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SEGUNDA-FEIRA, 19.10.2015 Caso fosfoetanolamina sem qualquer preocupação, pelo menos aparente, com os efeitos colaterais da droga. Parece haver pouca ou nenhuma consideração com o estado psicológico do paciente. Não há qualquer indício sólido de que se tenha procurado, durante os últimos 20 anos em que se alega ter o domínio de produção da droga, iniciar um programa de testes clínicos consistente para se verificar a eficácia da substância. Contato com hospi- tais de referência no tratamento da doença, fixação de parcerias com profissionais e organizações com experi- ência no assunto, não parece haver documentos que ates- tem a existência dessas ações no passado. Segundo a Anvisa, droga sem registro não pode ser distribuída nem vendida como remédio. De acordo com o noticiário, uma pessoa em Santa Catarina que estaria produzindo e distribuindo a substância, foi presa. Intri- gantemente, num claro exemplo do adágio ‘dois pesos, duas medidas’, em outro Estado da federação, a droga está sendo distribuída e ninguém é preso. Não só não é preso, como o STF concede liminar garan- tindo a paciente, acesso à substância, decisão que pare- ce pouco acertada quando se trata de saúde pública, por mais que a saúde pública esteja relegada a segundo plano no País. O ministro Edson Fachin, autor do despacho, entende que a ausência de registro (de medicamento) não implica, necessariamente, lesão à ordem pública. No entanto, esta decisão pode dar ensejo a jurispru- Q ualquer pessoa minimamente sensata que esteja acompanhando o noticiário relativo à produção/dis- tribuição da fosfoetanolamina, deve estar, para di- zer o mínimo, muito confusa. O cenário é de um teatro de malucos. Entre o que se diz e o que não se diz, tem-se toda a razão para acreditar que alguém (ou alguns) está escon- dendo fatos, dizendo meias verdades ou agindo de má-fé. Em primeiro lugar, um pesquisador, de renomada institui- ção de ensino e pesquisa, justamente de quem se deveria esperar discernimento e o máximo de responsabilidade sobre suas ações, passa a distribuir uma droga a pacientes com câncer, sem que se tenha posto em prática qualquer protocolo mínimo de verificação da eficácia da mesma. Razões vão desde teorias conspiratórias do tipo ‘a in- dústria farmacêutica impede o desenvolvimento de qual- quer substância que seja a cura do câncer’ até o descaso das autoridades. Contraditoriamente, alega-se preocu- pação com os infelizes tocados pela ignominiosa doença, JOÃO MANUEL MARQUES CORDEIRO*

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segunda-feira, 19.10.2015

Caso fosfoetanolamina

sem qualquer preocupação, pelo menos aparente, com os efeitos colaterais da droga.

Parece haver pouca ou nenhuma consideração com o estado psicológico do paciente. Não há qualquer indício sólido de que se tenha procurado, durante os últimos 20 anos em que se alega ter o domínio de produção da droga, iniciar um programa de testes clínicos consistente para se verificar a eficácia da substância. Contato com hospi-tais de referência no tratamento da doença, fixação de parcerias com profissionais e organizações com experi-ência no assunto, não parece haver documentos que ates-tem a existência dessas ações no passado.

Segundo a Anvisa, droga sem registro não pode ser distribuída nem vendida como remédio. De acordo com o noticiário, uma pessoa em Santa Catarina que estaria produzindo e distribuindo a substância, foi presa. Intri-gantemente, num claro exemplo do adágio ‘dois pesos, duas medidas’, em outro Estado da federação, a droga está sendo distribuída e ninguém é preso.

Não só não é preso, como o STF concede liminar garan-tindo a paciente, acesso à substância, decisão que pare-ce pouco acertada quando se trata de saúde pública, por mais que a saúde pública esteja relegada a segundo plano no País. O ministro Edson Fachin, autor do despacho, entende que a ausência de registro (de medicamento) não implica, necessariamente, lesão à ordem pública.

No entanto, esta decisão pode dar ensejo a jurispru-

Qualquer pessoa minimamente sensata que esteja acompanhando o noticiário relativo à produção/dis-tribuição da fosfoetanolamina, deve estar, para di-

zer o mínimo, muito confusa. O cenário é de um teatro de malucos. Entre o que se diz e o que não se diz, tem-se toda a razão para acreditar que alguém (ou alguns) está escon-dendo fatos, dizendo meias verdades ou agindo de má-fé. Em primeiro lugar, um pesquisador, de renomada institui-ção de ensino e pesquisa, justamente de quem se deveria esperar discernimento e o máximo de responsabilidade sobre suas ações, passa a distribuir uma droga a pacientes com câncer, sem que se tenha posto em prática qualquer protocolo mínimo de verificação da eficácia da mesma.

Razões vão desde teorias conspiratórias do tipo ‘a in-dústria farmacêutica impede o desenvolvimento de qual-quer substância que seja a cura do câncer’ até o descaso das autoridades. Contraditoriamente, alega-se preocu-pação com os infelizes tocados pela ignominiosa doença,

João Manuel Marques Cordeiro*

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dência que pode vir a se tornar extremamente danosa em termos de segurança médica (depois da concessão verifi-cou-se uma verdadeira corrida à procura da substância). Drogas em estado de testes clínicos, com expectativas de sucesso maiores e mais seguras do que a fosfoetanola-mina existem às centenas, talvez milhares. E não só para cura do câncer, mas de uma série de outras doenças, tão ou mais nefastas do que esta, tanto do ponto de vista pes-soal quanto familiar.

Se todos os pesquisadores que estão envolvidos com o desenvolvimento dessas substâncias resolvessem trilhar

o mesmo caminho do caso presente, se instauraria um es-tado de coisas na saúde pública cujas consequências são difíceis de predizer. Em outras palavras, o STF parece ter chegado à conclusão que todos os protocolos até agora estabelecidos e seguidos quando se trata da comerciali-zação de um medicamento, são inúteis. Os charlatões po-dem vicejar à vontade. Pensando melhor, ao invés de um teatro de malucos, parece mais um circo de horrores.

João Manuel Marques Cordeiro é professor da unesp de ilha solteira