Saúde coletiva

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ARTIGO A SAÚDE COMO FATO COLETIVO Fernando Lefèvre* •Professor Associado da Faculdade de Saúde Pública da USP - Av. Dr. Arnaldo, 715 - térreo - CEP 01246-904 São Paulo - Capital E-mail [email protected] RESUMO: Discute-se aqui uma das formas de manifestação da Saúde Coletiva o que é a da saúde como fato coletivo de natureza midiática. Apresenta-se a mídia como instância instituinte do fato coletivo e os desdobramentos desta instituição para o campo da saúde e da doença. Coloca-se que a saúde como uma fato verdadeiramente coletivo pressupõe uma redefinição do conteúdo da saúde em termos de Promoção de Saúde e a consideração dos atores principais do processo comunicativo em saúde, a Sociedade civil e o Estado, em uma nova perspectiva de redes complexas, em conformidade com as exigências da atualidade. PALAVRAS CHAVE: Mídia, saúde coletiva, doença

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ARTIGO A SADE COMO FATO COLETIVO Fernando Lefvre* Professor Associado da Faculdade de Sade Pblica da USP - Av. Dr. Arnaldo, 715 - trreo - CEP 01246-904 So Paulo -CapitalE-mail [email protected] RESUMO: Discute-se aquiuma das formas de manifestao da Sade Coletiva o que a da sade como fato coletivo de natureza miditica. Apresenta-se amdia comoinstnciainstituintedo fato coletivoe os desdobramentosdestainstituio paraocampodasadeedadoena.Coloca-sequeasadecomoumafato verdadeiramentecoletivopressupeuma redefiniodocontedodasadeem termos de Promoo de Sade e a considerao dos atores principais do processo comunicativoem sade,a Sociedade civil e o Estado, em uma novaperspectiva de redes complexas, em conformidade com as exignciasda atualidade. PALAVRAS CHAVE: Mdia, sade coletiva, doena INTRODUO Pode-se entender a sade de diversas maneirasmas quando se desejav-la como res coletiva, a porta de entrada mais ampla do que se costuma pensar,envolvendo oplanolegal,oeconmico,oadministrativo,obiolgico/epidemiolgico,ofactual/ informativo, o social, o histrico, o filosfico. Quando a porta de entrada mais especfica for o plano factual/informativo, deve-se examinar a naturezadaqueleconjunto de informaesou fatos sobre o campo da sadee da doenaquesocoletivamentedisponibilizados. Atravsdesteprisma,a Sade Coletiva pode ser vista como o conjunto de informaes ou fatos sobre sade e doena que so "publicizados"(RUBIN, 1995) pela mdia numa dada formao social, num dado momento histrico. Numa formulao sinttica poderamos dizer que a Sade Coletiva , tambm, a sade-que-aparece-na-mdia. Antes de detalhar o tema da sade que aparece na mdia necessrio contudo teceralgumas consideraes sobre a mdia como instituidora necessria do fato coletivo A MDIA E O FATO COLETIVO verdade,num certosentido, queos fatos existem foradamdiaporque, da janelada faculdadeonde estou escrevendoeste texto, poderia ver, casoacontecesse de fato, um assalto, um incndio, um atropelamento, etc. Mas estes, enquanto fatos privados (o incndio que eu vi), no so fatos miditicos pois no pertencem ao domnio da mdia, necessariamente coletiva. A mdia ento no apenas seleciona alguns fatos em detrimento de outros mas tambm cria ou institui um certo tipo de fatos, os "seus fatos", que so os fatos coletivos criados pela mdia (as notcias), que no podem existir sem a instncia miditica que os publiciza. Assinae-se que a operao de"publicizar" um fato o que a mdia faz - e, nas sociedades urbano industriais contemporneas, s ela -que transformaum fato annimo, desconhecido, virtual, em notcia, ou seja em algo conhecido, exposto luz do dia para ser conhecido e compartilhadopela coletividade exposta mdia. Um fato tornado pblico pela ao da mdia poderia ser chamado de fato pblico? Sim mas apenas no sentido mais restrito da palavra (como enunciado acima) onde pblico podeser vistocomosinnimodecoletivo. Assimsendoum fato tornadopblicopela mdia(salvonocasodosDiriosOficiaisoupublicaescongneres)nosignifica, necessariamente, que ele tenha se tornadooficial, governamental ou mesmo verdadeiro. Por estas razes adotaremos aqui o termofatos coletivos. Ento,a criaodosfatoscoletivospelainstnciamiditica inevitvel.Isto quer dizer que um olhar coletivo sobre os fatos pressupe, necessariamente, a mdia, ou seja a instituio de um locus supra individual e seu respectivo suporte (o papel do livro e, antes dele, a pedra onde foram gravadosos dez mandamentos e depois o jornal, a telinha, a telona, o out-door, etc.) para que a informaoseja coletivamente difundida. O fatocoletivocria, pois, a (necessidadeda)mdia e vice versa. No se trata, deste modo, de qualquertipo de deformao:a vidaemsociedade, mesmona forma maiselementardesociedade,exigeofatocoletivo,ouseja,aqueleconjuntode informaes de natureza coletiva destinadas a orientar os cidados na vida em sociedade. Se a existncia miditica do fato coletivo necessria, inevitvel, ento qual o problema? O problema que o lugar concreto, o espao onde forjado este fato coletivo transforma-se, necessariamente, num lugar de poder, o que implica, para o pensamento contemporneo, segundo SANTOS (1999) a exigncia da democracia. Ora, o que acontece entre ns, brasileiros, a este respeito? A nosso ver, ocorre um "aproveitamento" privado desta necessidade coletiva. Com efeito, j que o fato coletivo necessrio e imprescindvel para que o indivduo privado possa se orientar na sua vida cotidiana e nos seus projetos de curto e longo prazo e j que a instncia miditica, e s ela, tem e pode viabilizaro que o cidadoprivado, precisa, ela, ou maisprecisamente seus proprietrios e demais funcionrios associados disso se aproveitam para o exerccio, sobreo cidado,dopoderqueestelheconfere(porquenotemoutro jeito...),para vender-lhe mercadorias e representaes de seu interesse. A democratizaodo espao miditicose impe, assim, como imperiosa. Mas preciso entender o que significa, neste contexto,o termo "democratizao". Pararesponderprecisolevaremconta,antesdemaisnada,queum fato coletivo , ao mesmo tempo, uma entidade coletiva e um bem de consumo, ou seja, algo comum a sernecessariamenteapropriado(=lido)de modo privado.O fatocoletivo , paradoxalmente,igualparatodosediferenteparacadaumporquecoletivona encodificao e privado na decodificao. Assim sendo, a democratizao do fato coletivo deve facilitar uma conveniente (para o consumidor) apropriao privada, o que s pode ser feito atravs de um discurso omais possvelpolissmicoe aberto, onde sejam apresentadostodosos ngulos em que um problemapode ser visto alm de uma gama variadssima de problemas. O FATO COLETIVO NO CAMPO DA SADE/DOENA. Podemos agora discutir mais especificamente o fato coletivo e sua relao com a sade e a doena. Antes de mais nada preciso colocar que doena, hoje, temuma carga muito expressiva como "negcio"privado na medida a sua dimenso mdica e clnica acabou, ao longo da histria, prevalecendo na conscincia do cidado comum, largamente, sobre a sua dimenso epidemiolgica ou de sade coletiva (ROSEN, 1994). Doenas so (ou mais precisamente, acabaram se tornando), para o cidado comum que vive nas zonas centrais das sociedades urbano industriais e enquanto prtica social, sofrimentos privados ou coisas que acontecem, ou que acabam por desembocar,num corpo individual (no se concebendo, a no ser figurativamente, um corpo coletivo), e que so combatidas, na imensamaioriados casos, por intervenes operadasneste(s)corpo(s)individual(ais) como ingesto de medicamentos, cirurgias, exerccios, regimens e at mesmo vacinas Na mida brasileira atual, temos reflexos claros disso quando constatamos que a presena de matrias de sade, na maioria dos jornais, na tv, no rdio, nas revistas, se dsob rubricascujo ttulo gira sempre em torno da expresso "sua sade", querendo significarsadedo "seu corpo", isto , docorpoindividualdoleitor,obtidaatravs do consumo de produtos "redutores do sofrimento" (como analgsicos), ou "melhoradores" da performance fsica e mentas (vitaminas, anabolizantes, etc.) ou modeladores estticos (regimens, cirurgias plsticas, etc.) A conseqncia disso quea sade, fato coletivonoplano da emisso e da enunciao, no institui, entre ns, no plano da recepo, um receptor verdadeiramente coletivomas apenasuma somade consumidores-necessariamenteindividuais -de aspirina forte, de camisinha, de rins transplantados, da ltimanovidadefarmacolgica paraocontroledadiabetes,etc.Comefeito,entrensasmensagensmiditicas envolvendoasadee a doenacomofatoscoletivos,emregrageral, noinstituem responsabilizao solidria1ou sentimentos de comunho que, respeitando a diversidade, criem no receptor uma sensao de pertencimento a uma coletividade. Sobram, claro, aquelas situaes clssicas de Sade Coletiva o caso quando estamos em presena de uma doena essencialmente coletiva, como uma epidemia de cleraou de dengue, por exemplo. Ora, o que costuma acontecernestes casos? No mudammuitoas coisasporqueh uma suspensoapenas temporriado impriodo privado para que entre em ao o Estado porque se trata de intervir, em geral drstica, coercitivae rapidamente, j que a coletividade se sente ameaada e o Estado o nico ente capaz de fazer face a uma ameaa de doena na escala coletiva. Debeladaa epidemiaameaadora, volta-seaostatusquoantecoma sade voltando ao seu lugar "natural" de bem individual. UMA SITUAO COMPLEXA Comovivemosnumasociedadecapitalistadeconsumo,ondeprevaleceo interesse da dade produtor/consumidor estamos em face de uma situao efetivamente complexa quando o assunto mdia, sade e doena. Com efeito, verificamos, por um lado, que sade aparece como coletivaquandoe porque informao sobre sade e doenapublicizadapela mdia. Por outrolado, esta informaoque coletivaporque veiculada pela mdia, num contexto socio econmico como o nosso, torna-se privada na recepo, na decodificao, no apenas porque cada pessoa decodifica a mensagem a seumodo -o que natural, desejvele democrtico-mastambm -o queno 1Umaexceoa estaregrageralpodeser observadaem propagandaoficialdo MinistriodaSadesobre Dengue (1998/9)natelevisoemqueumvizinhofalasobrea necessidadedooutrovizinhotambmadotarmedidas de proteocontraadoena. natural,nemdesejvel,nemdemocrtico-porqueocont edodamensagemde naturezapri vada:osremdiosquecadaconsumidorindividualprecisatomar,os tratamentosqueprecisaseguir,etc. ASADECOMOFATO COLETIVO:LIMITESEPOSSIBILIDADES Como ficamosento, ouleninisticamentefalando, oquefazer? Boaventura de Sousa Santos em seu artigo" O norte, o sul e a utopia" (SANTOS, 1999)nosfala,dequatrograndeslinhaspossveisquandosedesejaenquadraro pensamentosociolgicocontemporneo:muitoesquemticamente,alinha"vitoriosa", quepropagao triunfo finaldocapitalismoeofimdahistria, alinhaqueconsiderada realidade atual basicamente catica, onde, comodiria BAUDRILLARD(1990), as coisas prol i feramsemsenti do,comonumametstasecancer gena,alinhadacrtica epistemolgicaaosmodelosmecanicistasedeterministasdeanlisedarealidadeea linha "reformista" que, a partir da identificaodos bloqueios societais, buscaestratgias imaginosasparaa sadadosimpasses Descar t ando- seasduaspr i mei r asposi esebuscando- sesa das transformadoras,queademaispossamservistascomorompendocomosparadigmas atuais,acreditamosqueasadecomofatoverdadeiramentecoletivodeveseruma mensagemquetenhacomocontedoumasaderedefinidaemtermosdePromoo de Sade (BUSS.1999) (ROBERTSON,1999), onde o modelo bio-mdico econsumista atualmentehegemnicopasseaconvivercomoutrosmodelosnoconsumistas,de basecoletiva ASADECOMOUMFATOCOLETIVO,ASCRISESE ASPERSPECTIVASPARAO FUTURO Masparaqueestanovamensagemtenhacondiesmnimasde serdifundida eassimilada precisoconsider-lano centrodealgumasdascrisesquecaracterizam acontemporaneidade: a crisedoEstado,a criseda Sade, a crise daSociedadeCivil e acrisedaprpriaMdia. A sade como um fato coletivo coloca em cena, necessariamente, o Estado e a SociedadeCivil porque a sade, no planocoletivo, o que se entende vulgarmentepor SadePblica,semprefoie talvezcontinuesendosempre,um" deverdoEstado" (ainda que a ser exercido de vahadas formas, nem sempre diretas) a ser "socialmente controlado"pela sociedade civil Um exemplo, dentre outros, no plano miditico,dessa dialtica entre o direito do cidado e o dever do estado seria - e se trata, no caso, de um exemplo real envolvendo a Rede Globo e a Secretaria de Estado da Sade de So Paulo - a televiso exercendo atravs do telejornal o papel da sociedadecivil, controlandoa presena ou a faltade medicamentos nos hospitais pblicos paulistas. Mas este exemplo tpico da viso tradicional tanto da sade, quanto da mdia, quanto do papel do Estado e da Sociedade Civil. Com efeito, est subjacente a a viso tradicionaldequesadeseobtmpeloconsumodemedicamentos,quedevemser distribudos gratuitamente pelo Estado ( o seu "dever") para aqueles usurios de servios pblicos de sade que no podem pagar (que, portanto, tem"direito" ao medicamento gratuito)eseistonoestacontecendoasociedadeciviltemquepor"abocano trombone" usando, entre outros recursos, da mdia. Como as coisas se colocam ento, no plano dos fatos miditicos, quando, como hojeestacontecendoaquiealhures,estemodelotradicionaldeEstadoedeao pblica entra em crise? Quando as ONGs e o Terceiro Setor comeam a despontar com forano cenriosocio-polticocomo formasprivilegiadasde expressodaSociedade Civil? Quando o modelo bio mdico de sade fortemente contestado pelos movimentos de Promoo de Sade, que retiram a sade da escala individual consumista recolocando-a no plano coletivo das Cidades Saudveis?Quando a mdia comea a ser fortemente abalada pela presena e crescimentode uma enorme e complexa rede de intercmbio eletrnico de informaes? certamenteumaaventuraresponderaestasquestesjquetodosestes movimentose processosso muitorecentes; assim,avanar qualqueridia de como poderiam se configurar no futuro as relaes entre o Estado, a Sociedade Civil, a Mdia e a Sade constitui, hoje, mero exerccio de futurologia. Mas no h como fugir do fato de que, ainda que sejam muito incertos o contedo eosefeitosdetodosestesprocessos,todasestascrisessoreaisecomcerteza afetaroomodocomoasadecomofatocoletivodenaturezamiditicadeverser repensada. Aindaqueistoconstituaum encaminhamentomuitopreliminar,no futurono muito distantea sade como fato coletivo de natureza miditicater de passar por uma redeintensamentecapilarizada(PITTA,1999)deinformaeseletronicamente codificadas, envolvendoos cidados de uma "aldeia (crescentemente) global". Por sua vez,o contedo da mensagem de sade que circular por esta rede ter que comportar a redefinio desta sade como qualidade de vida numa cidade e num mundo saudvel, comoumdireitodecadaumdoscidados,qualquerquesejaasuasituaosocio econmica, e como um dever de umEstado crescentemente supra-nacional. REFERNCIASBIBLIOGRFICAS BAUDRILLARD, J.A transparncia do mal. Ensaio sobre os fenmenos extremos. So Paulo,Papirus, 1990 BUSS, P., org.Promoo da sade e a a sade pblica. Contribuio parao debate entre escolas de sade pblica da Amrica Latina.Rio de Janeiro, 1998. PEIRCE,CS.Semitica e filosofia. S.P. Cultrix/Edusp, 1975. PITTA,A.M.R.Comunicao, Promoo da Sade e Democracia:umaanlise de processos de construo de inovaes no campo das Polticas de Comunicao do Sistema nico de Sade - SUS.RJ;UFRJ/Escola de Comunicao,1999. RUBIN, A.A.B.C.Mdia,poltica e democracia. In PITTAAMR.(org)Comunicao, visibilidades e silncios. So Paulo, Rio de Janeiro, Hucitec/Abrasco,1995. ROBERTSON, A.Health promotion and the common good: theoretical considerations. Critical Public Health, 9(2):117-133,1999. ROSEN,G.Uma histria da Sade Coletiva, So.Paulo.Editora.UNESP,Hucitec/ Abrasco 2a ed., 1994. SANTOS, B.S.Pela mo de Alice. O social e o poltico na ps-modernidade.5a Ed. So Paulo, Cortez Editora, 1999. HEALTH AS A COLLECTIVE FACT SUMMARY:Thispaperdiscussesoneofpublichealthformsofmanifestation: health as acolectivefact.Mediais presentedascreatingthis colective factand the consequencesofthatfor the public health field. Health as a truly colective fact pressuposearedefinitionof thehealth contentin terms osHealthPromotionand theconsiderationofthemainagentsoftheprocessofcommunicationin health, Civil Society and the State, in a new perspective of complex networks, in accordance withtherequirementesofthepresenttime. KEY WORDS: Media, public health, disease Recebido:23/7/99 Aprovado: 8/11/99