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Apoio A Revista Saúde em Debate é associada à Associação Brasileira de Editores Científicos PUBLICAÇÃO EDITADA PELO Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES) Diretoria Nacional / National Board of Directors Rua Herpéria, 16 – Manguinhos – Rio de Janeiro/RJ Endereço para correspondência: Avenida Brasil, 4036 – sala 802 – Manguinhos 21040-361 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil Tel.: (21) 3882-9140, 3882-9141 Fax.: (21) 2260-3782 E-mail: [email protected] / [email protected] DIREÇÃO NACIONAL (GESTÃO 2006-2009) Diretoria Executiva Presidente Sonia Fleury (RJ) 1 O Vice-Presidente Ligia Bahia (RJ) 2 O Vice-Presidente Ana Maria Costa (DF) 3 O Vice-Presidente Luiz Neves (RJ) 4 O Vice-Presidente Mario Scheffer (SP) 1 O Suplente Francisco Braga (RJ) 2 O Suplente Lenaura Lobato (RJ) CONSELHO FISCAL Áquilas Mendes (SP), José da Rocha Carvalheiro (RJ), Assis Mafort (RJ), Sonia Ferraz (DF), Maura Pacheco (RJ), Gilson Cantarino (RJ) & Cornelis Van Stralen (MG). CONSELHO CONSULTIVO Sarah Escorel (RJ), Odorico M. Andrade (CE), Nelson Rodrigues dos Santos (SP), Lucio Botelho (SC), Antonio Ivo de Carvalho (RJ), Roberto Medronho (RJ), José Francisco da Silva (MG), Luiz Galvão (WDC), André Médici (DF), Jandira Feghali (RJ), José Moroni (DF), Ary Carvalho de Miranda (RJ), Julio Muller (MT), Silvio Fernandes da Silva (PR) & Sebastião Loureiro (BA). EDITOR Paulo Amarante (RJ) CONSELHO EDITORIAL Jairnilson Paim (BA), Gastão Wagner Campos (SP), Ligia Giovanella (RJ), Edmundo Gallo (DF), José Gomes Temporão (RJ), Francisco Campos (MG), Paulo Buss (RJ), Eleonor Conill (SC), Emerson Merhy (SP), Naomar de Almeida Filho (BA) & José Carlos Braga (SP) SECRETARIA EXECUTIVA Marília Correia INDEXAÇÃO Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS) Os artigos sobre História da Saúde estão indexados pela Base HISA – Base Bibliográfica em História da Saúde Pública na América Latina e Caribe PUBLICATION EDITED EVERY FOUR MONTHS BY Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES) Diretoria Nacional / National Board of Directors Rua Herpéria, 16 – Manguinhos – Rio de Janeiro/RJ Endereço para correspondência: Avenida Brasil, 4036 – sala 802 – Manguinhos 21040-361 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil Tel.: (21) 3882-9140, 3882-9141 Fax.: (21) 2260-3782 E-mail: [email protected] / [email protected] NATIONAL BOARD OF DIRECTORS (YEARS 2006-2009) Executive Direction President Sonia Fleury (RJ) 1 st Vice-President Ligia Bahia (RJ) 2 rd Vice-President Ana Maria Costa (DF) 3 th Vice-President Luiz Neves (RJ) 4 th Vice-President Mario Scheffer (SP) 1 nd Substitute Francisco Braga (RJ) 2 nd Substitute Lenaura Lobato (RJ) FISCAL COUNCIL Áquilas Mendes (SP), José da Rocha Carvalheiro (RJ), Assis Mafort (RJ), Sonia Ferraz (DF), Maura Pacheco (RJ), Gilson Cantarino (RJ) & Cornelis Van Stralen (MG). ADVISORY COUNCIL Sarah Escorel (RJ), Odorico M. Andrade (CE), Nelson Rodrigues dos Santos (SP), Lucio Botelho (SC), Antonio Ivo de Carvalho (RJ), Roberto Medronho (RJ), José Francisco da Silva (MG), Luiz Galvão (WDC), André Médici (DF), Jandira Feghali (RJ), José Moroni (DF), Ary Carvalho de Miranda (RJ), Julio Muller (MT), Silvio Fernandes da Silva (PR) & Sebastião Loureiro (BA). PUBLISHER Paulo Amarante (RJ) PUBLISHING COUNCIL Jairnilson Paim (BA), Gastão Wagner Campos (SP), Ligia Giovanella (RJ), Edmundo Gallo (DF), José Gomes Temporão (RJ), Francisco Campos (MG), Paulo Buss (RJ), Eleonor Conill (SC), Emerson Merhy (SP), Naomar de Almeida Filho (BA) & José Carlos Braga (SP) EXECUTIVE SECRETARIES Marília Correia INDEXATION Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS)The articles about Health History are indexed according to the HISA Base – Base Bibliográfica em História da Saúde Pública na América Latina e Caribe (Bibliographic Base on History in Latin America and the Caribbean)

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ApoioA Revista Saúde em Debate éassociada à Associação Brasileirade Editores Científicos

PUBLICAÇÃO EDITADA PELOCentro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES)Diretoria Nacional / National Board of DirectorsRua Herpéria, 16 – Manguinhos – Rio de Janeiro/RJEndereço para correspondência:Avenida Brasil, 4036 – sala 802 – Manguinhos21040-361 – Rio de Janeiro – RJ – BrasilTel.: (21) 3882-9140, 3882-9141Fax.: (21) 2260-3782

E-mail: [email protected] / [email protected]

DIREÇÃO NACIONAL (GESTÃO 2006-2009)Diretoria Executiva

Presidente Sonia Fleury (RJ)1O Vice-Presidente Ligia Bahia (RJ)2O Vice-Presidente Ana Maria Costa (DF)3O Vice-Presidente Luiz Neves (RJ)4O Vice-Presidente Mario Scheffer (SP)1O Suplente Francisco Braga (RJ)2O Suplente Lenaura Lobato (RJ)

CONSELHO FISCALÁquilas Mendes (SP), José da Rocha Carvalheiro (RJ), Assis Mafort (RJ), Sonia Ferraz (DF),

Maura Pacheco (RJ), Gilson Cantarino (RJ) & Cornelis Van Stralen (MG).

CONSELHO CONSULTIVO

Sarah Escorel (RJ), Odorico M. Andrade (CE), Nelson Rodrigues dos Santos (SP), LucioBotelho (SC), Antonio Ivo de Carvalho (RJ), Roberto Medronho (RJ), José Francisco da Silva(MG), Luiz Galvão (WDC), André Médici (DF), Jandira Feghali (RJ), José Moroni (DF), AryCarvalho de Miranda (RJ), Julio Muller (MT), Silvio Fernandes da Silva (PR) & SebastiãoLoureiro (BA).

EDITORPaulo Amarante (RJ)

CONSELHO EDITORIALJairnilson Paim (BA), Gastão Wagner Campos (SP), Ligia Giovanella (RJ), Edmundo Gallo (DF),José Gomes Temporão (RJ), Francisco Campos (MG), Paulo Buss (RJ), Eleonor Conill (SC),Emerson Merhy (SP), Naomar de Almeida Filho (BA) & José Carlos Braga (SP)

SECRETARIA EXECUTIVAMarília Correia

INDEXAÇÃO

Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS)

Os artigos sobre História da Saúde estão indexados pela Base HISA – BaseBibliográfica em História da Saúde Pública na América Latina e Caribe

PUBLICATION EDITED EVERY FOUR MONTHS BYCentro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES)Diretoria Nacional / National Board of DirectorsRua Herpéria, 16 – Manguinhos – Rio de Janeiro/RJEndereço para correspondência:Avenida Brasil, 4036 – sala 802 – Manguinhos21040-361 – Rio de Janeiro – RJ – BrasilTel.: (21) 3882-9140, 3882-9141Fax.: (21) 2260-3782E-mail: [email protected] / [email protected]

NATIONAL BOARD OF DIRECTORS (YEARS 2006-2009)Executive DirectionPresident Sonia Fleury (RJ)1st Vice-President Ligia Bahia (RJ)2rd Vice-President Ana Maria Costa (DF)3th Vice-President Luiz Neves (RJ)

4th Vice-President Mario Scheffer (SP)

1nd Substitute Francisco Braga (RJ)2nd Substitute Lenaura Lobato (RJ)

FISCAL COUNCILÁquilas Mendes (SP), José da Rocha Carvalheiro (RJ), Assis Mafort (RJ), Sonia Ferraz (DF),Maura Pacheco (RJ), Gilson Cantarino (RJ) & Cornelis Van Stralen (MG).

ADVISORY COUNCIL

Sarah Escorel (RJ), Odorico M. Andrade (CE), Nelson Rodrigues dos Santos (SP), LucioBotelho (SC), Antonio Ivo de Carvalho (RJ), Roberto Medronho (RJ), José Francisco da Silva(MG), Luiz Galvão (WDC), André Médici (DF), Jandira Feghali (RJ), José Moroni (DF), AryCarvalho de Miranda (RJ), Julio Muller (MT), Silvio Fernandes da Silva (PR) & SebastiãoLoureiro (BA).

PUBLISHERPaulo Amarante (RJ)

PUBLISHING COUNCILJairnilson Paim (BA), Gastão Wagner Campos (SP), Ligia Giovanella (RJ), Edmundo Gallo (DF),José Gomes Temporão (RJ), Francisco Campos (MG), Paulo Buss (RJ), Eleonor Conill (SC),Emerson Merhy (SP), Naomar de Almeida Filho (BA) & José Carlos Braga (SP)

EXECUTIVE SECRETARIESMarília Correia

INDEXATION

Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS)The articles about Health

History are indexed according to the HISA Base – Base Bibliográfica em História da Saúde Pública naAmérica Latina e Caribe (Bibliographic Base on History in Latin America and the Caribbean)

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REVISÃO DE TEXTO

Sonia Regina P. Cardoso & Therezinha Bomfim – português,Benjamin Adam Kohn – inglês,Arlete Santos de Oliveira – normatização bibligráfica

CAPA, DIAGRAMAÇÃO E EDITORAÇÃO ELETRÔNICA

Felipe Braga, Paulo Vermelho, Priscila Costa & Sandra Pereira

FOTO

Virginia Damas

IMPRESSÃO E ACABAMENTO

Corbã Editora Artes Gráficas

TIRAGEM

2.000 exemplares

Esta revista foi impressa no Rio de Janeiro em julho de 2007.

Capa em papel couche 180 gr

Miolo em papel off set 75 gr

PROOFREADING

Sonia Regina P. Cardoso & Therezinha Bomfim – portuguese,Benjamin Adam Kohn – english,Arlete Santos de Oliveira – bibliographic standardization

COVER, LAYOUT AND DESK TOP PUBLISHING

Felipe Braga, Paulo Vermelho, Priscila Costa & Sandra Pereira

PHOTO

Virginia Damas

PRINT AND FINISH

Corbã Editora Artes Gráficas

NUMBER OF COPIES

2,000 copies

This publication was printed in Rio de Janeiro on July, 2007.

Cover in couche paper 180 gr

Core in off set paper 75 gr

Saúde em Debate, Revista do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES – v.1 (out./nov./dez. 1976)– São Paulo: Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES, 2005.

v. 29; n. 71; 27,5 cm

QuadrimestralISSN 0103-1104

1. Saúde Pública, Periódico. I. Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES

CDD 362.1

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Rio de Janeiro v.29 n.71 set./dez. 2005

ÓRGÃO OFICIAL DO CEBESCentro Brasileiro de Estudos de Saúde

ISSN 0103-1104

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SUMÁRIO / SUMMARY

EDITORIAL / EDITORIAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 226

ARTIGOS ORIGINAIS / ORIGINAL ARTICLES

A exclusão de coberturas assistenciais nos planos de saúde privadosThe exclusion of medical assistance coverage from HMOsMário Scheffer . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 230

Municípios brasileiros fronteiriços e Mercosul: características e iniciativas decooperação em saúdeBrazilian border towns and the Mercosur: characteristics and initiatives ofcooperation in healthLuisa Guimarães & Ligia Giovanella ... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 247

O impacto da política econômica do governo Lula na Seguridade Social e no SUSThe impact of the Lula government economic policy on Social Security and theUnified Health SystemÃquilas Nogueira Mendes & Rosa Maria Marques ........................... 257

A política de saúde no governo Lula e a dialética do menos piorHealth Policy in the Lula government and the least worse dialecticCarmen Fontes Teixeira & Jairnilson Silva Paim .............................. 267

O direito à participação no Governo LulaThe right to participation in the Lula GovernmentJosé Antonio Moroni . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 283

ARTIGOS DE OPINIÃO/ OPINION ARTICLES

Poteção Social em um Mundo GlobalizadoSocial Protection in a Globalized WorldSonia Fleury . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 304

Saúde, Desenvolvimento e GlobalizaçãoHealth, Development and GlobalizationEdmundo Gallo, Janice Dornelles de Castro, Joseane Carvalho Costa, VivianStudart & Sandra Willecke . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 314

Desenvolvimento e saúde: em busca de uma nova utopiaDevelopment and Health: in search of a new UtopiaCarlos Augusto Grabois Gadelha .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 326

Regulamentar a EC-29, avançar o modelo de gestão e realizara universalidade com integralidade, equidade e participaçãoTo regulate the EC nº 29, to improve the management model and realize theuniversality with integrality, equity and participationNelson Rodrigues dos Santos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 338

Apontamentos sobre o processo de descentralização na saúdeNotes on the decentralization process of health careLenaura de Vasconcelos Costa Lobato ........................................ 352

A situação atual e as perspectivas dos sistemas universais de saúdeThe current situation and prospects of universal health systemsHans-Ulrich Deppe . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 364

Da reforma do Estado à reforma da gestão hospitalar federal: algumasconsideraçõesFrom State Reform to the Reform of Federal Hospital Administration: SomeConsiderationsLenir Santos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 370

DOCUMENTOS/DOCUMENTS

O lugar estratégico da gestão na conquista do SUS pra valerThe strategic place of management in the attainment of a genuine UnifiedHealth System ............................................................................. 381

O SUS pra valer: universal, humanizado e de qualidadeAn Effective Unified Health System:universal, humanized and of high quality ........................................... 384

A Identidade do CEBESThe identity of CEBES ...................................................................... 396

CEBES entrevista José Gomes Temporão, ministro da SaúdeCEBES interviews José Gomes Temporão, the Health Minister ...................... 400

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EDITORIAL

REFUNDAÇÃO DO CEBES

Com este número da revista Saúde em Debate a diretoria nacional, eleita para o período 2006-2009, di-

vulga sua plataforma política (veja a seguir). O texto,juntamente com o documento “A identidade política doCEBES”, publicado no corpo da revista, constituem asorientações políticas desta diretoria, as quais deverãoser seguidas de outros esforços de reflexão sobre nos-sa estratégia.

Outros documentos publicados neste número são:“O SUS pra valer” e “O lugar estratégico da gestão naconquista do SUS pra valer”. O primeiro é produto deum esforço conjunto das entidades que compõem oFórum da Reforma Sanitária Brasileira e representanossa posição comum em relação aos desafios atuaisdo processo da reforma; o segundo demonstra a posi-ção que o CEBES levou para o debate sobre o modelode gestão hospitalar, na última reunião do ConselhoNacional de Saúde, em junho 2007.

Com a publicação destes documentos, pretendemosmanter nosso compromisso de ampliar o debate políti-co sobre nossa estratégia e análise de conjuntura.

Como o CEBES sempre aliou a análise política àdifusão do conhecimento científico, os artigos que com-põem este número representam algumas das contribui-ções mais importantes de especialistas, fruto de inves-tigação original e/ou de reflexão crítica, para a com-preensão das políticas sociais e de saúde.

A qualidade destas contribuições atesta os compro-missos firmados por esta diretoria em relação à Refun-dação do CEBES e à revitalização de seus instrumentostradicionais de comunicação, o mais importante delessendo a revista Saúde em Debate.

Plataforma da Refundação do CEBES

1. O CEBES é um espaço plural e não partidário, com-prometido com a construção da Democracia e Saúde,entendendo que a democracia vai além da instituciona-lidade e da representação, passando pela construçãode uma esfera pública plural e inclusiva, na qual oscidadãos se reconheçam como iguais e sujeitos de di-reitos. Isto implica, necessariamente, na transforma-ção do aparato institucional, forjado na tradição clien-

telista, patrimonial e processos que perpetuam o exer-cício elitista do poder, em um campo permanente deluta por espaços de participação e garantia dos direi-tos das populações marginalizadas. Portanto, o repen-sar sobre o processo de saúde-doença e suas repercus-sões sobre a organização das práticas, a renovaçãoinstitucional e a inovação gerencial para democratiza-ção da saúde integram um projeto que merece mobili-zação constante, e o CEBES será um ator autônomo,capaz de articular redes políticas que exerçam a críticacomo instrumento de reflexão e ação.

2. Mais do que atuar na trincheira do aparato estatal, oCEBES tem como missão a luta pela hegemonia, parti-cipando na construção e ampliação da consciência sa-nitária e na constituição de sujeitos políticos emanci-pados. A disputa por projetos de sociedade – da liberalà socialista – se dá com cada vez maior intensidade,incidindo no campo social por meio da difusão de va-lores individualistas, consumistas e submissos a umainexorabilidade que prescinde da história e da política.Ao lutar pela compreensão da saúde coletiva, comoum bem público e socialmente determinado, propug-nando sistemas de atenção baseados nos valores dasolidariedade e na garantia de direitos; nas práticasintegrais da promoção à reabilitação; na exigência daparticipação ativa dos cidadãos nas decisões sobre suasaúde e sobre a política de saúde, estamos permanen-temente lutando por uma sociedade mais justa. O CE-BES precisa ampliar sua capacidade de se tornar uminterlocutor dos meios de comunicação massivos, di-fundindo conhecimentos e valores que nos conduzam àbusca de respostas que permitam aglutinar as forçassociais que se orientam pela busca da paz e reduçãoda violência.

3. A trajetória da Reforma Sanitária é um enredo com-plexo entre a força de um forte movimento de transfor-mação social, ou seja, instituinte, e a bem-sucedidaestratégia de ocupação de espaços instituídos. Contra-ditoriamente, a cada vez que se avança nos espaçosinstituídos, o que representa nossa pujança e presençana correlação de forças, novas contradições se colo-cam, a principal delas sendo a redução do poder de

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transformação do movimento sanitário. Se o poder émais bem percebido pelo que ele é capaz de concretizarinstitucionalmente, ele só tem sentido e direção se man-tiver unido às bases sociais que radicalizam a deman-da democrática. O CEBES não pode perder esta caracte-rística de movimento social, capaz de empolgar pelovigor de sua proposta e, ao mesmo tempo, as caracte-rísticas de uma organização social, capaz de incidir narealidade com a clareza de suas propostas e sua capa-cidade de articulação política.

4. A institucionalização da Reforma Sanitária corres-pondeu a um enorme avanço democrático e ao estabe-lecimento de um novo marco civilizatório, no qual odireito à saúde se encontra legalmente entronizado. Noentanto, a não-realização deste direito no cotidiano dapopulação, em sua interação com uma realidade insti-tucional precária, é um permanente solapamento dacultura e dos valores da democracia, levando cada diamais a seu descrédito. Esta tarefa de fazer com que osdireitos enunciados se transformem em direitos em exer-cício pleno da cidadania continua pendente e requernossa ação política contundente e não conivente com aineficiência e ineficácia, com o clientelismo e a corrup-ção, com qualquer forma de discriminação. Nossa ta-refa no CEBES é demonstrar que um sistema públicouniversal, de qualidade e humanizado é viável, hoje.

5. O crescimento de um mercado de planos e segurosde saúde subsidiado, em parte por recursos públicos.Assim a regulação requer um esforço de nossa partepara pensar formas de intervenção pública que garan-tam simultaneamente a equidade da atenção à saúde,os direitos dos consumidores e a ética profissional. Aprodução de insumos e tecnologias, subordinada a umalógica de acumulação capitalista precisa ser revertidapara a produção de bens e serviços em função das ne-cessidades. O CEBES deve se articular com os movi-mentos nacionais e internacionais que se mobilizamem torno da produção de medicamentos e garantia deatenção à saúde para os países e populações do deno-minado ‘terceiro mundo’.

6. A institucionalização das políticas sociais no novopadrão constitucional baseado na descentralização eparticipação gerou uma arquitetura institucional ino-vadora, porém de eficácia limitada, pois a participa-ção social ficou determinada pelo desenho institucio-nal do aparato estatal. A superação desta fragmenta-ção nos permitirá levar à prática a integralidade daspolíticas cuja centralidade deverá ser sempre o cida-dão usuário. Somente se articulando com os demaisatores políticos da sociedade civil organizada podere-mos transcender a fragmentação que nos retira poten-cialidade. O CEBES poderá jogar um papel crucial naarticulação política da Seguridade Social, viabilizandoo fortalecimento dos atores sociais no âmbito da Segu-ridade com a efetivação de Conselhos, Conferências eações intersetoriais de forma a dar realidade ao Orça-mento da Seguridade Social.

7. A sociedade civil organizada tem se articulado emredes que buscam pensar formas mais eficazes de atu-ação política, permitindo superar os limites impostospela setorialização, fragmentação e tentativas de coop-tação. O CEBES necessita assumir um papel neste mo-vimento social, articulando-se com a sociedade civilorganizada para pensar os limites da democracia bra-sileira. Somente com uma organização forte da socie-dade civil podemos fazer a democracia avançar no sen-tido de redução do uso das políticas públicas comomoeda de troca para apoio dos governantes, exigindo oaumento da participação social nas áreas econômicasque decidem o uso dos recursos públicos, o aumentoda transparência nas contas públicas e nos processosdecisórios, o fortalecimento das carreiras públicas, aregulamentação dos mecanismos legislativos de inici-ativa popular, o caráter impositivo do orçamento apro-vado pelo Congresso com a eliminação das emendasindividuais, a reforma eleitoral.

A DIRETORIA NACIONAL

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228 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 30, n. 71, p. 225-228, set./dez. 2005

Through this edition of the magazine Saúde em De-bate the national directorate, elected for the 2006-

2009 term, discloses its political platform (see below).The text, together with the document “The political iden-tity of CEBES", published in the body of the magazine,constitute the political orientations of this directorate,which shall be followed up by other efforts to reflect onour strategy.

The other documents printed in this edition are:“A genuine Unified Health System” and “The strategicposition of management in achieving a genuine UnifiedHealth System”. The former is the result of a joint effortby the organizations that form the Brazilian Health Re-form Forum and represents our common position inrelation to the current challenges faced by the reformprocess; the latter demonstrates the stance adopted byCEBES in the hospital management model debate at thelast National Health Council meeting held in June 2007.

With the publication of these documents, we in-tend to maintain our commitment to extending the poli-tical debate about our strategy and analysis regardingthe prevailing outlook.

As CEBES has always united political analysiswith the diffusion of scientific knowledge, the articlesthat compose this edition represent some of the mostimportant contributions made by specialists; the resultof original investigation and/or critical reflection forour understanding of social health policies.The quality of these contributions serves as testimonyto the commitments made by this directorate in relationto the Refoundation of CEBES and the revitalization ofits traditional instruments of communication, the mostimportant of which is the magazine Saúde em Debate.

Platform for the Refoundation of CEBES

1. CEBES is a plural and non-partisan space, commit-ted to building Democracy and Health, with the unders-tanding that democracy goes beyond institutionalismand representation, covering the construction of a di-verse and inclusive public sphere, in which citizens re-cognize one another as equals and subjects with rights.This necessarily implies the transformation of instituti-onal apparatus, currently cast in the tradition of clien-telism, patrimonial values and processes that perpetu-

EDITORIAL

ate the elitist hold on power, set in a context of perma-nent struggle for spaces for participation and the assu-rance of rights of marginalized populations. Therefore,the reappraisal of the health-disease process and itsrepercussions on the practicing organizations, and theinstitutional renovation and managerial innovation inorder to democratize health form a project that deser-ves constant activation, and CEBES shall represent anautonomous author, capable of articulating politicalnetworks that use criticism as an instrument of reflecti-on and action.

2. More than working in the trenches of the state appa-ratus, CEBES has the mission of fighting for hegemony,participating in the construction and amplification ofhealth awareness and in the constitution of emancipa-ted political subjects. The dispute for societal projects -from the liberal to the socialist - becomes ever moreintense, incurring into the social field by means of theinexorable diffusion of individualist, consumerist andsubmissive values that dispenses with history and po-litics. By fighting for the understanding of collectivehealth as a publicly and socially determined asset, de-fending the systems of health care based on the valuesof solidarity and on the guarantee of rights; by the inte-gral practices to promote rehabilitation; by demandingactive participation by citizens in the decision-makingabout their health and the health policies; by such acti-ons we are constantly fighting for a fairer society. CE-BES needs to extend its capacity to become an interlo-cutor of the mass media, spreading knowledge and va-lues that lead us to the search for answers which mayallow us to unite the social forces guided by the questfor peace and diminishing violence.

3. The course of the Brazilian Health Reform is a com-plex plot involving the force of a strong campaign forsocial transformation, that is, the institutor, and thesuccessful strategy of occupying the instituted spaces.Perversely, each time progress is made in the institutedspaces, representing our strength and presence in cor-relation to the forces, new contradictions arise, the mainone being reduction to the transformative power of thehealth reform movement. If the power is best construedby that which it is capable of institutionally establishing,

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then it only has sense and direction if it remains unitedat the social bases that radicalize the democratic de-mand. CEBES cannot lose this characteristic of a soci-al movement, capable of enthusing by the vigor of itsproposal and, at the same time, the characteristics of asocial organization, capable of affecting the state ofaffairs with the clarity of its proposals and its capacityof political coordination.

4. The institutionalization of the Health Reform has cor-responded to a huge democratic advance and the esta-blishment of a new milestone in the development of ourcivilization, in which the right to health care is nowassured in law. However, the failure to uphold thisright in the everyday lives of people who find themsel-ves in contact with a precarious institutional realityconstantly undermines the culture and values of demo-cracy, leading to it being less and less credible witheach passing day. The task of turning the rights on pa-per into rights fully practiced by citizens continues tobe a pending matter and requires our categorical politi-cal action which will not accept ineffectiveness and ine-fficiency, clientelism and corruption or any form of dis-crimination. Our task at CEBES is to demonstrate thata universal public system, of high quality and a huma-nized nature is viable today.

5. The growth in a market of health insurance schemesand health maintenance organizations that are partlysubsidized by public resources. Regulation thus re-quires an effort on our part to think of forms of publicintervention that simultaneously ensure equality ofhealth care, consumer rights and professional ethics.The production of consumables and technologies su-bordinate to a logic of capitalist accumulation needs tobe reverted to the production of goods and services ba-sed on needs. CEBES should cooperate with the natio-nal and international movements that act in relation tothe production of medications and guaranteeing healthcare in countries and populations of the so-called "thirdworld".

6. The institutionalization of social policies in the newconstitutional standard based on decentralization andparticipation has generated an innovative institutional

architecture, one that is, nevertheless, of limited effec-tiveness, as the social participation was determined bythe institutional design of the state apparatus. Overco-ming this fragmentation will allow us to put into prac-tice all the policies which should always be aimed atthe citizen end-user. Only by interacting with the otherpolitical actors of the organized civil society will we beable to transcend such fragmentation that deprives usof such capability. CEBES will be able to play a crucialrole in the political organization of Social Security, ena-bling the strengthening of social actors within the soci-al security scope by means of creating Councils, Confe-rences and private-public joint sector actions in such away as to give substance to the Social Security Budget.

7. The organized civil society has organized itself innetworks that seeks to think of more effective forms ofpolitical action, enabling it to exceed the limits impo-sed by the division into private and public sectors, frag-mentation and attempts at co-optation. CEBES needs toassume a role in this social movement, cooperating withthe organized civil society to conceive the limits of Bra-zilian democracy. Only with the strong organization ofthe civil society can we take democracy forwards inso-much as reducing the use of public policies as a cur-rency to trade for the support of governors, demandingincreased social participation in the economic areas thatdecide on the use of public funds and increased trans-parency of public accounts and decision-making pro-cesses, the strengthening of public careers, the regula-tion of legislative mechanisms of popular initiatives,the indispensable character of Congress-approved bud-get with the elimination of individual amendments, andelectoral reform.

THE NATIONAL DIRECTORATE

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A exclusão de coberturas assistenciais nos planos de saúde privados

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 231-247, set./dez. 2005 231

ARTIGOS ORIGINAIS / ORIGINAL ARTICLES

A exclusão de coberturas assistenciais nos planos de saúdeprivados

The exclusion of medical assistance coverage from HMOs

Mário Scheffer1

Recebido: Jan./2007

Aprovado: Maio/2007

1Comunicador social, sanitarista, Mestre e

Doutorando do Departamento de Medicina

Preventiva da Faculdade de Medicina da

USP; membro da Diretoria do CEBES.

Email: [email protected]

RESUMO

O artigo trata das ações judiciais relacionadas à cobertura assistencial de

planos de saúde julgadas em segunda instância pelo Tribunal de Justiça do

Estado de São Paulo. São descritas e analisadas as demandas levadas ao

Poder Judiciário por usuários de planos de saúde que reclamam negação de

assistência ou restrição de atendimento. Também são avaliados o

comportamento e as argumentações da Justiça nas decisões, assim como as

possíveis implicações, para o sistema de saúde brasileiro, da exclusão de

coberturas praticadas pelos planos de saúde.

PALAVRAS-CHAVE: Prestação de Cuidados de Saúde; Poder Judiciário; Cobertura

de Serviços Privados de Saúde

ABSTRACT

This paper deals with lawsuits filed in relation to medical assistance

coverage of HMOs judged by the São Paulo State Court of Appeal. The article

describes and analyzes legal claims taken to court by users of such HMOs

complaining of denial or restriction of medical assistance. Also assessed are

the attitudes and arguments behind court decisions, as well as the

implications that such exclusions and limitations of HMOs may have for the

Brazilian health care system.

KEYWORDS: Health Care Provision; The Judiciary; Private Health Care Service

Coverage

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SCHEFFER, MÁRIO

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INTRODUÇÃO

A Constituição Federal (BRASIL,

1988) definiu a saúde como direito

de todos e dever do Estado, estabele-

ceu os princípios de universalidade

e eqüidade, reconheceu a livre atua-

ção da iniciativa privada e atribuiu

relevância pública ao setor.

As políticas e ações de saúde de-

vem, assim, se submeter à regula-

mentação, fiscalização e controle do

poder público, sejam executadas pelo

Estado – por meio de serviços pró-

prios, conveniados ou contratados –

ou pela iniciativa privada.

No entanto, somente dez anos de-

pois da Constituição, com a aprova-

ção da Lei 9.656(BRASIL, 1988), os

planos e seguros de saúde privados

passaram a ser regulados pelo Esta-

do.

Mas, afinal, o serviço particular

de uma empresa de plano de saúde,

que opera uma atividade econômica

relacionada à saúde, possuiria os

mesmos deveres do Estado? Seus

contratos deveriam estar submetidos

às normas constitucionais e infra-

constitucionais diretamente ligadas

à saúde?

Tem sido cada vez mais refutada

a idéia de que a iniciativa privada –

no caso, as operadoras de planos e

seguros de saúde – possa ficar imu-

ne à normatividade mais rigorosa do

poder público. O direito à atuação

MAS, AFINAL, O SERVIÇO

PARTICULAR DE UMA EMPRESA DE PLANO DE

SAÚDE, QUE OPERA UMA ATIVIDADE

ECONÔMICA RELACIONADA À SAÚDE, POSSUIRIA

OS MESMOS DEVERES DO ESTADO?

1Regulamentação dos Planos e Seguros Saúde (Notas Preliminares) – Grupo de Trabalho da Comissão de Saúde Suplementar do ConselhoNacional de Saúde, 21/08/2001.

privada e ao lucro devem ser respei-

tados, desde que prevaleçam o inte-

resse da coletividade e a busca do

bem comum. O fornecimento de ser-

viços de saúde adequados deve, por-

tanto, se sobrepor aos interesses par-

ticulares e econômicos.

Ao regulamentar a ordem social,

estabelecer os direitos dos cidadãos

e definir em quais situações o Esta-

do deve intervir para garantir justiça

e equilíbrio, a Constituição reservou

especial atenção à saúde, tratada no

gras impositivas. Todas as normas

constitucionais referentes à Justiça

Social – inclusive as programáticas

– geram imediatamente direitos sub-

jetivos para os cidadãos. Os concei-

tos vagos ou imprecisos dessas nor-

mas não têm impedido o reconheci-

mento do Judiciário (MELLO, 1981).

Para Wagner (2005), quando a

atenção à saúde é pautada pela com-

petitividade e pelas leis do mercado,

tende a haver degradação da quali-

dade, da eficiência e da responsabili-

dade. Por isso, completa, é necessá-

rio manter, por meio da regulação, o

caráter público dessa atividade.

Algumas justificativas para a uni-

formização do direito à saúde entre

o Sistema Único de Saúde (SUS) e os

planos privados extrapolam o cam-

po da legislação, conforme pode-se

observar em documento produzido

pelo Conselho Nacional de Saúde

(CNS) (2001)1 :

(...) na prática, as interferências entre

os recursos financeiros e assistenciais en-

tre o público e privado na área da saúde,

em nosso país, são muito mais complexas

e extensas e requerem, respeitando-se o

direito da atuação das empresas privadas,

definições claras sobre a subordinação dos

interesses privados aos públicos. (...) as

clientelas são segmentadas, mas compar-

tilham a mesma base física de recursos no

que se refere à capacidade instalada e aos

subsídios fiscais que viabilizam as cober-

turas (BRASIL, 2001, p. 4).

texto legal na condição de direito

público fundamental e inalienável.

O texto constitucional não se li-

mita apenas a traçar recomendações

que devem ser cumpridas quando da

elaboração de legislações específicas.

A Constituição não é um simples ide-

ário, não é apenas a expressão de

anseios, aspirações e propósitos, mas

a transformação de tudo isso em re-

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Cohn (2001) vai além das dimen-

sões legais e jurídicas ao apontar a

dificuldade de vislumbrar uma polí-

tica que desvincule o direito de aces-

so dos indivíduos à saúde da lógica

do mercado. A vinculação, diz a au-

tora, está relacionada à disponibili-

dade de recursos para essa parcela

da população, clientela de planos de

saúde, mas também está ligada à

lógica implementada pelo órgão re-

gulador, a Agência Nacional de Saú-

de Suplementar (ANS).

(...) o que se verifica neste setor é uma

crescente ‘tecnificação’ da política, isto é, a

utilização de instrumentos técnicos como

fator determinante na definição das políti-

cas (obviamente aí redominando as razões

econômicas) em substituição da política pro-

priamente dita. No entanto, enfrentar a

questão da saúde como direito do cidadão e

do consumidor exigiria exatamente o cami-

nho inverso: trazer a sociedade para dentro

do Estado, ao invés de distanciá-la por meio

da mistificação da técnica (COHN, 2001, p

41).

A atuação da iniciativa privada,

subordinada a preceitos éticos, de boa

fé, de responsabilidade e justiça so-

cial, foi tratada por Nunes (1999),

para quem a leitura do texto consti-

tucional define que o mercado de

consumo aberto à exploração não

pertence ao explorador, mas sim à

sociedade, e em função dela, de seu

benefício, é que se permite a explo-

ração. Como decorrência disso, o

reito de livre exploração da ativida-

de econômica por meio da prestação

de um serviço essencial, que é a saú-

de.

AS EXCLUSÕES DECOBERTURAS ASSISTENCIAIS

A exclusão ou limitação de co-

berturas assistenciais sempre foi um

problema recorrente com repercussão

direta na preservação da saúde e na

vida da população usuária dos pla-

nos de saúde privados no Brasil.

Esta prática, que também é res-

ponsável por interferências na orga-

nização de todo o sistema de saúde

brasileiro, chama a atenção para a

necessidade de melhor entendimento

acerca da atuação do setor privado,

sua relação com as políticas de saú-

de e os entraves que representa para

a plena efetivação do direito à saúde

no país.

Antes mesmo do processo de re-

gulamentação da saúde suplementar

no Brasil, a restrição de coberturas

era prática inerente ao negócio dos

planos e seguros saúde, que sempre

considerou a seleção de riscos e as

limitações de atendimento como cri-

térios garantidores da preservação do

lucro e da sustentabilidade econômi-

ca das operadoras.

Neste sentido a legislação especí-

fica representou, em parte, um avan-

ço para a parcela da sociedade aten-

dida pelos planos de assistência mé-

explorador tem responsabilidades a

saldar no ato exploratório. Ou seja,

tal ato não pode ser espoliativo. Se o

lucro é uma decorrência lógica e

natural da exploração permitida, ele

não pode ser ilimitado; encontrará

resistência e terá que ser barrado toda

vez que puder causar dano à socie-

dade.

A defesa do consumidor, confor-

me estabelece a Constituição, é um

princípio que deixa de conferir à ati-

vidade econômica a liberdade irres-

trita. É o que defende, entre outros,

Marques (2004):

(...) Ao garantir aos consumidores a sua

defesa pelo Estado a Constituição criou uma

antinomia necessária em relação a muitas

de suas próprias normas, flexibilizando- as,

impondo em última análise uma interpreta-

ção relativa dos princípios em conflito, que

não mais podem ser interpretados de forma

absoluta ou estaríamos ignorando o texto

constitucional (MARQUES, 2004, p.577).

Ou seja, ao estipular como prin-

cípios tanto a livre concorrência

quanto a defesa do consumidor, o

legislador garante que os cidadãos

não podem ser explorados, pois a eles

são outorgados direitos.

A seguir, será apresentado o pro-

blema das exclusões de coberturas

assistenciais pelos planos de saúde,

que revela, dentre outros aspectos, a

dificuldade de compatibilização en-

tre os direitos à saúde e os do consu-

midor, de um lado e, de outro, o di-

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SCHEFFER, MÁRIO

234 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 231-247, set./dez. 2005

dica suplementar, pois tratava-se de

um segmento que, há mais de 30

anos, atuava seguindo as “leis” do

livre mercado, sem normas regula-

mentadoras, controle ou fiscalização

por parte do Estado.

A Lei 9.656/98(BRASIL, 1998)

trouxe, entre as inovações conside-

radas ao mesmo tempo positivas e

insuficientes, a definição de padrões

mínimos de cobertura e o estabeleci-

mento de critérios para a entrada,

funcionamento e saída de empresas

no setor. Também transferiu para o

Poder Executivo a responsabilidade

pela regulação e fiscalização dessas

operadoras privadas, tanto os aspec-

tos assistenciais como aqueles liga-

dos à atividade econômica.

Ao oferecer no mercado um pla-

no de saúde, individual ou coletivo,

as operadoras hoje tendem a obser-

var normas estabelecidas especifica-

mente para esta atividade, sendo

muitas delas ainda restritivas quan-

to à cobertura assistencial.

Vale ressaltar que, uma década

antes do primeiro marco regulatório

da saúde suplementar, a sociedade

já havia decidido, por meio das con-

quistas constitucionais, qual o tipo

de sistema e de assistência à saúde

queria para o país. Não havia espa-

ço – na concepção cunhada pelo

Movimento da Reforma Sanitária,

abordada na 8ª Conferência Nacional

de Saúde e respaldada pelo Congres-

so Nacional após ampla mobilização

social – para a diminuição da saúde

e do acesso à assistência à condição

de mercadoria.

Nas análises sobre o setor de saú-

de suplementar no Brasil, a amplitu-

de das coberturas, assim como os

gastos com a remuneração dos pres-

tadores de serviços e o valor das

mensalidades, são apontados como

elementos determinantes para o fun-

cionamento e o comportamento das

empresas de planos de saúde presen-

tes no mercado.

quada, uma vez que ele envolve in-

teresses e expectativas diferentes.

Os temas ligados à regulação dos

planos de saúde, entre eles a cober-

tura assistencial, antes restritos aos

atores diretamente envolvidos – em-

presas, prestadores e consumidores

– passaram a contar com um órgão

regulador e a chamar cada vez mais

a atenção dos sanitaristas, do meio

acadêmico e das instâncias de ges-

tão e controle social do SUS, tendo

em vista as implicações com as polí-

ticas públicas de saúde.

Vários representantes destes se-

tores, até então ausentes ou omissos

no processo regulatório da saúde

suplementar, passaram a discutir

regras e políticas que sejam capazes

de tratar o sistema de saúde de uma

forma mais ampla; que busquem o

equilíbrio entre a garantia do direito

à saúde e os aspectos econômico-fi-

nanceiros envolvidos; que mante-

nham o norteamento pelos marcos

doutrinários e de relevância pública

do SUS; e que promovam a convi-

vência democrática entre os legítimos

interesses envolvidos, viabilizando-

os minimamente e de forma negoci-

ada (SCHEFFER; BAHIA, 2005).

O Conselho Nacional de Saúde

(BRASIL, 2001), por meio da sua Co-

missão Permanente de Saúde Suple-

mentar, afirma que uma política para

este segmento dos planos de saúde

deve orientar-se pela defesa do direi-

to à saúde, e não apenas se ocupar

em ditar regras para o mercado. O

Situações de exclusões de cober-

tura assistencial, constantemente

denunciadas ou reivindicadas por

usuários e consumidores, expõem,

na prática, o desequilíbrio e o confli-

to entre operadoras, prestadores de

serviços e clientes.

Este fato evidencia que nem o

suposto virtuosismo da livre inicia-

tiva, nem as normas reguladoras

implementadas têm sido capazes de

solucionar o problema de forma ade-

...uma década antes do primeiromarco regulatório da saúde suple-

mentar, a sociedade já haviadecidido(...) qual o tipo de sistema

e de assistência à saúdequeria para o país.

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A exclusão de coberturas assistenciais nos planos de saúde privados

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 231-247, set./dez. 2005 235

CNS rechaça a idéia, bastante disse-

minada, que aponta a existência de

dois sistemas não relacionados e dis-

tintos: o SUS, considerado o sistema

dos pobres, e os planos e seguros de

saúde, para os trabalhadores formais

e a classe média.

Nesta perspectiva, defendida pelo

CNS, que é a instância maior de con-

trole social das políticas de saúde,

os problemas relacionados à saúde

suplementar – a exemplo das cober-

turas assistenciais – devem ser abor-

dados não apenas como um assunto

que diz respeito aos mais de 35 mi-

lhões de brasileiros ligados aos pla-

nos de saúde privados, mas também

considerando as repercussões da con-

figuração e das práticas deste setor

nas diretrizes da política nacional de

saúde.

Os limites e garantias contratu-

ais de coberturas estabelecidas pe-

las empresas deste segmento confi-

guram um dos aspectos mais con-

troversos da relação público-priva-

do no sistema de saúde brasileiro.

Apesar de ainda não quantificados –

tendo em vista os poucos estudos dis-

poníveis –, sabe-se que não são pou-

cos os recursos despendidos pelo SUS

para prestar assistência a todo tipo

de cobertura negada pelos planos de

saúde, a exemplo das demandas re-

lacionadas à urgência e à emergên-

cia, procedimentos de alto custo e de

alta complexidade. Os cidadãos, prin-

cipalmente os idosos e os portadores

de patologias crônicas e deficiênci-

as, que possuem planos de saúde

individuais, familiares ou coletivos,

precisam recorrer, com certa freqüên-

cia, à rede pública de saúde diante

de situações de exclusões de cober-

tura e de restrições de atendimento.

Tais limitações são impostas por

cláusulas contratuais antigas, mas

também são autorizadas pela própria

legislação vigente ou por normas

editadas pela ANS. Não raro, são li-

mitações resultantes de cláusulas

clusões impostas pelos planos anti-

gos ‘empurram’ para o SUS clientes

de planos de saúde sem condições

de arcar com os custos de serviços

particulares.

As análises disponíveis sobre a

regulamentação, ao se referirem à

restrição das coberturas privilegiam

a sua relação com o equilíbrio eco-

nômico-financeiro das operadoras.

Faz-se necessário avaliar também a

intensidade das regras sobre cober-

turas e a efetividade do seu cumpri-

mento, o que poderá contribuir para

uma melhor compreensão da com-

plexidade do sistema de saúde bra-

sileiro.

Devem ser levados em conta os

princípios constitucionais da digni-

dade humana, do direito à vida e do

direito à saúde; os pressupostos re-

lativos ao sistema de proteção e de-

fesa do consumidor; as disposições

do Código Civil; e também os mar-

cos legais específicos: a Lei 9.656/

98, combinada às Medidas Provisó-

rias que a alteraram e a Lei 9.961/

00, promulgada em 2000 com o ob-

jetivo de criar e normatizar o funcio-

namento da ANS.

Dentre os supostos méritos da Lei

9.656/98, propagados durante o seu

processo de tramitação no Congres-

so Nacional e após a sua promulga-

ção, pelo Poder Executivo, figuravam

o impedimento das restrições de aten-

dimentos e a exigência da cobertura

integral de todas as patologias con-

tidas na Classificação Internacional

contratuais leoninas e até de má-fé

por parte das empresas.

Se comparadas às inúmeras res-

trições impostas nos contratos de pla-

nos de saúde assinados antes da le-

gislação de 1998, as regras atuais

promoveram a ampliação das cober-

turas para os chamados planos no-

vos, ou seja, os contratos assinados

a partir de janeiro de 1999. Ainda as-

sim, uma série de limitações conti-

das na legislação em vigor e as ex-

... SABE-SE QUE NÃO SÃO POUCOS OS

RECURSOS DESPENDIDOS PELO SUSPARA PRESTAR ASSISTÊNCIA A TODO

TIPO DE COBERTURA NEGADA

PELOS PLANOS DE SAÚDE ...

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SCHEFFER, MÁRIO

236 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 231-247, set./dez. 2005

de Doenças (CID) da Organização

Mundial da Saúde (OMS), incluindo

todos os meios diagnósticos e tera-

pêuticos disponíveis. Decorridos vá-

rios anos da vigência da Lei dos Pla-

nos de Saúde, há muitos obstáculos

impedindo a real efetivação da co-

bertura prevista ou pretendida nos

marcos legais.

Até a existência da nova legisla-

ção, a extensão da cobertura assis-

tencial era, na prática, determinada

pelos contratos – individuais ou co-

letivos – assinados entre os usuári-

os e as operadoras de planos de saú-

de. Com o novo marco legal, os con-

tratos passaram a ser padronizados

e orientados pelas diretrizes da Lei

9.656/98, bem como por diversas

resoluções editadas pelo Conselho

Nacional de Saúde Suplementar (Con-

su) e, a partir de 2000, pelo órgão

regulador: a ANS.

Assim, a assistência e a amplitu-

de da cobertura oferecida pelos pla-

nos de saúde estão condicionadas a

vários fatores: época da contratação

(há contratos novos, antigos e adap-

tados); cobertura definida pela lei

para cada tipo de plano contratado

após janeiro de 1999 (há segmenta-

ção de coberturas); forma de contra-

tação (plano individual/familiar ou

plano coletivo) e normatizações es-

pecíficas do Consu e da ANS.

Na prática, apesar da regulamen-

tação, a exclusão de atendimentos

ainda figura como um dos principais

motivos de queixas de usuários de

planos de saúde. Além dos proble-

mas relacionados à cobertura assis-

tencial, a regulação pretendida para

o mercado ainda não solucionou di-

versas outras situações.

São exemplos a rescisão unilate-

ral de contrato, o descredenciamento

de prestadores de serviços, as limi-

tações de período de internação, os

longos períodos de carência e as

mensalidades abusivas em função de

mudanças de faixa etária. Nem mes-

de, o usuário tem poucas possibili-

dades de caminhos a seguir. A op-

ção imediata é pagar pelo aten-

dimento particular. Como pou-

cos têm condição de arcar com

esses custos, restaria procurar

o atendimento nas unidades do

Sistema Único de Saúde ou, até

mesmo, ficar sem a cobertura

necessária.

Outros podem tentar buscar

saídas mediante queixas e pro-

cessos administrativos junto à

operadora, junto aos departa-

mentos de recursos humanos

das empresas (no caso dos pla-

nos coletivos e autogestões),

mediante denúncias aos órgãos

de defesa do consumidor ou re-

clamações à agência regulado-

ra (via Disque ANS, principal-

mente). Diante da ineficácia

destas alternativas, só resta ao

usuário de plano de saúde, que

tiver condições de constituir

advogado, recorrer ao Poder

Judiciário para a exigência de

direitos supostamente desres-

peitados.

A urgência da necessidade de

saúde, a consciência dos direitos

de cidadania, a facilidade de aces-

so e a credibilidade das instânci-

as que recebem queixas e recla-

mações, são alguns dos fatores

que determinam a busca de ajuda

na tentativa de reverter a situa-

ção de negação de cobertura.

mo o ressarcimento ao SUS, a ser

realizado toda vez que um usuário

de plano de saúde é atendido em

unidade pública de saúde, foi total-

mente equacionado pela regulamen-

tação, que também pouco trata da

relação entre a saúde suplementar e

o Sistema Único de Saúde.

Diante da negativa de atendimen-

to ou da exclusão contratual de co-

bertura pelo plano de saúde, contra-

posta à iminente necessidade de saú-

NA PRÁTICA, APESAR DA REGULAMENTAÇÃO, AEXCLUSÃO DE ATENDIMENTOS AINDA FIGURA

COMO UM DOS PRINCIPAIS MOTIVOS DE

QUEIXAS DE USUÁRIOS DE PLANOS DE SAÚDE

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A exclusão de coberturas assistenciais nos planos de saúde privados

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A ANÁLISE DASAÇÕES JUDICIAIS

O presente artigo é baseado em

estudo2 que teve como objetivos: a.

‘quantificar’ o universo de ações

judiciais relacionadas à negação ou

limitação de atendimentos e assis-

tência aos clientes de planos de saú-

de; b. descrever e analisar as prin-

cipais situações levadas aos tribu-

nais relacionadas à negação de aten-

dimento, exclusão ou restrição de

cobertura; c. ‘analisar’ o comporta-

mento do Judiciário nos julgamen-

tos proferidos em segunda instân-

cia, comparando-os com os resulta-

dos de primeira instância.

O estudo consistiu na análise de

735 decisões judiciais relacionadas

a exclusões de coberturas e nega-

ções de atendimento por parte dos

planos de saúde, julgadas em segun-

da instância pelo Tribunal de Justi-

ça do Estado de São Paulo, entre ja-

neiro de 1999 e dezembro de 2004.

A pesquisa foi realizada no Estado

de São Paulo, que conta com cerca

de 900 operadoras de planos de as-

sistência médico-hospitalar em ati-

vidade; atinge 15,2 milhões de usu-

ários (40% do total do país); tem alto

grau de cobertura (38% da popula-

ção do estado e 55% da capital têm

planos de saúde); e movimentou, em

2005, 15,2 bilhões de reais, quase a

2 Scheffer MC. Os planos de saúde nos tribunais: uma análise das ações judiciais movidas por clientes de planos privados de saúde erelacionadas à negação de coberturas assistenciais no Estado de São Paulo. [dissertação]. São Paulo: Faculdade de Medicina da Universi-dade de São Paulo; 2006. 212 p. Disponível em www.teses.usp.br

metade da receita dos planos de saú-

de em todo o país.

Os principais resultados podem

ser agrupados em: a. perfil das co-

berturas excluídas; b. perfil dos pla-

nos de saúde denunciados na Justi-

ça; c. teor das decisões e argumen-

tações.

a. Perfil das coberturas excluí-

das

• Dentre os grupos de doenças

(Classificação Internacional de Do-

enças - CID 10) citados nos acórdãos

devido a exclusão de cobertura, em

• As doenças mais citadas fo-

ram: câncer (97 menções), doenças

cardiovasculares (78), Aids (30), me-

ningite (21), acidentes e causas ex-

ternas (20), cirrose hepática (16), in-

suficiência renal (14), hérnia (14),

diabetes (12) e doenças congênitas

(12).

• Dentre as coberturas citadas

nos acórdãos, a maioria (68%) não

traz especificação de procedimentos.

Mesmo nestes casos, foi possível

agrupar as coberturas em: assistên-

cia médica (36%), seguida de inter-

nações (27%), cirurgias (24%), inter-

nações em UTI (12%) e consultas

médicas (1%).

• Dentre as coberturas com es-

pecificação de procedimentos (32%),

os mais citados foram os procedi-

mentos cirúrgicos e invasivos

(39,9%), os procedimentos clínicos

(27,0%), órteses e próteses (9,5%),

procedimentos diagnósticos e tera-

pêuticos (8,3%), insumos e medica-

mentos (8,3%), procedimentos gerais

(7,0%).

• Agrupando todos os procedi-

mentos, os mais citados foram:

transplantes (16%), quimioterapia,

radioterapia e outros procedimentos

ligados ao tratamento de câncer

(15%), órteses e próteses (9,5%), exa-

mes diagnósticos (8,3%), implantes

(5,5%), hemodiálise (5,2%), oxigeno-

terapia (4,6%), fisioterapia (3,7%),

um total de 478 menções, prevale-

cem os neoplasmas (20,3%), doen-

ças do aparelho circulatório (16,3%)

e doenças infecciosas (11,1%).

• Os dois grupos de doenças

mais citados – câncer e cardiopati-

as – referem-se às duas principais

causas de morte no Estado de São

Paulo.

OS PRINCIPAIS RESULTADOS PODEM SER

AGRUPADOS EM: A. PERFIL DAS COBERTURAS

EXCLUÍDAS; B. PERFIL DOS PLANOS DE SAÚDE

DENUNCIADOS NA JUSTIÇA; C. TEOR DAS

DECISÕES E ARGUMENTAÇÕES

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SCHEFFER, MÁRIO

238 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 231-247, set./dez. 2005

... O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, AO

ATENDER ESTES CASOS DE EXCLUSÕES DE

COBERTURAS, ATUA DE FORMA A SUBSIDIAR

OS PLANOS DE SAÚDE PRIVADOS

assistência ao recém-nascido (3,7%),

medicamentos de uso hospitalar

(3,7%) e outros (24,8%).

• A negação de cobertura de ca-

sos relacionados à urgência e emer-

gência esteve presente em 109

(14,8%) acórdãos analisados. Os ca-

sos de urgência estão relacionados,

principalmente, a doenças cardio-

vasculares, câncer e acidentes.

• Nas 51 decisões analisadas que

mencionaram a negação de cober-

tura de transplantes, dentre aqueles

que são especificados, os mais cita-

dos são os transplantes de fígado e

de medula. Chama a atenção que a

atual regulamentação também de-

sobriga a cobertura desses procedi-

mentos: apenas são obrigatórios os

transplantes de rins e córneas.

• Dentre as decisões judiciais

analisadas, 31 (4,2%) mencionaram

a negação de cobertura de órteses e

próteses, sendo mais mencionados

os stents, marca-passos e cateteres.

• A exclusão de atendimento sob

alegação de doença preexistente apa-

receu em 174 (23,6%) das decisões

judiciais estudadas. Chama a aten-

ção que a exclusão de preexisten-

tes, muito comuns nos contratos

antigos, foi perpetuada pela lei 9656/

98 que manteve este conceito e esti-

pulou dois anos de carência.

• Pode-se afirmar que, dentre os

procedimentos especificados, aque-

les de alta complexidade e alto cus-

to são mais freqüentemente citados

nas decisões judiciais. A maior in-

cidência de ações relacionadas a

procedimentos dispendiosos e espe-

cializados – a exemplo dos trans-

plantes, do tratamento do câncer, da

hemodiálise e de diversos procedi-

mentos cirúrgicos e invasivos – traz

indícios da prática adotada pelas

operadoras visando à economia de

recursos e ao predomínio da lógica

financeira. Ao mesmo tempo indica

que o Sistema Único de Saúde, ao

atender estes casos de exclusões de

b. Perfil dos planos de saúde de-

nunciados na Justiça

• A medicina de grupo é o seg-

mento de operadoras de planos de

saúde mais citado nos acórdãos ana-

lisados (54,4%), seguido das segu-

radoras (30,2%), cooperativas/Uni-

meds (9,8%), filantropia (2,6%), au-

togestão (0,9%) e outros (2,1%).

• Dentre as decisões avaliadas,

87,6% referem-se a contratos indivi-

duais, enquanto 10,9% são contra-

tos coletivos. Os planos coletivos,

apesar de corresponderem a mais

de 70% do mercado, são levados com

menos freqüência aos tribunais.

Apresentados pelas empresas como

‘benefício’ ou como ‘salário indire-

to’, geralmente pressupõem uma

diluição do risco entre os beneficiá-

rios, que leva a cálculos de custos

per capita e à definição de cobertu-

ras. Já os contratos individuais, por

implicarem uma concentração do

risco, tendem a restringir mais as

coberturas. Mas também é possível

supor que o usuário (pessoa física)

de plano coletivo não tenha alterna-

tivas diante da limitação imposta.

Resta-lhe, na maioria das vezes, o

registro da queixa junto ao próprio

empregador (RH das empresas, por

exemplo). Os usuários podem temer

reclamar externamente a negação de

atendimento. Esta seria uma forma

de manter a boa relação com o em-

pregador e até mesmo de preservar

o emprego. O beneficiário tem, por-

coberturas, atua de forma a subsi-

diar os planos de saúde privados.

• Além de excluir aquelas doen-

ças cujos tratamentos são mais one-

rosos, também são excluídas aque-

las que, na visão das operadoras,

deviam ser obrigação exclusiva do

sistema público. Dois exemplos são

o tratamento da Aids e as hemodiá-

lises, que são absorvidos em sua

quase totalidade pelo SUS, sem a

participação dos planos.

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A exclusão de coberturas assistenciais nos planos de saúde privados

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 231-247, set./dez. 2005 239

tanto, pouco controle ou reduzida

escolha sobre o plano coletivo.

• Dos acórdãos analisados, a

maioria (55,2%) não informa a data

de contratação dos planos. Dentre

aqueles que trazem essa informação,

a maior parte é de contratos anteri-

ores à Lei 9.656/98 (44,1% dos acór-

dãos). O fato é que o grande núme-

ro de contratos antigos no universo

pesquisado explica-se, em parte,

pela morosidade da Justiça, uma vez

que foram estudadas decisões de

segunda instância que tiveram iní-

cio antes da vigência da atual legis-

lação.

c. Teor das decisões e argu-

mentações jurídicas

• A Justiça foi favorável à con-

cessão de cobertura, na segunda ins-

tância, em 73,5% das ações julga-

das, praticamente confirmando a

proporção verificada na primeira

instância, na qual 74,5% foram fa-

voráveis aos usuários. Em 3,7% dos

acórdãos, o juiz concedeu parte da

cobertura solicitada e, em 20,4%, foi

negada a cobertura, com decisão

favorável ao plano de saúde. Em

algumas situações, como câncer

(79,4% dos casos) e transplantes

(78,8% dos casos), as decisões fo-

ram ainda mais favoráveis em se-

gunda instância.

• O Código de Defesa do Consu-

midor (CDC) é a legislação mais ci-

tada nas argumentações das deci-

sões judiciais: 62,7% do total de

menções a legislações específicas.

Em seguida, vem o Código Civil

(14,6%). A Lei 9.656/98 fica em ter-

ceiro lugar (10%), seguida da Cons-

tituição Federal (7,3%).

• O fato de a Lei dos Planos de

Saúde (9.656/98) ser pouco citada

nas decisões analisadas pode de-

monstrar a limitação e o pouco al-

cance desta legislação, que não é

aplicada para os planos antigos (boa

parte dos contratos ainda em vigor)

e com limitações de cobertura mes-

mo nas regras atuais.

• Quando o CDC é utilizado nas

argumentações favoráveis à conces-

são de cobertura, os aspectos mais

citados são: em caso de dúvida na

interpretação do contrato, a decisão

deve ser favorável ao consumidor;

as cláusulas restritivas deveriam

estar expressas em destaque; a res-

trição atribui vantagem exagerada

para a operadora; é abusiva a cláu-

sula que estipula limite de tempo

de internação e valores; a operado-

ra não provou má-fé ou desconheci-

mento da doença por parte do usuá-

rio; as limitações são abusivas,

quando se trata de urgência e emer-

gência; e a operadora não prestou

bom serviço. Nos casos em que o

CDC é usado em decisões favoráveis

às operadoras, o principal argumen-

to é de que não há relação de con-

sumo quando se trata de planos co-

letivos.

• Quanto à Lei 9.656/98, quan-

do ela é mencionada favoravelmen-

te à concessão de cobertura, o

principal argumento utilizado é a

ausência de prova de má-fé, uma

vez que o usuário não fez exame

pré-admissional. Os juízes também

alegam, com base na Lei dos Pla-

nos de Saúde, que o procedimento

deve ser coberto, que o consumidor

tem direito à informação adequada,

e que a cobertura de urgência e

emergência tem que ser obrigatória.

A Lei 9.656/98 ainda serviu de fun-

damento para decisões favoráveis

às operadoras, quando, por exem-

plo, a legislação permite a exclusão

de determinada cobertura.

• Algumas decisões favoráveis

à cobertura utilizam argumentos

médicos, sendo os dois principais:

a intervenção cirúrgica não é para

fim estético; os planos devem cobrir

os progressos da medicina e a in-

corporação de novas tecnologias.

• Há, ainda, decisões baseadas

unicamente no contrato firmado en-

tre usuário e operadora, em que o

juiz decide a partir das disposições

contratuais. Nestes casos, o juiz afir-

ma que o contrato não exclui a co-

bertura. O argumento do contrato é

usado também nas decisões favorá-

veis aos planos de saúde. Nestes

casos, as principais argumentações

são: as limitações/exclusões estão

expressas no contrato; o médico ou

hospital não são credenciados pelo

plano de saúde e, portanto, o plano

não deve conceder a cobertura. Pre-

valece nestes julgados o princípio de

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SCHEFFER, MÁRIO

240 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 231-247, set./dez. 2005

INÚMERAS SITUAÇÕES NEM SEQUER SÃO

FORMALIZADAS, QUANDO O DESFECHO PARA OUSUÁRIO É SER ATENDIDO NAS UNIDADES DO

SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, ARCAR COM OS

CUSTOS PARTICULARES OU FICAR SEM OATENDIMENTO NECESSÁRIO

que o contrato faz a lei entre as par-

tes.

• Os principais argumentos usa-

dos pelas operadoras na sua defesa

em juízo são: existência de cláusu-

la excludente no contrato; caso de

doença preexistente; o médico/hos-

pital não é credenciado; não há re-

lação de consumo, pois trata-se de

associação/plano coletivo; a garan-

tia de saúde irrestrita é dever do

Estado e não do plano de saúde; o

procedimento não está incluído na

tabela vigente da Associação Médi-

ca Brasileira (AMB); a finalidade do

procedimento é meramente estética;

o usuário está inadimplente no pa-

gamento da mensalidade; o proce-

dimento não está incluído no Rol de

Alta Complexidade da ANS.

CONSIDERAÇÕES

SOBRE A DIMENSÃO

DO PROBLEMA

O perfil das coberturas assisten-

ciais negadas pelos planos de saú-

de e levadas ao Tribunal de Justiça

do Estado de São Paulo (TJ-SP) é pre-

ocupante, uma vez que relaciona

problemas de saúde e doenças res-

ponsáveis pelos maiores índices de

adoecimento e morte da população.

São negações de atendimento liga-

das a situações clínicas cuja demo-

ra no atendimento é uma variável

importante na determinação do prog-

nóstico e na sobrevida do paciente.

O problema da exclusão de co-

berturas ainda não foi considerado

à altura de sua gravidade e de suas

repercussões na saúde e na vida da

população assistida. Também não

são totalmente conhecidas a dimen-

são das ocorrências e suas implica-

ções para o sistema de saúde brasi-

leiro. É razoável supor que o pre-

sente artigo tratou da ‘ponta do ice-

berg’ do problema, ao analisar de-

malizadas, quando o desfecho para

o usuário é ser atendido nas unida-

des do Sistema Único de Saúde, ar-

car com os custos particulares ou

ficar sem o atendimento necessário.

Traçar a real dimensão das limita-

ções assistenciais na saúde suple-

mentar demanda pesquisas com de-

senhos específicos , que podem ser

assumidas pelo órgão regulador e

implementadas em parceria com

setores acadêmicos.

O estudo das demandas de usu-

ários de planos de saúde levadas à

Justiça é, sem dúvida, um instru-

mento relevante que merece ser con-

tinuado e aprimorado, não só junto

aos Tribunais de Justiça, mas tam-

bém junto aos Juizados Especiais

Cíveis e ao Ministério Público, ins-

tâncias que, cada vez mais, aco-

lhem os pleitos relacionados a ex-

clusões de coberturas assistenciais

e outros temas que envolvem a saú-

de suplementar.

Apenas o monitoramento da ba-

talha travada no Judiciário, no en-

tanto, não é suficiente.

Há que se considerar a dificul-

dade de acesso à Justiça, o ônus fi-

nanceiro da contratação de advoga-

do, o desconhecimento dos direitos

por parte do cidadão usuário de pla-

nos de saúde (tendo em vista a com-

plexidade e a fragmentação da le-

gislação), a morosidade na tramita-

ção das ações judiciais e o descré-

dito de parcela da sociedade quanto

à atuação do Judiciário.

mandas apresentadas ao TJ-SP, com

abrangência geográfica e espaço de

tempo delimitados e, ainda, restri-

tas às decisões de segunda instân-

cia.

As informações sobre negações

de cobertura não estão apenas nos

tribunais. Encontram-se pulveriza-

das nas várias instâncias que ser-

vem de porta de entrada para quei-

xas e reclamações desse tipo. Inú-

meras situações nem sequer são for-

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A exclusão de coberturas assistenciais nos planos de saúde privados

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 231-247, set./dez. 2005 241

As demais instâncias, especial-

mente os Procons e o Disque ANS,

precisam ser integradas a um siste-

ma de informações. Da mesma for-

ma, deve ser aprimorado o registro

dos dados sobre os atendimentos de

usuários de planos de saúde nas

unidades do SUS.

SOBRE A NECESSIDADE DE

REVISÃO DA LEGISLAÇÃO

A convivência de dois ‘mundos’,

antes e depois da regulamentação,

com regras distintas nos contratos

de planos de saúde, somada às dis-

torções contidas em resoluções e

normas ditadas pela agência regu-

ladora, poderá levar a população

usuária a acionar, cada vez mais, o

Poder Judiciário na tentativa de so-

lucionar conflitos com as operado-

ras de planos de saúde.

O fato de a Lei dos Planos de Saú-

de (9.656/98) ter sido pouco citada

nas decisões analisadas – se com-

parada à menção ao Código de De-

fesa do Consumidor e ao Código Ci-

vil – demonstra a limitação e o al-

cance desta legislação. Ela é descon-

siderada até mesmo em acórdãos

que mencionam planos novos, ad-

quiridos após a sua vigência.

Ao menosprezarem a Lei 9656/

98 e ao darem ganho de causa à

concessão de cobertura na maioria

dos pleitos, as decisões judiciais

analisadas sugerem aos Poderes

Executivo e Legislativo que o apa-

rato regulatório em vigor é frágil e

que algo precisa ser feito para dar

respostas ao problema da exclusão

de coberturas na saúde suplemen-

tar, freqüentemente levado aos tri-

bunais.

São motivos de demandas judi-

ciais, conforme demonstrou o estu-

do, as exclusões de procedimentos

médicos de alto custo e alta com-

plexidade, doenças preexistentes,

transplantes, situações de urgência

potencialmente, poderão ser levadas

aos tribunais. Compõem este cená-

rio os planos segmentados (ambu-

latorial, hospitalar,hospitalar com

obstetrícia ou referência); os perío-

dos de carência (24 horas para aten-

dimento de urgências e emergênci-

as; 180 dias para consultas, exa-

mes, internações; 300 dias para par-

tos; 24 meses para coberturas rela-

cionadas a doenças preexistentes);

os reajustes por faixas etárias (que,

muitas vezes, ‘expulsam’ os usuá-

rios idosos); a interpretação por ve-

zes equivocada, pelos planos de saú-

de, do que são ‘procedimentos esté-

ticos’ passíveis de exclusão confor-

me preconiza a legislação; os limi-

tes da assistência psiquiátrica; a

exclusão de cirurgia de correção de

miopia nos casos de grau igual ou

superior a 7 (sete)1; as exclusões

contratuais e a não obrigatoriedade

de cobertura de doenças profissio-

nais e acidentes do trabalho nos pla-

nos coletivos; as limitações da co-

bertura geográfica; o controle de

acesso à rede e aos meios diagnós-

ticos e terapêuticos , dentre outras

possibilidades.

É inadiável, portanto, o retorno

da regulamentação dos planos de

saúde ao Congresso Nacional, pau-

ta que poderá ser assumida pela

nova Legislatura que teve início em

2007. Cabe ao Legislativo, e não só

à ANS por meio de suas resoluções,

a iniciativa de revisão da legislação

em vigor, de forma a corrigir as dis-

e emergência, órteses e próteses,

dentre outras restrições contidas

principalmente nos contratos anti-

gos. Portanto, a situação dos pla-

nos pré-regulamentação precisa ser

urgentemente tratada no âmbito do

Legislativo e da agência regulado-

ra.

Há, também, uma série de ou-

tras possibilidades de exclusões,

contidas na atual regulamentação,

que devem ser consideradas e que,

...A SITUAÇÃO DOS PLANOS PRÉ-REGULAMENTAÇÃO PRECISA SER

URGENTEMENTE TRATADA NO ÂMBITO DO

LEGISLATIVO E DA AGÊNCIA REGULADORA

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SCHEFFER, MÁRIO

242 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 231-247, set./dez. 2005

torções contidas nas regras atuais e

de estender as novas normas aos

planos antigos e aos planos coleti-

vos, hoje excluídos ou parcialmen-

te alcançados pela legislação.

SOBRE O COMPORTAMENTO

E A AUTONOMIA DO JUDICIÁRIO

O estudo demonstra que o Poder

Judiciário vem sendo chamado a

garantir e dar efetividade em ques-

tões sensíveis como o direito do con-

sumidor e o direito à saúde previs-

tos na Constituição. A sociedade

bate às portas da Justiça para exi-

gir respostas no que se refere à atu-

ação das empresas de planos de saú-

de ou à omissão e à insensibilidade

do poder público e do órgão regula-

dor.

Em que pese o fato de a maioria

das decisões terem obrigado a con-

cessão de coberturas, é importante

ressaltar que há decisões contrári-

as, muitas vezes baseadas na mes-

ma legislação que serviu aos julga-

dos favoráveis – Código de Defesa

do Consumidor, Código Civil, Lei

9.656/98 ou Constituição Federal. A

utilização da mesma base legal em

decisões divergentes demonstra a

independência e a autonomia do Ju-

diciário nesta matéria. Isto não sig-

nifica que os juízes decidem estas

causas baseados exclusivamente

nas suas próprias noções subjetivas

de justiça, mas sim que tomam com

liberdade as decisões legais.

O que se espera do poder Judici-

ário em uma democracia é que suas

decisões sejam imparciais e indepen-

dentes, baseadas nos fatos de cada

caso apresentado, no mérito, nos

argumentos legais e nas leis mais

relevantes, sem qualquer influência

das partes interessadas, asseguran-

do a igualdade da proteção legal.

nos de saúde). Nesta concepção, o

que rege prioritariamente a relação

entre clientes e empresas de planos

de saúde são as normas do Código

de Defesa do Consumidor (CDC), que

predominam nas argumentações ju-

rídicas dos acórdãos analisados.

O entendimento de boa parte dos

juízes de que a assistência à saúde

reclamada nas ações judiciais é um

direito do consumidor, ainda que

crie farta jurisprudência favorável

à concessão de coberturas, não tra-

ta o problema em todas as suas di-

mensões. Muitas das decisões são

tomadas não pela necessidade de

saúde apresentada, mas pelas cober-

turas definidas na legislação ou nos

contratos. O direito do consumidor

estaria, assim, restrito à utilização

dos serviços, quando requisitados

por uma demanda individual. Con-

forme o resultado da pesquisa, não

há consenso, no TJ-SP, sobre a apli-

cação do CDC aos contratos coleti-

vos – maior fatia do mercado de pla-

nos de saúde – o que vem a ser ou-

tro limitador desta concepção con-

sumerista.

Em outro extremo, a redução da

saúde à condição de mercadoria está

também contida nas argumentações

das operadoras, quando da contes-

tação, em juízo, das solicitações de

coberturas. A existência de cláusu-

la contratual que explicitamente li-

mita a cobertura é o argumento mais

utilizado pelas empresas de planos

de saúde para negar o atendimento,

SOBRE A SAÚDE REDUZIDA

À CONDIÇÃO DE MERCADORIA

A partir das ações judiciais ana-

lisadas junto ao TJ-SP, é possível afir-

mar que prevalece no Judiciário a

visão de que a prestação de servi-

ços pelos planos de saúde é uma

mercadoria, um bem de consumo

oferecido por um fornecedor (as ope-

radoras) para um consumidor des-

tinatário final (os usuários dos pla-

... É POSSÍVEL AFIRMAR QUE PREVALECE NO

JUDICIÁRIO A VISÃO DE QUE

A PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PELOS PLANOS DE

SAÚDE É UMA MERCADORIA ...

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A exclusão de coberturas assistenciais nos planos de saúde privados

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 231-247, set./dez. 2005 243

A EXISTÊNCIA DE CLÁUSULA CONTRATUAL QUE

EXPLICITAMENTE LIMITA A COBERTURA É OARGUMENTO MAIS UTILIZADO PELAS EMPRESAS

DE PLANOS DE SAÚDE PARA NEGAR OATENDIMENTO...

reforçando a concepção de que o que

está em discussão não é uma ne-

cessidade de saúde, mas uma mera

disposição contratual da descrição

do “produto” a ser entregue ao con-

sumidor.

Vários acórdãos mencionam,

com argumento favorável à conces-

são de coberturas, o direito funda-

mental à saúde e o direito inaliená-

vel à vida inscritos na Constituição

Federal. E mesmo quando prevale-

ce a visão consumerista, o Judiciá-

rio por vezes afirma que a saúde não

pode ser tratada como qualquer

outra mercadoria.

Argumenta-se que o consumidor

não consegue prever a ocorrência de

uma doença ou necessidade de saú-

de e, por causa desta imprevisibili-

dade, que abarca riscos e incerte-

zas, torna-se impossível o planeja-

mento do consumo futuro de assis-

tência à saúde. O tratamento e a

cura, afirmam alguns juízes, não

são produtos que estão à venda no

mercado; na verdade, os interessa-

dos compram serviços de atenção à

saúde que deveriam sempre resul-

tar na solução dos problemas de

saúde, quando eles surgirem.

Há quase duas décadas a socie-

dade decidiu, por meio das conquis-

tas constitucionais, como gostaria

de ver garantidos os direitos para

os seus cidadãos. Assim, precisam

ser revistos os valores e práticas –

presentes no mercado de planos de

saúde e no Judiciário – que tendem

a subestimar a concepção do direi-

to à saúde. Isto é fundamental para

a conquista de um processo civili-

zatório mais amplo no campo da

saúde, no qual prevaleçam a justi-

ça social e a solidariedade, garanti-

das por meio de políticas públicas e

também da maior atuação do Esta-

do.

O perfil das exclusões reclama-

das na Justiça - principalmente tra-

tamentos e procedimentos de alto

custo e alta complexidade– dá a di-

mensão dos aportes públicos ao sis-

tema supletivo, ainda que seja difí-

cil a quantificação exata dos recur-

sos despendidos pelo SUS para aten-

der aquilo que não é coberto pelos

planos de saúde.

O mercado da saúde suplemen-

tar foi artificialmente expandido e

ainda engloba centenas de empresas

sem as mínimas condições de ofere-

cer sequer as coberturas assegura-

das pela legislação. É possível su-

por que uma grande fatia deste mer-

cado sobrevive às custas das restri-

ções praticadas e de conseqüente

subsídio do Sistema Único de Saú-

de, que arca com as despesas dos

atendimentos negados pelos planos

de saúde.

Quanto ao ressarcimento ao SUS,

previsto na Lei 9.656/98, ainda não

se mostrou inteiramente viável na

prática. É irrisório o montante de

recursos destinados aos serviços

públicos de saúde, via ressarcimen-

to.

Desde março de 2005 todos os

procedimentos previstos nos contra-

tos de planos de saúde tornaram-se

objeto de ressarcimento. Trata-se de

pequeno avanço em relação às nor-

mas anteriores, que restringiam o

ressarcimento aos casos de interna-

ção e atendimentos de urgência e

emergência dos beneficiários dos

SOBRE A RELAÇÃO COM

O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE

É possível supor que os limites

de coberturas inscritos nos contra-

tos de planos de saúde, previstos na

legislação ou autorizados pela ANS

por meio de resoluções, são absor-

vidos, em grande parte, pelo Siste-

ma Único de Saúde (SUS). Assim,

pode-se afirmar que o SUS subsidia

o mercado de planos de saúde.

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SCHEFFER, MÁRIO

244 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 231-247, set./dez. 2005

AO CRIAR CIDADÃOS DE PRIMEIRA E SEGUNDA

LINHA, SEM RESPALDO LEGAL NEM ÉTICO, A‘DUPLA PORTA’ IMPÕE A UTILIZAÇÃO PRIVADA

DO EQUIPAMENTO PÚBLICO E AFASTA ESSES

HOSPITAIS DOS PRINCÍPIOS DE

UNIVERSALIDADE E EQÜIDADE...

planos atendidos nas redes pública

e conveniada.

Os acórdãos estudados contêm

demandas de alto custo e alta com-

plexidade, sobretudo eletivas e não

urgentes. Como estas exclusões es-

tão previstas em contratos ou têm o

respaldo da regulamentação, não

são passíveis de ressarcimento nem

tampouco são registradas as referi-

das informações. Assim, são neces-

sárias mudanças na legislação para

que tudo aquilo que de fato é aten-

dido em hospitais públicos seja ob-

jeto de ressarcimento.

As decisões analisadas apontam

no sentido de que não há fundamen-

to jurídico na maioria das exclusões

de cobertura, tanto naquelas expres-

sas nos contratos antigos quanto

naquelas que encontram respaldo na

regulação recente. A ampliação das

situações de ressarcimento – por

meio de mudanças na legislação –

teria, assim, o respaldo da jurispru-

dência acumulada nos tribunais.

Cabe citar a preocupação levan-

tada por Scheffer e Bahia (op. cit):

na razão inversa do ressarcimento,

mas não menos eloqüente do ponto

de vista das distorções da relação

público-privado na assistência à

saúde suplementar, está a “dupla

porta” ou “fila-dupla” do SUS. Tra-

ta-se do atendimento a planos de

saúde nas unidades públicas, espe-

cialmente nos hospitais universitá-

rios. A desigualdade não se resume

apenas a acomodações e hotelaria,

mas estende-se principalmente ao

agendamento diferenciado, mesmo

em se tratando de necessidades de

saúde e atendimento de situações

clínicas semelhantes. Ao criar cida-

dãos de primeira e segunda linha,

sem respaldo legal nem ético, a ‘du-

pla porta’ impõe a utilização priva-

da do equipamento público e afasta

esses hospitais dos princípios de uni-

versalidade e eqüidade - que são

diretrizes constitucionais - e da Lei

Orgânica da Saúde.

vre acesso ao sistema público de

saúde.

As exclusões praticadas pelos

planos de saúde revelam uma das

faces da iniqüidade do sistema de

saúde brasileiro. A solução deste

problema requer não só o aprimo-

ramento da regulamentação especí-

fica, mas principalmente a revisão

da relação público-privado na saú-

de, que passa pela transformação

dos modelos assistenciais, de finan-

ciamento e de prestação de serviços

atualmente hegemônicos.

SOBRE UM NOVO

INDICADOR DE QUALIFICAÇÃO

O Programa de Qualificação no

Setor de Saúde Suplementar, lança-

do pela ANS em 2005, pretende, se-

gundo a Agência, incentivar a me-

lhoria da atenção à saúde prestada

pelos planos de saúde. O presente

artigo traz elementos que podem vir

a ser considerados pela ANS na cons-

trução ou aprimoramento de indi-

cadores que satisfaçam aos usuári-

os e da qualidade dos serviços pres-

tados pelas operadoras. As decisões

judiciais de segunda instância, ali-

adas a outras informações, podem

servir para o acompanhamento da

evolução do desempenho de quali-

dade das operadoras.

Para tal, a ANS teria que incor-

porar, em sua prática, o monitora-

mento permanente das ações contra

É imprescindível, para o deline-

amento das políticas de saúde e para

o aperfeiçoamento da regulamenta-

ção da saúde suplementar, explici-

tar a utilização das unidades do SUS

por clientes de planos de saúde, seja

porque foi negado o atendimento

pela operadora, seja porque o hos-

pital público tem convênio com o

plano de saúde, ou simplesmente

porque os usuários de planos exer-

ceram o direito de cidadania de li-

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A exclusão de coberturas assistenciais nos planos de saúde privados

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 231-247, set./dez. 2005 245

os planos de saúde que tramitam na

Justiça , além de elaborar um novo

indicador semelhante ao já utiliza-

do em relação às reclamações regis-

tradas pelo Disque ANS.

SOBRE A NECESSÁRIA

AMPLIAÇÃO DO

CONTROLE SOCIAL

Tornam-se necessárias mudanças

na concepção e no funcionamento

dos espaços da agência reguladora

destinados a ouvir a opinião da so-

ciedade: Câmara de Saúde Suplemen-

tar, consultas públicas, Ouvidoria e

Disque ANS. Tais instâncias preci-

sam se viabilizar como mecanismos

democráticos de participação, para

que a sociedade não só tenha res-

postas adequadas, mas possa inter-

vir para a melhor solução de pro-

blemas que repercutem diretamente

em suas vidas, como é o caso da

exclusão de coberturas.

Há que se criar, sob a responsa-

bilidade do órgão regulador, meca-

nismos administrativos e alternati-

vas ágeis na solução de conflitos

relacionados à exclusão de cober-

turas.

Este instrumento deve ser descen-

tralizado nos estados, com envolvi-

mento dos gestores do SUS e dos

órgãos de defesa do consumidor.

A proliferação de demandas in-

dividuais para exigir coberturas

negadas pelos planos de saúde de-

monstra a utilização do meio exis-

tente para fazer valer direitos des-

respeitados.

Mas estas ações não são capa-

zes de interferir na lógica do siste-

ma de saúde em vigor. No âmbito

do Judiciário, são muito pouco ex-

ploradas as possibilidades de ações

coletivas, a exemplo das ações ci-

vis públicas que podem ser movi-

das pelo Ministério Público. Sejam

ações judiciais ou de controle soci-

al, elas devem caminhar na perspec-

lítica pública. Assim, é preciso se

efetivar o controle social sobre o

setor, entendido como o controle dos

cidadãos e da sociedade sobre a

política pública.

Atualmente, os espaços legal-

mente instituídos em torno do SUS,

os conselhos e as conferências de

saúde, não têm sido acionados para

tratar dos planos de saúde privados.

A exemplo do Conselho Nacional

de Saúde, que já discute o tema da

saúde suplementar em comissão

específica, os conselhos estaduais e

municipais, sobretudo aqueles de

Estados e cidades com grande con-

centração de população usuária de

planos de saúde, deveriam incorpo-

rar, em sua agenda permanente, o

debate sobre a relação do SUS com

a saúde suplementar.

É necessário, ainda, romper a

noção de que o segmento dos pla-

nos de saúde e o SUS são dois siste-

mas que não se relacionam, diferen-

ça hoje reiterada no plano legal e

institucional. A aproximação entre

as instâncias de regulação do siste-

ma público e da saúde suplementar

poderá trazer o potencial de forma-

lização de princípios e diretrizes

comuns a todos os componentes da

política nacional de saúde.

O diagnóstico preliminar apresen-

tado pelo presente estudo sobre ex-

clusões de coberturas dos planos de

saúde levadas à Justiça aponta pos-

sibilidades de desdobramentos para

além da quantificação de ações ju-

tiva de soluções coletivas que con-

siderem o sistema de saúde como

um todo.

A saúde é um item de relevância

pública, um direito de cidadania e é

obrigação do Estado fornecer dire-

tamente ou regularmente a oferta de

serviços de promoção e assistência

à saúde. Os planos de saúde priva-

dos são componentes do sistema

nacional de saúde e, por isso, de-

vem estar condicionados a uma po-

A PROLIFERAÇÃO DE DEMANDAS INDIVIDUAIS

PARA EXIGIR COBERTURAS NEGADAS PELOS

PLANOS DE SAÚDE DEMONSTRA A UTILIZAÇÃO

DO MEIO EXISTENTE PARA FAZER VALER

DIREITOS DESRESPEITADOS

Page 24: sd em db 71-00 capas 2e3 - mp.go.gov.br · “O SUS pra valer” e “O lugar estratégico da gestão na conquista do SUS pra valer”. O primeiro é produto de um esforço conjunto

SCHEFFER, MÁRIO

246 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 231-247, set./dez. 2005

diciais individuais, da análise do

comportamento do Judiciário, ou da

avaliação da intensidade e do alcan-

ce das normas regulamentadoras em

vigor.

Enquanto prevalecer a fragmen-

tação e a particularização das abor-

dagens no campo da saúde suple-

mentar, mais distantes dos cidadãos

estarão os princípios da universali-

dade e da eqüidade do direito à saú-

de. Para a conquista da saúde como

um direito de cidadania devem ser

estabelecidas novas alianças e pac-

tos entre a sociedade organizada,

atores e segmentos que tenham em

comum o compromisso com a me-

lhoria das condições de saúde e de

vida da população brasileira.

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ARTIGOS ORIGINAIS / ORIGINAL ARTICLES

Municípios brasileiros fronteiriços e Mercosul: características einiciativas de cooperação em saúdeBrazilian border towns and the Mercosur: characteristics and initiatives of cooperationin health

Luisa Guimarães1

Ligia Giovanella2

Recebido: Mar./2006

Aprovado: Jun./2007

1 Doutoranda em Saúde Pública da

Escola Nacional de Saúde Pública

Sergio Arouca (ENSP), Fundação

Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), Ministério

da Saúde, Rio de Janeiro.

E-mail:

[email protected].

2 Pesquisadora titular ENSP ,

FIOCRUZ, Ministério da Saúde, Rio

de Janeiro.

E-mail: [email protected].

RESUMO

Os municípios brasileiros fronteiriços são, em geral, de pequeno porte,

com rede predominantemente de atenção primária, oferta hospitalar com-

patível com a média nacional, mas não homogênea. Apresenta-se parte

dos resultados de pesquisa, concluída em 2007 com o apoio do CNPQ, sobre

acesso e demanda por serviços de saúde nessas localidades. Revisa-se a

bibliografia sobre integração e MERCOSUL, apresentando-se a caracterização

selecionada em bancos de dados de aspectos geográficos, demográficos e

da rede de serviços destes municípios. Descrevem-se os resultados de estu-

dos e de duas iniciativas de cooperação em saúde nas fronteiras.

PALAVRAS-CHAVE: MERCOSUL; Saúde na Fronteira; Integração Regional.

ABSTRACT

In general, Brazilian border towns are small and possess basic health

care and hospital networks which are in line with national average, al-

though not homogenous. This article presents a portion of the results of a

research study completed in 2007 with the support of the Brazilian Resear-

ch Center about access and demand for health services in these locations.

The bibliography about integration into the Mercosur is revised, and infor-

mation is presented from databases about characteristics relative to geo-

graphic and demographic aspects as well as the service network present in

these towns. The results of studies and of two health care initiatives for

cooperation in border regions are described.

KEYWORDS: MERCOSUR, health care in border regions, regional integration

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INTRODUÇÃO

O artigo é parte de estudos de-

senvolvidos no Programa Doutora-

do em Saúde Pública (ENSP/FIOCRUZ/

MS) sobre repercussões da integra-

ção econômica regional nas políti-

cas e sistemas de saúde. Aqui se

trata especificamente da situação de

municípios brasileiros fronteiriços

do MERCOSUL, nos segmentos com a

Argentina, Paraguai e Uruguai, lo-

cais privilegiados para observar e

analisar impactos da integração

econômica regional, considerando

que os efeitos desta são percebidos

com antecipação e cotidianamente.

Os processos de integração se

intensificaram com a globalização

e lentamente vem sendo construída

uma agenda social pari passu à re-

gulamentação da livre circulação

de pessoas, mercadorias, serviços

e capital (GUIMARÃES e GIOVANELLA

2006). A integração ocasiona nas

fronteiras aumento de fluxos, geran-

do tensões e desafios diversos para

os sistemas locais de saúde. Refle-

tir sobre a situação de municípios

fronteiriços, assim como observar

iniciativas de cooperação, contribui

no MERCOSUL para análises específi-

cas de repercussões da integração

nos sistemas de saúde, e pode in-

fluir na pauta de acordos e progra-

mas voltados para regiões frontei-

riças, apoiar esforços de garantia

de atenção integral e humanizada,

e para o fortalecimento das políti-

cas nacionais de saúde.

Objetiva-se propiciar análise do

processo de integração como con-

texto, as características de municí-

pios fronteiriços como desafios e as

iniciativas de cooperação fronteiri-

ça como potencialidades e discute

como a integração regional pode

somar-se à saúde para a redução

de desigualdades na fronteira.

Para tanto, revisa-se a bibliogra-

fia sobre integração e conformação

de saúde integral e humanizada na

fronteira, face ao avanço da integra-

ção econômica no MERCOSUL. Uma

versão preliminar deste artigo foi

apresentada no 10º Congresso Inter-

nacional do Centro Latino-america-

no de Administração para o Desen-

volvimento sobre Reforma do Esta-

do e da Administração Pública (GUI-

MARÃES e GIOVANELLA, 2005).

A linha de fronteira do MERCOSUL

é formada por 69 municípios brasi-

leiros, distribuídos nos limites com

Argentina, Paraguai e Uruguai. Nes-

se artigo é apresentada parte de re-

sultados de pesquisa concluída em

2007 com o apoio do CNPq, sobre

acesso e demanda por serviços de

saúde nestas localidades (GIOVANELLA

ET AL., 2007). A fronteira com a Ar-

gentina tem o maior número de

municípios (36), a maioria com

menos de 10 mil habitantes (24) e

no trecho correspondente ao Paraná

o maior número de leitos por habi-

tantes (3,5). A fronteira com o Para-

guai é a mais extensa (37%), predo-

minam municípios de médio porte

(16%), reside a maior parte da po-

pulação fronteiriça do MERCOSUL

(43%), existe o maior número de

hospitais (49%) e o menor número

de leitos por habitantes: 2,3, no Mato

Grosso do Sul, e 2,6, no Paraná. A

fronteira com o Uruguai é seca em

um terço; tem o menor número de

municípios do MERCOSUL (11), dos

quais seis são cidades-gêmeas; tem

a menor população fronteiriça resi-

do MERCOSUL e apresenta-se a carac-

terização selecionada em bancos de

dados nacionais de aspectos geográ-

ficos, demográficos e da rede de

saúde de municípios brasileiros

fronteiriços. Destacam-se os resul-

tados de estudo na tríplice fronteira

e registram-se duas iniciativas de

cooperação em saúde nas frontei-

ras, a partir de observação partici-

pante e informes. Nas considerações

finais, discutem-se as perspectivas

A INTEGRAÇÃO OCASIONA

NAS FRONTEIRAS AUMENTO DE FLUXOS,GERANDO TENSÕES E DESAFIOS DIVERSOS

PARA OS SISTEMAS LOCAIS DE SAÚDE

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250 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 248-257, set./dez. 2005

dente (25%); o segundo maior nú-

mero de leitos hospitalares por ha-

bitantes (3,3); e de municípios sem

cobertura de saúde da família (7).

Em resposta aos desafios locais,

surgem iniciativas cooperativas

entre cidades fronteiriças de países

do MERCOSUL para o planejamento e

execução de atividades em saúde

que configuram espaços de ação

conjunta para a melhoria do acesso

integral e humanizado à saúde.

INTEGRAÇÃO ECONÔMICA E

CONSTITUIÇÃO DO MERCOSUL

O estabelecimento de relações

econômicas privilegiadas tem cada

vez maior relevância política e so-

cioeconômica (OMS/OMC, 2002; BO-

LIS, 2000). Os países elegem o grau

da integração que pretendem assu-

mir (BASSO, 1998; ALTVATER e MAHNKO-

PF, 1996). A inclusão de temas soci-

ais na agenda regional é tardia, con-

tudo, os ajustes para implementar

os acordos econômicos repercutem

nas políticas de saúde de modo in-

tencional e não intencional (BUSSE,

WISMAR e BERMAN 2002; LEIDL, 1998).

A integração européia busca re-

forçar os objetivos dos sistemas de

proteção social de combinar solida-

riedade com sustentabilidade, de

introduzir incentivos de mercado

mantendo o papel do Estado e de

adotar inovações na organização e

oferta de serviços (GUIMARÃES e GIO-

VANELLA 2006; FIGUERAS ET AL., 2002).

Fundado em 1991 por Argentina,

No MERCOSUL, a saúde é aborda-

da especificamente em duas estru-

turas: Reunião de Ministros de Saú-

de (RMS), criada em 1995, e

Subgrupo de Trabalho 11 Saúde

(SGT 11 Saúde), criado em 1996.

Nestas, os debates contemplam te-

mas prioritários relacionados às li-

berdades de circulação. Os consen-

sos se expressam em acordos e re-

gulamentação incorporada pelos

Estados-parte (BRASIL, 2006). A pauta

da saúde no MERCOSUL foi pouco a

pouco ampliada para além de temas

relacionados ao comércio de bens

(MERCOSUL, 2005; LUCCHESE, 2001).

No final do ano de 2006, foi apro-

vada na Reunião de Ministros da

Saúde do MERCOSUL Proposta de Pro-

jeto de Cooperação Técnica Interna-

cional. O objetivo geral dessa é

identificar estrategias para la in-

tervención en salud de fronteras, por

medio del análisis, desarrollo de expe-

riencias y sistematización de las mis-

mas, de manera de contribuir el desar-

rollo de los Sistemas Locales de Salud

integrando acciones de salud de las

Fronteras de los Estados Partes del MER-

COSUR (URUGUAY)

Ao afirmar a tese de que se (…)

considera que la salud es un factor

Brasil, Paraguai e Uruguai, o MER-

COSUL objetiva a constituição gradu-

al de mercado comum com livre cir-

culação de bens, serviços, pessoas

e capitais, como no caso europeu

(VENTURA, 2003; BASSO, 1998). Cinco

países são Estados Associados do

Mercosul: Bolívia, Chile, Colômbia,

Equador, Peru. A Venezuela passou

em 2006 à categoria de Estado-par-

te (BRASIL, s/d a; BRASIL, s/d b).

NO MERCOSUL, A SAÚDE É ABORDADA

ESPECIFICAMENTE EM DUAS ESTRUTURAS:REUNIÃO DE MINISTROS DE SAÚDE (RMS),

CRIADA EM 1995, E SUBGRUPO DE

TRABALHO 11 SAÚDE (SGT 11 SAÚDE),CRIADO EM 1996

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Municípios brasi leiros fronteir iços e Mercosul: característ icas e iniciativas de cooperação em saúde

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 248-257, set./dez. 2005 251

favorecedor de la integración regi-

onal y que acciones concretas en

fronteras contribuirán a ese propó-

sito general os Países destacam a

importância das correlações entre

integração econômica regional e

saúde (URUGUAY).

ESPECIFICIDADES DOS MUNICÍPIOS

FRONTEIRIÇOS DO MERCOSUL

Os movimentos de integração

tendem a aumentar fluxos, primei-

ro e com maior intensidade, nas ci-

dades fronteiriças, onde mais que

diferenças de língua e cultura, dá-

se a convivência cotidiana entre sis-

temas políticos, monetários, de se-

gurança, de proteção social distin-

tos, geradores de tensões e contra-

dições entre as realidades local e

regional e o conjunto de instituições,

normas e práticas dos países (BAR-

CELLOS et al., 2001; BOLIS, 1999; CIC-

COLELLA, 1994). As bordas dos países

– os limites – são territórios dinâ-

micos que constituem unidades com

trocas espacial, demográfica, soci-

oeconômica, epidemiológica e cul-

tural específicas (BARCELLOS et al.,

2001). Nas fronteiras, as identida-

des nacionais são diluídas e na saú-

de impõem a realização articulada

de atividades de negociação e de

identificação e uso de recursos para

alcançar efetividade e adequada

provisão de ações face às particu-

laridades mantidas pela barreira de

fronteira e as diferenças normati-

vas e de direitos. As características

locais configuram segmentos defi-

nidos da fronteira (BARCELLOS, ET AL.,

2001).

As paisagens da fronteira brasi-

leira com o MERCOSUL conformam

territórios variados que ora apro-

ximam e ora afastam as populações

fronteiriças e criam interações e di-

nâmicas diversas (BRASIL, 2005). A

fronteira com a Argentina é de 1.263

km, dos quais 2% são secos; com o

Paraguai é de 1.339 km, dos quais

31% são secos; e com o Uruguai é

de 1.003 km, dos quais 30% são se-

cos (FIOCRUZ, 2007). A fronteira bra-

sileira com o MERCOSUL totaliza 3.605

km e representa cerca de um quinto

da fronteira continental do País. Nos

municípios fronteiriços residem

0,82% da população total brasilei-

ra, a maior parte na fronteira com

o Paraguai (43%) e 55% das cidades

têm até 10 mil habitantes (ver Tabe-

la 1). É território que, devido ao

dinamismo, tem importância signi-

ficativa no processo de integração

(BRASIL, 2005). Foz do Iguaçu, no

Paraná, com cerca de 300 mil habi-

tantes é a mais populosa de toda

fronteira brasileira e apenas dois

municípios brasileiros fronteiriços

têm mais de cem mil habitantes,

ambos no Rio Grande do Sul: Bagé

(cerca de 120 mil) e Uruguaiana (cer-

ca de 130 mil). Onze municípios

fronteiriços do MERCOSUL estão entre

aqueles com maiores taxas médias

de homicídios na população total

(WAISELFISZ, 2007).

NAS FRONTEIRAS, AS IDENTIDADES NACIONAIS

SÃO DILUÍDAS E NA SAÚDE IMPÕEM A REALIZAÇÃO

ARTICULADA DE ATIVIDADES DE NEGOCIAÇÃO E DE

IDENTIFICAÇÃO E USO DE RECURSOS PARA

ALCANÇAR EFETIVIDADE E ADEQUADA PROVISÃO

DE AÇÕES FACE ÀS PARTICULARIDADES MANTIDAS

PELA BARREIRA DE FRONTEIRA E AS DIFERENÇAS

NORMATIVAS E DE DIREITOS

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252 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 248-257, set./dez. 2005

TABELA 1 – Características dos municípios brasileiros fronteiriços com Ar-

gentina, Paraguai e Uruguai, 2005.

1 Contagem populacional para os anos intercensitários (IBGE, 2004); 2 Índice de Desenvol-vimento Humano no Brasil (Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil, 2003); 3Minis-tério da Integração Regional (Programa de Desenvolvimento da Faixa de Fronteira, 2005).

Fonte: Elaboração própria com base nas informações do Relatório Consolidado da Pesqui-sa Saúde nas Fronteiras: estudo do acesso aos serviços de saúde nas cidades de fronteiracom países do MERCOSUL, NUPES/DAPS/ENSP/FIOCRUZ/Pesquisa Saúde na Fronteira (FIOCRUZ 2007).

Da rede de serviços públicos de

saúde na linha de fronteira do MER-

COSUL constam 70 estabelecimentos

hospitalares, dos quais apenas nove

são de natureza pública e os demais

são contratados (FIOCRUZ, 2007).

Quase metade dos hospitais (49%)

localiza-se na fronteira com o Pa-

raguai, concentrados junto ao Pa-

raná (ver Tabela 2). Na fronteira do

MERCOSUL, a oferta de leitos na rede

pública é de 2,9 leitos por mil ha-

bitantes, entretanto, esta varia de

2,3 no segmento de Mato Grosso do

Sul com o Paraguai até 3,5/1.000

habitantes no trecho Paraná com a

Argentina. A estratégia de saúde da

família está implantada em mais da

metade dos municípios fronteiriços

com coberturas entre 81 a 100% da

população.

Os municípios fronteiriços são,

portanto, dependentes, para a ga-

rantia da integralidade da atenção,

de serviços especializados e de re-

ferência localizados em outros mu-

nicípios.

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Municípios brasi leiros fronteir iços e Mercosul: característ icas e iniciativas de cooperação em saúde

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 248-257, set./dez. 2005 253

TABELA 2 – Características da rede pública de serviços de saúde nos

municípios brasileiros fronteiriços com Argentina, Paraguai e Uruguai, 2005

Fonte: Elaboração própria com base nas informações do Relatório Consolidado daPesquisa Saúde nas Fronteiras: estudo do acesso aos serviços de saúde nas cidades defronteira com países do MERCOSUL, NUPES/DAPS/ENSP/FIOCRUZ/Pesquisa Saúde na Fronteira (FIO-CRUZ 2007).

ESTUDOS E EXPERIÊNCIASDE COOPERAÇÃO EM SAÚDE NAS

FRONTEIRAS DO MERCOSUL

A análise da rede de serviços de

saúde na tríplice fronteira – Puerto

Iguazú/Argentina, Foz de Iguaçu/

Brasil e Ciudad del Este/Paraguai –

traça detalhado perfil epidemiológi-

co, populacional, de recursos (hu-

manos, infra-estrutura, equipamen-

tos, financeiros), modelos estrutu-

ral e funcional da rede de serviços

de saúde (OPAS/OMS, 2002). Os indi-

cadores de saúde refletem iniqüida-

des socioeconômicas, semelhanças

no perfil epidemiológico, diversida-

des no perfil da rede, nos recursos

disponíveis e no modelo de atenção

e déficits na troca de informações.

A maior parte dos atendimentos de-

rivados a outro país é espontânea e

não formalizada. As propostas apon-

tam para estratégias locais e regio-

nais de cooperação e articulação

entre redes assistenciais, capacita-

ção e intercâmbio de informações

em conformidade com as políticas

e os sistemas de saúde de cada país.

Destaca-se a importância de um

marco político para ações regionais

e locais com prioridades sanitári-

as, coberturas programáticas e me-

canismos de financiamento conside-

rando a situação de fronteira (idem).

Na paisagem da fronteira, inici-

ativas de cooperação em saúde en-

tre governos mostram-se como ob-

servatórios de repercussões da in-

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254 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 248-257, set./dez. 2005

tegração. Uma destas iniciativas é

o Grupo de Trabalho para Integra-

ção das Ações de Saúde na Área de

Influência da Itaipu –GT Itaipu Saú-

de –, criado em 2003, pela Empre-

sa Pública Itaipu Binacional é inte-

grado por representantes dos gover-

nos locais, regionais e nacionais da

saúde do Brasil e do Paraguai e tem

caráter consultivo. Com atuação na

área de influência do Lago de Itai-

pu, articula ações de saúde entre

28 municípios brasileiros e 31 pa-

raguaios, que totalizam cerca de um

milhão e meio de habitantes. O ob-

jetivo do GT Itaipu Saúde é melho-

rar, com apoio da Empresa, a qua-

lidade das ações de saúde na fron-

teira mediante planejamento e exe-

cução de atividades conjuntas prio-

ritárias das políticas nacionais de

saúde, com atenção para especifi-

cidades regionais. Diagnóstico rea-

lizado pelo GT identificou os princi-

pais problemas na fronteira: infor-

mação, atenção primária e de mé-

dia complexidade, cultura partici-

pativa, articulação interinstitucio-

nal e recursos humanos. Elaborou-

se um plano de ação a ser empreen-

dido cooperativa e conjuntamente,

abordando sistemas e serviços, vi-

gilância, informação, educação per-

manente e saúde indígena.

Outra iniciativa de cooperação é

o Comitê Binacional de Saúde

Sant’Ana do Livramento e Rivera,

cidades-gêmeas do segmento Rio

Grande do Sul e Uruguai que so-

mam cerca de 200 mil habitantes

(NAVARRETE, 2006). O Comitê de Saú-

de foi conformado a partir do Pri-

meiro Encontro Binacional de Fron-

teiras Brasil-Uruguai realizado em

2005 e organizado pelo Conselho de

Saúde de Sant’Ana do Livramento.

O debate entre as duas localidades

sobre questões de saúde concen-

trou-se em temas de atenção à saú-

de, vigilância, direitos sexuais e re-

produtivos. O Comitê atua como

organismo de controle social e de

câmbios e fluxos, impõe na saúde

a articulação de estratégias para a

efetivação de programas e políticas

públicas nacionais. São espaços que

vão se afirmando frente ao desafio

comum de implantar prioridades

nacionais no território de fronteiras.

Tais iniciativas têm promovido par-

ticipação e debate com atores locais

sobre o processo de integração re-

gional e as problemáticas da saúde

na fronteira.

CONSIDERAÇÕESFINAIS

As repercussões da integração

econômica regional nas políticas e

sistemas de saúde de cidades fron-

teiriças do MERCOSUL ainda estão in-

suficientemente descritas, para im-

plicar atores na busca de soluções

objetivas nos debates regionais. Fal-

ta detalhar de cada lado da frontei-

ra implicações organizacionais e fi-

nanceiras, demandas e atenção pres-

tada, instrumentos para a garantia

do direito à saúde na rede assisten-

cial para não residentes, e tratar da

participação dos governos locais

nas relações bi e multilaterais. Es-

tes fatores combinados têm corres-

pondência na compreensão do pro-

blema e na formulação de alterna-

tivas, as quais podem tender para

aspectos financeiros ou distanciar

pautas regionais do cotidiano da

fronteira.

fomento de atividades conjuntas nas

políticas públicas em ambas as ci-

dades, integrado por representantes

de diferentes segmentos institucio-

nais e da sociedade civil organiza-

da.

Ambas as iniciativas configuram

espaços de debate e planejamento

de atividades reconhecendo as di-

versidades entre os sistemas sani-

tários de saúde e a integração regi-

onal que, ao incrementar os inter-

FALTA DETALHAR DE CADA LADO DA FRONTEIRA

IMPLICAÇÕES ORGANIZACIONAIS E FINANCEIRAS,DEMANDAS E ATENÇÃO PRESTADA,

INSTRUMENTOS PARA A GARANTIA DO DIREITO

À SAÚDE NA REDE ASSISTENCIAL PARA NÃO

RESIDENTES ...

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Municípios brasi leiros fronteir iços e Mercosul: característ icas e iniciativas de cooperação em saúde

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 248-257, set./dez. 2005 255

As garantias de saúde são im-

portantes em processos de integra-

ção econômica, como demonstra a

União Européia. No MERCOSUL, a in-

clusão de temas sociais no debate

regional vem se consolidando. Fren-

te ao perfil dos municípios frontei-

riços brasileiros e à luz do estudo e

iniciativas de cooperação fronteiri-

ça em saúde aqui apresentados é

possível afirmar que no MERCOSUL é

fundamental permear o debate po-

lítico da integração com as reper-

cussões nos sistemas e serviços de

saúde, de modo que avanços daque-

la não impliquem em acentuar de-

sigualdades na saúde. As iniciati-

vas do GT Itaipu Saúde e do Comitê

de Saúde de Sant’Ana do Livramen-

to e Rivera revelam que temas coti-

dianos de comunidades e de servi-

ços de saúde fronteiriços devem se

incorporar à agenda e às estratégi-

as local, regional e multilateral da

integração.

As características gerais apre-

sentadas e da rede dos municípios

brasileiros fronteiriços do MERCOSUL,

ainda que não exaustivas, ilustram

as múltiplas faces da fronteira que

compõem segmentos não uniformes.

Na perspectiva interna do Brasil, os

segmentos fronteiriços são diferen-

ciados entre os estados federados,

exibindo contrastes dentro de um

mesmo estado, como é o caso do

Rio Grande do Sul e do Paraná. A

oferta de serviços e as coberturas

apresentadas exibem perfil desigual

e heterogêneo, em parte influencia-

do por aspectos estruturais, priori-

dades e critérios de distribuição de

recursos.

Embora seja prematuro traçar

um perfil definitivo de repercussões

da integração econômica regional

sobre as políticas e serviços de saú-

de de municípios fronteiriços e se-

jam necessários estudos sobre mo-

delo de atenção, sistemática de or-

ganização e de acesso nas políticas

de saúde de cada Estado-parte,

Projetar avanços do MERCOSUL a

partir da perspectiva e experiências

de cidades fronteiriças evidencia que

a convivência com a diversidade, ao

lado da construção da integração,

abre caminho para iniciativas coo-

perativas locais. As duas iniciati-

vas aqui apresentadas oferecem ele-

mentos para a formulação de estra-

tégias para fronteiras no MERCOSUL,

entre os quais: monitoramento de

condições de saúde, intercâmbio de

informações, aproximação entre

práticas sanitárias, oferta de capa-

citação conjunta, criação de condi-

ções de apoio mútuo. As experiên-

cias indicam a importância de for-

talecimento de mecanismos jurídi-

cos internacionais para a atuação

articulada e cooperativa em saúde

na fronteira.

As iniciativas fronteiriças de-

monstram que acordos bilaterais em

saúde podem ser considerados eta-

pas preparatórias para os entendi-

mentos multilaterais e que dispor

de recursos financeiros e estratégi-

cos para o planejamento conjunto

na fronteira incentiva a cooperação

e solidariedade. Além de fortalecer

os entes locais na gestão dos siste-

mas de saúde, apóia programas e

contrapõe mecanismos informais.

Os valores de universalidade, inte-

gralidade, equidade, e participação

social podem ser fortalecidos com

um modelo de integração econômi-

sabe-se que estes condicionam pa-

drões da busca por serviços na ci-

dade vizinha de fronteira. Cidades

fronteiriças têm concretizado a ar-

ticulação local, ainda com autono-

mias diferenciadas e graus varia-

dos de dependência das instâncias

nacionais. A descentralização do

sistema de governo brasileiro leva

os municípios a acumularem res-

ponsabilidades e autonomias signi-

ficativas na gestão da saúde.

AS GARANTIAS DE SAÚDE SÃO IMPORTANTES

EM PROCESSOS DE INTEGRAÇÃO ECONÔMICA,COMO DEMONSTRA A UNIÃO EUROPÉIA

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256 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 248-257, set./dez. 2005

ca regional que se some à saúde na

busca de reduzir desigualdades, com

participação social.

AGRADECIMENTOSE COLABORAÇÃO

L. Guimarães, bolsista do Conselho

Nacional de Desenvolvimento Cien-

tífico e Tecnológico (CNPq) e L. Gio-

vanella compartilham a autoria do

artigo na concepção, estrutura, bus-

ca de fontes de referência e análise

para a construção do texto, e na

aprovação final para a publicação.

L. Guimarães, a quem agadecemos,

preparou a primeira versão do tex-

to que foi revisada e elaborada con-

juntamente pelas duas autoras em

seguida.

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Municípios brasi leiros fronteir iços e Mercosul: característ icas e iniciativas de cooperação em saúde

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MENDES, Áquilas Nogueira & MARQUES, Rosa Maria

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ARTIGOS ORIGINAIS / ORIGINAL ARTICLES

O impacto da política econômica do governo Lula na SeguridadeSocial e no SUSThe impact of the Lula government economic policy on Social Security and theUnified Health System

Áquilas Nogueira Mendes1

Rosa Maria Marques2

Recebido: Dez./2006

Aprovado: Mar./2007

1 Professor Doutor do Departamento deEconomia da PUCSP e da Faculdade deEconomia da FAAP/SP, vice-presidente daAssociação Brasileira de Economia da Saú-de e coordenador da Coordenadoria deGestão de Políticas Públicas do Centro deEstudos e Pesquisa de Administração Mu-nicipal – Cepam/SP.E-mail: [email protected]

2 Professora Titular do Departamento deEconomia e do Programa de Estudos Pós-graduados em Economia Política da PUCSPDepartamento de Economia – PUC-SPE-mail: [email protected]

RESUMO

O artigo discute a relação entre a política econômica do governo Lula

(especialmente a adoção do regime de metas de inflação e a busca de ele-

vados superávits primários) e o financiamento da Seguridade Social e do

Sistema Único de Saúde - SUS. De forma específica, evidencia que o resul-

tante dessa política - baixo crescimento, manutenção de elevadas taxas de

juros, precarização do mercado de trabalho, redução do gasto público –

impede o crescimento das receitas e recursos como seria necessário, o que

compromete a plena aplicação dos princípios do SUS. Apesar disso, alguns

avanços são apontados, como o crescimento da cobertura do Programa de

Saúde da Família.

PALAVRAS-CHAVE: política econômica; seguridade social; SUS

ABSTRACT

The article discusses the relationship between the economic policy of

the Lula government (especially the adoption of inflation targets and the

attempt to achieve high primary surplus) and the funding of the Social

Security system and Unified Health System (SUS). It demonstrates in a

specific manner that the results of this policy – low economic growth,

maintenance of high interest rates, instability of the job market,

reduction in public spending — prevents the increase in revenue and

resources as would be necessary, thus compromising the full application

of the SUS principles. Despite this, some advances are identified, such as

the increased coverage of the Family Health Program.

KEYWORDS: Economic Policy; Social Security; Unified Health System

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O impacto da política econômica do governo Lula na Seguridade Social e no SUS

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 258-267, set./dez. 2005 259

APRESENTAÇÃO

Esse artigo tem como objetivo

discutir de que forma a política

macroeconômica do primeiro gover-

no Lula condicionou as condições

de financiamento de dois importan-

tes ramos da Seguridade Social: a

Previdência e a Saúde. Em geral, o

acompanhamento das tensões entre

a área econômica e os ministérios

responsáveis pela aplicação das

políticas desses ramos, evidentes na

época em que a Lei de Diretrizes

Orçamentária é elaborada, restrin-

ge-se em destacar o tamanho do

déficit da Previdência (questionado

por muitos) e a demonstrar como,

mais uma vez, a equipe econômica

procura introduzir, como se fossem

da saúde pública, gastos que não

têm natureza nenhuma com as

ações e serviços contemplados pelo

SUS.

Compreendendo que é preciso ir

além dessas constatações e denún-

cias - mas sem desmerecê-las, pois

elas foram fundamentais na rever-

são das tentativas que ocorreram

durante o governo Lula, como se

verá adiante – este artigo procura,

num primeiro momento, esclarecer

quais são os pilares da política eco-

nômica do governo, e descrever,

mesmo que brevemente, quais fo-

ram os resultados dessa política.

Numa segunda parte, destaca o

impacto desses resultados sobre as

receitas da Previdência Social e dis-

cute como os fundamentos da polí-

tica econômica se concretizam em

proposições que visam a alterar o

quadro legal de vinculação de re-

ceitas para a Seguridade Social e o

amplo consenso construído em re-

lação ao financiamento do SUS.

É da compreensão de que a po-

lítica econômica subordina o soci-

al no país que se pode, de fato, uni-

ficar a luta pela retomada dos prin-

cípios do SUS com aquela de um

mo de divulgação na grande im-

prensa, que trataram de sua políti-

ca econômica. Afinal, entre outros

motivos, tratava-se de acompanhar

a experiência de quem havia sido

eleito exatamente para mudá-la,

promovendo o crescimento econô-

mico, o emprego, além da redistri-

buição da renda e da riqueza. Con-

tudo, desde os primeiros momentos,

ficou claro que, em matéria de po-

lítica econômica, Lula, no lugar de

implementar uma transição para

um novo modelo, defendida duran-

te a campanha eleitoral, não só ha-

via mantido a política macroeconô-

mica do segundo mandato de Fer-

nando Henrique Cardoso – FHC,

como a havia aprofundado, o que

fica evidente com a manutenção do

compromisso de promover superá-

vit fiscal primário, o que é descrito

mais a seguir.

Em linhas gerais, a política ma-

croeconômica foi fundamentada no

regime de metas de inflação; na ele-

vação do superávit primário; e na

manutenção do regime de câmbio

flutuante. No ‘regime de metas de

inflação’, de origem neoclássica, o

nível de inflação constitui o princi-

pal objetivo a ser atingido, de for-

ma que todas as demais variáveis

econômicas a ela devem se subor-

dinar. Assim, sempre que os direto-

res do Banco Central - Bacen - con-

sideravam que havia uma tendên-

cia de a inflação superar a meta

crescimento sustentável, com distri-

buição de renda e riqueza.

A POLÍTICA ECONÔMICA

DO GOVERNO LULA1

Durante os quatro anos do pri-

meiro governo Lula, não foram pou-

cos os artigos acadêmicos, e mes-

Lula, no lugar de implementar uma transição para um novo

modelo (...) não só havia mantidoa política macroeconômica dosegundo mandato de (...) FHC,como a havia aprofundado ...

1 Esta parte e a próxima se beneficiaram largamente de Sanchez et al (2006) e Marques e Nakatani (2007).

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MENDES, Áquilas Nogueira & MARQUES, Rosa Maria

260 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 258-267, set./dez. 2005

fixada, elevava-se a taxa básica de

juros (taxa Selic, determinada pelo

Comitê de Política Monetária do

Bacen), para com isso deprimir a

demanda agregada. É isso que ex-

plica os ciclos de aumento e de re-

dução da taxa de juros vivenciados

nos últimos quatro anos. No início

do governo, frente à tendência al-

tista dos preços, a taxa de juros foi

elevada para 25,5% em janeiro e

26,5% em fevereiro de 2003. Já par-

tir de junho, estando a inflação sob

controle, inicia-se uma redução gra-

dual desta taxa, até que essa atin-

gisse 16% em abril de 2004. Mas, a

partir de setembro desse ano, no-

vos aumentos da taxa básica de ju-

ros começariam, até que essa ba-

tesse 19,75% em maio, ficando as-

sim até setembro, quando tem iní-

cio uma nova rodada de reduções,

de forma que, em outubro de 2006,

a taxa básica de juros chegou a

13,75%. Comparada à de fevereiro

de 2003, essa taxa estava 12,75

pontos percentuais menor do que

aquela. Mesmo assim, continuava

extremamente alta, para qualquer

padrão internacional que se adote.

Em relação ao ‘superávit primá-

rio’, medida de esforço fiscal que

visa o pagamento do serviço da dí-

vida, adotado no governo FHC no

momento da negociação com o Fun-

do Monetário Internacional – FMI,

esse foi aumentado para 4,25% do

Produto Interno Bruto - PIB, por li-

vre iniciativa do governo Lula, no

ano de 20032. Durante o governo

anterior, esse esforço girou em tor-

no de 3,5% do PIB e o acordado com

o FMI havia sido de 3,75%. Para os

anos seguintes, embora a meta não

tenha sido formalmente ampliada,

o superávit primário ficou em cer-

ca de cerca de 4,6% do PIB em 2004,

e de 4,8% em 2005.

Apesar desse esforço, a dívida

mobiliária federal (títulos públicos

para reduzir a dívida externa pú-

blica, como para diminuir a parce-

la da dívida interna corrigida pela

variação cambial. Além disso, os

resultados derivados da redução do

gasto público foram em parte anu-

lados pela elevação do peso da con-

ta juros, provocada pelo aumento

e/ou manutenção de alta taxa bási-

ca de juros. Dessa forma, os juros

nominais devido pelo setor públi-

co, que eram de 8,5% do PIB em

2002, e já eram bem elevados, au-

mentaram para 9,3% do PIB em 2003,

mas fecharam 2005 com 8,12%. A

diferença entre esses percentuais e

os do superávit primário resultou

em ‘rolagem’ de parte dos juros de-

vidos.

Em outras palavras, ao atrelar

os juros básicos à meta inflacioná-

ria, o governo impediu que sua po-

lítica fiscal restritiva fosse plena-

mente eficaz. A combinação do es-

forço fiscal com as elevadas taxas

de juros resultou em baixo cresci-

mento econômico, aumento das ren-

das dos detentores de riqueza finan-

ceira e contínua pressão sobre os

gastos sociais, como se verá adian-

te.

A manutenção do ‘regime de

câmbio flutuante’, por sua vez, re-

sultou em extrema valorização do

real, sem que as compras de dólar

realizadas pelo Bacen tenham con-

seguido alterar essa situação. As-

fora do Bacen) continuou a aumen-

tar: de R$ 623 bilhões em 2002, fe-

chou 2005 com R$ 980 bilhões. Já a

dívida líquida do setor público, de

55,5 % do PIB em dezembro de 2002,

caiu para 51,5% em dezembro de

2005 e, em agosto de 2006, estava

em 50,3% do PIB. Essa queda de-

veu-se especialmente à revaloriza-

ção do real, que contribuiu tanto

A combinação do esforço fiscal comas elevadas taxas de juros resultouem baixo crescimento econômico,aumento das rendas dos detentores

de riqueza financeira e contínuapressão sobre os gastos sociais...

2 Esse aumento foi anunciado em 28 de fevereiro, mediante a Carta de Intenção enviada ao FMI. Para sua efetivação, o governo Lulapromoveu cortes no orçamento da União de R$ 14,1 bilhões, o que reduziu a disponibilidade dos ministérios da área social em 12,44%.

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O impacto da política econômica do governo Lula na Seguridade Social e no SUS

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 258-267, set./dez. 2005 261

sim, à parte os primeiros meses do

governo Lula, o câmbio registrou

quedas contínuas.

OS PRINCIPAISRESULTADOS ECONÔMICOS

Durante o primeiro governo

Lula, a evolução do PIB seguiu sua

trajetória anterior, indicando a difi-

culdade da economia brasileira em

crescer de forma continuada no qua-

dro dos marcos da política macroe-

conômica implementada: expansão

de apenas 0,5% em 2003, de 4,9%

em 2004 e de 2,3% em 2005. Em

dezembro de 2006, o Instituto de

Pesquisa Econômica Aplicada —

IPEA — estimava que o crescimen-

to do PIB em 2006 seria de 2,8%.

Nesses anos, o crescimento, mes-

mo que pequeno do PIB, foi princi-

palmente fundado na expansão das

exportações que, apesar da valori-

zação do real, aumentaram signifi-

cativamente durante todo o primei-

ro governo Lula. Em 2005, por

exemplo, o setor agropecuário ex-

pandiu-se somente 0,8%, a indústria

,2,5% e os serviços, 2,0%. Do lado

da despesa, o consumo das famíli-

as cresceu 3,1%, a formação bruta

do capital fixo, 1,6%, as importa-

ções, 9,5% e o consumo do gover-

no, 1,6%. Já a expansão das expor-

tações foi de 11,6%. Dessa maneira,

aumentou a dependência do país

com relação à performance do res-

to do mundo, principalmente da

China demandante de commodities.

Além disso, diversos economistas

passaram a dizer que o aumento da

participação relativa de produtos

com baixo valor adicionado na pau-

ta de exportação configura uma cer-

ta ‘reprimarização’ dessa mesma

pauta3. Os produtos básicos que

representavam, em 2000, 22,8% do

da participação dos produtos bási-

cos no total das exportações, o fato

de que parte dos manufaturados

apresenta baixa ou média intensi-

dade tecnológica, o que dá um sen-

tido mais amplo à utilização do ter-

mo ‘reprimarização’.

O mau desempenho econômico

ocorrido no primeiro ano do gover-

no Lula provocou redução de 12,6%

do rendimento médio habitual5 real

do trabalhador brasileiro em rela-

ção a 2002. Essa redução foi obser-

vada em todas as categorias de ocu-

pação, apesar de as mais organiza-

das terem firmado acordos de rea-

juste salarial favoráveis no segun-

do semestre, quando o nível de ati-

vidade se recuperou um pouco.

Nesse primeiro ano, ainda, a taxa

média de desemprego aberto das

cinco regiões metropolitanas, calcu-

lada pelo IBGE (IBGE, 2002), regis-

trou aumento (12,3%; quando era

11,7% em 2002). Em 2004, muito

embora a economia tenha crescido

4,9%, o rendimento médio real dos

ocupados recuou mais 0,7%, mas a

taxa média de desemprego no ano

caiu para 11,5%. Em 2005, o rendi-

mento médio habitual real apresen-

tou uma pequena recuperação, cres-

cendo 2% em relação ao ano anteri-

or. Esse desempenho, contudo, não

atingiu os trabalhadores com car-

total do valor das exportações, ti-

veram sua participação elevada

para 29,3% em 2005. Já a contribui-

ção dos produtos semimanufatura-

dos e dos manufaturados se redu-

ziu, passando de 15,4% para 13,5%,

e de 59% para 55,1%, no mesmo pe-

ríodo, respectivamente4. Soma-se a

esse movimento, de intensificação

Durante o primeiro governo Lula, aevolução do PIB seguiu sua

trajetória anterior, indicando adificuldade da economia brasileiraem crescer de forma continuada...

3 Ver Belluzzo e Carneiro, 2003.4 O total não atinge os 100% devido às operações especiais.5 No cálculo do rendimento habitual não são consideradas as horas extras, os atrasados, as férias, etc.

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262 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 258-267, set./dez. 2005

teira assinada, os quais sofreram

redução de 0,8% em seu rendimen-

to médio habitual real (em 2004 ele

havia aumentado 0,3% e, em 2003,

havia se reduzido em 4,9%). Nesse

ano, a taxa média de desemprego

continuou a cair, registrando 9,8%.

Em relação ao rendimento, vale

salientar ainda que, além do rendi-

mento médio real habitual dos ocu-

pados ter registrado redução duran-

te o primeiro governo Lula, apro-

fundou-se o processo de concentra-

ção dos ocupados nas faixas de ren-

da mais baixas. Considerando-se o

rendimento principal dos ocupados

com 10 anos ou mais, 89,9% rece-

biam até 5 salários mínimos em

2004. Em 2002, esse percentual era

de 87,6% (IBGE, 2002).

Embora o salário mínimo não

seja reflexo direto da política ma-

croeconômica adotada, e sim resul-

tado de uma decisão política de

governo, o fato de o piso dos bene-

fícios previdenciários e o Benefício

de Prestação Continuada serem de-

finidos por ele, justifica seu desta-

que nesta parte do artigo. Vale lem-

brar que apesar de o governo não

ter cumprido sua promessa de cam-

panha de dobrar seu valor real, pro-

moveu um aumento de 40% em seu

poder aquisitivo, quando se com-

para a situação de dezembro de

2002 com a de setembro de 2006.

Contudo, vale mencionar que a re-

cuperação de seu valor teve início

durante o governo FHC. Dessa for-

ma, se compararmos o referido va-

lor ao de 1995, constatamos que

houve um aumento de 97% em ter-

mos reais. Nos primeiros dois anos

do governo Lula, o processo de re-

cuperação foi desacelerado, reto-

mando fôlego em 2005 e 2006.

ou mais no trabalho principal, não

contribuiam para qualquer institu-

to de previdência.

O IMPACTO DA POLÍTICAECONÔMICA E DE SEUS RESULTADOSNA SEGURIDADE SOCIAL E NO SUS.

O primeiro aspecto destacável,

entre a relação da política macroe-

conômica do governo Lula e a ‘Se-

guridade Social’, foi a extensão da

vigência da Desvinculação das Re-

ceitas da União – DRU6 para 2007.

No momento da criação desse dis-

positivo, em 1994, durante o primei-

ro governo FHC, houve franca opo-

sição dos setores comprometidos

com a Seguridade Social, e o Parti-

do dos Trabalhadores fechou ques-

tão contra sua aprovação no Con-

gresso Nacional. Por isso, os seto-

res que apoiaram a eleição de Lula

em 2002 esperavam que o novo

governo desse fim a esse dispositi-

vo. Contudo, não foi isso que acon-

teceu: no bojo da reforma tributá-

ria encaminhada pelo governo e

aprovada em 2003, ficou definida

sua vigência até 2007.

No ano de 2004, o volume de

recursos assim desviados da Segu-

ridade Social totalizou R$ 24,9 bi-

lhões, o que correspondeu a 77,5%

do gasto realizado pelo governo fe-

Um outro elemento importante

que deve ser registrado, e que tem

reflexo sobre a Seguridade Social,

diz respeito ao grau de precariza-

ção das relações de trabalho. Em

2005, segundo a Pesquisa Nacional

de Amostra por Domicílios (PNAD),

realizada pelo IBGE( IBGE, 2005),

52,8% dos ocupados, com 10 anos

O primeiro aspecto destacável,entre a relação da política

macroeconômica do governo Lula ea ‘Seguridade Social’, foi a

extensão da vigência daDesvinculação das Receitas da

União – DRU para 2007

6 Permite que 20% das receitas de impostos e contribuições sejam livremente alocados pelo governo federal, inclusive para pagamento dosjuros da dívida. Na época de sua criação, em 1994, chamava-se Fundo Social de Emergência; em 1997 foi renomeado como Fundo deEstabilização Fiscal e, em 2000, finalmente seu nome passa a expressar seu verdadeiro conteúdo – Desvinculação das Receitas da União.

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O impacto da política econômica do governo Lula na Seguridade Social e no SUS

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 258-267, set./dez. 2005 263

deral em saúde nesse ano. Em 2005,

foram R$ 32,129 bilhões, isto é, 93%

do gasto em ações e serviços de

saúde, efetuados pelo Ministério da

Saúde (ANFIP, 2005). Desnecessário

dizer que os recursos desvincula-

dos mediante a DRU alimentam a

formação do superávit primário,

descrito na parte 1 deste artigo. Para

o segundo mandato do governo

Lula, as expectativas são ainda

mais desanimadoras, pois integran-

tes de seu governo, vinculados à

esfera econômica, falam em aumen-

tar o percentual da desvinculação

para cerca de 40%.

Em relação à ‘Previdência Soci-

al’ do Regime Geral - RGPS, o im-

pacto da economia se fez sentir prin-

cipalmente sobre a receita das con-

tribuições. Essas, resultantes da

aplicação de alíquotas sobre a mas-

sa salarial dos ocupados junto ao

mercado de trabalho formal, senti-

ram o peso da informalidade e o

elevado desemprego, principalmen-

te nos anos em que a economia apre-

sentou os piores resultados, estan-

do longe de evoluir de acordo com

as taxas de crescimento de décadas

anteriores. Mesmo assim, o total da

arrecadação líquida, depois de ter

decrescido em 2003, com relação ao

ano anterior, aumentou 9,3% em

2004 e 9,4% em 20057. Segundo o

Ministério da Previdência Social, a

expansão observada nesse último

ano deveu-se ao comportamento

favorável do mercado de trabalho

formal, à ação da Secretaria da Re-

ceita Previdenciária principalmente

na recuperação de créditos junto a

devedores, e à elevação do teto da

contribuição.

Ainda em relação à Previdência,

o governo promoveu, em seu pri-

meiro ano de mandato, uma refor-

ma no regime pertinente aos funci-

onários públicos. Essa reforma re-

tor privado, segurados pelo RGPS.

Essa contribuição, que fere o prin-

cípio previdenciário de reciprocida-

de, somente incide a partir de um

determinado valor de aposentado-

ria. À introdução de um valor má-

ximo para a aposentadoria dos fun-

cionários públicos, foi associada a

criação de fundos de pensão, os

quais, assim como para os traba-

lhadores do setor privado, podem

ser organizados e administrados por

sindicatos e pelas centrais sindicais

(MARQUES e MENDES, 2004). Até o

momento, contudo, eles não foram

regulamentados, pois a legislação

necessária não foi ainda objeto de

discussão e aprovação. Vale ressal-

tar que essas medidas foram de en-

contro com a tradição e o posicio-

namento dos representantes do PT

em momentos anteriores, quando da

reforma da Previdência encaminha-

da por FHC.

Evidentemente, como o cresci-

mento da arrecadação líquida das

contribuições não foi suficiente para

dar conta da defasagem existente

entre as receitas e as despesas pre-

videnciárias, membros do governo,

logo depois da reeleição de Lula,

têm firmado um diálogo intenso

com a mídia sobre um possível en-

caminhamento de novo projeto de

reforma da Previdência, desta vez

alterando as condições de acesso à

tirou direitos dos servidores, ao in-

troduzir um teto para o valor do

benefício (anteriormente o valor da

aposentadoria correspondia ao va-

lor do provento, não sofrendo redu-

ção). Além disso, o governo implan-

tou uma contribuição sobre o valor

da aposentadoria para os servido-

res e para os trabalhadores do se-

...o crescimento da arrecadaçãolíquida das contribuições não foi

suficiente para dar conta dadefasagem existente entre as

receitas e as despesasprevidenciárias ...

aA arrecadação líquida foi de R$ 92,3 bilhões em 2003; R$ 100,9 bilhões em 2004 e R$ 110,4 bilhões em 2005, a valores de dezembro2005. Diponível em: www.mpas.gov.br/pg_secundarias/previdencia_social_10.asp. acesso em: dezembro. 2006

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264 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 258-267, set./dez. 2005

aposentadoria e o valor do benefí-

cio tanto para os trabalhadores do

setor privado da economia como

para os funcionários públicos.

Em relação ‘à saúde pública’, os

principais impactos da política eco-

nômica em seu financiamento ocor-

reram no momento da elaboração

da proposta orçamentária e não no

encaminhamento da regulamenta-

ção da Emenda Constitucional nº

29(BRASIL, 2000. A importância as-

sumida pela proposta orçamentária

deveu-se ao fato de a meta relativa

ao superávit primário, além de se

traduzir em contingenciamentos, re-

sultar em diferentes tentativas de re-

dução dos gastos, inclusive os so-

ciais. No caso da saúde pública, em

todos os anos do primeiro governo

Lula, a equipe econômica tentou

introduzir itens de despesa que não

são considerados gastos em saúde

no orçamento do Ministério da Saú-

de. Entre esses itens figuraram, en-

tre outros, o pagamento de juros e

a despesa com a aposentadoria dos

ex-funcionários desse ministério.

Embora essas tentativas estivessem

sendo apoiadas por toda a área eco-

nômica do governo, não foram a

termo, pois as entidades da área da

saúde — o Fórum da Reforma Sa-

nitária (Abrasco, Cebes, Abres, Rede

Unida e Ampasa) —, o Conselho

Nacional de Saúde e a Frente Parla-

mentar da Saúde rapidamente se

mobilizaram e fizeram o governo

recuar.

Tentativas de redução do orça-

mento do Ministério da Saúde

A Lei de Diretrizes Orçamentári-

as - LDO - para o orçamento de 2004

previa que os Encargos Previdenci-

ários da União - EPU, o serviço da

dívida e os recursos alocados no

Fundo de Combate e Erradicação da

Pobreza fossem contabilizados

como gastos do Sistema Único de

Saúde do Ministério da Saúde. Con-

tudo, a forte reação contrária do

Conselho Nacional de Saúde e da

Apesar de diversos e intensos

debates terem ocorrido entre entida-

des vinculadas ao SUS e o Ministé-

rio do Planejamento, nada foi mo-

dificado sobre essa questão. Somen-

te após o parecer do Ministério Pú-

blico Federal, contrariando a deci-

são presidencial e solicitando ao

presidente Lula a retirada do veto

ao dispositivo que esclarecia que os

recursos do Fundo de Combate à

Erradicação da Pobreza não poderi-

am ser contabilizados como gastos

em saúde, sob pena do orçamento

aprovado vir a ser considerado in-

constitucional, o governo recuou.

Foi assim que a Lei nº 10.777, de

25 de novembro de 2003, contem-

pla, no parágrafo segundo do arti-

go 59, que o EPU, o serviço da dívi-

da e as despesas do MS com o Fun-

do de Combate e Erradicação da

Pobreza não fossem considerados

como ações e serviços públicos de

saúde.

Da mesma forma, o projeto de

Lei de Diretrizes Orçamentárias

(LDO) para o orçamento de 2006,

encaminhado pelo governo federal

à Câmara, previa que as despesas

com assistência médico-hospitalar

dos militares e seus dependentes

(sistema fechado) fossem conside-

radas no cálculo de ações e servi-

ços de saúde. Caso fossem conside-

radas, os recursos destinados para

o Ministério da Saúde seriam dimi-

nuídos em cerca de R$ 500 milhões.

Frente à declaração pública do MS,

Frente Parlamentar da Saúde deter-

minou que o Poder Executivo envi-

asse mensagem ao Congresso Naci-

onal estabelecendo que, para efeito

das ações em saúde, seriam dedu-

zidos o EPU e o serviço da dívida.

Em relação ao Fundo da Pobreza a

mensagem era omissa.Essa omis-

são resultaria na redução de R$

3.571 milhões no orçamento SUS do

Ministério da Saúde.

... em todos os anos do primeirogoverno Lula, a equipe econômicatentou introduzir itens de despesaque não são considerados gastos

em saúde no orçamento doMinistério da Saúde

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O impacto da política econômica do governo Lula na Seguridade Social e no SUS

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 258-267, set./dez. 2005 265

repudiando essa interpretação, e

frente à mobilização das entidades

da saúde, o governo federal foi obri-

gado a recuar, reformulando sua

proposta.

A vinculação da EC 29 é objeto

da atenção da área econômica.

Em fins de 2003, o governo Lula

encaminhou documento referente ao

novo acordo com o Fundo Monetá-

rio Internacional8, comunicando sua

intenção em preparar um estudo

sobre as implicações das vincula-

ções constitucionais das despesas

sociais — saúde e educação — so-

bre as receitas dos orçamentos da

União, dos estados ou dos municí-

pios. A justificativa apoiava-se na

idéia de que a flexibilização da alo-

cação dos recursos públicos pode-

ria assegurar uma trajetória de cres-

cimento ao País9. No âmbito do SUS,

a intenção do governo era tirar do

Ministério da Saúde a obrigação de

gastar, em relação ao ano anterior,

valor igual acrescido da variação

nominal do PIB; dos estados, 12%

de sua receita de impostos, compre-

endidas as transferências constitu-

cionais; e, dos municípios, 15%, tal

como define a EC 2910.

Quando Lula foi eleito pela pri-

meira vez, pensava-se que, final-

mente, não haveria obstáculos para

que finalmente saísse a regulamen-

tação da EC 29. Afinal, os temas tra-

tados por ela haviam sido objeto de

longa discussão entre representan-

tes dos conselhos municipais e es-

taduais, do Conselho Nacional de

Saúde, o Ministério da Saúde, os

Tribunais de Contas dos Estados e

absolutamente necessária para ga-

rantir o financiamento e o compro-

metimento das diferentes esferas de

governo na construção do SUS. É

por isso que, durante o primeiro ano

do governo Lula, a fim de finalizar

os encaminhamentos pró-regula-

mentação da EC 29, foram realiza-

dos, em Brasília, mais dois semi-

nários, promovidos pela Câmara

Técnica do Sistema de Informações

sobre Orçamentos Públicos em Saú-

de - SIOPS e pela Comissão para

Elaboração de Proposta de Lei Com-

plementar (PLC) do Ministério da

Saúde, onde foi intensa a discussão

das entidades presentes11.

Contudo, para surpresas de mui-

tos, a regulamentação da EC 29 não

se constituiu prioridade do gover-

no. Mesmo assim, em abril de 2003,

fruto da ação da Frente Parlamen-

tar da Saúde, passou a integrar a

pauta do Congresso, estando à es-

pera de sua votação.

A não prioridade da matéria ex-

pressa, na verdade, a tensão exis-

tente entre a área da saúde e a área

econômica do governo. A primeira,

compromissada com a trajetória

Municípios. O resultado dessas dis-

cussões era, portanto, expressão de

um grande consenso, visto como

Quando Lula foi eleito pelaprimeira vez, pensava-se que,

finalmente, não haveria obstáculospara que finalmente saísse a

regulamentação da EC 29

8 O documento referente ao novo acordo com o FMI é dirigido ao seu diretor executivo, Köhler (Ministério da Fazenda, 2003).9 Ministério da Fazenda, op. cit, p. 310 A Proposta de Emenda Constitucional 169, vinculando recursos para a saúde pública, foi elaborada pelos deputados Eduardo Jorge eWaldir Pires. A motivação foi o fato de o Ministério da Saúde, em 1993, não ter recebido os recursos previstos no orçamento da União, deorigem nas contribuições de empregados e empregados, o que levou à ocorrência do seu primeiro empréstimo junto ao Fundo de Amparoao Trabalhador - FAT (PEC 169). Depois disso, várias outras propostas de vinculação foram elaboradas e discutidas no CongressoNacional, mas somente em 2000 - foi aprovada a emenda constitucional (EC 29). De acordo com a EC 29, a União deveria alocar, parao primeiro ano, pelo menos 5% a mais do que foi empenhado no orçamento do período anterior, e, para os seguintes, o valor apurado noano anterior corrigido pela variação do PIB nominal.11 Conasems; Procuradoria Geral da República; Banco do Brasil; representante da Associação dos Membros dos Tribunais de Contas;Conselho Federal de Contabilidade; assessoria do Deputado Roberto Gouveia; asssessoria do Deputado Guilherme Menezes – PT/Bahia;IBGE/Depto. Contas Nacionais; técnicos do SIOPS; Secretaria Gestão Participativa/MS; STN; técnicos do Departamento de Economia daSaúde/MS; assessoria da bancada do PT na Câmara Federal.

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MENDES, Áquilas Nogueira & MARQUES, Rosa Maria

266 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 258-267, set./dez. 2005

histórica do SUS, e por isso, preo-

cupada em garantir seu financia-

mento e em definir as ações e servi-

ços de saúde pública; e a segunda,

restringida por uma política econô-

mica fundada em metas de inflação

e na geração de superávits primá-

rios. Nessa situação, a regulamen-

tação das vinculações previstas na

EC 29 é vista como um retrocesso,

pois impõe despesas mínimas e

comprometimentos mínimos de re-

ceitas, o que estaria contrariando o

esforço de geração de superávit. Ao

mesmo tempo, no entender da equi-

pe econômica, isso limitaria o po-

der discricionário do governo, o

qual não poderia alocar os recur-

sos de acordo com seus interesses

mais imediatos. Dessa forma, o

gasto mínimo definido e a vincula-

ção mínima de recursos estariam

respondendo a interesses que inde-

penderiam do governo de ocasião,

expressando compromissos de lon-

go prazo.

AVANÇOS RELATIVOS

DA SAÚDE PÚBLICA.

Apesar das restrições impostas

pelo marco macroeconômico, hou-

ve avanços na área da saúde públi-

ca durante o primeiro governo Lula.

Nos três primeiros anos dessa ges-

tão, a taxa de cobertura do Progra-

ma Saúde da Família, com relação

ao total da população brasileira,

aumentou significativamente: 35,7%

(2003); 39% (2004) e 43,04% em

2005. No último ano do governo

FHC, esse percentual era de 32,4%.

O grau de cobertura varia muito

entre as regiões e os municípios: em

2004, por exemplo, enquanto no

nordeste era de 54,85%, na região

sudeste atingia apenas 29%12.

Não se pode dizer, entretanto,

que esse programa tenha sido (e

seja) propriamente uma marca do

governo Lula, pois seu início data

de 1994, embora somente em 1998

tenha se consolidado como uma po-

lítica prioritária do Ministério da

Saúde. Poder-se-ia argumentar, con-

tudo, que o fato de o governo ter

dado continuidade a seu processo

de implantação é, em si, digno de

nota, indicando seu grau de com-

promisso com relação a um progra-

ma considerado prioritário por to-

das as instâncias participativas do

SUS.

Entre os programas iniciados

durante o primeiro governo Lula,

destacam-se o Brasil Sorridente e o

programa Farmácia Popular. O pri-

meiro, integrante da Política de Saú-

de Bucal, propiciou que a cobertu-

ra do atendimento da saúde bucal

aumentasse de 17,5%, em 2002,

para 33,7%, em 2005. Já o progra-

ma Farmácia Popular, consiste em

oferecer medicamentos essenciais a

baixo custo. Em 14 de dezembro de

2006, o Ministério da Saúde inau-

gurava a 243ª Farmácia Popular do

país. Dessa forma, segundo infor-

mação do site do MS, esse progra-

ma atingia “60 milhões de brasilei-

ros, em 193 municípios de 24 esta-

dos e do Distrito Federal”. Desde o

lançamento do programa, em junho

de 2004, já foram realizados mais

de 6,5 milhões de atendimentos e

fornecidos mais de 40 milhões de

produtos”. Essa iniciativa não está,

contudo, isenta de críticas. Há quem

considere que a cobrança pelo me-

dicamento fere o princípio da gra-

tuidade, presente no SUS.

12 Ver site do Ministério da Saúde, www.saude.gov.br. Acesso em: 10 de dezembro de 2006

Apesar das restrições impostas pelomarco macroeconômico, houve

avanços na área da saúde públicadurante o primeiro governo Lula

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O impacto da política econômica do governo Lula na Seguridade Social e no SUS

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 258-267, set./dez. 2005 267

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para a Seguridade Social, em

geral, e para o SUS, em particular,

a forte possibilidade de que a políti-

ca econômica do segundo governo

Lula tenha como base os mesmos

fundamentos da que foi desenvolvi-

da em seu primeiro mandato é mais

do que preocupante. Isso porque, do

ponto de vista das políticas susten-

tadas pelos diferentes ramos da Se-

guridade Social, especialmente para

a Previdência e para a Saúde, não

será o enfretamento das mesmas

restrições e problemas. No caso da

Previdência, a crescente defasagem

entre as receitas de contribuições e

as despesas com benefícios (muito

embora a Seguridade como um todo

apresente um superávit também

crescente, mas que é desconhecido

do grande público e esquecido pela

mídia, para dizer o mínimo) é fonte

de argumento para justificar a im-

plantação de uma reforma radical,

que resulte na redução dos gastos

futuros com benefícios.

Em relação à Seguridade como

um todo, a intenção de aumentar o

percentual das contribuições na com-

posição da DRU - mais do que sig-

nificar mais um passo no sentido

da destruição da idéia de um orça-

mento para a Seguridade - pode re-

sultar na sua inviabilidade e/ou na

perda de sentido material. Em rela-

ção ao SUS, a luta incessante dos

últimos anos pela defesa de níveis

mínimos de recursos que, a bem da

verdade, não começou com o go-

verno Lula13, pode converter-se em

crescente descompromisso dos di-

ferentes níveis de governo com a

saúde pública. Frente à não-regu-

lamentação da EC 29 e ao efeito de-

monstração dado pela União, difi-

cilmente o MS, o Conselho Nacio-

nal de Saúde, o Conasems e o Co-

nass terão força para fazer valer o

pacto que gerou a proposta da EC

29.

REFERÊNCIAS

ANFIP - Associação Nacional dos

Auditores Fiscais da Previdência

Social. Análise da Seguridade So-

cial em 2004 e 2005. Disponível:

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em: 12 de dez. 2006.

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BRASIL. Constituição, 1988. Emen-

da Constitucional 29, 13 de setem-

bro de 2000. Altera os arts. 34, 35,

156, 160, 167 e 198 da Constitui-

ção Federal e acrescenta artigo ao

Ato das Disposições Constitucionais

Transitórias, para assegurar os re-

cursos mínimos para o financiamen-

to das ações e serviços públicos de

saúde. DOU. 13 set. 2000

MARQUES, R. M., MENDES, A. O

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Previdenciária. São Paulo Perspec,

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MINISTÉRIO DA FAZENDA. Carta de

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/www.fazenda.gov.br. Acesso em: 30

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SÁNCHEZ, F. et al. - A política eco-

nômica da esquerda latino-ameri-

cana no governo: o caso do Brasil.

Projeto Madison 2, 2006. Mimeo.

13 Para detalhes dessa luta, ver Marques e Mendes, 2006.

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TEIXEIRA, Carmen Fontes & PAIM, Jairnilson Silva

268 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 268-283, set./dez. 2005

ARTIGOS ORIGINAIS / ORIGINAL ARTICLES

A política de saúde no governo Lula e a dialética do menos piorHealth Policy in the Lula government and the least worse dialectic

“Uma pessoa corresponde ao seu próprio tempo mais quando combatedo que quando colabora com as ‘formas de vida oficial’” (Badaloni,

1987:85).

Carmen Fontes Teixeira1

Jairnilson Silva Paim2

Recebido: Jun./2006

Aprovado: Jul./2007

1 Doutora em Saúde Pública. Professora

Adjunta do Instituto de Saúde Coletiva da

Universidade Federal da Bahia (ISC-

UFBA). E-mail: [email protected]

2 Professor Titular em Política de Saúde do

Instituto de Saúde Coletiva da UFBA. Pes-

quisador 1-A do CNPq. E-mail:

[email protected]

RESUMO

O objetivo do artigo é analisar a política de saúde do Governo Federalna conjuntura iniciada em 2003. A metodologia empregada incluiu pesquisadocumental de planos, programas, projetos e relatórios elaborados noMinistério da Saúde, bem como a extração de trechos de discursos deautoridades governamentais e dirigentes do setor, publicados em jornais erevistas de grande circulação. Os resultados incluem a sistematização ediscussão do processo de formulação e implementação de políticas de saúde,cotejando-o com algumas iniciativas do Governo Lula nas áreas econômicae social. Aponta a frustração das expectativas em torno da gestão do Estadopor forças consideradas de esquerda, embora reconheça esforços realizadospara a manutenção e continuidade do processo de reforma setorial emcurso.PALAVRAS-CHAVE: Política de saúde, Sistema Único de Saúde, Reforma SanitáriaBrasileira.

ABSTRACT

This article aims to analyze the federal government health policies inthe situation which began in 2003. The methodology employed includeddocumentary research of plans, programs, projects and reports elaboratedby the Ministry of Health, as well as the extraction of passages from speechesmade by governmental authorities and leaders of the sector published inlarge circulation newspapers and magazines. The results include thesystematization and discussion of the process of formulating andimplementing health policies, comparing it to some initiatives of the Lulagovernment in economic and social areas. It reveals how expectations ofState management by supposedly left-wing powers have been frustrated,whilst also acknowledging efforts that have been made to maintain andcontinue the sectorial reform process underway.

KEYWORDS: Health policies, Brazil’s Unified Health System, Brazilian HealthReform.

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A política de saúde no governo Lula e a dialética do menos pior

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 268-2832, set./dez. 2005 269

INTRODUÇÃO

O término da gestão 2003-2006

do Presidente Lula estimula a refle-

xão e demanda por um balanço de

suas políticas públicas. No caso da

saúde, o respeito ao passado e o

compromisso com o futuro da Re-

forma Sanitária Brasileira

(RSB)exigem, que se proceda a um

exame crítico da política formula-

da e implementada nessa gestão.

Trata-se de “fazer uma análise dos

processos e questões políticas que

se acham envolvidas na avaliação

dos planos e programas do setor

público de um país” (BUSTAMEN-

TE & PORTALES, 1988 p. 79).

Para o desenvolvimento dessa

análise, algumas perguntas prelimi-

nares podem ser apresentadas:

quais os compromissos explícitos

no programa de governo antes das

eleições presidenciais de 2002?

Quais os fatos políticos relaciona-

dos com a saúde produzidos no pe-

ríodo de governo? Como os atores

políticos atuaram na conjuntura?

Que relações poderiam ser identifi-

cadas entre tais fatos e o programa

de governo? Perguntas como essas

sugerem uma avaliação centrada na

formulação e no processo político

correspondente à implementação.

Em outras palavras, remetem à aná-

lise da política de saúde em suas

dimensões de policy e de politics

(PAIM, 2003).

Analisar a policy implica identi-

ficar o conjunto de proposições re-

lativas ao enfrentamento dos pro-

blemas e ao atendimento das neces-

sidades de saúde da população, se-

gundo a perspectiva adotada por

um determinado ator social. Tais

proposições geralmente são apre-

sentadas e sistematizadas em docu-

mentos como programa de gover-

no, políticas, planos, programas e

projetos de intervenção, expressões

das políticas planificadas. Podem,

No que diz respeito à politics,

cabe considerar a luta política tra-

vada no âmbito do governo (inter-

namente as instituições de saúde e

destas com outras organizações go-

vernamentais enão-governamentais)

e na sociedade civil. A dinâmica

desse processo político tanto pode

contribuir para consolidar ou para

subverter, no cotidiano da imple-

mentação em organizações públi-

cas, a direcionalidade indicada no

programa de governo e nos planos

de ação derivados ou subsidiários.

Essa luta política se expressa pela

disputa entre atores das organiza-

ções visando à apropriação e ao

acúmulo de poderes técnico, admi-

nistrativo e político (TESTA, 1992).

Esses enfrentamentos podem se re-

velar em torno das opções estraté-

gicas a serem adotadas no cotidia-

no das instituições responsáveis

pela implementação da proposta

política que refletem a luta pelo

poder, quer no ambiente interno,

quer nas relações estabelecidas en-

tre os diferentes órgãos. Como exem-

plos, podem ser mencionadas as

relações de cooperação ou conflito

entre instituições do poder executi-

vo (Ministério da Saúde, secretari-

as estaduais e municipais de Saú-

de, agências executivas etc) e des-

tas com o poder legislativo, judici-

ário, organizações não-governamen-

tais, mídia e grupos organizados da

sociedade civil.

também, ser apreendidas mediante

declarações e discursos de autori-

dades e atores sociais que ilustram

certos componentes da agenda po-

lítica e podem ser examinadas, ain-

da, a partir de atos normativos, tais

como: leis, decretos, portarias, re-

soluções, etc. No caso em questão,

trata-se de identificar as propostas

de saúde incluídas no programa de

governo e seus desdobramentos ao

longo da gestão.

O TÉRMINO DA GESTÃO

2003-2006 DO PRESIDENTE LULA

ESTIMULA A REFLEXÃO E DEMANDA POR UM

BALANÇO DE SUAS POLÍTICAS PÚBLICAS

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TEIXEIRA, Carmen Fontes & PAIM, Jairnilson Silva

270 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 268-283, set./dez. 2005

Conseqüentemente, as políticas

de saúde de um governo não podem

ser avaliadas apenas setorialmen-

te, ou seja, pelas ações exclusivas

do sistema de serviços de saúde ou

do ministério correspondente. Há

que se examinar passos, traços e

produtos do governo que têm reper-

cussões na saúde da população e

na organização do sistema de ser-

viços. Com essa perspectiva, o pre-

sente artigo tem como objetivo ana-

lisar a política de saúde do Gover-

no Federal na conjuntura iniciada

em janeiro de 20033.

DO PROGRAMA À EQUIPE DE GOVERNO:DISCURSO TÍMIDO E

PRÁTICA FRAGMENTADA.

Depois de perder as eleições pre-

sidenciais de 1989, 1994 e 1998, o

Partido dos Trabalhadores (PT) lide-

rou uma coligação partidária que

elegeu o ex-operário, ex-líder sindi-

cal e ex-deputado constituinte Luiz

Inácio Lula da Silva, como Presi-

dente da República, em 2002. Além

da relevância histórica do aconteci-

mento e das esperanças cultivadas

durante a campanha, amplas expec-

tativas foram expressas em relação

à direcionalidade da política de saú-

de, especialmente tendo em vista a

necessidade de se acelerar o proces-

so de mudança no financiamento,

gestão e organização do sistema

público de saúde. Também se apos-

tou na possibilidade de se intensifi-

car o processo de participação e con-

trole social do SUS, avançando-se

na democratização do conhecimen-

to, na reorientação das práticas e

na melhoria das condições de saú-

de da população.

Ao se tomar, como ponto de par-

tida, a análise do componente saú-

de do Programa de Governo apre-

mais abrangentes, inovadores e con-

sistentes.

Após a vitória, a excitação do

“mercado” e da mídia, pela indica-

ção imediata do Presidente do Ban-

co Central e do Ministro da Fazen-

da, correu ao lado da iniciativa do

então Presidente Fernando Henrique

Cardoso no sentido de disponibili-

zar cargos para integrantes do “gru-

po da transição” (GT) a serem indi-

cados pelo presidente eleito, visan-

do à passagem dos trabalhos de um

governo para o outro. Foi designa-

do para dirigir os trabalhos do GT,

o então prefeito da cidade paulista

de Ribeirão Preto, que se tornara

coordenador do programa de Lula

devido a uma tragédia (assassina-

to do prefeito de Santo André, Celso

Daniel, que seria o coordenador do

Programa de Governo). Nas várias

entrevistas concedidas à mídia, o

coordenador do GT reforçava o dis-

curso que, segundo a mídia, o mer-

cado precisava ouvir para se acal-

mar. Assim, era cada vez mais fes-

tejado pelos porta-vozes do “merca-

do” e pela mídia.

Tanto o presidente eleito quanto

o então presidente do PT, José Dir-

ceu, destacavam que o GT era ‘téc-

nico’, e que ninguém deveria espe-

rar tornar-se ministro a partir des-

se trabalho. Mas, na viagem a Wa-

shington, Lula deixou escapar, por

sentado no período eleitoral4 cons-

tata-se, de um modo geral, uma rei-

teração de proposições já contidas

e formalizadas na Constituição Fe-

deral, na Lei Orgânica da Saúde e

em distintas normas operacionais

do Sistema Único de Saúde (SUS).

Houve candidatos concorrentes que

chegaram a apresentar programas

O PRESENTE ARTIGO TEM COMO

OBJETIVO ANALISAR A POLÍTICA DE SAÚDE DO

GOVERNO FEDERAL NA CONJUNTURA INICIADA

EM JANEIRO DE 2003

3 O material utilizado na pesquisa documental será identificado mediante notas de pé de página ao longo do texto, reservando-se asreferências bibliográficas exclusivamente para publicações em livros e periódicos.4 Saúde para a família brasileira (Programa de Governo 2002 - Coligação Lula Presidente: PT-PC do BPL-PMN-PCB). Setembro, 2002.24p.

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A política de saúde no governo Lula e a dialética do menos pior

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aparente ato falho, o nome do Mi-

nistro da Fazenda que a mídia, o

‘mercado’, o governo americano e

os bancos aparentemente já sabiam.

E ainda fez piada com a tragédia

do país: se a economia brasileira

está na UTI, ninguém melhor que

um médico para tratar dela... As-

sim, para dirigir uma complexa eco-

nomia de um país de mais de 170

milhões de habitantes, foi indicado

um político cujo currículo insinua-

va algum interesse em questões fis-

cais e econômicas, mas que a mí-

dia comemorava entusiasticamen-

te.

O Relatório da Transição, apre-

sentado pelo seu coordenador e

transmitido ao vivo pela TV, prati-

camente nada informava sobre os

trabalhos dos grupos. Concentrava-

se em aspectos macro-econômicos,

sinalizando para tópicos que o ca-

pital financeiro valorizava. A pala-

vra saúde não foi mencionada uma

vez sequer, nem pelo coordenador

do GT nem por Lula no seu discur-

so, mesmo que fosse para se referir

à ‘saúde da economia’. Quanto ao

‘social’, apenas foram feitas men-

ções vagas à educação,à fome e

àsegurança pública. Esta omissão

era o primeiro sinal de como a saú-

de seria tratada pelo governo.

Tal como na Fazenda, o político

indicado para Ministro da Saúde foi,

também, um dos integrantes do GT,

desmentindo, mais uma vez, as de-

clarações anteriores do presidente

eleito. Seu nome foi um dos últi-

mos a ser divulgado numa equipe

de mais de três dezenas de minis-

tros5, muitos deles recentemente

derrotados nas urnas. Contudo, a

composição da equipe do segundo

escalão prestigiou atores políticos

com participação no movimento da

Atenção à Saúde); um destaque

para as questões dos recursos hu-

manos (Secretaria de Gestão do Tra-

balho e da Educação em Saúde);

uma atenção para os insumos es-

tratégicos (inclusive assistência far-

macêutica) e desenvolvimento cien-

tífico e tecnológico (Secretaria de

Ciência e Tecnologia e Insumos Es-

tratégicos); uma prioridade para a

gestão democrática (Secretaria de

Gestão Participativa); e certa ambi-

güidade em relação aos programas

especiais vinculados à Fundação

Nacional de Saúde (FUNASA) que

passaram a constituir a chamada

SVS (Secretaria de Vigilância em

Saúde).

Após a festa da posse do Presi-

dente, o Ministro da Saúde conce-

deu entrevista na televisão discu-

tindo um aumento de 9% no preço

dos remédios para março. Ao assu-

mir o cargo, diante da presença de

mais de 600 pessoas, deu destaque

para a mortalidade infantil, o ‘es-

cândalo’ da mortalidade materna, a

manutenção do Programa de Saúde

da Família (PSF), o fortalecimento

do SUS e o monitoramento da den-

gue. No seu discurso6, reafirmava

certos princípios e diretrizes da Re-

forma Sanitária, o compromisso

com o SUS, a continuidade dos pro-

gramas de controle da AIDS e do

RSB e com experiência prévia de

gestão pública.

A reforma administrativa do Mi-

nistério da Saúde, apresentada logo

no início do governo, sugeria uma

ênfase na integração da atenção

básica com a assistência especi-

alizada e hospitalar (Secretaria de

A REFORMA ADMINISTRATIVA

DO MINISTÉRIO DA SAÚDE(...) SUGERIA UMA

ÊNFASE NA INTEGRAÇÃO DA ATENÇÃO BÁSICA

COM A ASSISTÊNCIA ESPECIALIZADA EHOSPITALAR...

5 A prodigalidade com que foram criadas pastas ministeriais para acomodar interesses e apetites partidários visando à ocupação dosmilhares de cargos de confiança - “Ministério dos Derrotados” - já anunciava a reprodução ampliada do clientelismo, além de dificuldadesna coordenação política e na gestão. Se o Presidente reservasse por dia um despacho por ministro só conseguiria vê-lo de novo um mêsdepois. Mas os fatos foram demonstrando que a gestão não era o que mais importava para o Presidente.6 Ministério da Saúde. Assessoria de Comunicação Social. Divisão de Imprensa. Transmissão de cargo do senhor ministro da SaúdeHumberto Costa. 02.01.03.7p.

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TEIXEIRA, Carmen Fontes & PAIM, Jairnilson Silva

272 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 268-283, set./dez. 2005

tabagismo7, mas não avançava com

proposições consentâneas com as

expectativas em relação à conjun-

tura que se iniciava: nada sobre a

regulação dos ‘planos de saúde’;

muito pouco em relação à indús-

tria farmacêutica e à produção de

genéricos; nenhum plano de expan-

são dos investimentos nos serviços

públicos; nenhum compromisso cla-

ro com a força de trabalho em saú-

de.

FATOS POLÍTICOS DA SAÚDE:REMANDO CONTRA A MARÉ DA

POLÍTICA ECONÔMICA EDO MODO CONVENCIONAL

DE FAZER POLÍTICA

Analisar o processo político da

Saúde no Brasil supõe caracterizar

a situação configurada no âmbito

das instituições, especialmente o

Ministério da Saúde e as agências

do setor, a Agência Nacional de Saú-

de Suplementar (ANS) e a Agência

Nacional de Vigilância Sanitária

(ANVISA). Busca-se, assim, estabe-

lecer um contraponto entre algumas

das iniciativas desencadeadas na

área da saúde e os fatos produzi-

dos em outras instâncias do gover-

no, cujos efeitos contribuíram para

fragilizar ou favorecer a formula-

ção e implementação das políticas

de saúde.

O INÍCIO DA GESTÃO

No encontro com os prefeitos,

realizado em março de 2003, o Pre-

sidente e o Ministro da Saúde anun-

ciaram a expansão da Atenção Bá-

sica e do PSF, além do aumento dos

valores do Piso da Atenção Básica

(PAB) e da assistência farmacêuti-

ca. Posteriormente, o anúncio da

implantação de 4.000 equipes de

saúde da família, do reforço ao aten-

dimento de urgência e emergência

ção à saúde: ampliação do acesso

da população aos serviços de saú-

de;

2. Combate à fome: atendimen-

to às carências nutricionais;

3. Atendimento a grupos com

necessidade de atenção especial:

atenção à saúde da criança, da

mulher e do idoso. Prevenção, con-

trole e assistência aos portadores

DST e AIDS;

4. Controle da dengue e outras

doenças endêmicas e epidêmicas.

Combate a endemias e doenças

transmitidas por vetores (priorida-

de para a dengue e a malária);

5. Acesso a medicamento: ga-

rantia do acesso da população a

estes produtos;

6. Qualificação dos trabalhado-

res do SUS. Qualificação dos traba-

lhadores da saúde 8.

Em consonância com tais dire-

trizes, podem ser destacadas as se-

guintes ações: expansão da atenção

básica, com ampliação de recursos

e de equipes de saúde da família;

convocação da 12ª Conferência Na-

cional de Saúde em caráter extra-

ordinário9; ampliação de credenci-

amento para leitos de unidades de

tratamento intensivo (UTI); apoio fi-

nanceiro aos hospitais universitá-

rios redefinindo suas relações com

o SUS; reajuste nos repasses para

consultas especializadas em hospi-

e do novo modelo de gestão dos

hospitais universitários indicavam

a produção de fatos políticos con-

sistentes com o programa de gover-

no. Além disso, um elenco de dire-

trizes foi estabelecido para o primei-

ro ano de gestão:

1. Melhoria do acesso, da qua-

lidade e da humanização da aten-

ANALISAR O PROCESSO POLÍTICO

DA SAÚDE NO BRASIL SUPÕE CARACTERIZAR ASITUAÇÃO CONFIGURADA NO ÂMBITO DAS

INSTITUIÇÕES, ESPECIALMENTE O MINISTÉRIO

DA SAÚDE E AS AGÊNCIAS DO SETOR...

7 “Aliás, eu quero avisar aos fumantes de plantão que serei tão implacável quanto o ministro Serra no combate ao tabagismo” op. cit. p.4.8 Ministério da Saúde. Diretrizes e Metas do MS para 2003 – Andamento das Ações. 10 de julho de 2003.p.11.9 Os temas selecionados foram: Direito à saúde; Intersetorialidade das Ações de Saúde; As Três Esferas de Governo e a Construção do SUS;Organização da Atenção em Saúde; Gestão Participativa; Trabalho em Saúde; Ciência, Tecnologia e Saúde; e Financiamento. Radis, 11:8,2003.

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A política de saúde no governo Lula e a dialética do menos pior

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 268-2832, set./dez. 2005 273

tais públicos, em estados e municí-

pios de gestão plena; nova campa-

nha antitabagista na mídia (Fique

esperto!) para jovens de 13 a 19

anos; criação da Câmara de Regu-

lação do Mercado de Medicamentos

(CAMED) e fixação de normas para

o controle de preços destes produ-

tos (Medida Provisória Nº 123, de

26 de junho de 2003; apoio aos la-

boratórios oficiais, isenção de ICMS

para medicamentos de alto custo,

reforço aos genéricos, 18 novas re-

soluções da ANVISA regulamentan-

do os medicamentos e condenando

o uso de antigripais e hepatoprote-

tores, além da convocação da 1ª

Conferência Nacional de Medica-

mentos e Assistência Farmacêuti-

ca10; capacitação de profissionais de

saúde, com destaque para a pro-

posta de constituir Pólos de Educa-

ção Permanente nos estados e mu-

nicípios com mais de 100 mil habi-

tantes, estruturando núcleos inte-

rinstitucionais e envolvendo gesto-

res estaduais e municipais, univer-

sidades, escolas técnicas, hospitais

universitários, escolas de saúde pú-

blica, estruturas de formação dos

serviços de saúde, pólos de capaci-

tação de saúde da família, núcleos

de saúde coletiva, agências regio-

nais; e outras medidas específicas11.

O PRIMEIRO ANO DE GOVERNO

Nos seis primeiros meses de go-

verno, muita energia institucional

foi gasta para superar a fragmenta-

ção das ações e implantar a nova

organização do ministério. Assim,

segundo a equipe dirigente,

ais à promoção da eqüidade ”( BRA-

SIL, 2003)12.

Mereceu destaque o processo

participativo para a construção do

Plano Plurianual 2004-2007, envol-

vendo os trabalhadores, colegiados

e fóruns do ministério, inclusive as

instâncias de controle social, como

o Conselho Nacional de Saúde13. A

tentativa de mudança do modelo de

atenção à saúde, a partir de proje-

tos que priorizam o acolhimento e

a humanização14, poderia ser con-

siderada um ‘marcador’ dessa von-

tade política da nova equipe. Do

mesmo modo, a ampliação do PSF

e dos recursos do PAB, maiores re-

passes para atenção especializada

em hospitais públicos, expansão

dos Centros de Atenção Psicossoci-

al (CAPS), reforço do atendimento de

urgência e apoio aos hospitais uni-

versitários federais, indicavam

uma concepção mais abrangente

para a organização do sistema pú-

blico de saúde.

Os fatos acima mencionados si-

nalizavam para redefinições rele-

vantes na política de saúde,apesar

da falta de indicações de como en-

“os esforços concentraram-se, em

especial, na adequação da gestão do

ministério às diretrizes do governo e

na implementação de medidas essenci-

A TENTATIVA DE MUDANÇA DO MODELO DE

ATENÇÃO À SAÚDE, A PARTIR DE PROJETOS

QUE PRIORIZAM O ACOLHIMENTO E AHUMANIZAÇÃO , PODERIA SER CONSIDERADA

UM ‘MARCADOR’ DESSA VONTADE POLÍTICA DA

NOVA EQUIPE...

10 Ver, ainda: redimensionado o projeto da fábrica de preservativos em Xapuri/Acre e repasse de recursos para a assistência farmacêuticanos municípios do Fome Zero. Brasil. MS, 2003, Op. cit, .p.15.11 Vacinação de 12,3 milhões de pessoas acima dos 60 anos de idade, representando 82,2% de cobertura vacinal e de 93,45% de criançasentre zero e quatro anos de idade; mobilização e recursos para o combate à dengue tuberculose, hanseníase e AIDS; adoção do novo cartãoda criança; multas da ANS sobre planos de saúde; ações de controle da violência contra a mulher (Disque Saúde Mulher); notificaçãoobrigatória de óbitos de mulheres em idade fértil. Brasil. MS. 2003, op cit, .p.16; Saúde, Brasil, 87:7, junho de 2003.12 Ministério da Saúde. Diretrizes e Metas do MS para 2003 – Andamento das Ações. 10 de julho de 2003. p.1.13 op. cit.14 Todos os projetos novos do Ministério conteriam como requisitos o fortalecimento de práticas de acolhimento, respeito ao cidadão,capacitação dos profissionais de saúde, maior conforto, responsabilidade definida pelo paciente, com adoção de planos de metas dehumanização da atenção e da gestão. op. cit,.p.3.

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TEIXEIRA, Carmen Fontes & PAIM, Jairnilson Silva

274 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 268-283, set./dez. 2005

frentar a segmentação do sistema

de saúde brasileiro. Embora a limi-

tação de recursos orçamentários

não permitisse assegurar a sufici-

ência de muitas dessas medidas em

relação às necessidades insatisfei-

tas acumuladas, elas apontavam

certa direcionalidade da política.

Nesse sentido - a redefinição do

modelo de atenção e a busca de

acesso universal e integral dos ser-

viços de saúde -, iniciava-se medi-

ante a reorganização da atenção bá-

sica articulada à vigilância da saú-

de e à atenção especializada.

Todavia, na contramão dessa

política de saúde, a Nação foi sur-

preendida com o contingenciamen-

to de recursos logo em março15 e

com um fato da maior gravidade,

ocorrido no início de abril. O Jornal

Hoje da Rede Globo anunciou, em

primeira mão, uma Medida Provi-

sória do Presidente Lula autorizan-

do propaganda de cigarro em even-

tos internacionais, desrespeitando a

Lei 10.167 de 27/12/2000 e, conse-

qüentemente, a Constituição da Re-

pública (BRASIL, 1988) quando de-

termina que a publicidade de taba-

co deve estar sujeita a restrições

legais. Assim, interesses econômi-

cos, políticos e midiáticos, vincu-

lados a pressões da Federação In-

ternacional de Automobilismo

(FIA), somente para beneficiar um

evento esportivo na cidade de São

Paulo, macularam uma política pe-

nosamente construída, com a aqui-

escência de um Ministro da Saúde

que, no discurso de posse, apresen-

tou-se como ‘implacável’ no com-

bate ao tabagismo..

Tal decisão envergonhava os bra-

sileiros aos olhos do mundo civili-

zado, pois a autoridade maior do

país descumpria a lei e a Constitui-

ção recorrendo a uma MP, procedi-

indignaram-se diante de uma deci-

são leviana e autoritária contra evi-

dências científicas e contra as lutas

históricas dos trabalhadores de saú-

de pela promoção e proteção da saú-

de. Cidadãos, eleitores e militantes

sentiram-se traídos quanto às espe-

ranças e confiança que depositavam

no novo Governo, alimentadas por

décadas de lutas democráticas.

Como assinalava a carta de um lei-

tor do Jornal Folha de São Paulo:

O fato de o Brasil ter se tornado re-

fém do circo da Fórmula 1, impedindo

a vigência de leis cujo objetivo é preser-

var a saúde pública (restrição à propa-

ganda de tabaco), causa consternação,

além de ser péssimo exemplo para a afir-

mação da cidadania. Melhor seria se o

país deixasse de fazer parte do roteiro

de um esporte mercenário e elitista e

passasse a respeitar a sua condição de

país soberano (FOLHA DE SÃO PAULO,

2003)16.

O próprio Ministro da Saúde,

durante audiência pública na Co-

missão de Seguridade Social e Fa-

mília, na Câmara dos Deputados,

revelava semanas depois que foi por

chantagem da FIA que o Governo

editou a Medida Provisória 118/03,

autorizando a propaganda de cigar-

ros em eventos esportivos interna-

mento tantas vezes criticado pelo

presidente e seu partido durante os

governos anteriores. Ministros con-

siderados de esquerda, como os da

Saúde, do Esporte e da Casa Civil,

sucumbiram às pressões do capital

comprometido com aquele evento

esportivo. Profissionais de saúde

PROFISSIONAIS DE SAÚDE INDIGNARAM-SE

DIANTE DE UMA DECISÃO LEVIANA EAUTORITÁRIA CONTRA EVIDÊNCIAS CIENTÍFICAS

E CONTRA AS LUTAS HISTÓRICAS DOS

TRABALHADORES DE SAÚDE PELA PROMOÇÃO EPROTEÇÃO DA SAÚDE

15 Como em outras oportunidades, a área econômica deu o tom para as políticas de saúde. Assim, o Ministério da Saúde sofreu logo noinício do governo- uma intervenção da área econômica com um contingenciamento de 1,6 bilhões de reais, o maior de todos os ministériosem termos absolutos. Promessas do Ministério do Planejamento de providenciar a liberação dos recursos não apagavam o sentido da açãopolítica de governo através dessa primeira surpresa negativa para o setor.16 Painel do Leitor, Folha de São Paulo, 8/6/03.pA.3.

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A política de saúde no governo Lula e a dialética do menos pior

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 268-2832, set./dez. 2005 275

cionais até julho de 2005. Segundo

o ministro, a FIA deixou claro que

o Brasil seria excluído do circuito

da Fórmula 1, caso a MP não fosse

editada, permitindo que as escude-

rias tivessem a logomarca de cigar-

ros estampadas em seus veículos

durante o Grande Prêmio Brasil, re-

alizado no dia 6 de abril de 2003,

em São Paulo. Diante da ameaça, o

Governo teria levado em considera-

ção os empregos gerados pelo even-

to, a imagem do Brasil que um GP

projeta no exterior e a situação ju-

rídica complexa de um eventual

rompimento de contrato.17

Decisões semelhantes assumidas

pelo governo contra a saúde conti-

nuaram a ser tomadas como aque-

las relacionadas à liberação da ex-

portação da soja transgênica, bem

como o seu plantio, à importação

de pneus usados e às tentativas de

desobedecer à Emenda Constitucio-

nal 29 durante a elaboração das

propostas orçamentárias. Aliás, as

manobras para desviar recursos do

SUS vinham se configurando desde

que o Presidente e o seu Ministro

da Fazenda discutiram um acordo

com os governadores que permiti-

ria gastar livremente 20% das recei-

tas, ou seja, possibilitando a des-

vinculação dos recursos de saúde e

educação nos orçamentos dos esta-

dos18. E o Ministro da Fazenda con-

siderava natural o pleito dos gover-

nadores já que a União assim pro-

cedia: “Se nós aplicamos a DRU

(Desvinculação de Receitas da

União), por que seríamos contra que

eles (governadores) apliquem?” 19.

tra a saúde, urdido pelo Presidente

e seu Ministro da Fazenda:

É importante que se diga que o SUS,

e mesmo os seus nobres princípios bási-

cos, não são fruto de um consenso, mas

de um longo caminho de batalhas en-

frentadas por todos aqueles que, ao lon-

go das duas últimas décadas, coloca-

ram as questões de saúde pública aci-

ma das motivações políticas, ideológi-

cas, partidárias e corporativas (...). A

mais recente e expressiva vitória do

SUS se deu com a aprovação da emen-

da 29, no ano de 2000, pelo Congresso

Nacional. A emenda vincula as recei-

tas da União e de Estados e municípios

a gastos na área de saúde. Sua apro-

vação foi resultado de uma ampla mo-

bilização da sociedade civil, de parla-

mentares e gestores em todo o Brasil

(COSTA, H., 2003, p. A 3). 20

A postura do Ministro, desta vez,

provocava certo alento. Seu discur-

so enfatizava o fortalecimento da

descentralização, a responsabilida-

de partilhada, a melhoria do aces-

so e a qualidade do atendimento,

não a desresponsabilização sobre o

financiamento. Mas o Ministro,

Dessa vez, o Ministro da Saúde

reagiu diante de mais um golpe con-

O GOVERNO CONTINUA COMPROMETENDO AS

POLÍTICAS DE SAÚDE, TAL COMO OCORREU

DURANTE A ELABORAÇÃO DAS PROPOSTAS

ORÇAMENTÁRIAS NOS ANOS SEGUINTES

17 O ministro disse que, apesar de ser produto das pressões da FIA, a medida provisória teria pontos positivos. Dentre eles, o dispositivoque possibilita a transmissão de mensagens gratuitas, durante os eventos esportivos, com advertências sobre os malefícios do fumo. Emseu depoimento, Humberto Costa apresentou uma série de propostas para aperfeiçoamento da MP. Ele sugeriu, por exemplo, a proibiçãoda comercialização de produtos derivados do tabaco em estabelecimentos de livre acesso para menores de 18 anos. “A proibição atingiriapontos de venda como supermercados e mercearias e seria regulamentada pelas prefeituras no prazo máximo de dois anos”. Fonte:Agência Câmara.18 Governo libera Estados para reduzir verbas da área social. Para conseguir o apoio dos governadores às reformas tributária e daPrevidência, o presidente Luiz Inácio da Silva fechou um acordo que desobriga os Estados de aplicarem 20% de suas receitas em setorescomo educação e saúde. A Tarde, 1/07/03.p.1. Acordo autoriza Estados a gastar menos no social. Folha de São Paulo, 1/07/03.pA 1.19 A Tarde, 1/07/03.p.14. Aécio defende desvinculação em Estados: “mas quando veio à tona que os Estados poderiam cortar recursos daeducação e da saúde, as bancadas na Câmara ligadas às questões sociais reagiram. E em uma reunião da última quarta-feira na casa dopresidente da Câmara, João Paulo Cunha (PT), com a presença do ministro José Dirceu (Casa Civil), essa permissão aos estados foirechaçada”. Folha de São Paulo, 5 de junho de 2003.20 Costa, H. Em defesa da saúde. Folha de São Paulo, 6 de julho de 2003. P.A 3.

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TEIXEIRA, Carmen Fontes & PAIM, Jairnilson Silva

276 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 268-283, set./dez. 2005

mais uma vez, se equivocara. O

governo continuava comprometen-

do as políticas de saúde, tal como

ocorreu durante a elaboração das

propostas orçamentárias nos anos

seguintes. Fatos políticos importan-

tes como a implementação da Re-

forma Psiquiátrica21, com base na

Lei 10.216/2001, e a manifestação

pioneira pela assinatura da Conven-

ção Quadro contra o Tabagismo22

não chegaram a sobrepor-se aos

efeitos negativos daquele “pacote de

abril” 23 e das manipulações ardilo-

sas dos recursos do SUS. As políti-

cas de saúde executadas nos primei-

ros meses de gestão, apesar de coe-

rentes com o programa do candida-

to, sofreram sérios constrangimen-

tos políticos e econômicos (MEN-

DONÇA et al., 2005).

Tal como nos governos anterio-

res, em que a área econômica do-

minava com sua política moneta-

rista, enquanto a gestão da saúde

tentava avançar nas franjas do pos-

sível, o primeiro ano do governo

Lula encontrou no Ministério da

Saúde um dos poucos espaços onde

a equipe dirigente procurava hon-

rar compromissos históricos, mes-

mo diante das limitações orçamen-

tárias e dos estratagemas de seg-

mentos do governo. Era possível

notar esforços para a gestão parti-

cipativa, a exemplo da antecipação

da convocação da 12ª Conferencia

Nacional de Saúde e a elaboração

do Plano Nacional de Saúde que exi-giu várias reuniões e seminários noâmbito do MS. Todavia, não foi pos-sível lograr a consolidação de umProjeto de Governo em Saúde mais“robusto”, de modo que o discursooficial ficou limitado a algumaspropostas cujo conteúdo parece re-

ção à saúde da população, não pa-

recem suficientes para produzir

mudanças na forma de organização

dos serviços, muito menos nas con-

dições de saúde e seus determinan-

tes.

O ano encerrou-se com a reali-

zação da 12a. Conferência Nacional

Saúde Sérgio Arouca, precedida de

conferências municipais e estadu-

ais. Pela primeira vez na história

das conferências nacionais o Minis-

tério da Saúde explicitou suas con-

cepções e diretrizes mediante docu-

mento prévio contemplando dez ei-

xos temáticos. Ainda que em alguns

tópicos insinuasse certo dirigismo

sobre movimentos sociais, o docu-

mento base tinha a possibilidade de

facilitar a discussão de grandes te-

ses, talvez no sentido de evitar a

reprodução das queixas e denúnci-

as locais que chegavam às confe-

rências nacionais. Tal propósito, en-

tretanto, não foi alcançado, impon-

do aos relatores um trabalho insa-

no para sistematizar centenas de

propostas apresentadas no evento,

o que impediu, inclusive, a vota-

ção do seu relatório final. A alter-

nativa criada foi a realização de con-

sultas aos delegados e a aprovação

fletir mais uma preocupação com a“marca” e o marketing do que como avanço da Reforma Sanitária. Al-gumas iniciativas, apesar de inci-direm sobre aspectos importantesdas carências e necessidades de aten-

... O DISCURSO OFICIAL FICOU LIMITADO AALGUMAS PROPOSTAS CUJO CONTEÚDO PARECE

REFLETIR MAIS UMA PREOCUPAÇÃO COM A“MARCA” E O MARKETING DO QUE COM O

AVANÇO DA REFORMA SANITÁRIA

21 Projeto de Lei instituindo o auxílio-reabilitação psicossocial para estimular a ressocialização de pessoas com transtornos mentaisegressas de longas internações. Contempla, ainda, a criação de mais 178 Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) destinados a adultos,crianças e adolescentes a aos portadores de problemas mentais devidos ao álcool e outras drogas. Saúde, Brasil 87:3, junho de 2003.Assim foi lançada pelo Presidente da República, a política de saúde mental compreendendo o “incentivo-bônus” de R$ 200,00, destinadoa apoiar a reintegração sócio-familiar dos pacientes com alta hospitalar (“De volta para casa”). Brasil. Ministério da Saúde. Diretrizes eMetas do MS para 2003 – Andamento das Ações. 10 de julho de 2003.p.13.22 Brasil será o primeiro país a assinar a Convenção-Quadro. Veja, 10 de junho de 2003.23 Diante da “chantagem da FIA”, a MP autoritária faz merecer a alusão ao “pacote de abril” dos tempos do General Geisel, quando oCongresso foi fechado para ser instituída a figura do “senador biônico” que alteraria a composição do colégio eleitoral para indicar opróximo general-presidente.

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A política de saúde no governo Lula e a dialética do menos pior

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 268-2832, set./dez. 2005 277

do relatório pelo Conselho Nacional

de Saúde meses depois.

Do ponto de vista político, cabe

registrar a presença do Presidente

da Organização Mundial da Saúde

(OMS), na cerimônia de abertura da

Conferência, apesar da ausência do

Presidente da República e dos mi-

nistros de Estado convidados, mes-

mo com o rigoroso esquema de se-

gurança montado, nunca visto nas

conferências anteriores. De última

hora, surgiu o Vice-Presidente da

República na solenidade, tendo o

Presidente Lula só aparecido no úl-

timo dia do evento para fazer o dis-

curso do encerramento.

A IMPLEMENTAÇÃO

DAS POLÍTICAS

Embora o Ministro da Saúde te-

nha declarado, publicamente, que

o Ministério apoiaria as conclusões

da 12a. CNS, nos anos seguintes, o

governo já não parecia ter o mesmo

ímpeto para iniciar processos e pro-

jetos. Uma das exceções foi a Re-

forma Psiquiátrica que alcançou

novo ânimo através do Programa

Anual de Reestruturação da Assis-

tência Psiquiátrica Hospitalar no

SUS – 2004 24, estimando que 15

mil pacientes pudessem voltar à so-

ciedade.25 Foram implantados 218

novos centros de atenção psicosso-

cial (CAPS) e 160 novas residências

terapêuticas, enquanto o programa

De Volta para a Casa devolveu 1264

pacientes para o convívio social. A

relevância dessa política pode ser

constatada pela redução de 5.519

leitos psiquiátricos entre 2003 e ju-

nho de 2005 26.

medicamentos essenciais27, um edi-

torial analisava a economia e des-

tacava a meta de inflação de 5,5%

em 2004 e 4,5% em 2005, a taxa de

câmbio flutuante, com livre movi-

mento de capitais, e o compromis-

so com o superávit fiscal de 4,25%

do PIB28. E se havia, ainda, algu-

ma esperança entre os otimistas

quanto a uma fase dois do gover-

no, o próprio presidente deu-lhes um

choque de realidade: “Não mexo na

economia, não tem volta. O cami-

nho está tomado e ponto final”29.

Mas, como afirmou um dos cola-

boradores do governo Lula,

sempre há os que buscam razões,

mesmo quando a irracionalidade vai

sendo percebida por quase todos, para

justificar as opções de um governo que

se deseja defender (POLETTO, 2005

p.81).

Restou para a saúde conformar-

se com as iniciativas de grande ape-

lo publicitário, tais como o Brasil

Sorridente, a Farmácia Popular e o

SAMU (Serviço de Atendimento Mó-

vel de Urgência). Assim, a política

de saúde bucal recebeu uma priori-

dade por parte do Ministério da Saú-

de, com um investimento previsto

24 PTGM - 60 de janeiro de 200425 Até o final de 2004, o MS esperava expandir para 650 o número de Caps implantados no país: “A ampliação da rede será fundamentalpara continuar crescendo o número de atendimentos realizados nos centros. Em 2002, foram 389,8 mil. No ano passado, ultrapassou amarca de 3,69 milhões de atendimentos , quase dez vezes mais em relação ao ano anterior www.saude.gov.br Brasília 2/2/04. Radis 19 -Mar/2004 - p.14. RADIS, n. 5 abril, 2004.. http://portalweb01.saude.gov.br/saude/23/06/04. http://portalweb01.saude.gov.br/saude/29/06/04.26 Ministério da Saúde. Balanço da Saúde, janeiro de 2003 a julho de 2005. 143p.27 Humberto Costa. Ver :Folha de São Paulo, 19/9/04.28 Editorial Folha de São Paulo (19/9/04).29 Frase em aspas atribuída ao Presidente Lula durante reunião com ministros na semana de 22/11/2004. Ver: Luiz Cláudio Cunha e WeillerDiniz. Coalizão X Colisão. Isto é. No. 1834, 1o de dezembro/2004, p.37.

Mas, no mesmo dia em que o

Ministro da Saúde anunciava o

compromisso com a ampliação do

atendimento e melhoria da qualida-

de dos serviços no SUS, com o com-

bate às endemias e com o acesso a

RESTOU PARA A SAÚDE CONFORMAR-SE

COM AS INICIATIVAS DE GRANDE APELO

PUBLICITÁRIO, TAIS COMO O BRASIL

SORRIDENTE, A FARMÁCIA

POPULAR E O SAMU

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TEIXEIRA, Carmen Fontes & PAIM, Jairnilson Silva

278 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 268-283, set./dez. 2005

de R$ 1,3 bilhão para atendimento

básico e especializado. Em pouco

mais de dois anos foi duplicado o

número de equipes de saúde bucal,

passando de 4.261, em dezembro de

2002, para 10.628, em junho de

2005. Sob a marca foram criados

137 Centros de Especialidades Odon-

tológicas em 21 estados, possibili-

tando algum acesso à cirurgia oral,

endodontia e periodontia.30

No caso do chamado programa

Farmácia Popular do Brasil, trata-

se da concretização de um item da

campanha eleitoral, iniciado em ju-

nho de 2004, com grande apelo de

marketing, na contramão da pro-

posta da farmácia básica que vinha

sendo implantada na rede pública

de serviços de saúde, conforme a

política nacional de medicamentos

definida desde 1998. No que se re-

fere ao SAMU, representou um in-

vestimento de R$ 167 milhões, com

um repasse mensal de R$ 11,9 mi-

lhões para 275 municípios de vinte

estados e integra a Política Nacio-

nal de Atenção às Urgências desde

setembro de 2003 31.

O governo aprovou o Estatuto do

Idoso buscando suprimir o proces-

so asilar e atuar na promoção e re-

cuperação da sua saúde32, e apre-

sentou a Política Nacional de Aten-

ção Integral à Saúde da Mulher

(2004-2007). 33 Nesse particular,

cabe registrar a importância do

lançamento de duas normas técni-

cas para o atendimento às vítimas

de violência sexual e para atenção

humanizada ao abortamento34.

Quanto à saúde da criança e do ado-

lescente, o MS buscou articular o

Programa Saúde e Prevenção nas

Escolas ao Programa Nacional de

DST/Aids, além da educação sexu-

al nas escolas, tentando prevenir

DST e gravidez na adolescência.35

A implementação da Política Naci-

onal de Alimentação e Nutrição

contou com distribuição de suple-

mentos medicamentosos de sulfa-

to ferroso para crianças, gestantes

e mulheres.36 Em relação à saúde

do trabalhador, o MS tem procu-

rado implantar a Rede Nacional de

Atenção Integral à Saúde do Tra-

balhador (RENAST), com novas uni-

dades de saúde do trabalhador sob

gestão dos municípios e criação de

centros colaboradores, ligados a

universidades, laboratórios e ins-

tituições de ensino e pesquisa 37.

Finalmente, cabe mencionar

ações relativas à saúde da popu-

lação negra, dos quilombolas, dos

indígenas e dos assentados; ações

de vigilância sanitária e controle

de doenças transmissíveis e do ta-

bagismo; ciência e tecnologia;

transplantes; formação de recursos

humanos; e promoção da saúde

(Brasil Saudável)38 . Porém, um dos

30 Balanço da Saúde, 2005.op. cit.31 Cabe ainda registrar a Política de Qualificação da Atenção à Saúde no Sistema Único de Saúde, Qualisus/Emergência, contemplandohospitais de emergência, e o credenciamento de 2.749 novos leitos de UTI até julho de 2005. op cit.32 Jornal Folha de São Paulo (05/ 2003); Revista do Conselho Federal de Medicina (01/2003). Radis 02/2004 p. 6. http://www.quadranews.com.br/index.php?materia=7423.33 www.saude.gov.br Brasília, acesso em 27 de maio de 200434 Balanço da Saúde, 2005 op. cit.35 http://portalweb01.saude.gov.br/saude/aplicacoes/noticias/noticias_detalhe.cfm?co_seq_noticia=8974 acesso em 26/03/200436 http://portal.saude.gov.br/saude/ acesso em 04/03/04.37 http://portal.saude.gov.br/saude acesso em 05/03/04.38 Merece destaque, nesse particular, a formalização da Política Nacional de Promoção da Saúde no último ano do governo. Ver: Brasil.Ministério da Saúde. Política Nacional de Promoção da Saúde. Portaria No. 687. De 30 de março de 2006. Aprova a Política Nacional dePromoção da Saúde. Diário Oficial da União, No. 63, 31/3/2006. Disponível em: www.saude.gov.br/svs39 Balanço da Saúde, 2005 op cit.

...UM DOS FEITOS MAIS SIGNIFICATIVOS DA

GESTÃO FOI A AMPLIAÇÃO DA COBERTURA DO

PROGRAMA DE SAÚDE DA FAMÍLIA (PSF)...

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A política de saúde no governo Lula e a dialética do menos pior

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 268-2832, set./dez. 2005 279

feitos mais significativos da gestão

foi a ampliação da cobertura do Pro-

grama de Saúde da Família (PSF),

com 22.683 equipes, em junho de

2005 (crescimento de 31,89%) 39, e

atingindo 25.141 em 2006 em 5.028

municípios, ou seja, mais da meta-

de da população brasileira.

Apesar desse conjunto de ações

produzidas pelo MS, a Subsecreta-

ria de Comunicação Institucional da

Secretaria Geral da Presidência da

República, ao realizar o balanço dos

30 meses de gestão, valorizava ou-

tros aspectos privilegiando o mode-

lo médico hegemônico:

A decisão política do Governo Fede-

ral de optar por mais recursos (...) fez

com que a saúde pública no Brasil pro-

movesse mudanças evidentes, como o

setor nacional de transplantes, que con-

seguiu, de janeiro de2000, a maio de

2005, realizar 33.189 transplantes de

órgãos e tecidos (...); implantação de

94 Serviços de atendimento Móvel de

Urgência (SAMU), envolvendo 606

municípios, com 901 ambulâncias dis-

tribuídas e cobertura populacional de

mais de 82 milhões de pessoas (...); cri-

ados 2.260 novos leitos em Unidades

de Tratamento Intensivo (UTIs)40.

COMENTÁRIOS FINAIS

Não sendo monolíticos nem o

Estado nem os governos, mas cris-

talização dinâmica de correlação de

forças políticas e culturais, cabe

ressaltar a possibilidade de produ-

ção de fatos políticos relevantes

mesmo por um setor não prioriza-

do pelo governo41. Se fosse possí-

vel avaliar a política de saúde na

conjuntura exclusivamente pelas

ações do Ministério da Saúde, po-

der-se-ia dispor de uma apreciação

positiva, mesmo faltando recursos

e ousadia para intervenções mais

amplas. A realização da Conferên-

cia Nacional de Saúde Sérgio Arou-

ca42, da III Conferência Nacional de

Saúde Bucal e da II Conferência Na-

cional de Ciência, Tecnologia & Ino-

vação em Saúde43 indicavam o com-

promisso do gestor federal do SUS

com o controle social. A ampliação

da atenção básica através do PSF,

os esforços para a formulação de

políticas para a assistência hospi-

talar, urgências e a chamada ‘mé-

dia e alta complexidade’, além da

elaboração e aprovação do Plano

Nacional de Saúde e dos Pactos pela

Saúde,44 também podem ser consi-

deradas intervenções relevantes

para o SUS.

Contudo, iniciativas como Far-

mácia Popular e Brasil Sorridente

,que compuseram a publicidade do

governo na saúde, reforçam a ten-

dência de privilegiar projetos de

impacto na mídia em detrimento de

políticas públicas comprometidas

com a radicalização da RSB. Por-

40 Ver; em questão. Balanço de 30 meses de governo - Parte 3 Especial Nº 14 - Brasília, 11 de outubro de 200541 Saúde não merecia destaque em publicações do governo nem no discurso dos dirigentes.Ver: em questão, Balanço - 36 meses de governo - Parte 3. No.17, 8 de fevereiro de 2006.42 www.ensp.fiocruz.br/publi/radis (04/03/2002), www.ensp.fiocruz.br/publi/radis (03/03/2003).43 Brasil. Ministério da Saúde. Saúde no Brasil. Contribuições para a Agenda de Prioridades de Pesquisa. Brasília, 2004. 306p.44 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. Departamento de Apoio à Descentralização. Coordenação-Geral de Apoio à GestãoDescentralizada. Diretrizes operacionais dos Pactos pela Vida, em Defesa do SUS e de Gestão. Ministério da Saúde: Brasília, 2006. 76p.45 Somente no último ano de gestão foi criada por decreto presidencial, no âmbito do Ministério da Saúde, a Comissão Nacional deDeterminantes Sociais da Saúde (CNDSS), dispondo de um grupo de trabalho com representantes de vários ministérios (Decreto de 13 demarço de 2006). DOU, No. 50:21, 14 de março de 2006.

....AVALIAR A POLÍTICA DE SAÚDE NA

CONJUNTURA EXCLUSIVAMENTE PELAS AÇÕES

DO MINISTÉRIO DA SAÚDE, PODER-SE-IA

DISPOR DE UMA APRECIAÇÃO POSITIVA, MESMO

FALTANDO RECURSOS E OUSADIA PARA

INTERVENÇÕES MAIS AMPLAS

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TEIXEIRA, Carmen Fontes & PAIM, Jairnilson Silva

280 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 268-283, set./dez. 2005

tanto, se saúde for considerada a

partir da conceituação expressa na

Constituição da República, a polí-

tica de saúde realizada pelo gover-

no Lula foi desastrosa: não se

avançou na ação intersetorial45; o

desemprego e a violência continu-

aram negando o direito à vida; fal-

tam evidências de prioridade para

a saúde; e o setor não foi poupado

nos cortes dos gastos públicos nem

no contingenciamento de verbas já

garantidas pelo orçamento46. En-

quanto o SUS enfrentava dificulda-

des, o sistema de assistência médi-

ca supletiva (SAMS) ganhou ânimo

novo durante o governo Lula, cres-

cendo 21%47.

Portanto, a continuidade das

políticas de ajuste macro-econômi-co e as reformas da previdência48 e

tributária contrastam com a debi-

lidade das políticas sociais49. Os

que desde o primeiro ano de ges-

tão tiveram a coragem de expor pu-

blicamente suas críticas foram acu-

sados de julgar “com crescente se-

veridade o governo Lula”50, ainda

mais diante da simpatia desperta-

da por um ex-metalúrgico carismá-

tico51. Alguns consideravam a crí-

tica precoce e precipitada, já que

muitos acreditavam na chamada

“fase dois” ou de reorientação do

rumo do governo:

“Não faz sentido dizer que o jogo

acabou sugerindo que o jogo poderia

ser jogado de outra maneira, quando

isso não é verdade”.52

Mas a possibilidade de redefini-

ção da política econômica já pare-

cia, desde o início do governo, mui-

to improvável. Seja por uma impos-

sibilidade lógica 53, seja pelo com-

promisso da ‘Carta aos Brasileiros’

e do Ministério da Fazenda com a

sua manutenção, seja pelas indica-

ções contidas no Plano Pluri-Anual

(PPA) com a reiteração da meta de

superávit primário de 4,25% até o

final do governo54. Assim, desde

aquela época, a análise do sociólo-

go Chico de Oliveira apresentava

uma conclusão desconcertante:

A luta foi ganha pela continuidade.

A vertente da ruptura perdeu (...) Para

falar a verdade, o programa do Serra

era melhor do que o do Lula. Mais bem

estruturado, mais claro. Talvez por isso

ele tenha perdido 55.

No interior do governo, alguns

reconheciam que a opção por uma

46 No final de 2005, a MP 261 tentou tirar R$ 1,2 bilhão da saúde para o Fome Zero, além de recursos para hospitais das Forças Armadas (11/2005), etransferiu R$ 186 milhões para o Ministério das Cidades tratar esgotos. Ver: Westin, R. Brecha na lei tira R$ 9 bi da saúde. O Estado de São Paulo, 28/11/2005. Ver, ainda: Entrevista: Financiamento do SUS é o grande desafio. Medicina CFM, 156:20-22, agosto/setembro/outubro 2005; Ministério da Saúdeinvestiu apenas 5,59% de seu orçamento. Medicina CFM, 156:23, agosto/setembro/outubro 2005; 2o Encontro Nacional do Ministério Público em Defesada Saúde. Palmas para a luta do MP! Radis, 39:14-17, novembro de 2005.47 Entre 2000 e 2002 o SAMS esteve estacionado na faixa de 35 milhões de beneficiados de planos de saúde, voltando a crescer na gestão petista:37.103.604 em 2003; 39.567.190 em 2004; e 42.452.067 em dezembro de 2005. www.ans.gov.br/portalv4/site/home/default.asp (acesso em 11/4/2006).48 “Cadê a ‘ampla e democrática negociação’ tanto sobre reforma trabalhista como sobre reforma previdenciária?” (item 56 do Programa de Governo –Coligação Lula Presidente). Rossi, C. Folha de São Paulo, 1º de julho de 2003. P. A 2.49 Não confundir políticas sociais com programas de assistência social (Pro poor programs) ou programas de transferência condicionada (PTC), prescritospelos organismos internacionais, a exemplo do Bolsa Família.50 Carta aos Petistas (Flávio Koutzii, deputado estadual, PT-RS, 29/6/03).51 “Lula atingiu aquele estágio em que não precisa provar nada, apenas que está realmente preparado para ser o presidente que ele prometeu ser e que todosnós também queremos que ele seja”. Cony, C.H. O presidente que todos desejamos. Folha de São Paulo, 18/7/03. p. E 10.52 Ver o cientista político Fábio Wanderley dos Reis (UFMG) na Folha de São Paulo, 8/06/03p.A.8.53 Segundo o filósofo Paulo Arantes, “uma vez adotada a atual política macroeconômica, que não é especificamente brasileira, mas mundial, a saída é umaimpossibilidade lógica (...) Não posso dizer para os mercados, para os investidores, para banco internacional, para a administração americana: ‘agora quevocês viram como sou eficiente, de absoluta confiança, que não vou fazer nenhuma irresponsabilidade na condução da política macroeconômica, agoraque vocês podem acreditar definitivamente em mim, eu vou mudar”. Folha de São Paulo, 8/06/03p.A.8.54 O Ministro Palocci “elevou a meta de superávit primário (a economia de receitas destinadas a pagar os juros da dívida) de 3,75% para 4,25% do PIB”,comprometendo-se a “manter esse patamar mínimo ao longo de todo o mandato de Lula”, apesar das divergências internas da área econômica: a alaliberal da Fazenda X intervencionistas do Planejamento (Mantega) e do Desenvolvimento (Furlan). Ver: Patú, G. Ajuste compromete “espetáculo”. Folhade São Paulo, 29 de junho de 2003, p. A.4.55 Folha de São Paulo, 8/06/03p.A.8.

...A CONTINUIDADE DAS POLÍTICAS DE AJUSTE

MACRO-ECONÔMICO E AS REFORMAS DA

PREVIDÊNCIA E TRIBUTÁRIA CONTRASTAM COM

A DEBILIDADE DAS POLÍTICAS SOCIAIS...

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A política de saúde no governo Lula e a dialética do menos pior

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 268-2832, set./dez. 2005 281

política monetarista provocava au-

mento do desemprego e redução daatividade econômica, mas, por fal-ta de alternativa a tal política oupor insuficiência de poder para re-formulá-la, admitiam que interven-ções nas franjas do capitalismo se-riam capazes de retomar o desen-volvimento do país:

Lula está procurando combinar

uma política macroeconômica ortodo-

xa com políticas mesoeconômicas que

vão na direção oposta. Enquanto man-

tém juros altos e oferta de crédito ban-

cário restrita, o presidente promove a

liberação das cooperativas de crédito e

a ampliação do microcrédito. O resul-

tado esperado seria a expansão de cré-

dito a juros mais baixos para pequenos

e microempresários, enquanto as em-

presas de maior tamanho continuari-

am tendo de lidar com uma política mo-

netária restritiva. Lula aposta na vol-

ta do crescimento pela expansão dos pe-

quenos, ou seja, com distribuição de

renda. ( SINGLER, 2003 p.10)56

Mas se a política econômica au-mentava o desemprego, produziadoenças e violências, além de com-prometer os serviços públicos, comoavançar no SUS, movido a gente ea recursos públicos? Como implan-tar uma “carreira do SUS”, quandoos servidores públicos eram sata-

nizados, responsabilizados pelo su-posto déficit da previdência e ame-açados nos seus direitos como tra-balhadores que assinaram contra-tos sob determinadas regras, en-quanto estas eram mudadas sem asua participação?

Mesmo que as políticas sociaisnão apresentassem mais retrocessose conseguissem se proteger das in-vestidas do Banco Mundial e dosassessores da área econômica, her-dados do governo FHC, contra a

universalização estabelecida pelaConstituição da República, a políti-ca econômica continuava produzin-do desemprego, desigualdades, es-tagnação e vulnerabilidade externa.Esses tempos já eram anunciadosno documento do Secretário de Po-

lítica Econômica do Ministério daFazenda, em abril de 2003, regis-trando um controle severo dos gas-tos públicos até o final do governo:

“Uma das tarefas do governo é a

execução de uma política fiscal sólida,

nos próximos ano,s que traga consis-

tência de médio e longo prazo às con-

tas públicas, e uma melhoria da quali-

dade do ajuste fiscal realizado nos úl-

timos anos (p.7)(...).No que se refere a

políticas sociais, é fundamental que se

implementem reformas que corrijam

grandes distorções no que tange à es-

trutura tributária do governo e à foca-

lização e à eficácia dos programas so-

ciais”57.

Para o governo as medidas ado-tadas se faziam imprescindíveis,pois considerava que pior seria orisco de uma desorganização daeconomia. E o presidente, que de-sejava um crescimento com facehumana58 e anunciava, a cada ano,o espetáculo do crescimento, con-tentou-se por ter evitado o risco dedescontrole inflacionário e ter obti-do maioria parlamentar para apro-vação das propostas de reformasenviadas para o Congresso Nacio-nal, mediante uma articulação po-lítica com métodos escusos. Estespassaram a ser utilizados paramanutenção da base de apoio ao

56 Entrevista Paul Singer. A Tarde, 9/6/03.p.10.57 Ministério da Fazenda. Política Econômica e Reformas Estruturais.Brasília, abril de 2003. 95p. Esta mesma equipe volta a atacar ogasto social dedicando mais de três páginas à saúde com a seguinte conclusão: “Embora a proporção de gastos com saúde destinados aoatendimento hospitalar e curativo tenham diminuído nos últimos anos, o seu nível ainda é relativamente alto” (p.33).Ver: Ministério da Fazenda. Secretaria de Política Econômica. Gasto Social do Governo Central: 2001 e 2002. Brasília, novembro de2003.47p.58 Lula quer “crescimento com face humana” .Folha de São Paulo, 3 de julho de 2003.p. B 10. Ver também: ‘Espetáculo do crescimento’ nãoocorre neste ano, diz BC. Folha de São Paulo, 1/07/03 p.A 1. .

COMO IMPLANTAR UMA “CARREIRA DO

SUS”, QUANDO OS SERVIDORES PÚBLICOS

ERAM SATANIZADOS, RESPONSABILIZADOS PELO

SUPOSTO DÉFICIT DA PREVIDÊNCIA...

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TEIXEIRA, Carmen Fontes & PAIM, Jairnilson Silva

282 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 268-283, set./dez. 2005

governo e desencadearam a crisepolítica conhecida como o escânda-lo do ‘mensalão’, que marcou o anode 2005 e progrediu em 2006. 59 Asreuniões do Congresso na espiral deCPIs representaram a face mais vi-sível do espetáculo de arrogância edesprezo pelos princípios e valoresrepublicanos60. E se a efetividadedas políticas sociais é reconhecidaa partir dos efeitos observados (in-dicadores sociais), as evidências,também, não são alentadoras:

A julgar pelo que foi realizado até

agora, a política de Lula segue a das

administrações anteriores (...). Ao mes-

mo tempo, a ênfase da atividade go-

vernamental parece ter se deslocado das

políticas universalizantes e habilitado-

ras, como educação e saúde, para os

programas assistenciais destinados

aos mais pobres, como o Bolsa-Família

(ALMEIDA, 2004, p.16-17).

Do balanço mais geral, fica aimpressão de um governo sem fisi-onomia, sem coluna vertebral, ca-racterizado pela rendição à políticaeconômica neoliberal e pela imple-mentação de um conjunto de medi-das de cunho populista, configuran-do uma situação apoiada pelos ex-tremos da sociedade brasileira, úni-cos a se beneficiarem com a manu-

tenção dessa situação, além dosquadros partidários que se deslum-braram com o exercício do poder esuas benesses: de um lado, os ban-queiros, ínfima minoria de privile-giados, e, do outro, a massa demiseráveis que continua apostan-do em Lula por agradecimento àsmigalhas recebidas por meio daspolíticas assistencialistas.

Melancólica a primeira experi-ência de gestão do Estado capita-lista no Brasil por forças conside-radas de esquerda. O ‘transformis-

mo’ brasileiro há tempos se apre-sentou como modernização conser-vadora, com revolução produtivasem revolução burguesa. Recorreuà ditadura militar (1964-1985) como‘via prussiana’, adotando o endivi-

damento externo como “solução” eabrindo as portas à financeirizaçãoda economia e das contas do Esta-do. No pós-85, possibilitou a emer-gência de uma nova classe socialque se estrutura sobre

(...) técnicos e economistas “dou-

blés” de banqueiros (núcleo duro do

PSDB) e trabalhadores transformados

em operadores de fundos de previdên-

cia (núcleo duro do PT) com controle do

acesso aos fundos públicos e conheci-

mento do “mapa da mina (OLIVEIRA,

2003 p. 147).

É possível creditar a essas for-ças aquilo que alguns autores (COS-TILLA, 2001; IVO, 2001). chamamde estatização de partidos políticos,destituição do social, reforma neo-liberal do Estado e esvaziamento dademocracia. O governo Lula, nocontinuísmo da política econômicade FHC (que tanto deplorou) e namesmice da gestão das políticassociais, brindou os brasileiros nãocom a dialética do possível, 61 mascom a dialética do menos pior.

Manter e consolidar conquistashistóricas permanecem como desa-fios, inclusive diante das modifica-ções da equipe dirigente do Minis-tério da Saúde62. Ao mesmo tempo,a natureza suprapartidária do mo-

59 O momento da verdade. Isto é, 19 de abril de 2006, p.28-32.60 Menos de duas semanas antes das eleições presidenciais a sociedade brasileira viu-se surpreendida com mais um escândalo político: ochamado, pela mídia, “dossiêgate”. Ver: Sismo sob o PT. Folha de São Paulo, 25 de setembro de 2006. A2 (Editoriais).61 Expressão utilizada por Campos (1988:189) para questionar a política de setores de esquerda que ocuparam posições de governo naNova República.62 Como parte das manobras realizadas com o intuito de administrar a crise e tentar levar o governo até o final, a reforma ministerial feitaàs pressas em 2005, contemplou a substituição do Ministro Humberto Costa, pelo Deputado Saraiva Felipe, do PMDB. Tal episódio revelou,entretanto, o esforço dos atores envolvidos com o movimento da Reforma Sanitária em continuar disputando, palmo a palmo, o terrenominado da política brasileira. Mesmo uma articulação partidária de caráter fundamentalmente fisiológico, contemplou um personagemvinculado ao projeto histórico da Reforma Sanitária. Assim, diversos atores continuam se revezando no espaço institucional, mesmodepois da saída do Ministro Saraiva Felipe, em 2006, para evitar o mal maior, no caso, a saúde voltar a ser “terra de ninguém”, presa doclientelismo, da irresponsabilidade e da corrupção endêmica.

...FICA A IMPRESSÃO DE UM GOVERNO SEM

FISIONOMIA, SEM COLUNA VERTEBRAL,CARACTERIZADO PELA RENDIÇÃO À POLÍTICA

ECONÔMICA NEOLIBERAL E PELA

IMPLEMENTAÇÃO DE UM CONJUNTO DE

MEDIDAS DE CUNHO POPULISTA ...

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A política de saúde no governo Lula e a dialética do menos pior

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 268-2832, set./dez. 2005 283

vimento sanitário brasileiro ainda

permite pensar a Reforma Sanitária

como uma utopia concreta, um pro-

jeto civilizatório que

pretende produzir mudanças dos

valores prevalentes na sociedade bra-

sileira, tendo a saúde como eixo de

transformação e a solidariedade como

valor estruturante (CARTA DE BRASÍ-

LIA 2005) 63

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MORONI, José Antônio

284 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 284-304, set./dez. 2005

ARTIGOS ORIGINAIS / ORIGINAL ARTICLES

O direito à participação no Governo LulaThe right to participation in the Lula Government

José Antônio Moroni1

Recebido: Dez./2006

Aprovado: Mar./2007

1 Filósofo; é membro do colegiado de ges-

tão do Instituto de Estudos Socioeconô-

micos (INESC), da executiva nacional da

Associação Brasileira de Organizações Não

Governamentais (ABONG), secretário nacio-

nal do FNPP (Fórum Nacional de Partici-

pação Popular) e membro do CEBES.

E-mail: [email protected]

RESUMO

Pretende-se analisar como o Governo Lula tratou a questão da

participação, tendo como olhar especial a criação e a reformulação de

conselhos de políticas públicas nacionais, a realização de conferências

nacionais e o processo participativo de debate do Plano Plurianual (PPA

2004-2007), ocorrido em 2003. A análise foca o sistema descentralizado e

participativo, sem deixar de reconhecer outras formas de participação e

sua importância. Procura-se trazer algumas questões para os movimentos

sociais e as organizações que se propõem a interferir de forma propositiva

na deliberação das políticas públicas, e, portanto, construir a participação

como um direito humano fundamental.

PALAVRAS-CHAVE: Participação no Poder; Conselho de Política Pública;

Conferências Nacionais.

ABSTRACT

This article intends to analyze how the Lula government has handled

the issue of participation, especially in terms of the creation and

reformulation of national public policy councils, the staging of national

conferences and the participative debate process of the Multi-Year Plan

(PPA 2004-2007) in 2003. The analysis focuses on the decentralized and

participative system, without failing to acknowledge other forms of

participation and their importance. It looks to drawn on some issues in

relation to social movements and organizations that purposefully

interfere in the resolution of public policies, and thus establish

participation as a fundamental human right.

KEYWORDS: Participation in power; Public Policy Council; National Conferences.

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O direito à participação no Governo Lula

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 284-304, set./dez. 2005 285

INTRODUÇÃO

Homens e mulheres sempre lu-

taram para participar da esfera pú-

blica. Assim, além da igualdade e

da liberdade, a demanda por parti-

cipar sempre esteve presente nas

lutas sociais nos diferentes perío-

dos da historia e de diversas for-

mas. Por isso, participar significa

incidir politicamente nas questões

que dizem respeito à vida concreta

das pessoas, mas também, nos pro-

cessos de tomada de decisão do

Estado e dos governos, o que, por

sua vez, afeta sempre de uma for-

ma ou outra a vida concreta das

pessoas.

Ao longo dos tempos, as ‘dife-

renças’ entre as pessoas e grupos

sempre foram a origem das ‘desi-

gualdades’, por isso, quase sempre,

achamos que as duas coisas são a

mesma coisa. As estruturas de do-

minação e manutenção de privilé-

gios de uma classe ou de um grupo

sobre outros (status), que é a desi-

gualdade, têm como base as dife-

renças de etnia/raça, local de nas-

cimento ou de moradia, sexo, ori-

entação sexual, nacionalidade, etc.

e originaram formas muito diferen-

ciadas de participação e, em mui-

tas casos, de negação do próprio

direito a participar.

A própria idéia de participação

de todos e de todas como elemento

fundamental e constituinte do espa-

ço público foi abandonada em ra-

zão de seu potencial desestabiliza-

dor das estruturas de dominação.

A democracia passa a ser entendi-

da apenas como um método, ou

seja, um procedimento de escolha

dos representantes por meio de elei-

ções. Dentro dessa concepção, os

regimes políticos democráticos são

aqueles que seguem os procedimen-

resses dos ‘donos do poder’ que

suprimem a voz dos dominados,

criando a ilusão de que todos têm

as mesmas oportunidades e de que

as desigualdades entre as pessoas

têm origem nas diferentes capaci-

dades individuais ou depende de

sorte. Os mais bem-sucedidos seri-

am os mais capazes e talentosos.

Em especial nos países da Amé-

rica Latina, esta concepção de de-

mocracia e participação política li-

mitada, aliada a uma igualdade

estabelecida apenas do ponto de vis-

ta formal, esconde uma estrutura

de dominação e opressão construí-

da historicamente e perpetrada pelo

próprio Estado, que nunca foi de-

mocrático ou de fato público, mas

patrimonialista ao extremo, patri-

arcal e, no caso brasileiro, escra-

vocrata e burocrático.

UM POUCO DE HISTORIADA PARTICIPAÇÃO NO BRASIL

Em nosso país, sempre ocorre-

ram movimentos de resistência à

dominação e à apropriação do es-

paço e dos bens públicos e do pró-

prio Estado por interesses privados.

Recentemente, no final da déca-

da de 1970 e início dos anos 80, o

movimento social1 retomou a ques-

tão da democratização do Estado,

tos eleitorais e garantem certas li-

berdades e igualdades formais, para

que os/as ‘eleitores-clientes’ possam

escolher no mercado eleitoral a pro-

posta mais adequada às suas pre-

ferências racionais.

Essa redução da democracia e

da participação política a um pro-

cedimento formal atende aos inte-

A PRÓPRIA IDÉIA DE PARTICIPAÇÃO DE TODOS EDE TODAS COMO ELEMENTO FUNDAMENTAL E

CONSTITUINTE DO ESPAÇO PÚBLICO FOI

ABANDONADA EM RAZÃO DE SEU POTENCIAL

DESESTABILIZADOR DAS ESTRUTURAS DE

DOMINAÇÃO

1 Apesar de existirem vários e diversos movimentos sociais, usaremos a expressão’movimento socia’ no singular, pois não falamos de ummovimento específico mas de um conjunto de ações da sociedade civil que se materializou na organização de um movimento social amplo,com características, filosofias e concepções comuns – que se denominou ‘campo democrático e popular’ –, tendo como agenda política aconstrução do Estado Democrático e Social e o combate a todas as formas de desigualdades.

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MORONI, José Antônio

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debatendo a seguinte questão: Que

mecanismos são necessários para

democratizar o Estado e torná-lo de

fato público? Na formulação desta

questão estava embutida a avalia-

ção de que a democracia represen-

tativa – via partidos e processo elei-

toral – não é suficiente para respon-

der às complexas necessidades da

sociedade moderna e da multiplici-

dade dos sujeitos políticos. Era ne-

cessário criar outros mecanismos de

participação que permitissem fazer

a expressão política desta multipli-

cidade emergir na esfera pública e,

ao mesmo tempo, influenciar as

decisões políticas.

Isso significava criar estratégi-

as e propostas para além da garan-

tia e efetivação de direitos civis,

políticos, sociais, econômicos e cul-

turais, permitindo e assegurando a

participação popular efetiva nas

políticas públicas e em todas as

decisões de interesse público. Por-

tanto, tornar a participação também

um direito humano fundamental,

fundante e estruturante dos demais

direitos.

No processo da Constituinte

(1986-88), essas concepções políti-

cas foram detalhadas e aprofunda-

das. O movimento social levou para

ela, além da luta pela democratiza-

ção e publicização do Estado, a ne-

cessidade do controle social, incor-

porando cinco dimensões: 1) formu-

lação; 2) deliberação; 3) monitora-

mento; 4) avaliação; e 5) financia-

mento das políticas públicas (orça-

mento público). A Constituição de

1988(BRASIL, 1988) transformou

essas questões em diretrizes de di-

versas políticas, em especial as cha-

madas políticas sociais.

O inciso II do artigo 204 da Cons-

tituição Federal (1988), que trata da

política pública de assistência so-

cial, por exemplo, diz: “participa-

Foi por ocasião da regulamenta-

ção dessas diretrizes constitucionais

que começaram a ser estruturados

espaços públicos institucionais

como os conselhos de políticas pú-

blicas e as conferências, mecanis-

mos que concretizam os princípios

constitucionais de democratização

e de controle social. A exceção é a

política de saúde, que incorporou a

participação na sua formulação

antes da Constituição de 1988.

Vale ressaltar que na política

econômica não se criou nenhum

mecanismo institucionalizado e

público de participação, assim

como não foi criado nenhum meca-

nismo participativo em arenas de

decisão que definem as diretrizes do

modelo de desenvolvimento brasi-

leiro.

A Constituição de 1988 apresen-

tou grandes avanços em relação aos

direitos sociais, apontando, clara-

mente, para a construção de um

Estado de Bem-Estar provedor da

universalização dos direitos soci-

ais.2 Além disso, introduziu instru-

mentos de democracia direta (ple-

biscito, referendo e iniciativa popu-

lar) – que foram regulamentados

pelo Congresso Nacional de forma

limitada, abrindo a possibilidade de

se criarem mecanismos de democra-

cia participativa (os conselhos de

políticas públicas, por exemplo).

ção da população, por meio de or-

ganizações representativas, na for-

mulação das políticas e no contro-

le das ações em todos os níveis”

(BRASIL, 1988, p. 41). Este proces-

so criou o que chamamos do ‘siste-

ma descentralizado e participativo’

das diferentes políticas públicas.

A CONSTITUIÇÃO DE 1988 APRESENTOU

GRANDES AVANÇOS EM RELAÇÃO AOS DIREITOS

SOCIAIS, APONTANDO, CLARAMENTE, PARA ACONSTRUÇÃO DE UM ESTADO DE BEM-ESTAR

PROVEDOR DA UNIVERSALIZAÇÃO DOS DIREITOS

SOCIAIS ...

2 Estamos utilizando como conceituação de Estado de Bem-Estar a definição apresentada por Falcão (1991). Conforme esta autora, o Estadode Bem-Estar é aquele constituído nos países de capitalismo avançado, possuindo como características: a) direitos sociais como paradigma;b) origem num pacto social e político entre Capital-Estado-Trabalho; c) configuração como agente central na reprodução social; d) gestorpoderoso das políticas sociais, que são a expressão essencial do Estado.

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O direito à participação no Governo Lula

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 284-304, set./dez. 2005 287

Entretanto, no que se refere à

ordem econômica, ao sistema polí-

tico (financiamento público exclu-

sivo de campanha, democratização

dos partidos, processos eleitorais

transparentes, mecanismos que vi-

abilizem a participação da mulher

na política, possibilidade de cassa-

ção de mandato pela população,

etc.) e a democratização da infor-

mação e da comunicação, dimen-

sões fundamentais para a constru-

ção de um Estado democrático, a

Constituição de 1988 foi extrema-

mente conservadora.

Existe uma contradição entre

esse processo e o momento históri-

co vivido internacionalmente, mar-

cado pela ampliação e pelo fortale-

cimento das políticas neoliberais.

No Brasil, ao mesmo tempo que se

elaborava uma Constituição que

apontava para a construção do Es-

tado de Bem-Estar Social, do ponto

de vista da política entrávamos na

era neoliberal com a eleição de Fer-

nando Collor de Mello para a Presi-

dência da República. Aqui, é impor-

tante assinalar certa coincidência

dos discursos em relação à descen-

tralização e à participação. O mo-

vimento social falava em descentra-

lização no sentido do poder de deci-

são estar mais perto da população

e não concentrado em ‘Brasília’,

isto é, no município e não mais na

União. Falava em participação das

organizações da sociedade civil na

definição das políticas, de forma

autônoma e independente. A concep-

ção neoliberal entendia a descentra-

lização como estratégia de enfra-

quecimento do Estado (desregula-

mentação) e a participação como

meio de repassar para a sociedade

atribuições do Estado, sobretudo na

área social.

As mais importantes forças

sociais/políticas que atuaram na

construção desse ‘modelo’ de parti-

cipação foram o chamado campo

democrático e popular, cujo princi-

O presente artigo procura anali-

sar como o Governo Lula tratou a

questão da participação, tendo

como olhar especial a criação e a

reformulação de conselhos de polí-

ticas públicas nacionais, a realiza-

ção de conferências nacionais e o

processo participativo de debate do

Plano Plurianual (PPA 2004-2007),

ocorrido em 2003. Centramos a aná-

lise do sistema descentralizado e

participativo, o que não quer dizer

que não reconheçamos outras for-

mas de participação e sua impor-

tância. Procuramos trazer algumas

questões para os movimentos soci-

ais e as organizações que se pro-

põem a interferir de forma proposi-

tiva na deliberação das políticas

públicas, portanto, para construir

a participação como um direito hu-

mano fundamental.

DEMOCRACIA PARTICIPATIVAE O SISTEMA DESCENTRALIZADO

Como ponto de partida, quere-

mos fazer quatro afirmações: 1) que

a democracia participativa não se

reduz ao sistema descentralizado e

participativo; 2) que existem outras

formas legítimas de participação,

sejam institucionalizadas ou não

(não se pode reduzir a participação

ao sistema descentralizado e parti-

cipativo); 3) que a concepção de um

sistema descentralizado e participa-

tivo (conselhos e conferências com

pal canal partidário era o Partido

dos Trabalhadores (PT). Com a elei-

ção de Luiz Inácio Lula da Silva para

presidente da República, em 2002,

criou-se a expectativa de que o cha-

mado ‘sistema descentralizado e

participativo’ fosse realmente efeti-

vado. Esperava-se que os cidadãos

e cidadãs do Brasil pudessem par-

ticipar de modo ativo e cada vez

mais das decisões públicas e que

novos canais de participação fossem

criados.

NO BRASIL, AO MESMO TEMPO QUE SE

ELABORAVA UMA CONSTITUIÇÃO QUE

APONTAVA PARA A CONSTRUÇÃO DO ESTADO DE

BEM-ESTAR SOCIAL, DO PONTO DE VISTA DA

POLÍTICA ENTRÁVAMOS NA ERA NEOLIBERAL

COM A ELEIÇÃO DE FERNANDO COLLOR DE

MELLO PARA A PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA

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MORONI, José Antônio

288 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 284-304, set./dez. 2005

caráter deliberativo) escapa aos tra-

dicionais mecanismos políticos de

decisão e legitimação (democracia

representativa ou direta); 4) Reco-

nhecemos, apesar das críticas e do

quadro atual do sistema, o não-es-

gotamento da estratégia construída

pela sociedade civil do campo de-

mocrático e popular nas últimas

décadas.

As modalidades tradicionais do

direito de participação política –

como o direito de votar e ser vota-

do, a filiação partidária, etc. – não

são suficientes para a cidadania de

hoje. Há necessidade de se criar

novas modalidades de participação

política, isto é, novas formas de

exercer o direito fundamental do ser

humano de “tomar parte no gover-

no de seu país diretamente ou por

intermédio de representantes li-

vremente escolhidos” (artigo XXI da

Declaração Universal dos Direitos

Humanos).

A participação tem valor em si

mesma, por isso não é instrumen-

tal de um projeto político. Podemos

dizer que a participação tem duas

dimensões fundamentais interliga-

das e que interagem permanente-

mente: a dimensão política e a pe-

dagógica. Participação, antes de

mais nada, é partilha de poder e

reconhecimento do direito a interfe-

rir de maneira permanente nas de-

cisões políticos (dimensão política).

É também a maneira pela qual as

aspirações e as necessidades dos

diferentes segmentos da população

podem ser expressadas no espaço

público de forma democrática, es-

tando associada ao modo como es-

tes ‘grupos’ se percebem como ci-

dadãos e cidadãs. A participação é

um processo educativo-pedagógico.

Expressar desejos e necessidades,

construir argumentos, formular pro-

postas, ouvir outros pontos de vis-

ta, reagir, debater e chegar ao con-

senso são atitudes que transformam

todos aqueles que integram proces-

agregando grupos sociais que pas-

sam a agir como sujeitos políticos

coletivos, com perspectivas e cons-

truções próprias, reivindicando re-

conhecimento, direitos, redistribui-

ção de riquezas e de poder perante

as estruturas de interesses domi-

nantes na sociedade e no Estado.

Na década de 1980 os então de-

nominados ‘novos sujeitos políticos’

– movimento negro, de mulheres,

socioambientalista, indígena, ho-

mossexual, de pessoas com defici-

ência, de crianças e adolescentes,

sem-terra, sem-tetos, etc. –, até en-

tão sub-representados na política

brasileira, juntamente com os mo-

vimentos e organizações tradicio-

nais, se inter-relacionam para trans-

formar demandas em direitos, cons-

truindo processos democráticos e

um outro modelo de sociedade.

Foi esse amplo movimento soci-

al e popular que elaborou a estra-

tégia de criação do sistema descen-

tralizado e participativo (conselhos

e conferências) como instrumento de

democratização e publicização do

Estado. Vale ressaltar aqui a impor-

tância que teve neste processo os

profissionais que atuavam no inte-

rior do Estado e que, em aliança

com esse movimento, ajudaram na

construção da estratégia política.

Partindo destas premissas, va-

mos situar e analisar o sistema des-

centralizado e participativo, pois

entendemos que sua legitimidade

está no reconhecimento da democra-

sos participativos. É uma verdadei-

ra educação republicana para o

exercício da cidadania, que amplia

um espaço público real, em que a

construção dialogada do interesse

público passa a ser o objetivo de

todos os homens e mulheres. Por

isso, participar também é disputar

sentidos e significados.

A interação de homens e mulhe-

res nesse espaço público produz

solidariedade e identidades comuns,

AS MODALIDADES TRADICIONAIS

DO DIREITO DE PARTICIPAÇÃO POLÍTICA –COMO O DIREITO DE VOTAR E SER VOTADO, A

FILIAÇÃO PARTIDÁRIA, ETC. – NÃO SÃO

SUFICIENTES PARA A CIDADANIA DE HOJE

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O direito à participação no Governo Lula

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 284-304, set./dez. 2005 289

cia participativa como arranjo ins-

titucional que amplia a democracia

política e o espaço público. Por sua

vez, a legitimidade da democracia

participativa fundamenta-se no re-

conhecimento do direito à partici-

pação, da diversidade dos sujeitos

políticos coletivos e da importân-

cia da construção do espaço públi-

co de conflito/negociação. Por isso,

amplia os processos democráticos,

não atuando em substituição ou

oposição à democracia representa-

tiva.

O sistema descentralizado e par-

ticipativo é um espaço essencial-

mente político, instituído por repre-

sentações governamentais e não

governamentais, responsáveis por

elaborar, deliberar e fiscalizar a

implementação de políticas públi-

cas, estando presentes nos âmbitos

municipal, estadual e nacional. Des-

sa forma, inauguram uma nova

concepção de espaço público ou

mesmo de democracia. Podemos

afirmar, também, que a concepção

do sistema descentralizado e parti-

cipativo (especialmente os conselhos

e conferências) criado na Constitui-

ção de 1988 está relacionado à ques-

tão da democratização e da publi-

cização do Estado. Em outras pala-

vras, é uma das possibilidades cri-

adas para enfrentar a ausência de

mecanismos eficazes de controle da

população sobre os atos do Estado.

O sistema descentralizado e par-

ticipativo foi concebido com as se-

guintes características:

CONSELHOS

a) órgão público e estatal;

b) com participação popular, por

meio de representação institucio-

nal;

c) representantes da sociedade ci-

vil eleitos em fórum próprio e pela

própria sociedade;

d) com composição paritária entre

governo e sociedade (reconhecimen-

to da multiplicidade dos sujeitos

políticos);

j) Liberdade de escolha da presidên-

cia do conselho pelo próprio conse-

lho;

k) Presente nas três esferas de go-

verno, funcionado em forma de sis-

tema descentralizado.

Com base na concepção, pode-

mos definir ‘conselho de política

pública’ como espaço fundamental-

mente político, institucionalizado,

funcionando de forma colegiada,

autônomo, integrante do poder pú-

blico, de caráter deliberativo, com-

posto por membros do governo e da

sociedade civil, com as finalidades

de elaboração, deliberação e contro-

le da execução das políticas públi-

cas.

Na verdade, o conselho é um ins-

trumento para a concretização do

controle social – uma modalidade

do direito à participação política

que deve interferir efetivamente no

processo decisório dos atos gover-

namentais.

Numa leitura simplificada, po-

demos dizer que os conselhos des-

locam o espaço de decisão do esta-

tal-privado para o estatal-público,

dando oportunidade à transforma-

ção dos sujeitos sociais em sujeitos

políticos, em que a governabilida-

de é democrática e compartilhada

por todos.

CONFERÊNCIAS

São espaços institucionais de

deliberação das diretrizes gerais de

uma determinada política pública.

São espaços mais amplos que os

e) criado por lei ou outro instru-

mento jurídico, portanto, espaço

institucional;

f) com atribuições deliberativas e

de controle social;

g) espaço público da relação e da

interlocução entre Estado e socie-

dade;

h) mecanismo de controle da soci-

edade sobre o Estado;

i) com atribuições de discutir a

aplicação dos recursos, isto é, do

orçamento público;

... A CONCEPÇÃO DO SISTEMA

DESCENTRALIZADO E PARTICIPATIVO

(ESPECIALMENTE OS CONSELHOS ECONFERÊNCIAS) CRIADO NA CONSTITUIÇÃO DE

1988 ESTÁ RELACIONADO À QUESTÃO DA

DEMOCRATIZAÇÃO E DA

PUBLICIZAÇÃO DO ESTADO

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MORONI, José Antônio

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conselhos, envolvendo outros sujei-

tos políticos que não estejam neces-

sariamente nos conselhos, por isso,

têm também caráter de mobilização

social. Governo e sociedade civil, de

forma paritária, por meio de suas

representações, deliberam de forma

pública e transparente. Estão inse-

ridas no que chamamos de ‘demo-

cracia participativa’ e do ‘sistema

descentralizado e participativo’,

construído a partir da Constituição

de 1988 e que permite a construção

de espaços de negociação, a cons-

trução de consensos e dissensos,

compartilhamento de poder e a co-

responsabilidade entre o Estado e a

sociedade civil. As conferências na-

cionais são precedidas de conferên-

cias municipais/regionais e estadu-

ais e são organizadas pelos respec-

tivos conselhos.

SISTEMA DESCENTRALIZADO

E PARTICIPATIVO

A criação do sistema descentra-

lizado e participativo (conselhos e

conferências nas três esferas de go-

verno e nas diferentes políticas pú-

blicas) foi – e ainda é – uma das

fórmulas encontradas para que haja

efetivo controle e exercício popular

do poder, tendo como pressuposto

a democracia participativa. Isso sig-

nifica que é uma das formas de

exercício do direito de participação

política cujo pressuposto é a exis-

tência de outras modalidades de tal

direito, como o direito de votar e

ser votado, liberdade de organiza-

ção, etc. Mas aqui vale a pergunta:

por si só, este processo democrati-

za a definição das políticas públi-

cas?

DEMOCRACIA PARTICIPATIVA

Podemos afirmar que o princi-

pal objetivo estratégico da democra-

cia participativa é a universaliza-

ção da cidadania, portanto, a cons-

trução de uma democracia cotidia-

na. A democracia não pode ser algo

abstrato na vida das pessoas ou, de

foram tornados desiguais. ‘Univer-

salizar’ significa estender a todos e

a todas a cobertura de iguais direi-

tos e, também, responsabilizá-los

pela efetivação de tais direitos. A

universalização da cidadania, no

caso brasileiro, não será alcançada

sem a implementação de políticas

reparadoras dos danos causados

por séculos de exploração, desigual-

dades, preconceitos e discrimina-

ções.

A construção da democracia nos

impõe vigilância permanente e cons-

tante no sentido de criar mecanis-

mos institucionais de participação,

com regras definidas e claras, que

equacionem as pressões das maio-

rias sobre as minorias, ou das mi-

norias ativistas contra as maiorias

passivas. Neste sentido, esses espa-

ços devem ter estratégias claras e

eficazes com vistas a incorporar

indivíduos ou grupos sociais alhei-

os à participação – os chamados

‘desiludidos’ da vida social.

Da mesma forma que uma soci-

edade democrática força o Estado a

se democratizar, o inverso também

tem de ser verdadeiro, pois a demo-

cracia exige uma postura democrá-

tica dos cidadãos e cidadãs, seja nos

espaços públicos ou nos privados.

Um último registro: no Brasil,

por tradição (infelizmente temos de

reconhecer) a corrupção é uma for-

ma de se fazer e se pensar a políti-

ca. Em outras palavras, a corrup-

ção é o modo como o Estado bra-

concreto, apresentar apenas as elei-

ções. Deve proporcionar ao cidadão

e à cidadã a participação plena nas

questões que lhes dizem respeito,

além de favorecer sua soberania,

autodeterminação e autonomia.

A universalização da cidadania,

do ponto de vista ético-político, pres-

supõe o combate a todas as formas

de discriminação, a promoção da

igualdade de condições e de opor-

tunidades entre os diferentes que

... O PRINCIPAL OBJETIVO ESTRATÉGICO DA

DEMOCRACIA PARTICIPATIVA É AUNIVERSALIZAÇÃO DA CIDADANIA, PORTANTO, ACONSTRUÇÃO DE UMA DEMOCRACIA COTIDIANA

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O direito à participação no Governo Lula

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 284-304, set./dez. 2005 291

sileiro opera, e serve para que gru-

pos se apropriem dos recursos pú-

blicos e do poder para defender in-

teresses privados. A corrupção não

se caracteriza apenas por aspectos

monetários/financeiros. Caracteriza-

se, principalmente, pelo uso do po-

der político em benefício de interes-

ses privados e particulares (aqui

incluído o desejo de se perpetuar no

poder). ‘O bem mais valioso rouba-

do pela corrupção é o poder de de-

cisão do povo’. Portanto, corrupção

e participação são formas comple-

tamente diferentes de operar a polí-

tica.

ALGUNS MITOS RELACIONADOSA PARTICIPAÇÃO

A participação da sociedade ci-

vil nas instâncias de decisão é, na

maioria das vezes, cercada de mi-

tos criados pelos discursos gover-

namentais e da sociedade civil. Va-

mos citar apenas quatro destes mi-

tos que dificultam a participação:

1) ‘A participação por si só muda

a realidade’. É um mito que despo-

litiza a participação, pois não per-

cebe que há sujeitos políticos que

não querem que as coisas mudem,

não percebe a correlação de forças

e, por conseqüência, não percebe

que há outras formas e interesses,

alguns legítimos, outros nem tan-

to, que definem também as políti-

cas. É a despolitização da partici-

pação.

2) ‘A sociedade não está prepa-

rada para participar, como protago-

nista, das políticas públicas’. Este

mito baseia-se no preconceito do

saber, em que a burocracia e/ou o

político detém o saber e a delega-

ção para decidir. Tal mito justifica

a tutela do Estado sobre a socieda-

de civil, o que leva, por exemplo, o

Estado a não criar espaços institu-

cionalizados de participação ou a

e cidadãs é o momento do voto. Esta

concepção torna o Estado privado,

por intermédio do partido que ga-

nha a eleição. Durante o mandato,

o partido decide o que fazer confor-

me os interesses partidários.

4) ‘A sociedade é vista como ele-

mento que dificulta a tomada de

decisões’, seja pela questão tempo

(demora em decidir, obrigatorieda-

de de convocar reuniões, etc.), seja

pela questão de posicionamento crí-

tico diante das propostas ou da au-

sência delas por parte do Estado.

Estes mitos, na verdade, são dis-

farces ideológicos forjados por

aqueles que detêm o poder político

no Brasil (seja este poder oriundo

do poder econômico, da ocupação

de um cargo burocrático ou de um

cargo eletivo). Por isso, tais mitos

devem ser desconstruídos com base

em uma concepção ampliada de

democracia e da politização da par-

ticipação.

A PARTICIPAÇÃOEM NÚMEROS

Não se tem levantamento atua-

lizado e preciso do número dos con-

selhos no Brasil, nem das organi-

zações e pessoas envolvidas, mui-

to menos, análises mais globais da

efetividade destes instrumentos na

construção de políticas públicas. O

que seriam hoje as políticas públi-

cas sociais no Brasil, com o des-

indicar, escolher e determinar quem

são os representantes da sociedade

nos espaços criados, assim como

não disponibilizar as informações

(por que a ‘sociedade não vai en-

tender’).

3) A sociedade não pode com-

partilhar da governabilidade, isto é,

da construção das condições políti-

cas para tomar e implementar deci-

sões, porque o momento de partici-

pação da sociedade e dos cidadãos

A PARTICIPAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL NAS

INSTÂNCIAS DE DECISÃO É, NA MAIORIA DAS

VEZES, CERCADA DE MITOS CRIADOS PELOS

DISCURSOS GOVERNAMENTAIS

E DA SOCIEDADE CIVIL

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monte do Estado em curso com as políticas neoliberais, sem a criação do sistema descentralizado e participativo?

Ë uma bela pergunta a ser feita. A impossibilidade de responder a ela dificulta qualquer análise qualitativa que se

queira fazer. Portanto, só podemos – e ainda de forma limitada – nos ater aos números disponíveis, mesmo que

insuficientes e desatualizados.

O quadro que apresentamos a seguir se refere aos conselhos municipais em dez políticas sociais e foi elaborado

a partir da Pesquisa de Informações Básicas Municipais do IBGE(1999), portanto, praticamente com seis anos de

defasagem. Nota-se que o mesmo se refere aos conselhos criados, não entrando na análise do funcionamento e

eficácia deles. Não apresentamos dados de conselhos estaduais por não encontrá-los.

QUADRO 1 – Conselhos municipais existentes em 1999

Fonte: IBGE. Perfil dos Municípios Brasileiros, 1999. Elaboração Luciana Jaccoud e Frederico Barbosa do IPEA

QUADRO 2 – Conselhos Nacionais existentes em 2006

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O direito à participação no Governo Lula

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O direito à participação no Governo Lula

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* Conselhos criados no Governo Lula; ** Conselhos reformulados no Governo Lula

Fonte: Pesquisa Realizada nos sites dos órgão dos quais os conselhos são vinculados e no Diário Oficial da União

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Identificamos 64 Conselhos Na-

cionais, destes 13 foram criados no

Governo Lula, e nove foram rees-

truturados neste mesmo período.

Portanto, 42 foram criados antes do

Governo Lula.

Cabe ressaltar que a distribui-

ção por área foi uma escolha do

autor, que levou em conta o órgão

ao qual o conselho é vinculado e

suas atribuições. Neste estudo, tor-

nou-se, às vezes, difícil diferenciar

as atribuições entre dois conselhos,

ou até onde vai o poder de um e

começa o poder de outro, ou mes-

mo se tem algum poder, pois mui-

tos têm competências e atribuições

parecidas, difusas, concorrentes e

sobrepostas, mostrando a ausência

de uma política para esses espa-

ços, que chamamos de ‘arquitetu-

ra da participação’.

Não apresentamos dados

das conferências realizadas até o

momento por impossibilidade de

reunir informações. Vamos traba-

lhar as conferências no capítulo a

seguir e somente em relação ao

Governo Lula, período que permi-

tiu reunir informações consistentes

para análise.

O LUGAR DA PARTICIPAÇÃO NOGOVERNO LULA

Cabe registrar, de início, que por

mais que possamos fazer críticas

à questão da participação no Go-

verno Lula (e o texto a seguir é bas-

tante crítico) não podemos deixar

de mencionar o significativo avan-

ço que tivemos neste período. No

governo anterior, os movimentos

sociais e as organizações não go-

vernamentais que defendem direi-

tos eram chamados de “neobobos”

(isso pelo próprio presidente Fernan-

do Henrique Cardoso). Não é a toa

que foi neste período que o chama-

do Terceiro Setor foi alçado a in-

peito apenas ao fato de o presidente

ser operário, mas, muito mais, por

ser oriundo do chamado lumpen

proletariado. Isto, por si só, explica

as expectativas que se criaram nas

forças que apostaram em seu suces-

so ou em seu fracasso, por razões

políticas, ideológicas ou de precon-

ceito.

Analisar um governo com este

perfil, seja em que aspecto for, não

é tarefa fácil, pois o Governo Lula

trouxe para o interior do Estado to-

das as contradições e conflitos pre-

sentes na sociedade brasileira. Em

seu desenho político/institucional

há, por exemplo, um ministério que

cuida dos interesses do agronegó-

cio e outro que promove a reforma

agrária e a agricultura familiar; pre-

valece no ministério da Fazenda e

no Banco Central uma política anti-

desenvolvimento, mas há no gover-

no um ministério de ‘Desenvolvi-

mento’ ligado à produção e um ban-

co, o BNDES, para financiar o de-

senvolvimento. No que diz respeito

à participação popular, o Governo

Lula levou para seu interior setores

que nunca tiveram qualquer com-

promisso com a participação ou que

a viam unicamente como instrumen-

to para chegar ao poder e não como

força capaz de provocar transforma-

ções sociais, culturais e políticas.

Talvez o que melhor caracterize o

Governo Lula sejam suas contradi-

ções – aqui lembradas como falta

terlocutor político da sociedade ci-

vil organizada.

A eleição de um líder operá-

rio para a presidência da Repúbli-

ca, oriundo de uma classe social

originariamente excluída de qual-

quer conceito de cidadania, tendo

migrado de uma região miserável

para a capital econômica brasilei-

ra, é um marco histórico em nosso

país, que repercute em âmbito in-

ternacional. O marco não diz res-

... POR MAIS QUE POSSAMOS

FAZER CRÍTICAS À QUESTÃO DA PARTICIPAÇÃO

NO GOVERNO LULA NÃO PODEMOS DEIXAR DE

MENCIONAR O SIGNIFICATIVO AVANÇO QUE

TIVEMOS NESTE PERÍODO

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O direito à participação no Governo Lula

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 284-304, set./dez. 2005 297

de um projeto de Nação e não no

sentido marxista do termo.

Um governo (aqui entendido

como o conjunto de forças políticas

que o apóia e/ou constitui) que não

tem um projeto de Nação, que não

tem forças ou não quer contrariar

interesses e privilégios, que acredi-

ta ser possível diminuir as desigual-

dades sociais distribuindo o fruto

do desenvolvimento (reedição do

‘primeiro crescer para depois dis-

tribuir’), por meio de políticas com-

pensatórias e focalizadas, portanto,

que não se propõe a redistribuir as

riquezas já produzidas, opera poli-

ticamente como? Por intermédio dos

tradicionais meios de fazer política

no Brasil, que são o clientelismo, o

fisiologismo e a apropriação priva-

da da coisa pública, isto é, a nega-

ção mais completa de qualquer pro-

cesso participativo. Mas, ao mes-

mo tempo, como vamos ver no item

5.2, é um governo que abriu dife-

rentes e diversos processos de in-

terlocução.

O Governo Lula foi eleito num

movimento construído ao longo de

décadas para mudar a forma de fa-

zer e pensar a política no Brasil.

Elementos essenciais dessa transfor-

mação seriam a participação popu-

lar e o controle social. Portanto,

participação e controle social como

elementos propulsores e fundantes

das transformações sociais, cultu-

rais, ambientais, econômicas e po-

líticas.

Analisar o Governo Lula, como

já mencionamos, é tarefa comple-

xa, ainda mais quando esta avalia-

ção é feita sob a perspectiva da par-

ticipação. Quando nos dispomos a

analisar e avaliar um governo, in-

dependentemente de ser o Governo

Lula ou qualquer outro, uma ques-

tão preliminar se apresenta diante

de nós: para realizar qualquer pro-

cesso de avaliação é necessário ter

uma referência. E qual é nossa re-

ferência se o governo foi eleito para

provocar grandes transformações?

Nossa referência não é o passado

e, sim, o futuro. Por isso, nossa re-

ferência para a avaliação deve ser

o que chamamos, de forma genéri-

ca, de ‘projeto de sociedade’. Ape-

sar de tal projeto ser um projeto em

construção, ele nos dá elementos

para essa avaliação.

Pelo discurso e pelas experiên-

cias de algumas administrações

populares, havia a ‘certeza’ de que

o PT (como força hegemônica na

aliança que venceu as eleições)

‘usaria’, no mínimo, a participação

como elemento de pressão para as

transformações. Algumas adminis-

trações municipais tiveram a parti-

cipação como elemento central da

estratégia política, priorizando a

participação de setores populares na

definição das políticas e dos orça-

mentos públicos.

Uma das primeiras ações do

Governo Lula foi repensar o dese-

nho institucional ou a arquitetura

da participação. Se nos basearmos

no desenho inicial, podemos con-

cluir duas coisas: 1) a participação

era vista como estratégia de gover-

nabilidade; 2) os diferentes sujeitos

políticos da participação eram re-

conhecidos com pesos diferencia-

dos, com prioridade para os sujei-

tos políticos da relação capital-tra-

balho.

O governo e, principalmente, a

esquerda (e aí não envolve apenas

o PT, mas os outros partidos, as-

sim como boa parte da intelectuali-

dade) ainda olham para a socieda-

de apenas do ponto de vista da re-

lação capital-trabalho. Até agora,

não houve rompimento radical com

essa visão bipolar. Ao enxergarem

a sociedade apenas do ponto de vis-

ta da relação capital-trabalho, re-

conhecem como atores políticos

somente os empresários e os tra-

balhadores, pois somente eles atu-

UMA DAS PRIMEIRAS AÇÕES DO GOVERNO

LULA FOI REPENSAR O DESENHO

INSTITUCIONAL OU A ARQUITETURA DA

PARTICIPAÇÃO

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MORONI, José Antônio

298 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 284-304, set./dez. 2005

am nessa relação. Aqui vale ressal-

tar que se trata dos trabalhadores e

trabalhadoras sindicalizados, pois

esse olhar sobre a sociedade não

‘enxerga’ a imensa massa de ho-

mens e mulheres que estão na eco-

nomia informal.

Conforme essa concepção, as

organizações e movimentos sociais

não são reconhecidos como sujei-

tos políticos, mas como atores so-

ciais ou sujeitos sociais. Portanto,

bons na mobilização e na capilari-

dade, mas não para participar dos

processos de tomada de decisões

políticas. Historicamente, quem

trouxe para o debate político a ques-

tão da participação foi justamente

esse campo de organizações e mo-

vimentos sociais. O movimento sin-

dical nunca teve a participação

como estratégia política, que dirá

como elemento central na constru-

ção dos processos democráticos.

Outro complicador dessa concep-

ção é procurar nas organizações e

nos movimentos sociais a estrutu-

ra do movimento sindical – um

movimento centralizado, hierarqui-

zado e com rígida estrutura. Por sua

vez, as organizações e movimentos

sociais, pela própria natureza, não

apresentam tal hierarquia e muito

menos tal centralização. Organi-

zam-se de forma mais descentrali-

zada e mais horizontal, procuran-

do se construir mais como sujeitos

políticos coletivos e menos como

estrutura. Portanto, não existe uma

única voz a falar por esse conjun-

to, mas várias vozes e de lugares

diferentes. É o que chamamos de

‘multiplicidade de sujeitos políti-

cos’.

Acostumados a lidar com o

movimento sindical e com a con-

cepção de que a sociedade se orga-

niza com base apenas nos interes-

ses da relação capital-trabalho, o

Governo Lula não conseguia e não

consegue dialogar com esse conjun-

to de organizações e movimentos,

considerado ‘muito difuso’ por não

tem uma ‘central’ nem um ‘presi-

dente’.

Essa concepção bipolar está pre-

sente no desenho institucional do

governo, em que a interlocução com

os movimentos sociais e as organi-

zações da sociedade civil é feita pela

Secretaria-Geral da Presidência da

República (SGP). Por sua vez, cabe

à secretaria do Conselho de Desen-

volvimento Econômico e Social

(CDES)3 a interlocução com o mun-

do empresarial e com os sindicatos.

Por isso, o CDES é formado, em sua

grande maioria e de forma hegemô-

nica, por empresários e sindicalis-

tas, além de alguns intelectuais, que

são chamados de ‘personalidades’,

e representantes de movimentos so-

ciais e ONGs. Na concepção do go-

verno, o CDES é o espaço de diálo-

go e de atuação essencialmente po-

lítica (“colegiado de assessoramen-

to direto e imediato do presidente

da República”), em que se discutem

as questões da macroeconomia e da

agenda de desenvolvimento. Se nes-

se espaço estratégico, na definição

do governo, não há equilíbrio míni-

mo entre os diferentes sujeitos polí-

ticos é porque estes mesmos sujei-

tos não são reconhecidos como tais.

É importante ressaltar que usa-

mos o termo ‘interlocução’ porque

é dessa forma que esses espaços são

vistos pelo Governo Lula. Não são

espaços de deliberação e controle

social e, sim, de interlocução do

governo com representantes da so-

ciedade. E, na maioria das vezes,

esta representação é pessoal e não

institucional e o governo escolhen-

do com quem ele quer ‘interlocu-

tar’.

Há, no Governo Lula, desrespei-

to total à autonomia da sociedade

civil, pois na maioria dos novos

3 Um quadro com detalhes sobre os conselhos criados no Governo Lula é apresentado em outro item deste artigo.

... AS ORGANIZAÇÕES E MOVIMENTOS SOCIAIS

NÃO SÃO RECONHECIDOS COMO SUJEITOS

POLÍTICOS, MAS COMO ATORES SOCIAIS OU

SUJEITOS SOCIAIS

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O direito à participação no Governo Lula

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 284-304, set./dez. 2005 299

espaços participativos criados e/ou

reformulados quem determina a re-

presentação da sociedade é o Gover-

no. As únicas exceções foram os

Conselhos das Cidades e Gestor da

Internet no Brasil. E isso em razão

da pressão do movimento de refor-

ma urbana e das organizações que

lutam por uma governança demo-

crática da Internet no país. Sem fa-

lar da não-possibilidade de escolha

do presidente pelos próprios conse-

lhos. Os presidentes são indicados

pelo Governo.

Na verdade, ocorreu no Gover-

no Lula a multiplicação dos espa-

ços de interlocução, sem que hou-

vesse nenhuma política de fortale-

cimento do sistema descentralizado

e participativo e muito menos de

ampliação dos processos democrá-

ticos. A participação ficou reduzi-

da à estratégia de governabilidade

e ao faz-de-conta, sem ter-se confi-

gurado como elemento essencial nas

transformações sociais, políticas,

culturais, ambientais e econômicas.

Cabe ressaltar, contudo, que

ocorreram algumas mudanças po-

sitivas no Governo Lula no que diz

respeito ao envolvimento dos agen-

tes governamentais nos processos

e espaços de participação, sobretu-

do os conselhos e as conferências.

Houve mudança de postura do atu-

al governo em relação aos gover-

nos anteriores. Nas conferências

realizadas em governos anteriores,

quem organizava e comandava todo

o processo era a sociedade civil. O

governo chegava, como se fosse um

espectador, e ia embora. Agora, es-

ses espaços têm registrado qualida-

de e participação governamental

bem diferente do que estávamos

acostumados. As conferências, por

exemplo, viraram verdadeiros espa-

ços de disputas políticas.

4 A Inter-Redes: Direitos e Política é um espaço de articulação de redes e fóruns de organizações da sociedade civil brasileira que atuam, dediversas formas e com diversos temas, para o fortalecimento da esfera pública, a promoção de direitos e a proposição de políticas.

PROCESSO DEPARTICIPAÇÃO NO PPA

A Constituição de 1988 criou o

processo orçamentário, que com-

preende três peças: PPA (plano plu-

rianual), LDO (lei de diretrizes or-

çamentárias) e LOA (lei orçamentá-

ria anual), elaborados pelo Execu-

tivo e aprovado pelo Congresso

Nacional. O PPA é elaborado a cada

quatro anos, a LDO e a LOA todos

os anos. O PPA é essencial no pla-

nejamento das políticas públicas,

pois define em linhas gerais, as

concepções, os programas, os ob-

jetivos e as metas para os próxi-

mos quatro anos. A LDO define os

programas prioritários, as metas

físicas e as linhas gerais de como

deverá ser elaborado o orçamento

do próximo ano. A LOA é como e

onde os recursos públicos serão

aplicados, isso é, o orçamento pú-

blico.

Em 2003, a Associação Brasi-

leira de Organizações Não Gover-

namentais (ABONG) e um conjunto de

redes e fóruns que constituem a

Inter-Redes4 estabeleceram relação

política com o governo federal para

contribuir na dinâmica de partici-

pação da sociedade civil no debate

sobre as orientações estratégicas

para a construção do ‘Plano Pluri-

anual 2004-2007: um Brasil para

todos e todas’. Foram realizadas

audiências públicas em todos os

estados brasileiros e no Distrito

Federal.

Essa iniciativa do governo fe-

deral, capitaneada pela Secretaria-

geral da Presidência, revestiu-se de

especial relevância, pois instalou

a possibilidade de debate entre go-

verno e redes, articulações e movi-

mentos da sociedade civil sobre as

...OCORREU NO GOVERNO LULA AMULTIPLICAÇÃO DOS ESPAÇOS DE

INTERLOCUÇÃO, SEM QUE HOUVESSE

NENHUMA POLÍTICA DE FORTALECIMENTO DO

SISTEMA DESCENTRALIZADO E PARTICIPATIVO EMUITO MENOS DE AMPLIAÇÃO DOS PROCESSOS

DEMOCRÁTICOS

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MORONI, José Antônio

300 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 284-304, set./dez. 2005

diretrizes para um novo modelo de

desenvolvimento brasileiro, social-

mente justo e ambientalmente sus-

tentável, que também possibilitas-

se aprofundar as estruturas demo-

cráticas de controle social sobre o

processo orçamentário e sobre os

recursos públicos.

A expectativa era de que a par-

ceria do momento inicial de debate

se tornasse efetiva, com o acompa-

nhamento do PPA, para dar conti-

nuidade à abertura desse espaço de

participação cidadã e permitir que

a sociedade civil organizada, desa-

fiada no primeiro momento, pudes-

se participar do monitoramento da

implementação do PPA e dos proces-

sos de revisão anual, assim como

da elaboração de uma política de

participação e de controle social do

processo orçamentário federal.

Após os debates em todo o país

e o envio do Projeto de Lei do PPA

ao Legislativo, diversas organiza-

ções e redes acompanharam a tra-

mitação do PPA no Congresso Naci-

onal e constataram que o rico pro-

cesso participativo de consulta não

foi sequer tema de debate no con-

junto do governo e muito menos no

Congresso Nacional. O que mono-

polizou a atenção dos parlamenta-

res e da mídia foi a insistência do

governo e da base governista no

Congresso em manter, a todo o cus-

to, o compromisso de superávit pri-

mário de 4,25% do Produto Interno

Bruto (PIB) durante os quatro anos

de vigência do PPA. Definição esta

questionada em todo o processo de

participação no PPA.

Além disso, nenhum dos acor-

dos firmados com a Secretaria-ge-

ral da Presidência durante o processo

de consulta, até momento, não fo-

ram cumpridos. São eles:

• Formação de grupo de traba-

lho paritário entre governo e socie-

dade civil para acompanhar o mo-

nitoramento do PPA 2004-2007;

• Construção, com a sociedade

civil, dos mecanismos e da meto-

dologia de participação nos proces-

so orçamentários;

• Acesso às informações sobre

a execução física e financeira do

PPA, especificamente a disponibili-

dade on-line, para qualquer cida-

dão, dos dados do Sistema Integra-

do de Administração Financeira (SI-

AFI) e do Sistema de Informações

Gerais e de Planejamento (SIGPLAN);

• Elaboração de indicadores

desagregados por gênero, raça, et-

nia, rural, urbano, etc., permitin-

do acompanhamento mais qualita-

tivo do impacto real das políticas

públicas por parte da sociedade ci-

vil.

Um estudo realizado pela Inter-

Redes demonstrou que, do fruto da

participação, o Plano Plurianual

incorporou questões periféricas,

que ajudavam a desenhar melhor

os megaobjetivos das orientações

estratégicas do governo para o PPA,

mas nada que viesse a mudar a

lógica das políticas – a principal

demanda das organizações nas

audiências estaduais.

Contudo, o mais grave foi a to-

tal falta de continuidade do proces-

so. Havia um compromisso políti-

co de continuidade, inclusive cor-

rigindo os erros do processo inici-

al (pouco tempo para os debates,

objeto de discussão limitado, pou-

co espaço para a expressão da so-

ciedade civil, processo centraliza-

do no governo, etc.) para ampliar

a participação e os temas tratados.

Assim, verificamos que esse

processo foi um verdadeiro ‘espe-

táculo’ da participação, em que as

contribuições da sociedade civil

não foram consideradas nem exis-

tiu qualquer estratégia de governo

para criar e aprofundar, de fato,

espaços institucionais de participa-

... DO FRUTO DA PARTICIPAÇÃO, O PLANO

PLURIANUAL INCORPOROU QUESTÕES

PERIFÉRICAS, QUE AJUDAVAM A DESENHAR

MELHOR OS MEGAOBJETIVOS DAS ORIENTAÇÕES

ESTRATÉGICAS DO GOVERNO PARA O PPA,MAS NADA QUE VIESSE A MUDAR A LÓGICA DAS

POLÍTICAS ...

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O direito à participação no Governo Lula

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 284-304, set./dez. 2005 301

ção popular em áreas estratégicas

para a efetivação de direitos no

país, como o orçamento e o plane-

jamento públicos e, principalmen-

te, o ‘modelo de desenvolvimento’.

Hoje, após muitas idas e vindas

e longos períodos de total silêncio,

a Secretaria-geral voltou a procu-

rar as organizações para retomar a

discussão sobre os acordos não

cumpridos desde 2003.

Uma grande contribuição deste

processo foi o de chamar a atenção

para uma peça essencial no plane-

jamento das políticas públicas que

é o PPA. Isso teve e ainda tem des-

dobramentos na elaboração dos

PPAs estaduais e municipais. Até

2003, a grande maioria das organi-

zações não sabia do que se tratava,

e os PPA eram elaborados por ‘es-

critórios de consultorias’. Este

mérito o Governo Lula tem.

A PARTICIPAÇÃO NOGOVERNO LULA EM NÚMEROS

Se olharmos unicamente na

perspectiva numérica e de quanti-

dade, vamos ver que no Governo

Lula houve grande avanço na cria-

ção de espaços de participação (con-

selhos, conferências, etc.) e de in-

terlocução.

CONSELHOS

No total foram criados 13 novos Conselhos Nacionais. Como demonstra-

mos antes (item 3), esses conselhos foram criados com concepções diferen-

tes da do movimento social que construiu a estratégia política de constru-

ção do sistema descentralizado e participativo nas diferentes políticas.

Além de criar novos conselhos nacionais, o Governo Lula reformulou

nove conselhos nacionais, adaptando as novas exigências legais e/ou polí-

ticas.

QUADRO 3 – Conselhos Nacionais criados no Governo Lula

QUADRO 4 – Conselhos Nacionais reformulados no Governo Lula

Fonte: Quadro sistematizado pela autor com base no quadro 2

Fonte: Quadro sistematizado pela autor com base no quadro 2

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302 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 284-304, set./dez. 2005

CONFERÊNCIAS

No total, foram realizadas no

Governo Lula 40 Conferências Naci-

onais (já incluídas as que vão se

realizar ate o final do mandato) e

três Conferências Internacionais.

Segundo dados oficiais do governo

federal, ao final do ciclo de confe-

rências nacionais 2003/2006, mais

de dois milhões de brasileiros e bra-

sileiras participaram das conferên-

cias municipais, regionais, estadu-

ais e nacional. Isso sem contar com

os estudantes que participaram das

conferências infanto-juvenis de meio

ambiente.

Vale ressaltar que das 37 confe-

rências nacionais, 15 foram reali-

zadas pela primeira vez, e a de Di-

reitos Humanos foi a primeira vez

convocada pelo Executivo.

Conferências realizadas pela pri-

meira vez: meio ambiente (versão

adulta e infanto-juvenil); aqüicultu-

ra e pesca; cidades; medicamentos

e assistência farmacêutica; terra e

água; arranjos produtivos locais;

políticas para as mulheres; espor-

te; cultura; promoção da igualdade

racial; povos indígenas; direitos da

pessoa com deficiência; direitos da

pessoa idosa; econômica solidária

e educação profissional e tecnoló-

gica.

QUADRO 5 – Conferências Nacionais/Internacionais realizadas no Gover-

no Lula

* Soma dos participantes das etapas municipais, estaduais e nacional; ** Soma dosparticipantes das etapas estaduais e nacional; *** Não foi convocada pelo Executivo esim pelo Congresso Nacional e Fórum de Entidades Não Governamentais (FNEDH).

Fonte: Informativo Especial da Secretaria-Geral da Presidência da República, 2006.

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O direito à participação no Governo Lula

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 284-304, set./dez. 2005 303

DESAFIOS QUEDEVEMOS ENFRENTAR

Como organizações da socieda-

de civil que defendemos a partici-

pação como Direito Humano, pre-

cisamos enfrentar alguns desafios:

1. reconstruir a arquitetura da

participação, embora isso não sig-

nifique repensar apenas o sistema

descentralizado e participativo (os

conselhos e as conferências). Preci-

samos repensar os processos demo-

cráticos, o desenho da democracia

e a maneira de conjugar a demo-

cracia representativa, a democracia

participativa e a democracia dire-

ta. Enfim, uma verdadeira reforma

do sistema político brasileiro, por-

tanto, do poder.

2. resgatar o papel político dos

conselhos. Os conselhos ainda são

mecanismos, não os únicos, de par-

ticipação. Porém, não como se apre-

sentam hoje, em sua maioria sem

espaço para o debate político, a de-

liberação e o controle social, carac-

terizando-se como espaços formais

ou de faz-de-conta de participação.

Isso reflete a maneira como são

escolhidos os representantes da so-

ciedade civil, que não se vêem en-

quanto representação da sociedade

civil, mas como representação de

interesses da sua organização. Sem

falar que, em muitos casos, os pro-

cessos de eleição desta representa-

ção não ficam em nada devendo aos

métodos tão criticados na democra-

cia representativa.

3. resgatar o papel de mobili-

zação social das conferências. As

conferências foram pensadas com

um espaço ampliado dos conse-

lhos, nas quais se envolveriam

outros sujeitos políticos e de diálo-

go com a população que não parti-

cipa em organizações e movimen-

tos. Resgatar este papel das confe-

rências significa ter estratégias po-

líticas de mobilização e comunica-

ção com a população de modo ge-

ral.

4. respeitar a multiplicidade

dos sujeitos políticos. Estabelecer

comunicação e relação política en-

tre os diferentes espaços – conse-

lhos e conferências –, que até ago-

ra têm permanecido estanques, ver-

ticais, fragmentados e sem ligação.

Como a Conferência das Cidades,

por exemplo, comunica-se com a

questão da criança, com a questão

de segurança, com a questão do

meio ambiente? O desafio é o como

o reconhecimento da riqueza da

multiplicidade dos sujeitos políticos

e de suas ‘causas’ não levem à frag-

mentação total da luta política.

5. reconhecer outras formas de

organização. Como, nesses proces-

sos, agregar outros sujeitos políti-

cos, que possuem novas e criativas

formas de organização, na maioria

das vezes não institucionalizadas.

Olhar e enxergar estes novos atores

e articular esses processos partici-

pativos são um grande desafio para

as organizações e movimentos.

6. recolocar a questão da Re-

forma do Estado. Precisamos defi-

nir melhor que Estado queremos, o

papel e como exercer o controle pú-

blico do Estado. Aqui, é fundamen-

tal a luta pelo acesso universal às

informações públicas. Não podere-

mos pensar nenhum tipo de contro-

le social e de controle público do

Estado se este Estado não for pú-

blico. E isto envolve um projeto

maior, que é a definição de projeto

e projetos de sociedade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O sistema descentralizado e par-

ticipativo é um instituto político não

tradicional de gestão de políticas

públicas, voltado para a democra-

tização do Estado e da sociedade,

podendo impulsionar mudanças

culturais, econômicas e políticas

que nos aproximam mais da utópi-

ca radicalidade democrática. Até

agora, temos como integrantes des-

PRECISAMOS REPENSAR OS PROCESSOS

DEMOCRÁTICOS, O DESENHO DA DEMOCRACIA EA MANEIRA DE CONJUGAR A DEMOCRACIA

REPRESENTATIVA, A DEMOCRACIA

PARTICIPATIVA E A DEMOCRACIA DIRETA

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MORONI, José Antônio

304 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 284-304, set./dez. 2005

te sistema os conselhos e as confe-

rências. O desafio é como incorpo-

rar outras formas de participação

neste sistema, como por exemplo,

as ouvidorias, consultas públicas

e formas não institucionalizadas de

organizações da sociedade civil.

Não consideramos os conse-

lhos espaços únicos nem exclusi-

vos, mas importantes e estratégicos

para serem ocupados pela socieda-

de civil organizada e comprometi-

da efetivamente com as transforma-

ções políticas, econômicas e soci-

ais. Os conselhos são mecanismos

limitados para operar essas trans-

formações. Porém, para a realidade

brasileira, são mecanismos que

podem provocar mudanças substan-

tivas na relação Estado-sociedade.

Estes mecanismos podem contribuir

com a construção/consolidação de

uma cultura política contra-hegemô-

nica, por meio da prática da socia-

lização da política e da distribui-

ção do poder.

Não se deve desistir do processo

de implementação desses mecanis-

mos de participação democrática,

apesar do pouco avanço em dire-

ção a transformar em poder de fato

o poder legal que esses espaços

participativos possuem.

E a pergunta que não temos

como responder, agora, é: Qual o

impacto do Governo Lula neste pro-

cesso todo. Isso é uma incógnita e

com certeza ‘nada será como antes’.

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mocracia. Rio e Janeiro: Paz e Ter-

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305

ARTIGOS DE OPINIÃO / OPINION ARTICLES

Proteção social em um mundo globalizado1

Social Protection in a Globalized World

Sonia Fleury2

1 Doutora em Ciência Política; professora

da EBAPE/FGV e presidente do CEBES, elei-

ta em 2007.

Email: [email protected]

RESUMO

Neste artigo, procura-se tratar as seguintes questões: Quais as alterações

nos padrões de proteção social e na saúde que estão em curso em face à

globalização?; Que contradições foram introduzidas por estas mudanças

no âmbito da proteção social?; Que potencialidades são geradas em

decorrência deste processo? Por meio da análise das transformações da

proteção social em um mundo globalizado, apontam-se as principais tensões

e contradições neste campo, mas também as novas energias e potencialidades

de geração de uma cidadania integral e emancipatória.

PALAVRAS-CHAVE: Proteção Social; Cidadania; Globalização.

ABSTRACT

In this paper the author addresses the following questions: What changes

to the patterns of social and health care protection are underway in light of

globalization?; What contradictions have been introduced by such changes

into the context of social protection?; What potentialities have emerged as

a result of this process? By analyzing the transformations to social protection

in a globalized world, the main tensions and contradictions in this field

are identified, as are the new powers and capacities to generate an integral

and emancipative citizenship.

KEY-WORDS:Social Protection, Citizenship, Globalized World.

Recebido: Jun./2006

Aprovado: Jul./2007

1Conferência pronunciada no 8° CONGRESSO BRASILEIRO DE SAÚDE COLETIVA – ABRASCO,

21 a 25 de agosto de 2006

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FLEURY, Sonia

306 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 305-314, set./dez. 2005

Neste artigo, procura-se tratar as

seguintes questões: Quais as

alterações nos padrões de proteção

social e na saúde que estão em cur-

so em face à globalização?; Que

contradições foram introduzidas por

estas mudanças no âmbito da pro-

teção social?; Que potencialidades

são geradas em decorrência deste

processo?

Para tratar a primeira questão,

partimos da constatação de que a

emergência e consolidação dos sis-

temas de proteção social se deram

em um contexto radicalmente dife-

rente do atual, que chamamos ge-

nericamente de ‘globalização’. Os

diferentes modelos de proteção so-

cial foram originários de um mes-

mo contexto socioeconômico, carac-

terizado pelos processos de Moder-

nização, Democratização e Desenvol-

vimento Industrial. A modernização

social diz respeito à complexifica-

ção da estrutura social, que foi

acompanhada também por uma es-

pecialização funcional. A democra-

tização incluiu o reconhecimento de

atores políticos coletivos e a aber-

tura do sistema político competiti-

vo para a participação política das

massas. O processo de desenvolvi-

mento industrial em unidades fabris

alterou a estrutura produtiva e au-

mentou a produção de riquezas,

gerando processos concomitantes de

urbanização e de organização soci-

al.

... A PROTEÇÃO SOCIAL DEIXA DE SER PARTE

DAS RELAÇÕES TRADICIONAIS ENTRE DESIGUAIS

(...) PARA SE COLOCAR COMO UMA QUESTÃO

SOCIAL A SER RESOLVIDA NOS MARCOS DE UMA

NOVA SOCIEDADE

Neste contexto de profunda

transformação social, a proteção

social deixa de ser parte das rela-

ções tradicionais entre desiguais,

quando senhores protegiam e tute-

lavam servos leais ou entre iguais,

no interior das corporações, para se

colocar como uma questão social a

ser resolvida nos marcos de uma

nova sociedade que se fundava com

base nos valores de liberdade e

igualdade genérica dos indivíduos.

a polêmica sobre o crescimento po-

pulacional em Malthus (1983)

referência)e Marx (1980) – um ad-

vogando que o número crescente de

pobres era fruto do ritmo de cresci-

mento desproporcional da popula-

ção em relação ao crescimento da

riqueza, enquanto o outro demons-

trava que era a mesma lógica da

acumulação capitalista que produ-

zia uma superpopulação relativa.

As Leis dos Pobres, as profissões no

campo social, as instituições para

o cuidado da população são todos

instrumentos produzidos em respos-

ta à questão colocada pela pobreza

urbana.

Além da perda dos vínculos de

tutela, a necessidade de uma políti-

ca de proteção social decorre tam-

bém da dissolução das relações so-

ciais de solidariedade existentes no

interior das famílias e das comuni-

dades, e sua substituição por vín-

culos formais entre os indivíduos e

o Estado. Estes novos vínculos, abs-

tratos e impessoais, em base à igual-

dade natural entre os indivíduos,

foram o substrato da emergência do

elemento civil da cidadania.

O rompimento das relações de

solidariedade orgânica no seio da

comunidade requer a construção de

uma mediação entre os indivíduos

dispersos no mercado e o poder po-

lítico, o Estado, capaz de assegurar

a reconstrução, com base neste cons-

truto político igualitário – a cida-

dania –, de uma integração mecâni-

Libertos dos laços de tutela, os

indivíduos perderam seus vínculos

de proteção social e a pobreza emer-

giu como questão social, isto é,

como ameaça à coesão social. Uma

questão social, quando se coloca,

politiza o tema e requer, por conse-

guinte, uma intervenção política.

Para seu enquadramento são desen-

volvidos novos conhecimentos, no-

vas tecnologias, surgem novas pro-

fissões e instituições. Basta lembrar

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307

ca na comunidade nacional. A co-

munidade se reconstrói como nação,

se identifica pelo pertencimento a

um legado de valores compartilha-

dos e a um patrimônio civilizatório

comum.

A necessidade de novas bases

para o estabelecimento da ação co-

letiva solidária encontra sua condi-

ção material na própria produção

coletiva nas fábricas e na reprodu-

ção cada vez mais interdependente,

nas cidades. A emergência da clas-

se trabalhadora como ator protago-

nista é fruto desta produção e re-

produção coletivizadas, da organi-

zação de classe com base em prin-

cípios de solidariedade e na luta

política que se trava para a trans-

formação da igualdade legal em

igualdade substantiva.

Se a demanda teve o operariado

industrial como seu porta-voz cen-

tral, a resposta à questão social foi

dada, fundamentalmente, pelo Esta-

do, por meio das políticas públicas.

As transformações nas formas pro-

dutivas e nas relações sociais foram

acompanhadas, ou mesmo antece-

didas, pela construção de uma au-

toridade pública central no âmbito

do território nacional, pela concen-

tração e centralização do poder es-

tatal. Assim, ocorreram: a subordi-

nação dos interesses privados ao

interesse público; a construção de

um aparelho estatal unificado e de

uma organização hierárquica e

burocrática; o domínio das técnicas

administrativas de gestão.

Este foi o ponto de partida bri-

lhantemente analisado por T.H. Mar-

shall (1967), quando propôs o para-

doxo do desenvolvimento da cida-

dania, um princípio igualitário e

individualista, no contexto de uma

economia de mercado, baseada na

desigualdade de classe, desigualda-

de esta baseada na condição de pro-

priedade, em face à construção do

Estado-nação.

sim, aprofundar a democracia de

massas.

Em resumo, as condições de

emergência dos sistemas de prote-

ção social foram dadas por vários

fatores, como: o fortalecimento da

autoridade pública; a construção de

uma ordem política baseada no prin-

cipio da igualdade; a existência de

um ator político protagonista, a

classe trabalhadora, organicamen-

te orientada por uma ideologia soli-

dária e uma prática política refor-

madora; e a expansão da cidadania

e inclusão dos direitos sociais como

forma de integração e preservação

da coesão social.

As conseqüências deste proces-

so de modernização, democratiza-

ção e desenvolvimento industrial

foram profundas e complexas, em

âmbitos como o territorial (a cidade

passa a ser o espaço da diversidade

e também o da igualdade dos cida-

dãos, materializando territorialmen-

te a democracia); o social (gerando

reconhecimento e integração, parti-

cipação e legitimação do exercício

do poder, distribuição da riqueza e

concentração dos meios de produ-

ção; o cultural (definição de um

novo padrão civilizatório com base

em valores de igualdade, liberdade

e autonomia dos indivíduos e em

certos pactos sociais sobre direitos

e dignidade humana); a política (am-

pliação do direito de participação no

processo eleitoral e inclusão dos

direitos sociais); o institucional

A possibilidade de compreender

a cidadania só se completa quando

entendemos que a negação real do

princípio igualitário que estrutura

a nova ordem jurídica e política leva

à existência de uma contradição

persistente. Esta contradição entre

igualdade formal e desigualdade

real é o motor das lutas sociais que

terminam por conformar o escopo

da condição de cidadania com a in-

trodução dos direitos sociais e, as-

... CONTRADIÇÃO ENTRE IGUALDADE FORMAL EDESIGUALDADE REAL É O MOTOR DAS LUTAS

SOCIAIS QUE TERMINAM POR CONFORMAR OESCOPO DA CONDIÇÃO DE CIDADANIA COM A

INTRODUÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS E, ASSIM,APROFUNDAR A DEMOCRACIA DE MASSAS

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FLEURY, Sonia

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(transformação do aparato estatal de

um estado mínimo e repressor a um

Estado Ampliado, responsável pelos

direitos cidadãos e pela garantia de

benefícios e serviços sociais); e o

econômico (desmercantilização da

reprodução da força de trabalho,

socialização dos custos desta repro-

dução, produção capitalista estatal-

mente regulada, gerando condições

para o ciclo virtuoso do capitalis-

mo, no qual a maior geração da ri-

queza representava também melho-

res condições de sua redistribuição).

O desenvolvimento dos sistemas

de proteção social expressa este con-

junto de transformações, e a expan-

são dos direitos sociais por meio de

modalidades institucionais distintas

é conseqüência das diferenças nas

relações existentes, em cada socie-

dade, entre Estado e sociedade, e,

dentro desta última, variações acer-

ca da correlação de forças e valores

prevalecentes.

Os limites a esta expansão tam-

bém são conhecidos e podem ser lis-

tados:

• A capacidade de inclusão so-

cial e de redistribuição por meio de

políticas sociais tem seu limite últi-

mo na dinâmica de acumulação ca-

pitalista, mediada pela correlação de

forças sociais e pela institucionali-

dade existente;

• O processo de modernização

e expansão dos valores iluministas

e das instituições democráticas es-

teve limitado pela incapacidade de

a cidadania transcender o território

nacional, e ainda pela existência, no

seu interior do Estado nacional, de

discriminações de classe, etnia e

raça, gênero e idade e, no seu exte-

rior, pela possibilidade de convivên-

cia com o colonialismo;

• A proteção social institucio-

nalizada nos Estado do Bem-estar

Social contribuiu para minar os va-

lores libertários, a dimensão coleti-

vista e solidária – fatores necessá-

rios à manutenção de uma cidada-

nia ativa –, ao transformar a condi-

ção de cidadania em uma pauta de

benefícios individuais;

• As transformações, econômi-

cas, sociais, tecnológicas e culturais

provocaram mudanças demográfi-

cas profundas, relativas ao cresci-

mento populacional, expectativa de

vida, padrão de morbimortalidade,

custos de insumos e tecnologias in-

corporados aos cuidados sociais.

No último quarto do século XX,

assistimos à crise do padrão de de-

senvolvimento capitalista. Esta cri-

se permitiu gerar, cumulativamen-

te, acumulação e redistribuição nas

sociedades capitalistas desenvolvi-

das, ao mesmo tempo que a econo-

mia mundial se transformava em

uma economia cada vez mais glo-

balizada. Isto é, onde os processos

de produção e circulação de capital

e mercadorias estavam cada vez

mais conectados, com a liberaliza-

ção dos mercados e a interconexão

entre etapas produtivas, por meio do

uso intensivo das tecnologias de in-

formação.

As mudanças que acompanham

esta desterritorialização dos merca-

dos e da produção vão ter efeitos

sociopolíticos de grandes dimen-

sões, já que a construção da moder-

nidade envolvia o casamento entre

o mercado, o Estado e a cidadania,

com base no reconhecimento políti-

co de um povo e o exercício da au-

toridade sobre um território.

Enquanto o trabalho havia sido

a categoria organizadora da socie-

dade industrial, nesta nova fase ele

perde tal centralidade. O trabalho já

não se associa ao crescimento de

forma irreversível e a economia pas-

sa a crescer eliminando trabalho de

forma intermitente ou permanente,

gerando uma nova estrutura do

mercado de trabalho. Estas transfor-

mações na estrutura e relações de

trabalho ficaram caracterizadas pela

denominada ‘flexibilização do traba-

lho’ e também pela necessidade de

os indivíduos investirem em sua

condição pessoal de ‘empregabilida-

de’.

A vida dos indivíduos, a sua in-

serção social, seus mecanismos de

proteção social deixam de estar as-

sociados à sua inserção laboral. Isto

tem um enorme impacto na organi-

zação e no financiamento da prote-

ção social, baseada em uma incor-

poração maciça de trabalhadores

jovens que sustentariam os depen-

dentes e os idosos beneficiários do

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Proteção social em um mundo globalizado

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sistema. Portanto, uma crise de fi-

nanciamento da proteção social tor-

na-se inexorável.

Por outro lado, os Estado nacio-

nais, que foram o fiador dos direi-

tos relativos à proteção social, são

enfraquecidos em sua autoridade

diante do surgimento e/ou fortaleci-

mento dos poderes supranacionais

e do aumento do poder das empre-

sas transnacionais e do capital fi-

nanceiro, favorecidos pela elevada

mobilidade e volatilidade dos inves-

timentos propiciados pela tecnolo-

gia informacional, que permite o

imediato deslocamento de um país

a outro. Os Estados nacionais pre-

cisaram se adequar a uma conjun-

tura de ajuste fiscal e redução de

seu aparato, aumentar sua capaci-

dade de regulação do mercado, in-

serir-se de forma estratégica no ce-

nário político e econômico interna-

cional.

Neste cenário, deixa de existir a

polarização ideológica entre EUA e

URSS, permitindo a consolidação do

poder econômico imperial do primei-

ro. Assiste-se a uma reorganização

do cenário internacional em blocos

regionais, mas, diferentemente da

polarização da Guerra Fria, o que

está em jogo são opções para forta-

lecer o poderio econômico e não

mais confrontações ideológicas.

Essa mudança na geografia do

poder vem embasada no predomí-

nio da ideologia liberal que propug-

na pela redução do papel do Estado

e conseqüente redução da sua atua-

ção em todos os domínios da pro-

dução e da reprodução social.

Um duplo movimento de deslo-

camento do poder se processou, des-

de o nível central estatal até os ní-

veis subnacionais, e, desde a dimen-

são estatal para a societária. Novos

arranjos entre Estado, mercado e

comunidade foram estabelecidos,

seja por meio de processos de pri-

vatização e descentralização, seja

pela rearticulação entre as organi-

tando o conhecimento da população

sobre suas condições de saúde. No-

vos padrões de desigualdade foram

resultantes dos fluxos migratórios

dos países do Sul para os do Norte,

drenando profissionais e cientistas

altamente capacitados por um lado,

e uma massa de mão-de-obra sem

qualificações por outro. Neste últi-

mo caso, tais grupos de imigrantes

permanecem sem direitos à proteção

social, mesmo em países onde exis-

te o Welfare State.

Essa mobilidade populacional

criou, por outro lado, enormes po-

tencialidades de conexões reais ou

virtuais entre indivíduos e organi-

zações em pontos diferentes do pla-

neta. Este novo tipo de coletivismo

difere, em muito, do coletivismo da

sociedade industrial, em que os in-

divíduos pertenciam a grupos, clas-

ses e organizações. No momento

atual, cada um, sejam indivíduos ou

organizações, vinculam-se a nume-

rosas redes das quais se sentem per-

tencendo enquanto estão ligados,

podendo desligar-se a qualquer

momento. As identidades, portanto,

são muito mais complexas e volá-

teis, porém, são também muito mais

capazes de coletar informações e

criar novas conexões.

Toda a lógica do pensamento li-

beral assentou-se em um reforço do

individualismo, que se bem rompe

com a homogeneização implícita nas

políticas e organizações coletivistas,

o que poderia anunciar uma pers-

zações não governamentais, as em-

presas e os governos. A estrutura

hierárquica que caracterizou o Es-

tado e suas políticas sociais vem

sendo substituída por novos arran-

jos reticulares, com a participação

de diferentes parceiros.

A globalização implicou em um

processo de circulação de capital,

informações, mercadorias e pesso-

as, aumentando a circulação de en-

fermidades, mas também, aumen-

UM DUPLO MOVIMENTO DE DESLOCAMENTO

DO PODER SE PROCESSOU, DESDE O NÍVEL

CENTRAL ESTATAL ATÉ OS NÍVEIS

SUBNACIONAIS, E, DESDE A DIMENSÃO ESTATAL

PARA A SOCIETÁRIA

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FLEURY, Sonia

310 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 305-314, set./dez. 2005

A CONVIVÊNCIA DE POLÍTICAS SOCIAIS

UNIVERSALISTAS COM SISTEMAS FOCALIZADOS

DE COMBATE À POBREZA NÃO TEM SIDO CAPAZ

DE INCLUIR OS EXCLUÍDOS...

pectiva libertadora, não chega a ser

emancipadora, pois termina por re-

duzir-se a um individualismo nega-

tivo, um hedonismo egóico. A bus-

ca individual do prazer – o ideal do

sofrimento zero e da felicidade total

–, elevados à condição de norma

social, tornam possíveis todos os

tipos de experimentações do prazer,

até mesmo a reinvenção do eu, sua

produção e seu consumo. O corpo

passa a ser absolutizado como ex-

pressão do eu, um corpo que não é

natural, mas uma criação do indi-

víduo por meio de ginásticas, tatu-

agens e cirurgias plásticas.

A fisiocultura, para além dos

benefícios da promoção à saúde in-

dividual, pode ser vista como ex-

pressão desta perspectiva egocêntri-

ca; tende à perversão, pois a busca

individual do prazer sem a interme-

diação da normatividade social é

perversa, pois o outro é destituído

da condição de sujeito e passa a ser

objeto do meu prazer. Esta é a base

da perversão: a relação objetal. A

este fenômeno social denomino Sín-

drome de Michael Jackson.

Pensar a saúde como ausência

de sofrimento e busca do prazer nos

distancia da perspectiva solidária e

emancipadora da saúde como valor

universal e como núcleo subversi-

vo da estrutura social. Em outros

termos, como projeto civilizatório

que requer a radicalização da de-

mocracia por meio da ação coleti-

va.

Trata-se, portanto, de uma dis-

puta ideológica que se trava no cam-

po da saúde sobre concepções da

sociedade que queremos. A conjun-

tura atual na América Latina mos-

tra um cenário de contradições e

algumas tendências que afetam o

campo das políticas de proteção so-

cial.

É inegável que a região vive, pela

primeira vez e de forma difundida

em quase todos os países e por cer-ca de um quarto de século, em regi-

mes eleitorais competitivos que são

a base institucional da democracia.

sociais, cujos aumentos são insufi-

cientes para garantir proteção soci-

al universal de qualidade.

A convivência de políticas soci-

ais universalistas com sistemas fo-

calizados de combate à pobreza não

tem sido capaz de incluir os excluí-

dos na comunidade política daque-

les que possuem direitos sociais.

A financeirização das políticas

sociais se deu por meio da explo-

são dos seguros de aposentadorias

e de saúde, eliminando possíveis

laços de solidariedade entre aque-

les que participam dos sistemas de

proteção social. A individualização

dos riscos ocorre nas duas pontas

das políticas sociais: seja para a

classe média que alcança a prote-

ção por meio dos seguros privados,

seja para os pobres que recebem

bolsas e outros benefícios assisten-

ciais.

A insegurança deixa de ser vista

como uma condição coletiva e pas-

sa a ser um risco individual. Da

mesma forma, a proteção social

passa a ser para os indivíduos e não

para coletivos e grupos sociais.

A perda da centralidade do tra-

balho, acentuada em nossos países

pela escassez do trabalho formal,

não foi capaz de alterar os vínculos

existentes entre benefícios sociais e

contribuições, perpetuando assim a

exclusão social.

A desmontagem do aparato esta-

tal, das carreiras públicas e da inte-

ligência estatal ocorreu concomitan-

No entanto, persistem as desigual-

dades injustas entre as nações e in-

tranações, apresentando condições

sociais e de saúde incompatíveis

com o padrão nacional de acumu-

lação de riquezas e domínio tecno-

lógico.

A drenagem de recursos financei-

ros no sentido Sul-Norte, por meio

do pagamento dos serviços da dívi-

da tem acarretado uma escassez de

recursos para a área das políticas

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Proteção social em um mundo globalizado

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311

temente ao fortalecimento sem regu-

lação do mercado de serviços soci-

ais, quando os interesses privados

predominam sobre os interesses

públicos.

As conseqüências deste proces-

so contraditório de democratização

sem inclusão social tem sido o au-

mento da discrepância entre a de-

mocracia eleitoral e a democracia

substantiva, entre os novos textos

constitucionais e as políticas reais.

Governos eleitos democratica-

mente que não cumprem suas pro-

messas de campanha e parlamentos

que são incapazes de defender algo

mais que seus próprios interesses

são os elementos causadores do de-

sencanto com a política. Se, por um

lado, assiste-se a uma tendência de

anomia social, caracterizada pela

consciência comum da irrelevância

da política, por outro, assistimos a

inumeráveis crises de governabili-

dade, com o povo nas ruas, por sen-

tir a incapacidade dos seus interes-

ses serem representados pelos go-

vernantes.

Esta ocupação da rua como es-

paço público denota a volta do povo

como categoria política na região e

também a emergência de lideranças

populistas que se apresentam como

representantes das massas inorgâ-

nicas, em detrimento da institucio-

nalidade democrática recém con-

quistada.

As grandes metrópoles da região

são reorganizadas de acordo com

uma lógica da ‘guetização’, na qual

ricos e pobres se fecham em guetos

intransponíveis, em uma cidade que

nada guarda do ideal democrático

de ser o espaço do ‘encontro das di-

ferenças’, igualadas na condição

política da cidadania. Ao contrário,

a cidade passa a ser a expressão da

incapacidade de coesionar socieda-

des tão profundamente injustas e

excludentes. A violência urbana

aflora como o sintoma da desagre-

gação social. O aumento da intole-

nacional e inclusão na esfera públi-

ca. A nossa questão social aparece

como sendo a exclusão e seus efei-

tos sobre a sociabilidade deteriora-

da.

A exclusão não pode ser confun-

dida com um grau a mais na desi-

gualdade por tratar-se de fenômeno

de natureza distinta, que implica em

transformar a diferença em uma

norma social que sanciona o impe-

dimento do outro partilhar da comu-

nidade, de pertencer à mesma esfe-

ra pública onde os cidadãos, igua-

lados politicamente, podem estabe-

lecer trocas simbólicas.

Este outro – favelado, mulher,

homossexual, negro, idoso, índio,

muçulmano, ou até mesmo o pobre

– é visto como algo a ser elimina-

do, não para ser incorporado sequer

na condição de dominado.

Isto leva a uma fratura sociopo-

lítica que se manifesta como convi-

vência, em uma mesma sociedade,

de um híbrido institucional, uma

institucionalidade para os que es-

tão incluídos e outra para os exclu-

ídos. Basta ver como o Estado está

ausente dos territórios marginais,

ou mesmo como a insidiosa diferen-

ça se manifesta na diferença de aco-

lhimento e qualidade dos serviços

públicos.

Uma democracia com exclusão

retira legitimidade da ordem políti-

ca, pois o poder político não é naci-

onal, já que não incorpora a popu-

lação na comunidade nacional; não

rância com a diferença, a visão do

outro como potencial ameaça, a

ausência de uma ética pública, a

visão do governo como corrompido

e incapaz de assegurar condições de

segurança, reforçam o individualis-

mo e corrompem a dimensão cívica

da cidadania.

Em resumo, esta é a nossa ques-

tão social, ou seja, aquela que pode

ser o analisador da perda dos vín-

culos sociais capazes de coesionar

a comunidade, gerando integração

A NOSSA QUESTÃO SOCIAL APARECE COMO

SENDO A EXCLUSÃO E SEUS EFEITOS SOBRE ASOCIABILIDADE DETERIORADA

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FLEURY, Sonia

312 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 305-314, set./dez. 2005

é democrática, pois o exercício do

poder não se baseia em um princí-

pio de justiça e igualdade; não é re-

publicano, pois o Estado é patrimô-

nio das elites e está a seu serviço.

No âmbito das políticas sociais,

a dualidade institucional se repro-

duz na dicotomia entre políticas de

integração (de caráter universal) e

políticas de inclusão (dirigidas a

grupos focais). Neste último caso,

por não incorporar os benefícios

sociais à condição dos direitos de

cidadania, introduz-se a contradição

entre a redução da desigualdade

econômica por meio de um meca-

nismo que reafirma a diferença de

status político, além de disciplinar

o cotidiano dos assistidos.

No campo das políticas de saú-

de, assistimos a um movimento re-

formador importante na região, em

busca da superação dos elevados

níveis de exclusão ao direito à saú-

de, estratificação dos benefícios e

instituições para os incluídos, irra-

cionalidade e superposição institu-

cional e má qualidade da atenção.

São experimentados três mode-

los de reforma:

• Um modelo de mercado, es-

tabelecido pela reforma no Chile em

1980, o qual assume a dualidade

institucional como seu princípio de

estruturação: os que podem vão ao

mercado de seguros, e o Estado pro-

tege os remanescentes no sistema

público. Tal modelo aumentou a

segmentação e a desigualdade pois

não permite mecanismos solidários;

• Um modelo público univer-

sal, estabelecido no Brasil na Cons-

tituição Federal de 1988, implanta-

do de forma descentralizada e parti-

cipativa, carecendo, no entanto, de

recursos financeiros capazes de al-

terar a lógica da oferta curativa e

altamente concentrada da rede de

serviços. Tal sistema convive com

um mercado de seguros de saúde

para onde migrou a classe média;

Em todos os três casos, houve

aumento da cobertura, embora os

três sistemas tenham sido incapa-

zes de eliminar as desigualdades,

seja porque seu desenho já compor-

tava uma lógica diferencial, seja pela

incapacidade de construir uma éti-

ca do cuidado e as condições hu-

manas, gerenciais e materiais para

assegurar igualdade de acesso e

utilização de serviços de qualidade.

Diante destas experiências de li-

mitada eficácia para assegurar a

proteção social e a garantia do di-

reito à saúde nos perguntamos

quais são as tendências e potencia-

lidades que se apresentam neste ce-

nário de globalização.

Como procuramos mostrar, são

complexos os efeitos dos processos

atuais de reorganização das lógicas

produtiva e reprodutiva, gerando

ambivalências e contradições em

relação à inclusão social.

Novas e renovadas dinâmicas de

exclusão convivem com aquelas que

já fazem parte da nossa história na-

cional. Por outro lado, há uma ten-

são crescente entre o limitado invó-

lucro nacional da cidadania e as

potencialidades geradas pela circu-

lação de informações e o aumento

das expectativas em relação à pro-

teção social. As migrações questio-

nam o nacionalismo da cidadania;

os direitos humanos se impõem

como universais e desterritorializa-

dos, os poderes nacionais se su-

• Um modelo de seguro, es-

tabelecido na Colômbia com a Lei

100, de 1993, que se pretende plural

por comportar instituições públicas

e privadas, competitivas com base

na demanda de serviços. Criou tam-

bém um mecanismo solidário de in-

clusão progressiva dos pobres na

condição de assegurados, porém não

foi capaz de universalizar ou reduzir

as diferenças entre os dois tipos de

seguros.

NO CAMPO DAS POLÍTICAS DE SAÚDE,ASSISTIMOS A UM MOVIMENTO REFORMADOR

IMPORTANTE NA REGIÃO, EM BUSCA DA

SUPERAÇÃO DOS ELEVADOS NÍVEIS DE

EXCLUSÃO AO DIREITO À SAÚDE...

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Proteção social em um mundo globalizado

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 305-314, set./dez. 2005 313

313

bordinam a estratégias regionais. A

perda do referente nacional mostra

a existência de uma sociedade cada

vez mais policêntrica, descentrada

e descentralizada.

Ainda que estes fenômenos pos-

sam ser vistos como ameaças à co-

esão social, porque geram identida-

des competitivas, também é certo

que fortalecem o poder local, seja

ele o poder público ou a sociedade

local, gerando novas condições de

governança local, potencialmente

mais favorável à inovação social.

Desta forma, existe a possibilidade

de reconciliar a cidadania com a

comunidade, resgatando a noção de

cidadania ativa, por meio de proces-

sos de deliberação e co-gestão.

A tensão entre o local, o nacio-

nal e o global impõem a busca de

uma nova territorialidade para a

cidadania, já que direitos distintos

passam a ser reivindicados em ní-

vel também diferenciado, como os

direitos humanos e ambientais cada

vez mais globalizados, os direitos

sociais e políticos em âmbito nacio-

nal e os de participação e delibera-

ção restringidos ao nível local.

Outra tensão presente é relativa

à igualdade implícita na condição

de cidadania e as reivindicações

atuais de respeito às diferenças. As

diferenças são afirmadas não como

incapacidades, mas como singula-

ridades que não podem ser desca-

racterizadas por meio de políticas

homogêneas, que terminam por rei-

ficar padrões normativos de domi-

nação.

Trata-se de repensar as políticas

sociais a partir da centralidade do

cidadão-usuário e não do predomi-

no da lógica da burocracia e das

especializações profissionais. En-

fim, trata-se de pensar em condições

de igualdade complexa e de cidada-

nia diferenciada.

A possibilidade de emancipação

é cada vez mais decorrente da com-

preensão do lugar desta singulari-

individual, para se colocar como

prática social transformadora, pois

a autonomia é mediada social e ins-

titucionalmente, requerendo a acei-

tação e reconhecimento do outro (al-

teridade) e das interdependências

mútuas.

A revolução dos excluídos nesta

perspectiva emancipadora tem sido

uma revolução molecular, que per-

mite formular os dramas cotidianos

em uma linguagem pública dos di-

reitos. Ao contrário dos modelos de

proteção social que tiveram como

ator central a classe trabalhadora,

o novo desenho das políticas e mo-

delos de proteção não é fruto de uma

ação coletiva organicamente direci-

onada. Ao contrário, enquanto todos

falam dos pobres e excluídos como

um lugar vazio de poder, estamos

deixando de reconhecer o intenso

movimento molecular de adensa-

mento da esfera pública e da cida-

dania que se processa de forma in-

visível e subterrânea. Restaria pen-

sar como as políticas públicas po-

dem favorecer estes processos mo-

leculares, sem correr o risco de que-

rer discipliná-los ou cooptá-los.

As novas formas organização em

forma de redes de políticas impõem

desafios quanto a uma gestão com-

partilhada, mais democrática porque

mais capilar, diversa e plural. Bus-

car mobilizar recursos e coordenar

interdependências passa a ser o

grande desafio da gestão. No entan-

to, não há como diluir o papel do

dade no contexto social e, a partir

daí, gerar condições para a recons-

trução de auto-imagens e hetero-

imagens deterioradas pelas políticas

universais normalizadoras. Lingua-

gens simbólicas que remetem à uni-

versalidade, como a arte e o traba-

lho corporal, se colocam como pos-

sibilidade de construção de sujeitos

autônomos e emancipados. A auto-

nomia deixa de ser pensada em ter-

mos liberais, do cálculo utilitário

EXISTE A POSSIBILIDADE DE RECONCILIAR ACIDADANIA COM A COMUNIDADE, RESGATANDO

A NOÇÃO DE CIDADANIA ATIVA, POR MEIO DE

PROCESSOS DE DELIBERAÇÃO E CO-GESTÃO

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FLEURY, Sonia

314 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 305-314, set./dez. 2005

Estado nesta nova forma reticular

de sociabilidade e organização. Há

que ter em conta o papel do Estado

como mediador dos conflitos, espe-

cialmente os distributivos, o que

requer fortalecer sua institucionali-

dade e os princípios de transparên-

cia, mérito e imparcialidade de sua

burocracia.

A combinação de estruturas bu-

rocráticas com formas reticulares,

da responsabilização e regulação

com a co-gestão, a democracia re-

presentativa com a deliberativa, es-

tes são os novos desafios para cons-

trução de uma proteção social que

seja capaz de ampliar a esfera pú-

blica, por meio do reconhecimento,

participação e redistribuição. O fra-

casso em um destes elementos será

o fracasso da democracia entre nós.

As potencialidades, no entanto, são

tão grandes quanto os desafios que

estão colocados.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição, 1988. Dispõe

sobre a Constituição da Republica

Federativa do Brasil. DOU-I, Brasí-

lia-DF, 126(191-A):1-32, 5 out.1988.

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PÚBLICA, 11.; CONGRESSO BRASI-

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MALTHUS, T.R. Ensaio sobre a po-

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1983. (Coleção Os Economistas).

MARSHALL, Theodor H. Cidadania,

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MARX, Karl. O Capital. Rio de Ja-

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Saúde, Desenvolvimento e Global ização

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 315-326, set./dez. 2005 315

ARTIGOS DE OPINIÃO / OPINION ARTICLES

Saúde, Desenvolvimento e GlobalizaçãoHealth, Development and Globalization.

Edmundo Gallo 1

Janice Dornelles de Castro2

Joseane Carvalho Costa 3

Vivian Studart4

Sandra Willecke5

Recebido: Mar./2006

Aprovado: Jun./2007

1 Pesquisador Adjunto e Coordenador deProgramas e Projetos Estratégicos da Fio-cruz Brasília, Vice-presidente do Cebes(1989/1990), Conselheiro Editorial do Cebes.

E-mail: [email protected]

2 Doutora em saúde coletiva – Unicamp,Pesquisadora visitante da Fiocruz, direto-ria da Associação Brasileira de Economiada Saúde.

E-mail: [email protected]

3 PhD em Ciências – Professora pesquisa-dora da Universidade Federal do Pará –Assessora da Coordenação de Programase Projetos Estratégicos da FundaçãoOswaldo Cruz/Brasília.

E-mail: [email protected]

4 Gerente de Projeto, Assessora Técnica daFiocruz, Especialista em Saúde Pública –ENSP/Fiocruz, Mestranda em Saúde Públi-ca – ENSP/Fiocruz.

E-mail: [email protected]

5 Analista em C&TSP da Fiocruz, Mestreem Políticas e Gestão Públicas – UFRN eAnalista em Relações Internacionais

E-mail: [email protected]

RESUMO

Uma das principais questões da atualidade é a articulação entre saúde

e desenvolvimento. Como alcançar o desenvolvimento soberano e susten-

tável com crescimento e justiça social?. O objetivo desse artigo é, através

da revisão bibliográfica, identificar estudos que analisaram o setor en-

quanto pólo dinâmico de desenvolvimento, gerador de renda e capaz de

propiciar a integração regional e entre países, contribuindo para a revisão

da visão da saúde enquanto uma atividade que apenas traz elevados cus-

tos para a sociedade. Abordando a discussão da saúde, desenvolvimento e

globalização buscando um novo sentido, e assim construindo uma nova

concepção de desenvolvimento que deve considerar a garantia das necessi-

dades sociais básicas.

PALAVRAS –CHAVE: Saúde Global, Economia da Saúde, Desenvolvimento.

ABSTRACT

One of the main contemporary issues is regarding the relationship be-

tween health and development. How can sovereign and sustainable deve-

lopment be achieved with growth and social justice? This article aims to

identify through a bibliographical review studies which examine the health

sector as a dynamic center for development and income, capable of gene-

rating regional and international integration, contributing to revise the

vision of health as an activity that only brings about high costs for the

society. The discussion of health, development and globalization is appro-

ached in order to establish a new meaning and therefore build a new con-

cept of development, which must consider ensuring basic social needs.

KEYWORDS: Global Health, Health Economics, Development.

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GALLO, Edmundo et al

316 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 315-326, set./dez. 2005

APRESENTAÇÃO

Este artigo pretende identifi-

car como os conceitos de desenvol-

vimento e globalização foram abor-

dados pela política de saúde, espe-

cialmente em sua relação com as

políticas econômica, externa e de

desenvolvimento regional, propon-

do uma abordagem teórico-concei-

tual que possibilite analisar e des-

tacar o seu potencial de contribui-

ção para um projeto global contra-

hegemônico em uma perspectiva

multipolar e solidária. Para alcan-

çar este objetivo, o texto foi organi-

zado iniciando pela apresentação do

pensamento de alguns autores so-

bre o desenvolvimento econômico e

as possíveis articulações deste con-

ceito com a questão da saúde, se-

guido de um breve panorama da

relação entre desenvolvimento e

saúde no Brasil, continuando na

discussão das relações entre Saúde

e Globalização e, por fim, apresen-

tando o contexto atual do setor saú-

de no Brasil e seus desafios.

SAÚDE EDESENVOLVIMENTO

Existem alguns argumentos que

defendem a importância do setor

saúde para o desenvolvimento: o

primeiro salienta sua importância

para o desenvolvimento humano

com eqüidade e justiça social, e o

segundo destaca a saúde na totali-

dade de seu complexo produtivo,

valorizando-a como fator de desen-

volvimento pelo elevado grau de

inovação, lucratividade e emprega-

bilidade do setor, com potencial eco-

nômico e tecnológico para incremen-

tar a integração regional. (GADE-

LHA, 2003, 2006; GALLO et al, 2004,

2005; BRASIL, 2004; CASTRO,2004;

FERLA,2004).

No Brasil, o desenvolvimento as-

sumiu principalmente a característi-

Ao longo dos tempos, a teoria

econômica tem evoluído na sua con-

cepção de desenvolvimento. O libe-

ralismo de Adam Smith afirma que

são os interesses individuais reali-

zados livremente no mercado, har-

monizados pela “mão invisível”,

que levariam a sociedade ao está-

gio de bem–estar. A riqueza das

nações depende do trabalho produ-

tivo, capaz de produzir excedente de

valor sobre o custo de reprodução

da mão de obra. A divisão do tra-

balho é a força dinâmica deste pro-

cesso e depende da extensão dos

mercados interno e externo

Para Marx, o desenvolvimento

capitalista ocorre por meio de ciclos

e crises periódicas. O progresso téc-

nico libera trabalhadores e aumen-

ta a taxa de exploração, elevando a

taxa de lucro. Mas reduz a deman-

da por trabalho e, em longo prazo,

reduz a taxa de lucro, pois aumen-

ta a parcela de capital constante na

composição orgânica do capital, o

que diminui a capacidade de extra-

ir mais-valia, traduzindo-se em cri-

ses de subconsumo e crises de des-

proporção entre consumo e produ-

ção. (SOUZA, 2005; HUNT,1981).

Keynes centra a sua análise na

abordagem macroeconômica do ple-

no emprego, nos fatores de cresci-

mento dos investimentos e seus

impactos sobre a renda e emprego.

Focaliza na demanda efetiva, reali-

zando uma análise estática e de

curto prazo. As pessoas não gastam

ca de crescimento econômico, deter-

minando elevados índices de urba-

nização e industrialização, mas

também criando enormes desigual-

dades entre as regiões e em relação

à distribuição da renda.

O impacto na saúde se refletiu

em investimentos maciços em infra-

estrutura assistencial (obras e equi-

pamentos), marcadamente desigual

entre e inter-regiões.

NO BRASIL, O DESENVOLVIMENTO ASSUMIU

PRINCIPALMENTE A CARACTERÍSTICA DE

CRESCIMENTO ECONÔMICO, DETERMINANDO

ELEVADOS ÍNDICES DE URBANIZAÇÃO EINDUSTRIALIZAÇÃO, MAS TAMBÉM CRIANDO

ENORMES DESIGUALDADES ENTRE AS REGIÕES

E EM RELAÇÃO À DISTRIBUIÇÃO DA RENDA

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Saúde, Desenvolvimento e Global ização

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 315-326, set./dez. 2005 317

toda sua renda em consumo e, ne-

cessariamente, não investem o que

não é consumido, parte da renda

“vaza”, sai da esfera da economia

(poupança, impostos, importação),

impedindo o pleno emprego. Com a

crise de 1930, ganha força esta abor-

dagem, que coloca ênfase no inves-

timento como motor do crescimen-

to. Mediante seu efeito multiplica-

dor, o governo influencia o nível de

emprego pelo uso de política fiscal

(gastos públicos, tributação, em-

préstimos), política monetária

(emissão ou controle de moeda, fi-

xação da taxa de juros) e política

cambial. Assim, o governo age so-

bre as expectativas dos empresári-

os influenciando o nível de investi-

mento. (SOUZA, 2005; HUNT,1981).

Há também o paradigma desen-

volvimentista latino-americano, da

CEPAL – Comissão Econômica para

Americana Latina e Caribe, cujo

principal idealizador foi Raul Pre-

bish. Para os cepalinos existe um

padrão específico de inserção inter-

nacional, de oposição entre centro

e periferia, sendo a última, produ-

tora de

(...) bens e serviços com demanda

internacional pouco dinâmica, e impor-

tadora de bens e serviços com deman-

da doméstica em rápida expansão, e

absorvedora de padrões de consumo e

tecnologias adequadas ao centro, mas

freqüentemente inadequadas à dispo-

nibilidade de recursos e ao nível de ren-

da da periferia (BIELSCHOWSKY, 2000,

p. 22).

Portanto, os processos de cres-

cimento, emprego e distribuição de

renda na periferia são distintos da-

queles dos países centrais, exigin-

do a industrialização para superar

o subdesenvolvimento e a pobreza.

Mas as economias periféricas têm

estruturas pouco diversificadas e

tecnologicamente heterogêneas, le-

vando à tese da tendência à deterio-

produção e emprego. É importante

o papel do empresário inovador e

do crédito. Distingue crescimento de

desenvolvimento. O crescimento

decorre de combinações antigas dos

meios de produção, trabalho e re-

cursos naturais, é um processo de

adaptação. O desenvolvimento é

produzido pelas variáveis inova-

ções e instituições; é um fenômeno

novo, desloca o ponto de equilíbrio

para um novo patamar, baseia-se

na função empresarial, inovações

tecnológicas e crédito. Mas existem

falhas de mercado, como retornos

crescentes à escala e às externali-

dades, que levam a falhas de de-

manda efetiva. Onde há concorrên-

cia imperfeita, o governo procura

intervir através de impostos, ofer-

tando bens públicos, regulando

monopólios, nacionalizando indús-

trias, criando leis antitruste. Mas as

falhas de mercado são substituídas

por falhas de governo, o bem-estar

reduz-se em vez de aumentar, os

recursos públicos são mal gastos,

há desperdício e redução de eficiên-

cia global. O empresário, por sua

vez, está sempre tentando romper o

equilíbrio, ao introduzir inovação

geradora de lucro puro e, portanto,

de imperfeições de mercado. Chama-

se a este processo de destruição cri-

adora (SOUZA, 2005; HUNT,1981,

CASTRO,2002).

Sen (2000), por sua vez, intro-

duz a idéia de desenvolvimento

como liberdade, acredita que o cres-

ração dos termos de trocas entre

centro e periferia.

Schumpeter, como os clássicos,

enfatiza o lado da oferta na expli-

cação do crescimento econômico.

Identifica, nos novos produtos e pro-

cessos, o motor do crescimento, pois

sempre haverá demanda para estes

bens. Assim, investimentos em má-

quinas e capacitação tecnológica

dinamizam a economia ao gerar

efeitos de encadeamento sobre a

OS PROCESSOS DE CRESCIMENTO, EMPREGO EDISTRIBUIÇÃO DE RENDA NA PERIFERIA SÃO

DISTINTOS DAQUELES DOS PAÍSES CENTRAIS,EXIGINDO A INDUSTRIALIZAÇÃO PARA SUPERAR

O SUBDESENVOLVIMENTO E A POBREZA

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GALLO, Edmundo et al

318 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 315-326, set./dez. 2005

cimento do Produto Nacional Bruto

(PNB) ou da renda per capita, pode

ser um meio importante de expan-

dir as liberdades dos cidadãos, mas

depende também de condições soci-

ais e econômicas, como serviços de

saúde e educação, e dos direitos

civis, como a liberdade de partici-

par. Afirma que a industrialização,

a modernização ou o progresso tec-

nológico podem contribuir para o

desenvolvimento, mas que este

(...) requer que se removam as prin-

cipais fontes de privação de liberdade:

pobreza, tirania, carência de oportu-

nidades econômicas e destituição soci-

al sistemática, negligência dos servi-

ços públicos e intolerância ou interfe-

rência excessiva dos Estados repressi-

vos. (SEN, 2000, p.18).

A partir destas abordagens, pode-

se assumir que o conceito de desen-

volvimento, aplicado à saúde, deve

necessariamente levar em conside-

ração a dimensão da justiça social,

do acesso à educação, à saúde, à

água, ao saneamento e à terra, mas

também deve considerar o seu po-

tencial econômico, a inovação e a

intervenção do governo conduzindo

o processo de desenvolvimento, que

terá como conseqüência a geração

de consumo, emprego, lucro e dis-

tribuição de renda.. Assim, emerge

uma nova concepção de desenvol-

vimento que deve considerar a ga-

rantia das necessidades sociais bá-

sicas, mais vinculadas à garantia

do bem-estar social, articulado ao

crescimento econômico sustentável

com eqüidade e justiça social.

DESENVOLVIMENTOE SAÚDE NO BRASIL

A formação de um sistema de

atenção à saúde foi concomitante à

transformação da forma de organi-

produção, segundo Offe (1984),

pressupõe a existência de indivídu-

os “livres”, despojados dos meios

de produção e dispostos a vender a

sua força de trabalho no mercado.

Porém este processo não é espontâ-

neo. É importante a ação do Esta-

do, no sentido de organizar o con-

texto social, para o desenvolvimen-

to e reprodução da acumulação ca-

pitalista (O’DONNEL, 1980).

É neste contexto que o Estado

brasileiro implementou as primei-

ras políticas sociais (GALLO, 1993).

As principais políticas de saúde fo-

ram o saneamento básico dos por-

tos e dos núcleos urbanos e as cam-

panhas de vacinação de cunho im-

positivo. As políticas previdenciá-

rias pioneiras foram a garantia de

benefícios e auxílios viabilizados

pelo Estado e por algumas empre-

sas privadas. O desenvolvimento

destas políticas possibilitou a imi-

gração, a consolidação dos núcle-

os urbanos e a criação do mercado

de trabalho, favorecendo a integra-

ção da economia brasileira no mer-

cado mundial e viabilizando a acu-

mulação e reprodução do capital

(OFFE,1984).

Com o golpe militar de 1964,

modificou-se a relação entre o Es-

tado e as classes sociais, constitu-

indo-se novas alianças entre a bu-

rocracia civil e militar, o capital

nacional e o capital estrangeiro. O

Estado brasileiro deste período ti-

nha como característica a autono-

zação da produção, a qual corres-

pondeu à primeira etapa de desen-

volvimento capitalista. Ou seja,

quando a economia, escravocrata

produtora de algodão e açúcar para

exportação, deu lugar à lavoura

cafeeira exportadora com base na

mão-de-obra assalariada, tornou-se

necessário organizar o mercado de

trabalho e criar condições para via-

bilizar a acumulação cafeeira. A

forma capitalista de organizar a

A FORMAÇÃO DE UM SISTEMA

DE ATENÇÃO À SAÚDE FOI CONCOMITANTE ÀTRANSFORMAÇÃO DA FORMA

DE ORGANIZAÇÃO DA PRODUÇÃO

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Saúde, Desenvolvimento e Global ização

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 315-326, set./dez. 2005 319

mia da sua dimensão política em

relação à dimensão econômica e

social (MARTINS, 1985), em função

da inexistência de mecanismos de

representação democrática que limi-

tasse sua ação, tornando-se cada

vez mais autônomo, criando inte-

resses burocráticos próprios e esta-

belecendo um novo padrão neo-cor-

porativo onde eram privilegiados os

grupos dominantes, e a maioria da

sociedade era excluída da partici-

pação.

Nesse contexto, foi novamente

reformulado o sistema de saúde: a

gerência financeira foi centralizada

no Estado; foram excluídos da par-

ticipação os trabalhadores e patrões;

aumentou-se e unificou-se a contri-

buição, crescendo a disponibilida-

de de recursos. A política do Esta-

do de exclusão da participação dos

trabalhadores e patrões e de defesa

de interesses burocráticos próprios

(MARTINS, 1984) permitiu o desen-

volvimento de um modelo de assis-

tência em que se privilegiavam os

interesses das classes dominantes,

ao mesmo tempo em que se ampli-

ava o poder da burocracia estatal.

Novas transformações importan-

tes ocorreram a partir de 1988 com

a aprovação da Constituição Fede-

ral e da Lei Orgânica da Saúde em

1990 (Lei 8.080 de 19 de setembro

1990). A nova Constituição estabe-

lece em seu art.196 que “A saúde é

direito de todos e dever do Esta-

do...” (BRASIL, 1988) e que o aces-

so aos serviços de saúde deve ser

igualitário, universal e integral.

O Estado brasileiro, portanto,

atuou e continua atuando como

principal financiador das políticas

de saúde no país desde a sua for-

mação. Apesar disso, não logrou

induzir o desenvolvimento susten-

tável e continuado, dinamizando a

economia, a partir dos investimen-

tos realizados nesta área. Isso ocor-

re, principalmente, porque não se

considerou a dinâmica do comple-

ga os setores envolvidos com a pres-

tação de serviços de saúde. Segun-

do o autor, é este último grupo que

confere organicidade ao complexo,

sendo seu motriz; ou seja, a sua

contração ou expansão impacta di-

retamente nos outros setores. Gallo

et al (2005) ampliam este conceito

para complexo produtivo, acrescen-

tando as cadeias produtivas de ci-

ência e tecnologia e de formação de

força de trabalho como outras di-

mensões do CPS.

Estas abordagens acreditam no

potencial de dinamismo e inovação

da área social para o desenvolvi-

mento. É necessário, no entanto, que

o Estado articule os diversos seto-

res do complexo produtivo com as

políticas sociais, situação que não

ocorre no Brasil (BRASIL, 2004).

Aqui assistimos a “...desarticulação

entre a política de saúde e uma po-

lítica para o desenvolvimento das

indústrias do setor” (GADELHA,

2003;), ou seja, o SUS é uma políti-

ca social bem- sucedida e que de-

termina, contraditoriamente, mai-

or dependência das importações,

pois não foram criadas as condições

para a produção interna dos insu-

mos necessários para o seu funcio-

namento, refletindo a incapacidade

das políticas de saúde de induzirem

o desenvolvimento (GALLO & COE-

LHO, 2005).

É nesta conjuntura que se colo-

ca uma grande questão, também

apontada na agenda política mun-

xo produtivo da saúde (CPS) na for-

mulação das políticas de investi-

mento setorial.

Conforme Gadelha (2003), o com-

plexo industrial da saúde é compos-

to por três grandes grupos de ativi-

dades: do primeiro, fazem parte as

indústrias de base química e bio-

tecnológica; do segundo grupo, as

atividades de base física, mecâni-

ca, eletrônica e de materiais; e, por

fim, há um terceiro grupo que agre-

O ESTADO BRASILEIRO (...) ATUOU ECONTINUA ATUANDO COMO PRINCIPAL

FINANCIADOR DAS POLÍTICAS DE SAÚDE NO

PAÍS DESDE A SUA FORMAÇÃO. APESAR DISSO,NÃO LOGROU INDUZIR O DESENVOLVIMENTO

SUSTENTÁVEL...

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GALLO, Edmundo et al

320 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 315-326, set./dez. 2005

dial: como alcançar o desenvolvi-

mento soberano e sustentável com

crescimento e justiça social? Este é

um dos principais desafios coloca-

dos para as sociedades na atuali-

dade, e para responder a ele, torna-

se necessário articular as políticas

de saúde e desenvolvimento, consi-

derando o contexto da globalização.

SAÚDE E GLOBALIZAÇÃO:A POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA

A política externa do Brasil pas-

sou, paulatinamente, a tratar a saú-

de como uma questão relevante

(GALLO et. al., 2005; GOVERNO FE-

DERAL, 2005; MERCOSUL, SGT-11,

2003, 2004;19 e 2005; MERCOSUL,

GMC, 2005), demandando que a for-

mulação e implementação da polí-

tica de saúde se alinhem às suas

diretrizes, de modo a possibilitar a

construção da segunda mão dessa

via entre política externa e política

de saúde no Brasil (TREVAS, 2005;

GALLO & COSTA, op. cit.).

Atualmente as prioridades da

política externa são duas: (a) a in-

tegração da América do Sul, tendo

como base o Mercosul; (b) o aumen-

to das exportações e da inserção

política e econômica do Brasil no

cenário internacional, tendo por

base a integração. Algumas ques-

tões colocadas pela política exter-

na brasileira muitas vezes não es-

tão em consonância com a agenda

hegemônica internacional, como,

por exemplo, na discussão sobre a

função do Estado no desenvolvimen-

to econômico e social e sobre a ga-

rantia dos direitos sociais.

A área da saúde no Brasil – mes-

mo em uma conjuntura política e

econômica adversa, interna e exter-

namente, nos anos 80 e 90 – conse-

guiu realizar uma reforma no se-

tor, incluindo, na Constituição Fe-

deral de 1988, a criação da Seguri-

dade Social, em uma perspectiva

tanto política (saúde e seguridade),

quanto técnico-operacional (Sistema

Único de Saúde).

Há, portanto, um background

que habilita a saúde a ser uma das

áreas de ponta para fortalecer a pro-

posta da política externa, qual seja,

a de colocar o Brasil como um in-

terlocutor importante no cenário

internacional, tendo como perspec-

tiva a solidariedade, a diversidade

e a justiça social, promovendo uma

nova relação entre Estado e Socie-

dade.

CONTEXTO ATUAL DO SETORSAÚDE NO BRASIL

O setor saúde é dotado de espe-

cificidades decorrentes de sua apro-

ximação com os problemas reais ou

potenciais da população, que con-

dicionam a identificação de temas

prioritários para pesquisa científi-

ca, desenvolvimento tecnológico e

institucional ,e a conseqüente neces-

sidade de sistematização e incorpo-

ração dos novos conhecimentos e

tecnologias ao Sistema Único de

Saúde (SUS).

Este setor vem se deparando

com uma série de desafios, impos-

tos principalmente pelas modifica-

ções nas condições de vida da po-

pulação. A despeito das importan-

tes conquistas na área da saúde re-

gistradas nas últimas décadas, ain-

da persistem iniqüidades e novas

contrária à lógica da maioria dos

países. Além de avançar sob o pon-

to de vista ideológico e doutriná-

rio, também foi possível transfor-

mar esta perspectiva em um siste-

ma operacional com um conjunto

de experiências positivas importan-

tes: o Sistema Único de Saúde - SUS.

Esta característica reforça o argu-

mento de que a saúde seja um dos

vetores importantes da política ex-

terna, portadora de uma Agenda

A ÁREA DA SAÚDE NO BRASIL – MESMO EM

UMA CONJUNTURA POLÍTICA E ECONÔMICA

ADVERSA, INTERNA E EXTERNAMENTE, NOS

ANOS 80 E 90 – CONSEGUIU REALIZAR

UMA REFORMA NO SETOR ...

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Saúde, Desenvolvimento e Global ização

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 315-326, set./dez. 2005 321

dificuldades surgem no esforço de

prover o acesso universal, equâni-

me e integral às ações e aos servi-

ços de promoção, proteção e recu-

peração da saúde, princípios que

norteiam o funcionamento do SUS

(BLOOM, 2005; DRACHLER, 2003;

PELEGRINI, 2005).

O quadro sanitário prevalente do

país é diversificado e reflete a pre-

sença de diferentes perfis epidemi-

ológicos: coexistem enfermidades

infecciosas e parasitárias, caracte-

rísticas de países em desenvolvimen-

to, e as doenças crônicas, como as

cardiovasculares e neoplasias, típi-

cas dos países desenvolvidos. Ain-

da nesse contexto, interagem aspec-

tos associados à migração para os

grandes centros urbanos, cujo con-

tingente populacional passa a viver

nas periferias, sem infra-estrutura

necessária de saneamento e habita-

ção.

Observa-se a importância cres-

cente das chamadas causas exter-

nas, expressão da violência social

em suas mais diversas formas, e

das doenças crônicas não-transmis-

síveis, ao lado da re-emergência e

permanência de doenças infecciosas

e parasitárias – se não como causa

de óbito, como morbidade detecta-

da pelo sistema de vigilância epi-

demiológica e pelos registros de

consulta ambulatorial e hospitalar

– configurando, assim, um “mosai-

co epidemiológico” de grande com-

plexidade. Complexidade esta que

se amplia em virtude da distribui-

ção diferenciada dos riscos e agra-

vos nos diversos grupos da popu-

laçãoe e desigualdade que se expres-

sa nas diferenças observadas nas

taxas e coeficientes das regiões do

país, ou entre regiões do mesmo

estado. Por outro lado, a ampliação

do acesso às medidas de controle e

aos serviços de saúde, associada ao

desenvolvimento de novas tecnolo-

gias, promoveu o aumento na ex-

pectativa de vida e, por conseguin-

protocolos clínicos e gerenciais e

ferramentas de tecnologia da infor-

mação, entre outras. Destaca-se,

também, a integralidade como um

dos principais aspectos da política

de humanização da atenção à saú-

de, entendida tanto do ponto de vis-

ta da articulação das ações de pro-

moção, prevenção e recuperação,

quanto do ponto de vista da conti-

nuidade do cuidado.

Este contexto tem demandado

insumos estratégicos para o siste-

ma, que são oriundos dos distintos

segmentos do complexo produtivo

da saúde. Essa demanda, entretan-

to, não tem sido utilizada como

política de indução ao desenvolvi-

mento e à integração regional. In-

vestimentos crescentes em unidades

de saúde e equipamentos, por exem-

plo, têm sido realizados sem que

haja uma mobilização articulada do

CPS, redundando em ineficiência e

desperdício de recursos financeiros

e, principalmente, em ineficácia so-

cial e em baixo impacto no desen-

volvimento e integração (BRASIL,

2004, GALLO & COELHO, 2005).

O enfrentamento desses proble-

mas, visando à qualificação da

atenção e da gestão, exige estreita

sintonia entre as políticas externa,

de saúde, de ciência e tecnologia,

de desenvolvimento e de integração

nacional, ampliando o foco que atu-

almente está centralizado na assis-

tência, a fim de abranger o CPS

como um todo.

te, o envelhecimento da população,

demandando ações e serviços espe-

cíficos (COHEN, 2005; PRESTON et.

al, 2001; FERLA, 2004).

Além disso, o aprofundamento

da descentralização do SUS gerou

demandas por competências de ges-

tão novas e diferenciadas das dis-

tintas esferas de governo, tais como:

regulação de serviços, gestão estra-

tégica, monitoramento e avaliação,

sistema de custos, implantação de

...O APROFUNDAMENTO DA DESCENTRALIZAÇÃO

DO SUS GEROU DEMANDAS POR

COMPETÊNCIAS DE GESTÃO NOVAS EDIFERENCIADAS DAS DISTINTAS

ESFERAS DE GOVERNO

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GALLO, Edmundo et al

322 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 315-326, set./dez. 2005

As recentes políticas de investi-

mento setorial têm procurado ado-

tar o conceito de desenvolvimento

aqui discutido, buscando, na defi-

nição de suas prioridades, articu-

lar as distintas dimensões do CPS,

assim como atender às necessida-

des de enfrentamento de agravos

prioritários e das desigualdades in-

tra e inter-regionais (BRASIL 2003,

2004 e 2005; GALLO & COELHO,

2005, DRACHLER ,2003, PELEGRI-

NI, 2005). Entretanto, ainda não há

uma agenda estratégica claramen-

te definida que sirva de suporte à

tomada de decisões.

DESAFIOS PARA UMA AGENDADE SAÚDE E DESENVOLVIMENTO NO

CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO

A definição de variáveis relevan-

tes e seu comportamento provável,

em longo prazo, é condição sine qua

non para a elaboração dos cenári-

os que contextualizarão as diferen-

tes alternativas de desenvolvimen-

to nacional e de integração regio-

nal, e também para a adoção de

medidas governamentais, sociais e

empreendedoras em Saúde. Nesse

sentido, busca-se situar esta discus-

são no contexto da globalização,

tendo como referencial dois eixos:

(a) o projeto de desenvolvimento

nacional e (b) o projeto de integra-

ção regional (Mercosul, América do

Sul e Eixo Sul-Sul).

A globalização traz para a agen-

da dois grandes desafios: o desen-

volvimento soberano e sustentável,

que pressupõe crescimento com jus-

tiça social e manejo adequado do

ambiente; e a construção do poder

global multipolar, em contraposição

à hegemonia unipolar hoje preva-

lente.

Quanto ao primeiro desafio, o do

desenvolvimento soberano e susten-

tável, vale rever dois argumentos

relativos à importância do setor

potencial contribuição do setor para

o desenvolvimento. Um segundo

argumento é que a saúde, pensada

no contexto do Complexo Produti-

vo, pode vir a ser um dos instru-

mentos fundamentais de desenvol-

vimento, assim como um dos prin-

cipais motores da integração regio-

nal em função de sua importância

econômica e tecnológica.

Em outras palavras, independen-

temente de ser positivo ter uma po-

lítica de saúde adequada, seu im-

pacto também é estruturante tanto

na perspectiva econômica, quanto

na tecnológica. É pouco provável

que um país alcance o desenvolvi-

mento científico-tecnológico e, tam-

bém, que o processo de integração

regional e o desenvolvimento do

Mercosul ou da América do Sul se-

jam alcançadosa, sem que se con-

sidere a importância que o segmen-

to tem, econômica e produtivamen-

te, e o seu impacto no desenvolvi-

mento.

O segundo desafio - um projeto

de integração regional (Mercosul,

América do Sul e Eixo Sul-Sul) –

articula-se ao primeiro através das

categorias desenvolvimento e mul-

tipolaridade. Com efeito, o gap en-

tre quaisquer indicadores de quali-

dade de vida de países desenvolvi-

dos, em desenvolvimento e pouco

desenvolvidos, vis-à-vis a eficácia

da tecnologia disponível (combate

a doenças, fome, escassez de água,

saúde já apontados: em primeiro

lugar, o argumento tradicional que

destaca a saúde como um elemento

central do desenvolvimento huma-

no, da eqüidade e da justiça social.

Este sempre foi um dos pilares do

discurso do movimento sanitário

para justificar a importância da

política de saúde: é um direito hu-

mano e é justo. Embora esse argu-

mento seja correto, deve-se lembrar

que é insuficiente para mostrar a

... INDEPENDENTEMENTE DE SER POSITIVO

TER UMA POLÍTICA DE SAÚDE ADEQUADA, SEU

IMPACTO TAMBÉM É ESTRUTURANT

E TANTO NA PERSPECTIVA ECONÔMICA,QUANTO NA TECNOLÓGICA

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Saúde, Desenvolvimento e Global ização

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 315-326, set./dez. 2005 323

entre outras) tem demonstrado a ne-

cessidade de atitudes globais mais

efetivas para redução de iniqüida-

des (SACHS, 2005; United Nations

Millennium Project, 2000 e 2005).

Pode-se afirmar que o Brasil está

inserido em um contexto de oportu-

nidades devido a sua posição geo-

política, sua base tecnológica e pro-

dutiva, sua biodiversidade, geodi-

versidade e, no que se refere à saú-

de, sua estrutura jurídico-organiza-

cional, sua experiência operacional

e sua articulação tecnopolítica.

Desta forma, considerando que

a saúde se caracteriza enquanto

produção histórica – seja como con-

ceituação (discurso teórico), seja

como possibilidade concreta de

apropriação e de transformação em

uma política (discurso prático)

(GALLO, 1995) – o primeiro grande

desafio em relação à integração da

América do Sul é entender qual o

significado da saúde para seus po-

vos - o que é mais complexo que o

olhar particular de cada país - e qual

a sua importância no âmbito da glo-

balização. Ou seja, faz-se necessá-

rio entender como os estados naci-

onais tematizam a saúde, e que

ações tencionam adotar dentro des-

te contexto, levando em considera-

ção uma determinada conjuntura

global. Esse seria o primeiro passo

para a consolidação de uma agen-

da estratégica comum.

CONCLUSÕES

Saúde e Economia têm estabe-

lecido um diálogo inacabado no

que refere à questão do desenvol-

vimento, incluindo-se o papel do Es-

tado e também sua articulação ao

processo de integração regional da

América do Sul. A tradição sanita-

rista sempre abordou a questão do

desenvolvimento a partir do olhar

dos determinantes sociais da saú-

de e sua relação com o capitalismo

enquanto forma de dominação; já a

teoria econômica liberal encarou o

setor saúde como espaço de merca-

do de baixa regulação e elevados

gastos, considerando a área sem

possibilidades de inovação e de ge-

rar desenvolvimento. O reflexo para

a política de saúde é o impacto ne-

gativo na sustentabilidade dos in-

vestimentos e a inclusão dos recur-

sos da área no conjunto dos inves-

timentos considerados “não- pro-

dutivos”, portanto sujeitos ao ajus-

te fiscal e às restrições orçamentá-

rio-financeiras daí decorrentes. Nes-

te contexto, a saúde é tratada numa

dimensão estrita.

No entanto, é possível tratar esta

questão de forma mais abrangente

e em toda sua complexidade, con-

siderando os diversos setores da

economia e políticas institucionais

envolvidos. Assim poderão ser ela-

boradas políticas intersetoriais ar-

ticuladas e direcionadas às várias

dimensões da produção da saúde

que constituem o Complexo Produ-

tivo da Saúde. Nessa perspectiva, a

tomada de decisões deverá conside-

rar a dinâmica da estrutura técni-

co-produtiva, pensando conjunta-

mente nas reformas institucionais

do setor; em mecanismos de finan-

ciamento público e privado da aten-

ção à saúde; no mercado de traba-

lho da área; na pesquisa e desen-

volvimento tecnológico; no desen-

volvimento industrial farmacêutico,

farmoquímico, biotecnológico, imu-

nobiológico e de equipamentos mé-

dico-hospitalares, em um contexto

que avalie as conjunturas nacional

e internacional.

Geopoliticamente, a perspectiva

de utilização da saúde como um

dos instrumentos de integração sul-

americana foi adotada pelo gover-

no brasileiro. Ações intersetoriais do

Ministério da Saúde, Ministério das

Relações Exteriores, Subchefia de

Assuntos Federativos e Ministério da

CONSIDERANDO QUE A SAÚDE SE CARACTERIZA

ENQUANTO PRODUÇÃO HISTÓRICA (...) OPRIMEIRO GRANDE DESAFIO EM RELAÇÃO À

INTEGRAÇÃO DA AMÉRICA DO SUL ÉENTENDER QUAL O SIGNIFICADO DA SAÚDE

PARA SEUS POVOS ...

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GALLO, Edmundo et al

324 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 315-326, set./dez. 2005

Integração foram desenvolvidas,

destacando-se a implantação do Sis-

tema Integrado de Saúde das Fron-

teiras (SIS-Fronteiras) e a inflexão

na Agenda do Sub-Grupo de Traba-

lho da Saúde do Mercosul (SGT-11),

que passou a investir em uma pers-

pectiva de integração dos Comple-

xos Produtivos de Saúde dos paí-

ses. Estas ações procuraram rom-

per com limitações burocráticas ao

acesso aos cuidados de saúde, as-

sim como utilizar o setor como ele-

mento motor de desenvolvimento.

O principal desafio é o de coor-

denar e integrar a ação nacional e

internacional dos diversos países e

áreas governamentais, da socieda-

de civil e empreendedores em torno

de uma política que aprofunde a

integração sul-americana e a rela-

ção sul-sul, na perspectiva de for-

mento soberano e sustentável.

Ações como a implantação do

SIS-Fronteiras em uma perspectiva

de integração real entre países; o

SGT-11 do Mercosul voltado para

uma agenda de integração concre-

ta, especialmente na área de servi-

ços; a coordenação das ações junto

a organismos internacionais; polí-

ticas de investimento integradas às

políticas industrial e externa; a in-

tensificação de parcerias com ór-

gãos, que não somente os da saú-

de, em torno de projetos de desen-

volvimento regional voltados para

a integração; e a definição de uma

Agenda estratégica para integrar os

CPS da América do Sul são possibi-

lidades de caminhar para uma in-

tegração efetiva dos países da re-

gião, construindo as bases para um

Complexo Produtivo Regional vol-

tado para o desenvolvimento na

perspectiva aqui apresentada.

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Desenvolvimento e saúde: em busca de uma nova utopia

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 327-338, set./dez. 2005 327

ARTIGOS DE OPINIÃO / OPINION ARTICLES

Desenvolvimento e saúde: em busca de uma nova utopia1

Development and Health: in search of a new Utopia

Carlos Augusto Grabois Gadelha1

Recebido: Jun./2006

Aprovado: Jul./2007

1 Carlos Augusto Grabois Gadelha

Vice-presidente de Produção e Inovação da

Fiocruz e pesquisador da Escola Nacional

de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz).

Email: [email protected]

RESUMO

Procura-se contribuir para uma reflexão teórica e política que subsidiea construção de uma nova agenda que permita atualizar os grandes obje-tivos da Reforma Sanitária brasileira no contexto contemporâneo de umaglobalização fortemente assimétrica, de revolução tecnológica e de(re)colocação da situação de dependência e de atraso no campo da saúde.Discute-se as bases de um novo pacto político, social e econômico, pen-sando-se a retomada da perspectiva de se construir um Estado de Bem-Estar contemporâneo, que recupere as antigas promessas jamais imple-mentadas e que enfrente os novos desafios para articular a saúde com umnovo padrão de desenvolvimento do Brasil.

PALAVRAS-CHAVE: Reforma Sanitária; Complexo Produtivo e Industrial da Saúde;Globalização e Saúde.

ABSTRACT

This article intends to contribute to a theoretical and political reflecti-on to help form a new agenda enabling the main objectives of the Brazili-an Health Care Reform to be revised in the contemporary context of astrongly asymmetrical globalization, a technological revolution and the(re)establishment of a state of dependence and retrogression in the field ofhealth. The bases of a new political, social and economic pact are discus-sed with a view to readopting the stance to build a modern Welfare State,which would recover former promises that were never fulfilled and con-front new challenges in order to organize health care with a new patternof development in the country.

KEYWORDS: Sanitary Reform; Productive and industrial organization of healthcare; Globalization and Health

1 Este artigo constitui uma edição modificada da palestra proferida no dia 01/06/2007 noEncontro de Conjuntura e Saúde, promovido pelo Observatório de Conjuntura em Saúde daENSP e pelo CEBES, com a finalidade de subsidiar o debate sobre o tema “Saúde e Desenvol-vimento”. Apesar das idéias apresentadas serem de responsabilidade exclusiva do autor,é importante destacar a contribuição importante proveniente das atividades de pesquisadesenvolvidas com Cristiane Quental, Cristiani Vieira Machado, José Maldonado, LucianaDias de Lima e Tatiana Wargas de Faria Baptista.

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GADELHA, Carlos Augusto Grabois

328 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 327-338, set./dez. 2005

A despeito de minha trajetória

acadêmica recente estar ligada ao

desenvolvimento teórico do tema do

complexo industrial e da inovação

em saúde, vou inserir este enfoque

onde, de fato, ele se situa: na recu-

peração contemporânea de uma

abordagem estruturalista e de eco-

nomia política para pensar a inser-

ção da saúde no padrão nacional

de desenvolvimento. O objetivo cen-

tral é o de contribuir para a cons-

trução de uma nova agenda que

permita atualizar os grandes obje-

tivos da reforma sanitária brasilei-

ra no contexto contemporâneo de

uma globalização fortemente assi-

métrica, de revolução tecnológica e

de (re)colocação da situação de de-

pendência e de atraso no campo da

saúde.

Esta perspectiva abrangente tor-

na necessário avançar no debate

mesmo que de modo ainda explo-

ratório, pouco estruturado e com

idéias em construção e, portanto, in-

conclusas. Todavia, entendo que ou

a saúde enfrenta de frente o tema

nacional ou os limites do avanço

da reforma sanitária continuarão a

ser recolocados a cada momento de

nossa história. É como se tivésse-

mos chegado a um limite em que o

país enfrenta os novos e velhos fa-

tores que reproduzem um círculo

vicioso entre dependência, atraso,

iniqüidade e uma estrutura econô-

mica pouco dinâmica. Os objetivos

‘setoriais’ para a saúde parecem

encontrar barreiras intransponíveis

ligadas ao nosso próprio padrão de

desenvolvimento.

Em síntese, estamos numa fase

em que, seguindo a perspectiva do

CEBES nesta sua nova etapa, se bus-

ca motivar o debate e contribuir

para a revitalização do movimento

sanitário e de uma visão crítica de

nosso país, sob o prisma da econo-

mia política, não sendo pertinente

dar uma ‘receita’ simples e fechada

para uma questão complexa do pon-

mia e das relações de poder vigen-

tes.

Esta perspectiva, a um só tem-

po teórica e política, parte (e procu-

ra avançar) na concepção de que a

saúde constitui uma condição de

cidadania, sendo parte inerente do

próprio conceito do desenvolvimen-

to. Não há país que possa ser con-

siderado como desenvolvido com a

saúde precária. Nesta direção, não

se torna necessário nenhum víncu-

lo entre saúde e crescimento econô-

mico para justificar as ações uni-

versalizantes e o gasto em saúde.

Isto permite ‘limpar um pouco o

terreno’ para quem está discutindo

a relação entre saúde, desenvolvi-

mento e estrutura econômica, pro-

curando superar falsos e pernicio-

sos dilemas entre uma dimensão

econômica restrita e uma visão

ampla da saúde como um direito,

que constitui uma premissa, inclu-

sive ética, para pensar o desenvol-

vimento.

Para ilustrar o debate contempo-

râneo, dominado pela literatura eco-

nômica neoclássica, e apresentar a

forma limitada com a qual o tema

saúde e desenvolvimento vem sen-

do trabalhado pelas escolas hege-

mônicas, proponho uma visita a

alguns textos muito recentes que

tratam do tema de modo convenci-

onal. Este trabalho incorpora, ex-

plicita ou implicitamente, a saúde

numa função de produção econômi-

ca, relacionando-a como um fator

to de vista teórico, político e insti-

tucional.

As implicações desta perspecti-

va são enormes e impõem a neces-

sidade de avançarmos na visão in-

tersetorial da saúde, o que remete

para a ampliação do escopo de nos-

so pensamento, superando o âmbi-

to específico, se bem que estratégi-

co, da seguridade social, para tam-

bém incorporar a dinâmica e padrão

de transformação de nossa econo-

NÃO HÁ PAÍS QUE POSSA

SER CONSIDERADO COMO

DESENVOLVIDO COM A SAÚDE PRECÁRIA

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explicativo, de maior ou menor in-

tensidade, para a evolução da ren-

da per capita e, portanto, para o cres-

cimento econômico.

Este olhar panorâmico da litera-

tura recente, a meu juízo, fortalece

o desconforto com a tradição mais

recente do tratamento do tema saú-

de e desenvolvimento pelos econo-

mistas. Esta tradição foi muito re-

forçada com os trabalhos de Amar-

tya Sen, premiado com o Nobel de

Economia, de que havia uma rela-

ção indissociável entre saúde e de-

senvolvimento, a partir de sua re-

lação com a própria liberdade hu-

mana sempre associada, na tradi-

ção liberal, à liberdade do exercí-

cio da escolha pelos indivíduos.

No âmbito da saúde, a empol-

gação foi grande e começam a sur-

gir numerosos trabalhos teóricos e

com forte base estatística e econo-

métrica que incorporam a saúde da

função de crescimento, seja como

expectativa de vida, capital huma-

no, mortalidade infantil, entre ou-

tras possibilidades. Parecia, enfim,

que os economistas tinham desper-

tado e fizeram um ‘eureca’ para a

área da saúde, evidenciando sua

relação com o desenvolvimento.

Como desdobramento, a saúde pas-

sa a ser vista como algo positivo

porque aumenta produtividade e

gera desenvolvimento econômico,

não como um segmento da estrutu-

ra econômica, mas apenas como

uma área social que, indiretamen-

te, favorece o capital humano. Por

fim, seríamos aceitos não mais

como ‘dinossauros’ da intervenção

do Estado, mas como propulsores

do próprio desenvolvimento, desde

que nos ativéssemos a práticas efi-

cientes e voltadas para esforços fo-

calizados nos mais necessitados e

que não podem exercer sua liber-

dade em situações de vida tão pre-

cárias.

Todavia, os termos desta percep-

ção embutiam dois riscos que pas-

fosse tão funcional assim para o

crescimento econômico. E se os pa-

íses pudessem crescer – como os

casos da China ou da Índia ilustram

– com condições sanitárias perver-

sas? Ficaríamos desanimados e

mais uma vez ‘de pires na mão’,

solicitando uma lei (tupiniquim)

dos pobres para a uma ajuda hu-

manitária, ao menos para a aten-

ção básica focalizada? O segundo

risco, também grave, era de que

passássemos a ver o processo de de-

senvolvimento como suave, sem

conflitos, sem mudanças estrutu-

rais, bastando que aos esforços do

investimento em capital físico se

acrescentasse um esforço no inves-

timento social, e na saúde, em par-

ticular. Bastava um ‘empurrãozi-

nho’ e os países se desenvolveriam

e haveria uma grande convergência

global, não fazendo mais qualquer

sentido se falar em periferia, em

assimetrias estruturais e em depen-

dência. Na boa tradição liberal, o

mercado livre e o gasto compensa-

tório eficiente do Estado seriam su-

ficientes para um padrão de inter-

venção e de desenvolvimento sua-

ve denominado por Amartya Sen

(2004), citando Adam Smith (o gran-

de economista liberal), como GALA

(getting by with little assistance –

‘ir levando com uma pequena aju-

da’). Despolitizavam-se o desenvol-

vimento e os bloqueios estruturais

que, infelizmente, não deixam de

afligir a periferia capitalista.

savam despercebidos por diversos

autores da área da saúde preocu-

pados com a transformação social,

em geral compartilhando uma vi-

são política de esquerda, que em-

barcavam, inadvertidamente, numa

visão liberal da economia de mer-

cado.

O primeiro risco refere-se à pos-

sibilidade de que começassem a

aparecer estudos com fortes ‘evidên-

cias’ estatísticas de que a saúde não

.. OLHAR PANORÂMICO DA LITERATURA

RECENTE (...) FORTALECE O DESCONFORTO

COM A TRADIÇÃO MAIS RECENTE DO

TRATAMENTO DO TEMA SAÚDE EDESENVOLVIMENTO PELOS ECONOMISTAS

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GADELHA, Carlos Augusto Grabois

330 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 327-338, set./dez. 2005

A literatura recente parece evi-

denciar estes riscos associados a

esta visão liberal mais avançada (de

corte ‘iluminista’) sobre a saúde e

desenvolvimento, que tanto animou

aqueles comprometidos com as re-

formas sociais. Visitando alguns

artigos muito recentes de institui-

ções acadêmicas ou internacionais

muito respeitadas, o risco começa-

va a aparecer. Deaton (2006), da

Universidade de Princeton, questio-

na a relação entre a taxa de cresci-

mento econômico e as condições de

saúde, utilizando a mortalidade in-

fantil como indicador. Conclui que,

na realidade, é a educação e o con-

texto institucional geral que deter-

minam tanto a taxa de crescimento

quanto as condições de saúde, não

havendo uma relação direta entre

ambas.

Um segundo artigo de autores

do renomado MIT – instituto ameri-

cano de excelência na área de Eco-

nomia (Acemoglu & Johnson, 2006)

– não encontrou nenhuma evidên-

cia de que um aumento da expecta-

tiva de vida gera crescimento da

renda per capita. Além disso, o que

é importante, os autores observa-

ram que a convergência na expec-

tativa de vida entre os países é

muito maior do que a convergência

na renda per capita. Ou seja, os

países atrasados estão com a saú-

de um pouquinho melhor em ter-

mos relativos, mas a distância eco-

nômica se mantém ou mesmo se

acentua. Provavelmente, muitos

destes países estão vacinando, tem

ajuda multilateral, conseguem im-

plementar alguns programas de

atenção básica, mas continuam po-

bres e subdesenvolvidos.

Ainda nesta vertente ‘pouco oti-

mista’, Weil (2006), num artigo em

que agradece a colaboração de pes-

quisadores e instituições também

internacionalmente renomadas – Ha-

vard, MIT, Banco Mundial, entre

muitas outras – efetua estimativas

Todavia, a despeito destes estu-

dos recentes, o relatório produzido

pela Organização Mundial da Saú-

de (WHO, 2001), cujo próprio título

já indica a perspectiva adotada –

“Macroeconomia e saúde: investin-

do na saúde para o desenvolvimen-

to econômico” – continua a ser uma

referência para o tema que, de cer-

ta forma, poderia fornecer um alí-

vio. Enfatiza que a saúde é um fim

em si e que, além disto, é um fator

favorável ao desenvolvimento eco-

nômico. Neste aspecto, ressalta,

sobretudo, regiões com condições

de saúde explosivas, como a epide-

mia da AIDS na África Subsaariana,

indicando que a carga de doenças

relacionadas a esta doença é de tal

envergadura que limita qualquer

possibilidade de crescimento econô-

mico e de desenvolvimento.

Esta percepção é seguida em um

trabalho muito recente, deste ano,

elaborado para o FMI. Os autores

(HSIAO & HELLER, 2007) são da

Escola de Saúde Pública de Harvard

e do próprio FMI, e voltam a enfati-

zar a questão do impacto da AIDS

na África na economia, como se a

região fosse desenvolvida antes des-

ta doença ou tivesse alguma traje-

tória de desenvolvimento abortada.

Este texto possui aspectos curiosos,

constituindo um manual para que

os macroeconomistas entendam o

que é a saúde. No receituário, colo-

ca-se claramente a questão do en-

frentamento das falhas de mercado,

econômicas que indicam que se fo-

rem eliminadas as diferenças nas

condições de saúde entre os países,

a variação (variância) da renda per

capita se reduz em apenas 10%. E

mais, com esta eliminação da dife-

rença das condições de saúde, a re-

lação entre o PIB per capita entre

os 10% mais ricos e os 10% mais

pobres cai de 20,5 para 17,9, o que

é muito pouco.

A LITERATURA RECENTE PARECE EVIDENCIAR

(...) RISCOS ASSOCIADOS A (...) VISÃO

LIBERAL MAIS AVANÇADA (...) SOBRE A SAÚDE

E DESENVOLVIMENTO, QUE TANTO ANIMOU

AQUELES COMPROMETIDOS

COM AS REFORMAS SOCIAIS

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Desenvolvimento e saúde: em busca de uma nova utopia

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 327-338, set./dez. 2005 331

que, por sua abrangência na área,

a tornam muito peculiar. Além dis-

so, ao contrário de outros bens es-

senciais, como educação, habitação

e alimentação, as pessoas possuem

riscos e elevadas incertezas sobre o

futuro, decorrentes das doenças e

do envelhecimento, justificando o

estabelecimento de sistemas de pro-

teção social. Por fim, neste manual

aponta-se que a saúde constitui um

valor intrínseco para as pessoas e

para os países.

Ou seja, até organismos consi-

derados como conservadores, como

o FMI e representantes da hegemo-

nia liberal, concordam em associar

e justificar a saúde como uma área

peculiar, cuja intervenção, focaliza-

da, se justifica em função das fa-

lhas de mercado, do risco e da pró-

pria cidadania, além de seu impac-

to nas condições mais elementares

de trabalho de certas populações e

regiões. Nesta direção, também con-

cordam com o papel distributivo do

Estado com foco nos mais pobres

ou nas populações mais vulnerá-

veis, adicionalmente a um esforço

para tornar os gastos mais eficien-

tes, considerando o problema geral

do financiamento na saúde fruto das

mudanças demográficas e nos pa-

drões epidemiológicos, entre outros

fatores. Com relação à questão tec-

nológica, fator também central para

o aumento dos gastos, os autores

propõe a utilização de tecnologias

de baixo custo e complexidade para

o combate a doenças de alto impac-

to epidemiológico como a malária

e a AIDS.

O que surpreende nestes textos é

como a agenda liberal dominante,

se estudada com cuidado, tem inú-

meros pontos de convergência com

a forma como o tema saúde e de-

senvolvimento – ou a relação entre

saúde e economia – vem sendo tra-

balhado no Brasil. Falhas de mer-

cado, tecnologias de baixo custo e

complexidade (justificando inclusi-

que transborda para nosso contex-

to, a relação entre saúde e desen-

volvimento acaba se reduzindo à

visão de que a saúde deve ser apoi-

ada por ser um elemento constitu-

tivo dos direitos sociais ou indivi-

duais básicos, ou se também gera

um efeito indireto sobre o cresci-

mento econômico, decorrente ape-

nas de sua dimensão social, impli-

cando na melhoria das condições de

vida dos trabalhadores e do ambi-

ente geral para os investimentos.

Nesta segunda vertente, decerto, a

justificativa do gasto se torna mais

robusta ou generosa ao incorporar

a saúde como fator indireto de cres-

cimento, em analogia ao que ocor-

re na educação.

Com este referencial, entramos

na armadilha de restringir o debate

sobre saúde e desenvolvimento à

dimensão dos gastos requeridos e

ao tamanho do Estado e do Merca-

do no provimento de bens e servi-

ços e no financiamento. A agenda

estrutural que envolve o padrão

nacional de desenvolvimento, a con-

centração regional e pessoal da ren-

da e a fragilidade de nossa base

produtiva em saúde fica subsumi-

da nesta agenda ‘macro’ extrema-

mente empobrecedora, se bem que

todos nós estejamos na luta por um

financiamento e um papel do Esta-

do compatíveis com as necessida-

des de saúde como elementos essen-

ciais à consolidação de um sistema

de proteção social no Brasil.

ve o foco na atenção primária), o

foco prioritário no contexto local ou

no município e mesmo saúde um

direito individual são, pelo menos,

questões compatíveis com o ideá-

rio liberal dos países, instituições

acadêmicas e organismos interna-

cionais que fazem parte do núcleo

central da hegemonia capitalista

mundial.

Retomando o tema em debate, no

escopo dos paradigmas dominantes,

... ENTRAMOS NA ARMADILHA DE RESTRINGIR

O DEBATE SOBRE SAÚDE E DESENVOLVIMENTO

À DIMENSÃO DOS GASTOS REQUERIDOS E AO

TAMANHO DO ESTADO E DO MERCADO NO

PROVIMENTO DE BENS E SERVIÇOS E NO

FINANCIAMENTO ...

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GADELHA, Carlos Augusto Grabois

332 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 327-338, set./dez. 2005

Belluzo (2006), ironizando a

questão do tratamento do Estado e

do Mercado como simples alterna-

tivas descoladas de suas conexões

políticas e econômicas e sociais, faz

o seguinte comentário que eviden-

cia o empobrecimento do debate

advindo dos paradigmas dominan-

tes em economia e, no nosso caso,

na economia da saúde:

[...] como o senhor prefere, mais Es-

tado ou mais mercado? Desconfio que

algumas teorias serviriam melhor como

um guia de instrução para garçons de

restaurantes baratos (BELLUZZO 2006,

apud VIANA et al., 2007, p.11)

Assim sendo, sugiro que a gente

não embarque nestas vertentes que

incorporam a saúde como um fator

genérico nas funções econômicas de

produção, se distinguindo apenas

na forma, mais ou menos favorá-

vel, em que a relacionam com o

crescimento econômico.

A idéia central apresentada nes-

te trabalho é que necessitamos re-

pensar a saúde, retomando e atua-

lizando uma agenda estruturalista

que privilegia os fatores histórico-

estruturais que caracterizam nossa

sociedade – nosso passado escra-

vista e colonial e a conformação de

uma sociedade desigual – e nossa

inserção internacional e sua relação

com uma difusão extremamente

assimétrica do progresso técnico e,

nos termos atuais, do conhecimen-

to e do aprendizado, dissociados

das necessidades locais.

É neste campo que se dá o corte

entre uma visão liberal e o pensa-

mento desenvolvimentista em seus

diversos matizes políticos e ideoló-

gicos. Para esta perspectiva, o tema

‘saúde e desenvolvimento’ deve ser

trabalhado a partir das necessida-

des de mudanças estruturais pro-

fundas em nossa sociedade, econo-

mia e política. É desta visão que se

Esta visão remete para a neces-

sidade de reconstrução de nossa

visão sobre saúde e sobre a agenda

de reforma. Pensar saúde não ape-

nas como ausência de doença e sim

como qualidade de vida – uma per-

cepção arraigada no campo da saú-

de coletiva –, remete para seguinte

pergunta: pode-se dizer que um país

e um povo pobre, dependente, desi-

gual, sem acesso a conhecimento,

com condições precárias de traba-

lho e sem capacidade de aprendiza-

do, mas que venha elevando sua ex-

pectativa de vida, é saudável? Eu

acho que não. A agenda de saúde

tem que sair de uma discussão in-

trínseca, insulada e intra-setorial e

entrar na discussão do padrão do

desenvolvimento brasileiro. Ou seja,

a saúde como qualidade de vida

implica pensar em sua conexão es-

trutural com o desenvolvimento eco-

nômico, a equidade, a sustentabili-

dade ambiental e a mobilização

política da sociedade. A saúde, nes-

ta perspectiva, se torna parte endó-

gena de discussão de um modelo

econômico de desenvolvimento.

Aceitando esta perspectiva, pro-

ponho que, em vez de se trabalhar

o tema saúde de modo analitica-

mente insulado e ver os nexos que

tem com o crescimento econômico,

procuremos associá-lo com a pró-

pria estratégia de desenvolvimento

econômico-social brasileiro, à luz

de nossa história recente. A trajetó-

ria do desenvolvimento brasileiro no

torna relevante e diferenciador a

necessidade de uma economia polí-

tica da saúde. A grande referência

neste contexto estruturalista é Cel-

so Furtado, numa (re)leitura atua-

lizada, uma vez que seus trabalhos

apontam tanto para as dimensões

relacionadas aos limites da estru-

tura produtiva quanto para a desi-

gualdade pessoal e regional como

marca estrutural da sociedade bra-

sileira.

A AGENDA DE SAÚDE TEM QUE SAIR DE UMA

DISCUSSÃO INTRÍNSECA, INSULADA E INTRA-SETORIAL E ENTRAR NA DISCUSSÃO DO PADRÃO

DO DESENVOLVIMENTO BRASILEIRO

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Desenvolvimento e saúde: em busca de uma nova utopia

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 327-338, set./dez. 2005 333

período 1930/1980 foi uma trajetó-

ria de forte substituição de impor-

tação que engendrou uma das mai-

ores taxas de crescimento do mun-

do, sendo a maior em alguns sub-

períodos. Duas grandes críticas ao

modelo de desenvolvimento adota-

do se colocaram (ambas presentes

nos trabalhos de Furtado). Primei-

ro, a desigualdade social e regio-

nal se manteve ou mesmo se acir-

rou. Segundo, não houve uma ca-

pacitação tecnológica endógena ao

longo desse período. Como diriam

os estruturalistas clássicos, o capi-

talismo brasileiro não conseguia se

sustentar sobre seus próprios pés,

sendo excludente do ponto de vista

social e dependente do ponto de vista

do conhecimento e de sua capaci-

dade de inovação.

No âmbito da economia política

está havendo todo um processo,

pelo menos na academia, de recu-

peração do pensamento desenvolvi-

mentista em novas bases, conside-

rando as especificidades do mundo

contemporâneo. Esta preocupação

se mostra totalmente compatível

com a tradição estruturalista que

refuta ou qualifica a adoção de

modelos gerais que desconsideram

o momento e a experiência históri-

ca de cada processo nacional de

desenvolvimento.2

Indicarei algumas idéias, que

obviamente estão longe de sinteti-

zar o pensamento desenvolvimentis-

ta, a partir de Celso Furtado (2007),

mas que são importantes para a

nova perspectiva proposta para pen-

sar saúde e desenvolvimento.

1. A evolução do sistema capi-

talista brasileiro se associa a uma

contradição entre a modernização

do sistema produtivo e a margina-

lização social, caracterizando um

padrão de desenvolvimento dual

(ALBUQUERQUE, 2007). O padrão tec-

nológico é descolado da demanda

nização política e da própria socie-

dade.

2. A magnitude e a orientação

das inovações e da difusão do pro-

gresso técnico estão na raiz dos

modelos nacionais de desenvolvi-

mento. De um lado, as relações de

dependência e a hierarquização eco-

nômica e de poder entre os países

estão associadas, no presente, a

quem detém (ou não) os conheci-

mentos produtivos essenciais aos

paradigmas tecnológicos dominan-

tes no mundo contemporâneo (tec-

nologias de informação em bens e

serviços, biotecnologia, química

fina, novos materiais, equipamen-

tos, etc.). De outro lado, a transpo-

sição direta deste padrão tecnológi-

co-produtivo, para os países da pe-

riferia, desdobra a dualidade veri-

ficada na arena internacional para

dentro das sociedades locais, refor-

çando a situação da desigualdade

no acesso e no descompasso entre

a estrutura da oferta e da demanda

da sociedade. Em países como o

Brasil, esta dinâmica das inovações

e do conhecimento se acentuam e

se mostram funcionais para um ní-

vel de desigualdade da renda mui-

to perverso.

É nesta perspectiva analítica que

se coloca a capacidade de aprendi-

zado e de inovação em âmbito pro-

dutivo como fatores críticos para o

desenvolvimento. Apesar do modis-

geral da sociedade, havendo uma

estrutura produtiva funcional e ade-

quada para a péssima distribuição

de renda do país. Isto causa o que

Furtado (2007) denominava como

um processo de causação circular

em que a base produtiva reforça a

má distribuição de renda, tendo ain-

da, segundo minha percepção, um

impacto negativo no nível de orga-

NO ÂMBITO DA ECONOMIA POLÍTICA ESTÁ

HAVENDO TODO UM PROCESSO, PELO MENOS

NA ACADEMIA, DE RECUPERAÇÃO DO

PENSAMENTO DESENVOLVIMENTISTA EM

NOVAS BASES....

2 Tomou-se como base os artigos que constam da coletânea recente organizada por Saboia e Carvalho (2007), intitulada “Celso Furtadoe o século XXI” (vide bibliografia).

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GADELHA, Carlos Augusto Grabois

334 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 327-338, set./dez. 2005

mo que o tema envolve, não se está

discutindo inovação porque é boni-

to, porque é moderno ou mesmo

porque as empresas que lideram o

mercado mundial são intensivas em

conhecimento e inovação. O que se

está discutindo é a dinâmica e os

rumos de um novo padrão de de-

senvolvimento brasileiro, remeten-

do, necessariamente, para pensar-

mos qual o padrão tecnológico e

quais os rumos e necessidades de

transformação na base produtiva

que uma sociedade dinâmica e me-

nos desigual requer. Era esta a

questão central de corte estrutura-

lista!

O avanço do Brasil no desenvol-

vimento com equidade envolve uma

grande diferenciação do sistema

produtivo (o que caracteriza a ino-

vação) e uma forte expansão do mer-

cado interno de massa (tema ‘dinos-

sáurico’ para o pensamento liberal),

incorporando segmentos enormes

da população que estão excluídos.

É óbvio que esta base nacional pode

ser uma alavanca para as exporta-

ções, o que é crítico para a autono-

mia das políticas nacionais, inclu-

sive na saúde. Todavia, é necessá-

rio colocar estas dimensões em seu

devido lugar, caso contrário conti-

nuaremos repetindo ‘como papagai-

os’ que a Índia é um exemplo a ser

seguido, possuindo uma indústria

farmacêutica competitiva, exporta-

dora, tendo, como detalhe, um povo

pobre e uma sociedade estratifica-

da e excludente e um sistema de

saúde muito inferior ao brasileiro.

Definitivamente, ou a inovação está

incorporada na mudança do padrão

de desenvolvimento ou perde o sen-

tido na perspectiva adotada.

A seguinte citação de Celso Fur-

tado (2007) evidencia esta percep-

ção da inovação como um proces-

ciação no sistema produtivo, gerado

pela introdução de inovações tecnoló-

gicas (FURTADO, 1964, apud GUI-

LLÉN, 2007, p. 143)

Isto posto, o desenvolvimento

econômico constitui um processo de

mudança social e envolve uma di-

ferenciação brutal da estrutura pro-

dutiva. É nesta dimensão que se

coloca o tema do complexo produ-

tivo ou industrial da saúde.3 Em

substância, o que se está apontan-

do é a necessidade de uma mudan-

ça profunda na estrutura econômi-

ca brasileira que permita, median-

te intenso processo de inovação,

adensar o tecido produtivo e direci-

oná-lo para compatibilizar a estru-

tura de oferta com a demanda soci-

al de saúde.

Aqui chegamos a uma visão al-

ternativa do vínculo entre saúde e

desenvolvimento. A saúde possui

uma dupla dimensão na sua rela-

ção com o desenvolvimento. Numa

primeira vertente, e concordando

com o ‘consenso’ já mencionado, é

parte do sistema de proteção soci-

al, constituindo um direito de cida-

dania inerente ao próprio conceito

de desenvolvimento. Numa segun-

da vertente, a base produtiva em

saúde – de bens e serviços – consti-

tui um conjunto de setores de ativi-

dade econômica que geram cresci-

so de transformação econômica e

social:

o desenvolvimento econômico pode

ser definido como processo de mudan-

ça social pelo qual o crescente número

de necessidades humanas, pré-existen-

tes ou criadas pela própria mudança,

são satisfeitas através de uma diferen-

O AVANÇO DO BRASIL NO DESENVOLVIMENTO

COM EQUIDADE ENVOLVE UMA GRANDE

DIFERENCIAÇÃO DO SISTEMA PRODUTIVO (...)E UMA FORTE EXPANSÃO DO MERCADO

INTERNO DE MASSA (...) INCORPORANDO

SEGMENTOS ENORMES DA POPULAÇÃO QUE

ESTÃO EXCLUÍDOS

3 O conceito de Complexo Industrial da Saúde (GADELHA, 2003), de fato, envolvia também a área de serviços, uma vez que esta passa a seguiro padrão industrial. Todavia, para evitar as confusões recorrentes, adotou-se o conceito de Complexo Produtivo para indicar a base deprodução de bens e serviços e o de Complexo Industrial para os segmentos industriais que fazem parte do primeiro. Observe-se que sãoas atividades de serviços que estruturam todo o Complexo.

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Desenvolvimento e saúde: em busca de uma nova utopia

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 327-338, set./dez. 2005 335

mento e possuem uma participação

expressiva no PIB e no emprego

(respectivamente, em torno de 8% e

de 10% nos empregos formais qua-

lificados) que podem representar

uma diferenciação profunda da es-

trutura produtiva brasileira. Esta

diferenciação, que representa um

enorme esforço de inovação, é fun-

damental para viabilizar o consu-

mo social de massa de bens e ser-

viços, contribuindo para dotar o

país de uma base produtiva ade-

quada para uma sociedade mais

equânime.

Nesta direção, os anos 1990 fo-

ram uma tragédia para nossa base

produtiva e de inovação em saúde

em um duplo sentido. Por um lado,

nos tornamos mais dependentes nos

segmentos de maior densidade de

conhecimento, com o déficit comer-

cial saltando de US$ 700 milhões

no final dos anos 80 para mais de

US$ 4 bilhões no presente (GADELHA,

2006). Se incorporarmos outros seg-

mentos ainda não trabalhados no

complexo (intermediários da cadeia

produtiva farmacêutica, por exem-

plo) e os pagamentos pela transfe-

rência de tecnologia em saúde, che-

ga-se a um grau de dependência em

torno de US$ 6 bilhões. Isto é uma

questão de saúde ao tornar nossa

política social estruturalmente vul-

nerável, uma vez que as assimetri-

as no conhecimento e na inovação

não se revertem de modo fácil! Por

outro lado, o que produzimos e ino-

vamos no país parece estar, em gran-

de parte, descolado das necessida-

des do Sistema de Saúde ou repro-

duzindo a desigualdade em seu in-

terior.

Assim sendo, as idéias que per-

meiam a noção de Complexo Pro-

dutivo da Saúde constituem um es-

forço para costurar o elo saúde-de-

senvolvimento, retomando uma

perspectiva estruturalista contempo-

rânea que incorpora os dois gran-

des pontos frágeis de nosso modelo

de desenvolvimento: uma estrutu-

ra produtiva pouco densa em co-

nhecimento – agora a assimetria

não é mais entre indústria e agri-

cultura, mas sim entre atividades

densas em conhecimento e ativida-

des sem grande valor agregado – e

um sistema econômico e social de-

sigual e excludente.

O desafio que se coloca para um

aprofundamento da Reforma Sani-

tária em bases contemporâneas é

o de pensar, articular e implemen-

tar, a um só tempo, os princípios

constitucionais de universalização,

de equidade e de integralidade do

sistema de saúde com uma trans-

formação profunda da base produ-

tiva, tendo o Complexo da Saúde

como um elo forte e estratégico da

economia brasileira. Esta transfor-

mação implica elevar o peso dos

segmentos produtivos de bens e

serviços de saúde que atendem às

demandas sociais e que incorporam

grande potencial de inovação e de

transformação nos novos paradig-

mas tecnológicos.

Com isto, supera-se o tratamen-

to ‘insulado’ e setorial da saúde e

o debate (restrito) em torno de sua

funcionalidade para o crescimento,

inserindo a área de modo endóge-

no no debate político sobre o pa-

drão de desenvolvimento desejado

para nosso país. Esta perspectiva

pode implicar tanto na simplifica-

ção de diversas tecnologias utiliza-

das no sistema quanto em sua com-

plexificação, chamando a atenção

para não cairmos nas ‘armadilhas’

da tecnologia apropriada, da con-

centração dos esforços apenas na

atenção básica e nos produtos tro-

picais ou negligenciados (reconhe-

cendo-se, obviamente, a importân-

cia de todas estas áreas). Para ser-

mos coerentes com os princípios do

Sistema Único de Saúde (SUS) e com

os requerimentos dos novos para-

digmas tecnológicos, a definição

O DESAFIO QUE SE COLOCA PARA UM

APROFUNDAMENTO DA REFORMA SANITÁRIA

(...) É O DE PENSAR, ARTICULAR EIMPLEMENTAR (...) OS PRINCÍPIOS

CONSTITUCIONAIS DE UNIVERSALIZAÇÃO, DE

EQUIDADE E DE INTEGRALIDADE DO SISTEMA DE

SAÚDE COM UMA TRANSFORMAÇÃO PROFUNDA

DA BASE PRODUTIVA

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GADELHA, Carlos Augusto Grabois

336 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 327-338, set./dez. 2005

das tecnologias estratégicas para o

Brasil não pode permitir a segmen-

tação entre práticas sofisticadas e

adequadas para alguns e práticas

‘simples’ para a maioria de nossa

população.

Esta dimensão que associa o eco-

nômico, o social e o político – ou

seja, a dimensão de economia polí-

tica – se aplica tanto para pensar-

mos a desigualdade de renda entre

as pessoas quanto para o desenvol-

vimento regional (mais uma vez,

esta questão estava na agenda prio-

ritária de Celso Furtado). Se pensar-

mos a regionalização da saúde a par-

tir configuração da rede do serviço

de saúde no território brasileiro,

cuja estrutura de oferta ‘congela’ o

padrão desigual da atenção à saú-

de, coloca-se a necessidade de se pen-

sar uma estruturação da base pro-

dutiva de serviços que não seja re-

produtora de desigualdades. Mais

uma vez, ‘por dentro’ da questão

geral do desenvolvimento (em sua

dimensão territorial) a saúde ‘mos-

tra sua face’ como parte do modelo

histórico adotado.

Não somos apenas atrasados

frente aos países desenvolvidos, so-

mos um país com desigualdades

regionais internas das mais expres-

sivas do mundo. Isto implica em

alterar, via política de investimen-

tos, a estruturação espacial de nos-

sa base produtiva. E mais, atuali-

zando a agenda, a escala macror-

regional se mostra totalmente insu-

ficiente para uma política nacional

de regionalização da saúde associ-

ada ao desenvolvimento. A desi-

gualdade é, de fato, observada nas

macrorregiões – nas quais a situa-

ção crítica são o Norte e o Nordes-

te, mas também é gritante no inte-

rior dos estados e das regiões de-

senvolvidas e esta situação não

muda sem uma visão e indução

nacional. Ou será que o noroeste

fluminense, o Vale do Ribeira, o oes-

te do Paraná, o Vale do Jequitinho-

nha e a metade sul do Rio Grande

do Sul ficam no Norte e no Nordes-

te? Se saúde está relacionada ao de-

senvolvimento da forma estrutural

proposta, a dimensão territorial se

mostra crítica e endógena ao padrão

nacional, sendo ponto de partida e

um dos elementos-chave de sua

transformação.4

Voltando à dimensão mais ge-

ral das questões colocadas na agen-

da nacional de desenvolvimento,

avançar em saúde é também enfren-

tar o hiato da sociedade do conhe-

cimento. Há autores brasileiros,

como José Cassiolato e Helena Las-

tres Instituto de Economia da UFRJ,

que indagam se estamos na socie-

dade do conhecimento ou na socie-

dade da ignorância, porque há uma

grande divisão nos potenciais de

aprendizado (muito mais forte do

que a divisão digital) entre os paí-

ses e as regiões. A saúde também

tem a ver com esta questão. Todos

os novos paradigmas tecnológicos

que marcam a nova assimetria glo-

bal se expressam de modo impor-

tante na área, com destaque para a

biotecnologia, a química fina, os

novos materiais, a eletrônica e todo

conjunto, pouco ressaltado, de prá-

ticas médicas nos serviços, altamen-

te intensivas em conhecimento, e

com vínculos precários com uma

nova estratégia de desenvolvimen-

to centrada na equidade.

Para dar uma idéia da dimensão

desta questão, a saúde é a área

mundial que concentra os maiores

esforços em pesquisa e desenvolvi-

mento do mundo, em conjunto com

o Complexo Industrial Militar. O le-

vantamento efetuado pelo Fórum de

Pesquisa Global em Saúde indica

que ela responde isoladamente por

20% de toda despesa mundial com

pesquisa e desenvolvimento tecno-

lógico (US$ 135 bilhões em valores

atualizados), sendo que apenas en-

tre 3% e 4% são realizadas nos paí-

ses de média e baixa renda per ca-

pita. Ou seja, a questão geral que

divide hoje as nações entre o mun-

do desenvolvido e os ‘outros mun-

dos’ se expressa de forma ultra re-

levante na área da saúde, eviden-

ciando que somos parte não autô-

noma de um determinado modelo.

4 O tema da regionalização da saúde está sendo trabalhado com mais detalhe num artigo em conjunto com Cristiani Vieira Machado,Luciana Dias de Lima e Tatiana Wargas de Faria Baptista, fruto de um trabalho efetuado para o CGEE e para o Ministério do Planejamentosobre

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Desenvolvimento e saúde: em busca de uma nova utopia

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 327-338, set./dez. 2005 337

Do ponto de vista da organiza-

ção política da sociedade para um

novo modelo, que necessariamente

envolve interesses e lutas por po-

der na relação entre as pessoas e

grupos sociais e no território, a saú-

de também possui um vínculo in-

trínseco. A organização política da

saúde tanto reflete e reforça as de-

sigualdades existentes quanto cons-

titui um espaço estratégico de for-

talecimento da organização da so-

ciedade, sendo notório seu potenci-

al para gerar participação democrá-

tica e arranjos sociais com potenci-

al transformador.

Concluindo, articular saúde e

desenvolvimento ‘pra valer’ remete

para a necessidade de pensar o pa-

drão geral de desenvolvimento bra-

sileiro e como ele se expressa e se

reproduz no âmbito da saúde. Isto

não constitui uma perda de foco

sobre o tema saúde, mas sim reco-

nhecer que somos parte de um de-

terminado sistema capitalista, de

um país periférico e dependente e

com uma estrutura social e econô-

mica desigual e com fragilidades

estruturais marcantes.

Com esta perspectiva, podemos

entrar no debate nacional sobre o

desenvolvimento não como pedin-

tes, que, em troca, dizem, ‘saúde é

bom para o crescimento e no final

vai dar retorno’. Ao contrário, pro-

põe-se assumir que somos parte

deste processo e as perspectivas de

transformação nacional também

existem e se refletem na saúde, tan-

to em sua dimensão política e soci-

al quanto em sua dimensão econô-

mica. Mais ainda, no âmbito de um

novo modelo de desenvolvimento,

a saúde constitui uma das ativida-

des em que é possível – se bem que

não necessariamente – articular a

busca de equidade social e regio-

nal com o dinamismo econômico no

longo prazo, que caracterizam o

processo de desenvolvimento de um

ponto de vista substantivo.

Talvez a gente esteja numa fase

de construção de uma nova utopia

sobre um novo modelo de desenvol-

vimento. As novas propostas sobre

o desenvolvimento estão muito ca-

ladas ou tímidas. Sabemos que tudo

isto aqui é muito difícil, distante,

mas é preciso. Torna-se necessário

que as energias mobilizadoras da

sociedade brasileira sejam motiva-

das por novas utopias e projetos de

país. Na realidade, após a crise do

padrão de desenvolvimento do pós-

guerra e das experiências neolibe-

riais na política nacional, o momen-

to se mostra adequado para se re-

colocar as bases de um novo pacto

político, social e econômico, pensan-

do-se a retomada da perspectiva de

se construir um Estado de Bem-Es-

tar contemporâneo no Brasil, que re-

cupere as antigas promessas jamais

implementadas e que enfrente os

novos desafios.

Este texto de Celso Furtado

(2004, apud SABOIA, 2007) permite

expressar, com seu brilhantismo, a

perspectiva adotada:

Forçar um país que ainda não aten-

deu às necessidades mínimas de gran-

de parte da população a paralisar seto-

res mais modernos em economia, a con-

gelar investimentos em áreas básicas

como saúde, educação, para que se cum-

pram metas de ajustamentos de balan-

ça de pagamento impostas por benefi-

ciários das altas taxas de juros, é algo

que escapa a qualquer racionalidade

Compreende-se que esses beneficiários

defendam seus interesses. O que não se

compreende é como nós mesmos não de-

fendamos com idêntico empenho o di-

reito de desenvolver o País... A experi-

ência nos ensinou amplamente que, se

não se atacam de frente os problemas

fundamentais, o esforço de acumula-

ção tende a reproduzir, agravado, o

mau-desenvolvimento. Em contrapar-

... ARTICULAR SAÚDE E DESENVOLVIMENTO

‘PRA VALER’ REMETE PARA A NECESSIDADE DE

PENSAR O PADRÃO GERAL DE

DESENVOLVIMENTO BRASILEIRO E COMO ELE SE

EXPRESSA E SE REPRODUZ

NO ÂMBITO DA SAÚDE

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GADELHA, Carlos Augusto Grabois

338 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 327-338, set./dez. 2005

tida, se conseguirmos satisfazer essa

condição básica que é a reconquista de

ter uma política de desenvolvimento,

terá chegado a hora da verdade para

todos nós (FURTADO 2004, apud SA-

BOIA, 2007, p. 24).

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Regulamentar a EC-29, avançar o modelo de gestão e realizar a universalidade com integralidade, equidade e participação

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 339-352, set./dez. 2005 339

ARTIGOS DE OPINIÃO / OPINION ARTICLES

Regulamentar a EC-29, avançar o modelo de gestão e realizara universalidade com integralidade, equidade e participaçãoTo regulate the EC nº 29, to improve the management model and realize theuniversality with integrality, equity and participation.

Nelson Rodrigues dos Santos1

Recebido: Jun./2006

Aprovado: Jul./2007

1 Professor colaborador do Departamento

de Medicina Preventiva e Social da UNI-

CAMP e Ex-assessor do Gabinete do Mi-

nistro da Saúde.

Email: [email protected]

RESUMO

Este artigo aborda o significado do PLP 01/2003, substitutivo “Guilher-

me Menezes” de regulamentação da EC-29 de propor o atrelamento indivi-

sível entre a imprescindível elevação do financiamento federal e cumpri-

mento do estadual e municipal, ao imprescindível salto de qualidade nos

modelos de gestão, gerência e estrutura dos gastos. Por fim, formula-se

uma proposta viabilizadora, com atenuação na prática, do impacto finan-

ceiro nos gastos federais.

PALAVRAS-CHAVE: Financiamento Público em saúde, Gestão Pública em Saúde e

Política Pública em Saúde.

ABSTRACT

This paper discusses the significance of Bill n.º 1/2003, known as the

“Guilherme Menezes” replacement of the EC-29 regulation, which proposes

an indivisible binding between the essential rise in federal government

funding and the compliance of state and city governments, and the indis-

pensable improvement in the quality of the management systems, admi-

nistration and structure for spending. In conclusion, a proposal is formu-

lated which would attenuate the practical financial impact this would

have on federal spending.

KEYWORDS: Public Funding in Health Care, Public Administration of Health

Care; Public Policy in Health Care

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SANTOS, Nelson Rodrigues dos

340 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 339-352, set./dez. 2005

APRESENTAÇÃO

Este texto é uma exposição de

motivos com a pretensão de subsi-

diar, com consistência e didática, as

discussões para fundamentação da

votação da regulamentação da

Emenda Constitucional n.29 (EC-29),

que trata do financiamento do Sis-

tema Único de Saúde (SUS). Pouco

inova e mais consolida as aborda-

gens amplamente debatidas desde

a aprovação da EC-29 no ano de

2000, em parte referida nos docu-

mentos de apoio apresentados a se-

guir, em ordem cronológica, que por

si inferem o exaustivo e perseveran-

te esforço da sociedade em busca

do direito social à saúde. A inova-

ção, exposta na última parte, cons-

ta de proposta de atenuação do im-

pacto financeiro na atual situação

macroeconômica da União, sem re-

dução dos montantes previstos na

proposta de regulamentação, dos

quais depende a própria construção

do SUS.

O CONFLITO

Foi estabelecido no momento em

que a área econômica do Governo

Federal definiu, a partir de 1990, não

destinar ao Sistema Único de Saú-

de, o mínimo de 30% dos recursos

do Orçamento da Seguridade Soci-

al, conforme indicado no ADCT da

Constituição Federal, e, a seguir,

seqüenciar medidas desvinculatóri-

as e restritivas no âmbito do SUS,

do Orçamento da Seguridade Social

(OSS) e da própria Seguridade Soci-

al.

O PRIMEIRO LADO DO CONFLI-

TO – é a conquista da sociedade bra-

sileira que se mobilizou na Assem-

bléia Nacional Constituinte (1987/

1988), garantindo no Capítulo da

Seguridade Social os direitos soci-

ais à saúde, previdência e assistên-

cia social, e aprovou orçamento

mento mínimo de 30% do OSS, sufi-

ciente para avançar na sua efetiva-

ção, tendo como base de cálculo o

crescimento populacional, a incor-

poração tecnológica, a correção in-

flacionária da saúde, e as mudan-

ças dos modelos de gestão.

O SEGUNDO LADO DO CONFLITO

– é o grave subfinanciamento que

vem levando os Gestores dos SUS à

exaustão, principalmente os estadu-

ais e municipais. A retração do in-

vestimento em saúde por parte do

governo federal implica em maior

aporte de recursos por parte dos

estados e municípios para o setor

saúde. O dilema do financiamento

se agrava com a atenção universal:

mais de 75% da população brasilei-

ra usuária exclusiva do SUS, e me-

nos de 25%, usuários não exclusi-

vos, consumidores de planos priva-

dos de saúde, que utilizam os ser-

viços do SUS em imunizações, ações

de vigilância epidemiológica e sa-

nitária, exames e tratamentos mais

sofisticados e de alto custo, como

transplantes, terapia renal substitu-

tiva, controle e tratamento de HIV/

AIDS, medicamentos de alto custo,

entre outros.

A fragilidade do Brasil se revela

ao compararmos os gastos públi-

cos com saúde com outros países.

Nossos U$ 150 a 200 por habitante-

ano correspondem por volta da me-

tade do que gasta a Argentina, Uru-

guai, Costa Rica e Panamá, e pouco

mais de 10% em relação ao Canadá,

suficiente para assegurar a realiza-

ção dos mesmos, aos moldes das

sociedades mais desenvolvidas e

civilizadas, reconhecendo a neces-

sidade de sua implementação gra-

dativa, com prioridades e etapas a

serem pactuadas. Assim, ficaram

consagrados para o SUS, os princí-

pios da Universalidade, Eqüidade e

Integralidade, Descentralização,

Regionalização e Participação, e

também, a indicação do financia-

A FRAGILIDADE DO BRASIL SE REVELA AO

COMPARARMOS OS GASTOS PÚBLICOS COM

SAÚDE COM OUTROS PAÍSES

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Regulamentar a EC-29, avançar o modelo de gestão e realizar a universalidade com integralidade, equidade e participação

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 339-352, set./dez. 2005 341

países europeus, Japão, Austrália e

outros, cuja média é de US$ 1.400

públicos por habitante-ano. Nestes

países, os recursos públicos signi-

ficam no mínimo 70% dos gastos

totais com saúde, enquanto aqui

não ultrapassam 45%, correspon-

dendo a somente 3,2% do PIB. Da-

dos da Organização Mundial de Saú-

de mostram que os serviços públi-

cos de saúde representam um gas-

to entre 6 e 8% do PIB nos países

com melhores sistemas de saúde,

revelando o tênue compromisso do

Estado no Brasil com o Direito So-

cial à Saúde.

O baixo compromisso do Gover-

no Federal com o setor saúde, de

1990 até o momento, se revela nos

seguintes pontos:

a) a não-implementação da Se-

guridade Social preconizada na

Constituição, com a efetivação de

30% do OSS para a saúde;

b) a retirada arbitrária da maior

fonte do OSS (recolhimento em fo-

lha) em 1993, quebrando o SUS e

obrigando o MS contrair emprésti-

mo ao FAT/MT;

c) retirada de outras fontes do

MS, em 1996, quando a CPMF foi

aprovada para o SUS, mas utiliza-

da para outros fins;

d) a prática da área econômica

de impor o tríplice contingenciamen-

to na execução orçamentária do MS:

no empenho, na liberação e na li-

quidação/restos a pagar;

e) a desobrigação da esfera fe-

deral do cálculo da contrapartida

baseada em % sobre a base orça-

mentária, critério imposto aos es-

tados (mínimo de 12%) e municípi-

os (mínimo de 15%) por ocasião da

negociação para a aprovação da EC-

29 em 2000;

f) a tenaz resistência da área eco-

nômica, desde 2003, à discussão e

aprovação pelo Congresso Nacional

da regulamentação da EC-29.

tre 1995 e 2005, caiu de US$ 85,7

para US$ 77,4 per capita, a soma

das contrapartidas estaduais e mu-

nicipais, entre 2000 e 2005, cresceu

de US$ 44,1 para US$ 75,5 per ca-

pita;

c) enquanto a contrapartida fe-

deral no financiamento do SUS caiu

de 63,8% para 49,6% entre 1995 e

2004, a soma das contrapartidas

estaduais e municipais cresceu de

39,3% para 50,4%, neste mesmo pe-

ríodo; somente entre 2000 e 2004,

os gastos relativos federais com

saúde reduziram-se em cerca de

10%;

d) aconteceu a desastrosa pre-

carização da gestão do pessoal de

saúde no ingresso e carreira públi-

ca, na remuneração, na capacitação

e distribuição com base nas neces-

sidades e direitos de saúde da po-

pulação, sendo quase tudo substi-

tuído por terceirizações aleatórias

e ao sabor das possibilidades e in-

teresses de cada momento, e do

mercado, redundando altíssima e

incontrolável rotatividade de pesso-

al técnico e especialmente de nível

superior, concentrada na medicina

especializada assistencial, no su-

porte técnico da gestão e até nos

poucos médicos generalistas ade-

quadamente preparados. No Minis-

tério da Saúde restam pouco mais

de 25% de servidores no quadro do

pessoal, concentrados nas ativida-

des burocráticas e administrativas,

sendo o restante, o festival da mas-

Do baixo compromisso acima

pontuado vem decorrendo:

a) enquanto a relação das recei-

tas correntes da União com o PIB,

entre 1995 e 2004, cresceu de 19,7%

para 26,7%, nesse mesmo prazo, a

relação do gasto do MS com as des-

pesas correntes caiu de 8,12 para

7,2%, tendência que prossegue;

b) enquanto a contrapartida fe-

deral no financiamento do SUS, en-

... ACONTECEU A DESASTROSA PRECARIZAÇÃO

DA GESTÃO DO PESSOAL DE SAÚDE (...),SENDO QUASE TUDO SUBSTITUÍDO POR

TERCEIRIZAÇÕES ALEATÓRIAS E AO SABOR DAS

POSSIBILIDADES E INTERESSES DE CADA

MOMENTO ...

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SANTOS, Nelson Rodrigues dos

342 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 339-352, set./dez. 2005

sa de cargos de comissão e confi-

ança, e técnicos terceirizados, fra-

gilizando o desenvolvimento da

missão institucional e influencian-

do negativamente a composição do

quadro do pessoal das secretarias

estaduais e municipais.

CONSEQÜÊNCIAS NAIMPLEMENTAÇÃO DO SUS

a) Os gestores do SUS e traba-

lhadores de saúde tentam efetivar a

qualquer custo o princípio da uni-

versalidade, elevando como nunca

a produtividade, a produção e a

cobertura das ações e serviços, com

base no pleno cumprimento do prin-

cípio da descentralização com ên-

fase na municipalização, e mesmo

premidos pela incontornável pres-

são de demanda, apresentam sur-

preendente eficiência, como atesta

a produção de 2006:

- 1,3 bilhão de atendimentos bási-cos,

- 1,2 bilhão de procedimentos espe-cializados,

- 600 milhões de consultas,

- 212 milhões de ações odontológi-cas,

- 360 milhões de exames,

- 11 milhões de ultra-sonografias,

- 11,8 milhões de internações,

- 3,1 milhões de cirurgias, sendo 141mil cirurgias cardíacas,

- 150 milhões de vacinas,

- 12 mil transplantes,

- 1,3 milhão de tomografias,

- 23 milhões de ações de vigilância

sanitária, etc.

Gestores, prestadores de serviços

e trabalhadores de saúde “tiram

água das pedras” e fazem aconte-

cer a política pública de maior in-

clusão social existente no Brasil.

Muitas experiências e projetos exi-

tosos são mostrados nacionalmen-

res de AIDS, no Programa Nacional

de Imunização (PNI), nos transplan-

tes de tecidos e órgãos, na redução

da mortalidade infantil, no forne-

cimento de medicamentos de alto

custo, na desospitalização de vári-

as patologias, etc.

b) os valores remuneratórios

pelos serviços de saúde estão bem

aquém do necessário para efetiva-

ção de serviços de qualidade, isto

é, bem abaixo do custo do serviço,

o mesmo acontecendo com mais de

90% dos procedimentos da tabela de

pagamento por produção (forma

predominante de pagamento); os

repasses federais aos estados e

municípios permanecem limitados

por tetos financeiros muito baixos,

e historicamente dispersos em qua-

se 130 fragmentos negociados um

a um, cuja revisão aconteceu só

agora com a implantação dos Blo-

cos de Financiamento, após a cria-

ção do Pacto pela Vida 2006;

c) os trabalhadores de saúde e

os prestadores de serviços, freqüen-

temente valem-se de ‘táticas de so-

brevivência’, que vão desde baixa

assiduidade, descumprimento de

jornadas, alta rotatividade empre-

gatícia, até a multiplicação de dis-

torções da oferta de serviços, gera-

da por interesses de mercado, como

pagamentos ‘por fora’ e ‘segunda

porta’ em hospitais públicos terciá-

rios para particulares e planos

te, sendo a maioria de caráter local

ou municipal, não conseguindo

aplicação/sustentabilidade regio-

nal, estadual e na maioria dos mu-

nicípios. Em situações especiais,

quando são alocados recursos mi-

nimamente suficientes e contínuos,

o SUS revela de pronto sua compe-

tência e qualidade e mostra resul-

tados surpreendentes como na aten-

ção integral à saúde dos portado-

GESTORES, PRESTADORES DE SERVIÇOS ETRABALHADORES DE SAÚDE “ TIRAM ÁGUA DE

PEDRA” E FAZEM ACONTECER A POLÍTICA

PÚBLICA DE MAIOR INCLUSÃO SOCIAL ...

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Regulamentar a EC-29, avançar o modelo de gestão e realizar a universalidade com integralidade, equidade e participação

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 339-352, set./dez. 2005 343

privados; a situação real explica es-

sas táticas mas não as justifica en-

quanto mais uma subversão do di-

reito do usuário à saúde;

d) os próprios gestores são mui-

tas vezes compelidos a ‘táticas de

sobrevivência’, nada financiando

além do mínimo (União e estados),

ou mesmo descumprindo o mínimo

(a maior parte dos estados), deso-

nerando-se ao desviar demandas

(municípios vizinhos, município-

estado e estado-município). Outro

importante fator de oneração do SUS

é a inclusão nos Fundos de Saúde,

despesas como Bolsa-Família na

União, saneamento básico, alimen-

tação, planos privados de servido-

res, pagamento de inativos e outros.

A última e crescente oneração so-

bre o SUS é a demanda de consumi-

dores dos planos privados de saú-

de por serviços do SUS, principal-

mente de alta complexidade, não

restituídos pelas operadoras e sem

qualquer regramento à luz dos prin-

cípios da integralidade e equidade;

também aqui se explica, mas não

se justifica, essas subversões do

direito do usuário à saúde;

e) o desafio de construir o mo-

delo assistencial centrado na regio-

nalização, indutora da integralida-

de regulada com equidade, econo-

mia de escala, melhoria do acesso

e da eficiência, tem sua implanta-

ção ainda incipiente frente às gra-

ves barreiras do papel indutor do

Estado e as crises não superadas

do subfinanciamento, da precariza-

ção do trabalho e da exaustão dos

gestores;

f) a produção de serviços apre-

sentada carrega inaceitáveis percen-

tuais de ações evitáveis e desneces-

sárias, conseqüência de modelo ina-

dequado, centrado nas urgências do

atendimento em detrimento da pro-

teção contra riscos e danos à saúde

e diagnóstico precoce das doenças,

porcentuais estes agravados pela

O SIGNIFICADO DO SUBSTITUTIVO“GUILHERME MENEZES”

NA REGULAMENTAÇÃO DE EC-29

a) Incorpora os PLP n.01/2003 do

Dep. Roberto Gouveia, n.159/2004

do Dep. Geraldo Rezende e n.181/

2004, do Dep. Rafael Guerra, os dois

últimos apensados ao primeiro;

b) Aprimorado e aprovado nas

Comissões da Câmara dos Deputa-

dos: Seguridade Social e Família em

11.08.04, Finanças e Tributação em

10.11.04, e Constituição, Justiça e

Cidadania em 29.09.05;

c) Contempla o igualamento dos

critérios de cálculo das contrapar-

tidas das três esferas de Governo no

financiamento do SUS, conforme

estampado no art.6, § 2º e 3º da EC-

29, incorporados no Art. 198 da

Constituição, que explicita inequi-

vocadamente a prescrição para as

três esferas, de porcentuais para

cálculo, no caso da esfera federal,

a ser definido em Lei Complemen-

tar (ver art. 5º ao 10º do PLP);

d) Dispõe criteriosamente sobre

o rateio dos recursos repassados,

com base nas necessidades da po-

pulação e nos princípios da integra-

lidade, eqüidade e regionalização,

e sobre o planejamento ascendente,

metas e custos (ver art. 17º a 27º);

e) Amplia e aprofunda os meca-

nismos de avaliação, controle e fis-

calização, aclarando os papéis dos

conselhos de saúde, do Legislativo,

baixa resolutividade, estrutura de

trabalho deficiente, baixa capacita-

ção profissional e conduta ética

duvidosa;

g) em regra, a estruturação dos

modelos de atenção e de gestão na

saúde, com base nas necessidades

e direitos da população, está sendo

substituída pelo incrementalismo

da produtividade em assistência a

demanda espontânea.

... A ESTRUTURAÇÃO DOS MODELOS DE

ATENÇÃO E DE GESTÃO NA SAÚDE, COM BASE

NAS NECESSIDADES E DIREITOS DA POPULAÇÃO,ESTÁ SENDO SUBSTITUÍDA PELO

INCREMENTALISMO DA PRODUTIVIDADE EM

ASSISTÊNCIA A DEMANDA ESPONTÂNEA

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344 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 339-352, set./dez. 2005

dos Tribunais de Contas e do Minis-

tério Público (ver art. 28º a 37º);

f) Regulamenta e aclara a apli-

cação dos art. 2º ao 7º da Lei

n.8080/90, tornando inequívoco o

que são serviços públicos de saúde

financiados pelos orçamentos públi-

cos, e o que são serviços referentes

a fatores determinantes e condicio-

nantes da saúde (saneamento, ali-

mentação, serviço social, planos

privados de servidores, pagamento

de inativos, etc.) de responsabilida-

de orçamentária de outros setores,

mas que vêm onerando crescente-

mente o SUS e tergiversando a in-

terpretação da Lei n.8080/1990 (ver

art. 2º ao 4º);

g) Reconhece e define as comis-

sões Intergestores Tripartite e Bipar-

tites, e o Sistema de Informações dos

Orçamentos Públicos de Saúde (ver

art. 25º a 37º e 40º);

h) Estimativas da aplicação em

2007, dos 10% da receita federal

bruta, sem aplicar a DRU, e sem

contingenciamentos, estão por vol-

ta de R$ 65,24 bilhões, que repre-

sentam R$ 19,5 bilhões a mais que

os R$ 45,80 bilhões aprovados no

orçamento de 2007. Este acréscimo,

vertido para US$ per capita, signi-

ficará a evolução da atual faixa de

US$ 150/200 per capita, para a de

US$ 250/300, ainda insuficiente

para a viabilização do SUS, mas

apontando, junto aos demais avan-

ços constantes na regulamentação,

para novo patamar de esperanças,

confiabilidades e pactuações de oti-

mização dos gastos entre as três

esferas de Governo e delas com a

sociedade, incluindo resgate dos

recursos crescentes, ao contrário da

atual imposição de ‘Teto’ aos recur-

sos mínimos legais. É a proposta

que mais garante a reversão da re-

tração dos gastos federais, referida

na Parte II – O Conflito.

i) Apesar de ainda insuficiente,

este acréscimo pode causar uma

primeira impressão de ‘além do es-

Saneamento, Trabalho, Meio Ambi-

ente, Infra-estrutura do Desenvolvi-

mento e outras.

A ATUAL SITUAÇÃO MACROECONÔMICA DANAÇÃO E O MEMORIAL DAS SECRETARIAS

ESTADUAIS DE FAZENDA (CONFAZ)

Os secretários estaduais de Fa-

zenda, organizados no CONFAZ, divul-

garam em fevereiro de 2007 memo-

rial propondo alterações no Substi-

tutivo “Guilherme Menezes”, basi-

camente na:

• redução da contrapartida es-

tadual no financiamento do SUS de

12 para 10% de produto da arreca-

dação dos impostos, conforme dis-

posto na EC-29,

• e a inclusão de nove serviços

vinculados a outros setores, para

serem remunerados pelo SUS (ex.:

saneamento, inativos, planos priva-

dos de servidores, entidades priva-

das de pesquisa, serviço social,

hospitais universitários, edificações

de unidades de saúde privadas, saú-

de penitenciária, etc.), todos eles

orçamentados nos respectivos seto-

res por determinação constitucional,

da Lei n.8080/90 e legislação espe-

cífica.

Antes de me posicionar sobre esta

proposta e encaminhar uma saída,

é importante contextualizá-la:

a) a partir de 1990 foi organiza-

da a ‘financeirização dos orçamen-

tos públicos’, constando de:

perado ou cabível’, devido à insidi-

osa e paulatina redução das expec-

tativas, desde 1990, imposta e in-

trojetada nos formadores de opinião,

pela área econômica e o ‘marketing’

mercadológico, ao descolar cresci-

mento dos orçamentos públicos de

saúde, do crescimento das receitas

públicas correntes brutas. O que,

desastrosamente aconteceu com

outras políticas públicas: Educa-

ção, Habitação, Segurança Pública,

OS SECRETÁRIOS ESTADUAIS DE FAZENDA,ORGANIZADOS NO CONFAZ, DIVULGARAM EM

FEVEREIRO DE 2007 MEMORIAL PROPONDO

ALTERAÇÕES NO SUBSTITUTIVO “GUILHERME

MENEZES”...

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Regulamentar a EC-29, avançar o modelo de gestão e realizar a universalidade com integralidade, equidade e participação

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 339-352, set./dez. 2005 345

• pronunciada elevação da ar-

recadação e receita federal, inclu-

indo a recentralização federal da

arrecadação nas três esferas, hoje

próxima ao nível pré-constitucional;

• desvinculação de 20% das re-

ceitas da União (DRU);

• tríplice contingenciamento na

execução orçamentária dos setores

sociais e de infra-estrutura;

• retração da contrapartida fe-

deral no financiamento de políticas

públicas;

• redução dos gastos com a fo-

lha de servidores;

• terceirizações aleatórias;

• estagnação ou retração dos

orçamentos na área social e de in-

fra-estrutura;

• retração do campo das respon-

sabilidades de Estado;

• ‘Cláusula pétrea’, vínculo sem

discussão, no pagamento dos juros,

taxas de risco e do refinanciamento

da dívida pública;

• aplicação inflexível da Lei de

Responsabilidade Fiscal no tocante

à folha de servidores dos setores

sociais em expansão com a descen-

tralização, e transferência de res-

ponsabilidades federais e estaduais,

sem regulamentação nem revisão.

b) A ‘financeirização dos orça-

mentos públicos’ ocorreu no bojo da

adoção pela União, a partir de 1990,

do modelo de ajuste da pressão in-

flacionária, concentrado na intensa

e contínua elevação da taxa de ju-

ros, sem qualquer proteção contra

o crescimento geométrico da dívida

pública, e justificado pela corrente

monetarista da área econômica do

Governo, como de curtíssimo pra-

zo, para golpear a inflação. O cres-

cimento e fortalecimento de uma

‘nova classe’ de credores/rentistas

da crescente dívida pública, cujos

juros anuais estão por volta de R$

170 bilhões, vêm perpetuando esse

modelo e já concentram o seu usu-

fruto: 75% desses juros vão para 20

mil famílias de credores/rentistas.

to produtivo, o rendimento médio

real dos trabalhadores cai continu-

amente, assim como cai a porcen-

tagem da massa salarial na forma-

ção da renda nacional; tudo presi-

dido pela permanência pouco justi-

ficada e debatida, aberta e demo-

craticamente, de taxa de juros por

volta do dobro da praticada nos

países desenvolvidos e em desenvol-

vimento, e taxa de crescimento anu-

al do PIB por volta da metade da

verificada nesses países.

d) Se for observado somente o

comportamento dos governos, des-

de 1990, sem olhar para a Socieda-

de, o Estado e a Nação, eles vêm

operando com poder discricionário

auto-investido, ao largo da partici-

pação social consciente, da socie-

dade e do próprio Legislativo.

e) A ‘financeirização dos orça-

mentos públicos’ no bojo deste mo-

delo vem levando os governadores

e prefeitos, ano a ano, a crescente

instabilidade e tensão imposta pela

limitação orçamentária ao exercício

das responsabilidades de governo

para com o processo produtivo e

direitos sociais das respectivas po-

pulações. É a crise na governança

e na governabilidade no conceito

das Ciências Políticas. É o sufoco

sem saídas legais ou com pseudo-

saídas informais, irregulares ou

mesmo ilegais, como as ‘táticas de

sobrevivência’ e as desonerações

exemplificadas na Parte III (itens c

e d). A proposta do memorial dos

c) A corrente monetarista da área

econômica assume a hegemonia,

tornando os governos reféns do cres-

cimento, também hegemônico, do

capital financeiro. A Nação, envol-

vida nesse modelo, vive o desloca-

mento ininterrupto de recursos bili-

onários do processo produtivo e dos

direitos sociais, para a acumulação

financeira e bancária: no setor em-

presarial, as aplicações financeiras

vêm ganhando longe do investimen-

SE FOR OBSERVADO SOMENTE OCOMPORTAMENTO DOS GOVERNOS, DESDE

1990 (...)ELES VÊM OPERANDO COM PODER

DISCRICIONÁRIO AUTO-INVESTIDO, AO LARGO

DA PARTICIPAÇÃO SOCIAL CONSCIENTE, DA

SOCIEDADE E DO PRÓPRIO LEGISLATIVO

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SANTOS, Nelson Rodrigues dos

346 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 339-352, set./dez. 2005

secretários de Fazenda insere-se nes-

se contexto, exacerbando além do

que até agora vem sendo feito, a tí-

tulo de sobrevivência e desonera-

ção. É a autofagia entre as unida-

des institucionais e orçamentárias

de um ‘varejo’ duramente sucatea-

do por um ‘atacado’ até agora frio,

inclemente e todo poderoso. O me-

morial é estruturalmente equivoca-

do: não soluciona, por si, as travas

na governança e governabilidade, e

avança no aniquilamento do SUS.

A proposta de encaminhamento

de uma saída ao memorial do CON-

FAZ deve estar na lógica de um en-

caminhamento maior de saídas para

a governança e governabilidade dos

estados, DF e municípios, e para a

própria União, calcadas em profun-

da, ampla e democrática revisão,

pela Sociedade e Nação, da sua re-

lação com o Estado, reapropriando-

o para si, como começava a acon-

tecer nos anos 1980. Apenas come-

çava!

Elementos estruturais constari-

am na base dessa revisão, como o

sistema Tributário e Fiscal, a pro-

teção da dívida pública contra ju-

ros altos, a queda dos juros, as Leis

da Responsabilidade Fiscal e Soci-

al, a desprecarização da gestão dos

servidores públicos, a precedência

das políticas públicas e dos valo-

res e direitos sociais sobre os indi-

viduais e outros.

Voltando ao memorial do CONFAZ,

propomos que seja instada perante

os Exmos. Governadores, a inicia-

tiva de convocação de uma oficina

analítica e propositiva entre o CON-

FAZ, o CONASS (Conselho Nacional de

Secretários Estaduais de Saúde) e o

CONASEMS (Conselho Nacional de Se-

cretárias Municipais de Saúde), com

participação dos presidentes das

comissões de saúde das Assembléi-

as Legislativas, dos presidentes dos

Conselhos dos Secretários Munici-

pais de Saúde (COSEMS), dos presi-

dentes dos Conselhos Estaduais de

Ambiente e outros, e dos setores

sociais entre si.

UMA PROPOSTA X ESTRATÉGICA NAAPLICAÇÃO DOS RECURSOS FEDERAIS

CORRESPONDENTES À DIFERENÇAENTRE OS CÁLCULOS PRÉ E

PÓS-REGULAMENTAÇÃO

Seguem os passos dados na for-

mulação, e a proposta, apenas es-

quematizada, deixa o necessário

aclaramento e detalhamento para a

riqueza da participação dos deba-

tes, por ex., o conceito e prática de

‘Integralidade Regulada’ e de ‘Re-

gionalização Cooperativa e Solidá-

ria’:

a) se o subfinanciamento e pre-

carização da gestão do pessoal de

saúde vêm levando às conseqüên-

cias negativas exemplificadas na

Parte III, a reversão dessas duas

causas, ainda que gradativa, deve-

rá incidir estrategicamente no res-

gate da equidade, integralidade e

regionalização para o centro da

construção dos novos modelos, isto

é, para a estrutura básica da cons-

trução do SUS. Sendo que a descen-

tralização /municipalização avan-

çaram bastante, está mais que na

hora de serem orientadas pela regi-

onalização. Sendo que a universa-

lização avançou bastante, está mais

que na hora de ser qualificada pela

equidade, integralidade regulada e

resolutividade. Com pena de ser se-

Saúde, de representantes da Asso-

ciação dos Membros dos Tribunais

de Contas (ATRICON) e da Associação

Brasileira de Economia de Saúde

(ABRES)

Esta oficina (ou seminário) de-

veria ser adequadamente prepara-

da, com documentos prévios enco-

mendados. Na seqüência, eventos

similares deveriam ser organizados

com os setores Educação, Assistên-

cia Social, Cultura e Lazer, Meio

O MEMORIAL É ESTRUTURALMENTE

EQUIVOCADO: NÃO SOLUCIONA, POR SI, AS

TRAVAS NA GOVERNANÇA E GOVERNABILIDADE,E AVANÇA NO ANIQUILAMENTO DO SUS

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Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 339-352, set./dez. 2005 347

guido e consolidado um outro rumo

para um outro modelo, que não o

do SUS;

b) assunção pelos gestores, tra-

balhadores de saúde, usuários e

prestadores de serviços, da constru-

ção da regionalização (sistemas de

redes regionalizadas), enquanto eixo

aglutinador da construção da equi-

dade e integralidade. A equidade

intermunicipal na Região, articula-

da nas pactuações intermunicipais

e dos municípios com o estado; a

equidade inter-regional, sob respon-

sabilidade maior da Bipartite e do

estado e a equidade interestadual,

sob a responsabilidade maior da

Tripartite e da União. Sob a mesma

lógica deverão ser equacionadas as

situações limítrofes interestaduais;

c) este processo deve viabilizar-

se de acordo com o tamanho e perfil

populacional, distribuição de capa-

cidade instalada e dos profissionais

de saúde, as vias de acesso e os atu-

ais fluxos de demandas, e em arti-

culação com os processos de terri-

torialização das cadeias produtivas

de bens e serviços, e não de forma

setorial isolada. Não deve, por isso,

depender dos limites administrativos

das Diretorias Regionais das Secre-

tarias Estaduais de Saúde;

d) o modelo de gestão almejado

em cada região sanitária deve con-

templar basicamente:

• planejamento ascendente do

local ao regional, com metas quali-

quantitativas e de resultados da

atenção integral à saúde e respecti-

vos custos, conforme dispõe o subs-

titutivo Guilherme Menezes;

• valor de remuneração XXX de

todos os serviços preventivos e cu-

rativos não inferior aos respectivos

custos;

• autonomia gerencial para as

unidades hospitalares mais comple-

xas e para distritos sanitários;

• contratos de gestão para cum-

primento de metas, desempenho e

resultados, definidos, realizados e

avaliados sob lógica publicista, fi-

cando a remuneração por produção,

forma excepcional e residual;

• Gestão Colegiada da Região

Sanitária: deve ser pública gover-

namental (estadual/municipal) com-

partilhada, composta pelos di-

retores das Diretorias Regionais e

os Secretários Municipais de Saúde

da Região Sanitária;

• desprecarização da gestão do

pessoal de Saúde, incluindo o in-

gresso, capacitação, carreira, fixa-

ção dos profissionais e remunera-

ção mista (fixa e por desempenho/

resultados das equipes);

• investimento estratégico obe-

decendo o Plano Diretor de Regiona-

lização, universalizando o acesso à

capacidade instalada e de profissio-

nais subordinando-se à diferencia-

ções entre as regiões em função da

diretriz da equidade;

• adoção dos preceitos da pro-

dução em escala, otimizando a re-

lação custo/qualidade/efetividade,

balizada pela construção da equi-

dade;

• propiciamento de condições

para a qualificação da Atenção Pri-

mária, objetivando resolutividade de

no mínimo 80% das necessidades,

com base nas necessidades da po-

pulação, agregando o pronto-aten-

dimento contínuo, tornando-a refe-

rência para acesso garantido aos

serviços de média e alta complexi-

dade e centro de organização da rede

de serviços;

• participação efetiva da socie-

dade através dos Conselhos de Saú-

de na definição e aprovação das pri-

oridades e etapas perante os li-

mites do financiamento;

• resgate dos valores e práticas

da solidariedade e humanização das

relações com os usuários;

• definição e assunção da res-

ponsabilidade sanitária em todos os

níveis da prestação de serviços,

além dos entes federados.

... CONSTRUÇÃO DA REGIONALIZAÇÃO (SISTEMA

DE REDES REGIONALIZADAS), ENQUANTO EIXO

AGLUTINADOR DA CONSTRUÇÃO DA EQUIDADE EINTEGRIDADE

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SANTOS, Nelson Rodrigues dos

348 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 339-352, set./dez. 2005

e) No processo de novo patamar

de financiamento, da desprecariza-

ção da gestão do pessoal e da cons-

trução dos novos modelos, será ina-

bdicável a construção de nova rela-

ção do SUS, em todos os níveis, com

a saúde suplementar (mercado de

planos privados de saúde), com ên-

fase no regramento da demanda dos

respectivos consumidores aos ser-

viços do SUS, de média e principal-

mente alta complexidade e custos,

com vistas ao efetivo cumprimento

dos princípios e diretrizes da equi-

dade, integralidade e regionaliza-

ção, em substituição à hoje predo-

minante desoneração das operado-

ras dos planos privados;

f) o processo da regionalização

dos serviços de saúde variará ine-

xoravelmente na forma e velocida-

de, de acordo com as realidades his-

tóricas populacionais, socioeconô-

micas, culturais, epidemiológicas e

de capacidade instalada, em cada

região, estado e macrorregião do

território nacional;

g) já se encontram estabelecidas

as responsabilidades da Tripartite,

nas pactuações genéricas no âmbi-

to nacional sobre a regionalização,

e das Bipartites em cada estado,

com autonomia de pactuações de

diretrizes nos respectivos territóri-

os, tudo discutido e legitimado nos

respectivos conselhos de saúde. O

eixo básico desse processo foi cons-

truído em 2006 pela Tripartite e

CNS, resultando o “Pacto pela Vida

em Defesa do SUS e de Gestão”;

h) a proposta de aplicação dos

recursos referentes à diferença en-

tre os cálculos pré e pós-regulamen-

tação é a de:

• maior parte destinada à apli-

cação parcelada em gastos orienta-

dos por metas estratégicas, com

direcionalidade e aceleração do pro-

cesso da Regionalização Cooperati-

va e Solidária;

• outra parte destinada à apli-

cação imediata conforme disposto

nos planos e orçamentos de cada

ente federado, com prioridades e

etapas pactuadas na Tripartite e

Bipartites, incluindo as situações

mais graves de desassistência, epi-

demias, retorno de endemias e de-

sarticulação do sistema, e a

• outra parte destinada aos in-

vestimentos públicos estratégicos

na ciência/tecnologia e cadeia pro-

dutiva do complexo econômico-in-

dustrial da Saúde, com potência de

induzir os investimentos privados

e reverter o grande déficit acumu-

lado desde os anos 1990.

i) os cronogramas de implanta-

ção e/ou implementação das Regi-

ões Sanitárias, com as respectivas

etapas, prioridades, requisitos com-

prováveis, tanto das atividades –

meio como finalísticas, articuladas

entre si –, assim como as alterna-

tivas da intervenção no processo

ocorrerá simultaneamente em todas

as regiões, ou seqüencial por re-

gião, serão objetos, entre outros,

das formulações e pactuações na

Tripartite, nas Bipartites e Biparti-

tes regionais, e discutidas nos res-

pectivos conselhos e plenárias re-

gionais de saúde.

j) aos cronogramas de implan-

tação e/ou implementação das Re-

giões Sanitárias, deverão corres-

ponder cronogramas de liberação

dos respectivos recursos para o

Fundo Nacional de Saúde, justifi-

cados pela Tripartite e executados

pelo MS-MPOG. O montante dos re-

cursos ainda não liberados (saldo),

não deverá ser objeto de contingen-

ciamentos e estornos, inclusive ao

final do ano fiscal. Possível acumu-

lação (saldo) findo o processo da

regionalização, deverá ser destina-

do à continuidade da elevação dos

recursos públicos per capita anu-

ais para o SUS, objetivando alcan-

çar patamar correspondente à pelo

...AOS CRONOGRAMAS DE IMPLEMENTAÇÃO E/OU IMPLEMENTAÇÃO DAS REGIÕES

SANITÁRIAS, DEVERÃO CORRESPONDER

CRONOGRAMAS DE LIBERAÇÃO DOS

RESPECTIVOS RECURSOS PARA O FUNDO

NACIONAL DE SAÚDE ...

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Regulamentar a EC-29, avançar o modelo de gestão e realizar a universalidade com integralidade, equidade e participação

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 339-352, set./dez. 2005 349

menos a metade da média dos per

capita públicos vigentes nos países

mais desenvolvidos, como Canadá

e países europeus (por volta de U$

700 por habitante-ano);

k) esta proposta, assim como o

debate sobre os gastos do SUS, in-

cluindo os adicionais com a apro-

vação da regulamentação da EC-29,

deve se dar com a participação dos

Conselhos de Saúde e da sociedade

organizada, em especial, com as

representações dos usuários, sendo

que na questão da regionalização

não deverão deixar de ser valoriza-

dos, fóruns ou plenárias regionais

de saúde. A consciência coletiva das

necessidades e direitos à saúde am-

pliará em um valor a mais: “a mi-

nha região, que está social e legal-

mente obrigada a proteger minha

saúde e a da coletividade regional,

com atenção integral, equitativa e

universal”.

ANEXO

ENCAMINHAMENTOS DE APOIOÀS ARTICULAÇÕES

E NEGOCIAÇÕES SOBREA REGULAMENTAÇÃO DA EC-29

I – O projeto da Reforma Sanitá-

ria Brasileira insere-se no projeto

social maior civilizatório que defi-

ne e configura o Estado democráti-

co subordinado por igual ao conjun-

to dos segmentos da sociedade, a

eles garantindo equitativamente as

condições mínimas imprescindíveis

ao usufruto da dignidade do ser

humano e dos direitos sociais espe-

lhados em nossa Constituição: Edu-

cação Saúde, Trabalho, Moradia,

Lazer, Segurança, Previdência Soci-

al, Proteção à Maternidade e Infân-

cia e Assistência aos Desamparados.

Como nas sociedades mais desen-

volvidas, são garantias constituci-

onais do exercício da cidadania: o

Sistema de Proteção Social que ofe-

rece patamar básico digno de aten-

ção aos direitos sociais, e a Renda

que o complementa de acordo com

o estrato social.

II – O Sistema Único de Saúde

está legalmente compelido a buscar

integração e sinergismo permanen-

tes com os setores governamentais

responsáveis pelos fatores determi-

nantes e condicionantes da saúde no

âmbito das políticas públicas, espe-

lhados em nossa Lei Orgânica da

Saúde: Alimentação, Moradia, Sane-

amento Básico, Meio Ambiente, Tra-

balho, Renda, Educação, Transpor-

te, Lazer e Acesso aos Bens e Servi-

ços Essenciais. Da mesma maneira,

a Seguridade Social consagrada na

Constituição.

III – A oferta e utilização de ser-

viços públicos integrais de saúde,

preventivos e curativos, deve-se re-

alizar em patamar mínimo impres-

cindível correspondente à dignida-

de e direito de cada cidadão e da

coletividade, mas com regulação

pactuada com a sociedade das ten-

dências e pressões de utilização ili-

mitada de ações e serviços evitá-

veis, supérfluos e desnecessários.

IV – A elevada competência al-

cançada na gestão de sistemas nos

17 anos do SUS, com estabelecimen-

to da direção única em cada esfera

de governo, da gestão pactuada en-

tre as três esferas (Tripartite e Bi-

partites), da descentralização radi-

cal de competências, da criação dos

Fundos de Saúde e repasses Fundo

a Fundo, dos Conselhos de Saúde e

de respeitável vanguarda na gestão

estadual e municipal, pouco se es-

tendeu à gestão e gerência cotidia-

nas das unidades prestadoras de

serviços, das simples às complexas.

Apesar da grande elevação da pro-

dutividade e produção, permanecem

inaceitáveis proporções de desper-

dícios com ações e serviços evitá-

veis, supérfluos e desnecessários,

conseqüentes à impossibilidade de

reverter a atual lógica da oferta de

serviços onde pesam os interesses

de ‘sobrevivência’ de profissionais

de saúde, prestadores de serviços e

industria de medicamentos e outros

insumos, secundarizando as neces-

sidades e direitos da população. Por

sua vez, este peso depende direta-

mente do grave subfinanciamento

público (per capita público menor

do que em vários países da Améri-

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SANTOS, Nelson Rodrigues dos

350 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 339-352, set./dez. 2005

ca Latina e pouco mais de 10% da

média dos países desenvolvidos), e

do baixíssimo nível da remuneração

e gestão do trabalho do pessoal de

saúde, o que tem colocado, em re-

gra, os gestores estaduais, e princi-

palmente os municipais de saúde,

em verdadeiro estrangulamento.

V – É de constatação inequívo-

ca, o esgotamento da viabilidade de

solução única: somente com a im-

prescindível elevação do financia-

mento público, ou só com a impres-

cindível reversão dos desperdícios

gerados pela lógica predominante

da oferta de serviços. Tornam-se

imprescindíveis e inadiáveis posici-

onamentos enfáticos e terminantes

por uma regulamentação da EC-29

estruturalmente voltada para o atre-

lamento da retomada do rumo para

o financiamento suficiente, à reto-

mada do rumo para as inadiáveis

transformações e impactos nos mo-

delos de gestão e gerência das uni-

dades prestadoras de serviços, vol-

tando definitivamente sua lógica

para a centralidade dos direitos do

usuário cidadão, para os resultados

na saúde da população, para o de-

sempenho das equipes de saúde e

para a efetiva participação da soci-

edade na definição das prioridades

e etapas da oferta de serviços, pe-

rante a finitude dos recursos aloca-

dos.

VI – O principal elo de extensão

da competência alcançada na ges-

tão de sistemas, para a construção

de novos modelos de gestão e ge-

rência das unidades prestadoras de

serviços, será o último espaço da

gestão sistêmica ainda não priori-

zado e assumido na prática, que é

o da diretriz Constitucional da Re-

gionalização, mas já reconhecido no

recente Pacto de Gestão como seu

maior eixo estruturante. Por meio

deste e outros elos, os gestores do

SUS e os Conselhos de Saúde nas

três esferas de Governo estão frente

a frente com desafios inadiáveis, tais

como: implantação e implementa-

ção das Regiões Sanitárias, plane-

jamento ascendente de metas quali-

quantitativas da oferta de ações e

serviços de saúde integrais e equi-

tativos, em cada realidade regional

e microrregional, os custos de cada

meta com base nos recursos mate-

riais e humanos minimamente ne-

cessários, remuneração do cumpri-

mento das metas com valores não

inferiores aos custos, autonomia

gerencial das unidades governamen-

tais, indicadores objetivos para

acompanhamento da eficiência, de-

sempenho das equipes e resultados

para a população, contratos de ges-

tão e participação efetiva da socie-

dade organizada na definição de

prioridades e etapas, perante a fini-

tude dos recursos alocados, em

cada unidade prestadora de servi-

ços, em cada município, em cada

região, em cada estado e ao nível

nacional, por meio dos Conselhos de

Saúde e da relação direta Governo-

Sociedade.

Um outro desafio inadiável para

a gestão do SUS, a ser tratado no

primeiro plano das negociações da

regulamentação da EC-29, é a deci-

siva questão da cadeia produtiva do

complexo econômico-industrial da

Saúde, portadora de grande déficit

acumulado desde os anos 1990, de

investimentos estratégicos gerado-

res de riqueza, emprego e sustenta-

ção da política pública de saúde.

VII – As questões e proposições

constantes nos encaminhamentos

anteriores vêm sendo profunda e

coerentemente debatidas e formula-

das pelo Congresso Nacional, na ela-

boração do PL substitutivo do Dep.

Guilherme Menezes, nos anteproje-

tos do Sen. Tião Viana e Marconi

Perilo, e pelo Governo, na elabora-

ção do Pacto pela Vida, em Defesa

do SUS e de Gestão, aprovado na

Tripartite e no Conselho Nacional de

Saúde, assim como o anteprojeto de

Lei da criação de Fundações Esta-

tais, com elaboração conduzida pelo

Ministério do Planejamento e enri-

quecida por respeitáveis especialis-

tas em gestão, gerência e Direito

Sanitário. A proposição mais com-

pleta debatida e legitimada no mo-

mento é o substitutivo “Guilherme

Menezes” do PLP n.01/03, aprimo-

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Regulamentar a EC-29, avançar o modelo de gestão e realizar a universalidade com integralidade, equidade e participação

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 339-352, set./dez. 2005 351

rado e aprovado nas três comissões

obrigatórias da Câmara dos Depu-

tados: além de garantir a reversão

da retração dos gastos federais,

iguala os critérios de cálculo entre

as três esferas de Governo e respal-

da a construção do SUS, mantendo,

na sua formulação, todas as pon-

tes com as outras propostas com

vistas a negociações e consolidação

no Congresso Nacional.

VIII – Caso as atuais caracterís-

ticas macroeconômicas e relações

de forças políticas e sociais forem

desfavoráveis na negociação da re-

gulamentação e imponham a conti-

nuidade do cálculo segundo a vari-

ação nominal do PIB, deverão ser

construídas outras alternativas de

negociação, entre as quais a de pac-

tuar um acréscimo anual além da

variação nominal do PIB, correspon-

dente a um porcentual do PIB, ten-

do já havido a proposta de 0,25%

no mínimo. Este acréscimo poderá

ser prorrogado ou revisto após pe-

ríodos não inferiores a quatro anos,

ou ainda substituído pela alternati-

va original conforme dispõe o subs-

titutivo “Guilherme Menezes”. De

qualquer modo, deve ser observa-

do o atrelamento disposto nos en-

caminhamentos V, VI e VII deste

Anexo.

IX – Há que se considerar tam-

bém a disponibilização de aproxi-

madamente R$ 5 bilhões anuais,

vinculados ao cumprimento, pelas

três esferas de Governo, do que são

e não são os serviços de saúde fi-

nanciados pelo SUS, a constar na

regulamentação, além da disponibi-

lização pela União, dos restos a pa-

gar acumulados em anos anteriores

e dos recursos contingenciados em

2007. A aplicação dos recursos re-

feridos neste item permanece tam-

bém atrelada ao disposto nos enca-

minhamentos V, VI e VII deste Ane-

xo.

X – Deve constar também na re-

gulamentação, a avaliação sistemá-

tica a cada cinco anos, com as revi-

sões que se fizerem necessárias, e

com interação (mútua adequação)

com o PPA.

XI – Devem ser identificadas,

desde já, junto aos conselhos de saú-

de, as repercussões concretas na

atenção às necessidades e direitos

da população, no curto e médio pra-

zo, assim como imediata ampliação

da informação e participação para

a opinião pública em geral.

REFERÊNCIAS

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE SAÚ-

DE COLETIVA Reafirmando compro-

missos pela saúde dos brasileiros:

lançamento do fórum da reforma

sanitária brasileira. Rio de Janeiro:

Associação Brasileira de Pós-Gradu-

ação em Saúde Coletiva, Centro Bra-

sileiro de Estudos de Saúde, 2005.

______. Reflexões atualizadas so-

bre a urgência da tramitação do

Projeto de Lei Complementar da EC-

29. Rio de Janeiro: Associação Bra-

sileira de Pós-Graduação em Saú-

de Coletiva, Centro Brasileiro de Es-

tudos de Saúde, 2004.

BRASIL. Constituição, 1988. Emen-

da Constitucional 29, de 13 Setem-

bro de 2000. Altera os arts. 34, 35,

156, 160, 167 e 198 da Constitui-

ção Federal e acrescenta artigo ao

Ato das Disposições Constitucionais

Transitórias, para assegurar os re-

cursos mínimos para o financia-

mento das ações e serviços públi-

cos de saúde. Disponível em: < ht-

tps://www.planalto.gov.br/cci-

vil_03/constituicao/emendas/emc/

emc29.htm> .Acesso em: 14.05.06

______. Conselho Nacional de Saú-

de. Parâmetros Consensuais sobre

a Implementação e Regulamenta-

ção da EC-29 – CNS, SIOPS, CAS/SE-

NADO, CSSF/CD, MP, ATRICON, CONASS,

CONASEMS. Brasília, DF: [s. n.], 2001.

______. Ministério da Fazenda. Me-

morial das Secretarias Estaduais

da Fazenda. Brasília, DF: CONFAZ,

2007.

______. Ministério da Saúde. Car-

ta de Brasília: manifesto aprovado

Page 130: sd em db 71-00 capas 2e3 - mp.go.gov.br · “O SUS pra valer” e “O lugar estratégico da gestão na conquista do SUS pra valer”. O primeiro é produto de um esforço conjunto

SANTOS, Nelson Rodrigues dos

352 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 339-352, set./dez. 2005

pelos 800 participantes da 8º Sim-

pósio sobre Política Nacional de Saú-

de, 2005.

______. Portaria MS n. 399, de 02

de fevereiro de 2006. Pacto pela

Vida, em Defesa do SUS e de Ges-

tão. Brasília, DF: MS, CONASS, CONA-

SEMS, 2006.

CAMPOS, Gastão Wagner de Sousa.

Reforma política e sanitária: a sus-

tentabilidade do sus em questão?.

Ciênc. saúde coletiva., Rio de Ja-

neiro, v. 12, n. 2, 2007. Dispo-

nível em: <http://www.scielosp.org/

scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-

81232007000200002&lng=pt&nrm=iso

>. Acesso em: 02 mar. 2007. Pré-

publicação.

CARVALHO, G. O gasto com saúde

no Brasil em 2006. São Paulo: [s.

n.], 2007. Disponível em: <http://

www.ensp.fiocruz.br/radis/55/pdf/

gasto.com.saude.2006.pdf> Acesso

em: 13.05.06.

______. Saúde: o tudo para todos

que sonhamos e o tudo que nos im-

pingem os que lucram com ela. São

Paulo: [s. n.], 2004. Disponbível em:

<http://www.canalsaude.fiocruz.br/

arquivos/jornada1.pdf> . Acesso em

: 02.02.2007.

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sível para a saúde se for aprovada a

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01/2003, mar/2007.

FLEURY, S. O PAC e a Saúde. Bole-

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FÓRUM Saúde e democracia: uma

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MENDES, A. Financiamento da saú-

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2006.

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rais do SUS. São Paulo: [s. n.],

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MENEZES, G. Redação final, incor-

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2004.

SANTOS, L. O que financiar com os

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Apontamentos sobre o processo de descentralização na saúde

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 353-364, set./dez. 2005 353

353

ARTIGOS DE OPINIÃO / OPINION ARTICLES

Apontamentos sobre o processo de descentralização na saúde1

Notes on the decentralization process of health care

Lenaura de Vasconcelos Costa Lobato2

1 Este trabalho contou com o apoio dos

alunos e pesquisadores Anne Carolina de

Melo Santos, Assis Mafort Olverney,Maria

Gabriela Monteiro e Thais Soares, partici-

pantes da pesquisa Municipalização da saú-

de: inovação na gestão e democracia local

no Brasil, realizada pelo Programa de Es-

tudos da Esfera Pública – PEEP da Escola

de Administração Pública da Fundação Ge-

túlio Vargas, Rio de Janeiro, sob coordena-

ção da Profa. Sonia Fleury.

2 Socióloga, Mestre em Administração Pú-

blica e Doutora em Saúde Pública. Profes-

sora do Programa de Estudos Pós- Gradua-

dos da Escola de Serviço Social da Univer-

sidade Federal Fluminense. Coordenadora

do Núcleo de Avaliação de Políticas – NAP/

UFF.

RESUMO

O artigo discute aspectos que estariam indicando o esgotamento do

modelo de descentralização até aqui adotado na área de saúde. Argumenta-

se que o modelo indutor de adesão dos entes subnacionais, através do

privilégio ao financiamento, esgotou suas possibilidades de estimular a

responsabilidade desses entes na construção de sistemas baseados nos

princípios do SUS, de estimular a democratização e de alterar as formas

tradicionais de intermediação de interesses na provisão de serviços, o que

tem comprometido a construção de um sistema de saúde baseado nas

necessidades sociais da população.

PALAVRAS-CHAVE: Descentralização, Política de Saúde, Sistema Único de Saúde

ABSTRACT

This article discusses aspects that would suggest the exhaustion of the

decentralization model adopted up to now in the area of health. It is argued

that the model to encourage adherence by subnational entities, by means

of offering privileges regarding funding, has exhausted the possibilities of

stimulating responsibility amongst such entities to construct systems based

on the principles of the Unified Health System, of stimulating

democratization and of altering the traditional forms of intermediating

interests in service provision. As a result this has compromised the

construction of a health care system based on the population’s social needs.

KEY-WORDS: Decentralization, Health Policy, Unified Health System

Recebido: Jun./2006

Aprovado: Jul./2007

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LOBATO, Lenaura de Vasconcelos Costa

354 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 353-364, set./dez. 2005

INTRODUÇÃO

A descentralização do setor saú-

de no Brasil encontra-se hoje em um

ponto que pode ser considerado di-

lemático, já que aparentemente os

esforços da estrutura político-admi-

nistrativa do setor não estão sendo

suficientes para completar a descen-

tralização como prevista na Consti-

tuição e, em especial, na Lei 8080.

E, nesse sentido, pode ser questio-

nado o potencial da descentraliza-

ção intrasetorial como estimulado-

ra de inovações que permitam aden-

sar a esfera pública, consolidar o

poder democrático local e garantir

os objetivos da universalização da

assistência à saúde, princípios pre-

sentes na reforma sanitária brasilei-

ra.

Levantamos alguns pontos que

ao nosso ver expressam esse dile-

ma, com o objetivo de contribuir

para o debate sobre os rumos da

descentralização.

O que chamamos aqui de dile-

ma se expressa pelo cruzamento de

um conjunto de variáveis que se re-

ferem tanto ao processo de condu-

ção da descentralização desenvolvi-

da no setor, quanto por característi-

cas institucionais que compõem o

cenário da descentralização. Nossa

hipótese é que o conjunto dessas

variáveis demonstra um esgotamen-

to do modelo até aqui adotado de

descentralização, tanto no que toca

aos objetivos do SUS quanto à bus-

ca do aprofundamento da democra-

cia setorial, e que novas estratégias

deveriam ser pensadas.

AUTONOMIA DOSNÍVEIS DE GOVERNO

O primeiro ponto diz respeito à

responsabilidade partilhada entre

níveis de governo com alto grau de

autonomia. O caráter solidário da

descentralização como proposta na

legislação do SUS vai de encontro

Operacional Básica 01 de 1996 (NOB

96), é majoritariamente tratado como

o ponto positivo de impulso à des-

centralização, embora haja autores

que considerem que a NOB 96 feriu

a autonomia de gestão dos municí-

pios ao privilegiar o financiamento

dos programas de saúde da família

e de agentes comunitários da saúde

(SILVA, EGYIDIO e SOUZA, 1999). De

fato, os incentivos dados à adesão

dos municípios têm como premissa

a solidariedade aos princípios do

SUS, mas sempre estiveram forte-

mente pautados nas escolhas dos

órgãos centrais de gestão por meio

de incentivos financeiros. Assim,

houve uma potente adesão onde esta

implicava baixos custos e, ao con-

trário, onde havia necessidade de

uma ação própria do ente de gover-

no, em especial com aporte signifi-

cativo de recursos, a adesão não

aconteceu.

O resultado foi que a NOB 96 tor-

nou-se fundamental para a estraté-

gia de saúde da família, tanto pela

expansão da cobertura em si, como

pelo desenvolvimento e difusão de

uma tecnologia de gestão da aten-

ção básica. Contudo, avançou-se

pouco na autogestão dos sistemas

de saúde, segundo os princípios do

SUS. Assim, gerir o SUS, ‘segundo

os princípios do SUS’, com os in-

centivos financeiros repassados pelo

governo federal, não tem compen-

sado. Em março de 2006, apenas

7,7% dos municípios estavam habi-

litados em gestão plena do sistema

ao cálculo que municípios e esta-

dos fazem para aderir ou não aos

preceitos da descentralização. O pro-

cesso de adesão voluntária, base da

descentralização democrática nos

preceitos do SUS, não significa, con-

tudo, benefícios certos a estados e

municípios. Em verdade, como já

demonstrou Arretche (2000), há um

cálculo razoável na adesão, sempre

pesado entre custos e benefícios. O

processo de descentralização pelas

Normas Operacionais, em especial

aquele deslanchado pela Norma

A DESCENTRALIZAÇÃO DO

SETOR SAÚDE NO BRASIL

ENCONTRA-SE HOJE EM UM PONTO

QUE PODE SER CONSIDERADO

DILEMÁTICO ...

Processo democrático

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Apontamentos sobre o processo de descentralização na saúde

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 353-364, set./dez. 2005 355

355

pela NOB 96 (implantada em 1998),

e apenas 4,6% habilitados pela Nor-

ma Operacional da Assistência à

Saúde - NOAS.

Outro fator que chama a atenção

é que aparentemente a adesão tem

dependido de estímulos para além

dos incentivos regulares, o que pode

ser plenamente legítimo, mas de-

monstra uma fragilidade tanto des-

ses incentivos como da disposição

dos entes subnacionais em assumir

de vez o SUS. A distribuição das

habilitações por estado mostra que

, em alguns deles, nenhum municí-

pio tinha se habilitado à NOB 96 e

todos se habilitaram à NOAS. Há

outros onde todos os municípios se

habilitaram à NOB 96, mas nenhum

à NOAS. Este último caso é até acei-

tável, já que a NOAS supõe intera-

ção com outros municípios e a par-

ticipação dos estados, o que extra-

pola a iniciativa municipal. Mesmo

assim, municípios ,em gestão ple-

na do sistema na NOB 96, já teriam

a experiência de gestão, contratação

e regulação de serviços que lhes

daria arcabouço para estimular as

parcerias pela regionalização, até

porque são poucos os municípios do

país que possuem auto-suficiência

de rede, sendo que maioria requer

serviços para além dos seus limites

municipais. Já no primeiro caso fica

claro que houve um estímulo espe-

cífico, provavelmente dos estados,

o que reforça a preponderância da

autonomia, seja na direção de ade-

rir ao SUS, ou não. A diversidade

regional foi outro fator apontado

como importante para a não adesão

às NOBs. De fato, também em mar-

ço de 2006, havia estados onde a

habilitação na condição de gestão

plena do sistema alcançava 45% dos

municípios, enquanto que, em ou-

tro extremo, há um estado onde ape-

nas 0,45% dos municípios estavam

habilitados.

A regionalização, um dos nós da

reforma sanitária e do SUS, também

encontra na autonomia um fator

sistema de saúde. Este impulso con-

solidou um formato de descentrali-

zação que não oferecia estímulos à

integração entre as estruturas de

municípios, dificultando o aprovei-

tamento racional de recursos e o

ordenamento hierárquico das bases

de serviços de uma região e/ou es-

tado. O processo de implementação

da NOAS, que tinha como objetivo a

regionalização, e possuía desenho

bastante apropriado, demonstra a

preponderância da autonomia dos

municípios e estados na adesão ao

processo de descentralização, já que

ela não se concretizou nem parcial-

mente.

O papel limitador das NOBs so-

bre outros fatores institucionais in-

tra e extra sistema de saúde, como

aqui a autonomia dos entes federa-

dos na condução do SUS, limita as

possibilidades de atuação através de

mecanismos como esse. Esse apren-

dizado contribuiu para que na nova

estratégia de impulso ao SUS, cha-

mada Pacto pela Saúde, as NOBs

tenham sido eliminadas. Curiosa-

mente, na leitura da Portaria 399 até

agora editada para normatização

dessa nova estratégia (que chama a

atenção por ser mais orientadora do

que normatizadora), fica evidente

que a realização dos objetivos do

SUS e da Reforma Sanitária reque-

rem a solidariedade dos entes naci-

onais aos princípios e objetivos do

SUS e que, além disso, supõe uma

profunda interdepen-dência entre

esses entes, o que pode encontrar

complicador que não foi resolvido

pela descentralização, já que esta

teria favorecido de forma desequili-

brada a dinâmica intramunicipal,

em prejuízo da relação entre muni-

cípios com a participação dos esta-

dos. O formato da estratégia de des-

centralização, adotado até o final da

década de noventa, privilegiou a

formação de bases isoladas e a ges-

tão da dinâmica intramunicipal

como expressão do caráter munici-

palista que orientou a reforma do

A REGIONALIZAÇÃO, UM DOS NÓS DA

REFORMA SANITÁRIA E DO SUS, TAMBÉM

ENCONTRA NA AUTONOMIA UM FATOR

COMPLICADOR QUE NÃO FOI RESOLVIDO PELA

DESCENTRALIZAÇÃO

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LOBATO, Lenaura de Vasconcelos Costa

356 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 353-364, set./dez. 2005

limites na autonomia de estados e

municípios.

A autonomia foi um dos precei-

tos fundamentais da Constituição de

88, como mecanismo de aprofundar

a democracia e gerar eficácia, em

especial das políticas sociais. Mas,

muitos dos avanços do SUS só pu-

deram ser alcançados por impedi-

mentos a essa autonomia, caso das

NOBs e, em especial, da indução de

ações de assistência através de re-

cursos carimbados. Ao revés, o

avanço que é requerido ao SUS hoje,

no sentido da concretização da uni-

versalização com qualidade da aten-

ção, depende da adesão autônoma

dos entes, que têm ampla autono-

mia para não aderirem.

PROCESSODEMOCRÁTICO

A democracia foi um fator impulsi-

onador das demandas pelo direito à

saúde, calcada na bem-sucedida

articulação entre democracia e saú-

de. De novo a descentralização apre-

sentou mecanismos importantes,

entre eles as instâncias de pactua-

ção, o estímulo induzido à forma-

ção dos conselhos e à participação

e controle social através dos Conse-

lhos. Desnecessário apontar os

avanços nesses aspectos, mas sim

apontar possíveis entraves.

Principalmente os estudos sobre

Conselhos têm apontado o baixo

associativismo no Brasil como um

dos entraves ao crescimento do pa-

pel prescrito dos Conselhos. De fato,

a baixa interferência desses na con-

dução do SUS aparece sempre nas

reivindicações dos movimentos, e

mesmo como “a” solução para a

resolução dos graves problemas da

saúde e do SUS. O contraditório aqui

é que, apesar da valorização do pa-

pel dos Conselhos nas bases sociais

e atores institucionais do SUS, a

descentralização priorizou mecanis-

mos de gestão do sistema que, ao

invés de fortaleceram o controle so-

cial, favoreceram instâncias onde

eles estiveram fora. A CIT e CIBs fo-

ram fundamentais na condução da

descentralização, e boa parte do de-

senvolvimento do sistema esteve

dirigida pelo Ministério em conso-

nância com elas. Apesar de serem

instâncias de pactuação, onde a ne-

gociação é a pauta, em oposição à

tradição centralizadora e autoritá-

ria da política de saúde, o fato é que

os conselhos jamais foram vistos

como passíveis de fazer parte desse

jogo.

Estudo recente de Santos Junior

et al (2004) sobre conselhos de di-

versas áreas sociais, em diferentes

regiões metropolitanas, demonstra

que os conselheiros têm em geral

escolaridade, acesso à informação

e participação política bem superi-

ores à média do país. Suas recla-

mações versam sobre o que pode ser

atribuído à baixa disposição dos

governos em prover os elementos

necessários ao exercício do contro-

le social - como acesso à informa-

ção para fisca-lização e decisão, di-

vulgação, infra-estrutura, etc. -, e

que poderiam estimular a capacida-

de decisória dos conselhos. Apesar

do estímulo aos Conselhos, a políti-

ca setorial ao máximo desenvolveu

estratégia de capacitação para con-

selheiros, que se bem é funda-men-

tal, não toca no problema central,

que é a baixa disposição, mesmo no

setor mais organizado da área soci-

al, de contagiar práticas associati-

vas. Nesse sentido, faltaria à des-

centralização - e aí pensando ape-

nas na saúde, embora esta devesse

ser uma estratégia geral para a área

social -, gerar uma política de “in-

centivo à associação cívica” (SAN-

TOS JUNIOR ET AL, 2004).

Sem dúvida, a área de saúde é a

mais propensa a esse tipo de estra-

tégia e isso poderia gerar o adensa-

mento da reforma para as próximas

gerações, com impactos positivos

em outras áreas, como já tem sido

... APESAR DA VALORIZAÇÃO DO PAPEL DOS

CONSELHOS NAS BASES SOCIAIS E ATORES

INSTITUCIONAIS DO SUS, ADESCENTRALIZAÇÃO PRIORIZOU MECANISMOS

DE GESTÃO DO SISTEMA QUE (.....)FAVORECERAM INSTÂNCIAS ONDE ELES

ESTIVERAM FORA.

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Apontamentos sobre o processo de descentralização na saúde

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 353-364, set./dez. 2005 357

357

demonstrado pela replicação do

modelo único e descentralizado do

SUS.

Os Conselhos de Saúde são críti-

cos também ao papel das Comissões

Intergestores, pela possibilidade de

assumirem competências que são

deles, enfraquecendo o controle so-

cial. Salientam que as Comissões

acabam decidindo políticas públi-

cas, gerando confusão e comprome-

tendo o caráter deliberativo dos Con-

selhos. Destacam que as Comissões

não são formas de democracia par-

ticipativa e que, portanto, o papel-

delas não pode ser confundido com

o dos Conselhos de Saúde, já que

elas foram criadas apenas para fa-

cilitar a execução e a relação entre

os gestores, tendo seus representan-

tes indicados pelo Poder Executivo.

Há hoje um esgotamento das instân-

cias de pactuação para o aprofun-

damento do SUS, embora sigam sen-

do fundamentais na definição da

distribuição de recursos entre esta-

dos e no processo de condução das

habilitações. Seu papel se restringe

ao patamar a partir do qual prova-

velmente se encontram as soluções,

que estariam além de mecanismos

técnicos que exigem negociação,

mas sim em decisões políticas de

adesão ao SUS como política de es-

tado, não só do nível federal, mas

também de todos os estados e mu-

nicípios.

O âmbito legislativo é outra are-

na que poderia ser mais utilizada

pelo processo de construção descen-

tralizada do SUS, pelo empenho na

condução mais transparente e asso-

ciada aos Conselhos na defesa e

aprovação de legislações que impo-

nham mais compromissos dos en-

tes responsáveis pelo SUS. Tanto no

nível federal como nos demais, essa

arena é tratada de forma utilitarista

pelos executivos, tanto em condições

de maioria quanto de minoria. A

visão recorrente de que o processo

legislativo é comandado pelo exe-

cu-tivo é contradita pelo estudo de

Rodrigues e Zauli (2002), que apon-

tam que, exatamente na área de saú-

de, há um potencial bastante signi-

ficativo do legislativo nacional na

aprovação de leis. Segundo os au-

tores, a predominância do executi-

vo na saúde se dá principalmente

pelo recurso às medidas provisóri-

as, que no período estudado por eles

não foram, em sua maioria, trans-

formadas em leis.

Na edição do novo Pacto pela

Saúde, a participação é um dos pon-

tos levantados, e a portaria 399 in-

dica a implementação de “projeto

permanente de mobilização social”.

Ainda não há indicação sobre a es-

tratégia para isso, mas curiosamente

um dos principais elementos do

novo pacto, a criação dos Colegia-

dos de Gestão Regional, não conta

com a participação de setores soci-

ais, mas somente representantes

governamentais, assim como nas

comissões intergestores regionais. A

questão aqui é em que essas ins-

tâncias se diferenciariam das comis-

sões bipartites que pactuaram a re-

gionalização pela NOAS, com os li-

mites conhecidos de efetividade. Os

colegiados de gestão e as comissões

intergestores regionais poderiam

seruma boa experiência de associa-

ção com conselhos.

POLÍTICA ECONÔMICARESTRITIVA

São já bem conhecidas as restri-

ções financeiras à ampliação dos

investimentos nas áreas de saúde e

social, decorrentes da política eco-

nômica que vem sendo adotada nos

últimos governos. Embora sempre

retorne ao debate a velha discussão

sobre se o problema é de falta de

recursos ou de má gestão, em espe-

cial quando a demanda por recur-

sos ganha força momentânea, ne-

nhum setor social, nem o próprio

governo, negam hoje a necessidade

de mais investimentos, embora para

COMISSÕES NÃO SÃO FORMAS

DE DEMOCRACIA PARTICIPATIVA (......) DELAS

NÃO PODE SER CONFUNDIDO COM O DOS

CONSELHOS DE SAÚDE ...

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LOBATO, Lenaura de Vasconcelos Costa

358 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 353-364, set./dez. 2005

UM DOS PRINCIPAIS PROBLEMAS PARA AIMPLEMENTAÇÃO DA NOAS FOI A PACTUAÇÃO

DOS RECURSOS NECESSÁRIOS PARA ACOMPENSAÇÃO ENTRE MUNICÍPIOS PARA A

PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS.

o governo federal isto nunca seja

obviamente associado às suas op-

ções de política econômica. Do pon-

to de vista da descentralização, e em

especial agora com o requerido re-

forço para a regionalização, a ques-

tão dos recursos volta à tona. Um

dos principais problemas para a

implementação da NOAS foi a pac-

tuação dos recursos necessários

para a compensação entre municí-

pios para a prestação de serviços.

Municípios pequenos com tetos fi-

nanceiros muito baixos não podem

arcar com o pagamento de certos

procedimentos para outros municí-

pios que prestam serviços a muní-

cipes seus, principalmente os de

maior complexidade. Isso gera pro-

blemas para os dois e, portanto,

para a regionalização, já que muni-

cípios com melhor capacidade sa-

bem que vão ter que arcar com aten-

dimentos de outros municípios, e

podem preferir optar pela não ade-

são, já que contam também com re-

cursos escassos.

Se a realidade da maioria dos

municípios é de baixa arrecadação,

a restrição de recursos pode limitar

a descentralização à atenção bási-

ca, já que o repasse aí é fundo a

fundo e conta com recursos agrega-

dos por ação complementar, quase

totalmente financiados por recursos

federais. A integralidade da atenção

fica prejudicada sem a injeção de

novos recursos, já que a rede ainda

não é suficiente, sendo ainda depen-

dente do setor privado, cuja lógica

não é de otimização de recursos e

sim de utilização intensiva de pro-

cedimentos. Afora isso, a baixíssi-

ma interferência da maior parte dos

municípios no controle dos serviços

de 2º e 3º níveis, com a conseqüen-

te baixa relação com a atenção bá-

sica, gera a reprodução não só da

carência de recursos, pela tendên-

cia ‘natural’ de utilização pelos pro-

vedores de todos os recursos dispo-

níveis, como a não realização dos

objetivos de um sistema que mini-

evitar o desvio dos recursos agre-

gados pela EC 29 com ações que não

as de saúde. A contenção de recur-

sos e a falta de prioridade à imple-

mentação do SUS como previsto leva

a situações curiosas. A vinculação

de recursos e agora a especificação

do que são ações de saúde restrin-

gem a realização de planejamentos

integrados para a solução de pro-

blemas sociais e limitam um dos

preceitos centrais da reforma, que é

a vinculação das medidas de aten-

ção à saúde aos problemas sociais.

E há o risco de que seja fortalecida

a produção de serviços, pela pres-

são dos provedores e da própria de-

manda. Além disso, é bastante pro-

vável que os governos se empenhem

em cumprir a lei e se restrinjam aos

patamares exigidos. Os municípios

do norte do estado do Rio de Janei-

ro, por exemplo, que arrecadam

vultosos recursos com os royalties

do petróleo - recursos que não são

considerados no cálculo da EC 29 -,

limitam-se aos patamares da emen-

da, embora apresentem situações de

saúde bastante precárias (CALIL,

2006).

FORMAS TRADICIONAIS DE NTERMEDIAÇÃODE INTERESSES E A APROPRIAÇÃO

PERSONALISTA DOS RECURSOS

Os problemas da adesão dos en-

tes federados aos objetivos do SUS,

através da descentralização, encon-

tra limites em formas tradicionais

mamente evite ser um mero prove-

dor de procedimentos de cura.

Atualmente, a mobilização ocor-

re pela aprovação do projeto de lei

complementar nº 01/2003 que regu-

lamenta a Emenda Constitucio-nal

nº 29. O projeto já foi aprovado em

todas as comissões da Câmara dos

Deputados, faltando apenas a vota-

ção no Plenário da Casa para que

seja encaminhado ao Senado Fede-

ral. O projeto de lei regulamenta as

ações e serviços de saúde e permite

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Apontamentos sobre o processo de descentralização na saúde

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 353-364, set./dez. 2005 359

359

de intermediação de interesses, em

especial o clientelismo, assim como

no personalismo que marca as rela-

ções sociais no Brasil. A interseção

dessas formas de intermediação com

a apropriação patrimonial do esta-

do facilita a corrupção, na medida

em que obscurece as ações dos go-

vernos. Embora os mecanismos de

gestão e a legislação criem restri-

ções a esses fatores, são pouco efi-

cientes em alterá-las como prepon-

derantes nas relações entre os dife-

rentes interesses existentes na are-

na decisória, em especial no nível

local.

Os estudos na área de saúde têm

dado pouca atenção a esses aspec-

tos, embora muitas das conclusões

sobre a ineficiência e inefetividade

das políticas sejam ao fim e ao cabo

atribuídas a eles. Em especial no

nível local, as relações entre forne-

cedores, governos, profissionais e

prestadores de serviços são em gran-

de medida decididas por relações

pessoais, envolvendo ou não corrup-

ção. No plano da prestação de ser-

viços, permanecem práticas antigas

de favorecimento de prestadores pri-

vados através da relação pessoal

que, em geral, os gestores de saúde

guardam com os profissionais da

área, ou pela própria posição que

esses gestores têm como prestado-

res.

Os Conselhos deveriam ser as

instâncias de controle desses proce-

dimentos, mas muitas vezes parti-

lham dessas relações ou não têm

controle sobre elas. Essas práticas

podem conduzir o processo de con-

solidação do SUS a postergar inves-

timentos em serviços públicos, be-

neficiar a produção de serviços ofe-

recidos por prestadores da rede de

relações dos gestores ou dificultar

a interação com outros governos.

O SUS gerou inúmeras inovações

favoráveis a processos mais trans-

parentes de gestão, mas deve-se in-

vestigar até onde isso tem dependi-

do da disposição dos próprios ges-

nifica um claro avanço no processo

de descentralização e implementa-

ção do SUS, através de iniciativas

da própria gestão municipal, indo

além das diretrizes federais/estadu-

ais. Já em outros, observa-se a im-

plantação de progra-mas e experi-

ências formuladas exclusivamente

no nível federal/estadual, que são

incorporadas pela gestão municipal

como uma maneira de injetar recur-

sos externos – principalmente do

nível federal – no município (GERS-

CHMAN, 2001). Ou seja, dada a per-

manência de inúmeros sistemas lo-

cais onde as mudanças se resumem

quase à incorporação da atenção

básica através do Programa Saúde

da Família, há que se conhecer o

quanto essas mudanças são resul-

tado da descentralização por si, ou

se ocorreram onde ela foi assumida

como proposta específica de gover-

nos. Em outras palavras, deve-se

procurar investigar mais como es-

sas relações tradicionais conseguem

prevalecer às inovações e às inicia-

tivas de adensamento do SUS, para

que se possa tentar reduzi-las.

NÍVEL FEDERAL COMOINDUTOR DE POLÍTICAS

No primeiro item já abordamos

as questões relativas à autonomia

dos entes federados. Aqui cabe des-

tacar os problemas decorrentes de

uma descentralização com forte in-

dução do nível federal. Se esta in-

tores e seu compromis-so com os

princípios do sistema. A descentra-

lização através das NOBs foi respon-

sável pela criação de espaços de

negociação e de pactuação de inte-

resse na área de saúde e contribuiu

para a emergência e fortalecimento

de novos atores, por meio da incor-

poração de inúmeros centros de po-

der na arena decisória da política

(VIANNA et al, 2002).

Em alguns municípios, o tipo de

inovação gerencial incorporada sig-

OS PROBLEMAS DA ADESÃO DOS ENTES

FEDERADOS AOS OBJETIVOS DO SUS,ATRAVÉS DA DESCENTRALIZAÇÃO, ENCONTRA

LIMITES EM FORMAS TRADICIONAIS DE

INTERMEDIAÇÃO DE INTERESSES, EM ESPECIAL

O CLIENTELISMO ...

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LOBATO, Lenaura de Vasconcelos Costa

360 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 353-364, set./dez. 2005

dução foi favorável à iniciativa da

atenção básica através do Pro-gra-

ma Saúde da Família, ela gerou in-

centivos que nem sempre corres-pon-

diam às necessidades dos sistemas

municipais. Já que o sucesso da es-

tratégia do Programa Saúde da Fa-

mília depende da integração com os

outros níveis de atenção, e na medi-

da em que os incentivos são dirigi-

dos desde o nível federal, o risco

seria compro-meter a integralidade

do sistema.

O fato de os incentivos terem se

tornado uma prática constante do

Ministério da Saúde, a partir de

1998, e dos municípios serem es-ti-

mulados a incorporar os progra-mas

que lhes acrescentam receita finan-

ceira é, na opinião de Marques e

Mendes (2002), um fato preocupan-

te. A vinculação dos recursos aos

programas incentiva-dos pelo Minis-

tério da Saúde não permite o redire-

cionamento para outros fins na área

da saúde, em um contexto no qual

os municípios enfrentam situações

em que falta o necessário até mes-

mo para manter sua rede de unida-

de básica, quanto mais para os de-

mais serviços de atenção à saúde.

Isso seria, segundo Marques e Men-

des, ‘o reflexo da política tutelada

da descen-tralização, que ao incen-

tivar a despesa em determinados

progra-mas, impede que os municí-

pios definam livremente sua políti-

ca de saúde, introduzindo o para-

doxo da existência da ‘pobreza’ em

um quadro de recursos ‘abundan-

tes’ e garantidos pelos incentivos’

(2002, p.171). Na verdade, não há

indícios de que a indução por incen-

tivos financeiros impeça a definição

livre dos sistemas pelos municípi-

os. Ou seja, o problema é menos da

tutela na adoção de programas atra-

vés do financiamento e mais da fal-

ta de mecanismos que estimulem,

auxiliem e induzam os municípios

à responsabilidade de construir seus

sistemas. Segundo Vianna et al

(2002), o esforço permanente do go-

às ações de transferência fundo a

fundo ou privilegiar ações não pri-

oritárias para sua população ape-

nas para favorecer interesses de

determinados prestadores.

ESTRUTURA DEPROVISÃO DO SETOR

A descentralização trouxe uma am-

pliação considerável da rede de ser-

viços e a expansão da rede de aten-

ção primária, com ampliação da

oferta pública. Entretanto, a mesma

expansão não é verificada nas ba-

ses especializadas de serviços devi-

do à ausência de investimentos pú-

blicos para a ampliação do número

de leitos hospitalares, terapia inten-

siva, de serviços de apoio diagnós-

tico, cirurgia, etc. A demanda por

estes serviços especia-lizados é di-

recionada, então, ao setor privado e

para municípios de maior capacida-

de de oferta de serviços especializa-

dos. Para Monnerat et all (2002), o

predomínio da oferta privada de ser-

viços reduz a capacidade do gestor

público de regulação de mercado, o

que somado à ausência de uma es-

tratégia de hierarquização em rede

das bases de serviços resulta em

baixa capacidade resolutiva e inefi-

ciência na alocação de recursos.

Vianna et al (2002), numa avali-

ação comparativa das capacidades

dos municípios em Gestão Plena do

Sistema Municipal de Saúde, de-

monstram que houve significativa

verno central pela indução e regu-

lação do processo de descentraliza-

ção pode ter pouco impacto nos in-

dicadores de oferta e acesso aos ser-

viços, tendo em vista os agudos con-

flitos de ordem federativa num con-

texto de restrição fiscal e de infortu-

nada herança de desigualdades eco-

nô-micas e sociais.

Essa indução dirigida também

pode facilitar os mecanismos levan-

tados no item anterior, já que os

gestores podem se limitar à adesão

A VINCULAÇÃO DOS RECURSOS AOS

PROGRAMAS INCENTIVADOS PELO MINISTÉRIO

DA SAÚDE NÃO PERMITE OREDIRECIONAMENTO PARA OUTROS FINS NA

ÁREA DA SAÚDE ...

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Apontamentos sobre o processo de descentralização na saúde

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 353-364, set./dez. 2005 361

361

evolução, entre os anos de 1998 e

2000, tanto no que se refere à apren-

dizagem institucional, quanto na

melhoria do padrão de provisão de

serviços com a diversificação da

oferta. No entanto, os autores con-

cluem que esse fortalecimento ins-

titucional das bases locais de orga-

nização do SUS na Gestão Plena não

garante a equidade, em virtude de

ausência de relações intermunicipais

institucionalizadas.

É relevante o fato de que mesmo

os municípios com mais autonomia

e maior conjunto de serviços espe-

cializados apresentem significativas

dificuldades de articulação dos ser-

viços de forma a ampliar a integra-

lidade e racionalizar recursos eco-

nômicos e financeiros. Um aspecto

central aí é a relação com o merca-

do de provedores de bens e servi-

ços. Embora tenha se ampliado nos

últimos anos a oferta de unidades

públicas, a rede especializada per-

manece sendo majoritariamente pri-

vada.

Na ausência de uma estratégia

consistente de regulação que possi-

bilite aos entes estatais ordenar a

oferta e integrá-la às políticas locais

e regionais de saúde, a fragmenta-

ção induz à irracionalidade de gas-

tos, multiplicação de procedimentos,

aquisição indevida de bens, incor-

poração tecnológica inade-quada,

entre outros. A literatura sobre des-

centralização da política de saúde

tem negligenciado este aspecto, uma

vez que os estudos são escassos.

Mesmo no caso da regulação de pro-

vedores realizada pela União, os

poucos estudos existentes apontam

uma insuficiência estatal e uma la-

cuna a ser necessariamente exerci-

da. Para Matos e Pompeu, ‘não se

desenvolveu a capacidade de forma-

lização contratual de serviços pri-

vados de saúde por parte do setor

público. ... Compra-se o que o pres-

tador oferece, em detrimento de ser-

viços que se coadunam com as re-

regulação. Como lembram Matos e

Pompeu, um mesmo prestador pode

relacionar-se com os três níveis de

gestão do SUS sem ter contrato com

nenhum deles (2003:639).

A Portaria 399 do Pacto em

Defesa do SUS indica mudança ao

menos parcial nessa relação, ao es-

tabelecer que cada provedor deverá

responder a somente um gestor. Con-

tudo, isso não garante mudança na

regulação desses prestadores.

A descentralização alcançou,

portanto, alterar a estrutura insti-

tucional de muitos sistemas locais,

em especial os de gestão plena, mas

não alcançou alterar a forma de or-

ganização da rede e sua otimização,

pela falência dos mecanismos de

regionalização, pelas restrições or-

çamentárias, que impediram uma

maior ampliação das redes própri-

as, e permanece dependente da lógi-

ca de oferta do setor privado. Essa

dependência reduz a capacidade de

regulação do gestor público, o que,

somado à ausência de hierarquiza-

ção, resulta em baixa capacidade

resolutiva e baixa eficiência na alo-

cação de recursos.

As relações entre o setor público

e o privado ao nível local precisam

ser melhor investigadas e sistema-

tizadas. Embora sejam em linhas

gerais conhecidas, o próprio proces-

so de descentralização gerou novas

regulamentações que demanda-

mtambém dos prestadores novas

formas de intermediação com o se-

tor público. Do mesmo modo, são

ais necessidades da população’

(2003: 637).

A construção de uma estratégia

consistente de regulação do setor

privado adquire um contorno de

maior complexidade à medida que

o processo de descentralização se

aprofunda. Isto porque se ampliam

a divisão de competências e as res-

ponsabilidades sobre os provedores,

podendo levar a indefinições ou

ações superpostas, em virtude da

atual ausência de uma estratégia de

A CONSTRUÇÃO DE UMA ESTRATÉGIA

CONSISTENTE DE REGULAÇÃO DO SETOR

PRIVADO ADQUIRE UM CONTORNO DE MAIOR

COMPLEXIDADE À MEDIDA QUE O PROCESSO DE

DESCENTRALIZAÇÃO SE APROFUNDA.

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LOBATO, Lenaura de Vasconcelos Costa

362 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 353-364, set./dez. 2005

pouco conhecidas as formas de pres-

tação de serviços, compra e venda

de produtos pelo setor de insumos,

equipamentos e fármacos, também

totalmente controladas pelo setor

privado.

Um último ponto aqui diz res-

peito ao problema dos recursos hu-

manos, até hoje sem uma política

nacional implementada, e ponto des-

considerado pelo processo de des-

centralização. A carência, a falta de

incentivo, os baixos salários e a fle-

xibilização das formas de contrata-

ção têm gerado baixa adesão dos

profissionais aos objetivos do SUS,

contribuindo para a baixa qualida-

de e desumanização dos serviços.

Poucos sistemas locais e estaduais

empreenderam planos de carreiras

e salários para a saúde e a maioria

tem privilegiado a contratação de

serviços sem concurso ou através

de cooperativas. A existência de es-

trutura funcional sólida é pré-requi-

sito para a efetividade dos sistemas

sociais. Contudo, as restrições or-

çamentárias e os impedimentos da

lei de responsa-bilidade fiscal têm

impedido a formação dessa estru-

tura.

FORMAS DE ENFRENTAMENTODAS NECESSIDADES DE SAÚDE

Alguns aspectos cruciais da re-

forma sanitária foram timidamente

enfrentados pelo processo de descen-

tralização. Um deles é a predomi-

nância, pelas razões já exploradas,

de um modelo assistencial curati-

vo. A estratégia do Programa Saúde

da Família é apontada como o prin-

cipal mecanismo de alteração desse

modelo. De fato, a expansão da es-

tratégia através do Piso da Atenção

Básica – PAB transformou significa-

tivamente o formato de transferên-

cia de recursos aos sistemas locais

e regionais, trouxe uma série de ino-

vações importantes, não só por es-

tabelecer um simples fator de incen-

tivo à prevenção, mas principalmen-

te por instituir um impulso para a

redefinição do modelo de atenção do

SUS e para o desenvolvimento de

programas inovadores (COSTA E PIN-

TO, 2002). Para estes mesmos auto-

res, a nova estratégia dissociou a

produção do faturamento, rompen-

do com a lógica de pagamento por

volume de produção, que perpetua-

va a estrutura de serviços distorci-

da transmitida pelo modelo anteri-

or e dificultava a implementação

sustentada de inovações nos siste-

mas locais de saúde.

Bodstein (2002) qualifica a ado-

ção do Programa Saúde da Família

como um poderoso mecanismo de

indução utilizado pelo governo fe-

deral para priorizar a atenção bási-

ca. Marques e Mendes (2002) acre-

ditam que um de seus aspectos po-

sitivos é sua potência como meca-

nismo de promoção da saúde e pre-

venção de doenças. Porém, questio-

nam se o Programa está de fato al-

terando o modelo assistencial e se

tem garantido, de forma sistemáti-

ca, o acesso de sua clientela aos

níveis de maior complexidade da

saúde, ou mesmo a desejada uni-

versalização da cobertura. Na ver-

dade, o fato de o Programa Saúde

da Família estar direcionado a po-

pulações pobres pode ser um fator

limitador para seu sucesso como

estratégia de mudança do modelo

assistencial prevalecente, e não há

ainda diretriz clara no sentido de que

ele alcance os setores médios da

população, apesar de seu inequívo-

co potencial de expansão de cober-

tura. A falta de relação com os ní-

veis mais complexos de atenção,

realidade da maioria dos municípi-

os pela forma de gestão em que se

inserem, pode contribuir para essa

limitação.

A entrada do Programa Saúde da

Família nos grandes centros vem

apontar para a necessidade de que

seja revista a relação da área de

saúde com outras áreas sociais.

... O PRÓPRIO PROCESSO DE

DESCENTRALIZAÇÃO GEROU NOVAS

REGULAMENTAÇÕES QUE DEMANDAM ...

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Apontamentos sobre o processo de descentralização na saúde

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 353-364, set./dez. 2005 363

363

Esse é outro aspecto da reforma sa-

nitária que tem merecido pouca

atenção, e que pode comprometer

seu objetivo de pensar e tratar a saú-

de como questão social. A descen-

tralização, apesar de estimular prá-

ticas inovadoras em sistemas mu-

nicipais, onde há espaço efetivo

para ações intersetoriais, pode , na

verdade, haver dificultado a integra-

ção entre políticas, ao induzir práti-

cas determinadas vinculadas a in-

centivos financeiros e não alcançar

alterar o modelo centrado na pro-

dutividade de serviços curativos. As

inovações nesse sentido devem ser

investigadas, já que a premência de

um sistema integrado de proteção

social só é de fato visível no enfren-

tamento da questão social ao nível

local.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Procurou-se aqui, mais do que

apontar de novo os avanços conhe-

cidos do processo de descentraliza-

ção, indicar alguns possíveis pon-

tos de estrangulamento. Como dito,

supõe-se que o modelo de descen-

tralização adotado até então esteja

esgotado, em especial pelos seguin-

tes aspectos:

- a indução, via incentivos finan-

ceiros, ao mesmo tempo em que fere

a autonomia local, limita a respon-

sabilização sobre a condução pró-

pria dos sistemas de saúde e a possi-

bilidade de inovações significativas;

- a pactuação, via instâncias in-

tergestoras, alcançou seu limite

com as limitações decorrentes da

indução através do financiamento,

e elas tendem a se transformar em

burocracias técnicas com baixo im-

pacto na alteração do sistema, além

de disputarem espaço com o controle

social;

- os Conselhos de Saúde encon-

tram-se estagnados em sua função

ao interior do SUS, após o período

de sua institucionalização, em es-

ações e sua resolutividade. Em ou-

tras palavras, a descentralização

privilegia níveis de governo, quan-

do os problemas de saúde e sua so-

lução são territoriais - locais e re-

gionais;

- as necessidades de saúde e sua

articulação com as necessidades

sociais permanecem fora da agenda

da descentralização. Embora no Bra-

sil tenhamos uma visão bastante

avançada da questão social, os sis-

temas de políticas sociais, e o de

saúde entre eles, têm cada vez mais

se voltado para políticas setoriais,

o que faz com que prevaleça na saú-

de um modelo assistencial curativo

de baixa resolutividade, com o ris-

co de termos, em breve, estaciona-

dos os indicadores básicos de saú-

de, quando o impacto da estratégia

de extensão de cobertura via Progra-

ma Saúde da Família tiver se esgo-

tado;

- as possibilidades de expansão

do sistema esbarram nas restrições

financeiras do modelo econômico

vigente, não havendo mais espaço

para o modelo, até aqui bem suce-

dido, de definição de critérios de dis-

tribuição de recursos escassos.

Todos os aspectos levantados

merecem ser aprofundados também

sob a perspectiva do federalismo

brasileiro. Estudo de Stepan (1999)

demonstra que o Brasil estaria no

limite do continuum entre federalis-

mos que estimulam ou restringem

a participação do conjunto dos ci-

dadãos da pólis, situando-se no pólo

pecial por terem sido tratados como

mecanismos acessórios, e não como

centrais no processo de consolida-

ção do SUS;

- a interdependência entre níveis

de governo, base na constituição de

um sistema nacional e único, esbar-

ra nos limites municipais e estadu-

ais, que são preservados pelo finan-

ciamento induzido, impedindo prá-

ticas de gestão regional fundamen-

tais para a expansão da universali-

zação, para a integralidade das

... SUPÕE-SE QUE O MODELO DE

DESCENTRALIZAÇÃO ADOTADO ATÉ ENTÃO

ESTEJA ESGOTADO ...

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LOBATO, Lenaura de Vasconcelos Costa

364 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 353-364, set./dez. 2005

de maior restrição (most demos-

constraining) e, no seu entender, as

instituições federativas são funda-

mentais para a conformação das

políticas públicas. A descentraliza-

ção encontra limites nessa estrutu-

ra federativa; contudo, esse aspecto

tem sido tratado como secundário

pelas políticas setoriais.

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A situação atual e as perspectivas dos sistemas universais de saúde

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 365-370, set./dez. 2005 365

ARTIGOS DE OPINIÃO / OPINION ARTICLES

A situação atual e as perspectivas dos sistemas universais de saúde1

The current situation and prospects of universal health systems

Hans-Ulrich Deppe2

Recebido: Dez./2006

Aprovado: Mar./2007

2 Professor de Sociologia Médica e

Medicina Social, com doutorado no

exterior; J.W. Goethe-Universidade de

Frankfurt /Alemanha.

Email:[email protected]

RESUMO

Há alguns anos, os diferentes sistemas universais de saúde estão sob

grande pressão do modelo econômico neoliberal. A competição global,

desregulamentação, privatização e comercialização têm fortes impactos na

maioria dos sistemas de saúde públicos sem fins de lucro. A questão é se os

sistemas universais podem resistir e/ou se adaptar a esta pressão, ou se

têm que mudar estruturalmente.

PALAVRAS-CHAVE: Sistemas Universais de Saúde; Globalização e Saúde; Saúde

Pública e Mercado.

ABSTRACT

For some years the various universal health care systems have suffered

great pressure from the neoliberal economic model. Global competition,

deregulation, privatization and commercialization have had a strong impact

on most the public health systems without profitable ends. The question is

whether the universal systems can bear and/or adapt to such pressure, or

whether they need to undergo structural changes.

KEYWORDS: Universal Health Systems; Globalization and Health; Public Health

Care and the Market.

1Conferência proferida no 11º Congresso Mundial de Saúde Pública, 21-25 de agosto, 2006,

Rio de Janeiro. Tradução de Heliete Vaitsman.

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DEPPE, Hans-Ulrich

366 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 365-370, set./dez. 2005

1. Ao falarmos sobre a situação

atual dos sistemas universais de saú-

de, devemos falar sobre a situação

atual das sociedades em que se inse-

rem os sistemas de saúde. Hoje, pra-

ticamente todos os países enfrentam

processos de globalização, desregu-

lamentação e privatização – de dife-

rentes intensidades e em níveis dis-

tintos. Isso é o que chamamos de

‘onda neoliberal’! O setor público –

em especial o da universalização da

saúde – se vê muito confrontado, em

cada país, com essas novas circuns-

tâncias.

Globalização – a expansão inter-

nacional da acumulação de capital –

é um conceito amorfo. Alguns auto-

res falam de um novo imperialismo.

Nas duas últimas décadas, o proces-

so de acumulação de capital ganhou

um impulso importante no mundo

inteiro devido ao colapso dos Esta-

dos socialistas e ao desenvolvimento

das forças produtivas, impulsionado

pela tecnologia microeletrônica. A

área mais agressiva no processo de

globalização é o capital financeiro –

apoiado por instituições financeiras

globais como o Banco Mundial, o

Fundo Monetário Internacional (FMI)

e a Organização Mundial do Comér-

cio. Este setor determina, entretanto,

como serão estruturados e como de-

vem agir os outros setores da socie-

dade, para que utilizem como instru-

mentos essenciais créditos financeiros

com condições especiais.

A QUESTÃO SOCIAL ÉMARGINALIZADA NA AGENDA POLÍTICA

E NEGLIGENCIADA DE FORMA

IRRESPONSÁVEL

Essas condições associam-se com

freqüência à privatização da propri-

edade pública. (Em fevereiro,

estive na Turquia, onde soube

que o governo turco recebeu do

Banco Mundial e do FMI um cré-

dito de 10 bilhões de dólares,

com a obrigação de privatizar as

1.600 policlínicas públicas do

país e sua previdência social

pública.) O mercado e a compe-

tição regulamentarão cada vez

mais as relações sociais, com

forma irresponsável. A pobreza au-

mentou em muitas partes do mundo.

Isso também se aplica à presta-

ção de serviços de saúde, um setor

social que é, em geral, controlado e

subsidiado pelo Estado. A dissemina-

ção e a aplicação irrefletida e descon-

trolada de leis e instrumentos econô-

micos a circunstâncias e problemas

não econômicos é descrita como “eco-

nomização”. Sob as condições espe-

cíficas do modelo econômico neolibe-

ral ora dominante, trata-se de uma

comercialização. Neste contexto, acre-

dito ser útil acentuar que o neolibera-

lismo é apenas um modelo – uma

construção – e não uma condição fí-

sica. A pessoa ideal que participa des-

se processo neoliberal é reduzida a

um homo economicus, um indivíduo

naturalmente egoísta que maximiza

seus próprios benefícios. Isso não

constitui uma crítica geral à econo-

mia, mas a negação de sua onipotên-

cia. Não se trata apenas de apontar

uma influência excessiva dos princí-

pios econômicos, porém de verificar

se as ferramentas implementadas são

apropriadas às circunstâncias. Sob as

exigências hegemônicas do capital,

dos mercados e da competição, a so-

ciedade é reduzida a uma mera soci-

edade de mercado. Portanto, é uma

questão importante saber que mode-

lo econômico específico forma a base

da estrutura de poder criada pelo de-

senvolvimento histórico. A atual cir-

cunstância levantou questões funda-

mentais a respeito das estruturas bá-

sicas dos sistemas de saúde e, tam-

uma visão baseada em catego-

r ias da gestão empresarial pe-

netrando e ordenando todos os

nichos sociais. Como o principal

objetivo da gestão empresarial é ob-

ter lucros, uma de suas conseqüênci-

as é o crescimento da instabilidade e

da polarização social em escala mun-

dial – não apenas entre os países ri-

cos e os em desenvolvimento, mas

também no interior dos países ricos.

A questão social é marginalizada na

agenda política e negligenciada de

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A situação atual e as perspectivas dos sistemas universais de saúde

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 365-370, set./dez. 2005 367

O SISTEMA DE SAÚDE É OESPELHO DA SOCIEDADE, REFLETINDO

SUA HISTÓRIA E SEU CARÁTER

bém, a respeito das adaptações tec-

nocráticas de tais estruturas às situ-

ações nacionais. Preocupam-nos, fun-

damentalmente, o desenvolvimento e

a renovação da relação entre saúde,

medicina e sociedade.

Os sistemas de atenção à saúde

não são construções sociais isoladas.

Têm raízes profundas na estrutura, na

cultura e na história de suas socieda-

des. São uma precondição para a paz

social no interior de sociedades con-

traditórias. Em oposição à globaliza-

ção crescente do capital, os sistemas

de saúde têm vínculos sólidos com

os Estados nacionais. A transforma-

ção desses sistemas envolve mais do

que meras transformações tecnológi-

cas. A transformação estrutural dos

sistemas de saúde sempre é o resul-

tado de lutas sociais e políticas – es-

pecialmente nas crises sociais e polí-

ticas. Isso significa que é preciso en-

trar numa disputa por um sistema de

atenção à saúde especial. Em muitas

partes do mundo, os sistemas de saú-

de passaram por mudanças estrutu-

rais após revoluções e guerras, a der-

rota de ditaduras fascistas e milita-

res ou o colapso dos países socialis-

tas. A disputa pelo sistema de saúde

não é uma ação isolada, mas uma

luta permanente. O sistema de saúde

é o espelho da sociedade, refletindo

sua história e seu caráter.

Há, na atualidade, uma preocu-

pação com os custos ascendentes de

todos os sistemas de saúde. É incrí-

vel: se por um lado há na Terra tanto

dinheiro, mais do que jamais houve,

sobretudo nos países ricos, por outro

lado não há dinheiro suficiente para

as necessidades básicas da atenção à

saúde. Trata-se, sobretudo, de uma

questão de distribuição e devemos

reconhecer – mesmo na ciência – que

esta é uma questão de decisão social

e poder político. Quase todos os siste-

mas de saúde são considerados ‘ca-

ros demais’. Foi disseminado o mito

da ‘explosão de custos’. Os custos

para a saúde são vistos unicamente

de política de saúde está mudando.

Ele muda da compensação tradicio-

nal de um risco social, que tem raí-

zes nacionais e recebe financiamento

coletivo, para um fator de respaldo à

acumulação de capital privado glo-

bal. A solidariedade na atenção à saú-

de é solapada por interesses indivi-

duais. É um processo de reindividua-

lização e comercialização.

Sabemos, todavia, que os países

que mais avançaram na transforma-

ção neoliberal de seus sistemas de

saúde não são necessariamente os

‘melhores’. Os Estados Unidos – onde

se desenvolveu o modelo neoliberal –

são o exemplo preferencial, mas não

único, desta regra. Os EUA têm os

gastos mais elevados em saúde, em

comparação com o Produto Interno

Bruto e a renda per capita, e seus

custos de administração são extrema-

mente elevados. A tecnologia médica

é bastante avançada, porém isso não

se reflete nos indicadores de saúde.

Além disso, a disseminação da pobre-

za social nos EUA aumenta a iniqüi-

dade social da prestação de serviços

de saúde. Lá, cerca de 43 milhões de

pessoas não têm cobertura do siste-

ma de saúde; um número ainda mai-

or tem cobertura insuficiente pelos

seguros de saúde; e, enquanto isso,

continua a crescer o total de pessoas

sem qualquer seguro e com cobertu-

ra insuficiente.

2. Neste cenário, são necessários

alguns esclarecimentos e comentári-

como uma carga para o desenvolvi-

mento econômico – à medida que são

uma questão relevante para a posi-

ção do capital na competição econô-

mica global. Atualmente, a política de

saúde é bastante pressionada a obter

recursos financeiros adicionais. A si-

tuação mais comum é que os custos

da atenção à saúde sejam cortados. A

economização dos temas sociais e

médicos chegou nesse meio tempo ao

limite da autodestruição. O conceito

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DEPPE, Hans-Ulrich

368 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 365-370, set./dez. 2005

A ATENÇÃO À SAÚDE É UMA NECESSIDADE

SOCIAL. E A ORGANIZAÇÃO SOCIAL DA ATENÇÃO

À SAÚDE DEVE SER ORIENTADA PARA ESSA

NECESSIDADE - NÃO PARA OUTROS OBJETIVOS

E INTERESSES DETERMINADOS PELO MERCADO

E POR LUCROS

os acerca dos sistemas de atenção

universal à saúde.

A atenção universal à saúde ca-

racteriza um sistema de saúde em que

todos os residentes de determinado

país têm acesso a cuidados de saúde,

independentemente da condição mé-

dica que apresentem. Neste caso, a

medicina é orientada para a necessi-

dade – aquilo que é necessário do

ponto de vista médico. A maioria dos

sistemas universais de saúde é finan-

ciada principalmente pelas arrecada-

ções tributárias, a exemplo da Dina-

marca, Suécia e Canadá. Se os siste-

mas universais de saúde são financi-

ados sobretudo por impostos, deve-

mos observar qual é a estrutura da

política fiscal nacional e a quem ela

favorece ou discrimina. Devemos ob-

servar se essa política baseia-se em

princípios de solidariedade ou se res-

palda privilégios. Outros países, como

a Alemanha, a França e o Japão têm

um sistema de saúde universal em

que a atenção à saúde é financiada

por contribuições privadas e públicas.

Os sistemas universais variam no to-

cante à cobertura dos serviços, que

pode ser completa, parcial ou inexis-

tente.

3. Com base em tais considerações

e fatos, é importante repensar alguns

princípios básicos de como a socie-

dade lida com a doença e a saúde.

Saúde ou doença não podem ado-

tar totalmente o caráter de produto.

Nossas pesquisas mostram que não

existe sistema de saúde no mundo que

seja organizado exclusivamente com

base em princípios mercadológicos.

Isso se deve, entre outras, às seguin-

tes peculiaridades:

• A saúde é um bem existencial.

É um valor de uso, que em nossas

sociedades é coletivo e público (simi-

lar ao ar, à água potável, à educa-

ção, à segurança no trânsito e à se-

gurança jurídica). A atenção à saúde

é uma necessidade social. E a orga-

nização social da atenção à saúde

doença, ou o tipo de tratamento ade-

quado a ela. À doença não correspon-

de a regulamentação individual iso-

lada, já que ela é um risco de vida

coletivo.

• A soberania do consumidor do

sistema de saúde é muito limitada.

• O paciente que procura trata-

mento é confrontado com o monopó-

lio do saber médico, o que gera o do-

mínio da oferta.

• A procura do paciente por as-

sistência médica é, fundamentalmen-

te, não específica. É a competência de

um especialista que primeiro define e

especifica a procura. Há uma diferen-

ça essencial entre a competência e a

informação do médico e do paciente.

Os profissionais médicos têm um

grande poder discricional na determi-

nação de indicações, bem como de

medidas diagnósticas e terapêuticas.

Podemos imaginar o que significa

médicos serem empresários ou traba-

lharem cumprindo esse papel.

• E, por último, mas não menos

importante: o paciente se encontra

numa posição vulnerável de incerte-

za, fraqueza, dependência e necessi-

dade, não raro associada ao medo e

à vergonha.

Essa breve descrição da relação

entre mercado e paciente demonstra

que a proteção pública é necessária.

Tudo indica que os mecanismos da

oferta e procura não se aplicam à pres-

tação dos serviços de saúde. O siste-

ma de atenção à saúde é, por conse-

guinte, um exemplo da teoria do fra-

deve ser orientada para essa necessi-

dade – não para outros objetivos e in-

teresses determinados pelo mercado

e por lucros.

• O indivíduo não pode decidir

renunciar à doença – como pode fa-

zer em relação aos bens de consumo.

• O paciente não sabe quando e

por que ficará doente, nem sabe que

doença o acometerá no futuro. O pa-

ciente não tem a capacidade de deter-

minar a duração e o momento de sua

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A situação atual e as perspectivas dos sistemas universais de saúde

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 365-370, set./dez. 2005 369

O LUCRO ECONÔMICO

TENDE A SUPRIMIR A NECESSIDADE MÉDICA,QUE DEVERIA SER O PRINCIPAL CRITÉRIO PARA

O TRABALHO DOS MÉDICOS

casso do mercado em economia. As

competências distributivas do merca-

do são, neste caso, insuficientes. O

mercado é uma força cega sem orien-

tação e é preciso dar-lhe direções e

objetivos. O Estado, representação

democrática da sociedade, tem, des-

se modo, responsabilidades importan-

tes, devendo ser políticas as decisões

sobre os rumos a tomar.

4. No âmbito dos modelos econô-

micos atuais, há diferenças entre a

racionalidade microeconômica e a

racionalidade macroeconômica. O que

mais interessa aos negócios não é

necessariamente o que melhor atende

à economia como um todo. Com efei-

to, os interesses das duas dimensões

costumam ser contraditórios, o que

se mostra especialmente em casos

como a proteção ambiental ou a in-

dústria atômica. A atual expansão da

racionalidade microeconômica traz

consigo, com freqüência, um enorme

desperdício de recursos da socieda-

de. A empresa singular evita os cus-

tos sociais associados, até que a so-

ciedade intervém nos aspectos macro-

econômicos, sociais ou ecológicos.

Pode-se observar esse fenômeno até

mesmo no sistema de atenção à saú-

de. Por exemplo, a transferência de

custos do setor ambulatorial para o

hospitalar pode ser vantajosa para

determinada instituição, embora seja

mais dispendiosa se analisada de

uma perspectiva mais ampla. Como

observam os economistas da saúde,

de maneira sarcástica, porém argu-

ta, de acordo com a perspectiva mi-

croeconômica e de racionalidade da

gestão empresarial, serviços de saú-

de ineficazes ou até mesmo causado-

res de riscos podem produzir os mes-

mos lucros que serviços eficazes e

úteis.

5. Na atualidade, os Sistemas Uni-

versais de Atenção à Saúde sofrem

enorme pressão. Em quase todas as

áreas do sistema de saúde, busca-se

Qual é, com base em pesquisas

teóricas e empíricas, minha mensa-

gem?

Esse conjunto de problemas leva

à conclusão de que uma sociedade

deve ter setores protegidos, orienta-

dos para o bem-estar comum, que não

podem ser confiados à força cega do

mercado nem ao poder desregulamen-

tador da competição. Acredito profun-

damente que há em nossas socieda-

des setores relevantes que não devem

ser privatizados nem comercializados,

pois isso irá contrariar e destruir os

valores humanos e sociais dessas

mesmas sociedades. Devemos respei-

tar e manter áreas em que a comuni-

cação e a cooperação não sejam co-

mercializadas e os serviços não te-

nham caráter de produto.

Tais setores protegidos relacionam-

se à maneira de tratar os grupos vul-

neráveis (crianças, idosos, pacientes

psiquiátricos, etc.), e a objetivos so-

ciais vulneráveis, tais como solidari-

edade e eqüidade, ou a estruturas de

comunicação vulneráveis – em espe-

cial aquelas com base em confiança,

como a relação médico-paciente. Es-

ses setores sociais protegidos consti-

tuem, sem dúvida, o alicerce de um

modelo social humano. Tal qualida-

de deve ser aceita e conquistar de novo

a hegemonia na sociedade civil. A

quantidade, a magnitude e a exten-

são de tal rede de segurança voltada

para o bem-estar dependem das for-

ças vivas das organizações políticas

e movimentos sociais de massa que

com grande afã a possibilidade de

aplicação de esquemas mercadológi-

cos auto-reguladores, competição eco-

nômica e marcos microeconômicos.

Assim, o lucro econômico tende a

suprimir a necessidade médica, que

deveria ser o principal critério para o

trabalho dos médicos. Trata-se de uma

mudança do tradicional paradigma

médico, que passa da atenção a uma

necessidade para atenção como cam-

po de acumulação de capital.

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DEPPE, Hans-Ulrich

370 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 365-370, set./dez. 2005

articulam a disposição e a consciên-

cia da população.

De maneira nenhuma os campos

da doença e da saúde são fenômenos

periféricos ou marginais à sociedade.

Com efeito, o direito à saúde é um

direito humano. Às vezes, a instru-

mentalização cínica de valores soci-

ais básicos por interesses privados

disfarçados conduz à errônea suposi-

ção de que o desrespeito aos direitos

humanos é o que lhes dá significado.

Acredito, contudo, que não se de-

vem comercializar os direitos huma-

nos; eles não se prestam a ser objeto

de marketing, sob pena de ter seu sig-

nificado destruído. E isso vale para a

saúde em geral – o que se formula

como palavra de ordem política e ci-

entífica: Saúde não é mercadoria! Saú-

de não está à venda!

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Da reforma do Estado à reforma da gestão hospitalar federal: algumas considerações

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 371-381, set./dez. 2005 371

ARTIGOS DE OPINIÃO / OPINION ARTICLES

Da reforma do Estado à reforma da gestão hospitalar federal: algumasconsideraçõesFrom state reform to the reform of federal hospital administration: someconsiderations

Lenir Santos1

Recebido: Dez./2006

Aprovado: Mar./2007

1 Advogada, especialista em direito sani-

tário Membro do Instituto de Direito Sani-

tário Aplicado – IDISA

www.idisa.org.br

E-mail: [email protected]

RESUMO

O presente trabalho tece considerações a respeito da Reforma Adminis-

trativa do Estado inconclusa a partir da EC19/98. Estuda dois institutos

ali previstos que são: a possibilidade de o Estado criar fundações públicas

de direito privado a partir de uma autorização legislativa – art. 37, XIX, e

o contrato de autonomia previsto no art. 37, § 8º da CF. Propõe-se, ainda,

criar um regime administrativo para essas fundações que permita maior

agilidade e resultados qualitativos, além de estabelecer um liame com os

hospitais públicos que poderiam, de maneira mais consentânea com o

bem protegido que é a vida humana, serem mais efetivos e eficientes ao

adotarem esse modelo jurídico fundacional.

PALAVRAS-CHAVE: Saúde pública; administração pública; fundação estatal.

ABSTRACT

This paper offers some considerations regarding the unfinished State

Administration Reform based on EC19/98. It studies two institutes set

forth therein, which are: the possibility of the State creating public

foundations under civil law based on legislative authorization - art. 37,

XIX, and the contract of autonomy set forth in art. 37, § 8º of the Federal

Constitution. A proposal is also made for the creation of an administrati-

ve regime for these foundations that allow greater agility and qualitative

results, besides establishing a connection with the public hospitals that

could, in a manner that is more coherent with protecting human life, be

more effective and efficient by adopting this legal model as a basis.

KEYWORDS: Public health; public administration; state foundations.

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SANTOS, Lenir

372 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 371-381, set./dez. 2005

INTRODUÇÃO

A consagração do direito à saú-

de na Carta Constitucional de 1988

foi uma conquista da sociedade bra-

sileira no campo dos direitos soci-

ais, tendo sido o resultado da luta

empreendida pelos ideólogos da

Reforma Sanitária durante muitos

anos antes.

O direito à saúde, como direito

público subjetivo, implica na garan-

tia pelo Estado da adoção de políti-

cas públicas que evitem o risco de

agravo à saúde, devendo ser consi-

deradas, nesse contexto, todas as

condicionantes da saúde, como

meio ambiente saudável, renda, tra-

balho, saneamento, alimentação,

educação bem como a garantia de

ações e serviços de saúde que pro-

movam, protejam e recuperem a

saúde individual e coletiva. Para a

garantia dessas ações e serviços

temos o Sistema Único de Saúde.

Dentre os serviços que incumbem

aos órgãos e entidades que com-

põem o Sistema Único de Saúde es-

tão os serviços hospitalares, hoje,

um dos problemas do sistema pú-

blico de saúde, principalmente no

que se refere a sua gestão que não

se modernizou nem conseguiu ca-

pacitar profissionais para gerir a

complexidade de um sistema hos-

pitalar que está fortemente marca-

do pela inovação tecnológica e prá-

ticas empreendedoras.

A administração pública tem

baixa capacidade operacional, fra-

co poder decisório, controles essen-

cialmente formais e sem qualidade

e influências políticas externas. As-

sim, a finalidade da administração

passou a ser os meios e seus pro-

cessos e não os fins. Tal contexto se

reflete na gestão hospitalar públi-

ca dificultando uma política de in-

corporação tecnológica, informati-

A CRISE DO ESTADOE A SUA REFORMA

É importante lembrar que a cri-

se do Estado e a necessidade de sua

reforma surgiram, na realidade, nos

anos 80, nos países centrais. Foi a

crise do Estado-Providência ou do

Estado de Bem-Estar Social. Era ne-

cessário diminuir custos sociais

(porque nesses países o Estado sem-

pre investiu muito em serviços pú-

blicos de saúde, educação, habita-

ção etc.), combater a ineficiência pú-

blica e os excessos e rever o tama-

nho do Estado.

No Brasil, a crise do Estado sur-

giu nos anos 90 e não foi a do Esta-

do-Providência, porque ele nunca

chegou a existir. O próprio direito à

saúde, bem como a garantia de ou-

tros direitos sociais, são conquis-

tas mais recentes, datada de 1988,

com a Constituição-cidadã.

A crise do Estado no nosso país

foi muito mais uma crise de gestão

e de qualidade, sem se esquecer que

o Estado nunca deixou de tentar mi-

nimizar os custos da Constituição

de 88 com os direitos sociais, mui-

tos deles de caráter universal e gra-

tuito, oneroso, pois, para os cofres

públicos. A intenção de enxugar o

tamanho do Estado sempre esteve

presente, e se iniciaria com a trans-

ferência dos serviços não exclusi-

vos, como saúde, educação, cultu-

ra, para entidades privadas1.

zação, modernização administrati-

va e gestão de recursos humanos

comprometidos com o serviço pú-

blico. Na maioria dos hospitais pú-

blicos falta gestão capaz, eficiente,

moderna e humana; esses serviços,

muitas vezes, tem alto custo e bai-

xo resultado.

NA MAIORIA DOS HOSPITAIS PÚBLICOS FALTA

GESTÃO CAPAZ, EFICIENTE, MODERNA EHUMANA; ESSES SERVIÇOS, MUITAS VEZES,

TEM ALTO CUSTO E BAIXO RESULTADO

1 Pregava-se nos anos 90, a transferência para o setor público não estatal dos serviços não exclusivos do Estado, transformando entespúblicos em organizações sociais, ou seja, em entidades de direito privado, sem fins lucrativos, com autorização para celebrar contratode gestão com o Poder Executivo. Propunha-se uma diminuição do tamanho do Estado, com o fim de provê-lo de maior eficiência e comoas organizações sociais seriam diversas geraria entre elas saudável competição (Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado).

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Da reforma do Estado à reforma da gestão hospitalar federal: algumas considerações

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 371-381, set./dez. 2005 373

Contudo, a Reforma Bresseriana

dos anos 902 visou muito mais le-

var para o Terceiro Setor, sob regu-

lação estatal, a realização de servi-

ços públicos, ao invés de introdu-

zir modernos processos de gestão

no interior da administração públi-

ca, eivada de problemas já identifi-

cáveis, como excesso de controles,

ineficiência, limitados resultados e,

ainda, inadequada gestão de recur-

sos humanos, baixos salários,

amarras burocráticas desqualifica-

das, não capacitação de servidores

e fraco engajamento com a quali-

dade dos serviços executados.

Não se pensou em reestruturar

o Estado, com bem assevera Adria-

na da Costa Ricardo Shier, com a

intenção de adequá-lo, tornando-o

uma “instituição que efetivamente

assegurasse os mínimos direitos

capazes de garantir a sobrevivên-

cia digna dos cidadãos; ao invés,

preferiu-se, mais uma vez na histo-

ria, conceder tal tarefa ao merca-

do, à iniciativa privada. Optou-se

pela diminuição do Estado em re-

lação ao atendimento de demandas

sociais.”(SHIER, 2002 , p. 136)

Isso tudo levou a administração

pública a buscar mecanismos pa-

ralelos ao Estado para se safar da

imobilidade burocrática, dos baixos

salários e da retração de ingresso

de servidor no serviço público.Na

maioria das vezes, infelizmente,

somente as entidades e órgãos pú-

blicos que atuaram com entidades

paralelas conseguiram manter qua-

lidade nesses serviços3. Foi a era das

fundações de apoio, das cooperati-

vas de trabalhadores, das terceiri-

zações ilegais etc.; o próprio TCU,

no recente Relatório - Acórdão 1193/

2006-Plenário reconheceu que o

imobilismo e as amarras da admi-

nistração pública empurrou o ges-

aprimoramento da eficiência, eficá-

cia e efetividade, em consonância

com o previsto no Plano Diretor da

Reforma do Estado”(BRASIL,

2005b). Essas medidas tinham por

objetivo adequar o Poder Público ao

acordo que seria firmado com o

Fundo Monetário Internacional –

FMI (ajuste fiscal 5.7.99). A medida

mais importante, no que diz respei-

to à saúde pública, foi a redução

do gasto com a folha salarial de

todo o funcionalismo, fator que con-

tribuiu para a baixa expressiva no

quantitativo de profissionais da

área da saúde nos hospitais públi-

cos federais, situados no Município

do Rio de Janeiro”. (BRASIL, 2005b).

O Governo FHC arrochou os sa-

lários dos servidores públicos fede-

rais, no que foi acompanhado pe-

los Estados; o descalabro de con-

tratações de consultores por orga-

nismos internacionais para atuar na

administração pública federal, em

funções, desde as mais singelas às

de maior complexidade, com pro-

fissionais com mais de 10 anos atu-

ando mediante contrato de consul-

toria (que levou o Ministério Públi-

co a realizar Termo de Ajuste de

Conduta com o governo federal para

a realização de concurso público),

tudo isso reforçou os desvios já exis-

tentes na administração pública e

tor público para aliar-se a mecanis-

mos externos ao Estado para viabi-

lizar-se: “13. Exposto este quadro,

percebe-se que há exaustão do mo-

delo jurídico adotado para essas

unidades, situadas na órbita da

Administração Direta, que impossi-

bilita a adoção de mecanismos de

...A REFORMA BRESSERIANA DOS ANOS 90VISOU MUITO MAIS LEVAR PARA O TERCEIRO

SETOR, SOB REGULAÇÃO ESTATAL, AREALIZAÇÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS, AO INVÉS

DE INTRODUZIR MODERNOS PROCESSOS DE

GESTÃO NO INTERIOR DA ADMINISTRAÇÃO

PÚBLICA...

2 Em 1995, foi lançado pelo Ministro Bresser Pereira, o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, o qual, buscou, na realidade, criarfiguras novas no Terceiro Setor, as quais deveriam se transformar em espaço público não estatal. Foram criadas pelas Leis ns. 9637/98e 9790/99 as Organizações Sociais e as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, ao lado das Agencias Executivas.3 A que preço essas entidades paralelas ajudaram a gerir o serviço público de maneira mais eficaz? Estamos em plena crise da FundaçãoZerbini, tida como modelo de eficiência, modelo de gestão ao custo de uma dívida de mais de R$250 milhões de reais, conforme veiculadopela imprensa nesses últimos meses (VERBA, 2006).

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SANTOS, Lenir

374 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 371-381, set./dez. 2005

ocasionou uma paralisia na moder-

nização do serviço público, com

graves conseqüências para a popu-

lação usuária.

Não podemos negar que a Re-

forma do Estado nos dias de hoje

não poderá deixar de considerar o

Terceiro Setor como um espaço de

interesse público fora do Estado,

complementar ao Estado, mas não

substitutivo dele. Mas não podemos

nos esquecer que também o Tercei-

ro Setor, na saúde, tem suas maze-

las, falta de eficiência, qualidade,

modernização, precisando, também,

se qualificar.

Boaventura Souza Santos4 repor-

ta a esse tema ao afirmar que a

substituição e a complementarida-

de entre o Terceiro Setor e o Estado,

quando se funda na discussão en-

tre as funções do Estado exclusivas

e as não exclusivas, devendo o Es-

tado ser substituído em tudo aqui-

lo que não for de sua exclusividade

é altamente problemática, principal-

mente pelo fato de que

(...)nenhuma das funções do Esta-

do foi originalmente exclusiva dele; a

exclusividade do exercício de funções

foi sempre o resultado da luta política.

Não havendo funções essencialmente

exclusivas não há, por implicação, fun-

ções essencialmente não exclusivas

(SANTOS, 1998).

Concluindo, a Reforma do Esta-

do do final dos anos 90 somente

cuidou de retirar do Estado ativi-

dades consideradas não exclusivas

e transpassá-las para o Terceiro Se-

tor, principalmente as da área da

saúde, sem, contudo, trazer para si

a discussão de uma reforma admi-

nistrativa que desse conta de me-

implementadas e que serão objeto

deste trabalho. Visava a EC 19

amortecer o endurecimento da ad-

ministração pública.

A REFORMAADMINISTRATIVA DA EC 19/98

A Reforma Administrativa – EC

19/98 – trouxe, dentre outras, al-

gumas inovações, como: a) térmi-

no do regime jurídico único, possi-

bilitando à administração a escolha

do regime da CLT e não apenas o

estatutário; b) garantia de estabili-

dade apenas aos servidores deten-

tores de cargo público efetivo pro-

vido por meio de concurso; c) ga-

rantia de os órgãos e entes da ad-

ministração pública, direta e indi-

reta, gozarem de maior autonomia

gerencial, orçamentária e financei-

ra mediante contrato firmado entre

os administradores e o poder públi-

co; d) criação de fundação gover-

namental de direito privado, medi-

ante autorização legislativa.

Vamos nos deter apenas ‘no con-

trato de autonomia’, mencionado no

§ 8º do art. 37 e na ‘fundação go-

vernamental de direito privado’, pre-

vista no inciso XIX do art. 37 da CF,

lhorar o emperramento da máqui-

na pública, com alargamento dos

horizontes de sua gestão.

Não obstante a pouca atenção

aos melhoramentos internos da ad-

ministração pública, a EC 19/98 –

Reforma Administrativa - introdu-

ziu algumas inovações no Texto

Constitucional, as quais não foram

...A REFORMA DO ESTADO DO FINAL DOS

ANOS 90 SOMENTE CUIDOU DE RETIRAR DO

ESTADO ATIVIDADES CONSIDERADAS NÃO

EXCLUSIVAS E TRANSPASSÁ-LAS PARA OTERCEIRO SETOR, PRINCIPALMENTE AS DA

ÁREA DA SAÚDE...

4 A Reinvenção Solidária e Participativa do Estado – Boaventura Souza Santos – artigo publicado pelo Seminário Internacional Sociedadee a Reforma do Estado. (SANTOS, 1998).

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Da reforma do Estado à reforma da gestão hospitalar federal: algumas considerações

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 371-381, set./dez. 2005 375

denominada doravante de ‘fundação

estatal’5, instrumentos que podem

modernizar a gestão da saúde.

DO CONTRATODE AUTONOMIA

Nos últimos anos a administra-

ção pública vem abrindo espaço

para “atuações administrativas ins-

trumentalizadas por técnicas contra-

tuais, decorrentes de consenso, acor-

do, cooperação, parcerias firmados

entre a Administração e particula-

res ou entre órgãos públicos e enti-

dades estatais” (MEDAUAR, 2005).

Tanto que o contrato de gestão – que

surgiu nos anos 90, no Governo

Collor, pelo Decreto 137/916 – tem

sido amplamente utilizado no âm-

bito da administração pública nas

relações que mantém com as Orga-

nizações Sociais, com o Serviço

Social Autônomo, com as agências

reguladoras, agências executivas7 e

com empresas estatais.

Entretanto, o contrato de gestão

tem sido um instrumento muito mais

de controle das organizações soci-

ais ou de fixação de responsabili-

dades e metas públicas do que de

expansão da autonomia dos entes e

órgãos públicos.

O contrato do § 8º do art. 37 tem

por objeto o ‘alargamento da auto-

nomia’ como meio para se alcan-

çar a melhoria da gestão de órgão

ou ente público e fixação clara de

responsabilidades do administrador

da Fundação das Pioneiras Sociais,

o do Grupo Hospitalar Conceição,

cuidam tão somente da fixação de

metas, avaliação de desempenho e

outros compromissos, sem flexibi-

lização da gestão.

O contrato de gestão não amplia

a autonomia, mas sim, especifica

metas e responsabilidades, critéri-

os de avaliação do ente público ou

privado, sem, contudo, conferir

maior autonomia gerencial, finan-

ceira ou patrimonial, muitas vezes,

essenciais para a obtenção de resul-

tados qualitativos na prestação de

serviços públicos.

O § 8º do art. 37 da CF que reza

que mediante contrato a ser firma-

do entre o Poder Público e seus ad-

ministradores poderão ser amplia-

das as autonomias gerencial, orça-

mentária e financeira de entidades

e órgãos da administração direta e

indireta, devendo a lei definir o pra-

zo de duração do contrato; os con-

troles e critérios de avaliação de

desempenho, direitos, obrigações e

responsabilidades de seus dirigen-

tes e remuneração de pessoal.público; já o contrato de gestão uti-

lizado pela administração, como o

O CONTRATO DE GESTÃO NÃO AMPLIA AAUTONOMIA, MAS SIM, ESPECIFICA METAS E

RESPONSABILIDADES, CRITÉRIOS DE AVALIAÇÃO

DO ENTE PÚBLICO OU PRIVADO, SEM,CONTUDO, CONFERIR MAIOR AUTONOMIA

GERENCIAL, FINANCEIRA OU PATRIMONIAL...

5 Em abril de 2005, a pedido de dirigentes do Grupo Hospitalar Conceição, de Porto Alegre, ente federal, realizei estudos para transformaraquelas entidades em fundação governamental de direito privado. Em outubro do mesmo ano, apresentei o resultado dos estudos numaoficina de trabalho organizada pelo Ministério do Planejamento, Projeto EuroBrasil 2006, Secretaria de Gestão, para discutir novasformas de gestão hospitalar. A partir daí, tanto o Ministério do Planejamento quanto o Ministério da Saúde decidiram aprofundar osestudos sobre o modelo de Fundação Governamental de direito privado (Fundação Estatal) proposta por mim para o Grupo HospitalarConceição, criando grupos de trabalho. Também venho participando, informalmente, como colaboradora, do grupo de trabalho doMinistério do Planejamento, Secretaria de Gestão, composto por Sábado Girard e Valéria Alpino Bigonha Salgado.6 O Decreto 137/91 definia o contrato de gestão como “instrumento do Programa de Gestão das Empresas Estatais – PGE, no qual seestipulam compromissos reciprocamente assumidos entre a União e a Empresa”. Esse contrato objetivava o aumento da eficiência ecompetitividade das empresas estatais.7 Abrindo um parêntese, as Agências executivas, criadas pelo art. 51 e 52 da Lei 9.649/98 são autarquias e fundações públicas que podem,por decreto do Presidente da República, ser qualificadas como agência executiva desde que tenham plano estratégico de reestruturaçãoe desenvolvimento institucional e celebre contrato de gestão com o Ministério supervisor, gozando, assim, de maior autonomia. Entretan-to, nenhum decreto pode ultrapassar os limites da lei que criou o ente qualificado como agencia executiva, garantindo-lhe autonomiamaior que a lei que a o criou. Decreto presidencial não pode expandir limites legais. As flexibilidades devem estar previstas em lei, comoacontece com a Lei 8.666 que ampliou o valor percentual de dispensa de licitação para as agências executivas.

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SANTOS, Lenir

376 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 371-381, set./dez. 2005

Vê-se, desde logo, a diferença

entre o contrato de gestão e o con-

trato mencionado no § 8º do art. 37

‘o qual claramente refere-se à am-

pliação de autonomia gerencial, fi-

nanceira e orçamentária de uma das

partes contratante’.

Não há, ainda, no nosso país,

lei definindo o ‘contrato de autono-

mia’. No direito Português, o Decre-

to-Lei nº 115-/988, de 4 de maio,

aprova o regime de autonomia, ad-

ministrativa e de gestão dos esta-

belecimentos públicos de educação

pré-escolar, ensinos básico e secun-

dário. O contrato de autonomia por-

tuguês é definido como

o acordo celebrado entre a escola, o

Ministério da Educação, a administra-

ção municipal e, eventualmente, outros

parceiros interessados, através do qual

se definem objectivos e se fixam as con-

dições que viabilizam o desenvolvimen-

to do projecto educativo apresentado pe-

los órgãos de administração e gestão

de uma escola ou de um agrupamento

de escolas (BRASIL, 1998).

Sua finalidade é melhorar o de-

sempenho do serviço público de

educação mediante uma série de

autonomias e permitir que a admi-

nistração pública adote regras cla-

ras de responsabilização pelo con-

trato de autonomia. Reza o citado

Decreto-lei que

(...) se por um lado, a administra-

ção e gestão obedecem a regras funda-

mentais que são comuns a todas as es-

colas, o certo é que, por outro lado, a

configuração da autonomia determi-

na que se parta de situações concretas

distinguindo os projectos educativos e

as escolas que estejam mais aptas a as-

sumir, em grau mais elevado, essa au-

nho para o órgão ou entidade, a sua

duração, controles, critérios de ava-

liação de desempenho, direitos,

obrigações e responsabilidade dos

dirigentes e remuneração de pesso-

al.

A lei que dispuser sobre o con-

trato de autonomia, há que disci-

plinar todos esses elementos e con-

ferir aos administradores públicos

de órgãos (por não serem dotados

de personalidade jurídica própria)

poderes para firmar o contrato com

o Poder Público ou ‘uma competên-

cia especial’, no dizer de Silva

(2007)

(...) que lhes permita celebrar o con-

trato, que talvez não passe de uma es-

pécie de acordo-programa. Ainda, con-

forme o ilustre professor, a Constitui-

ção criou uma forma de contrato ad-

ministrativo inusitado entre adminis-

tradores de orgãos do poder público com

o próprio poder público, cabendo ao le-

gislador ordinário disciplinar a maté-

ria.

Tal lei poderá inovar garantindo

ao administrador que firmar o con-

trato de autonomia, dentre direitos

e responsabilidades mencionados no

texto constitucional, a sua perma-

nência frente ao órgão (mandato),

por um determinado prazo, que pode

tonomia, cabendo ao Estado a respon-

sabilidade de garantir a compensação

exigida pela desigualdade de situações

(BRASIL, 1998)9.

O contrato de autonomia – um

contrato inusual na administração

– deverá fixar metas de desempe-

O CONTRATO DE AUTONOMIA – UM

CONTRATO INUSUAL NA ADMINISTRAÇÃO –DEVERÁ FIXAR METAS DE DESEMPENHO PARA O

ÓRGÃO OU ENTIDADE, A SUA DURAÇÃO,CONTROLES, CRITÉRIOS DE AVALIAÇÃO DE

DESEMPENHO, DIREITOS, OBRIGAÇÕES ERESPONSABILIDADE DOS DIRIGENTES E

REMUNERAÇÃO DE PESSOAL

8 Alterado pela Lei Portuguesa 24/99.9 O contrato de autonomia português prevê duas fases do processo de desenvolvimento da autonomia, conforme negociação prévia entrea escola e a administração pública. Na primeira fase, concede-se gestão flexível do currículo, adoção de normas próprias sobre horários,tempos letivos, intervenção no processo de seleção de pessoal, gestão e execução orçamentária, possibilidade de autofinanciamento egestão de outras receitas.

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Da reforma do Estado à reforma da gestão hospitalar federal: algumas considerações

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ser o do contrato; poderá, ainda, no

tocante às responsabilidades, impe-

dir a ocupação daquele administra-

dor de outros cargos de direção, por

determinado período, no caso de des-

cumprimento injustificado do con-

trato, com prejuizo publico.

Poderá, ainda, vincular as ques-

tões relativas a remuneração de

pessoal à economia de recursos or-

çamentários, os quais poderão ser

destinados ao pagamento de prêmio

de produtividade ao seu pessoal,

conforme disposto no art. 39, § 7º

da CF. O legislador haverá de ino-

var ao disciplinar esse dispositivo

constitucional, criando um novo

modelo de contrato administrativo

que garanta melhor desempenho aos

órgãos e entes públicos.

DA FUNDAÇÃO ESTATALCOM PERSONALIDADE

JURÍDICA DE DIREITO PRIVADO

Não é de hoje a discussão que

se trava no mundo jurídico sob a

personalidade jurídica das funda-

ções instituídas pelo Estado. A Cons-

tituição mencionou as fundações

públicas em vários dispositivos,

tendo causado mais confusão do

que solução para os díspares enten-

dimentos sobre a personalidade ju-

rídica das fundações.

Sem adentrar nesse campo com

maior profundidade, como diversos

autores já o fizeram exaustivamen-

te, podemos dizer de maneira sinté-

tica que a doutrina se divide entre

os que entendem que as fundações

instituídas pelo Poder Público po-

dem ser de direito privado ou pú-

blico, conforme dispuser a lei auto-

rizativa10 e aqueles que advogam

que todas as fundações quando ins-

tituídas pelo Poder Público sempre

serão de direito público. Há, ainda,

privado como pelo direito público,

conforme a lei dispuser, passaremos

a demonstrar que hoje, as funda-

ções estatais regidas pelo direito

privado podem ser um modelo de

entidade governamental com maior

autonomia e de grande utilidade

para a prestação de serviços públi-

cos não exclusivos do Estado, ou

seja, serviços públicos da área so-

cial, ‘em especial, os serviços de

saúde’.

O inciso XIX do art. 37 da Cons-

tituição reza que “somente por lei

específica poderá ser criada autar-

quia e autorizada a instituição de

empresa pública, sociedade de eco-

nomia mista e de fundação, caben-

do à lei complementar, neste últi-

mo caso, definir as áreas de sua

atuação”. (BRASIL, 1988). Antes da

EC 19/98 a redação desse dispositi-

vo constitucional mencionava que

“somente por lei específica poderá

ser ‘criada autarquia e fundações

públicas’ (grifo nosso)”. A EC 19 fez

duas alterações no texto anterior,

incluindo ao lado da empresa pú-

blica e da sociedade de economia

mista as fundações, as quais, do-

ravante, dependem apenas de lei

autorizativa e não de lei instituido-

ra, tendo ainda, retirado da expres-

são fundação a qualificação “publi-

ca”. (BRASIL, 1998).

administrativistas, como Meirelles

(1998), que sempre defendeu a fun-

dação estatal como de direito pri-

vado.

Entendendo que a melhor dou-

trina está com aqueles que admi-

tem fundações governamentais ou

estatais regidas tanto pelo direito

NÃO É DE HOJE A DISCUSSÃO

QUE SE TRAVA NO MUNDO JURÍDICO SOB APERSONALIDADE JURÍDICA DAS FUNDAÇÕES

INSTITUÍDAS PELO ESTADO

10 Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Odete Medauar, Jose dos Santos Carvalho Filho, Carlos Ari Sundfeld entendem que as fundaçõesinstituídas pelo Poder Público podem ser de direito publico ou de direito privado, conforme dispuser a lei autorizativa; Celso AntonioBandeira de Mello defende posição antagônica entendendo que as fundações instituídas pelo Poder Público sempre serão de direitopublico. O entendimento do STF é de que tanto pode haver fundação governamental de direito público como de direito privado, dependen-do de como a lei autorizativa ordenou a sua criação. (RE nº 101.126-RJ, Relator o Min Moreira Alves - RTJ 113/314; Ellen Gracie – Agravoem RE 219.900-1 RS 2002; e Eros Roberto Grau – MS 24.427-5 - 2006).

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SANTOS, Lenir

378 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 371-381, set./dez. 2005

Três são as novidades dessa re-

gra constitucional – em relação ao

texto original – (a) criação de fun-

dação por lei autorizativa; (b) su-

pressão da expressão “pública” que

acompanhava a fundação; e (c) ne-

cessidade de lei complementar dis-

pondo sobre o campo de atuação

das fundações.

A Constituição ao afirmar que as

fundações somente necessitam de lei

autorizativa, cabendo ao Executivo

a sua instituição, reconheceu a pos-

sibilidade de essas entidades, ao

serem criadas pelo Estado, gozarem

de personalidade jurídica de direito

privado, ou seja, ser instituída de

acordo com o regime do Código Ci-

vil (mediante escritura pública re-

gistrada no Cartório competente e

regida pelos seus estatutos aprova-

dos por decreto).

Quanto à necessidade de lei com-

plementar dispondo sobre o campo

de atuação das fundações estatais,

enquanto tal lei não for editada, re-

cepcionado está o art. 5º, IV, do De-

creto-lei 200/67:

“Art. 5º.

IV – Fundação Pública – a entidade

dotada de personalidade jurídica de

direito privado, sem fins lucrativos, cri-

ada em virtude de autorização legisla-

tiva, para o desenvolvimento de ativi-

dades que não exijam execução por ór-

gão ou entidade de direito público, com

autonomia administrativa, patrimô-

nio próprio gerido pelos respectivos ór-

gãos de direção e funcionamento cus-

teado por recursos da União e de ou-

tras fontes” (BRASIL, 1967).

Como tal dispositivo refere-se às fun-

dações estatais de direito privado, en-

quanto nova lei complementar não for

editada, vigora a lei ordinária anteri-

da fundação para o desenvolvimento

de atividades que não exijam execução

por órgão ou entidade de direito

publico”(BRASIL, 1967).

Desse modo, somente atividades

que não exijam poder de autorida-

de, ou seja, pessoa jurídica de di-

reito público, podem ser objeto da

fundação estatal de direito privado.

Na área da saúde, excluída a vigi-

lância sanitária e outras atividades

que exijam função de autoridade,

poderão ser criadas fundações es-

tatais. Na área hospitalar seria de

todo conveniente a adoção do mo-

delo diante do esgotamento dos

modelos utilizados atualmente.

Resolvidas as questões mais

polêmicas sobre as fundações (ou-

tras podem existir, mas todas paci-

ficadas12), gostaríamos de destacar

de modo prático as vantagens des-

se modelo estatal para a prestação

de serviços de saúde, em especial,

os hospitalares.

‘As fundações estatais13 na área

da saúde federal’ podem ter as se-

guintes características14 (algumas

específicas e outras comuns a ou-

tras áreas que não a da saúde, lem-

brando, ainda que outras esferas de

governo também podem instituir

or, recepcionada pela Constituição11,

com força de lei complementar; assim,

no tocante ao seu campo de atuação

prevalece a regra do Decreto-lei acima

citado: “somente poderá ser instituí-

A CONSTITUIÇÃO AO AFIRMAR QUE AS

FUNDAÇÕES SOMENTE NECESSITAM DE LEI

AUTORIZATIVA (...)RECONHECEU APOSSIBILIDADE DE ESSAS ENTIDADES (...),GOZAREM DE PERSONALIDADE JURÍDICA DE

DIREITO PRIVADO ...

11 Nem seria necessário demonstrar que diversas leis ordinárias foram recepcionadas pela Constituição com força de lei complementar,sendo os exemplos mais clássicos, o Código Tributário Nacional (lei ordinária enquanto a Constituição exige lei complementar paramatérias tributárias) e a Lei 4.320/64 que dispõe sobre finanças públicas, também lei ordinária enquanto a Constituição preconiza leicomplementar.12 Como o disposto no parág. único do art. 62 do Código Civil que menciona “assistência” dentre os campos de atividades das fundações,devendo ser entendido que a assistência ali mencionada é lato sensu e não strictu sensu.13 Participei das discussões sobre a elaboração de um projeto de lei complementar, no Ministério do Planejamento, Secretaria de Moderni-zação da Gestão dispondo sobre o campo de atuação das fundações estatais.14 Características fundadas no modelo instituído para a transformação dos hospitais do Grupo Hospitalar Conceição e dos hospitais einstitutos federais situados no Rio de Janeiro, em estudo, pelo Grupo de Trabalho aqui mencionado, nota de rodapé 9.

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Da reforma do Estado à reforma da gestão hospitalar federal: algumas considerações

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 371-381, set./dez. 2005 379

fundações estatais, com as adapta-

ções necessárias quanto à compe-

tência federal para legislar sobre

certos temas nem sempre ao alcan-

ce do Estado e Município, como é o

caso das normas gerais sobre lici-

tação):

1. gozar de autonomia adminis-

trativa, financeira, patrimonial e

orçamentária não devendo ter orça-

mento público, mas sim ser uma

prestadora de serviços para o Mi-

nistério da Saúde com o qual firma-

rá contrato de gestão;

2. ter em sua estrutura organi-

zacional (sistema de governança)

um conselho curador e uma direto-

ria executiva, com mandato, o qual

poderá ser encerrado antes do seu

término, no caso de descumprimen-

to do contrato de gestão;

3. ter receitas advindas do con-

trato de gestão e outros contratos

firmados com o poder público, ve-

dados contratos que cerceiem ou

inibam a universalidade do acesso

dos serviços de saúde (gratuidade e

igualdade);

4. reger-se pelo disposto na lei

que autorizar a sua instituição e

pelos seus estatutos baixados por

ato do Executivo;

5. sujeitar-se aos controles dos

Tribunal de Contas da União e do

Ministério da Saúde;

6. submeter-se a regime à lei de

licitação e contratos quanto ao seu

regime de compras de bens e servi-

ços, podendo a ‘lei federal’ que a

criar, instituir outras modalidades

de disputa pública, conforme ocor-

reu com o pregão público que nas-

ceu no âmbito de uma lei especifi-

ca, a que criou a Anatel. Advoga-se

que a fundação estatal federal da

saúde realize licitação sob a moda-

lidade do pregão e da consulta pu-

blica, está ultima conforme vier a

ser explicitada em lei especifica, po-

dendo, ainda, contar com regula-

mento próprio, em razão do dispos-

to no art. 119 da Lei 8666/93 (BRA-

SIL, 1993).

7. submeter-se ao regime finan-

ceiro (contabilidade) das empresas

estatais (Lei 6.404, 15.12.76) e não

o da Lei 4.230/64 (BRASIL, 1964)

8. submeter-se, quanto ao regi-

me de pessoal, à CLT, com ingresso

mediante concurso público; plano de

carreira e salários, dissídios, gestão

de pessoal e reajustes próprios; ter

limites de contratação de pessoal

previsto em lei ou nos seus estatu-

tos;

9. submeter-se ao regime especi-

al de penhora previsto no Código de

Processo Civil para as entidades es-

tatais (art. 678) quanto aos seus bens

e rendas.

10. inserir-se no sistema loco-re-

gional, sendo entidade integrante do

SUS, com observações de todos os

seus princípios, diretrizes e regra-

mentos.

11. sujeitar-se ao controle dos

conselhos de saúde, conforme situ-

ação geográfica e vinculação gover-

namental.

Ressalte-se, ainda, que:

a) a imunidade tributária previs-

ta na Constituição para as fundações

instituídas pelo poder público alcan-

ça a fundação estatal (art. 150, § 2º

da CF) (Lembramos que o art. 150,

VI,c, da CF, alcança, ainda, as enti-

dades privadas sem finalidades lu-

crativas das aréas de educação e

assistência social, latu sensu);

b) a Lei de Responsabilidade Fis-

cal (Lei Complementar 101/2000) só

terá incidência sobre a fundação

estatal se a mesma receber recur-

sos públicos para pagamento de des-

pesas com pessoal ou de custeio em

geral ou de capital (entidade depen-

dente). Quando suas rendas advie-

rem de serviços prestados a órgãos

ou entidades do SUS, em especial,

do Ministério da Saúde, conforme

contrato de gestão, a LRF não inci-

dirá sobre a fundação, como regra

geral (lembramos que a LRF adotou

como principio para a sua aplicabi-

lidade às entidades públicas de di-

reito privado, a sua dependência fi-

nanceira). O Professor Carlos Ari

Sundfeld, no Parecer mencionado

anteriormente, destaca que “As fun-

dações governamentais privadas

‘que recebam do ente controlador re-

cursos financeiros para pagamento

de despesas com pessoal ou de cus-

teio ou de capital’ devem, contudo,

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SANTOS, Lenir

380 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 371-381, set./dez. 2005

ser entendidas como fundações de-

pendentes, à semelhança do que

ocorre com as empresas estatais na

mesma situação (lei complementar

n. 101, de 2000 – Lei de Responsa-

bilidade Fiscal, art. 1º, § 3º,I, b c/c

art. 2º, II)” – (FIOCRUZ, 200?).

c) poderão ser firmados contra-

tos com o Estado e Município (as

fundações estatais federais), no âm-

bito da regionalização, além de po-

der ter outras rendas advindas de

serviços voltados para a pesquisa

científica e formação de pessoal,

para os hospitais que tiverem essa

finalidade, também.

CONCLUSÃO

A Fundação Estatal é hoje sem

dúvida, o melhor instrumento de

gestão hospitalar (‘e para outras

áreas da saúde pública, como tam-

bém para a educação, cultura, meio

ambiente, turismo, assistência so-

cial da União, dos Estados e dos

Municípios’) dada a sua caracterís-

tica de ser uma entidade integrante

da administração pública indireta,

com autonomia administrativa, fi-

nanceira, orçamentária e patrimo-

nial.

A Fundação estatal, como enti-

dade hospitalar da administração

pública federal, será uma entidade

integrante do SUS, com inserção

loco-regional, hierarquizada, com

controle social exercido pelos con-

selhos de saúde, prestadora de ser-

viços universalizados e responsa-

bilidade explícita de seus dirigen-

tes no contrato de gestão; recursos

humanos comprometidos, os quais

deverão (é o que se advoga) ter par-

te de seus vencimentos atrelados ao

desempenho identificado com a qua-

lidade dos serviços prestados, tudo

em nome do interesse público.

Por outro lado, se o ‘contrato de

autonomia’ observar princípios

como: subordinação da autonomia

aos objetivos do serviço público e

à qualidade de sua prestação; com-

promisso dos órgãos e entes públi-

cos na gestão de um serviço de qua-

lidade; consagração do controle so-

cial; reforço da responsabilização

dos dirigentes públicos mediante o

desenvolvimento de instrumentos de

avaliação do desempenho do servi-

ço prestado; adequação dos recur-

sos aos resultados que se preten-

dem – ‘será um instrumento ino-

vador de gestão pública, em espe-

cial para a área da saúde’.

Finalizando, podemos afirmar

que existe hoje possibilidade, ain-

da não explorada, no âmbito da ad-

ministração pública direta e indi-

reta, de promoção de uma reforma

da gestão, com sua modernização,

sem que se tenha o olhar apenas

voltado para o Terceiro Setor, des-

qualificando-se a administração

pública como ineficiente e incapaz

sem, contudo, introduzir no seu in-

terior instrumentos inovadores da

gestão pública. A fundação estatal

e o contrato de gestão são modelos

que possibilitam modernizar o Es-

tado acabando com a visão dos

anos 90 de que isso somente seria

possível ‘fora’ do Estado, como se

o Estado pudesse ser ‘substituído’

pelo setor privado ao invés de ‘com-

plementado’ em algumas ações e

serviços, quando e se necessário.

Sem que se resolva ‘internamen-

te’ os problemas do Estado, o sim-

ples transpasse de serviços públi-

cos para o Terceiro Setor levará con-

sigo as mazelas não eliminadas da

área pública e, num espaço curto

de tempo, perderemos a ilusão de

que o setor privado poderá ‘substi-

tuir’ o setor público, com qualida-

de, eficiência e economicidade, tão

apregoadas nos últimos anos.

A FUNDAÇÃ O ESTATAL E O CONTRATO DE

GESTÃO SÃO MODELOS QUE POSSIBILITAM

MODERNIZAR O ESTADO ACABANDO COM AVISÃO DOS ANOS 90 DE QUE ISSO SOMENTE

SERIA POSSÍVEL ‘FORA’ DO ESTADO ...

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Da reforma do Estado à reforma da gestão hospitalar federal: algumas considerações

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 371-381, set./dez. 2005 381

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382 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 382-384, set./dez. 2005

DOCUMENTOS / DOCUMENTS

O lugar estratégico da gestão na conquista do SUS pra valerThe strategic place of management in the attainment of a genuine Unified Health System

Embora o financiamento seja o tema predominante na atual discussão acerca dos dilemas do sistema público de

saúde no país, ele não representa o único problema a impedir que tenhamos um SUS pra valer: humanizado,

integral e de qualidade.

Outro obstáculo importante consiste na falta de um projeto político claro para o setor. Afinal, o que o SUS

persegue hoje? Quais são as estratégias adotadas para esse fim? O que é tomado como prioritário nessa política?

Estas são questões que precisam ser levadas a público, aprofundadas e debatidas junto à sociedade. Somente assim

tal política poderá ganhar maior legitimidade. Somente assim ela poderá contar com ampla base de sustentação,

envolvendo cidadãos, usuários, profissionais da saúde e gestores do sistema. Somente assim esse projeto tornar-se-

á politicamente viável.

Dentre a lista de questões estratégicas a enfrentar, é preciso dar destaque também ao problema da gestão da

saúde. Não obstante, o debate que a questão tem suscitado, sua importância em relação ao SUS segue ainda mal

reconhecida.

De modo geral, a falta de capacidade gerencial acaba sendo remetida à esfera da prestação de serviços, ao âmbito

dos serviços de saúde, quando o problema em verdade perpassa todos os níveis do nosso sistema de saúde. Basta

lembrar o quanto estamos longe do Ministério Único da Saúde (MUS) e as conseqüências negativas dessa desarticu-

lação interna do Ministério da Saúde ou, ainda, se reportar às dificuldades gerenciais comumente observadas em

nossas secretarias estaduais e municipais. Vale assinalar, também, que os problemas gerenciais se manifestam nos

mais diversos domínios das organizações públicas de saúde: no planejamento, na gestão das pessoas, na gestão de

materiais, na gestão financeira, na gestão da clínica etc.

Outro aspecto a indicar a falta de entendimento sobre tal questão é que, ao contrário do que acontece com a

temática do financiamento, raras vezes se estabelece uma clara relação de causa-e-efeito entre o mau gerenciamento

do sistema e os resultados alcançados pelo SUS. Os problemas da ineficiência, da má qualidade do atendimento, da

insuficiente transparência ou da falta de democracia, todos eles dizem respeito e encontram raiz na forma como o

SUS é gerido. Caso não logremos estabelecer outro modo de geri-lo, caso não sejam adotados outro modelo e novas

práticas de gestão, esses problemas não encontrarão efetiva solução.

Neste sentido, o CEBES tem procurado se apropriar e debater a proposta de criação de fundações estatais para

hospitais públicos. Diante da complexidade do tema e necessidade de aprofundamento de várias de suas dimensões,

o CEBES não definiu uma posição favorável ou contrária a este projeto. Antes de tudo, queremos discutir mais! Não

se trata apenas de encampar ou descartar a alternativa proposta e sim viabilizar a realização de debates francos e

abertos com a sociedade brasileira. Quase 20 anos após a aprovação da Constituição de 1988, é preciso encarar de

vez a tarefa de traduzir os princípios do SUS, em efetivos direitos à saúde.

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Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, 382-384, set./dez. 2005 383

DOCUMENTOS / DOCUMENTS

Para tanto, consideramos que:

1. Há um amplo consenso sobre a necessidade de melhorar a gestão dos serviços de saúde e que a atenção

hospitalar é ponto crítico do SUS. São numerosas as evidências de que o modelo atual de gestão de nossos serviços

de saúde encontra-se em crise. Contudo, os desafios para transformar as disposições favoráveis a mudanças em

ações efetivas requerem medidas adicionais: a definição do perfil assistencial destas unidades e a ampliação de seus

compromissos com as diretrizes do SUS, por meio de ações programadas. O que implica o alargamento e o aumento

de resolutividade das portas de entrada do sistema (o nível básico de atenção) e a reinserção qualificada dos hospi-

tais em redes de serviços efetivamente universais, regionalizadas, hierarquizadas e de qualidade.

2. É essencial impedir que os hospitais tenham sua gestão comprometida por barganhas políticas, o que requer

exigir a profissionalização da gestão e a criação de carreira de gestor para os dirigentes.

3. A política de gestão deve ser articulada a um projeto de fortalecimento do SUS, de profunda revisão dos

modelos de atenção, formas e valores de remuneração de todos os seus níveis de atenção.

4. Os problemas de gestão das unidades públicas de saúde, relativos à baixa qualificação técnica dos dirigentes,

não são nenhum segredo. O uso de tecnologias e ferramentas de gestão em saúde disponíveis é limitado e/ou mal

empregado pelos gestores. O mais grave da situação presente é que o poder decisório/discricionário que esses

dirigentes têm em mãos é muito reduzido – em certos casos, a gestão fica a depender, basicamente, de sua capacida-

de de liderança e de negociação política, seja perante suas autoridades superiores, seja junto ao corpo de funcioná-

rios da organização. Talvez, portanto, não seja mera coincidência que pouco hoje lhes seja cobrado.

5. É preciso aumentar o montante de recursos necessários ao investimento, à manutenção de redes físicas,

aquisição e reparo de equipamentos e qualificação de pessoal. Além disso, uma proposta voltada para ampliar a

autonomia da gestão deve vir acompanhada de maior grau de responsabilização dos dirigentes. O que implica a

observância de um duplo compromisso: dotar o gestor de poder para, dentro das regras definidas pelo Estado,

contratar e demitir pessoal e realizar compras e investimentos em obras e equipamentos e, avaliar, de maneira

sistemática, a execução das metas definidas pelas instâncias de controle social, pactuação e gestão do SUS.

6. O desafio é estabelecer, no âmbito da administração pública, um modelo que a um só tempo outorgue autono-

mia de gestão das unidades hospitalares e fortaleça a coordenação das redes de serviços de saúde, nas quais se

inscrevem essas unidades, e que, ao mesmo tempo, contemple a instauração de um sistema de responsabilização de

seus dirigentes por resultados alcançados, coerentes com os princípios do SUS.

7. A complexidade e as tensões envolvidas com o tema requerem a convocação de amplo debate com a sociedade

civil, organizada em todos os níveis. Para articular esforços em torno das reais mudanças, é imprescindível contar

com todos os setores e segmentos que, ao longo de quase duas décadas, defenderam com tenacidade o SUS. A fratura

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384 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 382-384, set./dez. 2005

DOCUMENTOS / DOCUMENTS

entre os propositores das mudanças e as entidades de representação dos servidores públicos é indesejável e deve ser

evitada. Trata-se de atualizar, para o enfrentamento dos novos desafios, entre os quais a mudança do modelo de

gestão, a ampla coalizão que logrou resistir ao desmonte do SUS por mais de duas décadas.

8. As dimensões do Projeto de Fundações Estatais, tais como: 1) a adequação jurídico-legal de seu formato aos

objetivos propostos; 2) os custos atuais dos estabelecimentos públicos, os custos de transição, os custos previstos

para a operação das unidades pelas fundações e as repercussões orçamentárias da alteração do modelo; 3) a

definição dos papéis do controle social e instâncias de gestão do SUS, dada a responsabilização dessas unidades

pela cobertura de populações-território definidas; 4) a permeabilidade do modelo à necessidade de incentivar a

capacitação, a dedicação exclusiva, a remuneração adequada e o compromisso dos servidores públicos com o SUS,

requerem o debate com as mais diversas entidades da sociedade civil e com representante do Legislativo, do Judici-

ário e do Ministério Público.

CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE (CEBES)

13 de junho de 2007

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O SUS pra valer: universal, humanizado e de qualidade1

An Effective Unified Health System: universal, humanized and of high quality

Neste ano, mais uma vez a população brasileira vai ser chamada escolher seus dirigentes, reafirmando novamen-

te a democracia eleitoral. No entanto, este é o momento de transitarmos desde uma democracia eleitoral a um

verdadeiro sistema democrático, o que só existirá quando forem apresentadas opções concretas de radicalização do

processo de desenvolvimento nacional. Isso significa um padrão de desenvolvimento que coloque como objetivos

centrais o investimento em um crescimento autônomo e soberano, voltado para a geração de emprego, a distribuição

de renda e a garantia dos direitos de cidadania.

A estabilidade da economia nacional tem sido a principal preocupação dos últimos governos, com resultados

positivos em relação ao controle inflacionário e ao manejo da dívida. Estes foram fruto tanto de políticas públicas

que abriram novos mercados para exportações, reduziram a dívida externa atrelada à variação cambial e alongaram

os prazos de seu pagamento, quanto do dinamismo do setor produtivo nacional, que conseguiu se reciclar e tornar-

se competitivo no mercado internacional.

No entanto, os governos tornaram-se prisioneiros dos instrumentos de sua política monetária, o que acarretou a

consolidação de um padrão de capitalismo financeiro que, apesar de dinâmico e inserido na economia globalizada e

no comércio internacional, produz e reproduz a concentração da renda. Isso se dá, principalmente, pela manutenção

de taxas elevadíssimas de juros, drenando as riquezas produzidas pela população para o Estado, por meio da

elevação incessante da carga tributária, e pelo Estado para o setor financeiro nacional e internacional, com o

pagamento de juros.

Esse padrão é o resultado da política neoliberal implantada desde a década de 90, com conseqüências irreversí-

veis e/ou altamente deletérias para a sociedade, face à efetuada transferência de responsabilidades governamentais

e do patrimônio público para mãos privadas, ao desmantelamento da inteligência e das carreiras do Estado, às

restrições orçamentárias para as políticas sociais universais e à ameaça permanente de desvinculação das receitas

constitucionais a elas destinadas.

A população brasileira está cada vez mais consciente da distância entre as propostas eleitorais e as realizações

dos governantes, e exige que a democracia seja mais do que um jogo político: é preciso que a democracia se traduza

em medidas concretas, voltadas para o pleno emprego, a redução das desigualdades salariais e regionais, além de

exigir a garantia dos direitos sociais por meio da cobertura universal, humanizada e de qualidade. Mais do que

nunca, a sociedade sabe que isso só ocorrerá se aprofundarmos os mecanismos de participação, controle e transpa-

rência na gestão pública, fortalecendo os instrumentos de democracia direta, como a iniciativa popular legislativa,

os orçamentos participativos, os conselhos gestores e os fóruns deliberativos. No entanto, é preciso que esses

mecanismos deixem de ser restritos às áreas sociais e avancem para aumentar a transparência e a participação

1Documento-base em discussão com a Frente Parlamentar da Saúde.

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social na definição e implementação das políticas macroeconômicas, pois sabemos que estes são fatores condicio-

nantes do êxito na democratização da política de saúde. Setorialmente, também temos que radicalizar para fazer

valer o texto constitucional. Mais do que isso, sabe-se que é possível, com as condições técnicas, políticas e econô-

micas que temos hoje no país, dar o salto que falta para termos um SUS pra valer: UNIVERSAL, HUMANIZADO, DE

QUALIDADE.

A REFORMA SANITÁRIA E O SUS

O Sistema Único de Saúde (SUS) é fruto de um longo processo deconstrução política e institucional nomeado

Reforma Sanitária, voltado para a transformação das condições de saúde e de atenção à saúde da população brasi-

leira, gestado a partir da década de 70, quando vivíamos sob a ditadura militar.

Mais do que um arranjo institucional, o processo da Reforma Sanitária brasileira é um projeto civilizatório, ou

seja, pretende produzir mudanças dos valores prevalentes na sociedade brasileira, tendo a saúde como eixo de

transformação e a solidariedade como valor estruturante. Da mesma forma, o projeto do SUS é uma política de

construção da democracia que visa à ampliação da esfera pública, à inclusão social e à redução das desigualdade.

Se a Reforma Sanitária é a expressão do nosso desejo de transformação social, sua materialização institucional no

SUS é a resultante do enfrentamento desta proposta com as contingências que se apresentaram nessa trajetória. Em

outras palavras, expressa a correlação de forças existente em uma conjuntura particular.

Originalmente uma idéia e um ideário de um grupo de intelectuais, a proposta se desenvolveu na transição

democrática, congregando entidades representativas dos gestores, profissionais da saúde e movimentos sociais que,

articulados na Plenária Nacional de Entidades de Saúde, conseguiu influenciar o processo constituinte e plasmar na

Constituição Brasileira de 1988 (CF/88) o texto aprovado

na 8a Conferência Nacional de Saúde que garante que “Saúde é um Direito de Todos e um Dever do Estado”. Em

outras palavras, a saúde passou a fazer parte dos direitos sociais da cidadania.

A partir de então, iniciou-se uma nova fase do processo da Reforma Sanitária em que, ao mesmo tempo, era

necessário prosseguir elaborando o referencial teórico e estratégico e começar a construir os métodos e instrumentos

de gestão do Sistema Único de Saúde (SUS). CEBES, ABRASCO, CONASS, o CONASEMS, a Rede UNIDA, ABRES,

AMPASA, parlamentares, entidades representadas nos Conselhos de Saúde, a Frente Parlamentar da Saúde e outros

têm liderado o debate e concentrado esforços para a concretização do projeto da Reforma Sanitária.

Ao incluir a saúde como um direito constitucional da cidadania no capítulo da Seguridade Social, avançamos na

concretização da democracia, fortalecendo a responsabilidade do Parlamento e da Justiça, cada dia mais presentes

na garantia dos direitos sociais. Mesmo coincidindo com o governo Collor e o início da implantação das propostas

neoliberais de ajuste do Estado, a construção do SUS foi realizada na contramão das políticas econômicas, configu-

rando, juntamente com a atuação do Ministério Público, alguns dos mais expressivos resultados dos preceitos

democráticos inscritos na CF/88.

No âmbito da reforma do Estado, o SUS desenvolveu um projeto de reforma democrática que se caracterizou pela

introdução de um modelo de pacto federativo baseado na descentralização do poder para os níveis subnacionais e

para a participação e controle social. Como conseqüência, ocorreu uma ousada municipalização do setor Saúde.

Foram criados Conselhos de Saúde, com caráter deliberativo, em todos os municípios e estados nos quais os re-

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presentantes dos usuários ocupam 50% dos assentos. Foram instituídos os Fundos de Saúde, substituindo os convê-

nios que regiam as relações entre as três esferas governamentais. A criação das Comissões Bipartites (CIB), nos

estados, e a Tripartite (CIT), no nível nacional, estabeleceu o espaço para o desenvolvimento de relações cooperativas

entre os entes governamentais.

O modelo de pacto federativo do SUS mostrou-se altamente adequado à realidade de uma sociedade marcada

pelas desigualdades sociais e regionais. Em um país com tais características só será democrático o poder exercido

de forma pactuada e socialmente controlada que considere as desigualdades entre grupos populacionais e regiões

como o principal problema a ser superado. Por isso, esse modelo do SUS está sendo expandido e reinterpretado para

a área de Assistência Social (SUAS) e também para a área de Segurança (SUSP).

O êxito da descentralização pode ser medido pelo seu impacto no aumento da base técnica da gestão pública em

saúde nos níveis local, regional e central. Também, a rede de atenção básica teve grande expansão, a partir de 1998,

ampliando enormemente o acesso das populações antes excluídas. O sistema universal e descentralizado permite

que o país realize um dos maiores programas públicos de imunizações do planeta e um programa de controle da

AIDS mundialmente reconhecido. Esses resultados constituem os esforços de milhares de trabalhadores da saúde, de

todos os níveis e especialidades de formação, para concretizar o direito à saúde no cotidiano da população brasilei-

ra.

Entretanto, tendo sido implementado em condições adversas, da década de 90 até hoje o SUS enfrentou obstáculos

que marcaram sua configuração como Sistema Nacional de Saúde, entre os quais os mais graves seriam: a não

implementação do preceito constitucional do Sistema de Seguridade Social com seus respectivos mecanismos de

financiamento e gestão; o drástico subfinanciamento desde a sua criação; a profunda precarização das relações,

remunerações e condições de trabalho dos trabalhadores da saúde; a insignificância de mudanças estruturantes nos

modelos de atenção à saúde e de gestão do sistema; o desenvolvimento intensivo do marketing de valores de merca-

do em detrimento das soluções que ataquem os determinantes estruturais das necessidades de saúde.

Por isso, apesar dos referidos e reconhecidos avanços na produção, produtividade e inclusão, muito pouco se

avançou na efetivação da integralidade, da igualdade, e só recentemente retomamos a questão da regionalização.

Sabemos que não será possível seguir expandindo a cobertura sem alterar os modelos de atenção e de gestão em

saúde. Tampouco a sociedade civil e os Conselhos de Saúde têm conseguido participar com efetividade e assim

influir na formulação de políticas e estratégias do SUS.

Estão inalteradas, ou crescentes, as doenças do perfil epidemiológico contemporâneo, previsíveis mas não preve-

nidas, as doenças agravadas pela ausência de intervenções oportunas e precoces, as mortes evitáveis e os altíssimos

percentuais de exames diagnósticos, tratamentos medicamentosos e encaminhamentos desnecessários e de baixa

qualidade, apesar dos conhecimentos e técnicas já disponíveis.

Por outro lado, entre os problemas enfrentados encontram-se aspectos relacionados com o funcionamento do

mercado em saúde no qual o Estado tem um papel a exercer considerando que a saúde é um bem público. Ressaltem-

se as importantes dificuldades vigentes na relação com o setor privado suplementar, seja na regulação das condições

de trabalho profissional, seja na produção de serviços e na garantia das coberturas contratadas. É também notória

a luta por democratizar o acesso a medicamentos produzidos por empresas multinacionais. Ambos os problemas

deverão ser enfrentados de forma mais vigorosa, transparente e contínua.

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Ainda está por ser reconhecido o impacto do setor Saúde – que movimenta parcela considerável do PIB na geração

de empregos, produção científica e tecnológica, aumento da produtividade do trabalho, redução do absenteísmo – na

economia brasileira. Os governos terão que deixar de falar da saúde como gasto e passar a encarar o investimento

que estão fazendo, além da melhoria da qualidade de vida da população.

No entanto, não se pode esperar que o setor Saúde seja capaz de responder à demanda crescente de atenção

provocada por uma sociedade desigual, injusta e cada dia mais violenta, cuja sociabilidade se encontra rompida e

na qual o outro é visto como uma ameaça. As conseqüências são a perda da coesão social, expressa não apenas em

milhares de mortes e internações, mas também no sofrimento mental, na insegurança e no desalento, que seriam

evitáveis onde predominassem uma cultura de paz e a justiça social.

O SUS universal, cujo melhor exemplo é o programa de AIDS –cartão de visitas de diversos governos –, convive

com avaliações negativas sobre o acesso e as condições indignas do atendimento efetuado pela rede de serviços de

saúde. A desfiguração da Seguridade Social, o adiamento sine die de direitos básicos de cidadania e o deslocamento

das políticas sociais em direção a programas de transferência de rendas, cujos efeitos redistributivos não incidem

especificamente sobre as condições que produzem os principais problemas de saúde dos brasileiros, retardam a

melhoria dos padrões de saúde e qualidade de vida. A organização do SUS deve pautar-se pela aproximação dos

indicadores de saúde, pelo menos, àqueles verificados na economia. É imprescindível ao desenvolvimento alcançar

padrões de saúde compatíveis com o progresso científico-tecnológico, cultural e político.

Os impasses antepostos ao SUS universal, humanizado e de qualidade exigem a reposição do usuário-cidadão

como o centro das formulações e operacionalização das políticas e ações de saúde. É essa a premissa que orienta a

reinvenção de modelos e alternativas de gestão para superar a crise dos sistemas públicos. A subordinação dos

problemas e necessidades de saúde da população a interesses econômicos das indústrias de equipamentos e insu-

mos, de prestadores de serviços, de burocracias governamentais ou corporativos, por vezes opostos aos da garantia

da atenção oportuna respeitosa, reflete-se no cotidiano da assistência à saúde. Os brasileiros em busca de assistên-

cia e cuidados à saúde na rede do SUS são submetidos a filas que se formam desde a madrugada para pegar senhas,

passam por triagens, aguardam horas em locais de espera, freqüentemente desconfortáveis, e necessitam, quase

sempre, percorrer mais de um estabelecimento nos casos exigentes de realização de exames e obtenção de medica-

mentos. A lógica que deve orientar a organização dos serviços de atenção e atuação dos profissionais da saúde é a

de tornar mais fácil a vida do cidadão usuário, no usufruto de seus direitos. Trata-se de organizar o SUS em torno

dos preceitos da promoção da saúde, do acolhimento, dos direitos à decisão sobre alternativas terapêuticas, dos

compromissos de amenizar o desconforto e o sofrimento dos que necessitam assistência e cuidados.

ESTRATÉGIAS PROGRAMÁTICASRomper o insulamento do setor Saúde

É sabido que melhores níveis de saúde não serão alcançados se as transformações não ultrapassarem o setor

Saúde, envolvendo outras áreas igualmente comprometidas com as necessidades sociais e com os direitos de cida-

dania (Previdência Social, Assistência Social, Educação, Segurança Alimentar, Habitação, Urbanização, Saneamento

e Meio Ambiente, Segurança Pública, Emprego e Renda).

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Para tanto, é necessário que os três níveis de governo deixem de operar em termos exclusivamente setoriais e

passem a priorizar o desenvolvimento social de forma integrada e integral. O governo nacional, o Congresso e a

Justiça têm que se responsabilizar por implementar os mecanismos que garantam a existência real da Seguridade

Social, com a implantação do orçamento deste setor, a convocação da Conferência Nacional da Seguridade e a

criação de fóruns de deliberação conjunta da Previdência, Saúde e Assistência Social.

Os governos locais e regionais precisam romper modelos ultrapassados de gestão e passar a atuar de forma

transversal, criando instâncias intersetoriais de políticas, implantando a gestão em redes e garantindo maior eficácia

e efetividade na redistribuição da renda e no acesso aos benefícios sociais.

É preciso construir canais de interação com a mídia que nos permitam divulgar nossa concepção ampliada de

saúde. Um esforço nesse sentido deve ser realizado pelos gestores, parlamentares, acadêmicos e militantes da

Reforma Sanitária para retomar espaços de debate, divulgação e difusão de concepções sobre saúde e criar novas

possibilidades de comunicação.

No âmbito internacional devem ser intensificados os esforços para ampliar o intercâmbio de experiências e o

debate em torno da defesa dos sistemas universais. A divulgação e o debate sobre o SUS, considerado um modelo

avançado de sistema de saúde na América Latina, nos fóruns internacionais contribui para sua consolidação e para

o protagonismo da luta por reformas do Estado democráticas e inclusivas.

Estabelecer responsabilidades sanitárias e direitos dos cidadãos usuários

As necessidades que a população apresenta de ações e serviços de saúde, preventivos e curativos, de acordo com

a realidade de cada região e microrregião, com base nas características demográficas, socioeconômicas e epidemi-

ológicas da população, devem presidir o planejamento estratégico de cada município e a programação local das

atividades. Sua divulgação deverá ser feita para a população usuária e suas entidades representativas de maneira a

contribuir para a formação da consciência das necessidades e dos direitos, e a permitir o controle popular e represen-

tativo.

A responsabilidade sanitária de cada ente governamental, de cada serviço e dos trabalhadores da saúde deve ser

normalizada e regulamentada, assim como os direitos e deveres do cidadão usuário do SUS. A qualidade dos

serviços prestados deve ser cobrada de cada um dos profissionais e dirigentes do setor. Mesmo sabendo que temos

condições muito limitadas em termos financeiros e operacionais, os gestores e profissionais deverão ser responsabi-

lizados por prestar o melhor cuidado possível dentro dessas condições. Isso só se tornará realidade quando metas

forem estabelecidas, parâmetros definidos e se a população conhecer e compartilhar estas metas, assim como puder

dispor de mecanismos efetivos de cobrança.

A responsabilidade sanitária deve ser exercida plenamente nos locais de trabalho, garantindo condições de produ-

ção que preservem a saúde do trabalhador e evitem os acidentes de trabalho.

Intensificar a participação e controle social

Os Conselhos e as Conferências municipais, estaduais e nacional de Saúde são as modalidades de participação

fortemente disseminadas no país, fazendo parte da dinâmica política da área da saúde. Entretanto, é necessário

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revitalizar tais fóruns no sentido de viabilizar relações sociais mais igualitárias entre os atores sociais que deles

participam. É sabido que principalmente gestores, mas, em menor medida, também prestadores de serviços e profis-

sionais da saúde dispõem de maiores recursos de poder do que usuários e controlam a agenda de debates desses

fóruns. É necessário ampliar a capacitação de conselheiros e democratizar a formulação da agenda da saúde.

Esforços devem ser realizados no sentido de aumentar a representatividade dos integrantes dos Conselhos, incenti-

vando uma relação mais constante e transparente com seus representados. Também, deverá ser avaliada a efetivida-

de do papel deliberativo dos Conselhos na formulação e acompanhamento das políticas de saúdepara superar os

obstáculos antepostos de diferentes naturezas.

Por outro lado, um conjunto de mecanismos inovadores de participação e de controle social não se generalizou no

sistema. É o caso dos Conselhos locais de unidades ambulatoriais e de unidades hospitalares. Apenas as unidades

próprias do SUS, nas três esferas de governo, têm apresentado experiências nesse sentido, sendo que na área hospi-

talar elas são dramaticamente escassas. Outros mecanismos de participação individual, tais como ouvidorias,

disque saúde, pesquisas sistemáticas de satisfação de usuários, carecem também de generalização no contexto do

sistema.

Unidades de serviços privadas que são financiadas com recursos públicos não dispõem de mecanismos de parti-

cipação ou de controle social, além dos exercidos pelo Ministério da Saúde ou Ministério Público. É necessário

definir quais seriam os mecanismos básicos indispensáveis para a democratização da gestão do sistema e constituir

instrumentos legais e administrativos que generalizem o funcionamento desses mecanismos em unidades de saúde

próprias e financiadas pelo SUS, levando em conta que a prestação de serviços de saúde, especialmente quando

financiados por recursos públicos, é uma concessão que o Poder Executivo faz para o exercício de um dever de

Estado.

Gestores do SUS, Ministério Público e Poder Legislativo precisam criar espaços para viabilizar ações cooperativas

e coordenadas. Compete ao Ministério da Saúde induzir a coordenação horizontal dessas instâncias estatais.

Aumentar a cobertura e a resolutividade e mudar radicalmente o modelo de atenção à saúde

A sustentabilidade político-econômica do SUS e sua legitimidade dependem da promoção de mudança radical do

modelo de atenção, pois a qualidade e a resolutividade das ações e serviços de saúde possibilitarão ao SUS tornar-

se patrimônio nacional e ser o local preferencial de atendimento para todos os segmentos sociais.

Uma mudança radical do modelo de atenção à saúde envolve não apenas priorizar a atenção primária e retirar do

centro do modelo o papel do hospital e das especialidades, mas, principalmente, concentrar-se no usuário-cidadão

como um ser humano integral, abandonando a fragmentação do cuidado que transforma as pessoas em órgãos,

sistemas ou pedaços de gente doentes. As práticas interativas, mais holísticas, devem estar disponíveis como alter-

nativas de cuidado à saúde. A humanização do cuidado, que envolve desde o respeito na recepção e no atendimento

até a limpeza e conforto dos ambientes dos serviços de saúde, deve orientar todas as intervenções.

A Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde deve ser amplamente divulgada e sua implantação acompanhada

pelos órgãos gestores e de controle social, visando à sua avaliação e a eventuais aprimoramentos. E os servidores

públicos devem estar comprometidos com o resultado de suas ações no cuidado das pessoas.

Para ampliar o acesso e garantir a cobertura de ações e cuidados à saúde, é necessário expandir e organizar redes

de serviços de saúde articuladas. As unidades básicas, acolhedoras, de qualidade e resolutivas nas suas ações

integrais, preventivas e curativas, baseadas nas necessidades e demandas da população, devem articular-se aos

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demais níveis do sistema local de saúde com garantias de referência e contra-referência. Nesse sentido, é imprescin-

dível articular atividades de saúde coletiva com ações de assistência clínica nos serviços de atenção básica, estabe-

lecer esses serviços como porta de entrada dos sistemas locais de saúde, equipar e expandir os serviços de urgência

e emergência e de referência, implantar centrais de marcação de consultas, exames e internação e o Cartão SUS como

instrumentos de garantia de acesso e atendimento.

A formação de microrregiões ou consórcios sob responsabilidade dos municípios e dos estados deve pautar-se

pela coordenação, programação e oferta de recursos para promover, prevenir e tratar problemas de saúde. A ampli-

ação e a garantia de investimentos na estruturação de redes articuladas e territorializadas são essenciais para

conferir mais qualidade e resolutividade aos serviços prestados.

A execução de ações de assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica, deve se traduzir na garantia do

acesso universal da como no controle da segurança, eficácia e qualidade dos produtos e na promoção do seu uso

racional. A política nacional de medicamentos não se restringe à aquisição e à distribuição; envolve todas as

atividades relacionadas à garantia do acesso da população àqueles essenciais, incluindo investimentos e incentivos

em desenvolvimento científico e tecnológico e produção.

Formar e valorizar os trabalhadores da saúde

Deve-se enfrentar o desafio de superar as barreiras legais que dificultam a combinação das imprescindíveis

agilidade e eficiência da gestão com a vinculação regular dos trabalhadores ao SUS, de modo a evitar não apenas a

burocratização mas também a precarização, privatização e terceirização das relações de trabalho do SUS. Trata-se

de enfrentar esses problemas inadiáveis com a formulação e implementação de políticas articuladas entre os setores

da saúde e educação, para assegurar que a oferta (distribuição e abertura de cursos e programas e o respectivo

número de vagas) de formação técnica, de graduação e de especialização na área da saúde corresponda às necessi-

dades do SUS e da população, superando os desequilíbrios regionais e intra-regionais e as determinações do merca-

do. A par das políticas de corte nacional, é preciso responsabilizar as três esferas, de acordo com suas competências

e possibilidades, pela efetivação de políticas que favoreçam a interiorização do trabalho em saúde com qualidade,

bem como assegurar a autonomia dos municípios, DF e estados para criar mecanismos de atração e fixação de

equipes de saúde em todos os níveis do sistema.

Medidas voltadas para a formação, a educação permanente e a fixação das equipes de profissionais da saúde

com base nas necessidades e direitos da população têm papel crucial na implementação do conjunto dos princípios

e diretrizes do SUS e do novo modelo de atenção à saúde e de gestão.

A redução dos cargos de confiança para a gestão em saúde, nas três esferas de governo, e sua substituição por

quadros técnicos e administrativos de carreira são necessárias à estabilização e qualificação da gestão do SUS. Por

outro lado, trata-se de um meio de evitar que a gestão da saúde seja usada como moeda para garantia de governa-

bilidade. O provimento de cargos de direção deve obedecer a critérios objetivos e compatíveis com os requerimentos

de capacitação e habilitação específicos.

Esse conjunto de proposições concentra-se em torno da adoção de políticas públicas de gestão do trabalho (mu-

nicipais, estaduais e federais) que considerem as diversidades regionais, assegurem o caráter público do ingresso e

estabeleçam carreiras no SUS, que possibilitem a progressão associada não somente ao tempo de trabalho e quali-

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ficação, mas também aos resultados do trabalho e ao compromisso dos profissionais e das equipes com a melhoria

da saúde da população.

Aprofundar o modelo de gestão

No início deste ano os gestores dos três níveis de governo pactuaram em defesa da vida, do SUS e da gestão. Por

meio desse instrumento, comprometem-se a fazer avançar a Reforma Sanitária desenvolvendo ações articuladas,

repolitizando a saúde e promovendo a cidadania. Retomou-se a ênfase na diretriz constitucional da regionalização.

Trata-se de reconhecer a autonomia das Comissões Bipartites para pactuar as estratégias da regionalização nos

estados, com base nas diretrizes nacionais acordadas na Comissão Tripartite; promover a criação de Comissões

Intergestores regionais e microrregionais; resgatar o importante papel coordenador do ente estadual e estabelecer

formas de co-gestão entre os entes federados para promover a descentralização solidária e cooperativa do sistema de

saúde. É necessário cumprir cabalmente esse acordo em prol da população brasileira.

A definição de prioridades e metas é um componente imprescindível para o planejamento efetivo e a responsabi-

lização por seu cumprimento. Para aprofundar o modelo de gestão do SUS, tanto para os serviços de administração

direta quanto para os contratados, é necessário estabelecer a coresponsabilização por meio de contratos de gestão e

de financiamento misto que estabeleçam as metas sanitárias a serem cumpridas. Isso envolve, necessariamente,

realizar uma reforma administrativa que atenda às especificidades dos princípios e das organizações do SUS e lhes

permita agilidade e eficiência de suas decisões, sob a égide da ética e da responsabilidade pública.

Todas as unidades públicas de saúde, das mais simples às mais complexas, deverão usufruir de autonomia

gerencial, desenvolver modalidades de gestão participativa, colegiada ou co-gestão, com trabalhadores da saúde e

outras representações da comunidade, e definir metas quali-quantitativas em interação com os objetivos municipais

e regionais, por meio de contratos de metas ou de gestão.

Aumentar a transparência e controle dos gastos

As decisões da política de alocação de recursos e os critérios dos gastos devem ser transparentes e passíveis de

controle pela população, e visar ao acesso igualitário aos serviços de qualidade em todos os níveis do sistema.

As compras realizadas pelo setor público deverão ser feitas de forma a impedir a corrupção em todos as esferas

e níveis governamentais, utilizando os instrumentos tecnológicos disponíveis para realizar pregões que possam ser

acompanhados pelo público. A definição de parâmetros técnicos e financeiros deve permitir que a sociedade e

autoridades públicas possam acompanhar e monitorar os gastos governamentais.

Um trabalho mais afinado com a Procuradoria Geral da União e com os Tribunais de Contas será necessário para

criar mecanismos que impeçam os tipos de corrupção já detectados na área da saúde.

Torna-se necessário criar uma instância que congregue gestores públicos, Procuradoria, Tribunais, Ministério

Público, Legislativo e organizações da sociedade civil para desenvolver políticas e instrumentos efetivos de combate

a toda forma de corrupção, prevaricação ou malversação dos recursos públicos em saúde.

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Ampliar a capacidade de regulação do Estado

As diversas áreas do setor Saúde – e suas derivações para setores desde a Educação até a mídia – integram o

complexo produtivo da saúde. Sob ta acepção resgata-se o significado econômico e produtivo das ações e produtos

ligados ao atendimento em saúde, considerando a estreita relação entre dois pólos: (1) um setor produtivo industrial

de bens como vacinas e soros, medicamentos e fármacos, sangue e hemoderivados, reagentes e kits diagnósticos,

equipamentos médicos e cirúrgicos; (2) um outro, da produção de ações de saúde pelos agentes públicos e privados

(filantrópicos e lucrativos).

É inescapável admitir que o não reconhecimento da influência dos fatores de mercado na saúde elimina um

importante elemento de análise e de formulação das políticas, especialmente na definição de prioridades de incorpo-

ração de inovações (produtos e processos) e na importância da influência dos agentes econômicos sobre a oferta de

serviços de saúde. Dado que a saúde é um bem de relevância pública, as relações público-privado devem ser objeto

permanente de regulação estatal, no sentido da preservação dos direitos dos usuários do SUS e dos consumidores de

planos e seguros de saúde. Além disso, o poder público deve atuar na regulação da reorientação das demandas dos

planos e seguros para os serviços especializados do SUS e na eliminação das interferências das empresas privadas

no sistema público.

A fragmentação e a segmentação vigentes no sistema nacional de saúde exigem a explicitação do montante de

recursos públicos envolvidos com o financiamento de planos e seguros de saúde, bem como dos interesses conflitan-

tes derivados da acumulação de postos gerenciais e administrativos por profissionais da saúde com “dupla militân-

cia”.

Aprofundar a construção de convivência das instituições públicas e privadas, em função das necessidades e

direitos da população usuária e sob a égide do princípio constitucional que estabelece o caráter complementar dos

serviços privados de saúde, é uma tarefa inadiável. Os serviços privados que integram o SUS devem pautar suas

atividades como se públicos fossem. Adicionalmente, é preciso induzir as empresas privadas prestadoras de servi-

ços, as que comercializam planos de saúde, bem como as empresas empregadoras que ofertam planos de saúde para

seus empregados, a participaremdecisivamente dos esforços para a construção de sistemas regionalizados, voltados

para o atendimento das necessidades e direitos da população.

A instituição de regras claras sobre o “trânsito privado-público de pacientes” deve fortalecer a rede de serviços do

SUS como a “única porta de entrada” para a admissão nos serviços públicos, quer para o atendimento de pacientes

de empresas de planos e seguros de saúde, quer para o acesso a medicamentos.

Para enfrentar a tendência à segmentação é preciso convocar a entidades sindicais, empresariais e de profissio-

nais da saúde para empreender novos compromissos em torno da saúde. O estabelecimento de tabelas de remunera-

ção de procedimentos que sejam compatíveis com os gastos dos profissionais e dos serviços e assegurem a qualida-

de da assistência prestada é essencial. A institucionalização do plano de saúde universal para os servidores civis da

esfera federal representaria a cristalização da descrença do próprio governo na universalização da saúde. Os recur-

sos envolvidos e programados para financiar os planos de saúde de funcionários públicos devem ser canalizados

para melhorar a qualidade de atenção à saúde nos serviços do SUS.

A adoção de critérios de ingresso nos serviços de saúde vinculados ao SUS baseados nas condições clínicas e

necessidades de saúde, e não na capacidade de pagamento, e a exigência da observância dos mesmos padrões

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DOCUMENTOS / DOCUMENTS

assistenciais de casos com diagnóstico similar para todos os brasileiros são essenciais ao reordenamento das rela-

ções entre o público e o privado e à garantia do acesso e da qualidade da assistência.

Superar a insegurança e o subfinanciamento

As políticas sociais encontram-se permanentemente ameaçadas de terem seus recursos ainda mais reduzidos,

gerando uma situação de insegurança que impede a efetividade e eficácia de seu planejamento e execução.

A forma mais corriqueira, embora muito prejudicial à gestão social, é o permanente contingenciamento dos

orçamentos públicos para atender aos ditames do superávit primário estabelecido pela área econômica, ou até

mesmo superá-lo. Além de prejudicial, essa prática corrói a própria democracia, ao transformar o orçamento público

em uma peça de ficção.

Outra maneira de subverter os ditames constitucionais sobre os recursos a serem alocados na área social é a

introdução constante de outras despesas de programas governamentais considerados prioritários dentro dos orça-

mentos para os quais há recursos constitucionais definidos, como o da Saúde. Isso ocorre em função da não regula-

mentação da E.C. nº 29.

Uma outra maneira de retirar recursos da área social que tem sido reiteradamente usada e prorrogada é a DRU –

Desvinculação das Receitas da União, que, a pretexto de dar maior flexibilidade ao governo central, retira 20% dos

recursos constitucionalmente destinados à área social. A DRU está em vigor até 2007 e temos que exigir que o

governo, desde agora, crie mecanismos substitutivos dessa fonte espúria. O momento das eleições é importante para

pactuarmos com os candidatos a eliminação e substituição da DRU.

Em diferentes momentos, setores governamentais ou elites econômicas da sociedade civil têm se posicionado em

relação à necessidade de dar ainda maior flexibilidade orçamentária ao governo, desvinculando totalmente as recei-

tas constitucionais para a área social. Apoiados por organismos internacionais, são, a cada momento, lançados

balões de ensaio nesse sentido. A alegação é de que esses recursos são necessários para zerar o déficit nominal,

quando, então, sobrarão recursos para a área social. A sociedade brasileira conhece essa lógica e sabe que não

existe flexibilidade para o pagamento de juros da dívida e que esses recursos desviados das suas vinculações

constitucionais jamais retornariam. Por isso não permitiremos a desvinculação, e este compromisso deverá ser

assumido publicamente pelos candidatos comprometidos com a democracia social.

Outra ameaça constante é relativa à redução ou eliminação de benefícios sociais, vistos como causadores do

alegado desequilíbrio financeiro da Previdência Social. É preciso que este debate seja feito de forma séria e não como

sempre, sob a ameaça da espada do déficit e crise. É preciso fazer um debate aberto e transparente: há dados que

questionam o déficit, apontando a apropriação das receitas sociais para outros fins e a evasão de contribuições. O

debate sobre os benefícios previdenciários não pode ser restrito à dimensão contábil, prescindindo do princípio maior

que subordina a Previdência aos objetivos da ordem social de garantia do bem-estar e da justiça social. Ao invés de

desvincular os benefícios previdenciários do salário mínimo, é preciso desvincular os benefícios sociais da capaci-

dade contributiva de cada indivíduo. Só assim, com a socialização dos custos da proteção social, estaremos permi-

tindo que se realize uma redistribuição de renda via políticas sociais que garantem direitos universais. Para tanto,

é necessário rever o enfoque desta discussão, passando a buscar fontes que financiem a inclusão previdenciária de

milhões de trabalhadoras e trabalhadores cujo trabalho ainda não tem amparo legal.

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Em relação ao financiamento da saúde, observamos:

* Acentuada retração da contrapartida federal, quando cotejada com o crescimento das contrapartidas estaduais

e municipais, tanto em termos das porcentagens no total do financiamento público como em dólares per capita.

Ainda que os recursos destinados à saúde representem um percentual considerado alto no orçamento, ele é totalmen-

te insuficiente face às necessidades da população.

* O Brasil gasta muito pouco com saúde. O total do financiamento público vem oscilando entre 125 e 150 dólares

per capita ao ano, enquanto no Canadá, países europeus, Japão, Austrália e outros, a média do financiamento

público é de US$ 1.400,00 per capita, na Argentina é US$ 362,00 e no Uruguai, US$ 304,00.

* O Projeto de Lei Complementar nº 01/2003, que regulamenta a E.C. nº 29/2000, foi exaustivamente debatido e

aprimorado pelas entidades da sociedade civil, representativas dos usuários, dos membros dos Tribunais de Contas

e do Ministério Público, dos gestores nas três esferas de governo, dos profissionais da saúde, dos prestadores de

serviços. Esse debate se deu nas Conferências e Conselhos de Saúde, por mais de dois anos, e finalmente nas

Comissões da Seguridade Social e Família, de Finanças e Tributação e da Constituição, Justiça e Cidadania da

Câmara dos Deputados. É preciso, pois, que governo e oposição se comprometam a aprová-lo.

* Fruto desse consenso é a proposta de estabelecer a contrapartida federal para a Saúde em 10% da receita bruta

da União, o que corresponde a um acréscimo de aproximadamente R$ 10 bilhões, ou US$ 30,00 per capita, ao ano.

Ainda que gritantemente insuficiente e aquém das referências internacionais citadas, significa um importante passo,

porque atrela essa contrapartida a uma base orçamentária, da mesma maneira com que foi definida para os estados

e municípios, dispõe sobre o que são serviços de saúde financiados pelo SUS e o que não são serviços de saúde, e

orienta os gastos e as prestações de contas com base no referencial da Eqüidade, Integralidade e Eficiência.

A SAÚDE UNIVERSAL, HUMANIZADA E DE QUALIDADE COMO POLÍTICA DE ESTADO

Essas estratégias programáticas representam as pontes a serem construídas para fazermos a transição entre o

SUS existente, reconhecendo-se seus avanços e limites, e para o SUS pra valer: Universal, Humanizado e de Qualida-

de. Hoje, é plenamente factível e necessário ampliar a garantia do direito à saúde.

As eleições que se aproximam repõem a saúde na agenda de prioridades dos candidatos e dos partidos. Nossa

intenção é abrir este debate de forma ampla, com todos os partidos políticos, de forma a alcançar um lugar de

destaque de nossas propostas em seus programas. A luta pela democratização da saúde sempre foi suprapartidária

e permitiu a construção de uma ampla e sólida coalizão reformadora que tem dado sustentação ao processo da

Reforma Sanitária.

Uma vez mais, estas forças comprometidas com o avanço da democracia por meio da implementação da Reforma

Sanitária reafirmam a necessidade de que os postulantes aos cargos eletivos se comprometam com o programa

expresso nas linhas programáticas acima enunciadas. Elas foram fruto de uma ampla discussão entre várias entida-

des, e seu delineamento nasceu da experiência acumulada pelo movimento da Reforma Sanitária em todas as suas

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DOCUMENTOS / DOCUMENTS

frentes de trabalho: nas organizações e entidades de profissionais e usuários, nas universidades, no Executivo, no

Legislativo, no Judiciário etc.

Sabemos que é possível, hoje, atender a população em um SUS pra valer: universal, humanizado e de qualidade.

Para chegarmos a isso é necessária a firme vontade política dos nossos líderes de assumir o compromisso social com

nossas propostas. Temos certeza que, dessa forma, estaremos todos construindo uma sociedade mais justa e demo-

crática, o que transcende a mera perspectiva setorial, possibilitando o avanço em direção a uma sociedade inclusiva

na qual predomine a cultura da paz. Este é um momento crucial para transitarmos do SUS atual ao SUS pra valer:

não serão toleradas omissões.

Rio de Janeiro, julho de 2006.

Abrasco - www.abrasco.org.br

cebes - [email protected]

Abres - www.abres.fea.usp.br

Rede UNIDA - www.redeunida.org.br

Ampasa - www.ampasa.org.br

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A Identidade do CEBES1

The identity of CEBES

Reafirmamos os princípios expressos na Plataforma da Refundação do CEBES, e entendemos que este é um

processo que apenas iniciamos, mas que já nos reposiciona na cena política de forma a poder participar da constru-

ção coletiva de uma direção política para a saúde e para a democracia brasileira. Entendemos que a identidade

coletiva que nos agrega é a de uma instituição comprometida com o socialismo e, portanto com a radicalização da

democracia, o que requer participar da construção de uma nova correlação de forças na sociedade brasileira e

também mundial, que permita um real deslocamento do poder em direção aos setores dominados e excluídos.

Entendemos que a democracia eleitoral e a defesa do estado de direito são imprescindíveis para permitir a

aglutinação de forças e a construção de novos sujeitos políticos. No entanto, nossa perspectiva socialista vai além

da democracia formal e requer uma verdadeira transformação nas relações de poder, o que não ocorreu com a

mudança de regime político. O CEBES tem suas origens no movimento social de luta contra a ditadura e pela

democracia, e seu lugar sempre foi o de pensar esta construção social a partir da democratização da saúde. Não

sendo uma ONG nem um movimento social típicos, o CEBES se identificou sempre com um lugar da sociedade civil

de onde se possa pensar criticamente a saúde e a sociedade brasileira e, desde esta análise de conjuntura, construir

estratégias políticas transformadoras, difundi-las e buscar agrupar forças sociais capazes de impulsionar este pro-

cesso de transformação.

Para tanto, conta com pouco recursos, não sendo um partido ou um grupo acadêmico de produção de conheci-

mentos, mas considera fundamental usar os conhecimentos e saberes para demarcar este lugar de um pensamento

de esquerda, que tensione o espectro político mais tradicional e cobre mudanças institucionais e societárias. Por não

ser um grupo de origem corporativa o discurso do CEBES deve cobrar a universalidade, reivindicando um projeto

coletivo de reforma sanitária que transcenda interesses, que, embora justos são particularistas, exigindo a transfor-

mação da democracia atual em uma democracia substantiva.

AUTONOMIA E INSERÇÃO

O desafio atual é o de manter-se como uma organização autônoma, desvinculada do Estado, ao mesmo tempo em

que buscamos inserir nossas bandeiras na arena política, conquistando aliados dentro e fora do Estado.

11ª. Reunião de Planejamento Estratégico no Sítio Pedras Negras em 28 / 04 / 2007. PARTICIPANTES: Ana Costa; Ary Carvalho de Miranda; AssisMafort; Francisco Braga; Fuad Zamot (consultor); Lenaura Lobato; Ligia Bahia; Lígia Giovanella; Luciana Sucupira; Luiz Neves; Maria GabrielaMonteiro; Mario Scheffer; Paulo Amarante; e Sonia Fleury.

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DOCUMENTOS / DOCUMENTS

A preservação da autonomia necessária é difícil, na medida em que necessitamos de apoios políticos e materiais

de órgãos estatais, para estruturarmos uma base material minimamente eficiente e que assegure a eficácia de

nossas ações. No entanto, consideramos que esta relação de apoio não pode se configurar como dependência política

e temos convicção que seremos capazes de enfrentar este desafio.

Por outro lado, é importante reconhecer que nossos companheiros alcançaram chegar aos núcleos decisórios

governamentais e que é nosso dever apoiá-los e criar condições de sustentabilidade das medidas políticas que

consolidem a reforma sanitária. Mas, por mantermos a autonomia entre sociedade civil e Estado, temos que enfren-

tar as dificuldades inerentes à permanente postura crítica que é necessária para fazer a reforma avançar.

As condições para tanto são mais favoráveis agora que em outros momentos anteriores, considerando o fato de

termos como dirigente do Ministério da Saúde um companheiro que coloca nossas posições no seio do debate

político. Em pouco tempo, sua gestão foi capaz de reinserir a saúde como tema da sociedade (aborto, bebida,

prevenção), do governo (soberania em relação a multinacionais, separação Igreja e Estado, saúde como investimen-

to) e em relação ao mercado (patentes, preços de monopólio), para mencionar alguns aspectos. Somos solidários e

apoiamos estas iniciativas, mas reconhecemos que os limites para algumas das propostas encaminhadas serão

dados pela base de sustentação e orientação ideológica e econômica deste governo.

Por isto, nossa autonomia será imprescindível para inserir nossos interesses e também para cobrar posições

governamentais em relação a pontos nevrálgicos, nos quais a universalização da saúde seja ameaçada por medidas

econômicas que sigam retirando recursos da saúde – como a preservação da DRU, seja por medidas reformadoras

que signifiquem redução de benefícios para a população mais pobre – como algumas medidas propostas na reforma

previdenciária -, seja ainda pela ausência de uma proposta coerente de reforma do Estado na qual se defina uma

política para o funcionalismo público que assegure carreiras dignas e combata clientelismo, corrupção e troca de

favores , em detrimento da saúde da população.

Nossa capacidade de inserção de nossas estratégias na arena pública não depende de nossa adesão ao governo,

mas de nossa capacidade de fortalecer alianças na sociedade civil que garantam sustentabilidade às propostas que

defendemos.

Neste sentido, vemos como imprescindível nossa articulação mais orgânica com a rede de organizações, movi-

mentos e partidos políticos que possam revitalizar a sociedade civil em torno das questões sanitárias.

ESTRATEGIAS: UMA PRIMEIRA APROXIMAÇÃO

Consideramos que só poderemos ganhar o apoio da população para a defesa do sistema de saúde se conseguir-

mos que ele funcione pra valer, de forma humanizada e sem discriminações, com ações que sejam eficazes e efetivas

no acesso e utilização dos serviços. Portanto, temos claro que a construção, cotidiana e permanente, de um SUS de

qualidade é nosso ponto focal. Desde esta trincheira podemos lutar para que a democracia seja aprofundada. Enfren-

tar a desigualdade no acesso e atendimento, a drenagem de recursos públicos para o setor privado, a necessidade de

melhorar a qualidade do atendimento e de colocar o usuário cidadão como o centro do SUS; esta é nossa bandeira.

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DOCUMENTOS / DOCUMENTS

Para tanto, devemos manter o instrumento permanente da análise de conjuntura política, por meio do qual

podemos analisar o campo de lutas, os atores e suas arenas e estratégias. Desta forma, estaremos em melhores

condições para definir nossas alianças, escalonar prioridades em relação a manifestações e participações do CEBES,

não permitir que a organização seja usada para apoio a causas que sejam ou particulares ou confrontem com nosso

ideário, impedir o aparelhamento político e partidário dos núcleos e espaços do CEBES, atuar em conjunto com

outras forças sociais para dar a direção política da saúde na perspectiva da radicalização da reforma e da democra-

cia.

Em cada espaço que ocuparmos temos a obrigação de exercer a crítica a instituições e normas que, mesmo que

tenhamos sido favoráveis a sua criação, demonstrem sua inoperância ou desvirtuamento na conjuntura atual.

Revisitar os mecanismos decisores e participativos, repensar as relações entre instâncias governamentais, discutir a

articulação da saúde com outras políticas públicas, em especial na perspectiva de efetivação da Seguridade Social,

são nossos objetivos estratégicos.

Particularmente, neste ano devemos dar prioridade a nossa participação no Congresso da ABRASCO, ALAMES e

IHPS, marcando nossa presença política, divulgando nossa plataforma e estratégia e construindo uma rede de

alianças sólidas com outros atores sociais.Para tanto, precisamos fortalecer nossa linha de comunicação, com a

retomada da Revista Saúde em Debate, da coleção de livros, fortalecimento do boletim e desenvolvimento de uma

página eletrônica que permita nossa interação com os associados e simpatizantes.

Outra ação estratégica se concentra na discussão sobre a metodologia e o temário da XIII Conferência Nacional de

Saúde. Vamos discutir o que ocorreu até aqui com este poderoso instrumento de formação da vontade política, com

vistas a seu aprimoramento e melhoria da sua eficácia.

Este são os compromissos atuais do CEBES, aos quais se ajunta a necessidade de resgatar a história da reforma

sanitária, desde a perspectiva das lutas da sociedade civil organizada, da qual o CEBES é partícipe e detentor de um

enorme acervo que necessita resgatar e divulgar. Consideramos que estamos no caminho correto pois estamos sendo

capazes de desenvolver um trabalho de equipe, criar espaços de interlocução com outro atores, participar nas várias

frentes onde a sociedade civil se representa – como o Conselho Nacional de Saúde, aglutinar pessoas de diferentes

formações, posições e gerações em torno do debate da conjuntura, nos posicionarmos em relação a temas controver-

sos, enfim ampliar a esfera pública comunicacional no campo da saúde.

Estamos certos que este é apenas um começo e que muito mais poderá e deverá ser feito, na medida em que

formos capazes de mobilizar mais energias e recursos para ampliação do escopo da democracia atual.

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TEMPORÃO, José Gomes

400 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 400-410, set./dez. 2005

ENTREVISTA / INTERVIEW

CEBES entrevista José Gomes Temporão, ministro da Saúde1

CEBES interviews José Gomes Temporão, the Health Minister

1 A entrevista foi gravada nos estúdios do Canal Saúde, no dia 7 de julho de 2007, cujo vídeo comporá o acervo histórico do ProjetoMemória do CEBES. Excelente oportunidade para agradecer à generosidade e à competência técnica de todos os profissionais do CanalSaúde e do Centro de Documentação da ENSP (CEDOC), que participaram da gravação. Pelo CEBES, participaram Sonia Fleury, Ligia Bahia,Francisco Braga, Luiz Antonio Neves, Lenaura Lobato e Paulo Amarante.

No ano passado, a atual Diretoria Nacional assu-miu a entidade com uma proposta que ficou co-

nhecida como ‘Refundação do CEBES’. Uma proposta quenão se restringe a nós, mas que tem como objetivo aretomada do movimento da Reforma Sanitária brasilei-ra. Afinal, em 2006, o CEBES e a revista Saúde em Deba-te completaram 30 anos, com uma contribuição indis-cutível para a construção do pensamento e das práticascríticas e transformadoras em saúde neste país. A Re-fundação é a reafirmação do projeto plural e não parti-dário do CEBES, projeto este comprometido com a cons-trução da democracia e da saúde enquanto um proces-so instituinte de permanente reinvenção da sociedade.Dentre os muitos projetos da Diretoria no contexto daRefundação, julgamos importante resgatar e preservara história do próprio CEBES, o que gostaríamos de terfeito ainda quando contávamos com a companhia deDavid Capistrano, um de seus fundadores, Eric JennerRosas, Sergio Arouca e mesmo com Eleutério Rodri-gues dentre muitos outros companheiros. Afinal, ape-sar de todas as crises, das numerosas dificuldades, fo-ram editados 71 números da Saúde em Debate e 40 daDivulgação, além de vários títulos de livros e docu-mentos.

Denominamos este projeto de ‘Memória do CEBES’ e écom muito otimismo que damos início a ele entrevis-tando o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, cebi-ano de primeira hora, presidente nacional no período1981-83, e membro da Diretoria Nacional em várias ges-tões. O ministro Temporão fala da importância do CEBES

no início de sua formação médica e política, de suasvivências como sanitarista e de suas metas e projetos,estratégias e obstáculos à frente do Ministério da Saú-de. Fala, ainda, da 13ª Conferência Nacional de Saúde edas fundações estatais de direito privado.

Mas, o melhor é ouvir tudo do próprio ministro.

Sonia Fleury – Você pode imaginar nossa satisfa-ção em recebê-lo aqui, um ministro cebiano! Com estaentrevista, inauguramos o Projeto Memória do CEBES.Fale sobre sua experiência no CEBES, e o que você achaque a mesma agregou à sua trajetória política e pro-fissional?

José Gomes Temporão – Primeiro, queria agradecero convite e manifestar minha alegria de estar aqui nes-se debate com os companheiros cebianos. Tudo come-çou quando eu estudava medicina na UFRJ. No iníciodo segundo ano, eu tinha um amigo, o Gerson, um gi-necologista, que me convidou para trabalhar em NovaIguaçu, na Maternidade Nossa Senhora de Fátima. Eudava plantão com ele nos domingos. Gerson foi o pri-meiro médico que conheci que me mostrou como se dáa relação médico-paciente. Não foi na faculdade queaprendi isso, foi lá na Baixada. Comecei a aprendermuita coisa com ele. Naquela época, eu não tinha mui-ta idéia do que ia fazer; achava que ia fazer clínicamédica. Vivíamos na ditadura. Então, havia aquele cli-ma complicado na faculdade, também. Ali, na Baixa-da, eu tinha um contato muito próximo com a situaçãosocial – que já conhecia desde a época que trabalhei no

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ASSOCIE-SE AO CEBES E RECEBA AS NOSSAS REVISTAS

O CEBES tem duas linhas editoriais. a revista Saúde em Debate, que o associado recebe quadrimestralmente em abril,agosto e dezembro, e a Divulgação em Saúde para Debate, cuja edição tem caráter temático, sem periodicidade regular.

QUEM SOMOS

Desde a sua criação em 1976 o CEBES tem como centro de seu projeto a luta pela democratização da saúde e dasociedade. Nesses 30 anos, como centro de estudos que aglutina profissionais e estudantes, seu espaço esteveassegurado como produtor de conhecimentos com uma prática política concreta, em movimentos sociais, nasinstituições ou no parlamento.

Durante todo esse tempo, e a cada dia mais, o CEBES continua empenhado em fortalecer seu modelo democráticoe pluralista de organização; em orientar sua ação para o plano dos movimentos sociais, sem descuidar de intervirnas políticas e nas práticas parlamentares e institucionais; em aprofundar a crítica e a formulação teórica sobreas questões de saúde; e, em contribuir para a consolidação das liberdades políticas e para a constituição de umasociedade mais justa.

A produção editorial do CEBES é resultado do trabalho coletivo. Estamos certos que continuará assim, graças a seuapoio e participação.

A ficha abaixo é para você tornar-se sócio ou oferecer a um amigo! Basta enviar a taxa de associação(anuidade) de R$ 150,00 (institucional), R$ 100 (profissional) ou R$ 50,00 (estudante) em cheque nominal ecruzado, junto com a ficha devidamente preenchida, em carta registrada, ou solicitar, nos telefones ou e-mailabaixo.

CORRESPONDÊNCIAS DEVEM SER ENVIADAS PARA

CEBES – Centro Brasileiro de Estudos de SaúdeAv. Brasil, 4.036 – Sala 802 – Manguinhos – 21040-361 – Rio de Janeiro – RJ – BrasilTel.: (21) 3882-9140 e 3882-9141 – Fax.: (21) 2260-3782E-mail: [email protected] / [email protected]

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INSTRUÇÕES AOS AUTORES

SAÚDE EM DEBATE

Revista do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES),voltada para a área de Saúde Pública e Saúde Coletiva, publi-cada quadrimestralmente em abril, agosto e dezembro, é dis-tribuída a todos os associados em situação regular com a te-souraria do CEBES.

Aceita trabalhos inéditos sob forma de artigos originais,artigos de opinião, artigos de revisão ou de atualização, rela-tos de casos e resenhas de livros de interesse acadêmico, po-lítico e social.

Os textos enviados para publicação são de total e exclusivaresponsabilidade dos autores.

É permitida a reprodução total ou parcial dos artigos des-de que identificada a fonte e a autoria.

A publicação dos trabalhos está condicionada a pareceresde membros do Conselho Editorial e do quadro de PareceristasAd-Hoc (através do sistema duplo cego). Eventuais sugestõesde modificações da estrutura ou do conteúdo, por parte da Edi-toria, serão previamente acordadas com os autores. Não serãoadmitidos acréscimos ou modificações depois que os trabalhosforem entregues para a composição.

ARTIGOS

Seqüência de Apresentação do Texto

1. Título em português e em inglês. O título deve expres-sar claramente o conteúdo do artigo.

2. Folha de apresentação com nome completo do(s)autor(es), endereço, e-mail e no rodapé as referências profis-sionais (contendo filiação institucional e titulação). Quandoo artigo for resultado de pesquisa com financiamento, citar aagência financiadora.

3. Resumo em português e inglês (abstract), em que fiqueclara uma síntese dos propósitos, dos métodos empregados edas principais conclusões do trabalho; descritores (descrip-tors), mínimo de três e máximo de cinco palavras, não ultra-passando o total de 700 caracteres (aproximadamente 120palavras). Para os descritores utilizar os apresentados no vo-cabulário estruturado (DECS), encontrados no endereço http://decs.bvs.br. Caso não sejam encontrados descritores disponí-veis para a temática do artigo, poderão ser indicados termosou expressões de uso conhecido.

4. Artigo propriamente dito.

a) as marcações de notas de rodapé no corpo do texto,deverão ser sobrescritas. Ex.: Reforma Sanitária1

b) para as palavras ou trechos do texto que são destaca-dos a critério do autor, utilizar aspas simples. Ex.: ‘portade entrada’.

c) quadros e gráficos deverão ser apresentados, também,em folhas separadas do texto, numerados e titulados cor-retamente com indicações das unidades em que se ex-pressam os valores e com as fontes correspondentes.

d) os autores citados no corpo do texto deverão estar escri-tos em caixa baixa (só a primeira letra maiúscula), obser-vando-se a norma da ABNT NBR 10520: 2001 (dispo-nível em bibliotecas). Ex.: Conforme Mario Testa (2000).

e) as referências bibliográficas no corpo do texto, deve-rão ser apresentadas entre parênteses em caixa alta se-guidas do ano e, se possível, da página. Ex.: (MIRANDA

NETTO, 1986; TESTA, 2000, p. 15).

5. Referências Bibliográficas deverão ser apresentadas nofinal do artigo, observando-se a norma da ABNT NBR 6023:2000 (disponível em bibliotecas). Exs.:

CARVALHO, Antonio Ivo. Conselhos de saúde, responsabilidadepública e cidadania: a reforma sanitária como reforma do Es-tado. In.: FLEURY, Sônia Maria Teixeira (Org.). Saúde e demo-cracia: a luta do CEBES. São Paulo: Lemos, 1997. p. 93-112.

COHN, Amélia; ELIAS, Paulo Eduardo M.; JACOBI, Pedro. Participa-ção popular e gestão de serviços de saúde: um olhar sobre aexperiência do município de São Paulo. Saúde em Debate,Londrina (PR), n. 38, 1993. p. 90-93.

DEMO, Pedro. Pobreza política. São Paulo: Cortez, 1991. 111p.

EXTENSÃO DO TEXTO

O artigo propriamente dito deve conter até 15 laudas.Os artigos que ultrapassarem este total, serão devolvidosaos autores.

Obs.: 1 lauda tem 1.400 caracteres (com espaço), portantoa cada 20 linhas de 70 caracteres resulta em 1 lauda. Na cartade apresentação do artigo, o(s) autor(es) deve(m) mencionar onúmero de laudas.

RESENHAS

Serão aceitas resenhas de livros de interesse da área deSaúde Pública e Saúde Coletiva, a critério do Conselho Edi-torial. Devem dar uma noção do conteúdo da obra, de seuspressupostos teóricos e do público a que se dirige, em atétrês laudas.

ARTIGOS DE OPINIÃO

Serão aceitos trabalhos referentes a textos publicados narevista ou a assuntos de conjuntura de interesse nacional.Serão publicados a critério do Conselho Editorial. Devem con-ter até sete laudas.

ENVIO DO ARTIGO

1. Os trabalhos para apreciação do Conselho Editorial de-vem ser enviados à Secretaria Executiva do CEBES – Av. Brasil,4036 – sala 802 – CEP: 21040-361 Manguinhos – Rio deJaneiro – RJ

Tel.: (21) 3882-9140 e 3882-9141Fax.: (21) 2260-3782.

2. Deverão ser apresentados impressos em 03 vias e emdisquete. Aceitaremos textos no programa Word for Windows.

3. Os gráficos e/ou tabelas deverão ser apresentadas em

arquivo separado, no mesmo disquete.

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INSTRUCTIONS FOR AUTHORS

SAÚDE EM DEBATE

Journal of the Centro Brasileiro de Estudos de Saúde(CEBES) which focuses on Public Health and Collective Health,publishes every four months: April, August and December,and distributed to all associated individuals up-to-date withCEBES'treasury.

It accepts original studies in the form of original articles,opinion articles, review or update articles, case studies andcritical book reviews of academic, political, or social interest.

Texts sent for publishing are responsibility of the authors.Total or partial reproduction of articles is permitted, as

long as both authorship and source are identified.Publication of articles is subject to approval by the

Editorial Advisory Board and Ad-Hoc Partners (through adouble-blind system). Any suggestion of changes in structureor content, by the editors, will be previously agreed by theauthors. No changes or additions can be made after articlesare sent to typesetting.

ARTICLES

Text presentation sequence

1. Title in Portuguese and English. Titles must clearlyexpress article content.

2. Cover containing full author(s) name(s), address,Email, and, as footnotes, professional references (includinginstitutional affiliation and titles). When the article is aresult of a sponsored research, the sponsoring agency shouldbe mentioned.

3. Abstract in Portuguese and English, containing asummary of purpose, used methods and main work conclu-sions; descriptors, between three and five words, not morethan 700 characters (approximately 120 words). For descrip-tors use the ones presented in the available structuredvocabulary (DECS), which can be found at http://decs.bvs.br,in case available descriptors are not found for the article’stheme, terms or expressions of known use can be indicated.

4. Article.

a) footnote numbers inserted in the text must besuperscripted. E.g.: Sanitary Reform1

b) for highlighting words or excerpts the author shoulduse simple quotation marks. E.g.: ‘entrance’.

c) tables and graphics should also be presented inseparate sheets, numbered and correctly named, withindication of the units used and correspondingsources.

d) authors mentioned in the text should be written inlower case (only first letters of each name in capitalletters), according to regulation ABNT NBR 10520:2001 (available in libraries). E.g.: Mario Testa (2000)

e) bibliographic references in the text shall bepresented inside brackets and upper case followedby year and, if applicable, page. E.g.: (MIRANDA NETTO

1986; TESTA, 2000, p. 15).

5. Bibliographic References shall be presented in theend of the article, according to regulation ABNT NBR 6023:2000 (available in libraries). E. g.:CARVALHO, Antonio Ivo. Conselhos de saúde, responsabilidadepública e cidadania: a reforma sanitária como reforma do Estado.In.: FLEURY, Sônia Maria Teixeira (Org.). Saúde e democracia: aluta do CEBES. São Paulo: Lemos, 1997. p. 93-112.

COHN, Amélia; ELIAS, Paulo Eduardo M.; JACOBI, Pedro.Participação popular e gestão de serviços de saúde: um olharsobre a experiência do município de São Paulo. Saúde emDebate, n. 38, 1993. p. 90-93.

DEMO, Pedro. Pobreza política. São Paulo: Cortez, 1991. 111p.

TEXT LENGTH

The article itself must have a maximum of 15 pages.Articles that do not comply to this will be returned to authors.

Note: one page has 1,400 characters (including spaces),so every 20 lines of 70 characters each forms one page. In thearticle presentation letter, the author(s) must state thenumber of pages.

REVIEWS

Critical reviews of books of interest to Public Health andCollective Health, will be accepted, at the discretion of theEditorial Board. They must discuss book’s content, itstheoretical postulates and the audience it aims to reach, inup to three pages.

OPINION ARTICLES

Articles about previously published articles in thisjournal or about national interest issues will be accepted.These will be subject to Editorial Board approval. Must bemade up of seven pages maximum.

ARTICLE SUBMISSION

1. Articles should be submitted to the following addressfor appreciation by the Editorial Board: Secretaria Executivado CEBES – Av. Brasil, 4036 – sala 802 – CEP: 21040-361 –Manguinhos – Rio de Janeiro – RJ

Phone: +(55)21 3882-9140 and +(55)21 3882-9141Fax: +(55) 21 2260-3782.

2. Articles must be submitted in three copies and indiskette. We will accept articles in Word for Windowsprogram.

4. Graphics and/or tables must be presented in aseparate file, in the same diskette.

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