Sapeca 6

12
1 Sapeca Misto de sapo e perereca Nº 6 – Nov/2014 - Editor: Tonico Soares ____ ____ Musa do semestre: Elza Martinelli, fantasiada de mulher-chafariz. Dançou! Elza trabalhou com grandes ci- neastas: Howard Hawks (Hatari!), Orson Welles (O processo) e ficou mais conhecida pelo seu lado mun- dano há também as que se desta- cam pelo bundano. Desde 1964, tornou-se habitué do carnaval cari- oca e na última vez foi hóspede, em Copacabana, do elegante Paulo Fer- nando Marcondes Ferraz, que lhe ofereceu uma festa. Mas eis porém que de repente levou Luíza Brunet e outras pro quarto, a fim de vender roupas de grife. Deu uma de saco- leira. Ferraz (ferro na boneca) a convidou a arrumar suas malas e dar o fora: ‘Bazar, na minha casa, jamais vou permitir!’. Gosto de bar- raco de rico, pois o pobre já vive nele, ‘cada um por si e deus contra todos’, ironizava Macunaíma.

Transcript of Sapeca 6

Page 1: Sapeca 6

1

Sapeca Misto de sapo e perereca

Nº 6 – Nov/2014 - Editor: Tonico Soares

____ ____

Musa do semestre: Elza Martinelli,

fantasiada de mulher-chafariz.

Dançou!

Elza trabalhou com grandes ci-

neastas: Howard Hawks (Hatari!),

Orson Welles (O processo) e ficou

mais conhecida pelo seu lado mun-

dano – há também as que se desta-

cam pelo bundano. Desde 1964,

tornou-se habitué do carnaval cari-

oca e na última vez foi hóspede, em

Copacabana, do elegante Paulo Fer-

nando Marcondes Ferraz, que lhe

ofereceu uma festa. Mas eis porém

que de repente levou Luíza Brunet e

outras pro quarto, a fim de vender

roupas de grife. Deu uma de saco-

leira. Ferraz (ferro na boneca) a

convidou a arrumar suas malas e

dar o fora: ‘Bazar, na minha casa,

jamais vou permitir!’. Gosto de bar-

raco de rico, pois o pobre já vive

nele, ‘cada um por si e deus contra

todos’, ironizava Macunaíma.

Page 2: Sapeca 6

2

Hino do

Estudante

Brasileiro

Estudante do Brasil,

tua missão é a maior missão:

batalhar pela verdade,

impor a tua geração.

Marchar, marchar para a frente,

lutar incessantemente,

a vida iluminar, ideias avançar.

E assim tornar bem maior,

com todo ardor juvenil,

a raça, o ouro, o esplendor

do nosso imenso Brasil.

Letra: P. Barbosa e A. Taranto

Música: Raul Roulien

(este foi galã de Hollywood)

Fuço-refuço o Google, em busca

de raridades e do tempo perdido.

Numa dessas, achei esse hino (com

Inezita Barroso e banda militar)

do tempo em que ‘o lema da nos-

sa escola é a lambreta e a Coca-

Cola...’, paródia do Hino do Solda-

do, ensinada pela bela babá de fa-

mília de Copacabana, de férias em

Laranjal. Das paródias, claro, nóis

gostava mais. Em tempo: Copaca-

bana era o sonho de dez entre dez

brasileiros e aí vão duas fotos de

deixar a mocidade louca, naqueles

anos cinquenta. Mire, veja.

As garotas sonhariam com baile de

formatura no Copacabana Palace...

...já os rapazes dariam preferência à

praia, por razões óbvias.

Page 3: Sapeca 6

3

Copa

em

Copa

cabana

Jogando bola, meu pai quebrou um pé e não incutiu nos filhos o fana-

tismo pelo ‘rude esporte bretão’, como se dizia. Ouvíamos as transmissões de

Ary Barroso e ficava nisso. Causa de que naquele ‘Pequeno rincão de Deus’

(título de um filme da época) só assisti a um joguinho, na fazenda do João de

Barro. E um melhorzinho, no distrito da Glória, em que teve coroação da rai-

nha, a Irene da Loló. A gente gostava da bola de borracha, contudo, nada

comparável a um banho de rio, perigoso (jacaré no pedaço), mas puro gozo.

Na Copa de 1958 (Suécia), ‘você vai ver como é Didi, Garrincha e Pe-

lé’, que rendeu ‘a taça do mundo é nossa, com o brasileiro não há quem pos-

sa’, me liguei mais, sem ver naquilo um gênero de primeira necessidade. E

mais ainda na de 62 (Chile), até porque Pelé se machucou e saiu de cena, mas

a equipe era superior e o bicho pegou, pros adversários. Teve também o tem-

pestuoso romance Garrincha-Elza Soares, ele, pai e ela, mãe de família. Tem-

pestuoso, pelo falso moralismo desencadeado pela imprensa.

A de 66, na Inglaterra, foi um fiasco, e não me interessei. Sobre a de 70,

no México, um cara me falou que viu há pouco Gerson na TV elogiando a in-

teligência de Tostão. Ele pensava o jogo e buscava soluções, tipo naquela pe-

leja contra a Inglaterra. Sentindo que, do jeito que estava, não sairia gol, falou

pra Pelé: ‘Eu vou caçar um pênalti’. E encarou três ingleses. Pelé deu sinal pra

Jairzinho, que correu atrás e, na primeira brecha, salvou a pátria. Eu já morava

no Rio e fui festejar com Alzira Gomes Rosa, na Avenida Atlântica.

No dia D, estava trabalhando de fiscal num cinema de Ipanema (vazio)

e não deu pra acompanhar a partida. Dia seguinte, depois da última sessão,

num baita engarrafamento, de dentro do ônibus que me levava pra casa eu

aplaudi o time todo, com Carlos Alberto exibindo a taça Jules Rimet na sacada

do Hotel Plaza, na Princesa Isabel. Foi bom demais e a taça, revi na sede da

CBF, enfim, nossa, até ser surrupiada por um amigo do alheio.

De 74/78, nem me lembro e na de 82 (Espanha), depois daquele banho

fenomenal que levamos de Paolo Rossi, fui tomar o meu e saí pra cortar cabe-

Page 4: Sapeca 6

4

lo. Copacabana era um cemitério, sem vivalma nas ruas. Mais algum interesse

naquela outra lavada levada em cima de nós pelo Zidane (França, 1998) e,

agora, porque é no Brasil. Sobre a estreia, Carlos Heitor Cony disse que só

não foi pior que o show de abertura. Show que deveria ser encomendado a um

carnavalesco, sugeriu outro jornalista. E outro, a respeito de vaias, lembrou

uma vez em que Juscelino Kubitscheck foi alvo e reagiu à altura: ‘Feliz o país

que pode vaiar o seu presidente!’. E as vaias viraram aplausos.

Político tem que ter jogo de cintura, que nem Tostão.

Curti bem a da Itália, em 86, não os jogos, mas a cobertura paralela da

TV Manchete. Entre outras, uns filmetes sobre as cidades-sede. Bertolucci

filmou Milão, Lina Wertmüller, Nápoles e do resto só me lembro da Roma

vista por Antonioni. Já usando computador, mostrou aquela cidade sem o agi-

to de gente e carros, completamente vazia, beleza pura. Idem, Sophia Loren,

entrevistada por Falcão. Na final, deu Alemanha e o pessoal foi dormir cedo,

embalado pelo uísque e o violão de Toquinho que, por espírito esportivo, em

homenagem à campeã, solou ‘Jesus, alegria dos homens’, do alemão Bach.

Pra manter o nível, lembro que L. F. Verissimo chamou de era dos deu-

ses aquela de 58/62/70; depois, a dos heróis (Zico e companhia); agora, a dos

mortais. O baixo nível rola por conta dos comentaristas, assunto pra outro dia.

Sem

équiça,

Brasil! Já no primeiro jogo, Pelé deu o toque: ‘Falta craque nessa seleção’.

Também faltaram comentaristas civilizados e, de cara, não vi com bons olhos

aqueles ternos azul-marinho e camisas num tom azul mais claro que usaram na

Copa: lembravam carregadores de malas, em hotéis de segunda classe.

Dentro de um dos ternos, Ronaldo parecia uma estátua da Ilha de Pás-

coa e, quando falava, movia-se de um jeito mecânico, feito aqueles bonecos

gigantes do carnaval de Olinda. E mais: meus ouvidos padecem com a voz de

Galvão Bueno, voz do tipo pastor suburbano que fica milionário, não bastasse

soltar abobrinhas dignas do cara que escreveu ‘équiça’, na foto acima.

E descobri boas buenadas, não só da última Copa. Aí vão algumas:

‘Bem, amigos da Rede Globo, estamos aqui em Buenos Aires, no Equador.

Vai ser o primeiro torneio oficialmente oficializado pela Fifa. O Brasil vai

meio mal no jogo, mas está jogando pra fazer gol. Foi pro chão e caiu. A-

Page 5: Sapeca 6

5

gora tem que colocar o coração na ponta da chuteira. É preciso ficar claro

que se a bola não entrar, não é gol. O jogo só acaba quando termina’.

Já suas gafes não acabam nem terminam, vem mais aí:

‘Não dá pra fazer dois gols ao mesmo tempo. O Santos perdeu daqui

a pouco na Arena da Baixada. Adriano e Sorin vão na mesma bola. O

Adriano está correndo o campo todo, parece um leão enjaulado. Chutou

com a perna que não era a dele. Quando eu falar Rodrigo, entendam Roger.

Gon-zales tem idade pra ser o pai do Robinho: está com 32 anos e o Robi-

nho tem 21. O Brasil correu o risco de sofrer novamente o segundo gol.

Amigos, aqui não está só chovendo, está caindo água! E depois do jogo,

assistam a mais um capítulo inédito de Vale a Pena Ver de Novo’.

Já houve vida inteligente entre comentaristas de TV, vide João Saldanha

– deixou saudade. Agora, tem que baixar o nível, pra subir a audiência, como

faz a Record. E a Globo não faz mió, galvanizando a programação. Sobre ga-

fes, tem aquela do cara que, perguntado o que achava do jogo, respondeu que

não era propriamente um jogo, sim, uma pelada, ‘mas, temos que admitir, uma

senhora pelada’. Dizem que foi na Rádio Cataguases, nos anos 60. E pela dona

Alemanha o Brasil foi chutado da Copa em questão, ficando em companhia

das também campeãs Itália, Inglaterra, França e Espanha. Acontece.

O que desacontece, além da impunidade, concentração de renda (salário

mínimo na Suíça é de dez mil dólares) é o Brasil não encarar de frente certos

problemas, como o da educação. Povo educado não aceita disparares de locu-

tores, tem mais saúde, produz mais, assalta e assassina menos, provoca menos

acidentes, em suma, dá menos prejuízo ao erário, o que não é levado em conta.

E sabe escrever a palavra hexa, sem dar vexame. Soletrando: H... E... X... A.

(Textos sobre a Copa publicados no jornal Atual, do xará-camarada Antônio Trajano)

All you need is Love, Love, Love is all you need. (Lennon & MacCartney)

Page 6: Sapeca 6

6

Mauro, Frank & Jobim

Mauro tinha copo exclusivo

num bar e bebia até ter saudade dos

LPs de Cauby Peixoto/Ângela Maria,

ao som dos quais adormecia. No ba-

tente, atente só, pra essa tirada dele:

– Cruzeiro, Atlético, tudo time

de roça. Mas, se vocês falarem do Fla-

mengo, aí a gente pode conversar.

De outra, soube que alguém o

havia procurado e saiu-se com essa:

– É o Frank Sinatra?

– Não, é o Osmar Ramos.

– Então, não é ninguém, pô!

Deu uma de Tom Jobim, se es-

te fosse dado a bravatas. Ao contrá-

rio, era humilde, preferindo piar pas-

sarinho no Jardim Botânico a ouvir

jornalista bajular pela enésima vez o

autor da segunda música mais tocada

no mundo: Garota de Ipanema; a

primeira, Yesterday, dos Beatles.

Uma noite, num bar, foi cha-

mado ao telefone. Era Sinatra, pro-

pondo gravarem um LP que se cha-

mou Francis Albert Sinatra and An-

tônio Carlos Jobim. Depois, mais um.

E lá se foi Tom, prum rancho,

num deserto. Os ensaios nunca co-

meçavam, um frio lascado e Frank se

desculpando. Certa manhã, não com-

pareceu ao breakfast e o mordomo in-

formou que ‘teve insônia e acordou o

piloto, pra ir jogar em Las Vegas’.

A simplicidade de Tom era tal

que, outra noite, voltando pra casa

com um estojo, viu músicos do morro

num boteco, levando um samba. Pe-

diu uma dose, abriu o estojo, tirou a

flauta e entrou na roda. Convidado a

entrar pro grupo, respondeu:

– Não dá, eu toco isso só por

esporte e a patroa é muito ciumenta.

Os caras não imaginavam, por

exemplo, que numa ida a Nova Ior-

que pra temporada no Carneggie Hall,

depois de Japão e Europa, Tom sou-

be que seu amigo se apresentava lá e

foi ver. Não tinha mais ingresso, mas

o motorista de Sinatra o reconheceu e

daí a pouco refletores o apontaram na

plateia, saudado por Frank como ‘the

great brazilian composer Antônio

Carlos Jobim’. E tome aplausos.

Page 7: Sapeca 6

7

Acima, pintura de Debret; abaixo, foto anônima. Dois enfoques de uma mes-

ma realidade: a escravização do índio. O que intriga é a imagem romântica

que o europeu divulgava de nóis, a justificar sua presença aqui, o que a fo-

tografia desmente. Parece livro do romancista romântico José de Alencar

(nosso Debret literário), tudo enfeitadinho. A realidade é mais Lima Barreto.

Page 8: Sapeca 6

8

Análise de grupo Frequentei dois,

depois fiz individual e me dei alta, o

que Woody Allen ainda tá tentando,

há uns 40 anos. Primeiro, um grupo

mais jovem, maioria estudantes de

psicologia (o tratamento psicanalí-

tico faz parte do currículo). Jovens

normais demais, único fato relevan-

te: dos cinco casais, três se tornaram

amantes, dois deles ‘pulando a cer-

ca’. Pelo viés da psicanálise, atitude

correta, numa de desreprimir o dese-

jo, desde que este seja saudável.

O segundo foi mais divertido,

tipo uma professora dizer que cedeu

à atração que sentia por um amigo e

este disse entender a situação dela,

casada com um bissexual, conduta

que ela desconheceu ao longo de

mais de vinte anos de convívio (e

ele levando vida dupla, com outro).

‘Meu mundo caiu’, ela desabafou e

só então se tocou quanto à prefe-

rência dele pelo derrière, que con-

fessou repudiar, mas se submetia,

por amor. Separou-se e na época

namorava um mais idoso. Depois a

encontrei e falou que iria lecionar

em universidade da Bélgica: ‘Co-

meçar vida nova, fazer o quê?’.

Outra tinha problemas de re-

lacionamento com a filha, por esta

ser demais liberada, e procurou na a-

nálise um meio de liberar-se a si

mesma, reconsiderando velhos e inú-

teis preconceitos. Já outra, bióloga,

bem casada, estava ficando cega e

não engravidava, pensando que fos-

se de origem psicossomática. Porém,

um oftalmologista detectou uma do-

ença tão rara que conseguiu cirurgia

em Barcelona, via INPS. O marido a

acompanhou e foram à Grécia, ela,

já capaz de enxergar toda aquela

beleza. E voltou grávida.

A mais divertida tinha com-

plexo de bela da tarde, hora em que

saía pra conhecer outros homens,

feito no filme de Buñuel, prato feito

pra Nelson Rodrigues, sentindo-se

culpada e infeliz. Sempre dizia que

era americana e o médico emendava:

‘De Porto Rico’. Quem viu o filme

The West Side Story sabe o que ele

queria dizer: portorriquenho tem ci-

dadania ianque, pero no mucho.

E quem mais fazia rir era um

Zé e sua tara de tirar sarro com mu-

lheres em ônibus ou trens lotados.

Vi isso em Recife e a ‘vítima’ teve

um ataque de riso, sinal de que es-

tava gostando. E perguntado se pre-

feria as mais moças ou as mais ve-

lhas, Zé respondeu, com seu jeito

suburbano: ‘As mais velha é mais

sem-vergonha’. Risada geral.

A análise ajuda a pessoa a se

enxergar do tamanho que ela é, sem

bovarismos do tipo querer conferir a

Porto Rico status de Estados Uni-

dos. E reforça as defesas do indiví-

duo pra não se estrepar, por exem-

plo, numa paixão de mão única.

Page 9: Sapeca 6

9

HOTEL MINAS Gente-hóspede da memória

Pobre Brasil I – A TV chegou a

Ktá cerca de 1960. Ventilador, lá

por 1905, com a eletricidade. Po-

rém, 60 anos depois, uma senhora

muito pobre que morava no Tirol

(não o da Áustria, cujo traje típico

inspirou a fantasia de tirolesa, mas

entre Santana e Laranjal) entrou

numa loja onde hoje é o Bazar Lei-

tão. Seu sobrenome, Fritz, pode in-

dicar que austríacos tenham coloni-

zado aquela área. Vale lembrar que

aqui viveram os Murgel, sócios da

fábrica velha. Pois bem: com a in-

genuidade peculiar ao meio rural,

ela viu lá um ventilador giratório

(180°) e ficou acompanhando com

os olhos o movimento do bicho, pra

lá e pra cá, até que perguntou:

– Num seno da minha conta, isso

é que é a tar de televisão?

Pobre Brasil II – Todos gostavam

de seo Tão, que madrugava no tra-

balho pra servir café ao primeiro

que chegasse, sempre vestindo seu

paletó branco, de garçom. Quem

mais gostava, pra valer, eram os ha-

bitantes de um aquário, à entrada,

que se aproximavam do vidro da

frente toda vez que aquele paletó por

ali passava. Razão: seo Tão lhes

dava a ração de cada dia. A própria,

levava de casa, numa marmita, e

um dia um colega comentou:

– Passando bem, hein, Seo Tão!

– Nada. A gente vai comendo

isso e pensando num pernil, numa

farofa, numa azeitona...

Tobias Mendes comunica que tá que

tá, ou seja, vivo e entornando todas,

pelos bares da vida, retornando já, já

ao noticiário com suas memórias etí-

licas em livro. Livro livre, leve e solto,

perfeito e permanente manual da su-

pérflua mas essencial arte de esvaziar

copos e garrafas. Ao lado, flagrante

do insigne biriteiro tentando extrair a

última dose dupla, pois utiliza duas

garrafas, missão impossível, entretan-

to, ele não desiste. Evoé, Tobias!

Cena do filme Farrapo humano, sobre um pinguço

Page 10: Sapeca 6

10

Passeio Público, RJ, o século XX mal

começando e já prometendo SEXO. Na es-

quina, o Largo da Lapa se ofertava a to-

dos os gostos e bolsos. Corta pros anos

50: no Colégio Pedro II, professor falou so-

bre a influência francesa no Rio e, na pro-

va, pediu exemplos. Amigo meu citou vá-

rios, incluindo a tradição francesa e pola-

ca do trottoir por esquinas da Lapa. Nota

zero. Fosse o Manuel Bandeira, também

professor de lá, poderia ser nota dez. Bas-

ta lembrar que ele cedeu ao aluno Zuenir

Ventura cópia de seu soneto intitulado A

cópula. Nos tempos falsamente liberais

em que vivemos, patrulhados pela onda

do ‘politicamente correto’, o poeta pode-

ria ser processado por falta de decoro. Di-

ante dos fatos, leitor, vá procurar A cópu-

la no Google, antes que seja proibida.

• • •

Festival de Música de Cataguases/1970. Identificados: Alfredo Condé e Ju-

ca Fusco. Os outros, vi no palco, mas a má qualidade da foto não ajuda.

Page 11: Sapeca 6

11

Francisco Marcelo Cabral

Eu soube que acharam retrato inédi-

to de Rimbaud e o enviei pro Cabral,

que louvou. Tempos depois, mandou o

poema abaixo, pedindo preu identifi-

car o autor. Passei o problema pr’Ál-

varo (amigo que, no seu pouquíssimo

tempo livre, vive a pesquisar poesia,

quanto mais antiga, melhor). Resolvi-

do: trata-se de Antônio Cícero. Mais

um tempo e Cabral mandou tradução

sua, do latim, de um poema de Catulo

(perdi quando piratearam meu e-mail).

Li, gostei e mandei pr’Álvaro que, no

ato, respondeu com oito traduções de

poemas catulianos. Cabral ficou en-

cantado, contudo, não tive o prazer de

apresentar um ao outro; Álvaro, com

25 anos de Inglaterra sob os pés, é

amicíssimo de poucos amigos, um ca-

ra diferente da gente, evito incomodá-

lo. O poema em questão é ‘encantató-

rio’, não muito me apraz, discípulo

que sou do outro Cabral, o do verso

áspero, faca só lâmina, mas é bonito e

aí vai:

TÂMIRIS

Jamais poeta algum houve mais alto

do que Tâmiris, o trácio, rival

de Orfeu, cujo canto é capaz de dar

saudade do que nunca nos foi dado

salvo reflexo em verso de cristal.

Se um mortal alcançasse ser feliz,

tal seria Tâmiris: quem o vir

deitado sobre a grama com o rapaz

(digno, pela beleza, de dormir

nos braços do próprio Apolo) que o ama

e cujos cabelos Zéfiro afaga

com dedos volúveis, há de convir

comigo em que é assim, a menos que haja

visto, no rio em que agora mergulham

ou na relva que ao sol dourada ondula

no antebraço do moço à beira d'água

ou na ode em que essa manhã fulgura

e foge para sempre, agora e aqui

refolharem-se o passado, o porvir,

o alhures: tantas trevas na medula

da luz. Já Tâmiris quer possuir

as Musas que o possuem. É seu fado

desafiá-las e perder: insensato,

esplêndido, cego, cheio de si.

Antônio Cícero

•••

O retrato de Rimbaud:

Page 12: Sapeca 6

12

Resposta de Adônis

A luz do sol

– eis o que deixo de mais belo:

depois as nítidas estrelas

e o rosto da lua,

as melancias já maduras

e as maçãs e as peras.

Um rosto

Ó tu que me olhas lindamente

através da janela,

virgem no rosto,

embaixo esposa.

Praxila de Sicião* (cerca de 451 a. C.) Trad: Péricles Eugênio da Silva Ramos

*Admirada por suas canções de vi-

nho, foi retratada em bronze. A tradi-

ção fala do verso praxíleo, variedade

do logaédico com três dáctilos antes

da dipódia trocaica. Entendeu, leitor?

Fui ao dicionário, ainda assim esse

enigma não ficou claro. E isso é ape-

nas um pequeno detalhe no mundo,

mundo vasto mundo da poesia.

Inspiração

Foto do semestre

Autor: Thomaz Farkas. O modelo, tive

o prazer de conhecer: Zé Medeiros (fo-

tógrafo de revistas e jornais, depois ci-

nema – morreu homenageado num fes-

tival na Itália). ‘Foto igual a essa eu

também faço’, pode-se dizer, mas sem-

pre um profissional faz antes da gente.

Execução