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EXPEDIENTEInstituto Brasileiro de Ciências Criminais

DIRETORIA DA GESTÃO 2011/2012

Presidente: Marta Saad

1º Vice-Presidente: Carlos Vico Mañas

2º Vice-Presidente: Ivan Martins Motta

1ª Secretária: Mariângela Gama de Magalhães Gomes

2ª Secretário: Helena Regina Lobo da Costa

1º Tesoureiro: Cristiano Avila Maronna

2º Tesoureiro: Paulo Sérgio de Oliveira

Assessor da Presidência: Rafael Lira

CONSELHO CONSULTIVO: Alberto Silva Franco, Marco Antonio Rodrigues Nahum, Maria (ereza Rocha de

Assis Moura, Sérgio Mazina Martins e Sérgio Salomão Shecaira

Publicação Oficial do Instituto Brasileiro de Ciências CriminaisCoordenador-chefe:

João Paulo Orsini Martinelli

Coordenadores-adjuntos:

Camila Garcia da Silva; Luiz Gustavo Fernandes; Yasmin Oliveira

Mercadante Pestana

Conselho Editorial da Revista Liberdades

Alaor Leite

Alexis Couto de Brito

Cleunice Valentim Bastos Pitombo

Daniel Pacheco Pontes

Giovani Agostini Saavedra

Humberto Barrionuevo Fabretti

José Danilo Tavares Lobato

Luciano Anderson de Souza

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A APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO PROJETO DE CÓDIGO PENAL

Gustavo de Oliveira Quandt

Resumo: O presente estudo analisa o arts. 2º a 13 (integrantes do Título I da Parte

Geral, relativo à aplicação da lei penal) do projeto de novo Código Penal (Projeto de

Lei nº. 236/2012), comparando-o com o texto vigente e examinando criticamente as

alterações propostas. Ao 'nal, expõem-se algumas considerações sobre o Projeto como

um todo e se conclui que é melhor que ele não seja aprovado.

Palavras-chave: Reforma do Código Penal – Projeto de Lei nº. 236/2012 – Aplicação

da lei penal – lei penal no tempo – combinação de leis – lei penal no espaço –

extraterritorialidade – homologação de sentença penal estrangeira – concurso aparente

de normas penais.

Abstract: +is study analyzes articles 2 to 13 of the new criminal code bill number

236/2012 (Title 1/ General part, related to criminal law enforcement), It provides a

comparison between this bill and the text in force and analyzes the changes proposed

in a critical manner. Finally, it draws some considerations about the entire content of

the bill and concludes that is should not be approved.

Key words: Criminal Code Reform, bill number 236/2012, criminal law application,

logus regit actum, combination of laws, locus regit actum, extraterritorial, approval of

foreign criminal sentences, apparent con4ict of criminal laws.

Sumário: Introdução – Método de trabalho – Aplicação da lei penal no tempo

– Aplicação da lei penal no espaço – Outras regras sobre a aplicação da lei penal –

Concurso aparente de normas penais – Legislação especial – Considerações 'nais.

Introdução

O projeto de Código Penal em tramitação no Senado Federal representa mais uma

etapa nos esforços de reforma que remontam à década de 1960. Caso se converta em lei e

entre em vigor, consistirá na quarta grande modi'cação da Parte Geral desde a edição do

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Código vigente. Das outras três, duas se limitaram à disciplina das penas – Leis 6.416/1977 e

9.714/1998 – e a remanescente, posto que tenha instituído uma nova Parte Geral, igualmente

se concentrou nesse mesmo aspecto (Lei 7.209/1984).1

É seguro dizer que o título da aplicação da lei penal não era o objeto principal da reforma,

como demonstra a ausência de qualquer menção a ele nos consideranda que precedem o texto do

projeto. Ainda assim, a comissão logrou propor numerosas modi'cações, nem todas super'ciais,

e algumas aptas a suscitar certa polêmica. Examiná-las criticamente e veri'car se alguma outra

inovação se poderia vantajosamente promover constitui o objeto deste texto.2 Ao 'nal, oferece-

se um balanço geral do título examinado e a impressão do projeto como um todo.

Método de trabalho

A comissão utilizou o texto vigente como ponto de partida, como anteriormente o 'zera

Nélson Hungria ao elaborar seu anteprojeto em 19633 e como se fez, também na edição da

Parte Geral atualmente em vigor.4 No título relativo à aplicação da lei penal, mantêm-se, no

projeto em discussão, a estrutura da lei vigente e a redação de diversos dispositivos, propondo-

se algumas alterações e suprimindo-se um ou dois preceitos.

Tal método de trabalho possui a vantagem de preservar a tradição de nosso direito,

evitando controvérsias inúteis acerca de novas disposições voltadas a dizer, nem sempre com

real melhoria, o que já se continha no texto a substituir.5 Além disso, o Código vigente, posto

1 ..... Há obras especí'cas sobre cada uma dessas reformas, como as de Damásio de Jesus: O novo sistema penal, São Paulo: Saraiva, 1977; Curso sobre a reforma penal (organizado pelo autor citado), São Paulo: Saraiva, 1985; Penas alternativas, São Paulo: Saraiva, 1999.

2 ..... Não havendo outra indicação, os ar tigos, parágrafos e outros dispositivos citados integram o Código Penal em vigor ou o projeto em exame, conforme o caso. Os acórdãos citados foram obtidos nos sítios eletrônicos dos tribunais que os proferiram. As obras consultadas são citadas com referências completas na primeira oportunidade, e com a indicação da nota de rodapé com essa referência nas ocasiões subsequentes. O texto interpolado em citações para melhor esclarecê-las vai entre colchetes.

3 ..... A opinião é de Dotti, História da legislação penal brasileira (II), em Casos criminais célebres, 2. ed., São Paulo: Ed. RT, 1999, p. 369, e Costa Jr., Heitor, Aspectos da parte geral do anteprojeto de Código Penal, Justitia 120/144, São Paulo, jan.-mar. 1983, disponível em: <www.justitia.com.br/revistas/a6bd7a.pdf>.

4 ..... A bem da verdade, a reforma efetivamente aprovada foi mais tímida que o projeto. Veja-se o texto original publicado pelo Ministério da Justiça em 1983, bem como as notas comparativas daquela versão com o texto de'nitivo contidas em Cunha Luna, Capítulos de DP: PG, São Paulo: Saraiva, 1985, p. 139 e ss.

5 ..... Obviamente, esse amor à tradição não justi'cava a preocupação absurda e ridícula de manter-se a numeração dos dispositivos que preveem os crimes mais conhecidos. É verdadeiramente assombroso que a comissão confesse ter dedicado “grande cuidado (…) em manter o indicativo numérico de condutas que, de tão tradicionais, ingressaram no ‘patrimônio imaterial’ dos aplicadores e estudiosos do Direito Penal”, sob o preço de negar “primazia aos ‘Crimes contra a Humanidade’, que bem poderiam iniciar a parte especial”. Supúnhamos que o patrimônio imaterial de nosso Direito Penal fossem os Comentários de Hungria e Costa e Silva, o Direito Penal de Aníbal Bruno. Mas o projeto em si considerado fornece mostras ainda mais inquietantes do senso de prioridade da comissão (v. nota 101 para um singelo exemplo).

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que possua defeitos, não os ostenta em quantidade tal que justi'que seu completo abandono

– ao menos no título em questão. Contudo, a utilização do texto em vigor como esboço

cria o perigo de se manterem dispositivos que, embora suportáveis, poderiam perfeitamente

suprimir-se. Em particular, se bem que em outros setores que não o da aplicação da lei penal,

é notória a simpatia do Código vigente pelas de'nições, aspecto criticável sob o ponto de vista

doutrinário e preservado, se não acentuado, no projeto.6

Assim, uma primeira análise dos dispositivos passa pela indagação acerca de sua

pertinência no texto legal. Aqui, podem-se divisar dois extremos: elaborar-se um texto prolixo

e detalhista, voltado à clareza, mas tendente ao engessamento do desenvolvimento da ciência

penal; ou se limitar os dispositivos legais ao mínimo necessário, deixando-se a solução de

inúmeras e relevantes questões para a doutrina e a jurisprudência.7 O Código em vigor, embora

mais conciso que o seu modelo italiano, parece dar preferência para a primeira alternativa,

e o projeto em exame, ao acrescentar mais do que suprime, intensi'ca essa tendência. Neste

passo, é conveniente destacar que, como adiantado, há alguns dispositivos já vigentes, e outros

incluídos no projeto, cuja necessidade é discutível, bem como observar que a reforma de 1984

já estendeu em alguns artigos a parte dedicada às teorias da lei penal e do crime. Conquanto

ainda estejamos longe do insólito Código Penal mexicano de 1929, com seus 1.233 artigos,

355 dos quais na Parte Geral,8 todo exagero começa com um primeiro passo.

Aplicação da lei penal no tempo9

6 ..... O regime legal da tentativa fornece eloquente exemplo: não apenas se conservou a ociosa de'nição de crime consumado (art. 22, I), como se pretendeu de'nir o início da execução (art. 24). Sobre essa questão, v. Greco, neste volume.

7 ..... Em defesa da segunda alternativa, Sancinetti, Exigencias mínimas de la dogmática del hecho punible en la parte general de los códigos Penales, disponível em: <http://perso.unifr.ch/derechopenal/documentos/articulos> (há versão impressa, ligeiramente expandida, intitulada Dogmática del hecho punible y ley penal, Buenos Aires: Ad Hoc, 2003).

8 ..... Jiménez de Asúa, Tratado de DP, t. I, 2. ed., Buenos Aires: Losada, n. 402, p. 1162; Costa e Silva, O novo projeto de Código Criminal, republicado como apêndice do DP, v. I, São Paulo: Companhia Ed. Nacional, 1943, p. 376.

9 ..... Também o art. 1.º, abordado por Greco neste volume, concerne à lei no tempo. Quanto ao referido dispositivo, é de lamentar que o projeto não tenha estendido expressamente dos princípios da reserva legal e anterioridade às medidas de segurança. A concepção otimista segundo a qual elas correspondem a um benfazejo tratamento, sem caráter punitivo, foi desmentida pela realidade prática e vem dando lugar à opinião de que não se devem subtrair ao inimputável as garantias próprias de um Direito Penal democrático. Fragoso, em Hungria/Fragoso, Comentários ao CP, v. I, t. I, 6. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1980, n. 9, p. 228, e n. 18, p. 239, entre vários outros. Ao tratar da duração das medidas de segurança, o projeto acolhe a tendência jurisprudencial (STF, HC 84219, 1.ª T., Min. Marco Aurélio, j. 16.08.2005; STJ, HC 121877, 6.ª T., Min. Maria +ereza de Assis Moura, j. 29.06.2009) de banir as medidas perpétuas (art. 96, § 2.º), reconhecendo que a 'nalidade meramente terapêutica do tratamento dispensado aos inimputáveis não lhe retira a natureza intrinsecamente a4itiva. Limitar tal tratamento à previsão legal existente ao tempo da prática do ilícito penal se harmonizaria perfeitamente com o reconhecimento de que a medida de segurança é uma intervenção severa na esfera de direitos do indivíduo e deve

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O art. 2.º do projeto praticamente reproduz o dispositivo correspondente do Código

em vigor, com o acréscimo de um parágrafo sobre a controvertida combinação de leis e uma

pequena mudança de redação. A rubrica, contudo, foi substituída por “sucessão de leis penais no

tempo”. O retoque no teor do caput (de “ninguém pode ser punido” para “é vedada a punição”)

era desnecessário, embora a malsonante expressão “é vedada” (que também aparece no art. 54,

§ 2.º) pareça até bela quando comparada com os horrendos “+ca vedada” e “+cam revogadas”

(arts. 105, § 3.º, e 544). A nova rubrica, por sua vez, expressa adequadamente o conteúdo do

artigo, que disciplina o confronto de uma lei existente com outra superveniente (a hipótese da

aparição de uma lei onde não havia nenhuma é inteiramente resolvida pelo art. 1.º, caput), mas

incide em pleonasmo, pois a sucessão de leis é sempre “no tempo”; o complemento poderia

vantajosamente suprimir-se.

Tal como sucede com o caput do art. 1.º, o art. 2.º (ressalvado seu novo § 2.º) já está

contido, de certa forma, no texto constitucional, porquanto é pací'co em doutrina que o inciso

XL do art. 5.º da Constituição da República não apenas autoriza, como verdadeiramente impõe

a retroação da lei penal mais bené'ca. Contudo, tendo em vista a função de consolidação e

divulgação que o Código possui, função esta que tanta atenção vem merecendo na reforma,10

a manutenção e explicitação, no texto básico da legislação penal, de regras tão importantes,

justi'ca-se plenamente. Sugerimos unicamente a troca da palavra “sentença” por “decisão”,

uma vez que aquela não designa apropriadamente os julgamentos proferidos pelos órgãos

colegiados, que no Brasil recebem o nome de acórdãos (CPC, art. 163).11

A grande novidade, em matéria de Direito Penal intertemporal, é a regra que autoriza

a controvertida combinação de leis (art. 2.º, § 2.º). Como se sabe, a questão surge com a

sobrevinda de lei mais bené'ca que a anterior em certos aspectos e mais rigorosa em outros.

Na vigência do Código Penal de 1940, a doutrina nacional majoritária repelia a aplicação

conjunta de dispositivos da lei revogada e da lei nova, defendendo a aplicação integral da lei

que, no seu conjunto, se mostrasse mais favorável.12 Os projetos e leis que se dedicam à matéria,

ajustar-se à garantia da irretroatividade.

10 ... Vejam-se os consideranda que precedem o projeto na publicação o'cial, dos quais se pode destacar o seguinte trecho: “Os destinatários da norma penal não são, à evidência, apenas os seus estudiosos e aplicadores, mas toda a sociedade brasileira”. Sobre isso ver Leite, nesse volume.

11 ... Posto à parte o fato de que também o acórdão que “con'rma” a sentença recorrida a substitui (art. 512 do CPC), o que é aceito até por um crítico mordaz da aplicação do CPC ao processo penal (Aury Lopes Jr., Direito processual penal e sua conformidade constitucional, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, v. 2, p. 455 – se bem que em contradição com a p. 580), têm-se ainda as decisões proferidas nas ações penais de competência originária dos tribunais e os acórdãos que reformam sentenças.

12 ... Vejam-se, entre vários outros: Galdino Siqueira, DP brazileiro, PG, 2. ed., Rio de Janeiro: Jacintho, 1932,

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geralmente contêm preceito inverso ao que se propõe no projeto em exame.13 Contudo,

intensi'cou-se nos últimos anos a crítica a tal orientação, que limitaria indevidamente o

mandato constitucional de retroatividade da lei mais bené'ca.14

Os principais argumentos favoráveis e contrários são bastante conhecidos e se expuseram

no julgamento do RE 596152, discutido adiante. Todavia, ainda parece existir espaço para

algum aprofundamento na matéria, uma vez que alguns daqueles argumentos – tanto dos

críticos como dos defensores da combinação de leis – são sumamente duvidosos, e a resenha

bibliográ'ca e jurisprudencial circulante contém algumas imprecisões. Dizem os opositores

que a combinação de leis transformaria o juiz em legislador, pois editaria uma terceira lei,

composta de partes da nova e da velha; no entanto, falta demonstrar que o julgador, para

manter-se nos domínios do seu ofício, deve aplicar a lei alternativa e integralmente, e não

conjugada e parcialmente. Já os partidários da aplicação conjunta, quando a defendem sob o

n. 31, p. 62 (com o argumento da criação de uma lei transitória, o que importaria legislar); o mesmo, Tratado de DP, I, 2. ed., Rio de Janeiro: José Ko'no, 1950, n. 148, p. 163; Costa e Silva, CP, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1930, v. 1, p. 21 (combinar as leis “será aplicar uma lei que não existe, talvez um monstro jurídico”); o mesmo, nota 8, p. 26 (“mais favorável é a lei que tomada em seu conjunto, acarreta menor condenação”); Maximiliano, Carlos, Direito intertemporal, Rio de Janeiro/São Paulo: Freitas Bastos, 1946, n. 256, p. 298 (“Não é lícito dividir as duas normas positivas e aplicar uma fração de cada uma; pois, procedendo de outro modo, o magistrado usurparia funções de legislador”); Bruno, Aníbal, DP, t. I, 2. ed., Rio de Janeiro: Forense, s.d. (mas 1959), p. 270 (“não sendo lícito ao juiz compor, por assim dizer, uma lei nova com os elementos mais favoráveis das que realmente existem”); Hungria, em Hungria/Fragoso (nota 9), n. 11, p. 121.

13 ... Projeto Sá Pereira, art. 16 (cf. Costa e Silva, nota 12 (1930), p. 21, nota 2); Anteprojeto Hungria, art. 2.º, § 2.º; CP-1969, art. 2.º, § 2.º (com o aplauso de Costa Jr., Heitor, nota 3, p. 147); CP Tipo para a América Latina (consultado na revista Nuevo Pensamiento Penal, Buenos Aires, 1972, p. 153), art. 8.º; CP espanhol, segunda disposição transitória. Como lembrado por Toron (A combinação de leis no tempo no direito comparado, RT 772/446, fev. 2000) e Mirabete (Manual de DP, 20. ed., São Paulo: Atlas, 2003, v. 1, n. 2.2.8, p. 67), o CPM brasileiro em vigor, irmão-gêmeo do já citado CP-1969, igualmente proíbe a combinação de leis.

14 ... Dotti, Combinação de leis sucessivas: a superação de um mito, Revista da Escola Nacional de Magistratura, Brasília, v. 2, n. 5, p. 34, abr. 2008 (disponível em: <http://bdjur.stj.gov.br/xmlui/bitstream/handle/2011/21258/combinacao_leis_sucessivas.pdf>); Toron, nota 13, passim; Silva Franco, em Franco/Stocco (org.), CP e sua interpretação jurisprudencial, 8. ed., São Paulo: RT, 2007, p. 66 (mais claramente apegado ao argumento constitucional em Retroatividade penal bené'ca, RT 589/286, São Paulo, nov. 1984); Malheiros Filho, Direito intertemporal penal: possibilidade de “combinação” de leis, RBCC 66/373-389, São Paulo, maio.-jun. 2007, todos com referências. Também em defesa da combinação de leis, Taipa de Carvalho, Sucessão de leis penais, 2. ed., Coimbra: Coimbra, 1997, p. 192 e ss. Cirino dos Santos contrapõe essa “posição moderna” à “posição tradicional” (DP, PG, Curitiba: ICPC, Lumen Juris, 2006, p. 50). Realmente, houve época em que prestigioso doutrinador reputou “supér4ua” a proibição da combinação de leis, por reputar “pací'co” o princípio (Costa e Silva, nota 12 (1930)). Contudo, é preciso destacar que a “posição moderna” tem precedentes relativamente antigos – mencionados por Soler (DP argentino, 2. ed., 1ª reimp., Buenos Aires: TEA, 1951, t. I, § 17, VIII, p. 212), Núñez (Tratado de DP, 2. ed., 2. reimp. Córdoba: Marcos Lerner, 1987, t. I, § 4.º, I, X, p. 138) e Jiménez de Asúa (Tratado de DP, 2. ed., Buenos Aires: Losada, 1958, t. II, n. 715, p. 639), entre outros –, e que a “posição tradicional” ainda tem representantes de peso, como Cerezo Mir, DP, p. 283, Cury Urzúa, DP, PG, 10. ed., Santiago: Universidad Católica de Chile, 2011, p. 228, Maurach/Zipf, DP, PG, trad. 7. ed. alemã (1987), Buenos Aires: Astrea, 1994, § 12/14, p. 201, e Zaffaroni, Tratado de DP, PG, t. I, reimp., Buenos Aires: Ediar, 1998, p. 464 e 467.

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argumento de que a Constituição assim determinaria,15 'cam a dever a prova de que ela, ao

mandar retroagir a lei mais bené'ca, refere-se a cada dispositivo e não à lei como um todo.

Na realidade, a questão é mais duvidosa do que sugerea simples contraposição entre

opositores e partidários da combinação de leis. Com efeito, o acordo sobre a possibilidade, em

tese, da combinação de leis, nada diz sobre a comunhão de pensamento acerca das hipóteses em

que tal combinação seria cabível. Veja-se a opinião de Basileu Garcia, talvez o primeiro autor

nacional a pôr em dúvida o caráter absoluto da imiscibilidade das leis:

“Esse critério [da não combinação de leis], como orientação geral, é exato. Mas há

casos em que a sua observância estrita leva a consequências clamorosamente injustas,

e será necessário temperá-lo com um pouco de equidade. A própria Lei de Introdução

do Código Penal (Dec.-lei 3.914/1941), procurando resolver algumas hipóteses de

con!ito de leis no tempo, admitiu, em certa passagem, a combinação da lei antiga

com a nova”.16

A passagem transcrita chama a atenção por duas razões. Em primeiro lugar, o autor

expressamente adere à vedação da combinação de leis como orientação geral, transigindo

apenas excepcionalmente com a conjugação delas. Além disso, o questionamento do caráter

absoluto daquela vedação é feito em termos meramente especulativos, pois nenhum exemplo

de consequências clamorosamente injustas é fornecido.17 Os dois aspectos se repetem em Assis

Toledo, que cita textualmente um trecho da passagem de Basileu Garcia supratranscrita e

antes contesta a rigidez da proibição de combinação de leis do que sua validade como ponto

de partida, sem fornecer qualquer exemplo no qual a dita combinação fosse imperiosa.18

Essas nuanças se esvanecem quando se contrapõem, sem maiores considerações,

defensores e críticos da combinação de leis – o que é correto, mas enganoso – e desaparecem

por completo quando se arrolam os dois autores citados, ou outros igualmente moderados,

como defensores incondicionais da combinação de leis – o que é francamente errado.19 Num

15 ... Argumento corriqueiro nos debates desde, pelo menos, Marques, Frederico, Tratado de DP, 2. ed., São Paulo: Saraiva, 1964, v. 1, § 32/5, p. 209. O trabalho de Toron (nota 13) é inteiramente voltado a demonstrar a impossibilidade de importar-se a solução adotada em países com disciplina constitucional diversa.

16 ... Instituições de DP, 2. ed., São Paulo: Max Limonad, 1954, v. 1, t. I, n. 50, p. 148, sem grifo no original.

17 ... Ainda sobre a posição de Garcia, v. nota 20.

18 ... Princípios básicos de direito penal, 5. ed., São Paulo: Saraiva, 1994, n. 38-40, p. 36-39. Embora ambos os autores citem exemplos (art. 16 da LICP e a revisão criminal 1.412 do Supremo Tribunal Federal (RTJ 96/547), respectivamente), estes parecem ilustrar apenas que a combinação é possível, mas não necessariamente devida.

19 ... Cremos que a referência a Assis Toledo e Basileu Garcia (sobre o segundo, v. tb. adiante a nota 20), ambos citados por Dotti, demonstra o desacerto da aKrmação deste de que “os doutrinadores e os juízes têm admitido sem mais reservas a combinação de leis sucessivas sempre que a fusão possa bene%ciar o réu” (nota 14, p. 36). Registre-

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certo sentido, a combinação de leis em hipóteses excepcionais aproxima-se mais da recusa

categórica àquela combinação do que da defesa ampla e irrestrita da conjugação de leis

sucessivas.

Restam, por Km, os verdadeiros adeptos da “ampla e irrestrita combinação de leis”, entre

os quais se contam – ou se deveriam contar20 – todos quantos a consideram uma imposição

do art. 5.º, XL, da Constituição, orientação esta seguida na exposição de motivos do projeto.

Feitas essas considerações, e constatada a fragilidade dos argumentos do juiz-legislador

e da sua “terceira lei”, por um lado, e da obrigatoriedade da combinação, por outro, é preciso

assentar a resposta sobre outras premissas. Quer-nos parecer que a análise dos fundamentos

políticos da retroatividade da lei mais benéKca favorece mais os críticos da conjugação do que

seus defensores. Um daqueles fundamentos é evitar que o transgressor da lei velha Kque em

desvantagem em relação aos infratores que delinquirem sob a lei nova; trata-se de aplicação

do princípio da isonomia que toma os casos futuros como paradigma.21 Contudo, com a

combinação de leis, cria-se não uma terceira lei, como tantas vezes se disse, mas um terceiro

regime jurídico, exclusivo dos agraciados pelo direito transitório, que os põe não mais em

igualdade, mas em real vantagem sobre os criminosos já punidos sob o império da lei velha e

também sobre quem delinquir após a vigência da lei nova.22 Esse terceiro regime jurídico não

corresponde, enKm, à vontade da lei (velha ou nova), do legislador ou de quem quer que seja,

mas um mero efeito colateral da justaposição das leis antiga e nova,23 efeito colateral este que

pode gerar graves empecilhos ao próprio aperfeiçoamento da legislação.

se ainda que, diferentemente do ali indicado (e também em sua coluna Breviário Forense de 23 dez. 2011 (<http://www.parana-online.com.br/colunistas/149/89923/?postagem=A+REFORMA+DO+CODIGO+PENAL+IX>, nota 11)), Bruno, Aníbal (nota 12) não defendia a combinação de leis.

20 ... Com efeito, se o art. 5.º, XL, da Constituição obriga à conjugação das disposições mais favoráveis das leis sucessivas, esta não se pode limitar a “hipóteses excepcionais”. Tal fato parece ter escapado a Damásio de Jesus (DP, 30. ed., São Paulo: Saraiva, 2009, v. 1, p. 93). Como lembra Toron (nota 13), Basileu Garcia, em breves comentários ao CP-1969, publicados como apêndice nas edições tardias das Instituições, considera seu art. 2.º, § 2.º (nota 13) de “discutível constitucionalidade” (Em torno do novo Código Penal, apêndice das Instituições de direito penal, 4. ed., 37. tir., São Paulo: Max Limonad, 1975, v. 1, t. II, p. 774). Contudo, o autor manteve inalterado o texto principal (v. 1, t. I, n. 50, p. 150) e defendeu, também nesse apêndice, a combinação em “certas situações”, incorrendo na mesma incoerência.

21 ... Referem à isonomia como um dos fundamentos da retroatividade benigna: Zaffaroni, nota 14, p. 469 e 479; Regis Prado, Curso de DP brasileiro, 10. ed., São Paulo: RT, 2010, v. 1, p. 197.

22 ... A posição de vantagem dos beneKciários do regime transitório foi criticada por Luiz Fux no julgamento do RE 596.152 (p. 63-64 do acórdão).

23 ... Cremos que tais considerações explicam por que o juiz, “a quem é dado aplicar uma ou outra lei”, “não poderia aplicar uma parte de cada uma delas” – questionamento algo ingênuo frequentemente lançado pelos adeptos da combinação de leis (Marques, Damásio etc.). Da mesma forma, a indicação de um fundamento material para a recusa à combinação indiscriminada de leis demonstra não se tratar apenas de “pruridos de lógica formal” (Marques), “mito” ou “fetichismo” (Dotti).

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De fato, a se impor a combinação como regra, certas reformas globais se tornam

impossíveis, ou excessivamente custosas pelas consequências transitórias que acarretariam.

Por exemplo: o legislador pode estabelecer um incremento (ou rebaixamento) generalizado

das penas, mas reduzir (ou ampliar) os prazos prescricionais,24 de modo que a punição de

cada crime se altere, mas o prazo prescricional de cada infração permaneça mais ou menos

o mesmo. Da mesma forma, pode aumentar (ou reduzir) as penas da maioria dos crimes,

mas reduzir (ou aumentar) a fração prevista para a obtenção dos benefícios na execução

(progressão de regime, livramento condicional etc.). Em casos tais, a combinação de leis

importaria um regime de transição excessivamente benéKco.25

O caso julgado pelo STF no RE 596152 (decidido por empate na votação, com

expressa indicação de que o problema continua em aberto)26 ilustra algumas diKculdades

ensejadas pela combinação de leis. Ali se debateu a possibilidade de aplicação da causa de

redução de pena prevista no § 4.º do art. 33 da nova Lei de Tóxicos (Lei 11.343/2006)

em favor das pessoas que praticaram o tráKco sob a vigência da lei anterior (6.368/1976).

A lei velha punia o crime com uma pena que variava entre 3 e 15 anos (art. 12); a nova

aumentou o limite mínimo para 5 anos (art. 33), mas previu uma redução de 1/6 a 2/3 para

o agente primário, de bons antecedentes, e que não se dedique às atividades criminosas nem

integre organização criminosa (§ 4.º). O STJ, em vários precedentes, admitiu a aplicação

desse benefício aos transgressores da lei anterior, reduzindo as penas nela previstas segundo

as frações já indicadas,27 o que resulta numa pena mínima de apenas 1 ano, embora a lei

antiga previsse a pena mínima de 3 anos, e a lei nova comine, para os favorecidos pelo § 4.º

do art. 33, a pena mínima de 1 ano e 8 meses (5 anos, diminuídos de 2/3).28 Além de que

a combinação era desnecessária para favorecer o réu, uma vez que a lei nova, aplicada por

24 ... Tratados pela doutrina e jurisprudência brasileiras como tema de direito material.

25 ... O Min. Gilmar Mendes, no julgamento do RE 596.152, discutido adiante, pretende que o legislador leve em consideração esses efeitos colaterais (p. 30-31), mas a sugestão é tão fácil de fazer quanto difícil de atender.

26 ... RE 596.152, Pleno, Min. Ayres Britto, j. 13.10.2011. A ressalva de que o problema permanece em aberto aparece na p. 73. O empate na votação resolveu-se na decisão mais favorável ao réu.

27 ... HC 73.767, j. 19.06.2007; HC 83.716, j. 06.09.2007; HC 88.114, j. 12.11.2007; e diversos julgados posteriores. Sobre esse caso de combinação de leis, além das obras sobre a lei de drogas, há breve texto de Callegari (Nova lei de drogas: da combinação de leis (lex tertia): fato praticado sob a vigência da Lei n. 6.368/76 e aplicação da nova lei n. 11.343/06, Boletim IBCCrim, v. 14, n. 170, p. 6, São Paulo, 2007).

28 ... A solução de compromisso adotada pelo STJ no HC 83.361, j. 27.09.2007 – qual seja, autorizar a incidência da causa de diminuição da lei nova sobre a pena prevista na lei velha, mas observando-se o limite mínimo de 1 ano e 8 meses – apenas em aparência prestigia a combinação de leis, pois o resultado é idêntico ao obtido aplicando-se exclusivamente a lei nova.

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inteiro, já proporcionaria um regime mais benéKco,29 veriKca-se que a solução adotada pelo

STJ e pelo STF no RE 596.152 citado revela uma peculiaridade da combinação de leis, que é

a sua excessiva vinculação à técnica legislativa. Com efeito, ela não seria nem mesmo possível

se a lei previsse, no lugar de uma causa de diminuição, uma forma privilegiada: “a pena é de 1

ano e 8 meses a 12 anos e 6 meses se o agente for primário, de bons antecedentes, e não se dedicar às

atividades criminosas nem integrar organização criminosa”. Tal vinculação põe em séria dúvida

a existência de um verdadeiro fundamento material para a conjugação de leis. Por Km, a

aKrmação do Min. Ayres Britto, relator para o acórdão, de que a solução por ele defendida

não implicava combinação de leis (p. 72 do acórdão), deve ser ignorada.

De todo modo, é de questionar se os adeptos de que se combinem as leis sucessivas

sempre que isso for mentalmente concebível realmente estariam dispostos a seguir tal

orientação às últimas consequências. Pense-se num exemplo extremo: um fato antes apenado

unicamente com privação de liberdade passa a ser punido apenas com multa. É evidente que

o juiz deveria condenar o réu à pena que considerasse menos grave no caso concreto – multa

ou prisão –, mas o réu poderia aspirar à combinação da “não cominação de pena de multa”

da lei velha com a “não cominação de pena privativa de liberdade da lei nova”, sujeitando-se

a pena… nenhuma.

Enquanto não vier a público alguma voz a defender seriamente a “pena zero” do

exemplo proposto, sentimo-nos autorizados a supor que, mesmo que nem sempre o digam,

os partidários da ampla combinação de leis hão de reconhecer algum limite para tal operação.

Mas qual seria ele? Nilo Batista reconhece o perigo da “Kssura de dispositivos legais incindíveis,

organicamente unitários”, lembrando a exigência de Mestieri de que se aplique o “preceito

por inteiro” e concluindo pela admissibilidade da combinação de leis, “ressalvada, portanto,

a hipótese em que a aplicação complementar dos textos legais concorrentes no tempo implique

desvirtuar algum dos dispositivos operados, pela abusiva subtração de cláusula que condicionaria

sua e%cácia (quando, sim, poder-se-ia falar de uma lei inexistente)”.30 Frederico Marques, sem

esclarecer se a endossava, aludia à ressalva de Roubier: “desde que as disposições da lei sejam

distintas e não haja entre elas laços indivisíveis”.31 O Min. Ayres Britto, no voto proferido no

RE 596152, distingue entre lei e norma e aKrma que “o que a nossa Constituição rechaça é a

29 ... O Min. Gilmar Mendes anteviu “um quadro de �agrante injustiça” na hipótese de se repelir a combinação de leis (acórdão do RE 596152, p. 31), mas sem razão alguma.

30 ... Batista, Nilo, DP brasileiro (tradução e adaptação da obra Derecho Penal, de Zaffaroni/Alagia/Slokar), I, 2. ed., Rio de Janeiro: Revan, 2003, § 10, V, 2, p. 215; Mestieri, Manual de DP, Rio de Janeiro: Forense, 1999, v. 1, p. 73.

31 ... Marques, p. 210. Segundo Hungria, Roubier posteriormente deixou de admitir a combinação de leis (apud Fragoso, em Hungria/Fragoso, nota 9, n. 15, p. 237, nota 3).

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possibilidade de mistura entre duas normas penais que se contraponham, no tempo, sobre o mesmo

instituto ou %gura de direito”, “vedando-se, por conseguinte, a fragmentação material do instituto”

(p. 2 e 46 do acórdão). Tais propostas conduzem ao problema de determinar o que é um

dispositivo legal incindível ou organicamente unitário, e de delimitar seguramente um instituto

ou %gura de direito, mas demonstram que existem, sim, limites para a combinação de leis.32

Esse problema do limite, que se põe aos partidários da tese da obrigatoriedade da

combinação de leis, decerto não a�ige os autores que reservam a solução para casos extremos.

O problema, já referido no texto, é que eles apenas raramente apontam que casos seriam

esses. O aumento da pena mínima e concomitante redução da pena máxima, referido em

algumas decisões judiciais,33 já era conhecido por Carrara34 e não demanda, em absoluto, a

combinação proposta: basta que se efetue a individualização judicial da pena, segundo cada

uma das leis, comparando-se os resultados Knais para a determinação da lei mais benéKca.

Menciona-se ainda o HC 69.033, julgado pelo STF,35 como exemplo de admissão por aquele

tribunal da combinação de leis, mas a leitura da íntegra do acórdão revela que não houve

combinação alguma ali, e a proclamação da possibilidade da conjugação de leis, contida em

sua ementa, não passa de um obiter dictum inteiramente fora de lugar.

Mais especiKcamente, o ônus argumentativo incumbe aos defensores da combinação

excepcional de leis, cumprindo-lhes indicar hipóteses em que a recusa a ela conduz a maus

resultados, a Km de que a doutrina se debruce sobre o problema e trace fundamentos e limites

para o expediente em discussão. Contudo, é a custo que se encontra a proposição de tais

hipóteses; geralmente se lê apenas que a proibição absoluta da combinação de leis pode gerar

injustiças, sem qualquer esclarecimento de quais seriam elas. No fundo, parece apenas que a

diKculdade da determinação da lei mais benéKca em certos casos é confortavelmente trocada

por uma solução de simplicidade ilusória, que elimina o problema ao preço de criar outros.

Tudo isso posto, concluímos que a combinação de leis não pode ser aceita como regra geral,

ainda que se admita, hipoteticamente, sua necessidade em casos extremos.

32 ... Mais geralmente, seria de recusar a combinação de leis sempre que a atenuação de certo aspecto do regime legal tivesse como contrapartida o recrudescimento de outro, tal como ocorre em todos os exemplos propostos no texto. Talvez essa seja a verdadeira ideia subjacente à “unidade do instituto” etc. Esse critério permitiria salvarem-se algumas das combinações de leis recentemente adotadas pelo STJ (nota 36), mas refutaria o resultado do julgamento do RE 596.152, pois, como observado no voto do Min. Levandowski, relator originário, o § 4.º do art. 33 foi uma compensação do aumento da pena mínima operado pela Lei 11.343/2006 em relação à anterior (p. 16 do acórdão).

33 ... Cf. Mirabete, CP interpretado, São Paulo: Atlas, 1999, n. 2.8, p. 111. Tratava-se da sucessão da Lei 5.474/1968 pela de n. 8.137/1990. O exemplo pode ser invertido: redução da pena mínima e aumento da máxima.

34 ... Programa de derecho criminal, II, Bogotá/Buenos Aires: Temis, reimp. 1986, § 762 e ss., p. 218.

35 ... HC 69.033, 2.ª T., Min. Marco Aurélio, j. 17.12.1991, citado por Dotti, nota 14, p. 37, nota 21, e Bitencourt, Tratado de direito penal, 14. ed., São Paulo: Saraiva, 2009, v. 1, p. 176, entre outros.

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Onde se situa o projeto nesse panorama? Em certo sentido, não se situa: simplesmente

autoriza a combinação de leis, sem indicar se ela seria facultativa ou obrigatória, nem os

pressupostos ou limites, em um e noutro caso. Mas para simplesmente permitir a conjugação

de leis apenas como solução emergencial, não é necessária expressa autorização legislativa: em

curto intervalo, o Superior Tribunal de Justiça consagrou nada menos que cinco hipóteses de

combinação de leis, sem qualquer demonstração de que tal providência fosse um imperativo

de justiça.36

Por tais razões, é possível que a novidade funcione apenas como indesejável incentivo

da combinação de leis. Caso se decida mantê-lo, seria prudente estabelecer algum tipo de

ressalva, a recomendar cautela na medida e a observância de algum limite. Mais útil do que o

dispositivo proposto seria a previsão expressa de regras de direito transitório, que resolvessem

as diKculdades previsíveis que o advento do novo Código irá ensejar.

O projeto não endossou as críticas que se têm dirigido à disciplina legal das leis

excepcionais ou temporárias, conservando, sem alteração alguma, o art. 3.º do Código em

vigor. A objeção consiste em impugnar a legitimidade a “ultra-atividade”37 dessa espécie de

lei, vedada que seria pela regra constitucional já referida (art. 5.º, XL) que manda aplicar-se

retroativamente a lei penal mais benéKca.38 A indiferença do projeto se justiKca em parte –

não pelos argumentos meramente utilitários da doutrina dominante, corretamente criticados

por Nilo Batista,39 mas porque os críticos amiúde equiparam implicitamente40 a reativação

36 ... A Lei 9.437/1997, sucedida pelo Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826/2003), cominava penas menores para a posse e porte de arma de fogo (art. 10), mas previa circunstâncias qualiKcadoras que a lei nova não reproduziu (§ 3.º, IV, e § 4.º). Ao apreciar casos ocorridos na vigência da lei velha nos quais incidiriam aquelas circunstâncias, o STJ (REsp 663.422; REsp 562.871) determinou a aplicação das penas previstas para o crime na forma simples na lei revogada, o que importa em combinar a pena da forma simples do crime da lei velha com a ausência das circunstâncias quali%cadoras na lei nova. Combinações semelhantes apareceram por ocasião da mudança da Lei de Drogas (supressão da qualiKcadora do concurso eventual: REsp 846.941, j. 21.11.2006; RHC 21.108, j. 28.06.2007; HC 83716, j. 06.09.2007; mitigação do aumento relativo à prática de tráKco em estabelecimento penal: HC 83.502, j. 06.09.2007).

37 ... Usam-se as aspas porque a imunidade da lei velha, mais favorável, à retroação da lei nova, não constitui ultra-atividade no sentido preciso da palavra (qual seja, aplicação da lei a fatos ocorridos após sua revogação), e não passa de uma duplicação do fenômeno da irretroatividade da lei nova mais gravosa. Noronha, Fernando, Retroatividade, eKcácia imediata e pós-atividade das leis: sua caracterização correta, como indispensável dos problemas de Direito intertemporal, Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política 23/96, São Paulo, abr.-jun. 1998, nota 1; Núñez, nota 14, p. 136; Maggiore, Derecho Penal, 2. reimp. da 2. ed. da trad. da 5. ed. italiana, Bogotá: Temis, 2000, v. 1, p. 193; Zaffaroni, nota 14, pp. 461 (especiKcamente sobre as leis excepcionais e temporárias: p. 474).

38 ... Batista, Nilo, nota 30, p. 216; Luisi, Os princípios constitucionais penais, 2. ed., Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003, p. 29; Corrêa Borges, Princípio da retroatividade bené%ca, RBCC 56/148 ss., São Paulo, set.-out. 2005.

39 ... Batista, Nilo, nota 30, p. 216.

40 ... Jiménez de Asúa tem o mérito de fazer explicitamente essa equiparação (nota 14, n. 721, p. 652).

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da lei geral, anterior à lei temporária e cuja eKcácia tenha Kcado paralisada pela superveniência

desta, ao surgimento de uma nova lei, o que é discutível.41 Ainda assim, subsiste uma hipótese

em que se poderia, sem recurso àquela equiparação, pôr em causa a validade constitucional da

dita “ultra-atividade”, a qual ocorreria se a lei excepcional ou temporária instituísse uma nova

incriminação, e sobreviesse uma lei de caráter permanente que repetisse aquela incriminação

com pena mais branda. De todo modo, a pouca frequência com que se editam leis excepcionais

talvez acabe por inibir o debate da questão.

A deKnição do tempo do crime se mantém a mesma (art. 4.º), o que é adequado. A

determinação do tempo da participação, quando esta precede a execução do fato pelo autor,42

pode continuar a cargo da doutrina e da jurisprudência.

Aplicação da lei penal no espaço

O projeto mantém a concepção básica da lei vigente, valendo-se do princípio da

territorialidade como regra e complementando-o e excepcionando-o com a aplicação

extraterritorial, incondicionada ou condicionada, da lei, aplicação esta inspirada nos

tradicionais critérios da proteção real, justiça universal etc.43 O projeto eliminou o regime

especial de extraterritorialidade condicionada do art. 5.º, § 3.º, do CP vigente, submetendo

a hipótese às regras gerais da extraterritorialidade condicionada (art. 8.º, I, do projeto) e

promovendo uma elogiável simpliKcação do regime legal. Além disso, substituiu a expressão

“[crime praticado] no estrangeiro” por “fora do território nacional” (art. 7.º do CP e do

projeto), evitando o esforço hermenêutico de equiparar-se o alto-mar e outras regiões do

globo a território estrangeiro.

O princípio da territorialidade se mantém no art. 5.º. Substancialmente, a principal

alteração é considerarem-se extensões do território brasileiro, para efeitos penais, a zona

contígua, a zona de exploração econômica e a plataforma continental, quanto aos fatos

nocivos ao meio marinho ou ofensivos à soberania nacional (§ 2.º, III). Em relação à forma,

41 ... Silva Franco, nota 14 (2007), p. 76; Luzón Peña, verbete Irretroactividad y retroactividad de la ley penal, em Luzón Peña (dir.), Enciclopedia penal básica, Granada: Comares, 2002, p. 854. Luiz Luisi (nota 38) critica as leis temporárias sob outro fundamento, aKrmando que elas deixam de existir ao expirar o prazo nelas previsto e que sua aplicação após esse prazo lhes conferiria ultra-atividade inconstitucional. Eis aí o perigo do mau uso do termo “ultra-atividade” (nota 37), catalisado por uma noção discutível do conceito de existência das leis.

42 ... É amplamente dominante a opinião de que o tempo do crime, para o partícipe, seria o de sua atuação, tal como expresso no § 8 do CP alemão: Fragoso, em Hungria/Fragoso, Comentários ao CP, 5. ed., Rio de Janeiro, 1978, v. 1, t. II, n. 17, p. 239; Taipa de Carvalho, nota 14, p. 93; Franco, nota 14 (2007), p. 80; Regis Prado, nota 21, p. 200.

43 ... Modelo designado por Hungria de territorialidade temperada (em Hungria/Fragoso, nota 9, n. 43, p. 189).

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o texto proposto para o art. 5.º apresenta alguns problemas. Do Código vigente, conserva o

erro lógico que é mandar aplicar a lei brasileira ao crime cometido no território nacional: uma

vez que a caracterização do fato como crime pressupõe a incidência da lei penal, a locução

“aplica-se a lei brasileira ao crime cometido etc.” conduz a um raciocínio circular. Os arts. 5.º,

7.º e 8.º se aprimorariam se referissem a “fato” em lugar de “crime”.44

Quanto aos tratados e convenções internacionais, o projeto aperfeiçoa o texto vigente

ao substituir “sem prejuízo de” por “salvo o disposto em”, expressando melhor a ideia de

exclusão da incidência da lei brasileira a fatos ocorridos em solo nacional. Em contrapartida,

excede-se ao desconsiderar as regras de direito internacional – que certamente se materializam

cada vez mais em tratados, mas seguem emanando também de outras fontes – e ao mencionar

“tratados, convenções, acordos e atos”. Embora a Constituição da República igualmente se

valha de todos esses termos (arts. 49, I, e 84, VIII), os termos tratado e ato são suKcientes

para designar essas formas de compromisso: veja-se o título das obras de Rezek e Mazzuoli,

Direito dos tratados.45 Por Km, a exigência de que os tratados e atos tenham sido “Krmados

pelo país” é absolutamente evidente e não precisaria constar da lei (como tampouco precisa

constar, por exemplo, a necessidade de que o tratado tenha alcançado vigência internacional),

além de ensejar dúvidas: exige-se a ratiKcação, a internalização ou a simples assinatura do

tratado?

O § 1.º do art. 5.º contém uma deKnição parcial de território, o que é impróprio:46

a lei penal pode equiparar certos espaços ao território para sua aplicação (§ 2.º: “Para os

efeitos penais, consideram-se como extensão do território nacional (...)”), mas deve abster-se

de conceituá-lo (§ 1.º: “Considera-se território nacional o mar territorial (...)”), pois a matéria

pertence ao Direito Internacional Público, além de interessar também a outros ramos. Pela

mesma razão, a fórmula adotada para excluir da aplicação da lei brasileira os fatos praticados

durante passagem inocente foi confusa e infeliz: não cabe ao Código Penal assegurar o direito

44 ... Greco, ao gentilmente revisar este texto, objetou que a concepção do anteprojeto conta com apoio doutrinário. Ainda assim, não há por que optar por uma redação sujeita a críticas se existe alternativa que as contorna sem qualquer desvantagem.

45 ... A crítica já se aplicava, em menor medida, à PG de 1940, que falava em “convenções, tratados e regras de direito internacional” (art. 4.º). Hungria impugnou-a (Hungria/Fragoso, nota 9, n. 41, p. 186), mas não convence: se o Código mencionasse apenas tratados, haveria dúvida de que alcança também a Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas (de 18.04.1961 – Dec. 56.435/1965)? Além disso, as disposições das convenções e acordos constituem regras de direito internacional. Sobre a nomenclatura dos atos internacionais, Rezek, Direito dos tratados, Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 83.

46 ... Hungria, em Hungria/Fragoso, nota 9, n. 35, p. 166, citando a crítica de Costa e Silva ao CP-1890; Fragoso, A reforma da legislação penal (I), RBCDP 2, n. 3, p. 58, Rio de Janeiro, jul.-set. 1963 (consultado segundo a versão disponível em: <http://www.fragoso.adv.br>); o mesmo, em Hungria/Fragoso, nota 9, n. 23, p. 247.

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de passagem inocente, mas apenas explicitar o efeito de tal direito, se e quando existente, para a

lei penal. Mais adequado seria dispor que “a lei penal brasileira se aplica aos fatos ocorridos em

alto mar etc., exceto se praticados em aeronave ou embarcação estrangeira em passagem inocente”.

O § 2.º, mais ou menos correspondente ao § 1.º do art. 5.º do Código em vigor,

contorna o erro de sequência textual deste último,47 mas ao preço de certa verborragia. Posto

que contenha o aludido equívoco, o texto vigente ilustra a possibilidade de se utilizarem

menos palavras para idêntico Km. Mesmo adotado o formato proposto no projeto, esse

parágrafo Kcaria mais claro, curto e elegante se as aeronaves e embarcações públicas, que

recebem idêntico tratamento, fossem tratadas conjuntamente em um inciso próprio (“Para

os efeitos penais, consideram-se como extensão do território nacional: as embarcações e aeronaves

brasileiras, de natureza pública ou a serviço do governo brasileiro, onde quer que se encontrem”).

O art. 6.º do projeto retoma o critério do texto original do CP vigente de deKnir lugar

do crime apenas para os fatos cometidos no território nacional (art. 6.º de ambos os textos).

A mudança é acertada: não cabe à lei brasileira deKnir se um fato ocorreu ou não no território

de outro Estado soberano, mas à lei deste último. Assim, a determinação do lugar do crime

cometido no estrangeiro – relevante para as hipóteses de extraterritorialidade condicionada,

que depende de ser o fato punível no local onde foi praticado (art. 8.º, parágrafo único, b, do

projeto, que agora fala em “local”, e não mais “país”) – deverá realizar-se segundo a legislação

cuja incidência se apura. Por outro lado, não se aproveitou, daquele mesmo texto de 1940, a

referência à produção parcial do resultado em solo nacional, o que era considerado necessário

por alguns autores.48

O projeto amplia consideravelmente as hipóteses de extraterritorialidade incondicionada

(art. 7.º), embora a exposição de motivos aKrme exatamente o contrário. Tal circunstância é

preocupante em razão dos princípios da oKciosidade da instauração do inquérito policial e

da obrigatoriedade da ação penal pública (CPP, arts. 5.º, I, e 28), uma vez que algumas das

previsões do art. 7.º se mostram pouco realistas. O inciso I, ao consagrar o princípio real ou

de proteção, contém preceito extremamente vago e um tanto balofo, e parece Kgurar apenas

como uma proclamação inútil de soberania.49 O inciso II, além de ampliar a proteção ali

47 ... “(...) que se achem, respectivamente, no espaço aéreo correspondente ou em alto-mar”, quando o correto seria “em alto-mar ou no espaço aéreo correspondente” (o que obviamente demandaria, por sua vez, mencionarem-se as embarcações antes das aeronaves). Mirabete, nota 13, n. 2.3.4, p. 76.

48 ... Bitencourt, nota 35, p. 204; Mirabete, nota 13, n. 2.3.5, p. 78; contra, Reale Jr., Instituições de DP: PG, v. I, Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 110.

49 ... A fonte de inspiração, supõe-se, foi o Dec. 394/1938, mencionado por Bruno (nota 12, p. 242) e Hungria (em Hungria/Fragoso, nota 9, n. 43, p. 190).

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oferecida a todos os vocacionados a ocupar a presidência da República (CRFB, art. 80),50

troca a expressão “contra a vida ou a liberdade” por “que afetem a vida ou a liberdade”, a

Km de permitir, por exemplo, a punição do sequestro para Kns de extorsão51 das pessoas

nele previstas. Essa última alteração, em si, não oferece problema algum e corresponde a

uma opção perfeitamente válida; de todo modo, deve-se ressaltar que, mesmo segundo a

lei vigente, tal latrocínio não Kcaria impune (ou relegado ao regime da extraterritorialidade

condicionada) – ao menos na hipótese do presidente da República. Com efeito, tem-se, em

primeiro lugar, que a interpretação segundo a qual os “crimes contra a vida ou a liberdade”

indicados na lei vigente (art. 7.º, I, a) são apenas aqueles assim classiKcados na lei penal, não

é inevitável.52 Além disso, e mais importante, o sequestro, para Kns de extorsão, do presidente

da República seria punível, no mínimo, como sequestro comum (CP, art. 149; projeto, art.

14853), a menos que se adotasse o problemático critério de delimitação exclusiva dos tipos

para solução do concurso aparente de normas54 ou se considerasse derrogada a norma em tese

aplicável (art. 159) por outra inaplicável.

A extensão da aplicação da lei penal brasileira, antes conKnada ao genocídio, a “outros

crimes contra a humanidade” (art. 7.º, III), é coerente com a previsão deles na Constituição

da República entre os hediondos ou equiparados, mas a dispensa do ingresso do agente

no território nacional (bastando que a vítima ou o agente sejam brasileiros) tende a criar

impasses do ponto de vista prático: recebida no Brasil a notícia de que um brasileiro teve

emprego negado no exterior em razão da raça (Lei 7.716/1989, art. 4.º; art. 472 do projeto),

impor-se-á a instauração de inquérito e de�agração de processo penal, movido a angustiantes

cartas rogatórias – tudo para se proferir decisão Knal diKcilmente exequível, uma vez que a

50 ... O que é intrigante: num certo sentido, o presidente eleito, diplomado mas ainda não empossado, está mais próximo de ocupar o cargo do que o presidente do STF.

51 ... Que o projeto, lamentavelmente, continua denominando “extorsão mediante sequestro” (art. 159).

52 ... Defende-a Mirabete, nota 13, n. 2.3.6, p. 78. Como se sabe, essa exegese restritiva prevaleceu na interpretação do dispositivo constitucional que assegura a competência do júri para julgamento dos crimes dolosos contra a vida (art. 5.º, XXXVIII, d): veja-se o verbete 603 da súmula de jurisprudência do STF (“A competência para o processo e julgamento de latrocínio é do juiz singular e não do tribunal do júri”). Já tivemos oportunidade de questionar esse verbete em outra sede (A consumação nos crimes agravados pelo resultado, em Greco/Lobato, Temas de DP: PG, Rio de Janeiro/São Paulo/Recife: Renovar, 2008, p. 404), e nossas dúvidas ali expostas se repetem aqui.

53 ... Desconsideram-se as disposições da Lei da Segurança Nacional (7.170/1983), uma vez que o projeto expressamente propõe sua revogação (art. 544), e que essa lei não contém qualquer regra especial sobre aplicação da lei no espaço.

54 ... Em detalhes, veja-se a magníKca obra de Peñaranda Ramos, Concurso de leyes, error y participación en el delito, Madrid: Civitas, 1991, passim, citada a propósito desse tema (da solução do concurso aparente de normas pela criação de relações de heterogeneidade) no instigante trabalho de Bezerra, Ulysses Gomes, Princípio da consunção: fundamentos e critérios de aplicação, RBCC 87/123, São Paulo, nov.-dez. 2010, nota 6. Ainda sobre o tema, também com referência a Peñaranda, Frederico Gomes de Almeida Horta, Do concurso aparente de normas penais, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 16 e ss.

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maior parte dos países se recusa a extraditar nacionais.55 Por mais justa que seja a preocupação

com os crimes contra a humanidade, a necessidade de ingresso do agente no Brasil contida

na lei atual (art. 7.º, I, d) atende a restrições impostas pela própria realidade. Caso se queira

manter a mudança, necessita-se associá-la à adaptação da lei processual penal, para se evitar

a obrigatoriedade de processos fadados ao fracasso. Melhor seria deixar a lei processual e

material como estão.

Da mesma forma, a conversão da hipótese do art. 7.º, II, a, do Código vigente, em

caso de extraterritorialidade incondicionada (projeto, art. 7.º, IV), foi desacertada. Vários dos

crimes que “o Brasil se obrigou a reprimir” já são objeto do referido inciso III, o qual prevê

algumas condições adicionais para a aplicação da lei brasileira. A aplicação literal do inciso

IV, tal como no inciso anterior, implicaria a investigação e persecução de fatos absolutamente

alheios aos assuntos nacionais, praticados por estrangeiros contra estrangeiros em locais

longínquos. A própria exposição de motivos reconhece que a cláusula em discussão reclama

limites, ao ressalvar: “sendo autorizada a interpretação de que, nestes casos, as condições para a

aplicação da lei penal serão aquelas dispostas nos documentos internacionais”. Contudo, se alguns

desses tratados indicam de forma mais ou menos restritiva as hipóteses de incidência da

lei dos países-membros,56 outros permitem expressamente que cada país estenda a aplicação

de sua lei a situações diversas às previstas na convenção, respeitadas as normas de Direito

Internacional e a soberania de outros Estados.57 Seria mais prudente estatuir explicitamente

no projeto que a aplicação extraterritorial da lei brasileira fundada na existência de tratados se

restringe aos casos neles previstos, ou simplesmente conservar essa hipótese sob o tratamento

da extraterritorialidade condicionada, como faz a lei vigente.

Suprimiu-se a cláusula de indiferença ao desfecho de processo penal estrangeiro, nas

hipóteses de extraterritorialidade incondicionada (atual art. 7.º, § 1.º), mas ela parece estar

subentendida no sistema proposto (projeto, art. 8.º, parágrafo único, e, a contrario sensu, e

art. 9.º). A reintrodução do dispositivo evitaria dúvidas futuras, especialmente porque alguns

tratados internacionais proíbem o duplo julgamento58 e cumpriria ao projeto esclarecer – sem

55 ... Albuquerque Mello, Curso de direito internacional público, 15. ed., Rio de Janeiro/São Paulo/Recife: Renovar, 2004, v. 2, n. 357, p. 1024.

56 ... Convenção Interamericana sobre TráKco Internacional de Menores, Cidade do México, 18.03.1994 (Dec. 2.740/1998), art. 9.º, entre outras.

57 ... Convenção Contra o TráKco Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, Viena, 20.12.1988 (Dec. 154/1991), art. 4.º, 3; Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, Nova York, 15.15.2000 (Dec. 5.015/2004), art. 15, 6; Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, Nova York, 31.10.2003 (Dec. 5.687/2006), art. 42, 6.

58 ... Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, Nova York, 16.12.1966 (Dec. 592/1992), art. 14, 7;

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prejuízo dos debates posteriores relativos à validade da opção adotada – se a absolvição no

estrangeiro inibe ou não a aplicação da lei brasileira.

As principais alterações quanto à extraterritorialidade condicionada são, além da já

referida retirada dos crimes que o Brasil se obrigou a reprimir, o ingresso os fatos contra o

patrimônio, fé pública ou administração pública de todos os entes federados (art. 8.º, IV),

que deixam de ser caso de extraterritorialidade incondicionada (mas, em contrapartida, não

mais exigem que o agente esteja a serviço da administração pública), e a impossibilidade

de aplicação extraterritorial (condicionada) da lei brasileira a crimes de menor potencial

ofensivo (art. 8.º, parágrafo único, d). Talvez fosse mais vantajoso estender esse impedimento

à extradição, incluindo-o diretamente no Estatuto do Estrangeiro e mantendo-se a harmonia

entre o regime daquela e o da aplicação da lei penal. Ainda quanto às condições para aplicação

da lei brasileira, veriKca-se que a redação da exigência da dupla incriminação (CP, art. 7.º,

§ 2.º, b; projeto, art. 8.º, parágrafo único, b), foi beneKciada com a mudança de “país”

para “local”; contudo, a modiKcação proposta não retira o caráter discutível da orientação

majoritária segundo a qual o crime cometido por brasileiro em local sem legislação própria

– alto-mar (fora de qualquer embarcação), continente antártico – se sujeita à lei brasileira,

uma vez que, diga-se “local” ou “país”, o fato não é considerado crime ali.59 Melhor seria

acompanhar o Código Penal alemão (§ 7, 1) e prever expressamente a hipótese, que poderia

Kgurar no projeto com a seguinte redação: “ser o fato considerado crime também no local em

que foi praticado, salvo se ocorrido em lugar não sujeito à lei de nenhum Estado”.

Por Km, uma possibilidade que o projeto faria bem em considerar é a aplicação da

lei estrangeira, quando mais favorável ao agente, nas hipóteses de extraterritorialidade

condicionada. Atualmente, a punibilidade do fato no país em que praticado funciona como

condição, mas não como limite, da aplicação da pena no Brasil (CP, art. 7.º, § 2.º, b), o que

é incoerente – especialmente naqueles casos em que, segundo a doutrina, o Brasil atua em

representação dos interesses do Estado cuja ordem jurídica foi ofendida. A aplicação da lei

mais favorável nas hipóteses de extraterritorialidade condicionada foi adotada no Código

Penal Tipo para a América Latina (art. 4.º, 2.ª parte) e no vigente Código Penal português

(art. 6.º, 2);60 o projeto faria bem em seguir-lhes o exemplo.

Convenção Americana sobre Direitos Humanos, São José da Costa Rica, 22.11.1969 (Dec. 678/92), art. 8, 4.

59 ... Defendendo, ainda assim, a aplicação da lei brasileira, entre outros: Bruno, nota 12, p. 244-245; Hungria, em Hungria/Fragoso, nota 9, n. 43, p. 194; Mirabete, nota 13, n. 2.3.7, p. 80; Jesus, nota 20, p. 133.

60 ... Outros exemplos em Fierro, Ley penal y derecho internacional, 3. ed., Buenos Aires: Astrea, 2007, v. 2, § 300, p. 144; Jiménez de Asúa, nota 14, n. 763, p. 755. Hungria (em Hungria/Fragoso, nota 9, n. 43, p. 193) e Bruno (nota 12, p. 245) reconhecem a necessidade de se limitar a severidade da punição ao que se prevê no local do cometimento do fato, mas o exato alcance de suas propostas não é claro.

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A regra do cômputo da pena cumprida no estrangeiro, referente ao mesmo crime,

foi conservada sem alteração alguma, reforçando a ideia já referida de que a cláusula de

indiferença ao desfecho de processo penal estrangeiro, nas hipóteses de extraterritorialidade

condicionada (atual art. 7.º, § 1.º), permanece no espírito do projeto.

Outras regras sobre a aplicação da lei penal

O projeto não apenas mantém a possibilidade de homologação da sentença61 estrangeira

para imposição de medida de segurança, de escassa ou nula utilização,62 como a estendeu às

sentenças condenatórias e às que impõem medida socioeducativa. A exposição de motivos

justiKca a inovação nos seguintes termos: “Longe foram os tempos nos quais se entendia que

estes efeitos versavam tema sensível à soberania nacional. Ao contrário, atualmente se busca a mais

ampla cooperação jurídico-penal entre as nações, servindo, a vetusta restrição do atual Código Penal

(…) para fazer de nosso país valhacouto da criminalidade internacional, alcançável apenas nos

termos de tratados de extradição, sem poder, aqui, cumprir pena”.63 De fato, a recusa categórica

à execução de sentenças penais estrangeiras vem dando lugar a opiniões mais permeáveis

a tal hipótese de trabalho,64 e crescem a olhos vistos os esforços de cooperação jurídica

internacional. Contudo, nenhuma das premissas, ou mesmo sua combinação, implica que

a solução proposta seja aceitável. E, em que pese o entusiasmo da comissão, melhor exame

revela que a novidade é criticável na sua motivação, conteúdo e forma de realização.

De fato, a frequente referência na cultura popular ao Brasil como destino de criminosos

foragidos65 não é motivo de orgulho nacional. Mas será o bastante para ensejar a mudança

sugerida? O projeto mantém o tradicional binômio extraditar estrangeiros e julgar nacionais,66

e se imaginam quais fatos a comissão tinha em mente para considerá-lo insuKciente. O caso

61 ... Aqui, diferentemente do exposto na nota 11, não há reparo a opor na linguagem utilizada: uma vez que nem é adequado submeter os pronunciamentos jurisdicionais (ou com força equivalente) estrangeiros à classiKcação vigente no Brasil (sentença, acórdão, decisão interlocutória, despacho etc.), nem se poderia adaptar a lei nacional à terminologia alienígena, é aceitável o uso de “sentença” como designação genérica das decisões penais condenatórias.

62 ... Em pesquisa a repertórios de jurisprudência, códigos anotados e ao sítio do STF (competente para a homologação até a EC 45/2004) e do STJ (competente desde então), não se encontrou qualquer precedente de homologação de sentença penal estrangeira para aplicação de medida de segurança.

63 ... Sobre a impossibilidade de lege lata de homologação de sentença estrangeira para imposição de pena, veja-se o acórdão do STF: HC 102041, 2.ª T., Min. Celso de Mello, j. 20.04.2010.

64 ... Vejam-se, por exemplo, Jiménez de Asúa, nota 14, n. 798, p. 884, e Mirabete, nota 13, n. 2.5.1, p. 92.

65 ... Consta que a referência em Klmes ao Brasil como refúgio ou esconderijo de estrangeiros chegou a compor o objeto de pesquisa acadêmica, publicada comercialmente com o título O Brasil dos gringos: imagens no cinema (de Tunico Amancio, Niterói: Intertexto, 2000). Cf. Carlos Alberto Mattos, Livro disseca a obra de cineastas-turistas no Brasil, disponível em: <http://www.criticos.com.br/new/artigos/critica_interna.asp?artigo=1094>.

66 ... Grotius: aut dedere aut punire (apud Albuquerque Mello, nota 55, n. 353, p. 1021, que põe reparo certeiro: aut dedere aut judicare).

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Ronald Biggs reuniu um número surpreendente de peculiaridades e diKcilmente se presta

como paradigma,67 e Achille Lollo não foi extraditado porque já havia ocorrido a prescrição.68

Talvez se possa creditar a proposta ao caso Cesare Battisti,69 pois apenas o fato de que ele pôde

permanecer impune em razão do refúgio concedido pelo ministro da Justiça e da decisão

do presidente da República de não o extraditar explicaria a inovadora menção à Mesa do

Congresso Nacional (art. 10, § 1.º, b). A grande questão é se a condescendência do governo

brasileiro de então com guerrilheiros estrangeiros justiKca por si só a mudança da legislação a

respeito das condenações proferidas alhures.

O aspecto mais preocupante da homologação dessas sentenças é que ele implica

atribuir eKcácia a decisões que encerraram processos cuja validade, em princípio, não se pode

escrutinar. Que o Brasil entregue estrangeiros70 à justiça de outros países, ou execute, por

requerimento do preso, a pena ali imposta, não signiKca que deva fazer sua uma decisão

estrangeira. No Direito Privado, a homologação se justiKca pela inadmissibilidade do

cumprimento de medidas executivas a requerimento de outros Estados; no Direito Penal,

tem-se como alternativa a extradição, desdenhada na exposição de motivos do projeto.

Tais considerações conduzem diretamente ao problema da forma adotada: a legislação

existente para a homologação de sentenças estrangeiras (art. 15 da Lei de Introdução às

normas do Direito Brasileiro; art. 787 e ss. do CPP; Res. 9/05 do STJ) não é adequada para

permitir a execução das penas impostas em sentenças criminais de outros países. Ainda que

se mantenha o sistema de delibação hoje vigente,71 as reservas de ordem pública exigiriam

maior pormenorização para evitar-se a incorporação, ao Direito brasileiro, de uma decisão que

não seria válida se aqui proferida. No mínimo, seria de proibir a homologação de sentenças

prolatadas à revelia, ao menos se realizada citação Kcta.72

67 ... Detalhes em Dollinger, Direito internacional privado, 9. ed., Rio de Janeiro/São Paulo/Recife: Renovar, 2008, p. 261.

68 ... A Extradição 581 foi julgada em menos de 5 meses. Acórdão e detalhes do andamento processual podem ser obtidos em <http://www.stf.jus.br>.

69 ... Descrito, provavelmente com razão, como “o mais polêmico pedido de extradição da história do STF” (<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=205304>) e objeto de extensa bibliograKa. Um bom ponto de partida é o acórdão proferido no dito julgamento (Extradição 1.085), ou os informativos do STF que o resumiram (n. 558, 567, 568, 572 e 630).

70 ... Rigorosamente, não só estrangeiros (CRFB, art. 5.º, LI), mas precipuamente eles.

71 ... Veja-se uma breve exposição no acórdão do STF: SEC 4738, Pleno, Min. Celso de Mello, j. 24.11.1994.

72 ... Fierro dá notícia das restrições propostas no IX Congresso da Associação Internacional de Direito Penal, realizado em 1964 (nota 60, § 310, p. 149). As conclusões do Congresso foram publicadas na RBCDP 7/123, 1964 (cf. Fragoso, em Hungria/Fragoso, nota 9, n. 38, p. 261).

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Comentando o regime vigente (que autoriza a homologação para os efeitos do art.

9.º do CP), a doutrina dominante defende que a sentença estrangeira homologada não

pode sofrer revisão criminal por tribunais brasileiros,73 o que põe particulares diKculdades

naqueles casos em que a lei processual estrangeira prevê menos meios, ou impõe requisitos

mais gravosos, que a brasileira para a desconstituição de decisões injustas: a pretexto de que

“longe foram os tempos nos quais se entendia que estes efeitos versavam tema sensível à

soberania nacional”, confere-se maior autoridade à sentença estrangeira homologada do

que à decisão judicial própria. Além disso, mesmo que a legislação do país onde se proferiu

a sentença preveja meios bastantes para sua revisão, grandes são os obstáculos ao acesso à

justiça, pois o condenado, cumprindo pena no Brasil, teria de reverter a decisão acorrendo ao

poder judiciário estrangeiro.

O texto proposto é ainda omisso quanto à extinção da punibilidade, sendo de

questionar se se admitiria a incidência dos prazos e causas interruptivas nacionais para

proclamar-se a prescrição; se haveria prazo para homologação da sentença, e qual seria ele; se

o Presidente da República do Brasil poderia conceder indulto aos condenados no estrangeiro;

se a superveniência de lei mais favorável no país que originou a condenação teria relevância

imediata ou exigiria pronunciamento do respectivo Poder Judiciário, e se essa relevância

dependeria da disciplina vigente naquele país para a sucessão de leis.74 Nenhum desses

problemas é resolvido pela simples exigência de tratado de extradição contida no projeto.

Por Km, observa-se que até mesmo a lei processual civil proíbe a homologação de certas

sentenças estrangeiras, por não reconhecer competência à justiça de outro país (CPC, art.

89). Na esfera penal, o art. 77 do Estatuto do Estrangeiro impõe numerosas restrições à

extradição (crimes políticos, crimes sujeitos à lei brasileira etc.), que deveriam obstar também

a homologação de sentença estrangeira.

Tudo isso posto, conclui-se que a inovação é desnecessária, perigosa e impertinente.

Caso seja mantida, devem-se prever limitações explícitas: impossibilidade de homologação de

sentenças proferidas à revelia ou de condenações relativas a fatos puníveis pela lei brasileira

(ao menos nas hipóteses de extraterritorialidade incondicionada) ou que, por outro motivo,

não autorizam extradição; prazo para a homologação; exigência de tratado especíKco com o

73 ... Rangel, Direito processual penal, 17. ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 1026; Tourinho Filho, Processo penal, 32. ed., São Paulo: Saraiva, 2010, v. 4, p. 725. Ambos referem à necessidade de desconstituir a sentença no país em que proferida, nos termos de sua lei processual, necessidade à qual se pode acrescentar a da homologação, no Brasil, da sentença desconstitutiva.

74 ... Sobre alguns desses temas, brevemente, Fierro, nota 60, §§ 318 e 319, p. 156-157.

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país que proferiu a decisão. O ideal, ainda que admitida a conveniência da novidade, seria

remeter a matéria à legislação especíKca, como ocorre com a extradição, legislação esta em que

os temas mencionados necessariamente teriam de ser enfrentados.

O projeto suprimiu a previsão de se desprezarem as frações de dia nas penas privativas

de liberdade e de moeda (o Código vigente fala em cruzeiro) nas penas de multa, mas a

solução permanece implícita na lei.

Concurso aparente de normas penais

O projeto retoma a proposta do anteprojeto Hungria de disciplinar o concurso

aparente de normas. Dita proposta despertou reações antagônicas: enquanto Fragoso a

criticou asperamente,75 Heitor Costa Jr. endossou a réplica do próprio Nélson Hungria.76 O

anteprojeto boliviano77 também se propõe a regular a matéria (art. 10).

Poderia parecer que se trata apenas daquela opção, mencionada no princípio do texto,

entre um Código mais detalhista e outro mais reticente. Da mesma forma como o legislador

seria livre para optar entre disciplinar certos temas ou silenciar a respeito – tais como a

punibilidade da tentativa inidônea, a solução aplicável para a aberratio ictus (critérios da

concretização e da equivalência78) ou o tratamento do erro de tipo permissivo (teorias estrita

e limitada da culpabilidade79) – também em sede de concurso aparente de normas se poriam

ao legislador as opções de calar e falar. Sob essa ótica, a inclusão no Código da disciplina

do concurso aparente de normas, providência que conta com alguns defensores,80 seria mais

coerente com o espírito minudente e detalhista do texto proposto.

75 ... Nota 46 (1963), p. 56.

76 ... Costa Jr., Heitor, nota 3, p. 146 (defendendo o aproveitamento da disciplina sugerida por Hungria na reforma de 1984); Hungria, Sobre o anteprojeto de novo Código Penal, publicado na Revista da Faculdade de Direito da UFPR, vol. 9, Curitiba, 1963 (disponível em: <http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/direito/article/view/6693/4793>).

77 ... Disponível em: <http://new.pensamientopenal.com.ar/01032010/latinoamerica05.pdf>.

78 ... Cirino dos Santos, nota 14, p. 157.

79 ... Toledo, nota 18, n. 255, p. 282.

80 ... Andrei Zenkner Schmidt, que reconhece apenas as relações de especialidade e consunção, julga oportuno legislar-se sobre esta última, propondo uma fórmula que deKnitivamente não aprovamos (Concurso aparente de normas penais, itens 5 e 8.2.4, publicado na RBCC 33, jan.-mar. 2001, e consultado na versão disponível em: <http://andreischmidt.sites.uol.com.br/artigo.htm>). Também Fortes Barbosa (Concurso de normas penais, São Paulo: RT, 1976, p. 4, 83 e 192), lembrado por Schmidt, Almeida Horta (nota 54, p. 168) e Munhoz Netto (Aspectos do anteprojeto de Código Penal, publicado na Revista da Faculdade de Direito da UFPR 9/87, Curitiba, 1963, disponível em: <http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/direito/article/view/6689/4790>), defenderam a disciplina do tema pela lei.

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No entanto, uma comparação daqueles temas com o do concurso de normas revela

uma diferença expressiva, que dá força à crítica de Fragoso. Quando o legislador brasileiro

estatui que a tentativa inidônea não é punível; que o problema da aberratio ictus se resolve pelo

critério da equivalência; e que o erro de tipo permissivo recebe o mesmo tratamento do erro

de tipo,81 ele expressa claramente um ponto de partida que se põe acima de qualquer discussão

de lege lata. Independentemente dos defeitos e imprecisões que as respectivas disposições

possam conter no detalhe, elas veiculam uma clara mensagem central que tem o efeito de

inibir certas controvérsias. Esse efeito não se pode atribuir a um dispositivo que se proponha

a regular o concurso aparente de normas, uma vez que a mensagem central que ele contém é

absolutamente inconteste: ne bis in idem. Por mais intensas que sejam as divergências sobre

o número e conteúdo dos critérios aplicáveis na matéria, a realidade do concurso aparente

de normas – isto é, a existência de hipóteses nas quais vários dispositivos teriam incidência

em tese, mas apenas um ou alguns deles efetivamente se aplica(m) – não se põe seriamente

em causa.82 Assim, a inclusão no Código de regras voltadas à solução do con�ito de leis

somente se justiKca se tais regras forem mais esclarecedoras do que as noções rudimentares

que certamente não faltam a jurista algum,83 ou se elas de alguma forma permitirem fugir do

caos doutrinário de que dão notícia vários autores.84

Infelizmente, não é esse o caso. O § 1.º do art. 12 consagra o princípio da especialidade

– o mais amplamente reconhecido de todos –, estatuindo-o em termos gerais (alínea a) e para

um caso particular (alínea b) que não mereceria menção expressa, sobretudo quando se constata

que o único delito que propunha a discussão sobre a possibilidade de cumulação de um crime

qualiKcado com o delito correspondente à produção do resultado qualiKcador – a rixa – foi

modiKcado no projeto, superando a discussão.85 O § 4.º comporta duas interpretações: (1)

todos os tipos mistos seriam alternativos;86 (2) o projeto apenas reconheceria a existência de

81 ... Curiosamente, o projeto, na contramão da História, propõe a adoção da teoria estrita da culpabilidade (art. 35, § 3.º). Sobre isso, v. Leite, neste volume.

82 ... Tal assertiva é demonstrada pela raridade ou absoluta inexistência de sentenças condenando por lesões corporais e homicídio da mesma vítima num mesmo contexto, em concurso de crimes, ou por furto e roubo do mesmo bem.

83 ... Até mesmo as obras mais sintéticas, voltadas a expor abreviadamente o Direito vigente, fazem menção ao concurso aparente de normas e seus princípios reitores, como ilustram duas das coleções mais difundidas: Rios Gonçalves, Direito penal: PG, 5. ed., São Paulo: Saraiva, 2001, Coleção Sinopses, v. 7, p. 17-21; Führer/Führer, Resumo de direito penal: PG, 18. ed., São Paulo: Malheiros, 2001, p. 56-57.

84 ... Bruno, nota 12, p. 274-275; Almeida Horta, nota 54, p. 93.

85 ... Comparem-se Regis Prado, Curso de DP brasileiro, 9. ed., São Paulo: RT, 2010, v. 2, p. 221, e Mirabete, Manual de DP, 21. ed., São Paulo: Atlas, 2003, v. 2, n. 7.1.9, p. 150. O crime de “confronto generalizado” do projeto (art. 135), que substitui o de rixa, não possui forma agravada pelo resultado.

86 ... Foi a exegese de Fragoso do anteprojeto Hungria (nota 75, p. 57).

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tipos mistos alternativos. Na primeira hipótese, espera-se que a comissão tenha levado em

conta sua própria opção na Parte Especial;87 na segunda, que nos parece mais razoável (pois o

dispositivo exige que o “o tipo penal” seja “constituído por várias condutas, alternativamente”)

e foi defendida por Hungria em sua réplica,88 o texto não fornece qualquer critério para

distinguir os tipos mistos alternativos dos cumulativos: trata-se de um postulado de existência

sem efeitos práticos – que há tipos alternativos, dá-nos notícia a Lei de Tóxicos, possivelmente

a lei penal extravagante de maior aplicação forense.

Mas o principal problema reside nos §§ 2.º e 3.º, supostamente dedicados ao

princípio da consunção. Em primeiro lugar, não cumpre à lei denominar os princípios

que proclama, mas apenas estatuir seus pressupostos e consequências: a relação entre o

ato preparatório excepcionalmente punível e o fato principal é compreendida por alguns

como de subsidiariedade.89 Além disso, a relação meio-Km é inadequada para caracterizar a

consunção,90 uma vez que é bastante usual a supressão da numeração de arma de fogo (Lei

10.826/2003, art. 16, parágrafo único, I) para a prática de outros crimes, como também

o furto de automóveis para o cometimento de roubo a bancos; a prática algum crime –

notadamente tráKco de drogas, peculato, sonegação Kscal – é requisito indispensável do crime

de “lavagem de dinheiro” (Lei 9.613/1998); apesar disso, não existe derrogação de normas

incriminadoras, mas sim a agravação pela conexão teleológica (CP, art. 61, II, b), que o

projeto mantém (art. 77, III, b). Quanto ao pós-fato copunido (§ 3.º), a exigência de que o

primeiro fato seja mais grave é desmentida pelo exemplo do uso do documento falsiKcado

(CP, art. 304; projeto, art. 266), que recebe pena igual à do crime anterior. Além disso, e

mais grave, o texto legal deixa em aberto o problema central, que é determinar quando “se

esgota a ofensividade [rectius: ofensa] ao bem jurídico tutelado pelo tipo penal anterior mais

gravoso”. Já a referência a “bem jurídico”, expressão que o projeto utiliza obstinadamente,91

pode induzir à crença de que a norma derrogadora e a derrogada devem receber a mesma

classiKcação conforme o bem jurídico protegido, o que importaria em reconhecer o concurso

aparente de normas na destruição da coisa furtada,92 mas concurso de crimes na hipótese de

dano à coisa obtida por peculato.

87 ... Observe-se que a crítica de Munhoz Netto ao anteprojeto Hungria sugere que esse autor não reconhecia a existência de tipos mistos cumulativos (nota 80, p. 88).

88 ... Nota 76, p. 58.

89 ... Almeida Horta, nota 54, p. 136.

90 ... Veja-se, sobre o critério da relação meio-Km, Gomes Bezerra, nota 54, esp. p. 133 e ss.

91 ... Arts. 5.º, § 2.º, III; 14; 24; 29 (várias vezes); 36, § 1.º; 43, § 1.º.

92 ... Bruno, nota 12, 278; Almeida Horta, nota 54, p. 157.

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Em suma, o dispositivo termina onde os problemas começam e não possui utilidade

alguma, além de criar o perigo de inibir o reconhecimento do concurso aparente de normas

em outras hipóteses não contempladas ali.

Concluímos, por isso, que “a consunção [e, acrescentamos, a subsidiariedade!], porém,

por sua própria natureza, di%cilmente permite o estabelecimento de um critério”, razão pela qual

“não nos parece que a matéria tenha atingido a evolução doutrinária indispensável para permitir

solução legislativa segura”.93 Melhor Kcaria o projeto se abandonasse a empreitada de disciplinar

o concurso aparente de normas.

Legislação especial

Por Km, o art. 13 do projeto pretende eliminar as “mini partes gerais”94 encontradiças

na legislação extravagante, suprimindo a ressalva “se esta não dispuser de modo diverso”.

Obviamente, tal esforço não impede que o legislador torne, no futuro, a excepcionar o regime

geral do Código, pois este não pode imunizar-se da derrogação por lei posterior e especial. No

entanto, o arroubo de eliminar os referidos microssistemas95 chegou ao ponto de estender

a aplicação do texto proposto ao Direito Penal Eleitoral e Militar. Como se sabe, o Código

Penal Militar vigente possui uma Parte Geral própria, com diversos preceitos que se afastam,

e muito, da legislação comum; o exemplo mais relevante provavelmente é a impossibilidade

de substituição das penas privativas de liberdade previstas na Parte Especial por restritivas de

direitos ou multa.96 Por outro lado, a necessidade de regulamentação de temas especíKcos

– como o próprio conceito de crime militar (CPM, arts. 9.º e 10), as penas de morte,

impedimento e reforma (CPM, art. 55 e ss.) – impede a revogação pura e simples da Parte

Geral do CPM.

A conjugação desses dois fatores – supressão da ressalva das disposições em contrário,

e aplicação ao Direito Penal Militar – proporá o imenso desaKo de apurar quais normas

do CPM manterão sua vigência. Mais do que pouco prático, o art. 13 do projeto parece

93 ... Fragoso, nota 75, p. 57-56, respectivamente.

94 ... A expressão aparece nos consideranda prévios ao projeto.

95 ... Que sem dúvida são incontáveis e geralmente desnecessários. Código Eleitoral; Lei 9.605/1998 (crimes ambientais); Lei 8.137/1990 (crimes contra a ordem tributária etc.); Código de Trânsito Brasileiro; Código de Defesa do Consumidor; Lei 9.613/1998 (lavagem de dinheiro); Lei 7.492/1986 (crimes contra o sistema Knanceiro nacional); Lei 9.504/1997 (eleições); Lei 11.343/2006 (tóxicos) – todas contêm alguma regra sobre Kxação da pena (especialmente de multa), concurso de agentes, liberdade condicional. A Lei 9.613/1998 chega ao requinte de proclamar que “a tentativa é punida nos termos do parágrafo único do art. 14 do Código Penal” (art. 1.º, § 3.º).

96 ... Tema pacíKco no STF: v., entre vários outros, o HC 94083, 2.ª T., Min. Joaquim Barbosa, j. 09.02.2010, com indicação de precedentes. Quanto à multa, o Direito Penal Militar sequer a conhece.

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contrariar o disposto no art. 9.º da Lei Complementar 95/1998: “A cláusula de revogação deverá

enumerar, expressamente, as leis ou disposições legais revogadas”.

Melhor seria reconhecer a impotência contra o desatino do legislador de amanhã,

manter a redação do vigente art. 12 e aproveitar o ímpeto de reforma e revisar inteiramente a

legislação penal e processual penal militar, editada em tempos sombrios e pródiga em manifestas

impropriedades.97

Considerações finais

Como se vê, embora o projeto examinado tenha alguns méritos, eles são amplamente

superados pelos defeitos. Algumas inovações oportunas tropeçam em si mesmas, acoplando

um acerto a um erro (nova rubrica do art. 2.º, formulação do critério da territorialidade), e as

mudanças positivas – como a redução da deKnição do lugar do crime aos fatos praticados em

território nacional; a substituição da locução “no país” por “no local” no novo art. 8.º, IV, b;

a incorporação do atual § 3.º do art. 7.º ao regime geral da extraterritorialidade condicionada

– não justiKcariam a edição de um novo Código, e nem de longe compensam os inquietantes

dispositivos que prenunciam inKndáveis controvérsias: autorização da combinação de leis,

disciplina expressa do concurso aparente de normas, aplicação ao Direito Penal Militar.

Todavia, o mais preocupante é a extensão desmesurada e pouco realista da aplicação

extraterritorial da lei penal brasileira e, acima de tudo, a proposta de homologação de

sentença estrangeira para lhe conferir efeitos penais no Brasil – mudanças desnecessárias, não

suKcientemente amadurecidas, incompatíveis com o regime processual em vigor e promissoras

de graves diKculdades.

Embora nossa proposta central seja examinar o título I da Parte Geral, não vemos como

deixar de registrar que a impressão negativa transmitida por ele alcança também o restante do

texto. O projeto é atécnico, pomposo, casuísta,98 assistemático e farto de promessas vãs. Seu

esforço de modernização lembra o processo de colorização de Klmes antigos, tão em voga nos

anos 1980:99 bem jurídico, ofensividade, uma quantidade fantástica de causas de aumento de

97 ... O CPPM é particularmente prenhe delas: “Art. 308. O silêncio do acusado não importará con%ssão, mas poderá constituir elemento para a formação do convencimento do juiz”; “Art. 406. Durante o interrogatório o acusado %cará de pé, salvo se o seu estado de saúde não o permitir”. Felizmente, a própria Justiça Militar desconsidera essas velharias, que Kguram como letra-morta no texto legal.

98 ... Previsão especíKca para a consumação nos crimes contra o patrimônio (art. 25, parágrafo único – sobre isso, v. Greco, neste volume); regime especial para o crime continuado no caso de homicídio e estupro (!) (art. 88, § 2.º). O § 1.º do art. 121, que prevê o homicídio qualiKcado, compete em extensão com o Sermão da Montanha, e se imagina que espaço sobrará para o homicídio simples, já comprimido ao ponto da desaparição na prática forense atual.

99 ... Veja-se: <http://en.wikipedia.org/wiki/Film_colorization#Colorization_examples.2C_criticism.2C_and_controversies>.

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pena envolvendo vítima idosa, alguns crimes “digitais” – e está remoçado o Código.

Na realidade, o único objetivo declarado que transparece do texto do projeto é o esforço

de compilação. De resto, o projeto deKnitivamente não mostra a que veio. Mas não seria de

esperar que os verdadeiros problemas da legislação penal fossem enfrentados no projeto. Uns

exigiriam coragem que não se encontra facilmente, como os crimes agravados pelo resultado

(excessivos em quantidade, em severidade e não raro punindo sob as mesmas penas as

combinações dolo-dolo e dolo-culpa100), o regime da uniKcação de penas (em que o trânsito

em julgado de nova condenação, cuja data é aleatória e materialmente irrelevante, implica

o reinício do cômputo do tempo exigido para a obtenção de benefícios pelo condenado),

a deKnição legal de tortura como crime comum,101 o tratamento penal da embriaguez;102

outros, criatividade e sabedoria que o prazo103 e o modo de trabalho aceitos pela comissão

parecem afugentar. Neste último caso se inclui, muito claramente, a questão do tamanho

das penas, mencionada por Leite neste volume: a injúria recebe o mesmo tratamento das

lesões corporais leves; a difamação, a mesma pena das lesões corporais causadas com culpa

gravíssima; o sequestro se pune identicamente ao simples constrangimento ilegal; o dano a

dados informáticos tem pena máxima três vezes superior à do dano comum, sem qualquer

justiKcativa plausível. Os exemplos são inKnitos. Se um dos propósitos declarados da comissão

era evitar a desproporção das penas, ele lamentavelmente não foi atingido.

O problema da medida das penas é um indicativo seguro da absoluta falta de unidade

do texto: trata-se de simples e precária consolidação das leis penais, realizado sem qualquer

senso de prioridade,104 à qual ousadamente se deu o nome de projeto. Talvez o mais expressivo

sinal da falta de sistema e de simples revisão seja a duplicação do crime de redução à condição

análoga à de escravo, que está previsto nos arts. 150 e 462.

100 . Problema que, há mais de 40 anos, tentou-se resolver no CP-1969 e no CPM para as lesões graves e o roubo agravado pela morte (arts. 132 e 168 do primeiro e 209 e 242 do segundo).

101 . É de notar que a péssima deKnição vigente (Lei 9.455/1997), que anuncia “Constitui crime de tortura” e utiliza o verbo “constranger” sem o necessário complemento (constranger a quê?) foi integralmente mantida no art. 468.

102 . V., nesse volume, Leite.

103 . A pressa da comissão é assustadora: o art. 542 do projeto estabelece a vacatio legis de 90 dias. A redação deste singelo estudo, iniciada com base nos textos oKciosos divulgados por alguns membros da comissão, tomou-nos mais do que isso. O prazo decadencial para impetrar mandado de segurança é de 120 dias; o prazo de contestação da fazenda pública, 60. Não custa lembrar que a LC 95/1998 estabelece que “a vigência da lei será indicada de forma expressa e de modo a contemplar prazo razoável para que dela se tenha amplo conhecimento” (art. 8.º). O CP vigente teve vacatio legis de um ano, como também o Código Civil. Este último demonstra que nem as usuais platitudes sobre a sociedade pós-moderna, ou coisa que o valha, não justiKcariam período tão curto.

104 . Mantiveram-se os crimes contra eventos esportivos e culturais do Estatuto do Torcedor, mas não os crimes da lei de transplantes. O exemplo da punição do cambista, mencionado por Greco neste volume, fala por si só.

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EnKm, o projeto, como um todo, não passa de uma falsa promessa e uma imensa

decepção. Da maneira como se encontra, e com todo o respeito à comissão (pois elaborar um

projeto de lei, por mais defeituoso que seja, exige tempo e esforço), é melhor que o projeto

não se converta em lei. Se aprovado, incorrerá no máximo fracasso de um Código Penal: com

ele, nascerá a tendência de reformá-lo.105

Gustavo de Oliveira QuandtDefensor Público Federal.

105 . Nada de novo sob o sol: veja-se o item 1 da exposição de motivos do Código Penal vigente.