Sambaquis e edifícios coloniais: uma proposta de ......coloniais, que ostentam em sua arquitetura a...

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1 Sambaquis e edifícios coloniais: uma proposta de musealização integrada Marília Oliveira Calazans 1 Sítios arqueológicos e jazidas minerais. Até que arqueologia blindasse os sambaquis, revestindo-os de cientificidade, estes sítios figuraram na paisagem do Brasil colonial e imperial como meros vestígios da barbárie indígena e fonte de lucro na obtenção da matéria prima para o fabrico de cal. Se a própria imagem de um sambaqui pode ser estranha a muitos, o destino de uma infinidade de sítios arrasados pela indústria caieira são patrimônios conhecidos: os prédios coloniais, que ostentam em sua arquitetura a eficiente mistura de concha triturada, areia e óleo de baleia. Em outras palavras, edifícios construídos com sambaquis. O objetivo deste trabalho é propor uma visão museológica que integre sambaquis e as edificações construídas de seus subprodutos. Ensaiamos essa integração pela perspectiva da argumentação histórica e arqueológica. A palavra sambaqui, admitida como uma corruptela da expressão em Tupi “Taba Ki”, pode ser traduzida por monte de conchas. Apesar da origem do termo, ele foi deliberadamente escolhido no último quartel do século XIX pelos homens de ciência envolvidos em investigações arqueológicas naquele período. Um nome Tupi, evocando um tom nativista para o que pretendia ser a ciência nacional. A partir de então, sambaqui designaria o fenômeno arqueológico da costa brasileira que intrigou estudiosos e encorajou investigadores brasileiros e estrangeiros a conduzirem suas pesquisas no Brasil. Trata-se de uma dupla gênese, portanto: da arqueologia como ciência, e do sambaqui como fato científico. 2 Chamamos de sambaquis as acumulações de conchas entre outros materiais orgânicos, como terra, areia e ossos feitas por mãos humanas ao longo de gerações sucessivas, com formas e funções variadas, entre elas marcos paisagísticos, plataformas e cemitérios. Estes sítios datam de aproximadamente 1000 anos AP (antes do presente) em suas porções mais recentes e algumas estimativas datam os mais antigos em até 8000 AP. 3 Os sambaquis reminiscentes, 1 FFLCH-USP. Email: [email protected]; <http://www.sambaqui.org>. 2 Usamos o termo gênese no sentido de FLECK, Ludwik. Gênese e desenvolvimento de um fato científico. 1.ed. Trad. Georg Otte, Mariana Camilo de Oliveira. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010. 3 Estas idades foram obtidas por meio de datações com análise de Carbono 14, nos diversos trabalhos que consultamos. No século XIX, período cujos documentos são centrais nesta pesquisa, a projeção das idades

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1

Sambaquis e edifícios coloniais: uma proposta de musealização integrada

Marília Oliveira Calazans1

Sítios arqueológicos e jazidas minerais. Até que arqueologia blindasse os sambaquis,

revestindo-os de cientificidade, estes sítios figuraram na paisagem do Brasil colonial e imperial

como meros vestígios da barbárie indígena e fonte de lucro na obtenção da matéria prima para

o fabrico de cal. Se a própria imagem de um sambaqui pode ser estranha a muitos, o destino de

uma infinidade de sítios arrasados pela indústria caieira são patrimônios conhecidos: os prédios

coloniais, que ostentam em sua arquitetura a eficiente mistura de concha triturada, areia e óleo

de baleia. Em outras palavras, edifícios construídos com sambaquis. O objetivo deste trabalho

é propor uma visão museológica que integre sambaquis e as edificações construídas de seus

subprodutos. Ensaiamos essa integração pela perspectiva da argumentação histórica e

arqueológica.

A palavra sambaqui, admitida como uma corruptela da expressão em Tupi “Taba Ki”,

pode ser traduzida por monte de conchas. Apesar da origem do termo, ele foi deliberadamente

escolhido no último quartel do século XIX pelos homens de ciência envolvidos em

investigações arqueológicas naquele período. Um nome Tupi, evocando um tom nativista para

o que pretendia ser a ciência nacional. A partir de então, sambaqui designaria o fenômeno

arqueológico da costa brasileira que intrigou estudiosos e encorajou investigadores brasileiros

e estrangeiros a conduzirem suas pesquisas no Brasil. Trata-se de uma dupla gênese, portanto:

da arqueologia como ciência, e do sambaqui como fato científico.2

Chamamos de sambaquis as acumulações de conchas – entre outros materiais orgânicos,

como terra, areia e ossos – feitas por mãos humanas ao longo de gerações sucessivas, com

formas e funções variadas, entre elas marcos paisagísticos, plataformas e cemitérios. Estes sítios

datam de aproximadamente 1000 anos AP (antes do presente) em suas porções mais recentes e

algumas estimativas datam os mais antigos em até 8000 AP.3 Os sambaquis reminiscentes,

1 FFLCH-USP. Email: [email protected]; <http://www.sambaqui.org>. 2 Usamos o termo gênese no sentido de FLECK, Ludwik. Gênese e desenvolvimento de um fato científico. 1.ed.

Trad. Georg Otte, Mariana Camilo de Oliveira. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010. 3 Estas idades foram obtidas por meio de datações com análise de Carbono 14, nos diversos trabalhos que

consultamos. No século XIX, período cujos documentos são centrais nesta pesquisa, a projeção das idades

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sobreviveram a erosão, câmbios climáticos, variações oceânicas e principalmente à exploração

caieira que consumiu um sem-número de sítios ao longo da costa brasileira e, em alguns casos,

regiões fluviais.

Ainda que com alguma resistência, nos anos de 1880, a palavra sambaqui já aparecia

consolidada como conceito, ao menos no âmbito científico. Nos trechos destacados, ela é

avalizada por Von Kozeritz e Hartt, respectivamente, investigadores dos sambaquis do Sul do

Brasil.

Trata-se no caso de uma série de ostreiras, que hesito em denominar sambaquis,

porque são pequenos, tendo pouco altura e cobrindo área de 5 a 10 metros em

quadro, ao passo que aquillo que vulgarmente denominamos sambaquis são

altas collinas.

Em compensação parecem-se as ostreiras da Conceição extraordinariamente

com os Kjokkjemoddings da Dinamarca.4

[kitchen midden]Palavra ingleza, significando uma accumulação de refugo de

cosinha. Si esta palavra não fosse de tão difficil assimilação seria conveniente

adoptal-a na lingua portugueza que não tem equivalente exacto. A palavra

Sambaqui, empregada no titulo deste capitulo, é defeituosa, porque não envolve

necessariamente a idéa da acção humana, sendo applicada a qualquer

accumulação de conchas, quer formada natural, quer artificialmente.5

Outros nomes para sítios semelhantes têm em comum serem bastante descritivos do

aspecto externo deste tipo de sítio arqueológico que ocorre no litoral de diversas regiões do

mundo. Kjoekkenmoedding em dinamarquês, amas de coquilles em francês, Kayzuka em

japonês, shell mounds em inglês. Todos estes nomes podem ser traduzidos para “monte de

conchas”. No Brasil, durante o período colonial, a série documental que analisamos revela

dependia de estimativas baseadas em dados arqueológicos como a sofisticação dos artefatos (em ordem

crescente: lascamento, polimento, cerâmica, metal), na análise de camadas estratigráficas e nas teorias de

povoamento da América, entrecruzadas com outros dados. A craniometria e a análise do estado de decomposição

das conchas também foram recursos utilizados para estimar a idade dos sambaquis. Sobre o assunto, não houve

qualquer consenso, todavia. Estudiosos arriscaram idades que variaram entre trezentos anos e “pré-diluvianos”.

CALAZANS, Marília O. Os sambaquis e a arqueologia no Brasil do século XIX. Dissertação (Mestrado em

História Social) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016.

4 VON KOSERITZ, Karl. Sambaquis da Conceição do Arroio. Revista do Instituto Histórico e Geográfico

Brasileiro. Rio de Janeiro, vol. XLVII, parte I, pp. 179-182, 1884, pp. 179-80.

5 HARTT, Carlos. Contribuições para a ethnologia do valle do Amazonas. Archivos do Museu Nacional, Rio de

Janeiro, vol. 6, pp. 1- 174, 1885, p.2.

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outras denominações para o fenômeno: ostreiras, berbigueiros (devido ao tipo de concha

predominante), casqueiros, concheiros (mais genéricos) e minas de sernamby.

Nenhuma destas designações sintetiza a veia arqueológica dos sambaquis. De todos

estes termos apresentados, o último, mina, é o único que pode conter algum significado para

além do descritivismo. Apesar de não caracterizar nenhum valor (pré-)histórico, a palavra mina

denota um lugar social do sambaqui: o de jazigo, fonte de conchas a partir da queima das quais

se obteria cal para construção de edifícios coloniais, para pavimentação de rodovias, entre

outros. Foi na província paraense onde se registrou estes nomes (Mina de Apicuns, Mina do

Capitão Clarindo, etc.), mas a exploração dos sambaquis para fins de mineração foi apontada

por diversos documentos do século XIX, objetos de nossa pesquisa.

Ferreira Penna, fundador do Museu Paraense, foi o autor da primeira notícia científica

sobre os sambaquis do Pará ao Museu Nacional. Seguindo informações orais de moradores da

região, percorreu o rio Pirabas em busca de sambaquis e encontrou diversos sítios extintos ou

em extinção devido ao trabalho de “carregadores de sernambys”. Ao que parece, ossos humanos

eram triturados junto às conchas para a obtenção da cal. Mas nem sempre, como relatou o

próprio Ferreira Penna:

Em 1875 os trabalhadores do Sambaqui acharam um esqueleto humano dentro

d’um grosseiro vaso de barro que estava soterrado no meio das conchas. O

Capitão Clarindo mandou guardal-o; passado muitos dias o Vigario de

Bragança tendo conhecimento do facto, foi ao lugar, arrecadou os ossos e

regressando, mandou enterral-os no cemiterio publico.6

No litoral de São Paulo, o naturalista sueco Albert Loefgren também testemunhou a

exploração caieira dos sambaquis:

Quando pela primeira vez atravessámos o braço de mar que separa a ilha de S.

Vicente da terra firme, no mez de Maio de 1875, passámos perto da ilha do

“Casqueiro”. N’essa época havia alli muita vida. Um numeroso grupo de

trabalhadores lá se movia em plena atividade, revolvendo a superfície e

enchendo carrocinhas que desciam até beira-mar, ao pé de uns fornos que

deitavam espessas nuvens de fumaça e onde umas lanchas chatas recebiam

carregamento de sacos cheios.

6 PENNA, Domingos S. Ferreira. Breve notícia sobre os sambaquis do Pará. Archivos do Museu Nacional, vol.

1, 1876, p. 90.

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Admirados deste movimento industrial numa ilha pequena, perguntámos ao

nosso companheiro: “que estabelecimento é aquelle”?

É uma fabrica de cal”, esclareceu-nos ele.

“De cal”? replicámos, “esta ilha é então formada de uma rocha calcarea”?

“Não”, respondeu, “extraem a cal das cascas de ostras de um grande sambaqui

que cobre quase toda a ilha”.7

Os testemunhos são diversos. Abundam os registros deste período que vinculam os

sambaquis à produção de cal. Isto significa que antes da acepção histórica e arqueológica, os

sambaquis eram concebidos como fonte de riqueza mineral de seus proprietários, a partir dos

quais tantas vezes eram batizados. A atividade industrial, ao mesmo tempo que minava os

vestígios arqueológicos, colaborava com as investigações científicas. Estas atividades não eram

excludentes, ao contrário, coexistiam.

Os investigadores pioneiros seguiam, no século XIX, os traços da atividade caieira para

encontrar os sambaquis. Obtinham informações, artefatos e materiais de pesquisa, quando estes

já não estavam completamente exauridos, é claro. Conde de La Hure expressou claramente esta

relação quando escreveu “ [...] M. Francisco de Souza, l’obligeant propriétaire de ce

conchyliosite est disposé à y laisser faire toutes les recherches qu’on jugera utiles.8 Ferreira

Penna também destacou que

[...] O tentente Mattos Muniz, principal morador de S. João, e homem muito

honesto, disse-me perante diversas testemunhas que, n’uma restinga, perto da

povoação, achára, há mais de um anno, alguns ossos, inclusive um craneo ainda

com cabelos que ao pegar no craneo este se desfez quase em pó.9

Apesar da idiossincrática associação entre a exploração caieira e as expedições

arqueológicas, é evidente que os investigadores manifestavam preocupação. A extinção de um

sambaqui implicaria na perda irreparável de informações sobre a “pré-história” do território

brasileiro. O trabalho de Albert Loefgren é, conforme anunciou o autor, antes de tudo, uma

tentativa de registrar o que havia sobrado daqueles sítios no litoral paulista, dado o risco de

7 LOEFGREN, Albert. Os Sambaquis de São Paulo. Boletim da Comissão Geográfica e Geológica do Estado de

São Paulo, n. 9, p. 1-54, 1893, p. 13. 8 “M. Francisco de Souza, o prestativo proprietário deste concheiro está disposto a permitir todas as pesquisas

que julgar úteis”. Tradução livre. DE LA HURE, Conde. Considérations sommaires sua l'origine des amas de

coquillages de la côte du Brésil. Dona Francisca. 10 mar 1865. IHGB, Lata 15, doc. 9, p. 23. 9 PENNA, 1876, p. 88.

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extinção ainda iminente. Benedicto Calixto, mesmo que não fosse convicto da natureza

antrópica dos concheiros, foi outro ardoroso defensor de sua preservação.10 Vale destacar o

trabalho cartográfico de ambos, publicados em revistas paulistas, que consistem em valiosas

contribuições para a arqueologia, geografia e história da ciência.

Zoólogo alemão e diretor do Museu Paulista, Herman Von Ihering reivindicou sua

autoridade para contestar os estudos que ocorreram nas décadas anteriores. Em 1903, publicou

nas páginas da Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo um artigo em que

afirmava que os sambaquis tinham sido formados sob a água ou por outras vias naturais. Seu

argumento estava centrado especialmente na característica das conchas e na forma de sua

aglomeração. Não foi capaz de elaborar explicação igualmente robusta para o fato de que já

artefatos e ossadas humanas dentro do sambaqui, ainda que tenha ensaiado algumas hipóteses.

As pedras lascadas naturalmente teriam sido arrastadas por correntezas, os esqueletos humanos,

resultantes de afogamento.

Von Ihering, definitivamente, foi uma voz solitária ao defender a tese da origem natural

dos sambaquis. Apesar disso, o peso desta publicação reverberou por todas as décadas

posteriores, quando tantos textos de arqueologia afirmaram equivocadamente que a grande

questão do século XIX girava em torno da origem artificial ou natural dos sambaquis.11

Em todo caso, importa para nossa argumentação que, ainda que houvesse discordâncias

a respeito da natureza arqueológica dos sambaquis, estes autores eram categóricos ao defender

o resguardo destes sítios. Foi desta forma que Von Ihering encerrou seu texto:

[...] entendo que os sambaquis, ao em vez de perder quanto ao interesse, pelo

contrario, nelle enaltecem, desde que não têm só uma importância archeologica

mas também geológica. Representam neste sentido documentos de alto valor,

cuja destruição systematica constitue um acto de vandalismo, contra o qual é

tempo de protestar energicamente. Reclamo nesse sentido o apoio do Instituto

afim de que proponha o patriótico governo do Estado as medidas necessárias

para sua conservação.12

10 CALIXTO, Benedito. Algumas notas e informações sobre a situação dos sambaquis de Itanhaen e de Santos.

Revista do Museu Paulista. São Paulo, vol. VI, pp. 490-518, 1904. 11 Essa ideia reverberou a partir da publicação seminal de Angyone Costa. COSTA, Angyone. Introdução à

Arqueologia brasileira (etnografia e história). 4ª edição, ilustrada. São Paulo: Companhia Editora Nacional,

1980.

12 VON IHERING, Herman. A origem dos sambaquis. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São

Paulo, São Paulo, vol. VIII, pp. 446-457, 1903, p. 457.

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Décadas depois da polêmica, ainda era possível que se vislumbrasse alguma visão

conciliatória para o conflito arqueologia vs. indústria que se formou em torno dos sambaquis.

Já nos anos de 1960, ela partiu daquele que pode ter sido o maior defensor destes sítios, Paulo

Duarte, que balizou:

[...] Não é preciso dizer quanto esse progresso tem sido prejudicial à civilização

ou, melhor, à cultura, ao patrimônio científico do Brasil, às suas reservas

culturais e até ai seu renome internacional. Porquanto, mercê dêsse interêsse

comercial e industrial crescente, a destruição intensiva dos sambaquis, com

escavadeiras mecânicas, num vergonhoso desprezo pelo seu aproveitamento

científico, assumiu nos últimos tempos proporções não só assustadoras, mas

também deprimentes, humilhantes e sacrílegas.

[...]

O aspecto mais lastimável do arrazamento dos nossos casqueiros está no fato

do seu aproveitamento científico poder ser feito sem nenhum prejuízo do

interesse industrial. Isso não foi ainda compreendido, inconsciente ou

propositalmente, nem pelos que os exploram nem pelos podêres públicos que

jamais os vigilaram. A pesquisa científica é lenta, não há dúvida, mas o que esta

retira do sambaqui não representa nem 3% do seu conteúdo, cujo material

calcário pode ser integralmente aproveitado para a indústria ou para o

comércio.13

Numa perspectiva hodierna, esta conciliação seria impraticável. Quando Paulo Duarte

a ponderou, considerava-se que apenas os vestígios artefatuais e ossadas serviriam para

pesquisa. A partir deles, obter-se-ia uma série de informações, como datações, tecnologias

líticas, alimentação, ferramentas, por exemplo. O conteúdo essencial do sambaqui, as conchas

(que comporiam 97% da matéria de um sambaqui, de acordo com Duarte), poderia ser

descartado ou destinado à produção de cal, adubo, ração, entre outros fins.

Para endossar este raciocínio é necessário admitir que as conchas dos moluscos que

compõem os sambaquis não fornecem nenhuma informação. Pesquisas recentes desmontam a

proposição conciliatória em diversos aspectos e por meio de abordagens diversas. Apenas para

citar alguns exemplos, a porção faunística do sambaqui foi analisada em teses sobre alimentação

e uso simbólico/ artefatual destes vestígios.14 A partir das conchas, pode-se também quais

13 DUARTE, Paulo. O sambaqui: visto através de alguns sambaquis. São Paulo: IPH-USP, 1968, pp. 20-1.

14 Respectivamente, FIGUTI, Levy. O homem pré-histórico, o molusco e o sambaqui: considerações sobre a

subsistência dos povos sambaquieiros. Rev. Do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 3, pp. 67-80,

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espécies de moluscos migraram junto aos navios europeus para a costa brasileira, uma vez que

a construção dos sambaquis foi uma atividade de alguma forma abandonada séculos antes da

invasão colonial europeia.15

A conservação dos sambaquis também é importante para o estabelecimento de padrões

de assentamento e análises inter-sítios.16 Uma vez que a própria intervenção arqueológica

constitui uma perturbação, há ainda autores que se preocupam em desenvolver métodos menos

invasivos de pesquisa.17

Ainda assim, sob uma perspectiva histórica vinculada a esta série de documentos, pode-

se afirmar que a identidade dos sambaquis permaneceu dividida entre arqueologia e indústria.

Um outro exemplo desse infortúnio, é o Código de Minas que, a partir de 1934, protegeu e

regulamentou a exploração de jazidas minerais. Esta foi a primeira lei em âmbito nacional que

protegeu os sambaquis de ação predatória, ainda que de maneira indireta. Na esfera jurídica, a

monumentalidade dos sambaquis seguiu indiferente até 1961, quando o decreto-lei 3924 dispôs

sobre estes sítios como vestígios da cultura paleoameríndia. Sua exploração para fins

econômicos e industriais estaria condicionada ao aval do SPHAN (Serviço do Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional), instituição inaugurada em 1937.

A empreitada do governo de Getúlio Vargas em colocar a mineração do território

nacional sob domínio da lei teve um efeito colateral certamente imprevisível. Publicado em

1938, expedido pelo Ministério da Agricultura, o trabalho Concheiros naturais e Sambaquis,

do geólogo Othon Henry Leonardos, além de ser ainda hoje um dos trabalhos mais completos

sobre sambaquis no Brasil, é considerado um marco conceitual sobre o tema. A partir da

sugestão de Leonardos, chamar-se-ia “sambaqui” apenas as formações antrópicas de interesse

arqueológico. Para todas as outras aglomerações de conchas, reservou o nome “concheiro

1993. E GONZALEZ, Manoel M. B. Tubarões e raias na pré-história do litoral de São Paulo. Tese (Doutorado

em Arqueologia) – Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. 15 SOUZA, Rosa Cristina Corrêa Luz de; CALAZANS, Sálvio Henrique; SILVA, Edson Pereira. Impacto das

espécies invasoras no ambiente aquático. Ciência e cultura, São Paulo, v. 61, n. 1, 2009. Disponível em:

<http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-

67252009000100014&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 15 Set 2016. 16 GASPAR, MaDu. Sambaqui: arqueologia do litoral brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. 17 ATTORRE, Tiago. Por uma Arqueologia Marginal: As ocupações peri-sambaquieiras no entorno do

sambaqui da Figueirinha II, Jaguaruna-SC, examinadas através do radar de penetração de solo. Dissertação

(Mestrado em Arqueologia) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015.

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natural”.18 Estas variáveis somadas inauguraram uma nova compreensão acerca dos sambaquis.

A questão mineradora ficava no passado a partir de então, e já não era sem tempo.

Para uma história da mineração de sambaquis e da indústria caieira

Os sambaquis acumularam, a partir das relações sociais que os circundaram, a memória

de todas estas temporalidades. Primeiro, monumentos de uma antiga população caiçara,

construídos pela obstinada ação dos mais antigos habitantes deste litoral, durante milênios. Em

uma nova fase, os sambaquis resistiram séculos, compondo a paisagem que fora dominada por

outras populações. Estas, testemunharam a chegada dos portugueses. A partir de então, as

“serras de cascas”, prova da incivilidade e da indolência indígena, tornaram-se minas de onde

se obtinha o produto químico fabricado no Brasil: a cal. O Brasil se torna independente, o

“século da ciência” tem como patrono o imperador. Os sambaquis nascem para a ciência, como

um fenômeno arqueológico.

Esta materialidade é o elemento persistente em toda a narrativa, que flutua por entre os

mais diversos contextos.

Figura 1 Ciclo de vida do sambaqui, a partir da perspectiva arqueológica da "História de vida" do artefato.

18 LEONARDOS, Othon Henry. Concheiros Naturais e Sambaquis. Avulso n. 37. Rio de Janeiro: Ministério da

Agricultura, 1938.

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Considerar que a mineração fez e faz parte da história de vida do sambaqui não significa

relativizar a importância de sua preservação.19 Ao contrário, sua visibilidade dentro da história

da arquitetura e da mineração no Brasil no período colonial pode preencher uma lacuna

importante nas narrativas sobre o sítio. A mineração é por ora o único registro que se tem sobre

os concheiros em que se demonstra sua reinserção na paisagem em seu contexto arqueológico,

isto é, no período de ocupação litorânea por populações pós-sambaquieiras, nomeadamente

indígenas de tradição ceramista e, alguns séculos depois, colonos europeus.

Conforme ensaiou Donald Harvesty em sua reflexão teórica sobre um estudo de caso

em Nevada, Estados Unidos, a arqueologia da mineração explora a estrutura social da

mineração, por meio de vestígios materiais dos sistemas tecnológicos, paisagens e formações

sociais baseadas nestas atividades. Entre os vestígios materiais, estariam construções,

estruturas, ruínas e documentos históricos. Segundo o autor, “a expressão mais impositiva do

passado minerador pode ser a arquitetura”.20 No caso dos sambaquis, há vasta documentação

que expressa a associação entre arquitetura e a mineração destes sítios.

O texto clássico de Fernão Cardim, Tratados da Terra e Gente do Brasil, remonta do

final do século XVI. Nele, o padre historiador comenta sobre a origem da cal que construiu o

Colégio dos Jesuítas de Salvador, entre outros:

Os índios naturaes antigamente vinhão ao mar ás ostras, e tomavam tantas que

deixavão serras de cascas, e os miolos levavão de moquém para comerem entre

anno, sobre estas serras pelo decurso do tempo se fizerão grandes arvoredos

muito espessos, e altos, e os portuguezes descobrirão algumas, e cada dia se vão

achando outras de novo e destas cascas fazem cal, e de um só monte se fez parte

do Collegio da Bahia, os paços do Governador, e outros muito edifícios e ainda

não he exgotado.21

Outro padre historiador, Frei Gaspar da Madre de Deus descreveu séculos depois a

exploração de sambaquis na Capitania de São Vicente, sob uma ótica bastante semelhante à de

19 Usamos a conceito “História de vida” a partir das ideias de GOSDEN, Chris; MARCHALL, Yvonne. The

cultural biography of objects. World Archaeology, vol. 31, n. 2, pp. 169-178, oct 1999. Disponível em:

<http://www.jstor.org/stable/125055>. Acesso em: 15 set 2016. 20 HARDESTY, Donald L. Mining Archaeology in the American West: A view from the Silver State. University

of Nebraska Press, Lincoln: 2010, p. 12. Tradução livre.

21 CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil. Rio de Janeiro: Editores J. Leite & Cia., 1925, p. 92.

Grifo nosso.

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Cardim, relacionando-a à construção de prédios na Capitania. Ele escreveu em suas Memórias:

“Destas conchas dos mariscos que comêraõ os Indios, se tem feito toda a cal dos edifícios desta

Capitania desde o tempo da fundação até agora, e tarde se acabaráõ as Ostreiras de Santos, S.

Vicente, Conceiçaõ, Iguape, Cananéa &c”.22 Algumas décadas depois, em 1866, o eminente

naturalista Richard Francis Burton confirmaria seu depoimento em uma publicação na Europa,

apenas adicionando uma dose de otimismo:

Of these kjökken-möddings there are in Santos Bay about twenty, besides many

down the coast at Iguapa, Cauanen, and their maritime hauts southwards. Some

are of great size. On December 3rd, in company with Senor Juan Baptista da

Silva Bueno, and Messrs. Glennie and Miller of this city, I visited a deposit in

the ‘Ilha de Casceiro,’ to the north-west of Santos. It contains three mounds,

one of which is about 200 feet high, and about 2800 feet each way. The oysters

in question form a conglomeration (of which a specimen is forwarded) in blocks

which reach a ton weight. They have supplied the country with lime for the last

three centuries, and will yet last for a long time.

A Fortaleza de Óbidos, no Pará, por sua vez, foi alvo dos registros de Charles Hartt, mas

antes disso, os de Ferreira Penna e do Arcipreste Noronha.

[...] há um grande sambaqui n’uma ilha fronteira àquella cidade, chamada

Itanduya, e que a cal empregada na construção do forte de Óbidos provinha de

um sambaqui situado no logar chamado Mondongo, no lado occidental do rio

Trombetas [...]. Diz Noronha23 “Entre a Villa Viçosa (Cametá) e o canal de

Limoeiro acham-se dilatadas minas de Berbigões e conchas marinhas, ás quaes

se dá o nome de Sernamby, de que se faz consideravel quantidade de cal, que é

outro ramo de commercio dessa villa”.24

Os informantes, dessa forma, depuseram aos investigadores o caminho das conchas de

sambaquis até a argamassa dos edifícios coloniais. Estes registros tampouco devem ser

subestimados na composição da histórica econômica do local. Juntando-os a outros

testemunhos documentais como registros de propriedade e recibos, pode-se lançar luz sobre a

22 MADRE DE DEUS, Gaspar da, Frei. Memórias para a história da Capitania de São Vicente. Lisboa:

Typografia da Academia, 1797, p. 20. 23 Arcypreste Dr Monteiro de NORONHA, autor de Roteiro de Viagem da cidade do Pará aos ultimos dominios

portugueses no Amazonas, citado por Ferreira Penna e Charles Hart em suas publicações na Archivos. 24 HARTT, 1885, p. 6.

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estrutura da indústria que minou um dos mais preciosos vestígios arqueológicos do território

brasileiro.

Trabalho é técnica eram questões reservadas à população escravizada, pois a elite

brasileira desprezava os trabalhos manuais, conforme afirmou Shozo Motoyama.25 Pois bem, o

trabalho escravo provavelmente esteve associado à toda exploração industrial dos sambaquis

no século XIX e nos anteriores, e de certa forma, à arqueologia. O parágrafo de Conde de La

Hure, escrito nos anos de 1860, talvez seja a melhor descrição para a gravura que Jean-Baptiste

Debret produzira décadas antes, ilustrando um forno de cal no Rio de Janeiro.26

Au moment de ma visite, des esclaves travaillaient à l’extraction des coquilles,

leur travail mit à découvert, en ma presence, un squelette humain entier, dans la

position repliée que présentent tous les squelettes provenant de corps inhumés.

[...] Les coquilles extraites du conchyliosite sont portées à la mer, ou elles

subissent un lavage, pendant lequel on extrait et l'on jette à l'eau tous les corps

étrangers qui s'y rencontrent en foule haches, couteaux, débris de potiéres,

ossements, etc. Tempus edax, homo edacior.27

25 MOTOYAMA, Shozo (Org.). Prelúdio para uma história: Ciência e Tecnologia no Brasil. São Paulo: Edusp;

Fapesp, 2004, p. 18. Esta mentalidade, ainda segundo Motoyama, provocou o divórcio entre teoria e prática, par

indispensável à ação científica. (p. 87).

26 Four à chaux, Apud. VITA, Soraya; LUNA, Fernando J.; TEIXEIRA, Simone. Descrições de técnicas da

química na produção de bens de acordo com os relatos dos naturalistas viajantes no Brasil colonial e imperial.

Química Nova, vol. 30, n. 5, São Paulo, pp. 1381-6, set-out 2007, p. 1382. Disponível em:

<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-40422007000500055&lng=en&nrm=iso>.

Acesso em: 14 set 2016. 27 No momento da minha visita, escravos trabalhavam na extração de conchas, seu trabalho começou a

desenterrar, na minha presença, todo um esqueleto humano, na posição dobrada que apresentam todos os

esqueletos provenientes de corpos enterrados. [...] As conchas extraídas do concheiro são trazidas para o mar, ou

Figura 2 Four à chaux, Jean-Baptiste Debret.

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Contemporâneo e conterrâneo de Debret, Auguste de Saint-Hilaire enfatizou a

insalubridade do trabalho de extração de conchas:

Próximo de algumas ilhas vimos negros que, metidos nágua até à cintura,

juntavam conchas de mariscos. Como não há rochas calcáreas nas proximidades

do Rio de Janeiro, substituem-lhes a cal pela obtida das conchas. Para preparar

a cal, elevam-se grandes cones colocando alternativamente, umas sobre as

outras, camadas espessas de conchas e lenha, e põe-se fogo. O trabalho de colher

mariscos na água é dos mais desfavoráveis à saúde dos negros, e freqüentemente

lhes causa perigosas moléstias.28

Na província de São Paulo, em que os sambaquis receberam a ilustre visita do imperador

Dom Pedro II em 1876, o trabalho escravo também foi registrado por Carlos Rath, aqui

comentados por Abílio Marques, em um trabalho específico sobre os sambaquis do litoral

paulista.

Dirigindo-se á casqueira, examinaram [a comissão formada por Carlos Rath e o

imprerador D. Pedro II] “a formatura das camadas de alluviões, verificando

terem 24 palmos de altura acima dos sambaqués. Neste logar, já nãos se trabalha

mais em tirar cascas de ostras; os negros que trabalhavam neste serviço

deixaram um grande torrão, aglomeração de ostras e terras, o qual continha as

ossadas humanas de um individuo com alguns enfeites e armas de pedra”, etc.

“de tal modo englobadas que formavam uma massa única do tamanho de um

metro ou mais”. 29

Esta tecnologia de fabricação caieira também é abraçada pela perspectiva da arqueologia

industrial, um ramo da disciplina que consiste no “estudo das causas, características e

consequências da industrialização, baseado na identificação, registro, preservação e

interpretação dos vestígios da indústria em seu contexto cultural e histórico”.30 A incipiente

são submetidas à lavagem durante a se extrai e se joga à água jogar água todos os corpos estranhos que se ali se

encontram, muitos machados, facas, restos de cerâmica, ossos, etc. Tempus edax, homo edacior [O tempo é

voraz, o homem ainda mais]. DE LA HURE, 1865, pp. 26-7. Tradução livre. 28 SAINT-HILAIRE, Auguste. Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Belo Horizonte:

Itatiaia, 1975, p. 18. 29 MARQUES, Abílio S. As ostreiras de Santos e os kiokken-moddings da Dinamarca. Revista brazileira, vol. 6,

pp. 55-71, 1880, p. 55. Grifos originais. 30 Charles Orser Jr. Apud: FONSECA, Filomena Pugliese. As águas do passado e os reservatórios do Guaraú,

Engordador e Cabuçu: um estudo de arqueologia industrial. 2007. Tese (Doutorado em Arqueologia) - Museu de

Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008, p. 25.

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industrialização no Brasil do período colonial tem, portanto, um importante registro no ramo

da fabricação da cal. Informações sobre história ciência da técnica e do trabalho, que constam

nas camadas mais recentes dos sambaquis, como anteviu Loefgren:

Cobre este sambaqui uma camada de excelente terra vegetal de 38 centimetros

de espessura, termo médio. Nesta camada foram encontrados vários cacos de

telhas e de pratos de louça antiga portuguesa. A presença destes objetos,

relativamente modernos, é sem duvida devida ao estabelecimento de algum

rancho para descanso dos trabalhadores ocupados na extracção das cascas para

a fabrica de cal, da qual ainda existem vestígios a cerca de 200 metros de

distancia, na encosta do morro do lado de Oeste.31

Considerações finais

As sucessivas reapropriações do passado representado/ contido em um sítio tipo

sambaqui atestam que os concheiros são monumentos arqueológicos que testemunham muito

mais do que um passado “pré-histórico”. Diante de certa perspectiva, a biografia dos sambaquis

atravessa diferentes períodos da história, amalgamando evidências das populações que os

construíram e/ou deles fizeram uso.

A “destruição criadora” – termo cunhado pelo economista austríaco Joseph Schumpeter

que a arqueologia industrial veio recuperar – 32 dos sambaquis pode ser compreendida para

além do vandalismo tal qual acusaram Von Ihering e Paulo Duarte, que mencionamos antes.

São também os vestígios das técnicas de construção e recursos materiais, uma vez que as

conchas eram alternativas à ausência de pedras calcárias em áreas litorâneas. Testemunhas da

expansão do capitalismo, do adensamento populacional e da crescente intervenção da

metrópole no território brasileiro, do trabalho escravo, da presença jesuíta e as consequentes e

irreversíveis mudanças sociais.

O interesse pelo patrimônio arqueológico e arqueológico industrial brasileiro,

sintetizado pelo binômio preservação/destruição dos sambaquis pode ainda – e esta é uma

31 LOEFGREN, 1893, p. 26. 32 Apud: FONSECA, 2008, p. 20.

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questão que interessa a todos – incitar uma reflexão sobre os limites do desenvolvimento, da

intervenção, da exploração de recursos e sobre nossa relação com estes patrimônios ancestrais.

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