SAMIRA E NETE - Teatro NU · SAMIRA - Desculpe a curiosidade, mas é a senhora que limpa o banheiro...

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1 AMARESCENTE Luciana Comin (2008)

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AMARESCENTE Luciana Comin

(2008)

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Amarescente

Adjetivo (m+f) Amargo, amargoso

Que amarga ou produz amargura

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PERSONAGENS: Sônia Nora Carmem Samira Tia Nena Meire Nete Lurdes Ema CENA 1 É de manhã, bem cedo. Nete acabou de abrir o bar/boteco e está arrumando as mesas. Samira sai do banheiro. SAMIRA – Obrigada. Aqui a chave. Um pouquinho sujo o seu banheiro, não? NETE – A senhora chegou cedo, Dona. Eu tava abrindo. Não deu tempo de limpar. Ta sujo do dia todo de ontem. SAMIRA – Só de ontem? NETE – Muita gente usando, né? Eu já falei pra Seu Gervásio, o dono, que muita gente pede pra usar esse banheiro. Aí fica assim, né? SAMIRA – É. Tem café? NETE – Tá saindo. SAMIRA - Desculpe a curiosidade, mas é a senhora que limpa o banheiro desse estabelecimento? NETE – (Desconfiada) Sou. Por quê? A senhora é fiscal de alguma coisa? SAMIRA – Não. É que, desculpe, mas esse banheiro está com cara de que não vê uma faxina há um tempinho. A parede está encardida e o vaso está meio nojento. NETE – Então, né? Muita gente usando. Já falei pra Seu Gervásio. Vai querer com leite?

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SAMIRA – Um pouquinho de leite. E adoçante. NETE – Daqui a pouco chega pão fresco. O queijo quente com suco é R$ 1,50. O pão é bom. SAMIRA – Desculpe, mas você poderia dar uma lavadinha no copo antes de colocar o café? NETE – Já ta lavado, Dona. SAMIRA – Não, eu sei. Mas é que se você não se incomoda, eu queria que ele fosse lavado novamente. Nete pega o copo, contrariada. SAMIRA – Eu mesma posso lavar. NETE – A senhora não pode entrar no balcão, Dona. Está do seu gosto agora? SAMIRA – Obrigada. Está limpo sim, obrigada. NETE – Mais leite ou mais café? SAMIRA – Mais café, por favor. (Depois de um tempo) Você reparou no chão bege do banheiro? NETE – Hum. SAMIRA – É que eu acho que a cor original...é branca, não? Ou eu estou enganada... NETE – Eu vou falar com Seu Gervásio. Seu Gervásio é o dono. Vamos ver o que ele faz. Porque eu, Dona, sinceramente. Eu não posso resolver esse problema do chão bege. Porque eu sou só uma só, Dona. E o movimento é grande. A senhora que madrugou, mas daqui a pouco isso enche de gente que vai trabalhar, estudar e passa aqui pra tomar café. É muita coisa pra pouco salário, viu? Só sou eu só, praticamente, porque a outra que trabalha aqui mais falta do que vem. Esse problema aí do chão, não dá pra mim, não. SAMIRA – Eu sei, eu sei...entendo. Desculpe, eu não quero ser implicante, mas se você passar o pano assim desse jeito na mesa, você não limpa. Você só leva a bactéria pra passear. De uma mesa pra outra, entende? NETE – A senhora vai querer mais alguma coisa?

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SAMIRA – Uma informação, por favor. Eu estou procurando essa rua. É perto de uma loja de 1,99. NETE – Está vendo aquela escolinha? A senhora vira essa rua. Vai reto, reto. Na primeira quebrada, a senhora vira. Chegando lá, a senhora pergunta. SAMIRA – Obrigada. (Paga o café). NETE – Não tenho troco, Dona. A senhora é a primeira cliente. Vou ter que sair pra destrocar. SAMIRA – Deixa, pode ficar com o troco. Estou com um pouquinho de pressa, combinei de chegar lá antes dela acordar. (Vai saindo) Bem, fale com o dono pra providenciar a faxina. E fala pra ele que é bom pra o estabelecimento ter papel no banheiro. Bom dia pra você. NETE – Bom dia. (Depois que ela sai) Eu mereço! Ta ótimo pra começar o dia! Bem feito, Nete! É isso que acontece com quem é bonzinho demais, otária. A outra só aparece quando quer e sempre sobra pra mim, limpar a melança dos outros. Vou te contar. Já faço é muito aqui, viu? Já faço é muito. CENA 2 Centro da cidade. Dona Carmem conversa com Lurdes, que está usando o banheiro químico. LURDES – (De dentro do banheiro) Mas não foi por falta de aviso, viu? Eu disse à ela que esse negócio de chegar cedinho não adianta. CARMEM – Coitada de Dona Zita, viu? Daqui que ela consiga marcar essa consulta, o negócio ( que eu não quero falar o nome) já piorou de vez. Periga até de não adiantar mais tratar, Deus o livre. LURDES – Deus a livre e guarde Dona Carmem. Mas eu disse. Tem que chegar um dia antes. Leva o banquinho, uma revista, merenda pra distrair D. Zita! Eu disse pra ela. No meu caso mesmo, levo a Bíblia e Deus ajuda a passar o tempo. CARMEM – É. Antigamente ainda dava pra chegar assim, umas cinco da manhã. Piorou foi muito. LURDES – Hum hum. CARMEM – Olha, Lurdes. Até que essa consulta consegui marcar pra mais perto, viu? Daqui dois meses. Ainda bem, porque já faz um ano que não faço preventivo.

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LURDES – Dois meses tá bom de esperar. Meu ultrassom ficou pra daqui seis meses, se a máquina já estiver consertada. (Sai do banheiro) CARMEM – Paciência, né? (Geme de dor) Vumbora, Lurdinha, que eu tô moída. Qualquer dia desses não levanto mais da cama. E ainda passar a noite nesse banquinho foi pra terminar de me arrasar. LURDES – Daqui já vou pro trabalho. Pra descansar agora só no sábado, depois do culto, com fé em Jesus Cristo. CARMEM – Daqui pra sábado está longe. (Tira merenda da sacola) Está com fome? Não quer fazer uma boquinha antes de seguir? Tem um biscoitinho aqui. LURDES – É bom! Eu também trouxe banana. Elas armam seus banquinhos ali mesmo pra fazer um lanchinho. CARMEM – Marcou pra quando a sua? LURDES – A consulta? Não era pra mim não, Dona Carmem. É pra uma irmã lá da minha igreja. Ela está precisando muito desse médico, mas não pode passar a noite na fila, porque está com bebê muito pequeno. Eu vim pra marcar pra ela. CARMEM – Sabe, Lurdinha, que eu acho bonito essa coisa sua com a igreja. Eu não sou de religião, não. Você sabe. Mas é bonito mesmo de ver. Os irmãos se ajudando. Você vindo pegar fila de senha pra outra. É porreta. LURDES – Ah, Dona Carmem, é bom demais ajudar a irmã que precisa, Glória Deus! E ainda me ajuda com um dinheirinho, né? É pouquinho, porque quando pego senha pra gente da igreja, cobro mais barato. Mas já me ajuda. CARMEM - Lurdinha, desculpa perguntar, mas das senhas todas que você vende lá da fila do SUS, você dá 10% pra sua igreja? LURDES – Dou sem pena, Dona Carmem. O que eu dou pra Deus, recebo em dobro. CARMEM – Então é bom negócio, né? (Pausa. Elas comem) LURDES – Vai direto pro trabalho daqui? CARMEM – Não te falei? Já pedi as contas, já, Lurdinha! Esqueceu que é hoje? O dia! É hoje que eu vou lá na perícia, mulher! Aff, nem acredito, viu? Depois de quatro meses, chegou o dia! LURDES – Mas já pediu as contas sem saber da resposta da perícia?

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CARMEM – Não tem errada, não! A Dra que eu fui não escreveu na receita que eu não tinha mais condição de trabalhar? É! Ela botou lá que encaminhava pra perícia pra eu me encostar. Porque não tenho condição de pegar peso nem arrastar coisa. Por causa da astrite. Fiz tudo direitinho, viu Lurdinha? Me matei de faxinar pra conseguir pagar o meu inss que tava atrasado. Agora eu tô em dias, vou lá hoje, pego a autorização da perícia, e começo a receber todo mês! Como diz você, oh, Glória! Vou dar um jeito na minha vida, Lurdinha. Você vai ver. Quando eu boto uma coisa na cabeça, não te quem tire. Hoje eu resolvo essa perícia. Ainda vou resolver também a vida do meu mais velho com aquela mulher vagabunda que ele arranjou, vou mesmo. Vou resolver minha vida todinha,você vai ver. LURDES – Aleluia! Vai gozar a vida, Dona Carmem! CARMEM – Eu posso até fazer uma faxina um dia ou outro, quando eu tiver bem. Porque qualquer dinheiro que entra ajuda. Mas eu prometi, Lurdinha. Prometi mesmo, que eu não trabalho mais sentindo dor. Ah, isso eu não faço não! CENA 3 Banheiro da casa de Sônia. Barulho de descarga. SÔNIA – Merda. (Sonolenta) Bom dia, Sônia. Canta, Sônia. O dia está...(olhando pela janela) lindo. Bela merda. (engole a saliva duas vezes. Passa a mão pela garganta. Algo a incomoda) Merda. Vamos, Sônia, acorda. Hora de tirar o cheiro ruim da manhã. Essas glândulas sudoríparas. (Olha pela janela). Olha só mulher de coque, Sônia! Executiva, fina...Boca grande e bem desenhada. Batom vinho. Chique. Mau hálito. Problema estomacal, todo executivo tem problema estomacal. Fala tampando boca com a mão. Mas não adianta. Quem está perto sempre sente o cheirinho que vem da sua boca desenhada de batom vinho. (Tosse, engole a saliva) Que porra é essa? (Tenta ver pelo espelho se há algo na sua garganta. Engole saliva, pra tentar se livrar do que a incomoda) Coragem, Sônia. Aproveita e gargareja, pra fingir que a sua boca é limpa. Passa um gel e arruma esse cabelo, pra ficar com cara de que está lavado...há quanto tempo eu não lavo? (Tosse, engole, engole) Dane-se. (Olhando pela janela) Dane-se se eu não lavo o cabelo, se eu não me depilo ou se eu cheiro mal. Todos vocês fedem também, babacas. Todo mundo tem algo de podre por dentro. E uma hora ou outra, Sônia, todo mundo acaba fedendo. (Tosse). Mas eu não preciso de verniz. Eu sou livre. Eu posso feder em paz. (Tosse. Tenta novamente encontrar algo na garganta) Cacete. Isso não sai...(Olha novamente a garganta) De hoje não passa. Hoje eu resolvo essa merda.

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CENA 4 Casa de Tia Nena. Ela está ajeitando o quarto. Samira chega. TIA – Samira! Que bom! (Se abraçam) SAMIRA – Saudade, minha tia. TIA – Nunca mais veio me ver. Já tem tempo, filha. SAMIRA – Ando sempre corrida, tia. Estou com o tempo meio curto, nem posso demorar. Cada dia que passa, ando mais presa e...(Desconversando) E você também se mudou pra mais longe. Foi meio difícil chegar aqui. TIA – Mas você sabe por que. Conhece a história. Agora estou aqui, num bairro distante, numa casa pequena, sem conforto. Foi a paga que tive, filha. É isso que a gente ganha. SAMIRA – Não fala assim, tia. A senhora também/ TIA - É melhor nem começar a falar desse assunto, Samira. Porque além de tudo, tem esse problema aí no meu banheiro. Sei que você não pode sair de casa muito tempo, mas não sabia nem com quem falar. SAMIRA – Quando ela chegou? TIA – De madrugada. Ligou de noite dizendo que estava chegando, pra eu dar o endereço certo. Umas quatro da manhã bateu aqui. SAMIRA – E o que ela disse? TIA – Nada. Me deu um beijo, disse que estava cansada da viagem, pediu para deitar. Dormiu um pouco, levantou, foi tomar banho e está aí no banheiro até agora. SAMIRA – E como é que ela está? Parece bem? TIA – Achei abatida, mas não sei se foi só da viagem. Tentei perguntar, com jeitinho, mas ela desconversou. Também não quero que fique parecendo que eu estou me metendo. Nem quero dar motivo pra acharem que não recebi bem/ SAMIRA – A senhora já ligou pro interior? Avisou que ela está aqui? TIA – Nem morta! Você sabe que não falo com ninguém de lá.

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SAMIRA – Mas, tia. Tem que avisar. E se a tia estiver preocupada/ TIA – Não falo e pronto. Pra mim, morreram. Mas quem sabe com você ela fala. SAMIRA – Faz tempo que ela está aí no banheiro? TIA – Faz. Bastante tempo. Esquisito. Oh, Samira. Pena a gente só se ver nessa confusão. Como é que andam as coisas? SAMIRA – Na mesma. Nada muda. Nem melhora nem piora. TIA – Bem sei o que é isso. Foi minha vida inteira passando por isso. Só espero, minha filha que reconheçam o que você está fazendo com sua vida. Eu só recebi ingratidão. SAMIRA – Não se pode esperar gratidão, tia . Eu só faço o que é meu dever. Não tenho escolha. TIA – Você é que pensa. SAMIRA – Eu não posso demorar. E ela está muito tempo aí. É melhor a gente bater. (Bate na porta do banheiro) Ema? Ema, sou eu, prima! Samira! Está tudo bem aí? (Bate de novo) Sai daí pra eu te dar um abraço! CENA 5 Em uma praia, perto de um banheiro químico. De manhã bem cedo. NORA – Sono da porra, viu, Meire? Cacete. Não tem uma alma viva nessa praia, piranha. MEIRE – Que porra você queria, Nora? Eu tinha que sair pianinho, pra o rebanho lá de casa não desconfiar. É a hora que eu saio pra trabalhar. Quando eu vou. NORA - Emprego miserável. Veja se isso é hora de alguém que se respeite trabalhar. Não mesmo. Eu me respeito. MEIRE – Deixe de reclamar, piranha. Até que é bom acordar cedo.... Relaxa aí. Toma um solzinho, vai andar, dar uma malhada que você tá com pneuzinho. NORA – Vaca. Pneuzinho é sua cara, nojenta. Você marcou com os bofes que horas? MEIRE – Só daqui há duas horas. Vou aproveitar pra dar um trato no material aqui. Trouxe o parangolé?

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NORA – Ta na sacola. Vou fazer a mistureba logo. (Tira o saco de blondor com água oxigenada da bolsa) MEIRE – Vou ali botar o biquíni. Trouxe escondido na bolsa pra o otário lá de casa não me sacar. (Vai até o banheiro químico) NORA – (Misturando o blondor) Otário lá de casa. Otário lá de casa é o marido. (Rindo) É uma puta cínica essa Meire. Sacanagem o que tu faz com Dilsinho. MEIRE - Que sacanagem nada. Eu só me fodi casando com esse merda do Dilsinho. O que foi que ele me deu? Porra nenhuma. Tô eu aí ralando. Sempre fui doida por ele. E tô aí do mesmo jeito que quando eu conheci o traste. Não cresci nada, não ganhei nada. Só filho, encheção, sogra insuportável e conta pra pagar. NORA – (Passando o blondor nas pernas e na virilha) É...Aí é esparro. É por isso que eu mandei Marquinhos passear. Gosto dele, viu? O bicho é gostosinho. Faz tudo direitinho...Mas sem um puto no bolso. Aí é esparro. MEIRE – Mas quem sabe hoje, hein? Aff! Se eu me acerto com um bofe desse! Good Bye, piranha! Good Bye, marido! Good Bye! NORA – Porra, Meire, você lembra do nome do seu? Cacete, eu não consegui entender uma palavra que o homem disse. MEIRE – Precisa entender nada, Nora! O principal você já entendeu, não entendeu? O bofe tá crazy pra fuck you! E você ainda conseguiu o mais bonitinho, sua puta! Mas não tem nada não. O meu é meio narigudo, mas dá pra encarar. Passa o blondor aí que eu vou botar os pelos clarinhos que nem os dele, pra combinar! Eita que ele vai ficar doidinho com a negona do pentelho louro! NORA – Guerrart, Gerrard, Gherard. O nome dele era um negócio assim. Que vergonha...Vou ficar quieta, deixo ele falar primeiro. Finjo que entendo alguma coisa só pra ele não pensar que eu sou ignorante. Aí eu digo yes ou no. MEIRE – Diga yes, criatura! Só diga yes! Imagina se um bofe desse se encanta, vicia na sua, te leva embora com ele, já pensou? Oh, delícia! Tchau, pobreza! E Nora virando gringa! CENA 6 Na casa de Tia Nena. Ema finalmente sai do banheiro. Ela está estranha, abatida, nervosa. Samira e a tia ficam um instante, olhando para Ema. Depois de um silêncio constrangedor, tentam agira naturalmente.

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SAMIRA – (Abraçando Ema) Ema! Quanto tempo! Você...está ótima! Saudade, prima! TIA – Foi o que eu falei, pra ela, Samira! Não mudou nada! A mesma carinha de menina levada. Um pouquinho mais cheinha, só. SAMIRA – Ah, você acha, tia? Ela está muito bem. Muito bem. Então...como você está? EMA – Bem. Mesma cara. Mais cheinha. Cansada, só. TIA – É longe, né? Da última vez que vim de lá, fiquei foi duas semanas andando toda torta. E olha que vim de semi-leito. Ai, que coisa boa, minhas duas sobrinhas aqui comigo! Já ia fazer dois anos que a gente não se via! SAMIRA – Tem tudo isso? Nossa, passa rápido. Pensando bem, acho que já tem...deixa ver...uns oito anos que não vou lá. Como vai o pessoal? Tia Lena, está bem? EMA – Todos bem. Vocês..não tiveram mesmo nenhuma notícia...da gente? SAMIRA – Não! Pois é...não soube de mais nada. Quem me dava sempre notícias de vocês era Tia Nena, né tia. Mas aí... TIA – Mas aí, você sabe muito bem o que aconteceu, e eu não quis mais saber de notícia mesmo. Mas não tem nada a ver com você, Ema. EMA – Eu sei. Nunca me meti no problema de vocês. TIA – E sua mãe, nunca mais falou nada? EMA – Não comigo, tia. (Pausa) TIA - Se você está assim, quietinha, porque pensou que eu não ia te receber, nem se preocupe. Meu problema é com sua mãe. Eu estou muito feliz de te ver, minha filha! EMA – Eu sei, tia. Só estou cansada mesmo. TIA – Samira, o que está fazendo agachada? SAMIRA – Tem umas manchinhas aqui no chão. Está vendo? Se passar um paninho com álcool, sai. (Olha embaixo do sofá ou cama) Aqui embaixo tem muita poeira. Faz mal pra alergia, tia. TIA – Ah, mas eu vivo com a renite atacada, Samira. É um negócio de louco. (Silêncio) E a empregada até agora nada. Tenho que ficar todo dia no pé, senão

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não faz nada direito. É fogo. (pequena pausa) Então, eu vou preparar um lanchinho pra gente. Enquanto isso vocês conversam, colocam ai o papo em dia. SAMIRA – Não se incomode, tia, não posso demorar. TIA – Vai tomar um cafezinho com a gente sim! A gente juntas, depois de tanto tempo e não toma nem um cafezinho! Vou lá. Deixa eu dar um cheirinho nas duas! Minhas pequenas! Ai, como eu adorava ver vocês brincando! Minha pequenas! Já volto, meninas. (Sai) SAMIRA – Tadinha, ela está velha. Tem que ter paciência. EMA – Ela sempre foi pegajosa. SAMIRA – Tadinha. Então, prima. Me conta. Quase oito anos. Você deve ter um monte de novidades. EMA – Interior não acontece muita coisa. SAMIRA – Com essa família animada que a gente tem? Duvido! EMA – (vestindo um casaco) Sempre acontecem coisas, mas nada que valha pena contar. SAMIRA – Você vai vestir o casaco que usou na viagem? EMA – Estou com frio. SAMIRA – Não é melhor pegar um limpinho? Está sujo do ônibus, não? EMA – E seu marido, como está? SAMIRA – Na mesma. Nem melhora, nem piora. EMA – Então, nesses oito anos, nada aconteceu pra você. SAMIRA – É...Não. Nada que valha a pena contar. EMA – Pois é. (Silêncio) SAMIRA – Mas é assim mesmo...A gente vai vivendo, o dia a dia, os problemas pra resolver, e de repente, oito anos já passaram. A gente nem sente, né? EMA – (Arrumando a mala) Não mesmo? Eu senti. Sinto. SAMIRA – O que você está fazendo? Não acabou de chegar?

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EMA – Sim. Mas decidi seguir. Preciso ir mesmo, antes que minha tia resolva ligar pra lá. Desculpa, prima. Gostei de te ver. A gente foi menina juntas. Mas não dá pra ficar. Qualquer dia, quem sabe, eu te ligo. (Abraça) Fica com Deus. SAMIRA – Mas onde você vai? EMA – Recuperar o tempo perdido. CENA 7 Boteco. Sônia sai do banheiro. SÔNIA – Está aqui a chave. Imundo esse banheiro, não? NETE – É que ó sou eu só, Dona. Ainda não deu tempo de limpar. Está sujo desde ontem. SÔNIA – (Tosse, engole) Desde ontem ou desde o ano passado? NETE – Esse povo parece que não tem banheiro em casa, também...Deus que me perdoe. SÔNIA – O quê? NETE – Nada, não. É que eu já falei com Seu Gervásio, o dono. Que muita gente pede pra usar esse banheiro, né? Aí fica assim. SÔNIA - Me dá um café bem forte. (Pausa. Tosse, engole) É você que limpa esse banheiro? NETE – Não. Por que? A senhora é fiscal de alguma coisa? SÔNIA – (Tosse, engole) Não. NETE – Eu vou falar com Seu Gervásio, Que só sou eu só. A outra mais falta que vem. Não sou X9, aí não falo nada pra ele. Fico trabalhando dobrado, mas é só um salário só! SÔNIA - Sei. NETE – Mas a outra recebe o salário dela justinho. Eu fico querendo ter consideração, mas quem tem comigo? Sempre sobra pra mim limpar a melança dos outros. A senhora desculpe, eu desabafando aqui...Mas ta me sufocando isso.

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SÔNIA – Ta me sufocando também, esse cheiro. (Pausa) Mas esse café está bom, hein? Olha aí, filha. Pelo menos o café é decente. NETE – A senhora não quer um queijo quente com suco? O pão é bom. SÔNIA – Não quero nada que tire o gosto do café da boca. (Tosse, engole, engole) Cacete. NETE – Queimou a língua? SÔNIA – Tem uma coisa aqui. Hoje eu resolvo essa merda. Me fala, filha. Como é que um médico formado, cheio de especialização, não é capaz de enxergar que tem um caroço aqui. (Abre a boca) Aqui ó. Ta vendo? NETE – (Constrangida) Onde? SÔNIA – (Com a boca aberta) Aqui! Aqui mais pro fundo? Não ta vendo? NETE – Eu não to conseguindo... SONIA – (Irritada) Não é possível, é enorme! Olha! Olha direito! NETE – Ah...Alí, né? Agora estou vendo... SONIA – Ta vendo mesmo? NETE – Tô. SÔNIA – Tá vendo nada. (engole, engole) Mentirosa. (pausa)Você eu até perdôo. Mas o indivíduo que estudou pra isso! Vem o médico me dizer que eu não tenho nada! É meu colega de profissão, filha. Mas eu vou te dizer: Só pode ter comprado o diploma um sujeito desse! (Tosse) Isso me irrita. (Tosse, engole) Mas hoje eu resolvo essa merda. Aprende uma coisa, filha. Tem gente que só nasce pra fazer merda. Não é capaz de fazer direito nem as coisas mais simples. E tem gente, que nasce pra limpar a melança dos outros. Dá um jeito nesse banheiro, filha. Pode ficar com o troco. (Sai) CENA 8 Casa de Tia Nena. Ela está segurando uma bandeja com o lanche que fez para as sobrinhas. TIA – Como foi embora? SAMIRA – Ela está muito estranha. Tem alguma coisa errada, tia. A senhora tem que ligar pra lá.

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TIA – Não vou ligar, Samira, já disse. Não falo com Lena. SAMIRA – Ela me pareceu meio fora de si. Tudo bem que faz tempo que eu não vejo, mas não dá pra uma pessoa mudar tanto assim. Ela não está bem. TIA – Eu sei, mas... SAMIRA – (Ela pega uma xícara que está na bandeja e passa o guardanapo por dentro, para limpar, antes de colocar o café) A senhora não acha que devia passar por cima...dessa mágoa, só pra tentar ajudar Ema? A gente não sabe o que está acontecendo, tia. Pode ser grave. TIA – E não foi grave o que ela fez comigo, Samira? O que você me diz? A minha vida inteira , inteirinha foi cuidando de mamãe doente. Ela casou, ela teve filho e eu? SAMIRA – Isso não vem ao caso agora/ TIA - Samira, depois que você casou ficou afastada. Não sabe da missa a metade. Eu sei, você também tem seus problemas, seus fardos pra carregar. E sua mãe, quando era viva, era presente, me ajudava o quanto podia, não posso me queixar. Mas Lena, nunca deu importância. Quando mãe morreu, ela só faltou me expulsar de casa. Fez o diabo pra gente vender a casa de mãe, pra dividir o dinheiro, porque ela só queria saber do dinheiro. Nem se importou se eu queria continuar lá, se ali era minha casa também. Eu fui a única que não casei, meu lugar era ali. Fez que fez...vendeu a casa. Me deu minha parte e pronto. Me jogou na rua pra eu me virar. E eu fiquei sem mãe, sem casa...sem sentido pra minha vida. Agora estou aqui, me apertando toda pra viver. Foi o que eu consegui com a minha parte da casa. Tem dias, que eu acordo e penso: O que eu vou fazer hoje? E me dá vontade de dormir de novo e não acordar nunca mais. SAMIRA – Tia, eu não sabia que...por que a senhora não me procurou antes? TIA – Eu sei que você não tem tempo. Você também cuida de alguém. Ah, Samira, sempre lembro de você quando penso na minha vida. Desde que ele ficou doente, sua vida é isso aí. Não é bom, filha. SAMIRA – Ele precisa de mim. TIA – Depois desses anos todos, você também precisa dele. Pode ter certeza. Se ele morresse hoje? O que você ia fazer? SAMIRA – Não fala assim. Deus o livre.

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TIA – É triste, Samira. Olhar pra um lado, pra outro, e se sentir sem história. Sem vida própria. Sem saber pra onde ir. SAMIRA – Meu Deus, já passou da minha hora. Ainda tenho que passar pra pegar umas receitas...dos remédios dele. A senhora me liga se tiver notícia de Ema. Me liga. Qualquer coisa, me liga. Desculpa, Tia, mas não posso demorar mais. Ele depende de mim. Se Ema aparecer, me liga. (beija a tia e sai) CENA 9 No boteco CARMEM – Era disso que eu estava sentindo falta, Lurdinha. Um menorzinho, pra animar o dia! Bom dia, Nete. NETE – Tudo bom, Dona Carmem? CARMEM - Vai querer também, Lurdinha? LURDES – Não, não... CARMEM – Se estiver sem dinheiro, deixa comigo. Vou te fazer esse agrado. (Para Nete) Traga dois. LURDES – Nesse caso...Deus lhe pague. CARMEM – Ele há de me pagar, Lurdinha. E hoje já começa a minha recompensa! Não trabalho mais com dor, Lurdinha. Não trabalho mesmo. Elas bebem o café. CARMEM – Bom esse café, não? LURDES – Bom. Glória a Deus. (Pausa para beberem mais um pouco o café) CARMEM – Oh, Lurdinha. Vou pedir pra ir no banheiro daqui. (Nete já reage contrariada)To me segurando aqui com minha bexiga solta. Mas não há quem me faça entrar naqueles banheiros químicos. Me dá um nojo. Nete, cadê a chave do banheiro? NETE (Entregando a chave) – Boa sorte. (Carmem vai ao banheiro). NETE (Para Lurdes) Não quer um queijo quente? Com suco é R$ 1,50. O pão daqui é bom.

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CARMEM (Do banheiro) Deus é pai! Que banheiro é esse, minha filha? NETE – (Desanimada) Ainda ta sujo de ontem. CARMEM (Voltando) Só de ontem? Olha pra isso, Lurdinha! O químico tava limpinho perto desse, viu? LURDES – Pois é. A gente se engana com a cara das pessoas, quem dirá com a cara dos banheiros. NETE – Só sou eu só, né? A outra mais falta do que vem... CARMEM – Mas eu tava aqui me controlando pra não perguntar. Porque, eu juro, Lurdinha. É só lembrar que essa vagabunda existe pra acabar com meus nervos. Quer dizer que ela não veio de novo? NETE – Até agora, não. CARMEM - Vagabunda, prostituta! E o idiota acreditando que ela vem todo dia! NETE – Folgada. Eu fico aí sem querer contar pra Seu Gervásio, o dono. Mas ela não tem um pingo de consideração. Sobra tudo pra mim. CARMEM – Porque é otária, abestalhada! Você e o corno do meu filho! Olha, Lurdinha, mas parece que essa criatura tem mel, sei lá. Faz todo mundo de besta! O bairro inteiro sabendo que ele toma chifre todo dia. E ele fica lá, fazendo todos os gostos dela. Agora você veja, Lurdinha. Criar um filho pra virar um corno manso desse jeito! LURDES – Isso é feitiço. Botou feitiço nele, tá amarrado. NETE – E quando ela vem, chega com aquela cara de nada. Como se não fosse com ela. Uma cara deslavada. CARMEM – Cara deslavada nada! Cara de puta! Se fosse eu já tinha matado a facada, essa peste. LURDES – Não fala assim, Carminha. É feio. CARMEM – Feio? Feia tá a minha vida depois que essa cretina apareceu e resolveu juntar com Dilsinho! Mas eu passo tanto nervoso por causa deles, que me ataca tudo. Tem dias que eu nem consigo virar o pescoço assim, ó. Passando mal dos nervos, sabe o que é isso? Eu já disse a ele, Lurdinha. Qualquer dia desses, você mata sua mãe! E você pensa que ele liga? Pois eu é que fale mal dela na frente dele, que é capaz dele dar facada é em mim!

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LURDES – Deus a livre de uma coisa feia dessa, minha amiga! NETE – Mas ela é assim. Monta em cima. Se aproveita. Depois faz uma carinha de pena, e pronto. O outro sempre acaba caindo. CARMEM – Descarada, Dissimulada! E nem é bonita a criatura, viu? Vive se amostrando, se achando. Com aquela cara de bruxa! Eu nem sei o que Dilsinho viu nela! NETE – É o jeito dela. CARMEM – Pois é. Ela deve fazer direitinho o negócio, só pode ser. Cadela. LURDES – Mundo perdido, Meu Deus. CARMEM – Aquela cobra, só sabe se aproveitar dos outros. Sanguessuga. Ainda deu agora de largar os filhos lá em casa, pra passar o dia. Me pergunte se ela ou Dilsinho deixam algum dinheiro pra comida das crianças? Nem um centavo! O menino mais velho come, que parece um monstro. E eu é que tenho trabalhar dobrado, me virar em duas, com dor e tudo, porque não vou deixar neto meu com fome. LURDES – Como é que o próprio filho faz isso. Que coisa feia... CARMEM – Não agüento mais isso, não. Mas deixa estar, que hoje a coisa começa a mudar. Não vejo a hora, Lurdinha. Quando eu começar a receber meu benefício, vou me picar pro interior, deixar a porra toda aí. Aí quero ver, neguinho se virar. Vou viver minha vida, que eu não tenho mais saúde pra passar por isso, não. NETE – E eu vou falar com Seu Gervásio, o dono. Dessa vez, eu falo. CARMEM – Não trabalho mais pra dar vida boa a piranha. Eu sofro, Lurdinha. Porque meu Dilsinho fica contra mim. Mas eu vou cuidar da minha vida. E rezar pra vida do meu filho não acabar em desgraça. LURDES – Não fale esse nome que é feio. (Olha no relógio) Puta que pariu! Olha a hora, Carminha! É hoje que minha patroa me mata. (Sai apressada) CARMEM – É hoje minha perícia, Nete. Finalmente! Vou me encostar! E me livrar de tudo que é encosto! Você devia fazer o mesmo. Me dê meu troco, pra eu me picar. CENA 10 No consultório. A cena começa com Samira observando a garganta de Sônia.

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SÔNIA – Está vendo? Tem um corpo estranho na minha garganta. (Engole) Eu sinto todo o tempo. Principalmente quando engulo. SAMIRA – (depois de examinar) Você não tem nada na garganta, Sônia. SÔNIA – Como não? Eu sinto! Sinto dor quando engulo qualquer coisa, até saliva. SAMIRA – Como é essa dor? SÔNIA - (engole, engole) Não é bem uma dor. É como se me fizesse lembrar que eu tenho garganta. SAMIRA – É...Deve ser psicológico. Estresse, nervosismo. Eu bem sei como é a rotina aqui no posto. Lembro da minha época. É de pirar mesmo. SÔNIA – Pirada eu vou ficar se você não tirar esse corpo estranho da minha garganta. SAMIRA – Sônia, eu lembro como o trabalho aqui é infernal. Ver um monte de gente miserável, não poder fazer nada. Você pode até dizer que não, mas isso aqui afeta qualquer um. Com certeza isso te deixa nervosa, mesmo inconscientemente. SÔNIA – Samira (Engole) Eu não estou nenhum pouco nervosa. Só estou sentindo um corpo estranho na minha garganta. SAMIRA – Você devia tirar uns dias de licença, descansar. Isso é psicossomático, está claríssimo. SÔNIA – (Irritada) Eu sei muito bem o que estou sentindo. Não é psicológico, Não é somático nem a puta que o pariu. Tem um caroço na minha garganta! SAMIRA – Calma, Sônia. Você não precisa ficar ainda mais nervosa. SÔNIA – (Berrando) Eu não estou nervosa, cacete! Eu estou sentindo uma porra de um corpo estranho na garganta, que merda! SAMIRA – Viu como você está nervosa? SÔNIA -(Respira fundo, engole, engole) Desculpe. Olha, eu trabalho aqui há anos. Entrei antes de você. Eu vejo gente miserável todos os dias. Pode ter certeza que isso não me comove mais. Eu to cagando pra quem vem pedir seja lá o que for. Eu to cagando pra cada um naquela fila. São pobres, não podem pagar pra ter coisa melhor, fodam-se. Eu também não tenho muita coisa que gostaria de ter.

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Não tenho tv a cabo, nem máquina de lavar prato. Nem freezer. (Pausa. Tosse engole, engole) Isso não é alucinação. É um caroço. É um caroço. SAMIRA – (Atenciosa, doutrinadora) Sônia...Vá por mim. Ás vezes a gente tenta se enganar. Provar pra si mesmo que não se afeta, que não está nem aí. Mas chega um momento em que o estresse se manifesta da maneira mais insólita. Olha, já estou atrasada. Só vim para pegar as receitas. Você já fez pra mim? Sônia faz prescreve as receitas. SÔNIA – Os de sempre? SAMIRA – Sim, obrigada. Obrigada pelo favor. Olha aí, Sônia. Que sala suja, desorganizada. Como você pode querer se sentir bem num ambiente assim? Sônia entrega as receitas, contrariada. SAMIRA - Bem, agora é só passar na farmácia e ir correndo pra casa antes que...A fila está enorme lá fora. Cuida da sua mente, Sônia. Do seu coração. Se permita sofrer, ter compaixão. Vai te fazer bem. (Sorri, generosa) Pensa nisso, tá? (Vai saindo. Volta) E evite ficar nervosa.(Sai) Sônia fica uns instantes em silêncio. SÔNIA – Vá tomar no centro do/ (Engole, engole) Você fala isso porque o caroço não é seu, muito menos a garganta, vaca. Psicossomático. Tudo agora é psicossomático, psicológico, trauma de infância. È só uma merda de um caroço, mais nada, sua filha da....(Dá porta do consultório) Senhora Carmem, pode entrar. CENA 11 No posto de saúde. SÔNIA – (Tossindo)Trouxe a papelada? CARMEM – Aqui. SÔNIA – Dona Carmem. Sua idade, Dona Carmem? CARMEM – 39. (Sônia olha pra ela, surpresa. Carmem aparenta ser bem mais velha). Tá até aí, na receita. A médica que eu fui falou que eu não posso trabalhar mais não. Ela disse que escreveu aí na receita. Sônia não olha o papel, e continua preenchendo a ficha. Pausa longa.

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SÔNIA – O que a senhora tem? CARMEM – Não posso nem me mexer, Doutora. Dói os ossos. As juntas, aqui. Dói o pescoço, também. A coluna, bem aqui. E o joelho tá podre, podre. SÔNIA –(Sem tirar o olho da ficha) O nome da doença. CARMEM – É “astrite”. SÔNIA – Artrite é uma doença comum. Coisa que vem com a idade. (Tosse, engole, bem devagar) Muita gente convive com essa doença e trabalha normalmente. É só tomar alguns cuidados. CARMEM – Mas eu não agüento, Doutora! Não dá pra ficar me agachando, levantando, pegando peso. SÔNIA – (Pega um espelho de bolso para olhar a garganta) Qual é sua atividade? CARMEM – Eu sou diarista. Faxina pesada. Mas não estou mais conseguindo, não. A médica botou aí no papel. Ela disse que se eu continuasse trabalhando, carregando peso, ia parar numa cadeira de rodas. SÔNIA – Existe tratamento pra sua doença. Não vai chegar num caso extremo desse, se a senhora se cuidar. Deixa eu ver os exames. Carmem fala enquanto Sônia analisa os exames. CARMEM – Passar roupa então, é ruim demais. Nas casas que não tem máquina de lavar eu nem vou mais, que lavar roupa na mão é impossível. Sônia faz um rápido exame em Carmem, mas quase não olha pra ela. CARMEM - Tem dias que nem passar pano de chão eu agüento. E quando muda o tempo, é terrível. Quando dá frieza ataca todas as juntas. SÔNIA – (Procurando o nome no papel) Dona...Carmem. Infelizmente não posso conceder o benefício. CARMEM – Mas tá tudo aí! Eu to em dias com o inss e a médica falou que eu não posso trabalhar. Ela botou aí no laudo. E tá no Rx. SÔNIA – (Está incomodada com a garganta) Ela deu uma opinião, mas não é determinante. Quem decide é o médico perito. No caso, eu. A senhora tem essa doença, mas a existência de uma doença ou lesão não significa incapacidade. CARMEM – Mas como é que eu vou fazer faxina, pegar peso, arrastar coisa?

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SÔNIA – A senhora pode fazer outra coisa. Procurar outra atividade. CARMEM – Tá de brincadeira, né, Doutora? SÔNIA – Eu não tenho tempo pra brincar. Olha, Dona...Carmem. Todo mundo que entra aqui diz que não tem condição de trabalhar. A senhora já pensou se eu fosse conceder o benefício pra todo mundo? Tem gente muito pior que a senhora que vem aqui, a senhora deve ter visto na fila de espera. (engole, tosse, engole) Gente com parafuso na perna. Com mão paralisada. E muitas dessas pessoas também não conseguem. Porque ás vezes, Dona Carmem, o problema não está aqui na perícia. Está no paciente. Está na cara que a senhora está insistindo em trabalhar com uma coisa que não pode. Tem tantas outras coisas que a senhora pode fazer sem ter que arrastar coisas ou pegar peso. CARMEM – Me diga uma. SÔNIA – Não sou eu que tenho que te dizer. Tenha um pouquinho de boa vontade, Dona Carmem. CARMEM – Eu passei anos tendo a boa vontade de pagar o inss. Eu preciso me encostar! Como é que eu fico? SÔNIA – (Pausa. Sônia olha pra Dona Carmem, impaciente. Se olham por um pequeno tempo) A senhora quer que eu leia aqui no livro o conceito de incapacidade? (Engole saliva antes de começar a ler) “É a impossibilidade temporária ou definitiva do desempenho das funções específicas de uma atividade...blá, blá, em conseqüências de alterações morfopsicofisiológicas...blá, blá...doença, agravamento...está implicitamente incluído no conceito de incapacidade, desde que palpável e indiscutível. Indiscutível, entendeu? A senhora não se encaixa. Não fui eu que disse. Está no livro. (Tosse muito. Bebe um gole de água) Dona Carmem, dá uma parada por agora, não exagera no esforço, procure não ficar nervosa, tome os remédios direito. A senhora vai melhorar. Depois de seis meses, volte aqui. A gente vê o que faz. (Tosse)Ai, tá insuportável isso. Dá licença, vou no banheiro. Sônia sai e deixa Carmem sozinha na sala. CENA 12 Na rua, perto de um motel, ao lado de um banheiro químico. Meire está com uma garrafa de cerveja na mão, já meio alta, esperando Nora. Ela cantarola alguma música da moda, remexendo um pouco o corpo. Nora aparece. MEIRE – Porra, Nora, pensei que tu ia pernoitar aí com o gringo. Dilsinho já deve estar atrás de mim.

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Nora – Eu tentei falar que já estava tarde, mas ele não entendia nada do que eu falava. MEIRE – E o sabonetinho, pegou? NORA – Que agonia você com esses sabonetinhos, viu? MEIRE – Porra, Nora, me deixe. Você sabe que eu faço coleção. NORA – Toma a porra do sabonetinho. MEIRE – Valeu! (Vê que Nora está machucada) Opa! Pelo jeito a noite foi boa, hein? Toda cheia de chupão! (Divertida) Aff, que homem agreste! NORA – Alemão maluco. O homem me acabou. Tô aqui toda dolorida. Gringo sem noção, Meire. Eu mandava ele parar que tava machucando, ele entendia que era pra ir mais forte. Ou então tava fazendo de propósito. MEIRE – Porra nenhuma! É o fogo da paixão! NORA – É, mas esse negócio de não entender a língua é foda, viu? MEIRE – É, mas a língua da sacanagem deu pra ver que você entendeu direitinho, piranha! Você deu sorte, um loiro bonito daquele! E o meu narigudo! Só tinha nariz, porque o resto! (Começa a rir) Todo desengonçado, parecia uma lagartixa. Sou mais o teu! Pelo menos tem pegada! NORA – Muito forte pro meu gosto essa pegada. MEIRE – Ah, deixe de frescura. Você nunca está satisfeita! Pois eu aposto, que o gringo vai querer sair com você de novo, e se você souber levar, já tá feita na vida! Fica aí se queixando por causa de um olho roxo, vê se pode. Se você não quiser, pode passar pra cá que eu quero/ DONA CARMEM – Você está aí, sua safada, descarada! MEIRE – Puta que pariu. A bruaca. NORA – Oi, Dona Carmem. CARMEM – É hoje que eu te levo pra casa pelos cabelos, te entrego pra teu marido e digo direitinho onde é que tu tava, sua safada, sem vergonha. Você tava nesse motel aí, não tava! (pega ela pelo braço) Fala logo, sua cobra peçonhenta!

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MEIRE – Me larga, bruaca. Não tenho que te dar satisfação/ CARMEM – Tem que dar satisfação sim, sua rameira! Tá pensando o que? Você deixa seus filhos na minha casa pra eu dar de comer, enquanto fica de sem vergonhice na rua, chifrando meu filho, fazendo ele de piada do bairro! (Aperta ela mais forte) Eu te mato, Meire! Hoje eu te mato! Nora fica sem reação. Depois de um tempo tenta apartar a briga, mas não adianta. MEIRE – Me larga, sua velha! CARMEM – O que é isso aqui? O que é isso? Sabonete de motel, né, sua piranha, rameira, você não vale nada, sua prostituta! Não vai mais fazer meu filho de corno! Hoje ele vai saber, ele te joga pra fora, te chuta pra rua! (Dá um safanão em Meire) MEIRE – Sua velha idiota, imbecil! Sua inútil, invejosa! Você tem inveja de mim seu dragão! Pois você saiba que teu filho nunca vai me botar pra fora de casa, sua idiota! Você acha que ele não sabe que eu dou corno nele? Sua bruaca, velha! Seu filho é corno mansão mesmo! NORA – Pára de escândalo, Meire. MEIRE – Paro nada! Paro de escândalo nada! (Agora é ela que aperta o braço de Carmem) Não se meta na minha vida, sua louca! Me deixe em paz! Sua entrevada! Vá cuidar da sua vidinha estúpida e me deixe em paz! NORA – Meire, para. MEIRE – Eu vou sair dessa merda de vida. Eu vou. E você vai trabalhar em casa de família até morrer! Até morrer aí nas suas dores. (Dona Carmem dá outro safanão em Meire) Sua louca! Eu vou fazer tua caveira pra teu filho! Me aguarde! Ele não vai mais olhar na tua cara, você vai ver! (Sai correndo, bêbada, descontrolada de raiva) Louca! Dona Carmem fica abaixada no chão. Está nervosa, chorando. Tem dificuldades para se levantar. NORA – A senhora quer ajuda? CARMEM – Não quero ajuda de mulher que não se dá o respeito. (Levanta com dificuldade e sai, sofrida)

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CENA 13 Banheiro da casa de Samira. Ela entra apressada para cuidar do marido. De dentro do banheiro, ela fala com o marido doente, que está deitado no quarto. SAMIRA – (Entra no banheiro. Faz xixi e lava as mãos demoradamente. Depois passa álcool.) Eu não disse que era rápido, meu amor? Aposto que você nem sentiu minha falta. Dormiu a manhã todinha, não foi? Hein? Só demorei um pouquinho mais, porque a tia está morando longe. Uma viagem ir lá de ônibus. Ela está bem velha, coitada. Aquelas manias de sempre! Achei graça, já tinha esquecido do jeito dela...Você lembra? Não demorei nadinha, não foi? Hein? (Vai até o quarto para pegar o lençol. Volta para o banheiro e dobra o lençol para colocar no cesto de roupa suja) Ema, você lembra de Ema? Era bonita, lembra que você falava? Minha prima mais bonita, você falava. Continua, mas está estranha, viu? (Leva o penico) Já fez xixi hoje, amor? (Volta, lava as mãos de novo, demoradamente. Começa a preparar os remédios) Você está com a cara ótima! Viu? Saí rapidinho, você nem percebeu. Ela apareceu sem avisar, eu te contei, né? Pois é. A tia não sabe o que fazer...Mas também não quer ligar pra mãe de Ema. Já tem dois anos que elas não se falam. Já pensou? Eram tão unidas. Ou não. Quem sabe...As aparências enganam. (Levando os remédios) Esse aqui passou um pouco da hora. Vai ter que tomar junto com a vitamina. Mas o que é isso amor? Não mexeu no café, meu filho? Mas você não pode ficar assim, em jejum, você sabe! Escuta. Não faz assim, escuta. Eu só te deixei por algumas horinhas. E você ficou dormindo. Deixei comida, deixei tudo na mão... Não! Não faz isso! (Volta ao banheiro molhada da urina que o marido joga nela. Ela começa a se lavar, lavar muito as mãos e o rosto) Eu faço tudo por você. Mas você precisa me ajudar! Eu também preciso de coisas (Vai até o quarto) Fala comigo! Fala comigo! Chega disso! Eu não agüento mais! (Volta ao banheiro e continua lavando as mãos. Depois de uma pausa) Você não é criança, o que custa pegar uma droga de uma bandeja e comer sozinho uma vez que seja! Você tem que aprender a se virar! E se um dia eu te faltar? Hein? Se um dia eu cair doente também? Quem vai cuidar de você? Quem vai cuidar de mim! (Volta para o quarto) Não! Não faz isso! Eu...não...calma. Eu faço tudo por você. Eu...desculpa. Não precisa ficar assim, meu amor. Isso não pode mais continuar assim. (Volta para o banheiro) Assim, não vai dar mais. Não vai. CENA 14 Banheiro de uma rodoviária. Nora entra. Se olha no espelho. Percebe que o machucado está feio, tenta lavar as feridas. Ouve um barulho que vem de uma das portas reservadas. Tosse e gemidos de dor. Sônia aparece, muito machucada. NORA (Assustada) – O que foi isso, Dona?

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SONIA – Nada. Assalto. NORA – Tem um módulo aqui na rodoviária. Quer que eu te leve? SONIA – Não. Não. Chega de confusão por hoje. (Ela geme de dor) NORA – Vixe, Dona. A coisa ta feia. Vou procurar um médico. SONIA – Não precisa filha. Pode deixar. Ema sai da outra porta do banheiro. Olha para as duas com indiferença e vai lavar as mãos. NORA (Para Ema) – Moça, moça. Ajuda aqui, moça. Fica aqui com ela. Vou chamar um táxi. Ema reage com indiferença. SONIA – Filha, já disse que não precis/ NORA – Peraí, Dona. (Sai) Sonia e Ema ficam em silêncio. Ema arruma algo em sua mochila. Sônia tem um acesso de tosse. Ema deixa cair seu documento. SONIA – Caiu seu documento (Olha o nome) Ema. Ema pega o documento e não diz nada. Sônia tenta se levantar, mas não consegue. Começa a rir. Ema olha estranho para ela. SONIA – É engraçado, sabe, Ema. Se eu estivesse aí, no seu lugar. Também não faria nada. EMA – Meu ônibus. Já vai sair. Boa sorte. SONIA – Vai, Ema. Seu corpo está avisando que você tem que voltar pra casa. EMA – O que? SONIA – Olha aí, filha. Seu peito está vazando. EMA - (Tensa, confusa) Meu corpo não sabe de nada. (Sai)

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CENA 15 Casa de Tia. SAMIRA – Não dá pra acreditar. TIA – (Abalada) Mas quem ia imaginar uma coisa dessas! SAMIRA – Como a senhora descobriu? TIA – Eu liguei, minha filha. eu liguei. Engoli meu orgulho. Estava tão preocupada. Engoli, engoli, e falei com a Lena. A voz dela...estava destruída. Com tudo o que ela me fez, Samira. Tive pena. Meu coração ficou deste tamainho. SAMIRA – E eu não sei? . Mas quem ia pensar, que Ema...não consigo nem imaginar. TIA – Ai, filha. Não dá mesmo. Também não consigo imaginar. Como é que uma mãe...não dá. SAMIRA – Mas só assim pra senhora voltar a falar com tia Lena. Isso é bom, Tia. TIA – Estou até pensando em dar um pulo lá. Dar meu apoio. E eu que pensei que nunca mais pisava lá. SAMIRA – Mas são nessas horas que a gente vê. Ai, tia. Como ela teve coragem? TIA – A gente nunca vai conseguir saber, Samira. Não eu e você. A gente dá a nossa vida por alguém. Pra cuidar de alguém. Anos e anos e anos. Ema não quis fazer isso nem um dia. SAMIRA – Não imaginava ela tão desumana. TIA – No fundo, Samira, ela não é diferente da gente. Ela foi desumana com uma criatura indefesa. Eu fui desumana comigo mesma. E você...ainda dá tempo. Cuide dele, mas não abandone você mesma. Entra Dona Lurdes. LURDES – Dona Nena, já acabei o serviço. TIA – Já? Lurdes, Lurdes! Você chegou tarde hoje e já tá indo? Olha lá!

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LURDES – Está tudo no lugar, pode conferir. TIA – Hoje não tenho condições. Até amanhã. LURDES – Boa noite. (Volta) Dona Samira, a senhora não está precisando de alguém pra trabalhar na sua casa? Tenho uma amiga, que está precisando muito. SAMIRA – (Depois de uma pausa) Acho que estou sim. Estou sim. Estou. Toma, dá meu telefone pra ela. Pede pra ela ligar ainda hoje. Se der tudo certo, ela já começa amanhã. LURDES – Que bom, ela vai ficar aliviada. (Vais saindo e volta) Dona Nena, a senhora é de ( nome de uma cidade), não é? TIA – Sou, por que? LURDES – A senhora viu, na televisão, o caso do bebê? A mulher jogou o bebê de dois meses no lixão e fugiu. A criança está internada, nem sei se vive. A avó do garotinho está que não se agüenta de desgosto. Disse que não entende, que estava tudo bem, todo mundo alegre com o bebê. Aí, a filha fez uma coisa dessas. Tia e Samira se olham TIA – Já estava sabendo. LURDES – Coisa triste, né? Será que a senhora não conhece a família da moça? TIA – Devo conhecer. LURDES – Deus que me defenda, Dona Nena. Isso é falta de Jesus no coração. Agora eu vou mesmo. Deus abençoe e boa noite. (Sai) SAMIRA – Pra onde será que ela foi, tia? TIA – Não sei, minha filha. Estou muito preocupada. Uma pessoa que faz o que ela fez não pode estar bem. E Lena, Meu Deus, passando uma coisa dessas. Eu te juro, Samira, que nem nos meus momentos de raiva maior, eu desejei uma coisa dessas pra ela. SAMIRA – Eu sei, tia. Eu sei. TIA – Que bom que você resolver botar alguém pra te ajudar. Vai viver um pouco, menina. SAMIRA – E a senhora, tia?

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TIA – Vou viver a minha vida também. Mas a minha vida é cuidar dos outros. Já me conformei. Vou lá pro interior, cuidar de Lena. Ajudar com o bebê. E se Ema aparecer...vou cuidar dela também. CENA 16 Banheiro da casa de Sônia. Ela está ferida, mancando. Nora a ajuda a andar. SÔNIA – É por aqui. (Nora a acomoda. Sônia tosse, engole)) Você pode pegar aí no armário a caixa de curativos? NORA – Onde? SÔNIA – Aí no armário. NORA – (entregando a caixa) Bom, eu já vou indo, então. Se cuida. SÔNIA – Espera, filha. Quanto eu te devo? NORA – Quanto? Ah, deixa pra lá. Tchau. SÔNIA – Espera. Eu faço questão de retribuir a gentileza. Estou vendo que você também está machucada. Eu te faço os curativos. NORA – Isso aqui não foi nada. SÔNIA – Deixa disso. Eu estou vendo o machucado. Tá feio. (Engole, engole) Eu sou médica, vou tratar disso direito. E você pode me ajudar também. Vamos fazer um trato: (Engole)Você cuida das minhas feridas. E eu cuido das suas feridas. Ambas sorriem. Sônia começa a mexer nas ataduras. Durante o diálogo, elas fazem curativo uma na outra. SÔNIA – Primeiro tem que lavar. Higienizar o local. Como é seu nome? NORA – Nora. SÔNIA – Sônia. Passa isso aqui. Vai arder um pouquinho. Você também foi assaltada? NORA – Eu? (Ri) Por que alguém ia querer me assaltar? Só se fosse pra levar meu rim. Dizem que vender rim dá dinheiro, né? Não foi nada, eu levei um tombo. SÔNIA – Sei.

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NORA – É, levei um tombo no asfalto, me arranhei. Caí e bati o olho na quina do...É verdade. SÔNIA – Nora, eu tive uma idéia. (Tosse, engole) A gente podia jogar um jogo. NORA – Quê? SÔNIA – Veja se você não acha uma boa. A gente não se conhece. Provavelmente nem vai se ver mais. A gente pode falar o que quiser uma pra outra. Sem pudores. Dizer tudo o que a gente quiser, os segredos mais guardados. Sem julgamento. Eu não tenho porque te julgar, porque não te conheço. (Tosse) E eu não preciso provar nada pra você. NORA – Pra quê isso? SÔNIA – Vai ser divertido! Uma brincadeira inocente. A gente está aqui, uma cuidando da outra. Num banheiro! No banheiro, todos são iguais, fazem as mesmas coisas. Dentro de um banheiro, ninguém é melhor que ninguém. As coisas mais íntimas ficam expostas. É aqui que a gente se limpa. E joga fora o que a gente tem de sujo, fedido, excremento, secreções. A gente pode falar qualquer coisa. Qualquer coisa que se queira, sem vergonha. Então? NORA – Sei lá. (Pausa) Então começa você. SÔNIA (Excitada. Engole, engole, engole) Lá vai. Não foi assalto. Eu sou médica. Trabalho aqui e dou plantão no interior. Pra agüentar o tranco eu roubo uns remédios lá no posto e tomo. Pra ficar ligada. (rindo) Dei um vacilo. É que eu já tinha tomado uns analgésicos pra garganta...não caiu bem...quando cheguei na rodoviária comecei a passar mal. Caí e me ferrei toda (Ri e tem um acesso de tosse). Hoje eu tive um dia ruim. Pausa. Nora resolve entrar no jogo. NORA – Tá vendo essa cicatriz aqui? Quando eu trabalhei de babá pegava merenda do menino pra levar pra casa. Quando a patroa começou a dar falta, botou uma câmera. Eu nunca batia no moleque, mas justo naquele dia, calhou de eu dar um beliscãozinho de nada...Quando a mulher chegou, me deu uma porrada bem aqui e me mandou embora. Pelo menos ela não deu queixa. SÔNIA - Eu tinha um corpão. Igual o seu. Pois é, faz tempo! Meu cabelo batia no meio das costas. E era sedoso. Eu era bem diferente. Era até bonita. NORA - Eu tava com um gringo lá naquele motel, perto da rodoviária. No meio da putaria, ele se empolgou. Começou a ficar meio agreste. Não gostei, pedi pra ele parar, mas quanto mais eu pedia, mais força ele botava. Tentei me sair

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debaixo dele, mas ele me puxou pelo cabelo e me deu uma cotovelada aqui no olho. O homem tava que nem louco. Achei até engraçado! Mas já me disseram isso. Que eu sou boa na putaria. Os homens ficam malucos. SÔNIA – (Vai falar algo sobre o que Nora confessou, mas desiste )Putaria. Fiz pouca...putaria. Já faz tempo que eu...me viro sozinha. (As duas riem) NORA – Ah, doutora. Eu já trepei muito nessa vida, viu? Mas gozar, assim, gostoso mesmo...só com Marquinhos. Mas gozar não paga as contas de ninguém, né, doutora? SÔNIA – Se minha mãe tivesse viva, ia dizer que eu perdi o viço. Mas muito antes de perder o viço, eu já tinha perdido a paciência. Essa coisa de gostar, conquistar, ficar junto, e depois ter que tolerar. (tosse, engole)Compreender, esperar compreensão. É um esforço inútil. NORA– (Pausa) Já peguei filho seis vezes. O primeiro não vingou. Tive um, que não mora comigo. E quatro eu tirei. SÔNIA – Já matei três pessoas. Na primeira vez, inexperiência. Fiquei corroída de culpa. Da segunda vez foi um vacilo no plantão. Emendei três plantões seguidos, três noites sem dormir, parecia um zumbi. Prescrevi o remédio certo, mas a dosagem errada. A família tentou me processar, mas a classe se protege. Não conseguiram provas nem testemunhas. Da terceira vez, eu matei mesmo. Porque quis. Era um infeliz, um vagabundo, ia acabar morrendo de qualquer jeito. Encurtei o sofrimento dele e liberei um leito mais cedo. (Tosse muito, engole, engole. Pausa) SÔNIA – Você vai me entregar pra polícia, né? NORA – Eu não doutora. Se eu for lá, é capaz de eu ficar presa também(Riem) CENA 17 Tia está em casa, sentada em sua poltrona. Assiste TV, solitária. Essa cena deve imprimir passagem de tempo. Som de programas de TV conhecidos. Ela tem um olhar distante, melancólico. Ela balbucia algumas palavras, como se estivesse conversando com a TV. Gestos pequenos e lentos. CENA 18 Nora e Sônia conversam mais animadas. Estão bem mais a vontade. SÔNIA - Quer dizer que você gosta do tal Marquinhos, mas transa com o gringo?

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NORA - Ah, Doutora. Dinheiro, vida boa, a gente tem que procurar. E muito. Mas amor, a vida trata de te dar de graça. Foi assim, quando encontrei Marquinhos. Num domingo. Na praia do Porto. Eu tava sentada, dando aquela estreitada na frente do biquíni, pra poder passar o blondor, pra clarear os pentelhos. Quando dei de cara com aquele homem todo lindo comendo banana real. Aff, que homem bom...Mas não dá não, doutora. A vida dá de graça o amor, mas a gente tem que correr por fora. Já tenho mais de 25. Tenho que encontrar alguém que preste. SÔNIA – O gringo, no caso? NORA – É, quem sabe. Gringo gosta de tudo que eu tenho. Bunda, peito, boca, bunda...e eu gosto do que gringo tem: Money e passagem pro exterior. SÔNIA – Faz sentido. NORA – É por isso que eu sou rata de praia, doutora. Chego cedo, boto creme pra hidratar o cabelo, porque no sol, ele fica sempre uma bucha, boto meu bronzeador com proteção 2, de preferência aquele Rayto de sol, que meu primo Edilson traz toda vez que viaja pro Paraguai. A cor fica que é uma beleza. Aí é só estender a canga, passar o Rayto, e ficar mudando a canga de posição, toda vez que o sol mudar de lugar. Numa virada dessa, vai que eu dou de cara com meu futuro rico! Que nada! Quero fazer outra coisa da minha vida. SÔNIA - Todo mundo quer, filha. NORA – A minha vizinha católica vive me chamando de assassina de anjinho. Á vezes eu tenho medo de ser castigada. Nunca se sabe. SÔNIA – Não acredito. Não tenho medo de nada. NORA – Já se acostumou a ver muita coisa feia, né, Doutora. Quando a gente se acostuma, acha tudo normal... SÔNIA – Por isso você não ligou de ser currada pelo gringo? NORA – Que é isso, Doutora. Eu não fui/ SÔNIA – Então você nem percebeu? Esse príncipe alemão foi um cavalo com você, filha. NORA – Não, Doutora...que é isso...É que eles são diferentes, né? Como é que um homem tão bonito...Falando tão difícil... SÔNIA – Acorda, filha. Esses gringos vem pra cá achando que aqui é o paraíso das putas. Não te respeitou e você deixa. Ele é animal que fala outra língua, só isso.

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Devia ir pra cadeia. Mexe nos curativos de Nora) Dói, né? Eu sei que dói. (Tosse, engole, engole) Dói em mais algum lugar? NORA – Não sei. (elas ficam um tempo em silêncio) CENA 19 Passagem de tempo. Som de chiado de TV. Tia está sentada no vaso sanitário de sua casa. Está morta, já há algum tempo. O dia está amanhecendo. CENA 20 Nete está abrindo o boteco, como na primeira cena. Meire chega. NETE – Olha só. Quem é vivo de vez em quando aparece. MEIRE – Pra você ver. É o jeito... NETE – Pois pode ir botando a mão na massa, que hoje eu não vou te dar moleza. Que nada, Meire, você é muito folgada. Que nada! Tá cheio de serviço acumulado aí, só eu só pra fazer tudo, e você chega aí com essa cara dura. Não tem mais colher de chá, não. Hoje eu falo com Seu Gervásio. MEIRE – Sei. Tem café? NETE – Tem. Acabei de fazer. Mas não desconverse não! Você abusa, viu Meire! Eu te dou uma mão e você já leva o braço inteiro! Não tá certo isso não! MEIRE – Deixe de estresse, Inha. A essa hora da manhã já tá com essa cara amarrada! Bora abrir um sorriso aí, senão fica velha cedo! NETE – E esse roxão aí no seu braço? O marido descobriu seus esquemas, é? MEIRE – Porra nenhuma. Me deixe, Nete, que não é da sua conta. NETE – Você tá precisando de um corretivo mesmo.

MEIRE – To precisando é de um macho que me banque, bonita. Ninguém merece essa vidinha filha da puta. (Vai até o banheiro) Puta que pariu! Tem um bicho morto naquele banheiro, Nete? Que fedor é esse!

NETE – O que você acha, minha filha! Só eu só pra cuidar de tudo! Tá sujo do dia todo de ontem.

MEIRE – Só de ontem? Me faça uma garapa, viu?

NETE – Então comece por ele, minha filha. É todo seu.

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MEIRE – Não mesmo! Mas eu não chego nem perto daquela nojentice. Não sou paga pra isso, não sou obrigada!

NETE – Não! Não é justo! Não é! Aí sobra é pra mim limpar a melança dos outros! Você é muito folgada, Meire, Deus que me perdoe!

MEIRE – Oh, Inha! Você faz se você quiser. Eu não tô te mandando.

NETE – E se Seu Gervásio chega aí! Aí eu digo o quê?

MEIRE – Sei lá. A gente inventa na hora. Não fique brava comigo não, Inha! Eu sei que você gosta de Meirinha! Bora tomar um cafezinho, bora. Faz tempo que a gente não se vê, to com saudade!

NETE – Olha, Nete, eu não sei onde você arranja tanto cinismo, tanto queixo. Chega me dá uma coisa aqui dentro, criatura. Não dá nem pra explicar. Você...você...não existe.

MEIRE – (Divertida) Eu ainda vou ser inventada! Nete, uma vez eu vi uma frase na televisão, acho que foi numa novela. Achei a minha cara. Era assim: Você desperta em mim, os instintos mais primitivos! (ri) Não vai sentar aqui do meu ladinho não?

NETE – Não. Vou limpar esse banheiro logo, que eu não quero confusão pro meu lado. Sempre sobra pra mim mesmo...

MEIRE – Tive uma idéia! Depois que você limpar, a gente bota uma placa aí na porta: Banheiro, cinqüenta centavos. É boba! O banheiro fica mais limpo, não dá tanto trabalho pra quando você for limpar de novo! E ainda sobra o trocadinho da cerveja, hein? Viu como eu te ajudo? Que idéia da porra!

NETE – Só você, Meire. E só eu só pra te agüentar...

MEIRE - Admita, Inha! Você me ama! Você não vive sem mim!

CENA 21 Nora e Sônia estão no banheiro. Em silencio. Sônia arruma a caixa de curativos. NORA – (Depois de um tempo) Currada, doutora? (Acha graça) Isso é coisa que se diga? (Elas riem. Com a risada, Sônia começa a tossir muito). NORA – Peraí, vou bater nas suas costas.

SÔNIA – Não adianta. (Tosse, engole) É um caroço maldito que eu tenho aqui. Fica aqui, parado. Me incomoda pra falar, pra comer, pra dormir. O idiota do médico diz que não tem nada. Como é que não tem nada! Veja aí. Não dá pra ver? (Abre a boca pra Nora olhar)

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NORA – Espera. To vendo sim, doutora. Dá pra ver.

SÔNIA – Quê? Você está vendo? Você tá vendo? Ai, que bom! Eu sabia! Eu não tô louca! Já mostrei pra tanta gente, mas você conseguiu! Você conseguiu ver aquilo aqui dentro! Obrigada, filha.

NORA – É pequenininho mesmo, doutora. Mas eu tenho um olho. Sempre enxerguei bem.

SÔNIA – Então se enxerga. Não deixa te machucarem mais. Você é boa. Foi boa comigo.

NORA – Já amanheceu. Tá na minha hora.

(Breve pausa. Elas se olham)

NORA - Bom, doutora. Nossas feridas já estão bem tratadas, né?

SÔNIA – Mas não pode descuidar. Tem que tratar de verdade, sem medo. Senão pode abrir de novo.

NORA – Tem ferida que demora mesmo de cicatrizar. E se voltar a doer?

SÔNIA – Vai voltar, filha. Vai voltar. Isso aqui, foi só um paliativo. (Engole, engole) Só um paliativo. CENA 22 Banheiro da casa de Samira. SAMIRA – Agora o lugar mais importante. Onde a senhora tem que caprichar na limpeza. Não pode ficar um cantinho de sujeira, não quero nem vestígio do que se faz por aqui, entende do que eu estou falando? Dona Carmem afirma com a cabeça. SAMIRA – Eu quero ele lavado todo o dia. A senhora passa o pano com álcool no piso e no azulejo depois de lavado. E antes da senhora ir embora mais uma passada de pano. O lixo, eu quero que troque três vezes por dia. E o armário todo limpo por dentro pelo menos uma vez por semana. Ah, tem uma coisa bem importante, Dona Carmem. Os remédios, as toalhas, os curativos, devem ser arrumados sempre dessa forma. Nessa ordem. A senhora não pode trocar de lugar. Está tudo etiquetado, é fácil manter a ordem, se prestar a atenção. A senhora quer perguntar alguma coisa? CARMEM - Não senhora.

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SAMIRA - Então vou te deixar trabalhar. Qualquer dúvida, me chame. (Vai sainda e volta) Ah, já ia me esquecendo. Os móveis do escritório. Quero que a senhora arraste pelo menos três vezes por semana, pra limpar atrás. Livros juntam muita poeira. CARMEM – Sim senhora. SAMIRA – Daqui a pouco eu venho ver se está do jeito que eu gosto. (Vai saindo e volta) Dona Carmem. CARMEM – Sim senhora. SAMIRA – Pode parecer exagero, mas eu espero que a senhora compreenda o quanto é importante. Tenho uma pessoa doente em casa. E a senhora há de entender o quanto uma pessoa doente precisa de atenção, cuidado e higiene. Tudo isso eu faço por ele. È o mínimo que eu posso fazer. Proporcionar um ambiente agradável, confortável, limpo. Fazer com que a pessoa doente sofra o menos possível. Uma pessoa que sente dor, merece pelo menos um pouco de cuidado, a senhora não acha? CARMEM – Acho. SAMIRA - Não faço isso só porque é meu marido. É uma questão de solidariedade com o próximo, entende? Carmem não diz nada. Samira sai. Carmem tenta dominar as dores que sente e, com esforço, começa a fazer o serviço. Luz cai em resistência. FIM