Saint Hilaire No Sao Francisco

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Saint Hilaire no São Francisco

Transcript of Saint Hilaire No Sao Francisco

  • Saint - Hilaire

    Nas Nascentes do Rio So Francisco

    Antonio Liccardo & Jlio Csar Mendes

  • Ttulo: Saint-Hilaire Nas Nascentes do Rio So FranciscoCopyright 2001 Antonio Liccardo & Jlio Csar Mendes

    Projeto Grfico: Ronald Pret

    Fotografia: Antonio LiccardoEditorao Eletrnica: Ronald Pret

    Digitalizao de imagens: Joo AddadTratamento de Imagens: Ronald Pret

    Reviso de texto: Mnica AlkiminCapa: Arte de Ronald Pret sobre fotografia de Antonio Liccardo

    Agradecimentos: Fernando Flecha Alkimin e Neide das Graas de Souza

    Ouro Preto MG

    500 anos do Descobrimento do Rio So Francisco

  • Este livro dedicado memria de Jos Mendes da Silva, opersonagem Tito Sinfrniode Matip, que partiu para junto deSaint-Hilaire no dia seguinte ao trmino dessa expedio.

  • Sumrio

    1 - Apresentao2 - Saint-Hilaire e o Sculo 213 - A Rota4 - A Entrada em Minas Gerais: Rio Negro - Serra Negra5 - Campos - Rio Grande6 - Rio Grande - So Joo del Rey7 - So Joo Del Rey a Tamandu8 - Os Sertes - Formiga a Pium-i9 - As Nascentes do So Francisco10 - Os Personagens

  • APRESENTAO

    Uma pintora fazendo a apresentao de livro de dois gelogos, que revisitaram o roteiro histrico feito por Auguste Saint-Hilaire em nosso territrio, no sculo XIX? Que ousadia!!!Porm, ao receber o convite dos dois - j lhes declarando minha simples condio de apenas curiosa diletante, interessadana histria de Minas e nos roteiros do passado - no pude resistir...Tenho, ao longo do tempo, em funo de meu trabalho, me debruado com gosto e disposio sobre fatos de nossahistria e sobre o caminhar desbravador em nosso estado: desde Spinoza, em 1553, que entra pelo Rio Jequitinhonha echega ao Rio So Francisco, passando pela bandeira de Ferno Dias, at a descoberta do Ribeiro do Carmo, em Mariana,que d incio a todo o processo de explorao mineira no perodo do Ciclo do Ouro.Desbravados os caminhos do ouro, outras rotas se fizeram a partir do incio do sculo XIX, desta vez por franceses,ingleses e alemes que, passando pelos campos e serras codificaram nosso solo, traaram nossa cartografia, fizeramanotaes sobre os costumes, o povo, a flora e fauna que caracterizam Minas Gerais.Saint-Hilaire foi um desses visitantes e, entre os caminhos que percorreu, est o que fez em busca das nascentes do RioSo Francisco, passando por montanhas, campos, fazendas, vilarejos e vales, anotando suas impresses geogrficas ehumanas.Esse caminho percorrido por Saint Hilaire foi, agora, tambm trilhado pelos gelogos Jlio Csar Mendes e AntonioLiccardo que encontraram, ainda, sinais da presena deste ilustre visitante: desde restos de uma velha ponte de madeirano Rio Preto at o nome da vila de Santo Hilrio, referncia clara ao francs que por aqui passou.Por todo o caminho, os novos viajantes encontraram pedaos da histria de Minas: restos e trechos da antiga Estrada Real,velhas fazendas que atravessaram o tempo, pesados alicerces de paredes que ainda permanecem de p, uma capela... e,cercando tudo, montanhas suaves, verdes vales, corredeiras de gua pura que o homem ainda no poluiu.Mas, o mais importante, encontrado pelos autores deste livro, foi a presena humana do mineiro em sua simplicidade ehospitalidade, como no passado, lembrando-nos que, sob esse aspecto, Minas continua a mesma. Evocando Drumond, noRio de Janeiro que, em seu poema nos legou a frase antolgica, com saudades da realidade mineira:

    Esprito de Minas, me visitae sobre a confuso desta cidadelana teu claro raio ordenador

    O Esprito de Minas certamente guiar a todos na redescoberta do roteiro ora traado pelos autores.

    Belo Horizonte, setembro de 2001

    Yara Tupynamb

  • SAINT-HILAIRE E O SCULO 21

    A abertura dos portos, em 1808 e a vinda de grandes nomes da cultura europia constituram um marco na formao do conceito de brasilidade. As descries sobre o Brasil iniciaram-se com a carta de Pero Vaz de Caminha, comearam a tomar forma com os escritos dos jesutas e se consolidaram com o relato dos vrios exploradores europeus, a partir do incio do sculo XIX. Neste perodo, viajantes como Saint-Hilaire, Eschwege, Spix, Martius, o prncipe Maximiliano e o baro Langsdorff retrataram o Brasil sob um ponto de vista distante, descritivista e racional, caracterstico da poca.Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853) esteve no Brasil de 1816 a 1822 e viajou por Minas Gerais, Rio de Janeiro, Esprito Santo, Gois, So Paulo, Paran, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Uruguai. Sua viagem coincidiu com o incio da sistematizao cientfica, o que propiciou relatos muito detalhados e precisos sobre tudo o que viu. Para Antnio Gaio Sobrinho, historiador em So Joo Del Rey, dos estrangeiros que aqui passaram, Saint-Hilaire foi o mais minucioso e comedido. Falou da terra e da gente brasileira com muita simpatia e mostrou uma predileo especial por Minas Gerais pela sua hospitalidade.

    Esse naturalista fez vrias viagens pelo interior. Em 1819 saiu do Rio de Janeiro, visando a alcanar as nascentes do Rio So Francisco. Seu relato sobre essa viagem constitui um dos primeiros documentos que descreve a geografia, o meio ambiente e aspectos sociais do caminho para Gois, passando por Minas Gerais.

    A experincia de refazer o trajeto, sob a tica do sculo XXI, mostrou o contraste entre as diferentes realidades que existem no Brasil. O relato, muito minucioso, permitiu determinar o caminho com exatido, depois de tanto tempo, e revela o olhar acurado do autor como observador de uma poca. Sua descrio dos aspectos geogrficos e ambientais to precisa que remete o leitor realidade do sculo XIX.

    Caminhar ao longo dessa rota significou retornar no tempo e dimensionar as dificuldades e a coragem desses viajantes, numa regio praticamente desabitada e por vezes inspita.

  • Alguns locais permanecem exatamente iguais descrio feita por Saint Hilaire, enquanto outros mostramo poder de interferncia do ser humano sobre a natureza.

    O fato de se estar nos locais j descritos por Saint-Hilaire e acompanhar suas descries d-nos a sensaofamiliar de j se ter estado ali antes. Quase todas as fazendas situadas no percurso da viagem parecemparadas no tempo. So bastante rudimentares e muitas vezes isoladas, lembrando os prprios relatos deSaint-Hilaire. Os fazendeiros so completamente alheios preservao de monumentos histricos e,muitas vezes, do meio ambiente. Na maioria das cidades, no entanto, j existem pessoas preocupadas comaspectos ecolgicos e com a preservao da histria.

    A conservao do meio ambiente, de um modo geral, est estreitamente vinculada s condiesgeomorfolgicas da regio. Nas regies de difcil acesso, como a Serra Negra, o impacto da ocupaohumana bem menor. A grande necessidade de gerao de eletricidade ameaa mudar este quadro, poiseste tipo de topografia facilita a construo de barragens, mudando radicalmente a paisagem.

  • Nas regies mais planas ou de fcil acesso, as principais interferncias sobre o ecossistema foram aagricultura e pecuria. O aproveitamento pleno do potencial mineral do Estado de Minas Gerais foi ogrande diferencial entre as realidades do incio do sculos XIX e XXI. Em 1820, s existiam alguns garimposde ouro e, em 2001, a minerao a base da economia de muitos municpios do percurso.

    Ouro em So Joo Del Rey e diamante em Vargem Bonita j foram intensamente explorados, enquantoestanho e tntalo em So Tiago e calcrio em Crrego Fundo ainda so bons exemplos da vocaomineradora de Minas Gerais.

  • A importncia dos rios brasileiros assumepapel de destaque no relato, a ponto doautor imaginar uma possvel ligao fluvialentre Buenos Aires e Belm. Sua descriodos cursos dgua minuciosa e apossibilidade de aproveitamento dosrecursos hdricos aventada. Os rios Preto,Grande e So Francisco so os grandesreferenciais desta viagem.

    No Rio Preto, a degradao da qualidadeda gua e os projetos de construes demltiplas barragens para a gerao deenergia representam contrastes entre osrelatos e a atualidade. Na poca de SaintHilaire, os afluentes desse rio, que nasciamna Serra Negra, impressionaram pelalimpidez de suas guas.

    Com a demanda crescente por eletricidade,as barragens previstas representaro umamudana radical na paisagem.

    O aparecimento do Arraial de Capitinga,atual Santo Hilrio, submerso desde adcada de 60, um sinal claro da ntimarelao entre a histria e o meio ambiente,

    uma vez que, nesses dois sculos, a tnica da histria humana foi a de agresso inconseqente natureza.

  • A modificao na paisagem do Rio Grande com a construo da Represa de Furnas reflete-se em inmerosaspectos. Implantou-se uma infra-estrutura turstica baseada no nvel da gua, que passou a fazer parte daeconomia local. Com o abaixamento desse nvel, boa parte dessa infra-estrutura perdeu a utilidade, comdesvalorizao dos imveis e uma crise na gerao de renda na regio

    A criao do Parque Nacional da Serra da Canastra, em 1972, foi o fator de preservao das cabeceiras doSo Francisco. O impacto causado pelos garimpos de diamante, em Vargem Bonita, no foi suficiente paramodificar a manuteno do ecossistema de toda a regio. As paisagens descritas por Saint-Hilairepermanecem intactas na Serra da Canastra. A preservao da nascente do Rio So Francisco em um parquenacional, comparada com a imensa interferncia do homem no seu curso, com a sua importncia nacional ecom os problemas de escassez de gua e energia eltrica desses sculo, um sinal para que se busquemnovas maneiras de aproveitamento dos recursos naturais.

    O registro dessa viagem, num momento em que se comemoram os 500 anos da descoberta do Rio SoFrancisco e se discute intensamente a utilizao dos recursos naturais brasileiros, constitui-se em umdocumento atual e, ao mesmo tempo, resgata um pedao da histria do Brasil e ajuda a entender acomplexidade deste pas.

  • A edio em portugus de VIAGEM S NASCENTES DO RIO SO FRANCISCO, publicada em 1975 pela Livraria Itatiaia Editora Ltda e Editora da Universidade de So Paulo, serviu de base para essa revisita rota percorrida por Saint-Hilaire. 04 de outubro de 2001 - 500 anos da descoberta do Rio So Francisco.

  • A ROTA

    Este trabalho iniciou-se em Rio Preto, na divisa do Rio de Janeiro com Minas Gerais, rastreando a antiga rota das tropas at s nascentes do Rio So Francisco, na Serra da Canastra.A distncia mdia percorrida pelo viajante e sua tropa, durante um dia, variava entre duas e trs lguas, o que equivale a 12 e 18km, respectivamente. O percurso total, ao longo da Estrada Real ou do Comrcio, foi de 80 lguas, correspondente a 480km. Hoje, passando pelos mesmos lugares atravs de estradas para automveis, a distncia entre Rio Preto e as nascentes do Rio So Francisco de, aproximadamente, 650km.

    No incio da viagem em Minas Gerais, a partir de Rio Preto e atravessando a Serra Negra, Saint Hilaire se depara com uma floresta muito densa, a Mata Atlntica, hoje muito reduzida em toda a costa brasileira em virtude do intenso desmatamento. uma regio muito montanhosa e ngreme, sem topos planos e com uma vegetao caracterstica. A partir da, a paisagem se caracteriza pelos campos de relevo mais regular e vegetao de gramneas e arbustos.

    Saindo da Serra Negra, a tropa caminhou pelos campos no vale do Rio Grande, a principal referncia geomorfolgica na regio. Os campos predominam at nascente do rio So Francisco, com exceo das montanhas quartzticas como a Serra do Lenheiro, em So Joo Del Rey; a Serra de Pium-i, na regio entre Santo Hilrio e Pium-i e a prpria Serra da Canastra. Nesse trajeto, exceo a regio onde est a cidade de Itapecerica, com matas mais densas e topografia mais acidentada.

  • TABELA DE DISTNCIAS

    Rio Preto at So Gabriel ............................................................................. 2,5 lguasSo Gabriel ao Alto da Serra Negra ........................................................... 5,5 lguasSerra Negra at a Fazenda Laranjeiras....................................................... 8,0 lguasFazenda Laranjeiras at a Fazenda Vertentes do Sardim ....................... 1,5 lguasFazenda Vertentes do Sardim at a Fazenda Chaves ............................. 4,5 lguasFazenda Chaves at Rancho do Rio das Mortes Pequeno ...................... 4,0 lguasRancho at So Joo Del Rey ...................................................................... 1,5 lguasRancho at Fazenda do Tanque ................................................................. 3,0 lguasTanque at a Fazenda Capo das Flores ................................................... 3,5 lguasFazenda Capo das Flores at Fazenda Capito Pedro .......................... 2,5 lguasFazenda Capito Pedro at Fazenda Vertentes do Jacar ...................... 3,5 lguasVertentes do Jacar a Oliveira .................................................................... 3,5 lguasOliveira a Fazenda Cachoeirinha .............................................................. 6,5 lguasCachoeirinha a Tamandu ......................................................................... 2,0 lguasTamandu a Formiga .................................................................................. 4,0 lguasFormiga a Fazenda Ponte Alta .................................................................. 4,0 lguasPonte Alta a Fazenda So Miguel e Almas ............................................. 4,5 lguasFazenda So Miguel e Almas at Pium-i ................................................. 2,5 lguasPium-i a Fazenda Dona Tomzia .............................................................. 3,5 lguasDona Tomzia a Fazenda Joo Dias ......................................................... 3,5 lguasJoo Dias a Cachoeira Casca DAnta ........................................................ 4,5 lguasJoo Dias a Serra da Canastra .................................................................... 6,0 lguas

  • ENTRADA EM MINAS GERAIS: RIO PRETO - SERRA NEGRA

    Saint-Hilaire comeou sua viagem em territrio mineiro cruzando a ponte sobre o Rio Preto, na divisa dosestados de Minas Gerais e Rio de Janeiro. A cidade de Rio Preto, apesar de sua importncia no incio dosculo XIX, por ter sido um posto aduaneiro, hoje uma pacata cidade do interior mineiro, comcaractersticas fluminenses. Pouco restou da poca urea de Rio Preto, tendo a cidade sofrido comproblemas de preservao tanto do patrimnio histrico quanto do meio ambiente.

  • Dona Aida Ramalho Pinto, farmacutica de 82 anos e o jovem Marcos Machado Monteiro, arteso, ambosnativos de Rio Preto, so pessoas muito preocupadas com a preservao das casas e restos de construesantigas, que compem o patrimnio histrico local. Graas a eles, foi possvel identificar os pilares demadeira da ponte que o explorador utilizou para atravessar o Rio Preto, cravados no leito do rio a uns 300metros abaixo da ponte atual. Segundo Manuel do Jermo, 77 anos, tambm natural de Rio Preto, essespilares j estavam l desde a poca em que comeou a pescar nesse rio aos 12 anos. Segundo, ainda, aspessoas mais idosas da regio, a velha ponte teria sido construda no tempo dos escravos.

    Nos arredores da cidade de Rio Preto, as matas densas j no existem mais, tendo sido a maior partetransformada em pastagem. Quanto ao rio, bastante poludo e com quase nenhum peixe, o grande pontode discusso atual, devido a projetos de construo de barragens para a gerao de energia, barragensestas que iro inundar as reas planas na regio.

  • Existia um posto alfandegrio logo aps a ponte que controlava a entrada e sada de mercadorias daprovncia de Minas Gerais. Pela descrio de Saint Hilaire, esse posto, apoiado sobre moures, onde elepassou a noite com sua tropa, seria a casa do Seu Manuel do Jermo.

  • A partir do Rio Preto, a tropa iniciou o caminho de subida para a Serra Negra. No trajeto, encontram-se asrunas de uma casa de pedras e os alicerces de outra edificao prxima ao crrego So Gabriel onde,possivelmente, Saint Hilaire tenha dormido. O Sr. Brs Ferreira de Freitas, com 96 anos, nascido na regiohoje conhecida como Funil, diz que a casa de pedra era uma construo muito grande e que depois veioabaixo, restando somente as grossas paredes de pedras de um dos cmodos.

  • Existem vrias histrias sobre os caminhos que cortavam a Serra Negra. A mais difundida, no entanto, ado "burro de ouro". Conta-se que na passagem de uma tropa conduzida por contrabandistas de ourovindos de Gois, houve um ataque de negros que viviam em quilombo ou da fiscalizao portuguesa e umdos burros, carregado com muito ouro, teria cado num precipcio e nunca mais fora encontrado. Existequem procure esse ouro at hoje.

  • O relevo abrupto e com vales encaixados, caracterstico dessa regio de rochas metamrficas,compostas de gnaisses, charnoquitos e quartzitos, foi descrito com uma grande riqueza de detalhe peloexplorador francs. Graas, possivelmente, a essa topografia muito acidentada, o ecossistema da SerraNegra continua razoavelmente preservado, ao contrrio das reas planas prximas cidade de RioPreto. Os solos arenosos com coberturas acinzentadas descritos pelo naturalista correspondem smontanhas de quartzitos brancos e friveis que compem os cumes da Serra Negra.

  • CAMPOS - RIO GRANDE

    Ao deixar a Serra Negra, Saint Hilaire destacou o contraste de paisagem entre a densa Mata Atlntica, ondemuitas vezes o horizonte esteve ao alcance das mos e a amplido dos campos da regio do Rio Grande,onde o relevo suave, os ventos so secos e as sombras so escassas, devido predominncia de gramnease arbustos. Realmente grande a diferena entre o calor predominante nesta rea e a sensao de frescor eumidade constante dentro da floresta, na Serra Negra.

  • Aps atravessar o Rio Grande, o naturalista passou pelos locais onde, atualmente, situam-se as cidadesde Bom Jardim de Minas e Andrelndia. Em Bom Jardim de Minas descreveu uma capela, situada notopo de um morro suave, caracterstico da regio. A capela ainda existe e os moradores mais velhoscomentam sobre o intenso movimento na cidade, inclusive comercial, na poca da passagem das tropas.

  • Do Povoado do Turvo (atual Andrelndia), o naturalista francs apresenta uma descrio minuciosa datopografia, principalmente no que se refere Serra dos Dois Irmos, a oeste, e Serra de Juruoca, a sudeste,hoje conhecida como Serra do Papagaio e pertencente ao municpio de Aiuruoca. A Estrada Real passavanum dos locais mais elevados, onde hoje se encontra a esttua de Cristo voltada para o centro deAndrelndia.

    Saint-Hilaire descreve a forma dos morros que compem a Serra dos Dois Irmos como piramidal curta ede base ampla, tendo subido em um deles para coletar amostras de plantas. Esses morros so compostospor quartzitos que se apresentam em camadas mergulhando cerca de 30o para leste e com escarpasabruptas no lado oeste, o que explica a conformao por ele descrita.

  • As informaes sobre a histria local e a possvel localizao das fazendas citadas no relato foramlevantadas em Andrelndia, com o historiador Marcos Paulo de Souza Miranda. Este estudioso de 26 anosparticipa tambm de uma ONG preocupada com a preservao histrica e ambiental da regio,principalmente de stios arqueolgicos descobertos recentemente.

  • Em So Vicente de Minas, outro historiador, Antnio Alves Lima (63 anos), estudioso da genealogialocal, tambm fornece importantes indcios sobre as construes remanescentes. Segundo Antnio, elemesmo seria um descendente do proprietrio da Fazenda Vertentes do Sardim, seu quinto-av, quehospedou o naturalista francs a caminho de Madre de Deus.

  • Sobre as fazendas da regio, a Fazenda das Laranjeiras a nica que foi mantida em boas condies e compoucas modificaes. De fato, nela possvel observar detalhes como a proximidade da Estrada Real, hojeapenas reconhecvel pelo sulco deixado e os muros caractersticos de pedra encaixada. Mesmo no interior dacasa ainda se respira uma atmosfera colonial.O caminho pela regio dos Campos segue, aproximadamente, o curso do rio Grande at chegar a Madre deDeus, onde pouco restou das construes da poca. Antnio comenta que foi seu primo padre quemdemoliu a igreja antiga para a construo de uma mais moderna.

  • Resta ainda uma pequena capela construda naquela poca e que sofreu poucas modificaes.Seguindo ocaminho, a Fazenda dos Chaves, onde foi o prximo pernoite da tropa, foi totalmente destruda, restandosomente o nome do Crrego dos Chaves. O local uma plancie aluvionar, beira de um curso de guaturva, em meio a uma topografia regular, coerente com a descrio que o autor faz dessa fazenda. semelhana do que escreve Saint-Hilaire, nesse local ainda percebe-se a presena de uma infinidade depssaros a cantar no final da tarde.

  • RIO GRANDE - SO JOO DEL REYO caminho para So Joo Del Rey, o grande centro urbano da regio em 1819, passava pelo Rancho do Rio das Mortes, atual Povoado de Santo Antnio do Rio das Mortes. Nesse rancho, Saint-Hilaire se instalou por vrios dias em funo de problemas de sade de Yves Prgent, seu companheiro de expedio e empalhador oficial de animais do grupo.O Rio das Mortes que banha esse povoado o que Saint-Hilaire chamou de Rio das Mortes Pequeno e que desgua no Rio das Mortes Grande, principal curso de gua da regio de So Joo Del Rey. Esse povoado encontra-se totalmente modificado e existem apenas runas de uma casa que, segundo os moradores, a construo mais antiga de Santo Antnio do Rio das Mortes. So paredes de grandes tijolos de adobe, que eram caractersticos das construes dessa poca.

  • Saint-Hilaire, rumando para So Joo, descreveu as rochas nuas e pontiagudas de uma serra do ladoesquerdo que ele chamou de Serra de So Joo. O historiador Antnio Gaio Sobrinho (65 anos) de So Joocomenta que, tanto hoje quanto na poca, a serra j era conhecida como Serra do Lenheiro.

    O viajante francs encontrou muitos dissabores em So Joo Del Rey, culminando com a morte de seuamigo Prgent pela febre. Segundo mdico e curandeiros locais essa febre teria sido contrada na passagempela Mata Atlntica. A doena do empalhador obrigou Saint-Hilaire a se instalar num albergue de ltimacategoria nessa cidade.

    O primeiro hotel de So Joo Del Rey, funcionando at hoje, s veio a ser inaugurado em 1840, na margemdireita do Rio das Mortes Grande. Registros sobre o bito de Prgent no puderam ser encontrados naigreja matriz da cidade.

  • Saint Hilaire, em seu relato, elogia muito o contato que teve com o proco da matriz, o padre JoaquimMariano da Costa Amaral Gurgel, segundo os arquivos do padre atual, o Monsenhor Paiva. A igreja matrizsofreu modificaes em sua fachada posteriormente passagem dessa expedio, mas mantm intactasalgumas caractersticas arquitetnicas dessa poca.

  • SO JOO DEL REY - TAMANDU

    Saindo de So Joo Del Rey, o grupo do naturalistapernoitou na Fazenda do Tanque, descrita como umlocal muito aprazvel, circundado por morros poucoelevados e situado num amplo vale cortado pelo Rio dasMortes Grande. Atualmente, ainda podem ser vistos osmuros de pedra que cercavam a sede dessa fazenda, emmeio aos pastos e currais. No Povoado de Conceio daBarra, atual Conceio da Barra de Minas, Saint-Hilaireficou estupefato com o tamanho da igreja em relao smoradias miserveis do lugar. As igrejas do Rosrio,Conceio e Santo Antnio, apesar de modificadas, so

    as nicas construes remanescentes da poca de sua passagem por esta vila.

  • Seguindo caminho, Saint Hilaire foi para a Fazenda Capo das Flores, construda nas encostas e defrontea um vale aberto, com a Estrada Real passando em sua porta. H cerca de dois anos, a prefeitura domunicpio de So Tiago retirou mais de 100 caminhes de pedra das runas da fazenda, para ocalamento das ruas.

  • A presena do antigo cemitrio e da capela, ainda que totalmente modificada, permite dimensionar aimportncia desse entreposto nessa rota to importante para o Brasil colnia. Numa poca em que quaseno existiam aglomeraes humanas, as paradas de tropas funcionavam como ponto de referncia, inclusivereligioso, para os poucos moradores da regio.

    A prxima fazenda do trajeto, a Fazenda do Capito Pedro , hoje, completamente desconhecida peloshabitantes da regio. Graas a pessoas que tm a curiosidade natural pela histria, como o vereador Helenoe os fazendeiros Murilo e Tiago, foi possvel localizar, no meio do mato, a sede dessa fazenda. Entre osrestos das espessas paredes de pedras dessa que j foi a mais importante fazenda da regio, crescem rvoresde troncos retorcidos. A reao eufrica de Heleno, Murilo e Tiago com a descoberta revelou agrandiosidade das construes dessa poca e que hoje esto totalmente esquecidas no meio do nada. Umolhar mais atento revela a grande extenso dos muros que rodeavam esses pontos de descanso dostropeiros.

    Hoje, pouqussimos resqucios da fazenda podem ser encontrados, como os restos dos muros e antigas madeiras utilizadas na sua estrutura. A Fazenda das Laranjeiras conserva toda a estrutura externa original, exceto a sede que foi destruda. Suas paineiras gigantes e centenrias, que no so comuns na regio, testemunham uma poca onde todo o transporte de Gois para a capital do imprio passava por suas portas.

  • Dessas sesmarias constitudas por grandes reas, originaram-se os minifndios atuais. Do Morro doPalmital, prximo Fazenda do Capito Pedro, Saint-Hilaire cita que era retirada uma canga ferruginosa,como minrio de ferro, para uma forja, onde fabricavam-se utenslios como enxadas, machados e faces.Possivelmente, os restos encontrados de um forno domstico, com paredes mais espessas que as normais ecom qualidade refratria, possa ser essa forja. Do Morro do Palmital, prximo Fazenda do Capito Pedro,Saint-Hilaire cita que era retirada uma canga ferruginosa, como minrio de ferro, para uma forja, ondefabricavam-se utenslios como enxadas, machados e faces. Possivelmente, os restos encontrados de umforno domstico, com paredes mais espessas que as normais e com qualidade refratria, possa ser essa forja.

  • Numa das nascentes do Rio Jacar, estava situada a Fazenda das Vertentes do Jacar, o ltimo pouso deSaint-Hilaire antes de chegar ao povoado de Oliveira. O Rio Jacar um triste exemplo do grandeassoreamento que vem acontecendo nas ltimas dcadas, devido a uma utilizao desordenada do soloem agricultura e pecuria. Hoje, a paisagem dominante na regio de grandes vossorocas, destruindo osolo arenoso coberto por ralas gramneas.

  • Chegando ao Arraial de Oliveira, hoje cidade deOliveira, o explorador francs descreve aimponncia da igreja matriz, ornada por umapedra de bela tonalidade verde, a qual ele chamoude talco petrificado. Esses detalhes em pedra-sabo mantm-se intactos, mesmo no interior daigreja e, apesar das modificaes sofridas pelacidade, a praa principal parece manter a mesmaatmosfera da poca.

    No Morro do Camacho (do guarani cama (seios) echua (coisa pontuda)) distingue-se perfeitamente aforma do seio pontiagudo. Hoje, a seus ps nasceua cidade de Camacho e todos os moradoresacreditam que camacho deve seu nome a umfazendeiro espanhol.

    Continuando em seu rumo, na Fazenda daCachoeirinha, pertencente ao capito-mor deTamandu, Joo Quintino de Oliveira, SaintHilaire foi recebido com vinho do porto, pozinhode excelente qualidade e gentilezas. Hoje, afazenda desse homem que trazia a bondadeestampada na sua fisionomia cheia de histria,como a contada por sua descendente, que diz quese algum o vir meia-noite encontrar um potede ouro escondido em suas terras.

  • Remexendo o terreno onde estava a sede dafazenda, relquias da poca como cachimbos feitospelos escravos e peas que adornavam as armaspodem ainda ser descobertas.

    Tamandu, atual Itapecerica, produziu umagradvel efeito na paisagem aos olhos argutos donaturalista. Um punhado de criminososencontraram ouro, fundaram um arraial e, devidoao animal comedor de formigas, deram-lhe essenome. A sede do termo (municpio) j tinha quase25.000 habitantes e era um dos mais importantescentros urbanos da provncia de Minas Gerais.

  • Mesmo longe da importncia de outrora, Itapecerica ainda transmite a mesma sensao agradvel aosque por ela passam. Na poca, j contava com trs igrejas e duas capelas, duas das quais se mantm compoucas modificaes.

  • Conforme a descrio de Saint-Hilaire, a cidade... no seu conjunto ainda oferece um belo contraste contra o verde sombrio das matas que a rodeiam de todos os lados,no somente devido brancura das paredes de suas casas e ao colorido dos telhados, mas tambm por causa da posiodas casas, que parecem lanadas no meio das massas de verdura formada pelas bananeiras e laranjeiras que enchem osseus quintais.

  • Hoje, a economia dessa cidade amparada pela produo de grafite e de rochas ornamentais extradas deseu subsolo. Personagem notrio de Itapecerica o professor Vicente de Paula Diniz, que aos seus 58anos, mantm viva a chama da histria local e conta que, durante a poca do imprio, o nvel cultural doshabitantes era tal, que os mendigos liam os jornais em francs!

  • A casa que pertenceu ao capito-mor de Tamandu, personagem que impressionou fortemente Saint-Hilaire, hoje o museu da cidade. Durante toda a rota, uma das poucas cidades que teve a preocupaode preservar a cultura e histria na forma de museu. Nessa casa/museu acontecem todos os anos,durante o festival de inverno, exposies de arte e cultura.

  • OS SERTES - FORMIGA A PIUM-I

    Em Formiga, Saint Hilaire conheceu um ancio centenrio que fora a primeira pessoa a se estabelecer ali,em 1749, segundo seu relato. O arraial comeava a despontar como um importante entreposto comercial,onde as mercadorias alcanavam preos elevados.Durante sua passagem, a vila era formada por cerca de 1.000 habitantes, grande parte deles prostitutas,criminosos, mestres ferreiros e serralheiros, uma vez que sua localizao no comeo do serto e ao lado deuma estrada muito freqentada tornava o local privilegiado.

  • O comrcio era to ativo, que a loja mais bem abastecida era do proco local e vendia tambm,incrivelmente, indulgncias da Santa Cruzada. No centro antigo de Formiga, a igreja matriz est situada aofundo de uma praa bastante larga e num ponto elevado. poca, o teto da igreja no tinha forro, seuinterior era desprovido de ornamento e sua aparncia geral condizia perfeitamente com a pobreza dascasas do lugar. A situao hoje bem diferente, pois a igreja muito bonita, apresentando um dosinteriores mais interessantes e alegres das igrejas mineiras.

  • O curso dgua que deu nome cidade (RioFormiga), como quase todos os rios que atravessamzonas urbanas, transformou-se em um grandecoletor de esgotos. O centro histrico com suas ruasmal alinhadas, apesar do grande crescimento dacidade, ainda mostra um belo casario colonial.Seguindo a rota do explorador, a antiga Fazendado Crrego Fundo est situada a 3km a noroeste dacidade de Crrego Fundo. Quase nada restou dessaconstruo, apenas alguns esteios de madeirasnobres desprezados no quintal de uma pequenacasa.

    A economia da regio, hoje, baseia-se na indstriade cal e no turismo associado Represa de Furnas.A est uma das maiores reservas mundiais decalcrio calctico prprio para a fabricao de cal,corretivo de solo e uma infinidade de outrasaplicaes em produtos industrializados.

    A Fazenda Ponte Alta, onde Auguste Saint-Hilairepernoitou a caminho de Pium-i, hoje umimportante centro de referncia turstica dessaparte do Balnerio de Furnas. A sede atual, apesarde no ser a mesma do incio do sculo XIX, antiga e pertence mesma famlia desde 1856,quando o Coronel Aureliano Nunes e sua mevieram da Serra da Canastra.

  • O atual proprietrio, Sr. Paulo Rodrigues Nunes, conserva a histria de sua famlia com muito zelo ecarinho. Ele afirma, com convico, que uma das casas de pedra da Serra da Canastra, algumas aindaexistentes e famosas hoje pelo turismo, teria pertencido a um de seus ancestrais. Na sede de sua fazenda,muito bem preservada, alm de vender para turistas os produtos tpicos da regio, Seu Paulo Nunespossui um acervo de objetos antigos que tornam sua casa um verdadeiro museu local.

  • Velhas frmas de queijo em formato de corao, que eram utilizadas em casamentos e ocasies especiais,figuram entre retratos de famlia, ferragens e bas. A histria da famlia do Coronel Aureliano Nunes -mostrada pela matriarca em um recorte de jornal que diz ser o maior cl da Amrica do Sul, com 300 anosde histria - associada ao ambiente da fazenda, faz lembrar o Coronel Aureliano Buenda, do clssico CemAnos de Solido, de Gabriel Garcia Marquez. Rastreando o prximo ponto de parada da tropa de Saint-Hilaire, no municpio de Pimenta, o Sr. Francisco Alves Garcia (91 anos) e sua esposa Dona Terezinha,juntamente com o vereador Itacy de Oliveira comentam sobre a possvel localizao da FazendaCapitinga. O Sr. Itacy, que nasceu em Santo Hilrio, confirma o nome da vila de Capitinga e, ainda , que

  • a antiga capela mencionada pelo explorador francs est submersa nas guas do Lago de Furnas. DonaTerezinha comenta que nessa regio havia uma grande incidncia de maleita e febre amarela. Os tropeirosque vinham do Rio de Janeiro em direo a Mato Grosso traziam consigo uma tintura chamada ManuelGonalves de Assis feita com a raiz, seca e ralada, da Calunga ou Sete Sangrias, que os curandeirosutilizavam para tratar essas doenas. Em Minas Gerais, ainda hoje surgem, esporadicamente, focos defebre amarela no oeste do estado. O surgimento de uma vila chamada Santo Hilrio (um santo poucoconhecido em Minas Gerais),

  • prxima Estrada Real e nos confins dos sertes, sugere uma grande coincidncia. Seu Juquinha (JosAntnio Manuel de Oliveira), em seus 58 anos, diz que ouviu falar, quando criana, que o nome devia-se aum viajante famoso que passou por ali. O Dr. Fernando Coutinho de Oliveira, 84 anos, o grandeconhecedor da histria de Capitinga e confirma que o nome Santo Hilrio foi dado em homenagem aonaturalista francs, que teria causado forte impresso no local. A influncia de viajantes estrangeiros emalguns lugares do interior do Brasil realmente foi muito grande.

  • A Vila de Capitinga foi coberta pelas guas de Furnas e a nova Santo Hilrio foi reconstruda em localmais elevado. Com o grande abaixamento do nvel de gua na barragem, em funo da crise energticaatual (cerca de 15 metros), as runas da antiga vila vieram tona.

  • Seguindo a lgica de que as igrejas so reconstrudas no mesmo terreno sagrado, a base das runas quereapareceu, possivelmente, a mesma da capela onde Saint-Hilaire passou.

    A presena da barragem foi o fator que obrigou a construo da igreja atual em local diferente da anterior.O explorador comentou sobre o Domingo de Ramos, em que as pessoas levavam grandes folhas de palmasbentas. Para ele, essas palmas verdadeiras, em uso em todo o pas, lembram melhor a origem dessa festa doque os mesquinhos ramos de buxo ou de loureiro distribudos nas igrejas da Frana.

    Seguindo para a Fazenda So Miguel e Almas, situada a mais ou menos uma lgua do p da Serra dePium-i, Saint-Hilaire ficou encantado com a cor azul intensa produzida por um corante natural, oriundo deuma planta das matas da regio. Para ele, foi espantoso que as propriedades de uma espcie vegetal toabundante no pas (Solanum indigoferum) s fossem conhecidas num longnquo recanto da Provncia deMinas e sugere que os habitantes se dediquem ao cultivo da planta, cujo produto final poderiam exportarcom proveito. Dona Terezinha, que havia nos falado sobre a tintura da Calunga, reconhece essa plantacomo sendo a quaresmeira do serto e confirma t-la utilizado, muitas vezes, quando jovem, para tingirtecidos. Saindo da Fazenda So Miguel e Almas e subindo por um caminho pedregoso e difcil, AugusteSaint-Hilaire alcanou o cume da Serra de Pium-i, de onde descortinou um dos panoramas mais vastos queat ento tinha tido oportunidade de apreciar.

  • Ao fundo, avistou a Serra da Canastra, que bem merece esse nome, por ser comprida, lisa e arredondadaem toda a extenso do seu topo, alm de ser cortada verticalmente nas duas extremidades, similar formade uma canastra. O arraial de Pium-i, que tanto encantou o viajante francs, no apresenta vestgios dessetempo. Um centro cultural particular, criado e mantido por Dona Hebe Bruno, o nico elo da cidade coma sua histria. A antiga igreja matriz de Pium-i, a que se refere Saint-Hilaire, foi destruda com a construono mesmo local de uma mais moderna. Dona Hebe mantm um fantstico acervo de desenhos de todas asconstrues antigas da cidade, inclusive da primeira igreja matriz, feitos de memria por seu pai, quefaleceu em 1986, com 82 anos.

  • A paisagem vista de Pium-i corresponde ao texto de Saint Hilaire:

    ... onde pode se ver simultaneamente a plancie a as montanhas, formando um conjunto a um tempo alegre e imponente, ao qual se acrescenta o agradvel contraste oferecido pela presena de um povoado perdido no meio daquelas imensas solides. O cu era de um azul purssimo e uma paz maravilhosa, como no se encontrava mais na Europa, reinava sobre toda a natureza.

    Similar Serra da Canastra, a de Pium-i constituda por um grande pacote de quartzitos, com um topo plano formando extensas chapadas, cobertas de gramneas.

  • AS NASCENTES DO SO FRANCISCO

    Finalmente a caminho da Serra da Canastra, Saint-Hilaire hospedado por uma senhora, Dona Tomzia,proprietria de uma grande fazenda situada trs lguas e meia aps Pium-i. Dona Tomzia,acompanhada de sua filha, recebeu-o muito bem, conversando sobre a grande fertilidade de suas terras esobre o problema das ervas venenosas, que provocavam a morte de numerosas cabeas de gado naregio. De Pium-i at Fazenda da Dona Tomzia, as terras tornam-se mais homogneas e mostram umacolorao vermelho-escuro, em contraste com os solos oriundos de quartzitos que compem as serras.

  • Por coincidncia, a sua tatarav se chamava Tomzia e, possivelmente, poderia ser a personagem citada porSaint-Hilaire. Outra coincidncia a de que, hoje, a Fazenda Joo Dias pertence ao Seu Jaime. Nessafazenda totalmente modificada, ainda se encontram alguns resqucios do local onde o viajante alojou suatropa por vrios dias, enquanto foi procura de uma grande cachoeira sobre a qual tinham-lhe informado.As pessoas contam muitas histrias de fantasmas e assombraes na extinta fazenda, onde morou o SeuJaime. Um parente seu disse que, quando l dormiu, ouviu barulho durante a noite toda e que a camalevitara com ele. Seu Jaime diz que nunca viu fantasma, mas que gostaria de ver, pois com esta idadecoisas novas j no mais aparecem. A histria de Ulisses Florncio Seabra (60 anos), dono de um comrciode sanduches, muito curiosa. Numa vila como Cabresto, no tendo tido escolaridade oficial, ele umautodidata conhecedor at mesmo de Saint-Hilaire e mostra com riqueza de detalhes o antigo leito da

    O solo mais frtil, encontradoat o p da Serra da Canastra,deve-se alterao das rochasgrantides que constituem asreas planas dessa regio. Nessafazenda encontram-se poucosresqucios da poca da passagemdo explorador. Um ou outropedao de madeira antiga, canaisque levavam a gua para aresidncia, restos da base daconstruo e velhas peas deferro fundido so sinais de umaantiga histria. Na vila deCabresto, o Sr. Jaime RodriguesFaria (nascido em 1919) afirmaque a Fazenda de Dona Tomziapertenceu sua famlia.

  • Estrada Real na regio. Como o sulco deixado por esta estrada profundo, nos locais de declive maisacentuado, muitos fazendeiros fazem represamento de gua, aproveitando essas feies topogrficas. SaintHilaire esclareceu que, embora existissem minas de ferro espalhadas em toda a provncia, o minrioutilizado na Fazenda Joo Dias, numa pequena forja, era importado e vinha do Rio de Janeiro, distante dali100 lguas. Entretanto, ele mesmo levantou a possibilidade deste minrio ser produzido na prpriaProvncia de Minas Gerais.

  • Hoje, com o Quadriltero Ferrfero, o Estado um dos grandes produtores mundiais de minrio de ferro.Saint-Hilaire deixou sua tropa nesta fazenda e partiu para encontrar uma grande cachoeira, de que tinhamlhe falado, com o seu auxiliar Joo Mariano. Aps percorrer um caminho muito maior do que o esperado,numa regio quase totalmente desabitada, ele encontrou a casa do lavrador Felisberto, que se prontificou ahosped-lo e gui-lo at Cachoeira da Casca dAnta.

  • ... Embrenhamo-nos na mata e dentro em pouco comeamos a ouvir o barulho da cachoeira. De repente avistei o seucomeo e logo em seguida pude v-la em toda a sua extenso ... O espetculo arrancou de Jos Mariano e de mim umgrito de admirao ... essa a nascente do So Francisco.

  • A casa de Felisberto, provavelmente, a de Dona Vicentina de Almeida. Aos 60 anos, ela afirma que acasa que foi desmanchada era de sua av, que nasceu em 1870 e da janela de sua sala, descortina-se aexata descrio feita por Saint-Hilaire. Felisberto recebeu maravilhosamente o viajante, servindo-lhe o quetinha em casa, feijo e leite e um colcho de palha sem lenol. Foi oferecido de bom corao, comentouo naturalista:

  • ... noite, na casa de Felisberto, a luz de um luar soberbo me permitiu distinguir todas as coisas, com a cachoeira refletindo o claro do fogo que devorava um pasto vizinho.

    O costume de queimadas na regio permanece at os dias atuais. As gramneas das reas altas somente servem como alimentao para o gado durante a poca das chuvas, aps ser queimada e no incio da sua brotao. Segundo os fazendeiros, queimam-se os pastos entre os meses de abril a agosto, tornando possvel a alimentao do gado entre setembro e janeiro. Saint-Hilaire desviou-se de seu roteiro em direo a Gois, apenas para conhecer esta queda dgua, de 203 metros. Ao vislumbrar a Cachoeira da Casca dAnta possvel sentir o impacto causado ao explorador:

  • ... Para ter uma idia de como fascinante apaisagem ali, o leitor deve imaginar estarvendo em conjunto tudo o que a Naturezatem de mais encantador: um cu de um azulpurssimo, montanhas coroadas de rochas,uma cachoeira majestosa, guas de umalimpidez sem par, o verde cintilante dasfolhagens e, finalmente, as matas virgens, queexibem todos os tipos de vegetao tropical.

    De volta Fazenda Joo Dias, Saint-Hilaire partiu com sua tropa rumo aoalto da Serra da Canastra. Este trajeto,entre a cachoeira e a fazenda, que tanto oimpressionou pela limpidez das guas,recentemente, na dcada de 80, foi palcode uma das maiores exploraesdesordenadas de diamante que se temnotcia no Brasil. Garimpeirosdescobriram a gema nas margens do RioSo Francisco e reviraram milhares demetros cbicos de material. A cidade deVargem Bonita, fundada por volta de1935, teve o seu apogeu econmico nesseperodo e hoje montanhas de cascalhosrevolvidos ainda causam um grandeimpacto visual. Antes de se iniciar a subi-

    da da serra, a tropa passou pela, Capela de So Roque isolada no alto de um outeiro e que, posteriormente, deu origem cidade de So Roque de Minas, o mais importante portal do Parque Nacional da Serra da Canastra. A caracterstica mais marcante da Serra da Canastra, aps a sua subida, o enorme chapado,

  • onde o naturalista encontrou, exceo da Serra Negra, a maior variedade de espcimes vegetais de todasas suas andanas pelo Brasil. A riqueza de fauna e flora, associada quantidade de nascentes, determinou acriao, em 1972, do Parque Nacional da Serra da Canastra, com mais de 70.000 hectares e abrangendo osMunicpios de So Roque de Minas, Sacramento e Delfinpolis. Para Saint-Hilaire

    ... O Chapado totalmente despovoado e sem cultivo. Suas terras nem mesmo tm dono (1819), mas os proprietriosdas fazendas localizadas na base da montanha levam seus animais para pastarem ali. Geralmente cai geada no cume daserra, nos meses de junho e julho.

    Em meio a essa amplido da paisagem, nasce solitrio um filete de gua que d origem ao rio da integraonacional, que vai atravessar as mais diversas paisagens, irrigando cerrados, caatingas e matas tropicais e,tambm, gerando energia eltrica para grande parte do Brasil.

  • Nascente do Rio So Francisco, no alto da Serra da Canastra

  • PERSONAGENS

    semelhana da viagem de Saint-Hilaire, durante este percurso surgiram muitas pessoas que poderiam ser personagens de livro, por serem representativas e evocarem uma poca. A expresso das pessoas reflete o ambiente em que vivem e suas histrias so elos de ligao entre o passado e o presente.

    O meio ambiente e o ser humano no podem ser tratados separadamente. Os relatos dos viajantes do sculo XIX, por mais precisos, detalhados e ricos que fossem, no teriam sentido sem a presena do homem. O que seria destes relatos sem os Felisbertos, os Marianos, as Tomzias e todos os personagens citados, que Saint-Hilaire encontrou? O naturalista pareceu sentir falta de mais personagens para enriquecer seu relato. A ele atribuda a frase:

    ... Havia um pas chamado Brasil, mas absolutamente no havia brasileiros.

    Nas palavras do melanclico e saudosista Saint Hilaire, quando escrevia seus relatos em Paris, percebe-se a marca que as relaes humanas deixaram:

    ... Felisberto, se ainda est vivo, no deve mais se lembrar do estrangeiro que um dia lhe foi pedir abrigo. Quanto a mim, ainda me parece ouvi-lo contar com calma as afrontas e vexames de que tinha sido vtima. Os exemplos de honestidade e de virtude no so to comuns para que possamos esquec-los facilmente.

    Neste ponto, ambas as viagens, a do sculo XIX e a do XXI, mostram um denominador comum. Os personagens do sculo XXI, o Jaime, o Brs, o Ulisses, o Chiquinho e a Terezinha, com todas as interferncias do homem no meio ambiente, ainda constituem a grande riqueza dos lugares: so os personagens, pois afinal, como bem o disse Auguste Saint-Hilaire, no se podem esquecer exemplos de honestidade e virtude to facilmente...at hoje.

  • Marcos Miranda

  • Seu Brs

  • Seu Chiquinho e Dona TerezinhaSeu Jaime e Dona Maria

  • Juquinha Ulisses

  • Paulo Nunes e seu antepassado

  • Dona Vicentina

  • Jlio Csar Mendes nasceu em 1952na cidade de Matip, em MinasGerais. Pesquisador em geologia eprofessor pela Escola de Minas(EM) da Universidade Federal deOuro Preto (UFOP) apreciadordas obras dos viajantes e tem maisde duas dcadas de experincia emtrabalhos de campo.

    Antonio Liccardo nasceu em 1965em Curitiba - Paran. Tambmpesquisador em geologia pelaUFOP, fotgrafo profissional e jpublicou trs livros com imagens,incluindo Nas Trilhas de Saint-Hilaire, refazendo o trajeto doexplorador de So Paulo ao Paran,com o jornalista Marcelo Lima.

    OS AUTORES

  • SAINT-HILAIRE

    Auguste Saint-Hilaire nasceu em 04 de outubro de 1779 (Orleans - Frana) e morreu em 30 desetembro de 1853 (Turpinire - Frana). Aos 37 anos de idade chegou ao Brasil (1816), permanecendoat 1822. Neste perodo viajou cerca de 12.000 km pelo interior do Imprio, coletou mais de 30.000exemplares de plantas, abrangendo mais de 7.000 espcies, das quais 4.500 at ento eramdesconhecidas. Redigiu vrios relatrios de suas viagens, entre eles a Flora Brasiliae Meridionalis,publicado em Paris, aps a sua volta Frana e considerada uma das referncias em botnica at osdias atuais. Em sua obra completa, Voyages dans lIntreiur du Brsil, descreve a fauna, flora,geomorfologia e aspectos humanos do pas. A terceira parte, Voyage aux Sources du Rio SoFrancisco, refere-se ao trajeto realizado em 1819, passando pelas nascentes do Rio So Francisco. Nadcada de 70, a Editora Itatiaia reeditou uma traduo de Regina Regis Junqueira, em sua coleoReconquista do Brasil, que serviu de roteiro para essa "revisita".