Saudades da Terra Volume 2

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    FICHA TCNICA

    Ttulo SAUDADES DA TERRA Livro IIAutor DOUTOR GASPAR FRUTUOSO

    Edio INSTITUTO CULTURAL DE PONTA DELGADA

    Reviso de textoe reformulao de ndices JERNIMO CABRAL

    Catalogao Proposta

    FRUTUOSO, Gaspar, 1522-1591 Saudades da terra : livro II / Doutor Gaspar Frutuoso ; [Palavrasprvias de Joo Bernardo de Oliveira Rodrigues] - Nova ed. -Ponta Delgada : Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1998.

    Ass: AORES / HISTRIA / HISTORIOGRAFIA AORIANA. sc. 15 -16

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    LIVRO SEGUNDODAS

    SAUDADES DA TERRA

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    SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

    Palavras Prvias VI

    PALAVRAS PRVIAS

    Joo Bernado de Oliveira Rodrigues Ponta Delgada, 31 de Outubro de 1968

    No cumprimento da incumbncia que me foi cometida pelo Instituto Cultural de Ponta Delgada a edio completa das Saudades da Terra, de acordo com o manuscrito original agora publicado o Livro II, isto , aquele que o Dr. Gaspar Frutuoso dedicou s ilhas que hoje constituem o distrito do Funchal, dentro do seu desgnio de fazer uma resenha histrica, mais ou menos longa, dos arquiplagos do Atlntico Norte, a que de forma indestrutvel ficou ligado o nome dos Portugueses.

    De toda a obra do insigne cronista aoriano, foi este livro, sem dvida, um dos que mais cedo atraram a ateno dos estudiosos, sobretudo os da ilha da Madeira, suscitando dvidas e interpretaes, que, para alguns, ainda actualmente no obtiveram resposta satisfatria ou definitiva.

    Foi tambm este Livro o primeiro das Saudades da Terra a ver a luz da publicidade,merc da importncia que lhe deu o erudito historiador continental, Dr. lvaro Rodrigues de Azevedo, como fonte primeva e, at ento, mais circunstanciada de tudo o que respeita ao descobrimento e colonizao do Arquiplago.

    Feita sobre uma cpia, ao tempo existente no Funchal (1), saiu esta edio em 1873, e ainda nos nossos dias em extremo valiosa, pelas notas que o seu editor lhe juntou, produto de longa e incansvel pesquisa por arquivos e cartrios da Madeira.

    Em 1925, o Sr. Prof. Damio Peres, por iniciativa da Junta Geral daquele distrito, publicou nova edio deste Livro, servindo-se do apgrafo das Saudades da Terra que se encontra depositado na Biblioteca da Ajuda, e que, apesar de bastante incompleto, lhe deu a oportunidade para igualmente transcrever importantes documentos inditos, que extraiu do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, e do da Cmara Municipal do Funchal, e apor, com a competncia que todos lhe reconhecem, eruditas notas da sua autoria que se relacionam com a matria versada no texto.

    Ambas as edies, sumamente apreciadas pela documentao reunida, na impossibilidade de se terem baseado no manuscrito original, ao tempo vedado a olhos estranhos pela famlia que durante muitos anos o possuiu, sofrem do inconveniente de se fundamentarem em cpias de pouca confiana, sobretudo a ltima, que, em alguns captulos, se apresenta bastante fragmentada.

    Uma e outra, de h muito, desapareceram dos escaparates das livrarias, mas consta-nos que o ilustre e erudito Professor, acima citado, tem entre mos nova edio, esta j conforme com o autgrafo (agora, como se sabe, patente ao pblico na Biblioteca e Arquivo Distrital de Ponta Delgada), a qual, decerto, obedecer rigorosa reproduo do texto, de acordo com as regras que hoje se exigem em matria diplomtica.

    Contudo, parece-nos no ser isto motivo para excluir este Livro II do trabalho que estamos a empreender, o qual, na linha de rumo que vimos seguindo, tendo em vista a sua divulgao, foi editado em ortografia do nosso tempo, conforme desejo expresso do Instituto Cultural de Ponta Delgada.

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    Palavras Prvias VII

    * * *

    Frutuoso, para a confeco deste Livro, serviu-se em grande parte de um manuscrito que ele prprio encomendara ao Cnego da S do Funchal, Jernimo Dias Leite, sobre o descobrimento e os capites-donatrios do Arquiplago da Madeira. Expressamente o declara em captulo da sua prpria lavra, como se pode observar a pginas 152 deste volume, e ao assunto por mais de uma vez se refere no decurso da obra.

    Da leitura das respectivas passagens se conclui a importncia que lhe deu como fonte informativa de muitas das matrias que versou, embora inclusse na sua narrativa notcias que colheu atravs de outras vias, como, por exemplo, as que respeitam descrio topogrfica das ilhas da Madeira e do Porto Santo, que, como mais tarde se havia de verificar no constam do manuscrito do Cnego da S do Funchal.

    De facto, alguns historiadores que se tm ocupado daquelas ilhas, nomeadamente os Drs.lvaro Rodrigues de Azevedo (2) e Cabral do Nascimento (3), no deixaram de estranhar o desequilbrio e a falta de unidade, de que, no seu conjunto, este Livro II se ressente, pois que,ao lado de narrativas da maior importncia, feitas sem o relevo que seria para desejar, como as que se referem ao descobrimento e aos primeiros passos dados na colonizao, figuram, de mistura com notcias de real valor para o conhecimento da vida insular nos sculos XV e XVI,factos de natureza anedtica, que pouco significado possuem sob um ponto de vista rigorosamente histrico, e a que o autor, pela extenso que lhes deu, parece ligar particular interesse (4).

    Contudo, como durante muito tempo se no identificasse o manuscrito de Jernimo Dias Leite (5), eram as Saudades da Terra consideradas a fonte de maior relevncia para o estudo dos primrdios da existncia daquelas ilhas como terras habitadas.

    Esta situao de privilgio modificou-se desde que o Dr. Joo Franco Machado, num meritrio e incansvel trabalho de investigao, descobriu na Biblioteca da Academia das Cincias um apgrafo do citado manuscrito, que pertencera ao biblifilo Joaquim Pedro Casado Giraldes e que, aps minucioso e exaustivo exame, no hesitou em reconhecer como a obra em que o cronista micaelense se fundamentara para compor a parte mais importante do seu Livro II.

    Considerando aquele apgrafo, pelo estudo filolgico e ortogrfico a que o submeteu, como reproduo exacta do original, tal como sara em 1579 dos bicos da pena do seu autor o exemplar remetido a Frutuoso perdeu-se, certamente, no destino que levou a sua livraria,quando a Companhia de Jesus, a quem a tinha legado, foi expulsa de Portugal no sculo XVIII o Dr. Joo Franco Machado procedeu em 1947, pelo Fundo S Pinto da Universidade de Coimbra, a uma edio do Descobrimento da Ilha da Madeira e discurso da Vida e Feitos dos Capites da dita Ilha, de Jernimo Dias Leite, em que no notvel prefcio, que a antecede, prova de forma irrefutvel a ntima correspondncia existente entre o respectivo texto e o das Saudades da Terra, a ponto, de, na sua totalidade, a verso do ilustre capitular da diocese do Funchal ter sido transcrita quase ipsis verbis pelo prprio Frutuoso.

    Aproximadamente pela mesma poca, o Sr. Dr. Fernando dAguiar deu a notcia de existir na livraria do Dr. Artur de Oliveira Ramos, que o adquirira no leilo dos livros do conhecido genealogista Afonso de Dornelas, um exemplar quinhentista do manuscrito da referida obra,que identificou como sendo o original, donde, possivelmente, se extraram a cpia encontrada

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    Palavras Prvias VIII

    na Biblioteca da Academia das Cincias, mais tarde editada pelo Dr. Joo Franco Machado, e aquela que teria sido remetida a Frutuoso e a que este, como vimos, mais de uma vez faz referncia.

    Depois de pormenorizado confronto entre o que considerou o texto sado das mos de Jernimo Dias Leite e o apgrafo, de que resultou a edio j referida, emite o parecer de que aquele, pertencendo ao esplio deixado pelo seu autor na ilha da Madeira, acompanhou para Lisboa as Memrias seculares e eclesisticas para a composio da Histria da Diocese do Funchal, de Henrique Henriques de Noronha e, desde ento, por ali ficou correndo a sua vria e annima fortuna(6); chega mesmo a identiflc-lo, confirmando a suspeita j esboada pelo Dr. Joo Franco Machado (7), com a espcie n. 19, constante da Notcia bibliogrficadas Saudades da Terra, de Joo de Simas, e que por este fora dada como uma cpia da crnica de Frutuoso, pertencente a Joo Maria Nepomuceno, que se teria transviado para local desconhecido.

    Por seu turno, o Sr. Padre Eduardo N. Pereira diz que o original de Jernimo Dias Leite se conservou, pelo menos, durante 150 anos no Colgio dos Jesutas do Funchal, que foi visto e compulsado pelo bispo D. Jos de Sousa Castelo-Branco e pelo historiador, atrs referido,Henrique Henriques de Noronha (8), do que, alis, d igualmente testemunho o Dr. Franco Machado, o qual acrescenta que dele se extraiu cpia enviada Academia Real da Histria,acompanhando as citadas Memrias, conforme refere D. Antnio Caetano de Sousa, na sua narrativa Do que compreende o Bispado do Funchal, inserta no cdice existente na Biblioteca Nacional, Notcias de geografia e histria, que em parte so da autoria deste erudito e benemrito teatino (9).

    Seja qual for o rumo que levou o autgrafo ou autgrafos de Jernimo Dias Leite, o que certo que depois da publicao desta obra, deslocou-se para plano secundrio o trabalho de Frutuoso como fonte histrica do Arquiplago.

    No entanto, algum disse que isto no invalida por completo o que ele escreveu no seu Livro II, pois que o Cnego da S do Funchal quase se limitou aos assuntos contidos nos dois ttulos que deu ao seu manuscrito (10).

    Muitos captulos figuram nas Saudades da Terra, que no constam do Descobrimento da Ilha da Madeira, e mesmo a parte anedtica, a que j me referi, e to desagradveis comentrios tem merecido a alguns historiadores (11), severos em demasia e, a meu ver,bastante injustos para com o nosso cronista, oferece o seu interesse e mais uma achega, se bem que de somenos importncia, para a histria do Arquiplago no sculo XVI. Ainda em data

    recente o Dr. Fernando Jasmins Pereira cita o testemunho de Frutuoso na vasta bibliografia de que se socorreu para compor o seu valioso e bem urdido estudo intitulado A Ilha da Madeira no perodo henriquino(12).

    * * *

    Porm, um problema surge, por enquanto no de todo resolvido, prestando-se, por isso, s mais desencontradas verses.

    Diz respeito fonte primria e mais antiga, em que se baseou a narrativa de Jernimo Dias Leite e, por conseguinte, a transcrio que dela fez o nosso cronista nas Saudades da Terra.

    Frutuoso, no cap. L do Livro ll, ao referir-se ao Conde da Calheta, Joo Gonalves da Cmara, diz que este trazia no seu escritrio o descobrimento da ilha da Madeira, o mais verdadeiro que at agora se achou, como coisa hereditria de descendentes em descendentes, e que, para satisfazer o pedido que formulara atravs do rico mercador Marcos Lopes Henriques (13) e do nobre Belchior Fernandes de Castro ao referido eclesistico, este o havia solicitado quele capito-donatrio, ento, em Lisboa, donde lho enviou em trs folhas de papel, por cpia do seu camareiro Lucas de S. Diz ainda o cronista micaelense que lhe

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    Palavras Prvias IX

    constava, por carta do aludido fidalgo a Jernimo Dias Leite, ser o autor desse manuscrito um Gonalo Aires Ferreira, companheiro e criado de Joo Gonalves Zarco no descobrimento do Arquiplago, o qual, por ser de poucas letras, o redigira em linguagem rude e mal composta,pelo que o Cnego, com o seu grave e polido estilo, o recompilara e consertara, ampliando-o e refundindo-o at perfazer onze folhas de papel, para o que se havia auxiliado dos tombos e cartrios da cidade do Funchal, que, para aquele fim, todos lhe foram entregues.

    Embora Jernimo Dias Leite se no refira a tal pormenor (o da autoria do dito Descobrimento na posse dos Cmaras, Condes da Calheta e capites-donatrios do Funchal), durante muito tempo se admitiu sem reservas a sua veracidade, tanto mais que Frutuoso relata que os descendentes de Gonalo Aires Ferreira os da Casta Grande, como se intitulavam no Arquiplago ao saberem que nessas folhas manuscritas o seu antepassado era tido como criado do Zarco assim tambm o Cnego o chama por mais de uma vez trataram imediatamente de protestar contra tal designao, que consideravam humilhante para a sua estirpe.

    Da Frutuoso, ao transcrever Jernimo Dias Leite, chamar sempre a Gonalo Aires companheiro e amigo do primelro capito-donatrio do Funchal, possivelmente forado,temos de reconhec-lo, pelas relaes que deveria manter com o Bacharel Gonalo Aires Ferreira, morador nesta ilha de So Miguel e descendente de uma irm daquele antigo povoador da Madeira.

    muito provvel ter sido atravs deste Mestre de Gramtica da vila da Ribeira Grande que o cronista obtivesse a notcia do pormenor acima apontado quanto autoria do manuscrito, e tambm as informaes que sobre a nobre ascendncia escocesa da famlia de Gonalo Aires nos d, ainda que confusamente, no Livro IV das Saudades da Terra, embora assevere que as colhera do brazo passado pelos Reis de Portugal(14).

    O Sr. Padre Pita Ferreira alude a esta circunstncia ao discutir a autenticidade da afirmao de Frutuoso com respeito ao autor do documento existente na posse dos Cmaras, Capites do Funchal e Condes da Calheta, ao qual, alis, j Joo de Barros se referira no cap. III da sua Dcada Primeira(15).

    As dvidas comearam a suscitar-se, quando, em 1936, no Arquivo Histrico da Marinha(16), e tambm na obra do Prof. Antnio Gonalves Rodrigues, D. Francisco Manuel de Melo e o Descobrimento da Madeira, se reproduziu a clebre Relao que sobre este facto histrico escrevera um Francisco Alcoforado, escudeiro do Infante D. Henrique e companheiro de Joo Gonalves Zarco, e de que aquele escritor seiscentista se serviu para compor a sua

    Epanfora Amorosa.A revelao desse relato de Alcoforado provocou, como era de prever, grande celeuma, por

    vir avivar problemas que h muito estavam relegados ao esquecimento, como produto da fantasia do clebre polgrafo do sculo XVII.

    Como se sabe, essa terceira Epanfora trata dos amores infelizes dos ingleses Roberto Machim e Ana dHarfert, que, segundo uma velha tradio, haviam fugido da Inglaterra,aportando ilha da Madeira com os seus companheiros de aventura antes de iniciado o povoamento pelos portugueses.

    Ora, tal como essa Relao, o Descobrimento de Jernimo Dias Leite comea precisamente pela narrativa desse romntico episdio e Frutuoso, na sua esteira, com ela comps o captulo IV deste livro das Saudades da Terra.

    Foi no Boletin de Ia Sociedad Geografica de Madrid que o Prof. Antnio Gonalves

    Rodrigues encontrou esse relato, publicado em 1878 por iniciativa de Cesareo Fernandez Duro em artigo intitulado Como se descobri la isla de Madera. Ao apreci-lo, diz aquele Professor: Trata-se de uma cpia manuscrita do sculo XVII, conservada na Biblioteca Nacional de Madrid, da famosa Relao de Alcoforado, e acrescenta: a mais rpida comparao dos textos basta para verificar que a Relao descoberta foi, de facto, fonte directa da Epanfora.

    Desde o sculo XVI que essa narrativa do infortnio de Roberto Machim e Ana dHarfert vem apaixonando vrios escritores, tanto nacionais como estrangeiros, de que resultaram verses nem sempre concordantes, de h muito fazendo parte da tradio histrica da ilha da Madeira, onde se tem mantido atravs dos tempos.

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    Palavras Prvias X

    Que me conste, foi o Dr. lvaro Rodrigues de Azevedo, numa das suas mais extensas notas s Saudades da Terra, o primeiro em Portugal a negar-lhe qualquer autenticidade,considerando esse episdio amoroso e o seu desfecho na terra madeirense como pura lenda,produto de fantasiosa imaginao.

    Com argumentos de cerrada dialctica procurou provar a inconsistncia das afirmaes do notvel historiador ingls, Ricardo Major, que, aceitando-a como verdica e dando-lhe crdito absoluto, para tal se baseara no s no testemunho da Epanfora Amorosa, mas tambm no clebre manuscrito de Munch sobre as ilhas do Atlntico, de Valentim Fernandes, em que pela primeira vez esse episdio amoroso foi enunciado, embora mais tarde se tivesse difundido atravs do Tratado dos Descobrimentos, de Antnio Galvo, o qual, diga-se de passagem,constituiu uma das fontes mais autorizadas de que se socorreu Frutuoso ao redigir as Saudades da Terra.

    O aparecimento da Relao de Alcoforado foi, de facto, relevante, pois que veio novamente suscitar a discusso sobre um problema, que, depois da anlise crtica do Dr.lvaro Rodrigues de Azevedo, tinha sido completamente posto de parte.

    Os crculos culturais, nomeadamente os da Madeira, movimentaram-se e, se alguns investigadores h que continuam a recusar-lhe qualquer aceitao, chegando, mesmo, a considerar apcrifo o relato de Alcoforado (17), outros, pelo contrrio, afirmam que no estado actual dos nossos conhecimentos sobre o assunto (a lenda de Machim), ele no pode repudiar-se com o desdm que o tem acolhido desde a crtica do Dr. lvaro Rodrigues de Azevedo(

    18). Por sua vez, o Dr. Joo Franco Machado, que a essa Relao j aludira na Histria da Expanso Portuguesa no Mundo, e a publicara no vol. I do Arquivo Histrico da

    Marinha, no hesita em identific-la com a escritura a que Frutuoso se refere, dando-a como existente no escritrio dos capites-donatrios do Funchal em Lisboa e atribuindo-a (enganadamente, na sua opinio) pena rude e pouco literria de Gonalo Aires.

    No estudo que precedeu a sua edio do Descobrimento de Jernimo Dias Leite,observando que ambos os textos comeam pela narrativa do episdio amoroso de Roberto Machim e Ana dArfert, quase ipsis verbis, e cotejando-os frase por frase na parte que se refere ao descobrimento da Madeira, nico assunto de que se ocupa Alcoforado, o distinto investigador no tem dvidas em aceitar este como a fonte mais antiga, onde foram beber o Cnego madeirense e, por sua via, o nosso Gaspar Frutuoso.

    Perentoriamente o afirma nos seguintes termos: Hoje a identificao est feita. Trata-se,no de uma obra composta pelo referido companheiro (se companheiro foi) do Zargo, mas de

    uma relao escrita por Francisco Alcoforado, que no descobrimento da ilha da Madeira a tudo assistiu, a qual se deu por muito tempo como desaparecida e at como inexistente(19).E, depois de dizer que a Relao se intitula: Qual foy o Azo com que se descobriu a Ilha

    da Madeira escritto por my Francisco Alcoforado Escudeyro do Senhor Infante D. Henrique que fuy a tudo presente e foy desta Guisa, passa a comparar o respectivo texto com o de Jernimo Dias Leite e verifica que este nas suas primeiras dezasseis folhas um decalque daquele, levemente melhorado na sua redaco(19). De igual parecer o Padre Pita Ferreira no seu estudo Gonalo Aires e o seu Descobrimento da Ilha da Madeira(20).

    Por sua vez, o Sr. Padre Eduardo N. Pereira insurge-se contra tal opinio, aceitando como indiscutvel a autoria de Gonalo Aires para aquele precioso manuscrito e atribuindo a Jernimo Dias Leite o enxerto nesse documento do que considera uma lenda (a de Roberto Machim), inventada quase um sculo depois de descoberta a Madeira (21). Acusando o Cnego da S do Funchal de ter amalgamado e mistificado as trs folhas do manuscrito de Gonalo

    Aires, desdobrando-o para onze folhas com os erros e incongruncias da relao apcrifa,atribuda sem indcio algum de autenticidade a Francisco Alcoforado, suposto companheiro de Zarco, cuja existncia e actuao no foi possvel at hoje descobrir nem identificar, baseia as suas opinies em autores abalizados, como Duarte Leite, Damio Peres, Antnio lvaro Dria e Vitorino Nemsio, que igualmente se referiram ao assunto (22).

    A. A. Dria na sua obra O Problema do Descobrimento da Madeira, refutando a opinio do Prof. A. G. Rodrigues, expressamente diz que ningum sabe quem foi o Francisco Alcoforado e em parte alguma, a no ser na obra referida (D. Francisco Manuel de Melo e o Descobrimento da Madeira) se lhe menciona o nome e acrescenta que teremos de p-lo de

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    Palavras Prvias XI

    quarentena enquanto se no provar que o manuscrito existente na Biblioteca Nacional de Madrid cpia de outro autntico(23).

    Ainda uma outra verso nos surge sobre to debatida matria: a do Sr. Dr. Ernesto Gonalves no seu trabalho Ocupao da Madeira e Porto Santo, publicado no volume XII do Arquivo Histrico da Madeira.

    Este autor pergunta: Seria a relao, aproveitada com mau critrio por Jernimo Dias, a

    escritura mui particular de que fala Joo de Barros no cap. III da I Dcada?(24

    ).Admitindo que fosse a mesma que os Capites do Funchal possuam, a que alude o autor da sia, o Sr. Dr. Ernesto Gonalves diz que nada nos permite consider-la como lavrada por um coevo dos acontecimentos. Na sua opinio, esse relato entraria directamente a narrar como Zarco e Tristo tinham aportado Madeira, pois, segundo nos diz Gaspar Frutuoso no captulo L deste Livro II, comeava nos seguintes termos: Chegamos a esta ilha a que pusemos o nome da Madeira(25), as nicas palavras que dessa narrativa conhecemos. E conclui por afirmar que, ao contrrio do que se tem julgado, esta relao saiu directamente do texto de Jernimo Dias Leite.

    Sem pretendermos imiscuir-nos na questo da autenticidade do escrito de Alcoforado,somos de parecer que o assunto de ponderar e no pode ser discutido de nimo leve ou aguerrido, ao sabor dos preconceitos e simpatias de cada um. Diremos, no entanto, que,reconhecendo atravs da leitura das Saudades da Terra como o Dr. Gaspar Frutuoso procurou sempre evitar melindres por parte das famlias e entidades mais em voga na sua terra natal, no nos repugna acreditar que aceitasse sem qualquer espcie de crtica as informaes que, porventura, sobre Gonalo Aires Ferreira lhe tivesse fornecido o seu homnimo, que,como dissemos, morava nesta ilha de S. Miguel e seria aqui elemento destacante na sociedade da poca.

    E, a propsito, convm lembrar a nota que o Sr. Padre Pita Ferreira insere na sua obra O Arquiplago da Madeira Terra do Senhor Infante(26) acerca de um Alcoforado, que referido como fundador ou dono de um hospital daquela ilha no Livro das Vereaes da Cmara do Funchal (1470-1472), levando-o a perguntar se ser o mesmo para quem determinada crtica hoje parece inclinar-se a atribuir a autoria do decantado manuscrito, que os capites-donatrios do Funchal possuam nos seus escritrios de Lisboa (27).

    esta, pois, uma questo em aberto, para conhecimento da qual convidamos o leitor mais curioso a consultar as obras que aqui temos vindo a salientar e, igualmente, o Arquivo Histrico da Madeira, rico repositrio de documentos e artigos sobre a especialidade, da autoria de eruditos investigadores, que dele tm feito um instrumento de inaprecivel valor para a reconstituio do passado daquele Arquiplago (28).

    * * *

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    Palavras Prvias XII

    Mas no ficam por aqui os problemas que neste Livro II das Saudades da Terra se contm.

    Como j foi explicado na descrio que fizemos do cdice frutuosiano (29), este livro, de que vimos tratando, um dos que se encontram mais viciados pela introduo de captulos e folhas que no faziam parte da sua primitiva factura, cuja data conseguimos fixar em 1584.

    Refiro-me aos panegricos de Tristo Vaz da Veiga e D. Lus de Figueiredo e Lemos, ambos figuras de relevo do regime filipino, cuja vaidade houve o particular empenho de lisonjear,incluindo-os numa obra, que, tudo o indica, se destinava a ver a luz da publicidade.

    J o Morgado Joo de Arruda, na sua cpia anotada das Saudades da Terra, que data de 1812, dera conta dessa estranha anomalia e, por seu intermdio, a ela igualmente se referem com pormenor Joo de Simas na sua Notcia bibliogrfica e o Dr. Cabral do Nascimento nos seus Apontamentos de Histria Insular, aventando a hiptese de o viciamento ter sido cometido aps a morte do cronista, que, como se sabe, ocorreu em Agosto de 1591.

    Com efeito, o Dr. Cabral do Nascimento pe em dvida de que tais panegricos fossem redigidos por Frutuoso e para tal estriba-se na admirao que este sempre nutriu pelo Padre Martim Gonalves da Cmara, que foi contrrio a Filipe II de Espanha e mereceu do nosso cronista longas e desenvolvidas palavras de elogio, e tambm no carinho com que se refere ao filho do sexto capito do Funchal, que o soberano espanhol encarcerou (30). E sugere que o autor de tais interpolaes tenha sido o Dr. Daniel da Costa, fsico que para aquela cidade acompanhara o bispo D. Lus de Figueiredo e Lemos, o mesmo que no Livro III, que trata da ilha de Santa Maria, escreveu o Contraponto dedicado a este prelado.

    Quanto a Tristo Vaz de Veiga, que, ao tempo, era capito-general da Madeira, nomeado por Filipe II, para cujo partido se passou ao avizinharem-se de Lisboa as tropas invasoras,entregando sem qualquer resistncia a fortaleza de So Julio da Barra, cuja defesa lhe havia sido confiada pelos Governadores do Reino, algum, depois de 1590 a data que no panegrico vem referida introduziu na obra nove captulos, narrando com exagerado e fastidioso pormenor os feitos no Oriente dessa figura sombria da nossa Histria. Para tal, como j se disse, houve a necessidade de arrancar folhas escritas pelo prprio punho de Frutuoso e substitu-las por outras, pertencentes aos dois cadernos contendo essa homenagem, que abrange igualmente no cap. XXVII a justificao da sua atitude anti-patritica, tudo redigido em sentido apologtico.

    O que estava escrito por Frutuoso, tanto no captulo que antecede tal elogio, como no que lhe subsequente, teve de ser trasladado para esses cadernos com a mesma letra que neles figura, a qual , totalmente diversa da do nosso cronista e poder, at certo ponto, identificar- se com a do Padre Simo Tavares, que lavrou vrios termos no registo paroquial da Matriz da Ribeira Grande, a partir de 1587.

    Outra prova do viciamento a numerao dos captulos que se lhe seguem, a qual nos aparece sempre emendada, no sendo difcil divisar-se sob as emendas os primitivos nmeros,apostos por Frutuoso.

    Pela linguagem empregada, que pouco se assemelha do cronista insulano, pelos erros de cpia, com que a cada passo se topam e no foram corrigidos, e, sobretudo, pela ausncia total de emendas e acrescentamentos da prpria mo de Frutuoso as suas costumadas entrelinhas em quase todos os captulos sados do seu punho nem sequer podemos admitir que este panegrico fosse da sua autoria, mas sim redigido por algum (possivelmente do

    Colgio da Companhia de Jesus do Funchal, bastante afecta a Tristo Vaz da Veiga)empenhado em o adular ou, mesmo, justificar-lhe o procedimento numa obra, que, segundo cremos, se destinava a ser publicada.

    Tais captulos tm todo o aspecto de serem cpia de um original, que desconhecemos, feito de propsito para ser includo nas Saudades da Terra, pois frequente notarem-se, nas margens e entrelinhas, frases na prpria letra do copista, que lhe haviam escapado no momento de as trasladar. Alguns, pelo menos, como confessa o desconhecido autor, foram extrados ou inspirados na obra que Jorge de Lemos publicou em 1585, historiando os cercos de Malaca, quando Antnio Moniz Barreto era governador da ndia (31).

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    Palavras Prvias XIII

    Contudo, estamos certos de que a sua incluso nas Saudades da Terra se fez com o consentimento de Frutuoso; disso nos convencemos ao deparar com as entrelinhas capelo de Sua Majestade que ele, referindo-se ao Cnego Jernimo Dias Leite, aps com a sua letra extremamente mida no captulo XXX, este j da sua autoria, pois que trata dos filhos e filhas de Joo Gonalves Zarco, e que para consertar a obra, aps o viciamento praticado, teve de ser suprimido e depois transcrito pelo mesmo copista para os dois cadernos interpolados.

    A outra interpolao, a que nos referimos, foi o longo captulo de elogio ao bispo do Funchal, D. Lus de Figueiredo e Lemos, igualmente partidrio de Filipe II, e nomeado para aquela diocese em 1585, isto , depois de redigido este Livro II, que, como dissemos, possvel colocar-se em 1584, pelos dados irrefutveis que nele se colhem.

    Para a sua introduo, j depois do trabalho estar confeccionado, foi igualmente necessrio arrancar a ltima folha do captulo, que, pelo punho de Frutuoso, trata do bispo D. Jernimo Barreto e transcrever o que a estava para aquela, em que se d comeo a este outro,numerado de XLII, como se disse de homenagem a D. Lus de Figueiredo e Lemos, e ainda

    substituir por novas folhas o cap. XLIII (que trata dos honrosos feitos do capito Simo

    Gonalves da Cmara e dos filhos e filhas que teve) e o comeo do XLIV (como foi saqueada a cidade do Funchal por corsrios luteranos), ambos, presumivelmente, da autoria de Frutuoso,ou, pelo menos, da sua letra.

    Embora o papel seja da marca que figura na maior parte dos captulos dedicados a Tristo Vaz da Veiga e igual ao que serviu para a escriturao do Livro VI, a letra com toda a evidncia muito diferente; bastante legvel, grada e inclinada para a direita, apresenta algumas semelhanas com a do copista dos ltimos captulos do Livro IV.

    Igualmente no nos repugna acreditar que tal elogio ao bispo do Funchal se inclusse na obra com a aquiescncia de Frutuoso; no s o prelado era figura das mais marcantes entre os aorianos da poca, como o cronista tivera ocasio de o conhecer, quando aquele exerceu as funes de proco da freguesia de S. Pedro de Ponta Delgada e as de vigrio geral da diocese de Angra. Alis, a data da nomeao de D. Lus de Figueiredo para bispo do Funchal 1585 j posterior confeco da obra, coloca-se numa poca em que Frutuoso no hesita em apresentar-se, ou aparentemente se revela como defensor dos direitos de Filipe II coroa de Portugal.

    Com todos os seus problemas, e apesar do Descobrimento da ilha da Madeira, de Jernimo Dias Leite, ser hoje a fonte informativa mais segura dos primrdios da existncia daquele arquiplago como terra habitada, o Livro II das Saudades da Terra no desmerece do conjunto da obra, se atentarmos s circunstncias em que Frutuoso teve de trabalhar, no isolamento da sua remota vila da Ribeira Grande, onde paroquiava, e numa poca em que dificilmente as pessoas se podiam deslocar para colher de visu os materiais necessrios composio de um trabalho da envergadura daquele que realizou. Nem se lhe leve a mal a cpia quase servil do texto de Jernimo Dias Leite, alis elaborado a seu pedido para figurar nas Saudades da Terra, circunstncia que o cronista micaelense jamais escondeu, pois que por mais de uma vez a ela se refere e sempre em termos elogiosos para o seu autor. verdade que alterou a ordenao dos assuntos que o Cnego da S do Funchal lhe havia dado, e do critrio que a isso o levou poderemos discordar com maior ou menor fundamento,

    mas lembremo-nos de que a outras fontes ele recorreu para nos dar obra mais vasta, em que se contm captulos de indiscutvel valor, como sejam as descries topogrficas da Madeira e de Porto Santo, que no figuram no trabalho daquele prebendado, e outros, que nem pelo aspecto anedtico que os informa, deixam de ter interesse para o conhecimento da vida madeirense no sculo XVI.

    E tenhamos em considerao de que se no fora o gosto do nosso cronista em legar aos vindouros esse autntico monumento, que so as Saudades da Terra, possivelmente no teria o Cnego Jernimo Dias Leite a oportunidade de redigir o seu valioso Descobrimento da Ilha da Madeira, de que hoje, e com toda a razo, tanto se ufanam os naturais do distrito do Funchal.

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    SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

    Palavras Prvias XIV

    Sem preocupaes de inoportuno e deslocado bairrismo, mantemo-nos na linha daqueles vultos micaelenses que, apesar dos exageros ou deslizes que na sua Crnica se podem apontar e foram sobretudo resultado das condies em que ao tempo se trabalhava em matria histrica, tiveram sempre pelo Dr. Gaspar Frutuoso o respeito e a admirao que ele merece,como fonte a muitos ttulos inesgotvel e mesmo preciosa para reconstituir o passado das nossas ilhas atlnticas, designadamente as dos Aores.

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    SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

    Manuscrito Original das Saudades da Terra XV

    FOTOCPIA DA PGINA N. 63 DO MANUSCRITO ORIGINAL DAS SAUDADES DA TERRA,EM QUE SE D COMEO AO LIVRO SEGUNDO

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    SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

    Livro Segundo das Saudades da Terra

    LIVRO SEGUNDO DAS SAUDADES DA TERRA

    DO DOUTOR GASPAR FRUCTUOSO EM QUE SE TRATA DODESCOBRIMENTO DA ILHA DA MADEIRA E SUAS

    ADJACENTES, E DA VIDA E PROGNIE DOS ILUSTRESCAPITES DELAS

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    SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

    Captulo Primeiro 3

    CAPTULO PRIMEIRO

    DO NASCIMENTO, PROGNIE, AUTORIDADE E COSTUMES DO INFANTE DOMHENRIQUE, QUE MANDOU DESCOBRIR AS ILHAS DE PORTO SANTO, MADEIRA E DOS

    AORES

    Tratado tenho, Senhora, do princpio remoto e, para que trate agora de outro mais chegadoao que destas ilhas me pedistes vos contasse, no ser sem razo dizer alguma coisa da vidae costumes do infante Dom Henrique, digno de imortal e gloriosa memria, pois hei de tratardas ilhas da Madeira e dos Aores, que ele mandou descobrir neste grande mar Oceanoocidental. Para o qual se h de notar que Dom Joo, de Boa Memria, dcimo Rei de Portugale primeiro do nome, casou com a Infanta Dona Filipa, de nao inglesa, neta de el-Rei deInglaterra Dom Duarte, terceiro do nome, e filha de Joo de Gand, Duque de Alencastre, filhoquarto de el-Rei Duarte e irmo de Ricardo, Rei de Inglaterra, que neste tempo reinava.

    Havia casado o Duque Joo de Gand com Madama Branca, herdeira do Ducado deAlencastre, de quem houve um filho chamado Henrique, que foi Duque de Alencastre e, depois,Rei de Inglaterra, e duas filhas, uma chamada Isabel, que foi condessa de Holanda, casadacom Joo, Conde de Holanda, e a outra esta rainha Dona Filipa, de quem el-Rei Dom Joo,seu marido, houve nobre e grande gerao.

    Primeiramente houveram a Infante Dona Branca, que de oito meses faleceu e jaz sepultadana S de Lisboa aos ps da sepultura de el-Rei Dom Afonso quarto, seu bisav; e o InfanteDom Afonso, que faleceu moo e jaz sepultado na S de Braga; e o Infante Dom Duarte, quereinou depois de seu pai, e o Infante Dom Pedro, que foi Duque de Coimbra e Senhor deMontemor-o-Velho e de Aveiro e das terras do Infantado; e o Infante Dom Henrique, que foiDuque de Viseu e Senhor de Covilh e Mestre da Ordem de Cristo, cuja era a vila de Lagos, ea de Sagres; e Dona Isabel, que foi casada com o Duque Filipe de Borgonha e Conde deFlandres, poderoso prncipe, de alcunha o Bom Pai, e Senhora de outros grandes estados eme do Duque Charles, que mataram os suios e alemes na batalha de Nanci, em terra deLorena. Houve mais el-Rei Dom Joo da Rainha Dona Filipa, sua mulher, o Infante Dom Joo,que foi Mestre da Ordem de Santiago e Condestvel do Reino, pai da Rainha Dona Isabel,mulher de el-Rei Dom Joo de Castela, segundo de nome. Houve mais dela o Infante DomFernando, Mestre da Ordem de Avis e Senhor de Salvaterra e de outros povos, de grandecaridade com os prximos, por cuja ajuda e liberdade ficou em terra de mouros e l morreucativo em Fez. Esta a real e alta prognie do Infante Dom Henrique, que mandou descobrirestas Ilhas da Madeira e dos Aores, como adiante contarei. Teve tambm el-Rei Dom Joo,sendo Mestre, antes que reinasse, dois filhos bastardos de uma mulher, chamada Dona Ins,que depois foi Comendadora de Santos, sc. Dom Afonso, que casou com uma filha herdeira deDom Nuno lvares Pereira (chamada Dona Breatiz), que foi Conde de Ourm e Barcelos, euma filha, chamada Dona Breatiz, que casou com Dom Tom, Conde de Arendel e Borga emInglaterra.

    O Infante Dom Henrique, quarto filho de el-Rei Dom Joo, de Boa Memria, e da RainhaDona Filipa, nasceu na cidade do Porto em quarta-feira de Cinza, quatro dias do ms de Marodo ano de mil trezentos noventa e quatro, e foi (como disse) Duque de Viseu e Mestre daOrdem de Cristo, cuja militar religio reformou ele de suas sobejas estreitezas com autoridadedo Papa Eugnio quarto.

    H-se mais de notar que o Infante Dom Joo, filho quinto de el-Rei Dom Joo, de BoaMemria, e da Rainha Dona Filipa, sua mulher, nasceu em Santarm no ms de Fevereiro e,segundo outros dizem, no ms de Julho, o qual Infante foi Mestre de Santiago e Condestveldos Reinos de Portugal e casou com uma sua sobrinha, Dona Isabel, filha de Dom Afonso,primeiro Duque de Bragana, seu meio irmo, filho fora de matrimnio de el-Rei Dom Joo, seu

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    SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

    Captulo Primeiro 4

    pai, da qual Dona Isabel, sua mulher, houve primeiramente um filho, chamado Dom Diogo, aque outros chamam Dom Lus, que, depois do Infante, seu pai, faleceu de pouca idade, e umafilha, chamada Dona Isabel, que veio a ser Rainha de Castela, mulher de Dom Joo, segundodeste nome, que, sendo ele em idade de quarenta anos, a houve por sua segunda mulher.Teve mais o Infante Dom Joo da Infanta Dona Isabel, sua mulher, a segunda filha, que sechamou Dona Breatiz, a qual, andando os tempos, fez as pazes perptuas de Portugal eCastela, entre Dom Afonso, o quinto deste nome, duodcimo Rei de Portugal, e Dom Fernando

    quinto e Dona Isabel, Reis Catlicos de Castela, no fim do ano de mil quatrocentos e oitenta.Esta casou o Infante Dom Pedro, governador, ento, do Reino, com seu primo carnal, dela, oInfante Dom Fernando, irmo de el-Rei Dom Afonso e filho segundo de el-Rei Dom Duarte; osquais, Dom Fernando e Dona Breatiz, houveram estes filhos sc. Dom Domingos ou Dom Diogo(que parece teve dois nomes, ou por lhe mudarem o primeiro na crisma, ou por qualquer outrarazo que seja), Duque de Viseu, e Dom Manuel, que depois foi Rei de Portugal. Houve mais oInfante Dom Joo (32) de sua mulher, a Infanta Dona Breatiz (sic), a terceira filha, que sechamou Dona Filipa, como a Rainha, sua av paterna, a qual Dona Filipa, sendo Senhora deAlmeida, havendo sustentado grande casa e muita honra e castidade, sem casar, casando efazendo muito bem a seus criados e criadas, acabou virtuosamente sua vida. E no fim do msde Outubro do ano de mil quatrocentos e quarenta e dois faleceu este Infante Dom Joo, irmodo Infante Dom Henrique, que descobriu estas Ilhas, em Alccer do Sal, de febre, dondelevaram seu corpo ao mosteiro da Batalha, onde tem sua sepultura dentro da capela de el-ReiDom Joo, seu pai. E a seu filho, Dom Diogo, fez logo condestvel o Regente do Reino DomPedro, seu tio, dando-lhe o mestrado de Santiago com todas as rendas e cousas que o InfanteDom Joo, seu pai, tinha, o que tudo logrou pouco, pois, como est dito, faleceu muito moo,de febre contnua, logo no ano seguinte de mil e quatrocentos e quarenta e trs, cuja herana ecasa passou a Dona Isabel, sua irm maior, e depois, porque esta casou com el-Rei deCastela, passou por contrato filha segunda, Dona Breatiz, casada com o Infante DomFernando. E, porque do Infante Dom Joo no ficava outro herdeiro baro (33), o Infante DomPedro, governador, ento, do Reino, fez com el-Rei que proveu, logo, do ofcio de Condestvela Dom Pedro, seu filho maior, do mesmo Dom Pedro. E parece que, depois, el-Rei DomAfonso, o quinto do nome, morto o Dom Pedro, fez condestvel a Dom Diogo ou DomDomingos, filho do Infante Dom Fernando, seu irmo, e da Infanta Dona Beatriz, pois ele nascartas das doaes destas ilhas pe este ttulo de Condestvel.

    Era o Infante Dom Henrique, que mandou descobrir a ilha da Madeira e suas adjacentes eestas ilhas dos Aores, to poderoso no Reino e de tanta autoridade, por suas muitas virtudese saber, que, fazendo-lhe queixume o Infante Dom Fernando, seu sobrinho (34) Mestre de Aviz,

    como el-Rei Dom Duarte, seu pai, do mesmo Dom Fernando, e irmo do mesmo DomHenrique, no lhe queria dar licena para passar a frica (que era coisa que ele muitodesejava), rogou a el-Rei que lha desse e logo a alcanou, ainda que eram contra isso oInfante Dom Joo e o Infante Dom Pedro. E, quando uma vez el-Rei Dom Afonso, o quinto donome, partiu de Santarm para Lisboa, onde o mesmo Infante Dom Henrique (que estava noAlgarve) lhe foi falar, sentindo que a honra e vida do Infante Dom Pedro, seu irmo, commodos falsos de seus inimigos era maltratada e se dispunha a destruio e perigo, atalhou aisso, falando com el-Rei. Bem bastara sua autoridade a pr tudo em paz e acabar com el-Reique no cresse o que lhe diziam do infante Dom Pedro, se no fora Dom Afonso, Conde deBarcelos, e seus filhos Dom Diogo, Conde de Ourm e Marqus de Valena, e Dom Fernando,Conde de Arraiolos e Marqus de Vila Viosa, e Dom Pedro de Noronha, arcebispo de Lisboa,cunhado do Conde Dom Afonso, irmo de Dona Constana, sua segunda mulher, e Dom FreiNuno de Goes, prior de So Joo, que a cabea do priorado do Crato, e Dom Afonso, Senhorde Cascais, e outros servidores da Rainha viva Dona Leonor, mulher que fora de el-Rei Dom

    Duarte, e me do mesmo Rei Dom Afonso, quinto do nome, que eram da mesma parcialidadecontra o Infante Dom Pedro, os quais receosos, se o Infante Dom Henrique, segundo erapoderoso no Reino e de grande autoridade, pendesse banda do Infante Dom Pedro, quesuas imaginaes ficariam com dano deles muito aqum de seu propsito, trabalharam defazer a el-Rei suspeitosas suas muitas virtudes e segura lealdade, afirmando-lhe que nasdesculpas do infante Dom Pedro o no devia crer, porque na culpa do engano e desterro daRainha, sua me, e em outros desmandos, que, por morte de el-Rei Dom Duarte no Reino, sefizeram, ambos foram causadores e participantes. Mas, como isto era falso, no danava nalimpeza do Infante Dom Henrique, ainda que foi causa para que el-Rei Dom Afonso lhe nocresse as desculpas e razes que ele lhe deu por parte do Infante, seu irmo.

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    Captulo Primeiro 5

    Alm do que Joo de Barros dele diz no cap. 17. do primeiro livro da primeira Dcada desua sia, era este excelente Infante Dom Henrique valoroso cavaleiro e mui grandecosmgrafo e matemtico, e to afeioado s letras, que deu suas prprias casas para osestudos de Lisboa, e to dado contemplao e virtude, que jamais se quis casar; e, parapoder melhor gozar da vista e curso das estrelas e orbes celestes, escolheu para suahabitao uma montanha no Cabo de So Vicente, porque ali chove poucas vezes e pormaravilha se turba a serenidade do Cu, fazendo discursos, como bom filsofo e cosmgrafo,

    de uma razo em outra; e por outras razes e conjecturas, que direi adiante, e por certo roteiro,que dizem que achou do tempo dos Romanos, e com conselho dos cosmgrafos e homensperitos e experimentados na navegao, desejando estender e alargar os reinos paternos comnovas conquistas e descobrimentos, veio a concluir que se podia navegar de Portugal ndiaOriental pela parte do meio dia, e, desejando saber por experincia o que alcanava por arte,armou sua custa certos navios e mandou com eles gente a descobrir aquela navegao, eem diversas vezes veio a ter notcia de gram parte daquela costa da terra firme e de algumasilhas no mar Atlntico; e em todas as em que havia gente fez pregar a f de Nosso SenhorJesus Cristo e, por sua boa diligncia, se converteram nossa santa religio os infiis brbarosde algumas daquelas partes. E, ento, se descobriu a ilha da Madeira e a do Porto Santo eestas dos Aores, como depois particularmente direi. E como tinha vontade de bem fazer,como ele tinha por moto de sua divisa nestas palavras francesas Talent de bien faire, aindaque fosse sua custa, continuou este excelente Infante Dom Henrique este descobrimento econquista por mais de vinte e oito anos.

    Passadas estas coisas e outras, que adiante contarei, veio a morrer no ano de milquatrocentos sessenta e trs (sic) (35), a treze dias de Novembro, deixando descoberto doCabo de No at a Serra Leoa, que est desta nossa banda em sete graus e dois teros, ou,como outros dizem, oito graus de altura. Faleceu em Sagres, vila sua do Algarve, sendo deidade de sessenta e sete anos, e foi enterrado na igreja de Lagos, donde depois foi trasladadoao mosteiro real da Batalha, que el-Rei D. Joo, seu pai, havia edificado, e posto na capela domesmo convento, que est no cruzeiro banda direita, onde est enterrado el-Rei Dom Joo,seu pai, e, ao redor dele, seus filhos, os Infantes Dom Pedro, Dom Joo e Dom Fernando. Tempor divisa este Infante Dom Henrique na sepultura, dourada, umas bolsas e letras douradas,tudo j gastado. Dizem ter isto assim, por ser ele o por cuja indstria se descobriu a Mina, daqual veio e vem a Portugal muito ouro.

    Este Infante tm todos por certo que morreu virgem; cuja morte sentiu muito todo Portugal,e muito mais el-Rei Dom Afonso, seu sobrinho, a quem dos Serenssimos Infantes, seus tioslegtimos, s este lhe havia ficado, porque o Infante Dom Joo, Mestre de Santiago eCondestvel do Reino, e o Infante Santo, Dom Fernando, Mestre de Aviz, j ento eramfalecidos, e tambm o Infante Dom Pedro, Duque de Coimbra; e o tio, fora de matrimnio, queera Dom Afonso, Duque de Bragana, de mais idade que todos seus irmos, faleceu no anoseguinte e sucedeu-lhe no ducado seu filho, Dom Fernando, Conde de Arraiolos e Marqus deVila Viosa, segundo Duque de Bragana, neto do primeiro Condestvel Dom Nuno lvaresPereira por linha de sua me, a Condessa de Barcelos, Dona Breatiz, filha nica herdeira doCondestvel, e, por linha masculina, neto tambm de el-Rei Dom Joo de Boa Memria, oprimeiro do nome.

    Este Infante Dom Henrique, tio natural e pai adoptivo do Infante Dom Fernando (ao qualdevem estes reinos, como tenho dito, o descobrimento de muitas ilhas e terras firmes eprincpio dos reinos e provncias que se descobriram e se conquistaram depois no Oriente), porreconhecimento das mercs que de Deus recebera na ampliao dos senhorios destes reinos,mandou fazer em sua vida em Restelo, lugar de ancoragem antiga, ali, onde ora o mosteiro

    de Belm, mais de meia lgua de Lisboa, e, segundo outros, uma lgua, uma ermida dainvocao de Nossa Senhora de Belm, em que se pudesse recolher alguns freires da Ordemde Nosso Senhor Jesus Cristo do convento de Tomar, de que ele era Mestre, os quaisservissem ali a Deus e com os mercantes estrangeiros exercitassem as obras de caridade,assim espirituais, confessando-os e consolando-os, como corporais, agasalhando os pobres eajudando os enfermos e enterrando os mortos que ou ali falecessem ou o mar ali lanasse,tendo o Infante desta casa, que tinha neste surgidouro de Restelo, feito doao mesmaOrdem de Cristo, com algumas heranas de pomares, fontes e terras que comprara para semanterem os freires, com encarrego de todos os sbados dizerem uma missa por sua alma.

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    Captulo Primeiro 6

    Depois que Vasco da Gama tornou da ndia, vendo el-Rei Dom Manuel quo obrigadoestava (acrescentando Deus em seu tempo coroa destes reinos outros tantos e to grandes)acrescentar-lhe tambm o templo e magnificncia da obra para limpeza do culto divino eperfeio de maior religio, determinou de edificar ali o mosteiro de Belm, da ordem de SoJernimo, prosseguindo a memria e santa teno do Infante Dom Henrique, seu tio e avadoptivo, e irmo de el-Rei Dom Duarte, seu av natural, como disse. E logo em satisfao erecompenso deu Ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo a igreja de Nossa Senhora da

    Concepo de Lisboa, que, antes da converso dos judeus, fora Sinagoga, e ele a convertera emudara em servio de Deus e templo da Virgem Nossa Senhora.Mas, como o edifcio de Nossa Senhora de Belm era sumptuoso, e por sua muita grandeza

    e qualidade da obra requeria largo espao de tempo para se acabar na ordem em que o eleprincipiara, e sua morte foi tantos anos antes do que, segundo o comum curso dos homens,pudera ser, pois faleceu aos treze dias de Dezembro do ano do Senhor de mil e quinhentos evinte e um, dia de Santa Luzia, nos paos da Ribeira, no de velhice, seno de uma febre,espcie de modorra, doena de que naquele tempo morria muita gente em Lisboa, da qual, acabo dos nove dias que lhe tocou, deu a alma a Deus em idade de cinquenta e dois anos, seismeses e treze dias, dos quais reinou os vinte e seis, um ms e dezanove dias, deixouencomendado a el-Rei Dom Joo, terceiro do nome, seu filho, e sucessor tambm de suasobrigaes, como o era dos regnos e senhorios que lhe deixava, o prosseguimento e fim dela;e, para mais o obrigar a prossegui-la, acab-la e dot-la da maneira que ele, se vivera, odeterminava fazer, ordenou e mandou em seu testamento que enterrassem seu corpo na igreja

    de Belm antiga, que o Infante Dom Henrique mandara edificar, e, como a igreja do mosteirofosse acabada, lhe trasladassem a ela seus ossos pola (sic) escolher para sua sepultura, eagora o tambm dos mais Reis, seus sucessores.

    Dizem e escrevem alguns que, por o Infante Dom Henrique no ter filhos e no tempo de seufalecimento regnar em Portugal el-Rei Dom Afonso, o quinto do nome, (como se v claramente,pois este Rei nasceu em Santarm no ano de mil quatrocentos trinta e dois e faleceu a vinte eoito dias de Agosto, em dia de Santo Agostinho, na era de mil quatrocentos e oitenta e um),deixou em seu testamento a conquista do descobrimento das terras coroa real, como aotronco donde ele descendia. E parece que tambm deixou, com aprazimento de el-Rei DomAfonso, o mestrado de Cristo e quanto tinha ao Infante Dom Fernando, que ele perfilhou,casado com sua sobrinha, a infanta Dona Breatiz, filha de seu irmo, o Infante Dom Joo, jneste tempo falecido, ou, como conta o grave e docto cronista Damio de Goes, no ano de1460, depois do falecimento do infante Dom Henrique, fez el-Rei Dom Afonso quinto doaodas ilhas do Cabo Verde e das dos Aores, que ele chama Terceiras, ao Infante DomFernando, seu irmo, e, por morte do Infante Dom Fernando, ficou o dito mestrado e o mais aseu filho, Dom Diogo.

    Como quer que seja, sua me, deste Dom Diogo, a Infanta Dona Breatiz, por ele naqueletempo ser de pouca idade, sendo sua tutor e curador fez e confirmou as doaes destas ilhasda Madeira e dos Aores aos capites delas, e o mesmo Duque Dom Diogo, depois de teridade para isso. as confirmou, como de algumas delas parece. E por morte deste Dom Diogo,que el-Rei Dom Joo, o segundo do nome, matou s punhaladas por lhe tratar treio, (sic)sucedeu Dom Manuel no mestrado e ducado de Viseu a seu irmo, por merc de el-Rei, e noRegno ao mesmo Rei, seu cunhado, pelo seu testamento e por a no haver outra pessoa aquem mais pertencesse o Regno que ao dito Dom Manuel, regedor e governador da Ordem eCavalaria do Mestrado de Nosso Senhor Jesus Cristo, Duque de Viseu e de Beja, Senhor deCovilh e de Moura e das ilhas da Madeira e Cabo Verde e destas dos Aores, que so domesmo mestrado.

    E, depois que Dom Manuel sucedeu no Regno, ficou o dito Mestrado de Cristo encorporadona coroa, como parece que profetizou el-Rei Dom Joo, o segundo, quando, falando com oDuque Dom Manuel e fazendo-lhe merc do ducado e terras e senhorios que tinha seu irmoDom Diogo, defunto, (como conta o curioso Garcia de Rezende) lhe disse que ele matara oDuque seu irmo, porque ele, Duque, com outros o quiseram matar. E, porque todalas coisas,que ele em sua vida tinha, por sua morte ficavam livremente coroa, ele de todas, dali emdiante, lhe fazia merc e pura doao para sempre, porque Deus sabia que ele o amava comoa prprio filho e lhe dizia que, se o seu prprio filho falecesse, sem outro filho legtimo que osucedesse, que daquela hora para ento o havia por seu filho, herdeiro de todos os seusRegnos e Senhorios; e, sendo isto dito e ouvido, de uma parte e da outra, com muita tristeza e

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    Captulo Primeiro 7

    lgrimas (porque el-Rei tudo atribua a seus pecados), o Senhor Dom Manuel, com muitoacatamento pondo os giolhos em terra, lhe beijou por tudo a mo, e o mesmo fez Diogo daSilva, seu aio. Ento, lhe mudou el-Rei o ttulo de Duque de Viseu, por se no intitular comoseu irmo, e houve por melhor que se intitulasse Duque de Beja e Senhor de Viseu, como daem diante se chamou. E, logo nesta mesma fala, el-Rei tocou ao Duque em querer para si asvilas de Serpa e Moura e que por elas lhe daria dentro do Regno mui inteira satisfao; e assimapontou nas saboarias do Regno, que tinha, em que, porventura, haveria mudana, porque as

    havia por opresso dos povos e por crrego de sua conscincia. E tambm lhe disse que a ilhada Madeira, no que pertencia a sua coroa, ele, Duque, a teria em sua vida inteiramente, masque por seu falecimento, quando Deus o ordenasse, era razo que, por ser cousa tamanha, setornasse coroa e aos Reis destes Regnos, que os sucedessem. As quais palavras, queel-Rei, ento, disse ao Duque, foram todas (como disse) profecias do que ao diante se viu, poistudo foi como ele, ento, o disse, e ficou o mestrado coroa no tempo que o Duque DomManuel ficou Rei.

    E esta parece ser a razo porque so as doaes, em aqueles tempos, aos capites destasilhas concedidas pela dita Infanta Dona Breatz, como curador e tutor de seu filho, o DuqueDom Diogo, enquanto era de pouca idade, e foram depois confirmadas pelo dito Dom Diogo,quando j tinha idade para isso, e pelos Reis destes regnos; e, sucedendo por Duque noducado de Beja, Dom Manuel, por morte de seu irmo Dom Diogo, e vindo depois a ser Rei omesmo Dom Manuel, ficou o Mestrado da Ordem de Cristo encorporado na Coroa Real, comoagora est, e os Reis de Portugal so os que agora fazem as doaes destas capitanias destas

    ilhas e as confirmam, ainda que dantes eram concedidas (como tenho dito) pela lnfanta DonaBreatiz, como curador e tutor de seu filho, o Infante Dom Diogo, enquanto era menino, e depoisconfirmadas por ele, quando j teve idade para isso. E qualquer Rei que agora sucede noReino o Mestre da Ordem de Cristo, de cujo Mestrado so a ilha da Madeira e suasadjacentes e estas ilhas dos Aores.

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    Captulo Segundo 8

    CAPTULO SEGUNDO

    DO QUE ESCREVE JOO DE BARROS DO DESCOBRIMENTO DAS ILHAS DE PORTOSANTO E DA MADEIRA, E DOUTRAS OPlNlES QUE DELE TM OUTROS AUTORES

    Segundo escreve o no menos docto que curioso Joo de Barros quase no princpio de suasia, depois que el-Rei Dom Joo, de gloriosa memria, o primeiro deste nome em Portugal,passando a frica, no ms de Julho, por fora de armas tomou a cidade de Cepta, na tomadada qual o Infante Dom Henrique, seu filho terceiro gnito, foi parte mui principal, e, como contao grave cronista Damio de Goes, quatro anos depois que el-Rei Dom Joo tomou a cidade deCepta aos mouros, eles a requerimento de el-Rei de Granada, chamado o Esquerdo, a vieramcercar no ms de Agosto com gro poder, ao qual cerco el-Rei Dom Joo mandou muita e muinobre gente de seus regnos, por cujo capito foi o Infante Dom Henrique.

    E porque, alm de ele ser mui arriscado cavaleiro, era mui dado ao estudo das letras,principalmente da Astrologia e Cosmografia, trazendo, como Jlio Cesar, a lana em uma moe o livro na outra, tornando do dito cerco o mesmo Infante, sabendo a obrigao do crrego eadministrao que tinha de governador da Ordem da Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo,que el-Rei Dom Dinis, seu trisav, para a guerra dos infiis ordenou e novamente constituiu,desejoso de acrescentar o Regno de Portugal e descobrir outro mundo de novo, j que no lhecabia o descobrimento ou conquista de frica, e vendo como os mouros do Regno de Fez eMarrocos ficavam por conquistar, metidos na coroa destes Regnos por o novo ttulo que seupai tomou de Senhor de Cepta, e que ele j no podia intervir como conquistador, seno comocapito enviado, e, indo desta maneira, havia de seguir a vontade de el-Rei e a disposio doRegno e no a sua, assentou mudar esta conquista, que muito desejava, para outras partesmais remotas de Espanha; com fundamento da qual empresa (que at o seu tempo nenhumprncipe tentou), para que este seu propsito houvesse efeito, era mui diligente na inquisiodas terras e seus moradores e de todalas coisas que pertenciam Geografia, dando-se muitoa ela, com que veio a ter notcia de muitas terras, estando recolhido em uma vila, quenovamente fundava no regno do Algarve, na angra chamada Sagres, por estar junto do cabode So Vicente, chamado pelos antigos histricosSacrum Promontorium,que quere dizerGrande Cabo (como se podem chamar todos os outros cabos grandes que ao mar saem).Assim chama Virglio grande fome e sede de ouro,auri sacra fames, a que os latinoschamam execrabilis, ex-fugienda,de que se deve fugir e arredar, como dos grandes cabos oupromontrios, onde quase sempre h tormentas e perigos, donde se derivou o corrupto nomede Sagres, que para mais verdadeira imitao da lngua latina, donde a nossa traz seu (sic)origem (como diz o cronista Damio de Goes), se deve chamar, mudando o g em c, Sacres; qual vila o dito Infante ps nome Ter Nabal, e ora se chama a Vila do Infante.

    Como coisa que lhe fora revelada, segundo alguns dizem, ainda que o mais certo pelacerteza que alcanou do trabalho de seu estudo e grande curiosidade que a navegao para andia Oriental j fora em outros tempos achada, logo no mesmo ano que tornou do cerco de

    Cepta, que foi o de mil e quinhentos (36

    ) e dezanove, um dia, em se levantando com muitadiligncia, mandou armar dois navios que foram os primeiros com que comeou mandardescobrir a costa de frica. E, porque naquele tempo nenhum portugus passava do cabo deNo, que est em vinte e nove graus de altura, deu aos capites por regimento que seudescobrimento fosse deste cabo por diante; mas estes e outros, que doutras vezes foram evieram, no descobriram mais que at o cabo Bojador, que ser avante do cabo de No obrade sessenta lguas.

    Tornados estes navios, falaram-lhe dois nobres e esforados cavaleiros de sua casa, a umdos quais chamavam Joo Gonalves, Zargo de alcunha, e outro Tristo Vaz, de menos idade,vendo os desejos que ele tinha de descobrir terra e eles de o servirem na tal empresa, como

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    Captulo Segundo 9

    naquelas idas de alm o tinham em frica mui bem servido, pedindo-lhe muito que, poisarmava navios para descobrir a costa de Berbria e Guin, lhe aprouvesse irem eles em algumnavio a este descobrimento que eles sentiam em si que nele o poderiam bem servir. O Infante,vendo suas boas vontades e conhecendo deles serem homens para qualquer honrado feito,pela experincia que tinha de seus servios, mandou-lhe armar um navio a que chamavambarca naquele tempo, e deu-lhes regimento que corressem a costa de Berbria at passaremaquele temeroso Cabo Bojador, e da fossem descobrindo o que mais achassem.

    Como este Infante Dom Henrique era um baro to puro, to limpo e de corao to virginalcomo foi, segundo nota Joo de Barros, a ele convinha descobrir estas terras idlatras e abriros alicesses (sic) da Igreja Oriental que nelas se depois edificou. E, assim, permitiu Deus queeste novo descobrimento (pela majestade dele) passasse pela lei que tm as grandes coisas,as quais tm uns princpios trabalhosos e casos no cuidados e de tanto perigo, comopassaram estes dois nobres cavaleiros, que o Infante mandou descobrir, depois de partidos emsua barca, porque, antes que chegassem costa de frica, saltou com eles tamanho temporal,com fora de ventos contrairos sua viagem, que perderam a esperana das vidas, por o navioser to pequeno e o mar to grosso, que os comia, correndo a rvore seca vontade dele.

    E como os marinheiros naquele tempo no eram costumados a se engolfar tanto no pegodo mar e toda sua navegao era por sangraduras, sempre vista da terra, e, segundo lhesparecia, eram mui afastados da costa deste regno, andavam todos to torvados e fora de seu juzo, pelo temor lhe ter tomado a maior parte dele, que no sabiam julgar em que paragemeram; mas aprouve piedade de Deus que o tempo cessou e, posto que os ventos lhe fizeramperder a viagem que levavam, segundo o regimento do Infante, no os desviou de sua boafortuna, descobrindo a ilha que agora chamamos do Porto Santo (37), o qual nome lhe eles,ento, puseram porque os segurou do perigo que nos dias da fortuna passaram. E bem lhepareceu que terra, em parte, no esperada no somente lha deparava Deus para sua salvao,mas ainda para bem e proveito destes regnos, vendo a disposio e stio dela, e mais no serpovoada de to fera gente como, naquele tempo, eram as ilhas Canrias, de que j tinhamnotcia. Com a qual nova, sem ir mais avante, se tornaram ao regno, de que o Infante recebeuo maior prazer que at naquele tempo desta sua empresa tinha visto, parecendo-lhe que eraDeus servido dele, pois j comeava ver o fruto de seus trabalhos.

    E pela informao que estes dois cavaleiros davam dos ares, stio e fresquido da terra, epor comprazer ao Infante, se moveram muitos e ofereceram a ele com propsito de a povoar,antre os quais foi uma pessoa notvel, chamado Bertolameu Perestrelo, que era fidalgo dacasa do Infante Dom Joo, seu irmo, para a qual ida mandou armar trs navios, um dos quais

    deu a Bertolameu Perestrelo, e os outros dois a Joo Gonalves e a Tristo Vaz, primeirosdescobridores. E antre as sementes e plantas e outras coisas, que levavam, era uma coelha,que Bertolameu Perestrelo levava prenhe, metida em uma gaiola, que pelo mar acertou deparir e, depois de chegados ilha, e solta a coelha com seu fruto, em breve tempo multiplicoutanto que no semeavam ou prantavam coisa que logo no fosse roda por espao de doisanos que ali estiveram, o que foi causa que, importunado, Bertolameu Perestrelo se tornoupara o regno.

    Joo Gonalves e Tristo Vaz, como tiveram melhor estrela que o Perestrelo, partido ele,determinaram de ir ver se era terra uma grande sombra que lhe fazia a ilha a que orachamamos da Madeira e, vendo o mar para isso disposto, passaram-se a ela em dois barcosque fizeram, a qual chamaram da Madeira por causa do grande e espesso arvoredo de que eracoberta.

    O Infante, depois que estes dois capites vieram ao Regno com a nova do novo

    descobrimento desta ilha, por consentimento de el-Rei Dom Joo, seu pai, a repartiu em duascapitanias: a Joo Gonalves deu a que chamamos a do Funchal, onde est a cidade nomeadadeste lugar, e a Tristo Vaz deu a outra, onde est a vila de Machico; e comearam ambos depovoar a ilha na era de 1420. E a ilha do Porto Santo deu o Infante a Bertolameu Perestreio.

    E o mesmo Joo de Barros diz que Gomes Eenes (sic) de Zurara, cronista destes regnos,em soma, conta que Joo Gonalves e Tristo Vaz, ambos descobriram a ilha da Madeira. E(como conta o capito Antnio Galvo) outros dizem que, vendo um castelhano os desejos queo Infante tinha de descobrir novo mundo, lhe dera conta como eles acharam a ilha do PortoSanto, parece ser quando foram descobrir as Canrias ou fazendo outra viagem, e, por sercousa pequena, no faziam dela conta; que foi causa de mandar l o Infante Bertolameu

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    Captulo Segundo 10

    Perestrelo (aos quais a histria da ilha da Madeira chama Palestrelo e Zargo e Tristo VazTeixeira) e, pelos sinais e derrotas que o castelhano dera do Porto Santo, foram ter a ele, e,depois de ali estarem dois anos, no de 1420 se passaram ilha da Madeira, onde acharamcomo Machim (depois dos Fenicianos), ali estivera no lugar que dele, depois (como j disse),chamaram Machico.

    Outros dizem que no ano de 1420 Joo Gonalves Zarco e Tristo Vaz, de casa do InfanteDom Henrique, foram de Lagos, onde o Infante estava, em um navio saltear as Canrias e ailha dos Lobos, e da tornada, dando tormenta neles, foram ter ilha do Porto Santo, o qualnome lhe eles puseram pela tormenta em que se viram, de que nela escaparam, ondeestiveram alguns dias, e, tomando mostras da terra, se tornaram a Lagos, onde o Infanteestava, e lhe deram relao da ilha, de que deu o Infante a capitania a Bertolameu Perestrelo,fidalgo da casa do Infante Dom Joo, seu irmo. E que logo no seguinte ano de 1421, pormandado do dito Infante Dom Henrique, foram os mesmos Joo Gonalves Zarco e Tristo Vaze Bertolameu Perestrelo dita ilha do Porto Santo, onde estiveram dois anos, e cada ano ia aela navio de Lagos com mantimentos para eles, e por se enfadar Bertolameu Perestrelo deestar ali, pola (sic) muita criao dos coelhos, que multiplicaram sem conto de uma coelha, quetrouxera, que pariu no mar, danar quanto na terra se semeava, se tornou no navio, que cadaano vinha de Lagos, ter com eles, ficando Joo Gonalves e Tristo Vaz na dita ilha, que,ento, era toda coberta de dragoeiros e zimbros e outras rvores at o mar.

    E por verem dali sobre a ilha da Madeira sempre muita nvoa e vulco, sem nunca sedesfazer nem mudar, no ano de 1424 fizeram duas barcas grandes e, metendo-se nelas comos homens que consigo tinham, foram ter detrs da ilha da Madeira, da banda do norte, ponta de Tristo, o qual nome lhe puseram por amor de Tristo Vaz, que ficou ali, indo JooGonalves em uma barca por derredor da ilha, pela ponta do Zargo, e foi ter a Cmara deLobos, donde tomou seu apelido, e dali se tornou outra ponta, onde ficara Tristo Vaz, daqual se foram ambos nas barcas at ponta de So Loureno, e dela at a baa e porto deMachico, e desembarcaram onde agora se chama o Desembarcadouro, ou, segundo outros, oEmbarcadouro, onde acharam uma choupana derribada, e dali foram onde agora est a igrejade Cristo na vila de Machico, onde acharam uma cruz em uma rvore com letras que diziam:Aqui chegou Machin, ingrs (38), com tormenta; e aqui jaz enterrada uma mulher, que com elevinha. E, tanto que eles isto viram, se tornaram para a ilha do Porto Santo, e levaram asmostras da ilha da Madeira no navio que veio de Lagos o dito ano, indo-se nele para Lagos,onde o Infante estava, a quem mostraram o que levavam da dita ilha, pedindo-lhe a capitania.

    O dito Infante, vendo as mostras e relao que da ilha lhe eles deram, lhe ps o nome que

    agora tem da ilha da Madeira e partiu a capitania dela antre eles, como ao presente est,dando (segundo alguns dizem) a Tristo Vaz, por ser mais velho, a capitania de Machico, e aJoo Gonalves a capitania do Funchal, e, segundo outros, fazendo capito do Funchal a JooGonalves Zargo (sic), por ser mais velho, pela qual razo tambm o havia dantes mandadopor capito, em cuja companhia ia Tristo Vaz, quando acharam as ditas duas ilhas. E dizemmais alguns antigos que no ano de 1425, no ms de Maio, foi Tristo Vaz com sua mulher ter ilha da Madeira.

    A escritura, que tm os herdeiros de Joo Gonalves, diz que ele foi o principal neste feitio;e, nomeando Tristo Vaz por Tristo da Ilha, como el-Rei e o Infante em suas provises edoaes o nomeiam, como pessoa menos principal e no homem de tanta idade, nemqualidade, como Joo Gonalves, somente se diz que era chegado a ele por amizade ecompanhia e, como homem mancebo e desta conta, sempre era nomeado por Tristo, como serelata mais copiosamente na mesma histria e informao dos ilustres capites da ilha daMadeira, que de pena anda escrita, e eu a alcancei ver por meio do muito reverendo e curiosoHiernimo Dias Leite, cnego na S da cidade do Funchal, que a coligiu e comps. E paraconfirmao disto, conforme ao que nela li, e, por outra parte, ouvi a homens antigos, honradose dignos de f, desta ilha de So Miguel e de fora dela, contarei logo mais particularmente,ainda que com brevidade, o descobrimento destas duas ilhas do Porto Santo e da Madeira e deoutras suas vizinhas, e a vida e alguns honrosos feitos dos ilustres capites de todas elas,deixando as mais particularidades (pois mais no pude alcanar saber) para quem delas quiserescrever particularmente, porque so to grandes e altivas, honrosas e ricas as coisas destailha da Madeira e das outras, que digo, que esto a sua sombra, e de seus capites emoradores, que, alm de requererem outro melhor e mais alto estilo que o meu, que baixo e

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    Captulo Segundo 11

    estril e tem pequenos e fracos ombros para se atrever a levar to grande crrega, pode quemas inquirir e alcanar saber todas fazer e compor um mui grande, curioso e gostoso volume.

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    Captulo Terceiro 12

    CAPTULO TERCEIRO

    DO PRINCPIO E FUNDAMENTO, GENEALOGIA E FIDALGUIA DO PRIMEIRO CAPITODO FUNCHAL DA ILHA DA MADEIRA JOO GONALVES, O ZARGO (SIC), PRIMEIRO DO

    NOME, E DE SEUS DESCENDENTES

    Como todos os homens procederam de um pai e me, Ado e Eva, que so um s princpioe no dois pais e mes, claro est que nenhum nasceu fidalgo, nem com este privilgio defidalguia, seno depois que suas obras, ou de seus antepassados, lho deram.

    Como as obras de Abel o fizeram santo e accepto a Deus, e as de Caim, filho do mesmo paie me, o tornaram rstico e condenado, pois como rstico viveu dali por diante (havendo mortoa seu irmo Abel), antre os matos e feros animais abatido e fugitivo sobre a face da Terra,

    onde depois o matou com uma frecha, ou seta, ou (como c dizemos) besta, o PatriarcaLamech, cuidando ser besta, tendo-o por bruto animal do campo em que antre os brutosandava. Digo isto para mostrar que a fidalguia teve princpio ou nas obras de algum, que comelas lho deu, ou na acceptao dos Reis, que com ela lho deram. E pois isto assim que todaa fidalguia e nobreza teve princpio em algum chefe que fez o alicesse (sic) e ps nofundamento a primeira pedra dela.

    A ilustre prognie dos ilustres capites do Funchal da ilha da Madeira e desta ilha de SoMiguel, que deles descendem, teve um dos mais altos e honrosos princpios que se podemcontar, se verdade (como por verdade se tem) o que dele se conta, como logo direi.

    Segundo alguns nossos cronistas deixaram escrito, depois da Encarnao de Nosso Deus eSenhor mil e quatrocentos e quinze ou dezasseis anos, no ms de Julho, partiu el-Rei dePortugal, Dom Joo, de Boa Memria, primeiro de nome, da cidade de Lisboa, e o prncipeDom Duarte e os Infantes Dom Pedro e Dom Henrique, seus filhos, e outros senhores e nobresdo regno, para frica, e uma quarta-feira, ao meio-dia, vspera de Nossa Senhora de Agosto,da mesma era, per fora de armas tomaram aos mouros a gr cidade de Cepta (39), que estda parte do Norte em trinta e cinco at seis graus de altura, a qual cidade depois foi cercada demouros e o Infante Dom Henrique a foi descercar.

    E, como a homens antigos e nobres desta ilha de So Miguel e a outros de fora dela ouvi,ou no cerco dela, ou dantes no cerco de Tnger, onde se acharam Joo Gonalves, o Zargo, eTristo Vaz, e o fizeram to honradamente, que o Infante os armou cavaleiros, ou seja a, ouem outra parte, em algum dos lugares de frica, estando l um capito de el-Rei, aconteceuque, correndo mouros s tranqueiras, dantre eles saiu um que a cavalo desafiou aosportugueses, dizendo que a um por um queria mostrar a valia de seu esforo e, se antre eleshavia esforados, que no encobrissem a sua, ao qual (antre muitos que dos nossos paraacceptar o desafio se ofereceram) saiu, com licena do capito, um, esforado, e de nomeantre os cristos, a quem na briga a fortuna to mal favoreceu, que o mouro com morte deleficou senhor do campo; logo saiu outro de no menos valia, a quem a sorte disse de maneira

    que fez companhia ao primeiro; aps este, outro, e no sei se mais, que tiveram o mesmo fim.Vendo o capito quo mal lhe sucederam as coisas naquele dia, estava to ocupado do

    pesar pela perda dos seus cavaleiros, que no campo via jazer, sem vida, vencidos, que compalavras e meneios se deixava bem entender, respondendo aos que se ofereciam para vingara morte dos mortos que nem lhe falassem, nem lhe pedissem licena, pois bastava bem adesaventura que todos presentes viam e no provar outra maior, nem ver o fim Fortuna.Estando as coisas neste estado, se veio ao capito um soldado infante, at ento sem nenhumnome (dantes nem depois lho pude saber, ainda que ele o ganhou muito grande), e lhe pediuque o deixasse sair ao mouro, que ele com favor de Deus esperava venc-lo e entreg-locativo, respondendo-lhe o capito que se deixasse de tal propsito, pois o que tantos e to

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    Captulo Terceiro 13

    animosos cavaleiros no puderam fazer, como ele, sem experincia de cavalo, esperava sairvencedor? Disse o soldado que, j que na demanda eram perdidos tantos e to abalisadoscavaleiros e de tanto nome ante ele, capito, e o Rei, pouco se aventurava em ele tambm seperder, pelo que lhe pedia lhe no negasse licena; o capito, entendendo esta razo e rplicae o grande nimo do soldado com que isto lhe requeria e, vendo nele mostras para acabarqualquer feito honroso, de parecer doutros cavaleiros lhe concedeu o que pedia.

    E logo o soldado pediu um cavalo de um cavaleiro, que para o feito escolheu, e, cavalgandonele com a adarga embraada e na outra mo um pedao de pau, caminhou para o mouro que,em o vendo, escaramuando, se veio mui soberbo a ele e, todas as vezes que queria ferir aocristo, ele no fazia mais que com o pau desviar de si a lana do mouro, o que fez at, tantoque viu tempo e conjuno, que, remetendo depressa com o cavalo ao mouro, lhe deu emdescoberto to grande pancada, que, atordoado, o tomou pelos cabelos e preso o entregou aocapito, pelo qual feito foi da por diante conhecido do Rei. Deste valoroso soldado dizem queprocedeu Joo Gonalves, o Zargo, seu filho, ou neto. E outros dizem que este feito em armasfez o mesmo Joo Gonalves e por o mouro, que ele, ou seu pai ou av, matou, se chamarZarco, lhe ficou a eles, ou a ele, o mesmo apelido e nome.

    A informao que tenho da ilha da Madeira conta este princpio de outra maneira, dizendoque este primeiro capito do Funchal foi chamado Zarco, alcunha imposta por honra de suacavalaria, porque, no tempo que os Infantes Dom Henrique e Dom Fernando, filhos de el-ReiDom Joo, primeiro do nome, foram cercar Tnger com teno de a tomar e sujeitar coroadestes regnos de Portugal, foi este capito Joo Gonalves com eles por ser cavaleiro da casado dito Infante Dom Henrique.

    Estando pois os Infantes neste cerco, vieram sobre eles el-Rei de Fez, e el-Rei de Beles, eel-Rei de Marrocos, e Luzaraque e cinco Enxouvios com todo seu poder, em que traziamsessenta mil de cavalo e cem mil homens de p, os quais, chegados, cercaram logo osInfantes, pelo que lhe foi necessrio fazer um palanque, onde se defenderam com padeceremmuitas afrontas e fortes combates, nos quais se mostrou to cavaleiro o Zargo, que deumostras de seu grande esforo, pelejando valorosamente diante dos Infantes, que por essacausa o estimavam muito. E neste lugar e combate recebeu uma ferida em um dos olhos, deum viroto, que dos imigos lhe tiraram, com que lhe quebraram um olho. E como naqueletempo chamavam zargo a quem no tinha mais que um olho, ficou-lhe o nome por insgnia ehonra de sua cavalaria, porque nela deu tais mostras e se sinalou por to cavaleiro, que no foipouca ajuda seu esforo e indstria na guerra, para o Infante Dom Henrique se salvar erecolher ao mar a tempo que j o Infante Dom Fernando ficava cativo por treio (sic) e manha,

    como na Crnica de el-Rei Dom Duarte copiosamente se relata. Assim que com a indstria eesforo deste cavaleiro, Joo Gonalves Zargo, se recolheu e embarcou o Infante DomHenrique nos navios, que no mar estavam para esse efeito, ficando sempre o Zargo em terrarecolhendo a gente que pde e sustentando esforadamente o mpeto e peso dos mouros, quesobre ele vinham por entrar o Infante; e, depois de recolhidos, com perda de muitosportugueses, Joo Gonalves se recolheu bem ferido, com trabalho e perigo, sendo os mourosinfinitos.

    Por este grande servio, que este magnnimo Joo Gonalves Zargo fez ao Infante, eoutros, que tinha feitos a el-Rei, o estimavam muito, e lhe dava el-Rei cargos de substncia,em que sempre se mostrava mui cavaleiro; e por essa razo o encarregou, havendo guerrascom Castela, de capito da costa do Algarve, como logo declararei, onde serviu a el-Rei muitobem, tendo segura a costa de toda a molstia dos castelhanos.

    Este princpio mui certo, e os outros, que antes deste tenho dito, bem o podem tambm

    ser, e todos serem verdadeiros por acontecerem uns ante os outros, e em diversos tempos epessoas, como so pai e filho, ou neto. E ora seja de um modo destes, ou de qualquer deles,ou todos, cada um deles, por si, foi um dos mais honrosos e afamados que antre muitas egrandes linhagens se apregoa, pois qualquer destes feitos to grande, que em poucasgeraes e prospias se pode achar outro princpio maior e de mais nome e fama.

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    Captulo Quarto 14

    CAPTULO QUARTO

    DA HISTRlA MAIS VERDADEIRA E PARTICULAR COMO O INGRS MACHIM ACHOUA ILHA DA MADEIRA

    Ainda que j, Senhora, atrs tenho contado brevemente o que se conta do ingrs Machimque, desgarrado com tormenta, foi ter ilha da Madeira, que ainda nunca fora descoberta, tudofoi relatado conforme ao que escreve o notvel capito Antnio Galvo em um tratado que fezde novos descobrimentos.

    Mas agora que vos quero contar mais particularidades do descobrimento da mesma ilha,como ento prometi, direi tambm mais verdadeira e particularmente, segundo outros quemelhor a inquiriram e examinaram da maneira que aconteceu, esta saudosa histria cheia de

    muitas saudades (40

    ).No tempo de el-Rei Dom Duarte de Inglaterra houve um nobre ingrs, afamado cavaleiro, aque chamavam de alcunha o Machim, o qual, por ter altos pensamentos como tambmhonrosos feitos, andava de amores com uma dama de alta linhagem, a que chamavam Ana deHarfet. Prosseguindo ele com extremos seus amores, veio ela tambm amar muito a quem aamava, porque, enfim, o amor, se no for com amor, no tem igual paga, e como ele (como ascoisas odorferas) se no pode encobrir onde est encerrado, com mostras e suspeitas que desi deram, foram descobertos os amantes, por se quererem ambos muito. E (ainda que, svezes, a proibio de uma coisa causa de maior desejo dela e seja isca de maior incndioquerer algum apagar o fogo amoroso, pois nossa natureza mais se incita e aspira ao que maislhe vedado) como os senhores de alguns campos regadios, no tempo das grandesenchentes, fazem gua grandes valos no princpio donde vem, para as lanar para outradiferente parte, e os mdicos, para curar a pontada de um lado, mandam sangrar do contrairo,assim os parentes dela, cuidando deitar gua no fogo e no alcatro, que arde nela, comosenhores do agro e mdicos de sua amorosa enfermidade, para divertir a corrente do amor quea alagava e apartar o sangue da contraira pontada, como fazendo contrairos valados esangrias, com aprazimento de el-Rei a casaram em Bristol com um homem de alto estado.

    Machim foi disto mui lastimado e ela muito descontente, no tendo nenhum meio a paixo edor destes extremos com que ambos se viram, mostrando com lgrimas ardentes a lstimadeste casamento, acordando com grande segredo fugirem para Frana, com quem Inglaterra,ento, tinha grandes guerras. E falando-se Machim com alguns agravados e parentes, a quedescobriu seu peito e todo seu talento e tesouro (que tinha encerrado onde estava seu coraoe amor), deram-se as fs e juraram de irem todos com ele para Frana. E, para melhor poremem effecto (sic) esta partida, foram secretamente poucos e poucos ter a Bristol, onde estavamcertas naus de mercadores carregadas para Espanha, determinados meter-se em uma delas epor fora fazendo-se vela, passarem-se a Frana, fazendo saber com todo secreto este seuacordo a Ana de Harfet para vir ter com eles e fugirem.

    E ordenado o dia que as naus estivessem despejadas da gente principal, um dia de festa,sendo o mestre e mercadores em terra, estando Ana de Harfet avisada, cavalgou o maissecretamente que pde em um palafrm e, levando consigo um crucifixo e todas suas jias depreo, deu consigo no lugar ordenado, onde a estavam j esperando com um batel. Meteu-seno batel com seu Machim, que com seus criados e amigos a recolheram, e levaram-na a umadas naus que tinham prestes, a qual fizeram fazer logo vela e, cortadas as amarras,recolheram o batel.

    Acertou de ventar uma tormenta grande, revolvendo as ondas como invejosas daqueledesenvolto amor, com que logo se afastaram da terra, e como anoiteceu, havendo conselhoque poderiam sair as outras naus atrs ela, que haviam de entender que passavam a Frana,

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    SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

    Captulo Quarto 15

    desviaram-se desse caminho, esperando de ir tomar as derradeiras partes de Frana emGasconha, ou Espanha. E, como o piloto e mestre ficaram em terra e os que iam na nau nosabiam tomar a terra, nem a altura dela, achando vento prspero, correram para onde oslevava a ventura com todas as velas, por no os alcanarem, e em poucos dias se acharam emuma ponta de uma terra brava, toda coberta de arvoredo at o mar, de que ficaram espantadose confusos; logo detrs da ponta viram uma enseada grande e, metendo-se nela, deitaramncora, lanaram batel fora, foram ver que terra era e, no podendo sair nela com a quebrana

    do mar, foram-se a uma rocha, que entrava no mar da banda do Nascente, onde saram bem vontade, e dali se foram praia, antre o arvoredo e o mar, at darem em uma formosa ribeirade boa gua que, por antre o arvoredo, saa ao mar, no achando animal nem bicho nenhum.Porm, acharam muitas aves e viram o arvoredo to grosso, e espesso, que os ps emespanto. Antre outras rvores acharam junto do mar uma muito grande e grossa, que, daantiguidade, tinha um oco no p, onde entravam como em uma casa; tornando com esta nova nau, o Machim e companheiros, entendendo que era terra nova, puseram em vontade de apedirem aos reis de Espanha.

    Ana de Harfet, como ia mareada e enjoada do mar, rogou ao Machim que a levasse a terraa ver aquela ribeira e desmarear-se alguns dias do enjoo. F-lo ele assim; mandou levar roupae mantimento a terra para estar ali alguns dias de vagar, enquanto o tempo lho desse, levandoconsigo alguns companheiros para estar em sua companhia na terra, e outros iam e vinham nau. Mas, como a fortuna corre com algum no lhe d vagar de repouso, a terceira noite,depois que chegaram, levantou-se um vento to forte sobre a terra, que a nau se desamarrou;

    os que dentro estavam deram vela, sem poderem parar, e foram-se por onde o vento oslevava e em poucos dias, (dizem que) foram dar costa de Berbria, onde foram logo cativosdos mouros e levados a Marrocos.

    Quando amanheceu e os que ficaram em terra no viram a nau, ficaram mui tristes,dando-se logo por perdidos e desesperados de mais poderem dali sair. A dama de Machim, dese ver ficar ali, pasmou e nunca mais falou, e da a trs dias morreu. Machim, pelo muito quelhe queria, de paixo arrebentava e, vendo-se desterrado de sua ptria e seu amor morto naalheia, que era todo o conforto de seu desterro, no lhe lembravam j saudades da terra; s astinha insofrveis da sua Ana de Harfet, que diante de si to prestes via feita terra; com estas,com que ficava, e com ardentes suspiros e lgrimas, com que a acompanhava, ali, ondeestavam agasalhados, a mandou enterrar e ps-lhe uma cruz de pau cabeceira e uma mesaou campa (sic) de pedra, com o seu crucifixo sobre ela, e aos ps do crucifixo ps um letreiroem latim, em que contava todo o seu tristssimo sucesso e o que naquela viagem to semventura lhe tinha acontecido, pedindo que, se em algum tempo ali viessem ter cristos,fizessem naquele lugar uma igreja da invocao de Cristo.

    Acabado isto, pediu aos companheiros que, com a roupa que tinham e aves que tomassem,se fossem aonde a ventura os guiasse, pois a ele no tivera de lhe viver sua amiga, que queriaali ficar e morrer onde matara Ana de Harfet, s, com sua soidade, acompanhando seu corpomorto, pois ela o acompanhara vivendo; os companheiros movidos de piedade lhe disseramtodos que o no haviam de deixar e que ali haviam de morrer e ficar com ele. O Machim, quemuito lhe agradeceu aquele amor, e mais lhe agradecera sua crueldade, se s o deixaram, dedor e paixo da morte de sua amiga no durou mais que cinco dias.

    Os companheiros, que no com pouca saudade de sua companhia o enterraram junto dasua Ana de Harfet, puseram-lhe outra cruz cabeceira e, deixando o mesmo crucifixo, comoMachim o pusera, e estas duas sepulturas naquela terra erma por tristssimo espectculosaudoso e amoroso, meteram-se no batel em que vieram da nau (posto que outros querem queo fizessem do tronco da rvore, que grossa era e capaz de muitas pessoas) e, indo ter costade Berbria, foram l cativos dos mouros e levados a Marrocos, onde j estavam tambmcativos os outros companheiros da nau, to sem prazer e sem ventura.

    Estes breves, momentneos e curtos gostos tm as grandes e compridas esperanas domundo, cujo costume, condio e natureza sempre foi e ser descarregar com mui pouco ounada a quem promete muito.

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    Captulo Quinto 16

    CAPTULO QUINTO

    COMO JOO GONALVES ZARGO, ANDANDO POR CAPITO DA COSTA DOALGARVE NO TEMPO DAS GUERRAS ANTRE PORTUGAL E CASTELA, TOMOU UMNAVIO DE CASTELHANOS, QUE VINHAM RESGATADOS DE MARROCOS, E, ANTRE

    ELES, UM PILOTO QUE L OUVIRA AOS COMPANHEIROS DA NAU DE MACHIM COMOHAVIAM ACHADO A ILHA DA MADEIRA, E LEVANDO-0 ADIANTE DE EL-REI E DOINFANTE DOM HENRIOUE, ALEGRES ELES COM ESTA NOVA OS MANDARAM

    DESCOBRIR A MESMA ILHA, CUJA SOMBRA VIRAM E TEMERAM DO PORTO SANTO,ONDE CHEGARAM

    Ao tempo que a nau, que trouxe Machim ilha da Madeira, desgarrou da dita ilha e foi ter aBerbria, onde foram cativos com os outros que depois vieram da mesma companhia (comotenho dito), havia em Marrocos muitos cativos; antre os quais estava um castelhano per nomeJoo Damores, homem do mar e bom piloto, mui entendido na arte de navegar, o qual, como lviu estes ingreses que da ilha vieram desgarrados, quis saber deles que ventura os trouxera aBerbria e os chegara quele estado de cativeiro, havendo grande d deles (porque ningum opode ter to verdadeiro como aquele que do mesmo mal ferido), e (porque at os tristessentem algum alvio em contar sua tristeza) eles lhe contaram, a Joo Damores, os amores deMachim miudamente, e como a fortuna o aportara a uma ilha nova e o que passaram nela namorte do Machim e de sua amiga, e como, desesperados de poderem viver, cometeram o mare a ventura, que ali os aportou tanto sem ventura.

    O Joo Damores era homem esperto nas coisas do mar e sobretudo curioso, a qualcuriosidade das coisas no se acha seno nos que mais delas entendem, porque quem noentende nada, assim como no duvida nada, no procura saber o que no duvida e destamaneira fica ignorante, por no se saber maravilhar e duvidar das coisas que v, da qualadmirao e dvida nasce a inquirio delas, e da inquirio a experincia, e da experincia amemria, e das muitas memrias a cincia.

    E, como Joo Damores, sendo curioso, tinha amor cincia ou arte que aprendera,perguntou a estes companheiros de Machim de que porto de Inglaterra partiram, e que tempotrouxeram, e que derrota levaram, e em quantos dias vieram ter quela terra nova, e, quando anau desamarrou, que caminho trouxera, e em quantos dias vieram ter costa de Berbria; esabido tudo miudamente, segundo era hbil e de bom engenho, tomou tudo na memria e,pouco mais ou menos, entendeu onde esta terra podia estar, pelo que aconteceu aos ingresesque de tudo o instruram.

    Neste tempo faleceu em Castela o Mestre de Santiago, pessoa de grande estado, e deixouem seu testamento que por sua alma tirassem certo nmero de cativos de frica. E, antre eles,tiraram o piloto Joo Damores e, como no mesmo tempo havia guerra entre Portugal e Castela,andava por capito de uma armada Joo Gonalves Zargo guardando a costa do Algarve,porque faziam nela muito dano os biscainhos. E, andando assim na costa de Andaluzia, houvevista do navio em que vinha de frica Joo Damores com outros resgatados, o qual alcanou etomou.

    O piloto Joo Damores, como se viu em poder de cristos, foi-se logo ao capito econtou-lhe tudo o que tinha passado e sabido dos ingreses e da terra nova, que acharam, quepodia pertencer a el-Rei de Portugal. O capito ficou mui alegre com o que lhe ouviu e lanoulogo mo deste piloto, trazendo-o consigo e largando o navio dos cativos, que se fosseembora; e, fazendo volta para o Algarve, trouxe o piloto ao Infante Dom Henrique, que estavaneste tempo em Sagres, no cabo de So Vicente, com determinao de mandar descobrir acosta de frica do cabo Bojador por diante, que com a vinda do piloto foi mui alegre e, muitomais, pelas novas que lhe deu da terra nova, mandando logo a Joo Gonalves que fosse com

  • 8/8/2019 Saudades da Terra Volume 2

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    SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

    Captulo Q