SARTORI, Giovanni. Nem Presidencialismo, Nem Parlamentarismo

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    NEM PRESIDENCIALISMO, NEMPARLAMENTARISMO

    Giovanni Sartori*

    Traduo do ingls: John Manuel Monteiro

    RESUMODesenvolvendo critrios para caracterizar e avaliar os desempenhos dos sistemas de governo no

    mundo contemporneo, o autor conclui que os sistemas mistos, onde o poder compartilhado

    entre o executivo e o parlamento, tm se mostrado mais eficazes e estveis do que o

    presidencialismo ou parlamentarismo "puros". Neste sentido, sublinha-se a importncia docontexto especfico do sistema eleitoral, do sistema partidrio e da cultura poltica. Aoconsiderar o caso brasileiro, o autor pondera que a estrutura partidria e o carter da cultura

    poltica no se adaptam adoo do parlamentarismo.Palavras-chave: sistema de governo; parlamentarismo; presidencialismo.

    SUMMARYIn developing criteria to characterize and evaluate the performance of systems of government

    within the contemporary world, this article concludes that mixed systems, where power isshared between an executive and a parliament, have proved to be more effective and stable

    than "pure" presidentialism or parliamentarianism. The author stresses the importance of the

    specific context of electoral systems, party systems and political culture. Taking the Brazilian

    case into account, the author argues that neither the structure of political parties nor the

    character of the political culture are appropriate for the adoption of parliamentarianism.

    Keywords: system of government; parliamentarianism; presidentialism.

    Os sistemas presidencialista e parlamentarista so, geralmente, carac-

    terizados em funo de sua mtua excluso. Como, porm, ambos osconceitos so carregados de obscuridade, no faz muito sentido tentariluminar um atravs do outro. Claro, um sistema presidencialista no-parlamentarista e, inversamente, um sistema parlamentarista no-presi-dencialista. Entretanto, ao se enquadrarem os sistemas de governo domundo real nestas duas classes, encontramos, por um lado, parceirosincongruentes e, por outro, inseres dbias.

    De forma geral, o presidencialismo definido a partir de pelo menosum dos seguintes trs critrios. Primeiro, a escolha do chefe de Estado sed mediante eleio popular (direta ou indireta) e por um perodopreestabelecido; segundo, o Parlamento no possui o poder de nomear nemde remover o governo; terceiro, o chefe de Estado tambm o chefe do

    Escrito para a coletnea organi-zada por Juan Linz e ArturoValenzuela, The crisis of presi-dential regimes (Baltimore:Johns Hopkins University Press,no prelo). A presente verso,de abril de 1992, foi revista peloautor para publicao emNovos

    Estudos.(*) Este texto beneficiou-seenormemente das reaes deMichael Coppage, Arendt Li-

    jphart, Juan Linz, Scott Mainwa-ring e Arturo Valenzuela a umaprimeira verso. Reconhecen-do minha dvida com eles, agra-deo seus comentrios e su-gestes.

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    governo. Em termos substantivos, o primeiro critrio de eleiespopulares diretas ou semidiretas apresenta um desempenho muito fraco,pois rene, por exemplo, pases como ustria, Islndia e Irlanda comPortugal, Frana e Estados Unidos1. Contudo, apesar de eleitos atravs depleitos populares e diretos, os presidentes da ustria, Islndia e Irlandaexercem pouco ou nenhum poder. Ademais, de todos os exemplos acimamencionados, apenas um (Estados Unidos) no seria reprovado na "prova

    presidencialista", colocada pelos outros dois critrios. Embora o segundocritrio funcione bem melhor do que o primeiro, ele poderia ser aplicadotanto a sistemas presidencialistas quanto semipresidencialistas, carecendo,desta forma, do suporte do terceiro critrio.

    Assim, esses trs critrios parecem articular-se entre si. Isso significaque um sistema presidencialista se e somente se (i) a escolha do chefe deEstado (presidente) resulta de eleies populares; (ii) durante o mandatopreestabelecido, ele no pode ser demitido pelo voto parlamentar; e (iii) elechefia o governo ou governos por ele prprio nomeados. Preenchidas todasessas condies, encontraremos sem dvida um sistema presidencialista"puro".

    Uma vez que esses critrios definem aquilo que o "presidencialismo"

    comporta e exclui, necessrio que eles fiquem bem compreendidos. Oprimeiro critrio contempla duas possibilidades: eleies populares diretasou semidiretas para presidente. A categoria semidireta inclui os EstadosUnidos e pases como Argentina e Chile (at Allende), onde, no caso denenhum candidato conseguir a maioria absoluta do voto popular, opresidente eleito pelo Parlamento. Como a prtica estabelecida nessescasos confirmar o candidato detentor da maioria relativa do voto popular,esta forma de eleio indireta pode ser assimilada forma direta. Na Bolvia,no entanto, o Parlamento escolhe entre os trs primeiros colocados no pleitopopular (tanto em 1985 quanto em 1989, o selecionado foi o segundocolocado), configurando-se, portanto, um caso ambguo de eleiessemidiretas. Na Finlndia, por outro lado, as eleies so decididamente

    indiretas: um colgio eleitoral eleito, que possui uma liberdade de escolhairrestrita, realmente faz o presidente. Neste sentido, o divisor de guas resideno grau de interferncia permitido ao rgo intermedirio (colgio eleitoralou Parlamento). Quando ele atua no sentido de simplesmente homologaro resultado do pleito popular, a diferena entre a eleio popular direta ea indireta torna-se irrelevante; porm, este critrio transgredido quandoesse rgo interfere na escolha. Consideraes similares poderiam ser feitascom relao ao terceiro critrio, que estabelece que o chefe de Estado ochefe de governo e/ou que o presidente chefia o ministrio por elenomeado. Aqui, tambm, torna-se possvel a existncia de um leque devariaes, que atinge seu limite na dupla autoridade compartilhada por umpresidente e seu primeiro-ministro2.

    Enquadram-se nesses critrios, hoje, cerca de trinta pases, em suamaioria localizados na Amrica Latina. Salvo a exceo nica dos EstadosUnidos, todos os demais sistemas presidencialistas foram intermitentes. No

    (1) Sobre os casos europeus,ver a sntese de Stefano Bartoli-ni, "Sistema partitico e elezionediretta del Capo dello Stato inEuropa,"Rivista Italiana di Sci-enza Politica, II, 1984, pp. 223-242. Em 1976, Portugal adotouum sistema baseado no modelofrancs, porm o poder do pre-sidente foi sensivelmente dimi-nudo com a reviso constitu-cional de 1982.

    (2) Assim, o poder parlamentarde censurar ministros indivi-duais, at no caso extremo eraro de uma censura acarretan-do a remoo, no viola nossoterceiro critrio, uma vez que opresidente preserva o poder denomeao e ainda pode preen-cher as vagas no ministriocomo bem entende. Baseadonestas consideraes, falar doChile (entre 1891-1925) ou Perucomo sistemas semiparlamen-taristas cometer um equvocode classificao, conduzindo asrios erros de percepo. Nota-

    se, igualmente, que a "autorida-de dupla" precisa ser real (comona V Repblica francesa) e nonominal, como o no caso doPeru (artigo 211 da constituiode 1979).

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    momento, a Costa Rica ostenta o melhor desempenho, pois seu sistemapermanece "sem rupturas" desde 1949, seguida pela Venezuela, cujacontinuidade remonta a 1958, a Colmbia (desde 1974) e o Peru (queretomou o governo no-militar em 1979)3. Na maioria dos pases latino-americanos (destacando-se Argentina, Uruguai, Brasil e Chile), a democra-cia presidencialista s foi restabelecida nos anos 804. E apesar de o ltimoreduto ditatorial na Amrica do Sul o Paraguai ter cado em 1989, hainda na regio um nmero considervel de pases que podem serqualificados como "instveis", isto , "extremamente vulnerveis ruptura e queda"5, abrangendo, por exemplo, Equador, Bolvia, Honduras, Guate-mala e Repblica Dominicana6. Em outra regio do globo, as Filipinasretornaram ao presidencialismo em 1986, apresentando, porm, muitopouco em termos de realizaes7. Em suma, excetuando-se o exemplonorte-americano, o desempenho dos pases governados por presidentes bastante ruim, alimentando a suspeita de que a raiz desses problemaspolticos resida no prprio presidencialismo.

    Se o presidencialismo deve ser rejeitado, segue-se da que o parlamen-tarismo seja a "melhor alternativa"? No. Para comear, at aqui estabelece-mos apenas que o mau presidencialismo o presidencialismo puro; porm

    de forma alguma sugerimos que sua prole "mestia" o semipresidencia-lismo seja igualmente nociva. Em segundo lugar, embora at o momentosaibamos aquilo que estamos rejeitando, ainda no conhecemos aquilo queestamos adotando. O que "parlamentarismo"? Certamente esse rtulo noaponta para uma entidade simples e uniforme.

    O nico denominador comum a todos os sistemas que chamamos deparlamentaristas a exigncia de que os governos sejam nomeados,apoiados e, eventualmente, dispensados pelo voto parlamentar. Porm,afirmar que esses governos so sustentados pelo Parlamento no esclarecemuito. Sequer comea a explicar por que os sistemas polticos apresentamgovernos fortes ou frgeis, estabilidade ou instabilidade, eficcia ouimobilismo e, em resumo, desempenho bom, medocre ou mesmo execr-

    vel. Aprofundando mais a questo, podemos destacar pelo menos trs tiposdistintos de sistema parlamentarista. Num extremo, encontra-se o sistemaingls de gabinete encabeado por um primeiro-ministro, onde o Executivoprevalece necessariamente sobre o Parlamento. No outro extremo, comonos casos da Terceira e da Quarta Repblica francesa, localiza-se o governode assemblia, no qual a governabilidade torna-se quase impossvel.Finalmente, em algum ponto entre esses dois extremos, encontra-se afrmula do parlamentarismo controlado por partidos. Assim, do que queestamos tratando? O parlamentarismo pode falhar tanto e to facilmentequanto o presidencialismo. Se quisermos que a alternativa ao presidencia-lismo seja um sistema parlamentarista, ainda assim precisamos decidir qualparlamentarismo desejamos, buscando assegurar que a fuga do presiden-

    cialismo puro no nos conduza simplesmente, pela via de menor resistncia,ao parlamentarismo puro, isto , ao governo de assemblia e ao desgoverno.

    (3) Consular o balano e osnmeros de F. W. Riggs, "Thesurvival of presidentialism inAmerica," International Politi-cal Science Review, IV, 1988.(4) O Uruguai tem demonstra-do oscilaes constitucionaispouco convencionais entre o"quase-presidencialismo"(1830, 1934, 1942, 1966) e ono-presidencialismo (1918,1952), porm considero o siste-ma atual (aps o golpe de 1973

    e a interrupo de 1973-84)definitivamente presidencialis-ta. O fato de a legislatura podercensurar ministros (ver nota 2)e de o presidente deter o poderpara dissolver a legislatura sodivergncias do modelo ameri-cano, porm no contradizemnossos critrios definindo o pre-sidencialismo e praticamenteno afetam sua substncia.(5) Ver L. Diamond, J. Linz e S.M. Lipset, orgs.,Democracy indeveloping countries, 4 vols.,Boulder, Lynne Rienner, 1989,"Preface", p. xviii.(6) O Equador encontra-se emcrise quase permanente; a Bol-via, entre 1952 e 1982, sofreucerca de dezessete interven-

    es militares; Honduras e Gua-temala tm tido um desempe-nho desalinhado, geralmentesob o controle de fato dos mili-tares; e a Repblica Dominica-na representa um caso dbio,prximo dictablanda. Quan-do escrevo este ensaio, o Perunovamente apresenta-se comouma espcie ameaada e, o que mais surpreendente, a Vene-zuela enfrentou uma tentativade golpe em 1992.(7) Deve-se notar que a Coriado Sul no figura na minha lista,porque o presidencialismo nes-te caso representou apenas uminterregno durante os anos1988-90. Tambm exclui o M-xico, cujo inegvel xito re-montando dcada de 30 se

    deve a um padro de "presi-dencialismo autoritrio" (aindaque limitado pelo respeitadoprincpio que impede a reelei-o), que sustentado por aqui-lo que tenho chamado de umarranjo do partido hegemni-co. No obstante, a reformaeleitoral de 1989 permite (emprincpio) a alternncia do po-der, assim projetando, enquan-to perspectiva democrtica,uma frmula presidencialistaque inverte a americana, ouseja, aquela baseada na con-centrao indivisa do poder.Pelo menos por enquanto, melhor deixar o presidencialis-mo ao estilo mexicano, enquan-to uma democracia plena empotencial, na lista de espera.Quanto ao Sri Lanka, classifica-

    ria sua constituio de 1978como semipresidencialista.

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    Se estamos preocupados com a substncia e suponho que de fatoestejamos , ento a questo simplesmente a seguinte: o que um bome o que um mau desempenho do sistema poltico? Juan Linz e ArturoValenzuela endossam o parlamentarismo ao invs do presidencialismo sob

    o argumento (entre outros) de que os sistemas presidencialistas so "rgidos"ao passo que os sistemas parlamentaristas so "flexveis", e que a flexibili-dade prefervel rigidez. O pressuposto subjacente a minimizao dorisco; e o raciocnio completo , conseqentemente, que um sistema flexvelse expe muito menos a riscos devido a seus mecanismos de auto-regulagem. Conforme Valenzuela explica sucintamente, "as crises dossistemas parlamentaristas so crises de governo e no de regime"8. Aassertiva bastante feliz e eu certamente concordo com ela. Contudo, oargumento das pessoas que endossam o presidencialismo (muito repetidohoje na Itlia) que a "eficcia" prefervel "paralisia", e que os sistemasparlamentaristas (tais como os italianos os conhecem) so imobilistas eineficientes. Note-se que essa linha de raciocnio tambm se presta ao

    argumento da minimizao do risco, no sentido de que um governo ineficaze tumultuado tende a desgastar sua legitimidade, podendo, a longo prazo,desembocar numa crise de regime.

    Podemos concluir do exposto acima que os argumentos em favor decada um dos sistemas so equivalentes? No exatamente, porque aargumentao no pode ser encerrada neste ponto. Para comear, no sepode pressupor que a "flexibilidade" seja uma coisa boa em si mesma,prescindindo de qualificaes, ou mesmo que seja este o principal fator emjogo. Por outro lado, verdade que o presidencialismo fornece a base paraum governo forte e eficiente?

    O presidencialismo puro, ou seja, o sistema presidencialista do tipoamericano, assenta na distribuio e separao do poder entre o presidente

    e o Congresso9. Embora o sistema americano tenha contornado seusproblemas ao longo do tempo, no se pode ignorar o fato de que umaestrutura de poder cindido contribui, mais do que qualquer outra, para aparalisia e o impasse10. Na verdade, o sistema americano ainda funciona? Emretrospecto, percebemos que a diviso do poder sempre foi mitigada, naprtica, pela presena de maiorias indivisas (harmnicas) o partidopresidencial coincidindo com a maioria parlamentare, no costume, pelasprticas consociacionais, sobretudo a concordncia bipartidria quanto poltica externa. Porm, as maiorias indivisas e a consociabilidade biparti-dria j no configuram mais o padro predominante11. Em seu lugarencontra-se hoje um sistema poltico rachado, cindido antagonicamente,cujos dois componentes definem seus respectivos interesses eleitorais emfuno do fracasso da instituio oposta. Um Congresso controlado pelosdemocratas que se alinhasse s polticas de um presidente republicanoestaria ajudando a eleger outro presidente republicano. Inversamente, um

    (8) "Party politics and the failu-re of presidentialism in Chile",trabalho apresentado na reu-nio anual da American Politi-cal Science Association, em1987, p. 34. Outra desvanta-gem dos sistemas presidencia-listas, de acordo com a anlisede Linz, reside em suas implica-es de soma zero. Pode-secontra-argumentar, aqui, que(i) o presidencialismo america-no, quando funciona, o faz demaneira "consociativa" (confor-

    me veremos) muito mais doque em termos de "soma zero"e (ii) o resultado de soma zerocaracteriza todos os sistemaseleitorais onde o vencedor levatudo. Neste ltimo caso, o jogoda poltica com soma zero concebido (em termos positi-vos) enquanto um dos fatoresque sustenta a "governabilida-de". Portanto, as consideraessobre a soma zero podem seespraiar por diversos caminhos.(9) Esta dicotomia "diviso/se-parao" tem sido objeto demuita discusso. De acordocom R.E. Neustadt, os idealiza-dores da nao americana noinventaram um governo com"poderes separados" mas, aoinvs disso, "um governo de

    instituies separadas, compar-tilhando o poder" (Presidentialpower. Nova York: Wiley, 1960,p. 33). Charles O. Jones corrigeesta viso: agora encontramos"um governo de instituies se-paradas competindo pelo po-der" (in A. King, org. The new

    American political system, 2ed., Washington D.C.: AEI,1990, p. 3); na seqncia, elefala de um "sistema truncado"(p. 5), e seu ttulo "The sepa-rated presidency". Assim, vol-tamos para a separao. Simpli-ficando: a separao envolve"separar" o Executivo do apoioparlamentar, e a partilha dopoder significa que o Executivose vale do apoio do Parlamentoe, na ausncia deste, cai.

    (10) Deve-se sublinhar que possvel haver um sistema decontrapesos (checks and ba-lances) sem a separao dopoder. De fato, todos os siste-mas constitucionais configuramsistemas de contrapesos. Naverdade, a frmula americana singular na medida em quedivide o poder para obter oscontrapesos.

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    presidente com minoria (no Congresso) procurando reconstituir um gover-no indiviso seria estimulado a entrar em confronto com o Congresso,recorrendo, por assim dizer, ao jogo das culpas.

    Portanto, a resposta questo sobre se o presidencialismo, em sua maisaclamada encarnao, proporciona um governo eficaz um sonoro no. Ironi-camente, a crena de que os sistemas presidencialistas so sistemas "fortes" sebaseia no pior arranjo estrutural possvel (o compartilhamento do poder expon-

    do-se perspectiva de um "governo cindido") e no percebe que o sistema ame-ricano funciona, ou tem funcionado, apesar de suaconstituio e dificilmentegraas a ela. Na medida em que ainda capaz de funcionar, esse sistema, parase desbloquear, precisa lanar mo de trs fatores: a falta de princpios ideolgi-cos, partidos fracos e indisciplinados, e polticas centradas na esfera local. apartir desses fatores que um presidente pode conquistar os votos necessrios noCongresso, em troca de favores s bases eleitorais. Assim, temos a institucionali-zao do estilo poltico dopork barrel [termo norte-americano: festim e doaescom a finalidade de comprar votos], tendncia esta pouco elogivel12. Assim, emtermos estruturais, o que temos, na verdade, um Estado fraco.

    O que talvez se possa concluir do exposto que se o presidencialismopossui virtudes, estas devem ser procuradas nos sistemas semi- ou quase-

    presidencialistas, baseados (como na Quinta Repblica Francesa) napartilha e no na separao do poder13.Para comear, o problema da partilha do poder que esta frmula no

    tem a clareza encontrvel na separao do poder. Mesmo assim, a "partilhado poder" pode ser identificada com maior preciso. A estrutura deautoridade em que um executivo-chefe atua pode situ-lo como: (i) umprimeiro acima de desiguais; (ii) um primeiro entre desiguais; (iii) umprimeiro entre iguais.

    Todas estas representam frmulas de partilha do poder, uma vez queexcluem a concentrao do poder nas mos de uma s pessoa, umprimussolus, como o caso do presidente americano (cujo governo to-somenteseu ministrio particular). Entretanto, na realidade, trata-se de frmulas

    muito diferentes. Assim, por exemplo, o primeiro-ministro britnico umprimus acima de desiguais, ou seja, possui a liberdade de escolher edispensar ministros que so realmente seus "subordinados"; Mitterrand temsido umprimus tanto acima de quanto entre desiguais (neste caso, quandopartilhou o poder com Chirac, um primeiro-ministro "imposto"); o chanceleralemo mais um primus entre desiguais do que entre iguais; j umprimeiro-ministro num sistema parlamentarista normal figura como primusinter pares, ou seja, entre iguais, o que significa que no bem umprimus.Podemos, claro, contestar os exemplos. Ainda assim, o critrio quesustenta as trs frmulas permanece suficientemente claro.

    Um primeiro acima de desiguais um executivo-chefe que um lderpartidrio, dificilmente destituvel pelo voto parlamentar e que nomeia ou

    troca ministros quando bem entende. Assim, este "primeiro" no s exerceautoridade sobre seus ministros, na verdade os domina. Um primeiro entredesiguais pode no ser lder de partido, porm no pode ser destitudo pelo

    (11) Conforme observa J. L.Sundquist, com referncia vi-tria de George Bush na elei-o de 1988, "foi a sexta vez[1956, 1968, 1972, 1980, 1984]nas ltimas nove eleies pre-sidenciais que o eleitorado de-cidiu dividir o governo entre ospartidos [...] Isto algo novo napoltica americana. QuandoDwight D. Eisenhower tomouposse pela segunda vez em1957, ele era o primeiro execu-tivo-chefe em 72 anos [...] aenfrentar [...] um Congresso emque pelo menos umas das c-maras encontrava-se sob o con-trole do partido de oposio [...]No perodo de 58 anos entre1897 e 1954, o pas experimen-tou o governo dividido duranteapenas oito anos todos coin-cidindo com os dois ltimosanos de mandatos presidenci-ais ou seja, abrangendo 14%do perodo. No entanto, nos 36anos entre 1955 e 1990, o go-verno esteve dividido [...] pordois teros do perodo". ("Nee-ded: a political theory for thenew era of coalition govern-ment in the United States", Poli-tical Science Quarterly, IV,1988, pp. 613-14).

    (12) Com certeza, a noo deque os sistemas presidencialis-tas so "fortes" tambm con-testada pela experincia latino-americana. De acordo com ScottMainwaring, "a maioria dos pre-sidentes latino-americanos temenfrentado problemas em cum-prir seus programas. Detento-res da maioria do poder parainiciar uma poltica, encontra-ram dificuldades em conseguiro apoio para sua implementa-o [...] A tendncia corriqueirade caracterizar os presidenteslatino-americanos como todo-poderosos enganosa". "Presi-dentialism in Latin America",

    Latin American Research Revi-ew, 1990, pp. 162,171. A cons-tituio chilena de 1989 buscareforar a presidncia, dando-lhe o poder de dissolver a C-mara dos Deputados (artigo 32,seo 5). A eficcia deste dispo-sitivo ainda est por ser pro-vada.

    (13) Deve-se ressaltar que "se-mi" no implica em nenhumsentido "um tipo de regime queest localizado em algum pontono meio de um continuum",como suspeitam M. S. Shugart eJ. M. Carey em Presidente andassemblies, Nova York: Cam-bridge University Press, 1992,p. 23. Semi um prefixo latino,pelo menos dois mil anos maisantigo do que a nossa noo decontinuum! So infelizes, nomeu entender, ao propor o r-tulo confuso de "presidencialis-

    mo de primeiro-ministro" [pre-mier presidentialism], com basenesta noo injustificada.

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    NEMPRESIDENCIALISMO, NEM PARLAMENTARISMOmero voto de desconfiana do Parlamento e deve permanecer no cargomesmo com mudanas no ministrio. Finalmente, um primeiro entre iguais um primeiro-ministro que cai junto com o ministrio, sendo geralmenteobrigado a aceitar em sua equipe ministros "impostos", e dispondo de poucocontrole sobre a equipe (caracterizada melhor como uma no-equipe, cujosintocveis agem por conta prpria).

    O que importa que as frmulas em questo esboam uma escala de

    arranjos de partilha do poder que atravessam e mesmo minam a dicotomiapresidencialista/parlamentarista. Para comear, a escala indica que umprimeiro-ministro ingls pode governar de modo muito mais eficaz do queum presidente americano. Isso significa que no se pode creditar exclusi-vamente frmula presidencialista doprimus solus qualquer "mrito degovernabilidade". Ademais, a escala sugere que no existe nenhumavantagem clara em substituir o primus solus porumprimus inter pares. Defato, um primeiro-ministro que no consegue controlar os integrantes de seuministrio (pois no pode exoner-los), e nem mesmo pode escolh-loslivremente, dificilmente pode ser considerado realmente no comando.Portanto, as frmulas de partilha do poder que mantm alguma "promessade governabilidade" so (i) o primeiro acima de desiguais e (ii) o primeiroentre desiguais. Isso equivale a sugerir que os casos mais interessantes so,por um lado, os sistemas semipresidencialistas (abrangendo desde a Franaat a Finlndia) e, por outro, os sistemas de primeiro-ministro (abrangendodesde a Inglaterra at a Alemanha).

    Minha posio, portanto, que o semipresidencialismo pode melhoraro presidencialismo do mesmo modo que os sistemas semiparlamentaristas(se que as frmulas Kanzler ouas de primeiro-ministro podem ser assim

    chamadas) so superiores aos sistemas plenamente parlamentaristas. Noquadro de sistemas polticos "mistos" acima esboado, h algum emparticular que eu prefira? Na verdade, no. Pois em poltica a melhor forma a que se aplica melhor. Em outros termos, nesta altura do desenvolvimentoda minha argumentao, o contexto torna-se essencial. Por contextoentendo, minimamente: (i) o sistema eleitoral; (ii) o sistema partidrio; e (iii)a cultura poltica e/ou o grau de polarizao.

    Avancemos rapidamente por meio de uma ilustrao14: o sistemaingls de primeiro-ministro pressupe que o governo seja de partido nico(ele afundaria com um governo de coalizo), o que, por sua vez, pressupea existncia de um sistema distrital com um nico representante queengendra um sistema bipartidrio. Note-se que um governo de partido nico

    tambm requer a mesma rigorosa disciplina partidria vigente em "West-minster (o que to necessrio neste contexto quanto o a indisciplinapartidria no presidencialismo "cindido")15. Contudo, quando o contexto

    (14) No que se segue, estou mebaseando essencialmente nomeu livro Parties and party sys-tems. Nova York: CambridgeUniversity Press, 1976,passim.Sobre o impacto dos sistemaseleitorais em particular, ver meucaptulo "Faulty laws or faultymethod?" in B. Grofman e A.Lijphart, orgs. Electoral lawsand their political consequen-ces. Nova York: Agathon Press,1986.(15) Isto se aplica apenas verso inglesa do sistema deprimeiro-ministro. No se apli-ca ao caso alemo o exem-

    plo frgil da categoria queno dispe do sistema distritalcom um nico representante,nem do bipartidarismo, nem dogoverno de partido nico.

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    poltico encontra-se polarizado e/ou caracterizado por uma cultura polticaheterognea, no aconselhvel a adoo de um sistema no qual o vencedorleva tudo. Com certeza, sem a representao proporcional (RP) (ougovernos de coalizo), a integrao de partidos criados externamente hmais de um sculo principalmente partidos socialistas e catlicos noEstado liberal-democrtico teria sido extremamente arriscada. Neste senti-do, tanto a RP quanto as coalizes se configuram, nas sociedades "difceis",

    essencialmente como dispositivos de segurana.Mas uma dicotomia pluralidade/RP no deve nos encurralar mais doque a dicotomia presidencialismo/parlamentarismo. A RP pode ser corrigida por clusulas restritivas (como a Sperrklausel alem) ou por vantagensconferidas maioria. O sistema alemo de chanceler se sustenta no s naexigncia constitucional do voto de desconfiana construtivo (um obstculos maiorias negativas), como tambm na exigncia mnima de 5% para arepresentao. Outro corretivo o sistema eliminatrio com dois turnos que de fato uma frmula eleitoral mista, mas orientada para um desfechomajoritrio. preciso ter em mente essesdispositivos, uma vez que umgoverno eficaz torna-se praticamente impossvel com coalizes que refletemum sistema partidrio altamente polarizado, e so caracterizadas, portanto,

    pela grande heterogeneidade. O ponto essencial que o sistema eleitoralque penaliza os partidos mais distantes ou extremos (mais para a esquerdaou mais para a direita) o sistema que favorece o requisito da governabi-lidade.

    Na medida em que o contexto mais amplo apreendido, torna-se maisfcil entender porque um sistema parlamentarista centrado estritamente naassemblia pode ser to cheio de riscos e/ou to disfuncional quanto umsistema presidencialista puro. Os sistemas parlamentaristas mais freqente-mente citados como democracias estveis e que funcionam bem so os dospases escandinavos (Sucia e Noruega), o do Japo e, desde 1982, o daEspanha. Acontece que o desempenho de todos esses pases , ou foi,credenciado a partir da existncia de um padro de partido dominante (um

    partido obtm a maioria absoluta de todas as cadeiras), o que resulta emlongos perodos de governo de um s partido (desde 1954, no caso japons).A teoria (e a prtica) consociativa da democracia permite a incluso de maisalguns poucos pases no elenco das democracias que funcionam, mais aSua (que , contudo, um caso altamente anmalo). Mesmo assim, a listade sistemas parlamentaristas com bons desempenhos permanece relativa-mente curta. Seria possvel ampli-la com base no argumento de que umcerto nmero de democracias ditas instveis (parlamentaristas, claro) o soapenas "na aparncia"? Creio que no.

    Para comear, de qual estabilidade estamos falando? Estabilidade doregime, ou do governo? Valorizo imensamente o primeiro caso, isto , a"democracia estvel". No entanto, no se pode estender indevidamente o

    brilho da democracia estvel para o "governo estvel". Apesar de muitasopinies contrrias, a democracia estvel no solapada por governosinstveis, porm sim por governos impotentes e/ou maus governos o que

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    outra coisa. A estabilidade governamental est associada meramente suadurao; governos podem ser ao mesmo tempo longevos e impotentes: suadurabilidade no fornece um indicador nem de sua eficincia, nem de suaeficcia. De fato, na maioria dos sistemas parlamentaristas que demandamum governo de coalizo, os governos conseguem prolongar sua permann-cia atravs de sua falta de ao. Neste cenrio, as parcas realizaes de umgoverno de coalizo geralmente ocorrem durante os primeiros seis meses

    de governo, ou seja, no perodo inicial durante o qual ele no pode serdestitudo de forma decente. Aps esse perodo, ganham tempo com seuimobilismo. Portanto, o problema no de longevidade, de quanto tempodura um governo; trata-se de verificar se os governos efetivamentegovernam, se eles tomam decises ou se as protelam. Vale reiterar que umgoverno estvel no condio suficiente para garantir um governo eficaz,pois aquele no redunda necessariamente neste.

    Ento, qual o verdadeiro valor do argumento de que os governosinstveis (de curta durao) pouco importam, desde que o pessoal polticoocupando cargos permanea estvel (ou seja, o mesmo)? Aqui, a idia quea aparente instabilidade encontra seu remdio, em substncia, numacontinuidade subjacente. Contudo, seguindo minha colocao anterior, se

    a questo da instabilidade governamental um problema deslocado, entoa noo da "estabilidade do pessoal", do mesmo modo, no serve comoremdio. Para reforar este ponto, devo acrescentar que a argumentaodemonstra falhas, e ao endoss-la estaramos apenas tornando-a pior.Descobrimos, por exemplo, que o honorvel Yellow vem ocupando cargosde ministrio durante trinta anos, como ministro do Turismo, do Tesouro,das Relaes Exteriores, do Meio Ambiente, da Educao e, finalmente, doPatrimnio da Unio. timo para ele sua estabilidade individual nogoverno inabalvel. Mas em que sentido essa estabilidade serve aosistema, isto , em que sentido ela o beneficia? Procuro em vo uma resposta a no ser que esta se encontre no Princpio de Peter: as pessoas elevam-se ao seu nvel de incompetncia. Com certeza, se desfazendo de qualquer

    conhecimento que tenha adquirido ao longo dos anos, o honorvel Yellowdeixa transparecer a continuidade (e no a descontinuidade) de suainesgotvel incompetncia. E a razo de o honorvel Yellow continuareternamente como ministro de tudo reside precisamente no fato de que elebem sabe que sua capacidade de permanecer no cargo nada tem a ver comseu desempenho (nem, vale dizer, com sua inteligncia natural), e tem tudoa ver com suas manobras faccionais no interior do partido. Se a "estabilidadesubstancial" realmente representa isso, ento melhor viver sem ela.

    Amarrando estas consideraes, podemos afirmar que os sistemasparlamentaristas so conhecidos como tais a partir da premissa de que oParlamento soberano. Em tese, este princpio fundador sustenta o governode assemblia, sendo de fato facilmente conduzido a esta frmula e,portanto, a governos frgeis, inconstantes e, no fim das contas, ruins. Se issopode ser chamado de "parlamentarismo puro", ento tem-se mostrado comouma soluo que no funciona. O chamado governo parlamentarista, por

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    sua vez, funciona (ou funciona melhor) quando essa denominao de certomodo imprpria, ou seja, quando uma soluo "impura" adotada,driblando o princpio da soberania do Parlamento. Na Kanzlerdemokratiedo tipo alemo ou ingls, por um lado, e nos sistemas de partido dominante,por outro, ambos caracterizados por forte disciplina partidria (entre osparlamentares), tem-se o cuidado de no deixar o soberano (Parlamento)governar. Mesmo assim, necessrio considerar outra condio prvia: ademocracia parlamentarista (em qualquer uma de suas variaes) no podefuncionar a no ser que seja servida por partidos adequados ao parlamen-tarismo, ou seja, partidos que foram socializados (atravs do fracasso, dapermanncia e de incentivos apropriados) para agir de forma coesa e/oudisciplinada, para se comportarem, quando na oposio, como oposioresponsvel, e para participar, at certo ponto, de um jogo limpo com regrasdeterminadas.

    Estas convenes constitutivas so subjacentes e difusas, no seprestando a uma maior preciso. Contudo, para efeito da argumentao,suponhamos que os pases latino-americanos optassem por trocar opresidencialismo pelo parlamentarismo. Seria o desempenho de seusparlamentos melhor do que aquele das assemblias da maior parte daEuropa continental at os anos 20 e 30? Tenho srias dvidas. Na maior parteda Amrica Latina, no existem partidos adequados ao parlamentarismo efalta muito para desenvolv-los. O Brasil expressa isso claramente; e comoparece ter comprado a idia de que seus males podem ser curados atravsda transformao do seu sistema em parlamentarista, vamos nos deter nocaso brasileiro.

    No mundo de hoje, difcil encontrar um pas que seja to antipartidoquanto o Brasil, tanto na teoria quanto na prtica. Os polticos referem-seaos partidos comopartidos de aluguel. Mudam de partido livre e freqen-temente, votam em desacordo com sua orientao e recusam-se a aceitarqualquer tipo de disciplina partidria, sob a alegao de que no se podeinterferir na sua liberdade de representar seus eleitores16. Assim, os partidosso entidades volteis e destitudas de poder; e o presidente brasileiro ficaboiando num vcuo, sobre um Parlamento incontrolvel e eminentementeatomizado. A partir dessas funestas premissas, busca-se um remdio naadoo de um sistema parlamentarista, o que obrigaria os partidos a sesolidificarem, uma vez que teriam de sustentar um governo originado noParlamento. Contudo, tenho muito medo de que isto no v, no possaacontecer.

    No existem materiais comparativos ou evidncias histricas capazesde apoiar a expectativa brasileira. Comparados aos brasileiros, os partidosalemes, durante Repblica de Weimar, constituam "partidos-modelo": noentanto, sua fragmentao nunca foi superada e seu desempenho parlamen-tar, entre os anos de 1919 e 1933, no melhorou nem criou condies degovernabilidade. Durante a Terceira e a Quarta Repblica Francesa, nadamudou no comportamento ou na natureza dos partidos. Ao longo dosquarenta anos da Terceira Repblica (1875-1914), a durao dos governos

    (16) Para um timo relato desseestado de coisas, ver Scott Main-

    waring, "Politicians, parties andelectoral systems: Brazil in com-parative perspective", Compa-rative Politics, outubro 1991,pp. 21-43 [trad. bras. "Polticos,partidos e sistemas eleitorais",

    Novos Estudos29,maro 1991].Atualmente, o nico partido dis-ciplinado no Brasil o Partidodos Trabalhadores, cuja fatia doeleitorado (na faixa dos 7% em1991, distribudos em bolsesconcentrados) permanece pe-quena demais para provocarum efeito de solidificao nosistema partidrio como umtodo.

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    foi de nove meses, em mdia. Pode-se afirmar o mesmo no que diz respeito Itlia pr-fascista. Importante reconhecer que o fortalecimento dospartidos e a disciplina partidria (em votaes parlamentares) jamaisresultaram de um governo parlamentarista. Um sistema baseado naassemblia, atomizado, indisciplinado e fluido, permanecer inalterado emfuno de sua prpria inrcia. No conheo nenhum sistema partidrio que,a partir de um aprendizado dentro do parlamentarismo, tenha se tornado

    um "sistema" composto de partidos de massa fortes e organizados. Ametamorfose de um sistema partidrio desestruturado em um sistema"estruturado" foi sempre deflagrada pelo assalto e pelo contgio exgenos.Os primeiros partidos de notveis e de opinio ou pereceram ou mudaramseu modo de agir em resposta ao desafio de partidos de massa religiososou socialistas (e basicamente anti-sistema) "criados a partir de fora",caracterizados por fortes laos e fervor ideolgicos.

    No caso brasileiro, nota-se a clara ausncia de todos os elementosacima mencionados. Ademais, o Brasil dispe de um credo e uma retricaantipartido (sem falar da legislao eleitoral tipicamente antipartido), o quetorna a emergncia de qualquer tipo de partido adequado ao parlamenta-rismo no apenas pouco provvel mas simplesmente inconcebvel. Em

    outros termos, a cultura e a tradio poltica brasileiras, em sua totalidade,alimentam a formao de partidos inadequados ao parlamentarismo. Emmeu modo de ver, sob tais circunstncias, a probabilidade de umaexperincia parlamentarista conduzir o Brasil do caos para algum tipo degoverno parlamentarista eficaz das mais remotas. Caso eu viesse apresenciar semelhante acontecimento, poderia igualmente esperar que o soldeixasse de nascer amanh.

    Por outro lado, existem trs pases na Amrica Latina que, por forade seus sistemas partidrios, poderiam de maneira concebvel encarar amudana para o parlamentarismo, a saber, Chile, Argentina e Venezuela(desde 1973). O Chile o pas que possui, no contexto do continente, oarranjo multipartidrio que mais se assemelha aos sistemas europeus.

    Contudo, o Chile tambm possui um passado de "pluralismo polarizado", deforte polarizao aliada a uma alta fragmentao partidria. Com estesantecedentes, seria conveniente o Chile adotar um sistema parlamentarista?Duvido. Se os chilenos optassem por abandonar seu sistema presidencia-lista, seria prudente, a meu ver, a adoo de uma soluo semipresidenci-alista e no parlamentarista.

    A Argentina, por sua vez, tem um sistema presidencialista bipartidrioque atualmente est perto de contar com maiorias indivisas17. Pensando emtermos puramente conjecturais, uma transformao parlamentarista seriabenfica para a Argentina? Mais uma vez, duvido. Os partidos argentinos noso "solidos". o sistema presidencialista que os mantm unidos, isto , suaconsistncia advm da suprema importncia de ganhar um prmio nocompartilhvel: a presidncia18. Neste sentido, penso que um novo arranjoacarretaria uma fragmentao partidria danosa para a Argentina. Feitas ascontas, com base nos seus dois partidos relativamente fortes e disciplinados,

    (17) Entre 1983 e 87, o presi-dente Alfonsn deteve uma pe-quena maioria na Cmara dosDeputados, porm no no Se-nado; j o presidente Menemdetm, desde 1989, uma maio-ria no Senado, porm no naCmara. No se trata, portanto,de um caso claro de maioriaindivisa. Historicamente, tiran-do os perodos de governo pe-ronista, apenas o presidenteFrondizi (1958-62) conseguiuuma maioria em ambas as casasdo Congresso.(18) Guillermo Molinelli me in-forma que "os partidos Radicale Peronista tradicionalmentetm sido partidos internamentecentralizados [...] e inclinadospara polticas pblicas e postu-ras 'centralistas', sob pretextosideolgicos". Obviamente eletem razo em apontar que oprmio da presidncia em sino condio suficiente parao bipartidarismo (evidenciadopela maioria dos sistemas pre-sidencialistas latino-america-nos). Contudo, sinto que o fatorpresidencial torna-se mais por-tentoso medida que as dife-renas ideolgicas diminuem.Com todas as letras, o presiden-cialismo baseado em dois parti-dos favorecido por: (i) a cen-tralidade do presidente; (ii) aexistncia de partidos que soos principais competidores pelapresidncia; (iii) a exigncia deum vencedor por maioria abso-luta (com o sistema de doisturnos); (iv) a simultaneidadedas eleies parlamentares epresidenciais (com o intuito deproduzir um efeito casado).

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    a Venezuela apresenta-se como o nico pas sul-americano em condiesde enfrentar o risco de uma experincia parlamentarista. Estou portantoinclinado a concluir que o tipo de parlamentarismo com maior probabilidadede surgir na maior parte da Amrica Latina seria a pior variante do regimede assemblia19.

    No me entendam mal: meu pleito contra o "parlamentarismo puro"no diminui a minha oposio ao "presidencialismo puro". Conforme j

    vimos, o primeiro problema com o presidencialismo do tipo americano que a diviso do poder exige maiorias indivisas. Descobrimos que esterequisito raramente e dificilmente preenchido. No entanto, guardo receiodo presidencialismo por um segundo motivo, orientado de certo modo parao futuro: o surgimento de uma nova forma de fazer poltica, que eu chamode "videopoltica"20. Com a videopoltica, o "todo-poderoso" facilmentepode ser um estranho no ninho (como aconteceu no Peru e no Brasil), e ser,cada vez mais, o vencedor de uma competio de vdeo na qual a decisodepender das aparncias e dos "clips" de dez segundos (a mdia na eleiopresidencial americana de 1988). Assim sendo, o presidencialismo setornaria um jogo de azar. As vdeo-eleies pretendem introduzir atransparncia, a verdadeira "poltica visvel". Ora, o que se d bem outro

    caso. O que se apresenta, na verdade, guisa da visibilidade, basicamenteuma sequncia de curtas aparies que encobrem a substncia e queobscurecem, mais do que nunca, as questes maiores. Assim, em resumo,quero ressaltar que a eleio popular direta para presidente no proporcionaas salvaguardas ou a proteo contra uma eleio desastrosa (seleoequivocada) doprimus solus e isto ser cada vez mais freqente. Maisdo que nunca, a videopoltica ameaa eleger diletantes e/ou robsmonitorados pelos institutos de pesquisa (cujas verdadeiras faces nunca soreveladas) e portadores de promessas de campanha de cunho populista.Com certeza, os apelos ao populismo e demagogia no so nenhumanovidade. Mas a videopoltica reala e magnifica seu impacto, servindocomo o veculo ideal para uma poltica de m-f. No mnimo, a videopoltica,

    centrada em personagens individuais, uma multiplicadora de riscos.O risco permanece, embora consideravelmente minimizado, em

    sistemas semipresidencialistas nos quais o presidente eleito atravs dopleito popular, mas para uma estrutura de autoridade dual na qual oprimeiro-ministro precisa obter um voto de confiana do Parlamento. Nestecaso, o candidato a presidente ter uma plataforma programtica, sem serautorizado (embora possa transgredir esta determinao) a fazer promessasespecficas, uma vez que as polticas reais so da alada do primeiro-ministro e de sua maioria no Parlamento. Os estudiosos temem o presiden-cialismo de tipo francs em funo da possibilidade do surgimento de umamaioria dividida, entre aquela que elegeu o presidente e aquela que apiao primeiro-ministro e seu governo. Isto repetiria, a longo prazo, a paralisia

    do "governo cindido" americano, discutida acima? Pode ser que sim, mastalvez no, j que o presidencialismo francs no se baseia na diviso dopoder, como o americano, o que enfraquece a analogia.

    (19) Para uma avaliao dosdiversos nveis de "institucio-nalizao" (ou no) dos parti-dos na Amrica Latina, ver ScottMainwaring e T. R. Scully, orgs.,

    Building democratic instituti-

    ons: parties and party systemsacross Latin America, Stanford,Stanford University Press, noprelo, sobretudo captulo 1.

    (20) Para uma discusso maisaprofundada, ver nosso "Video-Power", Government and Op-

    position, inverno 1989, pp. 39-53.

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    Por outro lado, no caso do semipresidencialismo, seria possvelencarar a possibilidade de uma maioria dividida reunir o melhor de doismundos, ou seja, a rigidez com a flexibilidade, a monocefalia com a diarquia.Se um presidente se torna "imperial", o voto popular pode limitar seu poder,forando-o "concordncia", coexistncia. Se, inversamente, a coexistn-cia resulta no impasse, outro voto popular pode dar cabo das maioriasdivididas, restabelecendo uma cadeia unificada de comando. Tal sistema

    seria necessariamente frgil? Mais uma vez, talvez no. Talvez seja isso aflexibilidade21. Ademais, deve-se reconhecer que na frmula francesa aeleio direta para presidente tem desempenhado um papel importante epositivo, na medida em que tem "presidencializado" o sistema partidrio,colocando-o num molde bipolar22. Este desfecho no fortuito. Uma vezque o cargo de presidente um prmio no divisvel, o presidencialismo seope "poltica proporcionalista".

    (21) No se trata, porm, deuma alternncia entre o presi-dencialismo (quando as maio-rias presidencial e parlamentarcoincidem) e o parlamentaris-mo (quando no coincidem),conforme sugere M. Duverger sugesto esta que exagera anatureza "mista" do sistema.Ver "A new political systemmodel: semi-presidential go-vernment", European Journalof Political Research, 1980, p.186. Mitterrand jamais se asse-

    melha a um presidente ameri-cano; igualmente, mesmo noponto mais baixo de seu poder,no se aproxima da fraqueza deum presidente italiano. Em am-bos os casos, a colocao deDuverger enganosa.(22) prefervel o termo bipo-lar aotermo bipolarizodo, umavez que este ltimo pode serlido como significando "maiorpolarizao", ao passo que amaioria absoluta, necessriapara conquistar a presidncia,de fato tem introduzido candi-datos do centro, competiocentrpeta e, portanto, uma po-larizao muito menor. Aindaassim, ver a nota 18, acima.

    Os ingleses louvam a RP, os italianos aplaudem o sistema distrital comum nico representante. Os latino-americanos so aconselhados a adotar oparlamentarismo, mas os franceses o abandonaram com gosto. Em geral,temos razo nas crticas que fazemos ao sistema poltico sob o qual vivemos,mas freqentemente erramos ao avaliar as alternativas e os benefciosalmejados. Creio que os argumentos contra os dois extremos, o presiden-cialismo puro e o parlamentarismo puro, so fortes. Porm, estou pronto aadmitir que os argumentos a favor do semipresidencialismo no so fortes.Minha avaliao positiva do semipresidencialismo do tipo francs claramente tentativa, no modo "condicional"23. Considerando a outraalternativa mista a semiparlamentarista , o problema que se coloca que os sistemas de primeiro-ministro do tipo ingls ou alemo funcionam

    como devem apenas em condies favorveis. Se o sistema ingls (no qual,at hoje, um terceiro partido jamais conseguiu romper o governo de partidonico) deixasse de ser bipartidrio ou se o sistema alemo ficasse maisfragmentado e polarizado do que tem sido at o momento, poderamosrecear um retrocesso ao "mau parlamentarismo"24.

    Embora o cerne de meu argumento sustente que a expectativa maispositiva reside nas solues mistas, o que expectativas parte essencial nos assegurarmos, at onde nossa falibilidade permite, que noestamos pulando da frigideira para o fogo. Pois um mal no se cura com ummal maior.

    (23) Em outros textos, esboo

    um outro tipo de semipresiden-cialismo. Ver G. Sartori, "Le ri-forme istituzionali tra buonee cattive", Rivista Italiana diScienza Politica, III, 1991, e,ainda,Seconda Repubblica?,Mi-lo, Rizzoli, 1992, onde faouma avaliao detalhada dosarranjos francs, ingls e ale-mo.(24) O ponto fundamental que o semiparlamentarismodemanda nveis baixos de po-larizao, o que se torna a vari-vel mais importante (ver G.Sani e G. Sartori, "Polarization,fragmentation and competiti-on", in Hans Daalder e PeterMair, orgs. Western European

    party systems. Beverly Hills:Sage, 1983, pp. 307-40.

    Recebido para publicao emjaneiro de 1993.Giovanni Sartori professor decincia poltica da Universit diFirenze e da Columbia Uni-versity.

    Novos EstudosCEBRAP

    N 35, maro 1993pp. 3-14

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