Segregação Espacial Seminario Ppgsd Uff
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SEGREGAÇÃO ESPACIAL NO CONTEXTO DAS POLÍTICAS DE
REABILITAÇÃO URBANA: o fenômeno da gentrificação analisado a partir
do projeto Porto Maravilha.
Ana Beatriz Oliveira Reis*
Juliana Pessoa Mulatinho**
Marcela Münch de Oliveira e Silva***
Resumo:
O objetivo do presente trabalho é demonstrar de que forma as políticas de reabilitação urbana podem se transformar em causas da segregação urbana, ocasionando, especialmente, o fenômeno da gentrificação. Para tanto, esse artigo científico empreende uma análise do projeto Porto Maravilha, aqui entendido como uma ação de reabilitação urbana. Esse exame possui especial relevância uma vez que, a cidade do Rio de Janeiro, vem passando por grandes obras urbanísticas que caracterizam justamente a noção de reabilitação urbana. A partir da pesquisa das ações empreendidas na implementação desse projeto, conclui-se pela existência de uma relação entre a requalificação urbanística empreendida e a ocorrência do fenômeno da gentrificação. A proposta aqui delineada se realiza através de uma perspectiva jurídico-sociológica com viés crítico em uma abordagem dialética contrapondo as s teóricas da reabilitação urbana (OLIVEIRA, 2011) e da segregação espacial (GARNIER, 2013) para analisar o fenômeno da gentrificação (RIGOL, 2004). São utilizadas as técnicas de pesquisa de revisão bibliográfica e análise documental.
1. Introdução
A reabilitação urbana é um conjunto de intervenções urbanísticas
realizadas através de políticas conjuntas entre o poder público e o setor
privado, com objetivo de renovar os tecidos urbanos que se encontram
degradados a partir da modernização da infraestrutura urbana, promovendo o
potencial dessas áreas para atrair maiores investimentos. Na atualidade, a
cidade do Rio de Janeiro está justamente passando por esse processo, que
* Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense – PPGDC/UFF** Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense – PPGDC/UFF*** Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense – PPGDC/UFF
pode ser facilmente constatado pela realização de inúmeras intervenções
urbanas através de projetos como o “Porto Maravilha”, que será analisado no
presente trabalho.
Ainda que de forma velada, sob o manto de um discurso de que as
mudanças sociais promovidas pela reabilitação urbana buscam maior coesão
social, através do aumento de oportunidades geradas por novos investimentos
em áreas degradadas ou em vias de degradação, essas políticas têm
intensificado a segregação sócio-espacial.
Esse fenômeno, identificado como gentrificação, se constitui na
“substituição social, reinvestimento econômico e, em geral, mudança de
significado e imagem dessas áreas centrais” (RIGOL, 2004, p. 99), e está
ocorrendo em muitas cidades no mundo sujeitas a intensos processos de
transformação do espaço urbano.
As populações de baixa renda que vivem nessas áreas centrais são
empurradas para a periferia, onde viverão em espaços estigmatizados como
espaços de pobreza, e suas casas dão lugar a novos empreendimentos
voltados para a prestação de serviços e para a habitação de moradores com
maior poder aquisitivo. A reabilitação urbana, portanto, caracteriza uma
estratégia de “liberar o terreno para operações rentáveis e habitantes
solventes” para o contentamento dos exploradores do mercado imobiliário
(GARNIER, 2013).
Na cidade do Rio de Janeiro, a realização do projeto de revitalização da
região portuária, área central historicamente ligada à imagem de degradação,
violência e marginalização, é expressão desse deslocamento da pobreza para
a periferia das cidades. O “Projeto Porto Maravilha” surge em 2009, no bojo de
alterações no espaço urbano voltadas à adequação da cidade ao recebimento
dos mega eventos esportivos internacionais, tendo sido inspirado no Projeto
Puerto Madero, em Buenos Aires. O objetivo, tal qual o era lá: “transformar
uma área tradicional da cidade, porém desvalorizada e precarizada com o
tempo, em um grande polo de cultura e lazer, com restaurantes, espaços
culturais e museus” (BELLO, 2011, p. 299).
Não há, portanto, uma finalidade social nessa revitalização da zona
portuária, mas, ao contrário, a finalidade de favorecer ao mercado imobiliário,
valorizando áreas a custa de remoções de comunidades, conduzidas pela
Secretaria Municipal de Habitação (SMH) em total desrespeito aos direitos e
garantias, asseguradas ao menos em tese, aos então moradores.
Pretende-se, assim, analisar o discurso hegemônico da reabilitação
urbana demonstrando, através da análise da experiência empírica das
intervenções urbanísticas promovidas no âmbito do projeto Porto Maravilha,
que essas práticas, na verdade, têm acirrado a desigualdade sócio-espacial no
Rio de Janeiro, com a retirada de direitos de boa parte da população que é tida
como um entrave ao avanço deste projeto de desenvolvimento para as
cidades.
Através de uma abordagem dialética, pretende-se evidenciar as
contradições existentes no discurso apresentado pelo estado, pelo mercado e
por muitos profissionais ligados ao urbanismo que afirmam que a reabilitação
urbana, em especial das áreas centrais, tem como objetivo primordial a
promoção de maior coesão social (OLIVEIRA, 2011).
A análise proposta será realizada através de uma perspectiva jurídico-
sociológica com viés crítico em uma abordagem dialética que contrapõe as
categorias teóricas da reabilitação urbana (OLIVEIRA, 2011) e da segregação
espacial (GARNIER, 2013) para analisar o fenômeno da gentrificação (RIGOL,
2004), especialmente aquela verificada no âmbito da implementação do projeto
Porto Maravilha. Serão utilizadas as técnicas de pesquisa de revisão
bibliográfica e análise documental.
2. Descortinando o discurso da reabilitação urbana
A reabilitação urbana é apresentada como uma panaceia urbanística
voltada à recuperação de áreas urbanas degradadas progressivamente, seja
pelo decorrer do tempo, pelo uso excessivo, ou mesmo pela inadequação de
seu formato a novos modos de vida.
Trata-se, como já dito, de um conjunto de intervenções urbanas, feitas
sob a parceria entre o setor público e privado, com o fim de transformar áreas
esquecidas, recuperando seu prestígio e sua integração ao resto da cidade
através da modernização de sua infraestrutura e da realização de obras
arquitetônicas de grande porte. O objetivo é criar uma nova imagem urbana,
limpa, criativa, a fim de transformá-la numa marca registrada, e especialmente
em um destino turístico (GARNIER, 2013).
Embora o discurso predominante dos defensores dos processos de
reabilitação urbana seja baseado na promoção da coesão social uma vez que
essas áreas passariam a contar com melhor infraestrutura urbana e mais
acesso a serviços antes negligenciados, percebe-se, através da observação de
alguns processos de reabilitação a ocorrência do fenômeno da gentrificação, o
que será abaixo descrito, uma vez que a população histórica dessas áreas
geralmente é forçada a abandonar essas áreas através da remoção direta e da
remoção indireta caracterizada pela excessiva valorização da área.
Conforme observado por GARNIER (2013) a reabilitação urbana,
portanto, caracteriza uma estratégia de “liberar o terreno para operações
rentáveis e habitantes solventes”, ou seja, aquela parcela da sociedade que
pode pagar pelo produto caro que se tornaram as grandes cidades.
Todavia, embora essas ingerências no espaço urbano sejam noticiadas
sob um viés neutro e com uma preocupação única de contribuir para a coesão
social, são, em verdade, fruto de um processo expansivo do capital que, se
num primeiro momento, produz uma desordem espacial com a convivência
entre áreas nutridas de investimento e infraestrutura e áreas renegadas, num
segundo momento quer recuperar algumas dessas áreas para aquecê-las
economicamente, sob o custo da expulsão da antiga população não rentável.
E não é uma exceção, os processos de urbanização costumam colocar-
se de fato como inerentes ao desenvolvimento econômico e ainda como um
fator de desenvolvimento da cultura, quando se fundamentam nas leis
fundamentais da sociedade em que se inserem, no caso, a ordem capitalista,
que tem como sua face correspondente “o caos urbano”, revestido na forma de
segregação sócio-espacial (GARNIER, 1976).
O resultado dessa reconquista urbana vem repercutindo em diversas
metrópoles na destruição da presença popular nas áreas reabilitadas, e na
perda de identidade criada com esses espaços, num verdadeiro processo de
descivilização (GARNIER, 2013).
Percebe-se que as políticas de reabilitação urbana têm intensificado a
segregação urbana. Essa intensificação acarreta o fenômeno de gentrificação,
analisado em seguida, presente nas cidades que vêm passando por intensos
processos de transformação do espaço urbano, através das políticas de
reabilitação urbanística e que se caracteriza pela “substituição social,
reinvestimento econômico e, em geral, mudança de significado e imagem
dessas áreas centrais” (RIGOL, 2004, p. 99).
3. A produção desigual do espaço urbano e o fenômeno da gentrificação
O contexto do espaço urbano latino-americano é marcado pela
desigualdade e segregação. No sistema de produção capitalista as estruturas
de classe e urbanas dão a tônica dessa desigualdade. A partir de uma análise
mais cuidadosa do espaço urbano é possível perceber que os diferentes
grupos sociais não se distribuem de maneira aleatória na cidade. O mercado,
muitas vezes apoiado pelo poder público, irá submeter o espaço urbano a
constantes rearranjos a fim de garantir o menor gasto com a circulação de
mercadorias e, consequentemente, maiores lucros. Nesse sentido, a aplicação
ou a omissão da legislação urbanística terão papéis fundamentais no
atendimento aos interesses privados do capital.
Mas não só o fator econômico conduz os processos de segregação no
espaço urbano. Fronteiras simbólicas verificadas a partir da análise da vida
cotidiana evidenciam que outros fatores também contribuem para que as
cidades criem barreiras visíveis e invisíveis às pessoas. Essas fronteiras são
produzidas socialmente e devem ser contextualizadas historicamente através
da observação das paisagens, das rotinas, dos estigmas territoriais e das
significações da cidade.
Na América latina, contudo, percebe-se que a questão social ainda é a
que mais influencia na configuração segregacionista do espaço urbano. Nos
Estados Unidos, por exemplo, a questão racial é muito forte (mesmo que não
possa ser dissociada totalmente da questão econômica). Os chamados
“guetos” são locais nas cidades associados à população negra. No Brasil, a
ocupação dos morros que originaram as favelas se deu, em especial, pela
população de baixa renda, predominantemente antigos escravos
afrodescendentes, mas não exclusivamente. Na capital da Argentina, Buenos
Aires, percebe-se fenômeno semelhante nas áreas onde se localizam os
cortiços, locais habitados pelas classes sociais mais vulneráveis.
Muitas vezes associa-se a segregação somente à questão da
localização. Contudo, além disso, outro componente da segregação é a
questão da mobilidade urbana. A falta de acesso a transportes públicos de
qualidade faz com que a inserção dos jovens da periferia em certas áreas da
cidade seja obstaculizada. Isso evita o convívio entre os diferentes segmentos
sociais contribuindo para acentuar a segregação.
Outra questão importante que evidencia a questão da segregação no
espaço urbano é a distribuição dos serviços e equipamentos urbanos na
cidade. Enquanto certas áreas são dotadas de infra-estrutura urbana, contando
com inúmeros serviços como saúde, educação e lazer bem como acesso a
inúmeras alternativas de transporte público, outras áreas, geralmente
localizadas nas áreas periféricas das cidades sofrem com a escassez e com a
precariedade dos equipamentos urbanos. O acesso ao transporte público de
qualidade é negligenciado, o que torna mais difícil o contato com certos
serviços uma vez que eles, geralmente, se encontram quase que
exclusivamente nas áreas centrais. Tudo isso viola o que José Afonso da Silva
chama de “princípio da justa distribuição dos benefícios e ônus da atuação
urbanística” (SILVA, 2010, p.45)
As autoras María Carmane, Neiva Vieira e o e o autor Ramiro Segura
(2013) destacam que podem ser observados quatro tipos de processos de
segregação no espaço urbano na América Latina. O primeiro desses processos
é a segregação silenciada marcada pelo confinamento de alguns segmentos
sociais num determinado espaço. Tem-se como exemplo desse tipo de
segregação os condomínios de luxo da cidade de São Paulo. O outro tipo de
segregação também se relaciona com a segregação silenciada, trata-se da
denominada segregação padrão, que é aquela marcada pelo abandono estatal
de determinada área da cidade.
O terceiro processo de segregação, talvez a que mais interesse para a
reflexão aqui proposta, é a segregação indolente ou positiva, caracterizada
pela expulsão de determinados grupos de certas áreas da cidade com a
finalidade de se obter certa homogeneidade de determinado lugar.
Por fim, o quarto processo de segregação é da segregação agravada no
qual se verifica a difícil permanência de certos segmentos sociais devido a
questões sócio espaciais. Essas questões dificultam a integração de alguns
grupos na cidade em que habita. No Rio de Janeiro é possível perceber que a
especulação imobiliária e a valorização do valor do aluguel de imóveis de
algumas regiões nos últimos anos tem tornado a cidade ainda mais cara e
inacessível para grande parte da população que se vê obrigada a procurar
novas alternativas de habitação, muitas vezes ainda mais distante dos locais
de trabalho e estudo.
Os processos de gentrificação geralmente são antecedidos pela
realização de obras de infraestrutura – em processos geralmente qualificados
como de reabilitação urbana, no sentido já acima descrito - que transformam
uma área historicamente abandonada pelo poder público. Como exemplo, têm-
se os centros históricos das grandes cidades, muitas vezes associados à
marginalidade, à prostituição e ao uso de drogas. Essas áreas, dotadas de
grande patrimônio histórico-cultural, foram abandonadas pelo poder público no
momento em que o planejamento urbano, num determinado período, passou a
priorizar as áreas industriais através de um zoneamento que separava os
diversos usos do solo. Logo, a população de baixa renda passou a ocupar
essas áreas muitas vezes em condições insalubres de moradia.
Mas nem sempre o fenômeno da gentrificação é antecedido por
processos de reabilitação urbana. Esse fenômeno, com suas devidas
peculiaridades que merecem ser apreciadas com mais cautela por outros
pesquisadores, tem ocorrido nas favelas cariocas localizadas na zona sul ainda
que os poderes públicos e o mercado não invistam em nenhuma obra de
urbanização. Essas áreas têm sido altamente assediadas pelo mercado devido
à localização estratégica na zona sul, perfeita para o recebimento de turistas
sobretudo no contexto da realização dos megaeventos de projeção
internacional. Sendo assim, a supervalorização dos imóveis nessas favelas tem
feito com que muitos moradores vendam suas casas e deixem esses locais
para morar nas áreas periféricas da região metropolitana do Rio de Janeiro.
Um dos marcos históricos desse fenômeno é a crise iniciada na década
de 70, na qual o capital internacional necessitou pensar e praticar novas formas
de adiamento (não superação!) no momento crítico em que o capitalismo
passava. A solução foi encontrada na reorganização das cidades.
Essa não foi a primeira vez que o planejamento urbano foi usado para
protelar uma crise do sistema capitalista. Harvey (2012) destaca que no século
XIX essa solução já havia sido utilizada pelo arquiteto Haussmann, na cidade
de Paris que sob um novo modelo de planejamento se tornou a “Cidade da
Luz.”. Nos Estados Unidos, após a crise de 29 e a segunda grande guerra
mundial, o poder público passou a investir em obras de urbanização que
culminaram na criação de várias metrópoles. A urbanização teve um papel
fundamental não só no crescimento das cidades, mas também no crescimento
do mercado consumidor. Com esse processo de urbanização criou-se um novo
padrão de consumo, novas necessidades, novos produtos e,
consequentemente, um novo estilo de vida.
4. O Projeto Porto Maravilha – uma outra versão da história
No intuito de ilustramos as relações entre as ações de reabilitação
urbana e a ocorrência da gentrificação será empreendida a partir de agora a
análise de um das grandes obras pela qual vem passando a cidade do Rio de
Janeiro: o Projeto Porto Maravilha.
O Projeto Porto Maravilha é uma ação de reabilitação urbana da zona
portuária denominada Porto Maravilha, iniciada em 2009 pela Prefeitura do Rio
de Janeiro, que pretende restaurar os cinco milhões de metros quadrados
cercados pelas Avenidas Rio Branco e Francisco Bicalho.
Foi instituído pela Operação Urbana Consorciada da Região do Porto o
Rio de Janeiro, a primeira, com previsão legal na LC 101/2009, que alterou o
Plano Diretor, delimitando uma área especial de Interesse Urbanístico (AEIU)
engloba três bairros: Saúde, Gamboa e Santo Cristo, e dois parcialmente: São
Cristóvão e Cidade Nova.
Sua execução se dá por meio da maior PPP já feita no Brasil – o
Consórcio Porto Novo (integrado pela OAS, Odebrecht e Carioca Engenharia),
no valor de aproximadamente R$ 8 bilhões e seu financiamento está associado
à emissão de CEPACs (Certificados de Potencial Adicional de Construção),
que permitem a elevação da área construída até um coeficiente máximo.
O Projeto vem no bojo de um conjunto de intervenções urbanísticas
realizadas através de políticas conjuntas entre o poder público e o setor
privado, com objetivo de renovar tecidos urbanos degradados a partir da
modernização da infraestrutura urbana, promovendo o potencial dessas áreas
para atrair maiores investimentos, sendo significativa para o seu êxito a aliança
entre as esferas federal, estadual e municipal, pois boa parte da área pertencia
à União.
Outro elemento importante para o êxito do projeto foi a escolha do Brasil
como sede da Copa do Mundo de 2014 e a escolha da Cidade do Rio como
sede das Olimpíadas de 2016 – pois a própria candidatura do Rio, assim como
em Barcelona, já estava vinculada à realização da revitalização da zona
portuária.
Em sua propaganda, o Projeto se propõe a transformar uma das regiões
mais importantes da cidade, que durante anos foi relegada ao abandono, em
um verdadeiro processo de segregação padrão, deixando para a cidade um
dos mais importantes legados dos Jogos Olímpicos de 2016. O objetivo seria
revitalizar a Região Portuária do Rio de Janeiro a fim de reintegrá-la à cidade,
resgatando a região como área histórica, e estimulando o seu povoamento,
gerando uma expectativa de aumento populacional dos 28 mil habitantes atuais
para 100 mil após as obras, segundo declarações de Alberto Gomes da Silva,
assessor especial da presidência da Companhia de Desenvolvimento Urbano
da Região do Porto do Rio de Janeiro (Cdurp) (MELLO, 2011).
Está também na justificativa do Projeto a proposta de uma solução
paisagística (com obras como a demolição da perimetral e sua substituição
pelas vias do binário) que ao mesmo tempo dê conta de outros problemas
urbanos como o tráfego intenso e a promoção de melhoria na qualidade de
vida e nas condições habitacionais.
Em suma, em termos urbanísticos, o discurso trazido é de uma área
degradada, abandonada que precisa ser revitalizada, representando, portanto,
típico caso de discurso da reabilitação urbana, atrelando, portanto, às
limitações e contradições acima indicadas.
Porém, há ainda uma legitimação do projeto trazida pelo envolvimento
de diferentes atores locais – Poder Público, mercado e sociedade civil – no
processo de decisão e implementação do projeto como uma garantia de um
processo transparente. A parceria público privada serviria não apenas à
execução efetiva do projeto como à sua abertura a setores da sociedade civil,
permitindo assim uma gestão consensual da cidade.
Todavia, essa narrativa oficial escamoteia os reais impactos do projeto
na vida dos habitantes antigos e encobre o modo de vida que já existia e se
reproduzia na área antes desta intervenção urbanística.
Na zona portuária viviam/vivem comunidades que construíram fortes
traços da história carioca; já havia vida social nesses bairros, e padrões de
sociabilidade que em nada dialogam com a renovação urbanística lá em curso.
As obras arquitetônicas de grande vulto, o MAR, Museu do Amanhã não
transmitem a cultura e a identidade daquele local; o objetivo, aliás, está longe
disso, cinge-se à atração de investimentos, permitindo, quando muito, que o
tradicional seja vendido como turístico.
Ao contrário do que se propagandeia, os valores históricos dos imóveis
são vistos pelos proprietários, promotores imobiliários e administração pública
como empecilhos para a realização de seus projetos.
Ademais dessa ingerência no cotidiano dos antigos habitantes, muitos
moradores da região foram removidos para dar lugar a empreendimentos
rentáveis e não se sabe se os que lá se mantém após uma possível
especulação imobiliária devido às melhorias urbanas (não só a especulação),
como aconteceu nas reformas feitas ao longo do século XX.
E nisso não há nenhuma surpresa. De fato, o tipo de habitação que se
quer atrair a partir deste projeto não é uma habitação de interesse social. Os
investidores esperados pelo governo somente negociariam os CEPACs se
vislumbrassem um retorno financeiro apropriado, o que não contempla
construção de moradias populares.
Não obstante, a área destinada a habitação social já era habitada por
moradores de baixa renda - a região abrigava vários prédios públicos da União,
do Estado e do Município que, por não cumprirem sua função social, foram
ocupados por populações sem-teto.
Por fim, dentre os atores envolvidos no projeto de revitalização do porto
não se viu justamente aqueles mais atingidos. A participação da sociedade civil
alardeada por acadêmicos se restringiu à participação de empresas privadas e
seus interesses.
5. Conclusão
A partir do que foi visto, têm-se que a reabilitação urbana é
tradicionalmente entendida como uma forma de obter a modernização de
determinadas áreas urbanas degradadas, através de obras de recuperação de
infraestruturas urbanas. No entanto, a leitura crítica desse discurso revela seu
lado oculto, no qual resta evidente que o objetivo central dessas ações é a
criação de uma nova imagem urbana, que possibilite a inserção da cidade
dentro do mercado turístico. Além disso, a reabilitação urbana manifesta-se
como instrumento para liberar espaços valiosos para operações imobiliárias
lucrativas apenas para a parcela rica da sociedade.
Sendo assim, percebe-se que a reabilitação urbana pode ser um fator
desencadeador do fenômeno da gentrificação, assim entendido como uma
forma de segregação no espaço urbano, que se produz frequentemente a partir
de obras de reabilitação urbana, e acarreta a expulsão da população de baixa
renda de locais que se tornaram atrativos para o mercado imobiliário. Dessa
forma, a revitalização urbana que se promove não é revertida em benefício
para as camadas pobres da cidade, mas sim em privilégio para as elites
urbanas. Afinal, os moradores originais das áreas sujeitas a essa requalificação
acabam sendo expulsos, por diversos meios, desses locais.
A gentrificação produzida pela reabilitação urbana foi demonstrada aqui
a partir da análise do Projeto Porto Maravilha, uma vez que, essas obras,
desde seu planejamento até sua execução, vêm sendo implementadas sem o
devido respeito às características culturais e sociais dos moradores que
vivem/viviam no local. Ao contrário, esses proprietários são encarados como
empecilhos para a realização desse projeto. Nesse sentido, muitos dos antigos
moradores já foram removidos para dar lugar aos empreendimentos previstos.
Além disso, em todo o projeto, não houve efetiva participação da sociedade
civil.
Diante disto, resta perguntar: por que não se investir em infraestrutura
urbana ao mesmo tempo em que se possibilite a permanência da população
em determinadas áreas? Por que a periferia é abandonada pelo poder público
e não recebe os mesmos investimentos que outras áreas? Por que adotar as
práticas remocionistas ao invés das políticas de regularização fundiária? Todas
essas perguntas só podem ser compreendidas a partir da percepção de que,
no sistema capitalista o espaço é produto socialmente produzido. A
desigualdade e a segregação fazem parte das estratégias que valorizam certas
áreas em detrimento das outras. O poder público, assim como o mercado,
produz as cidades de maneira a criar barreias entre os diferentes segmentos
sociais, favorecendo os distanciamentos geográfico e simbólico entre as
pessoas.
Nesse sentido, a cidade não pode ser compreendida como uma arena
do consenso, mas sim como um espaço de conflito, onde a disputa entre os
diferentes atores se torna explícita na simples observação da paisagem
urbana, tão desigual. Logo, tem-se no exercício do direito à cidade,
compreendido enquanto direito coletivo, uma possibilidade de conquista de
direitos por atores sociais que são marginalizados cotidianamente pela própria
estrutura do espaço urbano.
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