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Paulo Cesar dos Reis

aberes Eruditos e Práticas de Navegar A constituição do Homem Moderno Português

_______________________

Edição eletrônica

ISBN 978-85-910818-1-3

Niterói Paulo Reis Editor

2009

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Dedico este trabalho as pessoas mais importantes da minha vida......

À Bianca companheira de todas as horas e momentos, minha fonte inesgotável de inspiração e meu eterno amor. Aos meus filhos Guilherme e Pedro Arthur que enchem minha vida de luz e alegria. Aos meus pais que mesmo longe sempre me apoiaram e me fizeram prosseguir.

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umário

06

09. O intelectual e a cultura erudita ibérica: saberes e ciências em uma região de fronteira

36. Bravos Lusitanos: soldados de Deus, Guerreiros do Mar e Homens de Negócio

53. O Movimento Acadêmico-erudito português: da reforma humanista da Universidade à ascensão da nova escolástica 71. 73.

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6

O Homem Renascentista lusitano difere-se dos outros

cristãos europeus pelo seu espírito de aventura. Inquieto,

inconformado, aventureiro.... Um ser que buscou o mar como fonte de

riquezas e inspiração ao superar a querela entre o fantástico e o real.

Os saberes eruditos foram contrastados, medidos, discutidos e

apreciados por estes novos homens que desenvolveram novos saberes

e práticas intelectuais em um mundo que transcendeu a lógica

medieval ao constituir o Renascimento enquanto um movimento de

ruptura entre o antigo e o moderno.

Assim o lusitano foi o pioneiro nos movimentos de superação

da cultura medieval europeia ao colocar os ideais de liberdade e

individualidade como norteadores das políticas de Estado, reveladas

nas navegações oceânicas que tiveram como paradigma os chamados

saberes do mar.

Por outro lado, a Universidade Portuguesa desempenhou

papel fundamental na manutenção destes ideais, ao abrigar uma série

de intelectuais ligados ao movimento humanista de contestação dos

valores e práticas da sociedade europeia medieval. Estes homens de

saber aguçado foram o esteio ideológico e cultural deste movimento

mais amplo e geral o qual denomino de Renascimento lusitano.

Este livro traz reflexões que foram iniciadas no ano de 2004,

época em que desenvolvia minha dissertação de mestrado sobre o

papel dos intelectuais na formação de um pensamento técnico-

científico ilustrado no Brasil setecentista, a qual em seu capítulo inicial

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versava sobre o processo de constituição do erudito português

moderno. Capítulo este retirado da referida dissertação e,

devidamente, guardado para reflexões futuras.

Ao longo destes anos, minhas preocupações e reflexões

passaram do intelectual Luso-brasileiro do século XVIII para o

processo de constituição do pensamento erudito português do

Renascimento. Assim, minhas ideias foram adensadas e ganharam

alguns contornos interessantes devido a novas leituras, comentários e

sugestões de colegas e alunos, que ouviram e opinaram sobre o tema

que ora desenvolvo neste ensaio. Dividi este livro em três partes

complementares e dialógicas entre si, a saber:

CAPÍTULO I - O INTELECTUAL E A CULTURA ERUDITA IBÉRICA: SABERES E

CIÊNCIAS EM UMA REGIÃO DE FRONTEIRA

Traz as discussões que caracterizaram o reino de Portugal

como precursor do pragmatismo científico, que foi uma das forças

motrizes do processo de revitalização europeia ou Renascimento. A

idéia central deste capítulo está no processo de emergência do

intelectual português, a partir do encontro de culturas gerado pela

ocupação islâmica da região, caracterizando, assim, Portugal enquanto

fronteira cultural entre os saberes eruditos ocidentais e orientais.

CAPÍTULO II - BRAVOS LUSITANOS: SOLDADOS DE DEUS, GUERREIROS DO

MAR E HOMENS DE NEGÓCIO

Os Descobrimentos entendidos como um movimento de

libertação do homem e da sociedade lusitana que ampliam o olhar

para além do horizonte ao descortinar novos mundos, saberes e

homens. Os saberes do mar são constituídos através da prática

cotidiana, da lógica experiencialista do homem lusitano.

CAPÍTULO III - O MOVIMENTO ACADÊMICO-ERUDITO PORTUGUÊS: DA

REFORMA HUMANISTA DA UNIVERSIDADE À ASCENSÃO DA NOVA

ESCOLÁSTICA

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A Universidade enquanto locus agregador dos saberes

eruditos, desempenhou papel crucial no processo de consolidação dos

descobrimentos marítimos lusitanos. Se por um lado os humanistas

utilizaram a Universidade como meio de concretização do ideal de

libertação do homem através do conhecimento por outro, os

tridentinos, ligados à Contra-Reforma, utilizaram a Universidade como

centro de disseminação do ideal de vida cristão-europeu, que ganhou

espaço através das intervenções dos jesuítas.

Sendo assim, convido-o a debruçar-se sobre os meandros da

constituição do intelectual português, que do quatrocentos ao

seiscentos hegemonizou o pensamento técnico-científico europeu ao

repensar o mundo e as coisas que o cercam de maneira prática,

medida, testada e humanizada.

Paulo César dos Reis

Niterói, 21 a 23 de abril de 2009

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O INTELECTUAL E A CULTURA ERUDITA

IBÉRICA: SABERES E CIÊNCIAS EM UMA

REGIÃO DE FRONTEIRA

A emergência do intelectual europeu como um tipo

sociológico novo e revolucionário está atrelada aos diversos processos

de revitalização da cidade medieval como expôs Jacques LE GOFF1 em

obra clássica sobre o tema, que ora tomo para reflexão.

O intelectual surgiu em um contexto histórico sui generis, em

que pese o deslocamento da atenção das instituições para os homens,

do campo das ideias para as estruturas sociais concretas, as práticas e

as mentalidades, situando o fenômeno do intelectual medieval na

longa direção rumo a modernização europeia.

Mariateresa F. BROCCHIERI,2 em livro organizado por LE GOFF,

traçou uma tipologia do intelectual a partir do significado da palavra

1Cf. LE GOFF, Jacques. Os intelectuais na Idade Média. 3. ed. Trad. Maria Julia Goldwasser. São Paulo: Editora Brasiliense, 1993. 2 Cf. BROCCHIERI, Mariateresa Fumagalli Beonio. O Intelectual. In: LE GOFF, Jacques. O Homem Medieval. Lisboa: Editorial Presença, 1989. passim.

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no contexto dos séculos XI-XIII, colocando o conceito moderno de

intelectual, forjado no século XIX, na França, para analisar a figura do

erudito medieval que, acrescento, buscou incessantemente o

conhecimento erudito como instrumento de autonomia e

individualização filosófica.

BROCCHIERI continua sua análise afirmando que, para o

desenvolvimento deste erudito foi crucial a adoção do latim, como

língua universal (escrita), além do papel exercido pelas instituições

monásticas que ofereceram todo um instrumental de erudição

necessária para o desenvolvimento do intelectual entre o final do

século XI e início do XIII.

Assim pode-se afirmar que o intelectual deu os contornos mais

definitivos ao Renascimento, entendido enquanto um movimento

erudito, amplo e geral, significando, em essência, a liberdade e

individualização do homem e da sociedade diante da moral cristã

medieval (hierarquizadora e mágica).

A emergência do intelectual como tipo sociológico novo,

pressupôs a divisão do trabalho urbano, da mesma forma que a origem

das instituições universitárias pressupôs um espaço cultural comum,

onde essas novas “catedrais do saber” puderam emergir, prosperar e

confrontar-se livremente em uma Europa que começava a tomar

consciência de si, enquanto unidade cultural e ideológica.

O século XIII foi, por excelência, o ápice deste processo de

emergência do intelectual. Houve uma intensa efervescência artístico-

cultural devido aos contatos com as culturas andaluza e bizantina que

renderam uma série de modificações e adaptações filosóficas, culturais

e econômicas na Europa cristã.3

Este movimento estava atrelado, portanto, ao processo

3Cf. LE GOFF, Jacques. Idem., pp. 20-27.

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conjuntural da Europa em que pese, segundo Frédéric MAURO,4 a

própria invenção da Europa enquanto espaço político da cristandade

na Baixa Idade Média (XI-XV). Cabe frisar que um dos fatores que

gerou esta tomada de sentido de conjunto foi a revitalização

econômica. Ocorreu, neste período, um duplo desenvolvimento

econômico europeu: interno e externo.

1. Desenvolvimento econômico interno

Estabelecido a partir da recomposição ou criação de rotas comerciais

de médio e longo curso, a mais significativa e agregadora foi a Liga

Hanseática, que estruturou todo comércio do Mar do Báltico e do Mar

do Norte a partir das demandas colocadas pela reabertura

mediterrânica realizada nas cidades itálicas (Gênova e Veneza) que

voltaram a explorar o comércio de especiarias com portos orientais

(Alexandria, Constantinopla e Trípoli). A cidade germânica de Lübeck

foi o centro articulador da Liga, que contou com, aproximadamente, 90

cidades agrupadas em um grande sistema mercantil.

A partir destes sistemas de rotas marítimas e terrestres, surgiu

uma série de entroncamentos, pontos de passagem de mercadorias que

deram origem a diversas feiras que se organizaram nos burgos. A mais

famosa foi a feira de Champagne nos domínios carolíngios. O processo

de revitalização das cidades tem nas rotas comerciais o seu maior

ponto de apoio e, no burguês, o seu ator social mais importante.

2. Desenvolvimento econômico externo

O que moveu estes homens de negócio foi o desejo de restabelecer as

antigas rotas comerciais romanas com o Oriente, para obtenção de

produtos exóticos, que simbolizavam poder e refinamento da

aristocracia, segundo acepção da Sociedade de Corte delineada por

4 Cf. MAURO, Frédéric. A expansão européia. Lisboa: Editorial Estampa, 1995.

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Norbert ELIAS.5 O comércio de produtos orientais foi o grande

dinamizador das cidades mediterrânicas, principalmente as que

margeiam o Atlântico, isto é, as cidades lusitanas que serviam de

entrepostos para a rota das especiarias.

Quentin SKINNER6 coloca que as cidades itálicas possuíam o

controle do comércio mediterrânico (Gênova e Veneza), contudo a

riqueza que derivou deste monopólio rendeu diversas invasões

realizadas pelos imperadores do Sacro Império pelo domínio do

Regnum Italicum. Além destes desejos de restauração do antigo

Imperium Mundi pelos governantes francos e germânicos, a

fragmentação do poder na região jogou as diversas cidades umas

contra outras em uma luta fratricida que levou ao desgaste militar e

financeiro.

As cidade lusitanas, que eram entrepostos do comércio de

especiarias, conseguiram um acúmulo de capitais e uma precoce

centralização do poder que favoreceu no século XIV a iniciativa das

grandes navegações. Pelo menos desde os tempos de D. Dinis (N.1261-

R.1279-F.1325) Portugal passou por uma série de transformações que

contribuíram para o fortalecimento do Poder Régio e da burguesia

mercantil.7

Portanto, o acúmulo de capitais favorecido pela reestruturação

econômica europeia interna (XI-XIII), de maneira geral, fortaleceu a

burguesia das cidades mercantis que buscaram ampliar seus mercados

através de novas rotas e produtos.

Criou-se a necessidade peremptória de expansão, dinamização

e modernização dos sistemas comerciais e financeiros em um mundo

5ELIAS, Norbert. A sociedade de corte. Lisboa: Editorial Estampa, 1987. v. 1. 6 SKINNER, Quentin. As Fundações do Pensamento Político Moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 7 A criação da universitas lusitana (1290), da Ordem de Cristo (1319) e o reforço da legislação afonsina são feitos da administração de D. Dinis que se sagrou como Rei Lavrador e Poeta.

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novo que se abria para o europeu. Aos poucos o cosmopolitismo

tomou os espaços do isolacionismo e das ortodoxias da sociedade

medieval, sendo um dos esteios da mudança/transformação europeia,

em outras palavras, a revitalização econômica significou, na prática,

um repensar da sociedade em todos os seus níveis: social, político,

filosófico, religioso, administrativo etc.

Esta revitalização econômica é reveladora dos desejos da

burguesia mercantil em tomar para si o controle do processo de

abertura/mundialização europeia, que se consolidou a partir do século

XIV, tendo como síntese o périplo lusitano rumo às Índias Orientais.

Foi através do longo translado oceânico que os portugueses romperam

as franjas atlânticas em busca de riquezas fantásticas e do reino cristão

perdido, de Preste João.8

A África, primeiro espaço de conquista, pode ser colocada

como síntese deste desejo lusitano por riquezas, poder e controle sobre

os mares, as gentes e os mercados.

Aliado aos desejos da burguesia em restaurar a rota comercial

para as Índias Orientais, há o projeto da Igreja de enfrentamento

ideológico dos infiéis maometanos que sufocavam as fronteiras cristãs

desde o século VIII. O ideal cruzadístico de libertação cristã é colocado

como a força motriz ideológica da chamada Reconquista ou Cruzada

interna. É justamente no contexto deste ideal que surgiu o reino de

Portugal: combativo, guerreiro, emancipador e libertador.

O intelectual foi a cabeça-de-lança dos projetos de

modernização europeia (Igreja e Burguesia) ao configurar-se como

elemento transformador da sociedade e, como tal, precisava ganhar

mais espaço dentro desta Europa em renovação ou revitalização.

8Havia uma lenda de um reino cristão perdido entre a Ásia e África, seu rei chamava-se Preste João. Este reino além de ser muito rico, poderia ser um valioso aliado contra os infiéis maometanos. O fato é que este reino nunca existiu, contudo, está presente no chamado maravilhoso medieval. (Nota do Autor)

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A cidade, espaço privilegiado para as invenções, renovações e

adaptações dos mais diversos tipos de conhecimentos, foi o palco

privilegiado para o crescente movimento de vulgarização dos saberes

eruditos. Como expõe LE GOFF para o caso da afirmação dos

intelectuais enquanto agentes de transformação destes renovados

espaços sociais, cabendo aos mesmos:

(…) fazer-se reconhecer como uma corporação entre as outras, uma universitas, mas uma corporação de um tipo especial e superior, a

Universidade por excelência.9

LE GOFF trabalhou com a idéia de um processo de chegada

deste novo tipo de conhecimento erudito através de um circuito de

mosteiros especializados em traduções de documentos religiosos,

artísticos e científicos que circularam por toda Europa. Estes mosteiros

localizavam-se hegemonicamente na Península Ibérica que

encontrava-se, em quase sua totalidade, sob o domínio islâmico. Este

circuito de circulação dos saberes eruditos constituiu-se a partir do

século IX e teve seu ápice no século XIII com o advento das

universidades.

Como afirmei anteriormente, só foi possível a instauração

deste circuito devido ao processo de reestruturação do comércio de

médio e longo curso que proporcionaram a revitalização das cidades a

partir dos jogos das trocas.10 As mercadorias circulavam com maior

velocidade, intensidade e confiabilidade, assim como os homens e as

idéias que igualmente circulavam nesta Europa em transição. Cabe frisar, novamente, que o burguês foi o elemento

revolucionário neste longo caminho rumo a modernização europeia, ao

9Cf. LE GOFF, Jacques. O Apogeu da Cidade Medieval. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 200. 10BRAUDEL, Fernand. Civilização Material, Economia e Capitalismo: séculos XV-XVIII. São Paulo: Martins Fontes, 1996. v. 2 (Os Jogos das Trocas).

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condicionar todo o processo de mudança à idéia de liberdade em seu

sentido amplo, isto é, totalizante e geral, onde não cabia mais

ortodoxias ou proibições acerca do ensino e aprendizagem em todos os

níveis do saber (técnico e erudito). O saber não é mais uma questão

divina, uma dádiva de Deus é, por certo, um meio de sobrevivência do

europeu diante do mundo novo que se abre, mais competitivo e

eclético.

A individualidade foi outro conceito chave para este processo

de mudanças do homem citadino que buscava, incessantemente, o

conhecimento como meio de emancipação filosófica e ideológica. Esta

individualidade tornou-se patente nos ideais do Humanismo

Renascentista que, segundo Quentin SKINNER,11 deu ao homem um

novo sentido da vida e do mundo, ampliando o escopo de visão ao

propor uma nova idéia de sociedade cujo princípio se encontrava na

vir virtutis de Francesco Petrarca (1304-1374), isto é, o homem como

potência transformadora, libertando-se das ortodoxias colocadas pela

Igreja como meio de salvaguarda da moral cristã.

Liberdade e Individualidade cingem-se no movimento

Humanista que foi concebido a partir da segunda metade do trezentos

na Península Itálica e que somente chegou a Portugal por volta de

1485 através do humanista itálico Cataldo Sículo.

Segundo Paul O. KRISTELLER este movimento ganhou força a

partir da busca incessante pelos textos clássicos nas bibliotecas

monásticas, principalmente Cícero que segundo Petrarca, foi o grande

formulador político da antiguidade clássica.

Principal herdeiro do pensamento político de Petrarca Colucci

Salutati12 foi responsável, por exemplo, pela (re)descoberta das Cartas

11 SKINNER, Quentin., Idem. 12Salutatti é considerado um dos principais intelectuais do Renascimento itálico. Desempenhou papel crucial na formação de um corpo burocrático altamente qualificado na cidade de Florença que proporcionou as condições objetivas para o

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de Família de Cícero, na biblioteca de Milão em 1392. Há um sem-

número de humanistas que esmiuçaram as bibliotecas em busca de

textos gregos e romanos, que convencionou-se chamar de Classicismo,

isto é, a releitura e adaptação da cultura greco-romana como meio de

superação da cultura herética islamizada.

A primeira iniciativa humanista em relação à interpretação e

compreensão dos clássicos foi o desenvolvimento de um estilo não

anacrônico de arte. A primeira cidade em que se realizou este

movimento crítico foi Florença a partir da segunda metade do século

XIV. Inicialmente na organização pública da cidade através do

chamado Ciclo de Salutati e na esteira, as artes representadas por

Ghiberti e Donatello (pintura e escultura) e Brunelleschi (arquitetura).

CATEDRAL DE FLORENÇA - DUOMO DE SANTA MARIA DEL FIORE (1418)13

A Cúpula ou Duomo da Catedral foi concebida por Brunelleschi que propôs uma série de inovações revolucionária ao colocar a idéia de infinitude espacial em sua concepção artístico-filosófica. A cúpula representou abertura do europeu ao mundo novo, isto é, a capacidade intrínseca do homem de inventar, inovar e criar incessantemente. As cidades e seus intelectuais foram tomados por este espírito de mudança, transformações.

fortalecimento da burguesia enquanto grupo dirigente dos processos de transformação desta cidade que é o maior exemplo de cultura renascentista. 13Brunelleschi e Ghiberti foram os encarregados da construção da Catedral.

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O maior símbolo deste ideal renascentista e humanista

florentino é a Catedral de Santa Maria del Fiore, que é, sem dúvida, a

construção cristã melhor elaborada e que sintetizou o ideal

emancipador deste novo homem, que buscou sua liberdade e

individualização em todos os campos do saber.

Buscou-se renovar e iluminar o estilo romano e não românico

(Medieval), por isto fazia-se necessária a observação, medição e estudo

aprofundado dos edifícios romanos in loco. Não é a simples cópia de

colunas ou aquedutos, mas a releitura, adaptação, conformação de

estilos, métodos e formas que foram transformadas de acordo com as

necessidades que se colocaram no cotidiano destas novas cidades

cristãs em ebulição social.

No campo da pintura algo semelhante ocorreu a partir dos

afrescos de Mantegna que foram logo seguidos pelos florentinos

Pollaiuolo e Botticelli.

Michelangelo e Da Vinci simbolizaram o auge deste processo

em que pesem as devidas capacidades de transformar/materializar em

telas, esculturas e afrescos o discurso humanista de liberdade,

individualidade e classicismo.

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Pormenor do afresco da Capela Sistina (Michelangelo) – Deus tocando o homem (Adão), com a

mão direita, simbolizando a passagem de poder através da soberania divina. A figura feminina

(Eva) envolta no braço esquerdo de Deus significa o início da humanidade, isto é, o ato divino

da multiplicação dos homens, após presenteá-los com a soberania da terra. (N.A)

Neste pormenor de Michelangelo revela-se o discurso

humanista de inversão da lógica estruturante do mundo e do universo

em que pese o homem ser feito à imagem e semelhança de Deus

(Conceitualismo). Esta lógica foi superada pelo seu inverso, Deus é

feito à imagem e semelhança do homem (Naturalismo), humanizando-

o e transformando-o em um ser real e racional em contrapartida ao ser

mágico e fantástico da tradição da Antiguidade e Medievalidade. O

Teocentrismo da filosofia cristã deu lugar ao Antropocentrismo do

Humanismo Renascentista sem, contudo, a perda da idéia de Deus.

Neste processo de emancipação do homem europeu, as

corporações de ofício, incluindo a dos estudantes e professores,

ganharam maior autonomia e consequentemente, força dentro das

comunas. A cidade foi o espaço de libertação do homem europeu que

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verteu sua força criativa para a superação da estrutura filosófica e

política medieval: Mágica e Hierarquizadora.

De maneira próxima e complementar, Vitorino Magalhães

GODINHO14 trabalhou a idéia da emergência, na Península Ibérica, de

um tipo de conhecimento prático ligado às dinâmicas do comércio

marítimo (mediterrânico exterior e atlântico) no que Luís Filipe

BARRETO chamou de saberes do mar.15

A Península Ibérica destacou-se, neste processo, por ser uma

região de contato mais imediato com a cultura erudita arábico-

islâmica, que dos séculos VIII-XI, demonstrou-se mais dinâmica e

complexa que a cultura erudita europeia.

Recobrou-se o manancial dos saberes da Antiguidade

(Crescente Fértil)16 através da ação direta e dirigente do Estado

islâmico que, a partir da fundação da cidade de Bagdá em 762, pelo

Califa Al-Mansur (762-775), verteram-se, para esta região um sem

número de intelectuais de todos os cantos deste fabuloso império,

principalmente da região do Planalto Iraniano onde outrora se

constituiu o Império Persa.

A conquista desta região foi importante devido ao

deslocamento dos últimos filósofos da escola platônica grega, na

altura da ocupação bizantina da Grécia.17 A consequência deste

14 Cf. GODINHO, Vitorino Magalhães. Mito e Mercadoria, Utopia e Prática de Navegar– séculos XVIII-XVIII. Lisboa: DIFIEL, 1991. 15 BARRETO, Luís Filipe. Caminhos do Saber no Renascimento Português: Estudos de história e teoria da cultura. Porto: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1986. 16Região situada entre a Península Arábica, Norte da África, Planalto Iraniano e Índia onde se desenvolveram as primeiras sociedades complexas. 17A Grécia foi anexada ao Império Romano no ano de 146 a.C, permanecendo como província até o ano de 324 d.C. A partir deste momento surge o Império Bizantino o qual a Grécia fez parte. A partir de 1204 eruditos bizantinos começam e circular pelas penínsulas Itálica e Ibérica. Com a chegada dos otomanos no século XIV este fluxo de intelectuais acentua-se até a conquista definitiva deste Império em 1453 com a famosa tomada da cidade capital Constantinopla. Muitos eruditos bizantinos foram refugiar-se na Pérsia onde reconstituíram a Academia Platônica de Ciências e Filosofia a partir dos séculos V e VI. (N.A)

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deslocamento foi a preservação dos escritos eruditos gregos em sua

versão original.18

Para Bernard LEWIS,19 a preocupação central dos califas

abássidas de Bagdá foi a constituição de uma cultura de utilização

prática do saber erudito, a partir da recuperação e ampliação destes

conhecimentos que, praticamente desapareceram. Em parte pela

intolerância cristã (bizantinos e europeus) e, em parte, pela própria

dissolução dos antigos impérios (babilônico, egípcio, persa, grego etc).

A conformação destes saberes, que foram centralizados em

Bagdá, ocorreu a partir do pragmatismo desenvolvido pelos islâmicos.

O saber útil, isto é, todo conhecimento que contribui para a melhoria

da vida das pessoas e da sociedade, seja em que área for, deve ser

preservado e utilizado em benefício de todos.

A ocupação e dominação arábico-islâmica foram realizadas

dentro destes pressupostos ideológicos de convívio pacífico e

colaborativo com a cultura dominada. Para o caso da Península Ibérica

este processo ocorreu a partir de três momentos distintos:

1. Emirado dependente (714-756). O território foi convertido em uma

área do Islã sob a tutela direta dos califas omíadas de Damasco.

2. Emirado independente (756-929). Constituído a partir da fuga do

último membro da dinastia omíada de Damasco Abd al-Rahman I, que

perseguido pelos abássidas refugiou-se em al-Andaluz,20 onde foi

18 A filosofia Grega foi amplamente utilizada na Europa cristã. Contudo, os diferentes processos de tradução do grego para o latim foram realizados mediante uma espécie de censura papal, ocorrendo distorções e reinterpretações a luz da moral cristã. Para o caso islâmico as traduções foram feitas preservando-se as idéias originais dos autores como Platão, Aristóteles e Galeno. (N.A) 19 LEWIS, Bernard. O Oriente Médio: do advento do cristianismo aos dias de hoje. Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,1996. 20 Al Andaluz, nome dado a uma Parte da Península Ibérica, que foi conquistada pelos islâmicos entre 711 e 1492. Há uma série de hipóteses que cercam as origens etimológicas de Al Andaluz, contudo, a idéia hegemônica é a nomenclatura dada pelos vândalos no período da conquista da região romana da Baética entre 409 - 429 (N.A).

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proclamado Emir de Córdoba.21

3. Califado de Córdoba (929-1031). Iniciado quando o Emir Abd al-

Rahman III foi proclamado Califa em 929, o que representou a

independência religiosa e política de al-Andaluz.

Por consequência da presença islâmica, a Península Ibérica

transformou-se numa espécie de fronteira móvel cultural,22 que se

tornou mais visível nas esferas econômica e técnico-científica. Esta

mobilidade entre os limites do mundo andaluz e do mundo cristão

provocou uma série de acontecimentos que contribuíram, diretamente,

para a emergência do espírito empreendedor do homem europeu,

sobretudo o citadino, revelado a partir de três eixos do conhecimento:

1. As questões científico-filosóficas

A releitura de filósofos gregos a partir de traduções árabes que se

caracterizavam por estabelecerem comentários reflexivos sem o

comprometimento com a moral cristã. Os principais autores

recobrados pelas traduções arábico-islâmicas foram: Aristóteles,

Galeno e Hipócrates.

2. As questões financeiro-comerciais

A ampliação do conhecimento aritmético e financeiro, a própria

presença do elemento judeu na economia com seu capital usurário

(rede de empréstimos à juros) e na administração pública. Cabe

21 Em 15 de maio de 756 Abd al Rahman entra em Córdova e funda o emirado omíada da Espanha. 22Portugal constitui-se como o primeiro exemplo de Estado Moderno (Com governo centralizado e estrutura política e econômica bem definidas) a partir da Revolução de Avis (1383-1385) que se caracterizou pela vitória da raia miúda/burguesia citadina. Em consequência os burgueses assumem a vanguarda do Estado português que passou a estruturar-se a partir dos desejos destes setores sociais lusitanos. Assim sendo, o governo português trabalhou, em essência, para o bem destes setores, isto é, para a burguesia que possuía um desejo claro, o lucro incessante. Este lucro advém dos processos de troca de mercadorias: o negócio ou mercancia. Daí a busca por novos mercados e produtos que caracterizam assim, a expansão marítima lusitana. (N.A)

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destacar o papel exercido por diversos intelectuais andaluzes, que

foram de extrema importância no desenvolvimento de uma lógica

Matemática aplicada aos problemas cotidianos, tais como Al-

Khwarizmi (770-840), Al-Biruni (973-1048) e Al-Zargali (1028-1087) entre

muitos outros.

Fator de grande importância para o desenvolvimento

econômico-financeiro europeu foi a adoção do algarismo indo-arábico

nas transações comerciais e financeiras que possibilitaram a

constituição, dentre outras coisas, do sistema contábil de partidas

dobradas.

Segundo MAURO23 a cidade de Veneza foi precursora deste

sistema contábil moderno, além de diversas operações de crédito que

foram utilíssimas para a dinâmica mercantil renascentista. Cabe

citarmos o Tratactus de Computis et Scripturis de Frei Luca Pacioli, que

foi publicado em 1494. Foi o primeiro tratado contábil que expôs o

sistema de partidas dobradas, sem dúvida um divisor de águas entre o

sistema contábil medieval e o sistema contábil moderno.

3. As inovações técnicas na construção civil e náutica

A utilização de novos aparelhos e técnicas de construção civil e náutica

revelados na beleza suntuosa das mesquitas e dos prédios públicos,

além do conhecimento e desenvolvimento de aparelhos náuticos como

a bússola e o astrolábio. Cabe destacar, ainda, o incremento da

Geografia (mapas da África, Ásia etc.) e da Astronomia, necessários

para a arte de navegar que foi largamente desenvolvida na Península

Ibérica entre os séculos XIV–XVI. Houve também inovações no setor

produtivo, como o caso da adoção dos moinhos de vento em unidades

agrícolas por praticamente toda a Europa.

Corroborando com as ideias de LE GOFF, é possível afirmar

23MAURO, Frédríc., Idem.

Page 23: saberes eruditos e práticas de navegar

23

que foi a partir da absorção desta cultura “oriental” realizada,

principalmente, na região de al-Andaluz que se estruturaram as bases

da transformação da cultura erudita da Europa dos séculos X–XIII.

A idéia de uma fronteira econômico-cultural, entre o mundo

oriental e o mundo ocidental, revelada na ocupação arábico-islâmica

destes espaços geopolíticos da Europa medieval, confirma a existência

de um circuito complexo de trocas de conhecimento realizada por estas

duas culturas.

Em uníssono com estas concepções, Jacques VERGER24 apontou

para o processo geográfico de alocação dos saberes no medievo entre o

oriente islâmico e o ocidente cristão. A idéia de um deslocamento do

eixo empreendedor do conhecimento erudito do Oriente para o

Ocidente, ocorrido nos séculos X–XIII, é uma questão interessante,

dadas as condições desta fronteira/limite entre estes dois mundos que

se tocam e se confundem, principalmente na Península Ibérica.

A Ciência árabe, a Filosofia grega e a Moral cristã são, segundo

VERGER,25 os mecanismos de concepção do intelectual de tipo moderno

na Europa ocidental e as bases reais e fundamentais para a formação

da universitas enquanto locus agregador de conhecimento de tipo

erudito e renovador.

A constituição da escola ocidental se inscreveu neste processo

de revitalização urbana. Assim sendo, foi no final da Alta Idade Média

(V-X) que as instituições de ensino alocaram-se no interior dos

mosteiros e abadias de acordo com as decisões tomadas pela Igreja que

teve seu ápice no concílio de Latrão III (1179), onde se instituiu a

obrigatoriedade da constituição de escolas “abertas” em todas as

abadias, catedrais e mosteiros.

24 Cf. VERGER, Jacques. Cultura, ensino e sociedade no Ocidente nos séculos XII e XIII. Trad.Viviane Ribeiro. São Paulo: EDUSC, 2001. 25 Idem.

Page 24: saberes eruditos e práticas de navegar

24

Esta escola “aberta” significou, na prática, a possibilidade de

qualquer pessoa (cristã), desde que possuísse cabedal financeiro para

custear as despesas com o estudo, de adentrar o mundo das letras.

O monopólio do saber começava a romper-se de acordo com

os ideais citadinos de liberdade de pensamento expressos,

principalmente, pelos goliardos26 parisienses e por Pedro Abelardo

que, segundo LE GOFF,27 foi o primeiro intelectual europeu moderno.

Os abades e os bispos controlavam quase que exclusivamente

o “aparelho” escolar. O ensino, as letras, os saberes eram privilégios de

clérigos, sendo fundamental a clivagem entre escola monástica,

reservada aos futuros monges, e as escolas urbanas que, em princípio,

eram abertas a todos, inclusive a estudantes que se manteriam laicos.

Com o processo de dinamização das cidades e, por

consequência, a chegada das novas e inovadoras interpretações

arábico-islâmicas da Filosofia “clássica” a partir, principalmente, das

releituras de Aristóteles realizadas por Ibn Rushd (Averróis) e de

Galeno e Hipócrates realizadas por Ibd Sina (Avicena), ocorreu um

processo de transformação dos saberes eruditos no cerne da Europa

Medieval.

A moral cristã foi contestada diante da racionalidade e do

pragmatismo arábico-islâmico, consequentemente, houve a

implementação de um novo método de análise que melhor

interpretasse estes novos saberes e reflexões: A escolástica de Pedro

Abelardo.28

A escolástica baseava-se na releitura dos antigos, nas

26 O conceito de goliardo surgiu em Paris como forma depreciativa que os clérigos usavam para ofender os intelectuais universitários, a partir do mito bíblico do gigante Golias que era a síntese do mal. Com o tempo esta forma pejorativa passou a representar um elogio aos grandes intelectuais que possuíssem um pensamento inovador, avançado. Cf. Jacques, Le Goff. Idem. 27 Cf. LE GOFF, Jacques. Idem. 28 Idem, p.40.

Page 25: saberes eruditos e práticas de navegar

25

“autoridades”, como Aristóteles, Platão, Averróis, Avicena, a Bíblia etc.

Pode-se caracterizar a escolástica a partir de quatro eixos norteadores

que estão representados no quadro abaixo.

ESCOLÁSTICA DE PEDRO ABELARDO

1. O vocabulário. A ênfase é dada no significado das palavras. A escolástica

encontra-se na base da gramática, como exemplo a correspondência entre

Abelardo e Luiza, que é considerada a base da escrita francesa.

2. Dialética. É o conjunto de operações que fazem do objeto do saber um problema

que deve ser exposto, argumentado e defendido.

3. Ratio teológica. A fé iluminada pela razão, segundo Santo Anselmo.

4. O Princípio do debate/discussão quodlibética. Palavra derivada de Quodlíbeto,

proposição ou argumento sustentado a capricho do autor. Coarctada, dito,

resposta, réplica. F. lat. Quodlibet.29

O Intelectual do século XII construiu a idéia de um mundo

novo e de um homem novo. São modernos, porém sem se contrapor

aos antigos (clássico). Há, por certo, uma releitura dos antigos

realizada por estes “novos homens”, o que não significou uma negação

destes “antigos” e sim uma reinterpretação à luz da razão.

Cabe destacar a escola de Chartres como principal centro

intelectual deste período, tendo João de Salisbury (discípulo de São

Bernardo) como um dos principais intelectuais ao lado de Abelardo.

Segundo LE GOFF a escola de Chartres:

(...) formou sobretudo pioneiros. Em Paris, após as tempestades provocadas por Abelardo, espíritos moderados buscam incorporar aos ensinamentos tradicionais da Igreja tudo que se pudesse tomar de empréstimo aos inovadores sem provocar escândalo. Esta foi principalmente a obra dos bispos Pedro Lombardo e Pedro, o Devorador, que tinha sólida reputação de devorar livros. O livro das sentenças do primeiro, a História Eclesiástica do segundo – exposições sistemáticas de verdades filosóficas e de fatos históricos contidos na

29 D.C.A. (Dicionário Caldas & Aulete) vol. 4. p. 4214.

Page 26: saberes eruditos e práticas de navegar

26

Bíblia – viriam a se tornar os manuais de base para o ensino universitário do século XIII. Através deles, a multidão dos prudentes viria de alguma maneira, se beneficiar das descobertas do pequeno

número dos audaciosos. 30

Estes mestres clérigos releem Platão, Virgílio e Aristóteles no

lugar de textos eclesiásticos, o que proporcionou uma verdadeira

revolução na forma de pensamento da Europa Medieval, além da

constituição de um corpus erudito formado por intelectuais que se

profissionalizaram ao abraçarem o ensino como forma de trabalho,

passando a viver exclusivamente do seu saber.

Os intelectuais do século XII são profissionais porque vendem

a palavra/saber tal qual o comerciante vende sua mercadoria.

Superam a idéia cristã de que a ciência não pode ser vendida, por ser

dádiva de Deus. Assim LE GOFF coloca que, segundo São Bernardo:

[os intelectuais eram] 'vendedores de palavras' e, mais ainda, a acusação de se entregarem a uma atividade sacrílega, a de 'vendedores

da ciência que só a Deus pertence'.31

LE GOFF marcou este caráter profissional e corporativo dos

mestres e estudantes universitários a partir do processo de

transformação profissional, social e institucional deste novo homem

que visou sobremaneira à conquista e exercício do poder.

A palavra/conceito poder coloca-se, neste caso, nas esferas do

domínio da produção intelectual e da formação de um corpus

burocrático qualificado que buscou atender às novas necessidades

práticas que se colocaram para a cristandade, nos campos da

administração eclesial e da res publica, isto é, a cidade enquanto espaço

público (de todos). LE GOFF colocou este novo ofício como a união

30 Idem, p. 56. 31LE GOFF, Jacques. O Apogeu da Cidade Medieval. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 199.

Page 27: saberes eruditos e práticas de navegar

27

entre pesquisa e ensino neste espaço urbano e mercantil.

Para BROCCHIERI os intelectuais medievais enquadram-se no

esquema gramsciano de construção de um bloco histórico a partir da

emergência de uma intelligentsia.32

Acrescento que, numa sociedade ideologicamente controlada

muito de perto pela Igreja e politicamente cada vez mais enquadrada

por uma dupla burocracia: a laica e a eclesiástica, os eruditos da Baixa

Idade Média (XI-XV) são, antes de tudo, intelectuais “orgânicos”, fiéis

servidores da Igreja, do Reino e/ou da Comuna.

Para o caso português os intelectuais foram de fundamental

importância no processo de constituição de uma burocracia reinol

altamente qualificada. A necessidade de criação em 1290 do Estudo

Geral ou universitas lusitana está inserida em um projeto de

modernização e independência intelectual e cultural português frente

aos seus antigos suseranos de Castela.

A universitas lusitana foi criada logo após a consolidação do

Estado Português, sendo o primeiro exemplo de uma Universidade

com caráter nacional, isto é, à serviço de Portugal.

1. OS SABERES ERUDITOS E A FRONTEIRA CULTURAL: O

INTELECTUAL E A CIRCULAÇÃO DAS IDEIAS ARTÍSTICO-

CIENTÍFICAS

Trabalho agora com a questão da produção erudita dos

intelectuais cristãos ou à serviço da cristandade (andaluzes, judeus e

moçarabes) a partir dos processos conjunturais que fizeram da

Península Ibérica a principal porta de entrada destes saberes eruditos

32Cf. BROCCHIERI, M. F. Idem, p. 28 e LE GOFF, Jacques. Idem, passim.

Page 28: saberes eruditos e práticas de navegar

28

renovadores da cultura letrada europeia.

A maior parte dos livros e manuscritos arábico-islâmicos, que

foram vertidos para o latim a partir do século X, saíram das bibliotecas

andaluzas, principalmente, da cidade de Toledo. Estas bibliotecas

ficaram famosas pela diversidade de livros vindos de todas as partes

do domínio islâmico, chegando a contabilizar-se, em sua principal

biblioteca, cerca de 40.000 volumes. As maiores bibliotecas ocidentais

não chegavam a contabilizar mais do que 4.000 volumes.

O trabalho monumental de tradução de obras artístico-

científicas depositadas nestas bibliotecas foi realizado,

hegemonicamente, pelos monges copistas ou por equipes montadas

para este fim. Neste processo destaca-se a figura do abade do mosteiro

cluniacense de Toledo Pedro, o Venerável (1122 - 1156), que montou

uma grande equipe de tradutores (andaluzes, judeus e moçarabes) que

verteram do árabe para o latim, entre outras obras, o Corão.

Para Pedro, o Venerável, o combate ao elemento islâmico

deveria ser dado para além do campo bélico. Era preciso derrotar o

infiel em suas concepções filosófico-religiosas.33

Concordo com LE GOFF que afirmou em seus estudos a

importância de Pedro, o Venerável, como grande combatente cristão

pela superação intelectual da cultura andaluza pela cultura cristã-

europeia. Apesar do elevado número de obras científicas que foram

traduzidas neste mosteiro, a que causou maior impacto para a

cristandade foi, sem dúvida, a primeira tradução latina do Corão.34

Assim, a partir deste movimento, ocorreu uma abertura na

perspectiva de novas leituras ou releituras dos saberes eruditos

(artísticos e científicos), que foram colocados ou recolocados para a

cultura ocidental, através dos intelectuais formados, em sua maioria,

33 Cf. LE GOFF, Jacques. Idem, p. 26. 34 Idem., pp. 45-46.

Page 29: saberes eruditos e práticas de navegar

29

nas escolas catedralícias e que, ao fim e ao cabo, fizeram parte do

processo de gestação das universidades, filhas diletas da cidade, e da

revitalização artístico-cultural europeia a partir do século XII.

Até o século XIII, os mosteiros, principalmente beneditinos,

tiveram um papel essencial nesta busca por este conhecimento erudito

andaluz, dentro da lógica trabalhada por LE GOFF de uma Cruzada

intelectual contra o elemento muçulmano e suas representações

ideológico-culturais.35

Como foi observado, no período circunscrito entre os séculos

VIII-XI, a cultura muçulmana ou andaluza destacava-se da europeia

por sua sofisticação intelectual e sua rede de circulação das

informações, nomes como Averróis, Avicena, Al-Khwarizmi, Al Idrissi

eram comuns nos meios eruditos europeus.

Estes homens de saber aguçado e visão ampla do mundo

formaram a base de um tipo inovador de conhecimento científico, que

foi de extrema utilidade no processo de dinamização da Cultura e da

Economia europeia, que se tornou visível a partir do período

circunscrito entre os séculos XIII–XVI, que ficou conhecido como

Renascimento ou Revitalização europeia.

A partir destas colocações, percebe-se a busca por um tipo de

Conhecimento inovador, que emergiu para a cultura erudita europeia,

a partir do século X. Grande exemplo deste movimento foi à atuação

do clérigo cluniacense Gerbert d’Aurillac,36 que verteu para o latim um

importante manancial de livros e manuscritos andaluzes. Esta

35 Idem., pp. 26-27. 36Papa Silvestre II (Gerbert d'Aurillac N. 940 – M. 1003), natural da Aquitânia, foi educado e encaminhado aos estudos teológicos no mosteiro de Saint-Géraud de Aurillac, no Auvergne; acompanhando o duque da Espanha, Borel, estabeleceu-se na Península Ibérica, onde pôde aprofundar, também graças aos contatos com a ciência árabe, a própria cultura no campo filosófico e matemático. Lecionou por alguns anos em Roma, depois em Reims (972), onde por uma década desenvolveu a parte mais produtiva e interessante de sua obra didática e cultural. In: Site Oficial do Vaticano. Acessado em: 30.08.2003 <http://www.newadvent.org/cathen/14371a.htm>.

Page 30: saberes eruditos e práticas de navegar

30

produção intelectual foi decisiva para o fortalecimento de um campo

de reflexões acerca dos saberes eruditos.

Gerbert foi eleito papa com o apoio do Imperador Oto III em

999, com o nome de Silvestre II. A partir de seu pontificado pode dar

vazão aos seus projetos de reforma da Igreja, embasado em sua vasta

cultura erudita e em sua sólida formação intelectual cluniacense.

Suas ligações com o imperador acabaram por desviar seus

ideais reformadores para a questão da aliança Império universal-

cristandade, que encontrava sua fórmula na Renovatio Imperii

(Renovação Imperial), isto é, no restabelecimento da convivência

pacífica e colaborativa entre o Sacro Império e o Papado.37

Estes ideais não foram compartilhados por toda a cristandade

europeia. A ideia de um único imperador cristão contrariava os ideais

autonomistas dos reinos e da própria população romana e, por esta

razão, Gerbert (Silvestre II) juntamente com o Imperador Oto III, foram

expulsos de Roma em fevereiro de 1001. Gerbert retornou ao solo

romano alguns meses depois, mas, nos dois últimos anos de seu

pontificado, sua vontade reformadora desapareceu por completo e

suas últimas esperanças caíram por terra com a morte de Oto III em

1002.

Pelo fato de ter passado alguns anos na região da Andaluzia,

Gerbert destacou-se como um dos mais importantes articuladores

deste processo de reestruturação da cultura científica europeia, sendo o

primeiro intelectual cristão a adentrar no mundo arábico-islâmico (al-

Andaluz) e retornar com um cabedal de conhecimento erudito

fantástico e um número significativo de livros científicos os quais

traduziu para o latim.

37 Este projeto está balizado na recuperação do ideal fundador da Igreja cristã-ocidental que teve no Concílio de Nicéia (325) a formalização da aliança entre Constantino (Imperador Romano) e Silvestre I (Papa).

Page 31: saberes eruditos e práticas de navegar

31

Desta forma, cabe afirmar que Gerbert passou para a História

como grande matemático, tradutor e filósofo. Este monge francês da

Ordem de Cluny foi autor do primeiro tratado europeu sobre o

Astrolábio. Era comum, entre os séculos IX-XII, grandes eruditos

europeus escreverem sobre o Astrolábio ou outros instrumentos

científicos de precisão, como meio de se atingir um determinado status

intelectual.38

Gerbert foi responsável pela entrada dos números indo-

arábicos na Europa como forma de facilitação de cálculos matemáticos

mais complexos, além do resgate da tábua de calcular, que há mais de

quinhentos anos havia desaparecido da Europa.39

A importância deste monge está exatamente nesta introdução

do raciocínio quantitativista que veio superar a lógica qualitativista

da sociedade medieval européia em um longo processo que se

circunscreveu entre os séculos X-XVI.

Neste processo de transladação e adaptação dos saberes

eruditos da Cultura Andaluza para a Cultura Cristã merece igual

atenção o papel exercido por Pedro Afonso como um dos principais

difusores das ciências pragmáticas ou experimentais na Europa.

Pedro Afonso (1062-?),40 judeu convertido ao cristianismo

atuou, inicialmente, na Corte de Afonso VI, o Guerreiro, que o nomeou,

em 1106, médico da Corte. Destacou-se como tradutor de diversas

obras científicas, principalmente nos campos da Astronomia,

Matemática e Medicina.

38Cf. MENOCAL, María Rosa. O ornamento do mundo: como muçulmanos, judeus e cristãos criaram uma cultura de tolerância na Espanha medieval. Rio de Janeiro e São Paulo: Editora Record, 2004. 39 Cf. CROSBY, Alfred W. A mensuração da realidade: a quantificação e a sociedade ocidental 1250-1600. Trad. Vera Ribeiro. São Paulo: Editora Unesp, 1999. p. 52-53. 40 Ignora-se o ano de seu falecimento, mas tudo indica que tenha ocorrido por volta do ano de 1120.

Page 32: saberes eruditos e práticas de navegar

32

Concordo com Ruy A. da Costa NUNES41 que colocou como

maior título traduzido por Pedro Afonso a Disciplina Clericalis (Contos

Clericais), obra que introduziu no ocidente os gêneros literários do

Conto e da Fábula. A Disciplina Clericalis foi muito apreciada pelos

europeus, sendo uma das obras de maior circulação de seu tempo.

Com a morte do Rei Afonso VI, seu amigo e protetor, Pedro

Afonso transferiu-se para a Inglaterra, a convite do Rei Henrique I, em

1110. Neste mesmo ano, fora nomeado médico da Corte henriquina,

ganhando relevo e notoriedade com suas traduções de livros e

manuscritos científicos. Chegou a exercer uma considerável influência,

segundo NUNES,42 sobre Roger Bacon e Roger Grosseteste, entre outras

figuras de vulto da intelectualidade inglesa deste período-chave da

cultura erudita européia.

Esta influência exercida por Pedro Afonso sobre Bacon e

Grosseteste mostra-se interessante devido ao posicionamento de vários

historiadores como LE GOFF e VERGER que tradicionalmente remetem

as origens do experimentalismo científico inglês ao período da virada

do século XIII para o XIV, tendo os estudos de Bacon e de seus

seguidores como os precursores desta “nova” ciência, que teve no

Merton College a sua maior expressão institucional.

Porém este tipo de metodologia de análise científica, que

coloca o raciocínio a partir da experiência vivida, já era de domínio dos

intelectuais ingleses desde o século XII com a chegada de Pedro

Afonso43 e um cabedal de escritos científicos arábico-islâmicos

devidamente vertidos para o latim e posteriormente para a língua

vulgar.

41 Cf. NUNES, Ruy Afonso da Costa. O Realce de Pedro Afonso no Renascimento do Século XII. In: <://www.hottopos.com/mirand8/ruynun.htm>. Acessado em: 27.08.2003. 42 Cf. NUNES, Ruy Afonso da Costa. Idem. 43 Há certamente outros tradutores e outros circuitos de entrada de livros e manuscritos científicos na Inglaterra, foquei em Pedro Afonso pela importância e influência que exerceu na Corte inglesa neste período chave que foi o século XII.

Page 33: saberes eruditos e práticas de navegar

33

Os médicos, cirurgiões e ópticos foram os maiores

consumidores destas obras traduzidas por Pedro Afonso e são

exatamente estes intelectuais os principais defensores da união entre a

teoria e a prática: a práxis científica.

Para ultimar nosso rol de grandes intelectuais da cristandade

europeia que laboraram em nome de Deus e dos avanços científicos,

não poderíamos esquecer do papa português, Pedro Hispano

Portucalense (Pedro Julião) - nasceu em 1205 em Lisboa e veio a falecer

em Roma no ano de 1277.

Médico, matemático e filósofo, Pedro Hispano foi eleito papa

com o nome de João XXI em 1276.44 Ensinou Filosofia na Faculdade de

Artes de Paris, Medicina em Siena e na Corte de Frederico II.

Foi arquiatra45 do Papa Gregório X o qual, após seu falecimento, veio a

ocupar seu lugar no posto mais elevado da cristandade. Seu

pontificado caracterizou-se pelo combate ao infiel (islâmico), como

demonstra o incentivo dado para se coligir as famosas 219 teses

heréticas contra os averroístas latinos, escrita pelo bispo de Paris

Étienne Tempier.

Cabe destacar ainda, a produção intelectual de Pedro Hispano

que foi um dos primeiros comentadores cristãos de Aristóteles nas

suas Sumulae logicales (Súmulas de Lógica), onde resume o pensamento

lógico de Aristóteles.

As Súmulas de Lógica de Pedro Hispano foram adotadas como

compêndio universitário, inicialmente, em Portugal e depois por,

praticamente, toda a Europa até meados do século XVI.

Em suas obras de Medicina, Pedro Hispano destacou-se pelos

comentários aos livros clássicos de Galeno e Hipócrates, além de seu

44 Foi citado por Dante num terceto do Canto XII do Paraíso da Divina Comédia. “(...) e Pedro Hispano, o que obteve fama pelos seus doze livros.” p. 337. 45 Arquiatra, vem de Arquíatro: s.m. o médico principal, o médico do rei. // O decano dos médicos. // F. gr. Arkhiatros, . Archiater. Cf. D.C.A. Vol. 1, p. 473.

Page 34: saberes eruditos e práticas de navegar

34

famoso Thesaurus pauperium (Tesouro da Miséria), uma autêntica

enciclopédia que teve mais de oitenta edições vertidas para as

principais línguas européias.

Cabe afirmar que a Igreja e o Poder Régio, desde o século X,

unificaram o discurso anti-islâmico e anti-herético, dentro da

perspectiva do projeto cristão de reconquista político-econômica e

filosófico-cultural da Península Ibérica.

Os mosteiros e as cortes cristãs foram às pontas-de-lança deste

processo de renovação cultural, que tiveram nas figuras de Gerbert,

Pedro, o Venerável, Pedro Afonso e Pedro Hispano alguns de seus

maiores representantes.

Estes intelectuais orgânicos da fé cristã que colocaram as letras

e, por consequência os livros como importantes instrumentos de

irradiação do poder, foram os principais responsáveis pela formação

de um público leitor/consumidor destes saberes que, por excelência,

eram dirigidos aos poucos que detinham o conhecimento das letras e

dos números.

Cabe salientar que a partir do processo de emergência das

universidades europeias, incluindo a portuguesa, o livro colocou-se

como instrumento principal de trabalho do intelectual. Deixando de

ser um artigo de luxo, thesaurus, para ser a ferramenta mais valiosa

deste novo homem: o intelectual.

Criou-se um mercado consumidor de livros que passaram a

ser manuseados por um quantitativo humano cada vez maior.46 Peter

BURKE47 trabalhou a idéia da criação de um circuito internacional de

leitores a partir da emergência de diversos grupos de letrados na Baixa

Idade Média que se tornaram grandes consumidores de livros. A

46 Cf. LE GOFF, passim. 47 Cf. BURKE, Peter. Uma História Social do Conhecimento: de Gutenberg a Diderot. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. pp. 27-30.

Page 35: saberes eruditos e práticas de navegar

35

demanda fez a oferta.

Cabe destacar que a partir do século XV houve a organização

das primeiras tipografias portuguesas,48 que ocorreu quase que

simultaneamente com o advento das tipografias na Península Itálica

(berço da imprensa européia) o que revela, além de um público leitor

lusitano, a própria atmosfera de consumo por conhecimento erudito

neste reino cristão.

48 Cf. SANTOS, Antonio Ribeiro dos. Memoria sobre as origens da typografia em Portugal no seculo XV. Lisboa: Na Officina da Academia de Lisboa, 1792-1814. Memorias de litteratura. V. 8, (1814), p. 1-76.

Page 36: saberes eruditos e práticas de navegar

36

BRAVOS LUSITANOS: SOLDADOS DE

DEUS, GUERREIROS DO MAR E HOMENS

DE NEGÓCIO

O bravo lusitano fez-se ao mar em barcos pequenos e

frágeis, desafiando os ventos, os arrecifes, os mitos e as fantasias, que

povoavam as mentes destes soldados de Deus. Impondo a cruz em

seus estandartes dominaram mares, terras e povos. Desbravadores em

fé, ferro e fogo. Assim alargaram as fronteiras da cristandade, novos

espaços foram achados, nomeados e mapeados. Caminhos descobertos

que levaram a mundos novos e desafios inimagináveis.

Comprovaram, em seu cotidiano náutico, as inexistências de

mitos fantásticos como o dos antípodas, do reino perdido de Preste

João ou das ilhas afortunadas e do paraíso terreal.

A geografia mítica ptolomaica fora superada pelas cartas de

marear e os novos mapas mundi revelaram os segredos recém-

descobertos por estes argonautas modernos. Mareantes aventureiros

em busca do velo de ouro superam crenças e teorias acerca de um

Page 37: saberes eruditos e práticas de navegar

37

mundo que nunca existiu fora do maravilhoso medieval, o

conceitualismo foi vencido pelo naturalismo.

Homens de saber arguto e ciência avançada, práticos,

pragmáticos e domadores da natureza. Guerreiros do mar, destemidos,

empreendedores e inovadores. Homens inteligentes, perspicazes e

inventivos. Bravos lusitanos que deixaram lares, mulheres, filhos,

amigos e parentes em nome da aventura, da necessidade em tomar o

mar para si.

Matemáticos, precisos, experimentados, medidos, testados em

seu cotidiano febril, buscando sempre o horizonte longínquo em sua

arte de marear. Bravos são os lusitanos.

O medo e a coragem foram cingidos no ideal mercantil,

homens de negócio em busca de riquezas orientais. Rotas e

mercadorias foram descortinadas pela audácia de um punhado de

homens que, dos séculos XV e XVI, desvendaram os segredos do mar

oceânico. Em síntese, bravos são os lusitanos que construíram um

império em quatro continentes, Dominus Mundi.

Assim sendo, toda a epopeia ibérica rumo à costa africana e,

posteriormente, às exóticas Índias Orientais e o “achamento” de um

novo continente (América) estava ligado ao ideal renascentista de

liberdade e individualidade do homem lusitano, que tomou

consciência de si como ser transformador da realidade e das coisas que

o cercavam, contudo sem esquecer-se da fé cristã.

Este novo homem muito cedo se ligou ao ideal citadino do

conhecimento como agente emancipador. No primeiro capítulo

observei este processo de tomada de consciência dos ibéricos, em

sentido lato, e em especial do português através do estabelecimento de

uma fronteira cultural, que ligou os saberes eruditos orientais aos

saberes eruditos ocidentais, em uma síntese que resultou no

Renascimento ibérico.

Agora o olhar volta-se para o desenvolvimento do chamado

Page 38: saberes eruditos e práticas de navegar

38

“saberes do mar” no que Luis Filipe BARRETO denominou de

experiencialismo técnico-científico,49 isto é, o conjunto de

conhecimentos práticos obtidos pelos chamados homens de

marinharia.

As reflexões, neste momento, direcionam-se para o

entendimento do processo de transladação do pensamento científico

medieval para o pensamento científico da modernidade que se

aguçam, em Portugal, nos chamados Descobrimentos Marítimos.

Os Descobrimentos portugueses ligam-se, portanto, ao

processo de mudança da concepção qualitativa e hierarquizadora da

filosofia místico-religiosa medieval para a concepção quantitativista e

horizontalizadora do humanismo europeu e da práxis da marinharia

lusitana.

Desde provavelmente o século XI, de meados do XII o mais tardar, do Guardalquivir às costas da Mancha e à setentrional Irlanda, as populações instalam-se ribeirinhas do mar, de todas as desembocaduras de rios, baías ou reduzidas abras fazendo portos para a navegação que na continuidade de modestas atividades pescaresas e outras ou empórios mercantis muçulmanos, tece, entre esses primórdios e o século XIV, um complexo de rotas e circulações: é o ferro de Biscaia, o estanho de Cornualha, o sal de Andaluzia, Setúbal, Tejo, Aveiro, Brouage e costa bretã, os vinhos andaluzes, portugueses, bordaleses, as lãs de Castela e Velha, Gales e Midlands, o linho da Irlanda e Minho, o pescado de todos esses núcleos, a construção naval que as madeiras cantábricas e das Landes e de outras regiões mantém

ativa.50

Como exposto anteriormente, a Europa do século XI ao século

XIII passou por um processo de revitalização das rotas comerciais de

médio e longo curso,51 que proporcionaram, por um lado, a emergência

49 Cf. BARRETO, Luís Filipe. Caminhos do saber no renascimento português: Estudos de história e teoria da cultura. Porto: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1986. 50 Apud. GODINHO, Vitorino Magalhães. Mito e Mercadoria, Utopia e Prática de Navegar- séculos XIII-XVIII. Lisboa: DIFIEL, 1990, p. 67. 51 Cf. LE GOFF, J. Idem, passim. e Cf. GODINHO, Vitorino Magalhães. Idem, passim.

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do intelectual que se ligou à estrutura burocrático-administrativa do

Clero, do reino e da cidade e, por outro lado, a emergência do homem

prático em Portugal, como tipo sociológico novo, que se ligou ao

desenvolvimento dos saberes pragmáticos circunscritos na navegação

e no comércio de longo curso.

Barreto52 situa a discussão acerca da emergência dos saberes

científico-tecnológicos na Península Ibérica como parte inerente do

processo dos Descobrimentos marítimos que foram, hegemonicamente,

portugueses.

A geografia mítica ptolomaica53 fora resgatada no século XV e

colocada como axioma das concepções de mundo e cosmos: a

esfericidade da Terra, a geocentricidade e a finitude do universo entre

outros conceitos ganharam fôlego neste novo momento do pensamento

erudito europeu-ibérico. Entretanto, estas concepções foram colocadas

em xeque diante dos relatos cotidianos dos mareantes lusitanos que se

jogaram ao mar em busca de aventuras e riquezas, dentro dos

princípios do pragmatismo e da racionalidade.

O cálculo, a precisão, a medição e aferição são adjetivos

imprescindíveis destes navegadores, que utilizaram aparelhos e

técnicas inovadoras na arte de navegar. Seja inventando ou adaptando

instrumentos de medição e precisão, aprimorando barcos e velas,

elaborando mapas e cartas náuticas, tomaram para si a tarefa de

organizar um conhecimento empírico e cotidiano: os chamados saberes

do mar.

Portanto, a abertura do mundo, a cosmovisão europeia acerca

52 Cf. BARRETO, Luís Filipe. Idem. 53 Claudius Ptolomeus viveu no século II. Grande erudito greco-romano resgatou os princípios cosmológicos e geográficos dos filósofos gregos, principalmente, Aristóteles, que concebia a idéia da esfericidade da terra a partir da geometria pitagórica. Segundo Aristóteles o cosmos era finito e geocêntrico, dividindo-se em duas partes: Mundo Sublunar (físico, material e corruptível) e o Mundo Supralunar (etéreo, ideal e eterno). Cf. SOARES, Luiz Carlos. Idem., passim.

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do orbe terrestre, a partir da nova Geografia pautada nos relatos dos

marinheiros, e dos estudos astronômicos de Nicolau Copérnico

(N.1473-F.1534) contribuíram decisivamente para a consolidação destes

chamados saberes do mar.

A revolução copernicana demonstrou uma inovadora maneira

de se olhar o mundo e o universo, o heliocentrismo foi além de uma

teoria acerca da organização dos corpos celestiais, foi de fato um dos

pontos de ruptura entre a mentalidade místico-religiosa medieval para

a mentalidade empírico-naturalista do Renascimento.

Praticamente todos os campos dos saberes eruditos sofreram

de uma maneira ou de outra as influências desta mudança de

percepção como nos revela os Quaderni de Leonardo da Vinci ou a

afirmativa de Duarte Pacheco Pereira no livro Esmeraldo de Situ Orbis,

“A experiência é madre de todas as cousas”.54

A Matemática ergueu-se como a Ciência precípua da longa

revolução erudita europeia circunscrita entre os séculos XIII-XVIII.

Alfred W. CROSBY55 aproxima-se de BARRETO ao analisar o processo de

mensuração da realidade na Europa para justificar a emergência do

pensamento quantitativista e racional dos intelectuais ligados às

Ciências Físico-matemáticas,56 para o caso ibérico emergiu um tipo de

Humanismo dos Descobrimentos (saberes do mar) como colocou

MENDES.57

A partir deste período há uma mudança qualitativa no

processo de encadeamento lógico do pensamento do homem europeu

54 Cf. PEREIRA, Duarte Pacheco. Princípio do Esmeraldo de situ orbis[Manuscrito]. BN. COD. 888 [Biblioteca Nacional de Portugal]. 55 Cf. CROSBY, Alfred W. A mensuração da realidade: a quantificação e a sociedade ocidental 1250-1600. Trad. Vera Ribeiro. São Paulo: Editora Unesp, 1999. 56Considero como Ciências Físico-matemáticas: Geometria, Aritmética, Astronomia e Música. Estes saberes eruditos faziam parte do quadrivium dos cursos de Artes das universidades européias medievais. (N.A) 57Cf. MENDES, António Rosa. A vida cultural. In: MAGALHÃES, Joaquim Romero (Coord). , p. 387.

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que passou a matematizar (quantificar) o mundo e as coisas que o

cercavam.58

A utilização pragmática dos conceitos matemáticos no

cotidiano das cidades europeias possibilitou uma virada radical na

concepção da realidade concreta do homem medieval. A partir da

utilidade prática dada aos conceitos abstratos da Matemática, que

foram aplicados em vários campos dos saberes eruditos ligados,

principalmente, ao comércio e a navegação.59

Assim sendo, ocorreu uma série de modificações na maneira

de conceber as coisas e o mundo através do racionalismo e da lógica

que encontrou no pragmatismo português o melhor ambiente para seu

desenvolvimento nos primeiros séculos da modernidade europeia.

Portugal destacou-se, precisamente, por utilizar, de maneira

mais racional e prática, esta herança intelectual deixada pela cultura

andaluza, que foi explicitada no processo de transladação deste

conhecimento a partir do circuito ibérico de traduções e posteriores

publicações destes saberes eruditos, como foi destacado no primeiro

capítulo.

Os Descobrimentos marítimos derivam, em grande parte,

deste processo de mensuração da realidade concreta europeia no que

GODINHO60 chamou de passagem da utopia para a realidade. Esta

mudança conceitual do conhecimento como algo útil e necessário para

as sociedades insere-se neste processo de abertura da Europa aos

“mundos novos” proporcionados pelas Descobertas ibéricas.

Portanto, os Descobrimentos ibéricos estão inseridos na

vanguarda do processo de modificação ou transformação intelectual

58 Cf. CROSBY, Alfred W. Idem. 59 Destaco como campos dos saberes eruditos ligados às reflexões matemáticas: Astronomia, Física, Geografia, Contabilidade, Ofícios e Artes Mecânicas (marcenaria, carpintaria, olaria, etc.), Arquitetura, Engenharia e demais Conhecimentos técnico-científicos. 60 Cf. GODINHO, Vitorino Magalhães. Idem.

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europeia que, do quatrocentos ao seiscentos, viveu profundas

mudanças que resultaram em novos rumos e perspectivas econômico-

administrativas e sócio-culturais, que fizeram da Europa o centro

econômico e cultural do mundo, exercendo a hegemonia destes

campos no setecentos, a partir da Ilustração e do Liberalismo.

1. A EXPANSÃO MARÍTIMA PORTUGUESA: A

CONQUISTA DOS MUNDOS NOVOS

A Europa entre os séculos XIV e XV viveu momentos de

depressão profunda, derivada de uma crise conjuntural que levou 1/3

da população à morte. A Peste Negra, a Grande Fome e a Guerra dos

Cem Anos foram os males que assolaram o velho continente

empurrando-o para esta crise sistêmica. Os campos foram

abandonados e suas gentes fluíram para as cidades que, como foi

observado anteriormente, viviam uma revitalização em seu todo desde

o século XII.

Em termos conjunturais, somente a partir de meados do século

XV é que ocorreu uma inversão desta tendência de contração da

economia europeia, tendo como motor impulsionador o advento da

expansão marítima ibérica, que não foi o único fator, mas por certo foi

preponderante nesta recuperação mental e econômica europeia como

enfatiza GODINHO ao afirmar que,

A desocultação do oculto, a ligação do desligado exigiram uma nova ferramenta mental e uma nova prática que a palavra ‘experiência’ consubstancia: decerto antes já muito empregada, mas agora se

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revestindo de novo sentido.61

A máxima de Duarte Pacheco Pereira “A experiência é madre de

todas as cousas” é fundamental para a compreensão desta maneira

inovadora de ver e sentir as coisas; o homem português deu novo

sentido ao pragmatismo do Merton College ao colocar as viagens

científicas como fator preponderante para o desenvolvimento destes

saberes eruditos e dos Descobrimentos.

Portanto, o empreendimento marítimo português ganhou

força, neste quadro adverso, ao expandir-se buscando cada vez mais o

comércio com outros povos e mercados. Assim se fez o périplo lusitano

que percorreu três espaços distintos e complementares.

A. O Noroeste africano e ilhas oceânicas: A exploração atlântico-

litorânea

O período circunscrito entre 1415-1450 teve por característica a

hegemonia do ideal cruzadístico de domínio sobre o infiel (islâmico) e

sua cultura, que estava incrustada no Noroeste africano desde o século

VII. O cerne da lógica expansionista lusitana estava na exploração

mediterrânico-atlântica que abarcava o Magreb (Norte da África) e as

ilhas oceânicas.

A tomada da praça mercantil, moura, de Ceuta em 1415 foi o

marco inicial deste período, abrindo para Portugal novas perspectivas

mercantis que se entrecruzaram com o ideal cruzadístico da Igreja. A

mercancia e a fé cingem-se no ideal conquistador lusitano.

A1. A mercancia

Ceuta era um dos principais entrepostos comerciais da região do

Magreb, por conseguinte havia a possibilidade de obtenção de altos

lucros a partir da comercialização de especiarias vindas de várias

61 Apud. GODINHO, Vitorino Magalhães. Idem., p. 75.

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partes do interior da África que tradicionalmente abastecia os

mercados europeus.

A2. A afirmação da fé cristã sobre os infiéis

Ceuta foi a principal base de assalto islâmico para a Península Ibérica.

Desta cidade saiu a primeira expedição de ocupação da Europa em 711,

por esta razão sua derrocada tornou-se o símbolo da supremacia bélico

e religiosa da “civilização” cristã sobre a islâmica.

Para a concretização destes dois ideais (comércio e fé), as

ciências físico-matemáticas foram essenciais neste périplo cristão.

Houve em Portugal a propagação de um Conhecimento técnico-

científico ligado às ciências pragmáticas, que ocorreram a partir de

determinados espaços organizados por burgueses ou gente ligada à

burguesia e, por conseguinte, aos empreendimentos comerciais

(marítimos).

Estes espaços de produção e circulação destes saberes eruditos

foram constituídos fora do ciclo universitário, confirmando a hipótese

de Simon SCHWARTZMAN de um desenvolvimento das ciências

pragmáticas em determinados espaços constituídos para este fim e

com os devidos apoios clericais e régios.

A vanguarda portuguesa nos Descobrimentos deu-se, em boa

parte, por conta deste processo de constituição de espaços destinados,

exclusivamente, ao desenvolvimento dos saberes técnico-científicos,

cabendo destacar a chamada Escola de Sagres (1418) como principal

centro de desenvolvimento dos saberes do mar.

Luiz Carlos SOARES chamou a atenção para a questão de que

Sagres não produziu uma ciência inovadora ou revolucionária. Em

verdade foi um centro de aprimoramento de técnicas e instrumentos

náuticos além da confecção de mapas, cartas náuticas e tabelas

astronômicas.

Este centro de ensino e pesquisa, organizado pelo infante D.

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45

Henrique (N.1394-F.1460), foi um espaço de produção e circulação dos

saberes eruditos de cunho inovador, responsável por boa parte do

sucesso dos intelectuais portugueses ou à serviço da monarquia lusa

no empreendimento da expansão marítima.

É importante frisar que este processo secular de constituição

destes espaços de sociabilização dos saberes eruditos, ligados às

ciências pragmáticas, ocorreu concomitantemente ao processo de

constituição do humanismo português entre os séculos XIV-XVI.

Contudo, HOLANDA coloca que o movimento erudito da

expansão marítima portuguesa não pode ficar restrito a Sagres ou a D.

Henrique, o que se tem de fato é um movimento coletivo capitaneado

pelo Estado, principalmente durante a regência de D. Pedro entre 1440-

1448, período compreendido como o mais fértil da empresa lusitana,

além de ser o da reestruturação do ideal expansionista.

2. A rota do cabo: Portugal e o Oriente

Circunscreve-se entre 1450-1520, basicamente durante os reinados de D.

João II, o Perfeito (N.1455-R.1481-F.1495), D. Manuel I, o Venturoso,

(N.1469-R.1495-F-1521), houve uma virada nas concepções da expansão

portuguesa, a ênfase passou dos ideais de propagação e afirmação da

fé cristã sobre os infiéis, para a realização do comércio com as Índias

Orientais como acentuou GODINHO. Entretanto, o ideal cruzadístico de

propagação da fé não acabou, continuou de forma mais tênue.

A caravela portuguesa (Caravelão) que data de 1440-1450, a

vela triangular ou latina e os progressos com a artilharia instalada a

bordo das embarcações foram as grandes inovações que

proporcionaram a navegação de longo curso, juntamente com uma

série de aparelhos inventados ou transformados/adaptados para a arte

da marinharia, além dos estudos cartográficos e astronômicos que

ganharam um status de ciências utilíssimas à navegação.

Page 46: saberes eruditos e práticas de navegar

46

Estas inovações e invenções tiveram papel preponderante para

o desenvolvimento desta nova concepção da empresa marítima e

mercantil ibérica que deixou de ser costeira transformando-se em

oceânica.

Para GODINHO não se trata, ainda, de uma experimentação

científica stricto sensu aos moldes dos séculos XVII e XVIII, (Pós-

Revolução Científica Inglesa) mas de uma exploração sistemática onde

a exatidão da Matemática cumpriu seu papel de racionalizadora das

Descobertas ao confrontar a observação in loco dos mitos e tradições

fantásticas e seculares da Europa, a cartografia dos descobrimentos

(empírica e experiencial), toma o lugar da cartografia mítica (mágica e

imaginativa).

Segundo BARRETO criou-se uma cultura manuscrita da

observação dos ventos e correntes marítimas, das funduras e recifes, da

medição da altura da estrela polar para determinar a posição das

embarcações, mesmo afastadas da costa.

Os navegadores portugueses eram homens práticos e

dedicados ao experimento, capazes de realizar viagens para medição

das latitudes necessárias para navegação por altura ou para a notação

dos contornos de uma ilha ou do litoral africano e, posteriormente,

asiático e americano. O périplo marítimo português revelou um novo

homem que se ligou ao mar de maneira racional, pragmática e

sistemática.

C. A expansão para o extremo oriente até Macau e a exploração do

novo continente (América)

Circunscreve-se entre 1520-1580, é considerado o período final da

expansão marítima portuguesa, quando se tem a concretização do

comércio com as Índias Orientais, o alargamento dos horizontes das

Descobertas com as primeiras expedições ao extremo oriente, até a

Page 47: saberes eruditos e práticas de navegar

47

China e o Japão, e a exploração sistemática do novo continente:

América.

Em linhas gerais, este período circunscreve-se entre a

constituição do Império da Pimenta até o domínio espanhol sobre

Portugal ao qual a historiografia denominou de União Ibérica (1580-

1640).

A principal característica deste período é a concretização do

poder da Companhia de Jesus no processo de conquista cultural e

ideológica destes “novos” territórios. A nova escolástica capitaneada

pelos irmãos da Companhia de Jesus ligou-se intimamente com as

ciências pragmáticas, sendo introdutores destes saberes eruditos nestas

“novas” terras.

A expansão marítima lusitana foi, portanto, um movimento

essencialmente técnico-científico, o qual prevaleceu o acúmulo de

experiência. Surgiu no bojo desta discussão o Homem Prático em

Portugal, que soube conjugar o conhecimento empírico e

historicamente construído com a necessidade de romper as fronteiras

naturais que separavam a Europa do resto do mundo conhecido e/ou

por ainda conhecer.

O espírito de aventura e ousadia é articulado à lógica e à

racionalidade deste Homem Prático lusitano, que superou o medo do

mar tenebroso desbravando, palmo a palmo, o Atlântico Sul em busca

de novas riquezas, culturas e gentes para o pronto domínio religioso-

mercantil.

MENDES62 trabalhou com a idéia de duas dimensões distintas e

complementares neste processo de emergência deste “novo” Homem

português: O Classicismo e os Descobrimentos.

A. Classicismo, de caráter mais geral, inseriu-se no movimento amplo

da Europa do Renascimento, chegando tardiamente em Portugal mais

62 Cf. MENDES, António Rosa. Idem, passim.

Page 48: saberes eruditos e práticas de navegar

48

precisamente no tempo de D. João II e D. Manuel I, conferiu certo

anacronismo a estas concepções artísticas de matriz itálica que se

ligaram, essencialmente, às letras e à cultura livresca da Universidade.

B. Descobrimento caracterizou-se como um movimento interno

próprio dos processos de constituição do reino português e de seu

corpus intelectual. Para MAURO, os Descobrimentos estavam inseridos

num movimento de expansão territorial-comercial e filosófico-

religioso, não constituindo apenas a reconquista e a recolonização de

territórios cristãos, mas a própria conquista e colonização de novos

territórios sobre as bandeiras da fé e da mercancia.63

A partir destas ideias de abertura e mudanças, estruturou-se

dentro do humanismo cristão português uma espécie de humanismo

dos Descobrimentos, isto é, a relação do Homem com a Natureza

nestes novos espaços, através de um ceticismo que se converteu em

criticismo, que estava ligado, segundo SOARES,64 às concepções da

escola naturalista de Chartres. A retórica especulativa da escolástica

medieval parisiense (conceitualista) cedeu espaço para a observação e

análise empíricas deste Homem Prático do mar e das ciências.65

SOARES trabalhou com concepções próximas a MENDES e

MAURO, todavia buscou ampliá-las ao definir seus conceitos de

Renascimento e Descobrimentos como partes de um mesmo

movimento europeu de expansão econômico-social e filosófico-

cultural,66 a que podemos facilmente incorporar o Classicismo e o

Humanismo neste processo que, segundo Agnes HELLER, estão

inseridos no interior do Renascimento.67

63 Cf. MAURO, Frédéric. Idem., pp. 41-42. 64 Cf. SOARES, Luiz Carlos. Idem., pp. 29-32. 65 Cf. MENDES, António Rosa. Idem., pp. 390-391. 66 Cf. SOARES, Luiz Carlos. Idem., pp. 57-63. 67 HELLER trabalhou com a idéia de dois tipos de humanismos: 1. humanismo de tipo acadêmico (erudito) cujo campo de interesse era o estudo (literário) das humanidades (studia humanitatis). 2 humanismo como representante da visão do mundo do

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49

A chave para a compreensão deste período de intensas

transformações em todos os campos sociais encontrava-se no

experiencialismo científico ibérico. Houve diversas reinterpretações

acerca deste experiencialismo que se compôs ao longo do período

circunscrito entre os séculos XIII-XVI. É exatamente a extremidade final

deste processo que busco ora analisar.

SOARES68 identificou, a partir das concepções de Annuziata

ROSSI e BARRETO, um processo de reapropriação dos valores e

concepções do experimentalismo, que teve nos navegantes

portugueses dos séculos XV-XVI uma nova e inovadora interpretação.

Boa parte do processo revolucionário do Renascimento e dos

Descobrimentos derivou a partir desta matriz epistemológica que tem

suas raízes fincadas na Península Ibérica desde a ocupação arábico-

islâmica, como já observado.

ROSSI propôs uma discussão a partir da questão das mudanças

nas perspectivas de tempo histórico no Renascimento do século XV. A

idéia de um movimento horizontal, isto é,

(...) a marcha do movimento concreto do homem sobre a Terra como um movimento ‘para frente’, em substituição ao movimento hierárquico vertical da concepção cristã medieval.69

Este movimento horizontal foi muito mais que um simples

conceito estético ligado à pintura e à arquitetura: representou a

ampliação dos horizontes do homem, especialmente para os

navegantes que possuíam uma larga experiência na arte da marinharia,

Renascimento, conceitualizando o homem moderno como um ser mais dinâmico, individual e social, que aponta para o conceito de humanidade. Cf. FALCON, Francisco José Calazans. Tempos Modernos: a cultura humanista. In: RODRIGUES, A. E. M. e FALCON, F. J. C. Tempos Modernos: ensaios de história cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p. 37. 68 Cf. SOARES, Luiz Carlos. Idem. Op. cit., pp. 72-78. 69 Ibidem, p. 72.

Page 50: saberes eruditos e práticas de navegar

50

que lhes conferiram um desejo especial pelo novo e exótico, contudo

era preciso superar a lógica anterior mística e ideologizadora, própria

do medievo.

Para BARRETO, a questão centrou-se no que denominou de

experiencialismo, conceito este cunhado a partir de suas reflexões acerca

do processo de construção das ideias pragmáticas como precursoras

dos Descobrimentos, a partir da matriz naturalista do Merton College,

e de todo um processo de construção e reapropriação histórica do

conceito de experiência que se ligou às Ciências Físico-matemáticas a

partir das (re)leituras de Aristóteles.

O experiencialismo foi o método, por excelência, de

desenvolvimento do Conhecimento técnico-científico que se ligou,

intimamente, ao processo da expansão marítima lusitana através da

racionalização dos Descobrimentos. Foi a reapropriação e releitura

deste conceitual de experiência que impulsionou os navegantes

ibéricos à conquista de novos mundos, além da ampliação de diversos

saberes eruditos ligados a esta empresa marítima como a Geografia,

Astronomia, Matemática, Náutica etc.

Por esta razão, as ciências desenvolvidas por estes

experiencialistas são mais manuscritas do que impressas: antes de

qualquer outra coisa é preciso obter-se uma prática cotidiana no

processo de descobrimento do conhecimento, que sempre é empírica e

cotidianamente construído.

Cabe enfatizar, também, a política régia de sigilo em relação às

novas descobertas, que eram segredos de Estado. Por esta razão

circulavam poucas informações sobre os Descobrimentos marítimos

portugueses.

Discordo de BARRETO apenas no ponto de origem desta cultura

pragmática portuguesa. A matriz deste tipo de concepção

epistemológica do saber prático, através da experiência vivida,

Page 51: saberes eruditos e práticas de navegar

51

encontra-se nos contatos com a cultura arábico-islâmica, em que se

incluem desde a escola de Chartres às reflexões baconianas do Merton

College.

Houve, em Portugal, um longo e imbricado caminho em que o

raciocínio pragmático foi se constituindo de maneira pioneira na

Península Ibérica e, posteriormente, na Península Itálica através da

influência de pensadores islâmicos.

O alargamento do mundo, através das conexões entre os

velhos continentes e o descobrimento de novas terras, proporcionou a

estes homens do mar, acostumados ao raciocínio lógico e concreto das

Ciências Físico-matemáticas, uma visão do mundo e das coisas

diferente do humanista que permanecia preso em seu gabinete ou em

sua sala de aula (Universidade). Foi, portanto, este “novo” Homem do

mar e da Ciência que trabalhou as principais mudanças na Europa do

Renascimento.

A presença deste ator social em Portugal deu vigor às

transformações revolucionárias deste período histórico, principalmente

quanto às questões dos desenvolvimentos técnicos ligados às soluções

náuticas.

A partir destas reflexões, percebe-se que o Renascimento não

pode ser colocado somente no campo artístico-cultural nem apenas no

econômico. Deve-se ter em conta as várias dimensões transformadoras

deste processo histórico, mesmo que não se tenham levado a cabo ou

superado por completo as estruturas da sociedade medieval.

Houve, inegavelmente, um processo revolucionário de

mudanças estruturais na cultura, economia, filosofia e na sociedade

europeia que se concretizou na segunda metade do século XVII, com a

Revolução Inglesa de 1640/89.

O pragmatismo inglês exposto no século XVII teve como ponto

de origem os diversos processos derivados do Renascimento e dos

Page 52: saberes eruditos e práticas de navegar

52

Descobrimentos que sintetizam o conhecimento erudito mediterrânico,

constituído a partir do século VIII com a ocupação arábico-islâmica.

Por esta razão o Renascimento, segundo a historiografia

inaugurada por MICHELET e BURCKHARDT, colocou-se para além das

questões artístico-culturais. Foi, de fato, um movimento global ou

totalizante que envolveu todas as dimensões sociais, como recobrou e

ampliou, conceitualmente, Lucien FEBVRE ao colocar o caráter

ocidental e ao mesmo tempo geral do Renascimento.

Francisco J. C. FALCON compartilhou desta conceitualização ao

afirmar que o Renascimento, com seu caráter de continuidade e

descontinuidade, em que se incluem as heranças medievais presentes,

principalmente nas questões religiosas, e que se colocaram à frente da

condição humana, sem prejuízo das conquistas científicas no campo

das ciências Físico-matemáticas, isto é, a passagem da transcendência

divina para a imanência do homem, não significou a perda da

religiosidade ou a descrença em Deus, mas uma nova relação entre

homem e religião, homem e natureza e homem e ciência.70

70Cf. FALCON, Francisco José Calazans. Idem, pp. 35-40.

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53

O MOVIMENTO ACADÊMICO-ERUDITO

PORTUGUÊS: DA REFORMA HUMANISTA

DA UNIVERSIDADE À ASCENSÃO DA NOVA

ESCOLÁSTICA

José MATTOSO, uníssono a Jacques LE GOFF, afirma que

o intelectual surgiu em Portugal a partir das cidades, espaço de

desenvolvimento da liberdade econômica, comercial e filosófico-

intelectual. Houve, nas cidades, a disseminação de instituições de

ensino promovidas pela Igreja, as chamadas escolas catedrais ou

catedralícias. Estas escolas eram ligadas às Sés, sendo administradas

diretamente pelos cônegos. Foram estas instituições de ensino que

serviram de base para a construção, a partir do século XII, das

universidades na Europa.71

Em Portugal, seguindo-se a orientação política dos concílios,

principalmente Latrão III (1179), todas as Sés tiveram uma escola

71 Cf. LE GOFF, J. Idem, passim.

Page 54: saberes eruditos e práticas de navegar

54

catedralícia ou episcopal: Braga, Porto, Lamego, Guarda, Viseu,

Coimbra, Lisboa, Évora e Silves.

Em princípio, nestas escolas urbanas, ministraram-se as

disciplinas do trivium e do quadrivium,72 que, posteriormente, se

constituíram na base do curso de Artes das universidades, além dos

ensinamentos da Sacra Escritura, Espiritualidade, Direito e

ocasionalmente Medicina.

Em Portugal, como sucedido em outras regiões da Europa,

estas escolas citadinas entraram em declínio no século XIII e acabaram

por se transformar em escolas preparatórias do Generale Studium

(Estudos Gerais/Universidade) e dos colégios franciscanos e

dominicanos.73

A universitas lusitana surgiu quase que simultaneamente ao

Estado. As necessidades práticas de constituição de um corpus

burocrático “nacional” foram objetivadas em espaços concedidos pelos

poderes régio e clerical para o desenvolvimento dos saberes eruditos.

Desde D. Afonso I, o Conquistador (N.1109-R.1139-F.1185), havia o

incentivo à criação de escolas nos mosteiros, abadias e catedrais como

meio de concepção de um corpus erudito a serviço de Deus: pela Igreja

ou pelo Rei.

A preocupação dos monarcas portugueses com a formação

intelectual de seus súditos intensificou-se no reinado de D. Sancho I, o

Povoador (N.1154-R.1185-F.1211), que tornou frequente a concessão régia

de bolsas de estudo com o objetivo de formar intelectuais nos

principais centros da Cultura erudita europeia. Todavia, Portugal

72Os saberes se classificavam da seguinte forma: o trivium (Gramática, Retórica e Dialética) e o quadrivium (Geometria, Aritmética, Astronomia e Música). As obras compreendidas nos programas variavam de acordo com o tempo e o lugar. Em síntese, o espírito que movia a construção destes programas reside no encontro das culturas cristã e islâmica, onde sobressaem o Direito romano e a Filosofia e Ciência greco-árabe. 73 Estas escolas das ordens mendicantes ligaram-se desde cedo à estrutura das universidades, como foi o caso de Paris e Bolonha.

Page 55: saberes eruditos e práticas de navegar

55

passava por um período de consolidação de seu novo status de reino

soberano e independente de Leão e Castela, carecendo de um centro

formador de intelectuais que comporia uma burocracia necessária a

este novo reino em consolidação.

A idéia de uma Universidade portuguesa surgiu,

principalmente, destas necessidades práticas que enfrentavam os

soberanos lusitanos no processo de legitimação do Poder Régio.

1. A UNIVERSITAS E A FORMAÇÃO DA

INTELECTUALIDADE LUSITANA

A Universidade que hoje existe em Coimbra foi fundada, ou ratificada, em 1290 pelo Rei D. Dinis, começando a funcionar em Lisboa. É de 1 de Março desse ano o diploma régio74 que anuncia a criação desta primeira escola universitária portuguesa, que é, por outro lado, uma das mais antigas da Península Ibérica. A confirmação papal é ainda de 1290, de 9 de Agosto, sendo Sumo Pontífice Nicolau IV. Segundo essa bula, poderiam ser ensinadas todas as faculdades "lícitas",75 com exceção da Teologia. As primeiras a constituírem-se foram, pois, as faculdades de Artes, de Leis, de Cânones e de Medicina. 76

A bula De statu regni Portugaliae do papa Nicolau IV,

datada de 9 de Agosto de 1290, reconhecendo o Estudo Geral

74 A 1 de Março de 1290, foi assinado em Leiria, por D. Dinis, o documento Scientiae thesaurus mirabilis, que institui a própria Universidade e pede ao Papa a confirmação. 75 As disciplinas lícitas estavam enquadradas dentro da filosofia cristã a partir da leitura de Santo Agostinho de que o Conhecimento deveria ter um fim útil para o engrandecimento da fé. A partir desta idéia somente as sete artes liberais e as obras de Aristóteles eram dignas de estudo. Os demais Conhecimentos ilegítimos ou ilícitos abarcavam o saber-fazer técnico (trabalho manual), as ciências profanas ou lucrativas que, aos olhos eclesiásticos, somente satisfaziam as ambições mundanas, etc. Cf. Santo Agostinho. Cântico dos Cânticos. 76 Cf. TORGAL, Luíz Reis. Prospecto da Universidade de Coimbra 1997-1998. Acessado em: 04 de agosto de 2002 <http://www.uc.pt/sdp/prospecto9798>.

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56

português, com as faculdades de Artes, Direito Canônico, Direito Civil

e Medicina. O estudo de Teologia foi reservado aos conventos

dominicanos e franciscanos, somente por volta de 1380 é que passou a

fazer parte do ensino universitário português, altura em que foi

aprovado o primeiro estatuto da universitas lusitana.

Próximo das reflexões de TORGAL, MATTOSO77 concebeu a idéia

da constituição de uma Universidade de Portugal, entendida enquanto

um esforço “nacional” capitaneado pelo Poder Régio e pela Igreja. Esta

concepção se colocou em uníssono com a formulação de LE GOFF78 do

surgimento, no final do século XIII e início do XIV, de um tipo novo de

universidade que extrapolou a municipalidade colocando-se como um

esforço “nacional”, como foi o caso da Universidade de Praga.

VERGER79 corroborou com LE GOFF ao colocar que o caráter

universalizador destas instituições deu lugar às necessidades práticas

de fomento dos saberes eruditos, como meio de constituição de

quadros qualificados para a máquina burocrática dos reinos e o

fortalecimento do Clero.80

Cabe acrescentar que havia um grande interesse do Poder

Régio e do Clero pela formação de intelectuais que se constituíram na

matriz de uma tecnocracia moderna e que se vincularam,

organicamente, às esferas de poder dos Estados e da Igreja.

VERGER salienta a problemática gerada pela disputa entre a

Igreja, o Poder Régio e as cidades por este novo tipo sociológico

citadino: o intelectual. Este novo ator social foi o centro das disputas

entre estas esferas de poder que constituíram a base das

transformações sociais, culturais, econômicas e políticas da Europa da

77 Cf. MATTOSO, J. Idem, passim. 78 Cf. LE GOFF, J. Idem, passim. 79 Cf. VERGER, Jacques. Homens e saber na Idade Média. Trad. Carlota Boto. São Paulo: EDUSC, 1999. 80 Idem. pp. 196-199.

Page 57: saberes eruditos e práticas de navegar

57

modernidade.

Portanto, a ideia de uma Universidade de Portugal, de toda a

“nação” portuguesa, foi sendo amadurecida durante todo o século XIII

e somente com a consolidação do Poder Régio é que se têm as

condições materiais necessárias para a implementação deste projeto

político-cultural e educacional.

É preciso salientar os interesses do papado pelo fortalecimento

do cristianismo, nesta região cercada por infiéis, como importante

força neste processo de consolidação do Generale Studium lusitano.

Os principais centros dinâmicos da política e dos saberes

eruditos em Portugal – Coimbra e Lisboa – formaram as bases de apoio

social para a constituição deste empreendimento régio e papal. Lisboa

assumiu, na condição de maior cidade portuguesa, a tarefa inicial de

abrigar esta instituição de ensino, não era apenas um studium, mas

uma universitas como Paris, Bolonha, Oxford e Salamanca.

Mediante a autorização do Rei e da Santa Sé, a universitas

lusitana assumiu uma feição “nacional”, aberta a todos os portugueses

numa convergência corporativa de mestres e alunos, com

regulamentos, estatutos e dotada de privilégios régios e papais.81

A criação da Universidade portuguesa proporcionou ao Clero,

à Nobreza e à Burguesia Mercantil as possibilidades de obtenção de

uma qualificação indispensável para o desempenho das mais variadas

funções no campo jurídico-administrativo, que exigiam um grau de

instrução mais elevado, equiparando Portugal aos principais reinos da

Europa.

Portanto, a razão maior da constituição da Universidade

encontrava-se em atender estas necessidades práticas de

desenvolvimento de uma intelectualidade, organicamente ligada ao

Poder Régio, à Igreja e às cidades.

81 Cf. TORGAL, L. Idem, passim.

Page 58: saberes eruditos e práticas de navegar

58

A Universidade permitiu certa mobilidade social ao constituir

um grupo de intelectuais que puderam se aristocratizar, ao longo do

tempo, se ligando à máquina burocrática e cultural do reino ao formar

parte da chamada nobreza de toga.82

Contudo, uma das características peculiares da Universidade

portuguesa foi a sua transterritorialidade, isto é, inicialmente

presenciaram-se algumas mudanças geográficas da sede da

Universidade. Estes deslocamentos eram realizados a partir da

mobilidade do Rei e da Corte.

Portugal não gozava de uma capital fixa no século XIII, a sede

do reino era determinada a partir da mobilidade física do Rei, que

variava entre algumas cidades, destacadamente Lisboa e Coimbra. A

ideia de uma capital fixa começou a ser pensada a partir do século XIV

e Lisboa foi escolhida para esta função por ser a mais importante

cidade do reino como frisou Joaquim Romero MAGALHÃES.83

Algo semelhante ocorreu com a Universidade que, sem

prejuízo na qualidade do ensino, testemunhou algumas mudanças de

sede, entre Lisboa e Coimbra. Portanto, a Universidade conheceu,

inicialmente, duas fases distintas: 1. A mobilidade territorial de 1290-

1537 e 2. A fixação definitiva em Coimbra a partir de 1537.

1. A MOBILIDADE TERRITORIAL DE 1290-1537

Esta fase está dividida em cinco períodos onde teremos sucessivas

mudanças de sede de Lisboa para Coimbra e vice-versa. Desta forma

temos: 1. Lisboa (1290-1308), 2. Coimbra (1308-1338),84 3. Lisboa (1338-

1354), 4. Coimbra (1354-1377) e 5. Lisboa (1377-1537). Neste último

82 Nobreza de Toga é formada por nobres que conquistam títulos através de serviços prestados ao Estado. (N.A) 83 Cf. MAGALHÃES, Joaquim Romero. A delimitação e a percepção do espaço. In: MAGALHÃES, Joaquim Romero (Coord). História da Expansão de Portugal. Lisboa: Editorial Estampa, 1993. pp. 50-59. vol. III (No Alvorecer da Modernidade). 84 A Universidade recebeu os seus primeiros estatutos em 1309, através da Charta magna privilegiorum.

Page 59: saberes eruditos e práticas de navegar

59

período lisboeta, a sede da Universidade permanecerá nesta cidade

por praticamente toda a dinastia de Avis, em cumprimento a uma

promessa feita por D. João I, o Mestre de Avis (N.1357-R.1385-F.1433),85

aos moradores de Lisboa, em especial à burguesia que o apoiara no

processo de conquista da coroa na chamada Revolução de Avis (1383-

1385).

Durante este último período lisboeta, a Universidade manteve-

se praticamente inalterada, sua estrutura escolar organizava-se a partir

dos cursos de Teologia, Direito Canônico e Direito Civil e, segundo

TORGAL, muito superficialmente se sentiu algum progresso científico

para o qual a maior contribuição encontrou-se fora dos muros da

Universidade, principalmente nos chamados Descobrimentos

atlânticos, todo esforço estava voltado para a conquista do mar

oceânico. Simon SCHWARTZMAN86 coadunou com a ideia de TORGAL

acerca do desenvolvimento periférico das ciências pragmáticas na

Europa dos séculos XIII-XV, especialmente em Portugal, que ocorreram

à margem da Universidade.

A partir do quatrocentos houve uma série de reformulações

filosóficas nas universidades, substancialmente as localizadas nas

cidades-estado da Península Itálica, que, ao fim e ao cabo, se

disseminaram por toda Europa, num repensar do Conhecimento

erudito e de seus espaços de circulação.

Estes espaços específicos de produção e circulação dos saberes

eruditos encontraram resistência diante da filosofia escolástica que

imperava desde o século XII nos meios universitários europeus, mas

que nos séculos XIII-XVI foi posto em cheque pela filosofia humanista e

pelo pragmatismo das ciências experimentais abrindo, portanto um

85 GEPB - p.242. vol. 14 86 Cf. SCHWARTZMAN, Simon. A formação da comunidade científica no Brasil. São Paulo: Ed. Nacional, 1979.

Page 60: saberes eruditos e práticas de navegar

60

novo período para a intelectualidade na Europa: o Renascimento.

Os descobrimentos marítimos contribuíram neste repensar do

Conhecimento, nas universidades, a partir da releitura do conceito do

“novo”. Esta palavra/conceito foi de extrema importância para a

penetração das novas ciências (observacionais) no interior das

universidades tais como a cartografia, hidrografia, astronomia,

matemática etc. A abertura do mundo a partir do alargamento

marítimo circunscrito na centúria (1450-1550) proporcionou uma nova

maneira de se observar as coisas e o mundo.

Diversos teóricos como Marsílio Ficino (N.1433-F.1499), Aldo

Manúncio (1452-1515), Erasmo de Rotterdam (N.1467-.1536), Leonardo

Da Vinci (N.1452-F.1519), Nicolau Copérnico (N.1473-F.1543), Nicolau

Maquiavel (N.1469-F.1527), Philip Melanchaton (N.1497-F.1560), Matinho

Lutero (N.1483-F.1546), Thomas Morus (N.1478-F.1535) entre outros,

refletiram acerca da importância do homem enquanto um ser

individual que possui uma liberdade intrínseca, em todos os sentidos,

fazendo deste novo homem um ser dotado de uma áurea renovadora

da Cultura, da Sociedade, da Política, das Ciências e da Religião.

Como foi observado nos dois primeiros capítulos, esta

atmosfera de mudança/transformação em praticamente todos os

campos da sociedade europeia encontrava-se no recorte histórico

clássico delineado por MICHELET e BUCKHARDT: o Renascimento, que

simbolizou o longo caminhar da “civilização” europeia, da

transcendência divina da sociedade Medieval para o pragmatismo

humanista da sociedade Moderna sem, contudo, negar a existência de

Deus. Eram cristãos que questionavam a maneira como o mundo se

organizava a partir do vivido, da experiência.

Cabe destacar que, entre 1500 e 1504, houve a tentativa de

implementação de uma reforma da Universidade portuguesa de cunho

modernizador a partir das reflexões teóricas dos humanistas

Page 61: saberes eruditos e práticas de navegar

61

portugueses acerca do mundo, dos homens e da sociedade. Esta

reforma ocorreu uníssona ao processo europeu de mudanças no

conceito de universitas, simbolizado pela fundação da Universidade de

Wittemberg em 1502, a primeira expressão concreta deste repensar das

universidades como afirmou Willem FRIJHOFF.87 Coaduno com a idéia

de FRIJHOFF de constituição do ideal humanista de academia (espaço

orgânico de discussão/reflexão acerca dos conhecimentos eruditos)

como grande responsável pela superação da concepção medieval de

universitas ou universalidade do conhecimento.

Estava aberto um novo momento para a Cultura erudita

europeia, um momento de interseção entre o velho e o novo; o real e o

imaginado. A epistemologia do Conhecimento erudito é refundada a

partir destes acontecimentos que repercutiram sobre toda a Europa,

principalmente no campo acadêmico das universidades. Não foi acaso

que a primeira grande reforma acadêmica da universitas lusitana

realizou-se por iniciativa do governo de D. Manuel I, o monarca das

grandes descobertas.

A reforma manuelina caracterizou-se, principalmente, pelas

mudanças nos Planos de Estudo e remodelação da administração da

Universidade, em uma tentativa de modernização desta instituição

importantíssima para o pleno desenvolvimento do reino de Portugal,

que se transformou no maior império europeu nos séculos XV-XVI,

como já foi observado no Capítulo II.

A idéia de universitas medieval colocava-se como o espaço para

a formação completa do homem. Por esta razão a adoção do latim nas

aulas e nos livros como forma de universalização do Conhecimento,

que tinha como princípio a idéia de que todo cristão poderia cursar

87 Cf. FRIJHOFF, Willem. Modelos. In: RÜEGG, Walter (Coord.) Uma História da Universidade na Europa. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001, pp. 39-43. 2 vol. (As Universidades na Europa Moderna: 1500-1800). RIDDER-SYMOENS, Hilde de (Coord. Edição).

Page 62: saberes eruditos e práticas de navegar

62

qualquer universidade europeia numa confluência de “irmãos” em

busca de Conhecimento erudito em harmonia e pelo engrandecimento

da fé e filosofia cristã dentro do projeto do Império da cristandade.

Pressupunha-se, desta maneira, uma hierarquização escolar,

colocando os antigos mestres no topo da cadeia de Conhecimento de

maneira quase intocável como afirmou Bernardo de Chartres ao

apontar que os intelectuais eram,

(...) anões empoleirados nos ombros de gigantes. Assim, vemos melhor e mais longe do que eles, não porque nossa vista seja mais aguda ou nossa estatura mais alta, mais porque eles nos elevam até o nível de

toda a sua gigantesca altura (...)88

Teoricamente, o novo ideal acadêmico previa o fim desta

relação axiomática com o Conhecimento ao estabelecer o estudo das

humanidades que ligariam docentes e discentes no mesmo ideal de

construção do Conhecimento erudito89 e, reafirmava-se, nesta

conjuntura, o fim útil que este possuía para os Estados, como enfatizou

Peter BURKE.

Nesta refundação das universidades europeias, colocou-se

como peça fundamental a rediscussão do papel do homem e da

sociedade cristã europeia no mundo, tendo o conceito de liberdade

colocado em todos os níveis filosóficos; da pintura à economia num

repensar do modus vivendi europeu em sua estrutura mental.

Para o caso Português estas mudanças na concepção do

Conhecimento são visíveis no processo de consolidação da universitas,

principalmente na reforma, que privilegiou a especialização e

aprofundamento dos conhecimentos de maneira específica ao retirar

da universidade parte do processo educativo, alocando nos chamados

colégios preparatórios aos moldes franceses de Paris e Bordéus.

88 Citado a partir de Cf. VERGER, Jacques. Idem. 89 Cf. FRIJHOFF, Willem. Idem, pp. 43-47.

Page 63: saberes eruditos e práticas de navegar

63

Outra dimensão importante destas mudanças de concepção do

Conhecimento, em Portugal, encontrou-se nos saberes do mar que

tiveram nos Descobrimentos seu ponto convergente ao estruturar uma

forma de pensamento pragmático a partir da experiência cotidiana.

2. A FIXAÇÃO DEFINITIVA DA SEDE EM COIMBRA (1537)

Depois do longo período em que a Universidade

portuguesa permaneceu em Lisboa (1377-1537), realizou-se em 1537, no

reinado de D. João III, o Piedoso (N.1502-R.1521-F.1557), uma nova

reforma de seu estatuto, que determinou a fixação definitiva da sede

em Coimbra.90 Para além desta questão “territorial”, esta reforma

representou, na prática, uma verdadeira refundação da Universidade,

segundo MENDES.91

O primeiro problema desta mudança de sede foi a falta de um

planejamento, que contribuiu para a recusa da maioria dos lentes92 da

corporação universitária em trocar Lisboa por Coimbra. Como

consequência, houve a elevação dos salários dos professores que

permaneceram ligados à Universidade, e a contratação de diversos

estrangeiros para ocuparem as vagas que ficaram em aberto, como os

casos dos professores provenientes das universidades de Salamanca e

Alcalá (Martín de Azpicuelta, Martinho de Ledsma e Alfonso do

Prado).93

90 Desde a fundação da Universidade portuguesa em 1290, houve uma série de transferências da sede da universitas lusitana de Lisboa para Coimbra e vice-versa. Somente em 1537 é que houve a fixação definitiva da Universidade na cidade de Coimbra. 91Cf. MENDES, António Rosa. A vida cultural. In: MAGALHÃES, Joaquim Romero (Coord). História da Expansão de Portugal. Lisboa: Editorial Estampa, 1993. p. 387. Vol. III (No Alvorecer da Modernidade). 92 Lente: aquele que lê o curso. (N.A) 93 A infanta Dona Catarina, esposa espanhola de D. João III, levou consigo, para

Page 64: saberes eruditos e práticas de navegar

64

O segundo problema foi a locação física da Universidade:

como não havia um prédio próprio para abrigar toda a instituição,

optou-se pela instalação no Mosteiro de Santa Cruz e seus anexos,

além da utilização de outros prédios como a residência do reitor da

Universidade.

D. João III confiou o processo de mudança da matriz

acadêmica da Universidade nas mãos do frei Brás de Barros e,

seguidamente, nas do frei Diogo de Murça,94 ambos da Ordem dos

Jerônimos, que era protegida pela família real e detinha o papel de

reformadora do monaquismo português quinhentista. Eram

conhecidos, também, pelo ecletismo teórico, sendo profundos

admiradores do humanismo cristão de Erasmo de Rotterdam.

Segundo MENDES, as concepções humanistas, presentes na

Universidade, neste momento, estavam intimamente ligadas às ideias

de Erasmo de Rotterdam que era o principal intelectual da Europa da

primeira metade do quinhentos, e que exerceu profunda influência em

vários intelectuais portugueses.95

Dentre todos os lusitanos desta brilhante geração de

humanistas destacamos Damião de Góis (N.1502-F.1574) e André de

Resende (N.1498-F.1573) como grandes admiradores e seguidores das

idéias de Erasmo.

Dentro deste espírito reformista, deixaram-se definitivamente

as ideias da universitas medieval de concentração do ensino, em todos

os seus níveis, em uma única instituição, passando-se assim à

constituição de colégios preparatórios para o ingresso nas faculdades.

Seguiu-se a tendência das principais universidades europeias

Portugal, uma Corte de grandes intelectuais e artistas espanhóis que contribuíram muito para o desenvolvimento da Cultura humanista em Portugal. 94Frei Diogo de Murça (O.S. Jerônimo), o primeiro reitor a possuir o grau de Doutor (em Teologia); único da Ordem de S. Jerônimo. Ficou à frente da administração de 1543 a 1555. 95 Cf. MENDES, António Rosa. Idem., pp. 380-382.

Page 65: saberes eruditos e práticas de navegar

65

como Paris, Oxford e Salamanca de se privilegiar apenas o ensino

“superior”, cabendo a preparação dos alunos a escolas cuja estrutura e

as orientações pedagógicas eram, até certo ponto, “independentes” da

Universidade.

A universitas perdeu totalmente seu caráter universalista para

dedicar-se ao aprofundamento dos conhecimentos específicos.

Mudança que, na prática, alterou toda a carga conceitual da palavra

Universidade, seu significado e sua estrutura medieval são superados

pelo “novo” conceito humanista/moderno de Universidade: espaço de

aprofundamento e questionamento do Conhecimento que deveria ser

pautado pelas necessidades prático-burocráticas do Estado.

As inovadoras escolas preparatórias caracterizaram-se por um

ensino altamente qualificado e pela formação de um quadro docente

composto por brilhantes intelectuais. Para o caso português foi

fundamental a contribuição da geração humanista na formação do Real

Colégio das Artes, fundado por D. João , em 1547, para ser o modelo de

escola de todo o Reino.

Estes intelectuais humanistas, hegemonicamente do ciclo

erasmiano tiveram acesso às principais instituições de ensino

europeias, a partir da concessão de bolsas de estudo dadas pelo Poder

Régio para que houvesse uma modernização dos saberes eruditos em

Portugal, a partir do contato direto com estas instituições de ensino.

Como caso paradigmático, cito André de Gouveia (N.1497-

F.1548), que foi diretor de colégios preparatórios em Bordéus e Paris e

encerrou sua carreira acadêmica como Principal (Diretor) do Colégio

das Artes de Coimbra, instituição esta importantíssima para o

desenvolvimento intelectual dos jovens portugueses.

2.1. O REAL COLÉGIO DAS ARTES: DO HUMANISMO CRISTÃO À

ESCOLÁSTICA TRIDENTINA

Page 66: saberes eruditos e práticas de navegar

66

O Real Colégio das Artes (1547) surgiu a partir da

necessidade de elevação da qualificação dos alunos que tinham acesso

à Universidade. D. João III concebeu a idéia de construir um colégio

preparatório aos moldes das principais instituições educacionais

europeias transpirenaicas,96 como o caso do Collège de France, fundado

em 1530, com o fito de preparar os estudantes para o ingresso na

Universidade de Paris.

O Colégio das Artes deveria ser a escola modelo de todo o

Império e para a concretização deste projeto foi vital a contratação de

André de Gouveia para o cargo de Principal, atendendo aos anseios

dos humanistas portugueses que vislumbravam uma escola

preparatória diferentemente do ensino monástico e eclesiástico que era

hegemônico em Portugal.

Portanto, o Colégio das Artes foi organizado seguindo os

pressupostos do humanismo de corte erasmista, tendo como princípio

a tríplice aliança: educação-ensino, piedade-estudo e letras-ciências. O

homem deve ser cristão e culto, porém sua formação precisa ser dada

no mundo e não no convento. Esta era a máxima na filosofia do círculo

de humanistas cristãos portugueses e que foi empregada no Colégio

das Artes como ponto nodal dos princípios educacionais renovadores

do ensino lusitano.97

O corpo docente do Colégio das Artes foi constituído, em sua

maior parte, de ilustres mestres estrangeiros e nacionais que vieram

com André de Gouveia e que lecionaram no Collège de Guyenne em

Bordéus.

96 Cf. MAGALHÃES, Joaquim Romero. D. João III. In: MAGALHÃES, Joaquim Romero (Coord). História da Expansão de Portugal. Lisboa: Editorial Estampa, 1993, p. 539. Vol. III (No Alvorecer da Modernidade). 97 Cf. MENDES, António Rosa. Idem, p. 388.

Page 67: saberes eruditos e práticas de navegar

67

A vinda destes mestres humanistas, reconhecidos

internacionalmente, proporcionou a elevação da qualidade do ensino,

confirmada pelo número expressivo de alunos matriculados no ano

letivo de 1548 e pela adoção de um currículo organizado a partir das

disciplinas de humanidades.98 André de Gouveia dá conta ao Rei em

carta de 13 de março de 1548 de 800 alunos matriculados e uma

perspectiva de aproximadamente 2000 até o fim do referido ano.99

Com a morte inesperada do Principal, André de Gouveia, em

junho de 1548, o equilíbrio das forças políticas dentro e fora do Colégio

foi abalado, e a partir de determinados intelectuais, imbuídos pelo

espírito tridentino da nova escolástica, promovem alterações no corpo

docente e na própria estrutura do Colégio.

As teorias de Erasmo de Rotterdam foram contestadas no

Concílio de Trento (1545-1563)100 e os primeiros questionamentos

realizados pelos tridentinos portugueses acerca da laicização do ensino

tomaram força neste período de fins da primeira metade do

quinhentos e, rapidamente, ganharam espaço. Ao contrário os

humanistas perdiam terreno frente ao poder da Contra-reforma

portuguesa, principalmente, a partir da consolidação do Tribunal do

Santo Ofício (Inquisição), que foi constituído em Portugal em 1536.

Nesta batalha intelectual e política, o ilustre clérigo tridentino

Diogo de Gouveia, tio de André, conseguiu indicar como substituto na

direção do Colégio das Artes seu sobrinho e homônimo, que era

igualmente ligado ao campo dos intelectuais tridentinos. Havia um

sentimento de desprezo entre Diogo e André devido aos

acontecimentos que remontam a Paris de 1534. André, após ser

98 Idem, p. 17. 99 Idem, p. 390. 100 No ano de 1559, todas as obras de Erasmo foram colocadas no Index de obras proibidas pelo Concílio de Trento. Cf. MARTINS, Wilson. História da Inteligência Brasileira. 2. ed. São Paulo: Editora Cultrix, 1977, pp. 17-22. Vol. I (1550-1794).

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68

nomeado diretor do Colégio de Santa Bárbara, através de indicação do

tio, acabou por abandoná-lo, levando consigo os principais professores

desta instituição, incluindo ex-bolsistas portugueses.101

Diogo (sobrinho) não ficou muito tempo no cargo e acabou

sendo substituído por João da Costa, que foi um dos mais importantes

colaboradores de André de Gouveia. No período circunscrito entre

1548 e 1550, o cargo de Principal do Colégio oscilou entre estes dois

intelectuais que representavam os campos político-religiosos

antagônicos na disputa pelo Colégio das Artes: os humanistas e os

tridentinos.

Em 1550, os principais humanistas foram presos pela

Inquisição acusados de suspeita de simpatia pelas doutrinas luteranas,

cabendo destacar: Diogo de Teive, João da Costa e Jorge Buchanan. Por

consequência, os últimos professores humanistas bordaleses

desligaram-se do Colégio e deixaram Portugal.

As principais acusações que recaíram sobre estes humanistas

foram:

1. Todos ou quase todos os professores bordaleses eram suspeitos de

sentire mal da fee e sere da secta de Luther.

2. Teive, Costa e Buchanan não guardavam jejuns, escandalizando com

suas heréticas doutrinas.

3. Teive professava as mais torpes doutrinas epicuristas.102 Era

conhecido de Sainte-Marthe e íntimo de Dolet.

4. Buchanan fugira da Escócia por herege, pois comera o cordeiro

101 Cf. MENDES, António Rosa. Idem, p. 389. 102Epicurista, adj. e s. ,. e f. o mesmo que epicúrio: Mas o senhor de Resende teve exigências tão epicuristas a respeito do refeitório (Eça, Notas Contemp., p. 421, ed. 1913); florescendo apenas as seitas dos epicuristas, dos estóicos, e dos cínicos (Reb. da Silva, Fastos, II, p. 206, ed. 1870); Atribuíam-na ao volterianismo que continuava a alastrar da cidade para a aldeia, aos gostos epicuristas cada vez mais arreigados à americanização crescente do mundo (Aq. Ribeiro, Aldeia, c. 3, p. 69, ed. 1946). || F. Epicuro, n. pr. Cf. D.C.A, p.1796.

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69

pascal, segundo o rito judendo.103

O caso de Diogo de Teive foi o mais dramático e interessante

por ter sido um dos principais colaboradores de André de Gouveia e

por ter conquistado uma posição intelectual de destaque no ciclo de

humanistas portugueses.

A Inquisição, ao condená-lo, estabeleceu duras penas, das

quais só se viu livre com a intervenção direta do Cardeal D. Henrique

que pertencia à Ordem dos Jerônimos. Teive foi obrigado a retirar-se

para Braga, sua terra natal, seguindo a carreira eclesiástica a qual lhe

rendeu ainda mais prestígio e fama de grande erudito.

Por esta razão foi chamado, novamente, para lecionar no

Colégio das Artes, sendo nomeado seu Principal em 1555, altura em

que o Colégio foi entregue à Companhia de Jesus e que,

imediatamente, tratou de destituí-lo do cargo.

Segundo Wilson MARTINS, os jesuítas foram ocupando espaço

no corpo docente do Colégio das Artes a partir de 1553 e,

consequentemente, conseguiram obter o controle da instituição em

1555, data em que foi entregue aos cuidados da Companhia a

administração desta importante instituição de ensino.104

A vinda dos jesuítas para Portugal deve-se ao projeto de D.

João III de reestruturação do trato colonial. Somente a coerção física

não bastava para a conquista definitiva dos novos territórios lusitanos

e seus povos, era preciso o componente ideologizador: a religião.

Diogo de Gouveia, responsável pelo Colégio de Santa Bárbara

em Paris, sabendo das necessidades do Rei, relatou a existência de uma

nova Ordem, liderada por Inácio de Loyola, que seria o componente

ideologizador que faltava para a empresa colonizadora.

Portanto, os jesuítas chegaram a Portugal pelas mãos de Diogo

103 Cf. BRANDÃO, Mário. O Colégio das Artes. Vol I, pp. 138-139. 104 Cf. MARTINS, Wilson. idem., p. 24.

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70

de Gouveia e de D. João III, que havia percebido nas ordens

franciscana e dominicana, há muito instaladas no reino, a falta de

respostas satisfatórias às demandas ideológicas e organizativas dos

novos espaços de exploração mercantil e religioso, abertos pelos

Descobrimentos atlânticos e asiáticos.

Inácio de Loyola atendeu à convocação do Rei lusitano e

enviou para Portugal, em 1540, dois dos seus primeiros companheiros:

o navarro Francisco Xavier e o português Simão Rodrigues. Por causa

de seu espírito empreendedor, a Companhia de Jesus exerceu papel

fundamental nos novos domínios, o que lhe rendeu certa fama e

credibilidade junto ao Rei e à Nobreza.

A reforma da Universidade e a criação do Colégio das Artes

ocorreram no período de montagem da máquina repressora tridentina

em Portugal. Por esta razão, o humanismo cristão foi contestado pelas

reflexões da nova escolástica capitaneada pela Companhia de Jesus

que atuou em todos os níveis do ensino no Império Ultramarino

Português, contribuindo para a formação de uma nova

intelectualidade em fins do Renascimento lusitano.

Page 71: saberes eruditos e práticas de navegar

71

O povo lusitano fez-se ao mar precocemente. A partir do

ideal cruzadístico da Reconquista territorial constituiu seu reino, povo

e cidades, que desde sua aurora contrapôs-se aos elementos não-

europeus. Explorou a diversidade cultural de sua região, que lhe deu

contrastes interessantes e revolucionários. Constituiu seu Estado,

centralizando o poder nas mãos do Rei com os devidos apoios da

Igreja e da burguesia (1385). Fez-se assim o povo lusitano como

observado no Capítulo I, ao explorar sua herança cultural e ideológica

(bizantinos e muçulmanos), impondo os limites entre o real e o

imaginário, entre o lógico e o mágico, entre o vivido e o pensado.

Os descobrimentos marítimos são a resultante do processo de

constituição do homem moderno português: Destemido, inventivo,

prático e inteligente. Os saberes técnico-eruditos desenvolvidos pelos

lusitanos garantiram esta hegemonia intelectual como fora

demonstrado no capítulo II. Os avanços e conquistas foram frutos do

trabalho cotidiano e árduo dos portugueses que alargaram as

fronteiras do mundo europeu nos séculos XIV-XVI.

Neste longo caminhar lusitano rumo à modernização do

Estado Monárquico, o século XVI foi, por excelência, o século

português, porque foi o século da hegemonia marítima lusitana. O

reinado de D. João III constituiu o ápice da magnificência do domínio

territorial e cultural deste povo oceânico.

Porém, dentro deste processo de modernização do reino, que

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se transformou em Império Ultramarino, estão algumas das principais

linhas de força que se colocaram de maneira antagônica e que

hegemonizaram os debates acerca das diretrizes políticas e filosóficas

de Portugal para os séculos subsequentes.

Portanto, D. João III passou para a História como o Rei que

promoveu a primeira grande reforma da Universidade de

Portugal/Coimbra (1537) e criou o Colégio das Artes (1547). Ao mesmo

tempo permitiu a instauração do tribunal do Santo Ofício (1536), em

terras portuguesas, e foi o responsável direto pela entrada da

Companhia de Jesus em Portugal (1540) e seus domínios no ultramar, o

que significou, na prática, a reestruturação do pensamento escolástico

nos domínios lusitanos, além de uma nova maneira de se olhar e

explorar as conquistas territoriais.

Desta forma, pode-se observar a disputa realizada entre

tridentinos e humanistas, na segunda metade do quinhentos, mais

centrada no campo da Filosofia e da Teologia do que no campo das

ciências experimentais.

O cerne da disputa se encontrava na esfera ideológica, nos

rumos do cristianismo católico após a cisão protestante de 1517. A

empresa mercantil dos Descobrimentos não sofreu alterações em seu

ritmo expansionista e os elementos tridentinos (Companhia de Jesus)

foram a chave para a concretização deste projeto de Império que estava

em curso no reino de Portugal.

Só se pode falar, de fato, em Império Ultramarino Português, a

partir das ações empreendedoras dos jesuítas que deram o caráter

religioso e cultural a este périplo ideológico/mercantil. Foram estes

atores os construtores dos primeiros espaços de produção e circulação

dos saberes eruditos no além mar, como se comprovou em Goa, Macau

e, principalmente, na América portuguesa.

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