“Se não ‘voltarmos a si’ logo, teremos sido · osso, mas eles podiam ouvir os ritmos...

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“Se não ‘voltarmos a si’ logo, teremos sidoprivados para sempre da chance de construiruma alternativa significativa à pseudoexistên-cia que chamamos de vida em nossa atual ‘Ci-vilização da Imagem’.” ― David Howes

Em que medida pode-se dizer que estamos real-mente vivendo? Ao passo que a substância da culturaparece desvanecer e oferecer cada vez menos consolopara nossas vidas conturbadas, somos levados a olharmais profundamente para nossos tempos estéreis epara o lugar que a própria cultura ocupa em tudo isso.

Um angustiado Ted Sloan pergunta-se (1996):“Qual é o problema com a modernidade? Por queas sociedades modernas têm tanta dificuldade emcriar adultos capazes de intimidade, atividade cria-tiva, satisfação e uma vida ética? Por que os sinaisda vida danificada são tão preponderantes?”. Deacordo com David Morris (1994), “o sofrimento e adepressão crônicos, geralmente conectados e ocasi-onalmente considerados até mesmo como um só e omesmo distúrbio, constituem uma imensa crise nocerne da vida pós-moderna.”. Temos o ciberespaço,

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a realidade virtual e a comunicação computadoriza-da instantânea na aldeia global; e, no entanto, algu-ma vez já nos sentimos tão empobrecidos e isola-dos quanto nos encontramos hoje?

Tal como Freud previu que a consumação da ci-vilização implicaria a infelicidade neurótica univer-sal, correntes anticivilização estão crescendo emresposta à indigência psíquica que nos cerca. As-sim, a vida simbólica, essência da civilização, en-contra-se agora sob fogo cerrado.

Pode-se ainda dizer que esse elemento dentre osmais familiares, ainda que artificial, é o menos com-preendido, mas a urgência da necessidade move acrítica, e muitos de nós se sentem impelidos a inves-tigar a fundo esse modo de vida que se torna cadavez pior. De uma sensação de se estar aprisionado elimitado pelos símbolos advém a tese de que o grauem que o pensamento e a emoção estão atrelados aosimbolismo é a medida pela qual a ausência ocupa omundo interior e destrói o mundo exterior.

Ao que parece, passamos pela experiência deuma queda na representação, cuja profundidade ecujas consequências somente agora estão sendo

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perscrutadas inteiramente. Em um tipo fundamentalde falsificação, os símbolos primeiramente media-ram a realidade e, em seguida, substituíram-na.Atualmente, vivemos dentro dos símbolos em umgrau muito maior do que vivemos em nosso eu cor-poral ou diretamente uns com os outros.

Quanto mais entranhado em nós esse sistema re-presentacional interno estiver, tanto mais distancia-dos da realidade à nossa volta ficaremos. Outras co-nexões e outras perspectivas cognitivas foram inibi-das, para se dizer o mínimo, à medida que a comuni-cação simbólica e sua miríade de esquemas repre-sentacionais perpetraram uma alienação em relação àrealidade e uma traição dessa mesma realidade.

Essa interposição e a distorção e o distancia-mento concomitantes são ideológicos em um senti-do primário e original; toda ideologia subsequenteé um eco dessa primeira. Debord descreveu a socie-dade contemporânea como uma sociedade que banea vida em favor de sua representação: as imagensagora assumiram as rédeas e comandam a vida.Mas isso é tudo menos um problema novo. Há umimperialismo ou expansionismo da cultura desde o

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início. E o quanto exatamente a cultura conquista?A filosofia hoje diz que é a linguagem que pensa efala. Mas em que medida sempre foi assim? A sim-bolização é linear, sucessiva, substitutiva; ela é in-capaz de manter-se aberta ao objeto em sua totali-dade simultaneamente. Sua razão instrumental énada mais do que isto: manipuladora e em busca dedomínio. Sua abordagem é “que ‘a’ represente ‘b’”,em vez de “que ‘a’ seja ‘b’”. A linguagem tem suasbases no esforço por conceitualizar e igualar aquiloque não é igual, ignorando assim a essência e a di-versidade de uma riqueza variada e variável.

O simbolismo é um império vasto e profundo quereflete uma visão de mundo e a torna coerente, e é elemesmo uma visão de mundo baseada no afastamentoem relação ao sentido humano imediato e inteligível.

James Shreeve, ao final de sua obra The Nean-dertal Enigma [O enigma do Neandertal] (1995),oferece uma bela ilustração de uma alternativa aoser simbólico. Meditando a respeito de como umaconsciência não-simbólica original poderia ter sido,ele suscita importantes distinções e possibilidades:

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“[…] ao passo que se pode dizer que os deusesdos modernos habitam a terra, o búfalo ou as folhasda relva, o espírito do Neandertal era o animal ou afolha da relva, a coisa e sua alma percebidas comouma força vital una, sem a necessidade de distingui-las com nomes separados. De modo semelhante, aausência de expressão artística não impede aapreensão daquilo que é artístico no mundo. Os Ne-andertais não pintavam suas cavernas com imagensde animais. Mas talvez eles não tivessem a necessi-dade de destilar a vida em representações, porquesuas essências já haviam sido reveladas para os seussentidos. A visão de uma manada em movimentoera suficiente para inspirar um senso de beleza arre-batador. Eles não tinham tambores ou flautas deosso, mas eles podiam ouvir os ritmos retumbantesdo vento, da terra e dos batimentos cardíacos unsdos outros, e ser transportados.”

Em vez de celebrar a comunhão cognitiva com omundo que Shreeve sugere que outrora desfrutáva-mos, e muito menos de embarcar no projeto de ten-tar recuperá-la, o uso dos símbolos é, claro, ampla-mente considerado o sinal distintivo da cognição hu-mana. Goethe disse “Tudo é símbolo.”, enquanto ocapitalismo industrial, marco da mediação e da alie-nação, ascendia. Por volta da mesma época, Kant de-terminou que a chave para a filosofia encontra-se na

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resposta à questão: “Qual é o fundamento da relaçãodaquilo em nós que chamamos de ‘representação’com o objeto?”. Infelizmente, ele legou ao pensa-mento moderno uma resposta ahistórica e fundamen-talmente inadequada, a saber, que nós simplesmentenão somos constituídos de modo a sermos capazesde compreender a realidade diretamente. Dois sécu-los mais tarde (1981), Emmanuel Levinas chegoumuito mais perto do cerne da questão com sua afir-mação de que “A filosofia, em sua diacronia mesma,é a consciência da ruptura da consciência.”.

Eli Sagan (1985) foi o porta-voz de inúmeras outraspessoas ao declarar que a necessidade de simbolizar ede viver em um mundo simbólico é, tal como a agres-são, uma necessidade humana tão básica que “ela so-mente pode ser negada sob pena de um severo transtor-no psíquico.”. No entanto, a necessidade de símbolos –e de violência – nem sempre prevaleceu. Em vez disso,eles têm suas origens no bloqueio e na fragmentação deuma plenitude primitiva, no processo de domesticaçãodo qual a civilização surgiu. Aparentemente impulsio-nada por um aumento em gradual aceleração na divisão

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do trabalho que começou a consolidar-se no PaleolíticoSuperior, a cultura emergiu como tempo, linguagem,arte, número e, finalmente, agricultura.

A palavra ‘cultura’ deriva do termo latino ‘cul-tura’, que se refere ao cultivo do solo; isto é, à do-mesticação de plantas e de animais – e de nós mes-mos no processo. Um espírito inquieto de inovaçãoe de ansiedade tem, em grande medida, nos acom-panhado desde então, ao passo que modos simbóli-cos em contínua mutação tentam consertar aquiloque não pode ser remediado sem que se rejeite osimbólico e seu mundo alienado.

Na esteira de Durkheim, Leslie White (1949) es-creveu: “O comportamento humano é comportamentosimbólico; o comportamento simbólico é comporta-mento humano. O símbolo é o universo da humanida-de.”. É passada a hora de percebermos tais pronuncia-mentos como ideologia, que serve para apoiar a falsi-ficação fundamental subjacente a uma falsa consciên-cia que abarca praticamente tudo. Mas se um mundosimbólico plenamente desenvolvido não é, em suma,na afirmação vaga de Northrop Frye (1981), “o esta-tuto de nossa liberdade”, o antropólogo Clifford

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Geertz (1965) chega mais perto da verdade ao dizerque, em geral, somos dependentes “da orientação pro-porcionada pelos sistemas de símbolos significati-vos.”. Ainda mais perto chegou Cohen (1974), queobservou que “os símbolos são essenciais para o de-senvolvimento e a manutenção da ordem social.”. Oconjunto dos símbolos representa a ordem social e olugar que o indivíduo ocupa dentro dela, uma formu-lação que sempre deixa inquestionada a gênese dessemodo de organização social. Como nosso comporta-mento veio a ser enquadrado pela simbolização?

A cultura surgiu e floresceu através da domina-ção da natureza, sendo o seu crescimento um parâ-metro do controle progressivo que se desenvolveucom uma divisão do trabalho cada vez maior. Mali-nowski (1962) entendeu o simbolismo como a almada civilização, principalmente sob a forma de lin-guagem como um meio de coordenar as ações oude padronizar a técnica e de oferecer regras para ocomportamento social, ritual e industrial.

É nossa queda em relação a uma simplicidade euma exuberância de vida diretamente vivenciadas,em relação ao instante sensível do conhecer, que

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deixa uma lacuna que o simbólico nunca será capazde preencher. Isso é o que está sempre sendo enco-berto pelas camadas de consolos culturais, um sub-terfúgio civilizado que nunca é capaz de recuperara plenitude perdida. Em um sentido muito profun-do, apenas aquilo que é reprimido é simbolizado,porque apenas aquilo que é reprimido precisa sersimbolizado. A magnitude da simbolização atesta oquanto tem sido reprimido; algo que está soterrado,mas que talvez ainda possa ser resgatado.

Por um longo período de tempo, muito pro-vavelmente de modo imperceptível, a divisão dotrabalho avançou muito lentamente e afinal co-meçou a arruinar a autonomia do indivíduo e ummodo cara-a-cara de vida social. O vírus desti-nado a atingir a plena maturação sob a forma decivilização começou deste modo: como umatese experimental sustentada por tudo aquiloque agora nos vitimiza. Da alienação inicial àcivilização avançada, o percurso é marcado pormais reificação, dependência, burocratização,desolação espiritual e tecnificação estéril.

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Não é de se admirar que a questão da origem dopensamento simbólico, a atmosfera mesma da civili-zação, surja com certa força. Por que a cultura deve-ria existir, em primeiro lugar, parece ser, cada vezmais, um modo mais apto de se colocar essa questão,em especial à luz da enorme antiguidade da inteli-gência humana agora comprovada, principalmente apartir da demonstração persuasiva de Thomas Wynn(1989) do que foi necessário para que se pudesseconfeccionar as ferramentas de pedra de cerca de ummilhão de anos atrás. Houve um hiato muito eviden-te entre a capacidade humana demonstrada e a inici-ação da cultura simbólica, com milhares de geraçõesinterpondo-se entre as duas.

A cultura é um fenômeno relativamente recente.A arte rupestre mais antiga, por exemplo, é de cercade 30.000 anos atrás, e a agricultura somente teveinício há aproximadamente 10.000 anos. O elemen-to perdido durante o vasto intervalo entre a épocaem que havia QI disponível para possibilitar a sim-bolização e a sua efetiva realização foi uma mudan-ça em nossa relação com a natureza. Parece plausí-vel ver nesse intervalo, em um nível que talvez

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nunca sejamos capazes de compreender, uma recusaem lutar pelo domínio da natureza. É possível que so-mente quando essa luta por domínio foi introduzida,provavelmente de um modo não-consciente, atravésde uma divisão do trabalho muito gradual, que a sim-bolização das experiências começou a consolidar-se.

No entanto, como tantas vezes se alega, a vio-lência dos primitivos – sacrifício humano, caniba-lismo, caça de cabeças, escravidão, etc. – somentepode ser domada pela cultura simbólica/civilização.A resposta simples para esse estereótipo do primiti-vo é que a violência organizada não foi erradicadapela cultura, mas, na verdade, começou com ela.William J. Perry (1927) estudou vários povos doNovo Mundo e notou um contraste impressionanteentre um grupo agrícola e um grupo não-domesti-cado. Ele considerou este último “muito inferior emcultura, mas isento dos costumes abomináveis [doprimeiro].”. Ao passo que praticamente toda socie-dade que adotou uma relação domesticada com anatureza, no mundo todo, tornou-se sujeita a práti-cas violentas, as sociedades não-agrícolas não co-nheciam a violência organizada. Durante muito

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tempo, os antropólogos focaram-se nos povos indíge-nas da Costa Noroeste [dos EUA] como uma rara ex-ceção a essa regra-de-ouro. Embora fossem essencial-mente um povo pescador, a certa altura eles introduzi-ram escravos e estabeleceram uma sociedade extre-mamente hierárquica. Até mesmo aqui, contudo, a do-mesticação estava presente, sob a forma de cães do-mesticados e de tabaco como um cultivo menor.

Sucumbimos à objetificação e deixamos queuma rede de cultura no controle e nos diga comoviver, como se isso fosse um desenvolvimento na-tural. É qualquer coisa menos isso, e deveria estarclaro para nós o que a cultura/civilização de fatonos trouxe, e do que ela nos privou.

O filósofo Richard Rorty (1979) descreveu a cul-tura como o conjunto de pretensões de conhecimen-to. No reino do ser simbólico, os sentidos são depre-ciados, por causa de sua separação e de suas atrofiassistemáticas sob a civilização. O sensível não é con-siderado uma fonte legítima de pretensões à verdade.

Nós, humanos, outrora permitíamos uma recep-ção plena e apreciativa da totalidade das impres-sões sensoriais, o que em alemão chama-se de

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Umwelt, ou o mundo à nossa volta. Heinz Werner(1940, 1963) argumentou que originalmente havia umúnico sentido, antes que as divisões na sociedade cau-sassem a ruptura da unidade sensorial. Os povos não-agrícolas sobreviventes geralmente exibem, na intera-ção e na interpenetração dos sentidos, uma consciên-cia e um envolvimento sensoriais muito maiores doque os indivíduos domesticados (E. Carpenter, 1980).Exemplos impressionantes abundam, tal como o dosBosquímanos, que são capazes de enxergar quatroluas de Júpiter a olho nu e são capazes de ouvir umavião monomotor de pequeno porte há aproximada-mente 110 quilômetros de distância (Farb, 1978).

A cultura simbólica inibe a comunicação huma-na ao bloquear e, sob outros aspectos, suprimir oscanais de consciência sensorial. Uma existênciacada vez mais tecnológica nos força a rejeitar amaior parte daquilo que poderíamos vivenciar. Adeclaração de William Blake vem à mente:

“Se as portas da percepção fossem purificadas, tudo apa-receria ao humano tal como é, infinito. Porque o humano fe-chou-se em si mesmo, ao ponto em que ele vê todas as coisasunicamente através das estreitas fendas de sua caverna.”

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Laurens van der Post (1958) descreveu comuni-cação telepática entre os ǃKung na África, o que le-vou Richard Coan (1987) a caracterizar tais modoscomo “representando uma alternativa, em vez de umprelúdio ao tipo de civilização em que vivemos.”.

Em 1623, William Drummond escreveu: “Quedoces satisfações a alma desfruta através dos senti-dos. Eles são os portais e as janelas de seu conheci-mento, os órgãos de seu deleite.”. De fato, o “Eu”,para não dizer a “Alma”, não existe na ausência dassensações corporais; não há estados de consciêncianão-sensoriais. Mas é demasiado evidente comonossos sentidos foram domesticados em uma at-mosfera cultural simbólica: subjugados, separadose organizados em uma hierarquia reveladora. A vi-são, sob o signo da perspectiva linear moderna, pre-domina porque ela é o menos próximo dos senti-dos, o que mais distância. Ela é o meio através doqual o indivíduo foi transformado em um especta-dor, o mundo em um espetáculo, e o corpo em umobjeto ou espécime. O primado do visual não é aci-dental, já que uma elevação excessiva da visão nãoapenas situa o observador fora do que ele vê, mas,

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em um nível mais fundamental, possibilita o princí-pio de controle ou de dominação. O som ou a audi-ção como o suprassumo dos sentidos seria bem me-nos adequado à domesticação porque ele envolve epenetra tanto o falante quanto o ouvinte.

Outras faculdades sensíveis são bem maisdesconsideradas. O olfato, que somente perde suaimportância quando suprimido pela cultura, antesera um meio vital de conexão com o mundo. A li -teratura sobre a cognição ignora quase completa-mente o sentido do olfato, bem como o fato deque seu papel esteja agora tão circunscrito entreos humanos. Ele é, afinal, de pouca utilidade parafins de dominação; considerando-se como o olfa-to é capaz de evocar, tão diretamente, até mesmolembranças muito distantes, talvez ele seja atémesmo uma espécie de faculdade antidominação.Lewis Thomas (1983) observou que “O ato de secheirar algo, o que quer que seja, é, notavelmen-te, análogo ao próprio ato de pensar.”. E se não éassim que as coisas são atualmente, muito prova-velmente é assim que elas costumavam ser e quedeveriam ser novamente.

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As experiências ou práticas táteis são outra áreada sensibilidade à qual se espera que renunciemosem prol de substitutos simbólicos compensatórios. Osentido do tato de fato foi diminuído em uma exis-tência sintética, ocupada com o trabalho e de longadistância. Há pouca ênfase e pouco tempo para o es-tímulo ou a comunicação táteis, muito embora essaprivação gere consequências claramente negativas.Nuances de sensibilidade e de ternura são perdidas, ebem se sabe que bebês e crianças que raramente re-cebem colo, toque e carinho desenvolvem-se lenta-mente e em geral são retraídos emocionalmente.

Tocar, por definição, envolve sentir; ser “to-cado” é sentir-se emocionalmente movido, umlembrete da força original do sentido do tato, talcomo na expressão “manter contato”. A dimi-nuição dessa categoria da sensibilidade, entreoutras, tem tido graves consequências. A sua re-novação, em um mundo ressensibilizado e reu-nido, trará uma potencialização da vida igual-mente crucial. Tal como Tommy clamou, naópera rock homônima da banda The Who: “Veja-me, sinta-me, toque-me, cure-me…”.

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Assim como com os animais e as plantas, a ter-ra, os rios e as emoções humanas, os sentidos fo-ram isolados e subjugados. A noção aristotélica deum esquema “adequado” do universo decretava que“cada um dos sentidos tem sua esfera apropriada.”.

Freud, Marcuse e outros perceberam que a civili-zação demanda a sublimação ou repressão dos pra-zeres dos sentidos de proximidade, de tal forma queo indivíduo possa assim ser convertido em um ins-trumento de trabalho. O controle social, através darede do simbólico, deliberadamente desempodera ocorpo. Um contramundo alienado, levado a uma ali-enação cada vez mais profunda por uma divisão dotrabalho cada vez maior, reduz na pessoa as própriassensações somáticas e a distrai fundamentalmentedos ritmos básicos de sua própria vida.

A ruptura definitiva entre mente e corpo, atribuí-da às formulações de Descartes no século XVII, é osinal distintivo mesmo da sociedade moderna. Aqui-lo a que se tem referido como a grande “angústiacartesiana” em relação ao fantasma do caos intelec-tual e moral foi resolvido em favor da supressão dadimensão sensível e passional da existência humana.

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Mais uma vez, vemos o impulso de domesticaçãosubjacente à cultura, o medo de não estar no contro-le, que agora acusa os sentidos por vingança. Dora-vante, a ciência e a tecnologia têm uma licença teóri-ca para avançar sem limites, tendo o conhecimentosensível sido efetivamente erradicado em termos depretensão à verdade ou à compreensão.

Percebendo o que essa barganha nos trouxe, umareação profunda está surgindo contra o vasto projetosimbólico que nos oprime e que invade cada parte denós. “Se não ‘voltarmos a si’ logo”, tal como julgouDavid Howes (1991), “teremos sido privados parasempre da chance de construir uma alternativa signifi-cativa à pseudoexistência que chamamos de vida emnossa atual ‘Civilização da Imagem’.”. A tarefa dacrítica pode ser, de um modo mais fundamental, nosajudar a compreender o que será necessário para che-garmos a um ponto em que estejamos verdadeiramen-te presentes uns para os outros e para o mundo.

A primeira separação parece ter sido o senso detempo, que traz consigo uma perda do estar presen-te para si mesmo. O aumento desse senso é quaseindistinguível do senso da alienação mesma. Se, tal

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como Lévi-Strauss (1966) coloca, “o traço caracte-rístico da mente selvagem é sua atemporalidade”,viver no aqui e agora é algo que se perde graças àmediação das intervenções culturais. A presentida-de é protelada pelo simbólico, e essa recusa do ins-tante contingente é o nascimento do tempo. Caímossob o feitiço daquilo que Eliade chamou de “terrorda história”, na medida em que as representaçõesopõem-se efetivamente à atração exercida pela ex-periência perceptiva imediata.

A obra The Myth of the Eternal Return [O mitodo eterno retorno] (1954), de Mircea Eliade, ressaltao temor que todas as sociedades primitivas tiveramda história, da passagem do tempo. Por outro lado,as vozes da civilização tentaram celebrar nossa imer-são nesse que é um dos mais básicos construtos cul-turais. Leroi-Gourhan (1964), por exemplo, viu naorientação pelo tempo “talvez o ato humano por ex-celência.”. Nossas percepções tornaram-se tão go-vernadas e saturadas pelo tempo que é difícil imagi-nar a ausência geral do tempo: pelo mesmo motivo,é tão difícil vislumbrar, a esta altura, uma existênciasocial não-alienada, não-simbólica e não-dividida.

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A história, de acordo com Peterson e Goodall(1993), é marcada por uma amnésia a respeito deonde viemos. A sua estimulante obra Visions of Cali-ban [Visões de Caliban] também apontou para o fatode que nosso grande esquecimento pode muito bemter começado com a linguagem, o dispositivo quedeu origem ao mundo simbólico. A linguista compa-rativa Mary LeCron Foster (1978, 1980) acreditaque a linguagem talvez tenha menos de 50.000 anosde existência e que ela surgiu com os primeiros im-pulsos em direção à arte, ao ritual e à diferenciaçãosocial. A simbolização verbal é o principal meio deestabelecer, definir e manter o mundo cultural e deestruturar nosso próprio pensamento.

Tal como Hegel disse algures, questionar a lin-guagem é questionar o ser. É muito importante,contudo, resistir a esse tipo de exagero e conside-rar a distinção, em primeiro lugar, entre a impor-tância cultural da linguagem e as limitações quelhe são inerentes. Sustentar que tanto nós quanto omundo somos nada além de criações linguísticas éapenas uma outra maneira de se dizer o quão pe-netrante e controladora é a cultura simbólica. Mas

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a afirmação de Hegel vai longe demais, e a decla-ração de George Herbert Mead (1934) de que parase ter uma mente é preciso que haja uma lingua-gem é igualmente hiperbólica e falsa.

A linguagem transforma o sentido e a comunica-ção, mas não é sinônima em relação a eles. O pensa-mento, tal como Vendler (1967) o compreendeu, é es-sencialmente independente da linguagem. Estudos depacientes e de outras pessoas às quais faltam todos osaspectos da fala e da linguagem demonstram que o in-telecto permanece vigoroso mesmo na ausência des-ses elementos (Lecours e Joanette, 1980; Donald,1991). A afirmação de que a linguagem facilita enor-memente o pensamento também é questionável, jáque experimentos formais com crianças e adultos nãodemonstraram isso (G. Cohen, 1977). A linguagemclaramente não é uma condição necessária para o pen-sar (vide Kertesz, 1988; Jansons, 1988).

A comunicação verbal é parte do movimento deafastamento em relação a uma realidade socialcara-a-cara, tornando possível a separação física. Apalavra sempre interpõe-se entre as pessoas que de-sejam conectar-se umas com as outras, facilitando a

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diminuição daquilo que não precisa ser falado paraser dito. Que nós decaímos a partir de um estadonão-linguístico começa a parecer um ponto de vistasensato. Essa intuição pode estar por trás do juízode George W. Morgan em 1968 de que “Nada, defato, está mais sujeito à depreciação e à dúvida emnosso mundo desencantado do que a palavra.”.

A comunicação fora da civilização envolvia todosos sentidos, uma condição ligada aos traços-chave deabertura e de partilha que caracterizam os coletores-caçadores. A alfabetização nos levou à sociedade dossentidos divididos e reduzidos, e damos essa perdasensorial por certa, como se ela fosse um estado natu-ral, tal como damos a alfabetização por certa.

A cultura e a tecnologia existem por causa dalinguagem. Muitos têm visto a fala, por sua vez,como um meio de coordenar o trabalho, isto é,como uma parte essencial da técnica de produção.A linguagem é crucial para a formação das regrastrabalhistas e comerciais que acompanham a divi-são do trabalho, com as especializações e padroni-zações da economia nascente correndo em paraleloàs especializações e padronizações da linguagem.

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Guiado agora pela simbolização, um novo tipo de pen-samento passa a predominar, um pensamento que se re-aliza na cultura e na tecnologia. A interdependência en-tre linguagem e tecnologia é pelo menos tão óbviaquanto a interdependência entre linguagem e cultura, eresulta em um domínio acelerado sobre o mundo natu-ral intrinsecamente similar ao controle introduzido so-bre um indivíduo outrora autônomo e sensível.

Noam Chomsky, um dos principais teóricos da lin-guagem, comete um erro grave e reacionário ao retratara linguagem como um aspecto “natural” de uma “natu-reza humana essencial”, como algo inato e independen-te da cultura (1966, 1992). A sua perspectiva cartesianavê a mente como uma máquina abstrata que é simples-mente destinada a produzir feixes de símbolos e a ma-nipulá-los. Conceitos como origens ou alienação nãoencontram espaço nesse tecnoesquema estéril. Lieber-man (1975) oferece uma retificação concisa e funda-mental: “A linguagem humana somente poderia terevoluído em relação à condição humana total.”.

O sentido original da palavra ‘definir’ é, do La-tim, limitar ou fazer findar. A linguagem parecemuitas vezes causar uma oclusão da experiência,

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em vez de nos ajudar a mantermo-nos abertos à ex-periência. Quando sonhamos, o que acontece não éexpresso em palavras, assim como aqueles que seamam comunicam-se mais profundamente sem asimbolização verbal. O que foi promovido pela lin-guagem que realmente contribuiu para o desenvol-vimento do espírito humano? Em 1976, von Gla-sersfeld se perguntava “se, em um tempo futuro,ainda parecerá tão óbvio que a linguagem contri-buiu para a sobrevivência da vida neste planeta.”.

O simbolismo numérico também é de funda-mental importância para o desenvolvimento domundo cultural. Em muitas sociedades primitivas,era e é considerado sinal de má sorte contar criatu-ras vivas, uma atitude antirreificação relacionada ànoção primitiva comum de que nomear outrem éobter poder sobre essa pessoa. O ato de contar, talcomo o de nomear, é parte do processo de domesti-cação. A divisão do trabalho presta-se ao quantifi-cável, em oposição àquilo que é pleno em si mes-mo, único, não-fragmentado. O número também énecessário para a abstração inerente à troca de mer-cadorias e é um pré-requisito para a disparada da

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ciência e da tecnologia. O impulso de medir envol-ve um tipo deformado de conhecimento que buscao controle de seu objeto, e não a sua compreensão.

O sentimento de que “a única forma de realmen-te apreendermos as coisas é através da arte.” é umaopinião trivial, que realça nossa dependência em re-lação aos símbolos e à representação. “O fato deque originalmente toda arte era ‘sagrada’” (Eliade,1985), isto é, pertencente a uma esfera separada,atesta seu status ou função original.

A arte está entre as primeiras formas de expres-sividade ideológica e ritual, desenvolvida junta-mente com as observâncias religiosas planejadaspara manter unida uma vida comunitária que estavacomeçando a se fragmentar. Ela foi um meio funda-mental de facilitar a integração social e a diferenci-ação econômica (Dickson, 1990), provavelmenteao codificar informações para registrar pertenci-mento a um grupo, status e posição (Lumsden eWilson, 1983). Antes dessa época, em algum mo-mento durante o Paleolítico Superior, dispositivospara a manutenção da coesão social eram desneces-sários; a divisão do trabalho, as funções separadas e

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a territorialidade parecem ter sido em grande medi-da inexistentes. À medida que as tensões e as inqui-etações começaram a emergir na vida social, a artee o resto da cultura surgiram junto com elas em res-posta a sua presença perturbadora.

A arte, tal como a religião, surgiu de uma sensa-ção original de inquietude, sem dúvida de modo su-til, mas poderosamente perturbadora em sua novi-dade e em sua gradação invasiva. Em 1900, Hirnescreveu sobre uma antiga insatisfação que moti-vava a busca artística por uma “expressão maisplena e mais profunda” como “compensação paraas novas deficiências da vida.”. No entanto, assoluções culturais não lidam com os deslocamen-tos mais profundos dos quais as próprias “solu-ções” culturais fazem parte. Inversamente, talcomo comentadores tão diferentes quanto HenryMiller e Theodor Adorno concluíram, não have-ria necessidade de arte em um mundo desaliena-do. Aquilo que a arte tem se esforçado em vãopor capturar e expressar seria, mais uma vez, aprópria realidade, sendo relegado ao esquecimen-to o falso antídoto que é a cultura.

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A arte é uma linguagem, assim como o ritual,evidentemente, também o é, dentre as primeiras ins-tituições culturais e simbólicas. Julia Kristeva (1989)comentou sobre “a estreita relação entre gramática eritual”, e os estudos de Frits Staal acerca do ritualvédico (1982, 1986, 1988) demonstraram para eleque a sintaxe pode explicar completamente a forma eo significado do ritual. Tal como Chris Knight(1994) notou, a fala e o ritual são “aspectos interde-pendentes de um só e o mesmo domínio simbólico.”.

Essencial para o avanço do cultural nas questõeshumanas, o ritual não é apenas um meio de ordenarou de regular as emoções; ele é também uma for-malização que está intimamente ligada às hierarqui-as e ao domínio formal sobre os indivíduos. Todasas sociedades tribais e civilizações antigas conheci-das tinham organizações hierárquicas construídassobre ou integradas por uma estrutura ritual e umsistema conceitual correspondente.

Exemplos da conexão entre ritual e desigualda-de, desenvolvendo-se até mesmo antes da agricul-tura, são generalizados (Gans, 1985; Conkey,1984). Os ritos cumprem uma função de válvula de

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segurança para a descarga de tensões geradas pelasdivisões que surgem na sociedade e operam na cria-ção e na manutenção da coesão social. Anterior-mente, não havia necessidade de artifícios para uni-ficar aquilo que ainda era, em um contexto de não-divisão do trabalho, pleno e não-estratificado.

Com frequência, se ouve dizer que a função dosímbolo é revelar estruturas do real que são inaces-síveis à observação empírica. Mais pertinente, con-tudo, em termos dos processos da cultura e da civi-lização, é a afirmação de Abner Cohen (1981,1993) de que o simbolismo e o ritual dissimulam,mistificam e santificam deveres e funções penosos,fazendo-os, assim, parecer desejáveis. Ou, tal comoDavid Parkin (1992) coloca, a natureza compulsó-ria do ritual embota a autonomia natural dos indiví-duos ao colocá-los a serviço da autoridade.

Aparentemente oposto à alienação, o contra-mundo dos ritos públicos estaria organizado contraa corrente da direção histórica. Mas, mais uma vez,isso é uma ilusão, já que o ritual facilita o estabele-cimento da ordem cultural, alicerce da teoria e daprática alienadas. As estruturas de autoridade ritual

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cumprem uma importante função na organização daprodução (divisão do trabalho) e promovem ativa-mente o advento da domesticação. As categoriassimbólicas são estabelecidas para controlar aquiloque é selvagem e estranho; assim, a dominação dasmulheres é perpetrada, um desenvolvimento levadoà plena realização com a agricultura, quando asmulheres tornam-se essencialmente bestas de cargae/ou objetos sexuais. Parte dessa mudança funda-mental é o movimento em direção ao territorialis-mo e à guerra; Johnson e Earle (1987) discutiram acorrespondência entre esse movimento e a impor-tância crescente do cerimonialismo.

De acordo com James Shreeve (1995), “No re-gistro etnográfico, onde quer que se encontre desi-gualdade, ela é justificada ao se invocar o sagra-do.”. De modo similar, todo simbolismo, diz Elia-de (1985), era originalmente simbolismo religioso.A desigualdade social parece ser acompanhadapela subjugação na esfera não-humana. M. Reina-ch (citado em Radin, 1927) disse: “graças à magia,

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o humano toma a ofensiva contra o mundo objeti-vo.”. Cassirer (1955) expressou essa ideia destemodo: “A natureza nada produz sem cerimônias.”.

A partir da ação ritual surgiu o xamã, que foi nãoapenas o primeiro especialista em virtude de sua funçãonessa área, mas também o primeiro profissional cultu-ral em geral. A mais antiga forma de arte foi realizadapor xamãs, à medida que eles assumiram a liderançaideológica e delinearam o conteúdo dos rituais.

Esse especialista original tornou-se o reguladordas emoções coletivas, e à medida que o poder doxamã aumentava, ocorria uma redução correspon-dente da vitalidade psíquica do resto do grupo (Lom-mel, 1967). A autoridade centralizada, e provavel-mente também a religião, desenvolveram- se a partirda posição elevada do xamã. O fantasma da comple-xidade social estava encarnado nesse indivíduo queexercia o poder simbólico. Todos os líderes e chefesdesenvolveram-se a partir do predomínio dessa figu-ra na vida dos outros integrantes do grupo.

A religião, assim como a arte, contribuiu parauma gramática simbólica em comum necessária ànova ordem social e suas fissuras e aflições. A

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palavra é baseada no termo latino ‘religare’, atarou ligar, e em uma raiz verbal grega que denotaobservância do ritual, fidelidade às regras. A in-tegração social, exigida pela primeira vez, ficaevidente como o ímpeto da religião.

A religião é uma resposta às inseguranças e tensões,prometendo resolução e transcendência por meio dosimbólico. A religião não encontra base para a sua exis-tência antes de tomarmos o caminho errado em direçãoà cultura e ao civilizado (domesticado). O filósofo esta-dunidense George Santayana sintetizou bem essa ideiacom a frase: “Um outro mundo no qual viver é o que sequer dizer com a palavra religião.”.

Desde a obra The Descent of Man [A descen-dência do homem] (1871) de Darwin, temos a com-preensão de que a evolução humana acelerou enor-memente em termos culturais em um período demudanças fisiológicas insignificantes. Deste modo,o ser simbólico não dependia de ter que esperar pe-las faculdades certas para poder evoluir. Podemosperceber agora, com Clive Gamble (1994), que aintenção nas ações humanas não surgiu com a do-mesticação/agricultura/civilização.

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Os habitantes nativos do Deserto do Kalahari naÁfrica, tal como estudados por Laurens van der Post(1976), viviam em “um estado de completa confian-ça, dependência e interdependência em relação à na-tureza”, que era “muito mais generosa com eles doque qualquer civilização já foi um dia.”. O igualita-rismo e a partilha eram as qualidades distintivas davida caçadora-coletora (G. Isaac, 1976; Ingold,1987, 1988; Erdal e Whiten, 1992; etc.), que é maisadequadamente chamada de vida coletora-caçadora,ou o modo forrageador. Na verdade, a maior partedessa dieta consistia de matéria vegetal, e não háevidências conclusivas de qualquer tipo de caça an-tes do Paleolítico Superior (Binford, 1984, 1985).

Um olhar instrutivo às sociedades primitivas con-temporâneas é o trabalho de Colin Turnbull (1961,1965) sobre os pigmeus da floresta de Ituri e seus vizi-nhos Bantus. Os pigmeus são forrageadores, vivendosem religião ou cultura. Eles são vistos como imorais eignorantes pelos Bantus – que são agricultores –, masdesfrutam de uma individualidade e de uma liberdademuito maiores. Para a irritação dos Bantus, os pigmeuszombam com irreverência de seus ritos solenes e de seu

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senso de pecado. Rejeitando o territorialismo, muitomenos respeitando a propriedade privada, eles “mo-vem-se livremente em um mundo social não-mapeado,não-sistematizado e sem fronteiras.”, de acordo comMary Douglas (1973).

A vasta era anterior ao surgimento do ser sim-bólico é uma realidade extremamente importante eum ponto de interrogação para algumas pessoas.Comentando a respeito desse “período que se es-tende ao longo de mais de um milhão de anos”,Tim Ingold (1993) chamou-o de “um dos mais pro-fundos enigmas de que se tem conhecimento naciência arqueológica.”. Mas a longevidade dessaépoca estável e não-cultural tem uma explicaçãosimples: tal como F. Goodman (1988) conjecturou,“Era uma existência tão harmoniosa, e uma adapta-ção tão bem-sucedida, que ela não se alterou mate-rialmente por milhares de anos.”.

A cultura enfim triunfou com a domesticação. Oâmbito da vida tornou-se menor, mais especializa-do, separado à força de sua graça anterior e de sualiberdade espontânea. O ataque da orientação sim-bólica contra o natural também teve consequências

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exteriores imediatas. Desenhos rupestres primitivos,encontrados há 200 quilômetros de distância do cór-rego mais próximo registrado no Saara, mostram pes-soas nadando. Os elefantes ainda eram relativamentecomuns em certas zonas da costa do Mediterrâneo em500 a.C., de acordo com Heródoto. O historiador Cli-ve Ponting (1992) mostrou que todas as civilizaçõesreduziram a saúde de seu meio ambiente.

E o cultivo definitivamente não ofereceu uma basealimentar mais confiável ou de maior qualidade (M. N.Cohen, 1989; Walker e Shipman, 1996), muito emboraele tenha introduzido doenças de todos os tipos, quasetotalmente desconhecidas fora da civilização (Burkitt,1978; Freund, 1982), bem como a desigualdade sexual(M. Ehrenberg, 1989; A. Getty, 1996). A obra Book ofthe Hopi [O livro dos Hopis] (1963) de Frank Watersnos oferece um retrato impressionante de uma divisão dotrabalho descontrolada e da pobreza do simbólico:“Cada vez mais eles negociavam em troca de coisas dasquais não precisavam, e quanto mais bens adquiriam,mais eles queriam. Isso era muito grave. Porque eles nãoestavam se dando conta de que estavam se afastando,passo a passo, da boa vida que haviam recebido.”.

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Um capítulo pertinente da obra The Time Befo-re History [A época antes da História] (1996) deColin Tudge leva um título que fala por volumesinteiros: “The End of Eden: Farming” [O fim doÉden: a agricultura]. Uma distinção epistemológi-ca subjacente é em grande medida revelada nestecontraste traçado por Ingold (1993): “Em suma,enquanto para os agricultores e pastores a ferra-menta é um instrumento de controle, entre os ca-çadores e coletores ela seria mais bem compreen-dida como um instrumento de revelação.”. E cabecitar Horkheimer (1978), em termos dos custospsíquicos da domesticação/dominação da nature-za: “a destruição da vida interior é a pena que ohumano tem que pagar por não ter respeito porqualquer outra forma de vida que não a sua pró-pria.”. A violência voltada para fora é ao mesmotempo infligida espiritualmente, e o mundo exteri-or é transformado, degradado, tão certamentequanto o fato de que o campo perceptivo foi sub-metido a uma redefinição fundamental. Com cer-teza, a natureza não instituiu a civilização; pelocontrário, a civilização impôs-se à natureza.

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Hoje em dia está na moda, para não se dizer queé obrigatório, afirmar que a cultura sempre existiu esempre existirá. Muito embora seja o caso, de-monstravelmente, que houve uma era de humananão-simbólica extremamente longa, talvez cem ve-zes mais longa do que a era da civilização, e que acultura tenha se desenvolvido tão-somente às custasda natureza, se ouve de todos os lados que o sim-bólico – tal como a alienação – é eterno. Portanto,questões como a das origens e dos destinos não fa-zem sentido. Nada pode ser perscrutado para alémdo nível semiótico no qual tudo está aprisionado.

Mas os limites da racionalidade dominante e osdanos causados pela civilização saltam por demaisaos olhos para que aceitemos esse tipo de subterfú-gio. Desde o predomínio do simbólico, os humanostêm tentado recuperar, através da participação nacultura, a autenticidade que outrora vivenciávamos.O impulso ou a busca constantes pelo transcenden-te evidenciam que a hegemonia da ausência é umaconstante cultural. Tal como Thomas McFarland(1987) declarou: “a cultura presencia essencialmen-te a ausência de sentido, não a sua presença.”.

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O consumo massivo e insatisfatório, dentro dosditames da produção e do controle social, imperacomo o principal consolo cotidiano para essa au-sência de sentido, e, certamente, a cultura é elamesma uma preferência de consumo de primeiraordem. Em seu nível mais fundamental, é a divisãodo trabalho que impõe nossa totalidade simbólicafalsa e mutiladora. “O aumento da especialização[…]”, escreveu Peter Lomas (1996), “mina nossaconfiança em nossa capacidade habitual de viver.”.

Somos capturados pela lógica cultural de objetifica-ção e pela lógica objetificadora da cultura, de modoque aqueles que sugerem novas formas de ritual e ou-tras formas de representação como o caminho parauma existência reencantada perdem completamente ofio da meada. Mais daquilo que falhou durante tantotempo dificilmente pode ser a resposta. Lévi-Strauss(1978) referiu-se a “um tipo de sabedoria [que os povosprimitivos] praticavam espontaneamente, cuja rejeiçãopelo mundo moderno constitui a verdadeira loucura.”.

Ou a saúde não-simbólica que outrora existia,em todas as suas dimensões, ou a loucura e a morte.A cultura nos levou a trair nosso próprio espírito e

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nossa própria plenitude aborígines, rumo a um rei-no cada vez pior de alienação sintética, isoladora eestéril; o que não quer dizer que não haja mais pra-zeres cotidianos, sem os quais perderíamos nossahumanidade. Mas à medida que nossa crise se apro-funda, vislumbramos o quanto precisa ser elimina-do em prol de nossa redenção.

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