SARTRE, Jean Paul. O ser o o nada; ensaio de uma antologia fenomenológica. Rio de Janeiro; Editora...

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    O Ser e o Nada1 (Sartre)

    Liberdade e facticidade: a situao O argumento decisivo empregado pelo senso comum contra a liberdade consiste em lembrar-nos de

    nossa impotncia. Longe de podermos modificar nossa situao ao nosso bel-prazer, parece que no

    podemos modificar-nos a ns mesmos. No sou "livre" nem para escapar ao destino de minha classe,

    minha nao, minha famlia, nem sequer para construir meu poderio ou minha riqueza, nem para dominar

    meus apetites mais insignificantes ou meus hbitos. Naso operrio, francs, sifiltico hereditrio ou

    tuberculoso. A histria de uma vida, qualquer que seja, a histria de um fracasso. O coeficiente de

    adversidade das coisas de tal ordem que anos de pacincia so necessrios para obter o mais nfimo

    resultado. E ainda preciso "obedecer natureza para comand-la", ou seja, inserir minha ao nas

    malhas do determinismo. Bem mais do que parece "fazer-se", o homem parece "ser feito" pelo clima e a

    terra, a raa e a classe, a lngua, a histria da coletividade da qual participa, a hereditariedade, as

    circunstncias individuais de sua infncia, os hbitos adquiridos, os grandes e pequenos acontecimentos

    de sua vida.

    Este argumento nunca perturbou profundamente os adeptos da liberdade humana: Descartes, o primeiro

    deles, reconhecia ao mesmo tempo que a vontade infinita e que preciso "dominar mais a ns

    mesmos do que a sorte". Pois convm fazer aqui certas distines: muitos dos fatos enunciados pelos

    deterministas no podem ser levados em considerao. O coeficiente de adversidade das coisas, em

    particular, no pode constituir um argumento contra nossa liberdade, porque por ns, ou seja, pelo

    posicionamento prvio de um fim, que surge o coeficiente de adversidade. Determinado rochedo, que

    demonstra profunda resistncia se pretendo remov-lo, ser, ao contrrio, preciosa ajuda se quero

    escal-lo para contemplar a paisagem. Em si mesmo - se for sequer possvel imaginar o que ele em si

    mesmo -, o rochedo neutro, ou seja, espera ser iluminado por um fim de modo a se manifestar como

    adversrio ou auxiliar. Tambm s pode manifestar-se dessa ou daquela maneira no interior de um complexo-

    utenslio j estabelecido. Sem picaretas e ganchos, veredas j traadas, tcnica de escalagem, o rochedo no

    seria nem fcil nem difcil de escalar; a questo no seria colocada, e o rochedo no manteria relao de

    espcie alguma com a tcnica do alpinismo. Assim, ainda que as coisas em bruto (que Heidegger denomina

    "existentes em bruto") possam desde a origem limitar nossa liberdade de ao, nossa liberdade mesmo que

    deve constituir previamente a moldura, a tcnica e os fins em relao aos quais as coisas iro manifestar-se

    como limites. Mesmo se o rochedo revela-se como "muito difcil de escalar" e temos de desistir da escalada,

    observemos que ele s se revela desse modo por ter sido originariamente captado como "escalvel"; portanto,

    nossa liberdade que constitui os limites que ir encontrar depois.

    1 Adaptado de: SARTRE, J. P. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenolgica. Traduo de Paulo Perdigo. 5 edio. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1997. Pgs. 593-595.