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João Barreiros

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João Barreiros

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Título: Se acordar antes de morrer

Autor: João Barreiros

Concepção gráfica da capa: Andreas Rocha

Paginação: Celina Barros

Impressão e Acabamentos: Mirandela Artes Gráficas, S.A.

1.ª Edição, Abril de 2010

Depósito Legal n.º 306 578/10

ISBN 978-989-557-703-3

Direitos reservados.

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ÍNDICE

Prefácio 7 Brinca comigo 13 Disney no céu entre os Dumbos 44 Efemérides 125 Fantascom A catastrófica chegada 131 Liscon 2060 217 Noite de Paz 228 A síndroma de Abraão 244 Os minino da noite 255 Por amor à prole 268 Por detrás da Luz 310

Se acordar antes de morrer 387 O teste 417 Sincronicidade 426 Uma noite na periferia do império 436

Um homem e o seu gato ou O Céu dos gatos é o inferno dos pardais 450 Posfácio 507

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PREFÁCIO

Sinto-me honrado por poder apresentar-vos este livro. Por várias razões, entre as quais avulta não só o respeito e admiração que tenho pelo autor e sua obra, mas também pela oportunidade do momento em que este volume nos é oferecido. A literatura de Ficção Científica portuguesa, a par de todo o género comum do fantástico, necessita de um instante destes, de uma publicação que nos faça pensar no passado, no presente e no futuro, em que a comunidade de leitores do género possa e deva ser confrontada com o que tem, com o que é, e com o que pode vir a ser. E é também uma boa altura para certos sectores repararem que algo de legítimo se passa fora dos cânones convencionais do realismo contemporâneo, para dar a conhecer um pouco mais ao grande público, este importante vislumbre de um corpus e de uma carreira dedicados à Ficção Científica, made in Portugal.

Já não sei precisar o ano em que conheci João Barreiros. Até aos primeiros encontros da Simetria, em Cascais a 1990, eu nada sabia dele, ou do mundo que era lá fora e cá dentro a ficção científica. Tinha indícios. Eu gostava de ler livros da colecção argonauta, e livros da colecção de fc da Europa-América. E umas outras edições estranhas de aspecto antigo, dos anos 60 e 70, que por vezes se en-contravam em alfarrabistas. Quando vi o anúncio dos 1ºs encontros da Simetria, fiquei com curiosidade e fui. E de todas as pessoas que conheci, João Barreiros tocou-me logo fortemente. Já não sei se o li primeiro ou se ouvi as suas histórias ou opiniões. Aprendi a res-peitar e a gostar do que este escritor, professor e crítico, tinha para dizer. E para contar. Foi ele, recordo, que me deu o meu primeiro

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conselho literário a sério: evitar um fim de história do tipo “ah! afinal era tudo um sonho”.

Com o tempo vim a saber algo da sua carreira, daqueles que o antecederam e de alguns dos que o acompanharam. Foi engraçado e revelador descobrir que já era notória a sua presença quando o movimento surrealista, apesar de simpatético pela FC, estava nos seus últimos estertores. E é estimulante que essa permanente pre-sença se continue a sentir, derivando em influência e importância, até aos dias de hoje. O autor não só é considerado pela sua escrita, de forma unânime, como a sua opinião sempre valorizada. De facto, João Barreiros está sempre presente nos eventos que mantêm o gé-nero vivo enquanto comunidade, e é uma das vozes constantes que luta contra o que parece ser a morte emininente da FC. Algo que, se lá fora ainda tem muito caminho para acontecer, aqui entre nós parece eminente, pois são raros os autores que cultivam o género. Tanto mais que, se se quer gostar de fantástico, mais vale ser de fantasias, e de fantasias épicas, ou de vampiros delico-doces. É o peso do mercado num mundo onde o futuro parece ter acabado. Mas um homem não é obrigado a conformar-se, a ceder à pressão; um homem pode gostar e escrever FC, pode falar de um mundo que se abeira do horror, como metáfora construída de metáforas, de metáforas tecnológicas. Pode negar a desafectação nazi que acomete a leitura acéfala de produtos escritos pronto-a-comer. E não gos-tando de quase nada que a literatura realista tem para oferecer, que fazer então senão navegar neste meio de aventura total da escrita e do pensamento que é a FC?

A carreira teve passos modestos, mas não por muito tempo. Pu-blicações aqui e ali antecederam a fama de O Caçador de Brin-quedos. O seu envolvimento na aventura que foi a “OMNI”. Os eventos por ele organizados, chancelas e colecções que dirigiu, tra-duções que elaborou e defesas públicas que fez do género.

O primeiro livro que li da sua prosa, o Caçador de Brinquedos, foi também o catalisador para juntar o meu gosto da FC ao gosto pela escrita e pelas actividades literárias. E a maior impressão foi a de pensar: afinal, é possível fazer disto em português. Era possí-vel fazer histórias interessantes, em situações incríveis, usando de uma linguagem sarcástica, imbuída de perigo eminente, brandindo referências cultas, semi-cultas, e do imaginário pop. Era possível

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escrever sem ser chato, possível passear numa Lisboa à beira da des-truição, habitar avatares virtuais, rumar nas entranhas de colossais bioconstructos e brincar com bonecos homicidas. A sua escrita in-dicava a possibilidade infinda do lúdico enquanto forma de expressão, de uma forma de entretenimento tudo menos acéfala, onde a lógica interna do texto é e deve ser importante, mas acima de tudo, res-peitada. Com uma assentada de bons contos, Barreiros deu-me a entender que o português era uma língua capaz de fazer tudo isso, algo que até então eu não pensara ser possível.

É justo portanto, que se faça agora uma compilação dos seus textos. De vez em quando fazem-se antologias unicamente pelas ra-zões certas: para dar a conhecer um panorama global da produção artística de um escritor. Não se trata de uma colectânea manhosa, com uma ou duas peças fortes e o resto sem relevância; não se en-contram aqui estados de alma, a não ser os que vão às costas de criaturas que brandem armas de destruição massiva, com a eminên-cia de serem usadas ou despoletadas com o máximo prejuízo. Não se encontram aqui romantismos sem nexo ou triângulos amorosos neuro-depressivos. E são histórias, todas elas boas. Porque tudo o que nelas se passa é importante e significa algo, ao mesmo tempo que todas divertem, simples e complexamente, todas elas estimu-lando interpretações.

Como todos concordarão, Barreiros é o nosso grande autor de FC; o único português que publica com alguma regularidade na distopia periférica do Cá-Dentro, que vai sendo, aos poucos, co-nhecido nesse mundo tecno-místico do Lá-Fora, e que se mantém sempre e irredutivelmente leal à FC Pura. Isto, embora não desde-nhe usar de outros elementos típicos do fantástico, nomeadamente na área do horror. Mas para o ler da melhor forma, há que saber compreender as referências pop da nossa cultura ou da que estamos a perder. Relembro Barreiros a dizer por escrito o quanto lamentou ver fechar antigas e míticas livrarias de FC londrinas, substituídas por centros comerciais livreiros que debitam fantasias ocas, escritas a metro pelos réis do best-seller bacoco; reconhecemos este cená-rio, transmutado nas paisagens dos seus contos, os sítios onde as personagens combatem o seu pequeno ou grande destino, levadas pela inexorabilidade fatal das suas escolhas e dos seus movimentos.

É também daqui que podemos derivar para os temas constantes

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da sua obra. As suas distopias são fracturantes. Dividem-nos entre o horror do que é e do que pode vir a ser; e também com a força do imaginário, do cenário bem pensado. Não são distopias confortá-veis: muitas vezes o herói ou o próprio mundo estão condenados à partida –, a mais das vezes ambos, como nos ensinou o melhor da tradição pulp. Aqui, a condição dos heróis, é sarcasticamente me-tafórica e pós-moderna. O herói tem uma falha qualquer, sempre essencial: a cupidez; a cegueira pessoal ou política, ou alguma mera estupidez natural. Ou está metido numa situação em que dificil-mente ele sairá ganhador. Em Barreiros podemos encontrar tudo aquilo que nos empolga nesse ambiente literário que é a ficção cien-tífica: a ideia de que o aborrecimento do leitor é o pior que um autor pode oferecer; a de que é possível arranjar situações impossíveis, que nos fazem pensar, seja pelo uso do sarcasmo ou da alegoria – e muitas vezes com ambas, de mãos geneticamente entrelaçadas, usando metáforas como títeres com reflexos actínios.

Um homem que entra num supermercado inevitavelmente para ser forçado e capturado à compra. Um astronauta capturado num planeta com o objecto perfeito do seu maior gozo e do seu horror, na forma de uma espécie especial de morte. Sabotadores de contornos mitopoéticos. Uma Zombieland lusa onde o herói é um andróide. São ideias com potencial filosófico embora nascidas do “momento lúdico”. E o que é especial, isto ser feito através da Ficção Científi-ca, faz com que a ficção de Barreiros seja também um último grito contra a barbárie, contra a ideia do Fim da FC que para ele é fulcral.

Uma ideia de enredo é central. E à volta dela existirá um antes e um depois, um clímax e uma resolução. Há storytelling, algo que Barreiros recupera um pouco para as nossas letras, e no qual nunca fomos muito fortes.

Há poucos contistas a sério, onde o leitor sabe que cada palavra, cada facto interno da narrativa teve de ser e foi revisto. Porque a FC é o campo da metáfora e da alegoria, não propriamente o da hipérbole. Isto já não é o português de Camões; é o século XX a demonstrar que existem outros discursos com um valor e uma esté-tica diferentes. Temos aqui um mestre da narrativa que passou para o lado de cá da literatura de pendor novecentista, sem complexos em relação à sociedade tecnológica em que vivemos.

Agora, no momento em que o caro leitor, começar a ler um destes

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contos, a língua terá de aceitar a tecnologia e as suas consequências, até a cabeça perceber o aviso dentro da história: atenção, que agora vai ser a doer... em direcção ao clímax situacional. E com este tema da distopia tecnológica, tão cara a Barreiros, entramos no campo em que o leitor ficará preso na página, na história e na prosa de maravilhamento partindo para um outro lugar, a outro momento, a cavalo de uma ideia outra. Um mundo do qual ninguém sai incólu-me. Se a razão prestar atenção. Porque como reza a frase: “Aqui na FC, um céu demasiado azul implica a possibilidade do sol se estar a transformar numa gigante branca...”. Barreiros dixit. E disse muito bem.

n.fonseca

Lisboa, 2010

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NOTA INTRODUTÓRIA

BRINCA COMIGO!

Brinca Comigo bem poderia ser uma sequela do já mítico Caça-dor de Brinquedos, embora este gentil relato decorra num universo alternativo ao da primeira história. Por isso mesmo, o estimado lei-tor não deverá ficar preocupado se desconhecer os modos como ali se caçavam brinquedos selvagens com extremo prejuízo. Desta feita já não há quem os cace, pois a humanidade desapareceu de vez, ví-tima de uma daquelas extinções globais. Apagou-se de uma vez por todas, como quem desliga um interruptor. Os brinquedos ficaram sozinhos, sem donos, sem crianças, sem ninguém que lhes arranque um membro locomotor ou lhes abra a barriga para ver como são por dentro. Escrevi-o a pensar no conceito da Singularidade de Ver-nor Vinge, mas resolvi, dada a limitação de espaço, escolher uma Singularidade bem mais modesta, à escala do nosso país. Ou seja, uma mini-Singularidade, composta pela efémera gestalt de um de-terminado número de IAS, unidas pelo mesmo propósito. Efémera porque no melhor dos casos, não dura mais do que alguns minutos antes de ser eliminada pelos sistemas automáticos de defesa criados para impedir este tipo de fenómenos. Eu sei, eu sei que estou a ten-tar colocar aqui uma pitadinha de metafísica, mas essa é a sina de quem deseja escrever FC pós-moderna. E enquanto mastigava este conto, ia-me lembrando de uma visita que fiz ao Museu Pollock em Londres, onde estão guardados todos os cadáveres dos brinquedos da época Vitoriana. Imaginem-me a percorrer corredores esconsos e obscuros cobertos de vitrinas de lado a lado. E lá dentro, arru-madas em filas, a olharem-me sorridentes e de olhos esbugalhados, as bonecas: Cabeças de loiça, algumas ainda com cabeleiras huma-nas, crespas ou escorridas. Sentadas ao lado das companheiras mais proletárias, feitas de gesso e de cartão, com as carecas pintadas a simular uma sombra de capilaridade. Vestidas de bibes e laços. Sem nenhuma parte anatómica à vista. O berlinde azulado de centenas

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de olhos fulgia de maldade no meio da penumbra. As mãozinhas – com a maior parte dos dedos amputados – estendiam-se na minha direcção como que a pedir que as levasse dali para fora. Os corredo-res cheiravam a pó, resina, e à passagem irremediável do tempo. As bonecas, que certamente deveriam ter assombrado a noite dos petizes da média e alta burguesia, tinham sobrevivido aos seus donos, como se o tempo tivesse outro sentido para elas. Em boa verdade os nossos artefactos hão-de durar muito mais do que a nossa transitória passa-gem por este mundo. Num universo onde a humanidade partiu para outras paragens, os brinquedos hão-de vaguear até que se estraguem de vez, num vago e terno desespero, em busca de um dono que nunca mais voltará.

JB

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BRINCA COMIGO!

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Rupert23, o Urso, está deitado de costas, sobre a gravilha de um parque de estacionamento à beira da estrada, de ventre rasgado, com as fichas de diagnóstico à mostra no interior de uma barriga que pretendia ser fofa, mas que neste momento não é mais do que uma portinhola aberta sobre um emaranhado de micro cabos, pla-cas de sintaderme necróticas coladas a tubagens por onde escorre um fluido bilioso. A bomba vascular que faz as vezes do coração já não consegue ter energia suficiente para impelir os fluidos carrega-dos de toxinas e CO2 na direcção dos filtros pulmonares. Os olhos negros do biobrinquedo piscam quase por reflexo, a pata esquerda e descascada na palma por anos e anos de atrito contra solos agrestes, estremece ainda, o braço direito gira num movimento rotativo que faz elevar a carcaça de cinco em cinco segundos, mas a verdade é que Rupert23 entrou no ciclo terminal, com todos os sistemas de diagnóstico a enviar uploads para uma central hospitalar que já não existe.

Noddy50, porque dispõe de dedos, vasculha no interior deste ventre aberto em busca das micro baterias recarregáveis, mas quan-do finalmente as encontra, disfarçadas na base occipital da cabeça orelhuda, descobre desagradado aquilo que já esperava. As micro baterias não são universalmente compatíveis. Ou seja, respondem a preceitos específicos da fábrica que as criou, podem ser trocadas

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apenas entre Fluffy-Toys™, nunca poderão servir a si, aos Ken, aos Action-Men. E como se isso não bastasse, como se não fosse humi-lhação suficiente estar ali de joelhos, naquele fim de tarde húmido, ainda vai ter de recuar, de ceder o direito de posse ao Rupert19, que aguarda de pé, a dançar, apenas a alguns metros do círculo de exclusão que se formou em torno do biobrinquedo moribundo. Noddy50 acena com a cabeça, com as pálpebras a subir e a descer sobre os olhos esbugalhados que uma certa corrente da psicologia afirmou ser atractiva para os humanos. Rupert23 já quase não se move. – Erro terminal –, diz numa voz roufenha, a brotar algures de um laringofone descalibrado. – Erro terminal. Para que não se percam informações, fotos de família e momentos de relação inter pares, por favor, diga SAVE e chame os paizinhos... – E por fim, cala-se a meio da despedida porque Noddy50 resolveu arrancar-lhe as baterias e acabar de uma vez por todas com esta agonia intermi-nável. Que se lixem as memórias perdidas. O mais certo é os fichei-ros estarem todos degradados pelo download de programas virais. Quem as viveu, decerto está morto há muito tempo e não precisa delas para nada.

E neste pequeno intervalo de silêncio, enquanto Noddy50 se põe de pé decidido a trocar as baterias recém recolhidas por outros fa-vores que só os FluffyToys™ sabem dispensar, a Horda dá-se conta da perda irreparável de um dos seus elementos. Os automóveis fa-lantes fazem soar as buzinas. (Pelo menos aquelas que ainda fun-cionam). As mamãs locomotivas avançam e recuam, com as rodas trilhadas a lançar faíscas sobre a gravilha do parque. Barbies e Kens choram lágrimas de crocodilo. Cavalinhos e avionetas empinam-se e escoiceiam. Os biobrinquedos dotados de capacidade de canto, trinam melosas melopeias onde todos são amigos, onde se canta de mãos dadas, meninos e meninas de todas as cores e de todas as partidas do mundo, como se isso fosse possível, como se ainda hou-vesse mãos que não fossem feitas de ossadas.

O parque automóvel está deserto, aparte uns quantos camiões cisterna abandonados em frente à lojinha das conveniências. Lá dentro, do outro lado das janelas feitas em estilhaços, junto aos bal-cões de zinco e das mesas do café manchadas de pinguinhos cor de ferrugem, vinte múmias humanas jazem lado a lado com os carta-zes derrubados dos HappyBurgers, e dos expositores vazios onde

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antes havia fieiras de Crispynuggets, garrafas de sumos multivita-minados e barras melosas de chocolate. Nuvens de tempestade cir-culam lá no alto, anunciando um novo furacão. Outras nuvens mais baixas, feitas de varejeiras e moscardos, zumbem irritadas por esta invasão sonora. Já tentaram descer em enxame sobre a Horda de biobrinquedos, mas a verdade é que nada ali existe de comestível, nenhum lugar onde possam crescer as novas gerações de larvas.

Aproxima-se a noite, um novo vendaval, chuvas de monção, que não são nada úteis a criaturas que dependem parcialmente de cir-cuitos eléctricos e que fogem da humidade como o diabo da cruz.

Mas durante o decorrer de todos estes anos de desolação, a Hor-da aprendeu a sobreviver. A Horda tem um objectivo. A Horda sabe como se deve sacrificar pelo bem comum, trocar e canibalizar peças uns dos outros. A Horda é obrigada a respeitar imperativos mais cruéis e implacáveis do que o próprio instinto animal.

Procurar abrigo. Esconder-se da tempestade. E depois rumar na direcção do Sul.

Apenas isso e nada mais.

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Antes da queda na noite, enquanto o sopro do vento permanecia dentro dos parâmetros toleráveis, ou seja, ainda incapaz de arras-tar consigo um boneco com apenas um palmo de altura, Ken21 e Action-M7 escalaram até ao telhado da lojinha das conveniências. Serviram-se dos kits correspondentes, o Ken-“Montanhista” e o Action-M “Infiltrador”. A mola da espingarda lança-espigões de Action-M7 teve de ser substituída pela pertencente ao modelo 6, cedência que só aconteceu após uma longa meia hora de protocolos de humilhação e demonstrações de quem-é-mais-forte-em-comba-te-singular. Mas a verdade é que os mio-circuitos do braço esquer-do do Action-Ma6 há muito que tinham entregue a alma à entidade criadora. Obrigaram-no a concluir que os manetas não escalam fa-lésias agrestes. Soldados com um braço desarticulado não têm outra saída senão candidatarem-se a uma súbita e imerecida reforma nas prateleiras dos donos, ou à reciclagem pura e simples. Pior ainda, na loja não havia kits de combate à venda, talvez porque a autorida-de humana que em tempos controlava o comércio à beira da estra-da, tivesse decidido que não era pedagógico vender brinquedos tão pouco sociáveis como um Action-Man-Contra-o-Eixo-do-Mal. Mas cada um arranja-se como pode.

Sob a atenção expectante da Horda, Ken21 e Action-M7 foram disparando as respectivas espingardas lança-espigões, uma, duas, trinta vezes, com uma paciência que só se poderia chamar de mecâ-nica, até que um deles, enfim, lá se enrodilhou nos grampos de ferro do telhado que sustentavam um velho néon a anunciar descontos nas Maxi-Pizzas Mestre Guillioni. E fixas as cordas de ascensão,