Seção 1 Iniciação Ao Pensar

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Seção 1 – Pensar enquanto vocação da humanidade 1. Do pensamento mítico aos Pré-Socráticos: o espanto diante da natureza O pensamento filosófico começa quando alguém faz uma pergunta de caráter geral, e o mesmo acontece com o pensamento científico. Os gregos compreenderam muito bem essa relação, e a partir dela construíram tudo o que conhecemos hoje. Se pudermos considerar qual teria sido essa força motriz, descobriremos que foi o ‘espanto’, a admiração. A admiração é a capacidade do homem de impressionar- se, impactar-se diante da beleza e da ordem (kósmos) da realidade. Isso é algo natural nas crianças; tudo é novo para eles e não param de admirar-se diante daquilo que veem. O estupor esconde dentro de si um pedido profundo, pois de imediato surge a pergunta pelo sentido último daquilo que está diante de nós e, cada vez que esse mesmo fato aparece, a pergunta surgirá com mais força. Quando o homem grego, movido pela curiosidade diante do mundo, se espanta e pergunta: “o que é isso?” Ele busca compreender não apenas o objeto que se apresenta, mas entender, mesmo que indiretamente, o que é o processo do conhecimento. Com efeito, foi pela admiração que os homens começaram a filosofar tanto no princípio como agora; perplexos, de início, ante as dificuldades mais óbvias, avançaram pouco a pouco e enunciaram problemas a respeito das maiores, como os fenômenos da Lua, do Sol e das estrelas, assim como a gênese do universo. E o homem que é tomado de perplexidade e admiração julga-se ignorante (por isso o amigo dos mitos é, em certo sentido, um filósofo, pois também o mito é tecido de maravilhas); portanto, como filosofavam para fugir à ignorância, é evidente que buscavam a ciência a fim de saber, e não com uma finalidade utilitária. (ARISTÓTELES,1969. p. 40.) Pertence ao código genético de qualquer tipo de busca de conhecimento este espanto que desencadeia o pensar como abertura ao mistério da realidade que irrompe nas realizações do real. Trata-se de um pensar que Aristóteles chama de filosofar e que leva a se maravilhar não somente ante as grandes questões, como a origem do universo, mas também ante aquilo que o senso comum considera como óbvio. A filosofia nasce pela relação que o ser humano tem com a realidade que deseja conhecer. Essa relação com a realidade se deu primeiro por meio do mito (que também nasce da admiração e “é tecido de maravilhas” como acabamos de ler em Aristóteles), e em seguida através da reflexão filosófica, o que não quer dizer que os mitos tenham deixado de ser utilizados pelo homem. O homem sempre buscou explicar a realidade e o quê acontece com ela. O mito constitui uma primeira tentativa de reflexão que busca explicar os fenômenos da

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Este texto mostra sobre iniciação ao pensar e sobre filosofia

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Seção 1 – Pensar enquanto vocação da humanidade

1. Do pensamento mítico aos Pré-Socráticos: o espanto

diante da natureza   O pensamento filosófico começa quando alguém faz uma pergunta de caráter geral, e o mesmo acontece com o pensamento científico. Os gregos compreenderam muito bem essa relação, e a partir dela construíram tudo o que conhecemos hoje. Se pudermos considerar qual teria sido essa força motriz, descobriremos que foi o ‘espanto’, a admiração. A admiração é a capacidade do homem de impressionar-se, impactar-se diante da beleza e da ordem (kósmos) da realidade. Isso é algo natural nas crianças; tudo é novo para eles e não param de admirar-se diante daquilo que veem.  O estupor esconde dentro de si um pedido profundo, pois de imediato surge a pergunta pelo sentido último daquilo que está diante de nós e, cada vez que esse mesmo fato aparece, a pergunta surgirá com mais força. Quando o homem grego, movido pela curiosidade diante do mundo, se espanta e pergunta: “o que é isso?” Ele busca compreender não apenas o objeto que se apresenta, mas entender, mesmo que indiretamente, o que é o processo do conhecimento.

Com efeito, foi pela admiração que os homens começaram a filosofar tanto no princípio como agora; perplexos, de início, ante as dificuldades mais óbvias, avançaram pouco a pouco e enunciaram problemas a respeito das maiores, como os fenômenos da Lua, do Sol e das estrelas, assim como a gênese do universo. E o homem que é tomado de perplexidade e admiração julga-seignorante (por isso o amigo dos mitos é, em certo sentido, um filósofo, pois também o mito é tecido de maravilhas); portanto, como filosofavam para fugir à ignorância, é evidente que buscavam a ciência a fim de saber, e não com uma finalidade utilitária. (ARISTÓTELES,1969. p. 40.)

   Pertence ao código genético de qualquer tipo de busca de conhecimento este espanto que desencadeia o pensar como abertura ao mistério da realidade que irrompe nas realizações do real. Trata-se de um pensar que Aristóteles chama de filosofar e que leva a se maravilhar não somente ante as grandes questões, como a origem do universo, mas também ante aquilo que o senso comum considera como óbvio.

   A filosofia nasce pela relação que o ser humano tem com a realidade que deseja conhecer. Essa relação com a realidade se deu primeiro por meio do mito (que também nasce da admiração e “é tecido de maravilhas” como acabamos de ler em Aristóteles), e em seguida através da reflexão filosófica, o que não quer dizer que os mitos tenham deixado de ser utilizados pelo homem.

   O homem sempre buscou explicar a realidade e o quê acontece com ela. O mito constitui uma primeira tentativa de reflexão que busca explicar os fenômenos da natureza e experiências comuns ao gênero humano de maneira simbólica, ou seja, por meio de narrativas. Estes mitos eram transmitidos de geração em geração e se misturavam entre um povo e outro. A explicação mítica não é um engano, pois realmente queriam fazer entender como e por que se sucediam as coisas. O mito é uma realidade cultural complexa, que pode ser abordada e interpretada através de perspectivas múltiplas, como observou Mircea Eliade:

A definição que a mim, pessoalmente, me parece a menos imperfeita, por ser a mais ampla, é a seguinte: o mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do “princípio”. Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de uma “criação”: ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser. O mito fala apenas do que realmente ocorreu, do que se manifestou plenamente. Os personagens dos mitos são os Entes Sobrenaturais. Eles são conhecidos, sobretudo pelo que fizeram no tempo

prestigioso dos “primórdios”. Os mitos revelam, portanto, sua atividade criadora e desvendam a sacralidade (ou simplesmente a “sobrenaturalidade”) de suas obras. Em suma, os mitos descrevem as diversas, e algumas vezes dramáticas, irrupções do sagrado (ou do “sobrenatural”) no Mundo. É essa irrupção do sagrado que realmente fundamenta o Mundo e o converte no que é hoje. E mais: é em razão das intervenções dos Entes Sobrenaturais que o homem é o que é hoje, um ser mortal, sexuado e cultural. (ELIADE, 2013, p. 11

 O mito é pedagógico. Ele busca orientar o indivíduo frente a sua realidade, para, através da experiência, encontrar sentido em sua existência. Sua função social é assegurar a identidade da comunidade ao aproximar o indivíduo do herói no momento em que este internaliza valores e transmite valores à próxima geração. A transmissão desses valores decorre do uso da memória.

   O mito é uma linguagem de antecipação. Ele explica através da alegoria aquilo que, depois, veio a ser representado pela linguagem filosófico-científica. Para compreender o seu valor faz-se necessária uma interpretação baseada na experiência, uma experiência que se constrói através da relação desafiadora entre homem e mundo. Para isso é necessário poder ouvir, querer ouvir e silenciar. Poder ouvir está na esfera da sensibilidade diante da vida; querer ouvir é desejar encontrar a verdade da vida; e o silêncio está no grau de reverência diante da verdade que se encontra na jornada de vida.

 Pelo que foi dito até aqui, podemos observar a diferença entre o pensamento mítico e a filosofia nascente. A filosofia se distingue da tradição dogmática dos mitos ao oferecer uma pluralidade de explicações possíveis. É a passagem do mythos ao logos (razão). Nesta passagem do mythos para o Logos ainda existem certas estruturas narrativas que estão ligadas. O vídeo a seguir apresenta a tentativa do homem grego de explicar a origem do mundo através da linguagem mítica.

A Consciência Mítica / Filosofandoomo vimos no texto “A consciência mítica”, o mito se preocupava com a origem divina da técnica, Prometeu ao roubar o fogo dos deuses para dar aos homens foi punido; esse castigo não apenas foi doloroso, foi também eterno. A temporalidade inaugurada por Prometeu não olha para o passado, mas para o futuro, futuro esse onde o homem envelhece. Não é a figura do retorno que regula, mas a projeção de um alvo que antecipa o futuro. Se a característica da natureza era o tempo cíclico, o tempo projectual, que visa um domínio, é o tempo da técnica. O professor Umberto Galimberti explica de forma clara o dilema presente no pensamento mítico da figura de Prometeu: 

Passando do tempo que retorna para o tempo que envelhece, do tempo cíclico da natureza regulado pelo selo da necessidade para o tempo projetual da técnica, atravessado pelo desejo e pela intenção do homem, a história sofre um abalo. Não mais decadência de uma idade mítica de ouro, mas progresso rumo ao futuro sem meta. A projetualidade técnica, de fato, indica avanço, mas não no sentido da história. A contração entre “passado recente” e “futuro imediato”, na qual se recolhe o seu agir, não permite discernir fins últimos, mas só progressos em vista da própria potencialização. De fato, a técnica nada mais persegue que o próprio crescimento, um mero “sim” a si mesma. (GALIMBERTI, 2006, p. 40)

Esse pensamento será a ponte entre a mitologia e a ciência (ainda muito simples) que se inicia com os pensadores pré-socráticos. Dessa superação nasce a filosofia. Enquanto que no mito uma resposta é dada, na filosofia ela é procurada. Disso resulta a busca por uma coerência interna, conceitos rigorosos, debates fundamentados, que dão a base para o pensamento abstrato.

Do Mito a Filosofia

Como verificamos até aqui, a caminhada do pensamento mítico até o início do pensamento filosófico foi longa. Sempre que o homem tentou compreender o seu tempo, precisou fazer uso da linguagem e do pensamento da sua época. A mitologia, se não explicava a origem da natureza, pelo menos justificava, à sua maneira, o início de tudo. A diferença é que enquanto no mito a inteligibilidade é dada, na filosofia ela é procurada.

   Ao falar da origem da filosofia, é comum escutar um tipo de linguagem que poderia levar a pensar que somente na Grécia do VI século a.C. aparece a racionalidade. Fala-se do nascimento da filosofia como da passagem do mito à razão ou até de “invenção da razão”, quando seria mais correto e menos suscetível de equívocos falar do desenvolvimento de uma nova forma de racionalidade. A racionalidade humana aparece bem antes do aparecimento da racionalidade filosófico-científica, e todas as tentativas do ser humano de entender o mundo e si próprio no universo, sejam elas de tipo mágico, religioso, mítico, são manifestações, às vezes altamente desenvolvidas, de racionalidade.

A grande contribuição dos Pré-Socráticos está na sua disposição de conhecer a natureza através da razão, enfrentado-a sem medo de contrariar os deuses, mas reconhecendo que se o fogo do conhecimento representado por Prometeu nos traz conhecimento, é somente partindo dele que podemos desvelar a natureza ao usar a razão. O vídeo a seguir faz uma breve apresentação dos principais filósofos Pré-Socráticos.

Ao tentar compreender o mundo físico, o homem grego ao seu modo tenta compreender o seu papel nesse mundo, mesmo que esse papel seja apenas interpretar a natureza. Essa inquietação diante da natureza é a força presente na Arché, o princípio pelo qual tudo vem a ser e que se torna o centro de interesse da reflexão filosófica inicial.

   Se o pensamento mitológico buscava uma origem para o mundo, os Pré-Socráticos também buscavam uma origem, no entanto, para isso partiram da natureza. A contribuição deles é motivo de orgulho para a humanidade. Fazendo uso de uma figura de linguagem, o que esses homens fizeram foi desenhar um mapa náutico, e convidar as próximas gerações a navegar em um oceano de mistérios e belezas. Os desafios que esses homens enfrentaram servem de inspiração para os desafios de hoje e de amanhã. O início do pensamento nos convida a questionar. Seu objetivo não é apenas encontrar respostas, mas através do seu movimento, nos levar a pensar quem somos nos dias de hoje. Seria essa uma tarefa fácil? Não. Mas quem disse que pensar de uma forma correta seria fácil?! Pensar é antes de tudo um desafio do homem em busca da sua humanidade, que por vezes parece perdida, mas está apenas escondida, esperando o momento oportuno para se afirmar. Precisamos reconhecer o valor do conhecimento e do pensamento, para, através dele, redescobrirmos a nossa humanidade.

Seção 2 – A racionalização do real

Sócrates e a busca de sSócrates não foi o primeiro filósofo; no entanto, é ele que carrega a marca do primeiro filósofo propriamente dito. Foi a história que lhe deu esse honra, já que ele mesmo não se preocupava com tal definição. Sua vida tinha um objetivo claro que era provocar os seus contemporâneos a pensar, sem se prender a formalidade, mas como uma busca de referências e valores que fundamentasse o sentido e significado de uma vida individual e coletiva. Para ele, filosofar era uma atitude, um modo de vida que era motivado pela necessidade de interrogar, e o conhecimento um diálogo com o mundo. 

  O pensamento socrático é o ponto de partida para a tradição filosófica ocidental. Ele inaugura a tradição clássica ao romper com a preocupação dominante dos Pré-Socráticos de fazer uma filosofia da natureza. Com o seu pensamento, a problemática ético-política toma a dianteira da discussão filosófica como questão urgente da sociedade grega. Este desenvolvimento da filosofia está diretamente ligado a uma

nova realidade cultural e econômica. É a partir da estabilização da sociedade grega, com o desenvolvimento do comércio, com a organização da sociedade ateniense, que a filosofia encontrará as condições necessárias para o seu desenvolvimento. Ao lidar com os seus próprios negócios, a sociedade ateniense viu a necessidade de conciliar e harmonizar as diferentes tendências e, para isso, a democracia foi a melhor ferramenta.    Mas o que representou essa democracia? Ela representa a possibilidade de se resolver, através da palavra e das leis iguais para todos, as divergências existentes ao buscar o melhor para as partes. Com isso, a razão se sobrepõe a força, e a força se rende a força da razão. A linguagem precisa ser racional, as discussões bem fundamentadas, os argumentos articulados e o questionamento essencial.

Quem foi Sócrates?Como podemos observar, Sócrates marca o início da filosofia clássica. Mas quem foi ele? Sócrates nasce em Atenas, em 470/469. Filho de uma parteira e de um escultor. Para ele a filosofia era uma arte de vida. Costumava interrogar os seus discípulos em praça pública e se recusava a escrever os seus pensamentos. Foi condenado a morte em 399, sob a acusação de corromper a juventude e de impiedade, já que parecia propor deuses diferentes daqueles venerados na cidade.

   Algo interessante em sua jornada filosófica é que ele não funda uma escola; sua pedagogia era ensinar os caminhos da filosofia nas ruas e praças. Seu objetivo era trazer à luz ou levar ao nascimento da verdade em seus ouvintes, como faz uma parteira. Quanto à busca da verdade, ela não pode corresponder a um conjunto de proposições e de fórmulas predeterminadas que podemos escrever, comunicar ou vender. Pelo contrário, o saber e a verdade se encontram na alma, e cada ser humano tem a responsabilidade de descobri-los, conhecendo a si mesmo.

   A originalidade do pensamento socrático está na lição em que o indivíduo que realmente busca o conhecimento verdadeiro deve começar por questionar a si mesmo. Essa consciência de si irá provocar uma inquietação em quem o escuta. É o poder da palavra que se manifesta através do diálogo. Assim, conhecer é adentrar na natureza das coisas e a verdade está em dizer como as coisas realmente são, ou seja, descobrir a essência das coisas.

Em sua busca pela verdade, Sócrates foca no ser, nesse caso o ser humano. Ele faz uma análise das qualidades individuais e das virtudes, definindo essas qualidades como sendo bondade, justiça, temperança, coragem. Quando pergunta o que é, seu objetivo é compreender a sua essência e não a sua mera aparência. A partir dessas perguntas ele constrói uma filosofia prática que se tornará a ética. Bertand Russell afirma:

“Encontramos em Sócrates um precursor das escolas estóica e cínica do período posterior da filosofia grega. Com os cínicos, compartilha a sua própria despreocupação para com os bens terrenos, e com os estóicos, o seu interesse pela virtude como o maior dos bens. (...) Isto ressalta a linha fundamental do pensamento socrático. Embora ele sempre diga que nada sabe, não acha que o conhecimento esteja além do nosso alcance. O importante é precisamente que devemos tentar a busca do conhecimento. Sócrates sustenta que o que faz um homem pecar é a falta de conhecimento. Se soubesse, não pecaria. A causa dominante do mal é, portanto, a ignorância. Assim, para alcançar o Bem, precisamos possuir conhecimento, logo, o Bem é conhecimento. O vínculo entre o Bem e o conhecimento é um marco presente em todo o pensamento grego.” (RUSSELL, 2001, p. 69)

A Filosofia MoralSócrates inaugura a filosofia moral ao vencer as amarras dos vícios e fomentar os caminhos para as virtudes. Interessante é que ele conseguiu enxergar o quanto estamos presos às ilusões de um mundo material, assim como apontava para o conhecimento como o único remédio para tamanha doença. Poucos pensadores são tão relevantes para os nossos dias como ele.

   Se pararmos para observar, vivemos em uma sociedade em que os valores são desacreditados diariamente. Através dos meios de comunicação de massa, o que somos desaparece em detrimento do que possuímos. O materialismo se afirma não apenas nas relações comerciais, mas até mesmo nas relações pessoais, onde os sentimentos são barganhados pelos discursos de alienação e consumo. Sócrates apresenta o remédio: ‘conhece a ti mesmo’.

   O ser humano tem a predisposição para o pensamento. A dificuldade está em aceitar esse desafio e encará-lo da maneira correta. Não podemos esquecer que uma vida sem capacidade de pensar não vale a pena ser vivida. O documentário a seguir explica com clareza esse fato. 

A ‘Maiêutica’ socráticaA ‘Maiêutica’ socrática – palavra grega de define o trabalho da parteira – dentro de um olhar filosófico, representa trazer à luz a verdade. Para que a verdade venha a ser é necessário reconhecer os perigos das certezas aparentes. Nesse caso, o indivíduo precisa ter coragem para abandonar crenças e opiniões. O professor Franklin Leopoldo e Silva explica:

[Sócrates] Via o conhecimento como um processo, um diálogo, em que a procura do verdadeiro acontecia por colaboração, e cujo requisito não era de forma alguma a erudição ou a ciência acumulada, mas antes o despojamento de uma alma esvaziada de preconceitos e disposta a encetar um caminho, sempre partilhado. O que se convencionou chamar de método não era mais que essa disposição para assumir uma conduta pautada pela interrogação. O adágio ‘só sei que nada sei’, o emblema do filósofo, sintetiza esse propósito. Por via das interrogações, cujas respostas suscitavam novas perguntas, procurava-se percorrer um caminho em que a alma realizava ao mesmo tempo duas tarefas: livrar-se das falsas certezas e aparências de um pretenso saber adquirido, e abrir-se, por consequência, a novas etapas de uma procura que valia muito mais por si mesma que pelo objetivo a ser eventualmente atingido. À simplicidade do método, corresponde a dificuldade da meta: assim há que desconfiar sempre de certezas cristalizadas, há que experimentá-las exaustivamente, examiná-las por todos os lados – e se verá então que poucas resistirão à prova. (LEOPOLDO E SILVA, 2009, p. 27)

   A filosofia não pode ser desvinculada da sua atitude moral. O professor Franklin Leopoldo observa que se fala muito da predominância da problemática moral em Sócrates, em contra partida à filosofia da natureza dos Pré-Socráticos. A razão é que a própria filosofia encontra na disposição moral sua condição de possibilidade, e na aspiração à verdade seu impulso mais original. Não é sem razão que o pensamento do Sócrates deixou marcas significativas no seu maior discípulo.

“O não saber Socrático e a Educação: o desafio de aprender a pensar” 

Platão e o problema do conhecimentoPlatão (428-348 a.C) viveu em Atenas, onde fundou uma escola denominada Academia, foi o grande discípulo de Sócrates. Enquanto seu mestre via o conhecimento como um processo, um diálogo com o objetivo de encontrar a verdade, para Platão, a busca do filósofo passa a tomar um caráter de recolhimento, um distanciamento da vida pública. Dessa forma, a filosofia se afasta da vida prática para tentar uma melhor compreensão dela. O que podemos observar é que, para o filósofo, antes de tentar compreender qualquer coisa, é necessário construir um saber a respeito da natureza humana. Como observa Franklin Leopoldo:

É nesse sentido que podemos dizer que a filosofia de Platão estende-se muito além dos temas socráticos, sem que esse prolongamento represente um abandono do método, do estilo, das preocupações centrais e principalmente do espírito que animara o pensamento de Sócrates. (LEOPOLDO E SILVA, 2009, p.33)

   A Academia criada por Platão é a precursora das futuras universidades que se desenvolvem a partir da Idade Média. Nela os estudos aconteciam em consonância aos estudos tradicionais de aritmética, geometria, astronomia. Era exigido do aluno o gosto e domínio da matemática. O objetivo era, através dessa formação, afastar o pensamento do mundo sensível para aproximá-lo das estruturas imutáveis que existem por trás dele.

   O objetivo da verdadeira educação não é encher o aluno com conteúdos, mas desenvolver neles a capacidade de pensar de forma crítica e autônoma. Os bons hábitos da educação (leitura, escrita, poder de síntese, capacidade de problematizar, raciocínio lógico) são aqueles que levam ao pensamento crítico, aqueles que já estavam presentes na Academia e que devem se apresentar nos dias de hoje. Educação é aprender a pensar com autonomia sob a orientação de um professor.

   Influenciado pelo seu mestre, Platão traz para a sua filosofia o diálogo como força de interação que concede valor ao falar e ao ouvir. A princípio, o diálogo parece algo simples, uma mera interação entre indivíduos, contudo o diálogo é disposição e reconhecimento do valor do outro.

Um verdadeiro diálogo não é possível se não se quer realmente dialogar. Graças a esse acordo entre interlocutores, renovado a cada etapa da discussão, já não é um dos interlocutores que impõe sua verdade ao outro; bem ao contrário, o diálogo ensina-lhes a pôr-se no lugar do outro, a superar seu ponto de vista. Graças ao seu esforço sincero, os interlocutores descobrem por eles mesmos, e neles mesmos, uma verdade independente deles, na medida em que se submetem a uma autoridade superior, o lógos. Como em toda a filosofia antiga, a filosofia consiste aqui no movimento pelo qual o indivíduo se transcende em alguma coisa que o supera, para Platão, no lógos, no discurso que implica uma exigência de racionalidade e de universalidade. Além disso, esse lógos não representa uma espécie de saber absoluto; trata-se de fato, do acordo que se estabelece entre interlocutores que são levados a admitir certas posições em comum, acordo no qual eles superam seus pontos de vista particulares. (HADOT, 2014, p.100)

Intuição Intelectual Platão aproveita do seu mestre a noção de logos, e continua o processo de análise do real, cria a palavra eidos ou ideia, para se referir à intuição intelectual. Acima do mundo sensível, existe o mundo das ideias,

mundo onde estão presentes as essências imutáveis que o homem encontra através do exercício contemplativo. Como as ideias são a única verdade, o mundo dos fenômenos só existe na medida em que participa do mundo das ideias, do qual é apenas sombra ou cópia. Para ele existe uma dialética que faz a alma se elevar das coisas múltiplas e mutáveis às ideias unas e imutáveis. Como observa Maria Lúcia Aranha:

O mundo sensível é acessível aos sentidos, mas, sendo o mundo da multiplicidade e do movimento, é ilusório, é sombra, é cópia do verdadeiro mundo. Acima dele, o mundo das ideias gerais e das essencias imutáveis pode ser atingido por meio da contemplação e da depuração dos enganos dos sentidos. O mundo dos sentidos é regido pela opinião, e o mundo das ideias, pela ciência. Nosso espírito se eleva das coisas múltiplas e sensíveis para as ideias unas e imutáveis por meio de um movimento dialético, que consiste em vencer a crença nos dados do mundo sensível e na utilização sistemática do discurso para chegar à ordem da verdade. Portanto, para Platão, a dialética tem o efeito de remontar de conceito em conceito, de proposição em proposição, até os conceitos mais gerais e os princípios primeiros. As ideias não são coisas: são regras, modelos, cujo uso correto é regido pelo bem; e o verdadeiro conhecimento é dar a razão de alguma coisa, ou seja, responder ao porquê. Não podemos deixar de reforçar que a filosofia platônica, como toda a filosofia grega, era essencialmente voltada para a prática, para a formação dos cidadãos capazes de manter uma discussão pública, defendendo suas ideias. Por isso, conhecimento e política tinham ligação estreita. A fim de conceber um projeto de modificação política para a cidade, era preciso conhecer o mundo, descobrir e descrever novos modos de o ser humano se relacionar com esse mundo. (ARANHA E MARTINS, 2012, p. 108 e 109)

   É aqui que, mais uma vez, a força da educação se apresenta com o seu vigor. A educação é o meio para tornar justo o homem e a cidade. Os exercícios físicos trazem harmonia ao corpo, a música e a matemática trazem harmonia à alma e a dialética leva ao encontro com a verdade. O conhecimento liberta, e, assim como em Sócrates, é indissociável de uma atitude moral. Em Platão, desenvolvimento intelectual e purificação moral não se distinguem. O mundo das ideias é constituído de uma tríade de formas que são a Verdade, o Bem e o Belo. Conhecer a verdade, querer o bem, amar a beleza são proposições intercambiáveis porque se fundem numa só atitude que sintetiza a saudade da alma de sua terra natal.

Aristóteles, o pai de todas as ciênciasA filosofia do Aristóteles é um marco do pensamento grego. Ele concebeu o saber como uma articulação de áreas autônomas. Aristóteles é considerado o pensador que construiu a ciência sobre bases empíricas e experimentais. Teria sido ele o precursor do método experimental? Alguns comentadores dizem que não. Para eles, Aristóteles não possuía a noção da experimentação como conhecemos hoje. A observação não tinha como alvo verificar ou falsificar as hipóteses, mas enfatizar as diferentes posições teóricas que ele adota. Seu pensamento parte de uma teoria do saber de uma complexidade e de uma sutileza poucas vezes vistas.

   Na história da filosofia, se convencionou traduzir por “ciência” o termo “episteme” utilizado por ele. O saber assim designado se caracteriza por seu rigor, sua universalidade, assim como pela necessidade de seu objeto. Nesse ponto, ele se opõe a outros tipos de saber menos rigoroso e apresenta uma visão diferente daquela de Platão. Para Aristóteles, todas as ciências se inserem na filosofia, no entanto, existem

várias ciências. Segundo Platão, havia uma ciência de todas as coisas que era ciência do inteligível, das essências, contraposta ao conhecimento sensível. 

   Quem foi Aristóteles? Como ele construiu um pensamento singular? Qual a sua relevância nos nossos dias?

   Aristóteles faleceu em 322 a.C. com a idade de 62 anos, pesquisador incansável, a amplitude de suas explorações científicas era próxima à profundidade de suas análises filosóficas. Jonathan Barnes escreveu: “Nenhum homem antes dele contribuiu tanto para o ensino. Nenhum homem depois dele pôde aspirar a rivalizar com ele em termos de realizações.” (Barnes, 2005, p.09)

   No sistema aristotélico o saber teórico (ciência como conhecimento da realidade) se divide em:

Ciência em geral: É o que ele denomina de filosofia primeira, e que será chamada de metafísica, consistindo na metafísica propriamente dita, ou ontologia, isto é, na ciência do ser enquanto ser.

Ciência natural: O conhecimento da realidade natural, que se divide em: o A) Física e astronomia, que examinam o ser em movimento.o B) Ciência da vida ou biologia, conhecida na antiguidade como história natural. Ciência que

investiga os seres vivos em movimento. o C) Psicologia, o estudo do ser – vivo, sensível e inteligente – em movimento.

   O caráter hierárquico do sistema reflete-se na ordem de tratamento dos temas. Começa com a questão do ser em geral, passa para a primeira determinação do ser, o ser em movimento, em seguida temos o ser em movimento e vivo, e finalmente, o ser em movimento, vivo, sensível e inteligente, como observa o professor. (Marcondes, 1995, p.75)

A segunda parte do sistema aristotélicoO filósofo Danilo Marcondes observa que a segunda parte do sistema aristotélico consiste no saber prático, que inclui a ética e a política. O saber prático se difere do saber teórico porque seu objetivo não é o conhecimento de uma realidade determinada, mas o estabelecimento das normas e critérios da boa forma de agir, ou seja, da ação correta e eficaz. Em suas ações, o homem tende sempre para fins que se configuram como bens. Mas qual seria o bem supremo? Aristóteles não tem dúvida que esse bem é a felicidade (eudaimonia). A felicidade é o fim para o qual tendem todos os homens. Mas o que é felicidade? Reale explica:

A maioria dos homens acredita que a felicidade consiste no prazer e no gozo. Mas uma vida dedicada aos prazeres é uma vida que torna os homens ‘semelhantes aos escravos’, é uma ‘existência digna de animais’. As pessoas mais evoluídas e mais cultas situam o bem supremo e a felicidade na honra. E buscam a honra sobretudo aqueles que se dedicam ativamente à vida política. No entanto, este não pode ser o fim último que todos buscamos, pois, como observa acertadamente Aristóteles, trata-se de algo externo. (...) É bem verdade que os prazeres e as honras são buscados por si mesmos, mas não as riquezas; a vida dedicada ao acúmulo de riquezas, por conseguinte, é a mais absurda e a mais inautêntica, pois está voltada para a busca de coisas que valem no máximo como meios, nunca como fins. (...) Mas o bem supremo do homem também não pode ser aquilo que Platão e os platônicos indicaram como tal, ou seja, a Ideia do Bem ou o transcendente Bem-em-si, pois, nesse caso, é evidente que não seria realizável ou alcançável pelo homem. Não se trata, portanto, de um bem transcendente, mas de um

bem imanente; não pode ser bem já definitivamente realizado, mas realizável e adquirível pelo homem e para o homem. (...) O bem do homem só pode consistir na ‘obra’ que lhe é peculiar, ou seja, aquela obra que ele e só ele sabe realizar, assim como, em geral, o bem de cada coisa consiste na obra que é peculiar a essa coisa. A obra do olho é ver, a obra do ouvido é ouvir, e assim por diante. E a obra do homem? Ela a) não pode ser o simples viver, posto que o simples viver é próprio de todos os seres vegetais; b) tampouco pode ser sentir, posto que é comum também aos animais; c) nada mais resta senão concluir que a obra peculiar do homem é a obra da razão e a atividade da alma segundo a razão. Logo, o verdadeiro bem do homem consiste nessa ‘obra’, ou ‘atividade’, da razão, mais exatamente, nas perfeitas explicação e atuação de tal atividade. Essa é, portanto, a ‘virtude do homem’, e nela que se encontra a felicidade. (REALE, 2012, p. 113-114

A VirtudeNa Ética a Nicômaco, Aristóteles trata, entre outras coisas, da virtude (areté): sua proposta é apresentar um caminho em que o homem possa se tornar bom, ou alcançar o grau mais elevado do bem humano. Como já observamos, o bem para ele é a felicidade e a felicidade consiste na atividade da alma de acordo com a virtude.

   Quando Aristóteles constrói seu sistema de pensamento, as ciências práticas vêm em segundo lugar, depois das ciências teóricas. Para ele, elas são hierarquicamente inferiores às teóricas na medida em que nelas o saber deixa de ser um fim em si mesmo, pois está subordinado e, de certa maneira, submetido à atividade prática. No entanto, todas têm valor no seu sistema de pensamento. Sem rupturas, ou mesmo desvios, trata-se de um processo cumulativo, com um progresso gradativo, em que cada estágio, de certa forma, pressupõe o anterior. Exemplo:

Sensação => memória => experiência => arte (técnica) => teoria/ciência (aisthesis)     (mnemósine)     (emperia)             (téchne)              (episteme)

   Para ele, o processo começa com as sensações ou sentidos; ao contrário de Platão ele os valoriza. Depois vem a memória que retém os dados sensoriais para que o processo do conhecimento siga; os dados que recebemos dos sentidos e que são retidos na memória, constituem a experiência, que é a primeira etapa do conhecimento. A etapa seguinte é a téchne ou arte/técnica. Essa etapa é aquele que nos permite conhecer o porquê das coisas. A última etapa do processo do conhecimento, que, para ele, é a mais elevada, é a episteme, a ciência ou saber teórico. Essa etapa é a do conhecimento real em seu sentido mais abstrato e genérico, o conhecimento dos princípios e dos porquês últimos de todas as coisas.

   Marcondes observa que, para Aristóteles, o saber teórico se caracteriza por ser contemplativo, e se define pela visão da verdade e por não ter objetivos práticos ou mesmo fins imediatos. Nesse caso é um saber gratuito, ou seja, uma finalidade em si mesma, que satisfaz uma curiosidade natural do homem que é o desejo pelo conhecimento. A sua capacidade de abstração e generalidade é o que dá à episteme a superioridade em relação á técnica. A técnica enquanto saber aplicado visa a um determinado fim, enquanto o saber teórico é fim em si mesmo.

   Essa forma de fazer ciência foi talvez a única referência para o pensamento ocidental até o surgimento da modernidade. Aristóteles não foi apenas um pensador, mas aquele que criou dentro das suas possibilidades as bases para o conhecimento rigoroso e sistemático. Claro que, durante muito tempo, as ciências modernas levantaram duras críticas ao seu pensamento, esférico e finito, centrado no homem e fundamentado sobre a percepção. Ele foi o filósofo que desbravou áreas tão distintas como física, zoologia

e política ao propor explicações para coisas que não tinha a menor noção de como ocorriam. Ele começou praticamente do zero, fazendo uso do seu intelecto singular e da sua capacidade de observação. A sua metafísica é a figura última da racionalidade ao se dirigir aos limites do mundo e do dizer o mundo quando traça os seus limites. A todo anúncio do fim da metafísica convém reler ou descobrir a filosofia de Aristóteles. O saber para ele é um chamado à responsabilidade: não basta conhecer, precisamos conhecer bem.

Seção 3 - Da arte de ler

ApresentaçãoSão três as regras mais necessárias à leitura: Saber o que se deve ler, em que ordem se deve ler,

como se deve ler.”

(Hugo de São Vítor)

   Caro aluno, chegamos à seção 03 e o nosso objetivo é pensar o papel e a contribuição da leitura para a formação do indivíduo. Vivemos na sociedade da informação, a velocidade determina o ritmo de tudo em nossa vida, principalmente no processo de aprendizagem. As ferramentas da educação mudaram significativamente; onde existia antes uma educação meramente conteudista, agora se apresenta uma educação participativa em que a interação entre professor-aluno, professor-conteúdo, conteúdo-aluno se movimentam em sinergia.

   Diante de tantas mudanças, o que não perde o seu valor é a leitura. Onde havia antes o texto, surge o hipertexto, com outra dinâmica e possibilitando uma nova experiência do tempo. Por mais que as tecnologias da informação nos forneçam novas ferramentas, a leitura sempre será a técnica por excelência e o livro a tecnologia que viabiliza a sua realização.

   Falar de leitura estaria incompleto sem pensar no filósofo medieval Hugo de São Vítor e na sua obraDidascálicon: Da arte de ler. Ele foi um dos autores da revolução cultural do século XII, assim como um dos fundadores da Universidade de Paris. O objetivo de sua obra foi oferecer aos jovens estudantes da época uma introdução ao saber, uma obra que apresentasse as várias disciplinas e possibilitasse ao estudante montar o seu próprio caminho intelectual com autonomia, disciplina e disposição.

   Hugo de São Vítor antecipou em séculos algumas correntes pedagógicas ao compreender a importância de desenvolver a autonomia do estudante no processo de aprendizagem, assim como focar no papel da leitura para que o processo se realize com sucesso. Leitura e escrita se encontram com a finalidade de dar ao pensamento uma duração que a oralidade não possibilitava, ou ainda, não possibilita. Ela amplia a memória e a comunicação.

   Acredito que fazer uma breve referência histórica sobre Hugo de São Vítor contribuirá para compreendermos a dimensão e a sua contribuição para a cultura ocidental. Ele nasceu em 1096 em Hartigan na Saxônia e formou-se no convento de Hamers-leben, perto de Halberstadt. A partir de 1115 foi para o convento de São Victor em Paris e de 1133 a 1141, ano da sua morte, foi professor desse convento.

É, em primeiro lugar, autor de uma introdução à filosofia e à teologia com o título Eruditionis didascalicae libri VII ou, mais brevemente, Didascalion, cujos três primeiros livros são dedicados às artes liberais, os três seguintes à teologia, o último é um texto sobre meditação. (ABBAGNANO, 1996, p. 131)

   Na história da filosofia alguns pensadores levam anos ou mesmo séculos para serem descobertos por outros pensadores, como foi o caso de Hugo de São Vítor. Quem o descobriu foi o filósofo da educação Ivan Illich em sua obra Du lisible au visible (Do legível ao visível); nessa obra, Hugo de São Vítor é considerado o divisor de águas no saber mundial ao propor aos seus estudantes ler de tudo. Nesse momento, ele inaugura a era do livro que daria vida à Universidade.

De acordo com Illich, do mesmo modo que a substituição dos ideogramas pelo alfabeto fenício no século VIII a.C significou a primeira revolução cultural da humanidade, que deu o nascimento à filosofia grega, a cultura livresca do século XII representa a segunda revolução cultural da humanidade, que dá origem a Universidade. Gutenberg três séculos depois, apenas acelerará com a tipografia esta nova onda cultural desencadeada no século XII. Hoje, segundo Illich, com a aparição do vídeo-livro, estamos assistindo à terceira revolução cultural da humanidade, que dará origem a não sabemos quais novos campos do saber pelo ciberespaço. (MARCHIONNI, 2001, p. 22)

   Hoje, em pleno século XXI, vivemos as transformações do ciberespaço. Os hipertextos reconfiguram as formas de leituras, moldando as informações às novas necessidades; dessas necessidades criam uma nova cultura e outra realidade informacional.

Continuação: ApresentaçãoA leitura continua sendo o ponto de partida para o conhecimento. A diferença está no fato de que o texto no formato clássico (livro) se transformou no hipertexto, que são sequências em camadas de documentos interligados, que funcionam como páginas sem numeração e trazem informações variadas sobre determinado assunto. Dessa nova relação como o texto se fomenta no leitor uma determinada autonomia diante do conhecimento: este poderá se desenvolver conforme interesses específicos. (Kenski, 2007, p.32-33)

   O que podemos observar é que a leitura jamais desaparecerá. Qual será a razão? O homem é linguagem e a linguagem é o seu habitar. As tecnologias da informação dão uma nova dinâmica à relação entre homem e linguagem. Dessa relação, ele pode construir sua realidade partindo de uma nova experiência do tempo; um tempo mais dinâmico e polissêmico.

   No passado, alguns pensadores já conjecturavam a respeito da dinâmica interna da leitura. Um deles foi Petrarca, que conseguiu enxergar não apenas o valor das letras, mais também a necessidade de uma hermenêutica que lhe possibilitasse um melhor aproveitamento.

   Petrarca menciona uma forma de ler em que o texto é recriado, interpretado de forma pessoal e fortalecido pela memória. Através da leitura, podemos descobrir quem somos, mas, quando essa leitura é precedida por um valor mais elevado, o leitor pode melhorar cada vez mais e transformar esse mundo em algo melhor. Essa força metafísica Hugo de São Vítor traz em sua filosofia e no seu modo de viver. Ele é um daqueles indivíduos que com sua vida consegue transmitir uma clareza moral que contagia os seus leitores. Para ele, “A filosofia é a arte das artes e a disciplina das disciplinas”. (Hugo, p. 83)

         Hoje existe um discurso que aponta para o desinteresse da leitura. Sabemos que a leitura disputa atenção com outras mídias e essas, muitas vezes, são mais atrativas; no entanto, nunca a humanidade leu tanto quanto hoje. Contudo, o que é digno de suspeita é a qualidade dessa literatura. Toda a sociedade da

informação demanda um tempo para que ocorra a leitura.

Que isto fique claro: a sucessão da oralidade, da escrita e da informática como modos fundamentais de gestão social do conhecimento não se dá

por simples substituição, mas antes por complexificação e deslocamento de centros de gravidade. O saber oral e os gêneros de conhecimento fundados sobre a escrita ainda existem, é claro, e sem dúvida irão continuar existindo sempre. (LÉVY, 1999, p. 10)

   Se no passado o espaço e tempo para o ensino eram determinados pela necessidade do deslocamento, hoje a realidade mudou a tarefa de ensinar e a aprendizagem pode acontecer em qualquer lugar. A velocidade das tecnologias da informação impõe novos ritmos e dimensões para o ensino e a aprendizagem. A sociedade da informação exige de todos nós um permanente estado de aprendizagem. Nenhuma formação estará completa em uma sociedade em continua transformação.

   A pergunta que surge é: como encaixar a filosofia do Hugo de São Vítor em uma sociedade da informação? A primeira vista, pode até parecer um pensamento ingênuo relacionar um filósofo medieval com uma temática moderna, mas não é. A pedagogia de Hugo trabalha a partir da necessidade de desenvolver a autonomia do indivíduo, para, através dela, ajuda-lo a compreender a realidade

Para que serve a educação?Para que serve a educação? Para onde você deseja ir mediante o estudo e a leitura? Para Hugo de São Vítor, a educação é o que nos possibilita entrar em contato com o conhecimento e a cultura. Para ele, a leitura é um modo de viver, uma amizade, um ato moral e social, um ócio reparador, restaurador e inspirador.

   Nosso filósofo conseguiu unir o melhor de dois mundos: a busca pela sabedoria e o gosto pelas ciências. Claro, que essa ciência ainda estava distante da ciência moderna, mas já apontava para a importância da curiosidade, no conhecimento da natureza. Sua filosofia carrega a necessidade da determinação ou uma orientação diante dos seus objetivos. Para ele, o indivíduo precisa ter em mente as virtudes que o ajudarão a atingir seus objetivos. Um bom exemplo é que Hugo já pensava a questão da otimização através da navegação.

A navegação abrange todo o comércio de compra, venda e troca de mercadorias domésticas ou estrangeiras. Com justa razão a navegação é considerada uma retórica sui generis, uma vez que a eloqüência é absolutamente necessária a esta profissão. Por isto, aquele que preside à arte de falar, Mercúrio, é considerado kirrius, ou seja, Senhor dos mercadores. A navegação penetra em regiões remotas, adentra litorais nunca vistos, percorre desertos horríficos, e estabelece relações humanas com povos bárbaros e com línguas desconhecidas. Este tipo de dedicação reconcilia as nações, aplaca as guerras, consolida a paz, e transfere os bens privados para o uso comum de todos. (Hugo São Vítor, 2001, p. 115-117)

   Na era da informação, quase todo o conhecimento fica ultrapassado rapidamente. Os desafios de um mundo que se acelera a todo o momento exige de nós a capacidade de flexibilizar o tempo que ainda nos resta. Para isso, precisamos nos disciplinar, compreender o valor do tempo; e principalmente, reconhecer que o tempo perdido não volta mais. O que continuamos a fazer hoje é navegar. A questão é que o oceano foi substituído pelo ciberespaço e as culturas regionais tendem a cada dia se aproximar uma das outras ocasionando mudanças significativas.

Aprendendo a estudar com Hugo de São Vítor

   Mas o que seria a educação hoje? Em uma sociedade do consumo, a educação tende a se tornar uma mercadoria como outra qualquer. O desejo de crescer através do conhecimento perde lugar diante de um

conhecimento que, sendo mercadoria, ganha o valor de um bem de consumo. Todo aquele valor metafísico que já fez parte da pedagogia tende a se tornar uma mera lembrança e, em seu lugar, surge o conhecimento enquanto experiência de consumo.

   O que a filosofia da educação de Hugo de São Vítor propõe é uma pedagogia que trabalhe o caráter do indivíduo, desenvolvendo nele valores elevados, assim como uma disposição diante do conhecimento e da cultura. Ela não aproximava os valores elevados da necessidade de benefícios próprios, mas compreendia que o caminho do conhecimento nos livra dos erros decorrentes da ignorância.

   Uma educação que valoriza a ética deseja construir uma vontade ética. A sua filosofia moral ensina que o começo da disciplina é a humildade, da qual existem muitos ensinamentos; três deles são fundamentais ao desenvolvimento do estudante. 

1. Não desprezar nenhuma ciência e nenhum escrito.2. Não ter vergonha de aprender de qualquer um.3. Não desprezar os outros depois de ter alcançado o saber.

   Hugo reconhecia a importância da ciência; ele sabia que somente através do conhecimento o homem tem condições de vencer a ignorância. Mas, para isso, o estudante não pode desprezar nenhum escrito antes de conhecê-lo, e somente após o conhecimento terá condições de separar o relevante do que não tem valor. Outro ponto interessante é a questão do aprendizado associado a quem pode ensinar. Ele não fazia distinção de pessoa no tocante ao ensinar; mais importante é o ensinamento, do que a pessoa que ensina. E o último ponto, talvez seja o mais importante: não se deixar levar pelo orgulho e vaidade depois de aprender. A humildade é fundamental para seguirmos o bom caminho.

 Quando Hugo associa a leitura a um modo de vida, o seu objetivo é mostrar o valor da reflexão e do autoconhecimento. Ele foi um homem em sintonia com o seu tempo, mas com um olhar para o futuro. Ele antecipou tendências na educação; ele já pensava um modo de aprendizagem onde o estudante pudesse pensar de forma independente e criando novas formas de conhecimento.

A análise minuciosa, isto é, a meditação, pertence ao exercício. À primeira vista parece que a análise minuciosa já é contida na dedicação à pesquisa, e se assim fosse seria supérfluo voltar a ela, uma vez que já foi listada num capítulo anterior. Mas deve-se saber que entre os dois campos existe a seguinte diferença: a dedicação à pesquisa indica mais a implicação ao trabalho, enquanto a análise minuciosa indica a aplicação à meditação. O trabalho e o amor perfazem a obra, a cura e a vigília engendram o bom conselho. No trabalho você faz, no amor você aperfeiçoa. Na cura você provê, na vigília você preserva. (Hugo de São Vítor, 2001, pg. 165)

   Ao focar no valor da pesquisa a força do trabalho, Hugo afirma que somente com dedicação e amor pelo que faz os bons resultados serão alcançados. No entanto é necessário humildade para aprender; só assim, o estudante estará no futuro preparado para ensinar. Em sua filosofia existe um pragmatismo didático. Ele sempre foca na necessidade de otimização do tempo, para dele extrair o máximo. Interessante notar que esta é uma das necessidades da sociedade da informação.

Por que, então, você se envergonha de aprender, e não se envergonha de ser ignorante? Esta vergonha é maior que aquela. E ainda, porque você aspira coisas altíssimas, quando ainda jaz no lugar mais baixo? Avalie, antes, aquilo que as tuas forças podem sustentar. Avança bem, quem avança ordenadamente. Alguns, querendo dar um grande salto, caem no

precipício. Não queira, portanto, apressar-se demais. Deste modo você chegará mais cedo para a Sabedoria. (Hugo de São Vítor, 2001 p. 157)

   Podemos verificar, na citação, que nosso pensador compreendia o valor do tempo no processo educacional. Aprender rápido não é garantia de sucesso, mas aprender com qualidade será a diferença entre os que sabem e os que pensam saber.

Aprenda de todos com prazer aquilo que você não conhece, porque a humildade pode tornar comum para você aquilo que a natureza fez próprio para cada um. Será mais sábio de todos, se irá querer aprender de todos. Aqueles que recebem de todos, são mais ricos de todos. (Ibidem., p. 159)

   Falar de humildade em um mundo que a todo momento alimenta o orgulho e a indiferença não é tarefa fácil. Mas é inegável que a humildade é o começo de uma vida justa, e a porta de entrada para o conhecimento. Muitas vezes, deixamos de aprender porque acreditamos que já sabemos demais. Engano. Sempre podemos aprender mais e melhor. Conhecer é uma predisposição da humanidade.

Não considere vil conhecimento algum, portanto, porque todo conhecimento é bom. Se tiver tempo livre, não recuse de ao menos ler algum escrito. Se você não lucra, também não perde nada, sobretudo porque não há nenhum escrito, creio eu, que não ponha algo desejável, se é tratado no lugar e no modo devido, e não há nenhum escrito que não contenha algo especial não encontrado alhures, algo que o diligente escrutador da palavra não possa agarrar com tanta maior graça quanto mais é raro. Mas não existe um bom que tire o melhor. Se você não pode ler todas as obras, lê as mais úteis. Ainda que possa ler todas, não deve ser dispensado o mesmo afinco a todas. Algumas devem ser lidas para não serem desconhecidas, outras para serem apenas ouvidas, pois não raro aquilo que não ouvimos é considerado maior do que realmente é, e é mais fácil ser estimada uma coisa, da qual se conhece o fruto. (Ibidem, 159).

Continuação: Aprendendo a estudar com Hugo de São VítorA educação do presente exige do estudante essas características que o nosso filósofo já falava: antecipação, disposição, pensamento objetivo e uma sólida base em leituras. Muitas das tarefas de uma sociedade da informação devem ser precedidas por essas regras. Hoje, a principal mercadoria em circulação é a informação. Para fazer uso dela, as pessoas precisam de uma escolaridade básica; dessa maneira surge uma relação cíclica: quanto mais informações, mais precisamos nos atualizar para ficar em dia com elas.

No livro, A Ética dos hackers e o espírito da era da informação, Pekka Himanen disserta sobre o valor de uma educação que prepara o estudante para pensar com identidade e autonomia.

Mais uma vez, esse modelo dos hackers se assemelha à Academia de Platão, na qual os alunos não eram vistos como a meta dos ensinamentos, mas sim como companheiros na aprendizagem (synetheis). (HIMANEN, 2001, p. 76)

O mundo contemporâneo exige outro modelo de indivíduo; um indivíduo bem informado, com capacidade de pensar rápido e objetivo, com poder de decisão e, principalmente, pró-ativo. A transversalização da informação transforma a experiência de aprender e ensinar de forma significativa e irreversível. Os

problemas que surgem em uma sociedade altamente informatizada exigem de cada um de nós novas habilidades.

Algumas dessas características são: 

1. Conhecimento específico: Uma base sólida de conhecimento lhe permitirá acessar ideias (através da memória) e avaliar sua relevância para um problema.       

2. Poder de observação: Capacidade para pesquisar e separar o que é relevante e essencial do que é superficial.

3. Capacidade de trabalhar sozinho e em grupo: Trabalhar em grupo exige a capacidade de ouvir e respeitar as opiniões dos outros. Trabalhar sozinho exige poder de concentração e capacidade de sintetizar ideias.

4. Capacidade de lidar com as adversidades: Muitas vezes somos obrigados a trabalhar em áreas que não dominamos, outras vezes devemos solucionar problemas que convergem áreas distintas. Para isso é necessário um conhecimento básico de áreas afins e esse só será alcançado através da leitura.

  Alguns teóricos da educação falam de aprendizagem colaborativa, mas, pensando nesse modelo, vem a imagem de Hugo e sua escola. Eles defendem que, primeiro, os alunos são responsáveis pela própria aprendizagem, em seguida, que um dos objetivos da aprendizagem colaborativa é a interação. Isso éDidascálicon. Para ele cada arte deve ser atribuída à sua função. No entanto, a proposta da escola de São Vítor é não apenas a interação entre alunos e professores, mas, particularmente, a interação entre conhecimentos específicos, na construção do conhecimento através do diálogo com o texto e com os pares. Somente através dessa interação, os alunos serão responsáveis pela própria aprendizagem.

Quando, portanto, lidamos com qualquer ciência, mas, sobretudo, quando a ensinamos, tudo deve ser resumido sinteticamente e exposto de maneira a ser facilmente compreendido, devendo bastar uma exposição quanto mais breve e rigorosa possível sobre aquilo que está sendo tratado, para evitar que, ao multiplicarmos as explicações não pertinentes, turbemos o estudante ao invés de edificá-lo. Não deve ser dito de modo menos aproveitável aquilo que devemos dizer. Procure em cada ciência somente aquilo que consta pertencer especificamente a ela. Em suma, quando você estiver lendo as ciências e tiver conhecido, mediante discussão e comparação, aquilo que é próprio de uma, aí finalmente será lícito comparar reciprocamente os fundamentos das ciências singulares e, desta consideração comparativa e recíproca, investigar aquelas coisas que anteriormente você tinha entendido menos. Não queira multiplicar os atalhos antes de ter conhecido as estradas. Você estará seguro nas discussões quando não tiver medo de errar. (Hugo de São Vitor, 2001, p. 145)

A boa didáticaA boa didática é aquela que consegue ser sintética sem ser superficial. Interessante é que Hugo viveu o período em que a retórica era a ferramenta da excelência e do grau mais elevado dos empreendimentos intelectuais, no entanto ele compreendia o fator determinante da boa aprendizagem que é a clareza. O rigor da boa leitura aproxima o pensamento, a ideia do texto e o contexto em uma dinâmica perfeita. E esse é o caminho proposto por ele para os estudos. Três coisas são necessárias aos estudantes:

1) as qualidades naturais,

2) o exercício,

3) a disciplina.  

   As qualidades naturais para que entenda facilmente aquilo que ouve e memorize firmemente aquilo que entendeu. O exercício para que eduque as qualidades naturais mediante o trabalho e a persistência. A disciplina, para que, vivendo de modo louvável, harmonize a conduta com o saber. O exercício do engenho se dá mediante duas atividades: a leitura e a meditação.

   Hugo aponta que a leitura exige uma máxima consideração à ordem e ao método. O modo de ler consiste em dividir. E continua.

Toda divisão começa das coisas finitas e progride até as infinitas. Tudo aquilo que é finito é mais conhecido e mais compreensível pela ciência. A aprendizagem começa das coisas que são mais notas e, pelo conhecimento delas, chega ao conhecimento das coisas ocultas. Além disso, nós investigamos com a razão, à qual é próprio dividir, quando descemos dos universais para os particulares dividindo e investigando a natureza de cada coisa. Com efeito, todo universal é mais determinado que seus particulares. Quando, portanto, aprendemos, devemos começar pelas coisas que são mais conhecidas, determinadas e abrangentes, e aí, descendo aos poucos e distinguindo pela divisão as coisas singulares, investigar a natureza das coisas aí contidas. (Ibidem, p. 149-151)

   É fato que o gosto pela leitura não é algo comum, mas isso não quer dizer que não possa ser adquirido com prática, disciplina e força de vontade. O mundo exige cada vez mais conhecimentos específicos e só podemos chegar a eles através dos textos. Ainda não se inventou uma forma de alcançar o conhecimento sem o uso da leitura.

   Não é tarefa fácil convencer que a leitura é o melhor caminho, principalmente em um mundo regido pelas leis da velocidade, mas o que precisamos compreender é que o desenvolvimento de um pensamento crítico e autônomo exige um tempo mais lento para que possamos ouvir a voz da nossa consciência. Pensar com rigor é não ter medo de errar. Pensar com rigor é arriscar, mas principalmente, não ter pressa. A leitura é a ferramenta que nos ensina a ouvir a voz da consciência e experimentar o tempo a partir da vida interior.

ConclusãoSem disciplina e humildade, o conhecimento não pode se desenvolver, o homem não encontra o seu verdadeiro papel, e os livros não transformam vidas. A força da palavra é a realização do espírito humano em toda a sua grandeza, mas somente com disposição poderemos compreender as lições da vida, e assim, adquirir sabedoria. Terminamos com as palavras de Hugo.

   Sendo que a atividade do espírito humano consiste ou na compreensão contínua das coisas presentes, ou na inteligência das ausentes ou na pesquisa e descoberta das coisas desconhecidas, duas são as coisas às quais a força da alma pensante dedica todo o esforço: uma em conhecer as naturezas das coisas mediante o método da indagação, a outra em primeiro conhecer aquilo que depois a seriedade moral deve realizar. (Hugo de São Vítor, 2001, p. 57)

Seção 4 - Humanismo Renascentista

Apresentação Caro aluno, bem vindos a nossa seção 04. O objetivo da nossa aula será mostrar uma forma de pensamento que conseguiu unir o melhor de dois mundos, ou seja, o pensamento científico (ainda distante do rigor da modernidade) com a sensibilidade das artes. Dessa junção surge um dos pensamentos mais significativos da história da humanidade: A Renascença. Mas o que foi esse período? O que ele representou para o desenvolvimento do ocidente? Como ele continua a ser uma referência para o nosso modelo de Cultura?

   A arquitetura intelectual da Renascença foi moldada pelos movimentos filosóficos e literários do humanismo, que elevam as aptidões individuais a um grau desconhecido até então. Ela apresenta uma atitude secular ao priorizar o intelecto e a individualidade. O espírito humanista se expressa através do estudo dos clássicos, que apresentam aos artistas à diversidade de ideias filosóficas gregas e romanas que estimulam o pensamento crítico e a individualidade. Na Florença do século XV, tanto os filósofos, como os artistas, estadistas e mercadores buscavam se tornar “universais”, ou seja, ter uma abertura do intelecto as mais diversas áreas do conhecimento humano: artes, literatura, ciência, arquitetura, engenharia, anatomia.

A história da filosofia tradicionalmente não reconhece a importância da Renascença do ponto de vista filosófico, creditando a ela apenas um período de transição entre a Idade Média e a Modernidade. Contudo, ocorreu uma redescoberta desse período a partir da obra do historiador Jacob Burckhardt, “A Cultura do renascimento na Itália”. Nessa obra, Burckhardt define o Renascimento em termos de desenvolvimento do indivíduo e de descoberta do mundo e do homem. 

   O Renascimento valoriza e retorna aos clássicos gregos e romanos, buscando seu lema em Protágoras: “O homem é a medida de todas as coisas”. Essa forma de pensar rompe com o período Medieval e todo o seu teor teológico.

   Podemos dizer que a Renascença começa com a doutrina da dignidade do homem. Através desse novo olhar, o homem ganha uma dimensão de protagonista na natureza através da sua razão e sensibilidade. Com a razão ele pode olhar, criar e transformar o mundo; com a sensibilidade, ele se reconhece como parte da natureza e do mundo. Pico della Mirandola (1463-1494) enxerga o homem como um milagre em sua dimensão física e metafísica. Todas as criaturas possuem uma essência que determinam aquilo que são e não outra coisa. No entanto, o homem é a única criatura que se encontra no limite de dois mundos. “A teologia não nega a filosofia natural, antes a completa, assim como Platão completa Aristóteles: o homem não pode renunciar nem a conhecer a natureza nem a transcendê-la.” (ABBAGNANO, 2000, p. 75)

   A liberdade e não a natureza predeterminada é a característica do homem. Pico era um homem religioso, alguns aspectos de sua natureza estão presentes em sua filosofia. O renascimento se realiza através de vários graus de sabedoria, culminando no grau mais elevado que é a sabedoria teológica. O Renascimento é um regresso aos antigos naquilo que eles tinham de melhor: o valor da sabedoria.

   Giovanni Reale cita Pico della Mirandola em sua História da Filosofia, apresentando o discurso que Deus teria dirigido ao homem “recém-criado”:

Eu não te dei, Adão, nem um lugar determinado, nem um aspecto próprio, nem qualquer prerrogativa só tua, para que obtenhas e conserves o aspecto e as prerrogativas que desejares, segundo a tua vontade e os teus motivos. A natureza limitada dos astros está contida dentro das leis por mim prescritas. Mas tu determinarás a tua sem estar constrito a

nenhuma barreira, segundo o teu arbítrio, a cujo poder eu te entreguei. Pus-te no meio do mundo para que, daí, tu percebesses tudo o que existe no mundo. Não te fiz celeste nem terreno, mortal nem imortal, para que, como livre e soberano artífice, tu mesmo te esculpisses e te plasmasses na forma que tiveres escolhido. Tu poderás degenerar nas coisas inferiores, que são brutas, e poderás, segundo o teu querer, regenerar-te nas coisas superiores, que são divinas. (REALE/ANTISERI, 1990, p.82) 

O Humanismo Renascentista O humanismo renascentista retoma a herança Greco-romana como base de um modelo de pensamento que se pretende construir. O Renascimento, com o seu valor artístico e cultural, surge no século XV na cidade de Florença, uma das mais ricas cidades da Europa. Uma cidade de artesãos e banqueiros que construíram suas riquezas no comercio e que, desejando investir no desenvolvimento intelectual da cidade, aplicavam na literatura, nas artes plásticas e na filosofia. Como escreveu Burckhardt:

Antes disso, são dignos de nossa atenção aqueles cidadãos que, principalmente em Florença, fizeram do interesse pela Antiguidade uma das metas principais de suas vidas, tornando-se eles próprios grandes eruditos, ou grandes diletantes a dar apoio aos primeiros. Eles foram de grande importância para o período de transição, no princípio do século XV, porque é neles que, pela primeira vez, o humanismo manifesta-se, na prática, como um elemento necessário da vida cotidiana. Foi somente depois deles que príncipes e papas dedicaram-se a cultivá-lo. (BURCKHARDT, 2009, p. 208)

   A cidade de Florença foi o berço da Renascença; o apoio dado pelos humanistas ao aprendizado e às descobertas deu início a um novo ideal humano, ou seja, homo universale (homem universal/polímata). Mas o que seria esse homem? Era o homem instruído em todos os ramos do conhecimento e com uma grande capacidade de inovação. Eles buscavam aprender grego, latim, a filosofia de Aristóteles, além dos tratados clássicos de história natural, geografia, arquitetura e engenharia. A noção que esses indivíduos tinham do conhecimento estava distante da concepção sistemática que viria a ser uma característica da modernidade. Acredito que estivesse mais próximo de uma experiência orgânica do conhecimento; ou seja, razão e sensibilidade estavam unidas de tal forma que a experiência do conhecimento deveria passar pelas emoções.

  A pergunta que se apresenta é: o que é o humanismo renascentista? O humanismo significa um novo sentido de homem e de seus problemas. É um novo sentido que encontra expressões multiformes e, por vezes, até opostas, mas sempre ricas e originais. É uma aquisição de sentido de sua própria individualidade que encontra nos seus atos a razão para a construção de uma autonomia regida pela força da razão, pela sensibilidade e pelo maravilhamento diante da natureza.

Observações de Nicola Abbagnano Nicola Abbagnano (2000, p.11 e 12) observa três contribuições significativas do Renascimento e do humanismo que dele deriva, são elas: 1. a descoberta da historicidade do mundo humano; 2. a descoberta do valor do homem e da sua natureza mundana (natural e histórica); 3. a tolerância religiosa.

1. O humanismo renascentista não consiste apenas no amor e no estudo da sabedoria clássica e na demonstração da sua concordância fundamental com a verdade cristã, mas sim e antes de tudo na vontade de reconstruir tal sabedoria na sua forma autêntica, procurando compreendê-la na sua

realidade histórica efetiva. É com o humanismo que surge pela primeira vez a exigência do reconhecimento da dimensão histórica dos acontecimentos.

2. Quando se diz que o humanismo renascentista descobriu ou redescobriu o valor do homem, se quer com isso dizer que reconheceu o valor do homem como ser terreno ou mundano, inserido no mundo da natureza e da história, capaz de nele forjar o próprio destino. 

3. Faz parte também do humanismo renascentista a concepção civil da religião e o conceito de tolerância religiosa. A função civil da religião é reconhecida com fundamento da relação entre cidade celeste e cidade terrena: a cidade terrena deverá, na medida do possível, realizar a harmonia e a felicidade que são características da cidade celeste. A harmonia e a felicidade pressupõem, por sua vez, a paz religiosa

As ArtesOs artistas da Alta Renascença compartilhavam da filosofia humanista que colocava o homem e suas realizações no centro de tudo. Essa visão é exemplificada pelos estudos de Leonardo da Vinci (1452-1519), principalmente pelo desenho Proporções da imagem do homem (Segundo Vetruvius), comumente chamado de O homem vitruviano.

 Leonardo antecipou em cem anos o método de abordagem empírica de Galileu Galilei e Francis Bacon, ao desenvolver sozinho uma abordagem empírica da ciência, que valorizava a observação sistemática da natureza, o pensamento lógico e a linguagem matemática. 

   Leonardo foi uma figura singular, um daqueles gênios que a humanidade conhece de tempo em tempo. Dotado de excepcionais poderes de observação e memória visual, um homem capaz de desenhar com perfeição desde o movimento das águas, dos vôos dos pássaros, à anatomia do corpo humano, à engrenagens de engenharia mecânica. Sua abordagem do conhecimento científico era visual, ou seja, a observação era o ponto de partida no processo do conhecimento:

A descoberta da perspectiva histórica está para o tempo como a descoberta da perspectiva visual, conseguida pela pintura do Renascimento, está para o espaço: consiste na possibilidade de nos apercebermos da distância que vai de um objeto a outro e de qualquer deles ao observador. É, por conseguinte, a possibilidade de os entendermos na sua real localização, na sua diferença relativamente aos demais e na sua individualidade autêntica. O significado da personalidade humana, como centro original e autônomo de organização dos vários aspectos da vida, é condicionado pela perspectiva, nesta acepção. A importância que o mundo moderno atribui à personalidade humana é o resultado de um propósito atingido pela primeira vez pelo humanismo renascentista. (ABBAGNANO, 2000, p. 12)

A descoberta da perspectiva pela renascença foi algo extraordinário. O método científico de Leonardo não se baseava apenas na observação cuidadosa e sistemática da natureza, mas também incluía uma análise detalhada e abrangente do processo de observação de si. Como podemos ler em A Ciência de Leonardo da Vinci:

Como artista e cientista, sua abordagem visual predominava, e iniciou suas investigações da ‘ciência da pintura’ com o estudo da perspectiva: pesquisando como distância, luz e condições atmosféricas influenciam a aparência dos objetos. A partir da perspectiva, prosseguiu em duas

direções opostas – para fora e para dentro, conforme o caso. Investigou a geometria dos raios de luz, a interação de luz e sombra e a própria natureza da luz; também estudou a anatomia do olho, a fisiologia da visão e a trajetória das impressões sensoriais ao longo dos nervos até a ‘sede da alma’. (CAPRA, 2008, p.225)

A ciência da perspectivaA ciência da perspectiva de Leonardo tinha interesses não apenas nos caminhos externos dos raios de luz, junto com outros fenômenos ópticos, mas também no papel do olho humano. Naquele período, artistas e filósofos debatiam sobre a localização exata da ponta da pirâmide visual no olho. A estrutura dos olhos e o processo da visão eram para Leonardo prodígios da natureza. Não admira que Leonardo passou mais de vinte anos investigando a anatomia e a fisiologia do olho humano. No Tratado de Pintura, ele escreve:

Não vê que o olho abarca a beleza de todo o mundo? Ele é o mestre da astronomia, pratica a cosmografia, aconselha e corrige todas as artes humanas; transporta o homem a diferentes partes do mundo. [O olho] é o príncipe das matemáticas; suas ciências são muito exatas. Mediu as alturas e dimensões das estrelas, descobriu os elementos e suas localizações (...). Criou a arquitetura, a perspectiva e a pintura divina (...) [O olho] é a janela do corpo humano, pela qual [a alma] contempla e desfruta a beleza do mundo. (Apud. Capra, 2008, p. 245)

Para uma melhor elaboração do seu pensamento, Leonardo fazia uso do desenho. O desenho é o conceito chave do seu pensamento, a ferramenta que permite a construção de uma teoria do conhecimento, rica em detalhes, se apresentar de forma mais eficiente. Para ele, o desenho era um instrumento de estudo e de análise da realidade, uma ferramenta de comunicação eficaz. Alguns críticos da sua obra afirmam que o ‘desenho’ foi a sua invenção mais notável, capaz de expressar perfeitamente a complexidade do seu pensamento, sua capacidade de passar de um campo de estudo e de representação para outro, o estreito vínculo entre a arte e a ciência.

Leonardo não desenha o que vê, mas o que entende a partir do que vê. Era o caso, também, de lançar luz sobre o percurso e as etapas da sua formação que o levou de uma abordagem pragmática, típica do conhecimento politécnico da bottega renascentista, adaptada à resolução de problemas concretos através de uma metodologia do passo a passo, à apreensão dos problemas de forma cada vez mais orgânica e globalizante, à qual se entrega. Em outras palavras, o especialista em máquinas se torna teórico da grande engrenagem do mundo. Esta matematização progressiva da relação com o mundo incita Leonardo da Vinci a buscar leis que governam os fenômenos e as interações entre as múltiplas manifestações da natureza. (BOUCHERON/GIORGIONE, 2014, p.15)

A contribuição do pensamento de Leonardo da Vinci é fundamental para a nossa disciplina, pois é um pensamento da abertura, um pensamento que, antes de ser sistemático, compreende o valor do movimento e da natureza para o processo do conhecimento. A representação visual do processo do conhecimento, como ele fazia, antecipou a fotografia e, mais tarde, as tecnologias digitais da informação em nível do 3D.

Você pode se perguntar como Leonardo pode contribuir para a sua vida acadêmica e profissional hoje. Eu diria que a maior relevância desse pensador está no campo da interpretação da realidade. Ele não faz a separação dicotômica entre sujeito e objeto, mas compreende o valor da experiência orgânica do

conhecimento, uma experiência em que o indivíduo que analisa a realidade parte da sua própria experiência. 

A sua capacidade de observação inata e sua educação pictórica rendeu à humanidade uma das obras mais significativas em campos que vão da mecânica, das artes plásticas, às análises dos movimentos dos pássaros. Sua metodologia do desenho continua a fazer escola até os nossos dias. Leonardo representa o modelo de homem completo (polímata), modelo em que razão, sensibilidade, observação e determinação são fundamentais para a construção de um mundo mais prático, com isso, melhor. Ele compreendeu como poucos que tecnologia e arte são dois lados da mesma moeda, e foi o único a sintetizar de forma tão harmoniosa o talento do artista com o gênio da ciência.

Outros gênios da RenascençaOutros gênios da Renascença

Michelangelo (1475-1564): Michelangelo Buonarroti foi aprendiz de Domenico Ghirlandaio, que lhe ensinou a arte da pintura de afrescos e escultura com Bertoldo di Giovanni. Michelangelo viajou para Roma, onde esculpiu Baco e a Pietà. Ele voltou a Florença para trabalhar no Davi, concluído em 1504. Depois ele foi contratado para criar a tumba do papa Júlio II, que deveria conter 40 imagens em tamanho natural; o projeto não foi realizado porque em 1508 ele começou a trabalhar no teto da Capela Sistina (1516-1564). É contratado pelo papa Leão X para criar a tumba papal. Em 1534, ele voltou à Capela Sistina para pintar O Juízo Final, na parede do altar. Posteriormente, ele projetou o domo da Basílica de São Pedro, no Vaticano. Rafael (1483-1520): Raffaello Sanzio da Urbino, era filho de Giovanni Santi, pintor da corte de

Urbino. Com a morte de seu pai, em 1494, ele se tornou aprendiz de Pietro Perugino, antes de se mudar para Florença, a fim de estudar as obras de Michelangelo e Leonardo da Vinci. Rafael foi chamado a Roma em 1508, pelo papa Júlio II, para decorar os seus aposentos no Palácio Apostólico. O papa Leão X de Medici, contratou Rafael para decorar com afrescos a Stanza dell´Incendio. Ele é nomeado diretor das obras arquitetônicas do Vaticano em 1514. Em 1515 é nomeado curador das antiguidades romanas.

Donatello (1386-1466) Donato di Nicolò di Betto Bardi, nasceu em Florença, filho de Nicoló di Betto Bardi. Foi um escultor talentoso. Assim como os personagens da antiguidade, suas esculturas eram às vezes de personagens nus.

ConclusãoO nosso objetivo ao apresentar o pensamento renascentista foi mostrar que, na história da humanidade, a produção do conhecimento pode se superar a cada momento. O desenvolvimento econômico possibilitou que a Renascença se tornasse uma realidade; a Renascença apontou para um modelo de cultura e de homem apresentado pelos gregos; a descoberta desse modelo reconstruiu a realidade da Europa, a começar por Florença. A necessidade do conhecimento, aliada à sensibilidade artística, nos legou as mais extraordinárias obras de arte. Mas, acima de tudo, atesta que o homem nasceu para o conhecimento e a cultura.

   O homem que a Renascença desejava formar é o resultado de uma experiência de observação, sensibilidade e racionalização do mundo real. Pensar a partir das transformações de uma Europa que logo descobriria a Modernidade, ainda marcada pela herança Medieval, foi algo singular. A fé descobre o poder da observação, que antes havia descoberto a razão e, dessa soma, surge algo completamente novo. O homem que se desejava formar foi a junção de razão, sensibilidade, determinação e fé. Fé na razão, determinação para transformar a realidade, sensibilidade para enxergar os detalhes na natureza e confiança na capacidade humana para transformar a natureza.