Sangue Azul

2
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES CTR0651 - História do Audiovisual Brasileiro I Prof. Carlos Augusto Calil Resenha do filme “Sangue Azul” (2014) João Pedro Durigan Alves - nº USP: 7961408 Em “Sangue Azul”, do diretor Lírio Ferreira, o circo do ilusionista Kaleb (Paulo César Peréio) se instala na ilha de Fernando de Noronha. O filme acompanha as interações dos artistas circenses com os habitantes da ilha, em especial o homem-bala Zolah (Daniel de Oliveira), que reencontra sua mãe Rosa (Sandra Corveloni) e a irmã Raquel (Caroline Abras), por quem Zolah tem desejos incestuosos. Nesse cenário paradisíaco, porém as- sustadoramente isolado, as relações inicialmente cordiais vão, aos poucos, se tornando imprevisíveis, a medida que a estabilidade dá lugar ao caos. Se o circo é geralmente símbolo de diversão e alegria, aqui ele ganha o significado oposto: sua presença é claustrofóbica e, a partir do momento que vemos suas vidas foras do picadeiro, suas atrações tornam-se espetáculos vazios. Há uma atmosfera melancólica que envolve todos esses artistas, materializada na tatuagem do francês Gaetan (Matheus Nachtergaele), que se assemelha a uma lágrima, transformando o ambiente de Noronha. O filme começa em preto e branco, com a montagem do picadeiro, e segue assim até que vemos o espetáculo do homem-bala. Assim que Zolah sai do canhão, a tela ganha cores super-saturadas que, nas cenas seguintes, destaca a beleza natural da ilha. O azul é presença constante, no mar, no céu ou nas paredes de construções, evocando uma tranquilidade inexistente nos personagens. A vastidão de personagens não é favorável para o desenvolvimento adequado das mesmas; “Sangue Azul”, porém, tira proveito disso, oscilando entre o explícito e o subentendido, resultando numa experiência mais sensorial que inteligível. Um dos fatores explícitos é a metalinguagem, escancarada em uma fala de Kaleb, que diz ter saudades do cinema antigo e o seu olhar para o onírico. Está também presente na cena em que ele hipnotiza um espectador do circo (possuindo referências claras ao Expressionismo alemão) e na escolha do ator Peréio, conhecido pelas pornochanchadas, e do cineasta Ruy Guerra, que atuam nos papeis do ilusionista e do cego Mumbebo respectivamente. Da mesma forma, o sexo não é escondido na tela, não só nas cruas cenas entre Zolah e suas parceiras, mas também nas frequentes referências fálicas do filme. A mais óbvia é o canhão do homem-bala, que lança Zolah para o alto: em seu primeiro show na ilha, a montagem alterna entre seu prazer sexual e o seu lançamento, contando ainda com ajuda da fotografia, que enche a tela, antes dessaturada, de cor. Numa cena posterior, um acidente durante a apresentação faz um paralelo com sua frustação sexual. Em outra cena, Cangulo (Rômulo Braga), namorado de Raquel, posiciona uma garrafa de

description

Breve resenha do filme Sangue Azul.

Transcript of Sangue Azul

Page 1: Sangue Azul

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES

CTR0651 - História do Audiovisual Brasileiro I Prof. Carlos Augusto Calil

Resenha do filme “Sangue Azul” (2014) João Pedro Durigan Alves - nº USP: 7961408

Em “Sangue Azul”, do diretor Lírio Ferreira, o circo do ilusionista Kaleb (Paulo César Peréio) se instala na ilha de Fernando de Noronha. O filme acompanha as interações dos artistas circenses com os habitantes da ilha, em especial o homem-bala Zolah (Daniel de Oliveira), que reencontra sua mãe Rosa (Sandra Corveloni) e a irmã Raquel (Caroline Abras), por quem Zolah tem desejos incestuosos. Nesse cenário paradisíaco, porém as-sustadoramente isolado, as relações inicialmente cordiais vão, aos poucos, se tornando imprevisíveis, a medida que a estabilidade dá lugar ao caos.

Se o circo é geralmente símbolo de diversão e alegria, aqui ele ganha o significado oposto: sua presença é claustrofóbica e, a partir do momento que vemos suas vidas foras do picadeiro, suas atrações tornam-se espetáculos vazios. Há uma atmosfera melancólica que envolve todos esses artistas, materializada na tatuagem do francês Gaetan (Matheus Nachtergaele), que se assemelha a uma lágrima, transformando o ambiente de Noronha.

O filme começa em preto e branco, com a montagem do picadeiro, e segue assim até que vemos o espetáculo do homem-bala. Assim que Zolah sai do canhão, a tela ganha cores super-saturadas que, nas cenas seguintes, destaca a beleza natural da ilha. O azul é presença constante, no mar, no céu ou nas paredes de construções, evocando uma tranquilidade inexistente nos personagens.

A vastidão de personagens não é favorável para o desenvolvimento adequado das mesmas; “Sangue Azul”, porém, tira proveito disso, oscilando entre o explícito e o subentendido, resultando numa experiência mais sensorial que inteligível. Um dos fatores explícitos é a metalinguagem, escancarada em uma fala de Kaleb, que diz ter saudades do cinema antigo e o seu olhar para o onírico. Está também presente na cena em que ele hipnotiza um espectador do circo (possuindo referências claras ao Expressionismo alemão) e na escolha do ator Peréio, conhecido pelas pornochanchadas, e do cineasta Ruy Guerra, que atuam nos papeis do ilusionista e do cego Mumbebo respectivamente.

Da mesma forma, o sexo não é escondido na tela, não só nas cruas cenas entre Zolah e suas parceiras, mas também nas frequentes referências fálicas do filme. A mais óbvia é o canhão do homem-bala, que lança Zolah para o alto: em seu primeiro show na ilha, a montagem alterna entre seu prazer sexual e o seu lançamento, contando ainda com ajuda da fotografia, que enche a tela, antes dessaturada, de cor. Numa cena posterior, um acidente durante a apresentação faz um paralelo com sua frustação sexual. Em outra cena, Cangulo (Rômulo Braga), namorado de Raquel, posiciona uma garrafa de

Page 2: Sangue Azul

cerveja na virilha e, num descuido, derruba o conteúdo na perna da moça, que se irrita e levanta do sofá - também um comentário sobre a relação do casal.

A visão do filme sobre o tema é patológica e frequentemente parceiros sexuais são retratados em planos inclinados e até de cabeça para baixo. A masculinidade é questionada na personagem Inox (Milhem Cortaz), “o homem mais forte do mundo” e gay, parceiro de Kaleb. O desejo sexual aqui é uma necessidade fisiológica, desconectado do romance.

No entanto, é de maneira mais sutil que se estabelece a relação entre Zolah e sua mãe. O distanciamento entre os dois (Rosa entregou Zolah à Kaleb na infância) causa um certo choque entre os familiares: Zolah rejeita seu nome antigo (Pedro) e não deseja voltar a morar na ilha; Rosa vive uma vida solitária, sendo as galinhas que cria suas únicas companhias, e quer o filho de volta. A incompatibilidade dessas vontades afasta definitivamente mãe e filho, fisicamente, inclusive, na cena em Zolah visita seu quarto.

Ainda no núcleo familiar, os irmãos Zolah e Raquel vivem uma relação proibida. O medo do mar impede uma maior aproximação do homem-bala e da mergulhadora. Quando Kaleb some, Zolah transforma-se, liderando o circo e bebendo cachaça - passa também a usar os óculos deixado pelo ilusionista. Ele, então, mergulha com a irmã. O casal se consolida em uma bela cena onde vê-se os dois fazendo acrobacias dentro d’água, uma síntese entre a ocupação dela e dele.

“Sangue Azul” não revela o destino final das personagens, mas as palavras proféticas de Mumbebo sugerem uma conclusão mística e simbólica. Zolah é como uma fragata: deve se alimentar do que lhe é oferecido; se mergulhar no mar, ficará cego. O destino dos irmãos é a condenação divina, como a dos dois gigantes que originaram Noronha no rito contado pelo velho. Afinal, não é coincidência que essa história se passe na ilha que contém o Morro Dois Irmãos.

Na sessão do dia 6 de julho, no Espaço de Cinema Itaú - Augusta, assistiram ao filme 15 pessoas, a maioria por indicação de conhecidos ou por críticas positivas.