SANGUE, IDENTIDADE E VERDADE: Memórias sobre … · 3 Universidade Estadual de Campinas Instituto...

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Liliana Lopes Sanjurjo SANGUE, IDENTIDADE E VERDADE: Memórias sobre o passado ditatorial na Argentina Campinas 2013

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  • Liliana Lopes Sanjurjo

    SANGUE, IDENTIDADE E VERDADE: Memrias sobre o passado ditatorial na Argentina

    Campinas 2013

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    Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e Cincias Humanas

    Liliana Lopes Sanjurjo

    SANGUE, IDENTIDADE E VERDADE: Memrias sobre o passado ditatorial na Argentina

    Orientadora: Profa. Dra. Bela Feldman

    Tese de Doutorado apresentada ao Instituto de Filosofia e Cincias Humanas, para obteno do ttulo de Doutora em Antropologia Social.

    Este exemplar corresponde verso final da tese defendida pela aluna Liliana Lopes Sanjurjo, e orientada pela Profa. Dra. Bela Feldman

    Campinas 2013

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    Aos meus pais, in memoriam

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    AGRADECIMENTOS

    Embora o trabalho de escrita seja autoral e, por vezes, um exerccio bastante solitrio,

    uma tese est longe de ser o resultado de uma atividade individual. De fato, dificilmente este

    texto se concretizaria sem a ajuda, o apoio, a solidariedade e o companheirismo de inmeras

    pessoas.

    Em primeiro lugar, gostaria de agradecer imensamente a Bela Feldman-Bianco.

    Orientadora de longa data, sem sombra de dvida, ela foi (e continuar sendo) uma das

    principais responsveis pela minha formao como antroploga. Desde muito cedo me

    introduziu nesse caminho instigante da investigao antropolgica que, conforme me disse

    certa vez, seria como uma espcie de trabalho de detetive voltado para o desvendamento dos

    enigmas sociais. Ensinou-me sobre a importncia do lugar da paixo na escolha de nossos

    temas de pesquisa e sobre a relevncia da produo de uma antropologia politicamente

    engajada. Sou grata pela confiana e pela liberdade conferida para a conduo desse trabalho,

    que inevitavelmente levar a marca da antropologia que procura fomentar: um conhecimento

    aberto pluralidade de temas, materiais e fontes documentais, caracterizado pela heterodoxia,

    mas sem perder de vista os mtodos e a nfase na investigao das relaes entre Cultura e

    Poltica. Sou grata pelo seu profundo humanismo, carinho, afeto, amizade, pacincia e

    compreenso, sobretudo diante das situaes mais difceis que a vida irremediavelmente nos

    coloca.

    Tambm sou imensamente grata a todos os familiares de desaparecidos que me

    acolheram durante a pesquisa de campo na Argentina ou que se dispuseram a contar, mais uma

    vez, as suas dolorosas memrias e histrias de vida. Foram eles que tornaram possvel esse

    trabalho: as madres Nora Cortias, Nadia de Ricny, Ada Sarti, Irma Morresi, Juanita

    Pargament e Lita Boitano; as abuelas Rosa Roisinblit, Estela Carlotto, Angelita Barilli de Tasca

    e Negrita Segarra; os padres de la plaza Julio Morresi e Abel Madariaga; as queridas Mara

    Socorro Alonso e Adela Antokoletz; os hijos Agustn Cetrangolo, Leonardo Fossatti e Giselle.

    Agradeo ainda a Marcelo Lopez, Pablo Varella, Celeste Perosino, bem como Guillermina

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    Zampieri e Silvina Segundo, estas ltimas, pela disposio e ajuda na conduo da pesquisa nos

    arquivos de Memoria Abierta. Agradeo especialmente a Juan Ros pela amizade, cumplicidade e

    parceria durante a minha estada em Buenos Aires e, principalmente, nos tribunais.

    Agradeo a minha querida irm Alicia por compartilhar as alegrias e vicissitudes da vida,

    a Fernando Poli por am-la e aos dois por trazerem o Antnio a este mundo. Agradeo a minha

    av Cludia e a minha tia Mara Ester pelo carinho e afeto de famlia. E agradeo imensamente

    a aqueles que, h muito tempo, me escolheram e me adotaram como sobrinha: tio Carlos e tia

    Susana Rettori. Meus agradecimentos especiais a Mila Cosme por todo amor, cuidado e ajuda

    prestada em momentos delicados.

    Sou grata as minhas velhas amigas-irms, companheiras de todas as horas, Laura

    Santonieri, Dorotea Grijalva, Patrcia Gimeno e Fabiana Guedes. Agradeo tambm o

    companheirismo em Buenos Aires das minhas novas amigas Mariana Palomino, Betania

    Gonzlez e, especialmente, Tatiana Beck. Agradeo os queridos amigos de hoje e de sempre

    Bukke Reis, Taniele Rui, Clia Harumi, Jos Szwako, Paula Fontanezzi, Diego Marques, Pedro

    Loli e Sullivan. Um agradecimento especial a Francisco Russo pelo amor e cumplicidade por

    ser filho dessa mesma histria.

    Agradeo a interlocuo intelectual e afetiva de Valentina Salvi, Marcella Beraldo,

    Carolina Branco, Ral Ortiz, Hctor Guerra, Marta Jardim, Guilherme Dias, Douglas Mansur,

    Paulo Dalgalarrondo, Mauro Brigeiro e, principalmente, de Desire Azevedo pela parceira de

    vida e de trabalho. Agradeo tambm a Gbor Basch por ter sido meu companheiro numa parte

    significativa da trajetria desse trabalho. Sou grata ainda aos parceiros de pesquisa em Buenos

    Aires Eva Van Roekel e Ram Natarajan. E agradeo Jussara Miller e Ana Luiza por me

    ensinarem os caminhos do corpo e da alma.

    Sou grata aos professores Omar Ribeiro Thomaz, Adriana Piscitelli, Bibia Gregori e

    Helosa Pontes pela generosidade em suas crticas e sugestes, bem como pelo interesse que

    demonstraram, desde o princpio, pelo projeto de pesquisa. Tambm no poderia deixar de

    agradecer o apoio fundamental prestado desde a secretaria por Maria Jos Rizola.

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    Gostaria de agradecer as novas amizades estabelecidas com os moradores e seus

    agregados daquela que foi praticamente a minha segunda morada durante a escritura da tese:

    Philippe Dias, Felipe Punk, Felipe Nascimento, Olavo Marchetti, Guilherme Mitroto, Marcela

    Medina, Virgnia Borges, Cssio de Abreu e Fernanda Bruni.

    Agradeo ao CNPq e a FAPESP pelo imprescindvel apoio financeiro para a realizao

    do projeto.

    Finalmente, deixo meu agradecimento especial a Felipe Vigas por todo o seu amor, pela

    compreenso, admirao, generosidade, motivao, respeito e, sobretudo, por ser meu

    companheiro na vida.

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    RESUMO

    Esta tese trata do campo de ativismo poltico das organizaes de direitos

    humanos argentinas integradas por familiares de desaparecidos da ltima

    ditadura militar (1976-1983). O objetivo compreender os processos sociais que

    levam essas organizaes a assumirem o lugar de protagonistas na construo das

    memrias sobre o passado ditatorial, bem como analisar as disputas que envolvem

    a consolidao de uma memria pblica sobre a ditadura nesse espao nacional.

    Partindo de uma perspectiva histrica e processual da cultura, o intuito analisar

    como os familiares de desaparecidos, ancorados nas relaes de parentesco com as

    vtimas da represso, atribuem sentido s suas prprias experincias e

    identidades, ao passo que encontram legitimidade social para suas demandas e

    aes polticas. Exploro assim como noes sobre poltica, parentesco, sangue,

    identidade e verdade atravessam os embates pelas memrias da ditadura na

    Argentina.

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    ABSTRACT

    The thesis deals with the political activism of the Argentinean human rights

    organizations composed of the families of the disappeared people in the last

    military dictatorship (1976-1983). The goal is to understand the social processes

    that lead these organizations to play a major role in the construction of the

    memories concerning the dictatorial past, as well as analyzing the disputes over

    the definition of a public memory about the dictatorship in this national space.

    From a historical and procedural perspective of the culture, the intention is to

    analyze how the family members of the disappeared people, anchored in the

    kinship relations with the victims of the repression, give meaning to their own

    identities and experiences, whilst finding social legitimacy for their political

    actions and demands. Therefore, I explore how the notions concerning politics,

    kinship, blood, identity and truth integrate the disputes over the memories from

    the dictatorship in Argentina.

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    SUMRIO

    ndice de Figuras ....................................................................................................................................... 19 Lista de Acrnimos ................................................................................................................................... 21 Introduo

    Parentesco, Poltica e Memria Nacional ............................................................................................... 23 Objetivos e Questes do Trabalho ............................................................................................................ 39 Percursos da Investigao, Pesquisa de Campo e Fontes ....................................................................... 42

    Captulo I Entre a Ausncia e a Presena: o desaparecimento poltico e a luta pela memria

    O caso argentino diante das experincias ditatoriais do Cone Sul ....................................................... 55 Desaparecer matar a morte .................................................................................................................... 66 A vida poltica dos mortos ........................................................................................................................ 81

    Captulo II A Nao como Famlia: uma comunidade poltica de sangue

    Parentesco, famlia e a imaginao da nao argentina ..................................................................... 103 O lugar da famlia no Processo de Reorganizao Nacional (1976-1983) ..................................... 108 Politizando a famlia, familiarizando a poltica: o movimento de direitos humanos ...................... 113 A memria e os direitos humanos: uma questo familiar .................................................................... 126

    Captulo III Legado Familiar, Legado Poltico: tecendo genealogias militantes

    O dever de memria ................................................................................................................................ 143 Trajetrias e sentidos da categoria detenido-desaparecido ................................................................. 145 Heranas familiares e linhagens polticas ............................................................................................. 159 Genealogias de famlias militantes ........................................................................................................ 175

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    Captulo IV Sangue, Identidade e Verdade

    A Lei de ADN ......................................................................................................................................... 191 A Apropriao .......................................................................................................................................... 203 A Restituio ............................................................................................................................................ 210 A verdade est no sangue ........................................................................................................................ 221

    Captulo V Memrias em conflito nos tribunais argentinos

    O espao da justia como lugar de memria .......................................................................................... 243 A demanda por justia e responsabilizao ........................................................................................... 252 Entre a verdade jurdica e a verdade histrica .................................................................................... 264 Encenando memrias, disputando o passado, afirmando a Verdade .................................................. 281

    Consideraes Finais .............................................................................................................................. 311 Referncias Bibliogrficas ................................................................................................................... 317 Fontes ............................................................................................................. ............................................. 331 Filmografia ................................................................................................................................................ 335

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    NDICE DE FIGURAS

    Figura 1 - Madres de Plaza de Mayo em sua marcha semanal na Plaza de Mayo ......................................... 28

    Figura 2 - Banner na entrada do ex-centro clandestino de deteno El Olimpo ......................................... 65

    Figura 3 - Monumento s Vtimas do Terrorismo de Estado no Parque de la Memoria ................................... 68

    Figura 4 - Familiares no Parque de la Memoria em Buenos Aires .................................................................. 68

    Figura 5 - Placas recordatrias aos desaparecidos na Plaza Almagro em Buenos Aires .......................... 79

    Figura 6 - Convite para colocao de placa recordatria a um desaparecido .............................................. 80

    Figura 7 - Manifestantes com as imagens de Pron e Evita e de Nstor e Cristina Kirchner ................ 84

    Figura 8 - Mural na parede do ex-centro clandestino de deteno El Olimpo ............................................ 89

    Figura 9 - Marcha da Asociacin Madres de Plaza de Mayo .............................................................................. 90

    Figura 10 - Marcha da Asociacin Madres de Plaza de Mayo ............................................................................ 91

    Figura 11 - Recordatrio em homenagem a um desaparecido, publicado no jornal Pagina 12 .............. 95

    Figura 12 - Recordatrio em homenagem a um desaparecido, publicado no jornal Pagina 12 .............. 96

    Figura 13 - Fachada do ex-centro clandestino de deteno Fuerza Aerea em Buenos Aires .................. 99

    Figura 14 - Abuelas e Madres em suas primeiras marchas na Plaza de Mayo ............................................ 115

    Figura 15 - Integrantes de Familiares nas manifestaes pelo aniversrio do golpe militar ................ 120

    Figura 16 - Manifestantes indgenas na Avenida 9 de Julio em Buenos Aires .......................................... 132

    Figura 17 - Recordatrio em homenagem a desaparecidos, publicado no jornal Pagina 12 ................ 144

    Figura 18 - Madre mostra o leno utilizado pelas Madres de Plaza de Mayo ............................................ 154

    Figura 19 - Leno utilizado por HIJOS ............................................................................................................. 154

    Figura 20 - Galera de los Rostros Revolucionarios, exposio de fotos na ex-ESMA ................................. 157

    Figura 21 - Membros de HIJOS em manifestao na Plaza de Mayo em 2011 ........................................ 162

    Figura 22 - Pai e filho se abraam pela primeira vez na sede de Abuelas de Plaza de Mayo ................. 164

    Figura 23 - Madre carrega fotografia de seus desaparecidos em marcha na Plaza de Mayo ................. 169

    Figura 24 - Manifestao de familiares no aniversrio do golpe militar, em maro de 2011................ 170

    Figura 25 - Madre em sua marcha semanal na Plaza de Mayo, em maro de 2011 .................................. 170

    Figura 26 - Nora Cortias na sede de Madres de Plaza de Mayo-Lnea Fundadora ................................. 172

    Figura 27 - Silhuetas em representao dos desaparecidos na Catedral Metropolitana ........................ 172

    Figura 28 - Silhuetas no porto da ex-ESMA .................................................................................................. 173

    Figura 29 - Silhueta na entrada do ex-centro clandestino de deteno El Olimpo .................................. 173

    Figura 30 - Netos restitudos no encerramento do ciclo teatral Teatro X Identidad ................................. 180

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    Figura 31 - Charge publicada no mensurio de Abuelas sobre a Lei de ADN ............................................194

    Figura 32 - Charge sobre os casos de mostras de DNA fraudadas ............................................................. 195

    Figura 33 - Ilustrao em aluso luta por justia de Abuelas, em Mensurio da organizao ........... 202

    Figura 34 - Ilustrao representando a apropriao, em Mensuario da organizao Abuelas ................ 206

    Figura 35 - Desenho de uma abuela regando uma rvore genealgica ....................................................... 212

    Figura 36 - Abuelas com a geneticista Mary Claire King, em 1983 ............................................................. 215

    Figura 37 - Ilustrao de abuela caminhando sobre molculas de DNA para chegar na ONU ............ 217

    Figura 38 - Srie em quadrinhos Historietas X la Identidad ........................................................................ 219

    Figura 39 - Srie em quadrinhos Historietas X la Identidad ........................................................................ 220

    Figura 40 - O neto restitudo Manuel Gonalves junto com sua filha e sua av ....................................... 239

    Figura 41 - Cartaz de HIJOS para difuso do incio do julgamento conhecido como Causa ABO ...... 244

    Figura 42 - Familiares em frente ao tribunal de Buenos Aires, em novembro de 2009 ......................... 245

    Figura 43 Telo em frente ao tribunal de Buenos Aires, no dia da sentena da Causa ABO ............. 245

    Figura 44 - Cartaz para ato no tribunal de Buenos Aires, no dia da sentena da Causa ABO .............. 246

    Figura 45 - Familiares com fotos de desaparecidos em frente ao tribunal de Buenos Aires ................. 246

    Figura 46 - Mapa indicando os julgamentos de delitos lesa humanidade em curso no pas ........................ 249

    Figura 47 - Cartaz de HIJOS para difuso do julgamento Plan Sistemtico de Robo de Bebs ............ 265

    Figura 48 - Desenho de repressor em audincia da Causa El Vesubio ......................................................... 266

    Figura 49 - Desenho de testemunha-sobrevivente em audincia da Causa El Vesubio ............................ 266

    Figura 50 - Cartaz de HIJOS para difuso da sentena da Causa Campo de Mayo ................................... 267

    Figura 51 - Fotografias de desaparecidos na sala de audincia do tribunal federal de Florida ............ 270

    Figura 52 - Familiares com foto de Juan Scarpati no tribunal federal de Florida ................................... 271

    Figura 53 - Denncia do caso Jorge Julio Lopez em calada no centro de Buenos Aires ...................... 283

    Figura 54 - Militantes de HIJOS escracham Alfredo Astiz em tribunal de Buenos Aires ...................... 299

    Figura 55 - Cartaz de divulgao de evento da AfaVitA na Plaza San Martin, em Buenos Aires ....... 303

    Figura 56 - Charge ironizando os discursos dos acusados nos julgamentos ............................................ 305

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    LISTA DE ACRNIMOS

    AfaVitA Asociacin de Familiares y Amigos de Vctimas del Terrorismo en Argentina

    AFyAPPA Asociacin de Familiares y Amigos de los Presos Polticos Argentinos

    APDH Asamblea Permanente por los Derechos Humanos

    BNDG Banco Nacional de Datos Genticos

    CCDTyE Centro Clandestino de Detencin, Tortura y Exterminio

    CELS Centro de Estudios Legales y Sociales

    CEMIDA Centro de Militares para la Democracia

    CGT Confederacin General del Trabajo

    CIDH Corte Interamericana de Direitos Humanos

    CONADEP Comisin Nacional sobre la Desaparicin de Personas

    CONADI Comisin Nacional por el Derecho a la Identidad

    COSUFA Consejo Supremo de las Fuerzas Armadas

    EAAF Equipo Argentino de Antropologa Forense

    ERP Ejrcito Revolucionario del Pueblo

    ESMA Escuela Mecnica de la Armada

    FEDEFAM - Federacin Latinoamericana de Asociaciones de Familiares de Detenidos-Desaparecidos

    GAC Grupo de Arte Callejero

    JUP Juventud Peronista

    MEDH Movimiento Ecumnico por los Derechos Humanos

    PRT Partido Revolucionario de los Trabajadores

    SEPARJ Servicio de Paz y Justicia

    UBA Universidade de Buenos Aires

    UES Unin de Estudiantes Secundarios

    UNASUL Unio das Naes Sul-Americanas

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    INTRODUO

    Parentesco, Poltica e Memria Nacional

    Primero buscamos a los desaparecidos. Primero los buscamos porque no podamos pensar que tantos miles haban muerto, que los haban matado [...] Despus, cuando nos dimos cuenta de que no los encontrbamos, realmente comenzamos a reivindicarlos como militantes, revolucionarios, socialistas.1 Yo creo que en estos aos qued claro cul era la lucha de nuestros hijos, de nuestras hijas y por qu de esa lucha y adnde estaba dirigida. Creo que est claro que el tema de la justicia social y de terminar con esta brecha que a cada da es ms grande entre ricos y pobres era la meta que se ponan. Esa lucha la llevaron poniendo su vida, perdindola. [...] Ahora la lucha sigue para que haya verdad y justicia, para hacer memoria.2

    Tuve mucho tiempo de bsqueda y hace 2 aos, sin tener elementos fuertes, le puse nombre a lo que buscaba: "Soy hijo de desaparecidos", dije. Encontr la verdad hace 2 meses, cuando el anlisis de ADN confirm que soy hijo de Alicia y Damin. Ahora soy Juan Cabandi-Alfonsn. Soy mis padres, Damin y Alicia. [] el plan siniestro de la dictadura no pudo borrar el registro de la memoria que transitaba por mis venas y me fue acercando a la verdad que hoy tengo. Bastaron los 15 das que mi Mam me amament y me nombr, para que yo le diga a mis amigos, antes de saber quin era mi familia, antes de saber mi historia, que yo me quera llamar Juan, como me llam mi Mam durante el cautiverio en la ESMA. Este lugar estaba guardado en la sangre de Juan. [] Hoy estoy ac, 26 aos despus, para preguntarles a los responsables de esa barbarie si se animan a mirarme cara a cara y a los ojos y decirme dnde estan mis padres, Alicia y Damin. Estamos esperando la respuesta que el punto final quiso tapar.3 H mais de trs dcadas, um ritual ocorre toda quinta-feira s 15h30 na Plaza de Mayo,

    centro da vida poltica argentina. Mes de desaparecidos da ltima ditadura militar (1976-

    1983), conhecidas como Madres de Plaza de Mayo ou pejorativamente Las locas de Plaza de

    Mayo , marcham lado a lado levando sobre as cabeas pauelos brancos. l onde voltam

    1 Depoimento de Nadia de Ricny, integrante da Asociacin Madres de Plaza de Mayo, registrado em 12 de julho de 2007 na sede da associao, em Buenos Aires. O filho e a nora de Nadia desapareceram em 21 de julho de 1977. 2 Depoimento de Nora Cortias, integrante de Madres de Plaza de Mayo-Lnea Fundadora, registrado em 11 de julho de 2007 na sede da organizao, em Buenos Aires. O seu filho desapareceu em 15 de abril de 1977. 3 Discurso de Juan Cabandi, filho de desaparecidos, em ato oficial realizado na Escuela Mecnica de la Armada (ESMA) para as comemoraes do aniversrio do golpe militar em 24 de maro de 2004. Esse evento formalizou a transformao do local, que funcionou no perodo ditatorial como centro clandestino de deteno, em um espao de memria e de promoo dos Direitos Humanos.

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    semanalmente para continuar exigindo Memria, Verdade e Justia pelos desaparecidos e

    violaes cometidas durante a ditadura. Desde as primeiras marchas em abril de 1977, quando

    comearam a clamar por informaes sobre o paradeiro de seus filhos, Madres e familiares

    procuraram tornar pblico um problema que as autoridades militares insistiam em ocultar: a

    existncia de milhares de desaparecidos polticos no pas.

    Aps dcadas de incessante ativismo, atravs da conformao de organizaes de direitos

    humanos, as demandas dos familiares de desaparecidos se ampliaram e ganharam legitimidade

    social: condenao penal dos responsveis por crimes de lesa humanidade; esclarecimento do

    destino de cada uma das vtimas; restituio da identidade dos filhos de desaparecidos

    apropriados ilegalmente; reivindicao dos ideais polticos defendidos pelos tombados;

    construo da memria coletiva sobre a ditadura. Longe de haver um consenso em torno destas

    demandas, seja no interior do prprio movimento de direitos humanos seja na sociedade em

    geral, elas constituem-se antes como um campo permanente de disputa poltica no pas,

    sobretudo no que se refere aos sentidos atribudos ao passado ditatorial e aos desaparecidos.

    As epgrafes no incio do texto referem-se s falas de duas geraes de familiares de

    desaparecidos. Por um lado, esto os depoimentos de Nora Cortias e Nadia de Ricny,

    integrantes do movimento Madres de Plaza de Mayo. O que fica evidente em suas narrativas a

    centralidade atribuda trajetria poltica de seus filhos. Elas mobilizam categorias, como

    militante, revolucionrio, socialista, para localiz-los num dos lados do campo de disputa poltica,

    e ressignificam os ideais defendidos por eles, tal como o de justia social. Essas Madres afirmam

    tornar prprias as bandeiras de luta de seus filhos, impondo como necessidade a defesa e

    continuidade dos ideais pelos quais lutaram (e morreram) os desaparecidos. Nessa operatria,

    transformam o imperativo de memria numa ao explicitamente poltica.

    A terceira epgrafe refere-se ao discurso de Juan Cabandi, filho de desaparecidos,

    nascido, em 1978, na Escuela Mecnica de la Armada (ESMA), um dos principais centros

    clandestinos de deteno, tortura e extermnio4 em funcionamento durante a ditadura militar.

    4 Nomenclatura utilizada atualmente pelo Estado e pelas organizaes de direitos humanos para denominar os locais de deteno clandestinos que funcionaram em todo territrio nacional durante a ditadura.

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    Poucos dias aps o seu nascimento, Juan foi entregue ilegalmente a um membro do servio de

    inteligncia da Polcia Federal, quem lhe ocultou por quase trs dcadas a origem criminosa e

    clandestina do vnculo que os unia como pai e filho. No ano de 2004, aos 26 anos de idade e

    aps inmeras desconfianas acerca de sua filiao, ele procurou voluntariamente a organizao

    Abuelas de Plaza de Mayo e se submeteu a um teste de DNA.

    Atravs do cruzamento das informaes genticas de Juan com a das famlias de

    desaparecidos, armazenadas no Banco Nacional de Datos Genticos (BNDG), comprovou-se o seu

    parentesco biolgico com um casal desaparecido. Seguindo o mesmo caminho de outros jovens

    apropriados5, desde que Juan recuperou a sua verdadeira identidade, tornando-se o neto restitudo

    nmero 77 de Abuelas de Plaza de Mayo, rompeu afetiva e ideologicamente com aqueles que at

    ento eram a sua famlia. Tornou-se um ativista de direitos humanos e elegeu-se deputado da

    cidade de Buenos Aires pela lista Frente Para La Victoria, encabeada pelo ento presidente

    Nstor Kirchner.

    No discurso de Juan ficam evidentes as conexes estabelecidas entre identidade biolgica

    (filho de desaparecidos) e identidade poltica (identificao no campo poltico com os valores da

    militncia setentista e do movimento de direitos humanos). Para Juan, se a verdade lhe foi

    revelada pelo exame de DNA (Encontr la verdad hace 2 meses, cuando el anlisis de ADN confirm

    que soy hijo de Alicia y Damin), os valores polticos igualmente parecem ser transmitidos pelo

    sangue (la dictadura no pudo borrar el registro de la memoria que transitaba por mis venas). O seu

    discurso sugere, de forma emblemtica, como os domnios do parentesco e da poltica

    encontram-se, neste contexto especfico, articulados e combinados.

    O esforo empreendido na reconstruo da memria e da trajetria poltica dos

    tombados para, entre outras coisas, ressignificar suas prprias aes, parece ser um dos eixos

    norteadores da experincia dos familiares de desaparecidos dedicados ao ativismo pelos direitos

    humanos na Argentina. Partindo de uma perspectiva histrica e processual da cultura, julgo

    5 Apropriado a categoria nativa empregada para nomear esse grupo de crianas sequestradas, enquanto restituio o nome dado ao processo de identificao e recuperao da Verdade da origem biolgica. Assim como os detenidos-desaparecidos, a apropriao emerge como categoria mobilizada pelos familiares das vtimas para denunciar o desaparecimento forado de pessoas, neste caso, de crianas (os desaparecidos com vida).

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    que o entendimento do campo de ativismo deste movimento social exige a dilucidao de uma

    linguagem de combinao entre distintos domnios (STRATHERN, 1992) para compreender as

    formas nativas de associar espaos sociais concebidos como de natureza e escalas diferentes

    (NEIBURG, 2004): o parentesco e a poltica, a famlia e a nao, o privado e o pblico, o natural

    e o social.

    Neste trabalho trato, portanto, das relaes entre parentesco, poltica e memria nacional no

    que tange ao campo de ativismo dos familiares de desaparecidos na Argentina. Exploro em que

    medida e como os domnios do parentesco e da poltica se combinam nos processos de

    construo das memrias sobre a ditadura nesse espao nacional. Nesse sentido, busco analisar

    como noes sobre parentesco cujas representaes, neste caso, esto em grande parte

    pautadas na biologia/sangue/gentica so ressignificadas pelos familiares em sua militncia

    por Memria, Verdade e Justia. O objetivo analisar como, ancorados nas relaes de

    parentesco com as vtimas da represso, os familiares atribuem sentido s suas prprias

    experincias e identidades, ao passo que encontram legitimidade social para suas demandas e

    aes polticas.

    ********************

    As memrias da ditadura ocupam lugar significativo no imaginrio nacional argentino e

    servem, com recorrncia, de palco para disputas, embates e ritualizaes pblicas sobre a nao.

    So os familiares das vtimas que se apresentam como os principais atores engajados na

    construo dessas memrias. Eles lutam contra o esquecimento desse passado e afirmam

    identidades polticas, ressignificando os ideais dos detenidos-desaparecidos. A presena

    contundente do passado de ditadura na vida poltica nacional, e a exibio pblica das memrias

    a ele referenciadas, podem ser observadas nas freqentes manifestaes, cujo cenrio so as

    avenidas e praas do centro da capital Buenos Aires. Os atos organizados para o 24 de Maro

    (aniversrio do golpe), por exemplo, continuam a mobilizar setores expressivos da sociedade

    organizaes de direitos humanos, artistas, partidos polticos e diversos movimentos sociais. A

  • 27

    data foi assim transformada em feriado nacional na gesto do presidente Nstor Kirchner

    (2003-2007).

    Alm dessas manifestaes polticas/artsticas/estticas silhuetas dos desaparecidos,

    murais, performances teatrais6, pauelos das Madres, livros, documentrios, filmes, programas

    de TV, textos acadmicos, lugares e marcas fsicas de memria no espao urbano , com a

    anulao das leis de anistia, em 2005, reabriram-se processos judiciais contra militares e outros

    envolvidos nos crimes da ditadura. Estas causas penais, que acionam as organizaes de

    familiares e a imprensa no acompanhamento das audincias e na publicao de reportagens nos

    principais jornais do pas, trazem tona, mais uma vez, as memrias sobre a represso.

    Desde a abertura democrtica, em 1983, a ditadura militar nunca deixou de ser

    tematizada na esfera pblica argentina. Distintos eventos e dramas sociais (TURNER, 1985)

    garantiram que o passado ditatorial continuasse a repercutir de maneira significativa no

    presente poltico nacional, a saber: iniciativas institucionais (como o estabelecimento da

    CONADEP7); julgamentos de agentes do Estado responsveis por violaes (julgamento s

    Juntas Militares em 1985, aes movidas por Abuelas de Plaza de Mayo contra apropriadores no

    final dos anos 1990, causas judiciais reabertas a partir de 2005); leis reparatrias e anistias;

    aberturas de valas clandestinas, exumaes, identificaes e rituais funerrios de desaparecidos;

    questes envolvendo a restituio da identidade dos bebs apropriados; confisses pblicas de ex-

    repressores, etc. Portanto, para alm do permanente ativismo dos familiares de desaparecidos,

    eventos como os mencionados mantiveram as memrias da ditadura latentes e presentes.

    6 Cabe destacar o movimento teatral denominado Teatro X Identidad. Esse movimento surgiu no ano 2000 com a proposta de utilizar performances teatrais para auxiliar o trabalho de busca dos jovens apropriados empreendido por Abuelas de Plaza de Mayo. Como o prprio movimento afirma: [...] nos autoconvocamos e hicimos propia la lucha de Abuelas de Plaza de Mayo y logramos tender un puente que une las voces del teatro con el pblico y con cada chico que duda. La respuesta fue contundente: casi 70 jvenes se presentaron espontneamente para preguntar por su identidad. Nuestra identidad. Disponvel em: . Acesso em: 08 de outubro 2007. Para uma antologia dos textos teatrais do movimento Teatro X Identidad, ver Petruzzi (2009). 7 Constituindo-se como uma das primeiras aes do governo democrtico de Ral Alfonsn (1983-1989) e pioneira do gnero na Amrica Latina, a Comisin Nacional sobre la Desaparicin de Personas (CONADEP) foi instaurada com o objetivo de investigar a verdade acerca dos desaparecidos e das violaes cometidas no perodo ditatorial. Formada em 1984, essa iniciativa resultou na elaborao do Informe Nunca Ms que, aps publicao, tornou-se um best-seller no contexto ps-ditatorial argentino. Para o informe, ver Conadep (2009).

  • 28

    Alm do mais, a partir de 2003, quando Nstor Kirchner assume a presidncia do pas, as

    demandas por Memria, Verdade e Justia do movimento de direitos humanos foram

    transformadas em poltica de Estado, tornando-se emblema da poltica da Era Kirchner em

    matria de direitos humanos. A implementao de uma poltica pblica de Memria, assim

    como a apropriao do tema da ditadura por parte do governo nacional, trouxe o passado da

    ditadura, os desaparecidos e seus familiares, mais uma vez, para o centro da vida poltica

    nacional.

    As memrias da ditatura adquiriram, desde ento, visibilidade pblica ainda maior, ao

    passo que a condio de familiar de detenido-desaparecido ou de vtima direta viu-se

    transformada em capital social e poltico, em contraste ao estigma sofrido pelos afetados durante

    a represso. Isso gerou um processo de crescente incorporao de familiares e sobreviventes do

    Figura 1 - Madres integrantes da Asociacin Madres de Plaza de Mayo em sua marcha semanal na Plaza de Mayo, em maro de 2011. Foto: Gbor Basch

  • 29

    desaparecimento forado (os aparecidos) poltica formal, seja pela eleio destes ativistas no

    legislativo seja pelo exerccio de funes na Secretaria de Direitos Humanos ou outras pastas.

    Vale ressaltar que as organizaes de familiares se legitimam como movimento social

    ancoradas nas relaes de parentesco que seus integrantes guardam com as vtimas da

    represso, cuja atuao poltica dirige-se, sobretudo, reconstruo e afirmao de memrias e

    identidades. Nesse sentido, tais organizaes tornaram-se empreendoras de memria (JELIN,

    2002), ao buscarem, por um lado, consolidar uma memria sobre o passado ditatorial (que se

    pretende hegemnica/nacional) e, por outro lado, ao se empenharem na tarefa de restituir as

    identidades dos desaparecidos (tanto dos detenidos-desaparecidos quanto dos apropriados).

    Depreende-se disso que, ao abordar o campo de ativismo dos familiares de desaparecidos na

    Argentina, noes/categorias como memria, identidade, nao, movimento social, parentesco e

    poltica tornem-se centrais. Caberiam assim algumas consideraes sobre essas noes para

    esclarecer a perspectiva analtica da etnografia que segue.

    Ao procurar relacionar conceitos e categorias analticas e nativas, ressalto que memria,

    identidade, nao e poltica constituem parte fundamental do vocabulrio acionado pelos

    familiares de desaparecidos em sua militncia pelos direitos humanos. Nessa direo, para alm

    de sua abordagem como categorias analticas prprias teoria social, as mesmas so tratadas

    aqui como categorias micas, apropriadas poltica e socialmente pelos atores sociais. As formas

    como essas noes so ressignificadas e instrumentalizadas pelo movimento de familiares sero

    analisadas ao longo da etnografia. Mesmo que tal ressalva j aponte para a perspectiva analtica

    do trabalho, ainda assim julgo tambm pertinente apresentar o referencial terico escolhido

    para tratar essas noes. Para tanto, recorro contribuio de alguns autores.

    Embora a memria j aparea como foco dos trabalhos de Halbwachs (1990) na dcada de

    1920, foi somente nos anos 1970 e 1980 que o interesse em estudos centrados em analisar as

    memrias e identidades sociais encontra o seu auge. Isto pode ser atribudo, em grande medida,

    emergncia do multiculturalismo como projeto poltico, difuso das polticas de ao

    afirmativa, dissoluo do bloco socialista, mas tambm a um crescente interesse na teoria

  • 30

    social dos anos 1960 e 1970 no desenvolvimento de anlises preocupadas em investigar a

    construo social do passado.

    Nesse contexto, diversos autores acusaram a historiografia de servir como fonte de

    dominao. Para tanto, buscaram desafiar as narrativas hegemnicas (atravs da visibilidade

    dos relatos das minorias sociais) e privilegiaram a histria oral como metodologia. Os ps-

    modernos questionariam a ideia de objetividade e neutralidade do saber cientfico,

    procurando desconstruir a clssica dicotomia positivista que opunha verdade e interpretao.

    Dessa perspectiva, a histria seria uma narrativa construda por indivduos e grupos, a partir

    do presente e com propsitos determinados, evidenciando como a seleo e a interpretao das

    fontes constitui uma tarefa necessariamente arbitrria. Cresce aqui o interesse em estabelecer

    as relaes entre histria, memria, identidade e poder8.

    Influenciado em grande medida por Maurice Halbwachs (1990) e interessado em

    problematizar a questo da singularidade e universalidade das experincias humanas diante de

    situaes-limite, Pollak (1989 e 1992) priorizou uma abordagem de vis construtivista,

    articulando uma compreenso circunstanciada das memrias e identidades sociais, entendidas

    como fennemos construdos e ressignificados no curso da histria e dos processos sociais.

    Portanto, em consonncia com a preocupao de historicizao das memrias e identidades,

    ganha relevo o interesse em analisar como as mesmas se transformam no tempo, no espao e

    em face de contextos sociais e polticos especficos.

    Reconhece-se assim a memria como um objeto de disputa e como parte constitutiva dos

    embates travados por diferentes grupos sociais para a afirmao de sentidos ao passado e

    identidade coletiva. Nesse sentido, considera-se os atores sociais que cumprem papel ativo e

    interferem nos processos de produo das memrias. Por isso, Pollak (1989) reiterar que junto

    aos processos de construo das memrias, so tambm produzidos silncios e esquecimentos,

    desvelando como as identidades e memrias so valores negociados e em disputa.

    Sob essa tica, pretende-se aqui que a abordagem analtica das memrias e identidades

    sociais tenha como foco os processos que envolvem a sua estruturao, com nfase na

    8 Para uma reviso das principais linhas e abordagens tericas presentes nos estudos sobre memria social, ver Olick e Robbins (1998).

  • 31

    compreenso das maneiras a partir das quais diferentes grupos sociais ressignificam suas

    identidades e acionam memrias, esquecimentos e silncios em situaes estratgicas

    especficas. Entende-se ainda que as prticas de representao social impliquem

    necessariamente em posicionamento e, por conseguinte, as identidades, [...] longe de fixas

    eternamente em algum passado essencializado, esto sujeitas ao contnuo jogo da histria, da cultura e

    do poder (HALL, 1996, p. 69). Conforme analisa Feldman-Bianco (2000), seria preciso [...]

    examinar criticamente a produo contempornea de polticas culturais e das identidades como polticas,

    no contexto das (mltiplas) intersees entre processos de reestruturao do capitalismo global e

    reconfiguraes da cultura e da poltica (FELDMAN-BIANCO, 2000, p. 14). Essa perspectiva,

    que insere a problemtica das identidades e memrias no jogo da histria, torna-se

    imprescindvel aos estudos que pretendam abordar as relaes entre cultura e poder.

    Alm disso, como apontado por Pollak (1989 e 1992) em suas pesquisas com

    sobreviventes do Holocausto, parece-me pertinente analisar as identidades e memrias como

    processos sociais intimamente relacionados. O autor notou que, ao definir as experincias e

    histrias compartilhadas pelo grupo social, a memria constitua um dos elementos chave de

    identificao dos grupos sociais, fundamentando e reforando os sentimentos de pertencimento

    e as fronteiras scio-culturais. Pollak atentava ainda para a importncia de referenciais e

    marcos de memrias como eventos, personagens e lugares (NORA, 1997) nos processos de

    conformao de identidades e imaginrios coletivos.

    Nesse mesmo sentido, Jelin (2002) salienta que para fixar certos parmetros identitrios

    (de gnero, de classe, polticos, tnicos, nacionais), os grupos sociais tendem a selecionar as

    memrias daquelas experincias consideradas socialmente significativas, definindo-se, nesse

    processo, como coletividade. A memria cumpre ento o papel de ressaltar os traos de

    identificao e de diferenciao diante do outro. dessa constatao que deriva a

    compreenso das memrias e identidades enquanto processos sociais indissociveis: [...] a

    memria um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na

    medida em que ela tambm um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de

    coerncia de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstruo de si (POLLAK, 1992, p. 204).

  • 32

    Nos embates travados pelas memrias da ditadura no espao nacional argentino, o

    movimento de familiares das vtimas busca afirmar uma Verdade sobre o passado de violncia,

    assim como procura devolver identidade s vtimas (tornar os 30 mil detenidos-desaparecidos!

    Presentes!), protagonizando um processo que culmina na construo dos desaparecidos como

    categoria social. Por sua vez, ser esta mesma categoria que se tornar referncia nos processos

    de redefinio das identidades e aes dos prprios familiares como atores polticos. Fica assim

    patente como, tambm aqui, a dimenso da identidade e a dimenso da memria encontram-se

    relacionadas: a memria sobre o passado ditatorial e suas vtimas constitui um dos referenciais

    a partir do qual os familiares mobilizam e reconstroem suas prprias identidades.

    Trata-se assim de verificar de que forma as memrias do passado ditatorial, atravs da

    definio de certos referencias mnemnicos (os detenidos-desaparecidos, experincias e dramas

    sociais compartilhados, lugares de rememorao do passado, etc.), constituem comunidades de

    sentidos para os familiares de desaparecidos dedicados ao ativismo pelos direitos humanos.

    Seria preciso ainda postular interrogantes tais como quando, de que forma e por que estes

    familiares se voltam para o passado, analisando em que medida, nos processos de afirmao de

    sentidos aos fatos narrados e recordados, existe o esforo de definio de suas prprias

    identidades como atores polticos.

    Cabe ressaltar que em sociedades que emergem de perodos de guerra e violncia, as

    memrias ocupam lugar privilegiado nos processos de (re)construo de identidades coletivas,

    pois, como lembra Jelin (2002), El espacio de la memoria es entonces un espacio de lucha poltica, y

    no pocas veces esta lucha es concebida en trminos de la lucha contra el olvido: recordar para no

    repetir (JELIN, 2002, p. 6). No que tange a esse campo de luta pela afirmao de imaginrios

    nacionais, Fox (1989) destaca a presena de [...] uma srie de percepes coexistentes e ainda

    contraditrias, que constituem ideologias nacionalistas competitivas (FOX, 1989, p. 4). Servindo-se,

    portanto, da noo de ideologia nacional entendidas como concepes de pertencimento de

    um povo e do que a nao ou deveria ser , o autor enfatiza a importncia de um olhar atento

    aos [...] projetos individuais e confrontaes de grupos na criao da cultura nacional (FOX, 1989,

    p. 7).

  • 33

    Em suma, o que os estudos sobre memrias e identidades que incorporam a dimenso do

    poder ao seu entendimento colocam em tela no a unicidade das narrativas, mas o fato de que

    as mesmas esto em permanente contestao: as prticas de memria so parte constitutiva das

    disputas pela afirmao de identidades coletivas, visto que diferentes grupos sociais pretendem

    ver-se representados na histria. Dessa perspectiva e diante dos interesses desta etnografia nos

    conflitos travados pela afirmao de sentidos ao passado ditatorial na Argentina, entendo que o

    processo de construo das memrias est conformado por vises plurais que, neste contexto,

    se pretendem hegemnicas e constitutivas do imaginrio nacional (ANDERSON, 1989)9.

    Refletindo sobre as memrias construdas em torno do evento do desaparecimento

    forado de pessoas na Argentina, ao invs de procurar reconstruir como, de fato, pessoas

    viveram e eventos ocorreram, a nfase da anlise recair no entendimento de como os mesmos

    so lembrados e mobilizados pelos atores sociais a partir do presente e em face de projetos

    futuros. Procuro, portanto, entender como os familiares ativistas se apropriam do passado e

    como ele usado como recurso para expressar interesses e projetos. Analiso ainda como as

    imagens e narrativas sobre o perodo ditatorial e sobre os detenidos-desaparecidos se

    transformaram ao longo da histria do movimento, tornando-se nesse processo constitutivas

    do imaginrio nacional. Se, por um lado, analiso essa dimenso mais instrumental das

    memrias, por outro lado, julgo fundamental considerar tambm a sua dimenso simblica, j

    que a escolha daquilo a ser narrado e rememorado pode ser reveladora de como indivduos e

    grupos concebem a sua prpria experincia de mundo.

    Em consonncia com os apontamentos de Cohen (1979) sobre uma antropologia da

    poltica e do simbolismo poltico, entendo que os processos de configurao das memrias e

    9 Para as reflexes sobre a questo da nao, baseio-me em autores como Anderson (1989) e Hobsbawm (1997). Considero a nao como uma construo histrica especfica a partir da qual grupos sociais passam a se definir por meio da reivindicao de pertencimento a uma comunidade poltica. Hobsbawm (1997) analisou os processos de inveno das tradies a fim de compreender as formas de manuteno e legitimao do poder poltico frente s transformaes geradas pela expanso do capitalismo, desvendando a importncia que os elementos irracionais (o sentimento nacional, por exemplo) prestam para a manuteno da ordem social. Anderson (1989) combinou a anlise do desenvolvimento da imprensa, do capitalismo e do processo de secularizao para compreender a emergncia da identidade nacional como eixo chave da organizao poltica contempornea. Nesse processo, a construo de uma narrativa sobre um passado compartilhado serve de ponto de partida para a imaginao da nao e para a criao do sentimento de comunidade.

  • 34

    identidades sobre o passado ditatorial na Argentina possuem essa dupla dimenso: uma

    instrumental e outra simblica. Logo no me atenho nem escola de pensamento que Cohen

    denomina de intuitivista que tende a sustentar a singularidade e a irredutibilidade das

    obrigaes sociais , nem tampouco de vis mais utilitarista que busca explicar a obrigao

    em termos de clculos egostas com vista na maximizao de benefcios. Considerarei aqui [...]

    as duas dimenses nas orientaes acerca da obrigatoriedade e do contratual como variveis

    diferenciadas e intimamente envolvidas em todas as relaes sociais (COHEN, 1979, p. 100) na

    medida em que compreendo que [...] os smbolos da cultura normativa so quase por definio

    bivocais, sendo simultaneamente polticos e existenciais (COHEN, 1979, p. 109).

    Ao portarem a bandeira dos Direitos Humanos e enquanto protagonistas legtimos neste

    campo, os familiares de desaparecidos acabaram redefinindo a prpria noo de Direitos

    Humanos e, em grande medida, delineando a agenda nacional neste mbito. A legitimidade das

    aes e reivindicaes desse movimento se deu, portanto, por meio do uso da linguagem dos

    direitos humanos, que, como ressalta Roniger e Snajder (2004), transformou-se no fator central

    da poltica internacional, por intermdio das aes governamentais americanas na administrao Carter,

    da Comisso Interamericana de Direitos Humanos, da ONU, de alguns governos da Unio Europia e

    de associaes de exilados polticos (RONIGER e SZNAJDER, 2004, p. 43).

    Se os familiares de desaparecidos puderam organizar-se politicamente acionando a noo

    de Direitos Humanos como valor universal, tambm o fizeram mobilizando as representaes

    mais tradicionais do lugar ocupado pelos laos de parentesco e pelo vnculo materno na vida

    social. Tais representaes funcionaram como motor de legitimidade social ao esvaziar de

    contedo poltico, ao menos num primeiro momento, as demandas do movimento pela

    aparicin con vida de los detenidos-desaparecidos. Foi a famlia que organizou a oposio poltica

    ditadura militar, bem como foi a famlia, atravs do ativismo dos familiares de desaparecidos,

    que se tornou no perodo democrtico a voz mais legtima para definir as narrativas sobre o

    passado de represso.

    No processo de abertura poltica, as Madres e demais familiares de desaparecidos

    passaram a redefinir suas aes coletivas, adotaram canais institucionalizados de participao e

  • 35

    assumiram, de forma crescente, o carter poltico do movimento social. Elaboraram assim novas

    formas de conceber e fazer poltica, reconhecendo-se nesse processo como grupo social. Vale

    destacar neste ponto as colocaes de Jelin (1987) sobre o interesse analtico nos movimentos

    sociais a fim de questionar [...] una nueva forma de hacer poltica y una nueva forma de

    sociabilidad. Pero, ms profundamente, lo que se intuye es una nueva manera de relacionar lo poltico y

    lo social, el mundo pblico y la vida privada, en la cual las prcticas sociales cotidianas se incluyen junto

    a, y en directa interaccin con, lo ideolgico y lo institucional-poltico (JELIN, 1987, p. 18).

    Como aponta Dagnino (2000), no contexto de construo democrtica na Amrica

    Latina, caracterstico dos anos 1990, as relaes entre organizaes da sociedade civil e aparato

    institucional-poltico so redefinidas e passam, cada vez mais, a assumir uma natureza de

    atuao conjunta. Para os prpositos de uma anlise de cunho mais antropolgico, pretendo

    investigar os significados e sentidos das aes e prticas engendradas pelos atores que

    constituem os movimentos sociais, analisando [...] seu significado para aqueles que dele

    participam, procurando, portanto, uma interpretao a partir de dentro (DURHAM, 2004, p. 283).

    No caso do movimento social aqui tratado, preciso dizer que o uso de referncias das

    relaes de parentesco no campo poltico funciona tanto em seu sentido literal quanto

    metafrico. Literalmente, so mes, esposas, pais e filhos de desaparecidos, irmos de jovens

    apropriados, netos de militantes de Familiares, Madres e Abuelas de Plaza de Mayo que entram na

    cena poltica na luta por memria, justia e reparao. So as concepes do parentesco (e suas

    conexes entre vnculos biolgicos, sanguneos e simblicos) que sero ressignificadas pelos

    familiares e que sero constitutivas de seus discursos e aes polticas. J em seu sentido

    metafrico, as Madres se transformaram em mes dos 30 mil detenidos-desaparecidos (processo

    que denominaro de socializao da maternidade), os filhos de desaparecidos se consideram

    irmos, assim como as Abuelas se dizem avs de todos os netos apropriados. Neste outro sentido,

    as relaes de parentesco funcionam como metforas para o estabelecimento de novas redes

    sociais e novas famlias entre as vtimas da represso.

    Se as geraes ascendentes dos desaparecidos protagonizaram a militncia pelos direitos

    humanos durante a ditadura militar e no perodo de transio democrtica, essa militncia se

  • 36

    ver renovada, na segunda metade da dcada de 1990, pelos descendentes dos mesmos: os filhos

    de desaparecidos. Estes jovens ativistas, organizados em HIJOS, mas tambm em Abuelas de

    Plaza de Mayo, emergem como ator fundamental desse trabalho pela memria, pautados no que

    entendem como um duplo legado de ativismo poltico.

    Com a entrada na vida adulta (e poltica) dos filhos de desaparecidos, torna-se

    interessante analisar como essa nova gerao assumir, por um lado, o legado poltico de seus

    pais (desaparecidos, sobreviventes, assassinados, presos polticos e exilados), atravs da

    reconstruo da memria e do que concebem como os ideais e valores da militncia/gerao

    setentista. Por outro lado, preciso analisar como os mesmos assumiro o legado poltico de

    seus avs (integrantes de Familiares, Madres e Abuelas de Plaza de Mayo), atravs da

    continuidade da militncia pelos direitos humanos, reelaborando as histricas demandas por

    Memria, Verdade e Justia.

    Mannheim (1957) argumentou como a memria de certos eventos sociais e polticos

    podem moldar as geraes por meio do compartilhamento de experincias vividas no mundo

    pblico, entendidas como chaves para a sua conformao e definio. As geraes poderiam ser

    entendidas assim como [] comunidades de pertenencia e identificacin que permiten diferenciar a

    sectores sociales particulares en la cadena temporal que se procesa en el seno de una cultura (JELIN e

    SEMPOL, 2006, p. 9). Cabe destacar que gerao parece funcionar aqui como ferramenta

    conceitual central, visto que o movimento social tratado nesta etnografia se define pela

    memria de eventos e dramas sociais compartilhados (o passado ditatorial e o desaparecimento

    forado), assim como pela relao de temporalidade estabelecida entre aqueles que antecedem e

    sucedem os detenidos-desaparecidos na cadeia genealgica do parentesco. Gerao constitui, por

    conseguinte, um dos referenciais centrais no processo de construo dos detenidos-desaparecidos

    como categoria social (generacin de los 70, generacin diezmada, juventud de los 70), ao passo que

    chave para o entendimento dos familiares como atores polticos (Abuelas, Madres, HIJOS): a

    cadeia genealgica que estabelece os nexos destes ativistas com as vtimas da represso e que

    articula a incorporao de legados familiares e polticos.

  • 37

    Considerando a poltica como questo fundamental para o movimento de familiares de

    desaparecidos, ressalto que pretendo abord-la de duas formas: como categoria analtica e como

    categoria nativa. No primeiro caso, poltica constitui um instrumento de anlise das relaes de

    poder entre indivduos e grupos e, seguindo a perspectiva de Cohen (1979), compreendida

    como prtica social (e discursiva) referente distribuio, manuteno, exerccio e luta pelo

    poder em um determinado contexto social. Por sua vez, o poder entendido aqui como um

    aspecto e uma condio inerente s relaes sociais nos mais diferentes nveis, e, enquanto

    prtica social constituda historicamente, apresenta-se de diversas formas (FOUCAULT, 2007).

    Conforme apontado por Verdery (1999), a poltica deve ser concebida como uma forma de

    atividade conjunta entre atores sociais que, com frequncia, envolve a demanda por objetivos

    especficos. Esses objetivos podem ser contraditrios, por vezes quase-intencionais, podendo

    englobar a elaborao de polticas, a justificativa de aes, a reivindicao da autoridade ou a

    disputa pela autoridade reivindicada por outros, assim como a criao e manipulao de

    categorias culturais. Logo, a poltica no se restringe s aes de lideranas, podendo ser

    engendrada por qualquer indivduo, embora os atores sociais busquem, de forma recorrente,

    apresentar suas demandas como um assunto de ordem pblica.

    Verdery (1999) ressalta ainda que, pelo fato da atividade humana constituir-se por

    dimenses afetivas e significativas e se desenvolver atravs de processos simblicos complexos,

    a poltica deve ser concebida como um lugar de disputa permanente pela afirmao de sentidos

    e significados. Tal abordagem permite ver a transformao poltica como algo alm de um

    processo tcnico introduo de procedimentos e mtodos eleitorais, a formao de partidos

    polticos e organizaes no governamentais , o que inclui significados, sentimentos, o

    sagrado, noes de moralidade, o no racional. A ideia aqui ampliar o vis analtico da teoria

    da ao racional a fim de elaborar uma abordagem da poltica e do simbolismo poltico que

    considere tambm a dimenso afetiva e existencial da ao humana.

    Diante disso, pretendo analisar a poltica tambm como categoria mica mobilizada pelos

    atores sociais para pontuar e marcar suas identidades e sua posio no campo de disputa de

    poder. A nfase da anlise recair na descrio das relaes de poder travadas entre indivduos

  • 38

    e grupos e dos fatores que definem contextualmente a poltica. Neste caso, a ideia desvendar

    os sentidos que os sujeitos atribuem s experincias que eles mesmos entendem como polticas,

    assim como [...] examinar as relaes que indivduos e grupos estabelecem com a histria, com formas

    de agir e sentir identificadas com geraes anteriores, associadas a tradies (NEIBURG, 1995, p.

    121).

    Dado o interesse da presente etnografia em analisar as relaes entre o parentesco e a

    poltica, parece-me relevante considerar as propriedades polticas de smbolos que, primeira

    vista, so concebidos como a-polticos. Como bem afirma Cohen (1979), Frequentemente, quanto

    menos obviamente polticas forem as formas simblicas, mais eficazes politicamente elas provam ser. A

    grande contribuio da antropologia cultural para o estudo da poltica tem sido a anlise das funes do

    simblico, das instituies no-polticas como o parentesco e a religio (COHEN, 1979, p. 87).

    No que se refere especificamente ao parentesco como conceitualizao terica, Piscitelli

    (2006) ressalta que se, por um lado, ele entendido como uma instituio central nas

    sociedades ditas primitivas na medida em que concebido como princpio que regulamenta as

    relaes sociais e como marco organizador do social tambm em termos polticos e econmicos

    , por outro lado, a sua abordagem considerada problemtica nas sociedades contemporneas

    j que estas ltimas so analisadas a partir da separao da vida social em diferentes domnios

    (economia, poltica, parentesco, religio). Nesse sentido, nas chamadas sociedades

    contemporneas, o parentesco tende a no ser considerado como um domnio capaz de englobar

    e articular todas as relaes sociais.

    A anlise do campo de ativismo dos familiares de desaparecidos na Argentina no qual

    noes associadas ao parentesco parecem articular o mbito da famlia ao mbito poltico,

    constituindo identidades e memrias (individuais/familiares/coletivas), bem como a sua

    transmisso ao longo das geraes , demonstra o sentido do parentesco em sociedades

    complexas, revelando [...] a importncia simblica de um sistema de categorias que confere

    significado s experincias sociais (PISCITELLI, 2006, p. 45). Tendo isso em vista e baseando-

    me nas abordagens mais contemporneas dos estudos de parentesco (CARSTEN, 2004;

    SCHNEIDER, 1984), a proposta analisar os significados conferidos ao parentesco e o que ele

  • 39

    representa em cada cultura. Trata-se, portanto, de [...] tomar o parentesco como uma questo

    emprica, no como um fato universal, partindo de uma hiptese de trabalho que indague sobre aquilo de

    que trata o parentesco. No se poderia mais supor que a cadeia genealgica universal ou que tem o

    mesmo valor e significado em todas as culturas (PISCITELLI, 2006, p. 51).

    Posto isto, fica claro que a perspectiva analtica pretendida nesta etnotrafia busca

    afastar-se das discusses tericas mais normativas com o intuito de problematizar como noes

    sobre parentesco, poltica, memria, identidade e nao so apropriadas e instrumentalizadas

    pelo movimento de familiares de desaparecidos na Argentina. Busco assim analisar como estes

    ativistas, em sua militncia por Memria, Verdade e Justia, atribuem sentido s suas prprias

    experincias e identidades, ao passo que encontram legitimidade social para suas demandas e

    aes polticas.

    Objetivos e Questes do Trabalho

    Esta etnografia trata do campo de ativismo poltico das organizaes de direitos

    humanos argentinas integradas por familiares de desaparecidos da ltima ditadura militar

    (1976-1983), definidas como organizaes dos diretamente afetados pelo terrorismo de Estado.

    So elas: Asociacin Madres de Plaza de Mayo, Madres de Plaza de Mayo-Lnea Fundadora, Abuelas

    de Plaza de Mayo, Familiares de Desaparecidos y Detenidos por Razones Polticas e H.I.J.O.S. (Hijos

    por la Identidad y la Justicia contra el Olvido y el Silencio)10.

    O objetivo do trabalho compreender os processos sociais que levam essas organizaes

    a assumirem o lugar de protagonistas na construo das memrias sobre o passado ditatorial,

    bem como analisar as disputas que envolvem a consolidao de uma memria pblica sobre a

    ditadura nesse espao nacional. Partindo de uma perspectiva histrica e processual da cultura, o

    intuito analisar como os familiares de desaparecidos, ancorados nas relaes de parentesco

    com as vtimas da represso, atribuem sentido s suas prprias experincias e identidades, ao

    10 A partir deste momento utilizarei, respectivamente, as seguintes abreviaes para referir-me a estas organizaes: Madres (especificando, quando for o caso, entre os dois grupos de Madres); Abuelas; Familiares e HIJOS.

  • 40

    passo que encontram legitimidade social para suas demandas e aes polticas. Exploro assim

    como noes sobre poltica, parentesco, sangue, identidade e verdade histrica atravessam os

    embates pelas memrias da ditadura na Argentina.

    No captulo I Entre a Ausncia e a Presena: o desaparecimento poltico e a luta pela memria

    analiso as relaes entre a poltica de desaparecimento forado levada a cabo pela ditadura

    argentina e a luta pela memria empreendida pelos familiares de desaparecidos. Para tanto,

    busco examinar as particularidades da poltica repressiva implementada nesse pas em

    comparao com as demais ditaduras que tiveram lugar no Cone Sul. Alm disso, investigo

    quais as relaes que o fenmeno da memria guarda com os processos de conformao de

    imaginrios nacionais e identidades sociais, com prticas de temporalidade e historicidade,

    considerando tambm os sentidos atribudos pelos familiares das vtimas ao desaparecimento

    forado nesse espao nacional.

    No Captulo II A nao como famlia: uma comunidade poltica de sangue analiso o

    processo de legitimao do movimento de familiares de desaparecidos como portador da

    Verdade sobre a ditadura. Partindo das representaes sobre o parentesco presentes na vida

    social, busco examinar por que os laos de sangue funcionam como um recurso chave nos

    processos de legitimao poltica na Argentina. Considerando a importncia das metforas

    familiares para a simbolizao dos Estados-Nao, investigo como o parentesco tornou-se um

    meio privilegiado para a articulao de comunidades polticas nesse contexto nacional. Analiso

    assim o lugar da famlia no discurso da ditadura e na trajetria do movimento de direitos

    humanos. Problematizo ainda as implicaes sociais do protagonismo dos familiares de

    desaparecidos na vida poltica contempornea, destacando o papel que cumpre o Estado na

    consagrao dos direitos humanos como uma questo familiar atrelada ao passado ditatorial.

    No Captulo III Legado Familiar, Legado Poltico: tecendo genealogias militantes analiso

    como os familiares de desaparecidos que militam pelos direitos humanos apresentam e

    relacionam poltica e parentesco, ao passo que problematizo como os filhos e netos das vtimas

    que se incorporaram ao movimento social ressignificam essas relaes. O intuito verificar de

    que forma o parentesco conforma identidades polticas e um campo de militncia que se dirige a

  • 41

    dar continuidade memria dos detenidos-desaparecidos. Portanto, busco entender como esses

    ativistas articulam heranas familiares e tradies polticas e em que medida suas condutas

    pautam-se (poltica e existencialmente) em prticas e concepes sobre o parentesco e a

    constituio de identidades nesse contexto particular. De modo que procuro abordar o

    parentesco contextualmente e no fluxo da ao social para compreender a experincia familiar

    atravs da histria. Analiso ainda a trajetria de significao da categoria detenido-desaparecido,

    revelando como novas conjunturas histricas, assim como as aes de uma nova gerao de

    ativistas (HIJOS), abrem espao para a emergncia de novas narrativas sobre o passado

    ditatorial.

    No Captulo IV Sangue, Identidade e Verdade analiso como o processo de restituio da

    identidade vivido e pensado pelos filhos de desaparecidos que foram apropriados durante a

    ditadura. Tomando como objeto de anlise os debates acerca da aprovao da Lei de ADN para

    a resoluo dos casos dos apropriados que se recusam a se submeter de forma voluntria ao

    exame de DNA, exploro as polmicas nacionais que envolvem o processo de restituio da

    identidade dos netos procurados por Abuelas de Plaza de Mayo. Analiso o lugar que ocupam as

    narrativas do movimento de familiares nos processos de construo da apropriao como crime

    e de que forma a legitimidade da demanda de Abuelas pela restituio dos apropriados encontra

    respaldo no campo jurdico e cientfico (sobretudo na gentica). O intuito examinar em que

    medida o sangue converte-se num instrumento crtico para a afirmao da Verdade sobre o

    passado de represso e como os familiares de desaparecidos (principalmente os jovens

    apropriados) articulam legados familiares e polticos, forjando uma narrativa na qual o sangue

    estabelece a relao, mas sobretudo a Verdade Histrica.

    No captulo V - Memrias em conflito nos tribunais argentinos trato das disputas pelas

    memrias da ditadura que tem como locus o campo jurdico. Analiso assim a trajetria da luta

    por Justia do movimento familiares de desaparecidos (tanto no mbito nacional quanto

    transnacional), assim como o debate jurdico empreendido para legitimar a demanda pela

    responsabilizao penal por violaes aos direitos humanos. Ao abordar o processo de crescente

    judicializao da poltica, e compreendendo o Direito como uma forma de ao poltica, exploro

  • 42

    em que medida a cena judicial vem desempenhando-se como espao central de produo do

    saber e da verdade sobre a ditadura na Argentina. Por meio da realizao de uma etnografia das

    audincias nos chamados julgamento de delitos de lesa humanidade, problematizo como familiares

    de desaparecidos, sobreviventes do desaparecimento forado, promotores, advogados, juzes e

    agentes do Estado acusados de violaes, por meio das narrativas que enunciam, converteram

    os tribunais em lugar privilegiado para a afirmao de sentidos ao passado ditatorial recente.

    Percursos da investigao, Pesquisa de Campo e Fontes

    Dei incio ao presente trabalho no ano de 2007, quando viajei a Buenos Aires para uma

    pesquisa de campo preliminar a fim de realizar os primeiros contatos com as organizaes de

    familiares de desaparecidos e um mapeamento do campo e das questes iniciais da investigao.

    Desde 2002 vinha estudando questes relacionadas ditadura militar argentina. Por cinco

    anos, dediquei-me ao estudo dos processos migratrios desencadeados ao longo dos anos 1970

    devido represso poltica. Realizei assim uma pesquisa sobre o exlio poltico, analisando as

    trajetrias de vida de migrantes argentinos estabelecidos nesse perodo no Brasil11.

    O meu interesse na investigao de temas relacionados Argentina e sobre fenmenos

    decorrentes desse perodo de represso poltica encontram referncia na minha prpria histria

    familiar. Meu pai, um argentino que deixou o seu pas no ano de 1976, falecido em 2001, raras

    vezes compartilhou-me as suas experincias no que se refere ao perodo que antecedeu a sua

    vinda ao Brasil, ou se negou a falar sobre as razes que determinaram a sua sada da Argentina.

    A morte de meu pai coincidiu com o auge da crise econmica argentina (cujo evento

    emblemtico ficou conhecido como corralito), com os episdios de represso na Plaza de Mayo

    (que antecederam a renncia do ex-presidente Fernando De La Ra, em dezembro de 2001) e

    com a sucesso de um crescente processo migratrio de argentinos para fora das fronteiras

    nacionais. Nesse momento, o passado ditatorial (com seus desaparecidos e exilados), a ento

    11 Esse projeto de pesquisa resultou na dissertao intitulada Narrativas do Exlio argentino no Brasil: Nao, Memrias e Identidades. Ver Sanjurjo (2007).

  • 43

    crise econmica (com seus mortos na represso do corralito e o desencadeamento de uma nova

    onda emigratria) e os dilemas acerca do futuro da Argentina cruzavam-se, numa histria

    nacional conturbada e marcada por excluses, mortes e pela singularidade de uma violncia

    cujo signo poltica parecia ocupar um lugar central.

    Estas reflexes levaram-me a uma busca pessoal e intelectual, traando os caminhos de

    uma investigao impulsionada, em grande medida, pelo intuito de entender a trajetria de meu

    pai a partir de uma perspectiva histrica em escala ampliada. Sua histria representava apenas

    uma trajetria de vida dentre milhares de outras que se viram marcadas pelo golpe de Estado

    de 1976, cujos efeitos, que continuam a reverberar no presente, manifestam-se, por vezes, de

    forma paradoxal: como nos silncios para com as geraes descendentes (caso de meu pai) ou na

    persistncia das vozes dos familiares de desaparecidos em sua militncia pela memria no

    espao pblico nacional e internacional.

    Se num primeiro momento foram os exilados e a peculiaridade da histria desse exlio no

    Brasil a fonte das respostas aos silncios que me eram prprios, num segundo momento

    busquei naqueles que expuseram publicamente sua resistencia ao processo de silenciamento e

    desaparecimento fsico e simblico de pessoas, o entendimento dos processos que levavam o

    passado ditatorial e seus mortos, assim como os familiares de desaparecidos, a ocupar lugar

    significativo na vida poltica argentina. Por isso a questo da memria central nesse trabalho.

    Ao estudar sobre as coletividades de exilados em diversos pases (Espanha, Frana,

    Itlia, Mxico, Venezuela e Brasil), percebi a importncia da formao de redes transnacionais

    entre esses exilados e o movimento de resistncia ditadura militar no espao nacional

    argentino. De fato, estas redes viabilizaram o trabalho de denncia internacional, desafiando a

    censura imposta no pas. Tais redes foram ainda responsveis por facilitar o estabelecimento

    dos primeiros contatos dos familiares de desaparecidos com integrantes das Naes Unidas

    (ONU), em Genebra, e da Organizao dos Estados Americanos (OEA), em Washington. Este

    trabalho de denncia no exterior foi fundamental para que o movimento de familiares passasse

    a receber o apoio, atravs de doaes de recursos e outros meios, de organizaes humanitrias

  • 44

    internacionais, o que, em grande medida, viabilizou o trabalho das mesmas no contexto

    nacional.

    Tendo isso em vista, decidi iniciar a pesquisa sobre o movimento de familiares de

    desaparecidos na Argentina. Como brasileira e, portanto, tomando a experincia desse pas em

    perspectiva comparativa, motivava-me compreender os processos sociais que levavam tal

    movimento social a persistir no tempo e a cobrar tamanha importncia no contexto argentino.

    Em comparao com as demais experincias ditatoriais que tiveram lugar no Cone Sul, a

    Argentina apresentava-se como um caso paradigmtico, tanto no que se refere s

    especificidades e extenso da poltica de desaparecimento forado de opositores polticos,

    quanto representatividade e continuidade no tempo do movimento de reao a esta poltica. A

    importncia e a persistncia temporal do movimento pelas memrias (do passado e das vtimas),

    protagonizado por aqueles que guardam vnculos familiares com os desaparecidos, parecia no

    encontrar paralelo, ao menos no que se refere ao seu alcance e repercusso poltica, na

    experincia de nenhum outro pas da regio.

    Essas indagaes iniciais, que emergiam da comparao da experincia argentina diante

    da brasileira e, em menor medida, diante de outras experincias ditatoriais da regio, derivavam

    da minha prpria vivncia entre esses dois pases. Essa minha ambiguidade uma brasileira

    que tambm era quase uma argentina, uma antroploga estrangeira que tambm era uma

    espcie de nativa e filha de um exilado teve implicao direta nas questes que formulava para

    a investigao, mas tambm na forma como me inseri no campo de pesquisa: o universo de

    militncia dos familiares de desaparecidos. Esse lugar de fronteira entre esses dois pases me

    permitiu acionar mltiplas identidades, o que me possibilitou entradas diferenciadas tanto no

    campo de investigao quanto na minha relao com o movimento de familiares: via a mim

    mesma ao mesmo tempo em que era identificada, ora como uma antroploga estrangeira em

    campo, ora como parte do movimento, hija de uma mesma histria, uma compaera de

    militncia.

    Contudo, se a minha entrada como nativa facilitava o meu acesso ao universo de

    militncia dos familiares de desaparecidos, apresentava-se como um impedimento para a

  • 45

    explorao de outros universos em relao direta ou at em oposio com o mesmo, como o

    caso do movimento conformado por familiares de militares e membros das foras de segurana.

    Muitas vezes, pareceu-me pertinente realizar entrevistas com esse grupo, j que as suas

    narrativas estavam inseridas no mesmo contexto de militncia dos familiares de desaparecidos

    o campo de disputa pela afirmao de sentidos ao passado ditatorial no espao nacional

    argentino e, por conseguinte, poderiam me informar sobre posies diferenciadas dentro dele.

    As propriedades que me constituam enquanto pessoa nesse universo, filha de um

    argentino (ex-militante da Juventud Comunista que deixou o pas aps o golpe de Estado em

    1976) e que, alm do mais, falava um espanhol argentino, me impossibilitavam qualquer acesso

    aos familiares de militares, ao contrrio do que ocorria com outros dois antroplogos

    estrangeiros que compartilhavam o campo comigo (Eva e Ram). Alm do mais, nunca senti

    gozar de distanciamento emocional suficiente para encarar frente a frente ex-repressores, como

    fez o norte-americano Ram Natarajan, ou para visitar Jorge Rafael Videla na priso, como fez a

    holandesa Eva Van Roekel. Optei por fazer uso das narrativas de militares e de seus familiares

    disponibilizadas em outros meios ou proferidas durante as audincias judiciais que presenciei

    nos tribunais de Buenos Aires, alm, claro, de ouvir sobre as incurses de Eva e Ram nesse

    universo. Tambm frutferos foram os dilogos mantidos com a sociolga Valentina Salvi, cujo

    objeto de investigao o movimento Memria Completa, conformado por militares e seus

    familiares.

    A minha identidade ambivalente, sem dvida alguma, facilitou a minha entrada no

    universo dos familiares de desaparecidos, ao passo que me vi constantemente confrontada com

    o imperativo de no deixar-me fundir completamente nele a fim de manter o distanciamento

    analtico necessrio para a reflexo antropolgica. Perguntava-me, portanto, o quanto

    compartilhava da realidade que estudava e em que medida isso poderia contribuir ou dificultar

    o entendimento e minha reflexo sobre a mesma (GUBER, 1996a). Longe das pretenses

    positivistas de veracidade e neutralidade, j to criticadas pelos debates da antropologia ps-

    moderna (CLIFFORD, 1998; CLIFFORD e MARCUS, 1986), estava preocupada em distinguir

    e identificar conceitos nativos e analticos para formular e arriscar a minha prpria

  • 46

    interpretao. Alm do mais, partia do pressuposto de que era do vnculo estabelecido entre

    antroplogo e nativos, assim como do dilogo entre conceitos nativos e conceitos analticos,

    que se produziria o conhecimento antropolgico.

    O dilema de minha ambiguidade experimentado durante a pesquisa de campo viu-se

    replicado no tratamento da bibliografia relacionada ao tema de investigao: tendo minha

    formao acadmica no Brasil, deparei-me com toda uma literatura produzida no campo da

    teoria social argentina sobre memria, ditadura militar e o movimento de direitos humanos. Ao

    mesmo tempo em que busquei conhecer os principais debates que constituem esse campo de

    investigao nas cincias sociais nesse pas, procurei incorporar a minha formao nas cincias

    sociais brasileira, num esforo de encontrar, precisamente nesse meu lugar de fronteira, algum

    rendimento analtico. Tendo isso em vista, busquei construir uma anlise que fosse capaz de

    estabelecer um dilogo criativo entre os debates que so prprios da antropologia feita no

    Brasil e aqueles que constituem o campo de estudo sobre memrias e ditadura militar nas

    cincias sociais produzida na Argentina.

    Vale dizer que o campo da militncia dos familiares de desaparecidos e o campo de

    produo acadmica sobre o tema das memrias e da ditadura se encontram, em grande medida,

    atravessados nesse pas12. Categorias como, por exemplo, prtica social genocida (FEIERSTEIN,

    2007), terrorismo de Estado (DUHALDE, 1999) e poder concentracionrio (FOUCAULT, 2008;

    CALVEIRO 2005 e 2008) so acionadas pelos ativistas em sua militncia pelas memrias,

    tornando-se nessa operao categorias micas e linguagem do movimento social, ao passo que

    se constituem como categorias analticas construdas, em princpio, dentro do campo

    acadmico.

    A relao entre esses dois campos, que no se limita a uma questo semntica como

    demonstra a experincia de inmeros militantes do movimento de direitos humanos que so

    produtores de saber a partir do campo acadmico , evidencia como, neste contexto especfico,

    as supostas fronteiras que separariam o universo da poltica e o universo acadmico no so to

    impermeveis e definidas. Longe de afirmar o comprometimento da qualidade analtica e terica

    12 Utilizo-me aqui do referencial terico de Bourdieu (2004) para pensar a constituio de campos sociais e a relao entre eles.

  • 47

    dessa produo acadmica, quero antes explicitar a relao existente entre produo do saber, a

    poltica e a questo do poder (FOUCAULT, 2007), relao que pode adquirir contornos mais

    difusos em determinados contextos sociais13.

    Aps a minha primeira breve incurso ao campo de investigao em 2007, quando

    realizei algumas entrevistas com membros das organizaes de familiares e a compilao de

    algum material documental sobre as mesmas, retornei Buenos Aires em mais duas ocasies

    para um perodo mais extenso de pesquisa, permanecendo durante seis meses em 2009 e por um

    perodo de mais quatro meses no ano de 2010.

    Ressalto que a escolha de Buenos Aires como local da investigao no foi aleatria. H

    uma evidente configurao desigual do poder econmico, poltico e cultural no espao nacional

    argentino, cuja centralidade de Buenos Aires como ponto nevrlgico da nao encontra suas

    origens ainda no sculo XIX nas disputas polticas (e guerras civis) pela consolidao e

    construo desse Estado Nacional. Da mesma forma, a mobilizao e organizao do

    movimento de familiares de desaparecidos segue esta mesma lgica: as sedes das organizaes,

    suas principais lideranas e atividades tm como locus a capital Buenos Aires, bem como seus

    discursos e polticas so delineados da perspectiva portenha14. Ainda que vrias das

    organizaes possuam sedes e regionais em diversas cidades do pas, o centralismo portenho,

    que determina a proximidade com o poder poltico e com os meios de comunicao de alcance

    nacional, limita a repercusso e o protagonismo das vozes perifricas.

    Tendo em vista a unidade de observao (VINCENT, 1987) desta pesquisa as

    organizaes de familiares de desaparecidos na cidade de Buenos Aires , pareceu-me

    13 Ao analisar, por um lado, a produo intelectual que trata da antinomia peronismo-antiperonismo e, por outro lado, o histrico de interveno poltica nas universidades argentinas, Neiburg (1995 e 1997) revela o papel de personagens e instituies nos processos de construo de representaes sobre a nao, evidenciando as relaes de poder inerentes s representaes culturais. Neste sentido, chama a ateno para o fato de que os contedos destas representaes encontram-se necessariamente movidos por processos e lutas sociais que pretendem descrever e informar como uma cultura ou nao deveria ser, ao passo que possuem incidncia direta na vida social: Tomando como referncia a Argentina, essas teorias tm a particularidade de revelar o que muitas outras teorias construdas para pensar outras realidades nacionais ocultam: o fato de serem descries que contm aspiraes normativas. Sua maior ambio, e tambm sua maior prova de eficcia, serem capazes de atuar e produzir efeitos sobre o mundo social (NEIBURG, 1997, p. 215). 14 Os efeitos dessa centralidade portenha sero problematizados mais adiante, sobretudo no que se refere a uma configurao desigual dos direitos humanos como problema social no pas.

  • 48

    pertinente operacionalizar a investigao servindo-me de algumas contribuies da Escola de

    Manchester. Isto se deve a sua nfase, por um lado, na adaptao de metodologias

    antropolgicas mais tradicionais (coleta de dados detalhada) para a anlise da mudana social

    (GLUCKMAN, 1987) e, por outro lado, na combinao da anlise da estrutura a de processos

    sociais. O mtodo proposto como anlise situacional (VAN VELSEN, 1987), por exemplo,

    permitiu que a investigao antropolgica privilegiasse os atores sociais (como indivduos

    ocupantes de status) e o registro de aes individuais especficas, analisando o contexto no qual

    os atores sociais representavam seu status e interesses.

    Importante tambm foi diferenciar, conforme ressalta Vincent (1987), os limites da

    observao (atravs da anlise de campos de atividade, por exemplo) dos limites da

    investigao e, como corolrio, integrar material histrico e documental aos dados

    antropolgicos, desenvolvendo uma perspectiva processual e histrica da cultura. Como bem

    coloca Feldman-Bianco (1987), Ao evitar o estudo da mente e das representaes de forma esttica,

    e a partir to-somente de questionamentos formulados a informantes sobre temas abrangentes, esta

    perspectiva abre possibilidades para a anlise da cultura enquanto processo. Pode, provavelmente,

    favorecer a operacionalizao de pesquisas que tm por premissa entender como conjuntos de significados

    so transmitidos e desenvolvidos e como a ao humana mediada por um projeto cultural no contexto

    das complexidades dos processos sociais (FELDMAN-BIANCO, 1987, p. 11).

    No incio da pesquisa de campo em Buenos Aires tinha como intuito priorizar o registro

    de entrevistas com os membros das organizaes pesquisadas. Contudo, na medida em que me

    inseri no campo de investigao, percebi a disposio de uma quantidade significativa de

    material testemunhal. Considerando tambm que esses relatos encontravam-se atravessados

    por uma experincia de dor, decidi enfatizar o trabalho de pesquisa no acompanhamento das

    atividades realizadas pelas organizaes, na recoleo de material produzido por/sobre elas e

    de testemunhos j publicados. Alm do mais, ao conhecer o acervo documental da Asociacin

    Civil Memoria Abierta15, entrei em contato com um Arquivo Oral constitudo por mais de 300

    15 Memoria Abierta foi criada em 1999 com o objetivo de sistematizar e organizar informao e documentao sobre o perodo da ditadura militar, impulsionar a criao de um museu e realizar atividades educativas com jovens com o intuito, segundo seus membros, de promover a transmisso inter-geracional das memrias.

  • 49

    entrevistas videografadas, muitas das quais com membros das organizaes pesquisadas. Tendo

    isso em vista, decidi coletar parte do material testemunhal no prprio Arquivo Oral de Memoria

    Abierta, conforme explicitarei a seguir.

    Ainda assim, realizei o registro de 14 entrevistas com integrantes do movimento de

    familiares, alm de manter inmeras conversas informais com ativistas, sobretudo do

    movimento de HIJOS, durante todo o perodo de pesquisa. Foram entrevistadas sete mes de

    desaparecidos: duas integrantes de Madres de Plaza de Mayo-Lnea Fundadora, duas da

    Asociacin Madres de Plaza de Mayo e trs de Abuelas de Plaza de Mayo. Ainda com relao

    organizao Abuelas, realizei entrevistas com um advogado, um psiclogo, com um filho de

    desaparecidos (cuja identidade foi restituda em 2005) e com o secretrio da organizao (pai de

    uma criana apropriada).

    Alm disso, entrevistei dois integrantes de Familiares de Desaparecidos y Detenidos por

    Razones Polticas (um pai e uma esposa de desaparecido, esta ltima sobrevivente de um centro

    clandestino de deteno). Registrei o te