Segurança e medo nas cidades

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O MEDO E MERCADO DA SEGURANÇA NAS CIDADES: Remontando os nexos entre cidade, mercado e afetividade Marcos Henrique da Silva Amaral (Matrícula 15/0098855) 1. INTRODUÇÃO A necessidade de segurança é fundamental; está na base da afetividade e da moral humanas. A insegurança é símbolo da morte, e a segurança símbolo da vida. O companheiro, o anjo da guarda, o amigo, o ser benéfico é sempre aquele que difunde a segurança. Assim, é um erro de Freud “não ter levado a análise da angústia e de suas formas patogênicas até o enraizamento na necessidade de conservação ameaçada pela previsão da morte”. O animal não tem ciência de sua finitude. O homem, ao contrário, sabe muito cedo que morrerá. É, pois, o único no mundo a conhecer o medo num grau tão temível e duradouro (DELUMEAU, 2009, p. 23). É sobre a dualidade segurança/medo e sua interface com a trama urbana que este texto pretende se debruçar, considerando tais elementos como base da afetividade humana entendendo afetividade como termo sinônimo para uma trama reticular de reciprocidades, ou seja, relações humanas que se influenciam mutuamente, em um nível psíquico, podendo ser tomadas como interdependências. Buscando em Elias (1994), afetividade pode ser tomada como uma forma de autorregulação do indivíduo em relação aos outros que, por sua vez, estabelecem limites à autorregulação deste indivíduo. Desta forma, consideramos que, dentro de uma trama de relações humanas, uma pessoa tomada individualmente sempre estará ligada a outras de modos muito específicos por meio da interdependência, a qual chamaremos afeto. Retomando a origem etimológica do termo “afeto”, veremos que ele está relacionado a ideia de “comover o espírito”, “unir”, de modo que —tratando-se de relações humanas afeto parece estar associado à possibilidade e capacidade que as pessoas têm de influenciar outras e serem influenciados por estas , tal qual propõe Elias, com a sua ideia de uma “sociedade dos indivíduos” que se forma a partir de uma rede de valências interdependentes. O medo parece ser o primeiro pilar dos afetos humanos aos quais nos referimos. O primeiro deles, o medo da morte, gera a sua própria contrapartida, a necessidade por segurança, ou seja, auto-preservação 1 . A obra de Jean Delumeau (2009), “História do medo no Ocidente”, 1 Sobre este tema, é válida a leitura da obra Modernidade e Identidade (GIDDENS, 2002). Ao diagnosticar o crescimento progressivo da reflexividade individual na modernidade, seu autor, Anthony Giddens, elenca algumas questões existenciais que fundam a afetividade na formação do eu, dentre as quais está a finitude da vida humana;

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Trabalho apresentado em disciplina de sociologia urbana.

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O MEDO E MERCADO DA SEGURANÇA NAS CIDADES: Remontando os nexos entre cidade, mercado e afetividade

Marcos Henrique da Silva Amaral (Matrícula 15/0098855)

1. INTRODUÇÃO

A necessidade de segurança é fundamental; está na base da afetividade e da

moral humanas. A insegurança é símbolo da morte, e a segurança símbolo da

vida. O companheiro, o anjo da guarda, o amigo, o ser benéfico é sempre

aquele que difunde a segurança. Assim, é um erro de Freud “não ter levado

a análise da angústia e de suas formas patogênicas até o enraizamento na

necessidade de conservação ameaçada pela previsão da morte”. O animal

não tem ciência de sua finitude. O homem, ao contrário, sabe — muito cedo

— que morrerá. É, pois, o único no mundo a conhecer o medo num grau tão

temível e duradouro (DELUMEAU, 2009, p. 23).

É sobre a dualidade segurança/medo e sua interface com a trama urbana que este

texto pretende se debruçar, considerando tais elementos como base da afetividade humana —

entendendo afetividade como termo sinônimo para uma trama reticular de reciprocidades, ou

seja, relações humanas que se influenciam mutuamente, em um nível psíquico, podendo ser

tomadas como interdependências. Buscando em Elias (1994), afetividade pode ser tomada

como uma forma de autorregulação do indivíduo em relação aos outros que, por sua vez,

estabelecem limites à autorregulação deste indivíduo. Desta forma, consideramos que, dentro

de uma trama de relações humanas, uma pessoa tomada individualmente sempre estará ligada

a outras de modos muito específicos por meio da interdependência, a qual chamaremos afeto.

Retomando a origem etimológica do termo “afeto”, veremos que ele está relacionado a ideia de

“comover o espírito”, “unir”, de modo que —tratando-se de relações humanas — afeto parece

estar associado à possibilidade e capacidade que as pessoas têm de influenciar outras — e serem

influenciados por estas —, tal qual propõe Elias, com a sua ideia de uma “sociedade dos

indivíduos” que se forma a partir de uma rede de valências interdependentes.

O medo parece ser o primeiro pilar dos afetos humanos aos quais nos referimos. O

primeiro deles, o medo da morte, gera a sua própria contrapartida, a necessidade por segurança,

ou seja, auto-preservação1. A obra de Jean Delumeau (2009), “História do medo no Ocidente”,

1 Sobre este tema, é válida a leitura da obra Modernidade e Identidade (GIDDENS, 2002). Ao diagnosticar o

crescimento progressivo da reflexividade individual na modernidade, seu autor, Anthony Giddens, elenca algumas

questões existenciais que fundam a afetividade na formação do eu, dentre as quais está a finitude da vida humana;

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parte do princípio de que essa dualidade esteve presente em toda história humana, e está repleta

de exemplos em que o par medo/segurança se manifestou de diferentes formas. Neste texto

teremos a oportunidade de observar alguns destes exemplos, em interface à obra histórica de

Weber (1999) sobre as cidades, publicada como “A dominação não-legítima (Tipologia das

Cidades)”. Ambas as obras deverão servir como suporte para as metas deste texto que se propõe

a observar como se realiza o par medo/segurança nas cidades — fazendo um pequeno percurso

histórico no desenvolvimento dos assentamentos urbanos —, mostrando o caráter apriorístico

desses caracteres nas interdependências urbanas e, por fim, discutir como o medo é

determinante para o surgimento de um mercado em que a principal mercadoria é a própria

segurança.

Partimos do referencial eliasiano, em que a própria sociedade — entendida como

uma trama de interdependências — pressupõe afetividade, ou seja, múltiplas “afetações”

interdependentes, e chegamos à necessidade de mostrar como esses afetos figuram de forma

coletiva, pois, ora, ao falar de um medo e de uma segurança típicos das relações humanas nas

cidades, não se quer tratar de um ou outro caso isolado. A afetividade aparece, então, como

parte do repertório pré-lógico de disposições para agir das pessoas, ou — trazendo a

terminologia usada por Bourdieu — como habitus. Mais pontualmente, o habitus aparece em

Bourdieu como um

(…) princípio gerador duradouramente constituído por improvisos regulados

(…), o habitus produz práticas que, na medida em que tendem a reproduzir as

regularidades imanentes às condições objetivas da produção do seu princípio

gerador, mas ajustando-se às exigências inscritas a título de potencialidades

objetivas na situação diretamente enfrentada, não se deixam diretamente

deduzir nem das condições objetivas, pontualmente definidas como soma de

estímulos, que podem parecer tê-las diretamente desencadeado, nem das

condições que produziram o princípio duradouro da sua produção, não

podemos, pelo que portanto, dar razões de tais práticas a não ser na condição

de relacionarmos a estrutura objetiva definidora das condições sociais de

produção do habitus que as engendrou com as condições do pôr em ação desse

habitus, que dizer, coma conjuntura que, salvo transformação radical,

representa um estado particular dessa estrutura (BOURDIEU, 2002, p. 168).

Interessa a Bourdieu, portanto, o habitus como corpo e, portanto, os saberes que

formam tal princípio são essencialmente corpóreos, sendo interiorizados — e simultaneamente

a contradição existencial por meio da qual os seres humanos são parte da natureza, mas postos à parte como

criaturas que sentem e refletem. Neste sentido, ele destaca a importância da consciência prática ― que ao longo

deste trabalho, ganha forma na categoria de habitus (BOURDIEU, 2002) ― como contrapartida à ansiedade

existencial oriunda do medo da morte. Constrói-se, no âmbito das práticas, uma segurança ontológica que “coloca

em parênteses” questões existenciais como a existência, a morte, a alteridade e a continuidade da auto-identidade.

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exteriorizados — pela prática. Assim, estes saberes incorporados se dão sob a forma de certezas

práticas, de modo que o termo “prática” aparece em contrapartida à ideia de “ação” — usada

por alguns interacionistas, tais como Goffman e Strauss —, pois diz respeito a uma certeza

reproduzida sem, no entanto, reflexividade, ou seja, consciência discursiva. Assim, Bourdieu

segue o rastro de Merleau-Ponty (1999) para quem o mundo vivido, o mundo da experiência é

uma trama de inter-relações entre corpos-objetos: este autor parece encontrar as raízes da

consciência no próprio corpo, de forma que é a relação entre os corpos que gera os saberes do

mundo vivido. Aqui — tanto em Bourdieu quanto em Merleau-Ponty —, o corpo é parte de

uma trama relacional histórica e é, portanto, ele próprio, história — elucidada em certezas

práticas, que são incorporadas e não introjetadas.

A afetividade aparece, seguindo esta direção, como um repertório de saberes

incorporados — saberes “não-sabidos”, que fazem parte do domínio prático dos agentes como

douta ignorância. É válido ressaltar que, adotando-se a praxiologia bourdieusiana, as práticas

não se ajustam imediatamente às condições objetivas às quais se ligam, pois dão respostas

adequadas às conjunturas que Bourdieu chama de “jogos de sociabilidade quotidianos”

(BOURDIEU, 2002, p. 141). Assim, medo e segurança, bem como o amor, ódio e outros afetos

— tomados como saberes práticos não-reflexivos, no sentido já posto; partes de um repertório

pré-lógico de disposições para agir — se manifestam, no nível das práticas, em diferentes graus

e formas. Assim, iremos tratar do medo e da segurança como a priori sociais típicos da trama

urbana, ou seja, como parte de um esquema gerativo de práticas, que se constituem no âmbito

de uma rede de interdependências humanas.

2. O QUE É MEDO

Trazer a discussão sobre os afetos para a sociologia significa não apenas fazer um

exercício hermenêutico no sentido de mostrar que toda relação é afetiva e o social — objeto de

estudo da sociologia — é afetividade, mas também trazer precisão conceitual à discussão, no

sentido de permitir esta forma de cognição. Para tanto, iremos definir o que será entendido por

“medo”, ou seja, qual é a forma deste saber tácito.

O medo, segundo o dicionário, é uma “perturbação ou apreensão resultante da ideia

de um perigo real ou aparente” (HOUAISS, 2009). Segundo Bauman, essa

perturbação/apreensão deriva do “poder superior da natureza, da fragilidade de nossos próprios

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corpos e da inadequação das normas que regem os relacionamentos mútuos dos seres humanos

na família, no Estado e na sociedade” (BAUMAN, 2009, p. 14). Jean Delumeau, ao nos

apresentar diversas manifestações de medo na história do ocidente, parece chegar a um

denominador comum: o medo aparece diante do desconhecido — do estranho — e da

impossibilidade de autopreservação diante de um desconhecido que é potencialmente mau.

Durante muito tempo, por exemplo, o “mar” aparece como principal objeto do medo da

população ocidental, é a expressão real do desconhecido, de modo que — na Idade Média —

esse medo é difundido por meio de provérbios e advertências expressas em relatos de viagens

(DELUMEAU, 2009, pp. 54-70). O estrangeiro sempre foi também um objeto do medo, por

representar o desconhecido — ou a novidade —; aquele a quem devemos desconfiança.

Assim, a definição de medo parece estar sempre associada à apreensão gerada pelo

desconhecido, pela novidade e pelo estrangeiro que representam ameaça à regularidade da vida

cotidiana. Mais ainda, chamando atenção para a epígrafe deste texto, o medo é a apreensão

diante da maior certeza que se tem, que é a morte. A morte é, portanto, a expressão máxima do

desconhecido — embora seja uma certeza — e da fragilidade humana. Ainda segundo Bauman,

mais do que a própria fragilidade diante do poder superior da natureza — que pressupõe a

própria morte — o medo aparece diante da inadequação diante de normas morais que regem as

interdependências humanas, pois seria esta própria trama relacional a possibilidade de

segurança. Existem, portanto, objetos que geram medo coletivo em determinadas épocas, tais

como os já citados: o mar, o estrangeiro, a morte, dentre outros.

No entanto o objeto do medo não precisa ser real, podendo ser apenas um perigo

aparente, conforme a definição do dicionário e conforma mostra Bauman, ao afirmar que

(…) vivemos em sociedades que sem dúvida estão entre as mais seguras

(sûres) que já existiram. No entanto, em contraste com essa evidência objetiva,

o mimado e paparicado “nós” sente-se inseguro, ameaçado e amedrontado,

mais inclinado ao pânico e mais interessado em qualquer coisa que tenha a ver

com tranquilidade e segurança que os integrantes da maior parte das outras

sociedades que conhecemos (BAUMAN, 2009, p. 13).

Ele encontra justificativa para o aumento do sentimento de insegurança nos próprios

aparatos de segurança que estão disponíveis para as pessoas. Assim, o que deveria gerar

segurança acaba por causar o seu contrário, pois se ora têm-se inúmeras possibilidades de

manter-se seguro, isto seria indicativo de alguma ameaça iminente. Assim, a “nebulosidade” do

objetivo para tamanha segurança acaba por gerar medo. Trata-se, portanto, de um objeto

imaginário para tal medo, uma ameaça virtual, por assim dizer. Pensemos, a partir de agora,

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como se realiza este medo nas cidades contemporâneas2. Bauman lança esta pista, a que

devemos seguir, ou seja, o aumento do sentimento de insegurança nas cidades atuais. No

entanto, mais do que nos prender à ideia de uma extrema segurança que acaba por gerar seu

contrário, iremos buscar em Weber (1999), como se constituíram as cidades — para então

observar a tipicidade do que ele chama de cidade moderna, e como esta tipicidade está atrelado

ao crescente aumento do medo.

3. O QUE É CIDADE: UMA BREVE EXPLANAÇÃO SOBRE A

TIPOLOGIA WEBERIANA DAS CIDADES

A ideia fundamental de Weber é de que a cidade é o palco de dois processos

simultâneos que permitem caracterizar um assento populacional como uma cidade: o mercado

— e as regulamentações da “política econômica urbana” — e a autoridade político-

administrativa que sujeitava os habitantes da cidade, mas, ao mesmo tempo, assegurava a eles

certos direitos relativos a seu destino político. Mais sistematicamente, Weber mostra que para

tratarmos um dado povoado como cidade, ele deve estar fundamentado em dois pilares: (i) a

existência de uma sede senhorial-territorial, à qual ele chama de oikos; e (ii) a realização de

uma troca de bens regular no povoado como componente fundamental para a satisfação das

necessidades dos moradores: a existência de um mercado.

Após explanar sobre a diversidade de características econômicas e político-

administrativas que dão origem às cidades — elas podem ter origem principesca, mercantil,

industrial ou consumística3, embora sempre marcadas pelas presença de um mercado e de uma

sede administrativa —, Weber cria uma definição mais precisa do termo em questão, a partir

de um conjunto de circunstâncias necessárias para o seu pleno desenvolvimento: a existência

2 Estudar o “contemporâneo”, segundo Agamben (2009), pressupõe um movimento “dialético” de simultâneo

afastamento e aproximação em relação a este tempo presente. Tal movimento justifica-se pelo fato de estar-se

inserido, e de ser tal tempo constituinte do próprio “vivente”, o que dá ao contemporâneo um status de obscuro e

descontínuo. Seguindo essa direção, segundo o autor, podemos definir o contemporâneo que acaba por constituir

o vivente, como descontínuo, amorfo, inacabado; fazendo com que a sociologia possa ser tomada como ciência

que busca decifrar o “indecifrável”, dado o seu compromisso em conceituar o contemporâneo — sendo o sociólogo

parte constituinte e constituída deste tempo. 3 Aqui é válido a colocação de que Weber está trabalhando com um modelo típico-ideal. Nas palavras do próprio

autor: “(…) nenhum dos tipos-ideais costuma existir historicamente em forma realmente ‘pura’, o que não deve

impedir em ocasião alguma a fixação do conceito na forma mais pura possível” (WEBER, 1994, p. 141). A

tipologia sociológica oferece ao trabalho histórico empírico a vantagem de poder dizer, no caso particular de uma

cidade, o que há nela de principesca, mercantil, industrial ou consumística, ou seja, em que ela se aproxima de um

destes tipos, além de trabalhar com conceitos razoavelmente inequívocos. “Nem de longe se cogita aqui sugerir

que toda a realidade histórica pode ser ‘encaixada’ no esquema conceitual no que segue” (Weber, 1994: 142).

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de uma fortaleza (“fortificação”); a presença do mercado; a existência de um tribunal e um

direito próprios, que deveriam submeter todos os cidadãos; a existência de uma relação

associativa entre seus membros; e uma capacidade, ao menos parcial, de decisão e autonomia.

Por fim, a cidade requereria, então, uma administração que se fizesse por intermédio de

autoridades, que deveriam ser designadas a partir da participação ativa dos cidadãos — os

burgueses, habitantes dos burgos.

A partir dessa definição, ele faz uma análise da cidade medieval do ocidente — em

interface à análise das cidades antigas e asiáticas —, como exemplo que mais se aproxima desse

tipo-ideal genérico de “cidade”, sempre tentando lançar seu olhar sobre a cidade moderna4. Ele

busca mostrar por que somente nos países ocidentais se deu o desenvolvimento de uma

cidadania que tentasse alcançar uma autonomia com a escolha de seu próprio governo. Com

isso, o que se coloca em discussão é a relação da cidade com as noções de “comuna urbana” e

“cidadão/cidadania”.

A comuna — comunidade — urbana é característica típica da cidade medieval do

ocidente — assentamento industrial-mercantil —, dizendo respeito essencialmente ao caráter

de participação dos cidadãos na administração da cidade. Mais ainda, a participação dos

cidadãos, a partir da formatação de uma comuna, representa um direito de cidadão. “(…) na

fundação de cidades novas, o cidadão entrava na comunidade urbana como indivíduo. Como

indivíduo, prestava o juramento de cidadão. Pertencer pessoalmente à associação local da

cidade, e não ao clã ou à tribo, garantia-lhe sua posição jurídica pessoal como cidadão”

(WEBER, 1999, p. 433). Assim, ao que parece, historicamente, a cidade medieval parece

afastar-se, progressivamente, do tipo ideal de dominação legitimada pela tradição,

aproximando-se do tipo de dominação racional, embora ainda caracterize-se pelo

patrimonialismo burocrático.

Um dos fatores que favoreceu o desenvolvimento “pleno”5 da cidade medieval no

ocidente foi o autoequipamento do exército — não importando se era de camponeses, de

cavaleiros ou uma milícia de cidadãos. Isto significava a autonomia militar do indivíduo,

gerando uma dependência mútua entre o senhor e os membros de seu exército que, por portarem

autonomia, não se submetiam cegamente ao senhor. O senhor não tem, portanto, para o caso da

4 Cidade antiga, cidade medieval, cidade asiática e cidade moderna não são tipos ideais, mas sim casos históricos

observados por Weber, a partir de sua tipologia. 5 Embora o autor pontue diversas características para aquilo que expressasse a plenitude da definição de “cidade”,

tendo sido elencadas no decorrer deste texto, considera-se aqui o desenvolvimento pleno da cidade como a

conjunção da presença do mercado e da sede senhorial-territorial com a formação de uma “comuna” urbana em

torno da ideia de cidadania.

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cidade medieval, aparatos coativos para impor obediência, dependendo destarte da boa vontade

dos membros do exército. No caso asiático — na China especificamente — o “soldado” se

submetia cegamente ao rei, pois era sustentado e equipado pela burocracia real. Isto significava,

do ponto de vista político, a não-participação dos membros do exército, e um direito que atendia

não à cidade, mas sim à burocracia real.

No ápice da autonomia urbana, as cidades ocidentais passaram a apresentar as

seguintes tendências: (i) independência política e uma política externa expansiva; (ii)

estabelecimento autônomo do direito pela cidade e por seu mercado; (iii) autocefalia, com

autoridade judiciais e administrativas próprias6; (iv) poder tributário sobre os cidadãos; (v)

direito referente ao mercado, e polícia autônoma do comércio e da indústria (WEBER, 1999,

pp. 485-490).

Esse processo de autonomização da cidade medieval não culmina, contudo, no

aparecimento de uma cidade moderna com plena autonomia. Pelo contrário, o contínuo

processo de racionalização e burocratização das funções administrativas da cidade acaba por

ser uma das causas da gênese do capitalismo moderno e do Estado-Nação, que acaba por

significar uma perda da autonomia política, militar e jurídica das cidades modernas.

4. O MEDO NA CIDADE

Retomando Bauman — e associando suas ideias à de Weber —, o crescente

aumento do medo nas cidades parece estar associado à consolidação da cidade moderna, tal

qual propõe Weber. O primeiro fator a ser elencado é a própria perda da autonomia militar da

cidade. Se a cidade medieval era marcada por uma autonomia militar que garantia a segurança

do mercado, na cidade moderna os exércitos das cidades deixam de existir, e suas competências

são confiadas ao Estado-Nação. Um segundo fator a ser lembrado é a multiplicação dos espaços

públicos nas cidades modernas, pois é somente nestas cidades que passa a aparecer uma nítida

separação entre público e privado. A constituição do espaço público representa a não-

possibilidade de controle de entrada e saída de pessoas, o que significa um espaço de livre

acesso, em que há o convívio e constante encontro com o desconhecido — sendo o estrangeiro

6 As cidades medievais aplicavam “um direito específico e uniforme, comum a todos os cidadãos urbanos, surgido

dos costumes ou por estabelecimento autônomo, imitação, adoção ou concessão no momento da fundação da

cidade, segundo o modelo de outra cidade. Excluíam progressivamente dos processos os meios de prova irracionais

e mágicos, o duelo, os ordálios e o juramento prestado pelo clã, em favor de uma demonstração racional” (WEBER,

1999, p. 486).

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o maior representante deste desconhecido. Por fim, um terceiro fato, é que as cidades modernas

inserem-se num contexto de capitalismo global e se tornam o ponto de encontro entre “poderes

globais” e “identidades tenazmente locais”, como chama atenção Bauman (2009, p. 35). Isto

representa, mais uma vez, um constante fluxo — entradas e saídas — que ampliam e

potencializam o encontro com o estrangeiro e com o diferente. Estes três fatores parecem ser,

então, os principais pilares do medo nas cidades modernas. Para elucidar essa tipicidade — e

remontando o método comparativo de Weber —, trago uma narrativa de Delumeau:

No século XVI, não é fácil entrar à noite em Augsburgo. Montaigne, que visita

a cidade em 1580, maravilha-se diante da “porta falsa”, protegida por dois

guardas, que controla os viajantes chegados depois do pôr do sol. Estes

deparam, antes de tudo, com uma poterna que o primeiro guarda abre de seu

quarto, situado a mais de cem passos dali, por intermédio de uma corrente de

ferro, a qual puxa uma peça também de ferro “por um caminho muito longo e

cheio de curvas”. Passado esse obstáculo, a porta volta a fechar-se

bruscamente. O visitante transpõe em seguida uma ponte coberta situada sobre

um fosso da cidade e chega a uma pequena praça onde declara sua identidade

e indica o endereço que o alojará em Augsburgo. O guarda, com um toque de

sineta, adverte então seu companheiro, que aciona uma mola situada numa

galeria próxima ao seu aposento. Essa mola abre em primeiro lugar uma

barreira — sempre de ferro — e depois, com auxílio de uma grande roda,

comanda a ponte levadiça “sem que nada se possa perceber de todos esses

movimentos, pois são conduzidos pelos pesos do muro e das portas, e

subitamente tudo isso volta a fechar-se com grande ruído (DELUMEAU,

2009, p. 11).

A narrativa continua, com outros diversos obstáculos para a entrada do estrangeiro

na cidade que hoje é parte da Alemanha. Em suma, qualquer estrangeiro que queira ter acesso

à cidade tem que passar por quatro grossas portas, uma ponte sobre um fosso, uma ponte

levadiça e alguns outros mecanismos de segurança. Nas cidades atuais, como bem chama

atenção Bauman, a quantidade de aparatos de segurança oferecidos na cidade é incontável, mas

— em contrapartida — não há impedimentos à entrada e à saída de pessoas. Uma situação como

a trazida pela narrativa sobre a Augsburgo do século XVI seria inimaginável nos dias de hoje.

Ou seja, tendo se tornado sede do “ciberespaço” (BAUMAN, 2009, p. 27) — ou seja, da

dinâmica de trocas globais —, as cidades atuais tornaram-se lugares onde há uma multiplicidade

de espaços públicos, em que reinam o anonimato e onde se convive com o diferente e com o

estrangeiro. Retomando a discussão de Giddens (2002) em torno das questões existenciais que

fundam a afetividade moderna, é precisamente a inacessibilidade à consciência dos outros que

cria uma dualidade problemática entre confiança e alteridade. É necessário ressaltar que a

ansiedade existencial em relação à presença de outrem é traço típico e essencial das cidades

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maiores, cujos laços de reconhecimento ― e, portanto, de confiança ― são mais esparsos.

Como chama à atenção Simmel (1967), a lógica nas cidades menores é diferente, considerados

os laços sociais de reconhecimento circunscritos nos “pequenos círculos”, calcados pela

pessoalidade, pelos relacionamentos paroquiais e pela liberdade limitada pelas próprias relações

de reconhecimento estabelecidas7.

Do ponto de vista sociológico, este medo — causado, em parte, pela “abertura dos

muros da cidade” — tem fortes implicações na sociabilidade da cidade. Pensar o medo como

um saber pré-lógico que oferece disposições, significa assumir sua relevância do ponto de vista

da sociabilidade urbana, uma vez que tal sociabilidade se dá a partir dessas disposições. Assim,

a constituição da cidade moderna — a partir dos pilares da racionalização da administração —

se dá com a nítida separação entre o público e o privado. O espaço privado é o espaço da casa,

da pessoalidade; enquanto o público é o espaço da impessoalidade e da equalização dos

citadinos. Assim, a demanda afetiva no espaço público é por anonimato, impessoalidade, não-

relacionalidade e uniformização de comportamentos — de modo a gerar uma sensação de

segurança diante de um ambiente inicialmente inóspito (SIMMEL, 2014).

Para Simmel (1967; 2014), nas metrópoles, é a “economia do dinheiro” que pode

ser tomada como fator de uniformização de seus habitantes. Assim o autor se dedica a analisar

como funciona a lógica de interação do indivíduo com a metrópole, delimitando a maneira pela

qual essa interação incide sobre as formas de sociabilidade nesse ambiente urbano.

A primeira característica da metrópole que podemos citar, segundo Simmel, é a

intensificação dos estímulos nervosos externos, de forma que é criado um descompasso entre a

apreensão consciente da exterioridade pelos indivíduos e a frequência dos estímulos emitidos.

Mais do que isso, Simmel chama atenção para a preponderância dos estímulos visuais sobre os

estímulos auditivos. A cidade torna-se, quase sempre, mera paisagem para as pessoas que

flanam — os flâneurs (BENJAMIN, 1989, p. 186). Em oposição a um espaço vivido, gerador

de memórias, a metrópole é marcada pela atitude prosaica das pessoas em relação aos espaços

por onde flanam. Essa atitude prosaica — convergente a uma certa indiferença — pode ser

chamada de blasé, como definida por Simmel. A atitude blasé — segundo o autor, um dos

traços mais característicos da metrópole — pode ser tomada como uma certa falta de

reatividade, como defesa aos estímulos exteriores que tendem a uniformizar os indivíduos.

7 Deste modo, a análise ora operada, tem validade científica diretamente proporcional às diversas variáveis

independentes que definiriam a cidade segundo Wirth (1967); especialmente tamanho, densidade demográfica,

heterogeneidade dos habitantes e das atividades. Ou seja, tanto mais a análise será válida quanto mais complexa

― ou orgânica, remetendo-nos à analogia durkheniana da sociedade como organismo ― for a trama urbana

observada.

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Assim, essa atitude blasé é uma forma defesa das personalidades individuais — preservação da

subjetividade — em detrimento à uniformização sugerida pelo marco normativo da metrópole,

a economia monetária. A atitude de reserva — que está associada também à indiferença e à

antipatia — também é uma atitude de autopreservação, pois como bem observa Benjamin, o

flâneur é acima de tudo alguém que não se sente seguro em sua própria sociedade. Assim, a

sociabilidade da metrópole é marcada — antes de tudo — pela frieza ilustrada nessas atitudes

blasé e de reserva. Quanto a essa frieza, é suficiente, à priori, esclarecer sua íntima relação com

a impessoalidade das relações. Destarte, a frieza que perpassa a sociabilidade na metrópole nos

remete ao anonimato, que implica em relacionamentos de caráter prosaico — como bem analisa

Augé (1994), ao caracterizar os não-lugares. Benjamin (1989) sintetiza a sociabilidade da

metrópole ao mostrar que o homem da metrópole é o homem na multidão. Com isso, ele coloca

em questão o par solidão/multidão, nunca tratando-o como uma ambivalência, mas sim como

instâncias que se interpenetram: trata-se da solidão dentro da multidão, como o autor explica:

“por um lado o homem se sente olhado por tudo e por todos, simplesmente o suspeito; por outro

o totalmente insondável, o escondido” (BENJAMIN, 1989, p. 190).

Assim, a trama da metrópole pressupõe que todos são, simultaneamente, anônimos

e suspeitos. E isso, por si só, gera o fator medo. O medo de estar entre desconhecidos. Para

Bauman,

(…) a cidade é um espaço em que os estrangeiros existem e se movem em

estreito contato. Componente fixo da vida urbana, a onipresença de

estrangeiros, tão visíveis e tão próximos, acrescenta uma notável dose de

inquietação às aspirações e ocupações dos habitantes da cidade (…). O medo

do desconhecido (…) busca desesperadamente algum tipo de alívio. As ânsias

acumuladas tendem a se descarregar sobre aquela categoria de “forasteiros”

escolhida para encarnar a “estrangeiridade”, a não-familiaridade, a opacidade

do ambiente em que se vive e a indeterminação dos perigos e das ameaças

(…). O estrangeiro é, por definição, alguém cuja ação é guiada por intenções

que, no máximo, se pode tentar adivinhar, mas ninguém jamais conhecerá com

certeza (BAUMAN, 2009, p. 37).

DaMatta (1986) sintetiza estas ideias a partir do par casa/rua. A casa, neste cenário,

representa segurança, menos por causa de seus muros e fechaduras, e mais pelo tipo de

sociabilidade que se estabelece. Ou seja, a casa, como categoria analítica, é um lugar moral,

em que as pessoas são membros de uma família, e a relação de pessoalidade — onde todos se

conhecem — significa segurança, hospitalidade. A rua aparece, portanto, como oposição à casa,

sendo espaço do anonimato e insegurança: “na rua não há, teoricamente, nem amor, nem

consideração, nem respeito, nem amizade. É local perigoso, conforme atesta o ritual aflitivo e

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complexo que realizamos quando um filho nosso sai sozinho, pela primeira vez, para ir ao

cinema, ao baile ou à escola” (DAMATTA, 1986: 29). Assim, os autores citados dão pistas de

que a própria separação entre público e privado ― a rua e a casa ―, sendo o primeiro o espaço

por excelência do medo, representa um determinante para esta sensação de “insegurança”. Mais

ainda, é determinante o fato de o espaço público não ter um controle de entradas e saídas —

sendo um espaço onde os diferentes se cruzam —, que transubstancia todas as pessoas que

transitam na cidade em potenciais ameaças.

5. O MERCADO DA SEGURANÇA: COMERCIALIZANDO AFETOS

O fator medo [implícito na construção e reconstrução das cidades] aumentou,

como demonstram o incremento dos mecanismos de tranca para automóveis;

as portas blindadas e os sistemas de segurança; a popularidade das gated

and secure communities para pessoas de todas as idades e faixas de renda; a

vigilância crescente dos locais públicos, para não falar dos contínuos alertas

de perigo por parte dos meios de comunicação (ELLIN apud BAUMAN,

2009, p. 41).

Diante do medo generalizado que rege a sociabilidade urbana, surge um mercado

em que a principal mercadoria é a própria segurança das pessoas. Ou seja, um mercado que

oferece serviços de preservação da vida — ainda que, em teoria, o Estado, ao deter o monopólio

do uso da força, tenha este papel. São serviços como os citados na epígrafe acima acrescidos de

vários outros exemplos, como as empresas que vendem seguros patrimoniais — em que o

próprio significante já indica a mercadoria, a segurança — e os serviços de guardas e

seguranças particulares. O interessante a ser notado é que, em boa parte destes casos, o próprio

nome dos serviços oferecidos já indica sua intrínseca relação com a ideia de segurança. Bauman

argumenta, como já proposto, que esse crescente aumento na oferta de segurança gera — por

si só — um aumento do medo: significa criar um inimigo oculto, desconhecido, porém

potencialmente real, e diante disso, este mercado se alimenta. A publicidade deste mercado usa,

incansavelmente, as ideias de segurança, proteção, assistência, confiança e tranquilidade, como

mostram os recortes a seguir, extraídos das propagandas de algumas agências de seguro: “Feche

sua porta para o imprevisto: assistência 24 horas e muita tranquilidade pra você”; “Proteja

quem você ama. Começando por você mesma”; “Quem já venceu muito na vida merece

proteção com tranquilidade e facilidade”; “você garante a proteção da família por um ano

inteiro”; “O Seguro Auto foi desenvolvido para facilitar o seu dia-a-dia e deixar você e sua

Page 12: Segurança e medo nas cidades

família mais protegidos e tranquilos”; “Eu confio minha proteção à Liberty Seguros”;

“Corremos para o proteger. Confie nesta equipe”8.

Assim este mercado da segurança — ao dispor dos mais variados mecanismos que

assegurem às pessoas a preservação da vida — detém a possibilidade de dar conta do medo nas

cidades. No entanto, mais do que se apresentar como solução em relação ao medo generalizado

da cidade, ele pode gerar mais medo. Com isso este mercado tem nas mãos a balança

medo/segurança, e se alimenta a partir dela, conforme lhe convém. Nos limitaremos a analisar

o que Bauman chama de “arquitetura do medo”. Ou seja, entraremos em um mercado em que

a principal mercadoria é o imóvel, a casa, mas veremos que ele é eivado pelo mercado da

segurança. Aliás, a ideia de “morar com segurança” é o principal lema deste mercado.

Passemos, primeiramente, pela noção de “enclave fortificado”, proposta por Teresa

Caldeira (1996). Ao fazer uma análise da cidade de São Paulo, a autora percebeu a multiplicação

dos muros: “Hoje é uma cidade feita de muros. Barreiras físicas são construídas por todo lado:

ao redor das casas, dos condomínios, dos parques, das praças, das escolas, dos escritórios (…).

A nova estética da segurança decide a forma de cada tipo de construção, impondo uma lógica

fundada na vigilância e na distância” (CALDEIRA, 1997, p. 305). Neste sentido o enclave

fortificado é uma construção separada física e idealmente da cidade, e pretende oferecer, às

classes médias e altas, lazer, consumo, lazer e moradia, sob as promessas de segurança e

tranquilidade. Assim, a própria forma com a qual se constituem estes espaços — ou seja, sua

arquitetura — pressupõe esta segurança, que se dá a partir do isolamento e da distância, como

observa Lima (2009) em sua análise do shopping Casa Park, em Brasília, cuja arquitetura

promove o isolamento simbólico de seus frequentadores (cf. Imagem 2).

Assim, tem se tornado crescente o número de comércios de luxo e de moradias do

tipo “condomínio fechado”, que são separados do restante da cidade por grandes muralhas, e

poderosos sistemas de vigilância, dentre os quais, câmeras, alarmes, portões fortificados, além

dos próprios guardas, que cumprem o papel de “recepção”. Essa separação tem grande

representação simbólica: “Os moradores dos condomínios mantêm-se fora da desconcertante,

perturbadora e vagamente ameaçadora — por ser turbulenta e confusa — vida urbana, para se

colocarem ‘dentro’ de um oásis de tranquilidade” (BAUMAN, 2009, p. 40).

Assim, este tipo de construção presta-se à proteção de seus habitantes e não à sua

integração nas comunidades às quais pertencem. Por isso Bauman afirma que estes espaços

estão mais fortemente relacionados, do ponto de vista valorativo, com outros espaços que se

8 Trechos extraídos de publicidades das empresas Porto Seguro, Caixa Seguros, Bradesco Seguros e Liberty

Seguros.

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encontram a distâncias enormes, enquanto se afastam drasticamente das localidades e pessoas

que são fisicamente vizinhas, porém socialmente e economicamente distantes. Assim, os

arquitetos buscam projetar não simplesmente imóveis, mas sim segurança, e por isso eles

acabam fazendo parte do mercado da segurança. Mais do que moradias, eles projetam

shoppings, parques, clubes, escolas e hospitais que se pretendem lugares seguros, onde as

pessoas podem ser deixadas em paz, livres para se abandonar às necessidade e confortos da sua

vida cotidiana. Cada vez mais frequentemente, são projetadas construções que pretendem reunir

— em um só lugar, isolado — vários dos empreendimentos citados. A ideia da moradia somada

ao lazer e ao comércio é cada vez mais difundida (ver Imagem 1), de modo que as pessoas não

precisem enfrentar o lado de fora, inóspito, em que não há o controle de entradas e saídas, não

há possibilidade de domínio diante do diferente. Esta talvez seja o grande diferencial dos

“enclaves”: o controle rigoroso de entradas e saídas de pessoas, ou seja, há o domínio sobre o

desconhecido que gera medo e, assim, garantia de autopreservação.

Segundo Flusty (1997), as estratégias utilizadas por estes empreendimentos —

“portaria, monitoria eletrônica, serviço de segurança terceirizado (seleção muito rigorosa)”9

— seriam equivalentes modernos aos fossos, muralhas e pontes levadiças da Augsburgo do

século XVI. A diferença entre ambos se encontra no fato de que, no caso das cidades antigas e

medievais, estes mecanismos eram impostos para a entrada na própria cidade, enquanto que,

nas cidades modernas, estes mecanismos são exclusivos de algumas construções dentro da

própria cidade. Na verdade, eles aparecem como forma de suprir a ausência de um controle do

desconhecido na própria cidade. Neste sentido, essas obras acabam por segregar e dividir, ou

seja, não geram redes de convivência, o que acaba por se manifestar sob a forma de mixofobia,

ou seja, medo de misturar-se, conforme terminologia de Bauman (2009, p. 43).

Este processo se dá a partir do momento em que as pessoas — ao manterem-se em

verdadeiros enclaves dentro das cidades — deixam de conviver com o diferente. Ou seja, os

enclaves são, por excelência, lugares de semelhança: forma-se uma espécie de “comunidade de

semelhantes”, consideradas as classes sociais e valores das pessoas que habitam estes lugares.

Isto acaba por ser uma retirada da alteridade que existe lá fora, tornando o diferente ainda mais

diferente, e o exterior ainda mais inóspito. Algo assim como uma estratégia forjadora de

segurança ontológica face à ansiedade existencial instaurada pela alteridade heterogênea da

cidade moderna (GIDDENS, 2002).

Segundo Bauman:

9 Retirado da publicidade do condomínio “Brookfield DF Century Plaza”, localizado em Águas Claras no

Distrito Federal.

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Quanto mais tempo se permanece num ambiente uniforme — em companhia

de outros “como nós”, com os quais é possível “se socializar”

superficialmente, sem correr o risco de mal-entendidos e sem precisar

enfrentar a amolação de ter de traduzir um mundo de significados em outro —

, mais é provável que se “desaprenda” a arte de negociar significados e um

modus convivendi (BAUMAN, 2009, p. 46).

Com isso, essa “arquitetura do medo” parece, progressivamente, se incorporar nas

disposições para agir das pessoas, na forma de certezas práticas que compõem o repertório do

que Wirth (1967) chamará de urbanismo como modo de vida. E que certezas práticas seriam

estas? É a certeza de que o exterior é perigoso, que a alteridade é estranha e que, diante de tais

inseguranças, o “não misturar-se” é a prática mais adequada. Assim, este “medo de misturar-

se” aparece como saber tácito dos habitantes da cidade, elucidados nos próprios

comportamentos nos espaços públicos, como a atitude blasé, a reserva e a desconfiança

(SIMMEL, 1967; AUGÉ, 1994; GOFFMAN, 2010). A ideia de compartilhar o espaço — que

pressupõe compartilhar experiências — é minada pela criação constante de espaços exclusivos,

apartados dos demais, que limitam a interação de experiências com a alteridade. Diante disto,

não seria errado afirmar que os “arquitetos” detêm a possibilidade de dar conta do par

mixofobia/mixofilia (propensão a misturar-se) nas cidades, pois — como visto — o isolamento

de áreas residenciais e dos espaços frequentados pelo público, que prometem uma solução para

o medo, acabam por potencializar a mixofobia.

Ou seja, usando esta “arquitetura do medo” como exemplo fundamental, podemos

afirmar que o mercado da segurança cria, reproduz e intensifica a sua própria demanda, que

afirmam satisfazer.

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Imagem 1: Planta de condomínio em Águas Claras, onde há a conjunção — dentro de um “enclave” — de

moradia, comércio e lazer.

Imagem 2: Shopping CasaPark, centro comercial que se enquadra na ideia de “enclave fortificado”

(Foto: Carolina Lima)

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6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A título de conclusão — e lembrando que os nossos objetivos diziam respeito à

forma com a qual se realiza o medo nas cidades e se cria um mercado que pretende vender

segurança para eliminar este medo —, chegamos a um ponto interessante: diante de uma

racionalização crescente do mercado nas cidades modernas, desenvolvem-se comércios que têm

os afetos como mercadoria principal. Limitamo-nos, aqui, a tratar da venda de segurança, mas

a venda de afetos se dá em outras formas de comércio, como no caso dos salões de beleza, de

prostitutas, asilos para idosos etc. Mais ainda, em boa parte dos casos, esses mercados de afetos

criam e reproduzem a sua própria demanda.

Voltando ao exemplo que utilizamos no texto, seria conveniente perguntarmos

quais são as reais possibilidades dos arquitetos incidirem sobre o par mixofobia/mixofilia. O

caso de Brasília é um exemplo clássico, em que estas possibilidades são colocadas em cheque.

Tendo sido planejada para gerar comunidades marcadas pela integração entre seus membros, o

que se observa é o quadro recorrente de outras metrópoles, marcado pela mixofobia. Muitos

dos aparatos usados pelos planejadores de Brasília para gerar integração, como as quadras

esportivas dos setores habitacionais, acabam por ser — muitas vezes — motivos de

desentendimento entre os moradores e potencializadores do sentimento de insegurança, ao

servir de abrigo para a alteridade desconhecida. Dessa forma, o medo parece ser indissociável

do habitus urbano, de modo que a “arquitetura do medo” e o mercado da segurança — cada vez

mais presentes nas cidades — parecem potencializar este medo de um perigo oculto.

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