

enfermagem.

O nascimento da enfermagem se deu como um serviço organizado por instituições de

ordens sacras. Coexistindo com o cuidado doméstico aos doentes, aos idosos e as crianças,

associado à figura da mulher-mãe que desde sempre foi curandeira e detentora de saberes

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informais sobre práticas de saúde, transmitido entre mulheres. “É a condenação desses

saberes, especialmente para o controle social e religioso da sexualidade e da reprodução, que

impõe questionamentos a sua legitimidade e mudanças no seu livre exercício” (LOPES &

LEAL, 2005, P. 109).

Por um longo período, a marca de ordens religiosas impõe a enfermagem seu exercício

institucional majoritariamente caritativo e feminino. A profissionalização tardia atesta essas

características reproduzindo relações de trabalho sob o peso da hegemonia da medicina

“masculina”. Deste modo, a seletividade sexual, organizada em valores religiosos ideológicos,

associa-se à seleção de grupos sociais a serem inseridos aos sistemas de saúde, com base em

avanços tecnológicos e organização capitalista do trabalho (LOPES & LEAL, 2005).

A relação existente entre as práticas médicas – associadas ao tratamento, e as práticas

de enfermagem – associadas ao cuidado, traduz, por exemplo, as ligações entre gênero, classe

e poder, natureza e legitimidade. “A (re) construção cotidiana do poder médico e a dominação

que exercem as práticas do tratar sobre as práticas do cuidar se articulam na dupla conjunção

entre sexo e classe” (p. 112). De acordo com esta conjunção, o que define o conteúdo das

primeiras – tidas masculinas, é o caráter científico e de verdade na qualificação profissional.

Já as segundas, são consideradas empíricas por estarem associadas às “qualidades” femininas

(LOPES & LEAL, 2005).

O espaço formal de exercício do cuidado enquanto ação feminina nas relações de

trabalho é historicamente limitado pelas perseguições religiosas, pelas corporações médicas e

pelas possibilidades sociais das mulheres. Nesse sentido, os valores vocacionais e simbólicos,

introduzidos na convocação de trabalhadoras, apelam para uma seletividade a entrada dessas

mulheres no campo profissional apropriado cultural e socialmente ao seu sexo. Para

compreender esse processo é preciso considerar a influência de Florence Nightingale ao

institucionalizar, na Inglaterra Vitoriana (1862), uma profissão a partir de valores femininos,

para a qual as mulheres são “naturalmente preparadas” (LOPES & LEAL, 2005).

Florence Nightgale é considerada a fundadora da enfermagem no mundo, teve

destaque na Guerra da Criméia participando como voluntária, ajudando a cuidar e salvar

vidas. A definição de enfermagem segundo Florence é que a enfermagem é a mais bela das

artes, sendo assim, requer que a aprendizagem seja tão delicada quanto a escultura ou pintura,

“pois que não pode haver comparação entre o trabalho de quem se aplica à tela morta ou ao

mármore frio, como o de quem se consagra ao corpo vivo. O cuidar de doentes é tarefa que

sempre coube à mulher e sempre lhe deve caber” (NIGHTGALE apoud HORTA, 1968, p. 1).

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A defesa da exclusividade da profissão de enfermagem para mulheres defendida por

Florence, talvez tenha sido por influência das lutas feministas da época, mas hoje a profissão

não se limita a mulheres (embora seja a grande maioria), os homens também vêm ocupando

cada vez mais espaço dentro da enfermagem (HORTA, 1968). Apesar disso, o cuidado na

atualidade ainda é muito associado a figura feminina devido a essa construção social e

histórica que é, até mesmo, anterior à própria enfermagem, que vem dos primórdios da vida

humana.

Existem várias outras definições de enfermagem, porém esse não é o objetivo a ser

tratado aqui, e sim ter um entendimento mais geral da relação entre o cuidado e a profissão. O

conceito sofreu várias evoluções e a ele foi sendo empregado um caráter mais científico que

não era tão visível outrora. Foram sendo complementados a fim de se evitar ambiguidades e

procurar manter uma concisão que de fato fosse condizente com o que a profissão busca. Na

conceituação de Horta, ela se refere a “necessidades básicas”.

Necessidades são estados de insuficiência resultantes dos momentos de desequilíbrio

orgânico, dentro do equilíbrio dinâmico dos fenômenos vitais. Estes estados de

insuficiência geram necessidades que procuram estabelecer o equilíbrio orgânico.

São consideradas básicas àquelas relacionadas à sobrevivência física, psíquica e

espiritual: nutrição, água, oxigênio, abrigo, regulação térmica, cuidado corporal,

integridade corporal, sono, repouso, exercício, eliminação, reprodução, gregarismo,

comunicação, amor, recreação, aprendizagem, ética, religião, aprovação, realização,

segurança. Muitas destas necessidades podem ser atendidas plenamente pela

enfermagem, outras são por ela identificadas e encaminhadas ao profissional

competente, como por exemplo a necessidade religiosa, a segurança econômica,

ética, etc (HORTA, 1968, p. 4).

A autora relata que ao finalizar o conceito que se propôs a defender, o mesmo estaria

sujeito a críticas e complementações, mas que seria o que mais parecia ajustar-se à realidade

profissional à época. Depois deste, outros conceitos surgiram, mas ele foi e ainda continua

sendo importante para termos uma dimensão do quanto a enfermagem é abrangente e engloba

o ser humano em suas variadas dimensões, reconhecendo seus limites e sabendo encaminhar

para outras competências quando necessário. Outro exemplo da relação de cuidado com a

enfermagem é proposto por Leininger, que diz:

Cuidar é inerente à condição humana, cuidar e ser cuidado faz parte do ser humano,

assim sendo importa clarificar quais os significados específicos de que este conceito

se reveste no âmbito disciplinar de enfermagem. Saber em que é que se diferencia de

outros significados que lhe serão atribuídos por outros que não enfermeiros. O

cuidar, conceito central em enfermagem influencia a teoria, a investigação, a prática

e o ensino. Múltiplas teorias de enfermagem desenvolvem-se em torno do conceito

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cuidar. Ensina-se a cuidar, a prestar cuidados que se querem de qualidade para uma

prática assertiva e baseada em evidências necessariamente resultantes de processos

de investigação. Cuidar é descrito como a “essência da enfermagem e característica

central, dominante e unificadora” (LEININGER, 1988, p. 152).

O cuidado de enfermagem ocorre através do encontro e interação entre os seres

humanos, é um fenômeno intencional e essencial à vida, se dá através de atitudes que

envolvem zelo, amor, solidariedade e consciência. “Expressa um ‘saber-fazer’ embasado na

ciência, na arte, na ética e na estética, direcionado às necessidades do indivíduo, da família e

da comunidade” (VALE & PAGLIUCA, 2011, p. 112). Segundo o Conselho Federal de

Enfermagem, de acordo com a resolução Nº 564/2017, traz em seus princípios fundamentais,

que a enfermagem é uma profissão

comprometida com a produção e gestão do cuidado prestado nos diferentes

contextos socioambientais e culturais em resposta às necessidades da pessoa, família

e coletividade. O profissional de Enfermagem atua com autonomia e em

consonância com os preceitos éticos e legais, técnico-científico e teórico-filosófico;

exerce suas atividades com competência para promoção do ser humano na sua

integralidade, de acordo com os Princípios da Ética e da Bioética, e participa como

integrante da equipe de Enfermagem e de saúde na defesa das Políticas Públicas,

com ênfase nas políticas de saúde que garantam a universalidade de acesso,

integralidade da assistência, resolutividade, preservação da autonomia das pessoas,

participação da comunidade, hierarquização e descentralização político-

administrativa dos serviços de saúde. O cuidado da Enfermagem se fundamenta no

conhecimento próprio da profissão e nas ciências humanas, sociais e aplicadas e é

executado pelos profissionais na prática social e cotidiana de assistir, gerenciar,

ensinar, educar e pesquisar (COFEN, 2017).

É preciso que nesse encontro haja disponibilidade para a escuta, que o profissional

possa se abrir de forma acolhedora, que o outro tenha suas demandas consideradas e válidas,

para que suas intervenções sejam direcionadas de acordo com as necessidades existentes. “O

cuidado se dá em um contínuo das relações entre usuários e serviços de saúde, em todas as

oportunidades que se faça possível entender aquilo que o outro traz em relação à sua

existência (ANÉAS E AYRES, 2011, p. 659). No cuidado as dimensões biológicas, sociais e

emocionais são indissociáveis, pois,

o cuidado puramente técnico cumpre o papel da restauração, reabilitação e cura, mas

não resgata no cliente a marca pessoal da sua subjetividade no que se refere aos

cuidados que lhe são necessários e desejados. Ainda mais, o desejo é que mantém o

sujeito no curso da vida, logo, desenvolver a escuta para a comunicação não-verbal

(expressões corporais e faciais) torna-se o diferencial e o diferenciante para a

construção de um cuidar sensível que não demanda gasto de material e emprego de

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tecnologia sofisticada, mas sim, preparo de ordem psicoafetiva por parte de quem

cuida, possibilitando o cuidar atento, carinhoso, zeloso, com transmissão de

tranquilidade, confiança e alegria (FERREIRA 2002, p. 393).

O cuidado não deve ser algo imposto pelos profissionais de saúde, essa relação deve

ser estabelecida de forma horizontal, através de uma prática pautada no diálogo, onde o

paciente possa também discutir, criticar, questionar e expressar suas necessidades e desejos do

cuidado, estando inserido nesse processo (BARCELOS E ALVIM, 2006).

O que se busca, na atualidade, é fazer um resgate dos sentidos do cuidar, “defendendo-

se um cuidar pensado, sentido e exercido de forma contextualizada, que integra o singular, o

particular e o estrutural, sedimentados na valorização das condições objetivas e subjetivas de

quem é cuidado e de quem cuida (COELHO; FONSECA, 2005, p. 215).

Retomando um pouco a discussão sobre o cuidado na história da enfermagem, sua

vinculação ao feminino vem de uma influência anterior a isso, pois a prática remetia a

atividades que já eram tidas como destinadas as mulheres. A discussão sobre a profissão é um

exemplo de como a construção de padrões sociais influenciam de forma significativa as

práticas das mulheres em sua vida cotidiana e profissional.

As atividades derivadas do ato de cuidar, na construção moral da sociabilidade

burguesa, tendem a ser atribuídas e naturalizadas como exclusivas da condição feminina.

“Ancorado neste senso moral, valores como altruísmo e atribuições como a maternagem

presentificam‐se no cotidiano das mulheres, sobre a forma de dupla jornada de trabalho”

(GUEDES & DAROS, 2009, p. 123).

Mesmo que as atividades profissionais das mulheres não estejam vinculadas ao ato de

cuidar, a elas é destinado a responsabilidade de cuidar dos familiares em várias fases do

desenvolvimento ou por necessidades de saúde. Esse cuidado ocorre ao mesmo tempo que as

atividades sócio-ocupacionais, para cumprir normas tidas historicamente como inerentes a

condição feminina, o que acaba contribuindo no processo de alienação e reprime a

possibilidade de que as mulheres possam realizar projetos mais livres (GUEDES & DAROS,

2009).

Com relação aos saberes populares, tema da presente pesquisa, no saber das mulheres

rezadeiras, as doenças corporais são como resultado dos males da alma – a separação entre

corpo e alma não existe. Estes saberes ancoram-se em princípios que levam em consideração

a possibilidade de intervenção divina e/ou espiritual no processo de adoecimento, tratamento e

cura, mediado pela capacidade concedida a algumas pessoas para diagnosticar e curar os

males do corpo e da alma. Esta concepção faz parte da cosmovisão de mulheres que, a

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despeito de todas as visões colonialistas, protagonizaram a provisão e o saber cuidar das

gerações ao seu redor.

No geral, opera-se uma visão colonizadora, em que os valores associados ao feminino

estão ligados a práticas de cura e de reza vistos enquanto saberes mágicos e sem eficácia. O

que significa dizer que, no nordeste brasileiro, os traços marcantes de uma sociedade

patriarcal ainda estão muito presentes, concedendo ao homem um lugar de destaque. Em

assunto de reza e de cura, quem ocupa este lugar é a mulher. No imaginário coletivo desta

população está impressa essa marca cultural que “reza é coisa de mulher”.

Com esse rótulo, muitas mulheres foram perseguidas e mortas, pois os poderosos

desconsideravam seus saberes e as puniam como forma de controle e imposição, quem

dominava era a igreja e o saber cientifico médico, os quais reprimiam veementemente outras

práticas que ameaçassem a hegemonia masculina. Isso justifica o fato de que naquela época

também existiam homens curadores, porém, somente as mulheres eram perseguidas e

acusadas de bruxaria e feitiçaria.

O paradigma do cuidado associado ao feminino foi construído ao longo do tempo,

porém isso é algo que deve ser desconstruído. É preciso retirar essas amarras que prendem as

mulheres na obrigatoriedade de sozinhas serem responsabilizadas por atividades que deveriam

ser comuns a todos, independentemente da questão de gênero. Essa ideia de que cuidado é

função feminina acaba reforçando uma visão machista e aumentando as desigualdades entre

gêneros. O cuidado não pode ser utilizado como forma de imposição e controle das mulheres.

Esse pensamento não significa dizer que o papel de cuidadora desempenhado por

mulheres em diversas situações (na vida profissional, cotidiana, nos saberes e práticas

populares) seja somente uma obrigação, ou que não haja vontade própria na realização destes

atos, ou então que as mulheres deixem de assumir atividades referentes ao cuidado. O que se

pretende mostrar é que não existe uma definição dizendo que a função de cuidado é aplicável

com exclusividade para mulheres – romper a ideia de “isso é coisa de mulher” ou “isso não é

tarefa de homem”, por exemplo.

Somente as mulheres devem desempenhar atividades de cuidado? O que há por trás

desses interesses? A sabedoria feminina do cuidado deve ser transposta para todos, num

sentido global. É preciso aprender com as mulheres, compartilhar seus saberes, um exercício

contínuo, pois o mundo de forma geral precisa de cuidados – por todos.

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3.3 Saberes e práticas populares do cuidado: a relação entre rezadeira e seu público

Os saberes populares relacionados às práticas do cuidado a saúde, são denominadas

práticas populares e integrativas do cuidado. Estão presentes por todo território e são

perpetuadas por aqueles que entendem que estas práticas ajudam a formar outras novas com

relação a estes cuidados. “Podem também contrapor às práticas sociais relacionadas ao

consumo, em uma sociedade que respira o consumismo e está, a todo momento, sendo

empurrada para comprar mais e mais medicamentos, crendo que, com isso, conquistará uma

vida mais saudável” (OLIVEIRA E LEITE, 2011, p, 19).

As práticas do cuidado são aquelas desenvolvidas por grupos populares ou locais, que

apesar do sistema oficial conseguiram persistir e continuar atuantes junto aos problemas de

saúde – aqui entendida como bem-estar tanto do corpo quanto da alma. Tais práticas

perpassam desde um benzimento até reparações de danos físicos por meio de intervenções, de

forma especial naqueles locais onde as práticas de saúde por parte do Estado são ausentes. As

práticas do cuidado estão ligadas ao saber local, vindo de conhecimentos que passam de

geração a geração através da oralidade, bem como fazendo uso de recursos oferecidos pelo

ambiente no auxílio das atividades de cura (OLIVEIRA E LEITE, 2011).

Antes da generalização do saber formal/acadêmico, foi o saber oferecido aos grupos

populares por cuidadores que possibilitou a sobrevivência destes, geração após geração. A

não consideração desta rica experiência dos saberes populares do cuidado, acumulada por

milênios, seria um grande desperdício. Saberes estes, que num passado recente, pareciam

estar condenados ao epistemicídio6, “mas hoje, felizmente, em alguns setores, tanto dos

organismos estatais, quanto do universo acadêmico, passam a ter reconhecimento.

Certamente, um conhecimento limitado, aliás, como todo conhecimento, mas que merece ser

considerado parceiro pelo sistema de saúde do nosso país” (OLIVEIRA E LEITE, 2011, p,

19-20).

O conceito de práticas populares de saúde “compreendem qualquer forma de cura que

não seja propriamente biomédica, abrangendo práticas advindas da cultura popular, tais como

o benzimento e as ligadas a religiões” (OLIVEIRA E MORAES, 2010, p. 419).

O cuidado em saúde não está presente apenas nas instituições formais e no âmbito

científico, também é possível visualizar nas práticas de saúde que acontecem em terreiros de

6 Termo emprestado de Boaventura de Souza Santos que indica a morte dos saberes dos grupos populares ou

saber local, ocasionado pela chegada do saber acadêmico ou científico. Fato que ocorreu, sobretudo, na África e

América Latina, nos últimos dois séculos.

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candomblés, parteiras tradicionais, no acolhimento e escuta oferecidos por erveiros e raizeiros

a quem os procuram, na religiosidade, nos benzedores e rezadeiras, “o cuidar do Outro é um

constante exercício de solidariedade que afirma cotidianamente a possibilidade de afirmação

da vida” (PEDROSA, 2007, p.97). De acordo com o Ministério da Saúde, as práticas

populares do cuidado,

enquanto práticas sociais ocorrem no encontro entre diferentes sujeitos e se

identificam com uma postura mais integradora e holística que reconhece e legitima

crenças, valores, conhecimentos, desejos e temores. Constituem-se por meio da

apropriação e interpretação do mundo pelas classes populares, a partir da sua

ancestralidade, de suas experiências e condições de vida, contemplando a escuta e o

saber do outro na qual o sujeito é percebido em sua integralidade e pertencente a um

determinado contexto sociocultural. Estas práticas são desenvolvidas por diversos

atores em distintos espaços, desde o espaço familiar, comunitário e mesmo

institucional. Entre os muitos exemplos das práticas populares de cuidado e de seus

atores podem ser citados raizeiros, benzedeiros, erveiros, curandeiros, parteiras,

práticas dos terreiros de matriz africana, indígenas dentre outros (BRASIL, 2012

p.11).

As formas de tratamentos pelo saber popular são constituídas de práticas que unem

pessoas em torno de conhecimentos sobre chás e plantas, estimulando a renovação das

relações sociais e simbólicas, pois possibilitam que as pessoas se comuniquem por meio de

experiências concretas. Esses métodos associam dois importantes fatores para se promover a

saúde: “a medicina popular e as relações sociais, constituindo-se ainda em práticas solidárias,

democráticas e educativas, uma resistência cultural frente à lógica da dominação de classes

sociais. Essas práticas servem para ampliar a base da legitimidade do saber popular,

reservando ao doente um tratamento fundado no calor e no respeito humano” (OLIVEIRA,

1983, p. 289 – 291).

A relação presente entre rezadeira e cliente é de proximidade – o que denota uma

relação considerada mais afetiva do que instrumental – o que poderá levar a uma elaboração

sobre determinados tipos de concepções acerca dos problemas que quem busca a reza,

podendo remodelar até mesmo sua identidade, por meio de uma reorganização interior de seus

signos e significados. “E, dessa forma, ela traz a sua contribuição na reprodução da cultura

popular, nesse espaço de relações de troca e cura" (OLIVEIRA, 1983, p. 362).

É justamente nesse espaço de relações que a ecologia de saberes acontece, entre o

saber da rezadeira e o saber das pessoas, e também na mediação que Dona Auxiliadora

desempenha entre sua própria prática com o saber médico, por exemplo, chegando em alguns

casos a identificar a necessidade de um tratamento médico, indicando a pessoa que ela está

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rezando a buscar também esse outro saber. Isso acontece pois ela reconhece a potencialidade

do seu saber, mas também reconhece suas limitações e até onde seu saber alcança. Não se

coloca como detentora única do conhecimento e sabe a importância que se tem em dialogar

com outras práticas – por mais que o saber científico ainda esteja muito fechado a essa

possibilidade de interação.

Ao conversar com Dona Auxiliadora, questiono se além de rezar, ela também orienta

as pessoas de como se cuidarem, ela diz que sim. “Oriento, eu rezo as pessoas e digo olhe

faça isso, isso e isso. Você fazendo isso, siga como eu estou dizendo que vai dar certinho. E

dá certinho como eu digo as pessoas”. Para exemplificar melhor ela fala que “as vezes chega

uma pessoa com uma criança vomitando, com febre, dor de cabeça, aí diz - eu fui para

médico e não resolveu - eu digo é o seguinte, eu vou rezar, mas você vai ter que ajudar, faça

um chazinho de hortelã, bote umas gotinhas de luftal, porque ela arrota, bota as gazes para

fora, aí já alivia a criança né, que tiver com a dor já alivia”. A questão da ajuda ofertada às

pessoas que a buscam não se limita apenas na prática da reza em si, mas também ela atua

como conselheira e como alguém que presta orientações para outras necessidades de sua

comunidade, construindo assim vínculos de confiança e fortalecendo as crenças.

Dona Auxiliadora diz também que as pessoas procuram a reza dela mesmo quando

vão para o médico, ou até mesmo quando se encontram hospitalizadas. “Até gente que está

internada no hospital, aí manda o recado para mim fazer oração na pessoa e eu faço”.

Ela dá um exemplo de uma criança na qual rezou, “ele estava internado em Mossoró.

A mãe só faltava morrer de chorar, aquele desespero. Aí mesmo com o tratamento do médico

ela mandou me procurar para rezar a criança dela. No outro dia já soube notícia que ele

estava melhor. Eu digo, - ele vai sair do hospital, não se preocupe”. Relatou que uns cinco

dias depois soube notícias de que a criança estava em casa. Perguntei se ela sabia o que a

criança tinha, qual o problema de saúde, ela disse que não, “eu não sei o que os médicos

disseram. Eu sei que rezei de quebrante, rezei de mal olho, rezei de vento caído, entendeu? ”.

Ela diz que não rezou para algo especifico, que realizou rezas variadas. “Aí de repente a

criança ficou boa. Ali foi Deus que curou né. Botou a mão por cima. O médico dá o

medicamento, a força de Deus foi maior, eu gosto assim”, ela terminou essa fala com um

sorriso no rosto, que demonstrava uma imensa satisfação em ver a cura da criança por Deus e

tendo ela como intermediária. Ela dá também um outro exemplo,

uma crente estava com a criança dela doente, a menina desmaiou, aí ela doentinha

e disseram – vamos pra Mossoró, vamos para Mossoró. Foram para Mossoró, aí a

outra amiga dela veio e trouxe a blusa dela. Aí disse – olha aqui, fulana foi pra

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Mossoró coma a menina dela muito doente, a bichinha não abre nem os olhos e eu

trouxe uma camisinha para tu rezar. Aí eu disse – rezo na hora. Aí eu rezei, isso

umas quatro horas, quando foi seis horas ela mandou dizer que a menina tinha

ficado boa. Antes de chegar em Mossoró a menina abriu os olhos, alertou, porque

ela ainda estava para ir de viagem quando eu comecei a rezar na menina, antes de

Mossoró a menina espertou, quando chegou em Mossoró a menina já não tinha

nada. Porque crente né, só vai mais para médico, mas essa veio, a força de Deus foi

maior (Dona Auxiliadora, 2019).

Depois que as pessoas veem uma vez para Dona Auxiliadora, continuam vindo

posteriormente, “tudo que acontece corre para cá. É três rezas. Rezo três vezes. Às vezes, na

primeira vez quem tem muita fé, a primeira cura que faz essa pessoa já ficar boa. Mas tem

que fechar a cura, não pode deixar aberta não”. Questiono se quando essas pessoas voltam

para rezar é porque a doença persistiu e ela diz que não, “é porque foram curadas, aí gostam e

ficam vindo depois. Quando vem já é de outra coisa”. Depois da primeira ida a Dona

Auxiliadora as pessoas continuam retornando, pois conseguem obter a cura que procuravam e

estabelecem uma relação de confiança com a rezadeira.

Ao questionar se a relação com Dona Auxiliadora é boa, Alfazema responde que sim,

“Graças a Deus é”. E que sempre busca a rezadeira, desde que o neto era menor, “desde que

ele era novinho eu trago né Dona Auxiliadora? ”. Pergunto se Alfazema acredita na reza, e

ela respondeu “ora não, eu já cheguei dizendo que ela levanta até defunto”. E depois que

Dona Auxiliadora reza, ela disse que se sente bem melhor, em todas as vezes que veio ela diz

que se sente bem, que “melhora 100%”. Além da reza Dona Auxiliadora ajuda e orienta em

outras situações, como por um exemplo, as vezes ela manda “ dar um banho de canela, essas

coisas”.

Sobre a relação com a rezadeira, Alecrim diz ter uma ótima relação e acredita que a

reza pode curar, “as vezes quando eu estou doente, quando a minha garganta está inflamada

ela reza só uma vez, pronto, ali já desaparece, já alivia. Às vezes, como meu pai está recém

operado, ela vem rezar o pé de painho e de repente foi sarando”. Em alguns casos, quando a

pessoa não pode ir até a casa de Dona Auxiliadora, ela se desloca para realizar a reza, visitar e

ver mais de perto a situação da pessoa, levando também uma palavra de conforto em

momentos mais difíceis.

Segundo Alecrim, há outra rezadeira próximo de lá, porém não é tão procurada quanto

Dona Auxiliadora, “em toda região se disser assim, ‘quem é dona auxiliadora? ’, todo mundo

sabe dizer quem é”. Nota-se com isso a grande procura e prestigio que ela tem não só em sua

comunidade, mas sim se estendendo para outros locais. Quando eu falei anteriormente que era

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de Mossoró, Dona Auxiliadora se surpreendeu e disse sorrindo que a fama de rezadeira dela

tinha se espalhado.

Alecrim diz que Dona Auxiliadora também ajuda em outras situações sem ser a reza

especificamente. Algumas vezes quando a filha adoecia, Dona Auxiliadora fazia um mel com

várias plantas caseiras e ela melhorava. “Eu dei a minha menina [o mel], ela de repente ficou

boa. Às vezes eu chego e digo – Dona Auxiliadora, a senhora sabe o que é bom para isso? –

ela vai lá e diz. Às vezes quando eu preciso de alguma coisa sem ser da reza eu chego aqui,

se ela tiver me dá na hora”. Além de orientar, muitas vezes a própria rezadeira faz algum tipo

de receita que possa ajudar a pessoa a melhorar da situação de saúde na qual se encontra.

Ao se referir a rezadeira, Alecrim diz que se trata de uma pessoa muito boa, “eu chego

e digo – Dona Auxiliadora, eu estou sentindo isso –, ela reza né, e a partir do momento que

ela reza pronto, já passa. – Não é para fazer isso, nem para fazer aquilo, tome isso tome

aquilo –, entendeu? Ela vai além da reza”. Dona Auxiliadora não se limita a prática da reza

em si, ela demonstra uma preocupação que extrapola os limites do momento presencial da

reza, e essa atenção faz toda diferença na forma como a pessoa que a busca recebe essa

acolhida e zelo.

Quando questionada sobre qual a importância que a rezadeira tem em sua vida,

Alecrim diz que ela é muito importante, “essa mulher é praticamente uma santa [...] eu acho

que é assim, a pessoa já nasce com esse dom”.

Outra entrevistada, Camomila, comenta que sente muito apoio de Dona Auxiliadora e

também muito acolhida. “Ela é muito confiável. Ela não é desse tipo que a gente conta um

segredo e ela sai contando não. Fica só entre aquela pessoa aqui, morre entre aquelas duas

pessoas. Ela é muito especial, muito mesmo”.

Para exemplificar a importância que a rezadeira tem na sua vida, Camomila conta uma

história sobre sua nora, na qual ela teve complicações durante a gravidez e acabou perdendo o

filho no quinto mês de gestação. “Ela teve começo de eclampsia. Só que mesmo assim quando

a gente cuidou dela já foi tarde né. O bebê com cinco meses faleceu, aí nesse momento eu

precisei de muito apoio”, ao relembrar esse momento a entrevistada se emociona e não

contém as lágrimas. “Aí eu nesse momento me senti só. Graças a Deus eu tenho família, tenho

mãe, tenho irmão, mas no momento eu me achei com ela (Dona Auxiliadora), eu cheguei aqui

e contei a situação a ela”. E esse apoio que sentiu, disse que algumas vezes nem com a

própria família sentia, por que não podia contar para desabafar algumas coisas.

Questiono também Erva-doce, se tem alguma situação específica que ela se lembra

que teve ajuda da rezadeira e ela responde que sim. “Lembro quando eu sofri o acidente em

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Porto do Mangue/RN, quando eu recebi alta eu vim para cá, eu estava com muita dor nas

costelas, eu já tinha sido medicada e tudo, passei 13 dias no Tarcísio, mas eu cheguei com

umas dores, eu falei ‘mamãe, mande chamar dona auxiliadora para me curar, que eu não

posso andar’, ela veio, comecei a conversar com ela, eu me senti muito bem. Ela foi 3 dias

lá”. Nesse momento Dona Auxiliadora diz que ela chorava e dizia que iria morrer, “aí eu

dizia ‘não, você não vai morrer não, tenha fé em Deus que você vai vencer essa’, ela ficava

preocupada”. Ao relembrar essa época de sua vida a entrevistada se emociona e não consegue

conter as lágrimas, diz que foi um período muito difícil para ela.

Ainda fazendo essa relação entre as duas formas de cura, Erva-doce diz que Dona

Auxiliadora a recebe muito bem e que se sente muito aliviada. “Se eu venho com uma dor de

cabeça, quando eu vou chegando no portão, eu já venho com aquela fé de que eu vou ficando

boa, só da fé que eu tenho na cura dela”. Dona Auxiliadora diz que não tem remédio em casa,

mas como sabe que ela tem pressão alta sempre faz um chazinho de capim santo e ficam

conversando até que se sinta melhor.

Indago sobre qual a importância que a rezadeira tem em sua vida, Erva-doce diz que é

uma pessoa muito boa, “me sinto muito bem com ela, uma ótima pessoa. Desde menina que a

gente se conhece. É uma amizade antiga. A gente nunca discutiu, nunca ficamos diferente

uma com a outra. Se ela precisar – faça isso assim para mim – eu faço”, O contrário também

é verdade, as duas se ajudam.

Erva-doce tem problema de pressão alta. Com relação a isso, Dona Auxiliadora ajuda

como pode, “eu não tenho remédio aqui, quando ela chega aqui eu faço um chá”. E erva-doce

complementa, “ela faz um chazinho bem forte de capim santo, eu bebo, fico por aqui

conversando, quando dou fé já estou boa”. O efeito de melhora não foi apenas do chá

oferecido, mas também o fato de conversar ajudou no alívio dos sintomas que ela vinha

apresentando. “Eu me sinto muito bem com a cura dela, tenho muita fé, primeiramente eu

venho com fé Naquele lá de cima, aí segundo na cura dela”.

A relação entre Dona Auxiliadora e Eucalipto também é muito boa. “Me dou muito

bem com ela. Qualquer coisinha eu chamo ela né Dona Auxiliadora. Até se eu vou comer

alguma coisa eu venho perguntar a ela se faz mal. Porque eu confio nela, aí se ela disser faça

eu faço, se disser não faça eu não faço”. Diz também que se sente melhor depois da reza e

que qualquer coisa que esteja sentindo, quando procura a reza fica boa. “Eu sempre quando

chamo ela para mim é uma melhora. Eu tenho ela como uma mãe”.

Eucalipto, apesar de não falar muito, quando questiono sobre a importância que a

rezadeira tem em sua vida, ela diz que “é tudo, só hoje eu já corri duas vezes para cá”. Dona

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Auxiliadora complementa dizendo que tudo que ela precisa vai para lá, “se eu disser não faça

isso ela não faz não. Agora quando eu digo pode fazer ela faz sem medo. Essa daí para mim é

igualmente uma filha”.

É muito bonito ver essa relação, ela se referiu a Dona Auxiliadora como uma mãe e

Dona Auxiliadora a ela como uma filha, o que nos faz perceber que vai muito além da reza

em si. Essa construção de laços e apoio é o que fortalece essa comunidade como um todo, e o

que torna esse lugar tão especial e único, com suas histórias e estórias de vida que se

entrelaçam e formam uma teia de significados.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Durante a pesquisa pude observar em alguns trabalhos estudados expressões como

“damos vozes”, “dar vozes” aos sujeitos da pesquisa ou que estes “ganharam vozes”.

Considero a utilizações de expressões desse tipo equivocadas, pois pode gerar interpretações

de que a voz é algo dado pelo pesquisador, que se não fosse ouvida por nós enquanto ciência

essa voz continuaria silenciada, seria inexistente. A voz é e sempre será deles. Não damos

nada, é prepotência achar isso, na verdade, muitas vezes, apenas retiramos, apenas bebemos

da fonte do conhecimento deles. Em outros casos sequer esses sujeitos são reconhecidos, pois

acabam tendo seus saberes apropriados por outros e usados como sendo deles. A ideia deste

trabalho não foi pautada em “dar vozes aos sujeitos”, e sim fazer essas vozes serem ouvidas

por mais pessoas, facilitar que tenha um maior alcance, enaltecer esses saberes e fazê-los

sentir que suas vozes precisam ser ouvidas e não silenciadas.

As questões propostas inicialmente foram comtempladas, através da fala dos sujeitos

da pesquisa encontramos as respostas. Ficou perceptível que existe muita confiança na reza de

Dona Auxiliadora, por isso que as pessoas a buscam, e também por terem fé, por acreditarem

que aquele ritual irá ajudar a melhorar seus quadros de saúde. Há relatos de que começam a se

sentir melhor no própria ato da reza, já sentindo as melhorias enquanto são rezadas.

Além de terem o alivio para suas queixas, as pessoas também aprendem muito com a

rezadeira, pois Dona Auxiliadora faz questão de incluí-las no processo e mostrava-se disposta

a ajudar no que precisassem. Quando comparada aos saberes médicos, ao relatar as diferenças

entre esses saberes, houve uma predominância nas respostas das pessoas na preferência pela

rezadeira, pois relataram que com ela a cura é mais rápida, além de Dona Auxiliadora sabe

ouvir e compreendê-las melhor.

Os objetivos da pesquisa também foram alcançados, pois foi possível conhecer a

prática de Dona Auxiliadora, bem como os motivos que levam as pessoas a buscarem a reza,

cada qual com seu motivo específico associado aos seus modos de viver e sentir. A relação

existente entre a rezadeira e seu público é de muita proximidade, de construção de vínculos,

confiança, compreensão, solidariedade e de afetos, formando uma teia de significados na qual

todos se ajudam. Para tanto, foi imprescindível compreender como se dá esse processo de

cura, visto não apenas com a visão da rezadeira, mas também daqueles que recebem a reza,

pois esses não são apenas passíveis, eles também são ativos nessa relação de crenças, e é isso

que mantém o saber vivo e atuante.

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A rezadeira recebe um dom de Deus e se sente na obrigação de devolver esse presente

através da reza, como uma forma de curar as pessoas. Ela reza sem esperar recompensas, mas

as pessoas se sentem na obrigação de retribuir por este ato, isso se dá por meio de presentes

que não estão associados a questões financeiras, e sim muito mais a questões simbólicas e

representativas. Nesse processo há uma troca de dádivas, e é isso que mantém a circulação da

energia entre Deus, rezadeira e público. Coexistindo uma relação simultânea entre liberdade e

obrigatoriedade em dar e receber.

Só foi possível alcançar os resultados da pesquisa pois o método empregado permitiu

uma abordagem que considerou o público abordado, houve uma escuta sensível, conferindo

liberdade de se posicionarem da melhor forma, a qual não houve constrangimentos, muito

pelo contrário, foi notório a empolgação das pessoas ao falarem sobre suas vivências

referentes à reza e seus estados de saúde. Puderam reviver momentos, revisitar sentimentos

que foram importantes em suas vidas, bem como serem gratos a Dona Auxiliadora pela ajuda

e por compreender suas necessidades de saúde.

A pesquisa ampliou sobremaneira a compreensão da temática abordada, permitindo

um mergulho mais profundo nesse rico universo de simbolismos, sentidos e significados

presentes em ambas as partes envolvidas no processo de cura, entendendo que é através dessa

relação que conseguimos ter uma visão mais abrangente, visto que as duas partes são

indissociáveis para a cura acontecer, pois existe a crença de quem reza e também a crença de

quem é curado. Mesmo encontrando trabalhos realizados por outros autores, acredito que a

relação entre quem reza e quem é curado ainda é pouco explorada, pois se constitui em fonte

inesgotável de saberes, e cada vez que revisitados, novas coisas, novas visões e novas

aprendizagens serão encontradas.

Na área da saúde, minha área de atuação, a pesquisa representa a possibilidade de

enxergar o outro em suas mais variadas dimensões, que a saúde vai muito além de sintomas

físicos e que muitas vezes somente medicamentos não são a melhor escolha de tratamento.

Representa também a aprendizagem que se pode ter com as rezadeiras, essas mulheres da

tradição, pois o fato de não terem seus conhecimentos provenientes de universidades não os

tornam menos importantes, nem muito menos os inviabilizam, são conhecimentos diferentes

que devem ser levados em consideração. Aprender com a sensibilidade da escuta, a entender

que a pessoa que está doente não é somente passiva, e sim que também pode ajudar no seu

próprio processo de cura, e, para tanto, é preciso de seja ouvida. Aprender com a riqueza de

saberes em conduzir o processo de cura de forma mais humana, levando em consideração

nuances que a ciência se recusa a enxergar.

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Essa é apenas parte de um caminho que abre muito outros. Este tema não acaba em si

mesmo, vai muito além, ele representa um leque de possibilidades e perspectivas, num

processo dinâmico que está em constantemente fase de

construção/reconstrução/ressignificação. Que se sobressai a investidas contrárias e permanece

mantendo firme a base de suas raízes. É necessário, pois, conhecer mais esses saberes e

proporcionar meios/espaços que favoreçam que essa ecologia possa eclodir. Isso não ocorre

através de regras ou passos pré-estabelecidos, e sim na possibilidade de convivência entre

saberes diferentes, cotidianamente, uma construção que deve ser contínua e baseada em

relações dialógicas e de respeito mútuo entre saberes.

Para tanto, é preciso que haja abertura de ambas as partes, e não apenas dos saberes

populares – saberes esse que já representam as bases para que a ecologia aconteça. As

universidades, por exemplo, precisam repensar conhecimentos engessados como sendo

únicos. Precisam se abrir mais aos conhecimentos populares. Procurar formar sujeitos mais

reflexivos, que não fiquem presos/limitados a conceitos que muitas vezes não representam a

realidade social. Sair de suas bolhas, interagir mais e atuarem como mediadores culturais. A

ecologia dos saberes não é um fim em si, ela é um processo vivencial que requer tempo e

cuidado, a fim de ser visualizada nas ações e relações práticas do cotidiano. De onde vem à

dificuldade em viabilizar ações desse tipo? Como fazer para que essa ecologia aconteça?

Como possibilitar a convivência entre diferentes saberes? Não há uma receita pronta para que

isso aconteça.

Acredito que um bom início seria na própria formação dos sujeitos dentro das

universidades, romper com a ideia de superioridade do conhecimento científico e propor

alternativas para chegar a outros saberes (não de forma impositiva, autoritária e de controle,

como acontece em alguns casos), mas, considerando as diferenças e particularidades de cada

saber, a fim de convergir para um caminho comum – aqui tratado nessa pesquisa como a cura

das pessoas por meio de saberes científicos e também populares. Utilizo essa imagem abaixo

como um símbolo representativo desse encontro entre saberes. É possível que diferentes

saberes “deem as mãos”, desde que haja abertura, disponibilidade a novas interações e

principalmente interesse em fazer dar certo.

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Figura 12 - Rezadeira e pesquisadora, Quitérias - Icapuí/CE, 2019.

Fonte: registro feito pelo filho da rezadeira utilizando a câmera da pesquisadora, 2019.

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SANTOS, F. V. O ofício das rezadeiras: um estudo antropológico sobre as práticas

terapêuticas e a comunhão de crenças entre as rezadeiras de Cruzeta/RN /, 2007. Dissertação

(Mestrado em Antropologia) – UFRN. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes.

SCOTT, R. P. (org.) (1996). Saúde e pobreza no recife: poder, gênero e representação de

doenças no bairro do Ibura. Universidade Federal de Pernambuco, Núcleo de Saúde Pública.

Recife: Editora Universitária da UFPE.

SHIVA, V. Monoculturas da mente. Perspectivas da biodiversidade e da biotecnologia. São

Paulo: Gaia: 2003.

SILVA, M. J. P. A comunicação tem remédio: a comunicação nas relações interpessoais em

saúde. 4. ed. São Paulo: Loyola, 2006.

SILVA, M. R. F. Ciência, Natureza e Sociedade: diálogo entre saberes. São Paulo: Livraria

da Física, 2010.

THEOTONIO, A. C. R. Entre ramos de poder: rezadeiras e práticas mágicas na zona rural

de Areia - PB ─ Campina Grande, 2010. 124 f.: il. Dissertação (Mestrado em História) –

Universidade Federal de Campina Grande, Centro de Humanidades.

THOMAS, K. Religião e Declínio da Magia: crenças populares na Inglaterra séculos XVI e

XVII. SP. Cia das Letras, 1991.p.160.

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102

THOMPSON, Paul. A voz do passado: história oral. São Paulo: Paz e Terra, 1992.

VALE, E. G.; PAGLIUCA, L. M. F. Construção de um conceito de cuidado de enfermagem:

contribuição para o ensino de graduação. Rev Bras Enferm, Brasília 2011 jan-fev; 64(1):

106-13.

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103

APÊNDICES

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APÊNDICE A – ROTEIRO ENTREVISTA REZADEIRA

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE - UERN

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO - PROPEG

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS - FAFIC

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS E

HUMANAS – PPGCISH

ENTREVISTA SEMIESTRUTURADA

SABERES, CRENÇAS E REZAS QUE CURAM: a relação entre quem reza e

quem é curado no município de Icapuí/CE.

QUESTÕES PARA A REZADEIRA:

1 Porque a senhora começou a rezar?

2 Como a senhora acha que é vista na comunidade?

3 A senhora acha que as pessoas hoje em dia a procuram menos que antes?

4 Quais são os tipos de pessoas que costumam procurar a senhora?

5 A senhora orienta as pessoas de como se cuidarem?

6 Porque as pessoas ainda procuram a senhora mesmo com o tratamento médico de hoje

em dia?

7 Quais os tipos de doenças que a senhora reza?

8 Como a senhora se sente quando reza nas pessoas?

9 O que acontece se a pessoa não acredita na reza?

10 Depois que as pessoas vêm aqui, elas costumam voltar outras vezes?

11 Quando elas voltam é porque foram curadas ou a doença persistiu?

OBSERVAÇÕES: As perguntas não necessariamente seguirão a mesma ordem e conforme

as respostas da rezadeira outras questões poderão surgir para dar prosseguimento a fala da

entrevistada, permitindo maior flexibilidade para discorrer sobre os assuntos.

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APÊNDICE B – ROTEIRO ENTREVISTA PÚBLICO

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE - UERN

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO - PROPEG

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS - FAFIC

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS E

HUMANAS – PPGCISH

ENTREVISTA SEMIESTRUTURADA

SABERES, CRENÇAS E REZAS QUE CURAM: a relação entre quem reza e

quem é curado no município de Icapuí/CE.

QUESTÕES PARA O PÚBLICO:

1 Por que você procurou a rezadeira?

2 Qual sua relação com a rezadeira?

3 O que você acredita que a reza pode fazer?

4 Como você se sente após a reza?

5 Com o auxílio da rezadeira você é capaz de se conhecer mais e melhorar sua saúde?

6 A rezadeira também ajuda com outros cuidados que você deve ter para melhorar sua

saúde?

7 Além da rezadeira você também vai ao médico?

8 Qual a diferença entre rezadeira e médico?

9 Qual a importância da rezadeira na sua vida?

OBSERVAÇÕES: As perguntas não necessariamente seguirão a mesma ordem e conforme

as respostas do público outras questões poderão surgir para dar prosseguimento a fala dos

entrevistados, permitindo maior flexibilidade para discorrer sobre os assuntos.

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ANEXOS

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ANEXO A – TCLE PARA AS REZADEIRAS

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO – TCLE

Esclarecimentos

Este é um convite para você participar da pesquisa “A RELAÇÃO ENTRE QUEM

REZA E QUEM É CURADO: cartografia dos atos da reza e da crença” coordenada pela

Profª. Drª. Karlla Christine Araújo Souza e que segue as recomendações das resoluções

466/12 e 510/16 do Conselho Nacional de Saúde e suas complementares. Sua participação é

voluntária, o que significa que você poderá desistir a qualquer momento, retirando seu

consentimento sem que isso lhe traga nenhum prejuízo ou penalidade.

Caso decida aceitar o convite, você será submetida a uma entrevista semiestruturada

com algumas questões norteadoras a falar sobre aspectos referentes a sua prática enquanto

rezadeira, como se deu a aprendizagem do ofício, quais os tipos de doenças ou males que

reza, bem como sobre o público que a procura como forma de cura. Caso aceite participar da

pesquisa, será gravado áudio da entrevista, bem como o registro fotográfico. A

responsabilidade de aplicação é de Edione Rodrigues Batista, graduada em Enfermagem e

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Humanas, do Campus

Avançado de Mossoró, da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Este é um estudo

baseado em uma abordagem qualitativa, utilizando a abordagem da cartografia de Boaventura

de Souza Santos, bem como escuta sensível e observação participante.

Essa pesquisa tem como objetivo geral: “conhecer o perfil da população que busca a

cura através das rezadeiras”. E como objetivos específicos: apresentar os motivos que levam

as pessoas a buscarem as rezadeiras; identificar a relação existente entre rezadeiras e

população; conhecer as crenças envolvidas na prática da benzeção e compreender como se dá

o processo de cura.

A pesquisa terá como benefícios a possibilidade de gerar reflexões que contribuirão

para as pessoas terem uma melhor compreensão dos fenômenos que permeiam seu processo

saúde-doença, na ampliação do conhecimento que tem sobre si mesmas, em como podem

fazer para melhorar seus quadros de saúde e bem-estar aliados aos saberes e práticas das

rezadeiras, contribuir para divulgação da importância que as rezadeiras desempenham em

sociedade, na construção/ampliação dos estudos científicos sobre a temática e também

benefícios para a sociedade, visto que muitas pessoas recorrem a este saber como forma de

cura.

Os riscos mínimos que o participante da pesquisa estará exposto são: possíveis

constrangimentos ao responder questões que levem a reflexões pessoais e possam gerar algum

tipo de desconforto; invasão da privacidade; tomar o tempo dos sujeitos ao responderem a

entrevista; a gravação de áudio para transcrição das falas e a divulgação de imagem por meio

de registros fotográficos. Esses riscos serão minimizados pela garantia: do acesso aos

resultados da pesquisa; de local reservado e liberdade para não responder questões

constrangedoras; assegurar a confidencialidade e a privacidade, a proteção da imagem e a não

estigmatização, garantindo a não utilização das informações em prejuízo das pessoas e/ou das

comunidades. Para manter o sigilo e o respeito ao participante da pesquisa, apenas a discente

Edione Rodrigues Batista aplicará o questionário e somente a discente e o pesquisador

responsável poderão manusear e guardar os questionários.

Os dados coletados serão, ao final da pesquisa, armazenados em CD-ROM e caixa

arquivo, guardada por no mínimo cinco anos sob a responsabilidade do pesquisador

responsável Edione Rodrigues Batista na secretaria do Programa de Pós-Graduação em

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Ciências Sociais e Humanas, a fim de garantir a confidencialidade, a privacidade e a

segurança das informações coletadas, e a divulgação dos resultados será feita de forma a não

identificar os participantes e o responsável.

Você ficará com uma via original deste TCLE e toda a dúvida que você tiver a

respeito desta pesquisa, poderá perguntar diretamente para o pesquisador Edione Rodrigues

Batista no endereço Campus Central da UERN, FAFIC - Setor III - BR 110 - KM 46, Av.

Prof. Antônio Campos, S/N, Bairro Costa e Silva, CEP. 59.625-620, Mossoró-RN, Tel: (84)

3312-2128. Dúvidas a respeito da ética desta pesquisa poderão ser questionadas ao Comitê de

Ética em Pesquisa (CEP-UERN) – Campus Universitário Central - Centro de Convivência. BR 110,

KM 48 Rua: Prof. Antônio Campos, S/N, Costa e Silva. Tel: (84) 3312-7032. e-mail: [email protected]

CEP 59.610-090.

Você não terá nenhum custo ou quaisquer gratificações financeiras por sua

participação na pesquisa. Os dados coletados farão parte do nosso trabalho, podendo ser

divulgados em eventos científicos e publicados em revistas nacionais ou internacionais. O

pesquisador estará à disposição para qualquer esclarecimento durante todo o processo de

desenvolvimento deste estudo. Após todas essas informações, agradeço antecipadamente sua

atenção e colaboração.

Consentimento Livre Concordo em participar desta pesquisa “A RELAÇÃO ENTRE QUEM REZA E

QUEM É CURADO: cartografia dos atos da reza e da crença”. Declarando, para os

devidos fins, que fui devidamente esclarecido quanto aos objetivos da pesquisa, aos

procedimentos aos quais serei submetido (a) e dos possíveis riscos que possam advir de tal

participação. Foram garantidos a mim esclarecimentos que venham a solicitar durante a

pesquisa e o direito de desistir da participação em qualquer momento, sem que minha

desistência implique em qualquer prejuízo a minha pessoa ou a minha família. Autorizo

assim, a publicação dos dados da pesquisa, a qual me garante o anonimato e o sigilo dos

dados referentes à minha identificação.

______________________, ______/_______/_______.

__________________________________________

Assinatura do Pesquisador

___________________________________________

Assinatura do Participante

Edione Rodrigues Batista (Pesquisadora Responsável) - Discente do Curso de Pós-Graduação em

Ciências Sociais e Humanas - PPGCISH, da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte –

UERN, Campus Mossoró, no endereço Rua Professor Antônio Campos, s/n, BR 110, km 48, Costa e

Silva, CEP. 59.625-620, Tel: (84) 3312-2128.

Prof Drª. Karlla Christine Araújo Souza (Orientadora da Pesquisa) - Curso de Pós-Graduação em

Ciências Sociais e Humanas - PPGCISH, da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte –

UERN, Campus Mossoró, no endereço Rua Professor Antônio Campos, s/n, BR 110, km 48, Costa e

Silva, CEP. 59.625-620, Tel: (84) 3312-2128.

Comitê de Ética em Pesquisa (CEP-UERN) - Campus Universitário Central - Centro de

Convivência. BR 110, KM 48 Rua: Prof. Antonio Campos, S/N, Costa e Silva.Tel: (84) 3312-7032.

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ANEXO B – TCLE PARA O PÚBLICO

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO – TCLE

Esclarecimentos

Este é um convite para você participar da pesquisa “A RELAÇÃO ENTRE QUEM

REZA E QUEM É CURADO: cartografia dos atos da reza e da crença” coordenada pela

Profª. Drª. Karlla Christine Araújo Souza e que segue as recomendações das resoluções

466/12 e 510/16 do Conselho Nacional de Saúde e suas complementares. Sua participação é

voluntária, o que significa que você poderá desistir a qualquer momento, retirando seu

consentimento sem que isso lhe traga nenhum prejuízo ou penalidade.

Caso decida aceitar o convite, você será submetido (a) a uma entrevista

semiestruturada com algumas questões norteadoras a falar de sua relação com o saber da

rezadeira, contemplando os motivos que o (a) fazem buscar as rezadeiras como forma de cura

e os sentimentos envolvidos nesse processo. Caso aceite participar da pesquisa, será gravado

áudio da entrevista, bem como o registro fotográfico. A responsabilidade de aplicação é de

Edione Rodrigues Batista, graduada em Enfermagem e Mestranda do Programa de Pós-

Graduação em Ciências Sociais e Humanas, do Campus Avançado de Mossoró, da

Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Este é um estudo baseado em uma

abordagem qualitativa, utilizando a abordagem da cartografia de Boaventura de Souza Santos,

bem como escuta sensível e observação participante.

Essa pesquisa tem como objetivo geral: “conhecer o perfil da população que busca a

cura através das rezadeiras”. E como objetivos específicos: apresentar os motivos que levam

as pessoas a buscarem as rezadeiras; identificar a relação existente entre rezadeiras e

população; conhecer as crenças envolvidas na prática da benzeção e compreender como se dá

o processo de cura.

A pesquisa terá como benefícios a possibilidade de gerar reflexões que contribuirão

para as pessoas terem uma melhor compreensão dos fenômenos que permeiam seu processo

saúde-doença, na ampliação do conhecimento que tem sobre si mesmas, em como podem

fazer para melhorar seus quadros de saúde e bem-estar aliados aos saberes e práticas das

rezadeiras, contribuir para divulgação da importância que as rezadeiras desempenham em

sociedade, na construção/ampliação dos estudos científicos sobre a temática e também

benefícios para a sociedade, visto que muitas pessoas recorrem a este saber como forma de

cura.

Os riscos mínimos que o participante da pesquisa estará exposto são: possíveis

constrangimentos ao responder questões que levem a reflexões pessoais e possam gerar algum

tipo de desconforto; invasão da privacidade; tomar o tempo dos sujeitos ao responderem a

entrevista; a gravação de áudio para transcrição das falas e a divulgação de imagem por meio

de registros fotográficos. Esses riscos serão minimizados pela garantia: do acesso aos

resultados da pesquisa; de local reservado e liberdade para não responder questões

constrangedoras; assegurar a confidencialidade e a privacidade, a proteção da imagem e a não

estigmatização, garantindo a não utilização das informações em prejuízo das pessoas e/ou das

comunidades. Para manter o sigilo e o respeito ao participante da pesquisa, apenas a discente

Edione Rodrigues Batista aplicará o questionário e somente a discente e o pesquisador

responsável poderão manusear e guardar os questionários.

Os dados coletados serão, ao final da pesquisa, armazenados em CD-ROM e caixa

arquivo, guardada por no mínimo cinco anos sob a responsabilidade do pesquisador

responsável Edione Rodrigues Batista na secretaria do Programa de Pós-Graduação em

Page 110: SABERES, CRENÇAS E REZAS QUE CURAM: a relação entre quem ...

110

Ciências Sociais e Humanas, a fim de garantir a confidencialidade, a privacidade e a

segurança das informações coletadas, e a divulgação dos resultados será feita de forma a não

identificar os participantes e o responsável.

Você ficará com uma via original deste TCLE e toda a dúvida que você tiver a

respeito desta pesquisa, poderá perguntar diretamente para o pesquisador Edione Rodrigues

Batista no endereço Campus Central da UERN, FAFIC - Setor III - BR 110 - KM 46, Av.

Prof. Antônio Campos, S/N, Bairro Costa e Silva, CEP. 59.625-620, Mossoró-RN, Tel: (84)

3312-2128. Dúvidas a respeito da ética desta pesquisa poderão ser questionadas ao Comitê de

Ética em Pesquisa (CEP-UERN) – Campus Universitário Central - Centro de Convivência. BR 110,

KM 48 Rua: Prof. Antônio Campos, S/N, Costa e Silva. Tel: (84) 3312-7032. e-mail: [email protected]

CEP 59.610-090.

Você não terá nenhum custo ou quaisquer gratificações financeiras por sua

participação na pesquisa. Os dados coletados farão parte do nosso trabalho, podendo ser

divulgados em eventos científicos e publicados em revistas nacionais ou internacionais. O

pesquisador estará à disposição para qualquer esclarecimento durante todo o processo de

desenvolvimento deste estudo. Após todas essas informações, agradeço antecipadamente sua

atenção e colaboração.

Consentimento Livre Concordo em participar desta pesquisa “A RELAÇÃO ENTRE QUEM REZA E

QUEM É CURADO: cartografia dos atos da reza e da crença”. Declarando, para os

devidos fins, que fui devidamente esclarecido quanto aos objetivos da pesquisa, aos

procedimentos aos quais serei submetido (a) e dos possíveis riscos que possam advir de tal

participação. Foram garantidos a mim esclarecimentos que venham a solicitar durante a

pesquisa e o direito de desistir da participação em qualquer momento, sem que minha

desistência implique em qualquer prejuízo a minha pessoa ou a minha família. Autorizo

assim, a publicação dos dados da pesquisa, a qual me garante o anonimato e o sigilo dos

dados referentes à minha identificação.

______________________, ______/_______/_______.

__________________________________________

Assinatura do Pesquisador

___________________________________________

Assinatura do Participante

Edione Rodrigues Batista (Pesquisadora Responsável) - Discente do Curso de Pós-Graduação em

Ciências Sociais e Humanas - PPGCISH, da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte –

UERN, Campus Mossoró, no endereço Rua Professor Antônio Campos, s/n, BR 110, km 48, Costa e

Silva, CEP. 59.625-620, Tel: (84) 3312-2128.

Prof Drª. Karlla Christine Araújo Souza (Orientadora da Pesquisa) - Curso de Pós-Graduação em

Ciências Sociais e Humanas - PPGCISH, da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte –

UERN, Campus Mossoró, no endereço Rua Professor Antônio Campos, s/n, BR 110, km 48, Costa e

Silva, CEP. 59.625-620, Tel: (84) 3312-2128.

Comitê de Ética em Pesquisa (CEP-UERN) - Campus Universitário Central - Centro de

Convivência. BR 110, KM 48 Rua: Prof. Antonio Campos, S/N, Costa e Silva.Tel: (84) 3312-7032.

e-mail: [email protected] / CEP 59.610-090.

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ANEXO C – PARECER CONSUBSTANCIADO DO CEP

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