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SAMIZDAT 11 O Conde Lucanor um clássico da Literatura medieval espanhola www.samizdat-pt.blogspot.com dezembro 2008 ficina Nesta edição: Coelho Neto, Ricardo Palma, Camões e mais...

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Por que Samizdat?, Henry Alfred BugalhoENTREVISTACarlos Henrique IottiMICROCONTOSHenry Alfred BugalhoVolmar Camargo JuniorRECOMENDAÇÕES DE LEITURAO homo absurdus de Camus, Henry Alfred BugalhoJane Eyre, de Charlotte Brönte, Guilherme RodriguesOrgulho e Preconceito, de Jane Austen, Guilherme RodriguesAUTOR EM LÍNGUA PORTUGUESAO Duplo, Coelho NetoSonetos, CamõesCONTOSO Sabão Milagroso, Volmar Camargo JuniorO Aniversário de J.S.B., Henry Alfred BugalhoPaulette na cidade, Joaquim BispoConspiração ZHAARP, Dênis MouraPara que nos serve, Maria de Fátima SantosA Surpresa, Guilherme RodriguesPara lá do Muro, José Espírito Santo No Elevador, Zulmar LopesDezessete, Pedro FariaDescobertas, Marcia SzajnbokGosto Refinado, Pedro FariaAlice por trás do espelho, Giselle Natsu SatoTRADUÇÃOO Conde Lucanor, Don Juan ManuelA Festa de São Simão Esgaratujo, Ricardo PalmaTEORIA LITERÁRIAEnchendo Lingüística: Ficção sob Pressão, Volmar Camargo JuniorA Tese na Literatura, Henry Alfred BugalhoCRÔNICAErótico ou Pornográfico: eis a questão, Giselle Natsu SatoA Vida Continua, Joaquim BispoNossa história abandonada, Maristela Scheuer DevesPOESIALaboratório Poético - Indriso, Volmar Camargo JuniorUrbanidade, Carlos Alberto BarrosSOBRE OS AUTORES DA SAMIZDAT

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SAMIZDAT

11

O CondeLucanor

um clássico da Literatura medieval espanhola

www.samizdat-pt.blogspot.com

dezembro2008

ficina

Nesta edição: Coelho Neto, Ricardo Palma, Camões e mais...

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Edição, Capa e Diagramação:

Henry Alfred Bugalho

Autores

Carlos Alberto Barros

Dênis Moura

Giselle Natsu Sato

Guilherme Rodrigues

Henry Alfred Bugalho

Joaquim Bispo

José Espírito Santo

Marcia Szajnbok

Maria de Fátima Santos

Maristela Scheuer Deves

Pedro Faria

Volmar Camargo Junior

Zulmar Lopes

Textos de:

Camões

Coelho Neto

Don Juan Manuel

Ricardo Palma

Imagem da capa:REMBRANDT, Homem de Harmenszoon van Rijn usando um elmo dourado

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SAMIZDAT 11dezembro de 2008

Obra Licenciada pela Atribuição-Uso Não-Comercial-Vedada a Criação de Obras Derivadas 2.5 Brasil Creative Commons.

Todas as imagens publicadas são de domínio público ou royalty free.

As idéias expressas e a revisão das obras são de inteira responsabilidades de seus autores ou tradutores.

Editorial

Em janeiro, a Revista SAMIZDAT completerá um ano de existência.

Como um projeto completamente anárquico, com contribuições espontâneas, cada um selecionando o conteú-do que acredita ser interessante, com o mínimo de edição, conseguiu obter um nível de coerência e coesão é algo que provavelmente transcendeu as expectativas dos autores que compõem a equipe da revista.

Não há uma orientação ideológica que delimite nosso pro-jeto. As únicas intenções são: mostrar nosso trabalho literá-rio e trazer ao leitor um conteúdo de qualidade. Felizmente, conseguimos nos acercar de outros produtores culturais que compreendem a natureza deste projeto e que contribuem com ele da maneira que podem, seja através das entrevistas, seja através daqueles leitores que propagam a SAMIZDAT em seus sites ou blogs.

Às vésperas de cruzarmos o limiar de um ano de teimosia, nosso agradecimento será para nossos leitores: nossa grande motivação nesta longa e sinuosa estrada da Literatura.

Henry Alfred Bugalho

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SumárioPor quE Samizdat? 6

Henry Alfred Bugalho

ENtrEViStaCarlos Henrique iotti 8

miCroCoNtoSHenry Alfred Bugalho 12Volmar Camargo Junior 13

rEComENdaÇÕES dE LEiturao homo absurdus de Camus 14

Henry Alfred Bugalho

Jane Eyre, de Charlotte Brönte 17Guilherme Rodrigues

orgulho e Preconceito, de Jane austen 18Guilherme Rodrigues

autor Em LÍNGua PortuGuESao duplo 20

Coelho Neto

Sonetos 24Camões

CoNtoSo Sabão milagroso 26

Volmar Camargo Junior

o aniversário de J.S.B. 28Henry Alfred Bugalho

Page 4: SAMIZDAT11

Paulette na cidade 32Joaquim Bispo

Conspiração zHaarP 35Dênis Moura

Para que nos serve 36Maria de Fátima Santos

a Surpresa 38Guilherme Rodrigues

Para lá do muro 40José Espírito Santo

No Elevador 42Zulmar Lopes

dezessete 44Pedro Faria

descobertas 48Marcia Szajnbok

Gosto Refinado 47Pedro Faria

alice por trás do espelho 52Giselle Natsu Sato

traduÇÃoo Conde Lucanor 54

Don Juan Manuela Festa de São Simão Esgaratujo 68

Ricardo Palma

tEoria LitErÁriaEnchendo Lingüística: Ficção sob Pressão 61

Volmar Camargo Junior

a tese na Literatura 70Henry Alfred Bugalho

CrÔNiCaErótico ou Pornográfico: eis a questão 74

Giselle Natsu Sato

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a Vida Continua 76Joaquim Bispo

Nossa história abandonada 78Maristela Scheuer Deves

PoESiaLaboratório Poético - indriso 80

Volmar Camargo Junior

urbanidade 81Carlos Alberto Barros

SoBrE oS autorES da Samizdat 83

Agora o leitor da SAMIZDAT também pode colaborar com a elaboração da revista. Envie-nos suas sugestões, críticas e comentários.

Você também pode propor ou enviar textos para as seguintes seções da revista: Rese-nha Literária, Teoria Literária, Autores em Língua Portuguesa, Tradução e Autor Convi-dado.

Escreva-nos para:[email protected]

SEÇÃO DO LEITOR

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inclusão e Exclusão

Nas relações humanas, sempre há uma dinâmica de inclusão e exclusão.

O grupo dominante, pela própria natureza restritiva do poder, costuma excluir ou ignorar tudo aquilo que não pertença a seu projeto, ou que esteja contra seus prin-cípios.

Em regimes autoritários, esta exclusão é muito eviden-te, sob forma de perseguição, censura, exílio. Qualquer um que se interponha no cami-nho dos dirigentes é afastado e ostracizado.

As razões disto são muito simples de se compreender: o diferente, o dissidente é perigoso, pois apresenta alternativas, às vezes, muito melhores do que o estabe-lecido. Por isto, é necessário suprirmir, esconder, banir.

A União Soviética não foi muito diferente de de-mais regimes autocráticos. Origina-se como uma forma de governo humanitária, igualitária, mas logo

se converte em uma ditadu-ra como qualquer outra. É a microfísica do poder.

Em reação, aqueles que se acreditavam como livres-pensadores, que não que-riam, ou não conseguiram, fazer parte da máquina administrativa - que esti-pulava como deveria ser a cultura, a informação, a voz do povo -, encontraram na autopublicação clandestina um meio de expressão.

Datilografando, mimeo-grafando, ou simplesmente manuscrevendo, tais autores russos disseminavam suas idéias. E ao leitor era incum-bida a tarefa de continuar esta cadeia, reproduzindo tais obras e também as passando adiante. Este processo foi designado "samizdat", que nada mais significa do que "autopublicado", em oposição às publicações oficiais do regime soviético.

Por que Samizdat?

“Eu mesmo crio, edito, censuro, publico, distribuo e posso ser preso por causa disto”

Vladimir Bukovsky

Henry Alfred [email protected]

Foto: exenplo dum samizdat. Corte-sia do Gulag Museum em Perm-36.

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7www.samizdat-pt.blogspot.com

E por que Samizdat?

A indústria cultural - e o mercado literário faz parte dela - também realiza um processo de exclusão, base-ado no que se julga não ter valor mercadológico. Inex-plicavelmente, estabeleceu-se que contos, poemas, autores desconhecidos não podem ser comercializados, que não vale a pena investir neles, pois os gastos seriam maio-res do que o lucro.

A indústria deseja o pro-duto pronto e com consumi-dores. Não basta qualidade, não basta competência; se houver quem compre, mes-mo o lixo possui prioridades na hora de ser absorvido pelo mercado.

E a autopublicação, como em qualquer regime exclu-dente, torna-se a via para produtores culturais atingi-rem o público.

Este é um processo soli-tário e gradativo. O autor precisa conquistar leitor a leitor. Não há grandes apa-ratos midiáticos - como TV,

revistas, jornais - onde ele possa divulgar seu trabalho. O único aspecto que conta é o prazer que a obra causa no leitor.

Enquanto que este é um trabalho difícil, por outro lado, concede ao criador uma liberdade e uma autonomia total: ele é dono de sua pala-vra, é o responsável pelo que diz, o culpado por seus erros, é quem recebe os louros por seus acertos.

E, com a internet, os au-tores possuem acesso direto e imediato a seus leitores. A repercussão do que escreve (quando há) surge em ques-tão de minutos.

Ao serem obrigados a bur-larem a indústria cultural, os autores conquistaram algo que jamais conseguiriam de outro modo, o contato qua-se pessoal com os leitores, o diálogo capaz de tornar a obra melhor, a rede de conta-tos que, se não é tão influen-te quanto a da grande mídia, faz do leitor um colaborador, um co-autor da obra que lê. Não há sucesso, não há gran-

des tiragens que substitua o prazer de ouvir o respal-do de leitores sinceros, que não estão atrás de grandes autores populares, que não perseguem ansiosos os 10 mais vendidos.

Os autores que compõem este projeto não fazem parte de nenhum movimento literário organizado, não são modernistas, pós- modernistas, vanguardistas ou qualquer outra definição que vise rotular e definir a orientação dum grupo. São apenas escritores interessados em trocar experiências e sofisticarem suas escritas. A qualidade deles não é uma orientação de estilo, mas sim a heterogeneidade.

Enfim, “Samizdat” porque a internet é um meio de auto-publicação, mas “Samizdat” porque também é um modo de contornar um processo de exclusão e de atingir o objetivo fundamental da escrita: ser lido por alguém.

SAMIZDAT é uma revista eletrônica mensal, escrita, editada e publicada pelos integrantes da Oficina de Escritores e Teoria Literária. Diariamente são incluídos novos textos de autores consagrados e de jovens escritores amadores, entusiastas e profis-sionais. Contos, crônicas, poemas, resenhas literárias e muito mais.

www.samizdat-pt.blogspot.com

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88 SAMIZDAT dezembro de 2008

Entrevista

CarLoS HENriquE iotti

Carlos Henrique Iotti, 44 anos, gaúcho de Caxias do Sul, é colaborador dos jornais Pioneiro (www.pioneiro.com) e Zero Hora (www.zerohora.com), e tem vários livros publicados, princi-palmente de tiras com o perso-nagem Radicci.

Radicci, seu personagem mais famoso, foi criado em 1983, re-presentando um ítalo brasileiro (ou gringo, como ele mesmo diz) de temperamento forte, amante do vinho e do ócio. Casado com Genoveva, é pai de Guilhermino. O personagem Nono completa a típica família de descendentes de italianos.

Iotti tem ainda outros perso-nagens menos conhecidos, como a dupla de criação Deus e o Dia-bo, que competem entre si numa espécie de agência de criação e propaganda.

Além de atuar como char-gista e cartunista, inclusive com trabalhos na Itália, Iotti também tem programas na rádio e na TV (este último, Iotti Repórter, pela RBS).

Além de uma série de livros com as melhores charges, Iotti está lançando um DVD com o show onde interpreta seu perso-nagem.

Mais sobre o Iotti e seus personagens na página oficial do Radicci: http://www.radicci.com.br

Como você começou a desenhar? Seu trabalho foi desde o início direcio-nado para o humor?

Carlos H. Iotti: Sou for-mado em Jornalismo pela UFRGS e foi ainda na faculdade que criei o meu primeiro personagem. Era um guerrilheiro trapalhão chamado Ernesto Che da Silva, uma espécie de sátira ao movimento estudantil da época. De lá para cá outros personagens foram criados (como Frederico e Fellini, que conta a história de amor e ódio entre um menino e seu gato -, Deus e o Diabo, que são uma dupla de criação publicitária, Adão Hussein e o Radicci e a Genoveva) e aí de cara percebi que normalmente tudo que é trabalhado com humor fica mais leve, mais

digerível. É muito melhor ler uma charge do que um editorial, por exemplo. Sem esquecer que o edito-rial tem um mérito maior, quando bem escrito. Então me aventurei como jornalis-ta na área do cartunismo.

Como funciona o proces-so de criação de suas per-sonagens? O Radicci, por exemplo, de onde veio a inspiração?

O Radicci foi criado em 1983 para ser a síntese do nosso colono. Uma carica-tura do tipo italiano que aportou em 1875 e seus descendentes. Uma carica-tura dos hábitos, dos costu-mes e da fala dessa gente. Se é que é possível fazer uma caricatura disso.

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Ele é uma HQ regional. É muito conhecida no Sul do país, mas é uma tira regional. Eu acredito que o público se identifica com a família Radicci, pois ela fala do cotidiano, do dia a dia do colono. Que pode acontecer ali com o colono, mas que pode acontecer em outros lares, em outras formações.

Como é a tua relação com o Radicci? Tem gente que te confunde com ele?

Iotti: Às vezes há uma confusão entre criador e criatura e aí as pessoas esperam que eu me com-porte como o Radicci. Não fazem a distinção entre o Iotti e o intérprete do Ra-dicci. Isso sempre gera fatos engraçados, que até rendem repertório pras piadas mes-mo. Um dia, encontrei um colono ali do Desvio Rizzo (distrito de Caxias). Ele me olhou embasbacado e disse:- Oh, tu que é o Radicci?- Sim, sou eu!- Ma Dio! Até meio negro tu é! - Eu fiquei rindo, fazer o quê?Um dia fui a Ibiçá. Acho que toda a cidade estava reunida no salão paroquial. Eu tinha voltado da praia

e estava todo bronzeadão. Para realçar minha cor, co-loquei um terno branco, bo-nito. Entrei no salão e disse: “Alôôôô, guRRizada!”. Bem, tudo ficou no mais absoluto silêncio. Eu só ouvia o bater de asas de uma mariposa que estava rondando a lu-minária. E, no meio daquele vazio sonoro, alguém cochi-chou: “Bah, esse daí que é o Radicci?”. O pessoal fica um pouco decepcionado, sabe, porque espera que eu seja gordo e bonachão. Em cada lugar que eu vou é a mesma reação.

O que você lê?

Iotti: Leio de tudo. De bula de remédio a romance. Gosto muito de autores como Tabajara Ruas, Ernest Hemingway, livros com a temática de mar e guerra também vejo de tudo.

E que história foi essa de senador romano?

Iotti: Me convidaram a fa-zer parte de um movimento não-partidário, associativo, o que foi me convencedo no sentido de ver que sim, talvez fosse possível aju-dar de alguma forma os descendentes, as pessoas

com dupla cidadania, etc. O convite partiu mais para lidar com questões relativas à cultura, a intercambiar as coisas entre Brasil e Itália e obtive 14 mil votos. Fui o brasileiro mais votado e sou suplente de senador na Itália agora.

Há alguma técnica à qual você recorre para causar o riso? Conte-nos o seu segredo.

Iotti: Sou um tanto tímido, tenho de embarcar na onda dos personagens e aí vou me soltando. Na verdade não há nenhuma grande técnica assim.

Escrever sob prazos é um estímulo ou um obstáculo para você?

Iotti: Ter prazo é sempre um estímulo. Jornalista que não tiver prazo não escreve (risos).

Iotti, dê uma definição acadêmica para quem não conhece o “sotacón”. Quem são os falantes dessa variante lingüística? É português, é italiano, é gauchês...?

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Iotti: É uma variante que mistura o italiano e o por-tuguês – utilizando a foné-tica do colono, transpondo isso para a grafia sem nenhum filtro.

Quando ingressou na faculdade, sua intenção já era atuar como ilustra-dor ou você tinha outras aspirações?

Iotti: O desenho foi um caminho natural. Eu sim-plesmente não parei de desenhar, como de modo geral as pessoas fazem quan-do “crescem”.

A sua «du-pla da criação» foi objeto de protestos por parte de al-guns leitores. Como é que você lida com os protes-tos? Influenciam as suas

tiras futuras?

Iotti: Na verdade foi um editor que ficou com receio de publicar em virtude de uns leitores bem religiosos. A maioria das pessoas cos-tuma me dar um retorno bacana, mas polêmica sem-pre é bom, instiga a fazer mais coisas.

Qual considera o seu melhor desempenho: a imagem ou o texto? Qual custa mais a apurar?

Iotti: De-pende, tem dias que a imagem é melhor do que o texto e vice-versa.

Há quem diga que os quadrinhos já se aproximam de um patamar de arte, como uma forma de literatura

e não apenas um produto comercial. Qual é a tua opinião em relação a isso? E como você vê o espaço do cartunista nesse meio? Você se considera um artista?

Os quadrinhos aos poucos foram galgando um lugar muito legal, de espaço, de visibilidade, de patamar artístico também. Há sem-pre quadrinhos muito legais e gente que tem um traço que eu admiro muito. Eu gosto muito dos desenhistas locais. O Santiago e o Edgar Vasques são chargistas que eu conheço e admiro. Também tem o Jaguar, que é carioca, que foi editor do Pasquim, um marco no jornalismo brasileiro. Gosto ainda do Ziraldo e do Angeli, que é o criador do Chiclete com Banana e atualmente está fazendo as charges na Folha de São Paulo. A maioria do pessoal que lida com quadrinhos está lutando muito ainda

Se você quiser ser um chargista realmente, vai precisar de muita persistência.

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Coordenadora da entrevista:Maristela Deves

Perguntas feitas por:Volmar Camargo JuniorCarlos Alberto BarrosJoaquim BispoHenry Alfred BugalhoMaristela Deves

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para conseguir o seu lugar ao sol e ser reconhecido. Precisa existir uma valo-rização bem maior dentro dessa área. De todo modo, sempre tem surgido gente nova e a Internet é um meio muito bacana de divulga-ção desses trabalhos. Vira e mexe descubro alguma coisa diferente.

No seu site tem uns con-tos narrados em “sotacón”. Além disso, você escreves ficção em português? Já pensou, ou até já tentou, transpor as histórias do Radicci em forma de mi-crocontos?

Iotti: Na verdade o que faço são quase pequenas crôni-cas neste estilo do sotacón. De quando em vez aplico de escrever como o Radic-ci e acaba sendo divertido também.

Que dica, que recado, que recomendação você dá a

quem quer escrever hu-mor?

Iotti: Nunca desistam no primeiro “não”. Vocês vão receber vários deles durante a sua trajetória. Não tem espaço, não tem chance, não tem condições… Se desistir no primeiro “não”, não vai adiante. Tem que ser chato, tem que lutar. É um começo terrível, é uma verdadeira tragédia, porque o mercado é muito peque-no, limitado. Ou a pessoa abre o próprio mercado à base de muita perserve-rança, ou acaba indo para outro caminho, vai ser desenhista de publicidade ou algo parecido. Se você quiser ser um chargista realmente, vai precisar de muita persistência.

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microcontos

medalhista de ouroHenry Alfred Bugalho

Na modalidade “xixi à distância”, ninguém derrotava o Marquinhos.

as viravoltas da vidaHenry Alfred Bugalho

Na época da escola, todo mundo tirava sarro da “ girafa”, que corria para o banheiro chorar sozinha.Ano passado, ela foi a modelo mais bem paga do mundo.

Sexo virtualHenry Alfred Bugalho

— Ai, gozei! E você?Mal sabia ele que o computador dela havia pifado.

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Pequenos desencontros

Platão? que Platão?

Volmar Camargo Junior

— Ouvi dizer que todas as coisas do mun-do, um dia, existiram no mundo das idéias. Então, como podemos saber se na verdade, o mundo das idéias não é aqui? Às vezes, eu penso que sou apenas um personagem na imaginação de um escritor desocupado e...

[Estas foram as primeiras e as últimas pa-lavras de um personagem que não entrou em nenhuma das minhas histórias. Não tenho paciência para esses atrevimentos.]

Primeiro amorVolmar Camargo Junior

Orlando reconheceu na rua a menina por quem havia se apaixonado nos tempos do primário, e correu para dar-lhe um abraço. Thereza, abordada por um desco-nhecido com tamanha intimidade, achou que seria descortês dizer-lhe que foi um engano, mas evitou o contato físico. Sol-dado Juarez, à paisana, viu na cena um princípio de assalto, e com dois golpes fulminantes nocauteou e imobilizou o suspeito. Um cinegrafista amador filmou com a câmera do telefone celular a ação do policial responsável pela captura de Orlando Silva da Silva, estelionatário, que estava foragido havia meses. Nem depois de a foto do dito cujo sair nas manchetes dos noticiários Thereza associou aquela cara à do gorducho que lhe deu um beijo babado na quarta-série. Naquela época, ela só tinha olhos para o Roberto Carlos.

VoyeurismoVolmar Camargo Junior

Todos os dias, o menino espiava pelo bu-raco no muro do vizinho, e do outro lado via um gramado e, à distância, uma caba-na na árvore. Tocado pelo remorso, o pai esmerou-se para fazer um bela plataforma de madeira, sustentada pelos galhos da mangueira que havia em seu próprio pátio. Feliz da vida, o menino correu até seu baú de brinquedos, tirando de lá o binóculo que ganhara no Natal. Finalmente teria uma vista privilegiada da tão amada caba-ninha do quintal ao lado.

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recomendações de Leitura

o homo absurdus

de CamusHenry Alfred Bugalho

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Albert Camus é um dos grandes autores do século XX, e sua obra é um símbo-lo da crise epistemológica, ética e ontológica do Homem contemporâneo.

É impos-sível negar a influência que Nietzsche exerceu sobre o pensamen-to e arte do século XX. A ruptura irremediá-vel entre mundo de fato e o mundo inteligível, a relati-vização de todas as noções morais, a certeza de que não existem certezas e o fim de todo e qualquer sentido pai-rou sobre as filosofias da Eu-ropa continenal - de Husserl, de Heidegger, de Sartre, de Merleau-Ponty, de Foucault - , sobre todas as formas de expressão artística - o mo-dernismo, o surrealismo, o concretismo, o pós-modernis-mo - e também assombrou a Literatura.

Camus é um filho desta geração esvaziada de sentido. Dois temas são fundamentais para esta geração: o sentido da existência e a morte. Am-bas questões se interligam: se não existe um sentido para a vida, por que viver? O que me impede de me matar?

Para Sartre, o gênio in-telectual da época, cometer suicídio não era um ato imoral, aliás era um ato de

supremo exercício da liber-dade. O homem é livre, e tirar a própria vida é um ato de liberdade.

As duas primeiras obras de Camus abordam tais

problemas. Por um lado, temos uma obra ficcio-nal austera, com uma linguagem comedida e um enredo atômico: “O

Estrangeiro”; por outro lado, há uma obra filosófica, com uma linguagem que pare-ce se aproximar do estilo sartreano, dividida em vários ensaios, na qual tais questões são apresentadas explícita-mente: O Mito de Sísifo.

Temos de pensar nestas duas obras em paralelo, pois uma esclarece a outra.

Em O Estrangeiro, o prota-gonista é um sujeito chama-do Mersault. A obra é di-vida em duas partes:

- Na pri-meira delas, Mersault acompanha o velório e o enterro de sua pró-pria mãe. O protagonista é indiferente ao fato, age

quase mecanicamente, cum-prindo o protocolo. Logo após o sepultamento, retorna ao marasmo da sua existên-cia, que é quebrado quan-do Mersault assassina, sem nenhuma razão óbvia, um árabe na praia;

- Na segunda parte, assisti-mos ao julgamente do pro-tagonista. Ele é condenado à morte e, nos dias antes de sua execução, Mersault ana-lisa vários conceitos morais e sociais, sem identificar-se com eles, renegando-os. É a parte filosófica.

O protagonista move-se num universo ausente de sentido, realiza atos também desprovidos de sentido, não tem remoso, e só passa a fazer uma revisão de seus conceitos diante da presença inevitável da morte.

Em O Mito de Sísifo pos-suímos a explicitação teó-rica da prática literária de Camus. Nesta coleção de

ensaios, a tese básica pode ser resumida da seguinte maneira: “o Homem vive por causa da esperança do amanhã, mas cada dia que passa não o aproxima do futuro, e sim da morte. Mas o Ho-mem prefere

Quando o Homem compreende-se em sua absurdez, ele deixa de buscar o sentido, e passa a criá-lo.

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ignorar a presença da morte e vive uma vida de fingimen-to, considerando o mundo como familiar, quando, na verdade, o mundo é hostil, inóspito, absurdo e não for-nece respostas.”

A saída para este abismo - representado pelo absurdo da existência - não é o suicí-dio, por ela ser a negação da existência, mas sim a revolta. Quando o Homem compre-ende-se em sua absurdez, ele deixa de buscar o sentido, e passa a criá-lo.

A metáfora para este homo absurdus, para Camus, é o mito de Sísifo, aquele que, na mitologia grega, desa-fiou os deuses olímpicos e foi condenado a empurrar

uma rocha até o topo dum penhasco, por toda a eterni-dade. Toda vez que a rocha era carregada até o cimo, ela rolava morro abaixo. Sísifo deveria, então, perfazer esta tarefa inglória e sem sentido por toda sua existência. Para Camus, somos como Sísifo, realizando projetos e tarefas sem sentido e que sempre re-dundam em nada, ou condu-zindo-nos para a morte.

A obra deste autor francês, laureado pelo Prêmio Nobel em 1957, é profunda, apesar da superficial leveza, e causa o mal-estar de toda quebra de paradigmas.

O Estrangeiro

Autor: Albert Camus

Editora: Record

Publicação: 2001

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Jane Eyre é um romance gótico escrito pela escritora inglesa Charlotte Brontë e publicado pela primeira vez em 1847.

Jane Eyre, a personagem-protagonista, órfã de pai e mãe, vive terríveis dias na casa de seu tio após seu fa-lecimento. Passa a ser criada pela senhora Reed, esposa do falecido, uma pessoa cruel que a deixava presa num quarto escuro para amedrontá-la e afastá-la de seu filho John. O qual sem-pre batia na pobre e indefesa Jane. Certo dia, ela resolveu, então mandá-la para Lowood School cuja escola era des-tinada para crianças órfãs. Esta instituição, administrada pelo clérigo Brocklehurst, ho-mem religioso, mas de gestos desumanos e cruéis com seus subalternos. Ele, influencia-do pela senhora Reed, dizia ser ela uma menina rebelde, mentirosa e que não merecia a confiança de ninguém. No entanto, Jane encontrou uma aliada na escola, a senhorita Temple, a quem tinha amiza-de e a defendia dos impro-périos do administrador de Lowood School. Jane fez ami-zades com suas colegas, mas, infelizmente, a escola não era um lugar feliz e algumas de suas amigas vieram a

morrer. O tempo se passou, ela, uma mulher à frente de seu tempo, foi aprendendo as lições até se tornar profes-sora de Lowood School. No entanto, com a partida de sua amiga e aliada, a senhorita Temple, que havia se casado, procurou um novo trabalho.Então, Jane mudou-se para Thornfield Hall, a casa do senhor Edward, para cuidar da pequena Adele. Seu vín-culo como professora foi se ampliando e logo conseguiu com suas habilidades em línguas e pintura, também mexer com o senhor Edward.

Tudo do melhor que um romance gótico poderia ter. O cenário sombrio, o mis-terioso, o terror e a névoa envolvem o leitor para um mundo fantástico e sobrena-tural.

O livro pode ser consi-derado uma autobiografia de Charlotte Brontë, pois há muitas semelhanças entre ela e Jane Eyre. Eram órfãs, viveram em orfanatos, foram professoras e mulheres inde-pendentes.

Jane Eyre mostra que já naquela época a mulher, muito desprezada e encar-regada de cuidar das tarefas domésticas apenas, podia ser independente e demonstrar sua capacidade perante a sociedade.

Jane Eyre,de Charlotte Brönte

Guilherme Rodrigues

recomendações de Leitura

O livro pode ser considerado uma autobiografia de Charlotte Brontë, pois há muitas semelhanças entre ela e Jane Eyre.

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1818 SAMIZDAT dezembro de 2008

Orgulho e Preconceito é o romance mais popular da escritora inglesa Jane Austen. Foi publicado pela primeira vez em 1813 e chegou a se chamar Primeiras Impressões. embora nunca impresso com este título. A História nos é apresentada de uma manei-ra inteligente e cômica e com um estilo sarcástico em que as personagens nos são reveladas aos poucos.

Na Inglaterra rural do século XVII a chegada ao local do milionário sr. Darcy, uma pessoa muito bonita e fria, cria gran-de expectativa dentro da família Bennet. A sr.ª Bennet, até então desconsolada com as filhas ainda não casadas, tem esperança de que uma delas irá conquistar o jovem aristocrata.

O romance conta sobre as filhas de uma família campestre, sobretudo o ódio e amor entre Elizabeth e o sr. Darcy. Ela cria preconceitos sobre ele, que a insultou no baile, e nos comentários maldosos dos amigos. Um não declara amor pelo ou-tro de princípio, eles relutam. No entanto, enquanto ela se ocupa com os romances e escândalos das suas irmãs, se encontra novamente na companhia dele. Progres-sivamente as suas opiniões em relação a este jovem começam a mudar. Darcy é um homem orgulhoso por ser o mais rico das redondezas, e se sente superior àquelas pessoas do campo, considerando-as boê-mias e preconceituosas. Com o desenrolar

da trama, Darcy e Elizabeth revelam o amor que um sente pelo outro.

Jane, a filha mais velha dos Bennet, é uma jovem muito bonita com uma perso-nalidade cativante. O sr. Bingley, o amigo de Darcy, apaixona-se por ela.

Lydia, a filha mais nova, mimada pela mãe, é vaidosa e frágil que nunca pensa nas conseqüências dos seus atos, foge com o jovem Wikham, que nada vale, e coloca o nome desta família em perigo.

A história se mantém atual mesmo nos dias de hoje que mostra o preconceito por diferentes classes sociais e o amor juvenil e leviano; e a influência e manipulação das famílias para conseguirem uma situação melhor, preocupados com os olhares da sociedade.

orgulho e Preconceito,de Jane austen

Guilherme Rodrigues

recomendações de Leitura

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ficina

A Oficina Editora é uma utopia, um não-lugar. Apenas no século XXI uma vintena de autores, que jamais se encontraram fisicamente, poderia conceber um projeto semelhante.

O livro, sempre tido em conta como umas das principais fontes de cultura, tornou-se apenas um bem de consumo, tornou-se um elemento de exclusão cultural.

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2020 SAMIZDAT dezembro de 2008

autor em Língua Portuguesa

o duPLo- Temos, então, um caso

de desdobramento da per-sonalidade do meu querido amigo?

- Quem te disse ?

- Laura.

Benito Soares ficou um momento encarado no coronel. Por fim, meneando com a cabeça, desabafou contrariando:

- Laura... Laura faz mal

em andar contando essa história por aí.

- Que tem?

- Ora! Que tem... Há dias, em casa do Leivas, pouco faltou para que eu rompesse com o Malveiro, a propósito do que se deu comigo, e que lhe contaram não sei onde, entendeu que me devia tomar à sua conta, expondo-me à risota de uns petimetres ridículos que o cercam. Fiz-lhe sentir que não me agradavam os seus

remoques e deixei-o com os tais mocinhos, que lhe aplaudem os versos quando ele lhes paga a cerveja ou o chá, aí por essas casas. Não ando a pregar dou-trinas: não sou sectário, não freqüento sessões nem leio, sequer, as tais obras de propaganda que pretendem revelar o que se passa no Além da morte. Sou religio-so à velha moda, observan-do a doutrina que aprendi, ainda que não ande beata-

Coelho Neto

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mente pelas igrejas de círio e ripanço. Cumpro rigoro-samente os Mandamentos e os marcos que limitam a minha Crença são os qua-tro evangelistas; fora de tais “termos” não dou um passo - nem para diante, seguin-do os reformadores, que pregam o novo Credo, nem para trás acercando-me de altares pagãos ou adorando ídolos grosseiros. Onde me deixaram meus pais, que foram os meus iniciadores, aí ficarei até morrer.

Contei a Laura a tal história como contaria um acidente qualquer de rua, sem cuidar que ela fizesse do caso assunto de palestra nos salões que freqüenta.

O resultado disso é o que se está dando comigo, aborrecendo-me, irritando-me, porque desconfio de to-dos os olhares e, se alguém sorri à minha passagem, imaginando que comenta o meu caso, fico logo pelos cabelos.

- Mas, afinal, como foi? Comigo podes abrir-te sem receio. Sabes que, além de discreto, não sou dos que zombam do sobrenatural. Os fatos ai estão: produ-zem-se, reproduzem-se e, se ninguém os explica, muitos dão deles testemunho e provas e eles, efetivamente, manifestam-se visível, sensi-velmente.

Os cépticos encolhem os ombros sorrindo, os adver-sários, à falta de argumen-tos com que os destruam,

bradam contra os que os apregoam. A verdade, porém, é que nos achamos diante de uma porta de bronze que nos veda um grande mistério, ou melhor - Mistério.

Mas já é muito havermos chegado à porta. Sente-se que além dos túmulos, que são limiares de outro mun-do, há alguma coisa que... ninguém sabe o que é.

A porta mantém-se fechada, deixando apenas passar um rastinho de luz no qual flutuam indícios, revelações vagas, como áto-mos nos raios de sol. Mas deixemos as dissertações para mais tarde. Vamos ao teu caso. Foi, então, um des-dobramento da tua persona-lidade...?

- Não sei que foi. Digo-te apenas que passei os mi-nutos mais angustiosos da minha vida.

Saindo do Alvear, subi vagarosamente a Avenida até a Tabacaria Londres, onde comprei charutos e estive um instante a con-versar com o Borges sobre coisas da vida. O Borges anda com a mania dos Marcos; possuí não sei quantos milhões, e espera que a Alemanha recompo-nha as finanças para atur-dir-nos, a nós e ao mundo, com a vida maravilhosa que tem toda em plano. O que me está parecendo é que o pobre está com o juízo em pior estado de que as finan-ças germânicas. Enfim, dei-

xando o Borges, dirigi-me, sem mais empeços, para a Galeria, onde comprei os jornais.

O meu bonde apareceu logo e logo foi assaltado. Não consegui uma ponta e fiquei entalado no banco da frente, entre um obeso cavalheiro ruivo e uma ma-trona anafada, dessas que se esparralham.

O bonde partiu e, opri-mido pelas duas enxúndias, dificilmente consegui abrir um dos jornais. Pus-me a ler, ou antes: a olhar a pá-gina porque, em verdade, a minha atenção vagueava, aí por longe. Os olhos passe-avam pelas palavras, sem que o espírito lhe colhesse o sentido, como deve acon-tecer com os aviadores que vêem, de muito alto, todo o panorama de uma cidade em mancha, sem distinguir os bairros, as ruas, os edifí-cios, apenas o alvejamento das casas, a placa cintilante do mar, o relevo dos mon-tes. Sentia-me atraído por alguma coisa. Voltei página do jornal - a mesma confu-são, o mesmo empastamen-to. Foi então, que levantei a cabeça, olhando em frente e vi, meu amigo, vi...!

- Viste...?

- A mim mesmo, a mim! Eu, eu em pessoa sentado defronte de mim, no ban-co da frente, que dá costas à plataforma. Era eu, eu! como refletido em um espelho, e certo estremeci vivamente, incomodando os

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meus companheiros laterais, porque ambos voltaram-se encarando-se de má som-bra.

Pasmado, sem poder desfitar os olhos daquele reflexo, que era, em tudo, eu: nas feições, na atitude, no trajo, não parecido, mas reproduzido em exterioriza-ção, pensei de mim comigo:

“Se tal se dá é que o meu espírito, alma, ou lá o que seja, exalou-se de mim, deixando-me apenas o cor-po, como a borboleta deixa o casulo em que se opera a metamorfose. Assim, pois, o que ali se achava, no bon-de, era uma massa inerte, sustida pelos dois corpanzis que ladeavam. E, em menos de um segundo, vi todo o horror da cena, que seria cômica, se não fosse trágica, que se daria com a retirada de um daqueles gordos.

Desamparado, o meu corpo vazio tombaria. Dar-se-ia, então, o alarma: todos os passageiros de pé, a verificação da minha morte, o reconhecimento do meu cadáver pelo condutor e a minha entrada fúnebre em casa”.

Que angústia, meu ami-go! E o outro lá estava em frente a olhar-me, como se gozasse com o meu sofri-mento. Lembrei-me, então, de fazer um movimento com os braços, com as mãos; o receio, porém, de ser a minha vontade aten-dida pelos nervos fez-me hesitar. Mas eu pensava,

raciocinava. Sim, mas o corpo não esfria de repente e tais pensamentos e tais raciocínios podiam ser ain-da restos de energia d’alma que me houvessem ficado nas células, como fica nas polias o movimento ainda depois do motor parado.

Sentia-me rígido, petri-ficado e tinha a sensação de frio, como se me fosse congelando, a começar pelos pés. E o outro sempre encarado em mim.

Fiz um esforço supremo como se quisesse levantar o bonde com todos os pas-sageiros que ele continha e, arremessando os braços, pus-me de pé.

A matrona levantou a cabeça com atrevimento e olhou-me com tal carranca que eu pensei que me fosse agatafunhar ou, com a força dos braços, que eram duas coxas, atirar-me do bonde abaixo e o ruivo roncou ameaçadoramente, apru-mando a cabeçorra quadra-da de ulano com entono de desafio.

Mas que me importavam ameaças A minha alegria era grande e tornou-se maior quando, ao procurar com os olhos o meu outro “eu”, não o vi mais.

Teria descido? Não ! Não descera. Tornara a mim, atraído pela vontade, na ânsia de viver, no desespero em que me vi, só compará-vel ao de alguém que, indo ao fundo, sem saber nadar,

debate-se agoniadamente conseguindo elevar-se à tona e gritar a socorro.

E tudo isso, meu ami-go, não durou, talvez, um minuto e eu guardo de tais instantes a impressão penosa de um século de sofrimento.

Eis o meu caso, o caso que tantos aborrecimentos me tem trazido pela taga-relice de Laura, a quem o contei, e que o repete por aí, a todo o mundo.

E crença que D. Juan de Maraña, encontrando-se, certa noite, com um sai-mento, perguntou a um dos que conduziam o esquife: ‘~ Quem era o morto?” E logo lhe foi respondido:

- É D. Juan de Maraña. Querendo o fidalgo verifi-car o que lhe dizia o farri-coco e outros sinistramente repetiam, afastou o sudário e viu. Efetivamente: o de-funto era ele. E tal visão foi que o levou ao arre-pendimento. Pois comigo a coisa foi num bonde. Eu vi-me, como te estou vendo; a mim, entendes? a mim! Como explicas tal coisa?

- Essas coisas, meu amigo, não se explicam: registam-se, são observações, fatos, elementos para a Ciência do Futuro, que será, talvez, Ciência da Verdade.

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Henrique Maximiano Coelho Neto (Caxias, 21 de fevereiro de 1864 — Rio de Janeiro, 28 de novembro de 1934) foi um escritor, político e professor brasileiro.

Nascido em épocas antes na vila de Caxias interior do Maranhão. Foram seus pais Antônio da Fonseca Coelho, português, e Ana Silvestre Co-elho, de sangue índio. Tinha seis anos quando seus pais se transferiram para o Rio. Fez os seus preparatórios no Externato do Colégio Pedro II. Tentou o curso de Medici-na, logo desistindo. Em 1883 matriculou-se na Faculdade de Direito do Largo de São Fran-cisco, morando na pensão em que vivia Raul Pompéia, que também frequentava a Acade-mia de São Paulo à época. Seu espírito irrequieto encontrou ali ótimo ambiente para deste-midas expansões, e logo ele se viu envolvido num movimen-to dos estudantes contra um professor. Antevendo represá-lias, transferiu-se para a facul-dade de Recife, onde comple-tou o primeiro ano de Direito, tendo sido aluno do jurista e poeta Tobias Barreto. Regres-sando a São Paulo, dedicou-se ardentemente à campanha abolicionista e republicana, atitute que rendeu-lhe novos atritos com o corpo docente da Faculdade do Largo de São Francisco. Em 1885 desistiu, por fim, de suas pretensões jurídicas, e transferiu-se para o Rio de Janeiro.

Fez parte do grupo de boêmios que abrangia figuras da monta de Olavo Bilac, Luís Murat, Guimaraens Passos e Paula Ney. A história dessa geração apareceria depois em seus romance A Conquista e Fogo Fátuo, dedicado este ao amigo Francisco de Paula Ney, jornalista e brilhante orador

conhecido por sua boemia e seu célebre anedotário. Tor-nou-se companheiro assíduo de José do Patrocínio, na cam-panha abolicionista. Ingressou no jornal Gazeta da Tarde, passando depois para a folha Cidade do Rio, onde chegou a exercer o cargo de secretário. Desta época datam seus pri-meiros volumes publicados.

Em 1890, contraiu matri-mônio com Maria Gabriela Brandão, filha do educador Alberto Olympio Brandão. Tiveram 14 filhos.

Foi nomeado para o cargo de secretário do Governo do Estado do Rio de Janeiro e, no ano seguinte, diretor dos Ne-gócios do Estado. Em 1892, foi nomeado professor de História da Arte na Escola Nacional de Belas Artes e, mais tarde, pro-fessor de Literatura do Colégio Pedro II. Autor de numero-sos livros, artigos, crônicas e folhetins, em 1910, foi nome-ado professor de História do Teatro e Literatura Dramática da Escola de Arte Dramática, sendo logo depois diretor do estabelecimento.

Eleito deputado federal pelo Maranhão, em 1909, e reeleito em 1917. Foi também secre-tário-geral da Liga de Defesa Nacional e membro do Con-selho Consultivo do Theatro Municipal do Rio de Janeiro.

Além de exercer os car-gos públicos, Coelho Neto manteve e multiplicou a sua atividade em revistas e jornais de todos os feitios, no Rio e em outras cidades. Além de assinar trabalhos com seu próprio nome, escrevia sob inúmeros pseudônimos, entre eles Anselmo Ribas, Caliban, Ariel, Amador Santelmo, Blan-co Canabarro, Charles Rouget, Democ, N. Puck, Tartarin, Fur-Fur, Manés.

Em 1923, converteu-se ao Espiritismo.

Cultivou praticamente todos os gêneros literários e foi, por muitos anos, o escri-tor mais lido do Brasil, tendo, provavelmente a sua maior consagração ao ser nomeado, em votação aberta ao público promovida pela revista O Ma-lho, o "Príncipe dos Prosadores Brasileiros", em 1928.

Foi provavelmente o pro-sador brasileiro mais lido nas primeiras décadas do século XX, tendo sofrido sua pessoa e sua obra furiosos ataques do Modernismo posterior à Semana de Arte Moderna de 1922, o que provavelmente colaborou no injusto esqueci-mento que o mercado edito-rial e os leitores brasileiros tem-lhe reservado. Para o cinema, escreveu o que seria o primeiro filme brasileiro em série, Os mistérios do Rio de Janeiro, do qual só foi termi-nado e lançado o primeiro episódio.

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2424 SAMIZDAT dezembro de 2008

autor em Língua Portuguesa

Camões

SoNEtoSXIXAlma minha gentil, que te partiste

Tão cedo desta vida descontente,

Repousa lá no Céu eternamente,

E viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento Etéreo, onde subiste,

Memória desta vida se consente,

Não te esqueças daquele amor ardente,

Que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te

Alguma cousa a dor que me ficou

Da mágoa, sem remédio, de perder-te,

Roga a Deus, que teus anos encurtou,

Que tão cedo de cá me leve a ver-te,

Quão cedo de meus olhos te levou.

XXVIIMales, que contra mim vos conjurastes,

Quanto há-de durar tão duro intento?

Se dura, por que dure meu tormento,

Baste-vos quanto já me atormentastes.

Mas se assim porfiais, porque cuidastes

Derribar o meu alto pensamento,

Mais pode a causa dele, em que o sustento,

Que vós, que dela mesma o ser tomastes.

E pois vossa tenção com minha morte

É de acabar o mal destes amores,

Dai já fim a tormento tão comprido.

Assim de ambos contente será a sorte:

Em vós por acabar-me, vencedores,

Em mim porque acabei de vós vencido.

LXXXIAmor é um fogo que arde sem se ver;

É ferida que dói, e não se sente;

É um contentamento descontente;

É dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;

É um andar solitário entre a gente;

É nunca contentar-se e contente;

É um cuidar que ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;

É servir a quem vence, o vencedor;

É ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor

Nos corações humanos amizade,

Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

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Luís Vaz de Camões (c. 1524 — 10 de Junho de 1580) é fre-quentemente considerado como o maior poeta de língua portuguesa e dos maiores da Humanidade. O seu génio é comparável ao de Virgílio, Dante, Cervantes ou Shakespeare. Das suas obras, a epopéia Os Lusíadas é a mais significativa.

Desconhece-se a data e o local onde terá nascido Camões. Admite-se que nasceu entre 1517 e 1525. A sua família é de origem galega que se fixou na cidade de Chaves e mais tarde terá ido para Coimbra e para Lisboa, lugares que reivindicam ser o local de seu nascimento. Frequentemente fala-se também em Alenquer, mas isto deve-se a uma má interpretação de um dos seus sonetos, onde Ca-mões escreveu "[…] / Criou-me Portugal na verde e cara / pátria minha Alenquer […]". Esta frase isolada e a escrita do soneto na primeira pessoa levam as pessoas a pensarem que é Camões a falar de si. Mas a leitura atenta e com-pleta do soneto permite concluir que os factos aí presentes não se associam à vida de Camões. Ca-mões escreveu o soneto como se fosse um indivíduo, provavelmen-te um conhecido seu, que já teria morrido com menos de 25 anos de idade, longe da pátria, tendo como sepultura o mar.

O pai de Camões foi Simão Vaz de Camões e sua mãe Ana de Sá e Macedo. Por via paterna, Camões seria trineto do trovador galego Vasco Pires de Camões, e por via materna, aparentado com o navegador Vasco da Gama.

Entre 1542 e 1545, viveu em Lisboa, trocando os estudos pelo ambiente da corte de D. João III, conquistando fama de poeta e feitio altivo.

Viveu algum tempo em Coimbra onde teria freqüentado o curso de Humanidades, talvez no Mosteiro de Santa Cruz, onde tinha um tio padre, D. Bento de Camões. Não há registos da passagem do poeta por Coimbra. Em todo o caso, a cultura refinada dos seus escritos torna a única universidade de Portugal do tem-po como o lugar mais provável de

seus estudos.Ligado à casa do Conde de

Linhares, D. Francisco de Noro-nha, e talvez preceptor do filho D. António, segue para Ceuta em 1549 e por lá fica até 1551. Era uma aventura comum na carreira militar dos jovens, recordada na elegia Aquela que de amor desco-medido. Num cerco, teve um dos olhos vazados por uma seta pela fúria rara de Marte. Ainda assim, manteve as suas potencialidades de combate.

De regresso a Lisboa, não tarda em retomar a vida boémia. São-lhe atribuídos vários amores, não só por damas da corte mas até pela própria irmã do Rei D. Manuel I. Teria caído em des-graça, a ponto de ser desterrado para Constância. Não há, porém, o menor fundamento documental de que tal fato tenha ocorrido. No dia de Corpus Christi de 1552 entra em rixa, e fere um certo Gonçalo Borges. Preso, é libertado por carta régia de perdão de 7 de Março de 1553, embarcando para a Índia na armada de Fernão Álvares Cabral, a 24 desse mesmo mês.

Chegado a Goa, Camões toma parte na expedição do vice-rei D. Afonso de Noronha contra o rei de Chembe, conhecido como o "rei da pimenta". A esta primeira expedição refere-se a elegia "O Poeta Simónides falando". Depois Camões fixou-se em Goa onde escreveu grande parte da sua obra épica. Considerou a cidade como uma "madrasta de todos os homens honestos" e ali estudou os costumes de cristãos e hindus, e a geografia e a história locais. Tomou parte em mais expedi-ções militares. Entre Fevereiro e Novembro de 1554 integrou a Armada de D. Fernando de Mene-ses, constituída por mais de 1000 homens e 30 embarcações, ao Golfo Pérsico, aí sentindo a amar-gura expressa na canção "Junto de um seco, fero e estéril monte". No regresso foi nomeado "provedor-mor dos defuntos nas partes da China" pelo Governador Francisco Barreto, para quem escreveria o "Auto do Filodemo".

Em 1556 partiu para Macau,

onde continuou os seus escritos. Viveu numa gruta, hoje com o seu nome, e aí terá escrito boa parte d'Os Lusí-adas. Naufragou na foz do rio Mekong, onde conservou de forma heróica o manuscrito da obra, então já adiantada (cf. Lus., X, 128). No desastre teria morrido a sua companheira chinesa Dina-mene, celebrada em série de sonetos. É possível que datem igualmente dessa época ou tenham nascido dessa dolorosa experiência as redondi-lhas "Sôbolos rios".

Regressou a Goa antes de Agosto de 1560 e pediu a protec-ção do Vice-rei D. Constantino de Bragança num longo poema em oitavas. Aprisionado por dívidas, dirigiu súplicas em verso ao novo Vice-rei, D. Francisco Coutinho, conde do Redondo, para ser liberto.

De regresso ao reino, em 1568 fez escala na ilha de Moçambique, onde, passados dois anos, Diogo do Couto o encontrou, como relata na sua obra, acrescentando que o poeta estava "tão pobre que vivia de amigos" (Década 8.ª da Ásia). Trabalhava então na revisão de Os Lusíadas e na composi-ção de "um Parnaso de Luís de Camões, com poesia, filosofia e outras ciências", obra roubada. Diogo do Couto pagou-lhe o resto da viagem até Lisboa, onde Ca-mões aportou em 1570. Em 1580, em Lisboa, assistiu à partida do exército português para o norte de África.

Faleceu numa casa de Santana, em Lisboa, sendo enterrado numa campa rasa numa das igrejas das proximidades. Os seus restos encontram-se atualmente no Mos-teiro dos Jerónimos.

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Contos

o Sabão milagroso

Lavadeiras (detalhe)Cândido Portinarióleo sobre tela1944

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Volmar Camargo [email protected]

No tempo em não existia nem água encana-da, instalou-se na cidade uma fábrica de sabão. Era uma coisa de outro mun-do, porque desde sempre só se usava daquele sabão brabo feito em casa. Os ingredientes eram coisas comuns, como banha de porco, soda, cinzas, essas coisas. O sabão da fábri-ca, coisa fina, tinha um componente que até então ninguém havia sentido falta: perfume. Depois que as primeiras barras apare-ceram — tanto no Mercado Público quanto no Bolichão do Ataliba, as donas-de-casa abandonaram com-pletamente o sabãozinho caseiro. Em pouco tempo, ninguém mais sabia a receita.

Bom, dizer ninguém é um exagero. Uma pessoa ainda sabia.

Dona Maricota era uma mestiça de gringa com bugre, gorducha, que a essa época já estava meio senil. Era do tipo de gente para quem o século XIX não tinha acabado, nem o século XX tinha começa-do, nem sabia nada dessa coisa de séculos. Pois Dona Maricota não se importava com o perfume do sabão da fábrica – e insistia em teimar com as comadres que sabão perfumado não servia para lavar roupa.

A fábrica estava tendo êxito, mandando carrega-mentos para os quatro can-tos do Rio Grande, quando o proprietário da fábrica, Doutor Jorge Gusmão, En-genheiro Químico, (cha-mado às escondidas “Jorge Sabão”) tomou conhecimen-to que as vendas estavam diminuindo drasticamente na cidade-sede da fábrica. Percorrendo Pereirópolis ele mesmo, de vendinha em vendinha, e mesmo no “mercadão” do finado Malaquias, encontrou cai-xas empoeiradas do sabão perfumado, encalhadas nas prateleiras e nos depósitos. “Agora, só querem saber do sabão milagroso da Dona Maricota” diziam os co-merciantes.

Doutor Jorge Gusmão, Engenheiro Químico, quis conhecer o produto da concorrência.

A primeira coisa que notou era que o sabão da Dona Maricota não tinha cheiro algum. A textura era muito parecida a de uma... pedra-sabão. Subme-teu-o a todos os testes quí-micos possíveis para saber de que era feito – e para sua grata surpresa, não tinha nenhum dos compo-nentes importados do seu. O problema foi quando submeteram o tal “sabão milagroso” ao teste defi-nitivo: o tanque de roupa suja. Doutor Jorge Gusmão, Engenheiro Químico, não conseguia acreditar quan-

do suas técnicas-lavadeiras terminaram com quase quinhentos quilos de rou-pa suja sem diminuir um milímetro. E, ainda mais estranho, ficava tudo impe-cavelmente limpo, sem nem precisar deixar quarando.

Formou-se o rebuli-ço. Doutor Jorge Gusmão investiu do próprio dinhei-ro para adquirir todas as barras do sabão milagroso da concorrente. Vendeu o carro alemão, os ternos italianos, o cavalo árabe e as botas de Uruguaiana. Comprou para Dona Ma-ricota uma fazendinha na França, garantindo-lhe uma formidável aposentadoria que, em dinheiro de hoje, daria uns bons cinco mil por mês.

O sabão perfumado voltou a ser um sucesso. Doutor Jorge Gusmão, En-genheiro Químico, teve que inventar muitas variedades para poder manter a con-corrente bem longe.

Dona Maricota, todavia, nem lembrava mais de Pe-reirópolis. A última notícia que se teve dela é que os vinicultores da Borgonha andavam arrancando os cabelos por causa de uma certa velhinha que apren-deu a fabricar champanha. Dizem que as garrafas que ela vendia, por mais que se bebesse, não esvaziavam nunca.

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2828 SAMIZDAT dezembro de 2008

O Aniversário

de J.S.B.Henry Alfred Bugalho

[email protected]

Contos

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Em 1999, a revista Der Spiegel publicou um artigo intitulado “Era Bach o melhor?”; conse-qüência duma exuma-ção feita no cemitério de Leipzig. Foi quando a seguinte história veio à tona.

Durante as comemo-rações do aniversário de sessenta anos de Johann Sebastian Bach, um con-curso foi organizado para determinar quem era o melhor organista da Europa.

Na verdade, o intuito era apenas confirmar o que todos — concorren-tes, jurados e até o pró-prio homenageado — já sabiam: Bach era o maior dos virtuosi.

Músicos de todos os países, de todas as ci-dades e paróquias se congregaram em Leipzig para o festival, com dura-ção de três dias.

Os moradores deco-raram as casas e as ruas, mais cheias de vida do que nunca, invadidas pela multidão de pessoas e idiomas, artistas e curio-sos.

Cada um dos concor-rentes poderia praticar por algumas horas no magnífico órgão da Igreja de São Nicolau e se pre-

http://www.flickr.com/photos/giefferre/2878541901/sizes/o/

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parar para o embate. No entanto, Bach não conse-guiu conter a ansiedade e, durante os ensaios, se escondeu num canto da igreja para ouvir e cons-tatar a perícia dos desa-fiantes.

Após todos terem dei-tado os dedos no teclado do órgão, um dos orga-nizadores da celebração indagou Bach:

— E então? São bons músicos?

— Todos, sem exceção. Aqui estão os melhores do mundo.

O organizador limpou com um lenço o suor que lhe escorria pelas têmporas:

— E dará tudo certo? Imagino que nenhum de-les se equipare a você.

— Eu não teria tanta certeza... — Bach gaguejou — Há um jovem com um talento extraordinário, muito mais hábil do que eu.

— Impossível! Sua ins-piração é divina, Sr. Bach.

— Se minha inspira-ção é divina, então é a própria mão de Deus que toca através daquele rapaz. Se quisermos ser justos, o título de melhor organista do mundo de-

verá ser dado a ele.

Os organizadores des-cobriram que o jovem se chamava Wolfram Benja-min, organista em Ham-burgo, na casa dos trinta anos, genial e arrogante. Nem mesmo a ausência do pé esquerdo — am-putado por causa dum tumor — reduzia sua desenvoltura nas peda-leiras. Além de brilhante intérprete, era um com-positor incomparável. A constatação de que Bach não mentia os levou ao desespero, o festival seria arruinado.

A data do aniversário chegou e, um a um, os competidores se apre-sentaram. Bach assistia a tudo em silêncio, sentado na primeira fila.

Mas em nenhum dos três dias Wolfram Benja-min tocou. Ele simples-mente não compareceu ao desafio.

A última apresentação foi de Johann Sebastian Bach.

O clamor se ergueu, de boca em boca, pelas ruas de Leipzig: Bach havia vencido.

Isto até 1994, quando foram necessárias refor-mas no cemitério da igre-ja. Numa cova sem iden-

tificação, encontraram a ossada dum homem, pé esquerdo amputado.

Pesquisadores estuda-ram os restos mortais, vasculharam documentos da congregação, manus-critos e concluíram: aque-le era Wolfram Benjamin, assassinado com um golpe de objeto rombudo no crânio.

O escândalo se ins-taurou no mundo da música, vários críticos, musicólogos e especialis-tas se posicionaram em lados distintos da disputa, alguns defendiam a ge-nialidade de Bach, outros, a interrompida carreira dum prodígio.

O governo de Ham-burgo exigiu retratação por parte do de Leipzig, além da redação duma nota pública expondo os fatos e afirmando que o organista hamburguense teria morrido por causa dum único crime — ser melhor do que Bach.

Leipzig não cedeu, ale-gou desconhecimento do assunto e, segundo dizem, ocultou evidências, des-truiu documentos histó-ricos, tudo para apagar quaisquer vestígios da presença de Benjamin durante o aniversário de J. S. Bach.

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O artigo de Der Spie-gel, poucos anos depois, reacendeu o debate. Os defensores de Benjamin requisitaram ao Kremlin o envio das partituras e do caderno de notas do organista. Alegaram que, durante a ocupação sovi-ética, os russos apreende-ram tais documentos nas dependências da igreja, mas os diretores do Kremlin negaram pos-suir qualquer informação sobre isto.

E a contenda pros-segue, com acusações, mentiras e evidências duvidosas.

Talvez, um dia, encon-tremos o busto Wolfram Benjamin nas galerias da História e a epígrafe: “o melhor organista do mundo”; ou talvez sua imagem mais uma vez se desvaneça, restando ape-nas a imorredoura glória de J. S. B.

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3232 SAMIZDAT dezembro de 2008

Contos

Joaquim Bispo

Paulette na cidade

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Paulette, a Castanha, não queria acabar comida por um esquilo. Nem a sua am-bição era ficar lá pela terra e um dia gerar um grande castanheiro.

– Maior e mais majestoso que o papá – chilreavam de entusiasmo as irmãs.

Antes de tomar qualquer decisão, queria saber o que havia para lá da curva do caminho. Um dia, de ma-nhãzinha, disse adeus às duas irmãs, que se man-tinham no aconchego do ouriço familiar, e partiu em direcção a Sul. A meio da manhã, encontrou outra Castanha como ela, mas mais anafada.

– Olá! Quem és tu e para onde vais? – perguntou Paulette.

– Sou uma Castanha da Índia e vou para a cidade. Uma prima arranjou-me trabalho – respondeu a ou-tra radiosa nas suas boche-chas luzidias.

– Então vamos as duas!

Mais à frente encontra-ram uma espécie de casta-nha pequenina e redondi-nha.

– Olá! Quem és tu e para onde vais? – perguntou a Castanha?

– Sou uma Avelã e vou para a cidade. Quero ga-

nhar dinheiro.

– Então vamos as três!

Por volta do meio-dia, num cruzamento, encontra-ram outras duas.

– Olá! Quem são vocês e para onde é que vão? – dis-se a Castanha da Índia, que já tinha aprendido a senha. A mais encorpada respon-deu:

– Eu sou uma Noz e esta minha amiga é uma Amên-doa e vamos para a cidade estudar. Estamos fartas de ser casca-grossas.

– Então vamos todas de companhia! – Era a vez da Avelã concluir.

E lá foram divertidas e tagarelando a tarde inteira. Ao anoitecer, encontraram uma Castanha Pilada toda encarquilhada, que lhes ofereceu guarida. Aceitaram agradecidas, que a noite está cheia de roedores. Mas apenas começou a haver luz, partiram e chegaram à cidade ainda de manhã.

Deram uma volta a apre-ciar os prédios enormes e o formigueiro dos carros. Depois encontraram um jornal de anúncios grátis.

– Olha este – disse a Amêndoa. – «Precisa-se amêndoa para fábrica de doces conventuais». Vou responder! Se for um part-

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time, posso ganhar uns dinheirinhos e ter tempo para estudar.

– Olha, este é para mim! – entusiasmou-se a Avelã – «Chocolataria procura avelã grada. Paga bem». Se ganhar muito dinheiro, compro um pulverizador à minha mãe.

– Hum, não sei o que este é – disse a Castanha carregando o sobrolho – «Castanhas nacionais e es-trangeiras. Quentes e boas!». É capaz de ser uma empre-sa de trabalho temporário. Mas não há mais nada!

Combinaram que cada uma iria responder ao seu anúncio e que voltariam a juntar-se de tarde, excepto Paulette que ficou à espera de saber se havia vagas no trabalho da Castanha da Índia. À hora aprazada che-gou a Noz muito zangada. Tinha ido responder a um anúncio para Segurança e tinham-lhe dito que era um estágio não remunerado.

– Lá na terra nunca me fizeram uma proposta tão desavergonhada!

– Eu cá, estou contente com o trabalho – disse a Castanha da Índia. – Fiquei a trabalhar em casa duma velhota simpática e o que tenho que fazer é só ficar numa gaveta de roupa a afugentar as traças. – O sorriso de orgulho que lhe

assomara à casca fechou-se logo a seguir. – Mas não é trabalho para vocês. Não têm este cheiro!

Da Amêndoa e da Avelã, nem sinal. A Castanha da Índia teve que voltar ao tra-balho. A Noz e a Castanha esperaram ainda umas duas horas, e como as outras não vinham, foram responder ao anúncio para a Paulette.

Era numa rua estreita e o local de trabalho, envolto em fumo, não passava des-percebido. Aproximaram-se, sem dizer nada, e ficaram à espreita, para descobrir qual era o ramo do patrão. Este, de bigodinho e cabelo com gel, pegava nas castanhas, dava-lhes um golpe na casca e atirava-as para um pote esburacado que tinha sobre brasas.

Só então, horrorizadas, se aperceberam do cheiro a castanhas assadas que enchia o ar, e as viram amontoadas num grande tabuleiro. Estavam irreco-nhecíveis. A casca golpeada encanecera como noiva adiada e abrira-se pela acção do calor, deixando ver o delicado véu interior, que se separara do corpo ex-pondo o miolo dourado das castanhas. «Que degradante! Porquê estas atrocidades, porquê?» – perguntavam-se. Observaram então como os homens se aproximavam de

olhos lúbricos e esmigalha-vam com mãos papudas o resto de casca e de pelícu-la que as castanhas ainda mantinham. E depois – oh horror! – de uma só denta-da comiam-nas. Inteiras.

Escapou-se-lhes um «Oh!» involuntário. O homem das castanhas viu-as e baixou-se para as apanhar. Estava quase a agarrar Paulette quando a Noz, ginasticada e enraivecida pela repulsa, saltou. Apontou uma cabe-çada aos dentes do homem. O lábio superior deste interpôs-se e ficou esmaga-do entre os próprios dentes e a cabeça dura da Noz. O homem gritou agarrado ao lábio a sangrar. Várias cabeças de homens se vol-taram. A Castanha e a Noz sentiram aquelas dezenas de olhos sobre si. Um medo imenso apoderou-se delas. Fugiram dali tão depressa quanto conseguiram, sem olhar para trás. Ao virar uma esquina, quase foram esmagadas por um carro. Atiraram-se para o lado às cegas e caíram numa sar-jeta. No escuro húmido e fétido, olharam em volta tentando enxergar o que quer que fosse. Só três pares de olhos brilhantes guin-chavam.

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Dênis Moura

Conspiração zHaarP“Em 2068, por todos os

lugares do mundo, de um lado, sessenta famílias controlando toda a riqueza do planeta enquanto seus aparatos de poder reagem violentamente ao que chamam de desordem das massas. Do outro, mi-lhões de pessoas invadem no mesmo instante os gabinetes corporativos e governamentais. São os braços de três bilhões de sobreviventes que se orga-nizam mundialmente através da Grande Rede e deliberam regras para regular a desor-dem esgotadora de pessoas e natureza que perdurou por mais de cinco séculos.”

- Não deixaremos que esta anarquia continue a assolar o mundo. - Diz um bigodudo senhor no meio da imensa mesa de sessenta lugares ocupados.

- De hoje não passará, senhor Karl Mittali. Apre-sento-lhes o plano que nossas corporações deverão seguir.

Todos olham ansiosos para o grande holograma que surgiu no auto da mesa. Walton Lee Rockefeller pros-

segue:

- Vejam esta constela-ção de satélites ao redor da Terra. A maioria deles estão equipados com canhões Zhaarp que disparados em direção a todas as cidades da Terra, inutilizarão todos os equipamentos eletrônicos. Será o fim da Internet e com ela todas as mobilizações que atentam contra a liberdade dos empreendimentos.

- Mas sem Internet como ficarão nossos negócios? Se voltarmos à era do papel, dos contratos através de correios, nossos lucros cessarão. Diz um gordo senhor.

- Muito simples, senhor Carl Johnson. A partir de amanhã passará a funcionar a mundial rede fotônica, úni-ca imune aos pulsos Zhaarp. Todas as nossas operações passarão a utilizá-la. Dife-rente da Internet baseada em eletrônicos e totalmente des-controlada, a rede fotônica (que utiliza somente raios lu-minosos) será centralizada e apenas os conteúdos que nos interessam trafegarão por

ela. Devemos firmar agora o compromisso de que nossas Industrias nunca mais pro-duzirão eletrônicos. Tiremos assim a ferramenta com que os baderneiros se mobilizam e retomaremos o controle do mundo, a tranqüilidade dos nossos negócios.

Todos aplaudem exultan-tes. Pequenos hologramas em frente de cada magnata coletam suas assinaturas biométricas. Cada corpo-ração recebe uma parte a ser cumprida no plano. O grande holograma central se transforma em um imenso cronômetro em contagem regressiva mostrando o tem-po inicial de seis horas, seis minutos e seis segundos.

(Capítulo 4 do Romance “RETORNO AO BIG BANG MICROCÓSMICO”)

http://bigbangmicrocosmico.blogspot.com/

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3636 SAMIZDAT dezembro de 2008

Contos

Maria de Fátima Santos

Para que nos serve

http://www.flickr.com/photos/99174985@N00/313017494/sizes/l/

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Eu me pergunto há muito: para que nos serve.

De um qualquer modo, a gente solta-se disto. Assim como hoje, um dia usa a faca que trouxe na liga, ano e ano, e desfere o golpe.

- Zás! - diz o moço a quem Deus não deu entendi-mento mais que o perceber que sangue é o que corre do buraco seja ele degolando ave ou arrebentando veia com um fino golpe mesmo por debaixo, no pescoço de gente.

- Zás! - e fica olhando o gorgolejar com ar aparvalha-do, que a baba no canto da boca escorre e completa o quadro de um perfeito tonto.

O moço põe um pé mais atrasado do que o outro, que um quase morto assusta para carago e se vier alguém ainda vai pensar que fui eu que peguei na ponta afia-da da faca pequenina, com um cabo a brilhar de prata e osso, e a enfiei de um só golpe no pescoço deste des-graçado.

O sangue escorre e ele revira os olhos que nem sei se me está olhando e nem sei se o acuda, se o largue.

- Chamem-lhe parvo... – penso eu, o que se está morrendo, nos últimos laivos que tenho de pensar.

- Zás! - balbucia o tonto enquanto o ar da vida se me foge.

Olha-me como se fosse ele o morto, e eu penso de novo para que nos serve e fico-me morrendo devagar, ao ritmo do sol que se distende em amarelos, lilazes e vermelhos, por detrás do morro onde jo-guei à bola e pastei as cabras do avô Gilberto e estudei para muitos exames, sentado numa pedra.

Um sol deslizando para dentro do rio onde me lavei de várias mágoas.

Um fio escarlate corre sobre o ombro que trago desnudado.

O dia terminando e eu nesta loucura de querer soltar-me.

Eu a querer responder ao para que nos serve e o fio deslizando quente sobre o meu corpo.

Depois, ele pegará a faca de cabo prateado e osso que eu retirei da gaveta da cómo-da da minha avó Benvinda no dia em que havia lá por casa a confusão habitual da matança do porco.

Eram seis da tarde, então, como o são agora quando me envio deste mundo.

Abri a gaveta onde ela guardava, preciosas, duas ligas negras com um friso de rendas e uma saia rodada com folhos, junto com um colete.

Tudo vermelhos que um dia tinham ataviado o pe-queno corpo que, ao mo-

mento, esquartejava, lá em baixo, avantajado, mas ainda levemente belo, as carnes do porco criado a bolota e a cuidado.

Guardei a faca comigo desde essa tarde e, vendo o bácoro grunhir, como pela noite aqueles dois num por detrás que lhes deu no jeito, perguntei-me: para que nos serve.

E até hoje me pergunto, como agora, no preciso mo-mento, ou um pouco antes, de me apartar disto.

- Zás! - diz o parvo mal eu me morro.

E retira a faca de prata e osso. E afasta-se rolando dois dedos sobre a jugular, como me viu fazendo.

Hão-de vir buscar-me o corpo.

De mim, que cuidei responder ao para que nos serve, dirão, num dizer de descuido:

- Coitado!

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Depois daquele dia, mar-camos de nos encontrarmos, na semana seguinte, na sorve-teria “Bola de Neve”, a melhor da cidade.

Fazia um tempo fresco e ensolarado, eu já aguardava no local. Cheguei dez mi-nutos mais cedo, como de costume. Nesse tempo come-cei a observar ao meu redor. Uns onze metros à frente, uma família, pai, mãe, filho

e filha. Crianças pequenas. O menino, que era dois anos mais velho que a menina, estava com a cara inteiri-nha lambuzada de sorvete e mergulhava seu boneco nele. A mãe gritando. A menina chorava e dizia querer pastel, não sorvete. E a mãe gritan-do. Enquanto o pai tomava o seu sorvete sossegadamente e olhava o movimento na rua. E a mãe gritando. No lado interno, no canto, ti-

a SurpresaGuilherme Rodrigues

Contos

SAMIZDAT dezembro de 2008

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nha uma mulher gorda que estava na sua terceira tigela. Tomava desesperadamente e completamente lambuzada, mãos, rosto, barriga e até a ponta do nariz. Era cômico. Na mesa encostada à parede, duas amigas conversavam sobre os garotos da escola e se deliciavam com enormes copos de milk-shake.

Fernando apareceu e me assustei. Nem pude ver a cara do homem quando tomou o sorvete com sal que um garotinho tinha posto.

– Olá! Achei que não vies-se mais.

Ele sorriu puramente e me beijou a bochecha. Tive a impressão de já ter visto esse sorriso tão doce.

Logo pedimos sorvete. Eu, Montanha Negra, ele, Céu Estrelado.

– Nos dias de hoje é difícil conhecer pessoas como nos conhecemos. Num bar no centro da cidade não é o melhor lugar. Seria normal numa festa, na faculdade, com os amigos...

– É o mundo moderno... Mas você forçou.

Dei de ombros.

– Você não teria me visto.

Ele pensou e enfim, disse:

– Talvez... Sempre morou aqui?

– Nasci aqui. Vivi até os seis anos. Fiz alguns amigos nesse tempo, mas acabei per-dendo contato. Depois minha família se mudou para ficar mais unida. E voltei faz um mês e meio. Retornei às ori-gens. A cidade mudou tanto todos estes anos.

– Que ótimo... – disse, di-minuindo a intensidade, com cara de assustado ou que não entendeu nada – Eu era um de seus amigos. Lembro-me do seu rosto, seus olhos... Seus cabelos...

– Não pode ser! – disse perplexa– Bem achei já ter visto seu sorriso doce. Nunca me esqueci.

– Quanta felicidade te reencontrar! E só agora nos demos conta disso!

Os sorvetes tinham che-gado. E trocamos colheradas como velhos amigos.

– Como foi a sua vida lá?

– Minha família toda é de lá. Senti muita saudade daqui e aos poucos a famí-lia e os novos amigos foram amenizando essa carencia. Mas nunca me esqueci deste lugar. Tanto que deu certo de voltar. Agora faço jornalismo.

– Naturalmente. Sempre

me lembro daquela época com nostalgia. Nem me lem-bro como você era, seu jeito, seu temperamento... Mas jor-nalismo combina com você.

Que Máximo!

Acabamos por estender o encontro até o jantar. Jovem estudante que sabe cozinhar, e bem!

Fechamos a porta.

Continua! Não perca no próximo mês!

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4040 SAMIZDAT dezembro de 2008

A enorme massa branca e sólida estava ali desde que me conheço. Fria e imponen-te com seus sessenta metros de altura, numa vizinhança próxima, em frente a minha janela, travando com sucesso silencioso o ímpeto expan-

sionista das nossas modestas construções. Tão perto... tão à bica! No topo um longo corredor feito calha servia de auto-estrada por onde desli-zavam velozes e silenciosos os pequenos “robot”.

Cresci brincando em redor deste monstro marco de fronteira, habituando-me gradualmente à sua presença. Meus pais e avós referiam o artefacto nas suas histórias de nossos serões dos domingos de inverno quando, reunidos

em volta da lareira aquecía-mos os ossos e alimentáva-mos a alma com tudo o que conseguíamos escutar.

Parece que alguns lou-cos tentaram escalá-lo ou contorná-lo. De alguma forma vencer aquela barreira, esgotá-la, encontrar-lhe um fim. Foi assim com o homem que chegou um dia vindo do horizonte feito de pó para logo partir duas horas após chegar à nossa cidadela. Com o seu ar cansado e a longa

Para lá do muroJosé Espírito Santo

Contos

A cada ser a sua arte. A da barata é resistir, contornar,encontrar novos caminhos rodean-do os obstáculos. Sónão a virem de cabeça para baixo

Anónimo

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barba branca, deixou a voz fraca confidenciar que já an-dava naquela demanda desde os vinte anos. E assim comeu, bebeu, descansou um pouco, ganhou fôlego e logo proferiu “não há tempo a perder que a vida é curta” e foi-se em busca do fim da coisa, da ex-tremidade de cauda de bicho feito cobra, cobra feito muro, muro feito obstáculo e om-nipresença, qual navegador incansável, Gil Eanes com o seu cabo Bojador para dobrar!

As tentativas de subida não colheram melhor sor-te. Depressa colocaram em evidência o propósito dos nossos companheiros metáli-cos. Ao invés do frio cortante na chegada ao cume de um qualquer Everest, os alpinistas desgraçados encontravam o calor de um raio quente ful-minante ficando reduzidos a menos nada naquela fracção de segundo.

Só o mistério sobreviveu a todos estes fracassos. Mistério mal recebido, mal acolhido, tornando-se adubo eficaz para crescimento rápido da especulação e crença igno-rante. Logo apareceram para a festa os hábitos e rotinas pouco racionais, os dogmas, os pecados, as remissões e auto flagelações, o poder dos poucos em função da dor-mência dos muitos.

O dia de leitura e escrita é um desses hábitos que não apela muito em prol de nosso bom senso e sanidade mental. Todos os anos naquele dia – o último, a massa humana

de crentes inicia jornada e vai colar-se junto ao enor-me paredão. Cada qual tem primeiro de encontrar um espaço para si (apagando se necessário escritos antigos) e escreve os seus desejos, as suas aspirações para o ano vindouro. E o “senhor do muro”, o “magnífico que tudo pode”, em toda a sua bondade não tardará a satisfazer tal ensejo conferindo a cada um o seu cada qual.

Talvez seja perfeccionis-ta, detalhista, até um pouco chato mas sempre me co-nheci muito observador. O meu olho treinado e mente atenta depressa me revelaram as diferenças, a revolução silenciosa que ocorria no topo fronteiriço. E a diferença estava no tempo, no aumento de tempo entre cada chegada e cada paragem em frente a minha janela. O minuto e meio entre chegadas no fim de mês passado tinha-se alon-gado. No início da semana – estamos na segunda sema-na do mês, já íamos em dois minutos. Nesse dia decidi: se as coisas continuassem da mesma forma, ao fim de três meses teria todo o tempo que necessitava – trezentos segun-dos, cinco longos minutos.

Ninguém excepto Patrícia sabia das minhas intenções. Minha vizinha e confidente desde sempre, ela daria uma ajuda essencial no projecto. Nesses meses muni-me de tudo o que era necessário e preparei-me com rigor e afin-co. A estratégia era simples –

aproveitar a multidão em dia da excursão anual de tolos, partir com eles e não regres-sar, ficando junto ao muro como lapa na rocha, bem encostado, fora de ângulo de visão dos guardas ciberné-ticos. Depois, com a ajuda do equipamento sofisticado, escalar cerca de cinquenta e cinco metros e ficar espe-rando o sinal. Ao notar que “a costa estava livre” a minha companheira fecharia a janela e eu subiria rapidamente o que restava.

Finalmente o dia chegou e eu estava preparado. Escalei, a janela fechou-se e então subi os últimos metros. Triunfante, cheguei ao topo e olhei para o lado. Nem sinal de “robot”. Respirei fundo. Observei. Foi com estranheza que minha vista encontrou o outro eu, qual imagem minha no espelho que também subia, que respirava fundo, que me fitava. Ficamos examinando as nossas caras incrédulas, incrédulos por um momento. Olhámos para o horizonte de edifícios em cada lado, para as janelas em frente, para as Patrícias que acenavam. Então, decidimos preservar nossa sanidade mental e descemos. O que vimos, nunca contá-mos a ninguém. Hoje pensa-mos certamente eu e ele (ou deveria dizer eu e eu) como para desvendarmos um mis-tério encontrámos outro bem maior e fugimos voltando rapidamente à realidade de nossa toca.

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4242 SAMIZDAT dezembro de 2008

Voltar para casa o de-primia. A expectativa de, após um dia de trabalho ouvindo os berros ani-malescos de seu Djalma tratando-o como um reles vassalo; abrir a porta de casa e topar com a megera, estendida no sofá, devoran-do bombons e metida em um enorme robe cor-de-rosa era um desajuste para qualquer mortal. Fosse só isto, ele até que poderia tolerar, mas as cobranças,

humilhações e o desprezo iam minando, dia após dia, o que ele e a esposa ainda fingiam ser um casamento.

- Bancário! – exclamava a esposa carregando no desprezo, boca marrom de chocolate – Não pas-sas de um medíocre e vil bancário! E pensar que eu podia estar casada com o Deputado! Que triste sina a minha!

No decorrer dos anos, passou a ter nojo de choco-

late. Bastava o cheiro para nauseá-lo.

Sua angústia diária tinha início dentro do elevador do prédio onde morava. Acompanhava o lento pas-sar da cabine pelo andares até chegar àquele palco seu tormento. “Lar, doce lar”, resmungava em tom irôni-co.

Naquele final de tarde tudo parecia caminhar para a mesma rotina de achincalhes promovidos

Contos

Zulmar Lopes

No ELEVador

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pela megera. Apertou o bo-tão de chamada do eleva-dor e esperou que ele che-gasse até o térreo. Quando fechou a porta ouviu uma súplica.

- Sobe?

Era uma voz adocica-da, mansa, suave, em tudo contrastante com o tom estridente e marcial de sua esposa. Curioso e gentil, se-gurou a porta do elevador. Ela sorriu para ele em sinal de agradecimento. Tratava-se não de uma mulher exuberante, mas alguém que estava elegantemente vestida e denotava alguma sofisticação. Seus gestos eram refinados e um leve perfume agradável exala-va de sua pele. Saltou no décimo andar, sacudindo a cabeça em sinal de boa noite.

Desde aquela data, a curta viagem de elevador tornou-se o melhor mo-mento do seu dia. A pre-sença daquela mulher e os quase monossilábicos cumprimentos pareciam amenizar todo o peso do cotidiano desprezível de sua existência. Ansiava por aqueles minutos, chegava a fazer uma horinha no hall social do prédio esperando que ela chegasse, forçando a coincidência do encon-tro. Entristecia-se caso ela não aparecesse e renovava a suas esperanças para o dia seguinte.

Numa tarde, enquan-to esperava o elevador já

desapontado pela ausência da sua admirada, ela surgiu no hall social. Chorava. As lágrimas inundavam seu rosto, umedecendo os olhos redondos. Não havia ainda prestado atenção na beleza dos seus olhos castanhos. Na verdade, o tempo da viagem era demasiadamen-te curto para se prender a detalhes.

- Posso ajudá-la, moça?

Sacudiu negativamente a cabeça.

Ele ofereceu um lenço, prontamente aceito. O ele-vador chegou.

- Sou feia?

- Não.. imagina...

- Pareço uma pessoa sem atrativos? Me visto como uma freira?

- Claro que não!

- Ele acha que sim – dis-se soluçando – que fazer amor comigo é como beber água. Algo sem gosto, sem graça.

- Ele deve ter dito isto da boca pra fora – disse ele enquanto entravam no elevador.

Assim que a porta fe-chou, ela inesperadamente o agarrou, beijando-o com volúpia. Entre o correr dos andares, amaram-se de pé, vestidos. Parcos minutos de prazer até o elevador alcançar o décimo andar.

Os encontros passaram a ser diários. Quando ha-via uma ou mais pessoas

esperando o elevador, eles aguardavam a oportuni-dade de subirem sozinhos. Caso um ou outro estivesse com o seu companhei-ro, fingiam indiferença e desconhecimento, um tanto desapontados pela oportu-nidade perdida. Amavam-se dentro da cabina, respi-ração ofegante, um misto de prazer e medo de que os respectivos cônjuges pudes-sem estar do outro lado da porta, no andar seguinte. Arrumavam-se rapidamen-te ante a aproximação do andar onde ela morava. Era automático, sem prelimi-nares, sem nomes, curiosi-dades sobre a vida de cada um. Nada os atrapalhava naqueles breves momentos de paixão. Somente o ato de amor os consumia.

Um dia, um blecaute tomou conta do Rio de Janeiro. A cidade foi in-vadida por um breu no começo da noite. Tudo parou, inclusive o elevador onde os amantes estavam. Os bombeiros, ao abrirem a cabina, parada entre dois andares, os encontraram ri-sonhos, nus e gargalhantes, suas roupas espalhadas por todo o elevador. Ela agora sabia que ele se chamava Mauro. Ela, Andréa. Tive-ram tempo.

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4444 SAMIZDAT dezembro de 2008

Contos

Pedro Faria

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Ele precisava dar uma volta.

Saiu de casa com o passo apressado, e subiu no primei-ro ônibus que parou.

Queria matar, destruir. Estava irritado com tudo. Achava que se alguém o olhasse nos olhos naquele momento, ele partiria para cima para brigar.

Com a intenção de se acalmar, ele fechou os olhos e tentou se lembrar de coisas boas. Porém, em cada ima-gem que lhe aparecia estava ela, e isso o fazia fechar com mais força seus punhos, até que suas unhas mal apara-das lhe cortassem superfi-cialmente a pele áspera das mãos.

Para ele, ela havia morri-do. Ele cansara de despejar seu carinho e amor sobre ela, e não obter nada em retorno. Ele queria apenas o amor dela, um tom de satisfação na voz dela quando conver-sassem. Um pingo de feli-cidade, de carinho, em seus olhos, quando ela o visse.

Ele queria se sentir dese-jado. E com ela, nunca tinha conseguido.

O ônibus seguia seu ca-minho enquanto ele olhava para fora: As pessoas, que não passavam de borrões para ele, cuja existência não lhe acrescentava em nada. Ele sentia ódio por elas, um ódio que vem do ciúme, da inve-ja, da vaidade. Ele precisava machucar alguém, ferir uma pessoa, fazê-la sentir como ele se sentia.

O que lhe despertou para a realidade foi a gota de san-gue no assento a seu lado.

Ele balançou a cabeça. Ti-nha saído de casa justamente para esfriar a cabeça, para deixar a violência contida dentro de seu quarto, numa bolha. Mas ao que parecia, a bolha o havia seguido, e grudara em seu coração.

Puxou a cordinha, e saltou no ponto. Colocou as mãos nos bolsos da jaqueta e olhou ao redor.

Não conseguiu conter uma risada ao ver onde estava.

Tinha pegado justamen-te o único ônibus que lhe deixava à porta da casa dela e, como o bordão de alguma piada cósmica sem graça, era lá onde havia saltado.

Naquele momento, ele não conseguiu mais se segurar. A bolha de raiva tremia em seu peito, sua respiração tinha acelerado.

Ele marchou até a casa dela. Bateu vigorosamente na porta.

Quando ela abriu a porta, ele achou que iria desmaiar. Era esse o efeito que ela fazia sobre ele: Perto dela, ele não era nada, era como um fragmento de um gigantesco cenário construído para a diversão dela, no qual ela era o centro de todas as ações, e todos os diálogos eram sobre ela.

O olhar dela quando o viu foi de confusão. Isso não foi o bastante para detê-lo.

Ele investiu para ela,

http://www.flickr.com/photos/wiedmaier/170973633/sizes/l/

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4646 SAMIZDAT dezembro de 2008

fazendo-a cair sentada numa poltrona.

Ela começou a gritar.

Após fechar a porta, ele se aproximou dela.

“Não, agora você vai ficar sentada aí e me ouvir! Eu fiz tudo para você, tudo mesmo. Ouvi seus lamentos, tratei de suas feridas, enxuguei suas lágrimas. E você, nada!”

Ele estava errático. Seus olhos desfocados, como se estivesse drogado.

Ela tentou se levantar e fugir, mas ele a segurou de bruços na poltrona.

“Eu vou fazer o que tenho que fazer. Eu vim fazer a cobrança”.

Havia uma estante atrás da poltrona. Ele puxou seu cinto e prendeu as mãos acima da cabeça, amarrando o cinto na estante.

Com seu joelho nas costas dela, ele tirou suas calças e a cueca. Toda aquela briga o havia deixado excitado.

Arrancou a bermuda dela, e a calcinha. As nádegas dela estavam quentes, e ela cho-rava.

Ele queria que ela não gostasse.

Enfiou as mãos entre as pernas dela. Ela chutava e gritava.

Ele ignorou a vagina dela. Não, ali seria fácil demais.

Então ele a penetrou no orifício entre suas nádegas, de uma vez só. O grito dela foi horrível.

Com as duas mãos pres-

sionando o corpo dela contra a poltrona, ele começou o vai e vem dentro dela. Ela cho-rava, implorava para que pa-rasse, mas ele não se impor-tava. Estava adorando aquilo. Estava finalmente tomando o que sabia ser seu de direito.

Sangue pingava no chão.

A posição estava ficando desconfortável para ele. En-tão, ele a segurou por baixo, para levantar seu corpo na poltrona.

Quando a mão dele tocou no meio das coxas dela, uma surpresa: Ela estava enchar-cada, seu mel lambuzando os dedos dele.

A puta estava gostando!

Esquecendo qualquer des-conforto que pudesse estar sentindo, ele continuou mais forte.

Aí, ela riu.

Ele parou. A risada dela não era apenas fora de lugar, era horrível. Seu sangue con-gelou.

“É só isso? Vamos, mais forte! Vamos lá! Vai me dizer que já entrou tudo? É só isso mesmo?

Você me enoja! Precisa me pegar desprevenida, me amarrar, para fazer o que não teria coragem. Você é um fraco.

Mais! Você começou agora você vai terminar.

Mais forte! Mais, mais!”

Ele continuou se movendo, a risada dela ecoando em sua mente, suas palavras flutuan-do pela sala, ditas com uma voz gutural, que não era a

dela.

Seu suor escorria sobre o corpo dela, e ele achava que ia desmaiar. Notou que estava muito fácil penetrá-la. Mesmo que o corpo dela tivesse se ajustado, estava muito fácil.

Olhou para baixo, e gritou.

As nádegas dele lhe envol-viam a barriga. Ele estava en-trando nela, como ele sempre quis. Estava se tornando parte dela, para sempre. Achou que deveria estar feliz.

Mas não estava. A úni-ca coisa que sentia era um medo paralisante.

“Isso, agora sim, mais forte! Somos apenas eu e você ago-ra, amor.”

Ele gritou, e algo o atingiu no rosto.

Olhando bem, ele viu que era o chão. Estava caído em seu quarto, o suor do pesade-lo lhe ensopava a camisa.

Esfregando o rosto, ele se levantou. As imagens do sonho iam e vinham em sua mente, e ele estava tonto com a queda. A última coisa que lembrava era de ter ido dei-tar com raiva.

Aí ele se lembrou dela, e deu um soco na parede.

Estava cansado dela em sua cabeça.

Levantou-se. Daria um passeio.

Isso o acalmaria.

Sim.

Uma caminhada. Talvez uma volta num ônibus.

E tudo ficaria bem.

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Pedro Faria

GoSto rEFiNado

Eu sempre tive uma fanta-sia com as pernas dela. Não com os seios, com a boca ou com a bunda.

Além do mais, era sempre o mesmo sonho: O facão, o sangue, o pote de molho barbecue...

Fico duro só de pensar.

Acordei ontem de manhã depois da, não sei, milésima vez que sonhei com aquelas pernas grossas dela. Tinha sujado meus lençóis, e deci-di que não agüentava mais. Esperei chegar a noite (só a antecipação me obrigou “liberar a tensão” cinco vezes durante o dia), pus uma toca preta, peguei o facão que guardo com minhas ferra-mentas no galpão e marchei até a casa dela.

Todas as luzes estavam apagadas, menos a do quarto dela no segundo andar. Subi na árvore e abri a janela do outro quarto.

Entrei, e assim que saí para o corredor, ouvi um grito vindo de seu quarto.

Congelei de medo, porém sabia que não tinha como ela ter me visto, e, além disso, eu não tinha feito nenhum barulho.

Eu sabia que se desistisse agora, eu nunca ficaria livre dos sonhos.

Então me dirigi de encon-tro ao som.

Com o ouvido encostado na porta, eu consegui ouvi-la, berrando e chorando, e gritando com uma voz mais aguda do que eu pensei ser possível para um ser huma-no.

Assustado, chutei a porta com força suficiente para arrancá-la das dobradiças, e o que eu vi, eu nunca esque-cerei enquanto viver:

Ela estava deitada na cama, o choro interrompido, subs-tituído por um olhar que era misto de dor e surpresa.

Havia um homem de pé ao lado dela, um homem que eu reconheci como sendo um vizinho nosso em co-

mum. Ele segurava com as duas mãos a perna esquerda dela, decepada na altura da cintura, um machado san-grento deitado no tapete junto à cama. Ele a tinha lambuzado com algo, e esta-va arrancando com os dentes, grandes pedaços da parte carnuda da coxa.

A situação seria cômica; e de fato foi, por alguns se-gundos, nós três nos olhando com expressões de surpresa estampadas em nossos rostos, nossos olhos arregalados. Até que os gritos dela voltaram, lavando a graça embora.

Uma expressão de fúria tomou conta de minha face, e eu o encurralei, meu facão em seu pescoço.

“Mas o que é isso?”, gritei.

Seu olhar era o de um homem morto.

“Você está usando mostar-da?!”

E nós dois caímos na risada.

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Contos

Marcia Szajnbok

dESCoBErtaS

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Na primeira vez que subiu aquela escadaria, de mãos dadas com a mãe, João sentiu medo. O lugar lembrava uma casa mal-assombrada, dessas que aparecem nos filmes: pouca luminosidade, portas altas, a escada de madeira produ-zindo estranhos ruídos sob os pés. Depois de meses de-sempregada, Bete finalmente conseguira um trabalho: faxineira numa escola de música. Maestro Manfredo, o dono do conservatório, concordara com que Bete levasse consigo o filho pe-queno, desde que o menino não atrapalhasse as aulas. Foi assim que João chegou ao universo da música: as-sustado pelos fantasmas que a velha casa evocava, pelo tal do Maestro, que imagi-nava ser um velho narigudo cheio de verrugas e muito bravo, e pela mãe – esta, um perigo bem real quando se zangava com ele. João tinha apenas cinco anos, e aparentava ainda menos com sua baixa estatura e magreza, as pernas finas, e os dentes grandes e brancos aparecendo demasiadamen-te no contraste com a pele escura.

À medida que os dias passavam, entretanto, João ia ficando mais à vontade. Descobrira um modo de passear despercebido pela escola: tirava os sapatos, an-dava de meias. Como todo o chão era de madeira, o garoto patinava nas tábuas largas e, assim silencioso,

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5050 SAMIZDAT dezembro de 2008

percorria todas as salas de aula como que invisível.

No que devia ter sido ou-trora um porão, havia um pequeno anfiteatro, onde os alunos tinham aulas de canto com o Maestro.

- Meninos, cantemos! O coração que canta não co-nhece tristeza! – era sempre com esse bordão e a batuta levantada, que ele dava iní-cio às sessões de cantoria.

Encolhido em alguma cadeira da última fila, João ouvia. Visto assim de longe, o Maestro nem parecia tão mau. Várias vezes em cada aula, ele interrompia, os alunos recomeçavam. E João ouvia. A partir de certo momento, seria capaz de cantar junto, mas só o fazia em pensamento, a voz da mãe com o indicador esti-cado em seu nariz, repetia-lhe na memória: - Nem um pio, entendeu bem? Nem um pio, senão você entra na piaba! João não sabia o que era uma piaba, mas pelo tom de sua mãe, não devia ser coisa boa.

No primeiro andar, havia a secretaria e duas salas de aula com carteiras e lousas. Ali os alunos aprendiam história da música, análi-se, folclore, teoria musical, solfejo, harmonia. Esse voca-bulário iniciático tornou-se familiar para o menino. O que ele mais gostava de acompanhar eram as aulas de solfejo: as mãos ritma-das batendo nas mesinhas, a fala acompanhando o

ritmo:

- La-á-Dó-Lá-Si-í-Dó-Ré-Si-Sol... João repetia men-talmente essa linguagem estranha e monossilábica. Mesmo sem ter nenhuma idéia do significado daquele amontoado de sons, achava bonito o grupo todo decla-mando aquela ladainha em uníssono.

No entanto, o melhor es-tava no andar de cima. Era preciso vencer a escadaria rangente, mas sempre valia à pena. Eram três salas, duas menores e uma gran-de, onde aconteciam as au-las de instrumentos: violão, violino, violoncelo, flauta e piano. Na sala maior, João encontrou um tesouro.

Certa vez viu a porta aberta, ninguém lá dentro, e entrou. Achou curioso que, numa sala tão ampla, houvesse um só móvel no centro. Ele era engraçado. Enxergou ali uma cabeça disforme: a boca ampla, dentes brancos e pretos num sorriso estático, a par-te de trás com um formato irregular, como um crânio com a tampa aberta. Não resistiu. Puxou para perto daquela abertura o banco que ficava diante da boca, e espiou lá para dentro. Várias tramas de fios so-brepostos uns aos outros, pinos metálicos, tiras de feltro vermelho recobrin-do pedaços de madeira de diferentes formatos. Era um quebra-cabeças incompre-ensível.

Ouviu vozes no corredor e passos que se aproxima-vam. Apavorado, João cor-reu a se esconder atrás da cortina de uma das janelas. Respirava devagar para que ninguém notasse sua pre-sença. E então, ouviu. Era um som límpido, suave, um som que parecia falar-lhe, lindo. Pôs um só olho para fora e viu que, diante do móvel estranho, uma me-nina mexia na grande boca aberta e, a seu lado, uma se-nhora lhe corrigia os erros. No final da aula, a professo-ra indagou à aluna, se tinha gostado de tocar num piano de cauda. Era isso, então! Um piano de cauda!

Depois que elas saíram, João se aproximou nova-mente. Encheu-se de cora-gem, e encostou um dedi-nho numa das teclas. Bem de leve e tão devagar, que não se produziu nenhum som. Desde então, sem-pre que podia, o garoto se punha em seu esconderijo atrás da cortina e acompa-nhava as aulas no piano de cauda. Do mesmo modo que acompanhava o solfejo e o canto orfeônico, aqui também ia aprendendo as músicas pela repetição. A diferença é que o piano não cantava, e por isso foi desenvolvendo um tipo de memória diferente, pura-mente musical, a seqüência melódica sem palavras, des-vinculada de significados. E quando se via sozinho na sala, chegava perto e acari-ciava as teclas, maravilhado.

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Um dia, inadvertidamen-te, apertou uma das teclas com mais força do que o habitual. O som produzi-do assustou-o, e não pôde conter uma gargalhada. Mas, cativado, repetiu o toque. O que ouviu lhe soou de algum modo fami-liar. Tateando, foi apertando outras teclas, até que obteve um par, e os dois sons em seqüência evocaram um trecho melódico. A partir daí, esqueceu a regra ma-terna do nenhum - pio e despreocupou-se completa-mente. Depois do par, achou o terceiro som, e depois o quarto, e assim sucessiva-mente ia recompondo, por tentativa e erro, um pedaço de melodia muitas vezes ouvida na clandestinidade de seu posto atrás da corti-na. Por instantes, o mundo se resumiu àquela sala: o menino, o piano, a música. Como se, para lá das pa-redes, nada mais existisse. Por estar assim, tão absorto, demorou um pouco para compreender que vinha da porta da sala a voz que lhe interrogava:

- O senhor pode me explicar o que é que está fazendo aí?

João, paralisado, não con-seguia responder. Parado na soleira, as mãos postas na cintura e o cenho carica-tamente franzido, estava o temido Maestro.

- Toque de novo, pediu ao menino. A música que você estava dedilhando,

toque de novo.

João tocou, apesar do tremor que lhe agitava a mão. Sem saber o nome das notas que apertava, repetiu a seqüência: Dó-Ré-Mi-Fa-Re-Mi-Do-Sol. E parou. Maestro Manfredo, então, segurou gentilmente o indi-cador do garoto e guiou-o até a próxima nota da série, outro Dó, uma oitava aci-ma. Olharam-se nos olhos, o menino esboçou um sorriso tímido, e encontrou a continuação da melodia: Si-Dó-Ré-Sol-Lá-Si-Dó-Lá-Si-Sol-Ré... E as horas foram passando. João aprendeu que o banco podia subir até que estivesse numa altura confortável, que aqueles sons se chamavam notas, que cada uma tinha o seu nome, e que poderia apertar cada nota com um dos de-dos, fazendo a mão deslizar ao invés de pular sobre o teclado. E descobriu, prin-cipalmente, que Maestro Manfredo não era um velho cheio de verrugas e muito bravo, e sim um professor paciente que, acima de tudo, divertia-se muito ensinando crianças.

- Você sabe como se cha-ma essa música que esta-mos tocando? perguntou-lhe às tantas o Maestro. João não sabia. Achou muito es-tranho quando lhe foi dito que aquela era uma Inven-ção a Duas Vozes. Como se lesse seus pensamentos, Maestro Manfredo comple-tou: - É claro que todas as

músicas são invenções de alguém... mas esta aqui faz parte de uma coleção de invenções bem difíceis de se inventar! E os dois riram muito.

As lições se repetiram por algum tempo, mas João não se tornou concertista. Seu estudo de piano termi-nou quando a mãe conse-guiu outro emprego, dois anos depois. Ao se despedir do Maestro, ele abriu uma gaveta cheia de partituras antigas. Remexeu, procu-rou, até que tirou de lá umas folhinhas amareladas, cheirando a guardado, onde estava escrito “Johann Sebas-tian Bach: Inventio 1 C-Dur BWV 772”. Preparando-se para fazer uma dedicatória, perguntou ao garoto:

- Como é mesmo seu nome todo? João... ?

- João Sebastião Ribeiro, respondeu o menino.

Maestro Manfredo, então, abraçou-o afetuosamente e abriu um sorriso largo, que João nunca tinha visto naquele rosto. Seu significa-do, só compreendeu muitos anos depois. Mas, aquela imagem e o calor daque-le abraço guardou para sempre, bem junto com a partitura, a dedicatória, e o amor pela música, sobretu-do pela música de Bach.

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5252 SAMIZDAT dezembro de 2008

Alice. Desde o nascimen-to, estava marcada: parto complicado, icterícia e pul-mão fraco:- É uma menina, a senhora quer pegar um pouquinho?

- Não. Tô com fome. Enfermeira, eu quero comida. Entendeu?

- O bebê precisa ser ama-mentado. Ela é tão fraquinha, precisa de cuidados...

- Cê acha, mesmo? Dá mamadeira pra ela. Quer prá você?

- A senhora não trouxe nada pra criança vestir?

- Vocês não doam enxo-val pros pobres? Pelo menos,

doavam...

A menina cresceu, lenta e desajeitada. Nunca chorava e falava muito pouco. Passava os dias quieta, olhando as paredes descascadas. Dessa forma, apanhava menos que os irmãos. Eram surras diá-rias e sem motivo.

Foi crescendo feito bicho. Sem escola, faminta, dispu-tando as migalhas e restos. Com treze anos, aparentava oito. A mãe não sabia quem era o pai das crianças. Quan-do o filho mais velho sumiu, deu graças aos céus e amal-diçoou os quatro restantes.

A mulher passava o dia inteiro na birosca. Filava

uma cachacinha e oferecia o corpo gasto. Quando voltava para casa, enxotava os filhos: - Tô cansada de sustentar tantas bocas. Vão tentar a sorte no asfalto. Vão embo-ra...

Um dia, Alice desceu a favela. Caminhou pelas ruas sem rumo. As pessoas des-viavam, olhando sérias e des-confiadas. Ela não entendia. Andou a manhã inteira até chegar ao centro da cidade.

Passou por uma grande loja de brinquedos. Parou diante da vitrine, admirando as bonecas, os castelos e as fadas. Tudo era lindo e di-ferente. Desejou poder tocar alguma coisa, uma peque-

Contos

Giselle Natsu Sato

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nina, apenas uma daquelas maravilhas, bastaria...

Então, viu seu reflexo. Nunca tinha parado para olhar para si. A aparência desgrenhada, roupas puídas e encardidas. Sentiu vergonha e encolheu os ombros. Pro-curou andar pelos cantos das calçadas. Abaixou a cabeça, lembrando a mãe chaman-do-a de lesada e ‘’fraca das idéias’’.

Grossos pingos começa-ram a cair, anunciando a chuva forte. Discretamente, catou restos de comida no lixo em frente à lanchone-te. O atendente ofereceu os salgados murchos do fim do dia: - Pegue e saia daqui, o patrão não gosta que fique na frente da loja.

Comeu um pastel e guar-dou o resto na sacola plásti-ca. O temporal formou rios de lama e sujeira. Os bueiros entupidos transbordavam detritos e esgoto . As pessoas comentavam que era uma enchente. Alice não entendia nada.

Foi quando viu o bando de crianças. Vinham correndo pelo meio da rua, gritando palavrões e ameaçando o povo. Quase trinta delas, aparentando, no máximo dez anos. Seguiam um garo-to mais forte que parecia o líder.

Alice reconheceu o irmão

desaparecido. Daniel, que a mãe colocava no sinal ven-dendo balas e chicletes. Alice gritou bem alto o nome do irmão : - Alice, vem com a gente, não posso parar!

- Pra onde vai?

- Por aí, está tudo inunda-do. Anda logo, vem...

- Não. Tenho medo.

- Vem Lice, eu te ajudo.

- Não.

- Eu volto pra te buscar. Vá pra igreja. Lá é bem alto.

Em poucos minutos, a confusão estava formada. Trabalhadores recém saídos dos escritórios tentavam entrar nos estabelecimentos abertos. A multidão, deses-perada, buscava abrigo ou tentava voltar aos edifícios comerciais. Quem estava do lado de dentro, não saía nem deixava abrir as portas.

O bando desapareceu pe-las vielas. A água não parava de subir e o povo acuado. Duas horas mais tarde, já não havia para onde correr. Todos disputavam o espaço nos degraus mais altos da catedral. A escadaria estava tomada por gente de todo tipo.

Alguém empurrou Alice para fora do patamar. A me-nina caiu na água imunda, batendo na altura do peito.

Em segundos, a correnteza forte, tragou o corpinho, arrastando-o para longe... Alguns gritavam, apontan-do a pequena que não se debatia. Ninguém saiu do lugar, assistiram Alice sumir lentamente...

Enquanto deslizava nas águas turvas, Alice recordou a vitrine onde se viu pela primeira vez. Pensou nas coi-sas bonitas e viu a si mesma no meio de todas aquelas riquezas.

Rodeada de bonecas, o mundo além do reflexo...Alice por trás do espelho. Nem sentiu quando a morte apagou seus sonhos.

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5454 SAMIZDAT dezembro de 2008

tradução

Don Juan Manueltradução: Henry Alfred Bugalho

o Conde Lucanor

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Conto Vii

O que aconteceu a uma mu-lher chamada senhora Truha-na

Certa vez, Conde Lucanor conversava com Patronio deste modo:

— Patronio, um homem me propôs algo e também me disse a forma como consegui-lo. Assegurou que tem tantas vantagens que, se com a ajuda de Deus tudo ocorrer bem, seria para mim de grande utilidade e proveito, pois os benefícios se unem uns aos outros, de tal forma que, no final, seriam muito grandes.

Então, contou a Patronio tudo que sabia. Após ouvi-lo, Patronio respondeu o conde:

— Senhor Conde Lu-canor, sempre ouvi dizer que o prudente se atém às realidades e desdenha as fantasias, pois muitas vezes a quem vive destas costuma ocorrer o mesmo que se sucedeu à senhora Truhana.

O conde perguntou o que havia acontecido a ela.

— Senhor conde, disse Patronio, havia uma mulher que se chamava senhora Truhana, que era mais po-bre do que rica, e que, indo um dia ao mercado, levava um jarro de mel sobre a ca-beça. Enquanto seguia pelo

caminho, começou a pen-sar que venderia o mel e que, com o que lhe dessem, compraria um bocado de ovos, dos quais nasceriam galinhas e que logo, com o dinheiro que lhe dessem pelas galinhas, compraria ovelhas, e assim iria com-prando e vendendo, sempre com lucro, até que se visse mais rica do que todas as suas vizinhas.

Logo pensou que, sendo tão rica, poderia arranjar um bom casamento a seus filhos e filhas, e que iria acompanhada pela rua por genros e noras, e pensou também que todos comen-tariam sua boa sorte, pois havia conseguido tantos bens, mesmo que houvesse nascido muito pobre.

Assim, pensando nisto, começou a rir com muita alegria por causa de sua boa sorte, e rindo, rindo, deu um tapinha na pró-pria testa, o jarro caiu no chão e se rompeu em mil pedaços. Senhora Truhana, quando viu o jarro quebra-do e o mel derramado pelo chão, começou a chorar e a se lamentar amargamente, porque havia perdido todas as riquezas que esperava obter com o jarro, se este não houvesse se quebrado. Assim, porque pôs toda sua confiança em fantasias, não pôde fazer nada do que tan-to esperava e desejava.

Se quereis, senhor conde, aquilo que dizeis e pensais

sejam realidade algum dia, procura sempre que se tratem de coisas razoáveis e não fantasias, ou imagi-nações duvidosas e vãs. E quando quiserdes iniciar al-gum negócio, não arrisqueis algo mui caro, cuja perda vos possa causar desgosto, com o intuito de obter um proveito baseado apenas na imaginação.

O que Patronio contou agradou muito o conde, que agiu de acordo com a his-tória e, assim, se saiu muito bem.

E como Don Juan gos-tou deste conto, escreveu-o neste livro e compôs estes versos:

Em realidades certas podeis confiar,

Mas das fantasias deveis vos afastar.

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5656 SAMIZDAT dezembro de 2008

Conto Xiii

O que aconteceu a um homem que caçava perdizes

Outra vez, o Conde Lucanor conversava com Patronio, seu conselheiro, e lhe disse:

— Patronio, alguns nobres muito poderosos e outros nem tanto, às vezes, cau-sam danos a minhas terras ou a meus vassalos, mas, quando nos encontramos, eles me pedem desculpas, dizendo-me que fizeram-no obrigados pela necessida-de, muito a contragosto e sem poderem evitar. Como eu gostaria de saber o que devo fazer em tais circuns-tâncias, suplico-vos que me deis vossa opinião sobre este assunto.

— Senhor Conde Lucar-no, disse Patronio, o que haveis me contado, e sobre o qual me pedis conselho, parece-se muito com o que ocorreu a um homem que caçava perdizes.

O conde lhe pediu que contasse a história.

— Senhor conde, disse Patronio, havia um homem que estendeu suas redes para caçar perdizes e, quan-do já apanhado bastantes, o caçador voltou para junto da rede onde estavam suas presas. Na medida em que as recolhia, tirava-as da rede e as matava e,enquanto

fazia isto, o vento, que batia em cheio em seus olhos, o fazia chorar. Ao ver isto, uma das perdizes, que es-tava presa na malha, come-çou a dizer a suas compa-nheiras:

— Olhem, amigas, o que acontece a este homem! Ainda que nos mate, olhem como ele se condói por nossa morte e, por isto, chora!

Mas outra perdiz que avoava por ali, mais velha e mais sábia do que a outra que havia caído na rede, respondeu-lhe:

— Amiga, dou graças a Deus porque me salvei da rede e agora peço a Ele que salves a mim e a todas mi-nhas amigas dum homem que busca nossa morte, mesmo que dê a entender com lágrimas que muito se condói.

Vós, senhor Conde Luca-nor, evitai sempre aqueles que vos causam dano, mes-mo que dêem a entender que sentem muito; mas se algum vos prejudica, sem buscar vossa desonra, e se o dano não for muito grave para vós, se se trata duma pessoa à qual deveis favores, e que além disto foi forçado a isto pelas circunstâncias, eu vos aconselho que não se importeis demais, mas deveis procurar que tal não se repita tão freqüentemen-te que chegue a macular vosso bom nome ou vos-

sos interesses. Mas se vos prejudica voluntariamente, rompei com ele para que vossos bens e vossa fama não se vejam lesionados ou prejudicados.

O conde viu que este era um bom conselho que Patronio lhe dava, seguiu-o e tudo ficou bem.

E vendo don Juan que o conto era bom, ordenou pô-lo neste livro e fez estes versos:

A quem te faz mal, mesmo que seja para ti pesar,

Busca sempre um modo para poder dele se afastar.

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Don Juan Manuel (1282-1348) nasceu no Castelo de Escalona, na província de Toledo. Por ser filho do Infante Don Manuel de Castela (Senhor de Escalona e de Peñafiel) e de Dona Beatriz de Saboya, era sobrinho do rei Alfonso X, o Sábio, e neto de Fernando III, o Santo. Herdou de seu pai o grande Senho-rio de Villena, recebendo os títulos de Príncipe, Senhor e Duque de Villena.

Foi educado como um nobre, adestrado em artes como equitação, caça e esgrima, aprendeu latim, História, Direito e Teologia. Lite-rariamente, sua formação incluiu a leitura de diversos poemas clericais (Livro de Alexandre, Livro de Apo-lônio...), os tratados de Raimundo Lúlio, a obra de Alfonso X (espe-cialmente, a História da Espanha), vários livros doutrinais e coleções de frases, provérbios e ditos de sá-bios, traduzidos de línguas orientais, ou do latim, para o castelhano (Cali-la e Dimna, Sendebar...), etc.

Aos oito anos, perdeu os pais, por isto, desde muito jovem, pôde dispor do amplo patrimônio de sua família. Aos doze anos, iniciando uma atividade que o acompanharia por toda a vida, participou na guerra para repelir o ataque dos mouros de Granada contra a Múrcia.

Casou-se três vezes, escolhen-do suas esposas por conveniência política e econômica e, quando teve filhos, esforçou-se para desposá-los com pessoas pertencentes à realeza.

Don Juan Manuel se converteu em um dos homens mais ricos e poderosos de sua época e, além de manter ele próprio um exército de mil cavaleiros, chegou a cunhar sua moeda própria por um tempo, assim como faziam os reis.

O autor de “O Conde Lucanor” dividiu seus esforços, durante toda sua vida, entre suas atividades como escritor e nobre cavaleiro. Ao seu redor, houve certas críticas sobre sua vocação literária, pois se pen-sava que um nobre de tão alto pres-tígio não deveria se dedicar a tais atividades. O prazer que encontrava na escrita e a utilidade que via nela para os outros o levaram a seguir com sua atividade literária.

Don Juan Manuel teve disputas constantes com seu rei. Na época, o trono de Castela esteve ocupado por dois monarcas que até chegaram a traçar planos para matá-lo: Fernan-do IV e Alfonso XI. No entanto, o último buscou a fidelidade de Don Juan Manuel ao pedir a mão de sua filha, Constanza. Finalmente, o rei rejeitou o matrimônio já arranjado e encarcerou a jovem no Castelo de Toro.

A luta entre o rei e Don Juan Ma-nuel se prolongou por uma década, e houve pelo menos duas ocasiões em que este quase chegou a cair nas mãos do primeiro. O rei também se opôs ao transporte de Constanza a Portugal para se casar com o infante Don Pedro de Portugal.

A necessidade de paz interna para enfrentar o rei de Marrocos e a mediação de Dona Juana Núñez,

sogra de Don Juan por seu tercei-ro casamento, fez com que o rei devolvesse a Don Juan seus bens e honrarias em 1337, pondo fim à inimizade, que se consolidou defini-tivamente com a autorização para o casamento de Constanza e, até 1340, quando ambos se aliaram contra os muçulmanos na batalha de Salado, tomando-lhes a cidade de Algeciras.

Após estes acontecimentos, o infante Don Juan Manuel deixou a vida política e se retirou para a Múr-cia, onde passou seus últimos anos entregue à literatura. Orgulhoso de suas obras, decidiu reuni-las todas num único volume, que desapareceu queimado num incêndio.

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5858 SAMIZDAT dezembro de 2008

tradução

Ricardo Palmatradução: Henry Alfred Bugalho

a Festa de São Simão Esgaratujo

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Faustino Guerra cumpria a condição de soldado raso du-rante a batalha de Ayacucho. Assegurada a independência, obteve licença definitiva e recolheu-se à província de seu nascimento, onde con-seguiu ser nomeado profes-sor da escola do vilarejo de Lampa.

Certamente, o bom Faustino não era um homem de letras; mas para desem-penhar seu cargo e deixar os pais de família contentes, bastava-lhe saber ler media-namente, ter uma caligrafia regular e ensinar de cor a doutrina cristã aos meninos.

A escola estava situada na rua Ancha, numa casa que, na época, era propriedade do Estado e que hoje pertence à família Montesinos.

Contra o costume geral dos mestres daqueles tempos, Seu Faustino pouco utilizava o látego, o que fez com que fosse batizado com o apelido de São Simão Esgaratujo. Ele o ostentava mais como um sinal de autoridade do que como instrumento de castigo, e era necessário que a falta cometida fosse muito grave para que o professor apli-casse um par de açoitadas, do tipo que nem tira sangue, nem deixa roxo.

Em 28 de outubro de 1826, dia de São Simão e Judas para ser mais exato, grandes festejos foram cele-brados nas principais cidades do Peru. As autoridades esta-vam empenhadas e manda-ram oficialmente que o povo se alegrasse. Bolívar estava, então, em todo seu apogeu, mesmo que seus planos de vitaliciedade começassem a eliminar o afeto dos bons

peruanos.

Apenas em Lampa não houve manifestação alguma de regozijo. Para os lampea-nos este foi um dia de tra-balho, como qualquer outro do ano, e os meninos foram, como de costume, à escola.

Já havia passado do meio-dia quando Seu Fasti-no mandou fechar a porta pra rua, dirigiu-se ao curral da casa, fê-los ficar em fila e, chamando dois índios robustos que lhe serviam, ordenou-lhes que agarrassem os meninos. Do primeiro ao último, todos levaram uma dezena de chicotadas, com as bermudas arriadas, aplicadas pela mão do professor.

A gritaria foi ensurdece-dora e houve pranto coletivo por mais de hora.

Quando chegou o mo-mento de fechar a escola e mandar os meninos para a casa de seus pais, disse-lhes Seu Faustino:

— Falem, pícaros godos, como vocês contarão o que acabou de acontecer! Cou-reio vivo ao primeiro que eu descobrir que saiu a me caluniar.

“Terá ficado louco?", perguntavam-se os pequenos; mas não contaram a suas famílias o ocorrido, se bem que as escoriações das chi-batadas os haviam deixado acabrunhados.

— Que bicho mordeu o professor, que era tão manso de temperamento, para distri-buir tão furioso açoitamento? Já descobriremos.

No dia seguinte, os meni-nos chegaram à escola, não sem recear que a sessão se

repetisse. Por fim, Seu Fausti-no fez sinal que iria falar.

— Meus filhos — ele lhes disse — tenho certeza de que se recordam do rigor com que os tratei ontem, contra meu hábito. Tranqüilizem-se, que só faço estas coisas uma vez por ano. E vocês sabem por quê? Sinceramente, filhos, digam-me se souberem.

— Não, senhor professor — responderam em coro os meninos.

— Pois vocês hão de saber que ontem foi o dia do santo do libertador da pátria, e não tendo nenhuma outra manei-ra para festejar isto, já que os lampeanos têm sido tão ingratos para com aquele que os tornou gente, eu recorri ao chicote. Assim, enquanto vo-cês viverem, terão gravado na memória a lembrança do dia de São Simão. Agora estudem sua lição e viva a pátria!

E a verdade é que os poucos que ainda vivem daquele grupo de meninos se reúnem em Lampa em 28 de outubro e celebram com um banquete, no qual brindam por Bolívar, por Seu Faustino Guerra e por São Simão Esga-ratujo, o mais milagroso dos santos em matéria de refres-car a memória e esquentar as partes posteriores.

(1871)

Fonte: Tradições Peruanas, http://www.cervantesvirtual.com/

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Ricardo Palma era filho de Pedro Palma Castañeda e de dona Guillermina Soriano Carrillo; neto paterno de Juan de Dios Palma e de Manuela Castañeda. Nasceu em Lima em 7 de feve-reiro de 1833. Desde jovem teve envolvimento com a política junto a ala dos liberais, a qual o incitou a participar em um malfada-do levante contra o presidente Ramón Castilla, que levou a seu desterro ao Chile por três anos. A política o conduziu aos cargos de cônsul do Peru, senador por Loreto e funcionário do Ministé-rio de Guerra e Marinha. Mas foi nas Letras a atividade em que se destacou. Desde jovem começou a escrever poesias e peças teatrais, inclusive a realizar colaborações em jornais do país. Teve grande presença na imprensa satírica, na qual foi um prolífico colunista e um dos baluartes da sátira política peruana do século XIX. Começou colaborando na folha satírica El Burro, para ser posteriormente um dos principais redatores de La Campana. Mais adiante, fundou a revista La Broma.

Também foi um colaborador assí-duo de publicações sérias como El Mercurio, El Correo, La Patria, El Liberal, Revista del Pacífico e Revista de Sud América. Também atuou com correspondente de periódicos estrangeiros durante a Guerra do Pacífico.

Em 1872, foi publicada a primeira série de sua principal obra: “Tra-dições Peruana”.

Ao longo de sua vida, publicou artigos históricos, trabalhos de investigação como Anais da Inqui-sição de Lima e inclusive estudos lexicográficos sobre a variedade peruana do espanhol.

O êxito conquistado por suas Tradições e sua incansável capaci-dade intelectual o converteram em uma figura reconhecida em vida, não apenas em seu país, como em

todo o mundo hispanófono, que o acolhe como um dos escritores clás-sicos de prosa mais acessível do continente americano. Foi membro corres-pondente de La Real Academia Española, La Real Academia de la Historia e de la Academia Peruana de la Lengua, assim como mem-bro honorário da Hispanic Society de Nova York. Em 1881, participou da defesa de Mira-flores durante a batalha de Miraflores de 15 de janeiros de 1881, no Forte Nº 2, sob o comando do coronel Ramón Ri-beyro, quando as tropas invasoras incendiaram a cidade, incluindo sua casa. Em 1883, foi nomeado diretor e restaurador da Biblioteca Nacional do Peru.

Casou-se com Cristina Roman Olivier, com quem teve vários filhos. Seu filho, Clemente Palma, foi um escritor de destaque, autor de contos fantásticos, geralmente de terror, sob influência de Edgar Allan Poe, e sua filha, Angélica Palma, foi uma das fundadoras do movimento feminista peruano. Morreu no distrito limenho de Miraflores, em 1919.

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Durante o mês de outu-bro, no tópico “Enchendo Lingüística” da comunidade da Oficina de Escritores, discutimos assunto da dificuldade de escrever sob alguma forma de pressão: de um prazo, de um tema, de um gênero.

Escrever sob pressão, assim como executar qual-quer outra atividade, pode ser tanto um estímulo quanto um agente promotor de mal-estar — do descon-forto ao pânico. Os ofici-neiros que participaram da discussão, todos confiden-ciaram como se relacionam com essas pressões. Como uma tarefa, os colegas pes-

quisaram sobre a vida e os métodos de trabalho e os hábitos de escrita de escri-tores conhecidos, aclama-dos, considerados literatos ou best-sellers.

Nessa pesquisa, pudemos comparar os hábitos dos “grandes” com os nossos, confirmarmos se organiza-ção e método influenciam ou não a atividade dos escritores. E também, para avaliarmos se nossas manias e nossas crises de desespero (quando temos que produ-zir contos dentro de um tema, um gênero e dispo-mos de poucos dias para entregá-los ao organizador da atividade...) estão dentro

da normalidade. Ao menos, da normalidade que com-partilham os escritores.

O resultado dessa pes-quisa foi tão interessante que me senti na obrigação de dividi-lo com o leitor da SAMIZDAT. Como foi produzido a várias mãos, brasileiras e lusitanas, esse texto pode apresentar al-gumas diferenças de grafia entre um trecho e outro da biografia dos autores. Por hora, ainda não temos a reforma ortográfica a nos pressionar, mas essa tam-bém não tarda.

Boa leitura

teoria Literária

ENCHENdo LiNGüÍStiCa: FiCÇÃo SoB PrESSÃo

Volmar Camargo Junior

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Jorge Luis Borges (1899 - 1986) é um au-tor que sempre se considerou um preguiçoso. Numa biografia que li dele, ele afirmava que não escrevia romances porque tinha preguiça, demo-rava muito tempo para serem escritos.

Uma citação que demonstra esta concepção (inclusive a preguiça) pode ser encontrada no prólogo de “Ficções”:

“Desvarío laborioso y empobrecedor el de componer vastos libros; el de explayar en quinien-tas páginas una idea. cuya perfecta exposición oral cabe en pocos minutos. Mejor procedimiento es simular que esos libros ya existen y ofrecer un resumen, un comentario. (...) Más razonable,más inepto, más haragán, he preferido la escritura de notas sobre libros imaginarios.”

Graciliano Ramos (1892 – 1953) era muito meticuloso em sua escrita. Ele costumava cortar todas as arestas e só considera-va seus livros prontos quando estivesse completamente livres de excessos. Durante os anos em que ficou preso, Gracialiano Ra-mos escreveu num diário tudo que lhe ocorria. No entanto, tais notas se extraviaram, o que para o autor foi um bom sinal, pois livrou “Memórias do Cárcere” de informações desnecessárias:

“Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensa-boam e torcem uma, duas vezes. Depois enxaguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar.

Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A pa-lavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra

foi feita para dizer.”

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Mark Twain (1835 – 1910) era um escritor obcecado pela escrita. Escrevia muito e escrevia sempre.

“É um hábito meu manter em processo de construção quatro ou cinco livros duma só vez, e a cada verão adicionar uma fileira de tijolos em dois ou três deles, mas eu não posso prever qual destes dois ou três vingará. Demora uns sete anos para concluir um livro através deste método, mas mesmo assim é um bom método: permite que o público descanse.”

(http://www.w2mw.com/marktwain.htm)

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Guimarães Rosa (1908 – 1967) talvez seja o mais importan-te escritor brasileiro desde Machado de Assis. Com uma escrita própria e poderosa, ele criou alguns mitos literários. Dividia o tempo entre o ofício diplomático e a escrita. Morreu poucos dias após ter tomado posse duma cadeira na ABL. Dizem que era um forte candidato ao Nobel.

“Quando escrevo, não penso na literatura: penso em capturar coisas vivas. Foi a necessidade de capturar coisas vivas, junta à minha repulsa física pelo lugar-comum (e o lugar-comum nunca se confunde com a simplicidade), que me levou à outra necessidade ín-tima de enriquecer e embelezar a língua, tornando-a mais plástica, mais flexível, mais viva. Daí que eu não tenha nenhum processo em relação à criação linguística: eu quero aproveitar tudo o que há de bom na língua portuguesa, seja do Brasil, seja de Portugal, de Angola ou Moçambique, e até de outras línguas: pela mesma razão, recorro tanto às esferas populares com às eruditas, tanto à cidade como ao campo. Se certas palvras belíssimas como’gramado’,’aloprar’, pertencem à gíria brasileira, ou como’ malga’, ‘azinhaga’,‘azenha’ só correm em Portugal - será essa razão suficiente para que eu as não empregue, no devido contexto? Porque eu nunca substituo as pala-vras a esmo. Há muitas palavras que rejeito por inexpressivas, e isso é o que me leva a buscar ou a criar outras. E faço-o sempre com o maior respeito, e com alma. Respeito muito a língua. Escrever, para mim, é como um acto religioso. E prova está em que tenho montes de cadernos com relações de palavras, de expressões. Acompanhei muitas boaidas, a cavalo, e levei sempre um caderninho e um lápis preso ao bolso da camisa, para anotar tudo o que de bom fosse ouvido - até o cantar de pássaros. Talvez o meu trabalho seja um pouco arbitrário, mas se pegar, pegou. A verdade é que a tarefa que me impus não pode ser só realizada por mim.”

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6464 SAMIZDAT dezembro de 2008

José Cardoso Pires (1925 – 1998), escritor

com uma vintena de obras publicadas e uma

dúzia de prémios literários, dedicava-se exclusi-

vamente à escrita nos últimos anos de vida.

Numa sua entrevista de há vinte anos, ele

dizia que escrevia uma página por dia, todos os

dias.

A ideia é simples e tem muita força, tanto

que eu a ainda a lembro. Pensei, então, que

escrever uma página num dia era coisa acessí-

vel e que, por esse método, ao fim de meio ano

podia ter um romance completo.

Clarice Lispector (1920-1977), em uma entrevista para a TV Cultura (janeiro de 1977, publicada na Revista Shalom), quando questio-nada sobre a periodicidade de sua produção literária, Clarice Lispector disse:

“Eu não sou uma profissional, eu só escrevo quando eu quero. Eu sou uma amadora e faço questão de continuar sendo amadora. Profissional é aquele que tem uma obrigação consigo mesmo de escrever. Ou então com o outro, em relação ao outro. Agora eu faço questão de não ser uma profissional... para manter minha liberdade. Tenho períodos de produzir intensamente e tenho períodos-hiatos em que a vida fica intolerável.”

Segundo a autora, a questão da liberdade de escrever quando se quer e assim produzir material legítimo, isento de pressões mercado-lógicas.

A obrigação é vista como algo que inibe a beleza dos textos e torna o escritor um ope-rário que teria em mãos, ao invés de peças de ferro, caneta e papel (máquina de escrever/PC). Isso significa que o ato de escrever com quali-dade está ligado muito mais a um passatempo sem compromissos do que a um ofício regular, linear e imposto.

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José Rodrigues dos Santos (1964) é um jornalista e escritor português best-seller. Tem, publicados, seis romances e alguns ensaios. Faz questão de frisar que os seus livros são baseados em informação científica actualizada, o que o obriga a extensas pesquisas e a consultas a especialistas das matérias aborda-das. Publica, em média, um romance por ano, com uma média superior a 500 páginas, cada, e uma média de vendas superior a 100.000 exemplares, cada. Wow!

O curioso é que a actividade principal dele é jornalismo; é, há muitos anos, um dos três principais pivots do principal jor-nal da emissora estatal de televisão, e já foi o director de infor-mação da estação, durante vários anos.

Um colega comum, intrigado com uma tão extraordinária gestão do tempo, que a sua, como para a maioria de nós, mal dá para se manter lavado e escanhoado, em certa oportunidade, perguntou-lhe:

– Zé, quando é que tu arranjas tempo para escrever livros?A resposta foi de uma simplicidade desarmante:

– De manhã.

António Lobo Antunes (1942) é o escritor português vivo mais conhecido, a seguir a Saramago.

Publicou uma vintena de romances, desde 1979, tendo sido distinguido com vários prémios nacionais e internacionais. Mé-dico psiquiatra, dedica-se em exclusivo à escrita, actualmente,

“Fico parvo quando vejo escritores que escrevem 30 ou 40 páginas por dia. Quando escrevo uma, é uma sorte.”

(Jornal de Notícias, 20.01.2008)

“Quando estou a escrever não existe nada a não ser o livro. Isso é muito bom.”

“...ao acabar-se um dia de trabalho, no dia seguinte o livro inflecte. Às vezes dá-me vontade de continuar a escrever por mais horas. O que eu faço, então, é parar, se possível, a meio de uma frase. Se possível, a meio de uma palavra. Para tentar não torcer muito o rumo ao livro, para usar a sua expressão.”

“Tinha contado fazer esta página em quatro ou cinco dias e fi-la em dois. Isto para mim é uma coisa muito rara.”

“Tenho que me impor uma data para começar. Fui ver ao calendário: 25 de Fevereiro. Não sei porquê. Não é uma data que tenha, para mim, nada de especial. Calhava a uma segunda-feira. Normalmente, o que eu fazia antigamente era esperar que houvesse um mês em que o dia um fosse a uma segunda-feira, para começar. Era uma forma de atrasar o começo do livro.”

“Foi sempre a mesma coisa. Eu não escrevia por estar motivado. Escrevia porque tinha que escrever. Não era uma questão de destino, nem de obrigação.”

(Revista Ler – nº 69 - Maio de 2008. http://www.ala.nletras.com/entrevistas/LER0508.htm)

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Fernando Pessoa (1888 – 1935), sobre o próprio processo de escrita:

“Em eu começando a falar – e escrever à máquina é para mim falar –, custa-me a encontrar o travão. Basta de maçada para si, Casais Monteiro! Vou entrar na génese dos meus heterónimos literários, que é, afinal, o que V. quer saber. Em todo o caso, o que vai dito acima dá-lhe a história da mãe que os deu à luz.)

Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas cousas em verso irregular (não no estilo Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis.)

Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma parti-da ao Sá-Carneiro – de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que final-mente desistira – foi em 8 de Março de 1914 – acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente... Foi o regresso de Fernando Pessoa-Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro.

Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir – instintiva e subconscientemente – uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis,

surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos – a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem.

Criei, então, uma coterie inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de realidade. Graduei as influências, conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as discussões e as divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim. E parece que assim ainda se passa. Se algum dia eu puder publicar a discussão estética entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos, verá como eles são diferentes, e como eu não sou nada na matéria.”

(trecho duma carta de Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro)

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Kafka (1883 – 1934) era um autor atormentado pelo pas-

sado, pela opressora presença paterna e por uma constituição

física doentia. A escrita para ele era um exercício de abnegação

e martírio. Mesmo após a rotina dioturna no escritório, Kafka

atravessava a noite escrevendo.

“É fácil reconhecer a concentração de todas minhas forças na escrita. Quando ficou claro ao meu organismo que a escrita era a mais produtiva direção para o meu ser, tudo se apressou em tal di-reção e esvaziou toda as outras habilidades que eram direcionadas para as alegrias do sexo, da alimentação, da bebida, da reflexão filosófica e, acima de tudo, da música. Atrofiei-me em todas estas di-reções. Isto foi necessário porque a totalidade das minhas forças era tão tênue que apenas coletivamente elas poderiam servir, mesmo que a meio caminho, ao propósito da escrita.”

(Diários, 1912)

Marguerite Duras (1914 – 1996):

“A escrita é o desconhecido. Antes de escrever não sabemos nada acerca do que vamos escrever. Com toda a lucidez.

É o desconhecido de nós mesmos, da nossa cabeça, do nosso corpo. Não é sequer uma reflexão, escrever é uma espécie de facul-dade que temos ao lado da nossa pessoa, paralelamente a ela, de uma outra pessoa que aparece e que avança, invisível, dotada de pensamento, de cólera, e que, por vezes, pelos seus próprios factos, está em perigo de perder a vida.

Se soubéssemos alguma coisa do que vamos escrever, antes de o fazer, antes de escrever, nunca escreveríamos. Não valeria a pena.

Escrever é tentar saber aquilo que escreveríamos se escrevêsse-mos - só o sabemos depois - antes, é a interrogação mais perigosa que nos podemos fazer. Mas é também a mais corrente.”

(“Écrire”)

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José Saramago:

“Nunca andei à procura de ideias para os meus livros. As ideias vêm ter comigo, algumas não servem, outras talvez, outras são como um amor à primeira vista.

Não sistematizo, não faço planos, não escrevo 30 páginas para as converter depois em 300. Os meus livros crescem naturalmente, tal como uma árvore cresce. Quando a árvore atinge o tamanho próprio, deixa de crescer. É muito simples, como vê.”

(http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI16184-15220-

,00-DEI+A+PROCURA+DE+IDEIAS.html)

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Pesquisa realizada por:Henry Alfred BugalhoJoaquim BispoLéo BorgesMaria de Fátima SantosVolmar Camargo Junior

O nipo-brasileiro Ryoki Inoue entrou para o Guiness Book por ser o escritor mais prolí-fico do mundo: segundo ele, produz hoje uma média de três romances por ano, mas chegou a produzir três por dia para cumprir as exigên-cias das editoras. Para citar um exemplo:

“Ao ver Ryoki no Guinness Book, Matt Moffett, jornalista americano do Wall Street Journal, teve sua curiosidade despertada para o processo de criação do escritor, querendo ver pessoalmente para crer, como alguém poderia produzir his-tórias de sucesso em tão pouco tempo. Assim, lançou um desafio ao escritor e aportou em São José dos Campos (onde Ryoki morava na época), no final de janeiro de 1996. Uma semana depois, Moffett contou como nasceu o livro de Ryoki Inoue - Seqüestro Fast Food, elaborado em uma noite, mais precisamente das 23h30 às 4h - num dos jornais mais famosos do mundo.”

(http://www.ryoki.com.br/biografia.htm)

Honoré de Balzac (1799 – 1850) era tão

doido que chegava a escrever por dias a fio.

Sua rotina diária era absurda, como escrever

por quinze horas ininterruptas, regadas a muito

café. Além disso, Balzac sofria de um irrepa-

rável perfeccionismo. Diz-se que fazia pré-

impressões dos livros – ao ponto de ele próprio

adquirir uma pequena gráfica - ocupando

apenas o espaço central da página. Assim, fazia

inúmeras correções, e tornava a imprimir. No

caso do Balzac, cuja obra é monumental, sofria

a pressão de si mesmo.

(http://en.wikipedia.org/wiki/Balzac)

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No mês de novembro, foi lançado o Audiobook com contos de membros da Oficina da E-TL.

O CD foi produzido por Alian Moroz.

Conteúdo

1 - "Vovô Caneco", de Alian Moroz

2 - "O Menino Binário", de Carlos Barros

3 - "Coleção de Botões", de Giselle Sato

4 - "Noite Estrelada", de Guilherme Rodrigues

5 - "A Vingança de Bento Julião", de Henry Alfred Bugalho

6 - "Os Ratos", de Joaquim Bispo

7 - "Esmeralda, Jade e Rubi", de José Espírito Santo

8 - "Fissuras Íntimas", de Leo Borges

9 - "A Palhinha", de Maria de Fátima Santos

10 - "A Última Revolta de Jesus Cristo", de Rogers Silva

11 - "Com Carinho, Isolda", de Volmar Camargo Junior

As faixas do audiobook podem ser baixadas gratuitamente no enredeço abaixo:

http://oficinaeditora.org/2008/11/29/audiobook-da-oficina/

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7070 SAMIZDAT dezembro de 2008

teoria Literária

a tESE Na LitEraturaHenry Alfred [email protected]

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a tESE Na LitEraturaTodo texto defende uma

tese.

Quando afirmamos isto, não nos referimos apenas a textos acadêmicos, ou teóri-cos, mas a todo e qualquer texto, incluindo o texto literário.

Antes de tudo, devemos explicar o que se entende por “tese”. Thesis é uma pala-vra grega derivada do verbo tithemi, cujo sentido nada mais é do que “colocar em algum lugar, apresentar algo”. Este é praticamente o mes-mo sentido da palavra latina propositio, ou proposição, em português.

A tese, ou a proposição, é aquilo que é posto diante dos olhos do leitor, aquilo que o autor deseja apresentar.

Numa carta de amor entre namorados, a tese é provar os sentimentos amorosos dum para o outro; num texto teórico universitário, a tese é a demonstração e comprova-ção duma hipótese; em qual-quer texto, existe uma tese, uma idéia a ser defendida, mesmo que ela esteja diluída e pareça ser inexistente.

Na Literatura, a tese costu-ma transparecer de duas ma-neiras mais comuns: explici-tamente, quando a proposta do texto é convencer o leitor a aceitar a tese, ou implicita-

Charles Thévenin: La prise de la Bastille, 1793Paris, Musée Carnavalet (P.572)

“A opção entre um texto panfletário ou um com tese implícita nunca é descompromissada. A abordagem dependerá do público para o qual a obra se destina, da proposta do autor e também da própria tese defendida.”

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mente, quando o texto esti-mula o leitor a concluir, por si só, qual é a tese.

A Literatura Panfletária

A narrativa literária que defende explicitamente uma tese e que utiliza todos os recursos necessários para persuadir o leitor de sua veracidade é conhecida por “panfletária”.

A literatura panfletária não possui orientação po-lítica específica, pode tanto defender ideais esquerdis-tas quanto de direita, pode ser tão reacionária quanto revolucionária, tão anárquica quanto conservadora.

O “panfleto” não diz res-peito às idéias que estão pre-sentes numa obra literária, mas ao modo como elas são apresentadas. O texto panfle-tário não esconde a que veio, não mascara seus objetivos.

A Literatura panfletária atrai os correligionários da tese defendida, ao mesmo tempo em que repele quem a ela se opõem. Não aceita meio termo.

Um exemplo é “O Últi-mo Dia dum Condenado à Morte” de Victor Hugo. Nesta obra, acompanhamos um prisioneiro pouco antes de sua execução na guilho-

tina. Victor Hugo se opu-nha à pena capital e tanto nesta obra como em outras, ele defenderá este ideal. No entanto, o que diferencia “O Último Dia dum Condenado à Morte” de “Os Miseráveis” é exatamente a opção do autor em, na primeira obra, tornar a tese evidente, isto é, o repú-dio à pena de morte.

Como dissemos anterior-mente, esta escolha do autor delimita o leitor que acolherá o texto, alguns concordarão com ela, outros discordarão e, aquele que estiver indeciso, poderá ser convencido pelos argumentos, ou se constran-gerá por causa da tentativa do autor em manipulá-lo.

A Tese Implícita

Uma narrativa literária também pode apresentar a sua tese sem evidenciá-la.

Na verdade, a Literatu-ra panfletária aborda uma tese sob a mesma ótica dum texto teórico. A tese precisa ser demonstrada, para tanto, apresenta-se casos nos quais ela pode ser aplicada. A ficção situa então a tese num caso ficcional, que através do enredo visa comprovar a tese que a motiva. Retornando ao exemplo da obra de Hugo, para provarmos que a pena de morte é cruel, apresenta-

mos um personagem sofren-do por causa da expectativa da execução.

Já no caso duma obra na qual a tese esteja implícita, o autor geralmente tenta falsear a tese defendida, ou apresenta uma tese contrá-ria que será, no decorrer da narrativa, refutada.

Podemos utilizar outra obra de Hugo como exemplo: em “Os Miseráveis” a tese ini-cial parece ser a de que “um criminoso nunca se recupera, nunca mais pode ser reinse-rido na sociedade”.

Como Hugo introduz esta falsa tese?

Jean Valjean é libertado da prisão, mas como ele é um ex-condenado, ele é obrigado a carregar um passaporte amarelo, o que faz com que ele seja estigmatizado pela sociedade. Nem teto para dormir ele consegue encon-trar.

No entanto, um bispo o abriga em sua casa. Naquela mesma noite, Jean Valjean resolve roubar a casa de seu anfitrião, ou seja, a tese pare-cia ser: “Jean Valjean (e, por extensão, todos os demais ex-condenados) sempre será um criminoso”.

Mas o protagonista é capturado e reconduzido à presença do bispo, que, ao invés de acusar Jean e enviá-

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lo novamente para a prisão, mente para a polícia, dizendo que os bens roubados eram, na verdade, presentes seus para Jean.

Esta atitude do bispo é um ato de perdão que Jean jamais poderia imaginar. Daquele ponto em diante, ele decide que será um homem correto. Todo o restante do enredo trata de luta de Jean para apagar seu passado e provar que ele está mudado.

Victor Hugo compreende que esta é a maneira mais eficaz para abordar tal tese. Através dos atos de Jean Valjean, o autor acaba condu-zindo o leitor à conclusão de que um homem pode mudar, que um criminoso pode se recuperar.

Através da negação, atra-vés de caminhos tortuosos, o autor pode conduzir o leitor até a tese defendida.

Outro bom exemplo é a obra-prima de Dostoievesky, “Crime e Castigo”. Nela acompanhamos o perso-nagem Raskolnikov, um estudante russo que elabora uma teoria: “as pessoas estão divididas em duas categorias: as ordinárias, para quais as leis e normas morais valem, e as extraordinárias, que estão acima do bem e do mal”. Raskolnikov acredita fazer parte da segunda categoria,

acredita ser extraordinário. No entanto, quando ele assas-sina sua senhoria, ele começa a constatar que talvez es-tivesse equivocado, que ele também faz parte dos ho-mens ordinários. Em Dostoie-vsky, quase sempre a tese é a antítese do que ele apresenta no início de suas obras.

Tese Explícita ou Implí-cita?

Todo texto defende uma tese. Contudo, a abordagem desta tese faz parte do plane-jamento duma obra literária. O autor deve saber, de ante-mão, qual será a tese defendi-da, e como ele fará para que o leitor a perceba.

A opção entre um texto panfletário ou um com tese implícita nunca é descom-promissada. A abordagem dependerá do público para o qual a obra se destina, da proposta do autor e também da própria tese defendida.

Não é tão simples estabe-lecermos uma hierarquia de valores e considerarmos as obras panfletárias como pio-res do que aquelas com tese implícita. Na verdade, para alguns leitores, apenas uma obra com objetivo explícito é compreendida; nem todos possuem o refinamento para ler as entrelinhas dum texto

cuja tese esteja disfarçada.

Entretanto, a História da Literatura costuma destacar os autores que conseguem defender suas idéias sem dogmatismo, sem proselitis-mo. Via de regra, uma obra de Arte é aquela capaz de to-car, de algum modo, todas as pessoas, concordem elas ou não com a tese apresentada.

E, para muitos leitores, desvendar os mistérios, desencavar os porões duma obra literária para desvelar seu sentido é uma grande recompensa. Prêmio comu-mente recusado por obras panfletárias.

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Crônica

Giselle Natsu Sato

ErótiCo ou PorNoGrÁFiCo: EiS a quEStÃo

http://www.flickr.com/photos/ericasimone/302258138/sizes/o/

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ErótiCo ou PorNoGrÁFiCo: EiS a quEStÃo

O próximo SAMIZDAT especial, apresentará o tema erótico. Quando o assunto é sexo, alguns termos são as-sociados automaticamente.

Pornografia e erotismo surgem como correntes antagônicas. Para entender, montei um mosaico e com muito cuidado, tentei encai-xar as peças. O assunto é delicado, fascinante e polê-mico.

Pornografia tem origem grega, significa inscrita da prostituição. Atualmente é a representação, por quais-quer meios, destinada a instigar a libido. O aspecto moral é bastante pesado. Está associada, aos maiores problemas sociais do mun-do moderno.

Crimes contra menores, estímulo de violência e abusos sexuais. Neste ponto, fica bem claro a diferen-ça moral e legal das duas vertentes.

Porém, ao falar de erotis-mo as coisas mudam. Usa-mos um tom mais brando, sofisticado e com ares de superioridade. Erotismo é referente a amor, paixão e desejo ardente. Prazer pelo prazer.

Apesar da intensidade, é associado a um concei-to suave e permissivo. No mundo das artes, a linha entre pornografia e erotis-mo é muito tênue. Como diferenciar a pornografia e o erotismo?

Paixão, amor e desejo. A necessidade fundamental de algum contato. O erotismo sugere a presença, ainda que virtual de compartilhar o prazer. Mesmo em pensa-mento, não foge da idéia de registrar um parceiro.

Há textos conceituando essas duas palavras à parti-cipação ativa. Como se na pornografia, o estímulo à participação fosse direto e de forma objetiva. No eró-tico esse convite é subli-minar, o que condiz com o conceito de que o porno-gráfico expõe e o erótico faz desejar.

A literatura erótica tra-duz a inspiração em for-ma de desejo. O sexo está inserido na narrativa, po-dendo ou não ser o assunto principal. A imaginação em possibilidades múltiplas, conduz ao mundo íntimo. Velado, oculto e silencioso.

O que não ocorre nos textos pornográficos. O contexto deste tipo de leitu-ra é o sexo explícito. Sem a menor preocupação em ser vulgar ou obsceno. É cru, realista e sem meio-termo. Tem urgência e o ‘tesão’’ é imediato!

O erotismo é algo que pode não ser pornográfi-co, porém a pornografia é necessariamente erótica. Temos outro ponto que ainda hoje, e por muito tempo, tornará esses concei-tos nebulosos e pessoais. O

que define o que é erótico: quem o produz ou quem observa?

Definitivamente, erotismo e pornografia caminham lado a lado. Estão presentes em nossas vidas, entram em nossas casas através dos canais de comunicação. São usados em propagandas, mexem com o imaginário e estão disponíveis.

Sem hipocrisia e falsos moralismos, acredito que somos responsáveis por nossas escolhas. E limites.

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7676 SAMIZDAT dezembro de 2008

Os cemitérios de Lisboa são lindíssimos. Têm ave-nidas bordejadas de «pala-cetes» e esculturas, muitas flores e algum silêncio. Ostentam uma arquitectura que, ao longo dos tempos, tem reflectido a arquitec-tura dos vivos. E melhor preservada que a da cidade dos vivos. É que, nessa cida-de dos mortos, não é neces-sário deitar jazigos abaixo para construir agências de bancos e de companhias de seguros. Ali, não abundam os clientes financeiros.

Vêem-se jazigos de todos os estilos: neo-gótico, neo-manuelino, neo-clássico, casa portuguesa. Uns, impo-nentes, a reflectir a impor-tância do defunto em vida,

outros, discretos, a exaltar a humildade devida ao novo estado. Alguns são autênticas esculturas arqui-tecturais. É nos cemitérios, também, que existe, tal-vez, a maior concentração de escultura por hectare. Alguma, de grande qua-lidade. Além de chorosos anjos, escondendo a face, encontram-se, também, muitas alegorias da dor e da perda, adequadamente acompanhadas de fustes de colunas partidos ou troncos de árvore decepados preco-cemente. Lápides verticais ostentam delicados rendi-lhados florais em alto-rele-vo ou símbolos adequados à profissão e ao estatuto do finado.

Uma deambulação por um silencioso cemitério lisboeta é, quase de certeza, mais tranquilizante e cultu-ralmente mais estimulante que um passeio por muitos dos jardins da cidade.

Estes cemitérios têm rit-mos próprios. Cada talhão de enterramento passa por uma fase de alvoroço, de abertura de covas e mon-tões de coroas de flores, que progride, durante umas poucos semanas ou me-ses, em linhas paralelas ao longo do talhão. Aos pou-cos, as linhas revoltas vão evoluindo para um aspecto arrumado, pincelado de lajes de mármore e floreiras multicoloridas. Chega um momento em que todo o ta-

Joaquim Bispo

a Vida CoNtiNuaCrônica

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a Vida CoNtiNualhão se arrumou e mantém um aspecto muito estável durante cinco anos, com os mármores alinhados, entre-meados por um ou outro monte de terra dos defuntos de menos posses, cada um com a sua floreira. Às vezes, com uma ou outra placa de mármore com inscrições do tipo: «Grand-maman – Je ne t’oublierais jamais».

Muitas vezes, esses ta-lhões, de meio hectare de área, estão circunscritos por um muro quadriláte-ro de gavetas de cimento embutidas nas quais, mais tarde, serão depositados os pequenos caixões contendo apenas os ossos lavados e desinfectados dos corpos que tenham atingido o estado necessário ao levan-tamento.

Estar sozinho num desses talhões a observar a ex-tensão florida agitada pela aragem e a ouvir o concer-to da vibração das centenas de pequenas floreiras me-tálicas, faz-nos sentir num universo distinto do nosso. São várzeas artificiais, «pra-dos» de flores naturais de caules cortados, e de flores de plástico, inseridas em floreiras, numa densidade e numa multiplicidade de cores que nem a Natureza produz.

Depois, passados os cinco anos da curtimenta, os talhões começam a ser escalavrados pelos levanta-mentos avulsos, que deixam

uma paisagem desoladora semeada de crateras rectan-gulares por entre as campas intactas cujos ocupantes se atrasaram a atingir a de-composição total. Passado algum tempo, tudo reco-meça e o talhão recobra a «vida» florida – se de vida podemos falar –, para mais um ciclo de enterramentos.

Aos Domingos, os ciga-nos instalam-se todo o dia no cemitério a honrar os seus mortos. Pintaram de branco a moldura da gaveta onde está o caixão do fa-miliar falecido e o chão do passeio por baixo da gaveta. Mantêm-se por ali a limpar a gaveta, o caixão, o pano que o tapa e depois ficam simplesmente sentados, de porta da gaveta aberta com várias fotografias do de-funto expostas e jarrinhas de flores sobre naperons brancos.

Os outros vão menos ao cemitério. E tanto menos quanto o inexorável apaga-mento da dor que a pas-sagem do tempo provoca. As floreiras deixam de ter flores naturais e ficam-se pelas de plástico que «du-ram mais tempo». Mesmo essas são, às vezes, levadas pelo vento. No fim do Ve-rão, a maioria das floreiras está vazia.

Perto do Dia de Finados – 2 de Novembro –, os ce-mitérios enchem-se, numa romaria de mãos carrega-das de flores. Cumpre-se a

«obrigação» e o ritual. Por entre o bulício respeitoso dos que levam um rumo determinado, é possível ouvir pelas alamedas:

– Anda cá, o 1622 deve ser para aqui!

– O João não disse onde é? Ele já cá veio uma vez!

– Sim, mas já foi há mui-to tempo!

Há pessoas de todas as idades encavalitadas nas escadas metálicas que os cemitérios disponibilizam para aceder às posições mais elevadas. Nessa oca-sião, são sobretudo os mu-ros repletos de gavetas que registam uma primavera fora de época.

Pode ler-se, aqui e ali, nas portinhas: «O tempo passa – A saudade aumen-ta». Ou outra mentirinha parecida, crida com toda a sinceridade. O tempo passa e tudo faz passar, felizmen-te. Ninguém conseguiria viver, sempre, com a dor do primeiro dia; ninguém con-seguiria aguentar, ano após ano, as saudades sentidas no primeiro.

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7878 SAMIZDAT dezembro de 2008

Maristela Scheuer Deves

Nossa história abandonada

Crônica

http://www.flickr.com/photos/billselak/1667312476/sizes/l/

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Lendo uma reportagem, tempos atrás, fiquei pen-sando como é estranho que nós, muitas vezes, simples-mente apaguemos da mente fatos marcantes do nosso passado – do nosso, mesmo, não o de nossos pais ou avós. No embalo das novas tecnologias, nem sabemos mais manusear uma máqui-na de escrever, sobre a qual nos debruçamos horas e horas para aprender datilo-grafia. E com o advento do ar-condicionado, ainda sabe-ríamos fazer um leque para espantar o calor, como nos tempos de criança?

A vida doméstica foi o que mais mudou desde os meus primeiros anos – e olhe que tenho só 33. Hoje, me parece impossível que, na infância, eu tenha bebi-do água puxada com balde de um poço junto de casa. Ou, mais estranho ainda, que os banhos não eram de chuveiro elétrico, mas sim de chuveiro de lata, uma espécie de balde com chuveirinho adaptado no qual despejávamos água aquecida. As torneiras só vieram bem depois. No lugar de vaso sanitário, até os meus quatro, cinco anos, usávamos os “toaletes” de madeira, construídos em cima de poços-negros. E eu

adorava ir ao banheiro na casa da vovó, onde além do modelo adulto havia um para crianças...

Em vez de videogame, a brincadeira era mesmo na rua, no pátio, na mata atrás da casa do vovô, no telhado da casa vizinha, de onde passávamos o dia pulando e subindo, com a falta de medo dos pequenos. A TV também era companhia, mas os desenhos e pro-gramas pareciam Ter mais sentido. Sítio do Pica-Pau Amarelo, Clubinho Gaúcha Zero Hora... Bons sonhos eles inspiraram!

Outras brincadeiras que me fascinavam ti-nham, também, a ver com o passado – dessa vez, dos meus antepassados. Adora-va fuçar no girau da casa do vovô Jacó, descobrindo livros e objetos antigos. E todos aqueles quadros nas paredes da velha casa em estilo enxaimel? E o grande relógio sobre duas portas fechadas, atrás das quais, segundo a vovó Leduína, se escondia o “Christkind”? Na casa dos outros avós, Gui-lherme e Linda, a atração era o galpão, onde estavam as quinquilharias – o baú dos bisavós e tataravós, que deu origem a várias histó-

rias; as bijouterias antigas; as estranhas fotos mostran-do noivas vestidas de negro.

Hoje nada disso existe mais. Nem as brincadeiras, nem os banheiros ou chu-veiros improvisados, nem os museus de faz-de-conta, nem os avós. Até da me-mória eles somem, às vezes. Mas, quando lembro, dá uma saudade...

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8080 SAMIZDAT dezembro de 2008

Volmar Camargo [email protected]

LaBoratório PoÉtiCo

o pior dos deusesO tempo é o menos óbvios dos deuses

Ilude-nos com isso de passado e futuro

E ri de nossos medos.

A esperança é a única entre os deuses

Capaz de sofrer conosco

Mas ri de nossos medos.

De todos eles, ainda pior é o amor.

Faz o tempo e a esperança parecerem amadores.

Poesia

o poço

Encontrei há tempos um poço

Onde havia de mim idêntico,

Mesmo que inverso, um outro.

Do fundo, com rancor autêntico,

Encarou-me aquele eu imerso

Impondo que fosse em seu encontro.

Entre a borda e a água ficou suspenso

O olhar que lá deixei cair dentro.

O ser definitivo

O ser definitivo

Tal homem e bicho

Será finito.

Etéreo, incorpóreo

Crescerá como quiser

E quando quiser, morrerá.

Será como os sonhos

Partindo sem ser lembrado.

o sangue negro

As almas são negras

As dores são negras

Negros amores são.

Os sangues são negros

Os filhos dos homens são negros

Negras são todas as mães

Da mesma negra massa somos

Todos negros irmãos.

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urBaNidadECarlos Alberto Barros

Se a cidade eu escrevesse,Desse jeito, não faria.Mudaria suas vias,Para a morte não achá-las.Não mais sangue: vinho tintoNos seus cantos, suas valas.Em suas praças, seus recintos,Só o amor como interesse.

Se a cidade eu rabiscasse,Muita coisa censurava:Empregada feita escrava;Mãe sem ter onde parir;O menino andando roto;Dia-a-dia sem porvir...O acordar seria outro:Sol sorrindo em cada face!

Se a cidade eu colorisse,Transformava todo prédio.E na casa entregue ao tédio,Pintaria multicores.Edifício arranha-céu,De minhas mãos, teria flores,Feito um grande carrossel,Pr’a acolher as meninices.

Se a cidade, um dia, eu fosse,Com seus bares, padarias,Um desejo só teria:De, com zelo, ser gerido.E quem quer que nessa ganaDescrevesse o colorido,Não deixasse a face urbanaMascarar-me a alma doce.ht

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8282 SAMIZDAT dezembro de 2008

ficina

A Oficina Editora é uma utopia, um não-lugar. Apenas no século XXI uma vintena de autores, que jamais se encontraram fisicamente, poderia conceber um projeto semelhante.

O livro, sempre tido em conta como umas das principais fontes de cultura, tornou-se apenas um bem de consumo, tornou-se um elemento de exclusão cultural.

A proposta da Oficina Editora é resgatar o valor natural e primeiro da Literatura: de bem cultural. Disponibilizando gratuitamente e-books e com o custo mínimo para livros impressos, nossos autores apresentam a demonstração máxima de respeito à Literatura e aos leitores.

http://oficinaeditora.org/

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SOBRE OS AUTORES DA

SAMIZDATSOBRE OS AUTORES DA

SAMIZDATSOBRE OS AUTORES DA

SAMIZDAT

SOBRE OS AUTORES DASA-

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E OS

AUTO

RES

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Carlos Alberto Barros

Paulistano, filho de no

rdestinos, desenhis-

ta desde sempre, artis

ta plástico formado,

escritor. Começou sua

vida profissional como

educador e, desde entã

o, já deixou seu ras-

tro por ONG’s, Escolas

e Centros Culturais,

através de trabalhos a

rtísticos e pedagógi-

cos – experiências que

têm forte influência

sobre seus escritos. A

tualmente, organiza

oficinas de ilustração

para crianças, estuda

pós-graduação em Histó

ria da Arte e escreve

para publicações na in

ternet.

[email protected]

om

http://desnome.blogspo

t.com

Dênis Moura é paulistano de pia, cearence de mar e poeta de amar. Viaja tanto o céu estrelado quanto o ciberespaço, mais com bits de imaginação que com telescópios. Pensa que tudo se recria a cada Big Bang, seja ele micro, macro ou social. Luta pela justiça, a paz e a igualdade, com um giz na mão e uma pistola na outra. É Tecnólogo a sonhar com Telemática social, com a demo-cracia participativa eletrônica, onde o povo eleja menos e decida mais. Publica estes dias sua primeira obra, um Romance de Ficção Científica, e deixa engavetadas suas apunhaladas poesias. É feito de bits, links e teia pra que não desmaterialize, o clique, o blogue e o leia!

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8484 SAMIZDAT dezembro de 2008

Guilherme RodriguesEstudante Letras na

Universidade do Sagrado Coração, em Bauru, onde sempre morou. Nutre grande paixão por Línguas, Literatura e Lingüística, áreas em que se dedica cada vez mais.

Giselle SatoGiselle Sato é autora de Meninas Malvadas, A pequena

bailarina e Contos de Terror Selecionados. Se autodefine apenas como uma contadora de histórias carioca. Estudou Belas Artes, Psicologia e foi comissária de bordo. Gosta de retratar a realidade, dedicando-se a textos fortes que chegam a chocar pelos detalhes, funcionando como um eficiente panorama da sociedade em que vivemos.

[email protected]

José Espírito Santo

Informático com licenciatura e pós

graduação na Faculdade de Ciências da

Universidade de Lisboa, trabalha há largos

anos em formação e consultoria, sendo

especialista em Bases de Dados, Sistemas

de Gestão Transaccional e Middleware de

“Messaging”. A paixão pela escrita surgiu

recentemente, tendo no ano de 2007

produzido os livros “Esboços” (contos) e

“Onde termina esta praia” (poesia). Vive

com a família em Portugal em Alverca, uma pequena cidade um pouco a norte de

Lisboa. [email protected]

http://www.riodeescrita.blogspot.com/

Henry Alfred Bugalho

É formado em Filosofia pela UFPR, com

ênfase em Estética. Especialista em Literatura e

História. Autor de quatro romances e de duas

coletâneas de contos.

Mora, atualmente, em Nova York, com sua

esposa Denise e Bia, sua cachorrinha.

[email protected]

www.maosdevaca.com

Joaquim BispoEx-técnico de televisão,

xadrezista e pintor amador, licenciado recente em His-tória da Arte, experimenta agora o prazer da escrita, em Lisboa.

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85www.samizdat-pt.blogspot.com

Maristela Scheuer Deves

Zulmar Lopes

Zulmar Lopes é carioca. Formado em jorna-

lismo pela Universidade Gama Filho, trabalha

como assessor de imprensa. Alma provinciana e

coração suburbano, encontra-se provisoriamen-

te exilado na cosmopolita Copacabana, bairro

fonte de inspiração de personagens e situações

que compõem seus contos. Escreve para fugir

do marasmo.

Marcia Szajnbok

Médica formada pela Facul-

dade de Medicina da Univer-

sidade de São Paulo, trabalha

como psiquiatra e psicanalista.

Apaixonada por literatura e lín-

guas estrangeiras, lê sempre que

pode e brinca de escrever de vez

em quando. Paulistana convicta,

vive desde sempre em São Paulo.

[email protected]

Volmar Camargo Junior é gaúcho. Formado em Letras pela Universidade de Cruz Alta, não leciona por sua própria vontade. Entrou na ECT em 2004, e desde então já morou em meia dúzia de “Pereirópolis” pelo Rio Grande. Atualmente vive com a esposa Natascha em Canela, na Serra Gaúcha. Dividem o apartamento com Marie, uma gata voluntariosa e cínica.

[email protected]://recantodasletras.uol.com.br/autores/vcj

Maria de Fátima SantosNasceu em Lagos, Algarve, mas tem Angola, onde

viveu a adolescência, como a sua mãe-terra. Licencia-da em Física tem sido professora de Física e Química. Com poemas em vários livros, em co-autoria, é às pe-quenas histórias, que lhe voam no teclado, que chama “meus contos”. O blog Repensando (www.intervalos.blogspot.com ) tem sido seu parceiro e motivador na escrita dos últimos anos. Escreve pelo gosto de deixar que as palavras vão fazendo vida. Escreve pelo gozo.

Pedro FariaEstuda Matemática na Univer-

sidade Estadual do Rio de Janeiro, músico amador e escritor quando dá na telha. Nascido e criado no Rio.

[email protected]

http://civilizadoselvagem.blogspot.com/

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8686 SAMIZDAT dezembro de 2008

Também nesta edição,textos de

Carlos alberto Barros

dênis moura

Giselle Natsu Sato

Guilherme rodrigues

Henry alfred Bugalho

Joaquim Bispo

José Espírito Santo

marcia Szajnbok

maria de Fátima Santos

maristela Scheuer deves

Pedro Faria

Volmar Camargo Junior

zulmar Lopes